Ditadura,
Repressão e
Conservadorismo
Copyright © 2011 Fernando Ponte de Sousa e Michel Goulart da Silva
Capa
Tiago Roberto da Silva
Fernando Ponte de Sousa
Michel Goulart da Silva
(Organizadores)
Revisão
Mariana Silveira dos Santos Rosa
Editoração eletrônica
Flávia Maria Torrezan e Tiago Roberto da Silva
Bibliotecária
Luiza Helena Goulart da Silva
D615 Ditadura, repressão e conservadorismo / Fernando Ponte
de Sousa e Michel Goulart da Silva (organizadores). –
Florianópolis: UFSC, 2011.
303 p. 14 x 20 cm.
Ditadura,
repressão e
Vários colaboradores
ISBN 978-85-61682-57-6
1. Ditadura. I Sousa. Fernando Ponte de. II Silva, Michel
Goulart da
conservadorismo
CDD: 320
2011
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Editoria Em Debate
Campus Universitário da UFSC – Trindade
Centro de Filosoia e Ciências Humanas
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Impresso no Brasil
Florianópolis
2011
SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................ 7
1. Franquismo y masonería ........................................................... 11
Yván Pozuelo Andrés
2. A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana ........... 37
Cristiano Cruz Alves
3. Aspectos do antissemitismo no
discurso integralista de Gustavo Barroso .................. 67
Luiz Mário Ferreira Costa
4. A parceria entre Estado e empresariado
na repressão ao operariado em Recife
de 1940 a 1950 ........................................................................................ 87
Arleanda de Lima Ricardo
5. Dentro da estrutura repressiva: o sistema de
segurança interna – imaginário anticomunista
e repressão política em Minas Gerais no
começo da década de 1970..................................................... 107
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
6. La representación del desplazamiento
Apresentação
forzado por la violencia en Colombia........................ 151
William Ortiz Jiménez
7. Os militares brasileiros e
a “grande mentira”...................................................................... 185
Michel Goulart da Silva
8. Ditadura, memória e consenso: a Campanha
da Mulher pela Democracia (CAMDE)........................... 209
Janaina Martins Cordeiro
9. Crítica à punição eterna como memória
histórica ........................................................................................... 249
Fernando Ponte de Sousa
10. Neofascismo, Internet e História do
Tempo Presente ............................................................................. 267
Fábio Chang de Almeida
E
ste volume reúne textos que discutem e problematizam
algumas práticas e representações conservadoras produzidas ao longo do século XX e nas primeiras décadas do século
XXI. Como é possível veriicar pelos textos aqui reunidos, em
alguns casos, esse conservadorismo engendrou ações repressivas, visando conter as ações políticas de movimentos populares
ou de grupos de esquerda, redundando em fenômenos ditatoriais, como no Brasil, a partir do golpe civil-militar de 1964. Por
outro lado, também são discutidas em alguns dos textos deste
volume as representações produzidas a partir de fenômenos
conservadores, principalmente traumas ou disputas simbólicas
provocados por ditaduras, que se materializam nas disputas por
memórias, na escrita histórica desse processo ou nos resquícios
que permanecem da ditadura.
Os fenômenos conservadores, neste volume, são entendidos como aqueles que estão ligados a uma pretensão de rejeitar
o novo e o apelo à mudança, encarados como riscos à ordem
instituída. Essa delimitação, ainda que luida e com pouca precisão, aponta para o entendimento de que os fenômenos conservadores são plurais e multiformes, caracterizando-se por práticas
que muitas vezes engendram ideias e representações fortemente
enraizadas nas diferentes sociedades.
O conservadorismo também pode ser entendido como um
projeto de sociabilidade antagônica ao projeto da modernidade
construída a partir da Ilustração. Os eventos tidos como marcos do nascimento da Modernidade, como as revoluções econômicas e sociais do século XVIII, desde seu início enfrentaram
algum tipo de oposição ou de resistência. O conservadorismo
constituiu-se nessas situações como um conjunto de manifestações que defendiam a permanência total ou parcial das estruturas
da sociedade então existente ou que, embora vendo a necessidade de melhoria da sociedade, se opunham à radicalização dessas
transformações ou a formas violentas de conquistá-las.
Os estudos aqui reunidos tratam de diferentes facetas do
conservadorismo, entendendo-o como fenômeno contraditório e
plural e cujas manifestações não seguem um esquema deinido ou
uma lógica estabelecida, mas que, partindo das contradições de
cada realidade particular, produzem processos particulares. No
Brasil contemporâneo, por exemplo, produzem-se ideologias e
discursos que engendram percepções acerca do passado, visando
tanto justiicar o autoritarismo do presente como apagar a repressão do passado, além de anistiar os crimes dos agentes estatais.
Contudo, essas particularidades dos fenômenos conservadores não levam a pensar esses fenômenos como isolados, na
medida em que, seja como imaginário social, seja como relação política, esses fenômenos podem se misturar e se intercalar,
produzindo mobilizações ou fenômenos ideológicos completamente novos, a cada conjuntura ou situação nacional especíica.
Trata-se, portanto, de um fenômeno vivo, que inluencia nossas
ideias, nosso cotidiano e inclusive nossas perspectivas de futuro, exigindo nossa resistência ou mesmo a ofensiva de projetos
radicais de transformação da sociedade.
Os organizadores agradecem principalmente os autores pela disposição em colaborar com esta coletânea, deixando à nossa
disposição textos valiosos que expressam fundamentais esforços
de pesquisa na compreensão dos temas tratados. Por outro lado,
colaborando com este esforço editorial, os autores possibilitaram a reunião num único volume de relexões das mais variadas
acerca dos fenômenos de repressão e de conservadorismo que
marcaram o último século, constituindo, assim, um valioso material de estudos para os pesquisadores dessas temáticas.
Também agradecemos a colaboração e o empenho da
equipe que compõe a Editoria Em Debate, devidamente creditados ao longo do volume, sem a qual não teria sido possível
publicar este livro.
Fernando Ponte de Sousa
Michel Goulart da Silva
Florianópolis, 24 de outubro de 2011.
1
Franquismo y Masonería
Yván Pozuelo Andrés*
L
a represión franquista se abatió tras los pasos victoriosos de
las tropas rebeldes, durante la Guerra Civil española (19361939), sobre la población civil sospechosa de connivencia frente
populista. La represión, la persecución y la humillación de sus
adversarios pasaron a institucionalizarse como maquinaria imprescindible de la permanencia en el poder del General Franco y
de sus seguidores durante el franquismo (1939-1975). Aplicado a
la Masonería, ésta fue, por un lado, aniquilada como organización
durante la contienda y, por el otro, los masones supervivientes
fueron reprimidos, perseguidos y humillados durante la era de
Franco. La historiografía española sobre el fenómeno masónico
ha sacado a la luz, en estos últimos veinticinco años, las causas,
las consecuencias y los matices propios de esa realidad. En la
actualidad existe un valioso material historiográico que permite
conocer y comprender la obsesión antimasónica del Franquismo
cuya llama, hoy en día muy débil, aún pervive.1 El Centro de
* Doctor en Historia. Profesor de francés en el IES Universidad Laboral de Gijón,
coeditor de la revista digital REHMLAC.
1
Autores como César Vidal, Ángel Palomino, Vasco de Osma y la prensa digital como
www.libertaddigital.com formaron y forman dicha llama.
12
�ván Pozuelo Andrés
Estudios Históricos de la Masonería Española (CEHME)2 con
sede en Zaragoza publicó en las actas de sus congresos todo ese
material. Los historiadores pertenecientes a dicha institución investigaron, entre otros muchos aspectos, lo relacionado con la
Masonería y el Franquismo desde una perspectiva regional. Asimismo, se publicaron obras más generales sobre la cuestión.3Esta
comunicación se determinó tras preguntarnos quiénes construyeron las fronteras que distanciaron a dichos fenómenos, y cómo.
Estas preguntas se plantearon, por un lado, al binomio Masonería y Franquismo y, por el otro, al de masones y franquistas.
Para ello, antes de entrar de lleno en esas consideraciones, se
exponen las líneas generales del encono entre estos dos sectores
a partir de la Guerra Civil española (1936-1939). A modo de
ilustración, se enfoca la realidad antimasónica franquista de
posguerra a través de la región de Asturias y del diario falangista
de Gijón, Voluntad.4
Guerra Civil Española (1936-1939) y depuración masónica
En el momento del Golpe de Estado, 17-18 de julio de 1936,
el masón y republicano Santiago Casares Quiroga era el jefe del
Gobierno frente populista, coalición de partidos republicanos de
2
Fundado y dirigido hasta 2009 por el profesor José Antonio Ferrer Benimeli es ahora
presidido por el profesor José Miguel Delgado Idarreta.
3
No se trata aquí de citarlas a todas sino de enumerar una sucinta bibliografía, la más
reciente, que permita al lector iniciarse en esa historia, encontrando el complemento
bibliográico al inal de cada obra. Así pues, véanse a López (2010), Arribas (2009),
Villalba (2005, p. 125-245), que aunque trate sobre todo de Andalucía explica muy
bien el calibre de la represión franquista ya que dicha región conglomeró a la inmensa
mayoría de los talleres y masones españoles de la II República. Y los clásicos de
Benimeli (1982, 1993), Ruiz (1992).
4
Estas notas y sus conclusiones se asientan sobre mi Tesis Doctoral (ANDRÉS,
2004, inédita).
Franquismo y Masonería
13
izquierdas y de organizaciones del movimiento obrero elegida
en las urnas del Sufragio Universal en febrero de ese mismo año.
No se creyó lo que estaba pasando, pese a conocerse los diferentes planes golpistas, planeados, incluso antes de las elecciones
de febrero, cuando el gobierno estaba dominado por el principal
partido de la derecha parlamentaria, Confederación Española de
Derechas Autónomas (CEDA), y a las advertencias procedentes de diferentes sectores políticos y mediáticos (RODRÍGUEZ,
2006, p. 161-162). El Golpe de Estado estaba en boca de todos
los que pertenecían a la Intelligentsia española. La II República
había experimentado el Golpe de Estado militar de Sanjurjo de
1932 con inal feliz para el régimen. Pero 1936 no era 1932. 1932
distaba de un año al advenimiento entusiasta de la República. En
cambio, en 1936, el régimen había sido gobernado, entre 1933
y 1936, por sectores al ilo del anti republicanismo que lograron
sofocar una Revolución en 1934 reprimiendo a miles de personas (Ruiz, 2008). La amnistía a favor de los represaliados del 34
constituyó el principal argumento para la constitución del Frente
Popular en España y de su victoria electoral en febrero de 1936.
Igualmente fundamentales, en ese corto periodo de tiempo, el
encumbramiento al Poder de los autoritarios Hitler y Salazar,
respectivamente en Alemania y en el vecino Portugal. Líderes
de regímenes lanzados en una dinámica violenta que dio en sus
primeros pasos, sus frutos, como arma infalible anticomunista.
En su casa, Casares Quiroga, tenía colgado un retrato de
Kerensky que le recordaba que no debiera sucederle lo del dirigente ruso, es decir, ser derrotado por los comunistas.5 Muñeca
de trapo a la cabeza de un gobierno atacado por unos jefes militares decididos, Casares Quiroga dimitió el 18 de julio. Otro
masón lideró la defensa de la República en los primeros días,
Diego Martínez Barrio. Como solución, él y otros líderes repu5
Está sacado del testimonio del socialista y masón Juan-Simeón Vidarte (1978, p. 152).
14
�ván Pozuelo Andrés
blicanos, que en bastantes casos compartían ailiación hiramista,
no encontraron mejor remedio para abortar el Golpe de Estado
que el negociar con los jefes de los sublevados prometiéndoles
más orden y un sitio en el Gobierno. Al mismo tiempo negaron
el reparto de armas a las organizaciones obreras, las únicas, en
ese momento, conscientes de la realidad, hasta que el gobierno
se convenció de que no tenía mejor socorro. Esta postura releja
que desde los masones, con curtido peso “simbolista”, no se había imaginado que los discursos pro golpistas, antirrepublicanos
y por extensión antimasónicos iban a pasar de la fraseología apocalíptica a su aplicación. Por su lado, la Masonería no difundió
ningún comunicado en contra del Golpe de Estado hasta comprobar la ferocidad, tres meses más tarde, con la que se persiguió
a sus miembros. Persecución que no sólo se focalizó en lo político sino también en lo masónico como así se difundieron en los
discursos y órdenes desde el bando rebelde (MORALES, 1992).
En ellos, se presentaban a los masones como unos de los principales enemigos, llevando a cabo, en correlación, la destrucción
con saña de sus locales (VILLALABA, 2005). En la transformación del Golpe de Estado en contienda, los sublevados pasaron
de la destrucción en las primeras semanas a la conservación de
algunos templos, organizando visitas abiertas a la población con
el objetivo de ridiculizar a la Orden. En esa situación de clara represión, los dirigentes masónicos recalcaron una vez más que la
masonería no hacía política y que respetaría siempre el gobierno
del Estado. Las Constituciones de Anderson en mano deja claro
que la masonería debe respetar al gobierno de la nación sea cual
sea su naturaleza -añado- incluso dictatorial. No contaba con la
opinión ni la naturaleza de ciertos gobiernos. Sin embargo, a la
vista, en las primeras semanas del conlicto, de la realidad extremadamente represiva, las Obediencias tomaron posición a favor
del bando del Frente Popular. En ese bando, coincidían varias
Franquismo y Masonería
15
importantes personalidades de la Orden como Diego Martínez
Barrios, José Giral, Augusto Barcia, Ángel Rizo Bayona etc.
Los franquistas mataron y persiguieron a los anarquistas,
socialistas, comunistas, trotskistas, republicanos y a sus simpatizantes y vice-versa en menor medida. Empero, ser masón
agravaba lo anterior. Ser masón agravó las condenas en los Tribunales de Guerra. La animadversión incrustada en el odio más
profundo en contra de la Institución masónica y de sus miembros
fue refrendada con la constitución, al año de inalizada la Guerra
Civil, en marzo de 1940, del Tribunal Especial para la Represión contra la Masonería y el Comunismo.6 Dicho órgano
estuvo en funcionamiento hasta 1964. Esta longevidad prueba el
arraigado antimasonismo exacerbado del Franquismo, en un país
por entonces sin masonería española desde 1939. Miles de condenas, miles de persecuciones, la humillación pública como arma
implacable contra cualquier persona que hubiera sido masón en
algún momento de su vida. Incluso contra los que se desligaron de
la Viuda en épocas anteriores a la Guerra Civil. Haber abandonado
las ilas masónicas permitió, únicamente, reducir la dureza de las
penas. No supuso una condición suiciente, en la inmensa mayoría de los casos, para la absolución. La práctica totalidad de los
masones españoles que sobrevivieron a la guerra y siguieron en
el territorio español pasó por arrestos, investigaciones policiales,
interrogatorios inquisitoriales, juicios arbitrarios, incautaciones
de sus bienes, destierros, penas de cárcel e inhabilitaciones para
trabajar en el sector público y para ocupar alguna responsabilidad en empresa privada. El Franquismo, a través del TERMC,
hasta las décadas de los años 60, enjuició y condenó incluso a
individuos que habían fallecido con anterioridad a 1936, liberó
de sus cárceles a individuos que habían fallecido en ellas, orde6
La resolución que establece dicho tribunal puede leerse entre otros en Díaz-Plaja
(1976, p. 41-43).
16
�ván Pozuelo Andrés
nó facilitar informes sobre individuos incluso teniendo anotado
en su icha de seguimiento que habían fallecido.
¿Las fronteras entre Masonería y franquismo, entre masones
y franquistas? ¿Quiénes las construyeron u cómo?
Es preciso para determinar los límites que separan a estos
elementos exponer unas deiniciones de cada uno. He seleccionado, según mi percepción del tema, los aspectos más apropiados
para orientar las respuestas a estas interrogaciones. Por lo tanto no
se trata de establecer unas deiniciones cerradas.
La masonería como concepto plural es una asociación iniciática enraizada en la sociabilidad de la burguesía de corte democrático, creyente tolerante, liberal, patriótica, paternalista con la clase
obrera, tolerante con las organizaciones del movimiento obrero
sin compartir ni el in ni los métodos revolucionarios socialistas,
comunistas y anarquistas, que ha tomado en la creencia en el GADU y/o en la trilogía de la Libertad, Igualdad y Fraternidad su eje
ilósofo-ilantrópico-político de actuación individual y colectivo
enmarcado en el rechazo de la violencia. Nació en una época de
Monarquía Absoluta en un reino con uso parlamentario y religión
única dominante (Protestantismo), abriendo sus puertas a miembros procedentes de diversas minorías religiosas y políticas, dando cobijo a la fórmula de Libertad de Expresión y ensanchándola.
Se instaló en España por una invasión extranjera, por la dictadura
bonapartista entendida por ciertos sectores burgueses españoles
como el punto de partida de las Luces que reemplazaron o reemplazarían a las Sombras del Antiguo Régimen. Su desarrollo se
llevó a cabo en los sectores liberales pasando de un liberalismo a
otro, según las épocas, hasta llegar a la II República del siglo XX.
Franquismo y Masonería
17
El Franquismo es un movimiento iel seguidor de un líder, Francisco Franco, militar, católico practicante, intolerante
con cualquier otro tipo de creencia religiosa, partidario de un
Orden antidemocrático, autoritariamente anticomunista y antimasónico, estrechando y eliminando la Libertad de Expresión
por el intermediario de la Censura, respaldado por los sectores
burgueses más tradicionalistas, cuyo principal método de consecución de su eje ilósofo-ilantrópico-político, Una, Grande
y Libre y Patria, Religión y Familia, se asentó en el uso de la
violencia. Debutó -para resumir- cuando Franco tomó el mando
militar del bando rebelde que se sublevó contra el régimen de la
II República en julio de 1936. Este fenómeno se consolidó durante la Guerra Civil con la secuenciación de los acontecimientos bélicos y las decisiones tomadas y los avatares vitales de las
personalidades más importantes del bando rebelde. Luego, se
desarrolló durante la Dictadura “sin in” de su jefe (1939-1975).
El Franquismo no es sólo Franco. Convergieron en él los ideales
y los discursos anticomunista, antimasónico y antisemita de los
líderes de las corrientes políticas más reaccionarias (Juntas de
Ofensiva Nacional Sindicalista, Falange, Renovación Española,
Comunión Tradicionalista, CEDA, etc.) que se habían consolidado durante la II República contra la República, inluenciando
al propio Franco en algunos temas como el antisemitismo que
no fue en origen uno de los enfoques preferentes del Caudillo.7
La dicotomía entre Masonería y Franquismo, hoy en día, es
nítida. Una organización democrática y otra autoritaria, la primera aborrece por principio la violencia, la segunda la integró en
su ideario, una tolera la exposición de ideas antiliberales construidas desde el movimiento obrero, la otra ni tolera las liberales
ni las del movimiento obrero, compartiendo las dos (Masonería
y Franquismo) una base social procedente de la burguesía.
7
Sobre la opinión antisemita de Franco asociada a su antimasonismo, véase la
investigación realizada por Javier Domínguez Arribas (2009, p. 84-97).
18
�ván Pozuelo Andrés
El Franquismo prohibió y persiguió a los que fueron masones durante todo el periodo de la Dictadura. Sólo perdonó el pasado masónico a los familiares del Caudillo. Asimismo, Franco
llegó a condecorar a un miembro de la masonería costarricense,
partidario del Régimen sin que su pertenencia masónica inluyese negativamente (GUZMÁN-STEIN, 2004, p. 1.209-1.272). Y
los indicios de una actividad masónica española bajo la Dictadura es prácticamente nula.8 Los gobiernos de Gran-Bretaña y de
Francia, dos territorios cuna de la sociedad hiramista, reconocieron en febrero de 1939 la legalidad del Gobierno franquista. En
abril fue el turno de Estados Unidos. Sucedieron a los reconocimientos tempraneros y obvios de la Alemania de Hitler, de la
Italia de Mussolini, de la Rumanía de Carol II, del Portugal de
Salazar en Europa y de El Salvador de Hernández Martínez, de
la Guatemala de Ubico Castañeda y de la Nicaragua de Somoza
y Brenes Jarquín en Latinoamérica, todos ellos, países con regímenes totalitarios. En 1955, la ONU integró en su seno a la España dictatorial, organismo internacional acusado por la Administración franquista de nido de masones donde “se conspiraba
contra el orden católico tradicional” que representaba España:
En la ONU y en los Ministerios anglosajones existe un enjambre
de agentes de la masonería.9 El país con mayor número de masones en el planeta, Estados Unidos, instaló, en suelo español,
bases militares donde pudieron los militares masones estadounidenses, si lo deseaban, practicar sus rituales. La entrada en la
ONU de España enterró el deseo de los masones españoles exiliados que reclamaban desde hacía años a la Comunidad Internacional la organización de una Convención contra el Genocidio
de los masones españoles (ANDRÉS, 2004, p. 1.368-1.369). Pe8
Indicios muy escasos se encontraron en la correspondencia conservada en el archivo
de José Maldonado, véase Andrés, “El archivo masónico de José Maldonado,
último Presidente de la República en el exilio”, Ibidem, p. 1370-1371.
9
Esto es sólo un ejemplo: Voluntad, 05-XI-1949, p. 6.
Franquismo y Masonería
19
se a estos ejemplos de contadas y supuestas cordialidades entre
franquismo y “masonería”, excepcionales, producto del oportunismo político, Franquismo y Franco coincidieron en la obsesión antimasónica, correspondiente a la visión de que el Poder, vía
elecciones o no, se adquiere siempre por la conspiración. Si ellos
conspiraban dentro de un conglomerado católico, apostólico
y romano-anticomunista, sus enemigos lo debían de hacer
en el masónico-comunista o judeo-masónico-comunista como
vulgarmente se ha mencionado. El pre franquismo tenía ya claro su antimasonismo, heredero del último cuarto del siglo XIX,
época de mayor confrontación pública entre masones y sus detractores ultramontanos. En resumidas cuentas, cuando el Golpe
de Estado se convirtió en Guerra Civil, la mayoría de los jefes
rebeldes eran anti masones convencidos. Durante la II República, el mundillo de la política y del Ejército conocía a la perfección quién era quién. Así pues, en 1935, una proposición de ley
que pretendía prohibir a los militares su participación en asociaciones políticas, sindicales y “secretas”, con mención enfática a
la masonería, había sido durante semanas un asunto publicitado
en los grandes medios de comunicación de la época. Por otros
derroteros, durante todo ese año prodigaron en la prensa las actas de los Tribunales de Guerra que juzgaban a los revolucionarios que habían participado en la Revolución de octubre de
1934. Durante estos juicios, la argumentación del discurso antimasónico, el del contubernio judeo-masónico-comunista, pasó,
para sus seguidores a probarse porque en esa Revolución, de
forma individual y en ínima minoría, se encontraban masones
que se habían involucrado en su desarrollo. Si antes, sin prueba
alguna, durante décadas y décadas, ya estaban convencidos
del contubernio, la Revolución de Octubre conirmaba, para
ellos, todas sus teorías. El Gobierno encargó el aplastamiento
de la Revolución de Octubre a Franco quien ordenó a un militar
que era masón, Eduardo López de Ochoa y Portuondo, aplicar
20
�ván Pozuelo Andrés
sobre el terreno las operaciones militares, la rendición y la represión. La “mayoría” decía anteriormente, pues, algunos de esos
jefes golpistas de 1936 eran o fueron masones con una presencia
de cierta envergadura en el seno de esta sociedad.10 No fueron
pocos los militares rebeldes con esa misma condición.11 Estos
mismos, una vez hecho el trabajo sucio, fueron perseguidos de
alguna u otra forma por esa adhesión asociativa. Incluso se persiguió, con el pretexto antimasónico a militares falsamente acusados de masones tan importantes para la victoria de Franco como
el Coronel Aranda. Este militar supo traicionar a los dirigentes
frente populistas y resistir al asedio de las fuerzas republicanas
en Asturias, impidiendo que esas fuerzas, temidas por haber organizado la Revolución de Octubre de 1934, comparada, según
los enfoques, histórica, heroica y románticamente a la Comuna
de París de 1871, pudieran ayudar en otros frentes.
El antimasonismo formó parte del discurso habitual de
Franco y de la casi totalidad de los órganos mediáticos del Régimen desde el principio de la conquista rebelde que inició la
Guerra Civil española hasta la muerte del Dictador. Aquí discurso y persecución se complementaban.
¿Y los masones y los franquistas? ¿La masonería, en la
formación difundida por el Simbolismo, preparó a los masones
10
Para los ejemplos de Miguel Cabanellas y Ferrer, Eduardo López de Ochoa y
Portuondo véasen las elocuentes reseñas biográicas publicadas por el profesor
Manuel de Paz de Sánchez (2004), respectivamente, p. 84-86 y 248-250. El ejemplo
de Cabanellas ostentosamente masón y pieza clave del posterior éxito del Franquismo
llevó al líder del ala moderada del Partido Socialista Obrero Español (PSOE),
Indalecio Prieto, a concluir precipitadamente en el exilio, el 25 de abril de 1953, que
Franco ha dividido a los masones en dos castas, castigando a los leales a la república
y premiando a los que la traicionaron.[...] No ha repudiado ni repudia a todos los
masones. No fue así, aunque las excepciones conirmen la regla. También persiguió a
los masones que lucharon a su favor, demostrando el nivel represivo del Franquismo.
11
Ibidem, p. 6. El autor contabilizó a casi dos centenares de militares masones que
lucharon a favor del bando sublevado.
Franquismo y Masonería
21
a ser antifranquistas? No se nace masón ni se nace franquista.
¿Cuándo un iniciado a la masonería, cuándo un franquista son
conscientes que están en el sitio que corresponde a sus ideales?
Tras el derrumbe de la organización masónica en la época
inisecular del siglo XIX, importantes masones responsables de
la regeneración de la masonería a principios del siglo XX han
ido durante la II República acercando posturas hacia los partidos políticos de la derecha parlamentaria. Fueron los casos, por
ejemplo, de Alejandro Lerroux, presidente del Gobierno antes y
después de la victoria electoral de la coalición de derechas liderada por la CEDA, y de Melquíades Álvarez, igura fundamental
del Reformismo asturiano y partícipe de esa misma coalición.
Melquíades sería asesinado en Madrid a principios de la Guerra
Civil por elementos republicanos. En Asturias, a raíz de las elecciones de 1933, los dirigentes de la masonería regional (el Gran
Maestre militaba en el PSOE y el Gran Secretario en Izquierda
Republicana) expulsaron a los miembros que habían votado a
favor de dicha coalición. Con esta postura intolerante, depuraron la organización de los ailiados que se habían comprometido
con la Masonería, levantado y organizado la Orden en Asturias
entre 1911 y 1933. Esta situación no salvó a estos expulsados
de caer en la maquinaria represiva franquista, aunque llegasen a
pensarlo. El nuevo Régimen con el que colaboraron o simpatizaron durante la Guerra Civil les rebajó, inalizada la contienda,
al mismo plano que el del los enemigos declarados, es decir, al
banco de los acusados. Así pues, tuvieron que redactar, presentar
y irmar una retractación pública, impuesta por el Gobierno franquista, abjurando de haber pertenecido a la masonería.
Los masones de la II República y de épocas anteriores del
siglo XX procedían y evolucionaron políticamente en diferentes movimientos políticos. Salvo el PSOE, las organizaciones
políticas se disolvían y se transformaban según los aconteci-
22
�ván Pozuelo Andrés
mientos históricos del Reino de Alfonso XIII y de los acontecimientos internacionales.12 La II República representó un nuevo
régimen y dio lugar a las fundaciones y refundaciones políticas
impuestas por la novedad. Los masones optaron por diferentes
organizaciones sin que apostasen por una sola. No obstante, la
dirección de las masonerías españolas a nivel nacional pasaron
a manos de republicanos de la izquierda parlamentaria. En ese
momento, entre 1931 y 1936, una mayoría de masones y los
profanos que convergieron en el Franquismo tenían un punto en
común: mantener alejada la amenaza del comunismo cuya
revolución bolchevique de 1917 inyectó el miedo a la desaparición real de la propiedad privada. Durante la II República,
esa que masones y franquistas reivindicaban como masónica, se
llevó a cabo, por parte del Gobierno de Azaña, el “masón de un
día” (BENIMELI, 2007, p. 193-206), en enero de 1933, en el
pueblo andaluz de Casas Viejas, los asesinatos de unos campesinos anarcosindicalistas en Huelga General. En ese preciso momento, diferentes órganos del GOE intercambiaron informes e
impresiones sobre masones pertenecientes a la anarcosindicalista Confederación Nacional del Trabajo (CNT), juzgando si era
conveniente mantenerles adscritos o no a la Obediencia (ANDRÉS, 2004). Tras la Revolución de Octubre de 1934, el GOE
condenó oicialmente a la revolución y mandó expulsar a todo
aquel que hubiera participado en el bando insurrecto, aunque
no conste en documentación que dicha orden se haya llevado a
efectos prácticos de forma exaustiva. En Asturias, por ejemplo,
se aprovechó para actualizar el estado real de la ailiación, dando
de baja a unos cincuenta miembros, sin que se haya podido averiguar si lo fueron por su participación revolucionaria, por haber
votado, a inales de 1933, a favor de la coalición de la derecha
parlamentaria o por no haber cotizado. Asimismo, la masonería
Franquismo y Masonería
condenó la represión y ayudó, en la medida de sus posibilidades,
en algunos casos, a los represaliados.
Masones ocuparon puestos claves en los Gobiernos de la II
República (Alejandro Lerroux, Casares Quiroga, Martínez Barrio) y también en la Historia e identidad de la masonería española. Principalmente, se encontraron en los puestos fundamentales
del gobierno cuando estalló el Golpe de Estado, planteando alternativas pacíicas a sus muy conocidos sublevados. “Conocidos”
porque compartieron todos ellos, aunque en la distancia política,
el tolerante intercambio de ideas durante las décadas anteriores.
Así pues, quien estableció las fronteras entre Masonería y Franquismo fue exclusivamente el Franquismo. Este movimiento juró
muerte a la incrédula masonería y en este sentido actuó.
Anti masonería franquista en Asturias a través del diario
falangista Voluntad
Los medios de comunicación aines al ultramontanismo
difundieron que la masonería había organizado la Revolución
de Octubre de 1934 que, en Asturias, duró 13 días y le dio su
repercusión revolucionaria. Durante esos días, los líderes del
movimiento obrero organizaron, al mismo tiempo que lucharon
contra las fuerzas militares del Gobierno “medio republicano”13
(CEDA) que había salido victorioso en 1933 de las primeras
elecciones en las que las mujeres pudieron votar, la vida cotidiana a su manera. Sírvase para ilustrar que el discurso y la cruzada
antimasónica del complot judeo-masónico-comunista, a partir
13
12
Ver esquema de los partidos políticos españoles del siglo XIX y XX en Junco
(2005, p. 98-101).
23
Gobierno acusado por las organizaciones obreras y republicanas de izquierda
de antirrepublicanismo, pero dentro de la República. Sus dirigentes empleaban la
fórmula de “rectiicar la República”.
24
�ván Pozuelo Andrés
de 1936 en Asturias, encontraría un terreno abonado. La Guerra
Civil en Asturias -para resumir- “terminó” el 21 de octubre de
1937 con la entrada victoriosa de las tropas franquistas en la
gran ciudad industrialo-portuaria de Gijón, provocando el derrumbamiento del llamado Frente Norte. Gijón albergaba la sede
de la Gran Logia Regional del Noroeste de España del Grande
Oriente Español (GOE).14 En su templo, incautado por el bando
nacional, desarrolló sus actividades, entre otras, la importante
logia Jovellanos que llegó a concentrar, a principios de la década
de los años treinta, a más de un centenar de miembros sobre un
total regional de alrededor de 250. Fue el motor de la masonería
asturiana del primer tercio del siglo XX.
A los pocos días de reorganizar la cotidianidad al estilo nacional-sindicalista, los rebeldes vencedores fundaron el diario
Voluntad, cuyo encabezado precisaba que pertenecía a Falange Española Tradicionalista de las Juntas de Ofensiva Nacional
Sindicalista (FET-JONS). Publicado por primera vez el 3 de noviembre de 1937 inalizó su vida el 31 de agosto de 1975, unos
meses antes del fallecimiento del Dictador. No he podido, por
el momento, consultar los números correspondientes a los meses de noviembre y diciembre de 1937 que muy probablemente
alberguen informaciones valiosas respecto a la represión de la
masonería. Sin embargo, gracias a los ejemplares disponibles
para los investigadores, es posible calibrar el antimasonismo
franquista en una región como la de Asturias.
A lo largo de toda la época dictatorial, el diario se ocupó de
transmitir opiniones y en algunos casos informaciones en contra
de la masonería y de los masones. En un país sin masonería,
por extensión sin masones, el discurso antimasónico no desapareció sino que formó parte del discurso general del Régimen que, entre otras estrategias de supervivencia, basaba su
Franquismo y Masonería
propaganda en el miedo, de ahí que no debiera desaparecer. Así
pues, las menciones antimasónicas venían a recordar y a mantener alerta sobre el peligro que ya no existía.
Es curioso detectar que la Redacción no se encargó de personalizar el discurso a la masonería y a los masones asturianos
sino a la masonería en general, a nivel nacional e internacional.
En este sentido, los números de 1937 cobrarían su importancia
con la esperanza de aguardar esa personalización. A lo largo de
todo el periodo, el espectro masónico aparece con las expresiones las logias, la masonería, Gran Oriente, junto en alguna ocasión con sinagoga, judaïco, bolchevique, marxista en el cuerpo
de artículos, de forma esporádica, dedicados a justiicar el Golpe
de Estado, las medidas franquistas y en artículos consagrados
a las relaciones internacionales de España. Estas expresiones
completan el dibujo franquista de “fortaleza asediada” por las
fuerzas del mal antiespañolas, anticatólicas, además de pretender disipar las dudas sobre las posibles sospechas de la realidad de los ataques descritos. El primer apunte importante sobre
masonería apareció en julio de 1938. El periodista, armado del
análisis franquista del comentario de texto, repasó el contenido de un folleto publicado el año anterior por el Gran Maestre
Adjunto del Grande Oriente Español.15En dicho documento, el
autor entonó un mea culpa en nombre de la masonería, hecho
excepcional en el seno de las Obediencias en toda la Historia.
Se lamentaba de la actitud utópica y endeble de su organización
frente a la realidad política y social del país. Valoró negativamente que la masonería española no se hubiera comprometido
desde un principio con el bando gubernamental republicano. Por
su lado, el autor falangista publicado en dos tandas por Voluntad,
Pedro Gómez Aparicio, un referente del periodismo español de
aquella época, tituló el artículo, con “La Masonería ha hablado”.
14
Desde 1923, el GOE había dividido el territorio español masónico en varias
Grandes Logias.
25
15
El original folleto era el publicado por Ceferino González Castro-Verde (1937).
26
�ván Pozuelo Andrés
En él, utilizó la argumentación del representante de los hermanos tres puntos como prueba fehaciente de que los principales
mandos del Ejército estaban en manos de los masones16. Unos
días más tarde, salió en portada el típico “Comunismo y Masonería” donde se comparaba el primer ente a la rabia y el segundo
al perro, concluyendo que para eliminar la rabia había que matar
al perro17. Diferentes autores falangistas relexionaron durante
la posguerra sobre las diferencias entre comunismo y masonería para saber quién fue primero, quién utiliza a quién, cómo se
repartieron sus funciones. En este sentido, por ejemplo se puede leer que la masonería conduce minorías, el comunismo [...]
puede arrastrar masas18. Incluso la Redacción se permitió disertar y matizar la comprensión antimasónica franquista expuesta
por uno de los importantes periódicos nacionales de la época,
El Español (ARRIBAS, 2009, p. 344-350), cuando este último
publicó una falsa plancha de carácter subversivo interceptada
por una de las secciones más rocambolescas de los servicios de
espionaje franquistas19. El matiz residía en interpretar que el co16
Voluntad, 22-VII-1938, p. 4 y 23-VII-1938, p. 4.
Ibidem, 05-VIII-1938, p. 1.
18
Ibidem, 06-II-1958, p. 12. El artículo “La subversión tiene dos cabezas” fue
publicado en el principal diario franquista nacional, Arriba. Esta misma temática fue
tratada en otros números : 21-VI-1959, p. 3; 16-V-1961, p. 15.
19
Ibidem, 11-II-1943, p. 1. Este artículo, “la Masonería aterrada de su obra”, ocupaba
media página y estaba dividido en tres partes. La primera columna (primera parte)
explicaba las principales características de la plancha reproducida en las siguientes dos
columnas (segunda parte) y en la cuarta columna expuso las 9 claves antimasónicas
(tercera parte) que ayudarían a comprender que masonería era sinónimo de traición.
La plancha estaba irmada en Lisboa el 17 de noviembre de 1942 por Magalhaes,
Gran Maestre de una Confederación Provisional. Iba dirigida al Grande Oriente
Español. En ella, se especiicaba que no querían a una España ni a una Francia
comunista ni totalitarias sino a una Francia y una Iberia democráticas. Unos meses
más tarde, un artículo sobre política nacional volvió sobre este asunto : 31-X-1943,
p. 5. Una de las principales novedades a la Historia antimasónica franquista aportadas
por la investigación de Javier Dominguez Arribas (2009, p. 123-154) concierne la
historia del servicio de espionaje APIS. Esta sección mayoritariamente feminina llevó
Franquismo y Masonería
27
munismo y la masonería eran lo mismo de ahí que no buscasen
a engañarse el uno al otro como lo dejaba entrever El Español.
Este prolíico tema fue objeto al menos de una conferencia por
parte del sector católico gijonés20. Puestos a disertar, llegaron incluso, en la década de los cincuenta, a hacerlo sobre las diferencias entre cine católico y cine masónico21. Volviendo a agosto de
1938, el franquista Carlos C. Jovellanos airmó que la masonería
había instigado los ataques contra los templos católicos durante
todo el periodo republicano22. En ese mismo número, el medio
franquista airmó que el contubernio judaïco-masónico-marxista había tomado la decisión de provocar la guerra contra el
gobierno italiano y destacó en un cuadro la consigna siguiente:
Todo masón es un traidor a la Patria23. Igualmente, en 1938, Voluntad anunció la disolución de las logias en Polonia24 y precisó
que, utilizando discursos y alocuciones extraídos supuestamente
de ámbitos masónicos, el 40 por ciento de los judíos es masón25.
La II República, en especial el Frente Popular, como producto de las maquinaciones masónicas fue otro tema recurrente: enlazados [los dirigentes de las diferentes organizaciones
17
a cabo una superchería que se prolongó durante casi toda la Dictadura, basada en
falsos informes e inventadas planchas interceptadas, tomadas por Verdad Absoluta por
Franco. El artículo aquí comentado es una falsa plancha. El único Magalhaes Gran
Maestre fue Sebastião de Magalhães Lima que nació en 1851 y murió en 1928 siendo
Gran Maestre del Grande Oriente Lusitano Unido desde 1907, es decir que en 1942
llevaba 14 años fallecido. Además ha de recordarse que la masonería estuvo prohibida
y perseguida por Salazar desde 1935.
20
Ibidem, 15-III-1946, p. 4: “Interesante conferencia del Rvdo. P. Ángel”, en la que
dogmatizó que los ataques contra España eran masónicos-comunistas. 26-XII-1941,
p. 2: se anunció la conferencia de Florentino Soria sobre masonería en el Centro de
Acción Católica de San Lorenzo.
21
Ibidem, 20-VI-1953, p. 7.
22
Ibidem, 21-VIII-1938, p. 14.
23
Ibidem, p. 17 y p. 24.
24
Ibidem, 03-XII-1938, p. 4; 18-XII-1938, p. 3.
25
Ibidem, 14-IX-1938, p. 8; 15-IX-1938, p. 2.
28
�ván Pozuelo Andrés
que conformaban el Frente Popular] con el amoroso y fraternal
abrazo de la masonería26. El verbo dictar o cualquier componente de su familia lexical no faltó en los artículos que exponían la
visión franquista de la Historia de España, de la reciente como la
del siglo XVIII. Como característica propiamente franquista, el
articulista alardeó de los numerosos masones que habían encontrado la muerte por haber luchado con el bando republicano.27
A inales de febrero de 1940, unos días antes del anuncio de
la constitución del Tribunal Especial para la Represión de la Masonería y del Comunismo (TERMC),28 Voluntad publicó una columna en primera plana sobre “La represión de la Masonería”29.
El autor caliicó a la masonería de ¡Terrible y tenebrosa secta!,
echándole la culpa de todas las desgracias del resquebrajamiento
del católico Poder Absoluto del Antiguo Régimen que inalizó
con la II República, la versión política más laica hasta entonces
realizada. Franquismo al estado puro:
La religión católica, todo amor y todo desinterés, la
condenó [la Masonería] desde que fue notada su violenta reaparición al calor del enciclopedismo deciochesco. [...] No fue aquella una República [1931-1939]
de españoles, sino una República de masones.
Completó el cuadro felicitando a la España de los sublevados por haberla aniquilado aunque todavía hoy es preciso hacer
más porque vive en estado durmiente. Con este artículo, apuntó
que para acabar de aplastarla en su totalidad había que despertarla, sacarla de sus escondites. El método: cumplir con las disposiciones antimasónicas tomadas por el Caudillo por el interme26
Ibidem, 15-I-1947, p. 1 y 4; 05-IV-1961, p. 1; 14-V-1961, p. 11.
27
Ibidem, 05-I-1939, p. 5.
28
El periódico anunció su constitución y su disolución. Respectivamente, Ibidem, 05VI-1940, p. 1 y 23-XI-1963, p. 14.
29
Ibidem, 28-II-1940, p. 1. El artículo estaba irmado por Luciano Taxonera.
Franquismo y Masonería
29
diario del TERMC. La argumentación antimasónica del diario
procede de autores y de prensa de difusión nacional. Así por
ejemplo, publicó en diferentes periodos de la Dictadura varios
artículos que el mismísimo Franco escribió con ayuda de sus
ieles y asesores con el seudónimo de Jakin Boor en el periódico
Arriba, difundidos luego en forma de libro recopilatorio con el
título de Masonería.30
Como no había ni masonería ni masones en España a la
largo de la Dictadura, las informaciones antimasónicas se centraron en el extranjero, permitiendo, por un lado, describir un
estado de peligro constante que asechaba contra España, por el
otro, conirmar su postura a través de las medidas antimasónicas
adoptadas por otros regímenes, acordes por supuesto con el del
Franco. En el primer aspecto, se sitúa el seguimiento de los masones españoles exiliados. En este sentido, el diario informó de
las condenas que recayeron sobre los masones Diego Martínez
Barrio, Augusto Barcia y otros exiliados profanos amalgamados
a masones.31 A mediados de los cuarenta, la Redacción publicó
que Martínez Barrio, la Masonería y Negrín (Jefe del gobierno
republicano entre 1937 y 1939 y en el exilio de 1939 a 1945) se
habían reunido para organizar la vuelta a España del régimen
pre-soviético de 193632. En otras consideraciones, se informaba de reuniones masónicas internacionales.33 Así, se anunció en
1953 que se había localizado al Gran Oriente de la Masonería Española, ubicación sabida desde el in de la Guerra Civil.34
Otro de los puntos neurálgicos del discurso antimasónico a la
hora de resaltar el Españolismo fue la cuestión de Gibraltar. Se
30
Ibidem, 31-III-1942, p. 1; 26-IV-1960, p. 16; 05-V-1960, p. 15; 12-V-1960, p. 12;
26-IX-1962, p. 12.
31
Ibidem, 02-X-1941, p. 3.
32
Ibidem, 04-IX-1945, p. 1; 13-XII-1946, p. 4.
33
Ibidem, 03-X-1948, p. 1; 09-X-1959, p. 9.
34
Ibidem, 17-III-1953, p. 2.
30
�ván Pozuelo Andrés
culpó a la masonería tanto de la pérdida como de la falta de
reconquista del famoso Peñón, cuestión considerada clave para
delimitar el patriotismo “propio” del Franquismo y el anti españolismo “propio” de la Masonería.35
En el segundo aspecto, el periódico indicó que Woodrow
Wilson36 había cumplido en la I Guerra Mundial las órdenes del
Gran Oriente de Francia,37 que el Gobierno de Siria había disuelto la masonería en su territorio,38 hecho que más tarde imitaría el
de Guatemala. En este último territorio, la disolución se practicó
porque la Orden estaba llena de comunistas, consecuencia del
primer lustro de los años cuarenta en cuyo país fue dirigido por
un gobierno masónico-comunista.39 Una revolución en Bolivia,
una en Venezuela, todos los movimientos con periles socialistas, laicos, que se sucedieron en suelo latinoamericano, y el elemento masónico se erigía en protagonista:
[...] iltración masónica en los medios gubernamentales, leyes laicas y persecuciones de la Iglesia, crear un
estado de subversión de la conciencia católica, aliarse
con las fuerzas de choque comunistas [...]40
Contradiciendo parte del planteamiento del complot judeo-masónico-comunista, se informó de la prohibición de la Viuda
en Cuba tras la llegada al Poder de Fidel Castro,41 solventado
la paradoja con los típicos malabarismos dialécticos de la an“Gibraltar no se reconquistó por las inluencias de la Masonería” : Ibidem, 14-III1940, p. 3. “En el aniversario de la ocupación de Gibraltar por los ingleses”, 05-VIII1955, p. 4.
36
Véase sobre el elogio masónico a la igura de Woodrow Wilson, el apunte publicado
en Andrés (2009).
37
Ibidem, 11-IX-1941, p. 3.
38
Ibidem, 07-VI-1941, p. 1.
39
Ibidem, 02-IX-1954, p. 1; 18-XI-1954, p. 1; 26-VIII-1945, p. 1.
40
Ibidem, 23-VII-1950, p. 6; 06-II-1958, p. 12.
41
Ibidem, 12-05-1960, p. 12 ; 26-IX-1962, p. 12.
35
Franquismo y Masonería
31
ti masonería ultramontana, enfocando la argumentación con la
comparación de las disputas entre hermanos gemelos.
En los últimos seguimientos informativos, el diario publicó,
24 años después del inal de la Guerra Civil, un artículo
titulado “tres anarquistas españoles encarcelados en Francia”
donde se apuntaba que la logia Iberia estaba encargada de
organizar las acciones antiespañolas, recaudando los fondos
necesarios el tesorero A. Pérez. Completaba la información
indicando que la masonería española en el exilio pensaba
trasladar su sede a Francia.42
Pese a no personalizar las informaciones antimasónicas al
caso asturiano ni gijonés, es posible seguir minimamente algunos aspectos represivos contra los masones astures a través
de los artículos que se dedicaron a describir las incautaciones
de los bienes de los represaliados, publicados en las secciones
correspondientes. Con el tiempo, el control férreo real antimasónico fue aminorando en el diario. Sólo de esta forma, se
entiende que el diario permitiera que antiguos masones, condenados a fuertes penas pudieran publicitar en sus páginas su
reconversión empresarial. Fue por ejemplo el caso de los anuncios publicados sobre una empresa de seguros perteneciente a
José María Friera Jacoby, quien fue antiguo Gobernador Civil
de Asturias en 1936, encarcelado primero por el bando frente
populista y luego por el bando victorioso, víctima de la maquinaria antimasónica del Franquismo.
Conclusiones
Si el estalinismo utilizó al “trotskista” para eliminar a sus
oponentes externos e internos, el franquismo tuvo al “masón”.
Nada más fácil para paralizar cualquier crítica interna desde las
42
Ibidem, 17-IX-1963, p. 17.
32
�ván Pozuelo Andrés
propias ilas franquistas que acusar de masón al que molesta.
Esa acusación anatematizaba al desleal, dejándolo indefenso.
Lógico, pues la masonería obraba según estos anti masones en la
sombra, iniltraba y envenenaba hasta las mejores almas. No había defensa alguna sobre todo cuando los dirigentes franquistas
habían tomado la decisión irme de apartar a ciertos elementos.
Franquistas masones los hubo, aunque mucho menos que
masones republicanos. Sin embargo, se encontraron rápidamente con una realidad que no consiguieron percibir en su adhesión
al Alzamiento Nacional contra la República: lucharon a favor
de su enemigo. Compartieron el miedo al comunismo, pensando que era más importante que el haberse iniciado en algún momento de su vida a la masonería, sabedores como no podía ser de
otra forma que ni complot judeo-masónico ni masónico-comunista ni nada que se le parezca en las logias. Los postulados de la
Masonería y del Franquismo no fueron lo suicientemente claros
para ciertos de sus miembros que se tambalearon entre los dos
fenómenos. Al igual que no todos los que se sublevaron, luego,
adhirieron al cien por cien al franquismo, no todos los masones
defendieron al bando republicano.
Tener a un masón en la familia fue en muchos ejemplos
una deshonra, en otros menores un honor, que pervivió incluso
terminada la Transición Democrática española de inales de siglo XX, ilustrando el primer caso el alcance del nivel represivo
antimasónico del Franquismo.
Por su lado, los masones lanzaron, durante la II República,
de forma irresponsable, aceite en el fuego antimasónico tradicional español a través de envíos de cartas a los dirigentes políticos y militares españoles, proclamas y discursos en los que
se otorgaban, a posteriori de los acontecimientos, los logros del
Advenimiento de la República, del Gobierno y del Ejército. Esas
declaraciones, esa fácil palabrería, fueron utilizadas por los an-
Franquismo y Masonería
33
timasones que derivaron hacia el Franquismo como pruebas que
corroboraban sus teorías.
La formación inculcada en las logias y en las actuaciones
oiciales de las Obediencias en el mundo profano o podríamos
decir “Humanidad”, a través del sacro-santo y venerado trabajo propio del Simbolismo, incapacitó a sus cuadros dirigentes a
prever y a defenderse del Franquismo. ¿Podríamos extender esta
conclusión, a la espera de estudios sobre la cuestión, a los demás países que sucumbieron a regímenes de tipo “fascista”? Así
pues, fue el Franquismo a través del Estado Dictatorial quien
estableció los límites entre él y la Masonería.
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2
A ANL E O ANTICOMUNISMO
DA IMPRENSA BAIANA
Cristiano Cruz Alves*
O
crescimento do PCB no início da década de 1930, com
a adesão de Luís Carlos Prestes e a formação da ANL,
transformou o comunismo, na visão das elites, em perigo real.
Nas palavras de Rodrigo Pato Sá Motta,
Em determinados períodos a presença do anticomunismo foi fraca, quase residual. Mas houve radicalização do fenômeno em algumas conjunturas históricas, sempre ligadas a fases de crescimento da
inluência do PCB, em particular, e da esquerda, em
geral (MOTTA, 2002, p. XXII).
Antes dos Levantes de 1935 já havia, no interior de alguns
grupos, a percepção do comunismo como uma séria ameaça à
ordem. Em 1935 o terreno propagandístico e o imaginário já estavam prontos (MOTA, 2002, p. 13). A “Intentona Comunista”
Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor
da rede estadual de ensino da Bahia e da rede UNEB de formação de professores em
pedagogia das séries iniciais.
*
38
Cristiano Cruz Alves
acrescentou um elemento à miríade de armas do anticomunismo: a invasão estrangeira. A partir dos Levantes, foram criadas
as bases de uma sólida tradição anticomunista, reproduzida pela
ação do Estado, de organismos sociais e de indivíduos, o que
consolidou um conjunto de representações e um imaginário
acerca do comunismo.
Contudo, antes da consolidação deste imaginário, como
parte inerente ao discurso do Estado e de setores conservadores,
a formação da ANL e a sua expansão foram bases para a articulação de estratégias e argumentos até certo ponto inovadores.
Assim, percorremos o caminho da formação da ANL na Bahia e
o discurso que segue pós-Levantes até o golpe do Estado Novo,
quando se encerra uma fase do anticomunismo com o fechamento do Estado para quaisquer organizações políticas.
1. A formação da ANL
A temperatura política aumentou em 1934, com a volta da
normalidade constitucional e a oposição entre forças de esquerda e de direita. Ambos geraram um ambiente propício para a radicalização da militância política, acrescido do desgaste do governo Vargas e das conspirações regionais e nos meios militares.
As greves entre abril e dezembro daquele ano possibilitaram o crescimento da inluência comunista. Além dos movimentos paredistas, o governo Vargas preocupava-se também com a
possível inluência do comunismo nas Forças Armadas.
A abertura política que seguiu o retorno da legalidade constitucional possibilitou manifestações de protesto e reivindicação
na Bahia, conquanto o governo Vargas não tenha conseguido suprir as demandas reprimidas por anos, tampouco o então gover-
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
39
nador Juraci Magalhães. As greves de 1934 na Bahia ocorreram
justamente no período entre a promulgação da carta constitucional e a decretação de Estado de Sítio, em Dezembro de 1935.
Apesar de seu teor pacíico, estas greves terminaram sob
repressão policial, demonstrando uma continuidade dos recursos de força utilizados pelo Estado para resolver os problemas sociais apresentados. Duas delas, a da Cia Ferroviária
Leste e da Cia Linha Circular Elétrica da Bahia, apresentavam reivindicações semelhantes às de 1919, mostrando a
condição de vida do operariado inalterada em mais de uma
década (SAMPAIO, 1982, p. 102).
Além disso, as duas greves provam inequivocamente que
o mito da passividade do operariado baiano é uma falácia, pois
com as manifestações paredistas demonstraram que “o operariado tinha consciência que era sobre-explorado, de que vivia em
condições subumanas, de que era vítima de profundas desigualdades sociais” (SAMPAIO, 1982, p. 105).
Essa digressão que izemos antes de nos debruçarmos sobre o processo de formação da ANL propriamente dito, exempliica por meio da exposição de alguns momentos de rebeldia
que de certa maneira sedimentaram as condições objetivas e
subjetivas para a formação da ANL no Brasil e na Bahia, bem
como o seu crescimento.
Após divergências entre a Liga Comunista Internacional dos
trotskistas Aristides Lobo e Mário Pedrosa e o PCB, relacionadas
à liderança da FUA (Frente única antifascista), ocorreu o distanciamento deinitivo entre ambos. Orientado pelo comitê central
do PCB, o partido em São Paulo rompe radicalmente com a FUA
e inicia violenta campanha contra a organização, com o objetivo
de esvaziá-la e tomar para si a hegemonia do movimento antifascista e anti-integralista. A saída deinitiva dos pecebistas da FUA
antecipou a extinção antecipada da frente, após o último comício,
40
Cristiano Cruz Alves
realizado em conjunto no dia 25 de janeiro de 1934.
No segundo semestre de 1934, os comunistas organizaram grupos de combate ao fascismo e manifestações antifascistas, gerando conlitos com integralistas e fascistas. Para Motta
(2002), da mesma forma que o Integralismo se beneiciou do
anticomunismo para se expandir, o PCB também se valeu do
antifascismo para atrair novos adeptos. Embora isto seja plenamente válido, principalmente se pensarmos que o período em
foco é a década de 1930 – tempo de radicalização política –, o
anticomunismo já fazia parte do imaginário político da sociedade brasileira. Em outras palavras, se avaliarmos qualitativamente, a corrente política que mais se beneiciou da ojeriza ao
seu opositor foi o integralismo.
Os conlitos na Bahia entre forças de esquerda e de direita se
apresentaram de maneira esparsa em 1933/1934, mas em 1935
foram mais intensos. Aliás, o termo “extremismo” ou “extremista” era usado para o comunismo ou integralismo ou apenas para
o primeiro, o que demonstrava maior animosidade para com a
“doutrina vermelha”. Em artigo publicado no seu jornal, Altamirando Requião elogiou as atitudes de combate ao “extremismo”,
empreendidas pelo General João Gomes e pelo chefe de polícia
do Rio, o capitão Filinto Muller, destacando o comunismo:
A acção bem energica e bem orientada do General se
ajusta e se completa com a do capitão. Educados na
mesma escola de obediência aos princípios fundamentais da hierarquia, eles se entendem perfeitamente,
como Ministro da Guerra e como Chefe de Polícia,
para não consentir, nem ao menos por omissão, que
perdure, por mais tempo, esse ambiente sombrio, de
receio, de inquietação e de ameaças, creado, criminosamente, por uma turba de maus brasileiros, para
cujas mãos se canalizar alguns pacotes dos rublos
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
41
de Moscou. E, dahi, a campanha exctintofa, verdadeira campanha nacionalista que, neste momento
está sendo empreendida, com êxito previsto e seguro, nem só na capital da República, ponto central
das actividades extremistas, assim também nos
Estados, onde os respectivos governos, te hontem
indiferentes às origens das manifestações grevistas,
passam a ixar melhor as causas determinantes, de
taes perturbações da vida social, ultimamente veriicadas, para não permitirem liberdade de actuação
aos que se constituem incitadores de crises e patrono de interesses das classes proletárias.1
Passou a ser habitual o uso por jornais de termos como extremismo e terrorismo. O primeiro era mais usado para designar quaisquer movimentações mais abruptas e radicais que supostamente viessem a abalar a crença na ordem política. Neste
sentido, as expressões extremismos e extremistas poderiam
designar tanto as atividades dos comunistas como as dos integralistas. Em trabalho intitulado O Bravo Matutino: imprensa
e ideologia no jornal O Estado de S. Paulo, Maria Helena Rolim Capelato e Maria Lígia Prado chamaram a atenção para a
tendência do jornal paulista em combater ambas as ideologias.
Sob a ótica do que representava o extremismo para a nacionalidade, a publicação atribuía maior perigo ao comunismo, como
demonstra a maior ênfase dada a matérias e artigos naquele
periódico (CAPELATO, 1980).
A supremacia do juracisismo compunha outro elemento
no quadro político e social na Bahia, além das greves e da indisposição jornalística para com o comunismo. O tenente Juraci Magalhães, que havia ascendido ao governo do Estado como
interventor, soube bem como operar com a máquina coronelísVer Diário de Notícias, 17-07-1935, p. 1. Foi mantida a graia original dos
excertos jornalísticos.
1
42
Cristiano Cruz Alves
tica baiana, deixando de lado as pretensões dos revolucionários
de 1930. A organização dos chefes políticos baianos, muitos
deles líderes em vastas regiões da Bahia, em um partido, o
PSD, lhe deu força suiciente para eleger a maioria dos deputados estaduais que sufragariam o seu nome para governador do
Estado nas eleições indiretas.
Por motivos pessoais – ligações afetivas que mantinha com
alguns dos membros da ANL baiana – Juraci Magalhães foi considerado tolerante em permitir a ação livre dos membros daquela
organização. Contudo, se por um lado Magalhães tinha ex-companheiros da Revolução de 30 na ANL, incluindo um irmão,
Eliezer Magalhães, por outro lado ele repulsava a ANL como
parte da rejeição ao comunismo. Dizia Magalhães que,
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
ca de organizações que tinham por cunho combater o fascismo
e a sua congênere brasileira, o integralismo. Em Setembro de
1934 surgira no Rio de Janeiro o Comitê Popular de Investigação. Neste momento os enfretamentos entre fascistas e antifascistas, sejam comunistas ou outras forças de esquerda, se intensiicavam tanto nas ruas como nos jornais, onde expressavam os
posicionamentos através de notícias como “Integralismo versus
communismo”2.
