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Editora iliada à Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu) Av. Fernando Ferrari, 514, Campus de Goiabeiras CEP 29 075 910, Vitória - Espírito Santo, Brasil Tel.: +55 (27) 4009-7852, E-mail: edufes@ufes.br www.edufes.ufes.br Reitor | Reinaldo Centoducate Vice-Reitora | Ethel Leonor Noia Maciel Superintendente de Cultura e Comunicação | Ruth de Cássia dos Reis Secretário de Cultura | Rogério Borges de Oliveira Coordenador da Edufes | Washington Romão dos Santos Conselho Editorial Agda Felipe Silva Gonçalves, Cleonara Maria Schwartz, Eneida Maria Souza Mendonça, Gilvan Ventura da Silva, Glícia Vieira dos Santos, José Armínio Ferreira, Julio César Bentivoglio, Maria Helena Costa Amorim, Rogério Borges de Oliveira, Ruth de Cássia dos Reis, Sandra Soares Della Fonte Secretário do Conselho Editorial | Douglas Salomão Comitê Cientíico de Ciências Humanas Anna Marina Madureira Barbará Pinheiro, Antonia de Lourdes Colbari, Fábio Vergara Cerqueira, José Pedro Luchi, Marcos Antonio Lopes, Maria Manuela dos Reis Martins, Michael Soubbotnik, Renan Frigheto, Surama Conde Sá Revisão de Texto | Fernanda Scopel Falcão Projeto Gráico e Diagramação | Arian Mota Capa | Arian Mota e Willi Piske Jr. Revisão Final | O autor Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) M961 As múltiplas faces do discurso em Roma : textos, inscrições, imagens / Gilvan Ventura da Silva, Leni Ribeiro Leite, [organizadores]. - Vitória : EDUFES , 2013. 248 p. : il. ; 21 cm Inclui bibliografia. ISBN : 978-85-7772-176-4 1. Civilização clássica - Discursos, ensaios, conferências. 2. Análise do discurso literário. 3. Análise do discurso. 4. Roma Civilização. 5. Roma - História. I. Silva, Gilvan Ventura da, 1967-. II. Leite, Leni Ribeiro, 1979-. CDU: 808.51 1 organizadores gilvan ventura da silva ° leni ribeiro leite 2 Vitória, 2013 Sumário Apresentação................................................................................... 09 Introdução...................................................................................... Intertextualidade e estudos clássicos Robson Tadeu Cesila 11 Parte I – Formas do discurso histórico e literário A epopeia histórica em Roma de Névio a Lucano.................................... Brunno V. G. Vieira 25 A política da errância de Odisseu no livro 34 de Políbio......................... Breno Battistin Sebastiani 45 Biograia e história na lírica horaciana................................................... Alexandre Hasegawa 57 Sobrevivendo ao Principado: um estudo sobre a ‘Vida de Agrícola’, de Tácito.................................... Fábio Faversani & Fábio Duarte Joly 69 Parte II – Cultura escrita e linguagem visual Difusão e recepção das obras literárias em Roma.................................. Leni Ribeiro Leite Natureza e artifício: breve ensaio sobre dois conceitos e sua presença em Quintiliano e Baudelaire..................... Marcos A. Pereira 83 101 3 Escritos e inscrições: uma relexão sobre a pluralidade no início do Principado.......................... 121 Renata Senna Garraffoni A construção dos Panegíricos Latinos e a idealização dos soberanos....... 135 Ana Teresa Marques Gonçalves & Ana Paula Franchi Imagens ‘bordadas’ na pedra: os mosaicos como fonte para o estudo da sociedade imperial romana........ 153 Gilvan Ventura da Silva Parte III – A literatura judaico-cristã e sua transmissão Entre João e os atuais leitores de seu Evangelho: um comentário sobre iltros de leitura.......................................................... 179 André Leonardo Chevitarese A formação do cânon do Novo Testamento no mundo romano: ‘Atos dos Apóstolos’ e a construção de uma unidade cristã........................ 195 Mônica Selvatici Jogos de alteridades literárias: heteroglossias e leituras talmúdicas sobre o cristianismo mediterrâneo...... 209 Renata Rozental Sancovsky A educação cristã em suas origens: a diversidade histórica dos discursos e das práticas.................................... 229 Terezinha Oliveira 4 Sobre os autores ALEXANDRE PINHEIRO HASEGAWA é professor do curso de graduação em Letras da Universidade de São Paulo, mestre e doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e membro do Classics Research Seminar, ligado à Università degli Studi di Roma “La Sapienza” e ao VerVe (Verbum Vertere), grupo de pesquisa sobre poética e tradução de textos latinos e gregos, cadastrado no CNPq. ANA PAULA FRANCHI é doutoranda em História da Universidade Federal de Goiás, mestra em História pela Universidade Federal do Paraná e graduada em História pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. ANA TERESA MARQUES GONÇALVES é professora do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Goiás, mestra em História Social pela Universidade de São Paulo, doutora em História Econômica pela mesma instituição, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq. ANDRÉ LEONARDO CHEVITARESE é professor dos Programas de PósGraduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e em História da Universidade Estadual de Campinas, mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. BRENO BATTISTIN SEBASTIANI é professor do Programa de PósGraduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo, mestre e doutor em História Social pela mesma instituição. BRUNNO V. G. VIEIRA é professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista (Araraquara), mestre em Linguística e Língua Portuguesa e doutor em Estudos Literários pela mesma instituição e vice-líder do Grupo de Pesquisa Linceu - Visões da Antiguidade, cadastrado no CNPq. FÁBIO DUARTE JOLY é professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq. FÁBIO FAVERSANI é professor do Programa de Pós-Graduação em História 5 da Universidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo, pós-doutor pela University of Oxford e pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir). GILVAN VENTURA DA SILVA é professor dos Programas de Pós-Graduação em História e em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em História pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do ES (Fapes) e bolsista produtividade do CNPq. LENI RIBEIRO LEITE é professora dos Programas de Pós-Graduação em Letras e em História da Universidade Federal do Espírito Santo, especialista em Língua Latina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestra e doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir), do Programa de Altos Estudos em Representações da Antiguidade (PROAERA) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do ES (Fapes). MARCOS A. PEREIRA é professor dos Programas de Pós-Graduação em Letras Clássicas e em Linguística da Universidade Estadual de Campinas, mestre e doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (USP) e líder do Grupo de Pesquisa O Discurso Metalinguístico Antigo, cadastrado no CNPq. MONICA SELVATICI é professora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina, mestra em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, pesquisadora do Núcleo de Estudos Estratégicos da mesma universidade e integrante do grupo de pesquisa sobre o Jesus Histórico da Universidade Federal do Rio de Janeiro. RENATA ROZENTAL SANCOVSKY é professora do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, mestra em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutora em Arqueologia pelo Museu Nacional, Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Históricos (Pluralitas) e do Grupo de Pesquisa Jesus Histórico e sua Recepção (UFRJ). 6 RENATA SENNA GARRAFFONI é professora do Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Paraná, mestra e doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, pós-doutora pela University of Birmingham, integrante do Centro de Pensamento Antigo (CPA) da Unicamp, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e tutora do PET-História/UFPR. ROBSON TADEU CESILA é professor de Língua e Literatura Latinas da Universidade de São Paulo, mestre e doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas e membro dos Grupos de Pesquisa Verve (Verbum Vertere): Estudos de Poética, Tradução e História da Tradução de Textos Latinos e Gregos e Grupo de Trabalho Odorico Mendes, ambos cadastrados no CNPq. TEREZINHA OLIVEIRA é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá, mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos, doutora em História pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, pós-doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e bolsista produtividade do CNPq. 7 Apresentação A inspiração para elaborarmos esta coletânea nasceu de uma experiência compartilhada no primeiro semestre de 2010, quando assumimos, em parceria, a tarefa até então inédita de ministrar a disciplina Literatura e História para os alunos dos programas de pós-graduação em História e em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Na ocasião, constatamos uma notável escassez, em língua portuguesa, de textos que valorizassem o intercâmbio entre a Literatura e a História aplicadas à Antiguidade, sem abandonar, naturalmente, a Arqueologia e a Epigraia, na medida em que o estudo das sociedades antigas revela-se, à partida, um campo de conhecimento atravessado a todo o momento pelas mais diversas disciplinas acadêmicas, o que lhe confere uma evidente vocação interdisciplinar. Cientes dessa carência e estimulados pelo recente lorescimento dos Estudos Clássicos no País, o que tem acarretado uma ampliação visível do número de classicistas nos departamentos universitários, decidimos reunir, na presente obra, um conjunto de textos que pudessem, sob os mais distintos enfoques, iluminar a maneira pela qual os diversos tipos de discurso (literário, epigráico, iconográico) eram produzidos e difundidos no Mundo Antigo. Diante da impossibilidade de agregar contribuições advindas, por exemplo, dos especialistas nos estudos de cultura grega, egípcia, mesopotâmica, celta e outras, o que nos obrigaria a multiplicar os volumes da coletânea, sem que dispuséssemos de espaço físico e de tempo hábil para tanto, fomos compelidos a restringir o escopo a Roma, mas com a nítida sensação de ter deixado escapar relexões valiosas. Na disposição dos textos, foi adotada uma divisão em três grandes eixos, mesclando-se análises mais ainadas com o modus faciendi da Literatura, outras da História, outras da Arqueologia e outras ainda absolutamente indistintas, já que empreendidas na conluência de duas ou mais vertentes dos Estudos Clássicos. O primeiro eixo é dedicado à investigação dos gêneros discursivos que vicejaram em Roma, com destaque para a história e a biograia, mas sem deixar de lado as implicações poéticas nelas contidas, uma vez que, como se sabe, as narrativas sobre o passado individual e coletivo, na Antiguidade, eram por vezes regidas a partir dos cânones da poesia. O segundo eixo, por sua vez, trata das modalidades de expressão escrita e imagética na fase imperial, com ênfase na produção e recepção de obras literárias que poderíamos talvez classiicar, na falta de um termo mais apropriado, como “eruditas” e de textos oriundos de meios populares, a exemplo das inscrições parietais de Pompeia, mas sempre alerta para os pontos de contato entre ambas. Por outro lado, considerando que o letramento, em Roma, não era uma competência de alcance universal, o que resultava num amplo contingente de analfabetos, é 8 necessário que prestemos uma atenção particular a outras modalidades de difusão de informações que não o texto propriamente dito, o que equivale a introduzir, na agenda de pesquisa, o exame dos códigos visuais que, apostos sobre artefatos de uso cotidiano, poderiam conduzir uma mensagem de um extremo a outro do Mediterrâneo. Inscrições e imagens vêm assim se unir aos textos na construção dos saberes dos antigos, numa dinâmica incessante de empréstimos e inluências recíprocas que não podem ser ignoradas. Por último, o terceiro eixo explora a dimensão literária da cultura judaico-cristã, que tende a ser negligenciada ou mantida a certa distância quando se trata da investigação de temas ditos “clássicos” ou de matiz greco-romano, como se judeus e cristãos não convivessem com romanos e gregos pelas localidades urbanas e rurais do Império e como se houvessem permanecido refratários às correntes intelectuais do helenismo ou da latinidade. Pelo contrário, judeus e cristãos têm muito a nos esclarecer sobre as formas de expressão literária e artística em Roma, bem como sobre o impacto da cosmovisão monoteísta sobre um patrimônio intelectual de teor politeísta, o que nos motivou a reservar-lhes aqui uma seção própria. Enim, esperamos que esta obra possa fomentar ainda mais o interesse que o público brasileiro vem manifestando pelos estudos da Antiguidade, uma tarefa para a qual é imprescindível a combinação de olhares diversos, pois somente na pluralidade podemos captar as múltiplas faces desse Jano monumental que foi Roma. Os organizadores Vitória, janeiro de 2013 9 INTRODUÇÃO INTERTEXTUALIDADE E ESTUDOS CLÁSSICOS R T C “The critic, like the poet, can bring only inite resources to the ininity of discourse.” Stephen Hinds Allusion and intertext, p. 51 O termo intertextualidade (em francês, intertextualité), desde que foi proposto por Julia Kristeva há quarenta e cinco anos, no ensaio “Le mot, le dialogue et le roman” (1967), inspirou tantos debates, pesquisas, abordagens e propostas de classiicação que hoje é impossível, airma Luciano Cicu (2005, p. 27), fornecer dele uma deinição única, que abarque todas as teorias e áreas que dele se serviram. Façamos, assim, um breve percurso, não sobre o termo, mas sobre o fenômeno textual por ele descrito, enfatizando sempre a sua presença no campo de estudos que nos interessa, ou seja, aquele dos Estudos Clássicos. Aristóteles, na Poética, diz que a imitação (mímesis) é uma característica congênita do ser humano, que difere, nisso, dos outros seres vivos, sendo, de todos, o que mais imita e aprendendo as primeiras noções, desde a infância, por meio da imitação1. Percebe-se claramente que o ilósofo não atribui nenhum traço pejorativo a essa característica humana, traço esse que poderia ser depreendido do signiicado um tanto negativo que a palavra “imitação” – termo com que se traduz o latino imitatio, que é, por sua vez, decalque, embora não exato (CONTE; BARCHIESI, 1989, p. 86), do grego mímesis – tem modernamente. O ato de imitar é positivo, está presente em muitos dos produtos humanos, e Aristóteles está interessado em observar a relação desse ato com a produção artística (que é um produto humano) e, mais 1 “Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado” (IV.13, 1448b, 4-9). As traduções desse e dos trechos reproduzidos nas duas próximas notas são de Eudoro de Souza (1991). 10 especiicamente, com a poesia. Esta é, para ele, como outras artes (pintura, escultura, dança etc.), imitativa (mimética); é imitação da natureza humana, de seus atos e comportamentos2. O poeta, portanto, imita a vida humana, o que excluiria outros tipos de “poeta” (na verdade, o ilósofo prefere chamarlhes physiológoi, “naturalistas”) que produzem obras que, a despeito de serem versiicadas, tratam de temas como a física e a medicina, que não são, na ótica aristotélica, temas imitativos, na medida em que não constituem imitação da ação de agentes humanos3. Tomando de alguma liberdade em alargar o conceito de Aristóteles (na verdade, incentivados pela sua primeira airmação acima citada, sobre a imitação como algo congênito aos humanos), poderíamos dizer que a língua humana é imitativa. Com efeito, o que fazem as palavras senão representar, “imitar”, por meio de material sonoro (Saussure diria “signiicantes”), os objetos da realidade?4 A palavra tem o poder de representar – tornando presentes na teia discursiva – objetos da realidade que não estão presentes na situação da enunciação. E mais: quando falamos, não estamos imitando – através da reutilização – os elementos verbais que já foram utilizados por outros falantes para representar, “imitar” esses objetos da realidade? A utilização dos signos da língua, que, para Saussure, é um sistema, um estoque verbal social, coletivo, que preexiste a nós como falantes, já é um ato de imitação. E não só os signos: imitamos também a sua combinação em estruturas maiores, em discursos, aqui entendidos como enunciações já feitas sobre os objetos da realidade. Temos, pois, a imitação, em relação à língua, em dois sentidos: 1- imitação, por meio de sons, fonemas, palavras, da realidade, e 2- imitação dos signos que formam o sistema que é a língua e dos discursos nela produzidos. Podemos dizer, então, que, ao falarmos, imitamos os discursos dos outros falantes, utilizamos discursos já enunciados previamente na língua. Temse, então, interdiscursividade: o discurso é composto por outros discursos, que também são, por sua vez, formados por outros discursos5. Essa nossa divagação sobre a mímesis no campo mais amplo da 2 “A epopeia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações” (I.2, 1447a, 13-16). “Mas, como os imitadores imitam homens que praticam alguma ação, e estes, necessariamente, são indivíduos de elevada ou de baixa índole (porque a variedade dos caracteres só se encontra nestas diferenças [e, quanto a caráter, todos os homens se distinguem pelo vício ou pela virtude]), necessariamente também sucederá que os poetas imitam homens melhores, piores ou iguais a nós, como fazem os pintores: Polignoto representava os homens superiores; Pauson, inferiores; Dionísio representava-os semelhantes a nós” (II.7, 1448a, 1-6). 3 “Desta maneira, se alguém compuser em verso um tratado de medicina ou de física, esse será vulgarmente chamado ‘poeta’; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a metriicação: aquele merece o nome de ‘poeta’, e este, o de ‘isiólogo’, mais que o de poeta” (I.5, 1447b, 16-20). 4 Trata-se apenas de uma analogia nossa, daí usarmos aspas em “imitar”. Rigorosamente, se se quer utilizar a dicotomia saussuriana signiicante/signiicado, só se poderia falar em imitação no caso das onomatopeias e, mesmo assim, não deixando de lado o caráter arbitrário da representação dos sons também nesse tipo de palavras. 5 No pensamento de Bakhtin, essa questão é tratada como um dos aspectos do fenômeno abarcado pelo conceito de “dialogismo”, deinido pelo teórico russo, segundo Barros, como “o princípio constitutivo da linguagem e de todo discurso” (1994, p. 6). 