Parece que o outubro de 1934 foi particularmente repleto
destes conlitos, inclusive com a intervenção da polícia, como
segue abaixo, em relato de um embate ocorrido na Praça da Sé,
em Salvador:
Como providências complementares, a chefatura
determinara também a interdição de todos os sindicatos localizados na Praça da Sé, pois circulavam
rumores de que em suas respectivas sedes communistas e socialistas ofereceriam resistências contra a
efetivação da parada.
jamais poderia o comunismo sobre mim exercer qualquer sedução, a tanto se oporiam inabaláveis a acendrada coniança na eternidade de minha grande Pátria,
a solidez da minha Fé e a doce tranquilidade de minha
vida familiar (CARVALHO, 2005, p. 120).
O autoritarismo de Juraci Magalhães se expressava de
maneira dura e ao mesmo tempo híbrida, ou seja, se delineava
segundo as circunstâncias, como no episódio da Faculdade de
Medicina, quando algumas dezenas de pessoas foram presas por
ocasião de uma reunião que faziam (SAMPAIO, 1992, p. 157).
O evento, que seria realizado em oposição ao então interventor
Juraci Magalhães e pela reconstitucionalização, em certo sentido mostra que seu alvo era a oposição em geral ao seu governo.
Em meio às hostilidades do governo estadual de Juraci Magalhães, que repudiava o comunismo ou qualquer outra organização que se opunha ao governo varguista e ao seu próprio, a inquietação social na Bahia continuava através das manifestações
grevistas. É neste momento que a ANL é fundada.
A fundação da ANL foi precedida por uma evolução políti-
43
Pouco antes da 16 horas precedidos de uma banda
militarizada, apontaram os primeiros pelotões que
vinham tomar posição.
[...]
Inopitadamente recrudesceram os gritos de morra o
integralismo e ouvem os primeiros disparos.
[...] O grupo de pessoas que se achava a esquina
da rua Senador Feijó abriu fogo. A cavalaria colocada no fundo da Praça da Sé também disparou as
suas armas. Os moços integralistas se atiraram no
chão. Colocaram-se alguns aos degraus da escadaria
2
Ver, Diário da Bahia, 30-10-1934.
44
Cristiano Cruz Alves
da catedral tomando ali posição de defesa e de revolveres em punho responderam a agressão de que
estavam sendo vítimas.3
Como se pode apreender da descrição jornalística, já havia
expectativa quanto à provável luta entre integralistas e anti-integralistas, por isso a preocupação da polícia se fazer presente no
evento integralista.
Outro ponto que chama a atenção é a denominação de comunistas e socialistas aplicada aos sindicatos localizados na
Praça da Sé. Não sabemos se estas correntes eram predominantes nos sindicatos baianos. Entretanto, mesmo que fossem, isso importava pouco na ótica anticomunista da imprensa baiana,
visto que o movimento sindical já era associado, nos primeiros
tempos ao anarquismo e a partir do inal da década de 1920,
ao comunismo. Neste sentido, fundamental para o jornalismo
era enfatizar a radicalização do integralismo e do comunismo,
a partir do entendimento de que os conlitos eram provocados
pelos comunistas.
Fato ocorrido na Bahia, o relato da ixação de cartazes por
integralistas na porta da Federação dos Sindicatos, mostra um
pouco do acirramento político que havia entre operários, integralistas e comunistas:
Os operários que se encontraram nas janellas da
sede da federação, desceram e quizeram persuadir
aos idealistas que alli não era logar para afixação
de boletins, mesmo por que o operariado bahiano
não era communista.4
Ser ou não ser comunista era ocupar uma posição no imaginário social que levava a ganhos e prejuízos, a depender das circunstâncias a qual estava inserido determinado fato sobre os co3
4
Ver O Imparcial, 10-10-1934.
Ver Diário da Bahia, 28-10-1934.
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
45
munistas e do receptor da mensagem a que se estava dirigindo.
No caso em tela, a denominação de comunista foi sentida como
pejorativa na visão dos operários. Contudo, há que se levar em
conta a imprensa como instrumento de relativização de papéis,
que conta com os mais diversos interesses, produzindo sentidos
e elaborando mecanismos de relexão para o leitor. Portanto, não
é plausível crer na veracidade strictu sensu da notícia tal como
aquilo aconteceu, pois “se percebe que o registro da mídia não é
apenas uma mimese do real, uma vez que ela própria está inserida em um contexto de lutas e contradições que a permeiam e,
logo, permeiam a sua atividade” (RANGEL, 2004, p. 1).
Os enfrentamentos na rua e nos espaços da imprensa e da
política em geral fortaleceram a militância comunista, bem como a formação de uma frente de luta contra o fascismo. Em
setembro de 1934 é lançado o Comitê Jurídico Popular de Investigação, que agrupou várias forças anti-imperialistas e anti-integralistas, e que viria a se transformar na ANL.
A publicação do manifesto de março de 1935 marca o início
da Aliança Libertadora Nacional. Ela foi lançada num grande
comício no Teatro João Caetano no Rio de Janeiro, em 30 de
março de 1935, quando da proclamação de Luís Carlos Prestes
como Presidente de Honra da ANL. Ela se constituiu em uma
frente política ampla antifascista, anti-imperialista e antifeudal,
cuja participação do PCB era bastante signiicativa.
Havia tenentes na organização, mas em alguns aspectos se
diferenciavam dos comunistas, que propunham a tomada do poder por um governo popular. Ao contrário, os tenentes pretendiam a renovação dos costumes políticos, num vago moralismo
político que pretendiam implantar com o objetivo de reformar o
Estado brasileiro.
O programa da ANL era mais amplo que o do PCB. A
Aliança pretendia uma união de classes nacionais para combater
46
Cristiano Cruz Alves
o imperialismo e as tendências extremistas de direita do Brasil.
Já o PCB, ainda inluenciado pelas determinações do Presidium
da IC, coadunava com a tese adotada em 1929 – “classe contra
classe”. Esta diferença signiicativa para ambos os programas
foi importante para o PCB, que passou a se destacar, ganhando maior visibilidade e chamando a atenção dos seus adversários ideológicos.
A frente reunia socialistas, trotskistas, democratas e outros grupos que se dispuseram a erguer as bandeiras propostas.
Apesar disto, os anticomunistas sempre viram a ANL como uma
organização de “fachada” para a articulação dos “planos” comunistas, como mostra a matéria a seguir publicada no O Imparcial:
UM GOLPE NO COMMUNISMO
A nação sobressaltada com as actividades communistas que há cerca de dois meses vinham se exercitando ostensivamente e de maneira agressiva em todo o
país, estranhava que o governo se mantivesse na incomprehensível attitude de mero expectador dos acontecimentos em que se deixar icar desde as primeiras
demonstrações terroristas que caracterizam aquellas
actividades.
[...]
O aparecimento com estardalhaço da Alliança Libertadora Nacional [sic], ao mesmo tempo que desapareciam sorrateiramente como por um milagre o Partido
Comunista, os Blocos de Operários e Camponeses, as
Juventudes Proletárias, as Frentes Unidas de Estudantes e tantas, tantíssimas outras agremiações marxistas, que funccionavam clandestinamente, mas de cuja
existência falava a publicidade de todas ellas, devia ser
um indicio certo de que era de que grosseira mystiica-
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
47
ção que se tratava – uma inhabil manobra para illudir a
vigilância policial e os brasileiros de boa fé, com uma
simulação do partido nacionalista, que vinha trabalhar
pelo Brasil, pela família, pela pátria brasileira, sem
preocupação de doutrinas políticas, nem de religiões.5
Era evidente que a ANL congregava diversas correntes que
tivessem bandeiras nacionalistas e de esquerda, daí por que o
logro da sua aceitação. Contudo, por se tratar de uma frente (e
nós iremos tratar disso mais adiante) que congregava várias correntes, o anticomunismo assimilou esta característica à luz da
imprensa, como uma estratégia “ardilosa” para conseguir mais
adeptos. Parte da expansão do combate ao fascismo e ao integralismo deveu-se fundamentalmente à integração com outras
correntes, o que não evitaria a radicalização maior entre o PCB e
a AIB. A causa disto estava justamente na compreensão de seus
opositores de que o PCB utilizava a ANL para expandir suas
ideias, e o seu crescimento era, ao mesmo tempo, a diminuição
do espaço para setores conservadores e para a extrema-direita.
Por isso e não aleatoriamente “o governo tentava identiicar a
ANL com o PCB, para isolá-la, e combatê-la com maior eicácia” (Vianna, 2003, p. 82). Utilizava-se do imaginário anticomunista presente na sociedade brasileira para se opor ao adversário.
Em larga medida isso foi comum e não é crível que se
airme o monopólio estrutural do anticomunismo oriundo do
Estado. Se o anticomunismo permeou todas as esferas de comunicação, tanto estatais como privadas, e serviu a interesses
de combate de grupos que não eram propriamente comunistas,
como a ANL, o Estado era uma das fontes do anticomunismo.
Não a única fonte. Como airma Carla Luciana Silva, ao analisar fatos marcantes do anticomunismo na história do Brasil,
como o Plano Cohen e o Golpe de 1964:
5
Ver O Imparcial,11-07-1935, p. 4.
48
Cristiano Cruz Alves
Esses casos são muito conhecidos e repetidos, tanto
por pessoas que os consideram acontecimentos injustiicáveis e forjadores da realidade histórica, como por
aqueles que acreditam que ação governamental esteve certa porque realmente existia ‘perigo à nação’. A
aceitação destas explicações acaba supervalorizando
o papel do Estado naqueles processos (que também
se autopromovia através deles) e se perdia de vista o
apoio que amplas camadas da sociedade brasileira deram àquelas atitudes autoritárias (SILVA, 2001, p. 15).
Todavia há que se ressaltar não serem apenas os anticomunistas daquele período ou de outros tempos a considerar a ANL
uma espécie de disfarce para que as ações dos comunistas pudessem se fazer sentir de maneira mais eicaz pela população e
assim cumprir seus objetivos. Uma parte da historiograia ainda
reproduz um quadro de estruturação da ANL a partir do PCB e
do seu suposto papel dirigente naquela organização, algo totalmente contraposto a uma tendência historiográica em particular
que analisa criticamente o discurso dos vencedores.6
Na visão de Levine,
...o Komintern (a III Internacional) operava de Montevidéu, manipulando a ANL e usando-a como disfarce
para as operações clandestinas. Informado pelas instruções de Moscou de que a América Latina estava
madura para uma revolução, o Komintern planejou insurreições no Chile, Argentina, Uruguai e Peru, assim
como no Brasil (LEVINE, 2001, p. 69).
As manipulações supostamente realizadas pelo PCB com o
objetivo de realizar insurreições no Brasil a mando do Komintern izeram parte da formação de uma retórica anticomunista.
Reiro-me particularmente a duas obras que, a meu ver, compõe esta seção
historiográica: De Decca (2004) e Tronca (1993).
6
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
49
Sob esta ótica, o PCB controlava a ANL, o que se constitui num
argumento anticomunista bastante forte, originado na animosidade à União Soviética, uma vez que sua ligação com a IC comprovaria o seu caráter antinacionalista.
Proporcionalmente à expansão da ANL vinha consigo uma
intensiicação da propaganda anticomunista, notadamente a partir do seu fechamento, em julho de 1935. A expansão que a ANL
conheceu desde sua fundação até o encerramento das suas atividades se deu dentre outros motivos a uma mudança de rumos
que os comunistas experimentaram, em desobediência clara às
diretrizes da Internacional Comunista, doravante IC, traçadas no
VI Congresso em 1928, a chamada política de “classe contra
classe”, como airma Marly Vianna:
Com o acirramento das lutas antifascistas e anti-integralistas, em especial, a partir de 1934, embora
a direção do PCB continuasse a repetir a palavra de
ordem da Internacional Comunista por um governo
de soviets, seus militantes na prática, desobedeciam
a tais diretivas, pois, em conjunto com outras forças,
participavam das lutas de rua contra os integralistas
(VIANNA, 2003, p. 74).
Outra razão para a expansão da ANL foi a liderança de
Prestes, que havia sido aclamado como presidente de honra da
organização. Cerca de um ano antes da reunião no teatro João
Caetano, no Rio, Prestes havia ingressado no PCB por intermédio do Komintern, que interferiu decisivamente para que o capitão da famosa Coluna pudesse alavancar o movimento comunista no Brasil. A pretensão primordial era o ganho popular que
isso poderia ter e a sedução que se faria em relação aos antigos
companheiros do capitão Luís Carlos Prestes.
Todavia, não foi apenas Prestes que beneiciou a ANL com
o empréstimo de seu nome para as ileiras da organização. A
50
Cristiano Cruz Alves
própria ANL foi importante para o PCB, pois deu maior visibilidade ao então sectário partido que havia se isolado mais pela
política do Komintern do que propriamente pela atitude dos seus
membros. Aliás, é plausível dizer que o PCB se tornou mais conhecido a partir da ANL, quando igurou em um dos polos da
política nacional.7
Ao mesmo tempo em que a ANL crescia – a organização
que já contava com cerca de 1.600 núcleos e quase 180.000
membros – agudizava a tensão política no país. A alternativa
à esquerda naquele momento social e político no plano nacional despertou o governo e setores à direita que certamente não
coadunavam com o crescimento de uma organização que tinha
comunistas em seus quadros.
Além disso, como já dito, movimentos populares vinham
crescendo e ganhando notoriedade entre 1934 e 1935, quando
ocorreu uma razoável abertura política em consonância com a
carta de 1934. A ANL seguiu este ritmo e aglomerou em torno de
si os descontentes com o regime e os opositores às alternativas
de extrema direita que se colocavam no panorama nacional e internacional. Isto foi mais um fator de expansão da ANL – atrair
para si indivíduos que já se posicionavam contrários às opções
políticas de direita então em voga na época.
Pouco menos de um ano da promulgação da nova carta
constitucional, é aprovada em 4 de abril de 1935 a Lei de Segurança Nacional, que limitava algumas liberdades constitucionais,
como as individuais, de associação, referentes às manifestações
e à imprensa. Conirmou-se apenas a disposição autoritária do
governo Vargas que já se esboçava desde o decreto que instituía
os poderes discricionários em 1930.
7
Todavia, o mesmo partido que participara em massa da ANL em quase toda
sua curta história, apenas apoiou a iniciativa, mas não aderiu imediatamente.
(VIANNA, s/d, p. 36 apud Primo, 2006, p. 33).
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
51
O que Paulo Sérgio Pinheiro tenta demonstrar com a análise da legislação relativa às liberdades de associação política e
individuais e o pensamento dos líderes das classes dominantes é
a continuidade, e não a ruptura, do comportamento repressor do
Estado. Por isso, o referido autor assevera que “o fechamento da
ANL, antes de 1935, e aquela que se segue, não signiicam um
retrocesso, mas o prosseguimento de uma evolução ininterrupta”
(PINHEIRO, 1991, p. 127).
2. A ANL na Bahia
Se a ANL teve curta duração legal no plano nacional, no estado da Bahia seu tempo de vida foi ainda menor. Durou menos
que sua congênere nacional – 1 mês e 12 dias.
A fundação da ANL na Bahia se deu em um teatro, tal como no Rio, em 30 de maio no Cine-teatro Jandaia, com a participação de personalidades do mundo acadêmico, proissionais
liberais e militares contando com nomes como Orlando Gomes,
promissor jurista na época, o deputado estadual Álvaro Sanches
e Edgard Matta, advogado sindical, dentre outros.
Os principais pontos do programa da ANL, nacional fundada em 30 de março, no Rio de Janeiro – cancelamento da dívida
externa, nacionalização das empresas estrangeiras, plenitude das
liberdades pessoais, direito a um governo popular, cessão dos
latifúndios ao campesinato, proteção à pequena e média propriedade8 – foram absorvidos pela ANL baiana, com alguma variação, pois tal como ocorreu em outros núcleos estaduais, a da
Bahia atendeu a questões especíicas, como a rural e a urbana:
Em Carone (1979), o manifesto em panleto contra aqueles que atacavam a ANL
enfatiza os pontos do programa da organização.
8
52
Cristiano Cruz Alves
o não pagamento do forro de terras pelos rendeiros, posse imediata das terras da marinha e proibição de venda
de mais de cem hectares de terras devolutas – e urbanas
– baixa do preço da gasolina e querosene, diminuição
dos transportes, consumo de energia e telefone (PRIMO, 2006, p. 36).
O pequeno destaque concedido à fundação da ANL mostra
o quanto eram ocultados os objetivos e as pretensões da nova entidade, selecionando apenas eventos que relacionavam violência
e conlitos com a frente. Esta pequena nota em um jornal baiano
deduz o que falamos:
A A.N.L. na Bahia
Bahia, 1, (Diatarde). Foi instalada solenemente ontem
nesta capital a Aliança Nacional Libertadora, em sessão realizada no Jandaia, que esteve repleto de pessoas.
Falaram entre outros oradores o Dr. Edgar Matta, o Dr.
Valle Cabral o doutorando Fernando Marques dos Reis.9
Buscamos nos jornais da capital e pouco foi encontrado referente à fundação da ANL. Seguem-se poucos relatos sobre a ANL
na Bahia até antes do fechamento de suas atividades, em 11 de
Julho de 1935. Isso, por um lado, demonstra o desconhecimento
sobre a ANL, quanto aos seus objetivos, programas e ações, e por
outro, não propagar o nome da ANL para que assim ela icasse no
anonimato perante a população.
Apesar da relativa expressão da ANL nos meios intelectualizados baianos, sua estratégia era se inserir fortemente entre os operários, seja pelos sindicatos ou por apoio a manifestações contra
a carestia. Para tanto, empreendeu um esforço de divulgação das
suas ideias, repudiando a simbiose com o comunismo e enfatizando o seu caráter de frente ampla. Justamente esta atitude se justiica
9
Ver Diário da Tarde de Ilhéus, 01-06-1935, p. 1.
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
53
no reconhecimento da repulsa que a sociedade baiana já tinha em
relação aos comunistas.10
Os principais redutos da ANL na Bahia foram as faculdades
de Direito e de Medicina. Analogamente, a organização opositora à ANL, a AIB, também tinha nestas instituições muitos
adeptos. Era, portanto, facilmente previsíveis os conlitos que se
sucederam entre aliancistas e integralistas, envolvendo pessoas
dos dois núcleos lá instalados. Contudo, este não era o único
obstáculo a ser superado pelos aliancistas na construção da capilaridade social que pretendiam ter.
Outro era a clara predisposição policial para isolar indivíduos “subversivos”, sejam aliancistas, comunistas ou
quaisquer outros que pudessem ameaçar de alguma forma a
legitimidade do discurso oicial da Revolução de 1930. Não
obstante não se tenha encontrado nada em arquivos policiais
do Arquivo Público do Estado da Bahia, doravante APEB,
no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o relatório “O comunismo na Bahia” produzido pela polícia política
demonstrou que as preocupações com o comunismo se avolumaram a partir de 1930 (PRIMO, 2006). Foi na década de
1930 que O PCB baiano começou a tomar forma e organização de partido político, imbuído de se inserir nas massas,
segundo uma interpretação do relato de Honório de Freitas
Guimarães (PRIMO, 2006).
Outro obstáculo enfrentado pela ANL na Bahia foi a forte oposição da imprensa local face às inovações que a recém
fundada organização traria para o cenário político e social. O
temor à ANL era transmitido aos leitores por colunas e artigos,
relatando diversos fatos e aspectos que transpareciam claramente a ojeriza às ideias da Aliança Nacional Libertadora, que
como já dissemos, representava para os interlocutores da im10
Ver A Tarde, 30 maio 1935, p. 1.
54
Cristiano Cruz Alves
prensa mais um disfarce para o comunismo, bem colocado num
dos artigos da coluna Pela Ordem do periódico O Imparcial:
A Aliança Libertadora que anda por ahi é uma mascara do communismo. O communismo como se viu
claramente é uma máscara do judaísmo. Brasileiros,
quereis ser escravos de judeus tôrpes e covardes?11
Como se pode veriicar, a associação que se fazia entre o
comunismo e a Aliança não era positiva. Tinha a clara intenção
de desqualiicar as ações e ideias do programa da ANL ao lhe
trajar de organização comunista como “máscara”. Ora, se não
houvesse uma indisposição da imprensa com o comunismo há
algum tempo e se isto não estivesse arraigado entre as elites, a
ANL mesmo com a presença de muitos comunistas, teria a sua
descrição feita sob outra ótica.
As menções dos jornais à ANL na Bahia ou àquelas matérias escritas na Bahia fazendo referência às suas atividades foram pequenas; isso é inegável. Duas razões nos parecem plausíveis para explicar tal postura diante da aliança. Primeira, as
atividades aliancistas tiveram curta duração. Pouco mais de um
mês foi insuiciente para conhecer e identiicar características
da uma organização e assim diferenciá-la do PCB, mesmo que
isso não se desse com o rigor e a imparcialidade que se fariam
necessárias. Segunda, o próprio anticomunismo executou a tarefa de praticamente impedir uma maior discussão nos meios
jornalísticos sobre a ANL, tratando-a apenas como um apêndice ou um organismo do PCB.
Ainda assim, a ANL foi alvo constante de assertivas desqualiicadoras, como não poderia deixa de ser, por ter em seus
quadros vários comunistas e pelo seu programa ser bastante
radical, na visão dos jornais e da elite. Contudo, as críticas e
11
Ver O Imparcial, 11 jun. 1935, p. 4.
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
55
a campanha anticomunista e antialiancista adquiriram maior
peso e espaço nos jornais baianos em dois momentos cruciais
na vida do PCB e da ANL: à época da proibição da ANL, em
julho, e os levantes de novembro de 1935.12
3. O fechamento da ANL
A posição dos jornais baianos, ao contrário do que vinha
acontecendo, foi de total atenção à ANL em todo o país quando
do seu fechamento. As escolhas narrativas dos fatos e sua relação
com as intenções governamentais no episódio do encerramento
oicial dos trabalhos da Aliança Nacional Libertadora demonstram cabalmente que o jornalismo, mesmo na década de 1930,
ainda processava os fatos à maneira que lhes guarnecia certa posição perante as elites políticas e as classes dominantes, e consolidava determinadas visões, algo que já discutimos na introdução
e no primeiro capítulo.
Em abril de 1935 o Congresso havia aprovado a Lei de Segurança Nacional (doravante LSN) como mais um instrumento
de repressão a movimentos contrários aos rumos que o governo
Vargas imprimia ao país e a grupos que haviam sido desalojados
do poder e que pretendiam retornar, reiro-me especiicamente às
oligarquias do eixo Rio-São Paulo. Entretanto estes últimos grupos
icaram à parte das manifestações mais contundentes contra Vargas, visto o seu próprio temor em relação às reivindicações e lutas
12
Preferimos usar uma denominação menos adjetivada, pois, ao contrário de alguns
autores, como Edgard Carone e Paulo Sérgio Pinheiro, não concordamos com a
caracterização de revolta tenentista ou comunista, somente. Na visão de Paulo Sério
Pinheiro, por exemplo: “A rebelião de 27 de Novembro de 1935 pode ser considerada
a última revolta tenentista, se reduzida a seu caráter propriamente militar de golpe de
estado” (1991, p. 296).
56
Cristiano Cruz Alves
empreendidas antes de 1930, às quais eles próprios combateram e,
portanto, conheciam.
A Constituição de 1934 já previa situações em que os direitos individuais poderiam ser restringidos em face de “ameaças” à ordem e institucionalidade. O artigo 84 da Constituição
de 1934 trazia a possibilidade de pessoas comuns, não militares,
serem julgadas por tribunais militares. Assim, qualquer ato considerado subversivo poderia ser amoldado ao que seriam “pessoas assemelhadas” aos militares.13 Podemos depreender desta
disposição do governo Vargas uma continuidade na busca da
repressão, com prisões, torturas, restrição e violação de direitos,
que já aconteciam nas primeiras décadas da Primeira República.
A LSN aprovada pelo Congresso em 4 de abril de 1935
acentuou a discricionariedade do poder judiciário e executivo
na repressão aos movimentos autônomos, como a ANL e AIB,
muito mais instrumentalizado para a primeira do que para a segunda. Segundo Maria Celina D’Araújo, a LSN correspondeu
“a uma reação política e jurídica do governo Vargas contra movimentos grevistas e ideológicos que vinham se organizando no
Brasil” (2006, p. 5). A LSN também atingiu, além de democratas, socialistas e comunistas, os militares. Foi uma tentativa de
encerrar a fase de subversão latente nos quartéis (art. 10). Esta
lei também anulou praticamente o poder de pressão política que
os trabalhadores possuíam (art. 18).
Na Bahia, a repercussão da LSN não ocorreu como nos centros paulista e carioca. Houve manifestações no sentido da aplicação de leis mais severas contra grupos e pessoas que se articulavam
no “ambiente de liberdade” daquele momento, mesmo que isso
13
“militares e as pessoas que lhes são assemelhadas terão foro especial nos delitos
militares. Este foro poderá ser estendido aos civis, nos casos expressos em lei, para
a repressão de crimes contra a segurança externa do país, ou contra as instituições
militares” (art. 84, Constituição Federal-1934).
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
57
terminasse por limitar as liberdades individuais e de expressão, outros se colocaram contra. Segundo Capelato (1980, p. XIV),
O Estado de S. Paulo (jornal) chegou mesmo a considerar a lei de Segurança insuiciente para conter as
greves e manifestações. Não criticou as arbitrariedades provocadas no período de repressão. Era preciso
dar ao povo “segurança”.
Os efeitos da Lei de Segurança Nacional e as avaliações
de sua eicácia foram feitos pelos jornais baianos quando ocorreu o grande momento de repressão ao comunismo na Bahia até
então: o fechamento nacional da ANL, ocorrido em 11 de julho
de 1935. Mas o fato que antecedeu ao encerramento legal das
atividades da ANL nacionalmente foi o manifesto de Prestes, no
mês de julho.
Em 5 de julho, Luís Carlos Prestes lançou um manifesto conclamando o povo a se levantar contra Vargas ao lado da
ANL, por uma nação sem feudalismo, contra o imperialismo e
o fascismo. O manifesto de Prestes teve interessante cobertura
com a publicação pelo A Tarde, dois dias depois, de uma matéria
encomendada a algum jornalista do Rio de Janeiro:
MANIFESTO VERMELHO
De longe e do alto – Terras para os pobres – Equívocos internacionais – Bens da Igreja – O Brasil continua desconhecido...
[...]
E por que de longe escreve, insiste em reputar essencial
as reformas de extrema esquerda e divisão dos “latifundia” em que os grão-duques brasileiros e os príncipes
58
Cristiano Cruz Alves
botocudos instalaram a injustiça vigente. Os “latifundia” após perderem a Itália de Plínio perdem o Brasil
da Republica Nova... Decerto acábara de ler Michelet,
quando, em defesa da Polonia, fulmina a monstruosa
desarrumação das massas que havia na Rússia de Gogol. Esqueceu que no Brasil a terra é demais e o homem
de menos e que os nossos problemas devem ser encarados às avessas do critério europeu: liberdade, para
encorajar o trabalho, e protecção às actividades economicas, aim de que as energias de um povo joven façam
produzir os seus immensos territórios desocupados.
O manifesto fala também em terras da Igreja que precisamos desmembrar e distribuir. O bravo exilado estava na Espanha, dos largos domínios do clero coroados pelas abbadias seculares e prosperas, ou evocava
o México, ou a França de antes da Revolução, onde
os bispos eram mais ricos que o rei. Não podia seriamente referir-se ao seu paiz, onde a Igreja não possue
dotações territoriais, não tem fundos imobiliários...
[...]
O Brasil – é o que se conclue ainal – continua encyclopedicamente ignorado. Não o entendem e por isso não
sabem servi-lo.14
O vigor e a contundência dos comentários sobre o manifesto de Prestes nos leva a concluir que havia a tentativa de transmitir a preocupação com as atividades da organização, devido
à atenção dispensada pela imprensa ao manifesto de Prestes,
não obstante tenham as publicações normalmente um conteúdo
negativo sobre as ações da ANL. As atenções do governo também estavam voltadas para a AIB, principalmente neste período
14
Ver A Tarde, 7 jul. 1935, p. 1.
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
59
em que a disposição de reprimir e reduzir garantias civis era
grande em relação a todos os grupos que mobilizassem, de alguma maneira, a população. Foi o mesmo Vargas que disse ser
o primeiro reformador da Constituição de 1934, dizendo não
ter ferramentas legais para conter as disputas sociais e políticas.
Contudo, o que mais nos chama a atenção em relação à
matéria, extensa por sinal, é a linha adotada para descaracterizar o texto de Prestes. Não há no texto expressões que poderiam qualiicar o anticomunismo como primário, no sentido
de uma carência de análise mais soisticada. Pelo contrário, o
jornalista se preocupou em transmitir aos seus leitores a falsidade cientíico-histórica da tese prestista, apontando contradições
e levantando argumentos comparativos com outras circunstâncias e realidades. Nada mais surpreendente por dois motivos:
as modalidades de anticomunismo conviviam harmonicamente,
sem se excluírem; não consideramos que algumas formas de
anticomunismo, como a que discutiu a inviabilidade da propriedade coletiva no Brasil, eram especiicamente destinadas a um
grupo de leitores a tal ponto que outros leitores não pudessem
compreender os mecanismos do comunismo exposto pelo anticomunismo. Na análise do anticomunismo é preciso, então,
considerar que a sua constituição se deu tanto “por meio de análises sobre o tema e de argumentos defendendo determinadas
posições, quanto pelo uso de imagens, adjetivações, símbolos”
(RODEGHERO, 2003, p. 27).
Parece-nos acontecer com a matéria que transcrevemos.
Mesmo ao fazer uma análise apurada do manifesto, evidentemente sob a ótica anticomunista, esta é bastante compreensível dentro
do contexto do fechamento da ANL. A advertência no inal da matéria serve menos para alertar do que para dar um encerramento
eloquente da mesma. Mas é uma demonstração cabal da preocupação da imprensa local com relação às movimentações da ANL.
60
Cristiano Cruz Alves
Esta maior atenção já vinha sendo cada vez mais constante,
notadamente n’O Imparcial, periódico notoriamente integralista e, portanto, anticomunista. Poucos dias antes do famoso manifesto de Prestes, o jornal baiano havia divulgado notícia do
Rio de Janeiro a respeito de planos “descobertos” pelo governo
Vargas, “oriundos de Moscou”, poucos dias antes de 5 de julho.
A notícia foi publicada originalmente n’O Globo, no dia 26 de
junho. Apesar de não ter sido redigida na Bahia, é relevante uma
breve análise, pois ela foi publicada n’O Imparcial em 7 de julho, dois dias após a divulgação do manifesto e concomitante a
uma série de outras matérias relativas ao tema, inclusive uma
especiicamente sobre a Bahia.15
Para além disso, o que nos importa também na análise do
anticomunismo baiano são os elementos que o constituíam e como os jornais operavam determinados valores. Admitimos que
havia uma concordância tácita nas publicações de notícias vindas
de fora do estado quanto ao seu conteúdo e forma e, portanto, diicilmente podemos supor um desconhecimento dos jornalistas
e editores sobre os seus possíveis efeitos no tocante à formação
de opinião e o comportamento dos seus leitores. Ou seja, não
há como presumir ou mesmo aceitar inocência intelectual dos
jornalistas baianos quanto às consequências da retransmissão de
matérias estrangeiras ou de outros estados.
Os periódicos baianos operavam com efeitos de sentidos
nos argumentos anticomunistas semelhantes aos dos jornais de
São Paulo e Rio de Janeiro por que estas se constituíam como
fonte para a produção de matérias na Bahia.
A divulgação da matéria se dividiu em duas páginas d’O
Imparcial. Por ser bastante extensa, já que reproduz um suposto
Não esqueçamos que as matérias, geralmente telegráicas, vindas do sul ou do
exterior, eram republicadas na Bahia com um dia de atraso. Assim, podemos contar
um dia de diferença entre o manifesto de Prestes e a publicação da notícia do Globo.
15
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
61
“plano comunista”, não faremos sua transcrição na íntegra, apenas fazendo alusões quando necessárias. Na matéria, o “plano
descoberto” incluía várias ações contra as usinas e os telégrafos
e apresentava métodos e comportamentos que deveriam ser adotados pelos comunistas. O jornal buscou destacar alguns deles
usando letras maiúsculas nos itens que mais chamariam a atenção como: “FUSILAMENTO DOS OFFICIAES NÃO COMMUNISTAS”; “COLOCA O GOVERNO A DISPOSIÇÃO DAS
FORÇAS GOLPEANTES”; “tropas especiais em caminhões
com trabalhadores AMEDRONTARÃO A POPULAÇÃO”; “o
primeiro período deverá ter uma duração MUITO RAPIDA E
VIOLENTA”; “EM HYPOTHESE ALGUMA DEVERA SURGIR A PALAVRA COMMUNISMO”.16
Ainda a matéria na continuação da página 8, o alerta para
a Bahia:
Que a Bahia inteira medite sobre o perigo que ameaça
o Brasil e de que o plano bolchevista traçado na Rússia dá uma ideia bastante nítida e esteja attenta para a
sua própria defesa contra os inimigos implacáveis que
estão agindo na sombra e em obediência ao plano tenebroso, agora reconhecido,agirem também descobertos
“ingindo-se legalistas burguezes”.17
Uma das principais funções do texto jornalístico quando se
posicionava contra o comunismo era lançar alertas para a população. Concomitante à publicação da matéria principal, os jornais
colocavam em seu rodapé ou no alto da página mensagens com
grande destaque para que a população icasse atenta e não duvidasse do “perigo comunista”.
Em relação direta com o “plano descoberto”, O Imparcial
publicou, sob forma de mensagem, o seguinte texto:
16
17
Ver O Imparcial, 7 jul. 1935, p. 8.
Ver O Imparcial, 7 jul. 1935, p. 8.
62
Cristiano Cruz Alves
PLANO TERRORISTA
Elementos terroristas, nesta capital, pretendiam dynamitar a Usina da Lapinha, e alguns estabelecimentos
commerciaes. A policia tomou energicas providencias
e está disposta a usar de todos os meios, mesmo os
mais violentos, no sentido de manter a ordem e a tranquilidade publicas.18
Nada foi encontrado nos arquivos da polícia depositados no
Arquivo Público do Estado da Bahia em relação ao plano citado
na matéria. Primeiro destaque sobre a mensagem: ela se refere à
Bahia. Nas edições dos periódicos as referências como esta – um
fato ocorrido na Bahia que fazia alusão ao comunismo – eram
comuns. Comuns também eram os artigos ou editoriais escritos
por jornalistas baianos sobre o comunismo e supostas movimentações dos comunistas na Bahia.
Provavelmente o “plano terrorista” nunca tenha existido
por um motivo: se ele tivesse realmente existido, os arquivos
policiais não teriam nenhum relatório, nenhum registro? Em um
momento crucial, a qual a ANL apresentava um crescimento espantoso, o temor aumentava proporcionalmente, gerando apreensão por parte do governo e das elites políticas.19 Assim é no
mínimo estranho que a existência de um plano tão “tenebroso”
não tenha despertado em outros jornais ou na polícia uma disposição em conhecer o que se tratava o suposto plano.
Justiicado pelo temor que a imprensa colaborou sobremaneira, Getúlio Vargas, utilizando-se da Lei de Segurança Nacional,
decretou o fechamento da organização em 11 de julho de 1935.
18
Ver O Imparcial, 7 jul. 1935, p. 1.
Segundo Anita Leocádia Prestes, citando Robert Levine, no momento do
fechamento, a ANL contava entre 70 mil e 100 mil membros. Discordando com este
número, Marcos Chor Maio airmou terem sido 180 mil membros.
19
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
63
Considerações inais
A fundação e o fechamento da ANL na Bahia representaram importantes marcos para o discurso anticomunista na
Bahia, pois um elemento concreto da suposta ameaça comunista se tornava mais próximo. Evidencia-se assim que o discurso anticomunista, não obstante a averiguação de veracidade
ou não quanto às notícias veiculadas nos jornais baianos, se
coloca no interior da imprensa como mais uma ferramenta para
repulsar indivíduos e organizações consideradas indesejáveis
pelas elites baianas.
Assim, o comunista e a organização a qual ele participa
devem ser considerados estranhos e inimigos aos olhos do povo baiano, uma vez que já não estão mais distantes como antes
o próprio discurso anticomunista preconizava.
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64
Cristiano Cruz Alves
A ANL e o anticomunismo da imprensa baiana
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3
Aspectos do antissemitismo
no discurso integralista de
Gustavo Barroso
Luiz Mário Ferreira Costa*
imigração no Brasil, do inal do século XIX ao início da
década de 1930, se processou de acordo com os princípios
liberais, reletindo processos econômicos orientados pelas leis
da oferta e procura e, raramente por questões políticas ou ideológicas. Esta facilidade migratória trouxe pra cá portugueses,
espanhóis, italianos, alemães e japoneses. Conforme demonstrou Avraham Milgram (2007), vieram, neste ínterim, também
imigrantes judeus da Europa Oriental e uns poucos judeus de
origem sefaradita da ilha de Rhodes. Entretanto, com as mudanças políticas advindas após a Revolução de 1930 surgiram
os primeiros entraves deste processo; paralelamente ao interesse econômico-demográico dado à imigração, passou-se a
enfatizar também os aspectos ideológicos relativos à entrada de
estrangeiros no país.
A
Na análise de Milgram (2007, p. 381) o governo Vargas de*
Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Aspectos do antissemitismo
68
Luiz Mário Ferreira Costa
monstrava cada vez mais preocupação quanto ao peril social e
racial dos imigrantes, uma vez que esses eram componentes fundamentais para a formação da identidade nacional. A constituição de 1934, por exemplo, estabelecia pela primeira vez normas
e leis para regulamentar a entrada de estrangeiros, criando assim
um sistema de cotas imigratórias por nacionalidades O objetivo
do governo era fortalecer a comunidade branca, europeia, latina
e católica. Deste modo, em pouco tempo o nacionalismo brasileiro, encorajado e cristianizado, se tornara hostil, sobretudo
com relação aos imigrantes japoneses e judeus, que também não
correspondiam ao “peril social desejado”.
De modo geral, o Estado brasileiro durante a década de
1930, procurou investir em soluções propostas pela eugenia,
buscando muitas vezes inspirações no modelo nazista. Não obstante, as teorias da psicanálise, da medicina e do direito poderiam oferecer estratégias de combate àqueles elementos ditos
perniciosos e que se não fossem restringidos poderiam colocar
em risco a coniguração étnica e cultural do Brasil.
Elementos sintomáticos do antissemitismo no Brasil
Conforme salientou Sílvia Cortez Silva (2007, p. 329),
durante a década de 1930, uma parcela signiicativa da intelectualidade nacional colaborou de forma sistemática para a criação
de estereótipos antijudaicos. Um desses intelectuais foi Gilberto Freire, que segundo a autora ediicou a imagem do “judeu
próspero e capitalista”, contrapondo-a à igura do italiano pobre,
habitante de cortiços. Na obra de Freire o termo “nariz semítico”
seria o principal fator de identiicação do judeu, e assim como o
verbo “mercadejar” constituíam a tônica inerente do seu antissemitismo. Outro elemento recorrente, para a autora, foi a identii-
no discurso integralista de Gustavo Barroso
69
cação do judeu como “elemento essencialmente urbano”, ligado
às fontes de produção e sempre fugindo do trabalho agrícola.
Para Freire, países jovens como o Brasil deveriam dar preferência para aqueles estrangeiros que pretendiam ixar-se à
terra. O judeu, ao contrário, entendido como um ser “errante”
cabia-lhe a metáfora da “bola”, devido à sua mobilidade e capacidade de vagar pelo mundo sem nunca criar raízes. Esta é,
inclusive, uma das particularidades ressaltadas pelos diplomatas
e políticos brasileiros que almejavam barrar a entrada de judeus
refugiados do nazifascismo. Tais imigrantes eram vistos como
elementos “indesejáveis” pelo fato de não serem afeitos às atividades agrícolas (SILVIA, 2007, p. 331).
Na Europa, a primeira onda de violência direcionada efetivamente contra os judeus ocorreu no ano de 1933, após a ascensão
de Hitler na Alemanha. A partir de então, as agressões organizadas
contra os judeus alemães, a legislação antissemita e a discriminação social passaram a fazer parte do cotidiano de milhares de
famílias judias. Neste mesmo ano, o cônsul brasileiro em Colônia,
Ildefonso Falcão, relatou a seu chanceler que um número cada vez
maior de judeus buscava ajuda no consulado brasileiro.
Para Milgram (2007, p. 383), Ildefonso Falcão demonstrava certa simpatia pelos comerciantes judeus por que acreditava
que os elementos judaicos poderiam gerar fortuna aos países que
lhes acolhessem. Porém, na visão do ministro de Trabalho, Indústria e Comércio, Joaquim Pedro Salgado Filho, responsável
pela imigração, o Brasil deveria privilegiar os imigrantes trabalhadores agrícolas, únicos capazes de se radicarem ao solo.
Nesta perspectiva, a realidade parecia se processar por vertentes
assimétricas, pois o Brasil que se recuperava da crise e se inclinava pela via do desenvolvimento industrial tinha diiculdades para modiicar sua autoimagem de país agrário. E os judeus
Aspectos do antissemitismo
70
Luiz Mário Ferreira Costa
europeus, que poderiam contribuir com a expansão econômica
brasileira, eram vistos como “elementos indesejáveis”, uma vez
que poderiam inchar os centros urbanos.
Conforme ressaltou Maria Luiza Tucci Carneiro (2007, p.
293), para o Itamaraty somente os técnicos e agricultores católicos tinham condições reais de contribuir para o projeto de
modernidade idealizado por Vargas. Mesmo assim, algumas
exceções poderiam ser feitas aos judeus capitalistas depois de
realizada uma criteriosa seleção. Entretanto, a autora observou
que, de modo geral, a possibilidade de termos entre nós judeus
capitalistas também incomodava, visto ser corrente nos anos de
1930 a ideia de que o povo semita representava um “perigo internacional”. Aliás, este era um slogan reverenciado pelo clássico livro antissemita de Henry Ford, O Judeu Internacional,
traduzido no Brasil em 1933. Nesta linha de raciocínio estavam
os diplomatas brasileiros sediados no exterior, principalmente
aqueles que se encontravam radicados na Alemanha, Áustria,
Polônia, Hungria e Romênia.
Durante este período vários ensaios sobre as causas da
proliferação do antissemitismo na Europa foram desenvolvidos
por emissários brasileiros, cujo objetivo era alertar o governo
para uma futura onda de refugiados judeus. Por exemplo, no
dia 2 de julho de 1931, Luiz de Lima e Silva, da Embaixada
do Brasil em Viena, chamava a atenção de Afrânio de Mello
Franco, ministro de Estado das Relações Exteriores, para os
movimentos antissemitas que se faziam “moeda corrente” nos
países da Europa Central. Segundo Carneiro (2007), Luiz de
Lima e Silva relatou ao ministro uma série de boatos e escândalos envolvendo estabelecimentos bancários e personalidades
judaicas na Áustria. Para o embaixador, os escândalos envolvendo o Banco Auspitz e o Credit-Anstalt, ambos amparados
por capitais israelitas, foram apontados como um dos pivôs dos
no discurso integralista de Gustavo Barroso
71
protestos antissemitas em Viena. A família judaica Rothschild,
acionista majoritária do Credit-Anstalt, havia se transformado
no principal alvo das contestações.
Neste sentido, as matérias publicadas na imprensa sobre a
questão judaica nos territórios do Reich eram cuidadosamente recortadas e enviadas ao ministro das Relações Exteriores.
O propósito das embaixadas era manter o país atualizado sobre a recrudescência do antissemitismo e, assim orientá-lo no
procedimento a ser tomado diante daquela massa de refugiados
judeus que começavam a buscar abrigo em terras brasileiras
(CARNEIRO, 2007, p. 301).
Mesmo diante de todos estes elementos que evidenciam os
sintomas do antissemitismo no Brasil, é importante que se diga
que a questão judaica aqui nunca foi similar àquela encontrada
na Argentina ou na Europa, onde corria sem restrições o antissemitismo popular e oicial. Nestes casos, as ações antissemitas
eram baseadas em imagens distorcidas de judeus reais com os
quais a população tinha contato regular. No Brasil, ao contrário,
segundo Jeffrey Lesser (2007), o antissemitismo manifestou-se
da seguinte forma: indivíduos inluentes atacavam imagens de
“judeus imaginários” que presumidamente eram, ao mesmo tempo, comunistas e capitalistas, e cujos estilos de vida degenerados
se formaram em pútridos e miseráveis enclaves étnicos europeus.
Assim, para Lesser (2007, p. 275), todos os severos e irreais
julgamentos disparados contra os judeus eram modelados tendo
em vista uma leitura ingênua do antissemitismo internacional,
aplicado a uma imprecisa imagem da vida judaica fora do Brasil.
Por isso o mais surpreendente seria o fato de que os judeus reais
que viviam no país, fossem eles cidadãos ou refugiados, enfrentavam poucos empecilhos cotidianos para a conquista de objetivos econômicos e sociais. Deste modo, a “questão judaica” aqui
era na verdade um esforço de certas lideranças para divulgar
Aspectos do antissemitismo
72
Luiz Mário Ferreira Costa
imagens intolerantes dos judeus iltradas da Europa, enquanto
que, na realidade, a esmagadora maioria dos imigrantes judeus
não era nem muito rica nem muito pobre, pouco envolvida na
política e, que rapidamente aculturou-se à sociedade brasileira.
Conforme pode-se observar, de um modo ou de outro a
imigração judaica tornou-se foco de atenção entre membros do
governo e intelectuais brasileiros nos anos de 1920 e de 1930,
em parte pela própria “visibilidade em excesso” dos judeus. Pois
os imigrantes da Europa Oriental incharam a população judia
de São Paulo, de 15 mil em 1920 para talvez cinco vezes este
número em apenas duas décadas. Além disso, muitos refugiados
judeus ascenderam na escala econômica nas cidades brasileiras.
Seja como for, no meio acadêmico, nos escritórios editoriais e
salões do governo, reclamações ecoavam imputando sobre o
povo semita, tanto a imagem do comunista maligno, quanto do
elemento capitalista essencialmente urbano e bem-sucedido nos
negócios. Para os judeus e muitos outros imigrantes, o Brasil era
o “país do futuro”, e para o governo de Vargas esse povo era tão
economicamente desejável quanto politicamente inconveniente
(LESSER, 2007, p. 277).
Não obstante, como demonstrou Carneiro (2007, p. 305),
apesar do relativismo defendido por Lesser, não podemos deixar
de observar a admiração, mal disfarçada, de alguns diplomatas
com as iniciativas antissemitas empreendidas por Adolf Hitler.
Araújo Jorge, da Legação do Brasil em Berlim, é um exemplo
deste comportamento, pois muitos de seus relatórios traziam elogios às medidas legais tomadas pelo governo nacional-socialista
para eliminar a inluência judaica no país.
De maneira parecida as elites católicas correspondiam ao
sentimento expresso pelos diplomatas. Na análise de Graciela
Ben-Dror (2007, p. 224) existia no Brasil um racismo camulado, apoiado em uma retórica legitimadora dos atos de exclusão e
no discurso integralista de Gustavo Barroso
73
de violência. Prova disso, era que a identiicação entre os termos
“católico” e “brasileiro”, sinônimos da identidade nacional, tornou-se recorrente entre o clero desde os anos 1920, o que contribuiu também para rotular o judeu como inimigo do cristianismo.
A autora vai ainda mais longe, ao demonstrar que parte da elite
católica, que ocupava os quadros da Ação Integralista Brasileira,
não se considerava racista, mas mesmo assim, defendia a tese de
que existia uma íntima ligação entre o judaísmo e o comunismo.
Por isso eram necessários à aplicação de uma política de discriminação em relação aos “elementos indesejáveis”, neste caso os
judeus. Pois, segundo os ensinamentos da Igreja, os católicos
não deveriam considerar com “ingenuidade” o problema judaico
europeu, como faziam os “ilossemitas”.
No Brasil, o antirracismo parece ter caminhado ao lado do
antissemitismo, sem que uma atitude fosse excludente da outra.
Um exemplo desta aparente contradição pode ser encontrado na
atuação da “Ordem dos Franciscanos no Brasil”, que airmava
veementemente existir um nexo entre judeus e comunistas. Na
análise de Ben-Dror (2007, p. 230), os franciscanos defendiam
que o povo judeu não deveria ser desprezado, posto que no inal
dos tempos eles também se converteriam ao cristianismo, mas
em contrapartida os católicos deveriam estar sempre em alerta,
pois esse povo possuía uma “obsessão destrutiva”. Não foi sem
motivos que na Idade Média, por exemplo, a Igreja Católica decidiu isolar os judeus em um lugar determinado, os chamados
guetos, para evitar a difusão daquele “espírito negativo”.
Naquele contexto político radicalizado da década de 1930,
o antissionismo também viria a se converter num dos componentes do antissemitismo da época, e várias críticas surgiram
à ideia de “Terra de Israel”. Para os franciscanos o movimento “Sionista” converteu-se em sinônimo de “desejo de impor-se
no mundo”, tratava-se do desenvolvimento de um “messianis-
Aspectos do antissemitismo
74
Luiz Mário Ferreira Costa
mo imperialista”, extremamente perigoso, pois trazia consigo a
ideia de constituir um “império invisível sobre toda a terra”. A
revista A Ordem, que havia sido fundada em 1921 pelo intelectual católico conservador, Jackson de Figueiredo, que, um
ano depois, criou o Centro Dom Vital, também se transformou
num dos veículos de propaganda do antissemitismo no Brasil.
Para a autora, Jackson Figueiredo combatia através da revista
o protestantismo, a Maçonaria e os judeus, todos vistos como
inimigos ao cristianismo. O Centro Dom Vital conseguiu reunir
um grupo de intelectuais católicos antiliberais e conservadores,
no qual se destacava o padre Leonel França, cujos livros tornaram-se textos centrais para a geração católica do pós-guerra
(BEN-DROR, 2007, p. 231).
Em 1937, eram vinte centros deste tipo que haviam se convertido na expressão intelectual mais importante do catolicismo
brasileiro. Suas explicações espirituais e morais das mudanças
ocorridas no país se impuseram a outras interpretações de tipo
materialista e coniguraram a linha central do pensamento católico do país. Com uma “visão de mundo totalizadora”, a intelectualidade católica acreditava que era possível conduzir o Brasil
pelo caminho correto desde que fossem seguidas as propostas
éticas da “Doutrina Social da Igreja”. Dentre estes intelectuais
destacava-se Amoroso e Lima, a quem é atribuído a consolidação do estereótipo do complô judeu-comunista no Brasil. Para
ele a introdução da educação religiosa nas escolas públicas, de
acordo com a Constituição de 1934, foi uma grande vitória, entretanto advertia contra as ameaças do judaísmo, dos maçons, do
espiritualismo, do comunismo e do protestantismo nas escolas e
nos centros superiores de ensino (BEN-DROR, 2007, p. 231).
Em relação aos judeus predominavam motivos que combinavam elementos tradicionais com outros tomados do antissemitismo moderno. Por exemplo, nos argumentos de Plínio Correa
no discurso integralista de Gustavo Barroso
75
de Oliveira, o “problema judaico” provinha do fato de que o
povo judeu era deicida, por esta razão, eram nômades e não se
misturavam com nenhuma outra raça. Ao mesmo tempo, as capacidades intelectuais dos judeus deveriam ser notadas, uma vez
que possuíam um talento especial no comércio, graças ao qual
acumularam um enorme capital inluenciando em todas as instâncias a economia mundial.
Como podemos perceber, essa problemática relacionava-se
diretamente com o tema do “complô judaico-comunista”, pois,
segundo Correa de Oliveira, além dos dirigentes Marx e Trotski
todo o estado-maior soviético estaria a serviço do judaísmo internacional. Deste modo, no Brasil a atenção dos católicos deveria dirigir-se aos judeus, que não estavam sob violência alguma
e eram “inimigos da ordem social e muito mais perigosos”, uma
vez que os comunistas, após 1930, já se encontravam continuamente vigiados pelas forças de segurança. A fala de Correa
de Oliveira estava fundamentada, sobretudo, pelos escritos de
François Coty, que airmava que por trás do comunismo se encontram os maçons franceses, cujos representantes ocupavam
todos os cargos importantes do país. Por outro lado, destacava-se a inluência dos judeus, que respaldavam o comunismo em
todo o mundo. Em sua opinião, o que ocorrera na França deveria
constituir-se numa advertência para o Brasil, para que o país icasse longe desta ameaça (BEN-DROR, 2007, p. 234).
Discursos antissemitas em Gustavo Barroso
Como podemos perceber poucos temas são tão persistentes e complexos na cena política das nações ocidentais quanto o
antissemitismo. Nos últimos anos tem-se percebido um esforço
considerável entre os historiadores brasileiros em repensar o que
Aspectos do antissemitismo
76
Luiz Mário Ferreira Costa
signiicava ser judeu na América, principalmente, em conjunturas políticas conturbadas. Para Carneiro (2007), esta questão
não possui apenas uma resposta dada à diversidade das práticas antissemitas. Assim, o antissemitismo deve ser visto como
um fenômeno psicocultural vinculado às relações de interação e
conlito entre judeus e não judeus.
Na opinião de Marco Chor Maio (2003, p. 230), o antissemitismo pode ainda ser dividido em dois modelos de interpretação. O primeiro modelo remete-nos à “ideia de continuidade”,
pois, segundo os autores que defendem este posicionamento, a
relação entre judeus e não judeus, ao longo da história do mundo
ocidental, seria marcada por uma coleção invariável de tensões,
conlitos, perseguições e massacres, que resultaria num elevado
custo para a sobrevivência do povo judeu. Segundo Maio, um
bom exemplo desse “modelo de continuidade” é o livro A conspiração mundial dos judeus: mito ou realidade, do historiador
Norman Cohn. Para Maio, neste viés interpretativo o antissemitismo moderno é apresentado como mera atualização do passado. Esta vertente historiográica elegeu o antissemitismo como
fonte explicativa da trajetória do povo judeu. O antissemitismo é
entendido, na sua essência, como invariante e atemporal.
O segundo modelo refere-se à “ideia de ruptura,” muito
bem representado pelos estudos de Hannah Arendt (1975). Na
análise da ilósofa, o genocídio nazista foi um crime sem precedentes na história da humanidade, e justamente por isso deve-se
a singularidade do antissemitismo moderno. Diante dos limites
do “modelo da continuidade”, resumidamente entendido pela
indiferença entre o moderno antissemitismo e o antigo ódio religioso judaico, a autora propõe uma análise dialética, centrada
no processo de interação entre judeus e não judeus, ou seja, na
longa e tortuosa história destas relações que prevaleceram desde
o começo da diáspora judaica.
no discurso integralista de Gustavo Barroso
77
O historiador Maio (2003, p. 231) explica que o modelo da
“ruptura”, defendido por Arendt, contemplou ao mesmo tempo
os dois padrões de antissemitismo qualitativamente diferentes:
o tradicional e o moderno. O padrão tradicional caracteriza-se
pela existência de conteúdos religiosos e econômicos, indicando
as formas de inserção dos judeus na sociedade. Primeiro, esta
inserção se daria em terreno religioso, já que os judeus são vistos
pelos católicos como a verdade viva do cristianismo. Segundo,
na economia, como embrião monetário de uma economia pré-capitalista. Para Maio, o povo de Israel marginalizado, mantinha-se num equilíbrio precário com certa autonomia dentro de
uma sociedade não judaica oscilando entre a exclusão e a tolerância. Desta maneira, o antissemitismo tradicional exercia três
formas de poder: converter (batismo), isolar (Guetos) e expulsar
(última decisão).
De outro modo, o antissemitismo moderno operaria mudanças radicais, conferindo um conteúdo essencialmente político e
destoando das notas religiosas e econômicas que outrora caracterizavam o antissemitismo tradicional. Segundo Maio (2003, p.
233), a tese de Tocqueville para explicar o ódio feroz do povo
francês à nobreza após a Revolução Francesa serviria também
para explicar o antissemitismo moderno. Este conlito teria surgido quando a perda de poder dos aristocratas não correspondeu
ao declínio de suas riquezas Assim, sem qualquer função pública mas preservando sua riqueza, a nobreza tornou-se alvo do
ódio popular. Algo semelhante teria acontecido com os judeus.
O auge do antissemitismo moderno corresponderia ao período
em que os judeus perderam a inluência e as funções públicas,
embora preservassem seus recursos. Os judeus adentraram o
mundo moderno envoltos por imagens preconceituosas do passado. Ao entrar pela porta da frente da sociedade, os judeus não
estavam despojados de seu passado de tensões com os cristãos,
Aspectos do antissemitismo
78
Luiz Mário Ferreira Costa
nem do peril de comunidade a parte e intimamente ligada ao
Estado através da economia.
Em outras palavras, a permanência dos antigos preconceitos antijudaicos, mesmo com as mudanças ocorridas a partir do inal do século XVIII, combinada com a persistência
dos judeus em se manter como grupo identiicável, revelou o
caráter “indissolúvel” da identidade judaica. Assim, o antissemitismo moderno, ao evocar a responsabilidade dos judeus
pela destruição dos valores da tradição, indicava como única
solução para este problema o trinômio suspeita, vigilância e
eliminação. O raciocínio lógico seria que, devido à impossibilidade de dissolução das características singulares e malignas
deste povo, só restaria a eliminação da fonte de todos estes
males (MAIO, 2003, p. 235).
A historiograia brasileira que analisa a questão judaica pelo prisma do antissemitismo moderno ou político já comprovou
que os judeus não eram cidadãos bem-vindos à composição étnica da sociedade. Como vimos anteriormente, o “mal” já havia
sido diagnosticado, tanto pela Igreja quanto pelos diplomatas
brasileiros; faltava agora uma iscalização combativa, através
da iscalização dos portos e de uma seleção rígida e sistemática
das correntes imigratórias. O judeu, na qualidade de “outro”, foi
reduzido a uma categoria desprovida das funções de cidadão.
Deste modo, os judeus que caminhavam “errantes” pela Europa
e o triste im de milhares de crianças órfãs transformavam-se em
“informação” para muitos Estados.
Carneiro (2007, p. 306) sugeriu que no caso especíico do
Brasil, sob a máscara de um discurso nacionalista, os judeus
eram diariamente mantidos num clima de medo e suspense,
acuados por uma legislação que lhes acenava com a perspectiva
de repatriação. O decreto-lei n. 479, de 1935, por exemplo, regulamentou a expulsão de estrangeiros avaliados como autores
no discurso integralista de Gustavo Barroso
79
ou cúmplices de crimes de natureza política, sexuais ou ligados a tóxicos. Esta medida foi complementada, em 1938, com o
decreto-lei que proibia aos não nacionais o exercício de qualquer
atividade política no país.
Dito isto, veremos a seguir que a singularidade do discurso
integralista de Gustavo Barroso na AIB deve-se exatamente à
sua identiicação com o antissemitismo, que quase sempre aparecia combinado com discursos anticomunistas e antimaçons.
Conforme bem demonstrou o levantamento de Rodrigo Oliveira
(2004, p. 121), apesar de perpassar a organização, tais bandeiras
nunca adquiriram a centralidade na ideologia integralista. Em
sua pesquisa realizada com o jornal integralista A Offensiva (Rio
de Janeiro), o autor destacou o reduzido número de matérias que
se dedicavam às temáticas antimaçônica e antijudaica, representando, respectivamente, 0,32% e 5,76% do total.
Seja como for, é importante salientar que Gustavo Barroso
só posicionou-se a favor do antissemitismo após ingressar na
AIB. Dois fatores contribuíram para delinear o seu peril antissemita. O primeiro refere-se à sua condição de Chefe de Milícias,
em consoante contato com as bases integralistas, onde o antissemitismo ajudava a sedimentar as novas crenças. O segundo
refere-se à competição com Plínio Salgado pela liderança do
movimento. O discurso antissemita era utilizado como elemento
aglutinador e mobilizador, representando assim um instrumento
de pressão dentro do movimento.
Segundo Hélgio Trindade (1974, p. 252), o antissemitismo
não era uma ideologia consensual entre os ideólogos integralistas. Gustavo Barroso era praticamente o único teórico de uma
corrente antissemita radical, ao passo que os outros doutrinadores, sem contestar aspectos nocivos da ação judaica, especialmente ao nível das inanças internacionais, parecem mais
reticentes em aceitar a tese de que se pode reduzir o conjunto
Aspectos do antissemitismo
80
Luiz Mário Ferreira Costa
dos adversários do integralismo ao judaísmo. Em consequência,
quando teóricos e dirigentes da AIB criticavam a tendência de
Barroso não signiicava uma posição neutra diante do problema
judaico, mas uma rejeição ao antissemitismo radical. Em nota,
Trindade demonstrou que para fazer frente ao radicalismo de
Barroso, Plínio Salgado publicou uma carta, em 24 de abril de
1934, na revista Panorama, para explicar ao público o problema. Salgado era muito mais moderado e informava aos seus leitores que o “problema do mundo é ético e não étnico”.
De qualquer forma, na opinião de Ivair Augusto Ribeiro (2007, p. 353), o discurso antissemita de Barroso fez vários
adeptos não somente nos núcleos integralistas das capitais, como também pelo interior dos estados; a cidade de Olympia, localizada no sertão de São Paulo, é um exemplo da expansão da
ideologia de Barroso. Além disso, muitas das ideias de Hitler
contidas no livro Minha Luta, acerca dos judeus, podem ser detectadas nos artigos de integralistas publicados no jornal Cidade
de Olympia. A aproximação judaica dos operários para angariar
sua coniança, o suposto domínio da Maçonaria e o envolvimento dos judeus com o comunismo são alguns exemplos. A ideologia hitlerista contida no livro Minha Vida parece ter inluenciado
o imaginário dos antissemitas em Olímpia. O judeu era descrito
como um ser “diabólico”, como quem contaminava as nações,
inoculando o vírus da Maçonaria e do comunismo, com o propósito de desestabilizar os governos e completar seu plano de
domínio universal.
Não obstante, para muitos integralistas e, em especial para Barroso (1937), o combate ao judaísmo se justiicava como
forma de preservar a civilização cristã, alvo principal da imaginada conspiração judaico-maçônica. Os camisas-verdes criaram
a imagem da eterna luta do espírito das trevas contra o espírito
da luz. A presença do maligno torna-se mais evidente na medida
no discurso integralista de Gustavo Barroso
81
em que o judaísmo vem associado a dois outros “males” que
reforçam o ódio antissemita: a Maçonaria e o comunismo. Não
seria por acaso que comumente, em livros e artigos antissemitas
escritos por Barroso, existisse um cordão umbilical unindo judaísmo, Maçonaria e comunismo, os quais formariam um plano
secular cuja pretensão era dominar o mundo e eliminar a civilização cristã. Para Barroso, a luta contra um inimigo comum reforçaria as ideias nacionalistas, pois proporcionava um elemento
a mais para agregar o povo em torno da defesa dos interesses da
nação e, consequentemente, atrair adeptos para o integralismo,
uma vez que esta seria a única doutrina política capaz de conter
o avanço do pensamento marxista no Brasil.
Além da luta no campo das ideias religiosas, Barroso (1936)
também tentava ixar sua fala antissemita na realidade histórica.
Por exemplo, no livro Brasil – Colônia de Banqueiros (1934), o
autor tentou provar que o judaísmo era um inimigo “quase invisível”, responsável direto pelo endividamento externo do Brasil.
O autor entendia como poucos que a igura do inimigo estrangeiro nas manifestações nacionalistas servia para excitar a fé patriótica do povo e, mais uma vez, fortalecia a ideologia autóctone
da AIB. Desta maneira, em suas palavras os inimigos a serem
combatidos seriam o comunismo, o liberalismo, a Maçonaria, o
capitalismo e, em particular, o judaísmo, que comandava todas
estas ideologias “nefastas”.
Para Barroso (1936), o Brasil, após se libertar do julgo português em 1822, amarrou-se no “carro triunfante de Israel” como
escravo. A dependência externa do país impunha aos brasileiros
dois trágicos destinos: ou serem servos do judaísmo capitalista
dos Rotschilds ou, então, escravos submissos do judaísmo comunista de Trotski, pontos extremos da oscilação do pêndulo
judaico no mundo. A cura desta mazela estaria, na opinião de
Barroso, numa Revolução Integralista, a única com o poder de
Aspectos do antissemitismo
82
Luiz Mário Ferreira Costa
promover as mudanças de pensamento, de instituições e de rumo, repelir o liberalismo, o comunismo e o judaísmo capitalista
e, assim, salvar a pátria espiritual e materialmente. O Chefe das
Milícias propunha encontrar no fundo da alma nacional aquele espírito imortal dos catequizadores, dos descobridores, dos
bandeirantes e dos guerreiros, para livrar a pátria do apocalipse.
Deste modo, o primeiro passo era a “eliminação completa do
inimigo”. Somente com uma medida drástica o governo poderia
livrar-se dessa doença crônica que prostrava o organismo brasileiro. Barroso buscava transmitir uma imagem fundamentalista,
incitando os “camisas-verdes” a lutar até a morte.
Barroso (1935) entendia que o motor da história envolveria um conlito incessante entre duas concepções de mundo
radicalmente opostas: o espiritualismo cristão e o materialismo
judaico. Em seu livro o Quarto Império, o autor desenvolveu
melhor essa tese, demonstrando que nos últimos séculos, os
judeus levaram a melhor sobre os cristãos, pois não só impediram a realização da “utopia cristã medieval”, como também
abriram caminho para a criação do mundo moderno, regido pelo “Império de Capricórnio”.
Nas airmações de Barroso (1937a), os judeus derrotaram
o “Estado Cristão Totalitário” às claras, mas, desde o século
XVIII, agiam encobertos pela clandestinidade maçônica. Para
o autor, o judaísmo teria se iniltrado, primeiramente, na Ordem
dos Templários, transformando aquela tradicional corporação
medieval na Maçonaria. Aqui justiica-se o ódio do autor pela Ordem maçônica, pois ele acreditava que a instituição trabalhava, disfarçadamente, para desestabilizar a ordem social.
Além disso, assegurava com impressionante convicção que o
materialismo, criação da ideologia judaica, através dos preceitos maçônicos liberais, foi o responsável por criar as condições
necessárias para a exploração da classe trabalhadora, levando-a
no discurso integralista de Gustavo Barroso
83
ao desespero. Por conseguinte, os judeus, mentores intelectuais
desta guerra social, inventariam o comunismo por meio do
marxismo (Marx era judeu), com o objetivo aparente de atender
aos anseios da classe trabalhadora. Nesta perspectiva, a Revolução bolchevique de 1917 é retratada como a conirmação do
complô judaico-maçônico. Para Barroso, graças àquele evento
revolucionário o judaísmo conseguiu ediicar o chamado “Império de Capricórnio”.
Em suma, Barroso (1938) propunha uma revolução interior
que fundaria o “Império de Carneiro”, a síntese perfeita entre a
economia, a política e a espiritualidade. Esta revolução cristã integral propunha substituir o determinismo racial pelo domínio da
religião. Em outras palavras, a competição entre raças seria dissolvida na unidade espiritual. Por isso o povo judeu deveria ser eliminado, pois era incapaz de renunciar à sua condição material em
benefício de um projeto cristão totalitário. Ao recusarem o convite
à diluição sugerida pela totalização cristã, impediram a realização
da mesma, impondo a necessidade da dita “solução inal”.
Portanto, para o ilustre intelectual não era por ódio, desdém ou desprezo que se deveria fazer uma campanha sistemática contra a “judiaria” e, sim, por instinto de autoconservação. Antes da completa eliminação do elemento judaico, os
povos não se curarão de suas enfermidades, airmava Barroso
(1937b). O modelo revolucionário de Barroso baseava-se na fé
e nas instituições, que são passíveis de ser alteradas. A revolução espiritual, que criaria o homem novo, também seria a base
para a fundação de novas instituições.
Aspectos do antissemitismo
84
Luiz Mário Ferreira Costa
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4
A parceria entre Estado e
empresariado na repressão
ao operariado em Recife
de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo*
A
antiga Delegacia de Ordem Política e Social, renomeada
na década de 1970 de Departamento de Ordem Política e
Social, em Pernambuco, desencadeou ao longo da história desta
instituição ações que foram desde a regulação até a repressão
nas várias instâncias sociais. Neste caso especíico será observado, através dos artigos da DOPS de Pernambuco, como se deu
a vigilância, repressão e regulação social no espaço das fábricas
têxteis do grupo Cotonifício Othon Bezerra de Mello, na cidade
de Recife. Este artigo faz parte da discussão e abordagem desenvolvida na dissertação de mestrado em História na PUC-SP,
intitulada: A DOPS em Pernambuco no período de 1945 a 1956:
autocracia em tempos de “democracia?”.
Mestre em História pela PUC-SP. Participante dos grupos de pesquisa Centro de Estudos
de História América Latina (CEHAL) e do Núcleo de Estudos de História Social da Cidade
– NEHSC. O presente trabalho, orientado pela Profa. Dra. Vera Lúcia Vieira, foi realizado
com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico – Brasil
(CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
*
88
Arleandra de Lima Ricardo
A industrialização no Brasil teve seu primeiro impulso durante a Primeira Guerra Mundial, e começou a ‘decolar’ na década de 1940, devido às diiculdades trazidas pela Segunda Guerra
Mundial que, entre outros fatores, reduziu drasticamente as importações, sobretudo de produtos manufaturados.
Na década de 1950, as indústrias no Brasil que não produziam bens duráveis passaram a produzi-los, principalmente
em São Paulo, o que provocou o desenvolvimento interno e a
expansão do setor terciário: indústrias metalúrgicas, químicas,
petrolíferas e os produtores de plástico. O trânsito de migrantes
e imigrantes entre diversas regiões onde se concentrava a indústria e os meios comerciais também se intensiicou.
Com relação ao Nordeste, segundo Shepard Forman (1979)
o desenvolvimento industrial desta região acompanhou três fases distintas: “dependência clássica” (entre 1850 e 1930), “desenvolvimento dependente” (entre 1930 e 1964) e a fase do “desenvolvimento dependente-associado” (em 1964).
A dependência clássica foi a fase em que os interesses econômicos estavam voltados para o exterior. Nesta fase, o Nordeste foi o líder, com o sistema de exportação do açúcar, e o
Centro-Sul fornecia a produção de café. A exportação era a base
das divisas econômicas do Brasil. Em outras palavras, o Estado
brasileiro era controlado por uma autocracia rural inserida num
sistema dominado pelos interesses do capital estrangeiro.
O jogo do capital estrangeiro e dos cafeicultores dentro
da estrutura econômica, ‘voltada para o exterior’, foi
crucial para a formação da indústria, assim como foi
crucial para a infra-estrutura (ferrovias, portos, eletricidade, etc.), patrocinada pelo Estado Oligárquico. [...]
tudo isso serviu para criar bases de um sistema que,
após os anos 30, contribuiu para deslocar o centro dinâmico da economia brasileira do setor agrário-exportador para o setor industrial (FORMAN, 1979, p. 37).
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
89
A coniguração do cenário agroexportador se modiicou
com a crise da bolsa de Nova York, em 1929, e a política econômica foi em busca da aquisição de equipamento industrial, para
acelerar o crescimento e a demanda interna de novos produtos.
Este fato provocou um luxo de industrialização estável e passou
a produzir uma burguesia industrial e comercial. Porém, estas
novas forças não foram suicientes para sustentar o processo de
desenvolvimento econômico do Brasil.
Na década de 50, o Estado ampliou os estímulos para
atrair a tecnologia e o capital estrangeiros e, mais particularmente, os interesses americanos. Além disso, o
Estado proporcionou uma série de subsídios aos empresários com vistas à elevar o índice de nacionalização do
setor industrial. Tudo isso contribuiu para consolidar as
bases do processo de desenvolvimento industrial introvertido, ou seja, a crise do modelo primário-exportador
criou uma situação favorável para o surgimento de um
processo de industrialização via substituição de importações cujo dinamismo apoiou-se na expansão do mercado interno (SOUZA, 1985, p. 38).
Urbanização em Recife
Com relação ao desenvolvimento e à urbanização da cidade
de Recife, foi no período entre guerras que se experimentou o
boom econômico. Com esse processo de industrialização, problemas como a concentração de renda e pouca oferta de emprego levaram a mão de obra a experimentar as atividades informais. Desta forma, proliferaram biscateiros e ambulantes, e até
mesmo os que trabalhavam nas fábricas, nas associações e nos
outros setores iniciavam mobilizações sociais, divulgavam as
opiniões sobre a vida pública. Tornou-se comum discutir sobre
90
a vida do outro, quanto aos problemas comuns que aligiam os
cidadãos, como a falta de moradia, a necessidade de ajustes dos
salários, a luta pela educação, o espaço das mulheres nas fábricas, o direito às creches, o analfabetismo ligado ao direito do
voto, entre tantas outras questões, que os uniam e expressavam
suas diferentes inserções socioeconômicas e, também, culturais.
Recife desenvolveu seus principais contornos urbanos a
partir da década de 1930, com uma expressiva expansão de 180
km² para 209 km² nos anos 1950 (RESENDE, 2005, p. 123). Na
década de 1940, sua população, que era de 348,4 mil pessoas,
chegou a 524,7 mil habitantes dez anos depois, por causa da
mobilização migratória saída da zona rural.
A área central do Recife que era ocupada por mocambos em toda região central foi substituída pelo comércio e setor de serviços nos anos 40 e 50, enquanto a
população se deslocou ocupando alguns bairros como
o de Casa Amarela, Boa Vista, São José, Santo António, Graças, Encruzilhada, Beberibe entre outros.
Dentro desses espaços, melhor explicitando, no bairro
de Boa Vista localizamos uma grande concentração
de escolas e faculdades como a Escola de Engenharia, na Rua do Hospício, a Faculdade de Direito, nas
proximidades, e a Faculdade de Filosoia, no bairro
Solenidade (RESENDE, 2005, p. 127).
Um estudo realizado nos anos 1990 constatou que, ainda
nesta data, de todas as metrópoles industrializadas do país, Recife foi a que mais concentrou mocambos,1 analfabetos, um alto
1
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo
Quarenta anos depois do período em estudo (década de 1990), Recife ainda
representava a maior taxa de mortalidade infantil, de analfabetismo e a população
vivendo em péssimas condições. Quase metade da população, 46,4%, reside em
favelas, conhecidas localmente como ‘mocambos’, o que torna Pernambuco o estado
de maior índice percentual de habitantes favelados, seguido por Belém, 19,4%; Rio
de Janeiro, 14,4%; Fortaleza, 13,3%; Belo Horizonte, 10%; Porto Alegre, 6,3%;
Curitiba, 5,8% e São Paulo, 5,6% (CASTRO, 1992, p. 38).
91
índice de mortalidade infantil, além de acentuar a exclusão da
população dos meios de produção.
Entre os problemas que mais aligiam a população operária,
estava o da moradia. Dada a escassez e o boom urbano2 e industrial do período entre guerras, a questão da moradia se tornou
caso de polícia (CARVALHO, 1978, p. 217).
A industrialização no Brasil teve seu primeiro verdadeiro
impulso durante a I Guerra Mundial, e começou a ‘decolar’ na década de 40, quando a Segunda Guerra Mundial
reduziu drasticamente a importação de produtos manufaturados do exterior. (CARVALHO, 1978, p. 218).
Tendo a urbanização ocorrida de forma desregular e desordenada, problemas como a falta de moradia foram comuns,
como ainda são nas grandes capitais. O trânsito de migrantes e
imigrantes de diversas regiões do Brasil aconteceu espontânea e
forçadamente através do “descampesinato”, ligado de certa forma às questões climáticas, como o êxodo de lagelados da seca,
ou a “proletarização” de trabalhadores informais do espaço urbano, para resolver o problema de moradia, incentivados pelos
governos desde o primeiro governo Vargas.
Para fazer frente à falta de moradias, o governo nacional
passou a dar incentivos aos industriais para que construíssem
vilas operárias, como a isenção de pagamentos de impostos e
incentivos inanceiros. Conforme os autores que estudaram esta questão em outras regiões, estas vilas, desde o período Vargas, passaram a ser espaços onde se exercia a repressão com
maior vigor, pois um dos critérios à moradia era o de não participar de atividades políticas consideradas subversivas, além
de exigir atitudes e comportamentos absolutamente submissos
à ordem industrial.
2
Segundo o autor, entre 1946 e 1964 ocorreu um rápido crescimento urbano no Brasil
acompanhado pela industrialização.
92
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo
Em Recife, o caso das vilas não fora diferente. Lopes
(1979) identiicou que ocorreu nos centros urbanos do Nordeste um processo denominado “descampesinato”. Entre os vários
fatores sociais, o de clima também provocou grandes êxodos
rurais, que resultaram em grandes contingentes de pessoas a
procura de trabalho ou fugindo das áreas atingidas pelas secas
na década de 1950. A cidade representava, para tais contingentes, a possibilidade de trabalho e também de moradia e, uma
vez na cidade, eles se instalavam próximos às fábricas, nos
bairros afastados do centro de Recife. Daí surge, como solução
paliativa, o modelo fábrica-vila.
Um primeiro marco deste processo pode ser representado pelos trabalhadores submetidos ao “sistema
fábrica-vila operária”, o qual sintetiza e concentra
simultaneamente um processo de “descampesinato” –
sustentado por um aliciamento direto de mão de obra
pela fábrica no campo, [...] muitas fábricas, oicinas e
lugares de trabalho urbanos recrutavam trabalhadores
já estabelecidos na cidade por um movimento próprio
de “proletarização”, enquanto as fábricas que mais se
utilizavam de um aliciamento direto de força de trabalho no meio rural é que se estabeleciam na periferia
deste “mercado de trabalho” fabril, engrossando-o de
novos contingentes vindos do campo. [...] as fábricas
utilizavam-se largamente de formas de imobilização
da força de trabalho pela moradia, caracterizando um
estilo de industrialização no que diz respeito à relação
com sua mão de obra, e dentre elas as que se utilizavam formas diretas de aliciamento rural, multiplicando
um “aliciamento” espontâneo paralelo, alimentavam a
partir do “descampesinato” os contingentes que circulariam pelas fábricas segundo as regras próprias desse
“mercado de trabalho” (LOPES, 1979, p. 21).
A questão da moradia associada ao trabalho criou uma du-
93
pla dependência do operário para com os deveres da fábrica. Vale
destacar que o operário foi mantido “submisso” ao empresariado
industrial e às normas internas das fábricas até mesmo na esfera
de sua vida privada ou doméstica. A assiduidade do operário era
garantida através do vínculo à moradia. O apito da fábrica, a instituição do “chamador”3, a proximidade da fábrica, entre outros
aspectos, subordinaram a vida cotidiana dos operários e de sua
família à lógica do trabalho. Em 1939, por exemplo, matérias na
imprensa pernambucana denominavam:
“Villa operária” os conjuntos de moradias feitas por
indústrias para seus operários, fossem eles localizados
dentro da periferia de cidades, ou em localidades isoladas. Mencionava-se a “Villa operária” da Tecelagem de
Seda e Algodão de Pernambuco, localizada no centro
do Recife; a da Companhia de Fiação e Tecidos de Pernambuco S.A., situada no bairro da Torre; a do Cotonifício Othon Bezerra de Mello S.A. e a da Fábrica da Tacaruna, localizadas na periferia da cidade. Os conjuntos
situados próximos a pequenas cidades do interior eram
tratados da mesma forma: fazia-se referência à “villa
operária” da Companhia Industrial Fiação e Tecidos
Goyanna, na cidade de Goiana; à da Fiação e Tecelagem de Timbaúba, em Timbaúba; à da Companhia Industrial Pirapama, em Escada, e à do Cotonifício José
Ruino, na cidade do Cabo (CORREIA, 2001, p. 83).
Essa mesma proximidade serviu de argumento à administração da fábrica para exigir horas extras, para a manutenção do
estado de prontidão em relação ao patrão, “principalmente no
que diz respeito às proissões de manutenção e reparos da maquinaria e instalações fabris” (LOPES, 1979, p. 58).
Como explicita Lopes, o fato de certas indústrias fornecerem casas aos seus operários, em troca de um aluguel geralmen3
Pessoa designada para abordar operários para o trabalho na madrugada.
94
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo
te descontado do salário, fez parte das regras do jogo: “signiicava uma interferência direta e visível mesmo do ponto de vista
do processo de reprodução – da administração da fábrica sobre
o consumo individual dos trabalhadores”, e conferiu ao patrão
um poder de dominação reforçado pela concentração do capital
e pela propriedade territorial (LOPES, 1979, 42).
Enim, a administração da fábrica exerceu sobre a vida dos
operários na vila operária, o controle do trabalho e o controle
sobre as regras de moradia, de comportamentos, atitudes e costumes, acompanhados por formas de controle ideológico sobre
ele e toda a sua família. A questão que se evidencia na documentação é que este controle, assim como as regras e as normas estabelecidas pelo empresariado, relativas ao funcionamento dessas
moradias, era executado por estes duplos agentes – da DOPS e
os da empresa.
A repressão na fábrica
A DOPS operou como uma reguladora dos conlitos entre os
operários, as indústrias e os sindicatos. As funções policiais do poder público se voltaram aos interesses privados do empresariado
industrial recifense em detrimento das demandas dos operários.
No espaço das fábricas, entre os anos de 1945 e 1947, foram iniciadas investigações sumárias de toda atitude considerada prejudicial à fábrica ou ao empresário, e que pudesse indicar
uma perspectiva comunista.
Para o cumprimento destas funções de vigilância, a DOPS
disponibilizava agentes para prestar serviços nas fábricas, pagos por industriais, assim como policiais à paisana, destinados
à manutenção da integração da empresa com os órgãos públicos
95
de repressão. O vínculo entre o sistema repressivo e as fábricas
ocorria por causa dos agentes de dupla inserção. Ao serem identiicados na folha de pagamento da empresa, era constatada a
troca de ofício do trabalho entre os agentes da DOPS e aqueles
pagos pelos empresários. Por exemplo, há ofícios que comprovam a inclusão de um investigador da DOPS na folha de pagamento de uma fábrica, conforme é visto abaixo:
Estou apresentando a V.S., com este, José Leal Bosa
[Rosa], investigador especial desta inspetoria, para
servir junto empresa, cujos honorários, serão pagos
por essa empresa. Saudações. Amaro Carvalho de Siqueira. Inspetor.4
Sob a justiicativa do momento, ou seja, de que as pessoas
vigiadas e punidas eram integrantes ou simpatizantes do PCB, e,
portanto, agitadores, a integração entre a DOPS e as indústrias
se conigurou com muita transparência. Assim, as sanções foram
aplicadas de forma banal, por serem consideradas normais.
Os agentes assessoravam o empresariado, com a identiicação de possíveis suspeitos, onde encaminhavam seus relatórios
que serviam para a composição de dossiês sobre os vigiados.
Além disso, cooperavam com o poder judiciário nas ocasiões de
julgamentos de litígios, dispensas de trabalhadores e inquéritos.5
Como resultado de tais investigações foram criadas listas,
denominadas listas negras, de operários identiicados como comunistas e que, por serem considerados “subversivos”, não conseguiriam mais se integrar como operários nas fábricas.
Além da função de identiicar os comunistas, os agentes nas
4
Ofício n. 63 da Inspetoria de Ordem Política e Social. Prontuário 27.922 de 5 de
setembro de 1946.
5
A produção de listas de operários, segundo a documentação, se processou a partir da
década de 1940. A lista em anexo II foi da Fábrica da Torre, do ano de 1949, em que
a DOPS já estava de posse dos documentos apreendidos nas células comunistas no
Recife e no interior. / Prontuário 5645 de 22 de março de 1949.
96
fábricas foram incumbidos de não permitir a difusão ideológica no
interior e nos arredores do espaço fabril, para validar as regras internas das fábricas, para monitorar os comícios, as greves e qualquer
outro movimento em que o número de operários fosse expressivo.
Para o estudo desta articulação entre o poder público e o
privado na ação repressiva, será usada a documentação relativa ao complexo fabril pertencente ao coronel Othon Bezerra de
Mello, composto pela Fábrica de Apipucos, com 1.726 operários6, Fábrica Maria Amália, com 300 operários7, e a Fábrica Bezerra de Mello, com 600 operários8.
A vigilância destes agentes se estendia pelo cotidiano da
maior parte dos operários destas fábricas, sendo que muitos deles moravam nas denominadas vilas operárias.
A fábrica de Apipucos, no ano de 1944, estabeleceu que,
devido à escassez de moradia, os operários residentes em casas com mais de um dormitório deveriam desocupá-las ou permitir que outro operário residisse na casa. Todos os operários
que não concordaram foram listados e seus nomes enviados à
DOPS como subversivos:
I – Em virtude da escassês de casas residenciais para
os nn/operários da Fábrica de Apipucos, fomos forçados a solicitar dos que estão instalados em habitações
de mais de dois quartos, a mudança para outra de um
só, ou então a permissão para ceder um dos quartos
para outro companheiro.
II – Essa medida, como se vê, de caráter precário e
ditada tão somente pela falta absoluta de habitações,
apesar de nn/esforços na solução do problema, foi
aceita por unanimidade pelos operários por ela atingi6
Ibidem. Prontuário 27.922 de 7 de agosto de 1935.
Ibidem. Prontuário 27.922 de 19 de agosto de 1935.
8
Ibidem. Prontuário 27.922, s/d.
7
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo
97
dos, com exceção de MANOEL MESSIAS DE OLIVEIRA, residente à rua Madre Lynch, 912.
III – Na solução d/caso, originado pela intransigência
do referido senhor, solicitamos a interferência de V.S.,
pelo que, desde já, nos consideramos, GRATOS.9
Dois dias depois, a empresa encaminha mais uma solicitação
de interferência. Com base nos mesmos argumentos apresentados
no primeiro ofício, sobre a necessidade da cessão de espaços em
uma mesma moradia para abrigar mais operários, em decorrência
da falta de casas residenciais, amplia o espectro da repressão, sob
a justiicativa de que os denunciados se mostravam:
refratários ao apelo, numa demonstração de ausência de
fraternidade e espírito de companheirismo. São eles: Sebastião Seabra, residente a rua do Monte, 23, João Pereira
de Lima, à rua Ida, 305 e Cecília Silva Dias, rua do Sol,
108, todos em Apicucos.
III – Deste, modo, vimos solicitar a (?) dos bons ofícios
de V.S., no sentido de solucionar o assunto, ante as razões
acima expostas, pelo que, confessamo-nos, GRATOS.10
Nesse primeiro momento, as pessoas foram classiicadas como
operários que não colaboraram com as normas internas; ou seja, ou
apoiavam incondicionalmente a proposta da empresa ou eram considerados subversivos e seus nomes apareceriam destacados pela
DOPS com lápis azul. A partir daí, neste caso, a pessoa era identiicada como não comunista,11 no entanto, seu nome estava na DOPS.
9
Prontuário da Fábrica Othon Bezerra de Mello. 12 de outubro de 1944.
Prontuário 27.922. 14 de outubro de 1944.
11
No prontuário 4.617 de 29 de outubro de 1954, aparece o nome de Antonio
Rodrigues Paiva, sublinhado de azul, identiicado como não pertencente de nenhuma
célula comunista dos anos de legalidade do Partido, e sublinhada em vermelho a
informação que “não igura nos documentos da Célula Comunista, que funcionou à
Rua Cardoso Aires, 223, existentes no arquivo desta delegacia”. Prontuário 4.617 de
10
98
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo
A colaboração entre a DOPS e o empresariado industrial
recifense não se limitava ao controle e à construção de dossiês
condenatórios, mas se estendia a outras parcerias que demonstravam como os poderes públicos atendiam aos interesses da iniciativa privada, no caso, da burguesia industrial recifense.
Tal submissão atinge todos os poderes, como por exemplo,
a mancomunação do poder judiciário com os ditames empresariais. Um caso exemplar desta coniguração se encontra numa apelação documentada pela DOPS. Um operário chamado
Álvaro Moreira da Silva moveu uma ação contra o Cotonifício Othon Bezerra de Mello, que mandara cortar a água e a luz
de sua moradia, obrigando-o a se mudar. Em seu argumento, o
operário atesta ter feito o pagamento dos aluguéis atrasados e,
apesar disto, o juiz de direito solicitou a intervenção da polícia
para despejá-lo.12
A identiicação das pessoas consideradas non gratas pela
empresa levava à estigmatização do trabalhador, que era sumariamente demitido sob a alegação de pertencer às hostes comunistas, além de ser impedido de se expressar livremente entre os
operários, pois também era importante que não houvesse a difusão de qualquer ideia contrária às normas vigentes da empresa.
Veja-se, por exemplo, a situação de uma funcionária chamada
Paulina Francilina dos Santos, suspensa do trabalho por colar,
numa sessão da fábrica, fotos de Luís Carlos Prestes. A banalização da parceria entre a iniciativa privada e o Estado no controle
do operariado era de tal ordem que, nos boletins redigidos por estes agentes da DOPS, eram incorporadas no relatório enviado ao
proprietário da empresa, informações que advinham dos órgãos
públicos, além de ser adotado o tom de uma acusação criminal.
O relatório do agente Joaquim Ferreira da Silva se inicia com a
informação de que ele estava em sua sala, quando ouviu a discussão entre o gerente da empresa e a funcionária que havia sido
Chamada a gerência [...], para receber uma suspensão
por motivo de estar pregando retrato de Luis Carlos
Prestes dentro da secção aonde trabalha, onde é determinantemente proibido pela Diretoria da Fábrica qualquer propaganda política.13
Segundo seu relato, ele se “dirigira calmamente” à funcionária, alertando-a que estaria desrespeitando o gerente, enquanto
que ela, “jogando a carteira de trabalho em sua cara [...] perante
todo o pessoal do escritório”, o chamara de “policial fascista e
sem vergonha”.14
O agente solicita que a pessoa seja presa e que o encarregado da Delegacia de Ordem Social “puna este caso de conformidade com o que merece”, para que ele não icasse “desmoralizado diante dos operários e da Gerência”. Observa-se que
tais agentes tinham ainda o poder de efetuar prisões no local de
trabalho, pois ele declara que:
Não a prendi no momento para não criar um caso para
esta Delegacia, pois no momento encontrava-me só
no referido local. Encontravam-se mais de 60 pessoas
para falar com o Sr. Gerente e onde se encontravam
diversos comunistas.15
Para enfatizar a sua acusação, o agente incorpora outra informação, de caráter mais comprometedor, e que atestaria o envolvimento da funcionária com os comunistas, ou seja, “acusa-a” de ser “irmã do chefe do Partido Comunista de toda zona
Camaragibe, sendo o mesmo já há dias indenizado pela empresa
13
29 de outubro de 1954.
12
Prontuário 27.922 de 3 de dezembro 1945.
99
Investigador Joaquim Ferreira da Silva. Prontuário 4628 de 7 de maio de 1946.
Investigador Joaquim Ferreira da Silva. Prontuário 4.628 de 7 de maio de 1946.
15
Idem.
14
100
Arleandra de Lima Ricardo
por motivo de se encontrar catequizando operários da mesma”.16
Nesta situação, o poder judiciário tem como prova do acontecido apenas o relato do agente da DOPS, pois tais documentos eram depois entregues como provas à Justiça do Trabalho,
nos casos de solicitação de dispensa sob a alegação de “justa
causa”. Observam-se tais circunstâncias em outros dossiês que
passavam a acompanhar a vida da pessoa pelos anos seguintes,
com os desfechos inais no período ditatorial, que se inicia em
1964. O exemplo abaixo é bem indicativo da forma como a
documentação se compunha para a Justiça do Trabalho, pois
no ofício, a empresa solicita à DOPS, “para ins de fazer prova
da Justiça do Trabalho”:
[...] cópia fotostática de uma carta manuscrita encontrada em poder da agitadora comunista Julia Santiago, de autoria da Operária Olga Francisca de Almeida,
ambas em litígio com a peticionaria [...].17
Acusada de ser participante do Partido Comunista, ligada
aos sindicatos e às lutas dos camponeses na região rural18, Olga
foi demitida por “justa causa”, após a empresa autenticar e registrar na Justiça do Trabalho a prova do “crime”, ou seja, sua
petição por direitos trabalhistas.
No interior das fábricas, o controle ao operariado acrescido
do controle político se tornava ainda mais acirrado quando se
tratava de operárias mulheres, pois também havia o preconceito
contra a mulher que trabalhava fora de casa, ou seja, aquela que
se expunha publicamente junto a outros homens. O trabalho de
mulheres no interior das fábricas têxteis revela os “mecanismos
quase que invisíveis”, como destaca Maria do Socorro de Abreu:
16
Idem.
Ibidem. Prontuário 27.922 de 9/10/1953. (25).
18
Para maiores esclarecimento sobre os movimentos campesinos na região, consultar:
Forman (1979) e Carvalho (1978).
17
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
101
[...] não é a mesma coisa ser homem ou mulher dentro da fábrica, num sindicato, ou simplesmente dentro
de nossas casas [...] há mecanismos quase invisíveis
que tecem as relações entre homens e mulheres [...]
fazem com que as tarefas, salários, qualiicações e práticas sindicais de homens e mulheres sejam ao mesmo
tempo articuladas e diferentes [...]. O trabalho de uma
mulher numa fábrica depende de sua possibilidade familiar; seu salário é deinido em função da existência
de um salário maior, quase sempre do marido. Dela
não se espera que participe dos sindicatos ‘porque sindicato não é coisa de mulher’ [...] Trabalhador não é o
mesmo que trabalhadora. O trabalho também tem sexo
(LOBO apud LIMA, 2004, p. 11-12).
A leitura de que todo o movimento dos trabalhadores, fosse
individual ou coletivo, por quaisquer demandas trabalhistas, era
resultante da ação dos comunistas, foi um fenômeno já analisado
por autores, e sobre isto, relete Edgar Carone (1985, p. 21):
A repressão contra as classes populares ocorre paralelamente à repressão aos movimentos grevistas [...]
com o governo Dutra, começa a se delinear um programa de contenção social, não de maneira clara no
seu início [...]. É a partir da segunda fase – agosto de
1946 –, que as autoridades procuram confundir o movimento grevista, em geral, com o movimento comunista. [...] proibindo comícios comunistas, prendendo
pessoas e matando-as, confundindo reivindicações
com agitações.
Daí que as relações entre a fábrica e a DOPS se concretizam
de formas diversas, particularmente no controle dos direitos de
organização e de livre expressão. Por exemplo, no documento
que segue expedido pela têxtil Cotonifício Othon Bezerra de
Melo ao Major Secretário da Segurança Pública (da Secretaria
102
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
Arleandra de Lima Ricardo
103
de Segurança), em 1946, a empresa argumenta que, para “evitar
qualquer alteração da ordem pública no núcleo fabril constituído
pela fábrica Apipucos e suas dependências, inclusive Vila Operária e logradouros”, ela solicitava que a DOPS, “se dignasse
de proibir naqueles locais a realização de comícios políticos de
qualquer natureza política e ideológica”19, pois:
ralização do trabalho e induziram os demais os demais
companheiros a acompanharem na sua atitude grevista.
II – Como V.S.ª bem sabe, o exaltamento da multidão
que habita num parque industrial resulta sempre em
sérios prejuízos ao trabalho e a ordem publica, criando
casos que facilmente poderão ser evitados.
Percebe-se a ação destes agentes no cerceamento à liberdade de reunião, de greve e de organização, não só no ano em que
tais direitos estavam garantidos pela Constituição de 1946, mas
também nos anos sucessores a 1952, como podemos constatar
na greve de tecelões em Recife. Chama a atenção, no relatório
de um dos agentes, o número de policiais que izeram o cerco no
início das greves da indústria têxtil Cotonifício Bezerra de Melo:
III – Na expectativa de que n/ pedido será interpretado
como u’a maneira de colaborarmos com as altas autoridades administrativas do Estado, pela manutenção
de tranquilidade pública, à frente essa Secretaria, que
com eiciência e zelo, vem desincumbindo de s/ missão, subscrevemo-nos, Atenciosamente – Cotonifício
Othon Bezerra de Melo.20
III – Assim sendo, e com o propósito de pormos um
paradeiro a tais ocorrências, é que reputamos imprescindível o inquérito policial, para a aplicação das penalidades legais.21
Desde o início das greves dos tecelões, foram designados
pelo chefe de controle de pessoal para garantir as fábricas
Amalita e Cotonifício Bezerra de Melo, no seguinte horário, de 6 as 18 horas os investigadores de nº 230 e 276,
18 as 6 horas os investigadores de nº 255 e 275.
No mesmo documento, escrito à mão, lemos a referência de
que fora providenciada a solicitação em 23 de novembro de 1946.
De fato, a DOPS exerceu o controle sobre as greves a pedido dos empresários, e os relatos dos agentes demonstram que,
ao longo dos anos seguintes, ainda na década de 1950, tais dossiês engrossavam as alegações para abertura de inquéritos. Neste
sentido, por exemplo, a fábrica Cotonifício Bezerra de Mello solicitou a abertura de inquérito policial para apurar a participação
de operários, alegando que:
Levo ao conhecimento de V. S., que desde segunda feira próxima passada até o presente momento as fábricas
não funcionaram. O escritório Central, que abrange a 4
Fabricas e 2 Uzinas no total de 85 funcionários, desde
o dia 14 do corrente vem funcionando normalmente,
apenas no dia 13 não trabalharam porque o comparecimento dos mesmos foram muito reduzidos.
O escritório do Cotoicio Bezerra de Melo, é composto
de 34 funcionários, somente 8 tem trabalhado, o restante fazem parte da greve dos tecelões.
[...] II – Os operários Lorival Batista Nunes, Manoel
José de Oliveira, Vicente José de Oliveira e João Matiniano da Silva, agitadores comunistas, izeram a pa19
20
Prontuário 27.922 de 19 de novembro de 1946.
Idem.
O quadro de vigia é composto de 13 homens, havendo
uma abstenção de 5 desde o inicio da greve.
21
Ibidem, prontuário 27.922 de 26/8/1946.
104
Arleandra de Lima Ricardo
Diante da ordem que recebemos de coibir reuniões de
operários, nas imediações das fábricas, esta tem sido
rigorosamente cumprida, tendo decorrido tudo normal
até o presente momento. Sem outro assunto para o momento subs, atenciosamente, investigador nº 230.22
Esta troca entre a DOPS e a fábrica se estendia ainda ao
fornecimento de informações sobre a vida de funcionários que
seriam contratados. Por exemplo, foi recomendado pelo agente
do Estado que um ex-operário que estava para ser contratado
para participar da guarda civil, não tivesse sua contratação efetivada. Francisco Sabino da Silva é o último citado de uma lista
de 24 pessoas:
Adianto a V. S que o individuo de nome Francisco Sabino da Silva foi posto fora da Fábrica da Torre como
elemento de inluência nas hostes do extinto PCB e
ainda fazia parte da célula mencionada [José Lourenço Bezerra], encontrando-se o mesmo com a pretensão
nessa secretaria no sentido de ser nomeado guarda-civil, solicitando a V.S. que seja sustada tal pretensão,
adiantando que o nome do mesmo está nos documentos constante da apreensão. Saudações Antonio Joaquim de Brito (comissário).23
Estas investigações sumárias de agentes iniltrados nas fábricas produziram, em 1946 e, principalmente em 1947, listas
de funcionários comunistas que continham o número de identiicação interno, nome completo, iliação, idade e endereço residencial. A quantidade de listas torna-se expressiva à medida
que o número de funcionários identiicados como comunistas
engordam os prontuários da DOPS.
Identiicamos dois tipos de trocas de informação; no pri22
Ofício da empresa dirigida ao Comissário da Delegacia Auxiliar de Recife.
Prontuário 27.922 de 16 de outubro de 1952.
23
Prontuário n. 4645. 22 de março de 1949.
A parceria entre Estado e empresariado na
repressão ao operariado em Recife de 1940 a 1950
105
meiro caso o agente comunica à DOPS sobre os operários comunistas, no segundo caso, quando identiica operários na documentação apreendida no ano de 1947, envia um comunicado à
fábrica sobre o envolvimento do operário no PCB.
Essa prática de troca de informações se deu não entre a fábrica e a DOPS, mas entre as Forças Armadas e as outras associações e instituições assessoradas ou ligadas à Delegacia de
Ordem Política e Social:
A importância do intercambio institucional como sustentáculo da rede de informação é fundamental na manutenção dos espaços de poder, operando no sentido
de vigilância permanente e controle social, sendo a
partir dessa perspectiva possível entender a importância dada à informação no rastreamento das pessoas,
feito através da coleta, processamento e repasse dos
dados em caráter local/nacional (SILVA, 2007, p. 137).
Outras listas foram produzidas no decorrer da década de
1940 e 1950, principalmente após a apreensão de documentos
no período em que o PCB foi posto na ilegalidade.
É certo que este controle social das esferas do institucional
representou não só uma função repressora da DOPS, mas expôs
na ordem instituída, a fragilidade da classe burguesa. O limite da
democracia liberal se fundiu com a autocracia-burguesa, caracterizado pela força de quem detém acesso às funções instituídas.
106
Arleandra de Lima Ricardo
Fontes
Acervo Público Jordão Emerenciano, prontuário n. 4645,
27.922, 4628, 4.617.
5
Referências
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Evolução Política (1945-1964). São Paulo: FCA, 1985.
CARVALHO, J. C. M. de. Camponeses no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1978.
CORREIA, Telma de Barros. De vila operária a cidadecompanhia: as aglomerações criadas por empresas no vocabulário
especializado e vernacular. Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais, n. 4, mai. 2001, p. 83. Disponível em:
<www.anpur.org.br/revistas/Anpur_v4.pdf>. Acesso em: 24 jan.
2009.
Dentro da estrutura
repressiva: o Sistema de
Segurança Interna
Imaginário anticomunista e repressão
política em Minas Gerais no começo
da década de 1970
Luiz Fernando Figueiredo Ramos*
FORMAN. S. Camponeses: sua participação no Brasil. Trad.
Maria Isabel Erthal Abdenur. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LIMA, M. do S. A. Tecendo lutas, abrindo espaços: mulheres
nos movimentos sociais dos anos 50. Recife: Oito de Março, 2004.
LOPES, J. S. L. et. al. Mudança social no nordeste: a
reprodução da subordinação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
(Série Estudos sobre o Nordeste, v. 5.)
SILVA. M. G. Informação, repressão e memória: a
construção do estado de exceção no Brasil na perspectiva da
DOPS-PE (1964-1985). Tese de doutorado no Programa de
História. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.
SOUZA, F. A. S. Relações do trabalho no Brasil: um enfoque
didático. Brasília: IBRART; OIT, 1985. (Série Pesquisa n.5).
O
golpe civil-militar de 31 de março de 1964, ao romper a
legalidade democrática instituída no Brasil desde 1946,
representou um divisor de águas na política nacional. De um
lado alijou do poder as autoridades legalmente constituídas,
cerceou a margem de ação dos movimentos populares, cassou
mandatos de parlamentares contrários à nova ordem estabelecida, expulsou do funcionalismo público um número grande de
pessoas supostamente ligadas ao governo João Goulart (19611964) e a organizações consideradas subversivas, limitou os
Mestrando em História Social na Universidade Estadual de Montes Claros
(UNIMONTES). Especialista em História e Culturas Políticas pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG).
*
108
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
canais de participação democrática, estabeleceu a censura aos
meios de comunicação e, com o passar do tempo, foi ampliando
as medidas coercitivas através de atos institucionais (AI) e da
instauração de Inquéritos Policial Militares (IPMs), que em poucos anos culminariam com o completo fechamento do regime
através do AI-5.
Por outro lado, os militares no poder, em conjunto com as
elites políticas civis, parte da classe média e outros setores conservadores da sociedade política, adotariam um enfoque burocrático e tecnocrático na formulação de políticas econômicas,
implantando em conjunto com o bloco multinacional-associado
(Dreifus, 1981), uma política de austeridade econômica de achatamento de salários da classe trabalhadora, controle do processo sindical; o objetivo da adoção desta política econômica seria
atrair investimentos estrangeiros. E para isso vão estabelecer e
reforçar os aparelhos repressivos do Estado no sentido de neutralizar as oposições internas.
Segundo Huntington, ao avaliar as intervenções castrenses
nas sociedades políticas do até então chamado Terceiro Mundo;
“no mundo da oligarquia o soldado é um radical; no mundo da
classe média é um arbitro e um participante; à medida que a
sociedade de massas desponta no horizonte, torna-se um guardião conservador da ordem existente” (HUNTINGTON, 1975,
p. 233). Desta forma, em sociedades com baixo desenvolvimento político-institucional, uma industrialização limitada e com a
ascensão dos movimentos reivindicatórios, os conlitos políticos
e de classe tornam-se iminentes.
Durante o período republicano os militares serão atores relevantes no cenário político brasileiro, a semelhança de outros
países latino-americanos. Porém, no período posterior à Segunda Guerra Mundial e com o advento da Guerra Fria, ocorre uma
signiicativa expansão das Forças Armadas na América Latina.
A diferença de outras conjunturas, a Guerra Fria trouxe um no-
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
109
vo advento que acabou sendo introjetado no interior das Forças
Armadas latino-americanas, a Doutrina de Segurança Nacional
(DSN), que será a ideologia norteadora do regime implantado no
país a partir de 1964.
O imaginário anticomunista no seio das Forças Armadas
Ao iniciarmos este tópico sobre a conformação do anticomunismo nas Forças Armadas, faz necessário deinirmos algumas conceituações teóricas que utilizaremos durante o desenvolvimento deste texto. Primeiramente, tomaremos como método
de análise o conceito de Cultura Política, utilizado por Kuschinir
e Carneiro com base no que deiniram Almond e Verba, que seria a princípio “um conjunto de atitudes crenças e sentimentos
que dão ordem e signiicado a um processo político, pondo em
evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores” (Kushinir & Carneiro, 1999, p. 227).
Outra conceituação é a de Imaginário Social, com base no que
assinalou Baczko; para este autor é por meio do imaginário social que se podem atingir os medos, aspirações e as esperanças, ou o âmago de um povo. É nele que a sociedade esboça
suas identidades e objetivos, detecta seus inimigos e organiza
seu passado, presente e futuro. Este imaginário se expressa por
meio de ideologias e utopias, e ainda por simbolismos e representações (BACZKO, 1985).
Devemos ainda levar em consideração alguns aspectos relativos à formação da mentalidade proissional militar. Para isso faz
necessário o livro de Huntington, O soldado e o Estado. Segundo
este autor parece haver um consenso entre os analistas do comportamento castrense que airmam que “a mentalidade militar é
110
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
disciplinada, rígida, lógica e cientíica, e que não é lexível, tolerante, intuitiva nem emocional” (HUNTINGTON, 1996, p. 79).
Provavelmente o processo de formação de oiciais nas academias militares e a proissionalização dos quadros para o desempenho contínuo da função de administrar a violência acabam dando
origem a estas características (HUNTINGTON, 1996, p. 79), o
que os torna, muitas vezes, “diferentes” em relação ao cidadão
comum. De acordo com este autor, podemos concluir que os militares são um corpo proissional treinado para o emprego e a administração da violência para garantir a segurança do Estado nacional. Teoricamente são subordinados ao poder civil, isto quando
se trata de um estado democrático de direito (HUNTINGTON,
1996, p. 79). Na situação que estamos estudando, eles assumiram
o controle do Estado como instituição.
Diante desta formação proissional austera, com ênfase na
disciplina hierárquica, os militares devem calcular metodicamente as ameaças existentes à segurança do Estado e da sociedade, de acordo com Huntington (1996, p. 84):
As realidades objetivas da política internacional, portanto, só em parte determinam a avaliação militar da situação. As concepções do militar também reletem uma
inclinação proissional subjetiva cuja força depende
de seu nível geral de proissionalismo. Essa inclinação
proissional ou senso de responsabilidade proissional
leva-o a perceber que se errar em sua avaliação o erro
deverá icar do lado da exacerbação e da ameaça. Como
resultado, muitas vezes ele verá ameaças à segurança do
Estado onde na realidade não existe nenhuma.
Essa austeridade proissional, no entanto, não signiica que
a comunidade militar esteja imune às penetrações ideológicas
e às inluências de determinadas culturas políticas, muito pelo
contrário. Conforme veremos logo mais a frente, as declarações
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
111
de certos setores das Forças Armadas não reletem necessariamente seu caráter militar, são derivadas de posturas individuais
e de clivagens internas politicamente posicionadas.
Em um segundo momento, o nacionalismo é outro ponto
importante no imaginário militar, porém alguns cuidados devem
ser levados em consideração ao tratarmos do assunto. O nacionalismo como fenômeno sociopolítico tem origem na Europa do
século XIX; esse modelo de nacionalismo serviu de base para
vários movimentos anticomunistas no decorrer do século XX,
por exemplo, os nazistas na Alemanha, os fascistas na Itália e os
integralistas no Brasil. No entanto, no pós-guerra o nacionalismo será defendido por grupos com propostas políticas antagônicas, tanto a direita quanto a esquerda, principalmente relativo
às questões econômicas como protecionismo contra o capital
externo. Por exemplo, em 1953 os comunistas participaram ativamente da campanha “o petróleo é nosso” quando da fundação da Petrobrás. Para os militares, o Estado-Nação constitui a
forma mais elevada de organização política da sociedade, é um
nacionalismo de caráter conservador, para isso sustentam que a
segurança nacional depende da manutenção de Forças Armadas
fortes e permanentes.
De acordo com Motta (2002), a convergência entre nacionalismo e anticomunismo pode ser observada nos dois golpes
político-militares que tiveram como uma das justiicativas o
avanço do “perigo vermelho”, o Estado Novo em 1937 e o golpe
civil-militar de 1964. Ambas as experiências enfatizaram vigorosamente a valorização de ideais cívicos e patrióticos, estimulando o culto a símbolos, datas e heróis nacionais, lançando mão
inclusive de reformulações no ensino educacional, com clara intenção de tentar invalidar o discurso das esquerdas, promovendo
a ideia de que a união nacional estava acima de qualquer divergência de caráter econômico ou social (MOTTA, 2002, p. 36).
112
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
Ainda de acordo com o mesmo autor, no que se refere ao
anticomunismo de caráter nacionalista, os militares foram o grupo social mais receptivo a essa proposta de mobilização contra
os comunistas e em defesa da nação. Ao longo da história do anticomunismo no Brasil, membros egressos das Forças Armadas
tornaram-se militantes anticomunistas (MOTTA, 2002, p. 36).
Não se trata aqui de generalizar o anticomunismo como fruto do
nacionalismo das Forças Armadas, um dos motivos que gerou o
anticomunismo militar; foi o fato de existirem expressivos seguimentos de esquerda dentro do Exército e de alguns militares
terem se tornado comunistas. No auge do embate ideológico dos
anos 1930, a Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado, com um discurso ultranacionalista e com uma forma de
organização parecida com a estrutura militar, conseguiu atrair
um número considerável de membros das Forças Armadas para
suas ileiras (MOTTA, 2002, p. 37).
O acontecimento que iria cristalizar de vez o sentimento anticomunista dentro das Forças Armadas brasileiras foi a chamada “Intentona Comunista”, de 1935. Esse acontecimento acabou
entrando para o calendário cívico das Forças Armadas. O livro
do general Ferdinando de Carvalho, Lembrai-vos de 35, mostra
o culto em torno dos mortos da “Intentona” de 1935, traz logo
na capa a foto do monumento erguido na Praia Vermelha, no
Rio de Janeiro, em homenagem aos militares mortos durante o
levante. “O episódio sofreu um processo de mitiicação, dando
origem a uma verdadeira legenda negra em torno da Intentona
Comunista” (MOTTA, 2002, p. 76). O 27 de novembro foi uma
data comemorada nas décadas seguintes com a presença de comandantes militares e inclusive, em algumas ocasiões, com o
presidente da República.
Verdadeiros mitos foram criados desde então, o mais conhecido é o de que alguns militares teriam sido mortos durante
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
113
o sono pelos colegas de farda rebelados, o que deu aos comunistas a alcunha de cruéis e traidores. Entretanto, o caso onde se
deu a suposta execução foi no Rio de Janeiro, onde as tropas já
estavam de prontidão devido aos levantes no nordeste. Segundo Motta, a história de militares executados durante o sono foi
reproduzida nos anos seguintes, frequentemente aparecendo na
imprensa, o que acabou dando um caráter “verdadeiro”, num
processo paulatino de construção de construção e elaboração do
mito (MOTTA, 2002, p. 76). Sobre a construção propagandística em torno do levante de 1935, Motta assinala:
O comunismo deixava de ser uma abstração e adquiria
um peril deinido, concreto próximo da realidade brasileira; o anticomunismo passava a ter um apelo forte,
sensibilizando setores signiicativos da sociedade que
até então não dava ouvidos às advertências sobre o
“perigo vermelho”. A “Intentona Comunista” possuía
características típicas dos mitos modernos, a capacidade de provocar a mobilização social. Procurava – se
mobilizar a sociedade contra os comunistas por meio
da advertência de que, se não fossem detidos, cometeriam de novo as supostas vilezas de 1935 (MOTTA,
2002, p. 76).
Assim o anticomunismo cristalizou-se nos setores mais
conservadores da sociedade brasileira, de modo especial nos
segmentos das Forças Armadas mais identiicados com a direita.
Isto não signiica que a instituição tenha icado impermeabilizada contra penetrações ideológicas de outro tipo. No decorrer dos
anos 1950 e no início dos anos 1960 expressivos seguimentos
das Forças Armadas, principalmente do Exército, comungavam
com ideias de esquerda, não exatamente comunistas, apesar de
existir militares pertencentes ao PCB. Uma vez consolidado o
golpe de 1964, muitos oiciais, talvez perto de quatrocentos, fo-
114
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
ram exonerados ou mandados compulsoriamente para a reserva.
A bipolaridade da Guerra Fria trouxe novas reformulações
para o pensamento estratégico militar, a partir de então vão desenvolver o conceito de segurança nacional, que de uma forma
bastante simpliicada constitui no binômio segurança e desenvolvimento. Este conceito estratégico, transformado em ideologia, foi desenvolvido pelo National War College, em Washington, e tornou-se o principal pressuposto na formação das elites
militares da América Latina.
No Brasil o principal centro difusor desta ideologia foi a
Escola Superior de Guerra (ESG), que no início contou com
assistência norte-americana. Foi a ESG que instrumentalizou
a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) no Brasil, que foi a
ideologia oicial do regime de 1964. A doutrina trabalhada pela
ESG é todo um conjunto de pressupostos para serem implementados nas diversas instâncias do poder político nacional. Trata-se
de várias estratégias de caráter político, econômico, psicossocial
e militar, nesta doutrina a questão da segurança e do desenvolvimento nacional são fatores intrinsecamente indissociáveis. A
ESG foi construída com o objetivo de proporcionar estudos entre civis e militares acerca de planos para o desenvolvimento do
país. A partir de então os militares estreitaram os laços com as
elites empresariais civis e, neste sentido, a DSN era um instrumento para ser aplicado no planejamento governamental; num
plano mais especíico, a DSN era a “orientação para a ação e
emprego da destinação do poder” (ESG, 1977-1978, p. 11).
A DSN faz um apelo cívico para a união coletiva dos cidadãos em torno da pátria, defende ao mesmo tempo um projeto nacionalista, o livre comércio e a iniciativa individual e uma
aliança estratégica com os Estados Unidos. Segundo o general
Aurélio Lyra Tavares, a segurança nacional é um problema de
toda a sociedade, de todos os grupos que integram a nação, des-
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
115
de o plano espiritual até o material, “porque exige do governo,
das classes dirigentes e do povo a consciência sobre o que ela
é como deve ser entendida e realizada, as vulnerabilidades que
apresenta e os perigos que pode ocorrer” (TAVARES, 1962, p.
14). Esta visão tem base em um pressuposto de guerra total e permanente entre capitalismo e socialismo, os perigos e as vulnerabilidades, são a propagação de ideias marxistas (pelos partidos
e organizações comunistas) em vários setores da sociedade, que
na visão dos doutrinadores são os preparativos da guerra revolucionária e o início da fase subversiva. Desta forma, “a produção ideológica pode permitir o mascaramento, a deslocação ou o
desvio dos conlitos ou das potencialidades do conlito, e ainda
enxergar o conlito e amenizá-lo, articulando um conlito imaginário entre as potencialidades efetivas” (ANSART, 1978, p. 83).
Sendo assim, podemos airmar que a ditadura civil-militar, por
meio da propaganda oicial, que difunde sua ideologia e legitima
suas ações, faz uso ostensivo do aparelho repressivo de estado
no sentido de calar, conter, neutralizar e eliminar isicamente as
opiniões dissidentes Por sua vez, os órgãos de segurança interna
como parte da Comunidade de Informações (aparelho repressivo do estado), sendo receptores e consumidores desta ideologia,
tem seu ethos, prática e direcionamento operacional voltadas para o controle e a vigilância dos inimigos do estado, sendo estes
as organizações clandestinas de esquerda e seus simpatizantes.
Deste modo, “a ideologia surge, então como instrumento permanente dos poderes e como o ponto simbólico onde os poderes
são incessantemente legitimados ou contestados, reforçados ou
enfraquecidos” (ANSART, 1978, p. 83-4).
Na visão dos formuladores da DSN, a nação constitui-se
num corpo com possibilidade de fragmentar-se e ser destruído
em sua unidade interna, seja de ordem material ou espiritual. Os
teóricos da segurança nacional esquematizaram a nação como
116
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
um organismo vivo semelhante aos sistemas fundamentais do
organismo humano, dividido em quatro partes: o primeiro é o
campo político identiicado com o sistema nervoso, onde se encaixa o governo. O segundo é o sistema circulatório, ou a economia. O terceiro é o sistema sensorial, que é o psicossocial, isto é,
todas as instâncias da sociedade, desde instituições convencionais como a família, a escola, a religião, passando por fatores
como a cultura, o saneamento, a saúde, a habitação, o trabalho,
a previdência social, da ecologia à tecnologia. O quarto e último é o sistema muscular, e é aí que entram as Forças Armadas
(TAVARES, 1962, p. 14).
A parte que realmente nos interessa sobre a DSN neste trabalho é sua estratégia militar. A Guerra Fria era uma guerra constante travada em todos os campos – político, militar, econômico.