11 linguagem, do discurso, não é gratuita. Podemos, com efeito, voltar agora à literatura grega. Antes do advento da escrita, a poesia grega era, obviamente, oral. Foi, portanto, discurso poético oral antes de ser discurso poético escrito. E, como todo discurso, nutria-se de outros discursos. Como airma Achcar (1994, p. 53), citando passagem de Gentili (1972, p. 92), os poemas, já para os poetas líricos arcaicos, eram “também mímesis num outro sentido: ‘imitação, por meio da memória, dos textos poéticos da tradição oral’”. E o mesmo ocorre com a poesia escrita, como a já presente na época de Aristóteles, pois “mímesis não se referia apenas à relação da obra com seu objeto, mas também a sua relação com outras obras e com o receptor” (ACHCAR, 1994, p. 34). Na Arte Poética de Horácio, cerca de três séculos posterior a Aristóteles, temos dois sentidos de imitação (imitatio) bem próximos daqueles do ilósofo grego: o escritor deve ou imitar diretamente a natureza humana, tratando de um tema ainda novo, ainda não tratado por outros escritores, ou imitá-la indiretamente, através de outros autores que já o izeram (em outras palavras, imitar os textos da tradição). Vale a pena transcrever o trecho horaciano (vv. 119-135): Segue, ó escritor, a tradição ou imagina caracteres bem apropriados: se acaso repuseres em cena o glorioso Aquiles, fá-lo activo, colérico, inexorável e rude, que não admita terem sido criadas leis também para ele e nada faça que não conie à força das armas. Que Medeia seja feroz e indomável, Ino chorosa, Ixion pérido, Io errante e Orestes triste. Mas se algo de original quiseres introduzir, ousando conceber em cena nova personagem, então que ela seja conversada até o im como foi descrita de início e que seja coerente. É difícil dizer com propriedade o que não pertence à tradição: melhor farás se o carme de Ílion em actos trasladares em vez de proferires, pela primeira vez, factos inéditos e desconhecidos. Matéria a todos pertencente será tua legítima pertença, se não icares a andar à volta no caminho trivial, aberto a todos, e tão-pouco procurarás, como servil intérprete, traduzir palavra por palavra, nem entrarás, como imitador, em quadro muito estreito de onde te impedirão de sair a timidez e a economia da obra.6 O poeta latino diz que há, porém, em ambos os caminhos, exigências a que o escritor está sujeito. Se imitar matéria nova, isto é, se imitar diretamente a natureza, deve haver coerência, o personagem criado deve ter as mesmas características do início ao im. Se, todavia, a opção for por imitar a natureza humana seguindo a tradição, devem-se respeitar as características dos personagens tais como elas apareceram nos textos da tradição, bem como evitar 6 Tradução de Rosado Fernandes (1984, p. 67-71). Eis o texto original: Aut famam sequere aut sibi conuenientia inge/ scriptor. Honoratum si forte reponis Achillem,/ impiger, iracundus, inexorabilis, acer/ iura neget sibi nata, nihil non arroget armis./ Sit Medea ferox inuictaque, lebilis Ino,/ peridus Ixion, Io uaga, tristis Orestes./ Siquid inexpertum scaenae committis et audes/ personam formare nouam, seruetur ad imum/ qualis ab incepto processerit et sibi constet./ Diicile est proprie communia dicere; tuque/ rectius Iliacum carmen deducis in actus/ quam si proferres ignota indictaque primus./ Publica materies priuati iuris erit, si/ non circa uilem patulumque moraberis orbem,/ nec uerbo uerbum curabis reddere idus/ interpres nec desilies imitator in artum,/ unde pedem proferre pudor uetet aut operis lex. 12 a imitação servil e os temas muito batidos. Horácio parece se inclinar mais à segunda possibilidade: imitar os modelos anteriores, os textos da tradição. Apesar de seu signiicado ilosóico de imitação/mimese da natureza humana, a acepção que realmente icou, do par imitatio/mímesis, para a poética e a retórica antigas, foi a segunda explicitada acima, que atinge estatuto teórico com o período helenístico: a relação – mimética, imitativa – de um autor com outro anterior a ele. O escritor devia imitar os grandes modelos do passado, mas no sentido de utilizar material verbal e conteudístico dos mesmos de maneira criativa, competindo com os modelos e tentando, se possível, fazer melhor que eles, superá-los. Daí um segundo conceito que é indissociável do de imitatio/ mímesis e que diz respeito justamente a essa necessidade de competir com o modelo: aemulatio/zêlos), “competição”, “emulação”. A imitação era, portanto, condição para a escrita literária, não um defeito ou vício. Contudo, a imitação mal feita podia levar a isso, como diz o próprio Horácio na passagem reproduzida. Cícero, como lembra Oliva Neto (2006, p. 163), já censurara, no De Oratore (II.22.90-92), a imitação sem relexão, sem preocupação com a seleção das qualidades do modelo dignas de se imitar: Que então o primeiro de meus preceitos seja demonstrar quem devemos imitar (e a excelência que se deve buscar naquele que será imitado). Que haja exercício, por meio do qual, por imitação, [o discípulo] venha a forjar e reproduzir quem ele escolheu, não como muitos imitadores que conheci que, imitando, adquirem o que é fácil e também o que é particular e até vicioso. Nada é mais fácil do que imitar o modo de alguém vestir-se, sua postura e movimentos. Se, porém, algo é vicioso, não é grande coisa absorvê-lo e no vício ser semelhante, como Fúio, que, ainda agora, já sem voz, se enfurece na república: discursando não emula o vigor que Caio Fímbria de fato possuía, mas imita os trejeitos da boca e pronúncia larga das palavras. Ele não soube escolher aquele de quem deveria ser o mais semelhante, e desse mesmo que escolheu quis imitar até os defeitos. Quem quiser fazer como convém necessariamente deve primeiro atentar para a escolha; depois procurar com toda aplicação obter aquilo que mais se sobressai naquele que aprovou.7 E Quintiliano, mais tarde, apontaria para a insuiciência do simples ato de imitar e para a necessidade, no processo de imitação, de sempre se 7 Tradução de Oliva Neto (2006, p. 163). Ergo hoc sit primum in praeceptis meis, ut demonstremos, quem imitetur (atque ita, ut, quae maxime excellent in eo, quem imitabitur, ea diligentissime persequatur); tum accedat exercitatio, qua illum, quem delegerit, imitando eingat atque exprimat, non ut multos imitatores saepe cognoui, qui aut ea, quae facilia sunt, aut etiam illa, quae insignia ac paene uitiosa, consectantur imitando. Nihil est facilius, quam amictum imitari alicuius aut statum aut motum; si uero etiam uitiosi aliquid est, id sumere et in eo uitio <similem> esse non magnum est, ut ille, qui nunc etiam, amissa uoce, furit in re publica, Fuius, neruos in dicendo C. Fimbriae, quos tamen habuit ille, non adsequitur, oris prauitatem et uerborum latitudinem imitatur; sed tamen ille nec deligere sciuit, cuius potissimum similis esset, et in eo ipso, quem delegerat, imitari etiam uitia uoluit. Qui autem ita faciet, ut oportet, primum uigilet necesse est in diligendo; deinde, quem probarit, in eo, quae maxime excellent, ea diligentissime persequatur. 13 acrescentar algo próprio, novo, original, ao que foi imitado (OLIVA NETO, 2006, p. 166): Antes de tudo, a imitação por si não é suiciente, porque é próprio de um engenho preguiçoso contentar-se com o que foi inventado por outros. Pois o que teria acontecido naqueles tempos em que, sem modelo, os homens nada considerassem digno de fazer ou pensar senão o que já conhecessem? É evidente: nada teria sido inventado. Por que então é sacrilégio que descubramos algo que não fora antes descoberto? Aqueles homens rudes foram levados a criar tantas coisas só pela natureza da mente, e nós, então, não deveremos ser concitados a buscar isso mesmo só porque sabemos com certeza que aqueles que buscaram a encontraram? E se eles, que não tiveram mestre algum do que quer que seja, transmitiram muitíssimas coisas à posteridade, a nossa experiência com as matérias alheias não nos servirá para descobrir outras? Nada teremos a não ser o benefício alheio? Faremos como alguns pintores que só se esforçam por aprender a copiar quadros com réguas e esquemas? É torpe estar contente em só perseguir algo para imitar, pois, pergunto outra vez: o que teria acontecido se ninguém tivesse obtido mais do que aquele que ele imitava? (Inst. Orat., X.2.4-7)8 Percebe-se que, na Antiguidade, se tendia a ver a relação que hoje chamamos intertextual como uma relação interpessoal, binária, uma relação entre as autoridades públicas dos escritores, em que há competição e rivalidade com o modelo e condenação da imitação servil (CONTE; MOST, 1999, p. 749). Com efeito, o termo imitatio foca apenas a produção do texto, “o percurso do antigo ao novo”, cobre, portanto, apenas uma parte do fenômeno (CONTE, 1989, p. 86-87). A despeito de ter longa história desde os teóricos da Antiguidade até o século XX9, o termo imitatio é hoje preterido em favor de termos que fazem jus a outros aspectos enfatizados modernamente nas análises do fenômeno, tais como a predominância do texto e do leitor na relação. Giorgio Pasquali, em “Arte Allusiva”, de 1942, cunhou a expressão que dá título ao artigo, a qual tem a vantagem de dar algum destaque ao papel do leitor, como o 8 Tradução de Oliva Neto (2006, p. 166). Ante omnia imitatio per se ipsa suicit, uel quia pigri est ingenii contentum esse iis quae sint ab aliis inuenta. Quid enim futurum erat temporibus illis quae sine exemplo fuerant si homines nihil nisi quod iam cognouissent faciendum sibi aut cogitantum putassent? Nempe nihil fuisset inuentum. Cur igitur nefas est reperiri aliquid a nobis quod ante non fuerit? An illi rudes sola mentis natura ducti sunt in hoc, ut tam multa generarent: nos ad quaerendum non eo ipso concitemur, quod certe scimus inuenisse eos qui quaesierunt? Et cum illi, qui nullum cuiusquam rei habuerant magistrum, plurima in posteros tradiderint, nobis usus aliarum rerum ad eruendas alias non proderit, sed nihil habebimus nisi beneicii alieni? Quem ad modum quidam pictores in id solum student, ut describere tabulas mensuris ac lineis sciant. Turpe etiam illud est, contentum esse id consequi quod imiteris. Nam rursus quid erat futurum si nemo plus efecisset eo quem sequebatur? 9 Sobre o século XX, ver exemplos listados em Conte & Barchiesi (1989, p. 86, n. 7). Dos teóricos antigos são famosos, além dos trechos citados de Cícero, Quintiliano e da Arte Poética de Horácio, os passos de Dionísio de Halicarnasso (Sobre a imitação), Pseudo-Longino (Sobre o Sublime, 13 e 14) e Horácio (Epist., I.19.12-34), todos citados em Oliva Neto (2006, p. 163-166). Acrescentemos Sêneca, o Jovem (Ep. 114.13-20), e Sêneca, o Velho (Controv. I. pref. 6, II.2.8-9, VII.1.27, IX.3.1213, IX.1.13-14 e X.4.19-21; Suas. III.4-5). 14 próprio ilólogo italiano airma: [...] na poesia culta, erudita, busco aquilo que já há alguns anos não chamo mais reminiscências, mas alusões, e que de bom grado chamaria evocações e, em certos casos, citações. As reminiscências podem ser inconscientes; as imitações, o poeta pode desejar que fujam ao público; as alusões não produzem o efeito desejado a não ser sobre um leitor que se recorda claramente do texto ao qual se referem. (p. 275, grifo nosso).10 Mas Pasquali, segundo Conte (1986, p. 26)11, acaba também enfatizando por demais a igura do sujeito, do autor, privilegiando a intencionalidade da alusão, pois os exemplos que fornece e analisa em seu artigo são, na maioria, casos de alusões emulativas, em que o autor teria como objetivo rivalizar com seu modelo. De resto, como airmam Conte & Barchiesi (1989, p. 91), a igura do autor já é enfraquecida, no caso dos textos antigos, pelo estado muitas vezes fragmentário em que estes chegaram até nós, o que diiculta para o estudioso “construir discursos baseados na psicologia individual” do autor12. Além disso, a ideia de “sujeito criador”, própria do Romantismo, não fazia parte da “mentalidade e da prática dos antigos”, para quem “códigos, gêneros, linguagens institucionais, convencionais” faziam parte das próprias condições de produção da literatura antiga (1989, p. 91). De qualquer forma, o artigo de Pasquali contribuiu, segundo Vasconcellos (2001, p. 28), “para a superação das deiciências da Quellenforschung”, corrente ilológica – predominante sobretudo entre os estudiosos alemães no século XIX – que se limitava, em geral, à “identiicação minuciosa das fontes” de um poeta (2001, p. 25), sem analisar os efeitos de sentido gerados, no novo texto, pela alusão ao modelo. Esses ilólogos “decompunham mecanicamente os textos, atentos unicamente a relações de derivação: por isso, o critério da semelhança, indício de paternidade, terminava invariavelmente por prevalecer sobre a atenção às diferenças e às transformações” (CONTE; BARCHIESI, 1989, p. 89), estas últimas sendo justamente o momento mais importante da intertextualidade (1989, p. 88). O outro teórico italiano cujo nome icou para sempre ligado aos estudos intertextuais na literatura clássica – e que vimos citando frequentemente nos parágrafos anteriores – é Gian Biagio Conte. Pode-se dizer, com Charles Segal (1986, p. 7), que a perspectiva de Conte sobre o fenômeno intertextual se insere “na esfera geral da linguagem como um sistema de comunicação e signiicação”, “à luz de teorias estruturalistas e pós-estruturalistas da linguagem”. O interesse 10 Veja-se também p. 277. Citamos a partir da republicação de 1968 do artigo de Pasquali. Todas as traduções de estudos em línguas modernas são de nossa autoria, salvo informação em contrário. 11 Citamos a tradução inglesa, que reúne, em The Rhetoric of Imitation: genre and poetic memory in Virgil and other latin poets, a maior parte dos ensaios que compõem as obras de Conte Memoria dei poeti e sistema letterario: Catullo, Virgilio, Ovidio, Lucano (Turim, 1974) e Il genere e i suoi conini: Cinque studi sulla poesia di Virgilio (Turim, 1980 e, em edição aumentada, 1984). 12 Barchiesi (2001, p. 142) reforça: “... nossa falta de documentos autênticos (tais como materiais biográicos, autógrafos, cartas e rascunhos) enfraquece o papel do autor na ilologia clássica”. 15 de Conte é “mais nos aspectos sincrônicos do que nos aspectos diacrônicos da inluência literária, com a literatura como sistema mais do que como evolução histórica” (1986, p. 8-9, grifo nosso). Com efeito, a literatura é, para Conte e Barchiesi (1989, p. 88), um sistema de textos, de modo que todo texto literário se conigura então como uma absorção e assimilação de outros textos, sobretudo como transformação destes [...]. De fato, uma obra só pode ser lida em conexão com outros textos ou em oposição a eles. [...] Nessa perspectiva, o destinatário que se avizinha ao texto – leitor ou imitador, que é também um tipo de leitor – é já, ele mesmo, uma pluralidade de outros textos e também de outros códigos (reside aqui aquilo que chamamos a cultura de um autor e de um leitor). A intertextualidade, então, longe de ser um curioso efeito de eco, deine a própria condição da legibilidade literária. De fato, não se captam o sentido e a estrutura de uma obra senão em relação a modelos, eles mesmos produzidos a partir de uma série de textos dos quais eles são, de algum modo, a variante. Fora desse sistema, a obra literária é inatural: a sua percepção pressupõe uma ‘competência’ na decifração da linguagem literária, que tem como condição a prática de uma multiplicidade de textos.13 Vê-se que, ao contrário de Pasquali, a ênfase da perspectiva de Conte é no texto, na relação entre textos, daí o último preferir o termo “intertextualidade”14 ao “arte alusiva” de seu conterrâneo. “Intertextualidade” tem a vantagem, segundo Conte e Barchiesi, de abarcar também os vieses contidos em “arte alusiva” e em imitatio: “a atividade cooperativa do leitor que o texto prevê” e “a transformação dos modelos operada pelo autor” (1989, p. 87). Então, Conte também concede papéis ao autor e ao leitor, mas sempre subordinados ao texto. A “intencionalidade do autor” que importa no fenômeno intertextual é somente aquela do texto, inscrita no texto, mensurável e identiicável no texto, não uma questão subjetiva, psicológica sobre o autor, o sujeito real que o produziu (CONTE; BARCHIESI, 1989, p. 91, n. 13). Da mesma forma, o leitor, que é também uma “pluralidade de textos”, que possui uma cultura, uma competência, um conhecimento do sistema de textos que é a tradição e pode, portanto, decifrar os intertextos, deve, porém, aceitar certos limites (vincoli) inscritos no texto durante sua produção, certas direções de leitura, digamos (1989, p. 90, n. 12). Em outras palavras, o leitor pode fazer muitas leituras, mas não qualquer leitura; sua “liberdade” é, em certa medida, limitada por fronteiras de leitura inscritas no texto. Este “requer a cooperação de um leitor como condição necessária para 13 Usando da dicotomia saussuriana langue (língua) – parole (fala), o sistema de textos corresponderia à língua, enquanto que o texto tomado individualmente corresponderia à fala (Fowler, 2000, p. 117). 14 O termo “intertextualidade” (intertextualité) surge na década de sessenta, em um artigo de Julia Kristeva intitulado “Le mot, le dialogue et le roman” (Critique, Paris, v. 23, p. 438-465, 1967; republicado com pequenas alterações em seu livro Semeiotiké: Recherches pour une sémanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1969), para tratar das noções bakhtinianas de dialogismo e polifonia, que o estudioso russo apresentara em seu Problemas da Poética de Dostoiévski (1929). 16 a sua realização”, mas, para ser mais preciso, um texto literário é um produto cujo destino interpretativo pertence a seu mecanismo gerativo. Gerar um texto signiica ativar uma estratégia que prevê o movimento de outros. Em minha perspectiva da memória poética em geral e da alusão em particular, tentei mostrar como o autor pressupõe a competência de seu próprio Leitor-Modelo. Hoje eu iria mais longe e diria que o autor estabelece a competência do LeitorModelo, isto é, o autor constrói o destinatário e motiva o texto a fazê-lo. O texto institui cooperação estratégica e a regula (CONTE, 1986, p. 30, grifo do autor). Portanto, o estudo do fenômeno intertextual na perspectiva de Conte deve se ater ao “texto e às suas propriedades funcionais”, isto é, aos efeitos de sentido veriicáveis no texto (CONTE; BARCHIESI, 1989, p. 92), aos “efeitos de leitura e procedimentos que governam a signiicação” do mesmo (1989, p. 83). Em outras palavras, Conte destaca a importância de estudar os efeitos de sentido gerados pelas alusões textuais ou intertextos, ou seja, a funcionalidade, o potencial retórico desses mecanismos textuais. Uma objeção interessante à abordagem estruturalista de Conte é feita por Fowler (2000, p. 127). Para este, a abordagem da intertextualidade dentro de uma concepção da literatura como sistema não leva em conta que esse sistema literário pode não ser tão uniicado e estável quanto se pensa, pode não ser “uma matriz única que contenha todas as possibilidades”. Um intertexto não está no sistema, esperando para ser ativado na leitura, mas no ponto de recepção, no leitor, de quem depende considerar ou não intertextual a relação e captar os possíveis signiicados que ela traz para o texto que faz a referência15. O sistema literário, o conjunto de textos que constitui o fundo sobre o qual todo texto é produzido e recebido, varia, portanto, a depender do leitor e de seu conhecimento maior ou menor desse sistema de textos (2000, p. 127). Trata-se de uma visão pós-estruturalista, desconstrucionista, característica da Pós-Modernidade, que considera ininitas as cadeias intertextuais, já que dependem do leitor e não do texto. A leitura (ou a análise) deve parar em algum momento, e esse ponto de parada é uma escolha arbitrária e, por isso, ideológica (2000, p. 127-128). Uma consequência direta dessa sua visão da intertextualidade, segundo Fowler (2000, p. 129-130), é a possibilidade de reversibilidade da direção da referência textual, isto é, da mesma forma que o texto referido cria efeitos de sentido, afeta a leitura do texto referente, este também afeta a leitura do texto referido; a Eneida de Virgílio, por exemplo, afeta a leitura das epopeias homéricas tanto quanto estas afetam a sua; não se lê Homero da mesma forma depois de se ler a epopeia virgiliana. Isso se deve ao fato de que o leitor é quem governa a leitura; o leitor, com seu próprio conhecimento do sistema de textos e pertencente a uma dada época e uma dada cultura, transporta para a leitura de qualquer texto os critérios e padrões de sua época e cultura. Trata-se, para Fowler (2000, p. 15 Veja-se também Wills (1996, p. 16). 17 130), de algo inevitável e que não constitui um problema, desde que localizemos a “intertextualidade não num sistema textual preexistente, mas no leitor”16. Enfatizar a ação do leitor na interpretação do intertexto signiica, como já mencionado supra (FOWLER, 2000, p. 127-128), possibilidades ininitas de leitura desse intertexto. “As pistas que nós seguimos não nos levarão à verdade, mas há mais pistas que levam a uma loresta ainda mais densa”, ou seja, as cadeias intertextuais são ininitas e o leitor/analista é quem decide em que ponto vai parar (2000, p. 127-128). Isso nos leva à ideia de que a intertextualidade pode não ser um objeto ixo, pronto, um produto inal, mas um processo, um fenômeno em movimento, uma ação inacabada. Barchiesi (2001, p. 142) refere-se a essa questão como o primeiro ponto de uma lista de oito teses que ele considera mais ou menos consensuais dentre os estudiosos atuais da intertextualidade na literatura clássica. Mas o predomínio da visão do fenômeno intertextual como processo não deve forçar ninguém a vê-lo sempre assim em todo texto, garante esse teórico. Quanto do texto aludido está presente no texto que alude, se o signiicado predominante tem de ser de similaridade ou de diferença em relação ao modelo e se a intertextualidade deve ser vista como processo ou como resultado são questões que não cabem a nenhuma “autoridade crítica” determinar a priori, mas ao leitor/analista que se debruça sobre o texto (2001, p. 142). Vejamos também a segunda tese elencada por Barchiesi (2001, p. 142), pois ela tem a ver com a anterior. Na análise de uma relação intertextual, há dois textos – e não um só – a serem interpretados: o texto que alude e o modelo aludido17. É um erro encarar como aberto, plural, polissêmico o signiicado do texto que imita e ver como fechado, unívoco, concluído o signiicado do modelo imitado. O signiicado de ambos é aberto à interpretação, pois a intertextualidade é um processo: os dois textos inluenciam-se mutuamente18. Aqui um retorno à polêmica sobre a igura do autor: avaliar essa mútua inluência requer um olhar tanto para a produção do texto (o percurso do velho ao novo, do modelo ao texto imitador) quanto para a sua recepção (o percurso do novo ao velho, do texto 16 Não se deve esquecer, porém, que o próprio Conte já apontara, à sua maneira, essa possibilidade de reversibilidade do intertexto: “a prática da imitação clássica é também um convite à leitura dupla dos textos e ao deciframento da sua relação intertextual com o modelo: os modos de leitura (e de imitação) de cada época estão também implícitos nos seus modos de escritura. Neste sentido, as obras literárias não são nunca simples ‘memórias’, elas reescrevem as memórias, ‘inluenciam’ os seus predecessores” (CONTE, 1981, apud FEDELI, 1989, p. 393-394, grifos nossos). Veja-se o interessante exemplo trazido por Fedeli (1989, p. 394-397) para ilustrar essa asserção de Conte: uma passagem do Satyricon que, aludindo a versos virgilianos, altera a leitura da passagem da Eneida a que está aludindo. 