A estratégia militar da DSN é uma resposta às formas de enfrentamento armado que tiveram maior notoriedade durante a Guerra Fria. Após a Segunda Guerra mundial, com redeinição das
chamadas “fronteiras ideológicas”, o que restava do colonialismo
europeu na África e na Ásia entrava em processo de emancipação
política; essas antigas colônias tornaram-se nações, muitas das
quais após um prolongado processo de luta armada. Pela lógica
da geopolítica da Guerra Fria, era evidente que alguns destes novos países passariam ou para a órbita de inluência norte-americana ou soviética. Dois exemplos ilustrativos dessas guerras de
libertação nacional são as guerras da Argélia e da Indochina, que
envolveram a França. Com a derrota da França a Argélia estabeleceu um governo de cunho socialista e a Indochina dividiu-se em Vietnã do Norte socialista e Vietnã do sul capitalista. As
experiências francesas na Argélia e na Indochina estão narradas
no livro do coronel Gabriel Bonnet, Guerras Insurrecionais e Revolucionárias, lançado no Brasil em 1963.
A preocupação dos estrategistas da ESG passa a ser com as
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
117
guerrilhas, principalmente após a Revolução Cubana em 1959,
que foi um exemplo mais próximo da realidade latino-americana.
A partir de então grupos guerrilheiros inspirados no exemplo de
Cuba começaram a se insurgir em vários cantos do continente,
como Colômbia, Peru, Guatemala, Nicarágua e outros lugares.
No Brasil, a mobilização dos movimentos de massas no governo
João Goulart (1961-1964) em torno das reformas de base e da
reforma agrária, foram interpretadas pelos militares da ESG e
pelas elites empresariais como mobilização para a guerra revolucionária. As manifestações estudantis de 1968, ocorridas em
várias cidades do Brasil, não foram vistas de maneira diferente
pelos detentores do poder, que a partir de então aumentariam o
grau de repressão e violência política contra os adversários do
regime. De fato, vários militares chegaram airmar que se tratava
do “começo da guerra revolucionária comunista”.
Desde o princípio a ESG estava comprometida com a luta interna anticomunista, e tornou-se o “centro do pensamento
ideológico relativo à estratégia contrarrevolucionária no Brasil”
(STEPAN, 1975, p. 132), tomando emprestada a racionalização
francesa e norte-americana sobre o assunto. Nos manuais da ESG
a chamada “Guerra Revolucionária Comunista” era um instrumento do “comunismo Internacional”, e parte da política externa
de Moscou para os países do então chamado Terceiro Mundo; já
que na visão dos formuladores da doutrina da ESG a política de
coexistência pacíica implementada pela URSS durante o governo
de Nikita Krushev (1956-1964), era uma forma disfarçada dos soviéticos de “desestabilizar governos e nações” (ESG, 1977-1978,
p. 237-238). Nesta visão maniqueísta de mundo, os teóricos da
contrainsurgência, como Hermes de Oliveira Araújo e Friedrich
August Von Der Heydte, viam os revolucionários argelianos, vietnamitas e latino-americanos como meros fantoches nas mãos de
técnicos russos da “Guerra Revolucionária”, porém no pós-Se-
118
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
gunda Guerra Mundial a URSS “não desejava nem tentava ampliar sua área de inluência” (HOBSBAWM, 2003, p. 424-425).
O problema é que estes guerrilheiros teriam que ser mais criativos
que os soviéticos; sendo assim, as guerras de guerrilhas e outros
fenômenos violentos do Terceiro Mundo poderiam ser compreendidos sem nenhuma relação com a história destes povos.
A justiicativa ideológica fornecia toda interpretação. Por
exemplo, o livro Guerra Revolucionária, do tenente-coronel
português Hermes de Oliveira Araújo, coloca os movimentos de
libertação nacional afro-asiáticos como uma maléica conspiração do “comunismo internacional”, e os guerrilheiros como um
bando de assassinos fanáticos. Este livro foi lançado no Brasil
em 1965, o prefácio da obra foi escrito pelo então chefe do Estado-Maior do Exército, general Décio Escobar, que em alguns
trechos transcreve bem o imaginário dos militares sobre as guerrilhas ou que eles entendiam por “Guerra Revolucionária”.
A guerra revolucionária é uma das manifestações mais
insidiosas e imprevistas da luta que o mundo de nossos
dias em permanente estado de tensão, em equilíbrio
instável e constitui grave e perene ameaça às democracias. Diferem essencialmente da guerra clássica por
sua tática, sua técnica e seus processos. [...] Eles são
fanáticos empenhados de espírito e coração na conquista dos objetivos que lhes são indicados. Move-os
o ódio, de cuja virulência procuram tirar o máximo
proveito (ARAÚJO, 1965, p. 6-7).
Para os militares brasileiros do regime de 1964, os movimentos de esquerda, sejam os que defendiam a luta armada
ou não, são encarado da mesma forma: visam a “subversão da
ordem”, a “dissolução da sociedade”, a “indisciplina” e a “quebra de hierarquia”, valores que são considerados tabus para
os militares. Respaldados pela DSN e reelaborando seus estu-
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
119
dos estratégicos acerca das “novas formas de guerra”, a partir
da experiência francesa e de outros países criaram sua própria
doutrina contrarrevolucionária.
Assim sendo, a concepção belicista das mudanças sociais,
a visão maniqueísta reforçada pelo antagonismo leste oeste, e as
mobilizações dos movimentos sociais em torno das reformas de
base foram vistos como mobilização para a “guerra revolucionária” no Brasil, e penetraram profundamente no imaginário dos
estrategistas militares. A “guerra revolucionária”, segundo os
manuais da ESG, começa por meio da ação psicológica, feita por
elementos “subversivos” iniltrados entre a população, visando
a conquista das “mentes” e dos “corações” do povo, falando em
nome deste, agindo de maneira progressiva com uma minoria
de quadros que aos poucos faz com que a subversão aumente e
culmine na criação de uma força de guerrilha.
O componente bélico da DSN “reside no enquadramento da
sociedade nas exigências de uma guerra interna física e psicológica” (BORGES, 2003, p. 27). O sistema social torna-se um sistema de guerra condicionado pela perspectiva da violência e da
repressão, transformando o quotidiano da sociedade em um sistema pautado pela lógica da desconiança. A luta interna, segundo
o manual da ESG, atribui um forte papel à sociedade civil e aos
dispositivos de segurança e informações do Estado. O mito da
“guerra revolucionária” permite ao Estado de Segurança Nacional implementar uma política repressiva, acionando os órgãos de
segurança e as informações para exercer seu papel “moralizador,
desmobilizando, com isso, a população” (BORGES, 2003, p. 28).
Em nome da segurança nacional e do combate ao “inimigo
interno”, todas as instâncias da sociedade civil e do funcionalismo público foram enquadradas nas exigências de uma operação
de guerra. Neste ponto a ação de guerra psicológica tem um papel fundamental, pois trata de manter a população afastada do
120
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
“processo subversivo” e despolitizada. Neste sentido, propagandas que exaltam o nacionalismo tem um papel fundamental, slogans como “Brasil ame-o ou deixe-o” e “esse é um país que vai
pra frente” foram utilizados como parte da estratégia psicossocial da ditadura. Com relação à repressão física, é o uso do terrorismo de Estado a im intimidar os “inimigos internos”, é a partir
daí que o Estado de Segurança Nacional faz uso sistemático dos
órgãos de segurança e informações que farão o policiamento político da sociedade, e que serão responsáveis em grande medida
por prisões arbitrárias, torturas, assassinatos e desaparecimento
forçado de pessoas.
Construção do aparato repressivo e implantação Sistema de
Segurança Interna em Belo Horizonte
Os aparelhos repressivos do Estado ditatorial começaram a
ser implantados ainda nos primeiros dias do novo regime. No dia
13 de junho de 1964 era oicialmente instituído o Serviço Nacional de Informações (SNI), que seria a cabeça de todo o aparato
repressivo, um dos principais criadores do órgão era o general
da reserva Golbery do Couto e Silva. O objetivo expresso era
suprir o regime de uma segura rede de informações e garantir
sua consolidação. O SNI herdou as estruturas do antigo Serviço
Federal de Informação e Contra-Informação (SFICI), que havia
sido criado no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). Embora fosse concebido como órgão de informações civil, o SNI
era cheiado por um general e suas diversas seções eram dirigidas por militares, embora também tivesse um número considerável de civis entre agentes e pessoal administrativo; chegou
a acumular tanto poder que o general que o cheiava possuía
prerrogativas de ministro de Estado. Aliás, dois presidentes da
121
ditadura foram chefes do SNI, Emilio Garrastazu Médici (19691974) e João Batista Figueiredo (1979-1985).
Para a inalidade especiicamente repressiva contra as organizações guerrilheiras de esquerda, os serviços de informações militares foram criados e reestruturados. O primeiro deles,
o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), existia desde
1957 e era subordinado ao Estado Maior da Armada.1 Esse órgão icou famoso durante a ditadura devido à sua capacidade
operacional. Nos arquivos dos DOPS estaduais encontram-se
correspondências do Cenimar anteriores golpe de 1964, que
mostram a colaboração deste órgão com a polícia política na
investigação de grupos de esquerda. A partir de 1968, com o
aumento da ação repressiva do regime e as ações da guerrilha
urbana, o Cenimar passa a ser subordinado ao Ministério da
Marinha e amplia suas atividades a im intensiicar o combate aos grupos de esquerda. No Exército foi criado em 1967 o
Centro de Informações do Exército (CIE), no início no Estado
Maior desta força, um ano depois passa a icar subordinado ao
Ministério do Exército. Dos serviços de informações militares
era o que tinha maior quadro de pessoal e o mais ativo no combate aos grupos de esquerda, pois foi criado especiicamente
como órgão de repressão à luta armada. A Aeronáutica em 1968
criou o seu serviço de informações a semelhança do que foi
criado no Exército, no primeiro momento foi batizado de Núcleo do Serviço de Informações da Aeronáutica (N-Sisa), pouco
tempo depois tem sua estrutura redimensionada e é rebatizado
de Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (Cisa),
também subordinado ao Ministério desta força.2 Em cada uma
das Forças Armadas havia ainda um sistema de informações
1
Decreto nº 42.687, de novembro de 1957. Disponível em: <www.senado.gov.br/
Legislacao/Listapublicacoes,action?id=172722>. Acesso em: 18 ago. 2008.
2
Para uma descrição mais precisa dos serviços de informações militares, Cf.
Antunes (2002, cap. II).
122
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
123
que englobava os centros já citados mais os serviços de informações dos Estado-Maiores de cada arma: Exército E-2, Marinha M-2, Aeronáutica A-2, isso sem mencionar os setores de
informações de cada ministério, toda esta estrutura compunha o
Sistema Nacional de Informações (SISNI).
a) Entre tais ações, destacam-se atividades subversivas,
agitações, tumultos, distúrbios de toda ordem devastações, saques, assaltos, roubos, sequestros, incêndios, depredações, destruições, sabotagem, terrorismo e ações
de bandos armados nas guerrilhas rurais e urbanas;
Para os detentores da ordem, esta estrutura não era suiciente
para enfrentar a oposição das esquerdas armadas. Havia problemas estruturais de ordem hierárquica, jurídica e política. Desde
meados da década de 1920 havia nos estados um órgão voltado
para repressão a elementos tidos como “perigosos” e “subversivos”, os Departamentos de Ordem Política e Social identiicados pela sigla DOPS. Por que então não manter os DOPS nesta
atividade ou empregar os centros de informações militares nesta
atividade? Diversos autores airmaram e militares que serviram
na área de informações e segurança apontam que as guerrilhas
urbanas agiam em vários pontos do território nacional, e como
os DOPS estavam circunscritos às esferas político jurídicas estaduais e, mesmo nos estados, não possuíam preparo e recursos
adequados para enfrentar as ações das guerrilhas urbanas e a Polícia Federal não estava plenamente estruturada, foi necessário
o envolvimento das Forças Armadas. Mesmo assim, ainda havia
o problema de jurisdição, cada uma das forças militares possuía
sua independência e seu ministério e havia uma grande possibilidade de haver choque entre seus serviços de informações.
O problema foi contornado – mas não plenamente – com uma
série de diretrizes secretas baixadas pela Presidência da República desde 1969, que tinham por inalidade uniicar centralizar
as medidas repressivas. Estas diretrizes icaram conhecidas como Diretrizes Especiais de Segurança Interna. Em uma destas
diretrizes, o Decreto nº 66.862 de 8 de julho de 1970 em alguns
de seus parágrafos que transcrevemos a seguir estabelece:
b) As medidas preventivas e repressivas neste caso,
estão incluídas nas medidas de defesa interna e são
conduzidas pelos Governos Estaduais, contando com
apoio do Governo Federal; [...].
Art. 4º As Polícias Militares, para emprego em suas
atribuições especiicas ou como participantes da defesa interna ou da defesa territorial, icarão diretamente subordinados aos Comandantes do Exército ou
Comandantes Militares de Área, que poderão delegar
essa competência aos Comandantes de Regiões Militares e a outros Grandes Comandos com jurisdição nas
áreas dos Estados, Territórios e Distrito Federal, [...].
Art. 5º As Polícias Militares, a critério dos Exércitos e
Comandos Militares de Área, participaram de exercícios, manobras e outras atividades de instrução necessárias às ações especiicas de defesa interna ou defesa
territorial, com efetivos que não prejudiquem sua ação
policial prioritária.
Art. 6º Os Comandantes-Gerais das Polícias Militares
poderão participar dos planejamentos das Forças Terrestres, que visem a defesa interna e a defesa territorial, a critério dos Grandes Comandos.
Art. 25. As Polícias Militares integraram o serviço de
informação e contra-informação do Exército, conforme
dispuserem os Comandantes de Exército ou Comandos
Militares de Área, nas respectivas áreas de jurisdição.3
3
Decreto nº 66.862, de 8 de julho de 1970. Disponível em: <www.senado.gov.br/
legislacao/listapublicacoes.action?id=197250> Acesso em: 18 nov. 2008.
124
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
Com o estabelecimento destas diretrizes, as medidas repressivas para contenção das guerrilhas urbanas foram centralizadas pelos comandos de Exército a partir de 1970. Para
isso o território nacional foi dividido em seis Zonas de Defesa
Interna (ZDI), que subdividiam-se ainda em Áreas e Subáreas de Defesa Interna ADI e SADI, esta estrutura seria denominada de Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN), cujas
principais expressões eram o Centro de Operações de Defesa
Interna (CODI) e o Destacamento de Operações de Informações (DOI); a criação deste sistema foi a principal expressão
da truculência do regime de 1964.
O CODI era um centro normativo de comando e planejamento das medidas repressivas, cheiado por general ou coronel chefe do Estado-Maior da área. Tinham assento neste
órgão representantes dos comandos militares de área, podiam
ser da Aeronáutica ou da Marinha, representantes das secretarias de segurança dos governos e das polícias estaduais. O
DOI era o órgão operacional subordinado ao CODI, responsável direto pela repressão e desarticulação dos grupos de esquerda, o DOI geralmente era comandado por um tenente-coronel ou major, os seus efetivos eram compostos por militares
do Exército, policiais militares e agentes do DOPS. Mesmo
estando subordinado ao CODI, o DOI manteve um alto grau
de autonomia. Esta estrutura não era uniforme no país todo,
pelo contrário, apresentava uma dinâmica lexível e variava
de uma região para outra.
Em Belo Horizonte o sistema repressivo começa a ser implantado em ins de 1970, com a criação de um Núcleo-CODI/
BH, e é efetivamente estabelecido em 21 de janeiro de 1971. Belo
Horizonte representava uma Subárea de Defesa Interna SADI/BH
que correspondia à 4ª Infantaria Divisória (ID/4), na ocasião comandada pelo então general de brigada Gentil Marcondes Filho,
125
que dez anos depois seria envolvido no caso Riocentro.4 O responsável do CODI/BH icou a cargo do coronel Aníbal Augusto
Joaquim Moreira, no caso SADI/BH não havia um Estado-Maior
completo – o SISSEGIN permitia esta lexibilidade – coube ao
CODI coordenar, planejar e integrar as medidas repressivas, inclusive as chamadas operações psicológicas, coordenar e integrar
as informações, fazer as ligações com os escalões superiores e
subordinados, órgãos e repartições. Segundo o estatuto de implantação do sistema em Belo Horizonte, a ele estava atribuído:
•
Propor medidas e participar do planejamento e
aplicação das medidas previstas a serem realizadas nos respectivos espaços territoriais;
•
Orientar, coordenar e controlar o planejamento das
medidas repressivas e o da fase operativa, inclusive a participação das autoridades civis e militares
sediadas nos respectivos territórios;
•
Assumir a direção e o controle de execução das
medidas repressivas quando se conigurar grave
perturbação da ordem ou ameaça a sua irrupção.5
Como relação ao braço operacional da estrutura repressiva
em Belo Horizonte, o DOI, icava sob o controle respectivo do
CODI e da Segunda-Seção do Estado-Maior (E-2), que por sua
vez era controlada pelo CIE. O DOI/BH foi comandado pelo
major Antonio Gomes Ribeiro do inal de 1970 até aproximadamente ins de 1971, quando foi passado para o major Orlando
de Abreu Ferreira, que algum tempo antes foi encarregado de
diversos IPM, servindo ainda na seção de operações do DOI. De
acordo com o estatuto as atribuições do DOI eram:
4
Em 1981 um grupo de militares lotado no DOI do Rio de Janeiro e no CIE promoveu
um atentado fracassado contra o processo de abertura política em um show musical no
Riocentro. Um militar morreu na explosão e outro icou gravemente ferido.
5
APM – Fundo DOPS/MG, Pasta 4002, Rolo 050, Imagem 141.
126
•
Executar as missões de operações recebidas.
•
Analisar o material apreendido, enviando o que houver de mais importante para a seção de informações.
•
Interrogar presos.
•
Controlar presos coninados.
•
Prender implicados ou suspeitos.
•
realizar diligencias e investigações necessárias.
•
Promover a segurança das autoridades.
•
Criar equipes especializadas de acordo com as
necessidades.
•
Realizar IPMs sempre que o volume de serviço
permita.6
As informações produzidas pelo SISSEGINT em Belo Horizonte eram encaminhadas para a agência local do SNI. Isto
mostra a colaboração que havia entre o SISSEGIN e o Sistema
Nacional de Informações (SISNI), que com todos os outros órgãos dos ministérios civis e instâncias federais e estaduais, DSIs
e ASIs, compunham essa megaestrutura repressiva, autodenominada Comunidade de Informações.
Produção e troca de informações
As trocas de informações sobre os movimentos de esquerda,
entre o Cenimar com os DOPS, ocorriam antes do golpe de 1964.
Conforme mencionamos, um documento datado de 12 de maio
de 1971 comprova esta colaboração. Trata-se de uma passagem
6
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
APM – Fundo DOPS/MG Rolo 050, Pasta 4002, Imagem 142.
127
de comando no Cenimar entre o capitão-de-mar e guerra Fernando Pessoa da Rocha Paranhos, para o contra-almirante Joaquim
Januário Gomes Coutinho, na carta há um agradecimento ao delegado do DOPS/MG pela colaboração e os serviços prestados.7
Com a implementação do SISSEGIN, os DOPS começaram
a receber informações de todos os lados. Entre a série de informes e informações produzidas por estes órgãos, recebiam diversos níveis de classiicação de acordo com o grau de procedência,
por exemplo; A, B, C, D, E, F e 1, 2, 3, 4, 5, 6. Exemplo: A-1 era
uma informação com grande possibilidade de ser verdadeira e
F-6 era um informe ou informação de origem duvidosa desprovida de idoneidade, a maior parte caia em C segundo Fiúza de
Castro (Fiúza de Castro, 1994, p. 47). Vejamos alguns exemplos,
analisando fontes, ressaltando que os depoimentos e interrogatórios, na maioria das vezes eram realizados sobre intensa tortura física e psicológica, fato que levanta dúvidas a respeito das
informações obtidas nos interrogatórios, já que a forte coerção
física pode levar um interrogado e dizer tudo aquilo que o interrogador quer que ele diga, a im de cessar a tortura.
Primeiro: as informações a seguir receberam a classiicação
A-1 por parte do DOI-CODI mineiro. Trata-se de um termo de
declarações prestadas por Esdras Azarias Campos, datado de 16
de abril de 1971, ao qual recairia suspeitas de ligação com militantes do Comando de Libertação Nacional (COLINA) – esta
organização havia sido desmontada pela repressão no início de
1969. Esdras entrou no curso de História da UFMG em 1967;
logo em seguida começou a fazer parte do movimento estudantil
e da UEE/MG, sendo vice-presidente do Diretório Acadêmico
(DA) do curso. Conheceu Apolo Heringer Lisboa e sua esposa,
Carmem Helena Barbosa do Vale, Carlos Alberto Soares Ferreira e Inês Etienne Romeu, militantes da POLOP. De acordo com
7
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagens 30,31.
128
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
suas declarações, Esdras tomou conhecimento das divergências
internas na organização e da posição dos militantes mineiros,
que icaram com os militantes da seção da POLOP da Guanabara
(então estado do Rio de Janeiro), que deu origem ao COLINA.
Foi procurado por Apolo Heringer Lisboa e Carlos Alberto Soares de Freitas com objetivo de ser incorporado à dita organização, chegando a ser convidado para participar de um curso
de marxismo que não chegou a fazer. Mais tarde foi procurado
por um colega, Edson Lourival Reis de Menezes, que lhe pediu
um contato com Inês Etienne Romeu. Ao que indica, o informe
neste momento começou a suspeitar que izessem parte de uma
organização clandestina (no texto está grafado subversiva) que
ele acabou airmando não saber qual. No início do ano de 1971
foi procurado por Renato Santos Pereira, um colega de faculdade que há muito tempo não via. Neste momento Esdras não estava exercendo nenhuma militância política. Renato passa então
a expor para seu colega os diversos posicionamentos teórico-estratégicos adotados pelas diversas organizações clandestinas
de esquerda, mas neste momento não assumiu militar em alguma destas. Ele tentou marcar novos encontros, mas acabou recebendo resposta negativa de Esdras, que airma não ter interesse
em participar de nenhuma organização. Diante da insistência do
colega é marcado um novo encontro na faculdade, que acaba
não ocorrendo, pois pouco antes Esdras é preso pelos agentes da
repressão e encaminhado ao DOI.8
Segundo: no dia 30 de abril de 1971, Osvaldo Bernardino
da Silva prestava suas declarações no DOPS diante do tenente
Marcelo Paixão de Araújo, adjunto da seção de operações do
DOI-CODI/BH. Osvaldo havia sido preso em São Paulo, em 1º
de fevereiro de 1971, por agentes do DOI local, e posteriormente
transferido para Belo Horizonte. Era natural de Douradouquara/
8
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4002, Imagens 105, 106, 107.
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
129
MG, tinha 22 anos na época e residia em Goiás. Transferiu-se
para Belo Horizonte em 1967 para trabalhar e estudar, prestou
concurso e foi admitido no Colégio de Aplicação da UFMG. No
ano de 1968 foi abordado por estudantes daquela universidade que lhe perguntaram das condições do ensino no Colégio de
Aplicação. Acabou entrando no clima de contestação que ocorria na universidade, onde conheceu Fernando Sanna Pinto, Jaime de Almeida e Job Alves dos Santos, este último aluno do
curso de História. Frequentemente nos intervalos era procurado
pelo trio, que trocava ideias sobre política educacional do governo e criticava, principalmente, o chamado acordo MEC/USAID,
feito entre o Ministério da Educação do Brasil e a Agência Norte
Americana para o Desenvolvimento, considerado pelas esquerdas um dos símbolos da dominação imperialista dos Estados
Unidos no Brasil. Aos poucos Osvaldo foi se envolvendo com o
trio de militantes, e entrou para a Ala Vermelha (AV), uma dissidência do PCdoB, identiicada pela sigla PCdoB-AV. No seu
depoimento aponta Fernando Sanna Pinto como o responsável
pela sua doutrinação política, pois este lhe emprestou alguns livros sobre marxismo e lhe passou alguns documentos da Ala
Vermelha, entre eles o documento “Crítica ao oportunismo e
desviacionismo dos elementos do Comitê Central do PCdoB” e
diversos números do jornal da organização, Unidade Operária.
Pouco tempo depois o responsável por sua formação político-ideológica passa a ser Jaime de Almeida, que lhe apresentou
duas alunas da FAFI/UFMG que ele não conirma se eram militantes da AV, Mairy Barbosa Loureiro e Arabela Pereira Madalena. Nesta época a AV sofria com dissidências internas como
consequência de problemas na direção nacional da organização.
Neste meio tempo, Osvaldo não exerceu quaisquer atividades na
organização, e segundo seu depoimento não recebeu nenhuma
tarefa especíica. Ao saber da prisão em lagrante de Jaime de
Almeida pelo DOPS, passou a icar preocupado com sua própria
130
segurança e mudou-se para São Paulo, casando-se com Lucí
Tarub Jorge. Nesta época já demonstrava interesse em se desligar da Ala Vermelha, o que ocorreu, sendo acusado de não
cumprir tarefas e não comparecer nos pontos marcados; foi expulso da organização em meados de 1970 e em função de ter
mantido ligações com elementos “subversivos”. Foi preso por
agentes da repressão.9
Terceiro: um informe datado de 17 de junho de 1971 traz
declarações de um estrangeiro, provavelmente de origem espanhola, Jaime Burgoa Alvarez. O documento está incompleto e,
por esse motivo, não podemos precisar exatamente o real motivo
de sua prisão, sendo mais provável a suspeita de contatos com
“elementos subversivos”. Alvarez trabalhou em uma empresa de
nome MOAME, em que a presidente era a esposa do governador do estado, e disse que tinha amizade com políticos conhecidos nacionalmente, nada mais nada menos que Tancredo Neves
e Geraldo Freire da Silva, na época presidente da ARENA, o
partido de sustentação da ditadura. Ele airmou que nunca foi
procurado por elementos contrários ao regime, e na sua opinião
“não se discute com quem quer que seja política e religião”.10
Condena as ações violentas dos grupos de esquerda e se disse
admirador do regime de então. Disse ainda que não sofreu qualquer coação para prestar tal depoimento.11
Quarto: em 21 de setembro o estudante de medicina Ítalo Biagio Flora, presidente do DCE da UFMG, prestava declarações no DOPS, o motivo era a confecção do jornal do DCE
chamado Opinião. O primeiro volume do jornal foi editado no
mesmo mês em que Ítalo foi intimado a prestar depoimento ao
DOPS. O jornal foi impresso na gráica do Correio da Manhã,
9
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
APM – Fundo DOPS/MG Rolo 050, Pasta 4002, Imagens 102-103.
APM – Fundo DOPS/MG, Pasta 4002, Rolo 050 Imagem 42.
11
APM – Fundo DOPS/MG, Pasta 4002, Rolo 050, Imagem 42.
131
no Rio de Janeiro, teve custo de Cr$ 2.000,00 (cruzeiros) pagos
pela diretoria do DCE. O objetivo do jornal, segundo o depoimento era: “informar, levantar, problemas, discuti-los e propor
soluções para os problemas levantados”, e ainda que o mesmo
foi elaborado em mesa redonda com a diretoria do DCE. No jornal foram publicadas as seguintes matérias: anuidades (p. 2), Índice de desnacionalização (p. 3), aprovado na câmara relatório
da CPI sobre desnacionalização (p. 4), crescimento do produto
nacional bruto (p. 5), história em quadrinhos (p. 8), informe
do DCE (p. 9), teatro? Sim, amizade! Mas no DCE federal!(p.
9), informe dos diretórios (p. 9 e 10). Indagado sobre o que tinha para alegar sua inocência, respondeu que esta se justiicaria
pelo conteúdo do jornal. Constatamos não apresentar conteúdo
“subversivo” aos olhos dos agentes da repressão, mas esta atitude conirma o caráter da ação dos órgãos repressivos de vigiar
e neutralizar qualquer elemento ou organização que demonstre
opiniões contrárias ao regime vigente.12
O quinto é uma informação “relativamente idônea” B-2.
No dia 16 de outubro de 1971, chegava ao DOI/BH dois suspeitos; o fotógrafo Naim Custódio de Oliveira e José Deusdeth
da Silva, que nunca haviam participado de nenhuma atividade
política, apenas como eleitores nas eleições de 1970, vencidas
pela ARENA. Sobre “subversão” souberam apenas como vários
outros moradores de Itaúna, que uma moça chamada Tânia tinha
sido presa. Naim e José Deusdeth estavam na praça Dr. Augusto
Gonçalves (Matriz), conversando na companhia de mais duas
pessoas, quando receberam voz de prisão de um cabo da Polícia Militar. Estiveram presos por dois dias na cadeia daquela
cidade, desconhecendo o verdadeiro motivo de suas prisões, o
qual souberam ao serem conduzidos ao DOI em Belo Horizonte, setenta quilômetros de Itaúna. O motivo era a suspeita de
10
12
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4002, Imagens 27, 28, 29.
132
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
envolvimento em “atividades subversivas”, recaída sobre Naim
por ter, menos de um mês antes, recebido em sua casa José Benedito de Freitas, militante da COLINA/VAR-Palmares, e seu
amigo há onze anos, que lhe fez tal visita de cortesia na ocasião
do seu aniversário. Quando conversavam, José Benedito revelou
que desertou da 4ª Companhia do Exército em Belo Horizonte,
segundo ele “por não suportar a vida militar”, e foi morar no
Rio de Janeiro, onde provavelmente exerceu militância em organizações de esquerda armada; logo em seguida disse haver
icado preso um ano e oito meses, e que estava indiciado em um
IPM por “subversão”. Teria que voltar logo ao Rio para se apresentar semanalmente no Regimento Sampaio. Ao analisarem as
declarações, os agentes assinalaram ao inal do informe: “Este
Destacamento é de opinião que o epigrafado não tem vinculação como organizações subversivas, bem como não demonstra
tendências esquerdistas”.13
Ação repressiva em Belo Horizonte e o intercambio com
outros órgãos da comunidade de informações
Um documento do Cenimar, de 28 de setembro de 1970, traz
um aviso marcado como “Conidencial-Urgente”, com o assunto “Curso em Cuba”14. Traz a relação de vinte e cinco pessoas
que teriam feito treinamento de guerrilha no país de Fidel Castro,
com uma precisão de detalhes impressionantes, com nomes, codinomes, altura, cor de olhos, cabelo e pele, compleição física e
algumas fotos de militantes identiicados. Chama também atenção o detalhe sobre a movimentação deste grupo de pessoas, que
acabou sendo conhecido dos órgãos de repressão do Brasil.
O itinerário dos guerrilheiros brasileiros está descrito no
documento. Eles sairiam de Havana, iriam para Praga, depois
Zurick, passando por Milão, depois Santiago do Chile e, por im,
entrariam clandestinamente no Brasil. O curso teria a duração
aproximada de seis meses, de julho de 1969 a janeiro de 1970,
e seria feito em Piñar del Rio e na Serra Escambray15. Anexas
a este documento estão as fotos de dez militantes identiicados.
Quatro deles seriam mortos pela repressão entre um e dois anos
depois, entre eles Antônio Carlos Bicalho Lana, que participou
de alguns assaltos a banco em Belo Horizonte. Todos eram da
ALN. O treinamento guerrilheiro é descrito da seguinte forma:
Este Curso é dividido em duas partes: a primeira, com
duração de 10 semanas, é o de guerrilha rural, ministrado em HAVANA, na serra do Escambray, sendo o
currículo constituído de: explosivos (fabricação caseira), montagem e desmontagem de armas (fuzil FAL e
submetralhadora UZI), sabotagem, vida clandestina nas
cidades e ações urbanas; a segunda com duração de cerca de 15 semanas, ministrada em Piñar del Rio – Serra
Cruzare, constando de ordem unida (escaladas, marchas
e camulagem) – técnicas de guerrilhas e tiro (APM –
Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagem 47).
Alguns documentos analisados neste artigo estão endereçados às secretarias de segurança de vários estados, aos comandos
de Exército, Distritos Navais, ás Segundas-Seções de Estado-Maiores, Regiões Militares, Zonas Aéreas, ao CIE e ao SNI; a
grande maioria dos documentos utilizados neste trabalho é endereçada a vários órgãos da Comunidade de Informações. O grande medo e ojeriza da Comunidade de Informações são, sobretudo, em relação a Cuba, guerrilha e comunismo, o que mostra que
o anticomunismo foi a ideologia norteadora de suas atividades.
14
13
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagens 17, 18, 19, 21, 23.
133
15
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagens 47-52.
APM – Fundo DOPS?MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagem 47.
134
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
O que também chama a atenção é como os serviços secretos
do Brasil izeram um levantamento em tempo relativamente curto, sobre a movimentação da ALN. Haveria agentes iniltrados
nesta e nas outras organizações armadas? Algum militante debilitado pela tortura teria fornecido informações? Esta movimentação teria sido relatada aos órgãos de repressão brasileiros pelos
serviços secretos estrangeiros? Todas estas hipóteses são possíveis. Militantes sucumbidos pela tortura delatam os colegas, e
os centros de informações, com citamos, frequentemente conseguiam iniltrar agentes no movimento estudantil, nos sindicatos
e nas organizações de esquerda, e “virar” alguns militantes, isto
é, fazer com que passassem a colaborar com a repressão. No
depoimento aos pesquisadores do CPDOC, o general Fiúza de
Castro airmou que o instrutor dos guerrilheiros brasileiros em
Cuba era um agente da CIA, que, segundo o general, passava as
informações ao CIE, que por sua vez repassava aos DOIs e aos
CODIs (FIÚZA DE CASTRO, 1994, p. 56). É conhecido o papel da CIA em prestar os seus serviços às ditaduras da América
Latina, mas este intercâmbio de informações que chegava aos
DOIs de todo o país serve para mostrar o empenho do regime de
segurança nacional, em perseguir e eliminar seus adversários,
em nome da luta anticomunista.
Em outra investigação de informações, uma série de anotações apreendidas no “aparelho”16 de Joaquim Câmara Ferreira,
que após a morte de Carlos Marighela o sucedeu no comando da
ALN. Foram encontrados nomes de militantes e um documento
da organização contendo um “Relatório sobre a coordenação da
região centro-norte”, feito pela direção da ALN, trazendo uma
autocrítica da organização sobre sua atuação nos últimos meses
de 1969 e no começo de 1970. Critica a supervalorização do
treinamento guerrilheiro em detrimento do trabalho de massa, e
16
Nome dado às casas clandestinas utilizadas pelos grupos guerrilheiros urbanos.
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
135
as diiculdades de construir uma rede de logística eiciente e uma
política de aproximação com outras organizações. O documento, como é sabido, caiu em poder dos órgãos de segurança da
ditadura, que descobrindo os pontos fracos da organização, não
teve grandes diiculdades em ir debilitando sua estrutura. Alguns
trechos do texto dizem o seguinte:
Essa tarefa de acordo com nossa concepção de Guerra
Revolucionária consistia na criação e desenvolvimento de uma estrutura clandestina, político militar vinculada organicamente às massas de determinadas áreas
táticas rurais (por ex. A área canavieira do nordeste)
em função da ligação e apoio logístico a guerrilha rural bem como a preparação político-militar das massas
dessa região, ou melhor, dessa regiões. O aspecto mais
importante deste trabalho era a formação dos comandos camponeses com os elementos mais avançados do
campesinato, ligados a produção altamente clandestinos, que em volta de si iriam incorporando nos mais
diversos níveis o apoio camponês (rede de coiteiros,
informantes etc.) (APM – Fundo DOPS/MG, Rolo
050, Pasta 4024, Imagem 45).
Com relação a Minas Gerais, a organização propõe um remanejamento dos quadros para outros Estados e para a região
norte de Minas:
Sobre Minas Gerais podemos dizer que após as violentas quedas de maio de 69 o contato foi refeito em
meados de 69, se adotando uma política de:
•
Retirada dos quadros da área queimada para o Rio;
•
Concentração dos setores não atingidos no interior, no Norte de Minas.
Esse trabalho através da montagem de planos de apoio,
de redes de coiteiros e informantes, ou seja, uma estru-
136
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
tura político-militar se vincularia ao trabalho nas áreas
estratégicas, procurando formar a partir dos quadros
legais que restaram uma infra-estrutura, particularmente no setor operário nas cidades (APM – Fundo
DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagem 46).
Neste documento também encontramos conforme mencionado, uma crítica à “unidade física” com outras organizações,
com base na chamada “frente de mobilização”, sugerindo a
formação de frentes num nível estratégico (divisão de áreas de
trabalho, etc.), e a formação de frente tática com outras organizações para uma ofensiva de “justiçamento”17, um eufemismo
utilizado para atentados e execuções promovidas contra autoridades identiicadas com a ditadura. Deste modo estariam descartando ações conjuntas, como assalto a bancos, também chamadas de “ações expropriatórias”. Na prática não havia diferença
entre a situação em que estavam e para onde foram, acabaram
trocando seis por meia dúzia.
Entre os dias 8 e 9 de julho de 1971 chegava ao DOI/BH,
via CENIMAR, um documento (interrogatório preliminar) com
um carimbo da seção de operações do CODI do II Exército de
São Paulo, relatando a trajetória de Guido de Souza Rocha, artista
plástico em Belo Horizonte recentemente falecido. Havia estudado sociologia e política na FACE/UFMG, em 1960, e fez parte da
POLOP. No segundo ano do curso dava aulas para operários junto
a sindicatos em Belo Horizonte, e neste período conheceu Theotônio dos Santos. No início da década de 1960 exerceu diversas
atividades políticas, inclusive exercendo sua militância política
junto à Liga Camponesa, na cidade de Três Marias. Em Goiás
chegou a trabalhar com o governador Mauro Borges.
Participou ainda do IV congresso da POLOP numa praia
do litoral paulista, em 1967. O congresso teve duração de uma
semana e contou com a participação de Dilma Vana Roussef, na
época Dilminha e Luiza. Neste congresso houve uma divisão
na POLOP em grupo ligado à direção nacional e outro juntando
as dissidências de MG, GB e SP, que pouco tempo depois daria
origem ao COLINA.
Em princípios de 1969, até novembro do ano seguinte, morou no então Estado da Guanabara, atual Rio de Janeiro, indo
logo em seguida para São Paulo. Em 1971 resolve deixar o país
e ir para o Chile. Saiu do Brasil em direção à Bolívia, onde o
general Juan José Torres presidia um governo nacionalista com
um caráter de “esquerda”. Pouco tempo depois Torres é derrubado por um golpe militar que instaurou a ditadura do general
Hugo Banzer, colocando a Bolívia no conjunto das ditaduras de
segurança nacional do Cone Sul. Guido acaba sendo preso por
dez dias em quartel do Exército boliviano, sendo logo em seguida extraditado para o Brasil. Detalhe, o documento que tivemos acesso diz que ele “procurou asilo político em um quartel
boliviano”, o que é inverossímil. Guido icou preso vários dias
em uma cela solitária conhecida como x-zero, no DOI/SP, onde
testemunhou a tortura de vários presos políticos e a morte de um
companheiro de cela.18 Guido nunca chegou a exercer militância
armada; participou apenas de uma organização, que deu origem
a outra organização armada, entretanto, desde o início dos anos
1960 já devia ser visado pelos órgãos policiais.
Voltando à questão dos pontos fracos descobertos pelos
agentes de informações sobre as organizações de esquerda, uma
série de informações foi levantada sobre a VPR em outubro de
1971. Estas informações foram levantadas pelo CIE e difundidas no 12º RI, no CPOR/BH, DOI/BH, DOPS/MG e na agência
do SNI de Belo Horizonte, além de outras organizações milita18
17
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagem 46.
137
Com base em APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagem 23, 24, 25,
26, e Miranda & Tiburcio (1999, p. 513).
138
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
•
res. No acervo do DOPS/MG, principalmente entre os anos de
1970 e 1971, encontramos uma série de informações sobre o
ex-capitão Carlos Lamarca. Lamarca, como se sabe, desertou de
um quartel do II Exército, em São Paulo, levando consigo uma
certa quantidade de fuzis e munições, indo para a VPR. Neste
período estava sendo procurado pelos órgãos de informações e
segurança interna em todo o país, vindo a ser morto no interior
da Bahia, em setembro de 1971.
Os documentos descobertos pelos agentes do CIE são de
cerca de um mês após a morte de Lamarca no sertão da Bahia.
Mostra a situação desesperadora que se encontrava a VPR. Os
documentos na íntegra, com base no que levantaram os agentes
do CIE, dizem o seguinte:
2. Do primeiro comunicado, extraem-se os seguintes
pontos:
•
“O comando só existe efetivamente no BRASIL”
•
“O novo comando assume a organização, praticamente extinta e vai tentar salvar o que sobrou..”
•
“Exige-se de todos os militantes que obedeçam ao
centralismo e mantenha a frieza diante da situação
caótica...”
“Os últimos acontecimentos provaram a sangue e
fogo a inviabilidade dos grupos armados tais quais
se encontram atualmente...”
Para isso o comando termina de forma imediata:
a) “A organização está desmobilizada”
b) “Está convocado o II Congresso Nacional”
•
“Por desmobilização entendemos:”
a) “suspensão das ações armadas;”
b) “suspensão de reuniões com condições de segurança precárias;”
c)”Redução ao mínimo indispensável a circulação
de militantes;”
• “... reconhecemos a extinção total da organização,
tal como a conhecemos no Brasil.
“Esta agência divulga a título de colaboração, informação recebida da 4ª RM, versando sobre a VPR, abaixo
transcrita:
1. Em aparelho da VPR na GB recentemente neutralizado, foram encontrados dois documentos – os comunicados nº 1 (“Novo Comando”) e nº 2 (“medidas imediatas”), datados de 7 de ago de 71, que esclarecem a
situação da organização no país.”
139
A organização vai tentar se remontar com os recursos
que conta em todo o mundo e vai ser um trabalho árduo
e demorado.” (APM, Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagens 30,31).
Os agentes do CIE analisaram os documentos da VPR e
levantaram algumas hipóteses em relação a algumas medidas
que possivelmente poderiam ser tomadas pela organização. Uma
delas era que o congresso nacional seria realizado no exterior,
provavelmente no Chile. Outra seria o retorno de quadros que
estariam no exterior “para pelo menos preencher o desfalque na
organização”, ou junção com outra organização, e a mais viável
na opinião dos agentes “seria a ALN”.19 Dessa forma, as informações levantadas em outros Estados do país permitiam que os
agentes locais tomassem conhecimento da situação de praticamente todos os grupos armados do país.
3. Do segundo comunicado:
19
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagens 30-31.
140
Mais um exemplo desta troca de informações pode ser contatado em um informe proveniente do DOI do II Exército em
São Paulo. Um carro-bomba foi deixado em um ponto da capital
paulista, com pichações de “lemas subversivos”, e os agentes do
DOI receberam a denúncia. Era uma armadilha preparada por
alguma organização armada, segundo o informe:
A bomba de alto teor explosivo, era confeccionada por
um cano tipo cotovelo de 4 polegadas e estava ligada ao
interruptor das duas portas e bateria. Esta agência alerta
para tal tipo de ação como uso de armadilha (APM –
Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024, Imagem 09).
Um assalto realizado pela ALN, em Belo Horizonte, por
volta de junho de 1970, produziu um IPM que se estendeu até
o ano seguinte. Considerada uma “ação de vulto” da ALN, foi
nada mais que um assalto a uma mercearia. Na noite de 13 de
junho de 1970, Arnaldo Cardoso da Rocha “Flávio”, Eduardo
Antônio da Fonseca “Paulo”, Newton de Moraes “Brandão”
ou “Gordo”, Cecílio Saturnino “Tião”, ex-cabo da PM, mais
dois outros militantes, assaltaram o Merci-Mercearias Ltda., no
centro de Belo Horizonte. Levaram cerca de vinte mil cruzeiros
novos – moeda da época – e picharam no chão da loja: “ALN +
verbas para a revolução”. De acordo com o relatório do IPM,
o objetivo da ALN em Minas Gerais era construir uma área de
guerrilha rural no Norte do estado. No momento em que o IPM
sobre este assalto estava sendo conduzido, Newton de Moraes e
Cecílio Saturnino estavam presos no DOPS/MG. Eduardo Antônio da Fonseca morreria em uma emboscada feita por agentes do
DOI/SP, um ano depois, e Arnaldo Cardoso da Rocha na mesma
situação, dois anos mais tarde, também em São Paulo.20
Outra ação do DOI de Belo Horizonte, em 1971, envolvendo cinco estudantes da UFMG, mais o hoje ex-secretário espe20
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
APM – Fundo DOPS/MG Rolo 050, Pasta 4002, Imagens 172-180.
141
cial de direitos humanos do governo Lula, Nilmário Miranda. O
grupo morava no edifício Maleta, no centro, três deles, Gilgal
Gonçalves Vermelho, Adalberto Eustáquio Rodrigues e Márcio
Luiz de Souza, eram donos de um Curso pré-vestibular com o
nome “Lamarck”. O motivo da prisão do grupo eram as ligações
de Gilgal com organizações de esquerda, suas passagens pelos
órgãos policiais pelo mesmo motivo, e documentos do Partido
Operário Comunista (POC) encontrados no apartamento. Depois de presos, aos donos do pré-vestibular foi perguntado se o
nome do cursinho tinha a ver com o ex-capitão Carlos Lamarca, mas tratava-se apenas de uma homenagem ao físico francês
Jean Bautist Lamarck. Os documentos do POC encontrados no
apartamento pertenciam a José Sebastião Levenhagen Lício, estudante da FACE/UFMG, que tinha recebido de um dos coordenadores deste partido, Nilmário Miranda, que seria preso dois
anos depois e cumpriria três anos e meio de reclusão.21
Além de militantes do movimento estudantil, escritores
e intelectuais foram atingidos pela ação repressiva do sistema
de segurança interna. Em 30 de dezembro de 1970, o tenente
Marcelo Paixão de Araújo, encarregado de um IPM que apurava
“atividades subversivas” na Subárea de Defesa Interna de Belo
Horizonte. O tenente Araújo solicitou os antecedentes político-sociais de dezoito indiciados ao delegado chefe do DOPS/MG,
David Hazan.22 Entre os indiciados neste IPM estão alguns conhecidos líderes do movimento estudantil, entre eles um ex-presidente da UNE, Vinícius Caldeira Brant, que mais tarde seria
sociólogo e professor da FAFICH/UFMG. Brant havia se exilado na França em 1964 e retornado ao Brasil clandestinamente
em 1970, quando foi preso e sofreu várias torturas no DOI/BH.
Outros intelectuais de renome indiciados no mesmo IPM são
21
22
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4002, Imagens 114-121.
APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4002, Imagens 20,21 e 22.
142
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra, dois dos formuladores
da Teoria da Dependência, isto é, uma interpretação crítica do
marxismo sobre os processos de desenvolvimento dos países do
então Terceiro Mundo.
O principal pressuposto para as ações do SISSEGIN e dos
demais órgãos de segurança e informações que compunham o
sistema, além do anticomunismo, era tudo que fosse moralmente reprovável na sua visão. A grande maioria das informações
produzidas por estes centros de repressão política eram sobre o
que eles consideravam “subversivos”. A seguir, um documento
do CIE intitulado “Elementos para identiicação de terrorista”,
difundido para todos os órgãos de informações e repressão que
compunham o SISSEGINT:
•
“Foi preso por ter tido atuação no ME (movimento
estudantil)?”
•
“Esteve ele no congresso da UNE em Ibiúna/SP?”
•
“É elemento cassado pela Revolução de 64?”
•
“Tem (ou teve) parentes presos (ou mortos) por atuação subversivo-terrorista? Quem são?”
•
“Tem vida legal? Ou semi-legal? Sabe o motivo pelo
qual esse elemento entrou na clandestinidade?”
•
“Antes de militar na atual organização, a que outra
pertenceu? Que codinomes usava nessas organizações?”
•
“Frequentou (ou frequenta) cursos em Cuba ou em
outro país comunista? Em que época? Já esteve asilado? Tomou parte em algum sequestro (autoridade,
aeronave etc..)?”
•
“Tomou parte no movimento Guerrilheiro de Caparaó?”
•
“Que funções exerceu ou exerce na atual organização?
143
que codinomes usou (e usa) na atual organização?”
•
“Quem é (ou foi) sua amante ou mulher? Nos tempos
da faculdade ou colégio, quem era sua namorada ou
amante?”
•
“Em que outros Estados (regionais), já atuou?”
•
“Qual é o seu nível cultural e político? Ele já elaborou documentos teóricos? Quais? Fala alguma língua
estrangeira?”
•
“Que se comenta na organização sobre ele? Quais os
elementos da organização mais ligados ao mesmo?”
(APM – Fundo DOPS/MG, Rolo 050, Pasta 4024,
Imagens 44,45)
Este sistema de segurança interna concebido pelo alto escalão do governo ditatorial foi o responsável direto pelos desmandos e pelas arbitrariedades que ocorreram em todo o período
de maior intensidade da ação repressiva da ditadura; a tortura
tornou-se não apenas um castigo físico, mas uma metodologia
de trabalho empregada para a obtenção de informações. Em
alguns trechos de sua entrevista à Veja, o ex-tenente Marcelo
Paixão de Araújo descreve como esta atividade era empregada
no DOI e no 12º RI/BH:
A primeira coisa era jogar o sujeito no meio de uma sala,
tirar a roupa dele e começar a gritar para ele entregar o
ponto (lugar marcado para encontros), os militantes do
grupo. Era o primeiro estágio. Se ele resistisse, tinha
um segundo estágio, que era, vamos dizer assim, mais
porrada. Um dava tapa na cara. Outro soco na boca do
estômago. Um terceiro, soco no rim. Tudo para ver se
ele falava. Se não falasse, tinha dois caminhos. Dependia muito de aplicava a tortura. Eu gostava muito de
aplicar a palmatória. [...] Você manda o sujeito abrir
a mão. O pior de tão desmoralizado, ele abre. Aí se
144
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
aplicam dez, quinze bolos na mão dele com força. A
mão ica roxa. Ele fala. A etapa seguinte era o famoso
telefone das Forças Armadas. [...] É uma corrente de
baixa amperagem e alta voltagem. [...] não tem perigo
de fazer mal. Eu gostava muito de ligar nas pontas dos
dedos. Pode ligar numa mão e na orelha, mas sempre
do mesmo lado do corpo. O sujeito ica arrasado, o
que não pode é deixar passar a corrente passar pelo
coração. Aí mata.[...] O último estágio que cheguei foi
o pau-de-arara com choque. Esse era para o queixo-duro, o cara que não abria nas etapas anteriores. Mas
o pau-de-arara é um negócio meio complicado.[...] o
pau-de-arara não é vantagem. Primeiro,porque deixa
marca. Depois, porque é trabalhoso. Tem de montar
a estrutura. Em terceiro, é necessário tomar conta do
indivíduo porque ele pode passar mal (entrevista de
Marcelo Paixão de Araújo a Alexandre Altamari, Veja,
São Paulo, p. 42-53, 9 dez. 1998).
A prática da tortura disseminou-se no meio militar-policial
em todo o país, como método e prática rotineira nos interrogatórios de presos políticos, sendo defendida por Oiciais-generais
como método adequado de combate ao “terrorismo”, por sua
funcionalidade capaz de produzir resultados imediatos. Militares brasileiros que estudaram a experiência francesa da guerra
da Argélia inspiram-se nos métodos empregados pelo general
francês Jacques Massu aos prisioneiros da Frente de Libertação
Nacional (FLN). Entre os recursos empregados por este e seus
oiciais está a eletricidade, um método rápido de se conseguir
conissões que foi mais tarde denominado de “massuismo”.
Militares brasileiros que defenderam a tortura sustentaram
que os presos da “guerra revolucionária” não estavam inseridos
nas leis de guerra da Convenção de Genebra,23 e por esse moti-
vo alguns militares entraram em contradição ao taxar os “subversivos” e “terroristas” de criminosos comuns, como o general
Carlos de Meira Matos: “Em nenhum lugar do mundo o terrorista é considerado um combatente. Em qualquer país do mundo,
atentados e sequestros são crimes comuns. O terrorista é desleal,
usa a chantagem, sua ação é condenada por todos os povos”.24
Se sequestros e atentados são crimes comuns, não estariam as
organizações armadas de esquerda submetidas à jurisdição civil
para criminosos comuns, ao invés da justiça militar para crimes
de segurança nacional? A lógica era de que o Brasil estava em
“guerra revolucionária”, e que para vencer esta guerra todos os
métodos eram válidos, desde estratégia psicossocial, através de
propaganda, ou a repressão física. Não restando a menor dúvida
de que a imposição do Sistema Nacional de Segurança Interna
com base nos pressupostos belicistas da estratégia de “Guerra
Revolucionária Comunista” contida na Doutrina de Segurança
Nacional, levou inexoravelmente ao abuso de poder por parte
dos agentes do Estado.
Considerações inais
A implementação do SISSEGIN contou com amplo apoio
da cúpula governamental, e sua construção, como demonstramos com base em pesquisa bibliográica e nas fontes primárias,
demonstra o conhecimento das altas autoridades militares das
arbitrariedades praticadas por este sistema de repressão política.
O sistema foi concebido com base na articulação entre as diversas forças de segurança, no esforço de combater o “processo
24
23
Veja, n. 940, 10 set. 1986, p. 42-46.
145
Entrevista do general Meira Matos a Raimundo Rodrigues Pereira. Veja, n. 56, 1
out. 1969.
146
Dentro da estrutura repressiva:
o Sistema de Segurança Interna
Luiz Fernando Figueiredo Ramos
subversivo”, ou seja, as organizações clandestinas de esquerda
e todos identiicados como “subversivos”. A partir de 1970 o
sistema é oicialmente implementado, sendo em Belo Horizonte
efetivamente instalado no ano seguinte.
A seção mineira do SISSEGIN, contava com efetivos do
Exército no planejamento e condução das medidas repressivas,
entretanto na parte operacional, predominavam os efetivos das
polícias estaduais, o DOPS e a PMMG, o que de certa forma,
disfarça o envolvimento direto das Forças Armadas com a atividade repressiva, e dá um caráter civil-militar ao esforço conjunto de repressão contra as guerrilhas urbanas. Como vimos,
a criação deste sistema de repressão política deveu-se em parte
ao mau aparelhamento das policias estaduais, como airmam alguns militares, pois havia também uma pressão exercida principalmente pelos setores mais exaltados das Forças Armadas,
desde os primeiros dias do Golpe de 64.
As origens do anticomunismo militar, embora derivado
de posturas políticas arraigadas, estava longe de ser unânime
dentro da corporação castrense, embora ele tenha icado mais
forte no período pré-Golpe de 1964. Outro aspecto foi a instrumentalização da Doutrina de Segurança Nacional, cujo binômio
segurança e desenvolvimento é o principal pressuposto teórico
deste arcabouço ideológico, que acaba se desdobrando em uma
série de estratégias para a gestão governamental, entre as quais
se encontram as estratégias política, econômica, psicossocial e
militar, esta última, ao contrário da congênere norte-americana
que privilegia a estratégia da guerra nuclear, se concentra mais
na chamada Guerra de Guerrilhas ou “Guerra Revolucionária
Comunista”, e na contenção dos movimentos reivindicatórios,
vistos como potencialmente “subversivos”.
A partir de 1970 e 1971, os CODIs e os DOIs, os principais
centros de Informação e repressão, são criados exclusivamente
147
para a eliminação das organizações clandestinas de esquerda.
Em Minas Gerais, estacionados na capital do estado, e contando
com apoio do DOPS da PMMG e dos centros de informações
das Forças Armadas, desarticulou os grupos de oposição armada
ao regime civil-militar que agiam em Belo Horizonte.
A construção de sistema de repressão política a nível nacional foi concebida pelos líderes militares e civis que dirigiam
o Brasil entre 1964 e 1985, para reprimir, intimidar, censurar,
fazer uso de tortura física e psicológica, eliminar isicamente
setores de oposição e fazer uso da propaganda como estratégia de caráter psicossocial. O SISSEGINT procurou colocar a
sociedade nas exigências de uma guerra interna, moldou as estruturas do Estado com nos pressupostos da DSN, criando um
regime autoritário, onde a lógica da desconiança está presente
nas relações do cotidiano.
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6
LA REPRESENTACIÓN DEL
DESPLAZAMIENTO FORZADO
POR LA VIOLENCIA
EN COLOMBIA*
William Ortiz Jiménez**
E
s a partir de los medios de comunicación – entre ellos los
periódicos impresos y, cada vez más, el internet – que la
gente se informa y juzga la situación del país, formando o consolidando (y raras veces cambiando) así sus opiniones sobre
los diferentes puntos que conforman su realidad, su mundo. La
opinión pública – producto de la interacción entre emisores y
receptores – es el resultado global de este ejercicio dentro de una
sociedad. Analizar los medios masivos, que son los emisores
* El presente artículo hace parte de la investigación “Discurso y representaciones de
la guerra y la paz en Colombia: 1978-2006”, apoyada y inanciada por la Universidad
Nacional de Colombia, Sede Medellín.
** Profesor titular Departamento de Ciencia Política, Universidad Nacional de
Colombia, Sede Medellín. Director del grupo de investigación: “Guerra y política:
aproximaciones teóricas”, clasiicado en categoría C, Colciencias. Doctor en
Sociología y Ciencias Políticas, Universidad de Granada, España.
152
William Ortiz Jiménez
privilegiados de esta relación (llegan al mayor número de receptores), nos permite hacernos una idea bastante cercana a la opinión pública (puesto que, por un lado, la gente receptora se guía
en ellos y, por el otro, la gente emisora que divulga también hace
parte de la sociedad civil y sus opiniones son, por lo tanto, un
relejo de la opinión pública de ésta). De ahí la importancia de
mirar y contrastar bien los diferentes discursos que se manejan
frente al tema, ver cómo se construye esta realidad a través de
ellos. ¿Qué es, por ejemplo, lo que dicen los periodistas colombianos de dos periódicos nacionales de amplia circulación frente
a un tema tan delicado y que afecta directamente a aproximadamente el 10% de la población nacional? Interesa no solamente
qué es lo que dicen sino también el cómo. ¿Se pueden abstraer
diferencias ideológicas, es decir, se pueden deducir líneas ideológicas diferenciadas a través de la comparación? La magnitud
del problema y, en general, su profesión de periodistas, exigen
altos niveles de responsabilidad y de ética. Uno de los objetivos
de la presente investigación es evaluar si están cumpliendo con
esta responsabilidad.
Se sabe que los medios masivos de comunicación, entre
ellos los periódicos, son un contendiente importantísimo de poder en cada sistema político. Es a través de ellos, que la opinión
pública construye su representación acerca de todos los temas,
problemas, fenómenos de interés público. Esto explica los esfuerzos por parte de los gobernantes por controlarlos, pues el
que los controla tiene la opinión pública a su lado, y si no se
controlan, son el campo de batalla entre gobierno y oposición,
(batalla discursiva, por supuesto), lo que es algo positivo, pero
no desde el punto de vista de la élite en poder, pues muy difícilmente puede esconder algo ante la opinión pública, y si se sacan
a la luz escándalos, esto puede tener un costo político muy alto
para el gobierno. Así que el poder de los medios es muy gran-
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
153
de (a través del discurso se puede dirigir a las masas); su papel
es muy importante, hasta en aspectos muy prácticos de la vida
política: por ejemplo, pueden incidir no solamente en la evaluación de las políticas públicas (tanto su forma como su realización material) sino también en la construcción de las mismas,
pues pueden canalizar necesidades y presionar al gobierno (a
través de la opinión pública) para que adopte medidas frente a
las necesidades de grupos especíicos. No obstante el interés que
puede tener tal análisis, no es el in de la presente investigación.