17 O teórico fala em dois textos para simpliicar a exposição de sua tese, mas é óbvio, pelos próprios exemplos oferecidos por ele mais adiante (pp. 143 ss.) e em outros trabalhos, que o mesmo vale para atos intertextuais envolvendo mais de dois textos, ou seja, quando há mais de um modelo imitado. 18 Como o próprio Barchiesi reforça no quinto ponto de seu artigo, apontar os modelos de um texto, os intertextos nele presentes, não signiica restringir a leitura do texto e “fechar” sua interpretação, seu signiicado. Ao contrário, signiica enriquecer sua leitura e tornar complexo seu signiicado (“complexo” como uma qualidade, obviamente) (2001, p. 146). Veja-se também o quarto ponto tratado pelo teórico, em que este reforça a ideia da reversibilidade da leitura intertextual ao analisar o famoso intertexto presente no verso inuitus, regina, tuo de litore cessi de Virgílio (Eneida, VI.460), que alude a Catulo e, indiretamente, a Calímaco: “Calímaco e Catulo elegizam a épica; Virgílio epiciza Calímaco e Catulo” (p. 143-146). 18 imitador ao modelo). A igura do autor, cuja morte foi “decretada” por Barthes (1968), permanece viva nesse olhar para a produção do texto e para a recepção prevista pelo autor, embora produção e recepção, assim entendidas, devam ser estratégias de leitura, e não os ins da mesma (BARCHIESI, 2001, p. 142). Acrescentemos, com Hinds, um ponto interessante nessa questão da necessidade, apontada por Barchiesi, de se interpretarem os dois textos envolvidos no ato intertextual. Segundo Hinds (1998, p. 101), os estudos das alusões podem tomar os dois textos envolvidos ou fragmentariamente ou sistemicamente. Em outras palavras, os efeitos da alusão são ou locais, momentâneos, ou mais gerais, inluenciando a obra inteira. Uma análise pode comparar, por exemplo, as alusões que ligam uma passagem de Lucano a uma passagem de Virgílio (estudo de contato local), ou comparar alusivamente todo o texto do De Bello Ciuili e todo o texto da Eneida (estudo de contato sistemático, conjunto)19. O primeiro tipo é mais comum nos estudos clássicos, prossegue Hinds (1998, p. 101), e, quando o segundo tipo é tentado, têm-se geralmente abordagens unilaterais, com somente um dos textos da relação analisado em seu todo. Assim, ou só o texto que alude recebe uma leitura sistêmica, total, sendo o texto aludido fragmentado em passagens às quais o outro alude (é como os latinistas liam outrora todas as alusões de Virgílio a Apolônio), ou o texto aludido é lido como uma totalidade, sendo o texto que alude fragmentado em tímidos atos alusivos (é como os helenistas liam todas as alusões de Apolônio a Homero). As abordagens unilaterais se devem, segundo o teórico (1998, p. 102103), a três motivos: 1) porque um dos textos é realmente um fragmento, em razão das vicissitudes da transmissão manuscrita; 2) porque um dos textos é visto como menos importante ou menos digno de uma leitura sistêmica (seria o caso de Apolônio em relação a Virgílio e a Homero nos exemplos acima); e 3) porque é de fato impossível não privilegiar, em um dado momento da análise alusiva, um dos textos da relação, tomando-o, somente ele, como uma totalidade, uma postura que é exigida pelos próprios objetivos da análise, que tem de adotar um ponto de vista (por exemplo, se se deseja estudar as alusões de Virgílio a Homero do ponto de vista virgiliano). É por isso que Hinds diz que toda leitura alusiva é “tendenciosa” (adjetivo a que ele não atribui valor negativo), pois, na análise de uma relação alusiva, “uma leitura sistêmica de um texto sempre impedirá uma leitura sistêmica do outro” (1998, p. 103)20. 19 Conte e Barchiesi (1989, p. 108) haviam chamado a atenção para essa questão: “Ocorre frequentemente de se perguntar se as alusões devem ser tomadas como fatos pontuais, circunscritos, interferências momentâneas, ou se temos, ao contrário, margens, efeitos de eco e de dissolução prolongada; se se pode, em suma, medir de alguma maneira o seu raio de aplicação e a duração da sua presença ativa na leitura de um texto.” Os exemplos de duração prolongada do efeito alusivo são Petrônio e Virgílio: “Muitos estudiosos acham que as alusões homéricas individuais no Satyricon de Petrônio são não só reconhecidas uma a uma, mas também percebidas em série e permanentemente, como um comentário recorrente ao desenvolvimento do enredo e do discurso narrativo. E todos os estudiosos da Eneida aceitam que as alusões homéricas desenvolvem uma função contínua, até mesmo coextensiva ao desenvolvimento da narração épica.” 20 O próprio poeta que alude, que também é um leitor, é “tendencioso”, segundo Hinds. Veja-se a análise que este faz (p. 104 ss.) da relação intertextual entre a “Eneida” de Ovídio (Met. XIII.623 - XIV.582) e a Eneida de Virgílio, mostrando como Ovídio se apropria “tendenciosamente” desta última, construindo-a como uma “precursora” das Metamorfoses. 19 Mas voltemos às oito teses elencadas por Barchiesi, para comentar ao menos mais uma delas (a sexta). Segundo ele (2001, p. 147), pode-se ler um texto antigo, simultaneamente, sob as duas posturas teóricas que muitos consideram inconciliáveis e excludentes: a “formalista” e a historicista, isto é, tendo em vista sua riqueza intertextual e, ao mesmo tempo, seu contexto histórico-social. O teórico desmente, aliás, o mito de que quanto maior o número de referências intertextuais num texto, menos ele é engajado no contexto social e político. É a mesma posição de Fowler, para quem: [...] a oposição entre textualidade e história é sem sentido, já que a história é somente acessível no discurso. Os textos não podem se referir a fatos ou instituições históricas, mas somente a estórias sobre esses fatos e instituições, quer contadas pelos antigos, quer pelos modernos. Da mesma forma, porém, a ‘alusão’ política e histórica, tanto quanto a alusão a outros textos literários, não é algo que possa ou não ser inserido no texto conforme o autor deseja, mas é parte de uma matriz dentro da qual todo texto nasce e em confronto com a qual deve ser lido. De novo, o que signiicaria escrever um texto que não é politicamente e ideologicamente intertextual senão escrever um texto que não poderia ser lido? (FOWLER, 2000, p. 120-121, grifos do autor). Quando se leva em conta o contexto histórico-cultural na análise de um poema, por exemplo, já se está fazendo análise intertextual, pois a história nos chega através de discursos, de textos, e fazer referência ao contexto histórico é, portanto, fazer referência a uma série de textos que nos dão acesso a esse contexto. De resto, a intertextualidade não é uma propriedade só da literatura, mas de todos os sistemas semióticos, dentre eles a linguagem (FOWLER, 2000, p. 119). É uma propriedade de qualquer texto, de qualquer discurso. Autores e textos não têm a opção de escolher se serão ou não intertextuais, se participarão ou não dos sistemas de textos. “O sistema textual existe antes de qualquer texto, e os textos nascem sempre já situados dentro desse sistema, queiram ou não” (2000, p. 119). Segundo Fowler, a intertextualidade é, na forma mais radical dessa concepção, “um aspecto central da vida humana”, pois “nada está fora do texto, no sentido de que só se pode falar e pensar algo pela linguagem” (2000, p. 119-120)21. Cremos que voltamos, de alguma forma, à airmativa aristotélica inicial: o ato de imitar é uma característica congênita dos seres humanos... Sabendo, então, que todo texto é intertextual e que a intertextualidade é um traço inevitável, não se pode postular cegamente a intencionalidade do autor em um determinado intertexto, que pode estar no texto independentemente da vontade de seu autor. Fala-se em “conluências acidentais”, “reminiscências”, em oposição a “alusões que estavam na mente do autor”. Mais interessante 21 Fowler (2000, p. 131) aponta, inclusive, como um dos desaios para a futura crítica intertextual nos estudos clássicos, o alargamento da noção de “texto”, de maneira a incluir outros produtos culturais na análise intertextual. Tomemos como exemplo o caso da ekphrasis, a descrição literária de um objeto, em geral uma obra de arte. Trata-se de uma relação intertextual entre o “texto” que é a obra de arte e o texto que a descreve. 20 e produtivo é avaliar os efeitos de sentido gerados por todos esses tipos de intertextos na leitura, independentemente de se foram pretendidos ou não, e, para usar as palavras de Fowler (2000, p. 122-123), veriicar se há alguma boa estória para contar, alguma coisa interessante a fazer com esse intertexto. REFERÊNCIAS ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-Comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1994. Ensaios de Cultura, 4. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Poética. 4. ed. Tradução do inglês L. Vallandro e G. Bornheim (Ética), tradução e comentários de Eudoro de Souza (Poética); seleção de textos de José Américo M. Pessanha. São Paulo: Nova Cultural, 1991. BARCHIESI, Alessandro. Some Points on a Map of Shipwrecks. In: ______. Speaking Volumes. 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Quanto a nós, por mais belo que seja o tipo da cópia, desde que a produção não tenha em si a luz da originalidade, acharemos nela talvez doçura, arte – mas grandeza do gênio…? Não sei. (AZEVEDO, 1942, p. 247) a comparação entre Virgílio e Lucano coloca frente a frente dois modos de conceber a epopeia na antiga Roma. Virgílio é o autor da Eneida, o mais célebre poema épico latino que narra a fuga de Eneias da homérica Troia para fundar Roma. Lucano escreveu a Farsália ou A guerra Civil, uma epopeia sobre a luta entre César e Pompeu pelo poder de Roma. A primeira, uma epopeia mitológica que propõe uma extraordinária fundação de Roma entremeando o mito (Eneias) e o presente histórico (Augusto). A outra, uma epopeia histórica que decantava os feitos de ilustres personagens da história recente como César e Pompeu. Álvares de Azevedo, nosso poeta romântico, para digniicar o método empregado por Lucano, que ele entendia por original, acaba por menosprezar o trabalho épico de Virgílio1 como mera reprodução de Homero (“por mais belo que seja o tipo da cópia”), recusando-se a admitir “grandeza de gênio” em obras que se ocupassem com “o ressaibo do céu grego”. A crença romântica na genialidade do poeta que possuía a faculdade de revolucionar a literatura – e o mundo – está por trás desse julgamento. Facilmente Lucano caiu no gosto do público de Oitocentos, seja por seus traços biográicos – era jovem e opositor do despotismo de Nero –, seja por ainidades com o estilo em voga – ao representar a história de Roma, de modo arrebatado como aquele caro a um Victor Hugo (e.g. Os miseráveis) ou a um Castro Alves (e.g. “O navio negreiro”), ele denuncia negativamente os desmandos políticos e morais de uma situação histórica recente. Todavia, esse entusiasmo romântico sobre a originalidade lucaniana não se sustenta diante da interpretação hoje vigente. Uma análise da produção literária romana desde o séc. III a. C. pode revelar até mesmo o contrário. Virgílio 1 Esse ponto de vista de se julgar Lucano superior era também compartilhado com outro ícone do romantismo, o escritor inglês Percy Shelley (1840, p. 39). 24 revolucionou a literatura de Roma ao fazer em latim uma epopeia mitológica que se tornou “o” poema épico romano, “o texto canônico” como bem deiniu Boyle (1993). O ponto de vista romântico-azevediano serve, no entanto, como advertência de que a unanimidade sobre primazia alcançada pela vertente épica de Virgílio está subordinada a preferências estéticas e ideológicas. Assim, consoante os escritores românticos admiravam, a epopeia por excelência em Roma foi por muito tempo a de tipo histórico (CONTE, 1994, p. 429)2. Já nos primeiros registros de textos literários latinos em meados do séc. III a. C., duas manifestações épicas sob perspectiva histórica tiveram lugar em Roma, quer em verso saturnino, com o Bellum Punicum (“Guerra púnica”) de Névio, publicado aproximadamente em 218 a. C., quer na transposição do hexâmetro grego em língua latina, com os Annales (“Anais”), de Ênio, escrito e publicado ao longo da década de 180-170 a. C. Essas obras bem testemunham que a epopeia em Roma foi expressão de feitos históricos, inclusive aqueles contemporâneos aos seus poetas.3 Um historiador como Moreno, ao tratar dos inícios da história em Roma, não deixa de se mostrar admirado com o fato de que nem sequer na poesia épica os romanos “permitiram que o elemento lendário encobrisse a base histórica” (2005, p. 132). Mas é preciso que eu deina in limine essa oposição mítico/lendário e histórico, para abordar aqui mais propriamente a questão. Tomo, com esse im, a célebre delimitação de Tito Lívio no prólogo de seu Ab urbe condita (“Desde a fundação da cidade”), em passo que distingue a história (res gestae) e o mito (fabula): quae ante conditam condendamue urbem poeticis magis decora fabulis quam incorruptis rerum gestarum monumentis traduntur, ea nec adirmare nec refellere in animo est. datur haec uenia antiquitati ut miscendo humana diuinis primordia urbium augustiora faciat; (Liv.Praef.6) Essas extravagâncias de antes da fundação da cidade ou de quando ela estava sendo fundada são transmitidas mais pelos mitos poéticos (poeticis fabulis) que pelas memórias incorruptíveis dos feitos (rerum gestarum), não há razão para as conirmar nem refutar. É permitido essa licença à antiguidade para que, misturando coisas humanas a divinas, os primórios das cidades se façam mais majestosos. Duas coisas chamam a atenção nessas palavras: 1) o fato de os mitos poéticos (poeticis...fabulis) serem admitidos nos relatos históricos 2 “A poesia épica sobre assunto histórico teve um ininterrupto sucesso em Roma e ela parece lacunosa apenas para nós, que do longo período entre Ênio e Lucano, entre as idades de Cipião e Nero, possuímos não mais que fragmentos isolados e, muitas vezes, meros títulos e nomes de autores” (Tradução nossa). 3 É verdade que Lívio Andronico, traduzindo a Odisseia de Homero (ca. 240), pode ser considerado o primeiro poeta épico romano, todavia, como o foco do presente capítulo é a epopeia histórica, as informações sobre traduções e/ou adaptações de poesia épica grega terão tratamento meramente informativo. 25 como decora (“extravagâncias”, “enfeites”) para épocas mais remotas (primordia urbium); 2) o fato de o próprio historiador lhes conceder licença pela elevação majestosa que eles propiciam. De certa forma, o modo como a epopeia histórica tratou mitos e feitos é assimilável àquele da História de um Tito Lívio, à medida que epopeias dessa vertente se centram no relato histórico e trazem mitos como adorno. Esse foi o modo como os poetas romanos cultivaram o gênero épico nos dois séculos que antecederam a Virgílio e seu excepcional repatriamento homérico, a Eneida (19 a. C.). O mantuano, ao centralizar-se no mito, direcionando seu caráter etiológico, teológico e genealógico para a história recente, reinventa a tradição anterior e consolida um modo de expressão épica em Roma que se tornou paradigmático, vindo a substituir Ênio no cânone escolar romano ainda no período de Augusto (Suet. Gram. 16). Apresento, neste capítulo, uma espécie de antologia comentada de fragmentos de epopeias históricas romanas até o surgimento da Eneida, seguida de uma discussão sobre questões de metalinguagem literária importantes na delimitação da subdivisão do gênero épico provocada por Virgílio e percebida por Lucano. Bellum Punicum, de Névio O parco número de versos que nos chegaram do Bellum Punicum – cerca de 60 – diiculta um estabelecimento seguro do io narrativo da obra. O poema tratava da Primeira Guerra Púnica (264-241 a. C.) e há notícias de que Névio teria sido testemunha ocular dos eventos, uma vez que participara da guerra como soldado (Gel. 17, 21, 45). Depois da morte do poeta, o poema foi dividido em sete livros (Suet. Gram. 2) e, geralmente, os gramáticos e eruditos antigos, pelos quais esses versos sobreviveram, citam-nos referindo-se aos números dos livros de que eles foram tirados. A partir dessas referências, é possível airmar que Névio fez o primeiro registro literário da emigração troiana para Roma e, provavelmente, da relação entre Dido e Eneias (Serv. A. 4.9). Se se considerar a disposição dos assuntos informadas pelos compiladores, esses recuos ao universo lendário iguravam como digressões mitológicas dentro do relato histórico, pois se encontram misturados à narrativa da guerra. Convivem, por exemplo no livro primeiro, a objetividade, quase analista4, de uma referência a Mânio Valério Máximo Messala, cônsul em 263 a. C. e que teria cheiado operações militares na Sicília nesse mesmo ano (ROWELL, 1947, p. 27): 4 Quando me reiro ao estilo analista, aludo à ideia romana desse conceito. Para eles, os anais eram um registro público composto por listagens de nomes e cargos exercidos na República em determinado ano (daí o nome Annales derivando de annus) com objetivo arquivístico e, de certa forma, cartorial. 26 Manius Valerius consul partem exerciti in expeditionem ducit (frag. 3 [Bländorf]) O cônsul Mânio Valério conduz parte de um exército em uma expedição.5 Com a fuga mítica dos Troianos: eorum sectam sequuntur multi mortales, multi alii e Troia strenui uiri, ubi foras cum auro illic exibant (frag. 6 [Bländorf]) Muitos mortais seu caminho trilham, de Troia provindos muitos outros varões fortes com ouro de lá partiam. Há várias suposições sobre arranjos possíveis desses fragmentos (cf. ROWELL, 1947), mas talvez a única certeza diante do conjunto deles é a de que Névio parece seguir uma disposição cronológica em seu relato da Primeira Guerra Púnica 6, apesar de lançar mão de uma longa digressão (cerca de 40% dos trechos remanescentes) sobre o mito da fundação de Roma pelos troianos, na qual parece haver intervenções divinas, provavelmente de meados do canto I ao im do canto III do poema de sete cantos7. A edição de Blänsdorf (2011) traz o texto latino e a disposição deinitiva até o presente momento, separando episódios da “parte mítica” e da “parte histórica”. Annales, de Ênio Os cerca de 600 versos que nos chegaram de Ênio dão a ideia de sua preponderância sobre Névio na tradição literária latina. Comparando os dois, já Cícero chama aquele de perfectior, “mais completo” ou “mais bem acabado”, citando justamente um passo dos Anais que contém possivelmente uma opinião de Ênio sobre seu antecessor: scripsere alii rem vorsibus quos olim Faunei uatesque canebant (frag. 123 [Valmaggi]) 5 Todas as traduções dos fragmentos são minhas. Sempre que possível procurei uma forma ixa de metriicação em português para expressar/traduzir o verso latino. 6 Segundo se pode presumir de Rowell (1947, p. 47). Gratwich, ao tratar de Ênio, airma que há na epopeia dele “uma apresentação ‘analítica’ contínua ao modo de Névio” (1989, p. 82). 7 Essa digressão pode ter inspirado Virgílio, como nota Goldberg (2005, p. 432-3), mas, através da leitura dos fragmentos restantes, não há meios de se airmar que Névio começara in medias res, pois diferentemente do que ocorre na Eneida, ou mesmo na Odisseia, há um imenso degrau entre passado e presente. 