Otro punto importante se relaciona con la legislación nacional, así se puede leer en la Constitución actual que se garantiza
la libertad de conciencia (artículo 18), la libertad de prensa (artículo 20) y la protección a periodistas (artículo 73). Sin embargo,
como ocurre con tantos derechos constitucionales aquí, se quedan en lo formal, no se cumplen, por lo menos no a cabalidad.
Eso se ve claramente en la clasiicación mundial de la libertad
de prensa del año 2007 donde Colombia queda en el puesto 126
de 169 (siendo el primer puesto el donde mayor libertad real de
prensa existe), esa falta se traduce en amenazas y hechos violentos contra los periodistas que se pronuncian libremente y en
contra de los que sustentan el poder.
Por todo lo anterior, nos parece que el tema de la investigación es muy oportuno en nuestro campo y su desarrollo
aportará a la disciplina de la ciencia política. No gratuitamente,
uno de las áreas más propias de la politología lo constituye el
análisis del discurso.
La metodología de la investigación se centró en realizar
un marco general sobre el desplazamiento forzado en Colombia. Para tal in, después de una breve deinición del fenómeno,
se hace una revisión periodística relacionada con los aspectos
psico-sociales y socioeconómicos de quienes lo padecen, haciendo hincapié en las diferentes fases del desplazamiento y en
154
William Ortiz Jiménez
la especial brusquedad con que se da la ruptura entre la vida
antes y después de éste. Por otro lado, se revisan los avances en
la legislación nacional e internacional frente al tratamiento del
problema (entre otras, la Ley 387, la Sentencia T-025, la Sentencia T-287, el Artículo 3 Común, etc.) y las limitaciones que
se observan en su aplicación. Y, por último, se dan a conocer las
principales falencias que existen en el diseño y la aplicación de
las políticas públicas enfocadas hacia la superación de la crisis.
Otro enfoque del texto es el tema de la representación del desplazamiento y del desplazado por los medios de comunicación
y cómo ésta incide tanto en la autoimagen que tiene éste de sí,
como en el imaginario colectivo, es decir, en la manera en que
la sociedad – dentro de ella los funcionarios de las UAO1 – lo
recibe, lo ve, lo clasiica y lo trata.
Un contexto, una realidad
Primero que todo, y a modo de aclarar el concepto, se habla
del desplazamiento forzado interno cuando “personas o grupos
de personas [...] se han visto forzadas u obligadas a escapar o
huir de su hogar o de su lugar de residencia habitual, en particular como resultado o para evitar los efectos de un conlicto
armado, de situaciones de violencia generalizada, de violaciones
de los derechos humanos o de catástrofes naturales o provocadas
por el ser humano [éstas no nos interesan en el presente trabajo],
y que no han cruzado una frontera estatal internacionalmente
reconocida” (OACNUDH, ACNUR Y CODHES, 2002, p. 19),
por lo cual el desplazado se diferencia claramente del refugiado
1
UAO: Unidades de Atención y Orientación a Población en Situación de
Desplazamiento
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
155
que también huye pero que llega a cruzar mínimo una frontera
nacional. Según esta deinición, el desplazamiento se puede ver
como una medida de protección.
Ahora bien, el desplazado vive una situación de desarraigo
que tiene múltiples consecuencias psicosociales y socioeconómicas para su vida. Muchos de ellos se sienten extranjeros en
su propio país y hay un problema casi generalizado en su acogimiento, puesto que muchas personas, debido a estereotipos creados en gran parte por la representación que los medios hacen del
fenómeno y de sus actores, lo relacionan con alguien que estuvo
implicado en el conlicto (según el pensamiento: “por algo será
que se tuvo que venir”), o alguien que aprovecha “la coyuntura”
y se vino como desplazado aunque en realidad es “solo” pobre, o
bien alguien que vino para competir por las pocas posibilidades
de empleo que hay, como “mano de obra barata” (CUCHUMBÉ
HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 189).
El desplazamiento forzado signiica una ruptura tajante e
irreversible en la vida de sus víctimas. Para entender mejor la
trascendencia de ese hecho, se va a presentar a continuación
lo que Castillejo, en un estudio llevado a cabo en el año 2000
(CASTILLEJO, 2000, p. 15 y ss.), llama los procesos de tránsito,
que según este autor normalmente se dan en tres fases: primero,
la persona abandona su estado inicial, después entra en una fase
intermedia, de tránsito, en la que se introduce paulatinamente
en un tercer estadio, en el que inalmente es asimilada a la comunidad receptora. En el caso del desplazamiento forzado, sin
embargo, el cambio se da abrupto, no existe la fase de tránsito,
ni los rituales que normalmente acompañan este proceso. Esta
situación es la que llaman diversos autores como una “muerte en
vida”, una “pérdida del rostro” de quien lo padece, puesto que
el individuo desplazado es sacado violentamente de su mundo-entorno que es esencial para su vida, puesto que “el ser huma-
156
William Ortiz Jiménez
no desde su nacimiento se adapta a su mundo-entorno y en su
desarrollo personal se va familiarizando con él, a tal punto que
su constitución física y su lenguaje corresponden a las exigencias de su medio”. Sensaciones de impotencia, de pérdida y de
confusión son el resultado de esa ruptura, a veces a éstas se añaden sentimientos como el profundo miedo (por las situaciones
traumáticas que se experimentaron), el deseo de venganza, y/o
de inferioridad por no saber cómo actuar en este nuevo mundo
al que llegaron del día a la noche, que se intensiica en muchos
casos por el tratamiento que la persona desplazada recibe en el
lugar de acogida, pues pasa a menudo que es tratado despectivamente tanto por la sociedad en general (no por último por
el desprestigio generalizado que existe en Colombia frente a
los campesinos y pueblerinos) como incluso por los mismos
funcionarios donde va para buscar ayuda (CUCHUMBÉ HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 185 -190).
Una variante relativamente reciente, poco estudiada y mucho menos visible es el desplazamiento forzado inter e intraurbano. En el primer caso se trata de la migración forzosa de personas de una ciudad a otra y en el segundo, de la migración
forzosa de personas de un lugar de la ciudad a otro dentro de
la misma. El problema está muy presente en las grandes ciudades del país, principalmente Bogotá, Medellín y Cali, y afecta
gravemente a los individuos que lo experimentan, que son en
algunos casos por segunda o tercera vez desplazados. Puede que
la ruptura sea menos tajante puesto que las personas llegan a un
mundo-entorno parecido al que dejaron atrás, sin embargo, las
relaciones sociales (familia, vecinos, comunidad) se ven afectados e igual que en el caso de los desplazados del campo, se deja
atrás el hogar, que es más que sólo un abrigo.
Tampoco se pueden olvidar los graves perjuicios económicos que implica el desplazamiento forzado (tanto rural-urbano
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
157
como inter o intraurbano). En muchos casos, las víctimas tienen
que dejarlo todo, incluyendo la casa, los muebles, la tierra, el
ganado, los cultivos, y también otros objetos que son de valor
sentimental como fotos, cartas, etc., para salvar su vida.
Aquí quisiéramos profundizar en lo que Cuchumbé-Holguín y Vargas-Bejarano denominan las diferentes fases del
desplazamiento. Estos autores destacan que el sufrimiento del
desplazado no empieza con el acto de desplazarse, sino mucho
antes. Cuando alguien se desplaza es porque lo ve como la última y única posibilidad que le queda, de resto no abandonaría su
vida, todo lo que construyó durante años de trabajo, su mundo-entorno del que más arriba se habló, sus amigos y conocidos.
Antes del desplazamiento hay toda una historia de sufrimiento,
de violencia, amenazas, asesinatos, masacres, violaciones, robos, tortura. Para que sea posible que se llegue a tal grado de
crueldad, estos autores citan el trabajo de Hannah Arendt que
ella realizó a partir del caso de Eichmann, constatando que un
ser humano solamente es capaz de cometer tales actos de barbarie cuando ha perdido o nunca ha tenido la capacidad de pensar,
lo que se logra mediante la adoctrinación ideológica. Así, para
el victimario la víctima no tiene valor, no es ni siquiera humano;
es un “infrahumano” que como tal, se puede matar, aún de la
manera más cruel (CUCHUMBÉ HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 183).
El desplazamiento en sí es la segunda fase, en la que se
pierde, como ya se ha dicho, el mundo-entorno. Después sigue
la fase de la llegada-acogida al nuevo lugar, que, por los prejuicios ya mencionados y por la diferencia cultural puede agravar
aún más las sensaciones de pérdida, de inferioridad, de rabia,
de confusión (CUCHUMBÉ HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 185 -187).
Finalmente, Castillejo presenta una última fase, y es la que
158
William Ortiz Jiménez
corresponde a la imagen que los medios de comunicación construyen del desplazado. Es ésta muy relacionada a la anterior, puesto que los medios de comunicación son responsables en buena
medida de la opinión pública, de la manera en qué la sociedad crea
sus imaginarios. Basándose en el estudio de Castillejo, los autores
constatan que esta población es presentada en general con un discurso humanitario, que los muestra como seres débiles, incapaces
de salir adelante, seres forasteros y potencialmente peligrosos que
deben ser aislados del resto de la población (CUCHUMBÉ HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 188).
Para hablar de la situación nacional, Colombia es, después
de Sudán, el segundo país con mayores cifras de desplazados
(Acnur, 2008, p. 6). Este triste segundo lugar aparece al lado de
otros puestos no menos alarmantes, resultados del prolongado y
encarnecido conlicto armado interno: por un lado, es el tercer
país con más niños combatientes (después de Liberia y del Kongo) y por el otro, es el primer país con más víctimas de minas
antipersonales (ACNUR, 2008, p. 6).2
Un aspecto importante del desplazamiento interno en Colombia es el carácter estructural que posee. No es un problema
coyuntural, sino un problema histórico de largo alcance. Ha habido tres grandes olas de desplazamiento a lo largo de los últimos ciento quince años (RUEDA BEDOYA, 2002, p. 72-75), la
primera se dio como consecuencia de la Guerra de los Mil Días
(1899-1902), de la cual no se tiene cifras muy claras de su magnitud, pero en donde se habla de que aproximadamente el 20%
de la población fue directamente afectado.
2
Incluso, en los últimos años y como consecuencia del debilitamiento de las
FARC (debido a la ofensiva militar del actual gobierno y la modernización del
aparato militar nacional), éstas están utilizando de manera incrementada las minas
antipersonales, puesto que es uno de los pocos medios que les queda para resistir
(PECAUT, D., 2008, p. 129).
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
159
La segunda ola se presentó durante el período de La Violencia que vivió el país a mediados del siglo XX (aunque ya
antes había una situación muy tensa, estalló propiamente con el
asesinato de Gaitán el 9 de abril de 1948 – el llamado Bogotazo
– y duró hasta el año 1953, aunque después aún prosiguió una
fuerte tensión y lucha entre la derecha e izquierda del país, cuyo
resultado más adelante serán los grupos guerrilleros, entre ellos,
en 1964, las FARC). En ésta se habla de aproximadamente dos
millones de desplazados de una población total de unos once
millones de colombianos.
La tercera ola, inalmente, se empezó a dar a partir de los
años 80 como consecuencia del conlicto armado entre los diferentes grupos armados, principalmente las Fuerzas Armadas,
los grupos guerrilleros y los grupos paramilitares (que habían
surgido, los segundos, como consecuencia de la violencia indiscriminada contra la oposición, aplicada por parte de las fuerzas
armadas estatales y, los terceros, como consecuencia de la aparición de los segundos; ambos operaban pues, en un principio,
para autodefenderse), y el auge del narcotráico, puesto que a
principios de los años 80 Colombia se convierte en la placa giratoria del tráico de drogas de Perú y Bolivia, y a partir de los 90
pasa a ser el principal productor de coca en el mundo (PÉCAUT,
2008, p. 53, 59). Esta tercera ola aún está vigente. Muchas veces
los habitantes de una zona tienen que huir por enfrentamientos
entre uno y otro bando por la soberanía sobre ésta (OSLENDER,
2004, p. 4) o porque son amenazados por uno de ellos, no pocas
veces por presunta colaboración con el otro. Aunque las cifras
divergen según la fuente, en agosto de 2008 la cifra de desplazados internos por la violencia llegó a ser entre dos millones
sesenta y cuatro mil (cifra oicial del gobierno) y cuatro millones
tres cientos mil de personas (cifra de CODHES) de un total de
cuarenta y cinco millones de habitantes, y la tendencia va hacía
160
William Ortiz Jiménez
un aumento del número de desplazados por año. (El Espectador,
1 Mayo 2002). Por lo tanto, es urgente la elaboración y puesta
en marcha de políticas públicas que deben transformarse en políticas de estado lo que permite llevar a cabo transformaciones
estructurales y lograr así soluciones constantes y duraderas.
Lo que hace que las soluciones al desplazamiento forzado
sean tan difíciles de lograr es precisamente su carácter interno,
es decir, existe una legislación internacional muy completa y
con mecanismos de control bastante eicientes frente al fenómeno de los refugiados, pero no pasa lo mismo con los desplazados
internos, pues al no pasar la frontera ellos constituyen un problema de orden nacional, y su solución, por lo tanto, queda en manos del respectivo Estado. El problema aquí es que en muchos
casos los Estados en los que se presenta el fenómeno no tienen la
capacidad de enfrentarlo de manera eiciente y eicaz (pues el Estado presenta importantes deiciencias estructurales) o, aún más
grave, no tienen el interés de restablecer los derechos de los desplazados, siendo el Estado en algunos casos incluso el actor que
los desplazó o que toleró su desplazamiento por agentes ajenos
al Estado. Todos estos casos también se dieron en Colombia y se
siguen dando (aunque los casos en que los militares son directamente responsables del desplazamiento han disminuido en los
últimos años, sin embargo, no se puede olvidar el escándalo de la
parapolítica que demostró la involucramiento del Estado – buena
parte de sus funcionarios – en las acciones de los paramilitares.
Además, se habla de la responsabilidad del Estado en cuanto a la
incapacidad o falta de voluntad de atacar las razones estructurales del conlicto armado y, por ende, del desplazamiento forzado
por la violencia) (SINALTRAINAL, 2007, p. 1-3).
Lo anterior no quiere decir que no se ha venido avanzando
hacía reglas internacionalmente obligatorias, sino que aún el control que se les aplica no basta y que aún existen demasiadas posi-
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
161
bilidades que le permiten al Estado esquivar su responsabilidad.
Los dos instrumentos internacionales más importantes que
regulan los conlictos armados internos son el Artículo 3 Común
y el Protocolo adicional II de los Convenios de Ginebra, que
reglamentan claramente el deber de los actores estatales y no
estatales frente a situaciones de conlictos armados internos o
guerras civiles, limitando, el primero, las acciones violentas para
todas las partes involucradas en el conlicto interno, en especial
las que involucran a la sociedad civil, y, el segundo, prohibiendo
explícitamente el desplazamiento forzado y ordenando en caso
de que ocurra la atención integral de sus víctimas en materias de
“alojamiento, salubridad, higiene, seguridad y alimentación”. El
Protocolo II prohíbe, además, que la población civil sea atacada
en los conlictos militares. En el artículo 13-2 del título IV, por
ejemplo, dice explícitamente: “Quedan prohibidos los actos o
amenazas de violencia cuya inalidad principal sea aterrorizar
a la población civil”, y el punto 3 del mismo artículo asegura
que “las personas civiles gozarán de la protección que coniere
este Título, salvo si participan directamente en las hostilidades
y mientras dure tal participación”. Sin embargo, todo lo anterior
se está violando en el país, principalmente por parte de los actores armados al margen de la ley, pero también por parte de las
fuerzas legales e incluso por el gobierno, puesto que no cumple
con la función protectora (OACNUDH, ACNUR Y CODHES,
2002, p. 32-35).
En cuanto a la posibilidad de esquivar su responsabilidad,
al gobierno aún le queda la posibilidad, por ejemplo, de no reconocer un conlicto armado interno, como actualmente lo está
haciendo el gobierno colombiano. Al desconocerlo, el derecho
internacional no se le puede aplicar de manera global (los Derechos Humanos sí, pero no el Artículo 3 común, ni el Protocolo
II, ni el Derecho Internacional Humanitario). Igualmente, la ne-
162
gación del estatus de beligerancia para los grupos guerrilleros
y paramilitares, ha sido otra estrategia del gobierno para negar
la condición de conlicto armado interno (pues de esta manera
no hay un enfrentamiento entre dos ejércitos, condición para
que se pueda hablar de una guerra civil), y sirve a la vez como
excusa para estos grupos por no respetar el DIH. (La Urbe Digital, 2008, n. 372). Incluso, desde 2005, el actual gobierno se
ha esforzado para convencer a los medios de comunicación de
nominar la situación que vive el país como conlicto armado, y
de representar las FARC como simple organización delincuencial y terrorista (PÉCAUT, 2008, p. 66). Incluso se ha tratado
desconocer el estatus de víctima a los desplazados, hablando
en los medios no de desplazados forzados por la violencia sino de migraciones de personas que salen de las zonas rurales
a las grandes ciudades para encontrar mejores condiciones de
vida.3 Es por lo tanto muy común, escuchar a los funcionarios
públicos y a varios periodistas referirse al postconlicto, con
lo que se representa la situación del país como si ya se hubiera
avanzado mucho en el camino hacia la paz, lo que se inscribe
en la estrategia política del actual gobierno que ha hecho de la
“política de la seguridad democrática” su enfoque principal. Sin
embargo, el número cada año más elevado de desplazados desmiente esta denominación de postconlicto y muestra claramente que Colombia aún sigue en el conlicto armado interno, aunque con características muy diferentes a cuando éste empezó,
puesto que para los grupos armados al margen de la ley, cada
3
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
William Ortiz Jiménez
Según José Obdulio García, “nosotros no tenemos desplazados, tenemos migración
en buena parte por el paramilitarismo y la guerrilla [...] esa gente se fue para
ciudades y allá están como migrantes, más la gente que se fue del país, clase alta y
media. [...] “La propaganda internacional sobre nuestra situación de desplazamiento
masivo, como el mayor desplazamiento del mundo, suma todos los que salieron
durante los últimos 40 años. [...] La ONG que dirige toda esa propaganda se llama
Codhes. [...] El negocio de crear el ambiente negativo contra Colombia produce
réditos” (OBDULIO GARCÍA, 2008).
163
vez son más importantes los objetivos militares y económicos,
es decir, cada vez más, la política es subyugada a la lógica militar.4 Eso se traduce en una pérdida de objetivos políticos, donde
la acción armada encuentra su in en sí misma, generando ganancias económicas que a los grupos armados al margen de la
ley hoy en día importan más que el poder político, es la transformación de las guerrillas y grupos paramilitares en grupos
narcotraicantes y extorsionistas, cuyos líderes se pueden denominar “warlords”, caracterizados como personas que surgen
de la guerra y viven de ella, por lo cual estén interesados en la
continuación de ésta. Es decir, se trata de una despolitización de
la fase actual del conlicto armado colombiano, donde la acción
armada encuentra el in en sí mismo (WALDMANN, 1999, p.
40-43). Para la población civil, sin embargo, el RESULTADO
es el mismo: amenazas, muerte, violaciones, tortura, y, como
única salida: el desplazamiento.
El panorama de la legislación interna, al igual que el de la
legislación internacional, es prometedor, pues ha aportado mucho, incluso a nivel mundial por la condición de Colombia de
ser el segundo país, después de Sudán, con más desplazados en
el mundo, lo que le ha valido para hacerse precursor y experto
en los aspectos legislativos. Estos avances son, en comparación
con la larga historia del desplazamiento forzado en el país, bastante recientes, lo que releja la invisibilidad que tenía hasta hace
relativamente poco.
Que el problema se visibilizara inalmente fue posible por
varias razones: el trabajo de las ONG (especialmente Codhes),
las organizaciones internacionales como Acnur y las investigaciones llevadas a cabo durante los años 90, fueron muy signiicativos en ese sentido. Después de una investigación extensiva
4
Comparar con los conceptos de nueva guerra de Mary Kaldor (2001) y guerra civil
de Peter Waldmann (1999).
164
William Ortiz Jiménez
llevada a cabo por la Conferencia Episcopal y publicada a mediados de la década de los 90 y que descubrió la magnitud y
gravedad del fenómeno (VALENCIA, 2006, p. 1), el gobierno se
vio obligado a actuar y, tras el Conpes 2804 en 1995 que crea el
Programa Nacional de Atención Integral a la Población Desplazada por la Violencia y en el que se deinieron por vez primera
acciones de prevención, protección y atención humanitaria de
emergencia, se decretó la ley 387 del 1997 que regula todo lo
relacionado al desplazamiento de manera vinculante, desde su
deinición, hasta la atención de sus víctimas y las pautas para
lograr su prevención, y que crea, entre otros, una nueva entidad
adscrita al Departamento Administrativo de la Presidencia de la
República: la Red de Solidaridad Social. A continuación se presentan de manera resumida otros decretos, acuerdos y leyes que
regulan el tema.
Primero, está la propia constitución nacional de 1991. Al
lado del reconocimiento y garantía de todos los derechos fundamentales (en especial, los artículos 13, 14 y 40), de los derechos
civiles, políticos y culturales (en especial, los artículos 42, 77 y
366), que incluso ya están presentes en el preámbulo (principios),
también destaca la supremacía de los DDHH y del DIH (tienen
rango constitucional y prevalecen en el orden interno, puesto que
la Constitución Nacional, es decir, la “norma de normas”, así lo
determinó). Sin embargo, existe una importante brecha entre lo
que estipula la constitución y lo que pasa en la realidad.
En diciembre de 1996, es decir, después del Conpes 2804,
se irma el Decreto 2217 a través del cual se crea un programa
especial de adquisición de tierras que beneicia a la población
campesina desplazada por la violencia.
En marzo de 1997 se irma el Acuerdo 006 mediante el
cual se ijan políticas de atención a la población desplazada
por la violencia. Como encargado de esta atención se nomina
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
165
al Instituto Colombiano de Bienestar Familiar (ICBF) en las
áreas de prevención, atención inmediata humanitaria, consolidación, estabilización.
El 9 de abril de 1997 le sigue el Decreto 976 que establece la responsabilidad del Estado, y por tanto su obligación de
“generar condiciones de sostenibilidad mínimas para la reincorporación social y recuperación económica” de las víctimas del
desplazamiento forzado por la violencia en un marco de retorno
voluntario o reasentamiento. Además, destaca la necesidad de
promover el desarrollo integral tanto de las zonas expulsoras
como de las receptoras, para lo cual son imprescindibles programas sociales del Gobierno.
El 27 de abril de 1997 se irma otro decreto: el Decreto
1165, mediante el cual se crea la Consejería Presidencial para la
Atención de la Población Desplazada por la Violencia. Entre sus
funciones principales se encuentran la de promover la elaboración de programas que tienen el in de prevenir el desplazamiento forzado, y la de coordinar las medidas de asistencia legal y
atención humanitaria de emergencia para los desplazados.
Un día después se irma el Acuerdo 59 que declara el desplazamiento forzado por la violencia como “evento catastróico”. Luego, con la ley 387 que se irmara poco después, este decreto ya reconoce que las personas que migran forzadamente lo
hacen “porque sus vidas, integridad física, seguridad o libertad
personal ha sido vulnerada o amenazada por razones de orden
público, violaciones masivas a los Derechos Humanos o infracciones al Derecho Internacional Humanitario”.
Después sigue la irma de la ley 387 y, aún en el año 1997,
se expide el CONPES 2924 que propone una nueva estructura
institucional para el manejo de sistemas de información y fuentes de inanciamiento de las políticas de atención (tanto preventivas, de ayuda inmediata como de estabilización).
166
William Ortiz Jiménez
La ley 418 se irma en diciembre de 1997 y “dictamina dotar al Estado Colombiano de instrumentos eicaces que garanticen la vigencia del estado social y democrático de derecho y la
plenitud de los derechos y libertades fundamentales” que hacen
parte del Bloque Constitucional.
El Decreto 501 de marzo de 1998 establece la creación del
Fondo Nacional para la Atención Integral a la Población Desplazada por la Violencia. Se determina que éste funcionará como
una cuenta especial sin personería jurídica en manos del Ministerio del Interior. Su función principal es la de administrar de
manera correcta y eicaz los recursos asignados.
Con el Decreto 290 de febrero de 1999 se busca facilitar a
la población desplazada por el conlicto armado interno la inscripción en el Registro Civil de Nacimiento y la expedición de
cédulas nacionales.
El Decreto 489 de marzo de 1999 determina que la encargada de las actuaciones y funciones frente al desplazamiento forzado por la violencia ya no será la Consejería Presidencial para la
Atención de la Población Desplazada por la Violencia sino pasa
a ser la Red de Solidaridad Social, creada en la ley 387.
El CONPES 3057 de 1999 propone un plan de acción integral para mejorar los instrumentos y mecanismos para la prevención, la protección, la atención humanitaria, el retorno, la reubicación y la estabilización socioeconómica de los desplazados
por la violencia. Además, subraya la responsabilidad que tiene
el Estado para garantizar efectivamente los derechos fundamentales y la dignidad humana de todos sus ciudadanos. Otro aporte
de este documento es la propuesta de reorganizar y disminuir el
marco institucional y fortalecer los sistemas de información, es
decir, lograr una mayor eiciencia.
En julio de 2000 se irma la ley 589 que dictamina las condenas y las posibles rebajas de pena para los que son culpables
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
167
de los siguientes delitos: desaparición forzosa, genocidios, instigación para delinquir, tortura. Mediante esta ley se crea también
la Comisión de Búsqueda de Personas Desaparecidas y el Registro Nacional de Desaparecidos. Además, encarga al gobierno
la obligación de hacer lo posible y necesario para encontrar las
víctimas, conocer las razones de su desaparición e informar sobre ello a los familiares de éstas.
En diciembre del mismo año se irma el Decreto 2569 que
reglamenta parcialmente la ley 387 y que designa a la Red de
Solidaridad Social la tarea de coordinar el Sistema Nacional
de Información y Atención Integral a la Población Desplazada
por la Violencia con las siguientes funciones: orientar, diseñar y
capacitar los miembros del sistema; diseñar y elaborar programas de prevención y atención integral a los desplazados por la
violencia; diseñar y ejecutar el plan estratégico para el manejo
del desplazamiento interno en nombre del Gobierno Nacional;
y, muy importante, determinar en coordinación con el Departamento Nacional de Planeación, indicadores socioeconómicos
que permiten el control y la evaluación de los programas.
El Decreto 951 de junio de 2001 reglamenta parcialmente
la ley 387, en lo relacionado a la vivienda y el subsidio de vivienda para la población desplazada.
El Decreto 2007 de septiembre de 2001 reglamenta parcialmente los artículos 7, 17 y 19 de la ley 387, en lo relacionado
con la atención a la población rural desplazada (retorno voluntario o reasentamiento en otro lugar).
La Directiva Presidencial de noviembre de 2001 ordena a
todas las instituciones gubernamentales que trabajan con población desplazada a mejorar la atención integral a ésta.
El CONPES 3115 del mismo año distribuye el presupuesto
sectorial para el cumplimiento del Conpes 3057. Además, constata que los programas de acceso a vivienda han sido demasiado
168
William Ortiz Jiménez
restrictivos. Por último, el Sistema Nacional de Atención a la
Población Desplazada, evidencia los problemas de dispersión e
insuiciente asignación en los programas generales y especíicos
dirigidos a la población desplazada.
La ley 782 del diciembre 2002 introduce algunos cambios
en la ley 418 de 1997 prorrogada y modiicada, a su vez, por la
ley 548 de 1999.
El Acuerdo 003 de febrero de 2003 ija los montos máximos
para la atención socioeconómica de los desplazados por la violencia, inscritos en el Registro Único de Población Desplazada
(expresados en salarios mínimos).
El Decreto 2131 de julio de 2003 reglamenta la atención
médica de la población desplazada según la ley 100 de 1993, y
ordena que, incluso en casos de regímenes de excepción, la asistencia médica a la población desplazada por todas las entidades
de salud es de obligatorio cumplimiento.
Volviendo a la Constitución Nacional, otro aporte de ésta es
el instrumento de la tutela (artículo 86) que pone a disposición
de los ciudadanos la posibilidad de exigir el cumplimiento efectivo e inmediato de sus derechos cuando éstos se ven vulnerados.
Fue a partir de la cantidad exorbitante de tutelas entregadas por
personas en situación de desplazamiento que la Corte Constitucional (que fue creada con la Constitución del 91 como institución responsable de la vigilancia de su cumplimiento) se puso a
estudiar el caso, ya no individual sino del conjunto de los desplazados con detenimiento y declaró, mediante la famosa sentencia
T-025 de enero del año 2004, un estado de cosas inconstitucionales, imponiendo al gobierno la obligación de solucionar la crisis humanitaria que esta gente vive, restableciendo sus derechos
consagrados en la Constitución, no solamente de los que tutelaron, sino de todos los desplazados, presentes y futuros. Además,
impuso al gobierno la tarea de desarrollar medidas de prevención
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
169
eicaces para impedir que el problema se siga originando (Comisión de Seguimiento a la Política Pública sobre Desplazamiento
Forzado, 2007, p. 7).
Desde la sentencia T-025 el gobierno está pues obligado a
responder con planes y acciones especíicas tendientes a la superación del estado de cosas inconstitucionales, teniendo que entregar periódicamente informes sobre su aplicación y resultados.
En abril del mismo año se expide el Auto 27 que presenta
un análisis presupuestal de inversiones del Sistema Nacional de
Atención Integral a la población desplazada (SNAIPD) y que
ordena una política de atención humanitaria de emergencia.
Con el Decreto 2467 de julio de 2005, se fusionan la Agencia Colombiana de Cooperación Internacional (ACCI) y la Red
de Solidaridad Social para formar juntas la Agencia Presidencial
para la Acción Social y la Cooperación Internacional (Acción Social), que a partir de entonces será la encargada oicial para lidiar
con el problema del desplazamiento forzado por la violencia.
En noviembre de 2005 sale otro CONPES, con el número
3400 que presenta un análisis completo acerca de las gestiones
del SNAIPD. Además, se dan consejos para lograr un mejor funcionamiento del sistema y se muestra en qué se han usado los
recursos destinados hasta el momento.
Mediante el Acuerdo 059 de diciembre de 2006 del INCODER se establecen los requisitos de inscripción y registro y los
criterios de elegibilidad que deben cumplir los desplazados forzados del campo para acceder a los programas de Desarrollo
Rural y Reforma Agraria.
El Acuerdo CNAIPD de septiembre de 2006 invita a los
alcaldes y gobernadores a un mayor compromiso para con los
desplazados y, por lo tanto, un crecimiento en la asignación del
presupuesto por la atención integral de los desplazados.
170
William Ortiz Jiménez
Los Autos 176, 177 y 178 de 2005, los Autos 218, 266 y
333 de 2006 y el auto 109 de 2007 fueron expedidos por la Corte Constitucional para dar respuesta a los informes entregados
tanto por el gobierno como por la Comisión de Seguimiento a la
Política para el Desplazamiento Forzado (iniciativa de la sociedad civil, creada en agosto de 2005 y promovida por diferentes
ONG5 y la Universidad de los Andes) que se mantiene en un
constante diálogo con los actores involucrados,6 y que ha podido
contrarrestar en múltiples ocasiones lo dicho por el gobierno. En
base a ambos, la Corte Constitucional ha declarado que la situación no ha cambiado sustancialmente, que aún sigue el estado
de cosas inconstitucionales frente al tema del desplazamiento
forzado (Comisión de Seguimiento a la Política Pública para el
Desplazamiento Forzado, 2007).
La ley 1190 de 2008 declara que el año 2008 será el año
de la promoción de los derechos de los desplazados lo que se
ve relejado, por ejemplo, en la exposición fotográica sobre el
tema en el Museo de Antioquia en Medellín, y otros eventos
artísticos y académicos que tuvieron lugar durante el 2008 en el
país. Además, asigna al Consejo Nacional la Atención Integral
a la Población Desplazada por la Violencia (CNAIPD), la coordinación de los comités departamentales, municipales y distritales; y las acciones dirigidas a garantizar el compromiso de las
instituciones territoriales para que se cumplan efectivamente los
derechos de los desplazados.
El Auto 008 de 2009 ha sido el último hasta el momento,
en el cual la Corte ha reconocido un avance importante, pero
no suiciente en la actuación del gobierno frente al problema
CODHES, Pastoral Social, Corporación Viva la Ciudadanía.
ACNUR, FAO, OCHA, PNUD, Procuraduría General de la Nación, Defensoría del
Pueblo, Controloría General de la Nación, organizaciones sociales de DDHH, líderes
de la población desplazada, expertos.
5
6
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
171
del estado inconstitucional en cuanto a la violación persistente
de los derechos de las víctimas del desplazamiento forzado por
la violencia. Al momento de escribir este informe, prosigue el
estado de cosas inconstitucionales.
Desde la Sentencia T-025, el gobierno ha hecho algunos esfuerzos para solucionar el problema del desplazamiento forzado
por la violencia a través de políticas públicas. Sin embargo, como ya se ha dicho, el estado de cosas inconstitucionales persiste. Las razones son múltiples: primero, muchos dicen que las
políticas no responden a las necesidades reales de la población
afectada, y además, no son lo suicientemente diferenciadas para
responder a las necesidades diferentes que presentan las diversas
partes de ella (niños, mujeres – cabeza de familia, embarazadas – ancianos, discapacitados, etc.). Segundo, en la mayoría de
los casos se quedan en el simple asistencialismo (aquí se puede
trazar un paralelismo con el cristianismo tan presente en el país
y su gran virtud: la caridad), es decir, se da lo que más urgentemente necesita la población víctima del desplazamiento forzado,
pero sin generar medidas que le permiten volver a vivir de manera autosostenible y digna en un futuro mediano. En este punto
incluso pasa que estas ayudas inmediatas no responden a las necesidades reales de la población, por la falta de concertación con
ella (ACNUR, 2005).
Relacionado con la crítica al asistencialismo está la según la
cual las políticas públicas no se traducen en políticas de estado y,
por lo tanto, están expuestas al vaivén de los intereses cambiantes
de los líderes políticos, lo que diiculta mucho el avance hacia
una solución duradera y estable del problema, que permitiría a las
víctimas recobrarse y vivir plenamente sus derechos y que permitiría, además, que no hubiesen nuevas víctimas (CUCHUMBÉ
HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 188).
Las necesidades más apremiantes de la población despla-
172
William Ortiz Jiménez
zada son, según el RUT,7 la alimentación con 14.41%, el trabajo
con 11.20% y el alojamiento con 10.28% (RUT, 2002). Eso coincide con la falta de políticas efectivas de creación de ingresos y
de vivienda. Sin embargo, algunos de los funcionarios que trabajan directamente con los desplazados se quejan de la falta de
iniciativa propia de los desplazados, y de su poca voluntad de
participar en las actividades y cursos de capacitación ofrecidos
por el gobierno. Sin embargo, eso es más el resultado de la brecha
que existe entre los deseos y necesidades de la población desplazada y las políticas de capacitación que no los tienen en cuenta (o
no lo suicientemente), y no tanto de la falta de voluntad de los
desplazados de salir adelante. Sin embargo, los funcionarios muchas veces esperan una actitud de gratitud como si no se tratara
de la satisfacción de los derechos que tienen los desplazados sino
de un regalo (JARAMILLO, 2008, p. 217, 225).
Frente a este punto es oportuno traer a colación la Sentencia
T-278 del año 2007 en la cual la Corte Constitucional declara
“INEXEQUIBLES las expresiones “máximo” y “excepcionalmente por otros tres (3) [meses] más”, contenidas en el parágrafo del artículo 15 de la Ley 387 de 1997, y EXEQUIBLE el
resto del parágrafo en el entendido que el término de la atención humanitaria de emergencia previsto en esa disposición será
prorrogable hasta que el afectado esté en condiciones de asumir
su autosostenimiento”. Además, declara “INEXEQUIBLE el
parágrafo del artículo 18” de la misma ley, según el cual el desplazado debía cooperar “en el mejoramiento, restablecimiento,
consolidación y estabilización de su situación”, relegando así
la responsabilidad del Estado en parte a los individuos víctimas
7
Sistema de Información sobre Población Desplazada por la Violencia en Colombia. En
la página de internet de RUT se puede leer que el nombre RUT es tomado de la biblia, del
nuevo testamento. Rut es una mujer viuda, que decide acompañar a su suegra Noemí y le
dice: “No insistas en que te deje y me separe de ti, porque donde tú vayas, yo iré; donde
tú habites, yo habitaré. Tu pueblo será mi pueblo y tu Dios será mi Dios” (RUT, 1, 16).
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
173
inocentes del conlicto armado (Sentencia T-287, 2007, p. 3, 44).
Los mismos funcionarios también lamentan la ausencia
de un sistema de información oportuno que conectara las diferentes UAO (Unidad de Atención y Orientación a Población en
Situación de Desplazamiento), permitiendo de esta manera un
seguimiento y control de las ayudas ya realizadas para evitar
que algunos reciban doble o que otros se tengan que volver a
inscribir cuando cambian de UAO, y, en general, para lograr más
eiciencia en la atención (JARAMILLO, 2008, p. 215).
Los usuarios de las UAO (es decir, los desplazados) a su
vez critican estar a merced de los funcionarios. “El problema se
encuentra en la forma como su condición de sujeto de derechos,
es condicionada y subordinada al ‘juicio’ y ‘evaluación’ subjetivo y, en ocasiones, estereotipado del funcionario. [...] El usuario
en la UAO termina siendo cooptado por los esquemas de interpretación y de representación del funcionario, y dependiendo de
dichos esquemas, se permite o se frena su proceso de restablecimiento.” El usuario se siente impotente ante el funcionario y el
sistema (JARAMILLO, 2008, p. 221).
Por otro lado, las políticas públicas no solamente no van
siempre a la par con las necesidades reales, sino que además
los recursos que se destinan a su implementación en el Plan de
Desarrollo (nacional y territoriales) son insuicientes para lograr
resultados satisfactorios, aunque hay que decir que el hecho de
que el problema es tomado en cuenta a la hora de elaborar el Plan
de Desarrollo, adjudicándole un presupuesto, ya es un progreso,
progreso que se logró apenas en el año 2005 (Decreto 250).
Otra diicultad radica en la falta de presencia estatal en importantes regiones del país, por lo cual sus habitantes no pueden
beneiciarse de las políticas públicas, pues éstas no se pueden
desarrollar ahí. Esa falta de gobernabilidad es, a la vez, una de
las principales causas del desplazamiento forzado. Aquí entra en
174
William Ortiz Jiménez
juego otro factor negativo, y es el de la cuasi ausencia de políticas
que van encaminadas hacia la solución de las causas del desplazamiento forzado. Mientras que no haya paz, no se solucionará,
y mientras sigue el conlicto armado, siempre el pueblo será la
principal víctima de todos los agentes armados, tanto estatales
como de los que luchan al margen de la ley. Y para solucionar
el conlicto armado son necesarias leyes y políticas públicas que
cambien las estructuras del país, entre ellos, que por in se dé la
reforma agraria, pero también una de la propiedad urbana. Es
decir, la paz pasa por una distribución más justa de las riquezas
del país y sin paz no se solucionará tampoco el problema de los
desplazados (CUCHUMBÉ HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p. 192).
También se ha criticado una política pública en especial,
y es la de llevar a las poblaciones desplazadas a sus tierras de
origen aunque en éstas continúe el conlicto, sin darles la seguridad suiciente que les garantice siquiera la vida, exponiéndolas
así de nuevo a situaciones de violencia y, en varios casos, a la
experiencia de un segundo (o tercero o cuarto) desplazamiento.
Además, sin darles el apoyo necesario para la creación de ingresos que les permitieran retomar su vida y lograr una subsistencia
digna (IBAÑEZ LONDOÑO, 2009, p. 1-2).
Por otro lado, se encuentra el problema de acceder a los
beneicios, debido a las diicultades que persisten en la forma
de registro de los afectados, pues no todos los desplazados están
en las listas del registro único porque no todos cumplen con los
requisitos (según algunos, éstos tampoco siempre son objetivos)
o porque tienen miedo de acciones de venganza (sobre todo si el
actor que los desplazó fue el mismo Estado), y, por lo tanto, no
acceden a las ayudas a las cuales, por la legislación nacional, tienen derecho. Aquí quiero destacar la opinión de varios funcionarios públicos, de políticos y de parte de la opinión pública, según
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
175
la cual los que no están en el registro no lo están porque no son
desplazados sino una especie de “parásitos” que se quieren aprovechar de la situación y recibir los beneicios destinados a éstos
(CUCHUMBÉ HOLGUÍN Y VARGAS BEJARANO, 2007, p.
180, 188). Es irónico: ahora resulta que el afectado no sólo debe
demostrar la culpa, sino y ante todo, la inocencia.
Adicionalmente, queremos destacar la gran ijación en las
cifras como lo demuestra, por ejemplo, todo el debate que se forma alrededor de la diferencia entre la cifra oicial del gobierno y
la de las ONG nacionales y organismos internacionales. La concentración exclusiva en la disputa cuantitativa, muchas veces el
debate no llega al problema real, es decir, que detrás de las cifras
están seres humanos, víctimas inocentes del conlicto armado o
del narcotráico, ciudadanos con derechos que no se están cumpliendo. Hay que solucionar el problema del desplazamiento
forzado en el país, sean tres millones o cinco millones los directamente afectados, y hay que cambiar, ante todo, las estructuras
sociales del país para lograr solucionar los problemas de fondo
que causan el desplazamiento forzado. En este aspecto, el papel
de los medios, entre ellos los periódicos, es enormemente importante, pues pueden representar a los desplazados como cifras
anónimas, gente débil y pasiva o como personas con derechos y
voluntad. Inluencian la opinión pública y tienen la capacidad de
presionar al gobierno, mediante la visibilización constante del
problema, exigir su solución y la crítica de los errores o ausencias que se cometan frente a él por parte de los funcionarios e
instituciones. Además, está en su posibilidad darle una plataforma a los desplazados, para que el país conozca la voz e historia
de los directamente afectados.
En conclusión, aunque se ha logrado un gran avance legislativo, la situación real del fenómeno sigue siendo grave, este
avance no se ha logrado materializar en políticas transparentes,
176
William Ortiz Jiménez
participativas, diferenciadas, eicientes y eicaces, debido a razones tan diversas como la falta de recursos destinados, la falta
de indicadores socioeconómicos oportunos (aunque se ha venido trabajando en el tema), la falta de claridad que tienen muchos
de los desplazados sobre sus derechos, las barreras burocráticos
que se les interponen para ingresar al Sistema Único del Registro
y para acceder a los diferentes beneicios a que tienen derecho,
la falta de políticas a mediano y largo plazo, y no por último,
la falta de gobernabilidad y la debilidad estructural, en muchas
ocasiones, del Estado Colombiano.
Finalmente, queremos advertir algo acerca de la representación medial que se hace del fenómeno del desplazamiento forzado por la violencia en el país y es que, como destaca la periodista
Claudia López, aunque en varios periódicos sí existen esfuerzos
importantes de pluralidad de pensamiento y de una información diferenciada por varios de los columnistas y autores de los
demás artículos (incluso también por parte de los panelistas de
radio), la gente que los lee pertenece a una élite intelectual, la
gran masa del pueblo no conoce sino la representación del fenómeno que se hace a través de la televisión, que actualmente
es con creces el medio de carácter masivo más importante para
la formación de la opinión pública en el país (LÓPEZ, 2009).
Más especíicamente, a través de los dos canales nacionales más
grandes, RCN y Caracol, sin duda, defensores a ultranza del estatus quo. Otro problema (también en los medios escritos, pero
aún más en la televisión) es la gran preocupación por los índices
de audiencia, por lo cual la ética profesional fácilmente se pierde
y el amarillismo periodístico es el que gana la partida, lo que se
traduce en una información distorsionada y sensacionalista de
los diferentes temas de interés público, incluso cuando se trata
de fenómenos tan delicados como lo es el desplazamiento forzado por la violencia.
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
177
Además, hay que destacar que Colombia sigue siendo un
país donde la libertad de prensa no es muy alta. Así, según un
estudio revelado por la organización Reporteros sin Fronteras, en
el año 2007 se encontró en el puesto 126 de un total de 169 países estudiados, donde el puesto uno (Islandia y Noruega) es el
que designa el país donde mayor, y el 169 (Eritrea) donde menos
libertad de prensa existe. Este dato nos parece igualmente importante a la hora de analizar la representación del fenómeno del desplazamiento a través de los medios de comunicación, entre ellos,
los escritos (REPORTEROS SIN FRONTERAS, 2007, p. 6).
Nuestra insistencia en mirar las formas de representación
que hacen los medios sobre el fenómeno se fundamenta en el
papel tan destacado que éstos tienen en el imaginario colectivo.
Es a partir de su trabajo que la población civil toma consciencia
(o no) del desplazamiento forzado y de qué manera. Parte de la
población civil son los mismos desplazados que igualmente se
ven inluenciados por la representación que se construye sobre
ellos, que puede perjudicarlos aún más, hacerles sentir peor de lo
que se sienten ya, al mostrarlos, por ejemplo, como seres indefensos (discurso humanístico), o peor, culpables de su situación
(“algo tienen que ver en el conlicto”), delincuentes (invadieron
el terreno, robaron comida, etc.) o incluso como charlatanes que
no fueron desplazados sino que se aprovecharon de la situación
y se hicieron pasar por desplazados aunque en realidad son “sólo” pobres (recordemos el comentario de José Obdulio García y
el testimonio de varios funcionarios en el trabajo de Jaramillo,
ambos citados más arriba), o, por el contrario, les puede informar sobre sus derechos, reairmando su condición de víctimas,
de sujetos de derechos. Por el otro lado, están los que acogen
a los desplazados, sus nuevos vecinos, la gente que comparte
el espacio con ellos, es decir, todos nosotros. Nuestra manera
de recibirlos depende, en gran medida, del estereotipo que nos
178
William Ortiz Jiménez
formamos de ellos, que a su vez depende de la representación
que hacen los medios y los políticos de ellos (además de las experiencias propias que algunos tienen). Así que, si el estereotipo
es negativo, los trataremos con desprecio, recelo o indiferencia.
En cambio, si es positivo, lo cual no signiica una representación
que los demuestra como seres débiles e incapaces, sino que los
representa en su condición de personas comunes y corrientes,
que han tenido la mala suerte de estar en una zona de conlicto
con que nada tenían ni tienen que ver, se puede esperar que la
gente los trata con amabilidad y comprensión.
Es pues necesario relexionar más acerca del tema de la representación que se hace sobre el desplazamiento forzado y sus
víctimas para exigir que se haga con la ética y responsabilidad
social suicientes que permiten un acercamiento entre estos últimos y la sociedad civil en su conjunto y para apoyar la solución del problema a través de la exigencia constante del cumplimiento de los derechos de los desplazados y de la revelación
de posibles abusos, inconsistencias y ausencias en el diseño y la
aplicación de las políticas tendientes a la solución del problema
que son posibles mediante el ejercicio periodístico.
Para tal efecto, nos sirve el análisis del discurso social y
el análisis crítico del discurso. El primero subraya que el discurso es una acción social que ocurre en un marco de comprensión, comunicación e interacción que a su vez depende de las
estructuras sociales generales de la sociedad. Por otro lado, el
análisis crítico del discurso pone énfasis en que el investigador
debe “asumir una posición más cuestionadora de la realidad circundante, principalmente cuando se trata de cómo los discursos
orales y escritos reproducen el abuso de poder, la dominación o
la desigualdad social” (SILVA V, 2002).
La representación del desplazamiento forzado
por la violencia en colombia
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7
Os militares brasileiros e a
“grande mentira”
Michel Goulart da Silva*
T
em sido constante a divulgação de livros, artigos, entrevistas e
testemunhos de militares a respeito do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar que o sucedeu, no Brasil. Esses discursos, pronunciados desde diferentes lugares sociais, expressam as interpretações e ideologias de uma parcela dos militares que vivenciaram
sua carreira militar nas décadas de 1960 e 1970, e cujo objetivo
passa por convencer as novas gerações de civis e de militares de
que a historiograia que vem sendo divulgada pelas esquerdas e
pelos pesquisadores acadêmicos a respeito do golpe e da ditadura
seriam distorções do que teria “realmente acontecido”.
Entre 1964 e 1985, uma ditadura comandada por militares e apoiada por uma parcela de civis governou o Brasil. Em
1964, um golpe derrubou o governo trabalhista de João Goulart,
também conhecido como Jango, que tinha como eixo político as
“reformas de base”, entre as quais as reformas urbana, educacional, entre outras. Com a ditadura, diminuiu-se a intervenção do
Mestrando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Técnico-Administrativo em Educação no Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), campus Gaspar.
*
186
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
Michel Goulart da Silva
Estado na economia, ampliando a participação de empresas estrangeiras e, por outro lado, o Estado forte permitiu que ditadores concretizassem um projeto de desenvolvimento econômico e
da infraestrutura industrial e urbana, calcado no endividamento
externo e na intensiicação da exploração da força de trabalho, e
comandado por uma camada de tecnocratas na gestão da economia e da administração pública.
Numa entrevista realizada em setembro de 2000, o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, constantemente citado pela
imprensa em função dos processos que o acusam de torturas e
assassinatos durante a ditadura, airmava que “em 1964, fomos
vencedores quando impedimos que, na marra, fosse implantada
uma república sindicalista de cunho marxista-leninista”. Contudo, depois dessa primeira vitória,
infelizmente perdemos uma batalha muito signiicativa – a comunicação de massa. Os vencidos distorcem
os fatos e enganam o povo, principalmente os jovens.
Querem, através da mentira, escrever a história com
a sua versão e vão conseguir o seu objetivo. Há uma
certa covardia em contar a verdade às novas gerações
(MOTTA, 2003, t. 5, p. 234).
O General Agnaldo Del Nero Augusto airma no livro A
grande mentira (2001) que no contexto posterior ao im da ditadura, utilizando a propaganda, que foi “a mesma arma que criou
a lenda dourada do comunismo”, os representantes das esquerdas
“conseguiram atribuir a si mesmos o retorno do País ao pluralismo político e se autoproclamar angelicais defensores da democracia”. Essa “grande mentira” construída pelos comunistas,
“repetida de várias formas, em incontáveis oportunidades e nos
diferentes meios de comunicação”, acabaria por ganhar “foros
de verdade”. Como consequência, segundo o General Augusto,
“os mais jovens, e boa parte dos atuais integrantes das Forças Ar-
187
madas e os seus familiares, não vivenciaram aquelas situações e
passaram a ser impregnados pela Grande Mentira com sua versão
ideológica dos fatos” (AUGUSTO, 2001, p. 16, grifos do autor).
Essas ideias produzidas por militares acerca do golpe de
1964 e da ditadura civil-militar expressam um discurso que pretende ser hegemônico hoje nas Forças Armadas. Ele é difundido
por meio de livros e revistas publicados pela Biblioteca do Exército (BIBLIEX), principal editora militar. Esses e outros discursos
procuram apontar para a necessidade de estabelecer “verdades”
diante das supostas distorções historiográicas que desqualiicam
as ações dos militares, propondo-se a esclarecer as gerações mais
jovens acerca do passado. Segundo o Coronel José Fernando de
Maya Pedrosa, “nem sempre as pessoas adotam a análise cuidadosa e imparcial da história como um biólogo estuda a célula ou
um astrônomo, o sistema solar”, parecendo “atitude corriqueira o
alinhamento dos homens aos seus desejos e inclinações pessoais
ou coletivas, mais do que à razão fundamentada no estudo isento
dos fatos” (PEDROSA, 2008, p. 32-3).1
Os discursos dos militares expressam um grande ressentimento, pois a sociedade teria deixado de reconhecer sua relevância política e a importância histórica de suas ações. Segundo o pesquisador Celso Castro, para os militares, mesmo tendo
vencido “a guerra contra as organizações da esquerda”, na Nova
República estão “enfrentando ideologicamente essa mesma esquerda, agora atuando na imprensa e no Congresso, mas ainda
em busca de desforra e recusando-se a aceitar a ‘anistia para os
José Fernando de Maya Pedrosa é membro do Instituto de Geograia e História
Militar e foi instrutor de História Militar da Escola de Comando e Estado-Maior do
Exército. Entre outras funções, integrou a comissão encarregada da edição da obra
História do Exército Brasileiro (1972), que em três volumes sistematizava uma versão
da história do Brasil a partir dos “feitos” militares. João Pedrosa também foi diretor
da editora Biblioteca do Exército e exerceu o cargo de Diretor Cultural do Clube do
Exército e do Circulo Militar da Praia Vermelha.
1
188
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
Michel Goulart da Silva
dois lados’” (CASTRO, 2008, p. 135). Para os militares, ainda
há lutas a serem travadas, dessa vez não no campo de batalhas,
mas nas disputas de memória empreendidas contra aqueles que
estariam constantemente desqualiicando suas ações do passado.
Nesse ponto, os militares destacam a imprensa, que, segundo
eles, teria contribuído nessas narrativas que desqualiicam suas
ações (CASTRO, 2008, p. 136).
Parte-se aqui das contribuições de Paul Ricoeur, para quem
o discurso se dá como evento, que se realiza no presente e remete-se a seu locutor, mediante um conjunto complexo de indicadores, como os pronomes pessoais (RICOEUR, 1977, p. 45-6).
Dessa forma, pretende-se compreender a signiicação que permanece do evento, e não o evento, a partir da ideia de que, “assim como a língua, ao articular-se sobre o discurso, ultrapassa-se
como sistema e realiza-se como evento, da mesma forma, ao
ingressar no processo da compreensão, o discurso se ultrapassa, enquanto evento, na signiicação” (RICOEUR, 1977, p. 47).
O discurso não é analisado apenas como expressão semântica
da linguagem, mas também em suas intencionalidades e signiicações. Com isso, damos “ao termo signiicação uma acepção
bastante ampla, recobrindo todos os aspectos e todos os níveis
da exteriorização intencional que torna possível, por sua vez, a
exteriorização do discurso na obra e nos escritos” (RICOEUR,
1977, p. 49, grifos do autor). Esse discurso tem um sujeito falante, o autor, que é uma “categoria da interpretação, no sentido em
que é contemporâneo da signiicação da obra como um todo”, ou
seja, “a coniguração singular da obra e a coniguração singular
do autor são estritamente correlativos” (RICOEUR, 1977, p. 52).
Nos discursos elaborados pelos militares, uma das apostas
tem sido a produção de textos com pretensões historiográicas,
sejam livros volumosos que mostram um grande esforço de pesquisa e escrita, sejam artigos de divulgação rápida publicados
189
nas revistas militares, além de testemunhos orais. Esses produtores de história procuram estabelecer em seus discursos um
estatuto de verdade, baseado na descrição “objetiva” dos acontecimentos, procurando narrar o que teria sido “sufocado” pelo
“autoritarismo de esquerda” no poder.2
Essas narrativas acerca do passado têm como fundamento
a doutrina elaborada pela Escola Superior de Guerra (ESG), baseada em princípios de segurança e desenvolvimento, servindo
como uma forma de ideologia para esses militares. Ideologia é
aqui entendida como “um fenômeno insuperável da existência
social, na medida em que a realidade social sempre possui uma
constituição simbólica e comporta uma interpretação, em imagens e representações, do vínculo social” (RICOEUR, 1977, p.
75). O fenômeno da ideologia, portanto, está sempre relacionado
a certa pertença do autor, ou seja, sua pertença a uma história, a
uma classe, a uma nação, a uma cultura ou a uma tradição, ainda
que essa pertença também se constitua em espaço de relativa
autonomia (RICOEUR, 1977, p. 92).
Segundo os discursos produzidos pelos militares contemporaneamente, aqui estudados, ainda hoje os “comunistas” estariam apostando em formas de ação e propaganda no sentido
de subverter a ordem pública, desqualiicando as ações das Forças Armadas e apostando em uma política de mentiras e revanchismo. Para esses militares, apostar na subversão faria parte de
uma espécie de natureza antidemocrática dos comunistas. Como
resposta às formas contemporâneas de “subversão”, os militares
estariam sendo obrigados a mostrar as “verdadeiras” intenções
dos comunistas, não apenas os desmascarando em suas ações políticas contemporâneas, como também mostrando às novas gerações suas tentativas de tomada do poder ao longo do século XX.
Um dos livros autobiográicos mais famosos chama-se justamente Verdade sufocada,
escrito pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.
2
190
Michel Goulart da Silva
O “inimigo interno” e as “elites”
Os discursos contemporâneos dos militares acerca da primeira metade da década de 1960 airmam que estava em marcha
uma tentativa de golpe por parte da esquerda, ou seja, dos comunistas, da parte “radical” do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
em especial Leonel Brizola, e de outros grupos menores.3 Esta
caracterização é descrita pelo Clube Militar, em texto de 2004:
O ano de 1964 encontrou o Brasil aturdido. A economia
comprometida, a sociedade atônita e acuada, entre o
medo e a desesperança. As Forças Armadas aviltadas e
divididas, a vida política tornada um circo mambembe.
A grande massa silenciosa, entretanto, já não suportava
mais tanta irresponsabilidade, tanto faz-de-conta, tanta
omissão (CLUBE MILITAR, 2004, p. 69).
Em outro texto, Aricildes Motta, coordenador do projeto de
História Oral do Exército, airma que
o Brasil vivia uma época de anarquia nos planos político, econômico e administrativo, especialmente nas
atividades públicas, e que se agravou a partir de 1961.
O governo de João Goulart estimulava a desordem,
a agitação e a indisciplina, no intuito de consolidar o
projeto político que ambicionava ver realizado: a república comuno-sindicalista (MOTTA, 2005, p. 38-9).
3
Nesse momento, os comunistas estavam divididos em dois partidos, o Partido
Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922, e um grupo bem menor, o Partido
Comunista do Brasil (PC do B), fundado em 1962. O PTB, partido de Jango, era
formado por diferentes setores, alguns deles mais à esquerda, como o governador do
Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Havia no PTB também setores de sindicalistas e
operários que atuavam em unidade com o PCB. Havia ainda grupos menores, como
a Ação Popular (AP), grupo de inluência católica com forte presença no movimento
estudantil, e a Política Operária (POLOP), um grupo marxista que pretendia superar
o dogmatismo stalinista a partir de outras contribuições teóricas, como as de Leon
Trotski e Rosa Luxemburgo.
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
191
João Goulart assumiu o governo em setembro de 1961.
Depois da renúncia do presidente Jânio Quadros, uma parcela
dos militares e alguns parlamentares se opuseram à posse de
João Goulart, vice-presidente e que pela Constituição deveria
assumir a presidência, acusando-o de estar vinculado aos comunistas. Para que João Goulart assumisse, o congresso nacional
apresentou uma proposta conciliatória: a adoção do parlamentarismo, ou seja, o presidente tomaria posse, preservando a ordem
constitucional, mas parte de seu poder seria deslocada para um
primeiro-ministro, que cheiaria o governo. Em 1963, foi convocado um plebiscito acerca da manutenção ou revogação do
parlamentarismo. Este foi amplamente rejeitado, retornando-se
ao presidencialismo.
Nos discursos contemporâneos produzidos pelos militares,
faz-se uso da ideia de “inimigo interno”, ainda que a expressão
não seja utilizada. Essa ideia embasou em grande medida as ações
políticas dos militares e dos setores anticomunistas no golpe e durante a ditadura, sendo parte da chamada Doutrina de Segurança
Nacional (DSN). Segundo Padrós, a DSN apontou para a existência de um “estado de guerra permanente”, contra o suposto “inimigo interno”, que poderia ser toda pessoa ou organização armada, política ou social de oposição aos interesses da ordem vigente
(PADRÓS, 2005, p. 25). O perigo é identiicado nas “ideologias
estranhas”, externas, diferentes das locais, fazendo com que os
cidadãos identiicados internamente com essas “ideologias” fossem “tratados como inimigos perigosos dos interesses da unidade nacional, uma vez que não compartilhavam nem defendiam a
tradição política (da elite) local” (PADRÓS, 2008, p. 144). Como
consequência, “o elemento desestabilizador, contrário à unidade
nacional da DSN, é considerado ‘subversivo’, inimigo e, na semântica da doutrina, como o estranho que não pertence e não tem
direito de pertencer à nação” (PADRÓS, 2008, p. 144).
192
Michel Goulart da Silva
Nessa doutrina, os mais temidos “inimigos internos” eram
os comunistas, pois eram organizações que, por natureza, não
respeitavam os interesses nacionais. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), por exemplo, segundo o General Augusto, teria nascido como partido que “aceitava a agitação permanente e a tese
da derrubada revolucionária das estruturas vigentes. Renegava
as regras de convivência da sociedade brasileira, propunha-se a
realizar atividades legais e ilegais e subordinava-se à União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas” (AUGUSTO, 2001, p. 27).
Segundo o historiador Rodrigo Motta, em estudo a respeito do anticomunismo no Brasil, os comunistas eram considerados agentes da URSS, “sua pátria real, o que os tornava traidores do Brasil”. Na propaganda explorada de forma recorrente
ao longo do século XX, segundo Motta, “os comunistas foram
acusados tanto de tentar destruir e trair a pátria, em algumas
versões, como de vendê-la em troca do ouro de Moscou, em
outras. Se eles tivessem sucesso em seus intentos traidores, o
destino do Brasil seria tenebroso, entregue aos desígnios do
império russo” (MOTTA, 2002, p. 31).
Percebe-se que os textos contemporâneos escritos por militares continuam informados por elementos da DSN de décadas atrás, quando uma parcela desses produtores de história se
graduou como oiciais das Forças Armadas. Em seus discursos
pode-se identiicar a contestação como um elemento negativo
para a ordem pública, além da compreensão de que devem ser
combatidas inclusive as ações internas de oposição (ARRUDA,
1980, p. 61-2). Por outro lado, embora o comunismo, depois do
im da União Soviética e de seus aliados, tenha deixado de ser
tema de preocupação enquanto uma ameaça concreta e objetiva,
o olhar militar, quando pensa as décadas passadas, continua a
ver variações dessa expressão ideológica como ameaças estranhas à nacionalidade.
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
193
Embora nas últimas décadas sejam identiicáveis signiicativas mudanças na doutrina dos militares, pode-se airmar, conforme pesquisa realizada por Adriana Marques, que no contexto
internacional marcado pelo im da Guerra Fria e pelo enfraquecimento dos antigos condicionantes de caráter ideológico à formulação das concepções estratégicas, não se operou mudanças
signiicativas na orientação tradicional, em particular do Exército,
acerca da preparação da defesa interna, ainda que em documentos
oiciais a airmação de que existe um inimigo interno especíico a
ser combatido tenha sido eliminada. Segundo a pesquisadora, as
Forças Armadas, principalmente o Exército, continuam trabalhando com a hipótese de que devem preparar-se para uma eventual
ação militar contra “forças adversas”, agora elegendo como “inimigos” os movimentos sociais (MARQUES, 2001, p. 137-138).
Um dos conceitos que permanece na doutrina é o de elite,
entendido como “conjunto de pessoas que, seja no Governo, seja
nos diferentes segmentos da sociedade nacional, exercem papéis
de condução ou representação das necessidades, dos interesses e
das aspirações coletivas” (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA,
2000, p. 44). Quando as elites pautam suas ações em objetivos
diferentes daqueles considerados de interesse da nação, “perdem
sua legitimidade, e a comunidade nacional encontra os meios
para substituí-las, restabelecendo assim uma perfeita identidade
de propósitos” (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 2000, p.
44). Justiica-se assim a possibilidade de derrubado de governos
pelas forças que, de forma pretensamente legítima, se arroguem
a defesa dos interesses nacionais, como os militares.
O presidente João Goulart, grande proprietário de terras,
mas encarado como aliado dos comunistas, é exemplar nesse esquema das elites que perdem legitimidade. Em palestra proferida
no Clube Militar, em 31 de março de 2008, o General Ulisses
Lisboa Lannes dizia que “investido dos plenos poderes presiden-
194
Michel Goulart da Silva
ciais, João Goulart rapidamente passou a conduzir ações no sentido de implementar um projeto golpista que desaguaria em um
regime totalitário de esquerda”. Lannes airma que João Goulart
estaria sendo inluenciado pelo seu cunhado, Leonel Brizola, que
defendia as “reformas de base” e a implantação de uma “república sindicalista”. Como consequência, “controlando o aparelho
sindical, o governo promovia o grevismo, a anarquia e o caos, e
o país passou a viver dias de intranquilidade, estagnação econômica e inlação descontrolada” (LANNES, 2008, p. 49).
Percebe-se, por outro lado, que os militares olham para os
acontecimentos como sendo consequência da ação de uma única pessoa, dando vazão a interpretações produzidas pela direita
golpista e anticomunista da década de 1960. Segundo o historiador Jorge Ferreira, “para a direita civil-militar que tomou o
poder em 1964, Goulart era um demagogo, corrupto, inepto e
inluenciado por comunistas” (FERREIRA, 2008, p. 345). Entretanto, essa forma de encarar o presidente João Goulart foi tão
inluente, que mesmo uma parcela da historiograia acadêmica
aderiu a ela. Segundo Jorge Ferreira, “em uma análise tradicional, superada na historiograia e teoricamente inaceitável, o regime instaurado em março de 1964 [...] teria ocorrido devido à
falta de talento de um único indivíduo” (FERREIRA, 2008, p.
346). Nesse raciocínio expresso por alguns militares, em particular aquele informado pela doutrina da ESG, a ditadura teria
sido necessária, pois uma parcela das elites brasileiras teria se
desviado dos interesses nacionais.
Nos discursos contemporâneos dos militares há uma intrínseca articulação entre as ações ditas sem legitimidade do presidente João Goulart e a subversão perpetrada pelos comunistas.
Esses eram aspectos ressaltados pelos militares ao longo da ditadura, como parte dos esforços de legitimar as ações repressivas e
de combate à suposta subversão da ordem pública. Embora nos
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
195
discursos contemporâneos os conceitos de “elite” e de “inimigo
interno” não sejam mobilizados para narrar os anos da ditadura,
os militares que produzem essas histórias pensam a conjuntura
do golpe como a derrubada de um governo corrupto e irresponsável e como a derrota das ações subversivas dos comunistas.
Os planos dos comunistas e de seus aliados
Para o discurso militar contemporâneo, o encontro entre os
interesses do inimigo interno comunista e das elites sem legitimidade parece ter sido a causa da ameaça à ordem pública que
poderia ser veriicada na conjuntura da década de 1960. Naquele
momento, segundo o General Lannes, o projeto do PCB “buscava uma ‘frente única’ e a concretização de uma ‘Revolução
Democrática Burguesa’ ao aliar-se à insurreição ‘burguesa’ de
Goulart e Brizola” (LANNES, 2008, p. 49). O partido, ao adotar essa tática, “revelava iel e rígida observância às diretrizes de
Moscou, que recomendavam o ‘assalto ao poder pela via pacíica’, em contraposição a linhas de ação mais açodadas e radicais”
(LANNES, 2008, p. 49). Como consequência, dada a convergência de interesse entre Goulart, Brizola e os comunistas, “em março de 1964, a desordem e a intranquilidade atingiram novos patamares”, ocorrendo greves e aumentando “as arruaças e ameaças
de intervenção de grupos armados ligados a Brizola” (LANNES,
2008, p. 50). Os discursos dos militares procuram mostrar que
a agitação do PCB teria sido vitoriosa ao conquistar uma ampla
inluência na sociedade e no governo, abrindo assim a possibilidade concreta para a tomada do poder pelo partido e seus aliados.
Conquistando amplos segmentos de massas, os comunistas
e os demais setores das esquerdas teriam, segundo essas versões
militares, condições de colocar em prática seu plano, que, aliás,
196
Michel Goulart da Silva
é descrito detalhadamente sem que seja apresentada qualquer
documentação. Essa ausência de documentação não impediu
que tais informações fossem veiculadas como verdadeiras em
numerosos textos, escritos e publicados ao longo das últimas
décadas. Em um desses textos, escrito recentemente, o Coronel
Aricildes Motta, além de airmar que havia por parte do governo
de João Goulart a intenção de “chegar rapidamente à República
Sindicalista de vezo marxista”, descreve que
a estratégia a ser aplicada no Brasil compreendia duas
fases distintas. Na primeira, ocorreria um tipo de golpe revolucionário a ser promovido por João Goulart;
o Congresso seria fechado e seriam realizados muitos
expurgos de elementos contrários. Na segunda fase, os
golpistas seriam afastados e a esquerda revolucionária assumiria o Poder. Na verdade, os comunistas não
iniciariam a revolução marxista-leninista. Goulart se
incumbiria de fazê-lo (MOTTA, 2005, p. 39).
Entre os militares consolidaram-se discursos que airmam
que estava em andamento uma conspiração subversiva e de que
a deposição de João Goulart teria sido fundamental para impedir
a subversão da ordem pública. Esse tipo de discurso foi reforçado ao longo de décadas, remetendo-se como “prova” justamente
os oiciais militares que estiveram presentes naqueles anos. Um
deles, o então General Ferdinando de Carvalho, escreveu em
texto publicado originalmente em junho de 1964:
Dentro da mais rigorosa técnica comunista, o movimento subversivo dever-se-ia delagrar, com a imposição de
uma situação insustentável, motivada pela insolvência
de um problema crítico, implantar-se-ia uma ditadura,
possivelmente cheiada por João Goulart e apoiada em
um dispositivo militar e nas milícias operárias e camponesas mobilizadas (CARVALHO, 1966, p. 101-2).
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
197
Permanece com poucas mudanças contemporaneamente
entre os militares essa percepção da conjuntura do golpe, apontando-se ainda para uma conspiração comunista. Mesmo com
todas as discussões no campo da historiograia nessas quatro
décadas, grande parte dos textos pretensamente históricos escritos pelos militares continua presa aos relatos produzidos pelas
percepções de alguns oiciais do período. Percebe-se, por outro
lado, que o anticomunismo e a ideia de que as “massas” são
facilmente manipuláveis estão presentes hoje nos escritos dos
militares, constitui-se em permanência de representações elaboradas ainda no contexto da década de 1960.
Se havia um plano tão bem urdido para instaurar uma ditadura encabeçada por João Goulart e assim caminhar para o
socialismo, era preciso fazer algo que interrompesse essa perigosa escalada. Nessa questão, testemunhos orais, artigos escritos durante a ditadura e textos produzidos contemporaneamente
são repetitivos e claros em suas formulações. Para os militares,
o país vivia uma completa desordem e o desfecho disso, caso
eles não izessem nada, seria um regime ditatorial esquerdista ou
mesmo uma guerra civil com conotações ideológicas, colocando
em risco aquela ordem social e política.
No sentido de garantir a estabilidade das instituições, os
militares entendiam que uma ação política por parte das Forças Armadas se colocaria como única possibilidade de garantir
a ordem constitucional, diante dos ataques da esquerda à ordem
pública. Para os militares, os esquerdistas pretendiam pela força
impor um regime ditatorial, apostando na conspiração militar
e na criação de ilusões nas massas “ignorantes”. Mesmo que
fosse preciso quebrar temporariamente a ordem constitucional,
derrubando um presidente democraticamente eleito, os militares entendem que essa ação estava amparada na necessidade de
defesa dos interesses maiores da nação, que emanam do povo e
198
Michel Goulart da Silva
são superiores a governos ou mesmo às Forças Armadas. Os militares seriam os intérpretes dos interesses “populares” e teriam
a função de garantir esses interesses. Nesse sentido, conclui o
General Lannes que
a momentânea quebra da ordem institucional, respaldada e legitimada pelo Congresso e pelo imenso
apoio popular, salvou a democracia, ameaçada pela
intimidação do parlamento, pela pressão das massas
sindicalizadas e pela anarquia das Forças Armadas
(LANNES, 2008, p. 50).
Para os militares, por meio do “movimento revolucionário”
foi possível garantir a ordem pública, impedindo a continuidade das ações subversivas empreendidas pelas esquerdas. Após a
“revolução”, o país poderia voltar a caminhar pra a frente, passados os tempos de turbulência.
Entre as “conquistas” e o desenvolvimento
Os discursos recentes produzidos pelos militares não se limitam a narrar versões a respeito do golpe e justiicá-lo a partir
do argumento de uma ação preventiva diante do um suposto golpe promovido pelas esquerdas. Os militares também elaboraram
discursos para legitimar política e historicamente os governos
nascidos do golpe, justiicando as ações repressivas como uma
espécie de mal menor.
Os militares e civis que participaram dos governos ditatoriais
procuram apresentar esse período como momento positivo e marcado por grandes conquistas para o Brasil. Para Armando Falcão,
Ministro da Justiça no governo Geisel, “foram tempos de ordem,
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
199
tempos de paz, tempos de segurança, tempos de prosperidade nacional” (MOTTA, 2003, t. 1, p. 219). Por outro lado, teriam sido
“acertos da revolução”, conforme o General Rubens Denys, “o
restabelecimento do princípio de autoridade [...] o planejamento
em nível de governo, para realizar o desenvolvimento social e
econômico do País, visando o bem-estar da sociedade brasileira, integrar o País e minimizar os desníveis regionais” (MOTTA,
2003, t. 1, p. 184). Segundo o economista Antônio Delim Neto,
que ocupou diferentes cargos nos governos ditatoriais, “nosso país construiu uma indústria extremamente soisticada, ordenou seu
mercado interno, chegou ao 8º PIB mundial e não foi gratuitamente, não foi brincando” (MOTTA, 2003, t. 5, p. 155).
Os militares teriam cumprido o papel por eles pretendido;
quando olham para os “governos da revolução”, os militares os
veem como um período de conquistas e vitórias. Em seus discursos, ressaltam conquistas em termos sociais, políticos e econômicos, e vitórias contra as ameaças externas e movimentos
que queriam pôr im à “democracia” então vivida no país. O
inimigo interno insistentemente continuava a ameaçar a ordem
pública, obrigando o “processo revolucionário” a se estender até
alcançar o que os militares considerassem uma “paz social”. Esses elementos teriam dado à “revolução de 1964” uma grande
importância histórica. Nas palavras do Coronel Nilson Ferreira
Mello, que também carrega o título de historiador,
as realizações do movimento de 1964 são inúmeras e
importantes, tanto pelo que foi feito quanto pelo que
se impediu que se izesse. Iniciado como uma reação
à revolução comunista em marcha, seus efeitos, nos diversos campos das atividades nacionais, acabaram por
justiicar sua colocação como uma das mais importantes
revoluções brasileiras, como a Guerra da Independência
e a Proclamação da República (MELLO, 2005, p. 44).
200
Michel Goulart da Silva
Essa exaltação às “conquistas” dos governos da ditadura,
em grande medida, dá-se em comparação ao período anterior. O
Coronel Jarbas Passarinho, que também ocupou variados cargos
ao longo da ditadura, criticando o período anterior, airma:
Quando o Marechal Humberto de Alencar Castello
Branco assumiu a presidência da República, o Brasil
era um país subdesenvolvido e vivia uma hiperinlação.
Exportávamos sobremesa: café, açúcar e cacau, algo
aquém de um bilhão de dólares. Éramos a 48ª economia
do mundo. Importávamos quase todo o petróleo, gasolina, diesel e querosene (PASSARINHO, 2007, p. 74).
Referindo-se ao conjunto dos “governos revolucionários”,
o Coronel Nilson Mello divide suas “realizações” em dois aspectos: econômicos e sociais. Destaca as obras de engenharia,
como ferrovias e rodovias, que “mudaram completamente o panorama dos transportes terrestres, facilitando o escoamento de
produtos e estimulando a produção”. Também destaca a capacidade instalada de energia elétrica, que “expandiu-se a uma taxa
de cerca de 700%, graças à construção de gigantescas usinas
hidroelétricas, como Itaipu e Tucuruí”. Por outro lado, “cuidou-se de melhorar a matriz energética do país, muito calcada no
petróleo, com a utilização de fontes alternativas de energia”.
Destaca também os investimentos nas telecomunicações, por
meio do Plano Nacional de Telecomunicações, bem como o planejamento governamental, por meio dos dois Planos Nacionais
de Desenvolvimento, bem como o combate à inlação (MELLO,
2005, p. 45). Por outro lado, salientando que a solução dos problemas sociais estaria relacionada com os recursos gerados pelo
desempenho econômico, airma que foi o regime governado pelos militares que
incorporou à Previdência Social [...] vinte milhões de
trabalhadores rurais. E mais, promulgou o Estatuto
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
201
da Terra e criou órgãos e instrumentos de ação social
como o FGTS, o PIS/PASEP, o Sistema Nacional de
Habitação e o BNH que, apenas nos cinco primeiros
anos de funcionamento, construiu 750 mil casas populares (MELLO, 2005, p. 45).
Essas descrições, encontradas nos discursos contemporâneos dos militares acerca da ditadura, não trazem grandes novidades em relação à propaganda da própria ditadura a respeito de
suas “conquistas”. Nas palavras do General João Baptista Peixoto, fazendo em 1975 um balanço dos governos “revolucionários”, teria cabido a esses “a gigantesca tarefa de promover as
reformas estruturais indispensáveis para acelerar o desenvolvimento econômico e social do país, em ritmo consentâneo com o
atual progresso do mundo” (PEIXOTO, 1975, p. 172). Em 1978,
airmava-se em outro documento: “o que se conseguiu fazer em
quatorze anos conigura uma obra incontestável, verdadeiramente admirável e empolgante, não só no campo da infraestrutura
nacional, como em vários setores básicos do desenvolvimento
econômico e social do País” (A NAÇÃO, 1978, p. 41).
Se hoje discursos semelhantes ou mesmo iguais são parte
das disputas políticas em torno da história e da memória da
ditadura, décadas atrás a propaganda elaborada pelos governos
repressivos foi parte da necessidade de legitimação do regime.
No plano político, os governantes buscavam “encontrar mecanismos de legitimação que ultrapassassem o argumento, que se
desgastava rapidamente, de que o regime era necessário para
completar o processo de restabelecimento da ordem econômica
e política ameaçada” (EARP, 2007, v. 4, p. 219). Para tanto,
durante a ditadura,
os integrantes do grupo de poder do regime militar se
empenhavam em demonstrar que existiam pontos de
conexidade entre a sua proposta de democracia e as re-
202
Michel Goulart da Silva
alizações econômicas daquele período. O denominado
“milagre econômico” era enfatizado como a ratiicação dos propósitos da ditadura de uma nação em que
prevalecesse a sua suposta democracia com responsabilidade (REZENDE, 2001, p. 115).
O “milagre brasileiro”, assim chamado como analogia a fenômenos semelhantes ocorridos na Alemanha e no Japão depois
da Segunda Guerra Mundial, foi “um período de vários anos
consecutivos em que a economia do país [...] teve um crescimento acelerado, com taxas médias anuais superiores a 10%,
enquanto a inlação apresentava índices relativamente baixos”
(BRUM, 1998, p. 322). Por outro lado, “a intensa divulgação do
ufanismo oicial tinha o propósito de tornar o Brasil mais conhecido no exterior e encorajar os investidores estrangeiros a aplicar
excedentes de capital no país” (BRUM, 1998, p. 324). No caso
do “milagre brasileiro”, a economia “estava sendo movida basicamente com recursos externos – empréstimos, capital de risco
e tecnologia importada” (BRUM, 1998, p. 324).
Hoje, militares que pretende produzir histórias identiicam
no “desenvolvimento econômico sob inspiração militar” o fator
positivo determinante do “sucesso” do regime (RODRIGUES,
2007). Também nesse ponto, a escrita do passado está informada
pela doutrinada elaborada pela ESG, cujo eixo atravessa justamente os conceitos de segurança e desenvolvimento. Embora
possam ser feitas ponderações a respeito do papel exercido pela
doutrina da ESG nas ações do governo, pelo menos os textos
pretensamente historiográicos elaborados pelos militares trazem uma clara inspiração dessa doutrina.
Nesses textos, os militares olham para o passado procurando identiicar algo que se encaixe na deinição de desenvolvimento, ou, mais precisamente, de Desenvolvimento Nacional,
um “processo global do fortalecimento e de aperfeiçoamento
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
203
do Poder Nacional, particularmente de seus fundamentos (Homem, Terra e Instituições), visando à conquista e à manutenção
dos Objetivos Nacionais, e à consecução do Bem Comum”. Esse processo se materializa por meio da Política de Desenvolvimento, entendida como “conjunto de objetivos e decisões governamentais que tem como propósito atender aos anseios de
evolução e orientar e conduzir o processo global que visa à consecução do Bem Comum” (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 2000, p. 178). Trata-se, portanto, da realização de ações em
diferentes âmbitos que visem, entre outras coisas, a realização
de certo progresso material e mesmo espiritual, que responde ao
planejamento e às ações daqueles que governam poder nacional,
que, no caso da doutrina, são as elites civis e militares.
Uma “revolução” vitoriosa?
Essas interpretações produzidas pelos militares a respeito do
golpe e da ditadura podem gerar uma primeira impressão de que
o projeto por eles defendido e implantado teria sido vitorioso e
teria dado as bases para o Brasil de hoje. Os governos “revolucionários” teriam efetivamente conseguido estabilizar social e politicamente o país, derrotando os representantes locais de forças
externas, conquistado o desenvolvimento almejado, superando o
subdesenvolvimento e derrotando os movimentos subversivos.
Tudo isso teria possibilitado, na segunda metade da década de
1970, a chamada “transição democrática” e a entrega do poder a
um governo civil, entregando para os governantes civis um país
desenvolvido e seguro, a partir de 1985. Diante dessa situação favorável que os “governos da revolução” teriam criado, não seria
mais preciso que os militares controlassem as instituições estatais
ou mesmo participassem diretamente da vida política.
204
Michel Goulart da Silva
Mas há pelo menos duas dimensões que escapam às interpretações propostas pelos militares a respeito desse período
histórico. Primeiro, as chamadas “conquistas da revolução”
deram-se em um contexto que não se limitava a um cenário da
luta entre governo e “forças subversivas”, mas no qual se davam
disputas entre classes ou outros grupos sociais, como o demonstram a resistência estudantil e as greves operárias, duramente
reprimidas, no ano de 1968. O crescimento econômico nos governos ditatoriais, comemorado nos discursos dos militares, certamente possibilitou índices notáveis, repetidos ainda hoje, nos
números apresentados pelas estatísticas governamentais. Contudo, esses índices não dão conta de mostrar o aumento da exploração da força de trabalho e a imposição de baixos salários, em
grande medida em função do rígido controle sobre o movimento sindical. Por outro lado, grande parte do “desenvolvimento”
propagandeado pelos militares foi inanciamento por empresas
estrangeiras, ou seja, enquanto criava infraestrutura industrial, o
Brasil assumia compromissos econômicos e políticos com outros países e órgãos internacionais.
Os autores dos discursos analisados neste artigo procuram
demonstrar que a ditadura teria sido um regime de salvação nacional, pondo im à ameaça do “inimigo interno” e reorganizado
a vida nacional, supostamente ameaçada pelas investidas golpistas de parte da esquerda. Contudo, o principal projeto dos
militares, pensado desde a década de 1950, passava por transformar o país em uma “potência de porte médio”. Dessa forma,
as questões de segurança deveriam estar no centro de um projeto
que visava fundamentalmente certa forma de desenvolvimento
econômico, o que exigia a conformação de um governo forte,
como uma ditadura. Portanto, essa ditadura, ainda hoje comemorada pelos militares, possibilitou a consecução de um projeto
político e social dos militares, postando o Brasil em destaque no
Os militares brasileiros e a “grande mentira”
205
cenário econômico mundial e alcançando certa estabilidade por
eles almejada na situação política, mas também aumentando o
endividamento externo do país e deixando profundas marcas na
situação dos trabalhadores, como os baixos salários, a falta de
moradias, o desemprego, entre outras mazelas ainda enfrentadas
pela população do país.
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8
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher
pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro*
[...] O lugar do silêncio carrega a memória de sentido
(LABORIE, 2001, p. 59).
Estavam errados? Ou tinham razão? Quanto a isso, o que
me importa a decisão retardatária de um historiador?
(BLOCH, 2001, p. 126-7).
ecentemente, quando das polêmicas geradas em torno da
Emenda Ibsen Pinheiro, que propõe a distribuição dos royalties do petróleo com base nos fundos de Participação dos Estados
e Municípios, uma declaração em particular do deputado chamou
especial atenção. A respeito da passeata organizada no Rio de Janeiro no dia 17 de março de 2010, contra a referida emenda, o parlamentar declarou: “Nem toda passeata é do bem: o Rio já fez uma
passeata para apoiar o golpe de 64 [...]” (O Globo, 2010, p. 31).
R
Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora
vinculada ao Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC-UFF). Bolsista da Capes.
*
210
Janaina Martins Cordeiro
A sociedade reagiu: artistas se manifestaram, as sessões
destinadas à opinião dos leitores icaram plenas de descontentes.
Os cariocas demonstraram especial sensibilidade à comparação
entre a passeata de 17 de março de 2010 e a Marcha da Família
com Deus pela Liberdade, que no Rio de Janeiro realizou-se no
dia 2 de abril de 1964, apenas dois dias após a intervenção militar que depôs o presidente João Goulart. A manifestação reuniu
cerca de duas vezes mais participantes que a primeira Marcha
realizada em São Paulo, no dia 19 de março: quase 1 milhão
de pessoas, e se tornou conhecida como Marcha da Vitória, já
que, diferentemente das manifestações que ocorreram antes do
31 de março, não possuíam mais como objetivo pedir a intervenção das Forças Armadas contra a suposta iniltração comunista
no país, mas sim comemorar a vitória do golpe, chamado por
seus partidários de Revolução democrática. Após a Marcha da
Guanabara, muitas outras se seguiram por todo o país. Ao longo
de todo o ano de 1964, grandes e pequenas cidades marcharam
em comemoração à intervenção militar (PRESOT, 2004), evidenciando um importante consenso em relação ao golpe civil-militar, o qual mais tarde, após sucessivas reconstruções de
memória, seria silenciado pela sociedade.
De fato, a partir do projeto de reconciliação nacional deinido pela aprovação de uma anistia recíproca e na medida em
que avançava o processo de redemocratização do país nos anos
1980, a sociedade brasileira tendia, aos poucos, a redeinir a sua
relação com a ditadura civil-militar. Assim, se o protagonismo
dos militares foi superestimado desde o início, sobretudo pelas
esquerdas derrotadas em 1964, o processo de anistia consolidou
e expandiu a ideia de uma ditadura militar, no lugar de civil-militar, agora não apenas com o objetivo de compreender a derrota
das esquerdas, mas também, e sobretudo, de reconciliar a nação em torno de um novo consenso, o democrático (cf: AARÃO
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
211
REIS, 2004, 2005). O projeto político revolucionário dos grupos
de esquerda que aderiram ao enfrentamento armado foi redeinido como uma luta de resistência. Palavra que se transformou
no mote a partir do qual seria reconstruída a memória sobre a
ditadura (AARÃO REIS, 2004, 2005; ROLLEMBERG, 2001,
2006). Já o consenso, bastante expressivo, em torno do regime
fora esquecido, ou antes silenciado. Portanto, entre silêncios,
esquecimentos e reapropriações foi construída uma memória
sobre a ditadura, que se impôs fortemente sobre as demais, de
acordo com a qual a grande maioria havia resistido. Não havia
mais colaboradores, entusiastas, partidários, nem vencidos,
nem vencedores. Havia sim uma sociedade que resistiu, desde
sempre a uma ditadura de militares.
É preciso destacar que, embora etimologicamente anistia
seja uma palavra cujo sentido está muito próximo de amnésia,
esquecimento, utilizo esta última, mesmo ligada à anistia com
muitas reservas. Sabemos que a memória é seletiva e estabelece, sempre logicamente, o que deve ser lembrado e o que não
deve ser lembrado. Ou seja, trata-se antes de uma escolha que
propriamente de esquecimento. No caso especíico das políticas
de anistia, de acordo com Henry Rousso (1999, p. 111), elas aparecem “em uma longa tradição republicana que tem sempre por
função reconstituir o tecido social e nacional após um conlito
interno”. Ou seja, as anistias são “escolhas políticas” e, nesse
sentido, não se constituem em esquecimento no sentido comum
do termo. São, antes, discursos e atos políticos que têm por objetivo “a refundação do laço social”.
Considerada a anistia dessa forma, torna-se problemática
a aproximação, recorrente, com o termo amnésia. Trata-se, antes, de uma escolha entre o que deve ser dito e o que deve ser
silenciado. Michael Pollak, reletindo sobre o silêncio ao qual se
recolheram alguns judeus sobreviventes dos campos de concen-
212
Janaina Martins Cordeiro
tração durante a Segunda Guerra, nos oferece elementos importantes para pensarmos o caso do Brasil. Segundo ele: “Seu silêncio sobre o passado está ligado, em primeiro lugar, à necessidade
de encontrar um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de
longe, ao menos sob a forma de consentimento tácito, assistiram
à sua deportação” (POLLACK, 1989).
Também no caso do Brasil, trata-se, antes, de encontrar um
modus vivendi entre as direitas, que não podiam assumir a participação e o consentimento com relação à violência do regime,
e as esquerdas, que não assumiam a revolução, redeinindo-se
– todas elas, inclusive as mais radicais –, como democráticas.
Não se trata, portanto, de esquecimento, mas sim de um grande
silêncio em torno da militância e do comportamento coletivo
dos grupos e segmentos sociais diversos, que apoiaram o regime
instaurado em 1964. Vez ou outra, o silêncio é rompido, sempre
em tom acusatório, para absolver ou para condenar. Os bodes
expiatórios que permitem transferir sempre ao outro as responsabilidades pelos crimes do passado. Nesse sentido, são bastante expressivas a comparação e a frase utilizadas pelo deputado
Ibsen Pinheiro: para desqualiicar a passeata realizada no Rio de
Janeiro contra a sua proposta, o parlamentar a comparou à Marcha
da Vitória. E foi ainda mais categórico: “nem toda passeata é do
bem”. Aqui, um tipo de opinião que representa muito bem a memória vencedora sobre a ditadura: ela foi uma coisa do mal e os
que estiveram a seu favor, como aqueles que marcharam para comemorá-la, tiveram um mau comportamento, por consequência.
Essa recuperação maniqueísta do passado ditatorial não
é rara. O jornalista Ziraldo, por exemplo, no depoimento que
concedeu para o documentário Simonal, ninguém sabe o duro
que dei (2009), declarava sem maiores constrangimentos: “Então havia uma coisa muito dividida, muito dicotômica, digamos
assim. Havia o bem e havia o mal, nítidos”. Não obstante, a de-
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
213
claração de Ziraldo não repercutiu da mesma maneira que a do
deputado Ibsen Pinheiro, já que, neste caso, a deinição de bem
e mal foi mais generalizada, favorecendo a conciliação, possibilitando atribuir sempre ao outro a acusação do mal.
Mas, justamente porque essa visão maniqueísta do passado é cada vez mais compartilhada e, consequentemente, porque
ninguém quer se identiicar com o lado mau, é que a reação ao
comentário do deputado foi imediata e signiicativa. Assim, no
dia 20 de março, O Globo noticiava com grande destaque: “Ironia de Ibsen sobre ato irrita cariocas. Declaração de deputado
sobre marcha em apoio ao golpe causa indignação”. A bailarina
Ana Botafogo declarou que a comparação era uma tentativa do
deputado de esvaziar a manifestação. O cineasta Sílvio Tendler
airmava enérgico que aquela “foi a maior babaquice que ele já
falou na vida [...], porque isso não corresponde à História” (O
Globo, 2010, p. 30). O leitor Jaime Rodrigues Perez se manifestou considerando que “recentes declarações do deputado Ibsen
Pinheiro – de que o Rio já fez passeata a favor do golpe de 64
– demonstram, de forma inequívoca, por sua inexatidão e inaplicabilidade, que esse controvertido político tem profunda raiva
do Estado do Rio de Janeiro” (O Globo, 2010, p. 6).
O bem contra o mal; a lembrança do passado como ironia e
como esvaziamento do presente; a recusa de uma recordação incômoda: babaquice; e por im, a negação: inexatidão, inaplicabilidade, não corresponde à história. O que todas essas opiniões
dizem a respeito do passado e também do presente? Por que há
tanta diiculdade em lidar com o passado ditatorial?
Diferentemente da Marcha de São Paulo, que possuía um
pesado tom de desespero e preocupação, já que a situação ainda não estava deinida, a Marcha do Rio representou a vitória
aliviada de vastos segmentos sociais desejosos da intervenção
militar que se efetivava, ainal, contra Jango, contra suas refor-
214
Janaina Martins Cordeiro
mas, contra a corrupção, contra o comunismo, pela democracia,
embora, de fato, a estivessem golpeando. Reuniu quase 1 milhão
de manifestantes e serviu de modelo e incentivo para que outras
cidades em todo o país também realizassem as suas comemorações, evocando seus valores, tradições, sentimentos, suas culturas políticas, as especiicidades regionais e os anseios nacionais.
Em que sentido, então, o apoio dos cariocas em 1964 à
intervenção militar não corresponde à História? É certo que o
silêncio em torno de determinados comportamentos ajudam a
formar e manter a coesão do tecido social em torno de um novo
consenso e, nesse sentido, a memória das sociedades reconstrói
o passado selecionando, a partir do presente, o que deve e o que
não deve ser lembrado. Mas, “não se pode fazer do direito ao
esquecimento uma virtude cívica” (LABORIE, 2001, p. 51). É
preciso ir além e tentar desfazer a confusão entre memória e história (ROUSSO, 1998), reletindo sobre os motivos deste silêncio em torno do apoio social à ditadura. Ainal, mesmo quando
se reconhece que houve apoio, ele é feito de forma maniqueísta,
delimitando o espaço entre o bem e o mal, a resistência e a colaboração, o eu e o outro.
Estamos, portanto, diante do que Pierre Laborie denominou
de silêncios da memória, ou seja, a “consciência turva” ou “má
consciência”, a incapacidade ou vergonha de assumir coletivamente a responsabilidade pelos crimes do passado (LABORIE,
2001, p. 59). A tendência é, então, silenciar sobre determinados
eventos e se apropriar de outros.
Obviamente, a divisão da sociedade entre bem e mal, superando e muito uma divisão já simpliicadora entre resistentes e
colaboradores, é por si, um bom exemplo de silêncio da memória na medida em que transfere ao outro – e portanto não assume – a responsabilidade pelos acontecimentos passados. Mas é
certo que este não é, de forma alguma, o único caso a partir do
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
215
qual podemos observar como se estruturam os silêncios da memória em torno das Marchas e da ditadura de maneira geral. O
Globo, que anunciou com estardalhaço a indignação que provocou nos cariocas as declarações do deputado Ibsen Pinheiro, não
mencionava em momento algum, por exemplo, que em 1964 a
Marcha da Vitória foi descrita pelo mesmo jornal da seguinte
maneira: “Não existe em memória carioca lembrança de uma
concentração popular das dimensões da marcha cívica de ontem.
Nenhum acontecimento, nenhum fato, nenhuma emoção coletiva anterior provocou manifestação como essa marcha” (Fundo
Camde, AN, O Globo, 3/4/1964).
As sociedades e as instituições mudam, pode-se argumentar,
é certo. E há que se admitir, a sociedade e as instituições brasileiras se metamorfosearam, ainda que lentamente, ainda que não
completamente. Não obstante, silenciar sobre o passado, além
de minimizar o valor da transformação, signiica deixar de notar
as continuidades que são tantas entre as luzes da democracia
e as trevas da ditadura (AARÃO REIS, 2000). Continuidades,
por exemplo, como a que podemos notar em outra carta enviada
também a O Globo. O leitor Jorge Luiz M. Borba questionava
categórico: “Gostaria de saber se somente o Rio fez passeatas
em apoio a 64, esquecendo-se que a ‘Marcha da Família’ foi
um movimento que se espalhou pelo país”. Em seguida, como
se traindo suas próprias palavras, mas na verdade numa argumentação muito lógica, concluía: “Ou será que nosso deputado é um saudosista do caos que reinava no governo Goulart?”
(O Globo, 2010, p. 6).
Esse tipo de argumentação, que rejeita o reformismo do
período entre 1961-64, associando-o ao caos, é uma memória
muito comum entre os grupos sociais que apoiaram a ditadura
(CORDEIRO, 2009, p. 146). Isso porque permite a estes grupos,
ao mesmo tempo, reairmar sua militância contra Jango e contra
216
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro
o caos de maneira positiva, sem necessariamente se associar ao
que veio depois de 1964, ou ao menos, sem se associar aos períodos ou atos de maior violência do regime. Em suma, embora
a ditadura seja hoje fortemente – embora não completamente
– rejeitada, isso não signiica que o reformismo trabalhista, a
participação social tão característica da sociedade brasileira entre 1961 e 1964, sejam bem aceitos pela memória coletiva. Esta
guarda ainda uma imagem conturbada sobre João Goulart, por
exemplo. À esquerda ou à direita, Jango ainda hoje é lembrado
por sua fraqueza, sua “incapacidade de avaliação”, seu despreparo (FERREIRA, 2006, p. 23).
Representa também um tipo de sentimento ainda muito partilhado entre vastos segmentos sociais, para os quais a ditadura
teve aspectos positivos: o Milagre, mais empregos, segurança
pública e mesmo mais autoridade, já que o autoritarismo não é,
de forma alguma, estranho à cultura política de vastos segmentos sociais. Enim, um tipo de sentimento saudosista, de acordo
com o qual o tempo passado é sempre melhor que o presente.
Não importando o regime político, ditadura ou democracia.
São sobre essas continuidades, esses sentimentos que ainda
persistem na sociedade, que o silêncio a respeito do consenso em
torno da ditadura impede que se relita, que se compreenda. Assim, na ânsia de enterrar o passado ditatorial, com o qual ninguém
quer se identiicar, optou-se por silenciar, um silêncio conciliador, que muitas vezes beira a negação do passado. Mas é preciso reconhecer, para melhor compreender o que se passou, que
as Marchas da Família com Deus pela Liberdade fazem parte da
nossa história sim, e que foi, ao contrário do que indicam os silêncios e as negações, um movimento profundamente enraizado na
sociedade. É preciso que se interrogue sobre aquelas multidões.
Quem eram? Quais suas demandas? O que comemoravam? O que
izeram após aquelas quatro horas que durou a Marcha da Vitória?
217
Assim, se quisermos compreender melhor a nossa história,
é preciso ir além dos ditos e, sobretudo, dos não ditos da memória. É preciso buscar os indivíduos, suas expectativas, os valores
que portavam, os motivos que os levaram a marchar, sua cultura política fortemente arraigada na sociedade brasileira. Nesse
sentido, acompanhar a trajetória das mulheres da Campanha da
Mulher pela Democracia (Camde), uma das instituições que organizaram a Marcha da Família no então Estado da Guanabara,
pode contribuir para compreendermos como se deu a formação
do consenso social em torno da ditadura em seus primeiros anos.
Mas, para isso, é preciso deixar de lado essa relação “afetiva,
sensível, dolorosa mesmo com o passado” (ROUSSO, 1998, p.
12), tão característica de nossa época, para podermos, buscar as
bases sociais e históricas da ditadura.
As mulheres da Camde se organizaram em 1962, em uma
associação que se caracterizava pela formulação de um discurso eminentemente anticomunista, e que se autodeinia como
“apartidária” e comprometida com a “defesa da democracia”,
sustentada primordialmente pela “luta contra o comunismo e
qualquer outro regime de força” (Fundo Camde, AN, Diário de
Notícias, 22/4/1964).
A organização da Camde não foi um caso isolado. No início
da década de 1960, por todo o país surgiam entidades cívicas femininas que, se apresentando publicamente como mães, esposas
e donas de casa, investiam em forte retórica conservadora e anticomunista com o objetivo de “alertar a opinião pública para a
pressão que as famílias brasileiras estavam sofrendo e ao mesmo
tempo revigorar princípios e ideais sempre defendidos no Brasil
cristão e democrático”.1
1
Discurso proferido por Maria Paula da Silva Caetano, por ocasião da comemoração do
30o aniversário da União Cívica Feminina de São Paulo. Documento mimeografado,
sem data, do arquivo particular da oradora, p. 2-3.
218
Assim, o primeiro grupo a se articular foi a União Cívica
Feminina de São Paulo (UCF/SP) (Cf: SESTINI, 2008), em fevereiro de 1962.2 Em inícios de 1964, surgiram a Liga da Mulher Democrática (Limde), em Belo Horizonte, e a Cruzada Democrática Feminina (CDF), no Recife e, nas vésperas do golpe,
em 30 de março, foi fundada em Porto Alegre, sob orientação
da UCF, a Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG) (Cf.
SIMÕES, 1985, p. 28-35). A Camde foi o segundo grupo a se
organizar, logo após a UCF, em junho de 1962.
Criada, pois, no contexto de radicalização das posições políticas durante a conjuntura de 1961-1964, a Camde militou por
cerca de uma década a partir de duas linhas de ação: “uma de
esclarecimento do meio feminino” através da organização de cursos e palestras, e outra de “movimento da opinião pública”. Essas
ações visavam mobilizar a população para pressionar o governo,
organizando protestos, passeatas, enviando cartas e telegramas
ao Congresso (Histórico. Fundo Camde, AN, 1967, p. 3).
Ao longo dos 10 anos nos quais a Camde exerceu suas atividades públicas, podemos distinguir contextos diferentes que
deiniram de modo direto a forma de organização e execução das
ações da associação: o primeiro referente à conjuntura anterior
ao golpe, compreendendo o intervalo de tempo existente entre o
momento da fundação da entidade, em junho de 1962, e o início
do mês de março de 1964. O segundo momento refere-se ao contexto relativo à intervenção militar propriamente dita, na qual
a ação dos grupos femininos e, neste caso especíico, da Camde, teve papel central nas manifestações de apoio à intervenção
militar que então se efetivava, o que podemos perceber através
das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, organizadas
pelos grupos femininos em todo o país. Por im, a estruturação
da militância no contexto dos governos presididos por militares
2
Idem, p. 3.
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro
219
e do gradual fechamento do regime até o encerramento das atividades da associação, em 1974.
Este artigo, de forma geral, tratará exatamente disso: das
formas de organização política, bem como das ações desenvolvidas pelas mulheres agrupadas na Camde nos diferentes
momentos de sua trajetória, enfatizando alguns dos principais
elementos que compunham seu discurso. Trata-se de conhecer
melhor a história da entidade e seus atores políticos, para assim,
compreender o sentido da oposição ao governo reformista de
Jango e, em seguida, a adesão dessas mulheres, primeiro ao golpe e depois ao regime civil-militar. Sob este aspecto, recuperar
a trajetória de grupos como a Camde torna-se fundamental para
melhor compreender a ditadura civil-militar como um processo
de construção social, tornando mais complexa a lógica da manipulação e coerção, chamando a atenção também para o universo
simbólico que fazia com que determinados grupos se identiicassem com certos valores e militassem em sua defesa.3
Anticomunismo e antirreformismo ou cultura política
udenista (1962-1964)
No dia 12 de junho de 1962, Amélia Molina Bastos, professora primária aposentada, reuniu em sua casa no bairro de
Ipanema “alguns vizinhos”. Ao todo 22 famílias e, segundo a
própria dona Amélia, a reunião era “parte de um trabalho meu
para a paróquia de Nossa Senhora da Paz; visitava os vizinhos,
tentava descobrir seus problemas e os ajudava no que podia.
3
Estas questões foram tratadas mais detalhadamente em minha dissertação de
mestrado, defendida no PPGH-UFF, em 2008, e publicada pela Editora FGV em
2009. Cf: Cordeiro, 2009.
220
Janaina Martins Cordeiro
Era um meio de levá-los a frequentar a missa e aproximá-los
da Igreja” (POLLANAH, 1967, p. 160).
A reunião do dia 12, no entanto, foi um pouco diferente
dos habituais encontros religiosos promovidos por D. Amélia.
Neste dia, além das famílias vizinhas, compareceram o general
Antonio de Mendonça Molina, irmão da anitriã, e o engenheiro
e economista Glycon de Paiva, importante dirigente do Instituto
de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipês) (Histórico. Fundo Camde,
AN, 1967, p. 2 e Lista de sócios-fundadores, Fundo Ipês, AN,
s/d, p. 20). Também compareceu o Frei Leovigildo Balestieri,
pároco de Ipanema, que explicava às mulheres reunidas naquele
dia que “a coisa está muito preta” (POLLANAH, 1967, p. 160).
E declarava “convicto”: “Esta é a terrível situação e os homens
não podem fazer nada, porque estão fracassados. Mas a mulher
pode, é uma força nova, de grande inluência que, se quizer, [sic]
ainda salvará o país” (Histórico. Fundo Camde, AN, 1967, p. 2).
A terrível situação à qual se referia o Frei Leovigildo não
era estranha ao imaginário anticomunista tão característico da
Guerra Fria: falava-se do perigo comunista, da enorme iniltração que o Governo vinha sofrendo desde a renúncia de Jânio
Quadros (Cf: Histórico. Camde, 1967, p. 2) e da ameaça que
isso representava para a Pátria, para as famílias, para a Igreja.
Três elementos fundamentais conformadores da cultura política
das mulheres conservadoras de classe média daquele período.
Foi então que dona Amélia, “profundamente impressionada pelas declarações dos três senhores, teve uma visão clara do
perigo que ameaçava nossa pátria” (Histórico. Camde, 1967,
p. 3): “Eu, como sou muito católica, pensei logo, comunismo-ateísmo. Então eu tenho de defender a Igreja” (POLLANAH,
1967, p. 161). No dia seguinte a essa reunião, um grupo de
cerca de 30 senhoras lideradas por Amélia Bastos dirigiu-se à
sede do jornal O Globo para entregar um manifesto intitulado
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
221
Protesto Feminino contra a indicação do então ministro das Relações Exteriores, San Tiago Dantas, para o cargo de primeiro-ministro do governo Goulart.
San Tiago Dantas era, à época, um político de peso do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e da centro-esquerda nacional.
Ângela Gomes explica que, apesar do tom moderado de suas
posições políticas, era visto com desconiança, por diferentes
motivos, tanto por parte da esquerda como pelas direitas (1994,
p. 213-4). Meses antes de sua indicação para Primeiro-Ministro,
em novembro de 1961, o Brasil retomava relações diplomáticas
com a URSS, rompidas desde 1947 (Jornal do Brasil, 1961).
Para as mulheres que então se reuniam na Camde, cuja cultura
política era fortemente anticomunista, era inaceitável que o Ministro responsável pelo reatamento das relações com a URSS
ocupasse o cargo mais importante do Governo. Acusavam San
Tiago Dantas de ser “fator de escravidão nacional” e conclamavam as outras associações femininas espalhadas pelo país
a se juntarem a elas em seu protesto, constituindo “um movimento preservador de um clima de liberdade pessoal, dentro
do qual sempre temos resolvido nossos problemas nacionais”
(Apud SIMÕES, 1985, p. 69).
Não obstante esta primeira manifestação pública da Camde, seu lançamento oicial somente ocorreria um mês depois da
reunião na casa de Amélia Bastos, em 11 de julho de 1962 no
auditório do jornal O Globo, no Rio de Janeiro, que lhes foi oferecido pelo próprio diretor do periódico, Rogério Marinho (Histórico. Camde, 1967, p. 2). A reunião foi assunto de destaque
no jornal, o qual noticiava como objetivo das mulheres “debater
a situação nacional e condenar com energia a política exterior
imposta ao Itamaraty, o reatamento de relações com a União Soviética e a iniltração comunista nos meios operários, políticos e
estudantis” (O Globo, 1962, p. 2).
222
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro
Interessante chamar a atenção para o destaque que a Camde
recebeu nas páginas de O Globo, não apenas no momento de
sua fundação, mas durante todo o período de intensa atividade
da associação, ou seja, pelo menos até 1969. De modo geral, um
bom contato com a imprensa possuía importância fundamental
para o sucesso das manifestações da Camde e dos grupos femininos de maneira geral. E não era difícil para essas mulheres
consegui-lo, já que muitas vezes tinham ligações pessoais com
os donos dos jornais (CORDEIRO, 2009, p. 49). Assim, alguns
órgãos da imprensa funcionaram como verdadeiros porta-vozes
dessas entidades.
A estreiteza das relações entre os grupos femininos e os jornais da grande imprensa ajuda-nos a situar socialmente os grupos femininos, ou pelo menos as suas lideranças: eram mulheres que possuíam ligações pessoais com os diretores de jornais,
compartilhavam não apenas o mesmo meio social e material,
como também o mesmo universo simbólico – as posições políticas e sociais fortemente conservadoras e elitistas e, sobretudo, o
forte sentimento anticomunista. Havia nessa relação “pessoal”,
portanto, uma identidade de cultura política.
Todavia, ainda que possamos identiicar as lideranças dos
grupos femininos e, particularmente, as líderes da Camde como
um grupo muito bem delimitado, pertencentes às elites da Zona
Sul carioca, não se pode desconsiderar o poder de abrangência
do discurso dessas mulheres. Colocando-se como mães e falando em nome da mulher brasileira, seus clamores mobilizavam
sentimentos e apelavam a tradições que não se restringiam às
elites brasileiras. O medo de que o comunismo destruísse a família, a pátria e a Igreja era real e partilhado pelos mais diversos
setores da população. Assim, após a fundação do núcleo central
da Camde, em Ipanema, foram aparecendo núcleos da entidade
em diferentes bairros, extrapolando, muitas vezes, os limites da
223
rica Zona Sul carioca: Santo Cristo, Botafogo, Tijuca, Méier,
Santana, Ilha do Governador e Rocinha4 (SIMÕES, 1985, p. 32).
Além disso, a Camde representava muito bem o eleitorado
udenista. O udenismo, reletindo não apenas plataformas eleitorais,
mas sim um movimento social anticomunista, moralista e antitrabalhista, estava muito próximo das demandas da Camde e possuía
também grande identiicação com extensos segmentos sociais.
A atuação da Camde entre 1962 e 1964 pode ser então melhor compreendida se a analisarmos a partir do que podemos denominar de uma espécie de cultura política udenista. Isso porque
as proximidades são enormes entre os valores defendidos, que
eram a própria razão de ser da UDN, desde a sua fundação em
1945, e os motivos que levaram as mães cariocas a constituírem
uma associação que militava contra o comunismo e em defesa
das “instituições democráticas”. Difícil não identiicar elementos
constituintes da cultura política udenista, como, por exemplo, o
elitismo de suas posturas aliado a um forte moralismo e a um
sentimento anticomunista intenso (BENEVIDES, 1981) na cultura política que mobilizava as mulheres da Camde. Podemos
pensar, pois, que diicilmente as militantes da Camde não seriam
eleitoras da UDN. Diicilmente um partido atendesse melhor às
demandas daquelas mulheres que a UDN, embora a entidade insistisse em airmar o caráter “apartidário” de suas posições.
Sobretudo, se considerarmos que estamos tratando de uma
associação fundada na Guanabara, estado governado então pelo
polêmico e popular Carlos Lacerda. Em seu estudo sobre a UDN
da Guanabara, Izabel Picaluga (1980) discute a importância do
voto feminino para a UDN lacerdista, admite o peso dos gru4
Algumas cidades espalhadas pelo país também possuíam núcleos da Camde:
no estado do Rio de Janeiro, cidades como Niterói (à época capital do estado) e
Petrópolis; Florianópolis, em Santa Catarina; e Juiz de Fora, Araxá, Uberaba e
Itajubá, em Minas Gerais
224
Janaina Martins Cordeiro
pos médios, nos quais “é reconhecida a preferência feminina por
Lacerda”. E explica que, na Guanabara, o número de eleitores
superava o de eleitoras em quase todas as zonas eleitorais, com
exceção da 5a zona, onde a vantagem da UDN sobre os demais
partidos era histórica (PICALUGA, 1980, p. 151). Não por acaso, a 5a zona eleitoral abrangia os bairros de Copacabana e Leme, região muito próxima ao lugar onde nasceu a Camde e residiam muitas de suas militantes. A já referida matéria de O Globo
sobre a reunião de fundação da Camde, em 1962, dava conta de
que “toda vez que era mencionado o nome do governador Carlos
Lacerda, [as mulheres da] plateia o aplaudiam demoradamente”
(O Globo, 1962, p. 2).
Em suma, na Guanabara o lacerdismo possuía enorme força
e foi capaz, por muito tempo, sobretudo antes do golpe, de aglutinar amplos segmentos sociais em torno das ideias defendidas
pelo governador. Por hora, cabe destacar que, mesmo se autodeinindo como apartidária, a identiicação com a cultura política
udenista, mais que com a UDN partido (embora houvesse uma
identiicação com este também), foi a característica fundamental
da militância da Camde entre 1962 e 1964, como icaria evidente nas manifestações promovidas por ocasião das eleições
parlamentares de 1962.
Em outubro deste ano houve eleições para a Câmara Federal, parte do Senado e para o governo de alguns estados da
Federação. A Camde não icou alheia a esse cenário, e empreendeu importante campanha a favor de quem elas chamavam de
“candidatos democratas”. Aqui, além de recorrerem à imagem
da nação como uma grande família, tornava-se visível a força do
argumento anticomunista, quando procuravam opor diretamente
democracia e comunismo.
À medida que o pleito se aproximava, suas ações também
se intensiicavam. No dia 5 de outubro, antevéspera das eleições,
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
225
a Camde divulgava um manifesto no qual conclamava as mulheres cariocas a comparecerem às urnas para votar nos candidatos
que assegurassem ao Rio de Janeiro e ao Brasil “dias de paz” (O
Globo, 1962, p. 1).
Nesse sentido, as mulheres da Camde desencadearam um
tipo de ação eleitoral na qual elas dividiam os valores políticos,
opondo diretamente democracia e liberdade de um lado, e repressão e comunismo – de outro. Ao mesmo tempo, buscavam
identiicar os bons candidatos, ligando-os ao regime democrático e, em consequência, os maus candidatos eram associados ao
comunismo. Argumentação, aliás, muito ao gosto da UDN.
A conjuntura eleitoral de 1962 foi marcada também pelas
discussões em torno da antecipação do plebiscito sobre o retorno
ou não ao regime presidencialista. Nesta ocasião, quatro militantes da Camde, juntamente com outras duas militantes da UCF,
foram até Brasília, levando cerca de 30 mil cartas ao Congresso,
nas quais pediam aos deputados que “não capitulassem” diante
do pedido de antecipação do plebiscito. Na capital, foram recebidas por parlamentares da UDN e do PSD.
As cartas, assim como a manifestação em si, pretendiam-se
apartidárias, porém, na deinição do deputado Mendes Gonçalves, presidente em exercício da Ação Democrática Parlamentar
(ADP), eram “ideológicas”, visto que “a mulher brasileira está
preocupada com o avanço das esquerdas no país, que representa
sério perigo para os lares” (O Globo, agosto, 1962). Portanto,
sendo “ideológica” e não partidária, muito embora encontrasse
franco apoio dos deputados da ADP – frente parlamentar que
reunia políticos da UDN e do PSD – a manifestação das mulheres buscava apelar, primeiramente, à coragem e ao patriotismo dos políticos. E terminava justiicando que seu pedido
se fazia em nome da família brasileira, de quem elas, como
mães, são guardiãs. Vale lembrar que o plebiscito não foi an-
226
Janaina Martins Cordeiro
tecipado para outubro de 1962, como a princípio pretendia
Goulart, mas sim para janeiro de 1963.
Este episódio é muito representativo do sentido das ações
da Camde entre 1962 e 1964, qual seja, a mobilização da opinião
pública para a causa anticomunista e, ainda que não explicitamente, contra o governo Goulart. De acordo com Heloísa Starling, os grupos femininos tentaram evitar o ataque direto ao presidente, procurando, talvez, preservar, sob o aspecto ideológico,
a concepção de autoridade, do poder máximo da nação. Não
obstante, esses mesmos grupos femininos apresentavam-se em
permanente vigilância contra aqueles atos do governo nos quais
poderia ser identiicada ação comunista (1986, p. 176-177).
Independentemente de o governo atender ou não a essas
reivindicações, é importante notar como as direitas brasileiras,
nos anos que precederam ao golpe civil-militar, estavam organizadas em torno de determinadas demandas e eram capazes de
realizar ações importantes e grandiosas em benefício dessas reivindicações. Assim, se entre 1962 e o início de 1964, a Camde
e os demais grupos femininos procuraram evitar o ataque direto
a João Goulart, em 1964, sobretudo nos dias que antecederam o
golpe, suas ações tornaram-se mais combativas e declaradamente contra a administração janguista.
A radicalização das posições e a formação do consenso em
torno dos militares
A partir de 1963, com a vitória no plebiscito e o retorno ao
presidencialismo, as discussões em torno da viabilidade das Reformas de Base ganharam maior destaque. Esse período, que vai
do início de 1963 até março de 1964, foi marcado por um inten-
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
227
so processo de radicalização das posições, à esquerda e à direita.
No início de 1964, a situação chegou ao limite quando o
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), e as outras associações de esquerda que compunham a Frente de Mobilização Popular (FMP), convocaram para o dia 13 de março, na Central do
Brasil, o primeiro daquilo que pretendia ser uma série de comícios pelo país a favor da realização das reformas. João Goulart
acabou aderindo à manifestação, o que, de modo geral, foi bem
recebido pelas esquerdas, que interpretaram a participação do
Presidente como uma opção pelo im da política de conciliação
e pela realização das reformas, “na lei ou na marra”.
Por outro lado, os setores das direitas organizadas receberam o Comício da Central com apreensão, entendendo que, a
partir de então, o presidente havia assumido uma aliança com
as esquerdas e não mais hesitaria em romper com a legalidade
constitucional para levar adiante o programa reformista. No caso
dos grupos femininos, um trecho em particular do discurso de
Jango os deixou especialmente alarmados. Falava o presidente
em “exploração dos sentimentos cristãos”, “indústria do anticomunismo” e por im, dizia que “os rosários não podiam ser
levantados contra a vontade do povo” (Discurso do presidente
João Goulart no Comício da Central em 13 de março de 1964.
In: FICO, 2004, p. 284).
A suposta “ofensa” de Goulart ao terço motivou os grupos
femininos, primeiramente em São Paulo, mas depois em todo
o país, a se articularem em um “movimento de desagravo ao
rosário”. Assim, no dia 19 de março, convocadas pela UCF e
por uma serie de entidades cívicas, cerca de 500 mil pessoas
saíram às ruas de São Paulo. Nascia a Marcha da Família com
Deus pela Liberdade, que entraria para a história como uma das
maiores, senão a maior, manifestação representando “um pedido
da sociedade civil às Forças Armadas para que realizassem uma
228
Janaina Martins Cordeiro
intervenção ‘moralizadora’ das instituições, afastando do país o
perigo comunista” (PRESOT, 2004, p. 15).