27 outros vasaram esse assunto em versos nos quais antes cantavam Faunos e adivinhos. A considerar o modo como Cícero interpreta esse trecho8, é bastante provável que a menção às divindades campestres (Faunei) e aos “adivinhos” (uates) fosse alusão depreciativa aos versos satúrnios – Ênio é o introdutor do hexâmetro em latim. Todavia, o reconhecimento da matéria comum res e o fato de Ênio excluir da sua narrativa a Primeira Guerra Púnica já cantada por Névio permitem-nos pensar que ele está continuando uma “tradição” já estabelecida. Nesse sentido, o termo res merece atenção particular. Ele possivelmente aqui se refere a tema (materies), mas, por inluência do subgênero historiográico das res gestae (“catálogos de realizações militares e civis de um general”), conforma-se também ao uso deste material pelos historiadores como assinalei na passagem de Tito Lívio citada no início deste capítulo. Convém lembrar que, na deinição de conteúdo e forma do poema épico, concebida por Horácio um século depois, a ênfase nas res gestae tem lugar de destaque, assim como o hexâmetro, metro da epopeia homérica: res gestae regumque ducumque et tristia bella quo scribi possent numero, monstrauit Homerus. Feitos de reis, de generais, e tristes guerras, mostrou Homero o metro em que se hão de escrever. (Ars, 73-4) Então, quanto a res é possível conjeturar que seu sentido em Horácio parece também se confundir com os temas épicos romanos da tradição. O próprio Ênio aponta essa acepção em um fragmento situado no livro 1, lê-se Latos/ per populos res atque poemata nostra cluebunt/ clara (frag. 8 [Valmaggi]), “Entre povos de longe, os feitos (res) e poemas/ nossos, ilustres, vão se nomear”. Quando o poeta, nesse passo, usa o termo latino res a par da transliteração grega poemata, há de certa forma o estabelecimento de uma adaptação romana ao gênero praticado por Homero. Desde os Anais enianos, adota-se o metro peregrino, atualiza-se o assunto autóctone. A epopeia de Ênio, cuja primeira edição contava com 15 livros acrescidos de mais três posteriormente, ensejava contar a história de Roma desde os tempos primordiais até o presente, o que nos cálculos de Gratwick se estenderia do ano 1184/3 a. C. até aproximadamente 183/4 a. C, ou seja nada menos que mil anos (1989, p. 80). O início da obra coincidiria com a queda de Troia e o relato se prolongaria, cronologicamente à maneira dos anais, até 8 Cf. Cic. de Orat., 75: tamen illius, quem in uatibus et Faunis adnumerat Ennius, bellum Punicum quasi Myronis opus delectat. sit Ennius sane, ut est certe, perfectior: qui si illum, ut simulat, contemneret, non omnia bella persequens primum illud Punicum acerrimum bellum reliquisset. “O Bellum Punicum dele [Névio], que Ênio enumera entre vates e Faunos, agrada quase como uma obra do escultor Mirão. Não há dúvida que Ênio seja, pois, mais acabado: agora se ele o condenasse, como parece, trataria de toda a Guerra Púnica e não deixaria de lado aquela ferocíssima primeira guerra [tratada por Névio]”. 28 os eventos da Guerra da Hístria em 171 a. C. Se a epopeia possuía uma perspectiva histórica, é preciso pensar na função que o passado mítico nela desempenhava. Nesse sentido, o começo em Ílion, como já Névio tinha notado, era duplamente signiicativo: 1) atribui herança troiana a Rômulo; 2) referenda Homero, autoridade no gênero. Segundo é possível se interpretar dos fragmentos – e de seus intérpretes antigos9 –, Ília (o nome dardâneo certamente não é vão) teria parentesco com Eneias, algo relevante, no nível do conteúdo, para instauração do novo epos, ou seja, o tema troiano garantia a elocução (genus graue) própria da epopeia, pois a emprestava de um antecessor por meio da trasladação intercultural de um herói e de sua ascendência divina10. Isso ica evidente em uma fala atribuída a Ília, que menciona Eneias (patris nostri) e Vênus (cognata): te sane, alta precor Venus, te genetrix patris nostri ut me de caelo uisas, cognata, parumper te peço, excelsa Vênus, mãe de nosso pai que um breve olhar lances por mim do céu, parente. De Homero vinham também o metro e a invocação às Musas11, outros fundamentos do gênero. Por outro lado, a fonte homérica (no tema e, agora, na forma) conluía para a nova formatação romana do gênero que viria expressa no tratamento da história recente e no tom realista dela proveniente. Parte-se de Homero, mas se adéqua o gênero à índole romana (mos maiorum). Dos fragmentos que nos chegaram é possível encontrar referências a intervenções divinas até o livro 6, que conta a guerra contra Pirro (281-271 a. C.) ocorrida aproximadamente há um século da composição dos Anais. Depois disso, como bem lembra Gratwick, ao tratar os feitos de personagens históricos contemporâneos ao poeta, “não há indícios claros dos deuses no restante do poema” (1989, p. 82). Na longa história romana de Ênio, portanto, a ligação com a mitologia e com os tempos lendários (cf. fabulis poeticis de Tácito) era inevitável e a ela foi dedicado um terço do poema. Estabelecidas a ascendência heroica dos romanos e ascendência épica do novo poema, a res romana, “o assunto romano” e o modo romano de conceber o mundo assumem o primeiro plano. Um fragmento do início do livro 8 é exemplar do novo ponto de vista épico: Pellitur e medio sapientia, ui geritur res; Spernitur orator bonus, horridus miles amatur; Haud doctis dictis certantes, nec maledictis Miscent inter sese inimicitiam agitantes; 9 Era ilha do herói, como airma Sérvio (in Virg. A. 1. 273): Naevius et Ennius Aeneae ex ilia nepotem Romulum conditorem urbis tradunt, “Névio e Ênio contam que Rômulo, o fundador da Urbe, é neto da ilha de Eneias ”; e em 7.569: Rhea sacerdos adludit ad nomen matris Romuli, quae dicta est Ilia, Rhea Silvia, “A sacerdote Reia alude ao nome da mãe de Rômulo, que foi chamada de Ília, Reia Sílvia”. 10 Cf. Hor. Ars 74: monstrauit Homerus, “mostrou Homero”. 11 No fragmento que é apontado como primeiro verso do poema, Ênio introduz o termo grego Mousa em latim: Musae, quae pedibus magnum pulsatis Olympum (frag. 1 [Valmaggi]), “Musas, que com os pés pisais o magno Olimpo”. Lívio Andronico e, possivelmente, Névio teriam preferência ao vocábulo autóctone Camenae para expressar essas divindadades (cf. NATIVIDADE, 2009, p. 16). 29 Non ex iure manum consertum, sed magis ferro – Rem repetunt regnumque petunt – uadunt solida ui (Ann., 8, 247-53) Repele-se a sapiência, a ação se faz por força; O orador bom se ignora, ama-se o horrendo mílite; Nem termos doutos usam, nem ofensas gritam os combatentes, mútua inimizade inspiram; Isso na lei não se contesta, e sim no ferro – seus bens e um reino pedem – vêm na força bruta. É interessante a perspectiva humana desse excerto que, segundo Natividade (2009, p. 117), tem sido interpretado como um fragmento de um discurso de um militar romano ou cartaginês após a batalha de Canas (216 a. C.). Inebriados pelo ímpeto da guerra, os homens conduzem suas ações pela força (ui) e rechaçam a sapiência (sapientia). Não são deuses que os movem, nem qualquer outro aspecto sobrenatural, mas um sentimento humano como a força ou a violência, que é a ausência da humana sabedoria, a domina rerum, “a senhora dos eventos”, tal como a qualiica Cícero ao citar esse trecho (Mur. 30). Note-se novamente o termo res no centro dos eventos: ui geritur res, em uma tradução mais literal, “os atos humanos (res) são gerados pela violência”. Para uma leitura integral dos fragmentos enianos, sugiro a tradução portuguesa e os comentários de Everton Natividade (2009). Os textos latinos aqui citados foram extraídos dessa dissertação; portanto, seguem a edição de Valmaggi (1945). Foram essenciais para embasar nossos comentários os capítulos de Dominik (1993) e de Gratwick (1989), bem como os excelentes comentários e traduções de Martos (ENNIO, 2006). A epopeia histórica no tempo de Cícero e de Augusto Após Ênio, Goldberg menciona, sem precisar nomes e títulos, a notícia de doze epopeias históricas entre o im da República e o início do Principado (2005, p. 435). Creio que é importante uma listagem dessa produção no período, a im de esboçar os desdobramentos do gênero e da sua inluência na cena literária romana. É o que faço de modo bastante abreviado a seguir, começando por uma síntese do conjunto e, depois, chamando atenção para algumas particularidades mais relevantes. Compulsando as coletâneas de Courtney (2003) e de Hollis (2007), rastreei, tão exaustivamente quanto pude, onze dessas obras de que nos resta algum fragmento ou notícia, são elas: Guerra Hístria, de Hóstio; Guerra Címbria, de Fúrio de Ântia; Sobre seu próprio consulado, Sobre suas própria vicissitudes, Mário e Sobre a expedição de César à Britânia, de Cícero; os Anais da Guerra da Gália, de Fúrio Bibáculo; Guerra Sequânica, de Varrão Atacino; Panegírico de Augusto, por Vário Rufo e, por im, Elogio a Antônio, 30 escrito por Ânser12. No im do séc. II a. C., encontramos dois poetas, Hóstio e Fúrio de Ântio. O primeiro, provavelmente intentando uma sequência dos Anais de Ênio, compôs um Bellum Histricum, “Guerra Hístria” conduzida por Semprônio Tudiano em 129 a. C., da qual há 7 fragmentos, muitos deles palavras ou sintagmas isolados (COURTNEY, 2003, p. 52-55). Fúrio de Ântio, a quem, segundo Courtney (2003, p. 97), Catulo teria dedicado um livro sobre seu consulado, tem seis hexâmetros citados por Aulo Gélio (cf. 18.11) remanescentes de uma obra sobre a Guerra Címbria, movida por Mário entre 105-101 a. C. Cícero épico Essas duas epopeias históricas antecederam os ensaios de Cícero nesse campo. Em fragmentos nos chegaram o De consulatu suo, “Sobre seu próprio consulado”, que versa sobre a conjuração de Catilina ocorrida em 63 a. C., e o Marius, obra que relata a acidentada vida de Mário, também cidadão de Arpino como o ex-cônsul, e que, conforme Soubiran (CICÉRON, 1972, p. 49), daria pretexto para referências indiretas sobre o exílio vivenciado por Cícero no período em que estava escrevendo. Essas obras, que foram escritas na maturidade, aquela em 60 a. C., esta em 52 a. C., são bons exemplos de primeiras fugas ao gênero “epopeia histórica”. Conforme se pode interpretar por testemunhos e pelo teor dos fragmentos (cf. CICERÓN, 1972, p. 40), compunham o De consulatu suo três livros: o primeiro tratava dos antecedentes da conjuração de Catilina; o segundo, de que nos restou o maior trecho (78 hexâmetros), de suas peripécias; o terceiro, do seu desfecho propício ao cônsul. Sobre sua estrutura, notamos, por um lado, a sequenciação cronológica da obra que reletia o recorte historiográico e analista próprio das res gestae e, por outro lado, o uso imoderado de intervenções divinas. O maior excerto supérstite, que está transcrito em Div. 1. 17, apresenta prodígios que antecederam a delagração militar da conjuração através da voz da Musa Urânia. Esse artifício de inserção do maravilhoso – mas dentro de seu ministério humano, ou seja, por obra de sacerdotes e áugures – será retomado nos fragmentos épicos do início do séc. I d. C. que evitarão, como aparece consolidado em Lucano, tratar da história recente tendo os deuses como coadjuvantes. Cícero, contudo, adota imoderadamente aquilo que Névio, – em sua digressão sobre a fundação de Roma– e Ênio – na parte pré-histórica de seus Anais – inseriram como uma espécie de lashback. O arpinate aplica, assim, de modo inverossímil, a parafernália mitológica em conjunção com sua própria biograia. Os versos do livro III que encerram o De consulatu suo são uma evidência desse disparate, agravado ainda pela imodéstia de um rasgado 12 Sobre Ânser não há mais do que a notícia deste seu poema em uma breve nota de Sérvio (Ecl. 9.36), motivo pelo qual não o abordaremos em detalhe aqui. 31 autoelogio. Vale a pena citar o texto e seu entorno que sobreviveu em uma carta a Ático de dezembro de 60 a. C.: interea cursus, quos prima a parte iuuentae quosque adeo consul uirtute animoque petisti, hos retine atque auge famam laudesque bonorum. haec mihi cum in eo libro [tertio], in quo multa sunt scripta aristokhraticôs, Calliope ipsa praescripserit (Cic. At. 2, 3, 4) Eis que o currículo, que, desde a juventude ao consulado, com valor buscaste, e empenho, guarda e o renome aumenta, e os louvores dos bons. Isso a mim no livro terceiro, em que muitas coisas foram escritas de modo aristocrático, a própria Calíope teria previsto. Como se pode ler aí, dizer que uma musa soprou elogios sobre o próprio poeta-cônsul é algo muito diferente do que pedir inspiração de Camena(s) ou Musa(s) tal qual Névio e Ênio izeram – e, depois, Virgílio fará – para cantar feitos de tempos imemoriais. A recepção imediata bem testemunhada pelo pseudo-Salústio (Cic. 7) e por Quintiliano manifesta o incômodo dessa conjunção entre humano e divino. Fiquemos com o juízo mais imparcial deste último: in carminibus utinam pepercisset, quae non desierunt carpere maligni: […]et Iouem illum a quo in concilium deorum aduocatur, et Mineruam quae artes eum edocuit: quae sibi ille secutus quaedam Graecorum exempla permiserat (Inst. 11.1.24). Em seus poemas oxalá ele tivesse parcimônia! Os maledicentes não deixaram de atacar isto: […] aquele Júpiter pelo qual é convocado ao concílio dos deuses e a deusa Minerva que o teria ensinado as artes: isso a que ele se permitira, seguindo certos exemplos dos Gregos. É unânime a interpretação que essa intervenção de Júpiter e de Minerva se encontraria em passagens do De temporibus suis (“Sobre as suas próprias vicissitudes”), uma segunda epopeia autobiográica de Cícero, desta vez versando sobre seu exílio e retorno, que chegou até nós apenas em referências indiretas do próprio autor e de poucos outros testemunhos, como esse de Quintiliano acima transcrito. As referências à musa Urânia e a Calíope, presentes no De consulatu suo, levam-nos a estender esse juízo também a essa obra. Salta aos olhos nessa impressão do autor da Institutio a crítica ao ethos do próprio poeta – a ideia de “imodéstia” principalmente pelo pepercisset (“tivesse parcimônia”) – e ao tipo de iliação estilística secutus quaedam Graecorum exempla, “seguindo certos exemplos dos Gregos”, que sugere o quanto Cícero teria se afastado dos seus predecessores romanos no uso das intervenções divinas e o quanto isso seria pouco conveniente (aptum) no nível genérico a uma epopeia histórica. 32 Para uma leitura integral dos fragmentos épicos de Cícero, indico a edição latina com notas e comentários em inglês elaborada por Courtney (2003, p. 156-178), donde transcrevi os excertos aqui citados. Há uma versão espanhola desses fragmentos a cargo de Herrero (2003, p. 170-179) e outra em tradução francesa e fartas anotações de Soubiran (1972). Até o momento, Cícero poeta persiste inédito em português. Annales Belli Gallici, de Fúrio Bibáculo Contemporânea desses exercícios épicos ciceronianos é a epopeia de um segundo Fúrio, de cognome Bibáculo, integrante do círculo de Catulo13 – talvez o mencionado no poema 11 – cujas informações e fragmentos são bastante reveladores dos posteriores desenvolvimentos da epopeia sob Augusto (COURTNEY, 2003, p. 192-202). Ele escreveu, provavelmente na década de 60-50 a. C., os Annales Belli Gallici, um poema de 11 cantos sobre a Guerra da Gália de que nos restaram apenas 14 versos – alguns em transcrição parcial. Não se pode dizer, diante do texto supérstite, que havia interferência de deuses na narrativa. A menção a Júpiter (frag. 15 [Courtney]), referida por Quintiliano como exemplo de dura metáfora (Inst. 8.6.17), parece testemunhar um recurso de alusão às divindades próprias da epopeia histórica, e que viria a ser praticado, posteriormente, por Lucano, segundo o qual se evocam deuses como personiicações ou metáforas de eventos naturais: Iuppiter hibernas cana niue conspuit Alpes Júpiter, nos frios Alpes, neve alva cuspiu Note-se que Júpiter aqui é metáfora para o céu e a crueza da imagem concretizada pelo verbo conspuit lembra algo de Ênio, autor paradigmático para o exercício épico de Bibáculo. Horácio parece ter esse verso em consideração, antecedendo assim a Quintiliano, na Sátira, 2.5.39-4114: persta atque obdura: […] […]seu pingui tentus omaso Furius hibernas cana nive conspuet Alpis. Persevera e persiste: […] mesmo que o de pesada pança, Fúrio, no frio dos Alpes cuspa branca neve. Porfírio, escoliasta de Horácio, identiica esse Fúrio com aquele citado por Quintiliano, comentando a passagem assim: “[Fúrio], pois, quando 13 Chama a atenção a clara oposição de Catulo ao tipo de epopeia praticado por Bibáculo expressa no poema 36.19-20: pleni ruris et inicetiarum, Annales Volusii, cacata carta, “ó cheios de rusticidade e feios,/ Anais de Volúsio, papéis cagados” (Trad. Oliva Neto cf. CATULO, 1996). 14 Esta sátira é constituída por uma conversa entre Tirésias e Ulisses sobre heranças e advogados corruptos. 33 queria descrever os Alpes cheios de neves”. Esse dado é importante, porque o próprio comentador antigo chama atenção à interpretação metafórica da citação do deus. Outro ponto signiicante da referência de Horácio reside no fato de que, ao descrever seu personagem como pingui tentus omaso, ele poderia estar fazendo metaliteratura (COURTNEY, 2003, p. 200), desse modo: ao considerar a “pança” de Fúrio “pesada”, o satirista aludiria ao estilo pesado ou inlado do épico. Talvez essa crítica pudesse apontar uma postura mais “historiográica” de Fúrio, com uma possível “exclusão” dos deuses, mas tal conjectura é inconsequente diante dos poucos fragmentos. É possível, no entanto, perceber nesses Annales uma reelaboração do estilo homérico mais próxima ao fazer poético de Virgílio, como nesta imagem do raiar do dia: interea Oceani linquens Aurora cubile (Frag. 7 [Courtney]) Nisso, de Oceano a Aurora se livra do leito Ou na pormenorizada descrição de um gaulês ferido, que, se referenda a precisão analista e uma certa dureza eniana15, conta com um rebuscado uso do enjambement: ille graui subito deuictus uolnere habenas misit equi lapsusque in humum deluxit et armis reddidit aeratis sonitum (Frag. 8 [Courtney]) ele, de súbito ferido gravemente, largou a equina brida, e, vindo ao chão, nas armas, brônzeas reboou. A leitura desse texto serve de indício dos avanços poéticos obtidos pela a prática do hexâmetro em Roma, mas também honra Bibáculo por seu especioso manejo desse verso. Ao saber que quase todos os fragmentos desse poeta são provenientes de comentadores de Virgílio, principalmente de Macróbio, pode-se conjeturar que Fúrio teria merecido o respeito do mantuano. A qualidade dos fragmentos que dele restaram comprovam esse merecimento. A edição mais indicada para o leitor ansioso por uma apresentação ao poeta é aquela de Courtney (2003, p. 192-202), quem, parece-me, oferece uma saída interessante para a atribuição dos poemas neotéricos e para esses fragmentos de epopeia histórica a um único Fúrio16. Os fragmentos podem ser encontrados em versão espanhola de Herrero (2003, p. 216-222) e também foram traduzidos e comentados em inglês por Hollis (cf. 2007, p. 118-145). 15 Courtey (2003, p. 196) relaciona pontualmente esse trecho com o fragmento 247 [Valmaggi] de Ênio. 16 Muitos editores, como Blänsdorf (2011) e Hollis (2007), por razões de crítica textual que não cabem aqui, preferem atribuir os fragmentos épicos a um outro Fúrio, que não seria o contemporâneo de Catulo e Horácio. 34 A transição virgiliana P. Terêncio Varrão Atacino e Vário Rufo são contemporâneos de Virgílio. Se o primeiro aparece ligado ao mantuano por via de imitação literária, o segundo é considerado um amigo íntimo dele e vem nomeado na Ecl. 9.35. Os fragmentos que nos chegaram de ambos mostram uma carreira poética de marcante retomada dos modelos helênicos. Além da epopeia histórica Bellum Sequanum, de que nos restam dois hexâmetros, Varrão Atacino teve garantido renome por uma tradução da Argonáutica de Apolônio de Rodes (Qui. Inst. 10.1.87), isto é, por uma grecizante imitação, que, aliás, mereceu grande acolhida dos poetas augustanos, sendo louvada por Propércio (2.34.85) e Ovídio (Am. 1.15.21-2), e provavelmente uma das fontes de Virgílio para sua transposição romana dos amores de Jasão e Medeia naqueles de Dido e Eneias. De Vário Rufo, que era conhecido por seu poema “lucreciano” sobre a morte (De morte) e também como autor trágico, chegaram-nos dois versos de um poema épico dedicado a Augusto (o Panegyricus Augusti), se coniarmos de fato na transcrição horaciana de dois hexâmetros do poema17. Mais do que esse fragmento, muito curioso é o tratamento dado por Horácio a esse poeta, na ode 1.6, dedicada a Agripa, poema dentro da tópica da recusatio comum sob Augusto em praticantes de gêneros outros que não a poesia épica. Nessa ode, o eu lírico diz que não é capaz de cantar as proezas de Agripa e apresenta Vário como único dotado a fazê-lo. É notório, contudo, como Horácio divide, principalmente nas duas primeiras estrofes, os dois modos de fazer epopeia exercitados em Roma até então, aquele que cantava os feitos autóctones e aquele ligado à tradição helênica, mormente a de ascendência homérica: Scriberis Vario fortis et hostium uictor Maeonii carminis alite, quam rem cumque ferox nauibus aut equis miles te duce gesserit. nos, Agrippa, neque haec dicere nec grauem Pelidae stomachum cedere nescii nec cursus duplicis per mare Ulixei nec saeuam Pelopis domum/ conamur[…] (Hor. Carm. 1.6.1-9) Tu, forte e de inimigos vencedor, escrito terás por Vário, cisne do carme meônio, quanto feito teu fero soldado cumpriu com naus ou com corcéis, sob tuas ordens. nós, Agripa, nem isso cantar, nem o grave 17 Hor. Ep. 1.16.25-9: siquis bella tibi terra pugnata marique/ dicat et his verbis vacuas permulceat auris:/ ‘tene magis salvum populus velit an populum tu,/ servet in ambiguo qui consulit et tibi et urbi/ Iuppiter’, Augusti laudes agnoscere possis. “Se alguém a guerra que lidaste em mar e terra/ cantar e te agradar o ouvido com tais vozes:/ ‘Mais quer o povo a ti salvar ou tu ao povo,/ que Júpiter, teu conselheiro e da cidade,/ deixe-o no ar’, O elogio de Augusto notarias”. 35 amargor do Pelida alheio ao que sucede, nem do dúplice Ulisses as navegações, nem de Pélope a irada casa tentamos. Deixo de lado o epíteto de Vário (Maeonis carminis alite, “cisne de meônio carme”), por agora. Toda a primeira estrofe recobra a tradição da epopeia histórica. A começar pelo sintagma scribere...rem que pode aludir àquele verso de Ênio scripsere alii rem (frag. 123 [Valmaggi]) acima referido. A invenção e a elocução dos vocábulos são aquelas do epos romano, seja nos adjetivos fortis, uictor, ferox, seja nos substantivos hostium, rem, nauibus, equis, miles, duce, ou, até mesmo, na construção gesserit quam rem, sob a qual subjaz claramente res gestae. Ao passar para a segunda estrofe, o eu lírico se apressa a dizer neque haec dicere (“nem isso cantar”), em que o neutro plural haec contrasta forma e conteúdo da estrofe anterior ao que virá na sequência, ou seja, a enumeração de três assuntos gregos em estreita conexão com os poemas homéricos: Pelidae recobra Aquiles (Ilíada); as viagens de Ulisses (Odisseia); a saga dos pelópidas remete a Agamêmnon e Menelau. Evidentemente, o modo como Horácio retoma essas duas vertentes épicas está vasado de ironia devido à sua formulação da recusatio. Ahern (1986) mostrará com bastante erudição ilológica como cada uma das evocações homéricas são demonstrações concretas de uma pretensa imperícia de Horácio em abordar tais temas. O crítico falará também de quanto poderia ser ofensivo o epíteto dado a Vário: ales signiica “ave”18. A picardia seria colocar o epíteto depois de dois estandartes dos valores viris romanos que são os adjetivos fortis (“corajoso”) e uictor (“vencedor”) dirigidos a Agripa. Mas, pensando nas vertentes da epopeia em Roma naquele período, creio que também o termo maeoni relacionado a carminis (isto é, “meônio carme”) seria digno de nota. Sobre esse ponto, convém que eu traga à discussão a quarta estrofe do poema: quis Martem tunica tectum adamantina digne scripserit aut pulvere Troico nigrum Merionen aut ope Palladis Tydiden superis parem? Quem a Marte vestindo adamantina capa, distinto, escreveria, ou Merião em pó troiano enegrecido, ou a Diomedes Tídida que, por obra de Palas, faz páreo aos deuses? Note-se que a construção quis...scripserit (“quem...escreveria?”) – que motivou inúmeras conjecturas textuais por parte dos editores da obra (FRAENKEL, 1957, p. 233) – subentende que não haveria naquele momento 18 Minha tradução por “cisne” segue a acepção poética dada por Elpino Duriense na sua magistral tradução das odes horacianas (HORÁCIO, 1807). Sigo de perto aqui a sua versão para a 1.6. Conforme declara Ahern (1986, p. 312): essa identiicação ao ales “é um ato de agressão humorística planejada para pôr seu amigo na defensiva, uma vez que representa de modo prejudicial seu caráter como poeta épico”. 36 alguém que pudesse escrever à maneira meônia19 de modo digno. Talvez, Horácio estivesse nessa estrofe sugerindo a Vário como suceder para louvar Agripa e vir a se consolidar como um “cisne de meônio verso”. Assim parece sugerir Cairns (2012) em sua análise da ode. Segundo ele, a evocação de Diomedes poderia ser considerada uma ideia para um futuro poema em que Vário relacionaria o general Agripa a Diomedes. Uma vez que, com o im da guerra de Troia, o herói grego migrou para a Itália, onde fundou a cidade de Argyrippa, Horácio sugestiona uma etimologia para o homenageado e a possibilidade de “homerizar” seus feitos (CAIRNS, 2012, p.186-187). Fraenkel, um dos mais renomados e controversos comentadores de Horácio, diz algo interessante nesse sentido: “a forma da questão […] deixa uma ênfase extremamente forte na diiculdade, não na impossibilidade, de compor uma Troica ou algum tema poético parecido nos dias de Horácio” (1957, p. 234). Ora, é o advento de uma obra como a Eneida que está sendo apontado ali. O que Horácio tem em mente é uma Troica nacional, um carmen maeonium de fato digno (digne) em Roma. Dessa maneira, a ode de Horácio, ao mesmo tempo que mostra a dupla vertente épica em Roma, aponta para uma obra que estava prestes a chegar e que inauguraria um modo de cantar os feitos de um romano entremeados a temas e modos de elocução digniicados por Homero20. Nesse sentido, Vário, cuja tradição reporta ser um dos editores da inacabada Eneida, seria o último autor de epopeia histórica antes do advento do carme propriamente meônio de Virgílio. Pode ratiicar esse nosso entendimento a imediata recepção que Propércio oferece do poema virgiliano: Actia Vergilio custodis litora Phoebi, Caesaris et fortis dicere posse rates, qui nunc Aeneae Troiani suscitat arma iactaque Lavinis moenia litoribus. cedite, Romani scriptores, cedite, Grai! nescio quid maius nascitur Iliade. (Prop. 2.34.61-6) O mar de Ácio, guardado por Febo, Virgílio pode cantar e as fortes naus de César, e agora do troiano Eneias alça as armas, 19 O termo maeonium, referindo-se metonimicamente a Homero por uma das cidades que reivindicavam ser seu berço, tem sua primeira ocorrência em latim em Horácio (Carm. 1.6.2 e 4.9.5). Depois, é empregado largamente por Ovídio e por poetas posteriores. O escoliasta Porfírio anota que “meônio carme” signiica “sob os auspícios de Homero” (Homericis auspiciis) ou “com homérica elevação” (Homerica sublimitate) (Porph. Carm. 1.6.2). A primeira deinição deixa transparecer o ponto de vista sobre a inuentio (“a fonte literária”), quando evoca a autoridade homérica, ou seja, o fato de um “meônio carme” seguir Homero como paradigma nas personagens, imagens e iguras; na segunda deinição, está em jogo a elocução, ou seja, se requer de um “meônio carme” uma gravidade e grandiloquência como aquela alcançada por Homero. Quando chamo atenção aqui para o tipo meônio exercitado por Virgílio e seus sucessores, em oposição aos exercícios de epopeia histórica insisto sobre a inuentio, já que, no tocante à elocução, qualquer poeta épico buscará o sublime homérico, sem o qual não há gênero épico. 20 “A Eneida é um epos radicalmente novo. Contra as expectativas dos contemporâneos, Virgílio escolhe um tema heroico e se distancia da atualidade. Ao mesmo tempo, a narração é totalmente entremeada da expectativa de um futuro augústeo” (BARCHIESI, 2004, p. 136). 37 e os muros em lavínia praia erguidos. Cedei, romanos escritores, cedei Gregos! um não sei quê maior que a Ilíada desponta. Fica evidente, nas imagens da obra evocadas por Propércio, a mistura entre imaginário mítico e história. Tomando apenas os nomes próprios na sequência usada pelo poeta elegíaco nos três primeiros dísticos, os traços do novo carme meônio se avultam: Ácio (o promontório), Virgílio, Febo, César, Eneias, Lavínia. Tanto esse novo estilo de poema estava em germe, que Propércio o denomina carminis heroi (“poema heroico”), talvez recobrando o helenismo de Cícero para se referir aos antigos poetas gregos (de Or. 2. 194). Diante dessas evidências que procurei apresentar, Horácio está projetando a ascensão de uma nova forma épica que icará conhecida pela tradição latina pelo adjetivo meônio21 e que não sabemos se Vário teria sido mesmo capaz de exercitar. A Farsália e a definição da epopeia histórica Uma vez consolidado o carmen meonium de Virgílio que ganha em breve tempo notoriedade de modelo – se levarmos em conta as Metamorfoses de Ovídio –, é Lucano quase oitenta anos depois da publicação da Eneida que levará a cabo um projeto de epopeia exclusivamente histórica, radicalizando o uso das res gestae em detrimento da fabula mítica22. O próprio Lucano parece se apressar em delimitar o subgênero épico por ele praticado. A justiicativa dada pelo narrador da Farsália para invocar Nero, em detrimento de Apolo ou Baco, reside no gênero Romana carmina, “poemas de inspiração Romana” (1.66). Para esse tipo de poema, o próprio imperador como igura histórica e romana é tomado como uma fonte de uires, ou seja, retoricamente falando, “arroubo”, “força expressiva”. Cito o verso completo: tu satis ad uires Romana in carmina dandas (1.66), “p’ra dar arroubo a carmes romanos tu basta”. Tal enquadramento genérico é reconhecido e destacado por Estácio: nocturnas alii Phrygum ruinas et tardi reducis vias Vlixis et puppem temerariam Minervae trita vatibus orbita sequantur: tu carus Latio memorque gentis carmen fortior exeres togatum, (Stat., Silv. 2.7.48-53). outros dos Frígios a noturna queda, e o retorno de Ulisses demorado, 21 Ov. Pont. 3.3.31, Mart. Ep. 11.90.3, Sil. 4,525, Pers. 6.11 (atribuído satiricamente a Ênio), Laus Pis.230-2 (atribuído diretamente a Virgílio). 22 Não há como saber se esse radicalismo foi inventado por Lucano. Pelo seu estatuto fragmentário, como apresentamos no decorrer desse capítulo, não sabemos se a epopeia histórica como exempliicada pela Pharsalia, já havia ocorrido. Se Álvares de Azevedo se equivocava ao pensar que Lucano era o único praticante de epopeia histórica, talvez ele estivesse certo ao tratar como genuíno o radicalismo histórico do poeta neroniano. 38 e a temerária quilha de Minerva, busquem, rodeios óbvios aos poetas: tu, caro ao Lácio, lembrado dos teus, mais alto, comporás, togado carme. Nessa passagem que igura em um poema dedicado à celebração do nascimento de Lucano, Estácio parece chamar atenção para a oposição entre os poemas de assunto grego Ilíada, Odisseia e Argonáuticas, em oposição ao carmen togatum, “poema togado”, que, segundo esse autor antigo, faria de Lucano fortior “mais heroico ou mais robusto”. Fica, assim, claro que a recepção posterior da Farsália destacará justamente o subgênero que ela para si deine pelo seu caráter “romano” (togatum) e pelo vigor poético resultante desse tema (fortior). Ademais, Estácio se esforça por enquadrar a epopeia de Lucano dentro de uma nomenclatura que a crítica literária de seu tempo reconhecia: o adjetivo togatus, já aplicado a peças de teatro de assunto romano por Cícero (Sest. 118) e Horácio (Ars 288), é empregado pela primeira vez a uma epopeia. No entanto, a construção de um poema inspirado pela História de Roma fora interpretada por outros críticos como mero exercício historiográico. Já Petrônio, pela boca de seu personagem Eumolpo, dizia que non enim res gestae uersibus comprehendendae sunt, quod longe melius historici faciunt (118) ‒ “não se deve dispor feitos em versos, o que, de longe, melhor fazem os historiadores” ‒ e, ao opor as res gestae a poemas de inspiração helênica, exalta Virgílio e Horácio como modelos desse tipo de poemas. Ora, Virgílio, nas suas Geórgicas, sentira a necessidade de deinir o seu poema com um adjetivo pátrio e, aludindo a Hesíodo, o rotulara de Ascraeum...carmen, “poema Ascreu” (G. 2.176)23. Horácio, como já tratei acima, cunhara o Maeonium carmen, “poema Meônio” (Carm., 1.6), referindo-se a Meônia como uma possível pátria de Homero. Assim, a deinição do poema pelo adjetivo pátrio de seu êmulo foi um procedimento adotado por eles e recuperado por Lucano. Conclusão A antologia de fragmentos de epopeia histórica que apresentei aqui até o surgimento da Eneida serve para mostrar o avanço que esse tipo de subgênero obteve em Roma, mas também o quanto de inovação foi proposta pela obra de Virgílio. A resposta imediata de poetas épicos, tais como Albinovano Pedo, Cornélio Severo – os quais, por limitações de espaço, não me foi possível tratar aqui24 – e Lucano, é um marcante testemunho do debate gerado por Virgílio e da airmação da tradição de epopeia histórica anterior. Se o carme meônio virgiliano 23 Pontualmente note-se a reelaboração que o ad uires Romana in carmina dandas de Lucano parece estar fazendo do verso em que Virgílio declara as Geórgicas hesiódicas: Ascraeumque cano Romana per oppida carmen (2.176), “e canto o carme Ascreu pelas Romanas urbes”. 24 Para o tratamento desses autores, remeto ao leitor interessado às páginas 25-34 da Introdução de minha tradução da Farsália (LUCANO, 2011). Uma completa abordagem da obra lucaniana e de suas relações com Virgílio podem também ser ali auferida. 39 parece ter triunfado em uma obra como as Punica de Sílio Itálico (im do séc. I d. C.) e também em epopeias do Renascimento como n’Os Lusíadas de Camões, é inegável a importância do “carme romano” (de Névio a Lucano) na decisiva presença da história (res gestae) nos desenvolvimentos épicos posteriores. Sendo assim, se Lucano não foi totalmente original como queria Álvares de Azevedo, a imitação direta da tradição romana a que ele se dedicou permanecia ainda hoje esquecida em encobertos fragmentos jamais revelados, algo que neste capítulo tentei remediar. Referências25 AHERN, C. F. Horace’s rewriting of Homer in Carmen 1.6. Classical Philology, n. 86, p. 301-314. ALBRECHT, M. V. Roman epic: an interpretative introduction. Leiden; Boston; Köln: Brill, 1999. ARISTÓTELES. Poética. Tradução, notas e índices de Eudoro de Souza. In: ______. 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Orationes, 6 v.; Rhetorica, 2 v.; Epistulae, 3 v. 25 Eventuais menções a passagens de autores latinos, cuja fonte não explicitei, foram consultadas em PHI 5.3. LATIN TEXTS AND BIBLE VERSIONS. The Packard Humanities Institute, 1991.(CD-ROM) 40 CICÉRON. Aratea, Fragments poétiques. Texte établi et traduit par J. Soubiran. Paris: Les Belles Lettres, 1972. CONTE, G. B. Latin literature. A history. Trans. by J. B. Solodow, revised by D. Fowler & G. W. Most. Baltmore/London: The Johns Hopkins University Press, 1994. COURTNEY, E. The fragmentary Latin poets. New York: Oxford University Press, 2003. DOMINIK, W. J. From Greece to Rome: Ennius’ Annales. In: BOYLE, A. J. (Ed.). Roman epic. London: Routledge, 1993. p. 37-58. ENNIO. Fragmentos. Introd., trad. y notas J. Martos. Madrid: Gredos, 2006. FRAENKEL, E. Horace. Oxford: Oxford University Press, 1957. GOLDBERG, S. M. Early Republican epic. In: FOLEY, J. M. A Companion to Ancient Epic. Malden: Blackwell, 2005. p. 429-439. GRATWICK, A. S. 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Os fragmentos que atualmente constituem o livro 34 de Políbio, em verdade coleções de testimonia extraídos majoritariamente da Geograia de Estrabão, estão dispostos em quatro seções temáticas (WALBANK, 1979, p. 565-568)1 das quais a segunda, dedicada à corograia da Europa, apresenta a visão do historiador a respeito das navegações de Odisseu2. O texto de Estrabão revela um Políbio que, sem disfarçar sua admiração pelo poeta e especialmente pelo herói, que tem na conta de personagem histórica, se apropria de passos cuidadosamente selecionados para demonstrar que Odisseu passou por muitos pontos do sul da Itália e da Sicília3. Este texto discute eventuais motivos de Políbio para reportar-se à epopeia e forjar uma interpretação equidistante do ceticismo de Eratóstenes e da alegorização de Crates, bem como atribui à interpretação de Políbio uma conotação política. s 2. Além de Eratóstenes, Aristarco e Crates − eruditos do calibre de Calístenes −, Zenão de Cício, Demétrio de Cépsis e Apolodoro já haviam estudado a geograia homérica e dado respostas diversas a duas questões: as viagens, os países e as personagens da Ilíada e da Odisseia seriam iccionais 1 As seções são: a) introdução (teoria das zonas terrestres e habitabilidade da região equatorial), b) corograia da Europa (visão geral, Ibéria, geograia homérica e Gália), c) Ásia e d) navegação pela costa africana. 2 Seguindo P. Pédech (1956, p. 18), acatado por Walbank (1979, p. 567), os passos polibianos que tratam de Homero, 34, 2-4 e 34, 11, 12-20, além de Estrabão, 1, 2, 18, serão analisados em sua unidade temática. 3 Sobre a leitura de Políbio por Estrabão cf. Kim (2010, p. 47s). 44 ou históricos? Caso se concluísse pela segunda alternativa, seria possível identiicar no mundo conhecido os locais descritos por Homero? (cf. PÉDECH, 1956, p. 18; 1964, p. 583). Contra Eratóstenes, Políbio considera que a poesia homérica contém um fundo de verdade histórica, mesma premissa partilhada por Crates, embora não seja possível airmar que o historiador tivera de fato contato com sua obra, seja pelo estado fragmentário das Histórias, seja pela ausência de menção nominal. Diferentemente, porém, Políbio não pressupõe uma verdade alegorizada, de signiicado distinto do enunciado, mas apenas que fosse possível encontrar a verdade histórica retirando-lhe a roupagem mítica, e não considera os argumentos a favor do eksokeanismós, teoria segundo a qual a errância de Odisseu se passara no oceano Atlântico. A reconstrução dos argumentos polibianos se inicia com o assentimento de Estrabão (1, 2, 9 = Plb., 34, 2, 1) a um juízo do historiador: “não é próprio de Homero relatar prodígios vãos, sem nada de verdadeiro. Seria possível mentir de modo mais persuasivo, como é natural, se se acrescentasse algo verdadeiro, precisamente o que airma Políbio, quando trata da viagem de Odisseu”. Partindo dessa premissa o historiador teria se baseado em três inferências para defender a veracidade da narrativa homérica. A primeira deriva da analogia entre o retrato de Éolo (Od., 10.127) e a atribuição de honras a homens sábios. Sempre segundo Estrabão (1, 2, 15=Plb., 34, 2, 4-11), também Políbio entende corretamente a viagem de Odisseu. Airma que Éolo, que indicava rotas de navegação pelo estreito, difíceis de cruzar porque expostas ao luxo e reluxo da maré, foi designado ‘guardião dos ventos’ e considerado rei; e que foram tomados por adivinhos e reis sacriiciais Dânao e Atreu, o primeiro por ter indicado os poços de Argos, e o segundo, que o movimento do sol é oposto ao do irmamento. O mesmo valeria em relação aos sacerdotes egípcios, aos magos e caldeus, que se distinguiram dos seus por algum tipo de sabedoria, pelo que gozaram de autoridade e fama entre nossos antepassados. Assim também se daria com os deuses, cada um honrado por haver descoberto algo útil. Após tais preliminares, Políbio se recusa a ver mito em Éolo, tampouco na viagem de Odisseu. Reconhece uns poucos acréscimos míticos (prosmemythêusthai), como também à guerra de Tróia, mas pensa que todo o restante tenha transcorrido nas proximidades da Sicília, segundo elaboraram (pepoiêsthai) o poeta e os escritores de corograias da Itália e da Sicília. E não aprova a airmação de Eratóstenes, para quem ‘seria possível descobrir por onde Odisseu viajara quando fosse encontrado o cordão que amarrava o odre dos ventos’. Para P. Pédech (1965, p. 53), esse argumento combinaria a doutrina de Evêmero, para quem os deuses seriam antigos reis deiicados, e do aluno de Zenão, o estoico Perseu de Cício, para quem a deiicação seria a recompensa de grandes inventores e artistas. Para F. Walbank (1979, p. 579), porém, isso seria 45 atribuir demasiada coerência ao argumento de Políbio, tão somente desejoso de explicar quem fora Éolo. Qualquer que fosse o pressuposto religioso de Políbio, se é que tivesse algum, o que sobressai desse argumento são a premissa da possibilidade de distinção da verdade histórica em meio ao acréscimo mítico e a circunscrição geográica do episódio, considerado verdadeiro ao sul da Itália. No texto de Estrabão (1, 2, 15-7=Plb., 34, 2, 12-3, 12 e Estr., 6, 2, 10=Plb., 34, 11, 12-20), a segunda inferência deriva de observações pessoais de Políbio. Primeiro, Políbio teria airmado que a descrição feita por Circe do modo como Cila pescava (Od.12, 95-7) “delins, cães marinhos e às vezes grandes cetáceos” retrataria a técnica dos pescadores de peixe espada no estreito de Messina, especiicamente no promontório dito Cileu. Caríbdis, por sua vez, seria apenas uma referência à diiculdade de se navegar por suas águas revoltas. Segundo, que a terra dos lotófagos seria a ilha de Meninge (Djerba, Tunísia), identiicação já operada por Eratóstenes4, pois ali avistara pessoas que se alimentavam da planta. Por im, que teria travado contato com alguns habitantes das ilhas Lipari, os quais, pela observação do local de surgimento de erupções, chamas e vapores de vulcões, conseguiam prever a direção dos ventos com três dias de antecedência. “Por isso, aquela que parecia a airmação mais mítica do poeta não foi feita em vão, mas como se revestisse a verdade com enigmas (ainiksaménou tén alétheian), ao chamar Éolo de ‘guardião dos ventos’”. Também pautado pelo pressuposto da possibilidade de extração do disfarce mítico de uma original verdade homérica, esse argumento não amplia o horizonte geográico descrito, que continua a circunscrever a viagem de Odisseu à área visitada pelo historiador. A última inferência é probabilística (Estr., 1, 2, 17=Plb., 34, 4, 5-8, pithanóterón te) e voltada genericamente contra os defensores do eksokeanismós. Se Homero airmara que, após dobrar o cabo Malea (extremo sul do Peloponeso), Odisseu “foi carregado por ventos funestos durante nove dias” (Od.9, 82), o herói jamais poderia ter chegado ao oceano, segundo Políbio. Primeiro, porque tais ventos não são contínuos nem retilíneos, como os favoráveis. Segundo, porque, pelos cálculos geométricos imprecisos de Políbio, o cabo distaria 22.500 estádios (4.050Km; distância real aprox. 2.500Km) das Colunas de Heraclés, e Odisseu teria de ter percorrido, sem parar e em linha reta, 2.500 estádios (aprox. 