Poucos dias após a marcha paulista, a Camde começava a
preparar a marcha carioca. Marcada para o dia 2 de abril, a ideia
era, a princípio, “dar continuidade ao movimento em defesa da
Constituição e da democracia iniciado em São Paulo” (Fundo
Camde, AN, O Globo, 24/3/1964). No entanto, a marcha da
Guanabara marcaria uma diferença com relação à primeira manifestação e com as que se seguiram pelo interior do país depois
do dia 19: com o desenrolar dos acontecimentos, a antecipação
das tropas de Mourão Filho e a deposição de Goulart no dia 1o de
abril, a marcha do dia 2 teria, então, um novo sentido. Tratava-se
não mais de defender as instituições, mas de comemorar a intervenção militar, “salvadora” da pátria, da família e da religião.
Era a Marcha da Vitória, a maior de todas elas, 1 milhão de pessoas aliviadas, comemorando a “vitória da Cruz e do Rosário”
contra “a Foice e o Martelo” (O Globo, junho, 1964).
O discurso de Amélia Bastos durante a Marcha representa
muito bem o tipo de sentimento partilhado por aquelas pessoas
que participaram da manifestação. Falando em nome da “mulher
brasileira” a diretora da Camde airmava:
Hoje a palavra da mulher brasileira não pode ser a
mesma de ontem, quando era súplica, advertência e
apelo. Súplica a Deus para que [...] sobre nós estendesse a graça da resistência ao egoísmo, ao desânimo e à
desesperança. [...] Advertência aos enganados para não
mais se deixarem enganar; aos cegos para que vissem
a tempestade ensombrando os horizontes; aos surdos
para que ouvissem o tropel da horda que se avizinhava
da cidadela onde guardamos as nossas tradições e os
puros sentimentos de cordialidade, tolerância e justiça,
que singularizam essa grande e soberana nação. [...]
Apelo ao sentimento de brasilidade autêntica e não ao
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
229
nacionalismo sovietizado, para acordar diante do perigo que nos deformaria face ao mundo ocidental, arrastando-nos à barbárie do mesmo cativeiro onde agoniza
o povo cubano. [...] A súplica, foi ouvida por Deus; a
advertência, pelos homens e mulheres desta pátria livre
e soberana; o apelo, atendido pela maioria dos cidadãos
responsáveis e, acima de tudo e de todos, pelas classes
armadas. Honra e glória aos nossos soldados [...] Esta
é, pois, a hora da oração a Deus por haver inspirado as
forças da terra, mar e ar, guardiãs do regime, da ordem
e da paz nacional, ao cumprimento dos deveres que a
Constituição lhes assinala (MATIAS, s.d.).
Para além das diferenças entre as Marchas de antes e depois
do dia 31, Amélia Bastos explicava a mudança de sentimentos e
o conforto que a intervenção militar trouxe para os vastos segmentos sociais que marcharam no dia 2 de abril. Os vivas dados
às Forças Armadas evidenciavam já o consenso que se efetivava
em torno da formação de um “governo revolucionário”. Ali na
manifestação, referências, símbolos, personagens diversos, mas
que evocavam uma mesma cultura política: o ex-presidente Marechal Eurico Gaspar Dutra marchava cercado pelas mulheres
da Camde; o general Mourão Filho saudava “o povo que nós
libertamos”; a multidão sustentava cartazes com dizeres anticomunistas: “comunismo não; democracia sim”, “verde-amarelo
sem foice nem martelo”, “com Deus pela liberdade”.
E ainda enquanto Amélia Bastos discursava, um helicóptero da FAB apareceu e começou a baixar. A presidente da Camde
parou momentaneamente o discurso diante dos gritos dos manifestantes de “Lá vem Lacerda!”. A multidão, então, “prorrompeu
em aplausos e acenou lenços brancos para o helicóptero”, mas
não se tratava de Carlos Lacerda, (Fundo Camde, AN, O Globo, 3/4/1964) que permaneceu no Palácio Guanabara, para onde
cerca de 5 mil pessoas se dirigiram ao término da marcha a im
230
Janaina Martins Cordeiro
de lhe prestar homenagens. Lacerda, após ser longamente aplaudido, lamentou “ter se privado de desilar ao lado do povo pelas
indômitas ruas da cidade, comemorando a grandiosa vitória da
democracia” e continuou: “os brasileiros de todos os recantos
não festejavam hoje a festa da vingança, mas sim, a festa da justiça, da reprovação dos que fazem do ódio sua mensagem e o seu
programa” (Fundo Camde, AN, Diário de Notícias, 3/4/1964).
No momento da realização da marcha, Lacerda aparecia, ao
menos na Guanabara, como líder civil incontestável do movimento que derrubara Jango, e candidato natural às eleições presidenciais de 1965. Aqui, a cultura política udenista. que marcou
a militância da Camde em seus primeiros momentos. aparecia
vencedora e fortalecida na igura de Lacerda. Muito embora a
rápida adesão da Camde, no imediato pós-golpe, à indicação do
marechal Castello Branco à presidência da República, já indicasse os dois extremos entre os quais as mulheres oscilariam
entre 1964 e as eleições de outubro de 1965: entre o estilo personalista de Carlos Lacerda e a “opção segura” pela continuação
e aprofundamento da ação revolucionária com Castello Branco.
Não sem transtornos, a Camde optaria pela segunda alternativa.
Sem que isso signiicasse, no entanto, uma ruptura com a cultura
política udenista, mas sim com o lacerdismo.
Portanto, evidenciando já a adesão a Castello Branco, que
mais tarde resultaria no rompimento com Lacerda, a Camde começou imediatamente após a Marcha a trabalhar pela indicação
do então general Castello Branco à Presidência da República.
Tratava-se, agora, de legitimar a “Revolução”, transformando
em “chefe da nação” o chefe militar do movimento.
A partir do golpe, as mulheres da Camde se organizaram
em dois tipos de ação distintos: primeiramente, colaborar para a
institucionalização do regime, levando seu apoio a determinadas
medidas do governo que possuíam esta inalidade. O outro tipo
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
231
de atuação é, na verdade, um desdobramento dessa primeira e,
basicamente, consistia em se colocar em posição de vigilância
pela continuidade da ação revolucionária. Assim, após o golpe
a Camde transferiu, ao menos retoricamente, para as Forças Armadas o papel de lutar contra a iniltração comunista no país.
Sua função seria, a partir de então, a de “colaboradoras”, para
que os rumos da Revolução não fossem desvirtuados. Empenharam-se, portanto, em campanhas pelo controle dos preços, em
cursos de Educação para a Cidadania, na organização de clubes
para a educação de jovens, enim, em todo tipo de ação que elas
julgavam benéicas no sentido de manter afastado o perigo comunista. Todavia, no momento imediatamente posterior ao golpe, fazia-se necessária uma atuação mais “eicaz” no sentido de
institucionalizar o regime para que o Estado fosse reorganizado
em bases fortes. Empenharam-se, portanto, na batalha pela indicação de Castello Branco à Presidência.
No dia 5 de abril, a Camde organizou uma manifestação em
frente à casa do general, em Ipanema, reunindo 5 mil pessoas. A
ideia era prestar uma homenagem ao líder militar do movimento
de 31 de março e, ao mesmo tempo, exigir sua indicação à presidência, além de pedir que algumas medidas fossem tomadas
a favor da “Revolução”. Rapidamente, a homenagem transformou-se em comício: falaram um operário naval, um almirante,
um advogado, um radialista e a então secretária de Serviços Sociais da Guanabara, Sandra Cavalcanti. Falou também Eudoxia
Ribeiro Dantas, em nome da Camde, representando a “mulher
brasileira”. Além de agradecer ao Exército e às Forças Armadas
pela ação que livrou o país da “traição” comunista e renovou as
“esperanças na volta da legalidade e da democracia”, a carta da
Camde solicitava ao Congresso que “nos dê um presidente que
seja forte e incorrupto para nos livrar deinitivamente dos comunistas e da sua ideologia que corrói a nação”; para legitimar esse
232
Janaina Martins Cordeiro
pedido, valiam-se da sua “singela, mas incomparável autoridade
de mães” (Fundo Camde, AN, mimeo).5
A luta pela indicação de Castello Branco signiicava a consolidação da revolução e somava-se a ela a batalha pela cassação dos mandatos dos “deputados comunistas”. A Camde falava,
então, em redemocratização do país. Mas, para essas mulheres,
este processo estava intimamente vinculado à limpeza dos vestígios “comuno-carreiristas” existentes no país, que deveria ser
feita a partir da reconstrução do governo em bases fortes e da
punição intransigente de comunistas ou simpatizantes. Nesse
sentido, para elas, a manutenção da democracia relacionava-se
intimamente ao expurgo do comunismo, já que a opção política
por esse regime seria necessariamente a negação da democracia.
Assim, sentiam-se à vontade para pedir a punição dos possíveis
opositores do novo regime e, sobretudo no momento de institucionalização deste, no qual a ação revolucionária ainda se fazia
notar, podiam pedir a indicação de uma liderança enérgica à presidência sem se preocupar com processos eleitorais.
Aliás, de acordo com a deinição de democracia da Camde,
os processos eleitorais nunca foram uma preocupação central.
Tanto que, em julho de 1964, quando foi prorrogado o mandato
de Castello Branco até 1967, cancelando-se, portanto, as eleições presidenciais previstas para 1965, a associação mais uma
vez se colocaria ao lado do marechal-presidente. Dias antes da
prorrogação do mandato, a Camde divulgava um manifesto no
qual airmava “a sua coniança no governo do marechal Humberto de Alencar Castello Branco” (Fundo Camde, AN, Diário
5 “Mensagem pronunciada por Eudóxia Ribeiro Dantas em frente à residência do
então general Humberto Castello Branco no dia 5 de abril de 1964, perante multidão
calculada de 8 a 10 mil pessoas”. Interessante observar a divergência do cálculo das
pessoas que compareceram à manifestação. Enquanto a diretoria da Camde estimava
em torno de 8 a 10 mil, a Tribuna da Imprensa divulgava que havia comparecido
apenas a metade, ou seja, em torno de 5 mil manifestantes.
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
233
de Notícias, 11/7/1964), e pedia à nação sua “cota de sacrifício”
pelo bem do país. Ou seja, após o golpe, a preocupação central
da Camde passou a se concentrar na necessidade de preservar
e consolidar o regime, preferindo os militares no governo aos
políticos tradicionais, mesmo os de direita. Nada mais coerente,
pois a Camde, dizendo-se apolítica e apartidária, preferia os
chefes militares, também não vinculados a partidos. A desconiança contra a política e contra os políticos, contra os partidos;
a preferência pela decisão política considerada como, antes de
tudo, técnica: aqui está uma referência política interessante, que
distingue a Camde da UDN e dos demais partidos de direita.
Assim, o período que se segue ao golpe pode ser analisado
como um momento de reorganização do consenso. Mas, embora haja diferenças entre os modos de pensar e agir da Camde e da UDN como partido político, a cultura política udenista, fortemente anticomunista, autoritária, moralista e golpista
continuava sendo um importante ponto de referência entre os
setores conservadores da sociedade brasileira. Mesmo quando, a
partir da prorrogação do mandato de Castello Branco, em julho
de 1964, ou do Ato Institucional nº2, auge desse processo de reorganização do consenso, a inluência udenista continua sendo
forte. O ponto forte da reorganização se deu, na verdade, no que
tangia ao lacerdismo.
As eleições estaduais de 1965, na Guanabara, são um momento importante que precisa ser analisado com cuidado. É preciso compreender o cenário político-eleitoral da Guanabara e,
sobretudo, é imprescindível que tentemos entender a dinâmica
da adesão da Camde ao lacerdismo para entendermos a posição
da entidade diante dos resultados das eleições e, principalmente,
diante do AI-2.
Como já mencionamos, o consenso em torno do lacerdismo, sobretudo à época do surgimento da Camde, em 1962, é vi-
234
Janaina Martins Cordeiro
sível. Os aplausos a Lacerda no auditório de O Globo na reunião
de fundação do grupo, bem como os vivas dados ao governador
quando da realização da Marcha da Vitória, são representativos
disso. Não obstante, logo após a “Revolução” a Camde teve que
fazer uma escolha entre – pode-se colocar dessa forma – lacerdismo e castellismo. Tal escolha não era algo muito nítido. O
próprio presidente Castello Branco se declarava um “‘udenista roxo’, admirador de Carlos Lacerda e Adauto Lúcio Costa”
(BENEVIDES, 1981, p. 130).
A adesão ao lacerdismo não era apenas uma opção político-partidária: tratava-se de um posicionamento ideológico em torno da defesa de determinados valores, representados em âmbito
nacional pelo udenismo, mas que no plano local, na Guanabara,
ganhava contornos diferenciados em virtude não apenas da forte
personalidade de Carlos Lacerda, mas também do peso da disputa eleitoral no estado, polarizada entre UDN e PTB. Tal disputa
era capaz de mobilizar a população, sobretudo em virtude da
tradição histórica e dos valores – opostos – que estes partidos
representavam (PICALUGA, 1980, p. 66).
No entanto, após o golpe, o consentimento da Camde com
relação a Lacerda, embora ainda fosse signiicativo, passou a
ser relativizado em virtude da ascensão de uma nova liderança
“revolucionária”: o presidente Castello Branco. Desde o início,
a Camde se envolveu numa intensa campanha pela indicação de
seu nome para a presidência a qual, inclusive, era apoiada por
quase toda a UDN. Com exceção de Lacerda que, na verdade,
buscava angariar apoios em torno do nome do marechal Dutra
(PICALUGA, 1980, p. 96).
Em julho de 1964, quando o mandato de Castello Branco foi prorrogado até 1967 e, consequentemente, as eleições
de 1965 foram adiadas, ocorreu o rompimento deinitivo entre
Carlos Lacerda e o marechal-presidente. Aliás, nesse momento
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
235
Lacerda rompeu também com a cúpula da UDN, que apoiou a
prorrogação do mandato. Em telegrama a Bilac Pinto, presidente
nacional da UDN, o governador da Guanabara dizia “adeus aos
donos de seu partido e lhes deseja[va] uma feliz sepultura, pois
na realidade já est[avam] mortos sem saber, e como zombies
espalha[va]m erros e desastres pela pátria” (Fundo Camde, AN,
Tribuna da Imprensa, 17/7/1964).
Não obstante, apesar de a Camde ter-se colocado a favor
da prorrogação do mandato, depois dessa derrota sofrida por
Lacerda – que atingiu em cheio suas expectativas de ser eleito
presidente em 1965 – em agosto de 1964, ele foi convidado a
discursar para as mulheres no salão paroquial da igreja Nossa
Senhora da Paz. É este evento que marca o afastamento entre a
diretoria da Camde e o governador da Guanabara. A esta altura,
Lacerda também estava rompido com o jornal O Globo, mas
como fazia a divulgação de todos os políticos e personalidades
que iam discursar na Camde, O Globo divulgou a palestra de
Lacerda, o qual aproveitou o espaço para desferir ataques aos diretores do jornal, deixando a diretoria da Camde numa situação
constrangedora diante do jornal que mais dava suporte ao grupo
(Fundo Camde, AN, O Globo, 15/10/1964).
A partir daí, a relação entre a cúpula da Camde e o governador da Guanabara icou abalada, muito embora, há que se registrar, no dia da palestra de Lacerda na Camde, o habitual salão
da paróquia de Nossa Senhora da Paz não tenha sido suiciente
para comportar a quantidade de mulheres que compareceram ao
evento, o qual foi transferido para o cinema PAX, vizinho à igreja. As ex-diretoras da Camde lembram desta forma o evento:
Éramos capazes de lotar um auditório. Quando Carlos
Lacerda foi falar para nós, não cabia no auditório. Teve
que ser no cinema. No cinema ao lado da Paz, não tinha
um cinema ali? [...] Mas era tanta gente, que não pôde
236
ser no auditório. Porque todo mundo que ia falar, era no
auditório. Teve que ser no cinema, de tanta gente.6
O depoimento das diretoras da Camde coloca em evidência
questões importantes para compreendermos o imaginário político do grupo e, sobretudo, para entendermos o lugar ocupado
pelo lacerdismo nesse imaginário. Certamente que o discurso
inlamado de Lacerda, sua retórica anticomunista e fortemente
moralista, agradava às mulheres da Camde, por isso Lacerda era
“capaz de lotar o auditório” delas.
De toda forma, o que é importante reter sobre a posição da
Camde é que, naquele momento, para além do ponto de vista de
uma estratégia política prática, ou seja, romper com Lacerda em
nome da manutenção da boa relação que a Camde possuía com
a cúpula de O Globo – o qual lhe dava um suporte fundamental
–, o grupo feminino foi-se afastando também do governador da
Guanabara em virtude da tomada de uma posição política bastante diferenciada da de Lacerda. Ou seja, em julho de 1964, a
Camde se colocava a favor da prorrogação do mandato de Castello Branco, rompendo com Lacerda em outubro desse mesmo
ano. Essa posição, naquele momento, signiicava acreditar que
o “aprofundamento da ação revolucionária” dependia do fechamento do regime e da concentração de poderes nas mãos do líder
militar da revolução.
Tratava-se, como airmamos anteriormente, da adesão a um
novo líder: Castello Branco, adorado pelas mulheres da Camde.
Em uma das entrevistas que realizei para minha dissertação de
mestrado, por exemplo, uma das entrevistadas lembrava, saudosa, as palavras do economista Eugênio Gudin: “Tem um artigo
do Gudin que ele dizia que o Castello Branco tinha que ter feito
um governo de pelo menos 10 anos. Pelo menos 10 anos!”. Com
Entrevista concedida à autora por três associadas que solicitaram anonimato. Rio de
Janeiro, 12 set. 2006.
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Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro
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o que a outra entrevistada concordava enfática: “Ah, tinha que
ter icado. Tinha que ter icado”.7 E, na verdade, a adesão à ideia
da prorrogação do mandato de Castello foi partilhada inclusive
pela UDN. O entendimento era de que, se o governo Castello
Branco fosse interrompido em 1966, o processo de limpeza que
os militares levavam a cabo também o seria.
Em outubro de 1965, nas eleições para governadores – que
foram mantidas – os candidatos de oposição em estados importantes do país, como Negrão de Lima na Guanabara e Israel Pinheiro em Minas Gerais, saíram vencedores. Lacerda não
conseguiu eleger seu candidato, Flexa Ribeiro. A partir daí, Carlos Lacerda intensiicou sua campanha de oposição a Castello
Branco através da Tribuna da Imprensa. Após o resultado das
eleições, passou a acusar o presidente de “estar com a contrarrevolução” (Tribuna da Imprensa, 8/10/1965). Em suas colunas,
a Tribuna acusava Castello Branco de “rancoroso, vaidoso e sobretudo fraco, ao se deixar envolver pelos pretensos ‘revolucionários’ e políticos da pior espécie que o cercavam”, atribuindo
ao presidente a culpa pela derrota da “Revolução” nas eleições
(Tribuna da Imprensa, 6/10/1965).
As mulheres da Camde, embora tenham-se posicionado
publicamente contra Negrão de Lima,8 passadas as eleições
decidiram-se pelo apoio a Castello Branco, posicionando-se
contra, por exemplo, as sugestões de Lacerda de não dar posse
Entrevista concedida à autora por três associadas que solicitaram anonimato. Rio de
Janeiro, 12 set. 2006.
8
Embora no manifesto que lançou às vésperas das eleições a Camde não mencionasse
nomes de candidatos, a entidade airmava que “comunistas e corruptos arregimentamse para voltar ao poder. A Camde vem de público manifestar sua veemente repulsa
a esta nova tentativa de penetração do comunismo ateu, hipócrita, traidor e ilegal”.
Isso justamente quando era divulgada uma notícia de acordo com a qual o Partido
Comunista do Brasil recomendava aos seus correligionários o voto em Negrão de
Lima. Cf. Fundo Camde, AN, Diário de Notícias, 28/9/1965.
7
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Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro
ao governador eleito. Sobre as eleições na Guanabara, Amélia
Bastos airmava:
O Brasil não pode continuar com o tumulto que, ultimamente, vem tendo, como consequência das eleições
de 3 de outubro [...] a derrota da União Democrática
Nacional já estava prevista uma vez que se uniu uma
série de forças contra uma só, embora fosse essa a única capaz de continuar com o processo democrático no
país [...] No momento resta dar posse ao sr. Negrão de
Lima, a im de que no futuro, os cariocas possam tirar
proveito das eleições [...] a eleição do candidato do
PTB e PSD não signiicou, absolutamente, uma derrota da revolução, pois ela nunca esteve em jogo.
Assim, a Camde tomava, deinitivamente, o partido do presidente Castello Branco, em detrimento de Carlos Lacerda. Em
seguida, apoiou publicamente o Ato Institucional no 2, o qual
não somente pôs im aos partidos então existentes mas, sobretudo, pôs im às intenções de Lacerda de chegar à presidência.
Não obstante, e apesar também de suas posições individualistas
– contrariando às vezes as decisões de seu próprio partido –,
o então governador da Guanabara só deixou de ser uma opção
plausível de liderança civil – não somente para a Camde, mas
entre os setores civis que o apoiavam, sobretudo na Guanabara – quando, em 1966, deu início às articulações para formar
a Frente Ampla de oposição à ditadura, juntamente com seus
antigos adversários políticos, João Goulart e Juscelino Kubitschek. Uma vez aliado a Goulart, contra quem o golpe foi
dado em 1964, Lacerda já não podia ser mais considerado um
“homem da Revolução”.
A edição do AI-2 marcava, portanto, a redeinição do consenso social em torno da opção pelo aprofundamento e fortalecimento do processo ditatorial. A posição da Camde é bastante
239
representativa do apoio social que o governo teve neste sentido.9 E não somente a Camde aderiu ao AI-2. Denise Rollemberg (2008) veriicou, por exemplo, o mesmo comportamento
entre os advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Dentro da própria UDN, aliás, eram muitas as declarações de
“compreensão” com o governo, ou ainda de que “ ‘o patrimônio
político’ e o ‘espírito’ udenista, para além da legenda, deveriam
ser conservados” (GRINBERG, 2009, p. 60-61).
Dessa forma, a “revolução” foi levada adiante, com apoio
de expressivos segmentos da sociedade civil. No caso da Camde, apesar da memória controversa das remanescentes do grupo
no que tange ao consenso em torno do governo Costa e Silva,
com o qual identiicam o início da “ditadura militar” (Cordeiro,
2009, p. 160), na época em que o segundo general-presidente
assumiu, Amélia Bastos, diretora da Camde, airmava ter “muita
esperança nesse governo” e além disso, Costa e Silva era uma
pessoa “muito comunicativa, muito acessível, de bom humor,
inteligente” (POLLANAH, 1967, p. 169).
Nesse sentido, se para os setores comprometidos com o regime de 1964 Castello Branco era reverenciado como o líder
da Revolução, na conjuntura em que Costa e Silva tomou posse – tendo em vista, sobretudo a radicalização dos movimentos
de contestação à ditadura – era importante, para estes mesmos
setores, consagrar a este presidente o papel de “continuador” e
“aprofundador” da ação “revolucionária” iniciada em 1964. Por
volta de 1967 e 1968, a Camde, em particular, continuava fortemente comprometida com o governo. É o que podemos perceber, por exemplo, em 1968, após a edição do Ato Institucional
no 5, quando a associação divulgou uma mensagem de Natal na
9
É importante mencionar que neste momento a Camde sofreu uma cisão em virtude
de algumas associadas mais radicais considerarem as posições da diretoria a favor de
Castello Branco extremamente “moderadas”. Cf: CORDEIRO, 2009, p. 95-96.
240
Janaina Martins Cordeiro
qual manifestava fé nos rumos da nação:
Ultimamente vivíamos um clima de intranquilidade,
desordens e violências gerados pelo abuso de liberdade, utilizada para ins impatrióticos. Um paradeiro
a estes desmandos se impunha, e veio, fazendo-nos
retroceder aos idos de março de 1964. Recomecemos
mais uma vez com mais ímpeto [...]. (Fundo Camde,
AN, O Globo, 24/12/1968).
Este manifesto, divulgado na véspera do Natal, ou seja, apenas alguns dias após a edição do AI-5, demonstra bem a medida
do apoio dado pela Camde ao ato e a adesão em torno da medida
que deu à ditadura plenos poderes. Mas a partir de 1969, após
divulgar uma nota lamentando o sequestro do embaixador americano por organizações da esquerda armada, as manifestações
políticas da Camde tornaram-se cada vez mais esparsas. A partir
dos anos 1970, as mulheres se dedicaram, sobretudo, às atividades de assistência social, as quais, aliás, sempre foram realizadas
pela associação, que possuía uma diretoria de obras sociais. Não
obstante, nos últimos anos até 1974, quando inalmente a Camde
encerrou suas atividades, elas se tornaram preponderantes.
O consenso do milagre, a democratização da sociedade e o
im da Camde
Os estudos existentes sobre a Camde normalmente dizem
pouco ou nada dizem sobre o im do grupo. Para Solange Simões, as causas do encerramento das atividades dos grupos femininos em geral, passam por questões de ordem interna, mas
também estão relacionadas com os rumos tomados pela ditadura: “esta vai cada vez mais lançar mão de medidas repressivas
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
241
diretas em detrimento dos empenhos de ‘legitimação’ da nova
ordem social e política” (1985, p. 135).
Apesar das poucas informações sobre o im das atividades
do grupo – no arquivo da Camde não há referências a isso –,
acredito que as razões não estão no fato de o regime ter “lançado
mão” deste tipo de legitimação civil. Ainal, de acordo com a
entrevista de Eudoxia Ribeiro Dantas à Solange Simões, a Camde entrou em recesso e não mais retomou suas atividades apesar
de o próprio presidente Geisel ter “pedido para que a associação
não encerrasse” (1985, p. 135-136). Não parece, pois, que o governo não precisasse mais se legitimar através desses grupos da
sociedade civil.
É certo, também, que nos primeiros anos da década, durante
o governo Médici, os órgãos de repressão se aperfeiçoaram, e a
perseguição aos inimigos do regime se intensiicou. Não obstante, é também um momento de grande popularidade do regime:
o campeonato mundial de 1970, os festejos do Sesquicentenário da Independência em 1972, a euforia do milagre brasileiro,
são momentos-síntese para observarmos não somente como o
governo procurava se legitimar junto à sociedade civil, como
também segmentos expressivos da sociedade lhes respondiam
de forma positiva.
É difícil, portanto, não perceber nas mulheres da Camde
um dos grupos beneiciados pelo milagre econômico e entusiasmados por ele. O milagre era justamente o tipo de “recuperação” econômica que elas pretendiam ver realizado, quando, por
exemplo, em 1965, se engajaram na Campanha pela Economia
Popular. Por isso apoiaram o “aprofundamento da ação revolucionária” através dos atos institucionais 2 e 5.
Não obstante, os anos do governo Médici representam um
momento no qual o tipo de consenso em torno do regime se modiicou. Antes de 1964, portanto, os setores conservadores da
242
sociedade insatisfeitos com os movimentos reformistas, bem
como com o presidente Goulart, se reuniam em torno de um
discurso marcadamente anticomunista, anticorrupção, em defesa da família, da religião e da democracia. Imediatamente após
o golpe, o consenso, agregando determinado udenismo, foi se
metamorfoseando em castellismo, continuando expressivamente anticomunista. Mas, se ambos, udenismo e castellismo, eram
profundamente marcados por um pesado, diria mesmo sombrio
sentimento anticomunista, o mesmo não se pode dizer do consenso em torno do Milagre. Este era um momento no qual o
otimismo estava sendo reinventado, recorrendo à expressão de
Carlos Fico (1997). Era um momento em que vastos segmentos
sociais queriam comemorar. Eram verdadeiramente tempos de
comemoração, de alucinado crescimento econômico (CORDEIRO, 2009b), de um país que ia pra frente. O forte sentimento
cívico que caracterizava a militância da Camde continuava presente, mas agora sem a necessidade quase pungente da eterna vigilância contra o comunismo, à qual as mulheres se propuseram
entre 1964 e 1969.
Assim, a Camde passou pelos esfuziantes anos do Milagre
muda,10 para somente encerrar suas atividades em 1974, já durante o mandato do presidente Geisel. De acordo com Eudoxia
Ribeiro Dantas, a Camde “entrou em recesso devido à não renovação da liderança” (SIMÕES, 1985, p. 135-136). O argumento da ex-presidente da associação suscita questões interessantes.
Por exemplo: por que uma associação que possuía tanto prestígio
(o próprio presidente Geisel teria solicitado que não encerrasse
10
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
Janaina Martins Cordeiro
Em recente pesquisa para minha tese de doutorado, notei com alguma surpresa
que não há nenhum tipo de manifestação das mulheres da Camde por ocasião das
comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil em 1972. Festa
cívica, tão ao gosto da cultura política daquelas mulheres, mas da qual elas não
participaram como grupo, diferentemente, por exemplo, da UCF de São Paulo, que
contribuía entusiasmada com o evento.
243
suas atividades), e um papel tão destacado nos acontecimentos de
1964, teve problemas de renovação de seus quadros num momento em que o regime desfrutava ainda de relativa popularidade?
Ao que parece, a Camde não sobreviveu às suas fundadoras
do núcleo de Ipanema, ou antes, os argumentos estruturantes a
partir dos quais a Camde organizou sua militância não sobreviveram. É preciso, pois, considerar que 1974, ano no qual a Camde
encerrou suas atividades, é um ano-chave. Foi quando o general
Geisel assumiu a presidência e deu início à sua abertura “lenta,
gradual e segura”. Em 1973, as esquerdas armadas já haviam sido
derrotadas política e militarmente.11 Mesmo antes, alguns setores
já tinham dado início a um processo de autocrítica da opção pela
luta armada que, mais tarde, se aprofundaria e se disseminaria.
A democracia começava a entrar na pauta das preocupações das
esquerdas brasileiras. Mas não somente delas. Segmentos importantes das direitas, sobretudo a partir da segunda metade dos anos
1970, passaram também a inclinar-se nesse sentido. Muitos deles,
iguras de peso inclusive, no momento da abertura política rachariam com a Arena e se aliariam ao MDB de Tancredo Neves.
Mas não podemos esquecer também que a Camde fundamentou sua militância em nome da defesa da democracia. No
entanto, em meados dos anos 1970, já não se tratava mais de
defender a democracia nos termos propostos pelas mulheres. A
democracia de que se falava então não era a democracia fortalecida em nome da qual a Camde se formou em 1962, marchou em
1964 e lutou para que fosse aprofundada em 1965 e 1968.
Aqui é importante tentar recuperar o signiicado das palavras em seus respectivos contextos. Nesse sentido, durante a década de 1960 podemos observar na Camde uma militância que
se dizia em defesa da democracia, mas que se deinia basica11
À exceção do PCdoB, com a Guerrilha do Araguaia.
244
Janaina Martins Cordeiro
mente contra o comunismo. A defesa daquele regime baseava-se
no forte sentimento anticomunista, daí a possibilidade de airmarem, em 1967, que “nunca sentiram a democracia tão viva”
ou, em 1968, colocarem-se contra as manifestações estudantis
pedindo à sociedade que se unisse, “desde o mais humilde trabalhador à mais alta autoridade” na defesa da unidade nacional, dos ideais democráticos e da luta contra ideologias espúrias
(Fundo Camde, AN, Correio Popular, 26/10/1968).
Em meados dos anos 1970, o sentido da democracia, do
consenso democrático que se formava já não era mais aquele.
Antes, era o seu oposto. Era uma democracia que se opusera e
se opunha ainda aos militares, que fazia a autocrítica da luta armada, a crítica (e autocrítica) ao PCB, redeinindo-a. A partir de
então, a sociedade, de maneira geral, foi se metamorfoseando.
A incorporação de valores democráticos pela sociedade a
partir de meados da década de 1970 é um processo que precisa
ser levado em consideração se quisermos compreender também
a dinâmica dos grupos civis que apoiaram o regime ditatorial.
Conquanto a formação desse consenso democrático possa resultar em construções de memória baseadas no silêncio, ou que
consolidem mitos, como o da moderação do governo Castello
Branco ou de que a sociedade sempre resistiu ao regime, como é
o caso da memória das militantes da Camde. No entanto, se analisarmos esse processo em conjunto com a tese da falta de “renovação de liderança”, poderemos compreender melhor por que a
Camde encerrou suas atividades apesar dos apelos do presidente
Geisel para que continuasse: naquele contexto, tornava-se mais
difícil militar a favor da “Revolução de 1964” e da democracia
simultaneamente. Aquela democracia anticomunista que a Camde carregava em seu nome já não existia mais. A sociedade já
não se identiicava como antes com a causa. Vale lembrar igualmente que, em 1974, já se vivia o início da crise do milagre, que
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
245
tirou do regime um bom argumento, além da vitória do MDB
nas eleições.
Dessa forma, a Camde calou-se. E o fato de ter encerrado
suas atividades imediatamente após os anos de chumbo permite
que hoje as mulheres reconstruam sua memória baseadas, sobretudo, na luta pela democracia – sem diferenciar a democracia
de 1964 da democracia de 1979. Permite que elas silenciem ou
até mesmo neguem sua militância nos anos de maior repressão
pelo governo. Memórias do silêncio sobre as quais é preciso reletir, na medida em quem reletem um movimento social mais
amplo, qual seja: o silêncio em torno de um expressivo consenso
social em torno da ditadura que permitiu que ela se sustentasse
por longos anos no Brasil.
Fontes
Discurso proferido por Maria Paula da Silva Caetano, por ocasião da comemoração do 30o aniversário da União Cívica Feminina de São Paulo. Documento mimeografado, sem data, do
arquivo particular da oradora.
Entrevista concedida à autora por três ex-diretoras da Camde
que solicitaram anonimato. Rio de Janeiro, 12 set. 2006.
Fundo Campanha da Mulher pela Democracia. Arquivo Nacional/Codes. Documentos Privados. Código PE.
Fundo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais. Arquivo Nacional/Codes. Documentos privados. Código QL.
Jornal do Brasil, 1961.
O Globo, 1962, 1964, 2010.
246
Janaina Martins Cordeiro
Ditadura, memória e consenso:
a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde)
247
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9
CRÍTICA À PUNIÇÃO ETERNA
COMO MEMÓRIA HISTÓRICA*
Fernando Ponte de Sousa**
s discussões, contradições, hesitações, deinições e encaminhamentos pelas quais passa a institucionalização de
uma política de memória histórica no Brasil, envolvem pelo
menos três aspectos: a abertura dos arquivos da ditadura de
1964-1989; o cumprimento da sentença da Corte Interamericana
de Justiça; e a aprovação do Projeto de Lei de criação da Comissão da verdade.
A
A questão da abertura dos arquivos referentes à ditadura expressa que, distante de uma efetiva consolidação democrática, vive-se ainda as tensões de um regime transicional. Isto é demonstrado
pelas pendências acima referidas. Não admitir esta problematização seria uma espécie de concordância, ou mesmo cumplicidade,
com as manifestações de dois ex-presidentes do Brasil, José Sarney e Fernando Collor, que, postados pelos seus autoritarismos,
posicionam-se contra a abertura dos arquivos das Forças Armadas,
Agradeço às alunas Sonia Kan, Chari Meleine B. G. Nobre e Letícia Hummel do
Amaral por subsídios pesquisados para este texto.
**
Professor do Curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina.
*
250
Fernando Ponte de Sousa
instituições de segurança e Ministério das Relações Exteriores (que
tinha seu “departamento” de inteligência para controlar brasileiros
perseguidos pela ditadura), entre outros, alegando conhecerem informações que não deveriam ser divulgadas.
O que sabem estes senadores, ex-presidentes de governos
herdeiros da ditadura? Sendo Collor (15/3/1990 a 2/10/1992)
acusado de corrupção e derrubado do cargo por um impeachment convocado pela mobilização popular, e Sarney (21/4/1985
a 15/3/1990) um vice que assumiu a presidência com o falecimento do titular (Tancredo Neves), eleitos pelo Congresso e não
pelo povo, teriam motivos escusos guardados como segredos
de Estado que a população não deve conhecer? É lícito ter a
história de um país sequelada pela censura de duas das representações que sociologicamente poderiam ser deinidas como
oligárquicas e autocráticas?
A Presidente Dilma Rousseff, que havia se pronunciado
favorável à abertura dos arquivos nos termos do projeto de lei
aprovado na Câmara dos Deputados em 2010, e agora em discussão no Senado, após o posicionamento dos dois ex-presidentes citados, recuou sua opinião. Mais recentemente, segundo notícias da imprensa, teria mudado novamente, dada a repercussão
negativa deste recuo.
Para além das suposições que o caso possa motivar, é possível ressaltar aqui alguns aspectos nebulosos nos encaminhamentos do assunto. Em carta ao Presidente da República, Luis
Inácio Lula da Silva, datada de 24/10/2004, o advogado João
Luiz Duboc Pinaud, então Presidente da Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos da Presidência da República,
renuncia ao seu cargo reclamando do “ritmo lento, as hesitações
e os distanciamentos, táticas de esconder, artimanhas burocráticas”, marcadores da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos,
que não correspondem ao clamado pelos parentes dos mortos e
Crítica à punição eterna como memória histórica 251
“desaparecidos” políticos e “pelas pessoas que participam do que
poderia chamar de consciência ética de uma nação” (PINAUD, p.
1). Ainda nas suas palavras, “esse torturar e matar que querem
apagar, disfarçar equivale, Senhor Presidente, ao torturar e matar novamente, pela segunda vez” (PINAUD, p. 1).
Tal protesto critica diretamente o então Presidente da República, e a não abertura dos cofres “desses trágicos segredos”,
aceitando que arquivos públicos sejam queimados, sem deixar
vestígios. O fundamento ético, defendido pelo autor da carta
renúncia, é o questionamento: “num Estado de Direito democrático, militares poderiam deter o conhecimento histórico?”.
Complementando o argumento, o autor defende o que constitui
democraticamente DIREITO HUMANO AO CONHECIMENTO DO PASSADO (PINAUD, p. 5). Sua crítica em 2004 parece
atual: “um governo que negocia um pouco de sua verdade histórica, do conhecimento dos crimes de governos passados em
troca de um pouco de ordem, vai perder ambas, e não merece
nenhuma” (PINAUD, p. 5).
A referida citação tem atualidade quando se percebe que,
passados os dois mandatos do Presidente Lula, e agora no governo presidido por Dilma, a sustentação política dos citados
Presidentes – membros do Partido dos Trabalhadores, que tem
um histórico de posicionamentos políticos contra a ditadura –
depende de uma coligação governamental; nada a se estranhar,
no entanto a governabilidade não deveria ser negociada com os
ex-presidentes, aos quais ambos izeram oposição, tendo como
moeda de troca os arquivos que pertencem à sociedade como um
direito humano coletivo.
A persistência dessa contradição está manifesta noutro fato,
mais recente, que corrobora esta percepção. A Corte Interamericana de Direitos Humanos se reuniu em São José da Costa Rica, nos
dias 20 e 21 de maio de 2010, para julgar o Estado brasileiro pelo
252
Fernando Ponte de Sousa
desaparecimento de 70 pessoas, e pela impunidade destes crimes,
e pelo não esclarecimento acerca de fatos ocorridos na Guerrilha
do Araguaia, durante a ditadura instaurada com o golpe de 1964.
O Estado brasileiro manteve segredo acerca das operações
realizadas na região, com a não localização dos corpos dos guerrilheiros abatidos e a impunidade aos responsáveis pelos crimes
de torturas e assassinatos. Diante da omissão do Estado, em
1982, 22 familiares representando 25 desaparecidos na Guerrilha do Araguaia interpuseram uma ação ordinária na Justiça
Federal, cobrando localização e translado dos restos mortais.
Passados 13 anos desta iniciativa, sem qualquer pronunciamento
do Judiciário, em 1995 os familiares, por meio de entidades de
direitos humanos, enviaram denúncia contra o Estado brasileiro
perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH). No mesmo ano foi
aprovada a Lei 9.140/95, que os reconhece como mortos e desaparecidos, concedendo ainda reparação pecuniária para familiares das vítimas – embora ainda sem a localização dos corpos e
esclarecimentos acerca dos fatos.
Após várias audiências realizadas desde 1997, o relatório
aprovado em 2008 pela Comissão deine a responsabilidade do
Estado pela detenção arbitrária, pela tortura e pelo desaparecimento de participantes da guerrilha, considerando questionável
que a Lei da Anistia (Lei 6.683/79) tenha sido interpretada em
benefício dos agentes públicos que cometeram crimes no período. A Comissão determinou que o Estado brasileiro devesse
providenciar a abertura dos arquivos das Forças Armadas, estabelecer o Dia do Desaparecido Político, realizar ato como forma
de reconhecimento da responsabilidade pelos fatos, entregar os
restos mortais aos familiares, construir a memória política, pagar
reparação econômica e punir os responsáveis pelos assassinatos.
Diante da não implementação das recomendações por parte
Crítica à punição eterna como memória histórica 253
do Estado, a CIDH enviou o caso para ser processado na Corte
Interamericana de Direitos Humanos em 26 de março de 2009,
com base na petição dos familiares de 7/8/1995, aceitando a demanda da “responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas,
entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses
da região” (CORTE INTERAMERICANA DE JUSTIÇA –
Julgamento e Sentença, 2011, p. 4).
O Estado brasileiro é sentenciado por esta Corte internacional como responsável pelo desaparecimento forçado, pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão, e pela
violação do direito à integridade pessoal, e por isso mesmo a
sentença constitui per se uma forma de reparação em:
• o Estado brasileiro deve conduzir a investigação penal
dos fatos destes casos, a im de esclarecê-los e determinar as responsabilidades penais;
• o Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e entregar os
restos mortais a seus familiares;
• o Estado deve oferecer tratamento médico e psicológico
que as vítimas requeiram;
• o Estado deve implementar curso permanente sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos
das Forças Armadas;
• o Estado deve providenciar a publicação de todas as informações sobre a Guerrilha do Araguaia;
• o Estado deve adotar as medidas que sejam necessárias para tipiicar o delito de desaparecimento forçado
de pessoas.
Essas deinições, entre outras, fundam-se também na declaração da Corte de que as disposições da Lei da Anistia brasileira,
254
Fernando Ponte de Sousa
que impedem a investigação e a sanção de graves violações de
direitos humanos, são incompatíveis com a Convenção Americana, elas carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir como um obstáculo para as investigações dos casos denunciados.
Também, declara, é incompatível com as normas da Convenção
Americana e sua jurisprudência a decisão recente do Supremo
Tribunal Federal, que argumentou em defesa da interpretação
sobre a Lei da Anistia como impeditiva penal aos agentes públicos que cometeram crimes de tortura.
Esta sentença marca a situação de não institucionalização
de uma política de memória histórica no Brasil condizente com
os fundamentos de respeito aos direitos humanos consignado em
convenções assinadas pelo governo.
Por isso mesmo, a inconformidade dos movimentos dos ex-presos políticos e de familiares de desaparecidos, com a ausência da SEDH na audiência da Corte Interamericana de Justiça,
e com a defesa feita pelo governo brasileiro na Corte durante a
formulação processual. Daí a necessidade, pontuada pelas entidades representativas dos movimentos sociais em prol da Justiça
e verdade, de colocar como inegociável o cumprimento da sentença, assim como a necessidade de abertura total dos arquivos
das Forças Armadas. Empurrado pela campanha desencadeada
pelos movimentos políticos de ex-presos e familiares de desaparecidos, o governo brasileiro sinaliza na direção de cumprimento
parcial da sentença. No dia 25 de julho de 2011 foi retomada a
procura por restos mortais de desaparecidos políticos durante a
guerrilha do Araguaia, feitas sob a coordenação do Ministério da
Defesa, com a participação do Ministério da Justiça e Secretaria
dos Direitos Humanos, através do Grupo de Trabalho Araguaia
(GTA). Antes era o GTT (Grupo de Trabalho Tocantins), que
pouco avançou nas suas atividades, mas deixou as indicações
que são agora utilizadas.
Crítica à punição eterna como memória histórica 255
Outro ponto de igual importância e ainda pendente nas
atuais controvérsias políticas, diz respeito ao projeto de Lei n.
7.376/2010, que o ex-presidente Lula encaminhou ao Congresso
Nacional, propondo criar a Comissão Nacional da Verdade, para
que sejam apurados os acontecimentos relacionados aos mortos
e desaparecidos políticos do período da ditadura.
Foi lançada em dezembro de 2009 a terceira versão do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), com a justiicativa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, como resultado de uma continuidade do
processo histórico para consolidar e concretizar as orientações
para a promoção e a defesa dos direitos humanos no Brasil. A
partir principalmente da 11ª Conferência Nacional dos Direitos
Humanos, sob o tema Democracia, Desenvolvimento e Direitos Humanos: Superando as desigualdades, iniciou-se em 2008
a atualização das primeiras versões do Programa Nacional de
Direitos Humanos, com encontros municipais e estaduais, reunindo representantes da sociedade civil e do poder público.
O documento inal da Terceira Versão do PNDH-3 estabelece seis eixos orientadores, incluindo a interação democrática
entre o Estado e a sociedade civil, Desenvolvimento e Direitos
Humanos e, o que se destaca aqui, o eixo nº 6: Direito à Memória e à Verdade.
O ex-ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos do governo Lula, Paulo Vannuchi, manifestou-se defendendo o referido Plano: “A memória histórica é componente
fundamental na construção da identidade social e cultural de
um povo e na formulação de pactos que assegurem a não repetição de violações de direitos humanos, rotineiras em todas as
ditaduras” (BRASIL, 2010, p. 19).
Esta defesa não é unânime no governo, na propalada sociedade civil e nas Forças Armadas. Vários protestos foram enun-
256
Fernando Ponte de Sousa
ciados por setores conservadores, incluindo o Ministério da Defesa. O ponto polêmico se estabelece a partir do eixo orientador
nº 6 (Direito à Memória e à Verdade), que é apresentado com
três diretrizes:
1. Reconhecimento da memória e da verdade como
direito humano da cidadania e dever do Estado;
2. Preservação da memória histórica e a construção
pública da verdade;
3. Modernização da legislação relaciona com a
promoção do direito à memória e à verdade,
fortalecendo a democracia.
As ações programáticas dessas três diretrizes, segundo o
documento:
[...] têm como inalidade assegurar o processamento democrático e republicano de todo esse período da história
brasileira, para que se viabilize o desejável sentimento
de reconciliação nacional. E para se construir consenso
amplo no sentido de que as violações sistemáticas de
direitos humanos registradas entre 1964 e 1985, bem
como no período do Estado Novo, não voltem a ocorrer
em nosso país, nunca mais (BRASIL, 2010, p. 173).
Conforme ainda o mesmo texto referente a este eixo, a importância da investigação do passado é destacada para a construção da cidadania, importante para a memória individual e
coletiva, o estudo do passado e o resgate da verdade com a experiência histórica passada de geração a geração; caso não ocorra
essa transmissão, a história é silenciada e esquecida, causando
graves lacunas na construção da identidade nacional. Ainda de
acordo com o documento:
Somente resgatando a memória e a verdade, o país
adquire consciência superior sobre sua própria iden-
Crítica à punição eterna como memória histórica 257
tidade, a democracia se fortalece... A compreensão do
passado por intermédio da narrativa da herança histórica e pelo reconhecimento oicial dos acontecimentos
possibilita aos cidadãos construírem os valores que indicarão sua atuação no presente. O acesso a todos os
arquivos e documentos produzidos durante o regime
militar é fundamental no âmbito das políticas de proteção dos Direitos Humanos (BRASIL, 2010, p. 170).
No bojo desta argumentação, é justiicada a criação da
Comissão Nacional da Verdade, que estabelece ações como a
reconstituição da história dos casos de violação de direitos humanos, o esclarecimento de circunstâncias de torturas, mortes
e desaparecimentos, a localização e identiicação dos corpos e
restos mortais de desaparecidos políticos, a requisição de documentos públicos e privados, e a publicidade de estruturas das
práticas de violações na ditadura militar. Tal formulação, comum a outras Comissões da Verdade criadas noutros países da
América Latina, causou no Brasil uma polêmica entre setores do
próprio governo e protestos claros dos comandantes militares.
Para Nelson Jobim, Ministro da Defesa, e para os comandantes
das Forças Armadas, a Comissão:
[...] teria o objetivo de revogar a Lei da Anistia de
1979, além de ter um sentido revanchista, ao prever
a identiicação de locais onde teriam ocorrido abusos
– incluindo instalações militares – e não se concentrar em violações de direitos humanos feitos por grupos armados de oposição ao regime militar (Folha de
S.Paulo, 8/1/2010).
Outras manifestações são divulgadas, incluindo de oiciais,
como os comandantes do Exército e da Aeronáutica, de que o
documento é “excessivamente insultoso, agressivo e revanchista” às Forças Armadas (Folha de S.Paulo, 30/12/2009).
258
Fernando Ponte de Sousa
Com manifestações contrárias a essas interpretações, o então Ministro Paulo Vanucchi rebateu as críticas, defendendo que
a Comissão da Verdade não é contra as Forças Armadas, mas
também não é favorável ao acobertamento de crimes de lesa-humanidade, e que não propõe revisar a Lei da Anistia. Esta
discussão entre ministros do governo contou depois com a intervenção do Presidente Lula, buscando entre a Secretaria dos
Direitos Humanos e as Forças Armadas um tom conciliador.
Dessa forma, no inal do texto encaminhado foi preservada
a Comissão da Verdade, mas sem focar no termo repressão política, trocado pelo termo violações de direitos humanos, agradando assim à cúpula militar.
Esta polêmica com relação à instalação da Comissão da
Verdade, embora “conciliadora” em termos pelo ex-presidente
Lula, envolve também a discussão do sigilo eterno dos documentos oiciais do Estado, questionado também na sentença da
Corte Interamericana de Justiça, já referida antes.
A legislação atual determina o sigilo de trinta anos para
documentos classiicados como ultrassecretos; no entanto, esse
prazo pode ser renovado indeinidamente. Atualmente está tramitando no Senado um projeto de lei que estabelece o im do sigilo eterno, ixando o prazo máximo de cinquenta anos para que
os documentos iquem em segredo. A nova proposição altera a
legislação nos termos em que foi sancionada pelo ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, que declarou à Folha de S.Paulo
ter assinado sem ler, que o fez “sem tomar conhecimento, foi no
último dia do mandato...” (Folha de S.Paulo, 30/6/2011). Também a Presidente Dilma vacilou, dizendo apoiar a modiicação,
ora reformulando, e como foi dito antes, à imprensa informou,
em junho de 2011, que apoiará o im do sigilo eterno. Enquanto
isso, até início do mês de agosto de 2011, a tramitação do projeto se encontrava barrada na Comissão de Relações Exteriores,
Crítica à punição eterna como memória histórica 259
presidida pelo senador Fernando Collor (PTB-AL). Em 25 de
outubro do mesmo ano, foi inalmente aprovada, sem as efetivas
garantias de que os documentos principais – relativos às ações
das Forças Armadas e que envolvem torturas e desaparecimentos forçados – sejam realmente abertos aos ex-presos políticos,
familiares de desaparecidos e ao público em geral.
Em 5 de julho, Nelson Jobim foi demitido do Ministério da
Defesa sob a acusação de “falar demais”, ou seja, emitir críticas a colegas do governo, inclusive sobre a questão da abertura
dos arquivos. Nomeado como seu substituto, Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores no governo Lula, marcou na
época posição favorável ao sigilo eterno. Não é possível prever
se isso altera alguma coisa, mas indica que as hesitações apontadas são posições de governo, e não apenas de um ou outro participante em particular; inclusive porque, segundo noticiado pela
imprensa, a presidente Dilma passou para o Ministro da Justiça,
o petista José Eduardo Cardoso, a negociação sobre a criação da
Comissão Nacional da Verdade – aprovada em 26 de outubro de
2011 com as limitações de tempo e de ações criticadas por vários
movimentos pela verdade e justiça.
Como se pode observar, as contradições e hesitações por
parte do governo federal indicam que os avanços existem onde
há pressão política dos setores comprometidos com a memória
histórica integral, e os recuos onde prevalecem as pressões dos
setores oligárquicos e autocráticos aliados na sustentação política do governo.
Essa dinâmica política torna evidente que o que por vezes
denominamos como “pendências” ou “heranças” do período ditatorial são, na realidade, fatores estruturais e históricos constitutivos do capitalismo dependente. A formação social brasileira
se constitui de revoluções e contrarrevoluções, onde o caráter
de classe é transversal às formas coloniais, neocoloniais e impe-
260
Fernando Ponte de Sousa
rialistas, oligárquicas e autocráticas. Mesmo como democracia,
a ordem social vigente se atualiza política e institucionalmente,
conciliando a República como controle social e policial, a democracia com o autoritarismo e a interdição política dos de baixo, a
interdição e a eliminação das contestações sociais mais autônomas e contundentes, tornando a violência uma atividade tal que
o que parece ser impunidade aos poderosos é um aviso aos contestadores, dizendo que daqui não podem passar. A comprovação disso está na manutenção da tortura e dos assassinatos como
recorrentes, diante da inoperância das instituições da República.
Historicamente é possível situar a tortura como uma “herança
maldita” (SOARES, 2010, p. 21), ligada à colonização e alimentada ideologicamente pelos instituintes bárbaros da inquisição
católica, ou mesmo como “efeito-demonstração para silenciar,
punir e docilizar os vivos” (BARREIRA, 1992, p. 41), e derrotar os inimigos. Tal estratégia implica também em criar inimigos,
colocando os inconformados e insurgentes, e muitas vezes apenas
críticos, do outro lado do muro como exemplos do mal que precisa ser erradicado, justiicando assim a criação de um direito penal classiicatório com relação aos estratos das classes sociais que
devem cumprir penas; basta ver a população carcerária do Brasil.
Componente imprescindível desse corolário de violência é
a aplicação da tortura, pois mais que uma herança, tornou-se
uma verdadeira instituição, ou seja, um fato social aceito, apesar dos discursos e das convenções internacionais e nacionais.
Lembre-se aqui a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, e a Convenção Americana de Direitos Humanos, cujas
formalizações colidem com a lei da Anistia de 1979, que tem
sido justiicada como peça jurídica de impunidade aos torturadores da ditadura, apesar de a Convenção Americana, assinada pelo
Brasil, estabelecer que uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados não permite derrogação lo-
Crítica à punição eterna como memória histórica 261
cal. Ou seja, a tortura como ato hediondo e crime de lesa-humanidade (artigo V da Declaração Universal de Direitos Humanos)
foi largamente utilizada por agentes públicos durante a ditadura,
e as tentativas, hoje, de criminalizar tais atos, originam-se de
ex-presos políticos, de familiares de desaparecidos, de representantes isolados do Ministério Público, ou mesmo com o apoio de
pessoas ou autoridades ligadas à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, não têm logrado êxito, circunscrito ao aspecto de
denúncia e exposição de torturadores mais conhecidos.
Esta é a realidade, onde impera a impunidade aos crimes
de tortura e desaparecimento, apesar de isso confrontar-se com
a Constituição brasileira promulgada em 1988, a exemplo das
Constituições de 1934 e 1946, bem como a Lei 9.455 de 1997,
que classiica penalmente a tortura. Tal fato possibilita que a tortura permaneça existindo no século XXI como expediente policial, consagrada que foi pela impunidade, apesar dos avanços da
legislação. Tivemos uma crítica da tortura? Não. Ainda hoje aparecem na grande imprensa depoimentos dos defensores do golpe
de 1964, que não assumem terem torturado, mas que airmam a
necessidade da tortura como recurso extremo frente ao “inimigo”.
No mesmo contexto da tortura, situam-se os assassinatos cometidos no período da ditadura e os cometidos durante os governos
civis a partir de 1985. É como se um sistema contínuo de violência
izesse dos conlitos no campo um lugar que mostrasse ao país ou,
mais claramente aos trabalhadores, os limites da luta reivindicativa: a propriedade e a exploração do trabalho são intocáveis. A
ordem ditatorial foi administrada transitando para os governos civis, aniquilando a esquerda considerada radical. Os movimentos
sociais que não se enquadravam como “novos”, ou seja, no âmbito
de uma sociedade civil institucionalizada, foram e são criminalizados, sem os espaços de defesa, mesmo jurídicos, da democracia,
resumidos ao formalismo de rituais impotentes diante da impuni-
262
Fernando Ponte de Sousa
dade – a repressão se aplica não como pena aos poderosos, mas
como temor a enfraquecer os movimentos mais contundentes –,
que torna o medo uma estratégia de poder de classe.
A cada denúncia mais revoltante, repetem-se as declarações
das autoridades anunciando medidas inócuas, quase sempre,
pois são recorrentes os assassinatos. Os fatos comprovam. Durante a ditadura, de 1964 a 1984, estima-se que até 400 pessoas
tenham sido mortas e “desaparecidas” por participarem de ações
políticas de oposição. Acrescentam-se os assassinatos no campo, no mesmo período, de 832 pessoas, camponeses, líderes ou
não. E nos governos civis, de 1985 a 2010, no campo, nos conlitos por terra, foram assassinadas 1.158 pessoas.
Como já dito, não se trata de uma herança. No que pese a
luta pela posse da terra sempre ter sido presente nas transformações históricas do país, o regime da grande propriedade privada
sobrevive às mudanças dos ciclos políticos, culminando com o
ciclo neoliberal dos anos 1990 do século passado, mais intensamente privatista e ainda mais desregulamentador.
Do lado do capital, nada é impeditivo à acumulação quando
se tem a violência social, política e simbólica contra alvos selecionados – os contestadores da acumulação já não originária.
O elo entre o golpe (a ditadura militar) e o regime civil está relacionado ao antagonismo de classe como revolução e contrarrevolução, que, em seu extremo, tem no fascismo, quer como
regime, quer com movimento, a sua expressão ideológica, onde
a manipulação do simbólico mobilizador das massas se dá como
movimento ativo ou como movimento conformista, na forma de
totalitarismo – o controle que se torna absoluto, e que tem na violência e no medo seus principais recursos de dominação. Evidente
que os governos civis pós 1985 não se deinem pelo fascismo como regime, mas o que se destaca aqui é que a “técnica” fascista
de controle não é antagônica ao regime democrático burguês. Não
Crítica à punição eterna como memória histórica 263
se trata de discutir tipologias, mas sim os elementos dinâmicos da
formação autoritária, como personalidade (modo de ser) e como
instituição (função social). As intenções democráticas não são suicientes para controlar estes dinamismos sempre aptos a outros
constituintes se não combatidos tenazmente.
Faz parte disso a memória histórica. A impunidade, o segredo eterno dos documentos da ditadura, e a criminalização dos
movimentos sociais radicais, parecem expressar que a sociedade
está submetida a uma punição, esta sim, eterna: a de não conhecer
plenamente sua história, e condenar a juventude aos limites da
política gerada pelos conservadores nos períodos das ditaduras.
São considerados segredos eternos exatamente os mais extremos, justamente porque as informações revelariam o terrorismo
de Estado como recurso que transcende as fronteiras nacionais,
como a mais patente evidência da violência política de classe.