460Km) por dia, o que seria um evidente absurdo, dado que um navio antigo percorria no máximo 165Km em 24h5. Não bastasse isso, a quem questionasse como Odisseu passara três vezes pela Sicília sem nunca haver cruzado o estreito, o que ele só teria feito depois de instruído por Circe, Políbio teria respondido que “todos os navegantes depois dele haviam evitado aquela rota”. Estrabão aponta exagero e inconsistência nos cálculos de Políbio. Não por acaso não arrolado entre seus fragmentos, o parágrafo seguinte de Estrabão (1, 2, 18) acusa a hyperbolén ... tês anomologías do historiador. Fiado 4 Polybe, Histoires – Livre XII. Texte établi, traduit et commenté par P. Pédech (Paris 1961) 60. 5 Para todos os cálculos cf. o comentário de Walbank (1979, p. 586-587). 46 nos topônimos do sul da Itália e da Sicília, o geógrafo aceita que a viagem de Odisseu teria transcorrido no Mediterrâneo, mas contesta a distorção e a omissão deliberada de versos em que é mencionado o oceano homérico, imediatamente identiicado com o Atlântico. Estrabão atribui a Políbio uma frágil teoria justiicativa, cujo núcleo é uma singular deinição de licença poética: se algo soar estranho, deve-se acusar alterações, ignorância, ou licença poética, constituída por história, elaboração retórica e mito. A inalidade da história é a verdade, como no catálogo das naus, em que o poeta descreve cada localidade, denominando uma cidade de ‘rochosa’ e outras de ‘limítrofe’, ‘cheia de pombos’ e ‘próxima ao mar’. A inalidade da elaboração retórica é a vivacidade, como nas cenas de batalha, e a do mito, o prazer e a surpresa. Não é nem plausível nem próprio de Homero o inventar tudo, pois todos consideram ilosóica sua poesia, diferentemente do que airma Eratóstenes, que exorta a não julgar a seriedade dos poemas, nem procurar neles história6. Conjugada com os “fatos”, essa teoria concluiria um frágil argumento circular. A aceitação sem reservas da presença de verdade histórica em Homero como espelho de análoga aceitação generalizada (pántas nomízein) seria ofensiva fugaz e equivocada à opinião de um erudito morto havia duas gerações. Além disso, a alegação de razões supostamente factuais (metabolás, ágnoian), sem referente especíico, e a justaposição de história e mito, seriam tentativas de enquadrar os poemas, à força de distinções arbitrárias, na condição de fontes à disposição de um historiador. Por outras palavras, as divergências de opinião forçosamente frequentes só existiriam porque muitos não haveriam conseguido compreender o “real” télos da poesia. Nos termos em que está apresentada, essa teoria é evidentemente falaciosa: assume-se a presença de uma verdade identiicável para que possa haver desacordo; este deriva das condições mesmas de existência dos poemas (tempo, autoria e “método” de composição); como Homero não se limita a inventar, dado que “todos” o consideram verdadeiro (non sequitur), exceto Eratóstenes, logo este está errado e os poemas são verdadeiros (petitio principii). Elaborar uma teoria sobre as viagens de Odisseu poderia ser resultado de um posicionamento de Políbio diante das diorthóseis ao texto homérico elaboradas por Zenódoto, Aristófanes de Bizâncio, Aristarco e o próprio Crates. Sobre o primeiro R. Pfeiffer (1968, p. 110) conjectura que tenha selecionado 6 Estr., 1, 2, 17=Plb., 34, 4, 1-4. A oração, de Políbio ou de Estrabão, “Ei dé tina mé symphonêi, metabolás aitiâsthai dêin é ágnoian é kái poietikén eksousían”, é de difícil interpretação: Casaubon (Strabonis) e Schweighaeuser entendem que metabolás resuma a oração subordinada (“devese procurar a causa das alterações”); Schuckburgh omite-a; Bouchot, Paton, Walbank e Saltarelli & Mari (Musti (2006)) entendem-na como terceiro membro da oração alternativa (“mudanças ou ignorância ou licença”); Reiske, seguido por Schweighaeuser e aceito por Walbank, explica possíveis acepções de metabolás (“mudança de situações, locais e costumes dos homens depois de tanto tempo”) e de ágnoian (“ignorância do poeta, dos leitores, e dos que devem ser censurados por divulgar mentiras”). Sobre o paralelo – inexato – entre os elementos da licença poética polibiana e os da narrativa preceituados por retores latinos e gregos, cf. Walbank (1979, p. 584-5) e Musti (2006, p. 233). 47 um manuscrito e dele se servido como referência; o segundo teria procurado, ao contrário de seu mestre, alterar o texto o menos possível, limitando-se a marcar suas opiniões com sinalização marginal (PFEIFFER, 1968, p. 174); Aristarco, por sua vez, redigiu volumosos comentários, mas não alterou o texto homérico com novas edições, acatando conservadoramente a “vulgata” de Aristófanes (PFEIFFER, 1968, p. 215). Crates, seguindo orientação distinta, acatava, por exemplo, a legitimidade da descrição iliádica do escudo de Aquiles atetizada por Zenódoto, atribuindo-lhe ainda a interpretação alegórica de que Homero teria desejado tratar das dez partes do céu com as dez divisões do escudo (PFEIFFER, 1968, p. 240)7. O fato de Políbio não ter sido um homeric scholar e a fragilidade da teoria remanescente não implicam que não possuísse ideias claras sobre qual seria o “seu” Homero. Qualquer julgamento, entretanto, depende da aceitação de que a argumentação de Políbio tenha sido integral e ielmente reportada por Estrabão; e de que ela estaria de fato nas Histórias e no livro 34, todos pontos questionáveis (cf. KIM, 2010, p. 71s). Mais problemáticos que a lógica desses passos são os eventuais motivos do historiador para discutir a geograia homérica. Três interpretações tentaram resgatar a primeira e identiicar os segundos. Uma vinculou o historiador ao estoicismo; a outra concentrou-se em sua presumida educação elementar; a terceira limitou-se a atribuir-lhe um certo romantismo (WALBANK, 2002, p. 155-182). O único elemento comum a todas é a aceitação do viés utilitarista de Políbio, pelo qual pressupõem que todos os seus paradigmas forneceriam uma lição ética ou política aplicável. 3. Como apêndice a um estudo sobre a ilosoia de Cícero, em 1882, R. Hirzel (1882, p. 875-877) condicionou as menções a Odisseu feitas por Políbio a um suposto ponto de vista estoico do historiador, fruto da inluência de Panécio. Tal perspectiva, entretanto, não faz do historiador um estoico. Embora Políbio de fato tenha almejado uma obra eticamente útil, especialmente na segunda parte de suas Histórias8, P. Pédech demonstrou, em 1964, a inconsistência entre as presumidas intenções do historiador e qualquer pressuposto ilosóico9. Além disso, em 1989, T. Dorandi (1989, p. 91-92)10 argumentou de modo convincente, com base em documentos epigráicos, que se Panécio tomou contato em Roma com Cipião Emiliano e, provavelmente, também com Políbio, isso ocorreu depois de 146 a.C., ou seja, quando o historiador teria já no mínimo 54 anos e redigido pelo menos 15 de seus 40 livros, e Panécio, no máximo 40, o que tornaria mais plausível uma inluência inversa. O pressuposto de Hirzel de 7 Referências sobre demais emendas de Crates ao texto homérico em Walbank (1979, p. 584). 8 Escritos depois de 146 a.C. pelo idoso Políbio. Discussão em Pédech (1961, p. ix-xiv); F. W. Walbank, Polybius (Berkeley 1972) 25. Cf. especialmente Plb., 3, 4, 7-11. 9 Pédech (1964, p. 249-251) e especialmente p. 253: “il ne se rattache à aucune obédience philosophique déterminé, et son écletisme l’apparente à Panétius, dont le stoïcisme était fortement platonisant et aristotélisant”. O núcleo da argumentação de Pédech já se encontra em K. Ziegler, “Polybios”, RE 21.2 (1952) 1466 e 1471. 10 J. E. G. Zetzel, “Cicero and the Scipionic circle”, HSCP 76 (1972) 173-9 já demonstrara que o “Círculo dos Cipiões” é criação do século XIX. 48 que Políbio necessariamente deveria estar vinculado a alguma seita ilosóica, e que seguramente esta seria a estoica11, é alvo até hoje de críticas12, porque dependente de duas frágeis suposições: semelhanças vocabulares e inluência de Panécio. Tem o mérito, entretanto, de ter sido o primeiro a tentar sistematizar as citações da Odisseia feitas pelo historiador. Dirigindo sua crítica especialmente contra R. von Scala (1890, pp. 71 e 325), cuja obra, apesar de inacabada, almejava aprofundar as conclusões de Hirzel estendendo-as para todas as leituras de Políbio, K. Ziegler13 considera que o conhecimento de Homero por ele demonstrado não seria tardio e devido a Panécio, mas fruto da própria educação do historiador, que teria transcorrido de modo análogo ao da de seu mestre Filopêmen, que fora por sua vez aluno dos ilósofos neoacadêmicos Ecdelo e Demófanes. A analogia de Ziegler depende da aceitação da tese de H. Nissen, de 1863 e bastante verossímil, de que a biograia de Filopêmen escrita por Plutarco derivaria da escrita por Políbio em sua juventude. Assim, segundo Ziegler, Políbio teria aprendido desde garoto a buscar em Homero exemplos morais e parainéseis táticas na igura de Odisseu, seguindo talvez um ponto de vista pergameno. Apesar de o conhecimento polibiano da ilosoia pergamena sobre Homero, como a de Crates de Malos, ainda reste por provar14, o fato de Ziegler atribuir a Políbio um conhecimento de Homero fruto da relexão de toda sua vida descortina a perspectiva de que a lógica de suas citações talvez não se pautasse apenas por exigências utilitárias ou meramente ilustrativas. A partir dos anos 1960 destacam-se as interpretações de P. Pédech e F. Walbank, para quem tais menções a Odisseu seriam fruto da quantidade e da extensão das viagens do historiador depois de 151 a.C., durante o inal e após seu cativeiro em Roma. Ambos se concentraram nas menções a Odisseu feitas nos livros tardios XII e XXXIV, e apesar de partirem de premissas distintas, chegam a conclusões semelhantes15. Muito de seus juízos se deve à famosa inscrição dos megalopolitanos, mencionada por Pausânias (8.30.8), recordando 11 Especialmente, p. 851: “Die Vermuthung, dass Polybius Stoiker war, wird bestätigt, sobald wir einmal die Frage aufwerfen, welcher Philosophie er denn angehören könnte, wenn er nicht Stoiker war”. 12 Discussão em R. Brouwer, “Polybius and stoic Tyche”, GRBS 51 (2011) 112-3. 13 Ziegler (1952, p. 1466) e H. Nissen, Kritische Untersuchungen über die Quellen der ierten und fünften Dekade des Livius (Berlin 1863) 281. Mais cauteloso, P. Pédech escreve apenas (1964, p. 250) que Políbio “a connu dès sa jeunesse la tradition de la Nouvelle Academie”. J. E. Lendon, Soldiers and ghosts. A history of battle in Classical Antiquity (New Haven & London 2005) 146-7 restringe a questão ao interesse helenístico por Homero. 14 Discussão em Pédech (1964, p. 583-5) e Walbank (1979, p. 584 e 586). 15 Pédech (1964, p. 571): “l’étalage d’une ierté qui le pousse à se comparer implicitement à Ulysse”. Walbank, (1972, p. 51 and 117): Políbio “took an especial pride in his practical experience of politics and warfare and in having travelled widely on land and ocean”, que lhe insulou “the vanity of imagining himself to be a second Odysseus”. A interpretação de F. Walbank remonta ao artigo em WALBANK, 2002, p. 155-182. O núcleo dessa interpretação – a identiicação entre o historiador e Odisseu – permanece aceito pela historiograia. Na introdução a POLIBIO. Storie – Libri I-II. Nota biograica di D. Musti, traduzione di M. Mari, note di J. Thornton (Milano 2001) 15, D. Musti endossa a perspectiva, airmando brevemente que Políbio “sembra sentirsi un novello Odisseo”. Cf. também J. Marincola, “Odysseus and the historians”, SyllClass 18 (2007) 20; C. B. Champion, Cultural politics in Polybius’s Histories (Berkeley, Los Angeles, London 2004) 22 e 238; A. M. Eckstein, Moral vision in the Histories of Polybius (Berkeley, Los Angeles, London 1995) 281; M. Vercruysse, “Polybe et les épopées homeriques”, AncSoc 21 (1990) 306. 49 que Políbio “vagara por terra e mar”, e à anedota transmitida por Plutarco (Cato mai., 9.3=Plb., xxxv, 6, 4.): poucos dias depois da votação favorável ao retorno dos aqueus ainda reféns, Políbio desejara recorrer ao senado romano pedindo também a restauração das honrarias dos libertados. Com um sorriso maligno, Catão Censor teria respondido que ele agia como Odisseu, desejoso de retornar à caverna do ciclope para buscar o chapéu e o cinto lá esquecidos. Embora reveladoras da psicologia do historiador, tais interpretações parecem apenas tangenciar a lógica dos passos analisados. Restringindo a discussão ao propósito utilitário que Políbio atribuiu à própria obra, elas estabelecem corretamente que o vínculo entre seu texto e o dos poemas homéricos evidencia a construção de argumentos de autoridade para embasar exigências de observação pessoal e experiência prática para todo aquele que pretender escrever história. No caso em questão, porém, a legitimação dos dados auferidos por observação pessoal talvez fosse apenas o alvo secundário de Políbio. O estoico Estrabão necessitava de argumentos que conirmassem Homero como paradigma de sábio ideal16, e reportou de Políbio as seções que convinham ao seu arrazoado, inserindo assim o historiador numa tradição maior das leituras helenísticas que, entretanto, talvez pouco lhe importasse. As interpretações arroladas dão continuidade à perspectiva de Estrabão, insistindo em cotejar o historiador com os eruditos do período, mas há indícios internos e externos ao texto de Políbio de que ele teria mirado alvos bem mais imediatos e sem qualquer pretensão erudita. Mais que ostentar erudição, para Políbio discutir Homero era um meio de forjar uma imagem heroica de Cipião Emiliano vivo, ou de prestar-lhe honras fúnebres17. 4. No livro 12, cuja maior parte fora escrita depois de 146 a.C., assim como o 34, Políbio airma: “visitei com frequência a cidade dos locrenses, a quem prestei importantes serviços. Graças a mim foram dispensados das expedições à Ibéria e contra os dálmatas, nas quais deveriam prestar auxílio marítimo aos romanos, conforme pactuado” (12, 5, 1-2). Embora o livro seja tardio, a menção às duas expedições parece indicar que o historiador agia no sul da Itália em anos anteriores a 156 a.C.18, se se admite por expedição à Ibéria a longa guerra de vinte anos iniciada sob a pretura de Mânio Manílio (155 a.C.) e concluída com a destruição de Numância em 133 a.C. por Cipião Emiliano, e por expedição contra os dálmatas o rápido conlito (156/5 a.C.) decidido por Cipião Nasica. Desde 205 a.C. a cidade de Locros, formalmente aliada a Roma, tinha vínculos estreitos com a família Cornélia. A im de investigar denúncias de pilhagem em Locros, cometidas pelo propretor Quinto Plemínio, Cipião 16 L. Kim, “The portrait of Homer in Strabo’s Geography”, CP 102 (2007) 363-88; idem (2010, p. 47-84). 17 Cipião morreu em 129 a.C. Sabe-se apenas que Políbio redigiu e provavelmente publicou seus dez últimos livros depois de 146 a.C. Cf. F. W. Walbank, A historical commentary on Polybius II (Oxford 1967) 317 e D. W. Baronowksy, Polybius and Roman imperialism (London 2011) 4. 18 Discussão em G. De Sanctis, Storia dei Romani III.1 (Milano, Torino, Roma 1916) 209-10; Pédech (1961, p. 71); Pédech (1964, p. 523-9) e Walbank (1967, p. 332). 50 futuro Africano sai de Messina e navega rumo à cidade brútia19. Tito Lívio poderia ter simplesmente mencionado o fato, mas o descreve acrescentando um detalhe: “deixando a proteção de Messina a seu irmão Lúcio Cipião, navegou quando diminuiu a agitação no estreito, e o mar se fez propício” (Liv. 29, 7, 1). Quando se queixam no senado contra os excessos de Plemínio, os embaixadores locrenses airmam que prefeririam fazê-lo “diante de P. Cipião, a quem Locros se entregara, e que testemunhara seus bons serviços” (Liv. 29, 17, 4). Prosseguem, entretanto, com a queixa e retratam o propretor como “peste e fera selvagem, semelhante às que outrora ocupavam o estreito e arruinavam os nevegantes, conforme contam as fábulas” (Liv. 29, 17, 12). Enfurecido, Fábio Máximo cobre Cipião com acusações de corrupção da disciplina militar, e Tito Lívio reconstrói detalhes de sua fala: “[Cipião] vaga pelo ginásio com manto e calçado gregos; passa o tempo entre livros e na palestra, induzindo a tropa a fruir, inativa e indolente, de toda sorte de amenidades siracusanas” (Liv. 29, 19, 11-3). Embora não a única, a principal fonte de Tito Lívio para os livros 21-45 foi Políbio, e não é por acaso que precisamente na Sicília o avô por adoção de Cipião Emiliano é retratado comportando-se como um grego, depois de enfrentar algumas vezes o estreito, e que os embaixadores locrenses comparem a violência de Plemínio a Cila e Caríbdis. Além disso, se correta, a cronologia proposta sugere que a cidade de Locros reconhecia em Políbio, amigo, cliens20 ou procurator de Cipião Emiliano, alguém com credenciais suicientes para entender suas demandas e interceder por elas junto às autoridades romanas. Por sua origem grega e suas relações políticas, Políbio é o homem ideal para a tarefa: além do forte e conhecido vínculo com Cipião Emiliano (Plb. 31, 22-30), o historiador seguramente estava nos melhores termos com Cipião Nasica, tio por adoção de Emiliano, bem como com M’. Manílio, sob cujo consulado em 149 a.C. Políbio será chamado à África, possivelmente por inluência do próprio Emiliano, então tribuno militar que em três anos se converterá em princeps ciuitatis respeitado pelo aniquilamento de Cartago (AESTIN, 1967, p. 67). Em seguida a essas viagens a Locros, dentre as muitas que possivelmente Políbio tenha feito ao longo do intervalo 151-146 a.C., frequentemente junto ou a serviço de Cipião Emiliano, duas merecem menção, à Ibéria e à Etrúria, regiões sobre as quais o historiador revela conhecimento detalhado e fruto de observações in situ. Não é coincidência essas duas regiões, além do sul da Itália, formarem a base da vasta clientela comercial da família Cornélia, cujos negotiatores e socii nauales foram decisivos para, por exemplo, equipar a esquadra que transportou Cipião futuro Africano para Cartago em 205 a.C.21 A Ibéria (Plb. 10, 16-20 e 34-4) descrita como bárbara e a Sicília grega são conhecidas como palcos de comportamentos ambíguos de Cipião, cujas 19 Ato ilegal, mas sem consequências: a província adjudicada a Cipião era a Sicília, com permissão para cruzar rumo à África. Coube o Brútio a um aliado, Públio Licínio Crasso (Liv. 28, 38, 12). 20 Sugestão de Walbank (1979, p. 499). 21 Discussão em F. Cassola, I gruppi politici romani nel III secolo a.C. (Trieste 1962) 381-8. 51 atitudes permitem entrever o abandono progressivo dos valores tradicionais22, revelando um comandante cada vez mais semelhante a um monarca helenístico. Além da Sicília, outra porta de entrada para o helenismo em Roma fora a Etrúria, por onde tradições orais nem sempre vinculadas à Odisseia havia muito adentraram a Itália23. Para P. Grimal (1975, p. 56-57), em meados do século III a.C. “Ulisses já era visto como herói itálico, mediador entre a Grécia ocidental e a Itália”, e com forte apelo à imaginação de um povo que acabava de vencer Cartago no mar, um feito inédito. Mais do que tradução de um mito havia muito conhecido na Itália, a Odisseia de Lívio Andrônico descortina uma Roma consciente diante do helenismo24. Muito provavelmente a família Cornélia tenha continuado a cultivar sua antiga clientela em seus principais redutos ao longo do século II a.C., e é certeza que seu representante mais ilustre nesse período teve desde a infância acesso privilegiado à cultura grega, fosse pela biblioteca de Pela trazida por seu pai legítimo, Lúcio Emílio Paulo, o triunfador da Macedônia em 168 a.C., fosse pela famosa amizade, desde os dezoito anos, com o próprio Políbio. Dois momentos de sua trajetória são muito reveladores. Diodoro (32, 24) e Apiano (Lyb., 629) airmam que, ao contemplar Cartago em chamas em 146 a.C., Cipião Emiliano derrama lágrimas, diz temer que um dia se anuncie o mesmo sobre Roma, e cita Il., 4, 164-5=6, 448-9: “chegará o dia em que a sagrada Tróia será destruída / e também Príamo e o povo do lanceiro Príamo”. É possível que Diodoro e Apiano tenham abreviado passos ora perdidos do livro 38 de Políbio. Treze anos depois, ainda em Numância, ao tomar ciência do assassinato de Tibério Graco, Plutarco (Ti.Grac. 21, 7) relata que teria proferido em alto e bom som o verso da Odisseia (1, 47) “que assim pereça todo aquele que izer o mesmo”, conforme Atena pede a Zeus referindo-se a Egisto. A despeito da ironia embutida na citação25 – seguindo os passos de seu avô por adoção, o próprio Emiliano parece haver preigurado as atitudes do cunhado, subordinando obstáculos constitucionais maiores aos próprios interesses e explorando o favor popular para minar a autoridade do senado –, sua atribuição a Cipião ou retrata seu conhecimento sedimentado de um poema em que traição e punição encadeiam a trama, ou evidencia que a fonte empregada por Plutarco almejava exatamente a produção desse efeito. E essa fonte parece ter sido a mesma empregada por Tito Lívio para escrever sobre Cipião Africano, se pudermos nos iar em Cícero, que atribui a Políbio uma monograia sobre a guerra contra Numância (Ad fam. 5, 12, 2), hoje perdida. 22 Para A. Momigliano, Alien wisdom. The limits of Hellenization (Cambridge 1971) 39, uma das bases do poder romano. 23 E. D. Phillips, “Odysseus in Italy”, JHS 73 (1953) 58; P. Grimal, Le siècle des Scipions. Rome et l’ hellénisme au temps des guerres puniques (Paris 1975) 30. 24 Grimal (1975, p. 52-6); E. Rawson, “Roman tradition and the Greek world”, p. 428, in: A. E. Astin, F. W. Walbank et alii (ed.), The Cambridge ancient history VIII (Cambridge 1989); E. S. Gruen, Culture and national identity in republican Rome (Ithaca, New York 1992) 30-1. 25 Astin (1967, p. 226); sobre os motivos de dissensão entre Cipião Emiliano e Tibério Graco, H. H. Scullard, “Scipio Aemilianus and Roman politics”, JRS 50 (1960) 73. 52 Em suma, o itinerário de Odisseu estabelecido por Políbio supostamente em seu livro 34, itinerário análogo à rota para Cartago e a habilidade de Cipião Emiliano para citar passos homéricos em que o herói está no foco de atenção sugerem a seleção calculada desses passos, majoritariamente provenientes da Odisseia, para ampliicação do prestígio político da família Cornélia, prestígio possivelmente derivado da imagem póstuma de Cipião Emiliano26. Políbio teria se servido do mito de Odisseu do mesmo modo com que, em seu entendimento, a nobilitas romana e, mais que todos, Cipião Africano, teriam explorado a religiosidade popular em proveito próprio (6, 56, 6 e 10, 2). Talvez não seja mera coincidência o fato de o mesmo trajeto marítimo atribuído pelo historiador ao herói ter sido percorrido ao menos duas vezes por dois triunfadores de Cartago pertencentes à mesma família. 5. Após a destruição de Corinto em 146 a.C., Políbio é encarregado pelos romanos da reorganização da Grécia arrasada (39, 5), ocupando posição de preeminente intermediário talvez até sua morte (ca. 118/7 a.C.). É possível que a manutenção de um tal poder por quase trinta anos se devesse não apenas ao respaldo dos Cornélios agradecidos, mas a outros benefícios materiais indiretos que suas Histórias pudessem haver proporcionado. Havia pelo menos três séculos que explorar e descrever um território era parte das estratégias para sua conquista (MUSTI, 2006, p. 224). Heródoto menciona as expedições do crotoniata Demócedes (III, 135-8) à Grécia e à Itália, acompanhado de quinze nobres persas, e de Silas de Carianda (IV, 44) à Índia, ambas por encomenda e a serviço de Dario. O. Murray (1972, p. 200213) descreve como, durante o período helenístico, autores como Nearco, a serviço de Alexandre, Hecateu de Abdera, de Ptolomeu Sóter, Megástenes e Beroso, de Seleuco, e Maneto, também dos Ptolomeus, empregaram modelos historiográicos de inspiração herodoteana a im de interpretar para os soberanos macedônios as culturas dos povos conquistados por Alexandre. Políbio talvez não conhecesse diretamente a obra de Heródoto, o que tampouco fora necessário diante do objeto que se propôs a estudar – explicar a formação do império romano sobre o mundo habitado ao longo dos anos 220-167 a.C. e descrever a conduta dos vencedores até 146 a.C. – proposta em que já se faz evidente a subordinação da geograia à inalidade política, algo que o historiador exprime claramente no livro 12, ao atribuir três exigências ao historiador pragmático: consulta de documentos, observação topográica e experiência político-militar, cabendo a esta o maior peso. Mais do que pesquisa desinteressada, fruto de amor pela ciência, como sugerem as conclusões de P. Pédech (1964, p. 575), Políbio teria mostrado aos romanos o que aprendera com o próprio Cipião Emiliano: como desfrutar da África, fonte de soldados, cavalos, feras de circo e gêneros alimentícios. Do mesmo modo, em suas viagens pela Europa – Gália, Ibéria, Lusitânia, talvez Ilhas Britânicas e, evidentemente, Grécia – teria recolhido evidências que 26 Para Baronowsky (2011, p. 134), Políbio escreve em defesa de Cipião Emiliano. 53 incitassem e justiicassem a continuidade da expansão (MUSTI, 2006, p. 224225). A Odisseia tornava a emoldurar o retrato do ocidente helênico recobrando uma possível função política original; e cada vez mais itálico, mais romano, mais Cornélio e mais pragmático, Odisseu continuava a vagar, deinitivamente de costas para Alexandria e Pérgamo. REFERÊNCIAS ASTIN, A. E. Scipio Aemilianus. Oxford: The Clarendon Press, 1967. DORANDI, T. Contributo epigraico alla cronologia di Panezio. ZPE, v. 79, p. 91-92, 1989. HIRZEL, R. Untersuchung zu Cicero’s philosophischen schriften. Leipzig, 1882. II.1. KIM, L. Homer between history and iction in imperial Greek literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. MUSTI, D. Nota biograica. In: POLIBIO. Storie – Libri XXXIV-XL. Nota biograica di D. Musti, traduzione di A. L. Santarelli e M. Mari, note di J. Thornton. Milano: B.U.R., 2006. PÉDECH, P. La géographie de Polybe: structure et contenu du livre XXXIV des Histoires. LEC, v. 24, 1956. PÉDECH, P. La méthode historique de Polybe. Paris, 1964. PÉDECH, P. Les idées religieuses de Polybe. Étude sur la religion de l’élite gréco-romaine au IIe siècle av. J.-C. RHR, v. 167, 1965. PFEIFFER, R. History of classical scholarship: from the beginnings to the end of the hellenistic age. Oxford: Oxford University Press, 1968. MURRAY, O. Herodotus and hellenistic culture. CQ, v. 22, 1972. SCALA, R. von. Die Studien des Polybios. Stuttgart, 1890, v. I. WALBANK, F. W. A historical commentary on Polybius. Oxford: Oxford University Press, 1979. t. III. WALBANK, F. W. Polybius, Rome and the Hellenistic world: essays and relexions. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. 54 55 BIOGRAFIA E HISTÓRIA NA LÍRICA HORACIANA1 Alexandre Hasegawa O poeta é um ingidor. Finge tão completamente que chega a ingir que é dor a dor que deveras sente. F. Pessoa, Autopsicograia, 1-4 isbet (2007, p. 7), em um dos textos mais recentes sobre a vida de Horácio e a cronologia de suas obras, airma que o Venusino fala mais sobre si mesmo do que qualquer outro poeta antigo, e nossa principal fonte para a vida dele são seus livros (Sátiras, Epodos, Odes, Epístolas e Carmen Saeculare). O comentador inglês poderia ter citado ainda, para corroborar a airmação, o conhecido passo da sat. 2, 1 (vv. 28-35), em que Horácio, nascido em 8 de dezembro de 65 a.C.2 , em Venúsia, entre a Apúlia e a Lucânia, diz querer seguir Lucílio, que coniou segredos aos seus livros de tal modo que toda vida dele está clara nos escritos, como pintada em quadro votivo: n [...] me pedibus delectat claudere uerba Lucili ritu, nostrum melioris utroque. ille uelut idis arcana sodalibus olim 30 credebat libris neque, si male cesserat, usquam decurrens alio neque, si bene; quo it ut omnis uotiua pateat ueluti descripta tabella uita senis. sequor hunc, Lucanus an Apulus anceps; nam Venusinus arat inem sub utrumque colonus 3 35 Eu folgo de incluir em pés os termos, como Lucílio fez, que mais valia do que qualquer de nós: os seus segredos, como a sócios iéis, coniava aos livros: no bem, no mal, não recorria a outrem: 1 Agradeço ao meu habitual leitor, João Angelo Oliva Neto, pela cuidadosa leitura e importantes sugestões. 2 Para o ano cf. carm. 3, 21, 1 (consule Manlio); para o mês, epist. 1, 20, 27; para o dia, Vita 71 (NISBET, 2007, p. 7, nota 2). 3 O texto latino que citamos é de Klingner (1959). 56 (daqui procede, que do velho a vida, qual votivo painel, se estampou neles). Quero segui-lo, incerto se da Apúlia, ou da Lucânia sou, pois que o colono venusino entre as duas terras lavra4. Embora diga que a vida5 esteja patente em seus escritos, a nós, muito distantes no tempo, às vezes não parece tão nítida e devemos julgar com cuidado o que nos diz tão claramente o ingidor. No desenrolar de seu ‘monumento’, mencionamse etapas de uma vida; porém é difícil discernir o que é ictício e o que é histórico. Como podemos, portanto, tomar os textos do poeta como fonte histórica? Ou ainda: aquilo que o poeta diz realmente aconteceu ou é fruto de sua invenção? Ou será, então, que reelaborou fatos em versos? Esses parecem ser os problemas metodológicos para quem lida com o texto horaciano na tentativa de reconstruir seja a vida do autor, seja um fato da história de Roma a partir de obras que não miram tal im. Tomemos, inicialmente, como exemplo de poema diicultoso, o carm. 2, 7, em que Horácio declara ter abandonado o escudo durante a batalha de Filipos (42 a.C.), quando Marco Antônio e Otaviano, o futuro Augusto, derrotaram os assassinos de César – Cássio e Bruto –, aos quais o poeta se iliara no tempo em que estudava em Atenas. A ode é dirigida a Pompeu Varo, personagem desconhecido de nós, com quem Horácio partilhou os perigos da guerra civil e os prazeres do simpósio. Agora, já do lado do imperador Augusto e arregimentado por Mecenas, celebra o retorno do amigo à Itália e o convida ao banquete: O saepe mecum tempus in ultimum deducte Bruto militiae duce, quis te redonauit Quiritem dis patriis Italoque caelo, Pompei, meorum prime sodalium? Cum quo morantem saepe diem mero fregi coronatus nitentis malobathro Syrio capillos? Tecum Philippos et celerem fugam sensi relicta non bene parmula, cum fracta uirtus et minaces, turpe solum tetigere mento: 5 10 4 Tradução de Antônio Luís Seabra. Notar que a translação tem número maior de versos que o original. Portanto, não a numeramos a im de evitar confusão. As traduções, quando não identiicadas, são nossas. 5 Referências autobiográicas em Horácio são abundantes, como veremos. A propósito desses elementos autobiográicos, comenta Harrison 2007, p. 22: “The irst person is prominent in all of Horace’s work: ego and its oblique cases occur some 460 times in the 7.795 lines of his extant poetry. Indeed, the diferent poetic genres which constitute his output all seem to have been chosen in part because of the primacy of the poet’s voice: Lucilian sermo with its strong ‘autobiographical’ element, Archilochean iambus with its ‘personal’ invective, Lesbian ‘monodic’ lyric with its prominent ‘I’, and epistolary sermo with its inevitably central letter-writer, further layered in the Ars Poetica with the didactic voice of the instructor”. Sobre a vida construída por Horácio em seus textos, ver Lowrie (1997, p. 187-223); sobre a vida construída pelos poetas gregos em seus versos, ver Lefkowitz (1981). 57 sed me per hostis Mercurius celer denso pauentem sustulit aere, te rursus in bellum resorbens unda fretis tulit aestuosis. Ergo obligatam redde Ioui dapem: longaque fessum militia latus depone sub lauru mea nec parce cadis tibi destinatis. 15 20 Obliuioso leuia Massico ciboria exple, funde capacibus unguenta de conchis. Quis udo deproperare apio coronas curatue myrto? Quem Venus arbitrum dicet bibendi? non ego sanius bacchabor Edonis: recepto dulce mihi furere est amico. 25 Ó tu comigo muita vez exposto, sob o mando de Bruto, ao lance extremo, quem te tornou Quirite aos pátrios deuses e ao céu da Itália, Varo, de meus sócios primeiro? Com quem muitas vezes gastei bebendo o tardo dia, coroado os cabelos luzidios com os aromas sírios. Contigo a ilipense guerra e a fuga veloz segui, deixando torpe o escudo, quando os minaces, rota a hoste, ó pejo!, co’rosto o chão tocaram. A mim salvou-me d’entre imigos, pávido, por densos ares o veloz Mercúrio, a ti sorveu-te a onda em nova guerra por estuosos mares. A Jove presta pois o prometido banquete, e o corpo em longa guerra lasso sob o meu louro estende, nem perdoes às talhas que te esperam. 5 10 15 20 Do Mássico, por quem já tudo esquece, as lisas taças enche; de amplas conchas cheiros entorna. Quem traz presto c’roas de úmido aipo ou mirto? Quem fará Vênus árbitro do vinho? Eu, não menos bacante que os edônios, com furor beberei; co’amigo salvo, enlouquecer é doce. 58 25 É consenso da crítica que Horácio aqui relata fato histórico, ou seja, que realmente fugiu da batalha em Filipos6 em célere fuga (v. 9: ... celerem fugam), independentemente de ter abandonado o escudo (v. 10: relicta ... parmula) ou não, e de ter sido salvo pelo célere Mercúrio, que arrebata o poeta entre os inimigos e o leva pelo ar (vv. 13-14: sed me per hostis Mercurius celer / denso pauentem sustulit aere). O poeta ainda menciona a luta ou alude à referida batalha em outros versos (cf. sat. 1, 6, 48, em que recorda que fora tribunus militum no exército de Bruto: quod mihi pareret legio Romana tribuno; epist. 2, 2, 46-48, em que lembra a época de estudo em Atenas, quando se alistou no exército de Bruto: dura sed emouere loco me tempora grato/ ciuilisque rudem belli tulit aestus in arma / Caesaris Augusti non responsura lacertis). Assim, muito provavelmente foi a partir das informações dos textos horacianos que não só o histórico Suetônio (De poetis, 40, 5-6: bello Philippensi excitus a M. Bruto imperatore tribunus militum meruit), mas também outros historiadores e ilólogos tentaram reconstruir a vida do poeta. Todavia, é bastante conhecido também que Horácio, ao relatar a fuga da batalha de Filipos e, sobretudo, o abandono do escudo, atualiza um topos presente já nos poetas gregos arcaicos, importantes modelos para seus versos líricos. Arquíloco (fr. 5 W), Alceu (fr. 428 ALP) e Anacreonte (fr. 381b PMG)7 também contam em versos o próprio abandono do escudo. Portanto, embora seja verossímil que o fato tenha ocorrido, é provável que o Horácio tenha ingido a dor de um abandono8 histórico, emulando os mélicos arcaicos. Identiicado, então, o lugar-comum, pode-se avançar na análise e tentar entender por que Horácio usa o topos nesse poema, como já izeram outros comentadores9. Primeiramente, da comparação com outras ocorrências de abandono do escudo entre os gregos arcaicos, pode-se dizer que não mencionam o fato de os guerreiros terem sido afastados da batalha por um deus. A retirada do poeta, por espesso pó (v. 14: denso ... aere), realizada pelo célere Mercúrio lembra passo de Homero em que Páris, prestes a ser derrotado por Menelau em luta singular, é subtraído ao combate, envolto em espessa névoa, pela deusa Afrodite e conduzido ao tálamo para encontrar-se com Helena (Ilíada, 3, 380-382)10: (...) A deusa Afrodite agilmente arrebata-lhe Páris. 6 Cf. Fraenkel (1957, p. 11); Nisbet and Hubbard (1978, p. 106-107); Romano (1991, p. 659). 7 Para análise dos fragmentos, sobretudo o de Arquíloco, ver Corrêa (1998, p. 110-133). 8 Já assinalou isso Fraenkel (1957, p. 11-12): “The scholars who take Horace’s phrase in this literal way discard as irrelevant the fact that some poets with whom Horace was thoroughly familiar and who inspired him in various ways, Archilochus, Alcaeus, and, possibly, Anacreon, had said of themselves that in the course of a battle they had thrown away their shield”. Para o confronto da passagem do carm. 2, 7 com Arquíloco, ver Cavarzere (1996, p. 211-215). 9 Ver, por exemplo, Harrison (2007, p. 25-26). 10 A retirada de um herói por um deus durante a batalha é recorrente na Ilíada (cf. 5, 314 e ss.; 20, 325 e ss. e 20, 443 e ss.). Romano (1991, p. 661) pensa que Horácio imita mais o último trecho (20, 443 e ss.), quando Apolo retira Héctor da batalha, mas sabemos que no canto 22 Héctor morre em combate pelas mãos de Aquiles. Assim, a imitação parece ser mais com o passo do Canto 3, em que Páris, retirado da batalha, sobrevive e goza do amor de Helena, assim como o poeta, retirado da batalha sobrevive e canta o amor em seus versos líricos. 59 Envolto em névoa, ao tálamo de volta o leva, ao leito perfumado11. Se aqui, no passo homérico, a personagem é retirada da guerra pela deusa do amor e levada ao tálamo para fazer amor, no carm. 2, 7 a personagem é retirada da guerra pelo deus inventor da lira12 (cf. Hino homérico a Hermes, v. 23 e ss.) e levada a fazer poesia lírica, para, entre outras matérias, cantar o amor. Nesse sentido, pode-se entender a tópica do abandono do escudo como uma forma de recusa épica, diversa dos carm. 1, 6 e 4, 1513, em que o poeta latino tem como modelo, sobretudo, os Áitia de Calímaco e declara explicitamente não cantar a guerra, pois não tem força suiciente para fazê-lo. No carm. 2, 7, portanto, o objeto, o escudo, pode representar, por sinédoque, o gênero épico14. Retomemos a presença de Mercúrio, que, além de representar a poesia lírica, como já dissemos em leitura metapoética, pode ser interpretado em sentido político, como pretendemos mostrar na sequência. Paul Zanker (2006, p. 48-58) mostrou como Sexto Pompeu, com objetivo político, se identiicava com Hércules, Baco e Netuno15, ou como Marco Antônio se representava como Baco16, enquanto Otaviano preferia interpretar o papel de favorito de Apolo, a quem atribuía, por exemplo, a vitória deinitiva sobre Sexto Pompeu17. Não é novidade o uso que as personagens políticas romanas izeram de divindades e de heróis. Assim, podemos também entender por meio do confronto com outros carmina de Horácio quem Mercúrio pode representar no carm. 2, 7, fato ainda não explorado pela crítica, até onde sabemos. MERCÚRIO-OTAVIANO Para tal identiicação, precisamos tornar ao início do discurso lírico horaciano, em que o deus é mencionado, ou seja, ao primeiro livro das Odes. No carm. 1, 2, depois de narrar vários acontecimentos terríveis (vv. 1-24) que sucederam aos romanos depois do assassinato de Júlio César (44 a. C.), como a guerra civil (vv. 21-24), o poeta pergunta que deus o povo invocará no momento em que o império ruir (vv. 25-26: Quem uocet diuum populus ruentis / imperi 11 Tradução de Haroldo de Campos. 12 Aqui discordo um pouco da interpretação de Harrison (2007, p. 25), que entende Mercúrio como deus da poesia, sem especiicar um gênero. Harrison (p. 24) associa ainda este fato com outro: a queda da árvore que quase matou o poeta, que, também aqui, foi salvo por um deus (cf. carm. 2,13; 2, 17, vv. 27-30; 3, 4, v. 27). 13 Para recusatio no primeiro livro das Odes, ver Nisbet and Hubbard (1970, p. 81-83); para a recusa no quarto livro, ver Thomas (2011, p. 260-261). A mais calimaquiana é a que ocorre no carm. 4, 15; porém as duas incidem em inequívoca matéria bélica, enquanto no carm. 2, 7, a recusa é metafórica. Há recusatio também no carm. 1, 19, em que Vênus lhe proíbe matéria guerreira. 14 Sobre esta associação, ver Hasegawa 2012. 15 Horácio, por exemplo, se refere a ele como Neptunius dux (epod. 9, 7-8). 16 Ele, depois da vitória sobre os armênios, fez seu ingresso em Alexandria com as roupas de Baco (cf. Zanker 2006: 52). 17 Cf. Zanker 2006: sobretudo 55-58. 60 rebus? ...). Depois de convocar Apolo, Vênus e Marte (vv. 30-40), nas três estrofes inais volta a atenção a Mercúrio, que na terra, transigurado em jovem, surge como vingador de César (vv. 41-52): siue mutata iuuenem igura ales in terris imitaris almae ilius Maiae patiens uocari Caesaris ultor, serus in caelum redeas diuque laetus intersis populo Quirini, neue te nostris uitiis iniquum ocior aura tollat: hic magnos potius triumphos, hic ames dici pater atque princeps, neu sinas Medos equitare inultos te duce, Caesar 45 50 Ou tu, da casta Maia ilho alado, que mudada na terra a forma, moço te tornas, consentindo ser chamado o vingador de César; tarde voltes ao céu e longo tempo assistas ledo ao povo de Quirino; nem aura mais veloz daqui te leve, iroso a nossos erros. Antes aqui grandes triunfos prezes; antes aqui chamar-te pai e príncipe, nem sofras campear impunes Medos em teu governo, ó César18. 45 50 A identiicação de Mercúrio com Otaviano, que causa alguma surpresa19, é explícita e explorada por todos os comentadores. Embora surpreendente, parece haver evidência material, proveniente do período augustano, em que o imperador se identiicava com o deus20: há, por exemplo, imagem de Augusto portando o caduceu21; encontra-se também na coleção Marlborough antiga gema, em que se mostra, junto com o caduceu, o rosto do princeps (Zanker 1989, p. 285, ig. 210); por im, há ainda evidência numismática em que aparece Mercúrio sentado sobre um rochedo e a inscrição Caesar divi f 22. Assim, a identiicação de Mercúrio com Otaviano não 18 Tradução de Elpino Duriense. 19 Nisbet and Hubbard (1970, p. 34): “Horace’s identiication of Mercury and Octavian is a matter for surprise, which needs a note of some length”. 20 Cf. Nisbet and Hubbard (1970, p. 34). 21 Esse objeto, porém, parece ser de data posterior ao carm. 1, 2, ver Fraenkel (1957, p. 248, nota 1). 22 Para a evidência numismática, ver ainda Pasquali (1920, p. 182). 