O exemplo mais patente deste segredo eterno é a Operação
Condor, um terrorismo coordenado, estrategicamente planejado
e executado pelas forças de segurança dos governos dos países
do Cone Sul, a partir de 1973. Seus objetivos, compreendendo
Brasil, Uruguai, Argentina, Bolívia e Chile, eram: coleta, troca
e armazenamento de dados de inteligência a respeito dos opositores aos governos ditatoriais; prisão, sequestro e assassinatos de opositores selecionados, mesmo fora das fronteiras da
América Latina. Com exceção de documentos descobertos no
Paraguai depois da ditadura de Alfredo Stroessner, pouco se conhece sobre a Operação Condor, e os governos civis no Brasil
não se pronunciaram a respeito, seque apresentaram iniciativas
para desvendar o que aconteceu, e muito menos responsabilizar os agentes públicos envolvidos. Paradoxalmente, é possível
que determinadas informações sejam obtidas mais pelos documentos liberados pelo Departamento de Estado dos EUA do que
pelos esforços de uma política de memória histórica no Brasil.
264
Fernando Ponte de Sousa
É como se os governos civis advogassem a política autônoma e indiferente aos valores, assumindo compromissos outrora
impensáveis, mas agora tidos como necessários.
Compete à memória histórica não simplesmente realizar a
catalogação, mas denunciar esta suposta indiferença do poder, e
airmar uma perspectiva crítica, pois esta ação contém uma relação com a verdade, pertencente às pessoas que não queimaram
as suas lembranças.
A memória histórica torna-se, nesta perspectiva, um momento de consciência, como fundamento sempre inédito para
quem se apossa do conhecimento como base para as decisões,
não delegado a ninguém exclusivamente.
A verdade delegada a alguns – como se outorgam os poderosos do regime autocrático –, compromete o poder de decisão, e
extingue a possibilidade da liberdade, que precisa se reconstituir
a partir da resistência permanente.
A ditadura continua – em nome do transicional – quando
aprisiona os jovens: abandonem seus sonhos de liberdade para
disputarem um lugar privilegiado frente ao panóptico, que não
mais precisa ser visível materialmente, porque se tornou uma
ameaça constante como estratégia de dominação. A técnica é a
comunicação para gerar o ameaçador e o temor, comunicação
de que a memória não foi incendiada, mas guardada como arma.
Posto assim, a memória histórica atinge e envolve muitos
campos de pesquisa e de intervenção, como educação, eventos e
datas, memórias urbanas, incluindo ruas e monumentos; e como
política é transversal também às relações de poder – e neste âmbito, é central aos interesses dos movimentos políticos e sociais.
Crítica à punição eterna como memória histórica 265
Referências
BARREIRA, César. Pistolagem política: a morte por
encomenda. In.: Reforma agrária. ABRA, Campinas, v. 22, n.
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Presidência da República. Programa Nacional de Direitos
Humanos (PNDH-3). Brasília: SDH/PR, 2010.
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NOBRE, Chari M. Brevers Gonzalez; AMARAL, Letícia
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Biblioteca Digital disponível em <www.lastro.ufsc.br>.
PINAUD, João Luiz Duboc. Carta ao Presidente Luis Inácio
Lula da Silva. Memorial dos Direitos Humanos. Biblioteca
Digital disponível em <www.lastro.ufsc.br>.
266
Fernando Ponte de Sousa
SOARES, Maria Victória de Mesquita Benevides. Tortura
no Brasil, uma herança maldita. In. Uma visão histórica e
social. Brasil. Presidência da República. Secretaria de Direitos
Humanos. Tortura/Coordenação Geral de Combate à Tortura
(org.) – 1. ed. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010.
10
Neofascismo, internet
e História do Tempo Presente
Fábio Chang de Almeida*
E
specialmente a partir da década de 1990, estabeleceu-se um
contexto de reairmação dos movimentos de extrema-direita. Grupos de inspiração fascista1 passaram a frequentar os noticiários de maneira cada vez mais recorrente. Várias pesquisas
atestam que os incidentes violentos com motivação relacionada
aos ideais nazifascistas vêm aumentando em todo o mundo. Por
exemplo, de acordo com o European Monitoring Centre on Racism and Xenophobia, entre 2000 e 2006 foram registrados incrementos signiicativos nas taxas de crimes com motivação racial nos seguintes países europeus: Alemanha, Espanha, França,
Grécia, Irlanda, Itália, Polônia, Portugal, Eslováquia, Finlândia
Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS.
1
Neste artigo utilizou-se a expressão “de inspiração fascista” como sinônimo de
“neofascismo”. Foram consideradas “neofascistas” as fontes que continham conteúdo
inspirado ou referente ao fascismo italiano, ao nazismo alemão e/ou suas derivações.
Foi evitada a utilização do termo “neonazismo”, dando-se preferência à expressão mais
genérica “neofascismo” em função da precedência cronológica do fascismo italiano.
*
268
Fábio Chang de Almeida
e Reino Unido (EUMC, 2007, p. 118-124). Na América Latina
o cenário é semelhante (ver relatórios STEPHEN ROTH, 2006
e 2008; BRAYLAN, 2008).
Ao mesmo tempo em que aumenta a frequência de tais
incidentes, sites de conteúdo neofascista proliferam na internet (ALMEIDA, 2008). O estudo desse fenômeno constitui
um exemplo da prática de uma História do Tempo Presente.
Muitas são as características especíicas de uma pesquisa de tal
natureza: a incorporação de uma nova categoria documental (as
chamadas fontes eletrônicas, ou digitais); o acesso privilegiado
a estas fontes (visto que elas possuem uma existência efêmera
e tendem a desaparecer em pouco tempo); a relação de contemporaneidade entre o historiador e o objeto estudado, e a consequente falta de “distanciamento temporal”; o cunho “inacabado”
de uma história em plena construção, etc. Tais características
implicam na utilização de métodos especíicos para a análise do
imediato. Ao lançar mão de um arcabouço metodológico próprio, o pesquisador do tempo presente consegue evitar a maioria
dos possíveis problemas atribuídos a uma história escrita “no
calor dos acontecimentos”. A uma “história quente” correspondem métodos especíicos. Ao analisar a atual expansão da rede
de comunicação neofascista na internet, o historiador do tempo
presente deve compreender tal panorama dentro de uma conjuntura mais ampla, onde a extrema-direita revela um caráter de
permanência desde o início do século XX. Este olhar mais profundo quebra a supericialidade dos acontecimentos buscando a
sua gênese. Tal abordagem acerca do presente é uma marca do
historiador. Esta característica diferencia a leitura histórica do
presente, de outras abordagens. Nada impede que cientistas sociais e jornalistas realizem a observação do presente embasados
em um estudo de cunho “genético”. Contudo, para os historiadores do presente isso é uma obrigação.
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 269
Nesse sentido, o fenômeno neofascista observável atualmente não deve ser confundido com um “renascimento” da
extrema-direita, pois, na realidade, ela jamais desapareceu após
a 2ª Guerra Mundial. As depurações antifascistas realizadas na
Europa após o inal da Guerra não impediram a sobrevivência
das ideologias em novos partidos políticos e outras organizações. Torna-se interessante analisar esta permanência em países
como Alemanha, Itália e França, devido às suas emblemáticas
relações com o Fascismo na primeira metade do século XX. Um
olhar sobre a presença histórica da extrema-direita na América Latina também torna-se operacional, para então buscarmos
compreender o atual panorama do fenômeno neofascista e sua
proliferação através da internet.
A permanência da ideologia fascista após 1945
Os expurgos antifascistas realizados na Europa após o inal
da Segunda Guerra Mundial tiveram dois resultados práticos.
Em primeiro lugar, eles foram eicientes ao impedir qualquer
possibilidade de uma efetiva restauração nazifascista no imediato pós-guerra (ALMEIDA, 2010). O contexto social e econômico europeu foi auxiliar para a inexistência de uma resistência
fascista. Nas três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial (os “Trinta Gloriosos”), as democracias liberais da Europa
Ocidental experimentaram um signiicativo nível de estabilidade
econômica e política. Isso produziu um panorama desfavorável
para soluções extremistas de direita e de esquerda (BETZ, 1993,
p. 413). Por outro lado, as depurações não foram suicientes para
impedir a sobrevivência e a aceitação de novos grupos de extrema-direita de inspiração nazifascista ainda na década de 1940. A
ideologia fascista sobreviveu de forma latente nos anos seguin-
270
tes. Para compreender tal fenômeno, devemos observar com mais
proximidade os processos de depuração realizados após 1945.
Devido à importância já comentada anteriormente, serão analisados com maior atenção os casos da Alemanha, Itália e França.
Alemanha
Na Alemanha, as principais punições impostas durante o
processo de desnaziicação recaíram sobre os funcionários de
baixo escalão do NSDAP,2 icando impunes, ou com punições leves, a maioria dos funcionários de alta hierarquia. As medidas punitivas também foram desequilibradas com relação às instituições
nazistas envolvidas. Por exemplo, enquanto os membros das instituições de ensino sofriam forte perseguição, empresários e setores
do Estado – como a Justiça e as Forças Armadas – não realizaram
uma desnaziicação completa (BRANDALISE, 1999, p. 82).
Na segunda metade da década de 1940, já era visível a reorganização dos setores conservadores na Alemanha. O Deutsche Rechtspartei (DReP), – surgido da aliança entre os partidos
Deutsche Konservative (DK), Deutsche Aufbaupartei (DAP) e
Deutsche Bauern- und Landvolk-partei (DB-Lp) – foi o primeiro partido de extrema-direita a conseguir resultados eleitorais
signiicativos no país após a derrocada do nazismo. Fundado em
1946, o DReP conseguiu eleger cinco representantes na primeira
eleição ao Bundestag3, em 1949.
Ainda em 1949 foi fundado o Sozialistische Reichspartei
Deutschlands (SRP), um partido abertamente nazista que atraiu
2
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 271
Fábio Chang de Almeida
Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães): o partido nazista.
3
O Bundestag é o Parlamento Alemão, criado pela constituição de 1949 em
substituição ao antigo Reichstag.
muitos membros do DReP. O discurso do SRP incluía as bases
do que viria a ser conhecido como “negacionismo”4, ao airmar
que os fornos crematórios no campo de concentração de Dachau
teriam sido construídos pelos EUA após o término da II Guerra
Mundial. O SRP chegou a possuir dez mil membros, conquistou
cadeiras nos parlamentos da Baixa Saxônia e em Bremem, além
de possuir um braço paramilitar conhecido como Reichsfront.
O artigo 21 da constituição alemã previa a possibilidade de fechamento de partidos políticos “radicais” por sentença do Tribunal Constitucional. Também vários artigos do novo código penal
qualiicavam como crimes a participação em atividades de organizações proibidas, a difusão de material de propaganda extremista
e a utilização de insígnias nazistas (JIMENEZ, 1998, p. 47). Em
função disso, o partido foi extinto pela justiça alemã em 1952.
Após o fechamento do SRP, seus antigos membros formaram
alianças com outros partidos de direita, dando origem em 1950 ao
Deutsche Reichspartei (DRP). Os principais líderes deste novo
partido haviam sido membros do NSDAP. Nas eleições de 1959, o
DRP conseguiu 90 mil votos na Renânia-Palatinado (Rheinland-Pfalz). Em 1964, o partido se dissolveu com a intenção de formar
uma nova força de extrema-direita com expressão nacional.
Dessa forma, no mesmo ano, derivado do Deutsche Rei4
O negacionismo constitui uma subdivisão do “revisionismo histórico”, e procura
reescrever a história negando o holocausto judeu. A vertente negacionista desenvolveu-se principalmente na Alemanha, Estados Unidos e França, logo após o inal da
Segunda Guerra. Já em 1948, o francês Maurice Bardèche publicava em Paris a obra
“Nuremberg où la Terre Promise”, onde lançava a ideia de que os crimes nazistas eram
uma farsa. Para Bardèche, as câmaras de gás serviam apenas para “desinfecção”, e não
para o extermínio. Apesar de ser uma obra pioneira, o livro tende a ser ignorado pelos
negacionistas atuais, devido ao alto comprometimento ideológico de seu autor, um
fascista militante. (VIDAL, 1994, p. 17). Todavia, o desenvolvimento do negacionismo
viria a ganhar impulso na década de 1960. Foi importante neste processo a editora
francesa La Vieille Taupe, fundada por Pierre Guillaume em 1965. Inicialmente de
orientação trotskista, a editora rompeu com o comunismo no inal da década de 1960 e
gradualmente foi afastando-se da esquerda (JESUS, 2006, p. 37-38).
272
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 273
Fábio Chang de Almeida
chspartei, surgiu o Nationaldemokratischen Partei Deutschland
(NPD), um partido de extrema-direita formado por setores médios ligados ao Terceiro Reich. Nos anos 1960 o NPD constituía
um movimento conservador saudosista, que defendia o anticomunismo e a revisão dos acordos de Ialta e Potsdam (SILVA,
2004, p . 156-157). Dos dezoito membros do primeiro comitê
executivo do NPD, doze haviam sido nazistas atuantes antes
de 1945. Apesar disso, todos os esforços para considerá-lo um
partido nazista – e consequentemente torná-lo ilegal – falharam
(CHILDS, 1991, p. 72). Os anos 1960 foram de relativo sucesso
para o NPD. Nas eleições federais de 1969 o partido conseguiu
1,4 milhões de votos, o que representou 4,3% do total. Após 1969,
o partido – assim como todos os setores de direita – enfrentou
um retrocesso que perdurou durante toda a década de 70. Nos
anos 1980, alguns fatores funcionaram como combustível para
o reerguimento da extrema-direita na Alemanha: o desemprego,
a entrada de estrangeiros e o colapso dos regimes comunistas na
Europa Oriental são alguns exemplos (CHILDS, 1991, p. 75).
Seguindo a tendência europeia, os conservadores extremistas cresceram na Alemanha nos anos 1980. Nas eleições federais
de 1987, o NPD recebeu 227.045 votos. Com este desempenho,
o partido obteve o direito a 1,3 milhões de marcos alemães em
inanciamento público para campanha e consolidou-se como o
principal partido de extrema-direita da Alemanha (CHILDS,
1991, p. 77). Embora nunca tenha conseguido atingir o mínimo
de 5% de votos necessários para enviar políticos ao Bundestag,
o NPD já conseguiu eleger diversos representantes para os parlamentos estaduais, em especial na Saxônia. Em 1994, o NPD
promoveu um grande evento que contou com a presença dos
revisionistas David Irving e Fred Leuchter, onde foi defendida
abertamente a teoria negacionista, segundo a qual o holocausto
foi uma invenção dos judeus. No mesmo ano o atual líder do
partido, Gunter Deckert, foi julgado por propaganda fascista e
incentivo ao ódio racial, mas foi inocentado das acusações pela
Corte de Justiça de Mannheim (SILVA, 2004, p. 163).
Em 1983, foi fundado em Munique o Die Republikaner
(REP), outro partido com orientação de extrema-direita. Seu fundador, Franz Schönhuber, era um ex-membro da Waffen SS. Nas
eleições de 1989, o REP conseguiu 90.140 votos na Berlim ocidental, o que representou 7,5% do total e 11 cadeiras no parlamento da cidade (BETZ, 1990, p. 45). No pleito nacional de 2005, recebeu 1,6% dos votos nacionais e 5% na Saxônia. A plataforma do
partido tem pontos xenófobos. De 1989 a 1994, Franz Schönhuber representou o REP como deputado no Parlamento Europeu.
Outros partidos políticos de extrema-direita fazem-se presentes na Alemanha atual. Depois do NPD, a organização de
maior importância é, provavelmente, o Deutsche Volksunion
(DVU). Fundado em 1971, mas oicialmente organizado em
1987, o DVU, assim como o NPD, nunca conseguiu atingir o
mínimo de 5% de votos necessários para enviar políticos ao Bundestag. No entanto, já elegeu representantes para os parlamentos
estaduais. Os dois partidos formaram uma aliança em 2005 para
as eleições federais. A coligação NPD/DVU conseguiu 1,6% do
total de votos na Alemanha.5 O DVU possui em torno de 30 mil
associados (SILVA, 2004, p. 162).
Itália
Na Itália, o processo de expurgo foi conduzido pela Resistência Antifascista, e não pelos Aliados. Os partigianos cobraram
um alto preço pela forte repressão sofrida sob o regime de Benito
5
O REP foi convidado, mas recusou-se a participar da coligação.
274
Fábio Chang de Almeida
Mussolini: a depuração italiana foi mais violenta do que aquela
praticada na Alemanha. Apesar disso, logo em 1944, foi fundada
por Guglielmo Giannini a Fronte dell’Uomo Qualunque (UQ). Inicialmente um periódico de extrema-direita, o UQ viria a se tornar
um partido político em 1946. Neste mesmo ano, o partido obteve
5,3% dos votos para a Assembleia Constituinte, o que lhe valeu
trinta assentos (SCALIATI, 2005). Ainda em 1946, o UQ conquistou vitórias nas eleições locais: 20,7% em Roma, 19,7% em Nápoles, 46% em Bari (em aliança com os monarquistas e conservadores do Partito Liberale Italiano – PLI), 34,6% em Foggia, 47% em
Lecce, 34,6% em Catania (com os liberais) e 24,5% em Palermo
(CHIARINI, 1991, p. 24). Nos anos seguintes, o UQ desaiou com
sucesso a hegemonia da Democracia Cristã em vários redutos eleitorais do sul da Itália. O partido se caracterizava por uma exaltação
dos “valores do indivíduo” e da tradição, direcionados contra as
tendências comunistas. A partir de 1948 o UQ iniciou um rápido
declínio e esvaziamento de suas ileiras (PALLA, 1996, p. 144).
Contudo, os setores de extrema-direita, que sobreviveram
ao expurgo conduzido pela resistência, se rearticularam de forma
mais consistente em torno de outra nova organização, fundada
em 1946 por Giorgio Almirante e outros ex-membros do Partido Fascista: o Movimento Social Italiano (MSI). Para seus integrantes, a sigla do partido podia ter um signiicado alternativo:
“Mussolini Sei Immortale” (MAMMONE, 2005, p. 19). Apesar
de o artigo XII da nova constituição italiana proibir a formação
de partidos fascistas – e mais tarde a lei Scelba de 1951 regular
os mecanismos dessa proibição –, tal legislação nunca foi aplicada ao MSI (JIMENEZ, 1998, p. 48). O MSI tinha um caráter
saudosista e nostálgico. Simpatizante de um sistema de governo
autoritário, o partido defendia uma “terceira via” entre o capitalismo liberal e o socialismo.
A nova legislação italiana previa a punição dos dirigentes
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 275
fascistas, dos ativistas do Partido Nacional Fascista (PNF) e da
Milícia, culpados de abusos, e os colaboracionistas que continuaram a apoiar os alemães após 1943. Todavia, em 1946 foi
decretada uma anistia geral que possibilitou que a maioria dos
fascistas passíveis de julgamento escapasse à condenação. Até o
inal da década de 1950 o MSI não obteve resultados eleitorais
signiicativos, icando atrás dos partidos monarquistas e do UQ.
Contudo, o MSI conseguiu se airmar no cenário político italiano a partir dos anos 1960. De acordo com Marco Palla (1996,
p. 140-144), o MSI deu origem a uma série de pequenas organizações que representavam o “terrorismo italiano de extrema-direita”, como o Terceira Via, o Nova Ordem e o Ordem Negra.
Entre 1948 e 1989, o MSI manteve uma média de 4 a 5%
dos votos nas eleições italianas. Seu pior resultado eleitoral foi
obtido em 1948 (1,9%), e seu ápice foi atingido em 1972 (8,7%).
Nas eleições para o Parlamento Europeu, em 1989, o MSI obteve 5,5% dos votos italianos (CHIARINI, 1991, p. 19). Em
1992 o MSI elegeu Alessandra Mussolini, neta do Duce, para
o parlamento de Nápoles. Embora marginalizado, o MSI sobreviveu até 1995, quando foi dissolvido, e deu origem à Alleanza
Nazionale (AN), um partido de direita que procurou se afastar
da herança claramente fascista do MSI. Gianfranco Fini, último
líder do MSI, foi o fundador e principal líder da AN. A Alleanza
é um dos partidos que compõe a coalizão Casa delle Libertà
(CDL), que levou Sílvio Berlusconi à presidência do Conselho
de Ministros em 2001.
Após divergências públicas com Gianfranco Fini, Alessandra Mussolini fundou uma nova agremiação, o Libertà di Azione, depois rebatizado como Azione Sociale (AS). Enquanto Fini
tomava uma via mais amena, procurando superar seu passado
fascista em favor de sua carreira política, Alessandra defendia a
herança política de seu avô. Em 2004, Alessandra formou uma
276
Fábio Chang de Almeida
coligação chamada Alternativa Sociale, juntando a AS com o
Movimento Sociale Fiamma Tricolore (MS-FT) e a Forza Nuova (FN). Com essa união de partidos Alessandra Mussolini ocupou uma cadeira no Parlamento Europeu entre 2004 e 2008.6
França
Na França, a extrema-direita passou por uma renovação
após o término da Segunda Guerra. No quadro fragmentado
resultante da depuração, os setores conservadores extremistas se reorganizaram com uma nova coniguração. O “culto
à derrota” reuniu antigos vichystas, conservadores e jovens
extremistas (BRANDALISE, 1999, p. 86). Nos anos 50, icou
claro que a depuração, embora severa, não havia atingido todos
os níveis da estrutura colaboracionista. As punições mais rigorosas foram aplicadas contra os integrantes da Milícia. Os primeiros núcleos de reorganização da direita radical francesa eram
compostos por antigos seguidores do regime de Vichy. Muitos
dos personagens políticos do colaboracionismo voltaram à cena pública nos anos 1950 em função da anistia geral concedida
em 1953 (JIMENEZ, 1998, p. 48).
Neste mesmo ano, foi fundada a Union de Defense Commerciants et Artisans (UDCA), liderada por Pierre Poujade.
Movimento de extrema-direita, anticomunista, antissemita e
apoiado pela classe média, a UDCA conseguiu 51 cadeiras na
Assembleia Nacional em 1956. A organização airmava-se como
anticapitalista, antiparlamentar e contra o dirigismo burocrático
(BRANDALISE, 1999, p. 86-87). O mais jovem eleito pela UDCA foi o então desconhecido Jean-Marie Le Pen.
6
Currículum Vitae de Alessandra Mussolini presente no site do Parlamento Europeu,
disponível em: <www.europarl.europa.eu>. Acesso em março de 2010.
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 277
Em 1962, com o reconhecimento da independência da Argélia, a extrema-direita francesa entrou em uma fase de reluxo
que durou duas décadas. Neste período, em 1972, foi fundada
a Front National pour l’unité française (FN), por Jean-Marie
Le Pen. Nos anos 1980, iniciou-se um período de sucesso para
os grupos conservadores extremistas, e foi a partir de 1982 que
a FN atingiu seus primeiros resultados eleitorais signiicativos.
Neste ano, o partido obteve uma votação relativamente expressiva na eleição municipal de Dreux (16,7% dos votos); em 1984,
conseguiu 10,95% dos votos e dez deputados nas eleições europeias; e em 1986 conquistou 35 cadeiras nas eleições legislativas. Em 1988, Le Pen conseguiu notoriedade nacional ao ganhar
14,37% dos votos nas eleições presidenciais. No ano seguinte,
a FN melhorou seu desempenho nas eleições europeias: 11,8%
dos votos e 11 deputados. Nas eleições presidenciais de 1985, Le
Pen conseguiu um percentual ligeiramente superior ao conquistar 15,15% dos votos (FN, 2007-a).
Os anos 1990 foram de baixo rendimento eleitoral para a
FN, revelando uma cisão interna no partido entre conservadores
e “liberais”. O grupo liderado por Le Pen defendia a permanência dos valores tradicionais da FN, claramente vinculados com
a extrema-direita e com o fascismo. Já a ala moderada pregava
uma modernização doutrinária, permitindo alianças com setores
de direita menos radicais, visando melhores resultados eleitorais. Jean-Marie Le Pen, até hoje o único presidente do partido,
venceu as disputas internas e manteve a orientação da FN voltada para a extrema-direita.
Em 1994 é fundado o Mouvement pour la France (MPF),
liderado por Philippe de Villiers, que viria a se tornar o segundo principal partido de extrema direita na França. Nas eleições
europeias de 1999, em aliança com o Rassemblement pour la
278
Fábio Chang de Almeida
France7 (RpF), o partido conseguiu 13 cadeiras. Villiers é constantemente criticado por Le Pen, pois o MPF divide com a FN
os votos da extrema-direita. Em um documento onde deine as
prioridades políticas para as eleições de 2007, Villiers defende
um plano de “imigração zero” para a França (MPF, 2007).
Em 1998, Bruno Mégret, até então considerado o sucessor
natural de Le Pen, deixa a Frente Nacional e funda o Mouvement National Républicain (MNR), um partido que se propunha
a uma plataforma política nacionalista e liberal, distanciando-se
do extremismo da FN. Mesmo assim, o MNR manteve o discurso anti-imigração. No programa de governo do partido estão
explicadas as propostas para evitar a “Islamização” da França:
“Les propositions faites par le MNR pour éviter l’islamisation
de la France“ (MNR, 2010). Após Mégret, outras lideranças
também abandonaram a Frente Nacional, enfraquecendo-a e induzindo analistas a considerar a direita radical com diiculdades
para se manter no cenário político francês.
Entretanto, nas eleições presidenciais de 2002, Le Pen e a
FN surpreenderam a França ao conseguirem 16,86% dos votos,
a segunda maior votação, e uma vaga na disputa do segundo turno contra Jacques Chirac. A vitória deste foi esmagadora (86%),
mas o recado da FN estava dado: a extrema-direita vive. Em
2003, Jean-Marie Le Pen lançou sua ilha – Marine Le Pen – no
cenário político ao nomeá-la para um cargo executivo no partido. A indicação de Marine instaurou uma nova crise, e alguns
líderes deixaram o partido, migrando para o MPF. Marine foi
eleita para o Parlamento Europeu em 2004. A plataforma da FN
defende uma revalorização dos valores e da “cultura tradicional” diante da “invasão de imigrantes”. Esta defesa tem uma
entonação explicitamente xenofóbica. O tema da imigração
7
Partido criado em 1999 e rebatizado em 2003 como Rassemblement pour la France
et l’Indépendance de l’Europe (RpFIE).
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 279
é tão central para o partido que constituía o primeiro dos 25
capítulos do programa de governo da FN para as eleições de
2007 (FN, 2007-b, p. 5-6). Conforme Le Pen, o momento atual
é de uma “crise de civilizações” e perda de identidade nacional,
estando a França exposta a ameaças externas e internas em função da “política de imigração sem freios” e da ausência de um
serviço militar obrigatório (FN, 2007-b, p. 3).
A extrema-direita na América Latina
Na maioria dos países latino-americanos, criaram-se condições políticas favoráveis para o surgimento de movimentos
fascistas no período compreendido entre as duas Guerras Mundiais. Conforme Hélgio Trindade (2004, p. 19-22), a principal
questão não diz respeito à existência da presença fascista na
América Latina, mas sim à extensão de suas manifestações. Em
outras palavras, o problema seria distinguir as imitações dos movimentos autênticos. Nesse sentido, Trindade cria dois grupos
principais. No primeiro grupo estão Argentina, Peru, Uruguai e
Paraguai, países onde os movimentos de inspiração nazifascista
não passaram de mimetizações sem inluência signiicativa na
sociedade e no processo político. O outro grupo reúne os países
onde surgiram movimentos fascistas com expressiva base social
e inluência sobre o regime político nacional (embora nenhum
tenha chegado ao poder): México, Chile, Bolívia e Brasil. Destes, o caso brasileiro seria o único a preencher os requisitos para
ser considerado um movimento tipicamente fascista. Roger Grifin (1991a, p. 33-38) concorda com Trindade, ao airmar que “o
Fascismo genérico é um fenômeno predominantemente, mas não
exclusivamente, europeu”, sendo a Ação Integralista Brasileira
(AIB) o único caso de movimento fascista latino-americano.
280
Fábio Chang de Almeida
A Ação Integralista Brasileira (AIB) foi um movimento ultranacionalista e anticomunista, também considerada a primeira
organização de massa no Brasil. Fundada em 1932 por Plínio
Salgado, a AIB surgiu em um momento de transição econômica,
social e cultural do país. O modelo econômico primário-exportador alicerçado na agricultura cafeeira enfrentava uma grave
crise. Estava em pleno andamento um processo de urbanização
e industrialização do país. Rebeliões de jovens oiciais das Forças Armadas explodiram pelo país nos anos 1920, contestando
o sistema dominante. Também nesse período o movimento operário ganhou força e as greves passaram a ser o seu principal
meio de reivindicação por melhores salários e condições de trabalho. O anarquismo (trazido pelos imigrantes) e o comunismo
(com a fundação do PCB em 1922) ajudaram a compor o quadro de inquietação e politização das classes trabalhadoras. Este
cenário político em transição, aliado ao panorama dinâmico no
plano das ideias, viria a propiciar o contexto necessário para a
ascensão de um movimento de extrema-direita do tipo fascista
no Brasil (TRINDADE, 2004, p. 60). A ideologia central da AIB
relacionava-se com a construção mítica de um “Brasil real” em
oposição ao “Brasil oicial”, artiicializado pela importação de
modelos institucionais estrangeiros. Para superar as diiculdades
nacionais, o país deveria construir um Estado forte, recusando
o sistema liberal-democrático e um sistema parlamentar multipartidário “corrupto”, modelado em valores humanistas do Iluminismo, trazidos do exterior, e contribuintes importantes para
a “situação caótica de desintegração nacional” (TRINDADE,
1979; MEDEIROS, 1978; ARAUJO, 1984).
No Chile, a principal organização de inspiração nazifascista
foi o Movimiento Nacional Socialista (MNS), partido político
fundado em 1932 por Jorge González Von Tides. O MNS apresentava-se como a única esperança para que o país alcançasse os
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 281
interesses nacionais. Imbuídos com esta missão, seus membros
tinham a intenção de criar uma abrangente força popular englobando todos os estratos sociais. Defendendo a construção de um
grande Chile, o nacismo defendia o nacionalismo através de um
aparelho administrativo fortemente hierarquizado. Opunha-se
aos “colonizadores imperialistas” (América do Norte e Inglaterra), ao liberalismo e ao “capitalismo selvagem”. Por outro lado,
a ação política de um novo líder convergiria à vontade coletiva através da mobilização da “massa anônima”. Esse modelo
aproximava-se do nacional socialismo alemão, porém com diferenças em relação ao contexto de época chileno (POTASHNIK, 1974). O MNS obteve resultados eleitorais relevantes nas
eleições parlamentares de 1937 (quase 15 mil votos), e uma signiicativa penetração ideológica nos meios universitários. Seus
membros se autodenominavam “nacistas” e pregavam a substituição da “falsa democracia” por uma verdadeira, autenticamente social e de cunho espiritual. Em 1938, 59 militantes do MNS
foram mortos por tropas governamentais no episódio conhecido
como “Massacre del Seguro Obrero” (QUEZADA, 2000, p. 8082). Após o declínio do MNS, ocorrido depois de 1938, novos
grupos de extrema-direita emergiram no cenário político chileno. Os principais herdeiros do legado nacista foram o Partido
Nacional Fascista (1938), o Movimiento Nacionalista de Chile
(1940), a Vanguardia Popular Socialista (1940) e a Unión Nacionalista (1942). Todavia, nenhuma destas organizações obteve
grande aceitação popular, permanecendo à margem do sistema
político chileno (KLEIN, 2001, p. 374-375).
No México, a União Nacional Sinarquista (UNS) nasceu
em maio de 1937. Autoproclamado “movimento nacional”, e
não um partido político, atraiu durante algum tempo um grande
número de simpatizantes. Seu objetivo era “salvar” a estabilidade do país das ameaças representadas pela Revolução de
282
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 283
Fábio Chang de Almeida
1910, pelos comunistas, pela América do Norte, pelos maçons,
protestantes e judeus. Seu programa era baseado na exaltação
do catolicismo, nas tradições hispânicas, na família, na vida
das aldeias e numa “economia do bem comum.” Seu discurso
exaltava a coragem, o sacrifício, o ascetismo e a disciplina. A
propaganda da UNS foi feita principalmente em áreas onde a
política de reforma agrária teve pouco sucesso e onde a corrupção administrativa prevalecia (MEYER, 1977).
Na Argentina, a extrema-direita inluenciou governos e possui um longo relacionamento com a sociedade civil através de
organizações como a Liga Patriótica Argentina (LPA), a Legião
Cívica Argentina (LCA) e a Aliança Anticomunista Argentina
(AAA, ou Triple A). A LPA, criada em 1919, foi o principal movimento nacionalista contrarrevolucionário do país. A fundação
da LPA baseava-se na ideia de formação de um agrupamento civil permanente, para agir em casos “onde a ordem fosse alterada
por elementos estranhos à Argentina” (MOSCATELLI, 2002, p.
3). Surgida doze anos mais tarde, a LCA foi uma organização
paramilitar civil de inspiração fascista, comandada por oiciais
das Forças Armadas. Foi criada em 1931 pelo presidente José Felix Uriburo, que havia ascendido ao poder um ano antes
através de um golpe militar. Uriburo apoiava publicamente as
ideias da direita nacionalista (ROMERO, 2006, p. 64). Outra
importante organização da extrema-direita argentina, a “Triple
A” foi criada por volta de 1973, com o objetivo de combater
a “subversão” utilizando grupos civis paramilitares. Acabou
constituindo uma poderosa organização terrorista de direita.
Por sua atuação anterior ao golpe militar de 1976, bem como
pelo apoio governamental recebido, relaciona-se a “Triple A”
com o início dos métodos de Terrorismo de Estado na Argentina (AGEITOS, 2002, p. 20-21). A atuação da Triple A comprova que nos anos 1970, o pensamento de direita radical e a utili-
zação da violência política encontravam ressonância em parte
da sociedade civil argentina (DUHALDE, 1999, p. 70-71).
Simultaneamente à atuação dos grupos paramilitares, a
partir da década de 1920 um novo modelo político tomou forma
na Argentina, com o apoio de intelectuais, militares e setores
da Igreja Católica. Ao contrário da direita tradicional, o novo
modelo assumiu um posicionamento antiliberal, nacionalista,
corporativista e antissemita, propondo a transformação da Argentina em uma potência econômica, militar e imperialista. Esta nova coniguração icou conhecida como “direita nacionalista” ou “nacionalismo de direita” (BEIRED, 2001, p. 303-304).
Resultado do desenvolvimento do nacionalismo de direita na
sociedade argentina, o governo de Juan Domingo Perón, entre
1946 e 1955, é o regime extraeuropeu mais recorrentemente
caracterizado como “fascista” (PAXTON, 2004, p. 195). Além
do carisma, da simpatia pessoal de Perón pelo nazismo e da
aproximação diplomática entre Argentina e Alemanha, outras
características alimentam as comparações entre peronismo e
fascismo: o controle sobre a imprensa e o judiciário; as paradas e cerimônias militares; a polícia repressiva; a violência
política; o histórico de acolhimento de criminosos nazistas;8 o
sentimento anticomunista, (o “medo vermelho”, arraigado em
setores da sociedade desde a Semana Trágica de 1919); o histórico de antissemitismo e o contexto de crise econômica instaurado no país após a Primeira Guerra Mundial. Todos estes
elementos contribuíram para a construção de um modelo que
reconhece o fascismo na Argentina de Perón.9
8
Os números sobre a imigração de colaboradores do nazismo para a Argentina
são incertos. Algumas fontes fazem referência a mais de mil criminosos de guerra
refugiados na Argentina (AXT, 1998). Ignacio Klich (1997, p. 401) resume a questão
da seguinte forma: “Eran demasiados, cualquiera fuera su verdadero número”.
9
Fernando Sabsay (2003, p. 301) cita a essência dessa teoria: “El peronismo es
la versión argentina del fascismo italiano. Conluencia de diversas formas de
284
Fábio Chang de Almeida
Contudo, a simplicidade deste modelo mascara a complexidade do fenômeno peronista. Se alguns fatores parecem aproximá-lo dos fascismos europeus, outros podem demonstrar a sua
especiicidade. Roger Grifin (1991b, p. 148-149) enfatiza que o
peronismo não foi radical o suiciente para realizar as transformações socioeconômicas necessárias para criar uma comunidade
nacional orgânica, sob o signo de uma “nova ordem”. Os grupos paramilitares de extrema-direita não conseguiram mobilizar a
sociedade argentina em escala fascista. As agrupações deste tipo
foram várias, mas nunca conseguindo arregimentar as massas em
âmbito nacional. Indo para além do peronismo, podemos airmar
que apesar da longa tradição de movimentos de extrema-direita, a
Argentina não originou nenhum movimento tipicamente fascista.
De forma geral, os nacionalistas argentinos eram contrários ao sistema político representativo, por isso não criaram partidos políticos. As duas únicas organizações de tipo fascista na Argentina do
entre-guerras foram o Partido Fascista Nacional (PFN) e o Partido
Fascista Argentino (PFA), ambos de pouca duração e inexpressivos diante das outras forças políticas do país. O PFN, fundado em
1923, nunca ultrapassou os quinhentos membros, embora tenha
participado de vários confrontos de rua contra a Frente Única Antifascista. O PFA, fundado em 1932, tornou-se conhecido em função do assassinato do deputado provincial socialista José Guevara,
em 1933. Havia certa rivalidade entre o PFN e o PFA, estando em
disputa o título de partido mais “genuinamente fascista”. As duas
organizações eram formadas majoritariamente por imigrantes italianos e seus descendentes (TRINDADE, 2004, p. 27-28).
Durante a ditadura militar de Segurança Nacional (1976nacionalismo. Perón es el conductor, en el sentido de Benito Mussolini, cuya
personalidad y obra le merecieron marcada simpatía, llegando a decir que “lo imitaría
en todo, menos en sus errores”. De acuerdo con esta […] hipótesis: “El peronismo
sería un producto del nacionalismo argentino, que convirtió a las masas obreras en su
instrumento, despojándolas de su espíritu de lucha”.
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 285
1983), além dos desaparecimentos, sequestros e torturas tornados prática de Estado, também o antissemitismo foi tolerado ou
mesmo encorajado pelas autoridades argentinas (CONADEP,
s.d., p. 54-58). Prisioneiros políticos relatam a existência de iconograia nazista nas paredes das salas de tortura. São conhecidos
casos de torturadores que utilizavam braçadeira com a cruz gamada e episódios em que suásticas foram queimadas com cigarro no peito de prisioneiros políticos argentinos (FRONTALINI;
CAIATI, 1984, p. 85).
O crescimento neofascista e a internet
A sobrevivência e rápida rearticulação dos setores extremistas na Europa pós-1945 demonstram uma presença contínua
e organizada da extrema-direita. Percebe-se que, usando argumentos inexistentes nos programas dos partidos convencionais,
as organizações de extrema-direita ganham notoriedade em momentos de crise social, política, ou econômica (BRANDALISE,
1999, p. 78). Visto que a relativa estabilidade e consenso político
do pós-guerra deram lugar à turbulência ideológica e política e
ao crescimento dos conlitos sociais em meados dos anos 1970,
e ao aumento dos protestos de massa por novos movimentos
sociais nos anos 1980, um novo panorama desenhou-se para a
extrema-direita. Estes sintomas formaram um quadro propício
para transformações na política da Europa Ocidental, onde os
setores extremistas encontraram campo fértil na conjuntura dos
anos 1980/90 (BETZ, 1993, p. 413). Neste período, o fenômeno
da expansão das organizações e dos movimentos de extrema-direita foi sentido em praticamente toda Europa. Conforme Hans-Georg Betz,
286
Fábio Chang de Almeida
A Frente Nacional francesa, o Vlaams Blok na Bélgica, o Swiss Vigilants, Action National, e Autopartei,
o Partido da Liberdade na Áustria (FPÖ), e os vários
partidos “progressistas” na Escandinávia estão entre os mais proeminentes exemplos do crescimento
do populismo de direita radical [...] Referindo-se a si
mesmos como “nacional-conservadores” ou “direita-conservadora” estes partidos têm um conjunto de objetivos similares: a implementação de leis para combater o crescimento dos crimes relacionados com drogas;
o retorno aos valores morais tradicionais em face ao
aumento do número de abortos e casos de AIDS; e,
mais importante de tudo, a proteção da identidade nacional e cultural alegadamente ameaçadas pelos imigrantes do terceiro mundo, trabalhadores estrangeiros,
e refugiados (BETZ, 1990, p. 45).
Nos anos 1980, a Europa viu crescerem signiicativamente
as estatísticas de violência com conotação racial. Todavia, nesse
período a “onda de sentimento racista que varreu a Europa ainda
não estava tão identiicada com os grupos de extrema-direita,
como viria a ocorrer na década seguinte” (WACQUANT, 1994,
p. 19). No Velho Continente, o ano de 1991 foi emblemático,
marcado por uma onda de violência de extrema-direita. Naquele
ano, veriicou-se uma série de atentados organizados por grupos racistas e xenofóbicos. Desde então, o número de episódios
envolvendo violência de extrema-direita vem crescendo signiicativamente, na Europa e também na América Latina, conforme
relatórios citados anteriormente. No Brasil, grupos de inspiração
nazifascista estão envolvidos em diversos episódios violentos,
cujos relatos já se tornaram comuns na imprensa.10 Entretanto,
10
Uma pesquisa no site do jornal O Estado de S. Paulo <www.estadao.com.br> revela
um número signiicativo de reportagens a respeito da atuação de grupos de inspiração
nazifascista. Algumas matérias têm títulos sugestivos, como: “Mais um skinhead é
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 287
tais notícias fazem referência a atitudes aparentemente isoladas,
o que induz o público a um grave equívoco: pensar que a extrema-direita latino-americana é desorganizada.11
Normalmente o recurso à violência de extrema-direita é
praticado por jovens que formam grupos de inspiração nazifascista, na maioria dos casos identiicados com a subcultura
skinhead. Uma subcultura pode ser entendida como um conjunto de crenças, práticas culturais e estilos que diferenciam
um grupo de indivíduos de uma coletividade cultural maior, à
qual pertencem. O conceito de subcultura foi desenvolvido a
partir dos anos 1970, para caracterizar as manifestações culturais juvenis surgidas após a Segunda Guerra, tais como aquelas
representadas pelos rockers, mods, teddy boys, punks, hippies
e skinheads. Na concepção de Hebdige, as subculturas são
formas de resistência que expressam uma tensão fundamental
entre os detentores do poder e os indivíduos subordinados de
“segunda classe” (HEBDIGE, 1991, p. 132-133). A origem do
movimento skinhead remonta ao proletariado da Inglaterra dos
anos 1960. Após a II Guerra Mundial, a classe operária britânica passou por uma década de prosperidade. Contudo, nos
anos 1960 instaurou-se uma crise econômica que, na prática,
impossibilitava a ascensão social dessa classe operária. Diante
condenado pela morte de adestrador de cães” (24 de setembro de 2002); “Identiicado
um dos skinheads do ataque em trem” (9 de dezembro de 2003); “STJ nega habeascorpus a neonazista acusado de homicídio” (9 de março de 2006); “PM identiica
movimento neonazista em torcida do Grêmio” (2 de outubro de 2007); Polícia
apreende material de grupo neonazista em SP (17 de junho de 2009).
11
De acordo com Mariano Soler (1998, p. 11), a falta de contextualização é um
problema que também atinge as pesquisas sobre o tema: “Siempre, em los escasos
estudios que existen sobre el fenómeno fascista actual, los especialistas han analizado
las distintas corrientes y organizaciones como si fueran compartimientos estancos.
[...] El error radica em considerar que sectores aparentemente distantes (como los
skinheads y los partidos de la derecha radical xenófoba, por ejemplo) son tendencias
sin ninguna relación. De ahí se extra ela conclusión de que se trata de grupos
atomizados, descoordinados...”.
288
do contexto de imobilidade social, os skinheads buscavam sua
autoairmação enquanto proletários. Os skins tinham um visual
que os diferenciavam de outros grupos juvenis da época. Usavam roupas que lembravam o uniforme dos operários, ou seja,
calças, botas, jaquetas e suspensórios, além do corte de cabelo
muito curto ou raspado à máquina (COHEN, 2005, p. 91).12
São apontadas duas fontes principais para a identidade skinhead original: 1) a cultura dos grupos de jovens imigrantes negros das Antilhas (conhecidos como rude-boys ou rudies); e 2) a
cultura da classe operária inglesa (KNIGHT, 1982, p. 10-14). A
inluência negra nos primórdios do movimento veriica-se pela
preferência musical do grupo. Os skinheads originais estavam
associados a dois estilos musicais vindos da Jamaica, o reggae
e o ska. Portanto, em suas origens os skinheads não possuíam
inspiração nazifascista, embora já apresentassem traços de xenofobia como característica. Isto gerou a grande contradição da
história skinhead: nos primórdios o movimento estava ligado à
cultura dos imigrantes antilhanos. Ao mesmo tempo, tinha como
característica a “defesa do território” contra os “invasores” estrangeiros (COSTA, 1993, p. 28).
Apesar de o culto à violência e o senso de xenofobia estarem
presentes na cultura do grupo desde os primórdios, a identiicação de setores skinheads com a chamada “supremacia branca”
e com a extrema-direita aconteceu somente ao longo da década
de 70, não atingindo todo o movimento. Nesse período, os skins
racistas modiicaram visualmente do padrão original skinhead
ao passarem a utilizar tatuagens com símbolos nazistas e saudarem-se em público com o “Heil Hitler”. A partir de 1978, o Na12
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 289
Fábio Chang de Almeida
É interessante frisar que a vestimenta skinhead não tem origem militar, como alguns
podem airmar erroneamente. Se a bota de operário foi substituída por coturno de
uso militar, isso deu-se em um momento posterior, evidenciando a fragmentação
ideológica do movimento original.
tional Front inglês passou a dar suporte aos grupos de tendência nazifascista e nacionalista. O National Front aproximou-se
dos skinheads racistas ao criar uma organização chamada Rock
Against Communism (RAC), que apoiava bandas de tendência
nazifascista. O RAC surgiu como contraposição ao Rock Against
Racism, evento realizado em 1978 na cidade de Londres e que
reuniu bandas antirracistas (COOTER, 2006, p. 148-149). Dessa
forma, a facção skinhead white power desenvolveu-se adotando
referenciais abertamente nazifascistas e pregando o ódio contra
negros, judeus, ciganos, homossexuais e estrangeiros. Os white
powers acreditam na superioridade da “raça ariana” e são adeptos do negacionismo. Alguns são nacionalistas, enquanto outros
substituem o nacionalismo pela adesão a movimentos separatistas. Acreditam em uma “conspiração sionista internacional”,13 a
qual pretendem combater. Os skinheads de inspiração nazifascista utilizam uma deinição binária de identidade. Assim como
os nazistas originais, eles dividem o mundo entre “nós e eles”,
amigos e inimigos (FANGEN, 1998, p. 33).
São recorrentes nas fontes estudadas referências à teoria de uma “conspiração
sionista internacional”. Algumas vezes o termo pode ser “conspiração judaica”,
“conspiração judeu-maçônica”, ou “conspiração judeu-marxista”, mas o princípio
é sempre o mesmo. No imaginário neofascista, trata-se de uma complexa coalizão
envolvendo judeus, maçons e comunistas com o objetivo secreto de dominar o mundo
e subjugar a “raça ariana”. A suposta manipulação da história pode ser compreendida
pelos simpatizantes do negacionismo como um dos elementos dessa conspiração.
Provavelmente, o mais famoso texto sobre a suposta conspiração sionista seja “Os
Protocolos dos Sábios do Sião”. Em 1921, o jornal inglês The Times já publicara um
artigo onde revelava a fraude dos Protocolos. O documento fora forjado por um agente
da Okhrana, a polícia secreta da Rússia czarista, no inal do século XIX. A intenção da
farsa era culpabilizar os judeus pela instabilidade da monarquia russa. A falsiicação foi
realizada com base em um texto de 1864 do francês Maurice Joly: “O diálogo no inferno
entre Maquiavel e Montesquieu”. Em 1999, após pesquisar em arquivos recentemente
abertos pela ex-União Soviética, o historiador russo Mikhail Lepekhine conirmou a
fraude e revelou o nome do falsiicador: Mathieu Golovinski, um ex-agente da Okhrana
que viria a trabalhar para os bolcheviques após 1917 (CONAN, 1999).
13
290
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 291
Fábio Chang de Almeida
A partir da segunda metade da década de 1990, os grupos de
direita de inspiração nazifascista ganharam uma importante ferramenta de divulgação com a popularização da internet. Na última
década, a rede mundial de computadores conigurou-se como o
principal meio de comunicação da extrema-direita. Em páginas da
web encontramos um vasto material neofascista, incluindo os textos negacionistas. Ainda na internet é possível encontrar indícios
da estrutura organizacional dos movimentos neonazistas, o que
aponta para um panorama complexo e ainda pouco pesquisado.
A popularização da internet trouxe consigo uma série de
problemas. Em primeiro lugar, a relativa “invisibilidade”, fator
inerente à tecnologia da rede, ajuda os movimentos extremistas
a esconderem-se no anonimato. Assim fazem sua propaganda,
organizam seus eventos e difundem suas teorias sem medo de
serem reconhecidos pelas autoridades. Por outro lado, encontramos cada vez mais grupos que não fazem questão de aproveitar esse anonimato. Tais grupos divulgam – e assinam – manifestos claramente racistas, xenófobos e preconceituosos. Isso
nos remete a outra questão, que é a falta de legislação, ou a não
aplicação da legislação existente, para coibir manifestações de
inspiração fascista na internet.
Em 2007, Adriana Dias (2007, p. 26) apontava para aproximadamente 12.600 sites racistas, revisionistas e “neonazistas” em língua inglesa, portuguesa e espanhola na internet.
Atualmente, a maioria dos sites de inspiração fascista hospedados na América Latina utiliza os serviços do portal argentino
Ciudad Libre Opinión, especializado em conteúdos de caráter
“nacional-socialista”. Na Argentina, a repressão contra a divulgação de conteúdo nazifascista na internet é praticamente
inexistente. Isso tornou o país um refúgio para os grupos extremistas de direita que não conseguem hospedar os sites em seus
países de origem.
Em 15 de outubro de 2000, o jornal O Estado de S. Paulo
publicou matéria onde airmava: “Só na Argentina existem 14
(quatorze) sites neonazistas na web”14. Nossa pesquisa realizou
a atualização destes números em 2002, 2003 e 2007. Em novembro de 2002, de acordo com nosso levantamento, foi possível
contabilizar 152 sites de inspiração nazifascista hospedados na
Argentina. Em junho de 2003, a quantidade de páginas hospedadas na Argentina apontou 812 sites. Comparando este número com a quantidade total de sites existentes em novembro de
2002, percebe-se um aumento de 332% em aproximadamente
sete meses. Em agosto de 2007, realizou-se a terceira contagem
de sites hospedados na Argentina. Desta vez, encontramos 1.151
sites, o que representa um aumento de 41,8% na quantidade total de páginas hospedadas, em relação aos números de 2003.15
Analisando-se exclusivamente os sites de origem latino-americana, observa-se um aumento de 626% na quantidade de páginas
entre 2002 e 2007. Em 2007, os países latino-americanos com
a maior quantidade de páginas hospedadas no portal argentino
Ciudad Libre Opinión eram: Argentina (161), Brasil (129), México (121) e Chile (119) (ALMEIDA, 2008, p. 146-150).
É interessante observar que em três destes países surgiram
movimentos fascistas com expressiva base social e inluência
sobre o regime político nacional ao longo do século XX: Brasil,
Chile e México. De maneira aparentemente paradoxal, na Argentina isto não ocorreu. Entretanto, conforme já abordado anteriormente, a extrema-direita possui uma longa presença naquele
14
Sites racistas espalham-se pelo continente. O Estado de S. Paulo, 15 out. 2000.
Os países latino-americanos com maior quantidade de sites eram: Argentina (161);
Brasil (129); México (121); Chile (119); e Colômbia (45). Em números absolutos,
o país que liderava o ranking de sites de extrema-direita hospedados na Argentina
nesta data era a Espanha, com 346 sites. Além dela, havia sites dos seguintes países
não pertencentes à América Latina: Portugal (45); Alemanha (17); EUA (16); Itália
(15); França (6); Suécia (5); Romênia (5); Rússia (4); Holanda (3); Bélgica (2); e
Finlândia (1).
15
292
Neofascismo, internet e História do Tempo Presente 293
Fábio Chang de Almeida
país, tanto em instituições governamentais como em organizações civis. Além disso, muitos dos principais valores nazifascistas (antissemitismo, racismo, crença em teorias conspiratórias,
autoritarismo, violência política, etc.) já estavam enraizados em
setores signiicativos da sociedade argentina desde antes da década de 1930 (ALMEIDA, 2008).
Considerações inais
O fenômeno neofascista deve ser visto como resultado de
um longo processo, visível logo após o inal da Segunda Guerra
Mundial. É preciso entender como a extrema-direita nazifascista resistiu aos expurgos do pós-guerra, para compreender o
caminho histórico que leva ao atual panorama, com o crescimento da rede neofascista na internet e o aumento no número de
incidentes violentos envolvendo a extrema-direita. Atualmente,
percebe-se uma signiicativa expansão neofascista através da
rede mundial de computadores. Na América Latina, a direita de
inspiração nazifascista construiu uma complexa rede de comunicação na internet, baseada na Argentina. Em outras palavras,
a comunidade neofascista latino-americana tem um “paraíso
virtual” na Argentina, e sobre este contexto o pensamento de
inspiração nazifascista encontra os meios favoráveis para sua
difusão. A publicação de textos negacionistas na internet dissemina a dúvida e fomenta a insegurança. A possibilidade de
“contaminação” de trabalhos escolares com material negacionista extraído da rede é uma realidade para a qual os professores
de história devem estar preparados.
Tal quadro é resultado da combinação entre um contexto
histórico favorável e o advento das novas tecnologias de comunicação. Quais serão as consequências dessa invasão neofascista
na internet? Não cabe ao historiador arriscar prognósticos acerca
do futuro da extrema-direita, mas analisá-la em sua temporalidade. Todavia, algumas advertências devem ser feitas. A aceitação de ideias como as veiculadas nos discursos neofascistas
não é “natural”. O preconceito, a intolerância e a discriminação
não são inatos, mas aprendidos. Portanto, são necessários meios,
através dos quais ocorre o processo de aquisição ideológica dessas ideias.16 O amplo conjunto de fontes levantadas para esta
pesquisa evidencia os canais disponíveis para a prática e a aquisição das informações necessárias ao doutrinamento neofascista
na internet. A rede de comunicação neofascista não serve apenas
para a troca de informações entre seus simpatizantes. Ela serve, sobretudo, para cooptar novos membros. A expansão desta
teia de páginas pode criar o contexto necessário para a “formação das mentes” almejada pelos grupos neofascistas.17 Por trás
Teun van Dijk (2008, p. 15) airma, a respeito do pensamento racista, que “a maioria
dos membros do grupo dominante aprende a ser racista devido às formas de texto e de
fala numa ampla variedade de eventos comunicativos. A maior parte do que os grupos
dominantes brancos “sabem” ou acreditam sobre a etnia dos outros foi, portanto,
formulada, mais ou menos explicitamente, em inúmeras conversações, histórias,
reportagens de jornais, livros didáticos e discurso político. É também sobre essa base
que as pessoas formam suas próprias opiniões e atitudes, e a menos que haja boas
razões para desviar do consenso do grupo, a maior parte dos membros reproduzirá o
status quo étnico e adquirirá as ideologias dominantes que os legitime.”
17
Conforme Van Dijk (2008, p. 19-20), “as formas usadas pelos discursos dominantes
para enfatizar as características negativas dos grupos étnicos de fora tornam-se
problemáticas especialmente quanto a seus possíveis efeitos nas mentes dos receptores.
É verdade que os textos não têm um efeito automático sobre as opiniões dos leitores –
principalmente porque, como veremos, muitos leitores podem resistir às interpretações
sugeridas pelo discurso racista – mas, sob condições especiais, essa inluência pode ser
penetrante. [...] se os membros dos grupos dominantes não possuírem muitos contatos
étnicos alternativos ou informações, como é também o caso em muitas partes da
Europa e da América Latina, a representação negativa de acontecimentos étnicos e de
pessoas pode facilmente inluenciar as mentes dos receptores. Estes últimos formarão,
portanto, modelos mentais tendenciosos de acontecimentos étnicos especíicos que
lêem ou ouvem. Esses modelos podem, por sua vez, ser generalizações para atitudes
mais negativas e ideológicas sobre os Outros. Nossos discursos e outras ações sociais
16
294
Fábio Chang de Almeida
dos ataques violentos, ou das organizações políticas de caráter
mimético, está uma organizada rede de comunicação. Se forem
necessários meios para o doutrinamento neofascista, estes meios
já existem. Neste caso, o papel do historiador do tempo presente
é estar atento a este contexto, oferecendo subsídios para uma
análise crítica da realidade.
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Editoria Em debate
M
uito do que se produz na universidade não é publicado
por falta de oportunidades editoriais, quer nas editoras
comerciais, quer nas editoras universitárias, cuja limitação orçamentária não permite acompanhar a demanda existente. As
consequências dessa carência são várias, mas, principalmente,
a diiculdade de acesso aos novos conhecimentos por parte de
estudantes, pesquisadores e leitores em geral. De outro lado, há
prejuízo também para os autores, ante a tendência de se pontuar a produção intelectual conforme as publicações.
Constata-se, ainda, a velocidade crescente e em escala
cada vez maior da utilização de recursos informacionais, que
permitem a divulgação e a democratização do acesso às publicações. Dentre outras formas, destacam-se os e-books, artigos
full text, base de dados, diretórios e documentos em formato
eletrônico, inovações amplamente utilizadas para consulta às
referências cientíicas e como ferramentas formativas e facilitadoras nas atividades de ensino e extensão.
Os documentos impressos, tanto os periódicos como os livros, continuam sendo produzidos e continuarão em vigência,
conforme opinam os estudiosos do assunto. Entretanto, as inovações técnicas assinaladas podem contribuir de forma complementar e, mais ainda, oferecer mais facilidade de acesso,
barateamento de custos e outros recursos instrumentais que a
obra impressa não permite, como a interatividade e a elaboração de conteúdos inter e transdisciplinares.
Portanto, é necessário que os laboratórios e núcleos de
pesquisa e ensino, que agregam professores, técnicos educacionais e alunos na produção de conhecimentos, possam, de
forma convergente, suprir suas demandas de publicação como
forma de extensão universitária, por meio de edições eletrônicas com custos reduzidos e em divulgação aberta e gratuita em
redes de computadores. Essas características, sem dúvida, possibilitam à universidade pública cumprir de forma mais eicaz
suas funções sociais.
Dessa perspectiva, a editoração na universidade pode ser
descentralizada, permitindo que várias iniciativas realizem essa convergência com autonomia e responsabilidade acadêmica,
editando livros e periódicos de divulgação cientíica conforme
as peculiaridades de cada área de conhecimento no que diz respeito à sua forma e conteúdo.
Por meio dos esforços do Laboratório de Sociologia do
Trabalho (LASTRO), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que conta com a participação de professores,
técnicos e estudantes de graduação e de pós-graduação, a Editoria Em Debate nasce com o objetivo de desenvolver e aplicar
recursos de publicação eletrônica para revistas, cadernos, coleções e livros que possibilitem o acesso irrestrito e gratuito dos
trabalhos de autoria dos membros dos núcleos, laboratórios e
linhas de pesquisa da UFSC e de outras instituições, conveniadas ou não, sob a orientação de uma Comissão Editorial.
Os editores
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