61 parece ser apenas invenção de Horácio, mas talvez já circulasse entre os romanos, e tem raiz no culto helenístico do soberano (Alexandre, por exemplo, já se vestira como Hermes, e Ptolomeu III aparece em uma gema usando o pétaso do deus23). Queremos destacar ainda, das últimas estrofes do carm. 2, 1, duas alusões a Otaviano Augusto: as locuções Caesaris ultor (v. 44) e pater patriae (v. 50), que são aspectos importantes da política do princeps senatus. Em Filipos, como lembra Elisa Romano (1991, p. 479), ele combateu pro ultione paterna (“para vingar o pai”, Júlio César), e na oportunidade prometeu a Marte Vingador um templo, que lhe foi consagrado em 2 a.C.; em 27 a.C., no discurso em que declarou ao Senado querer entregar seus poderes, teria dito desejar o imperium apenas para vingar o pai adotivo (cf. Cass. Dio 53, 4). Em sua autobiograia, a vingança do assassinato de César é o primeiro empreendimento recordado (Mon. Ancyr. 2): Qui parentem meum necauerunt, eos in exilium expuli iudiciiis legitimiis ultus eorum facinus et postea bellum inferentis rei publicae uici bis acie (“Aqueles que assassinaram meu pai, mandei-os para o exílio, com julgamentos legítimos vingando o crime deles e, posteriormente, quando izeram guerra contra a República, venci-os duas vezes em linha de batalha”). A ideia de vingança associada a um deus não aparece apenas no carm. 1, 2, mas se encontra também no carm. 4, 6, em que o poeta faz louvor a Apolo, deus da poesia e da vingança24. Vejamos a primeira estrofe (vv. 1-4): Diue, quem proles Niobaea magnae uindicem linguae Tityosque raptor sensit et Troiae prope victor altae Pthius Achilles, Ó deus, a quem a Niobéia prole da audace língua vingador sentira, e o raptor Tício e o Ftio Aquiles, quase vencedor de alta Troia25. Depois de mostrar o deus como vingador da prole de Níobe, de Tício e de Aquiles, faz longa digressão sobre o maior dos aqueus. Embora seja ilho de Tétis, não é maior do que Febo. O deus o matou com a lecha pela mão de Páris. Depois de ter narrado o que aconteceu (vv. 5-8), Horácio descreve o que teria ocorrido, se Aquiles não tivesse sido morto: o herói, por seu caráter, jamais atacaria os troianos de surpresa, no momento em que, alegres, dançavam (vv. 9-16); contudo, Aquiles não pouparia ninguém, nem crianças incapazes de falar, nem mesmo aquelas que ainda estivessem no ventre materno (vv. 17-20); ou seja, se Aquiles invadisse em Troia, nem mesmo Eneias teria sobrevivido. O troiano só conseguiu escapar, porque o maior dos aqueus não entrou na cidade e Vênus intercedeu junto a Júpiter que, vencido pelos rogos da ilha, lhe promete a fundação 23 Cf. Nisbet and Hubbard (1970, p. 35). 24 Sobre Apolo no carm. 4, 6 e no quarto livro das Odes, ver Hasegawa 2012b. 25 Tradução de Elpino Duriense. 62 da nova Troia, Roma26 (vv. 21-24). Ou seja, tanto aqui, no carm. 4, 6, como no carm. 1, 2, a vingança é colocada como um aspecto importante para a construção de Roma. Embora o título de pater patriae seja concedido a Augusto somente em 2 a.C. (cf. Mon. Ancyr. 35, 1: Tertium decimum consulatum cum gerebam senatus et equester ordo populusque Romanus universus appellauit me patrem patriae 27), parece ser atribuição fundamental da política do principado já antes existente, como testemunha o carm. 1, 2, e talvez o título já fosse difundido desde os primeiros anos28. Recebia essa designação aquele que tivesse salvado Roma de um perigo mortal. Receberam-na Rômulo (cf. Enn. Ann. 108 Sk., Liv. 1, 16, 6), Camilo (cf. Liv. 5, 49, 7), Fábio Cunctator (Plin. Nat., 22, 10), Mário (cf. Cic. Rab. perd. 27), Cícero (cf. Id. pis. 6) e Júlio César (cf. Suet. Iul. 76, 1, 85)29. Assim, por mais essa alusão, o poeta associa Mercúrio a Otaviano. Até aqui Horácio, então, descreve o deus com alusões ao imperador. A identiicação, contudo, torna-se clara apenas na última palavra, quando o poeta, ao se dirigir à divindade, nomeia César (v. 52: te duce, Caesar), transformado o deus psicopompo, condutor das almas, no comandante militar, condutor dos romanos, que, depois de lutar contra os próprios romanos na vingança do pai adotivo, se volta agora contra os inimigos externos, os Medos, que não devem permanecer sem vingança (v. 51: neu sinas Medos equitare inultos). Portanto, depois da primeira ode (carm. 1, 1), que inaugura a carreira lírica e contém programa poético para o que se segue, temos poema dedicado a Otaviano Augusto (carm. 1, 2), que é justo aquele que retira Horácio já não da batalha, mas principalmente da facção política considerada inimiga da Vrbs, de modo que lhe permite ser o poeta do amor, do vinho, de Roma e do imperador. Desse modo, se temos no carm. 1, 2 elogio explícito de Otaviano, identiicado com Mercúrio, como protetor dos inimigos internos e externos de Roma, encontramos também louvor a Augusto no carm. 2, 7, que, sob a igura de Mercúrio, preserva o poeta de Roma (cf. carm. 4, 6), retira-o do meio da batalha e do “equívoco” de alinhar-se a Bruto e Cássio. Parece-nos, assim, muito provável que os versos forjados não sejam icção, mas encerrem doutrina política do governo augustano. VINHO SABINO EM ÂNFORA GREGA Depois de ver poema em que Horácio deseja celebrar, com vinho do Mássico, a chegada do amigo, salvo de nova guerra, passemos a outro (carm. 1, 20), em que o Venusino, tendo convidado Mecenas, lhe diz que o vinho servido será o humilde Sabino. Tal matéria já aparece na Antologia Palatina (11, 44), em que o epigramatista Filodemo convida Pisão, amigo muito importante, mas lembra a humildade do local e do jantar. Horácio trabalha esta mesma tópica, parodiada por 26 Para esta mudança, de Troia a Roma, ver Fraenkel (1957, p. 402-403). 27 “Era meu décimo terceiro consulado, quando o Senado e a ordem equestre e todo o povo romano me denominaram pai da pátria”. 28 Romano (1991, p. 480). 29 Ver também Nisbet and Hubbard (1970, p. 38-39). 63 Catulo (13) que, ao convidar Fabulo, lhe pede que traga o jantar (vv. 3-4: si tecum attuleris bonam atque magnam / cenam ...), pois ele é muito pobre, “o bolso está cheio de aranhas” (v. 8: plenus sacculus est aranearum). Vejamos a ode horaciana: Vile potabis modicis Sabinum cantharis, Graeca quod ego ipse testa conditum leui, datus in theatro cum tibi plausus, clare Maecenas eques, ut paterni luminis ripae simul et iocosa redderet laudes tibi Vaticani montis imago. Caecubum et praelo domitam Caleno tu bibas uuam: mea nec Falernae temperant uites neque Formiani pocula colles. 5 10 Ordinário Sabino por pequenas taças, claro Mecenas cavaleiro, tu beberás, que eu mesmo sigilara guardado em grega talha, quando o teatro te aplaudiu de modo que as ribas do paterno rio e o eco engraçado do Monte Vaticano te repetiu louvores. Cécubo e uva no lagar Caleno bebe embora espremida, que meus copos nem Falernas videiras os temperam nem Forminiano outeiro30. 5 10 Horácio, aqui, parece fazer homenagem a Mecenas, protetor e amigo, que, depois de uma grave doença, reaparece no teatro, quando é muito aplaudido. O louvor é modesto, assim como o vinho Sabino que lhe será oferecido. A essa mesma doença e ao aplauso no teatro, segundo os comentadores31, o poeta faz menção no carm. 2, 17, 22-30: Te Iouis impio tutela Saturno refulgens eripuit, uolucrisque Fati tardauit alas, tum32 populus frequens laetum theatris ter crepuit sonum; 25 30 Tradução de Elpino Duriense. 31 Romano (1991, p. 701-702). 32 Adotamos aqui o texto usado pelo tradutor, embora a lição mais aceita seja cum no lugar de tum. 64 me truncus inlapsus cerebro sustulerat, nisi Faunus ictum dextra leuasset, Mercurialium custos uirorum. 30 [...] A ti de Jove a fulgente tutela te ressalva d’ímpio Saturno, e as asas prende do veloz fado, o que três vezes nos teatros o povo junto aplaude; a mim sobre a cabeça vindo um tronco matara-me, se Fauno, dos varões, que a Mercúrio tocam, guarda, co’a destra o golpe não sustem33. 25 30 Aqui, entretanto, além de mencionar a doença de Mecenas, lembra que ele mesmo quase morreu, atingido por um tronco, mas Fauno, guardião dos homens mercuriais, o salvou. Tal acidente, como já dissemos34, é recordado em outras odes (carm. 2, 13; 3, 4, 27). Se interpretamos a apresentação de Mecenas no teatro como fato histórico, podemos assim interpretar a queda da árvore. Horácio, em seus versos, reproduz sejam fatos da Roma de Augusto, sejam fatos de sua vida. Porém, assim como vimos em relação ao carm. 2, 7, também nos outros versos Horácio reproduz fatos reais da vida romana e da sua própria vida. Contudo, isso não impede que Horácio também inja fatos, forje fatos que tenham no discurso poético outro sentido que não seja o de retratar a vida. Então, em princípio, talvez não consigamos saber exatamente quais são reais, quais são ictícios. Assim, por exemplo, a tópica poética parmula non bene relicta, inserida em fato evidentemente real, poderia signiicar justamente que a motivação poética – Horácio salvo será o poeta do amor, do vinho, de Roma, do imperador e de uma poesia que louvará o senhor de Roma e do mundo – suprime o que poderia ser tomado como torpe, ainda que ele mesmo diga non bene. O non bene já não é signo de matéria biográica, mas signo de um signo poético. Poesia, mas não a passada, a de Arquíloco, mas a futura, do próprio Horácio. No limite, Augusto salvou a vida do poeta que, vate, preservará, por seu turno, eternamente a vida de Augusto, porque o cantará (cf. 4, 15, 31-32: Troiamque et Anchisen et almae / progeniem Veneris canemus). Mercúrio-Otaviano, seja na guerra, seja na queda da árvore, salva seu uir Mercurialis para evitar a Libitina. Antes de voltarmos ao carm. 1, 20 é notável que, mais uma vez, Mercúrio está presente em um momento de perigo do poeta. No carm. 2, 17, embora seja Fauno a salvá-lo, a divindade é caracterizada como Mercurialium / custos uirorum (“protetor de homens mercuriais”, vv. 29-30), ou seja, Horácio está sob a proteção de Mercúrio, inventor da lira e igura de Otaviano, como destacamos acima. Além 33 Tradução de Elpino Duriense. 34 Ver nota 11. 65 disso, a ode, que trata da proximidade da morte, se situa entre o carm. 2, 16 – poema dirigido a Grosfo, em que se atualiza a tópica do carpe diem (vv. 25-28) e se recordam a morte (v. 29) e a velhice (v. 30) –, e o carm. 2, 18, em que o poeta se dirige a um homem ávido de riquezas embora próximo da morte para lembrá-lo de que o tempo é inexorável e a morte chega para todos, ricos e pobres (vv. 32-36). Ora, esse discurso sobre a morte no im do livro, em que o carm. 2, 17 se insere, não só anuncia a conclusão dele, mas também prepara o carm. 2, 20, em que Horácio, por ser poeta, diz que não morrerá: ou seja, Horácio, ao im e ao cabo, faz louvor da poesia, argumentando que ela, só ela, e não riquezas, é que eterniza as pessoas. Portanto, a sequência dos carm. 2, 16; 2, 17; 2, 18 prepara e ressalta a conclusão em 2, 20, que, por sua vez, é retomada no célebre Exegi monumentum, carm. 3, 30, último poema do conjunto de três livros, para destacar a tópica da perenidade da poesia. Retomemos o carm. 1, 20 que verossimilmente imita situação histórica, mas é, antes de mais nada, poesia e discurso sobre poesia, como icou demonstrado. Embora o poema pareça simples, tem construção muito elaborada. Nisbet e Hubbard (1970, p. 250-251) chamam a atenção para o ordenamento da última estrofe: “Os vinhos Cécubo e Formiano vêm do Lácio [...]; o Caleno e o Falerno, da Campânia; portanto, a disposição forma quiasmo [Cécubo (A), Caleno (B), Falerno (b) e Formiano (a)]”. Além disso, reparam na aliteração (Caecubum e Caleno, de um lado, e Falernae e Fomiani, de outro) e no tropo da variação ao falar dos quatro vinhos: o vinho Cécubo, o lagar Caleno, as videiras Falernas e o outeiro Formiano. Pode-se acrescentar ainda que o poeta descreve, por assim dizer, etapas da produção: o produto inal (o vinho), o lugar em que é feito (o lagar), o material de que é feito (as videiras) e o lugar em que se encontra o material (o outeiro). Mostra, assim, que, embora a situação descrita possa ser real, o poema, a julgar por tais recursos, é ictício, é construção, é forja de versos. Por im, além da possibilidade (sempre) de reletir um dado histórico, o poeta diz, na primeira estrofe, que o vinho Sabino, romano, que será servido a Mecenas, foi guardado em talha grega. Ora, como já foi interpretado35, o vinho, em leitura metapoética, representa a matéria romana, servida, todavia, em talha grega, ou seja, é vazada em metro grego, como a estrofe sáica do carm. 1, 20. Assim, o poeta mais uma vez forja, em versos, acontecimentos verossímeis. Como diz Aristóteles, na Poética, “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade”. Completa o Filósofo: “E ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de ser poeta, pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam, por natureza, verossímeis e possíveis e, por isso mesmo, velha o poeta a ser o autor delas”36. Em suma, o poeta é ingidor, inge tão completamente que julgamos ser real a dor, verdadeiro o amor, exata a história. 35 Ver Romano (1991, p. 564). 36 Tradução de Eudoro de Souza. 66 REFERÊNCIAS CAVARZERE, A. Sul limitare. Il «motto» e la poesia di Orazio. Bologna: Pàtron, 1996. CORRÊA, P. C. Armas e varões: a guerra na lírica de Arquíloco, São Paulo: Editora Unesp, 1998. FRAENKEL, E. Horace. Oxford: Oxford University Press, 1957. HARRISON, S. (Ed.). The Cambridge Companion to Horace. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. HASEGAWA, A. P. Os limites do gênero bucólico em Vergílio: um estudo das éclogas dramáticas. São Paulo: Humanitas, 2012. HASEGAWA, A. P. Deuses e ‘ordo’ no livro IV das ‘Odes’ (no prelo), 2012b. KLINGNER, F. Horatius. Opera. Lipsiae, 1959. LEFKOWITZ, M. R. Lives of the Greek Poets. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1981. NISBET. R. Horace: life and chronology. In: HARRISON, S. (Ed.) The Cambridge Companion to Horace. 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Nesta parte inicial, destacamos um problema relativo a como devemos ler as obras de Tácito (e mais particularmente a Vida de Agrícola): suas obras correspondem a ações políticas do autor ou são artefatos literários mais voltados a uma tradição do que a um contexto dado? Concluímos que as obras estão ligadas a uma tradição literária e devem ser entendidas assim, mas que também cumprem um papel de intervenção política que faz uso dessa mesma tradição. Um ponto para pensar essa ideia da intervenção política é o elogio a Agrícola por sua moderatio e prudentia. A postura de Agrícola lhe permitiu sobreviver. Esse é um ponto que já foi bem explorado pela historiograia. Apontamos, contudo, para um novo problema: a quem sobreviveu Agrícola? A crítica aponta para o tirano, para Domiciano, particularmente. É verdade. Sobreviver a um mau imperador é um desaio para um aristocrata virtuoso. Mas há de se sobreviver também aos que se beneiciam de um regime tirânico, prejudicando os demais aristocratas, por exemplo. Os quinze anos de Domiciano não teriam sido obra apenas de um imperador louco que teria colocado uma aristocracia uniicada e virtuosa sob o império do medo. Pretendemos ressaltar que Tácito aponta para a existência tanto de setores da aristocracia que promoveram uma oposição que ele qualiica como temerária frente ao imperador, como houve outro setor que se acomodou frente à tirania e buscou se beneiciar dela, com todos os riscos que isso implicava. Assim, nossa hipótese é que os aristocratas virtuosos teriam que sobreviver ao tirano, mas não apenas a ele. Teriam que sobreviver também aos aristocratas que conspiravam (e levavam à perda de muitos) e ainda àqueles que e 68 colaboravam com a tirania (e levavam à perda de outros tantos), representando um perigo para o homem de virtude que pretendia servir apenas à república. Mais ainda, se o imperador estava morto – e essa ameaça já não existia mais –, os aristocratas que se beneiciaram com ele ainda estavam por lá. Continuavam por lá também aqueles aristocratas que sempre estariam prontos a mover novas conspirações contra o novo príncipe. Com Nerva e Trajano, portanto, algo mudou; mas não tudo. Concluímos então que Tácito atua politicamente para justiicar sua posição como sobrevivente à tirania e se distingue de outros setores da aristocracia. Ele é explícito em chamar a atenção para esse ponto quando diz: “podem existir grandes homens mesmo sob maus imperadores” (posse etiam sub malis principibus magnos viros esse, Agric., 42,6). Ou seja, a nosso ver, sua obra se insere em tradições literárias reconhecíveis, como a dos elogios fúnebres e a das biograias, mas só se insere nessas tradições literárias porque servem a um propósito político dado: servir como instrumento na velha e boa competição intra-aristocrática romana. Os estudos sobre Tácito e suas formas1 As obras de Tácito foram tomadas ao longo de séculos, desde Petrarca e através da Renascença e no longo período em que sua leitura se deu sob a égide das monarquias modernas, especialmente sob as monarquias absolutistas, como um manifesto contra a tirania. Mais do que um manifesto, poderíamos dizer que muitas vezes essas obras foram tomadas como uma denúncia dos desmandos cometidos pelos monarcas e o registro do resultado lastimável de tais regimes: destruição da aristocracia, decadência moral e o império do medo. A história de Tácito cumpriria esse papel de advertência contra o poder desmedido, e seria também uma vingança da posteridade. A liberdade suprimida, quando retorna, acerta as contas com aqueles que promoveram o servilismo. Assim, além dos resultados globais das tiranias serem ruins, seria desastroso também o im do tirano que, mais cedo ou mais tarde, é suprimido, e sua imagem para a posteridade é sempre negativa. A supressão do tirano pode impor ainda um período de instabilidade, de guerra civil, que coloca em risco toda a organização política. Logo, a supressão do tirano não era uma resposta vista como simples. Tácito foi lido como um excelente retratista das tiranias dos imperadores romanos. Suas obras serviram para inspirar tanto a defesa da monarquia (que não seria ruim – uma vez que Tácito teria apontado os governantes e mesmo a aristocracia, mas não o regime em si, como a origem dos problemas) quanto a luta pela república, por parte dos que usaram suas obras como uma advertência a respeito do que as monarquias sempre se tornam: tiranias. Portanto, Tácito seria tomado como um autor praticamente atemporal, um manifesto contra 1 Formas aqui é uma alusão à contribuição de Norberto Luiz Guarinello (2003) para o debate sobre a historiograia da Antiguidade. 69 os tiranos e, não menos importante, um manual para sobreviver ou mesmo reformar esses períodos difíceis2. Com a emergência da história cientíica, especialmente a partir do século XIX, Tácito deixou de ser tomado como o manual prático que fora até então, como fonte de exempla para monarquistas e republicanos. Nesse novo contexto, Tácito passou a ser visto como fonte histórica, como documento que poderia permitir, em associação com outros documentos, o estudo do Império Romano. Desse modo, tratava-se de fazer a crítica a Tácito e buscar extrair dele as informações mais completas e coniáveis sobre os governos dos imperadores. Exposto ao crivo da ciência moderna, Tácito deixou de ser um campeão na luta pela liberdade ou guia de sobrevivência nas ou para as monarquias. Passou-se justamente à tentativa de eliminar de Tácito suas convicções políticas, seus juízos, para extrair-lhe dados. Nesse sentido, ganha proeminência, sobretudo, o estudo e a crítica dos proêmios dos historiadores antigos. Foram colocados em julgamento os métodos usados para a construção das obras historiográicas antigas. Naturalmente, os critérios aplicados para considerar se os métodos dos historiadores antigos eram bons ou não foram os da ciência moderna. Não surpreende que os historiadores antigos tenham sido todos reprovados nessas provas e que se tenha imposto aos historiadores modernos não mais aprender com os antigos, mas ensinar-lhes: criticando e corrigindo seus erros para que se pudesse conhecer a história que eles teriam falhado em escrever3. Uma contribuição que veio a estabelecer um novo patamar para a leitura dos textos de Tácito é a obra de Ronald Syme a respeito deste autor. Tacitus foi publicado em 1958, em dois volumes, pela editora da Universidade de Oxford, e segue sendo leitura obrigatória para aqueles que estudam esse autor. A análise de Syme procurou compreender não apenas os textos de Tácito, mas as motivações do autor e as relações entre os escritos e o contexto de sua produção. Obra histórica e fazer histórico estão profundamente imbricados na análise de Syme. Não se trata mais de um Tácito que é observador da história e tece lições para a posteridade, mas um senador que atua politicamente e faz de seus escritos parte dessa atuação. Além disso, seguindo a via que Syme já tinha explorado em seu opus magnum anterior, The Roman Revolution (1939), esse estudo se apoia em um estudo prosopográico para demonstrar que Tácito está inserido em uma progressiva mudança do peril da elite senatorial. Destaca que cada vez mais vai ganhando peso uma elite de origem provincial em detrimento de uma elite itálica. Tácito, assim, teria uma preocupação política em evidenciar essa renovação como algo positivo e uma alternativa para o aperfeiçoamento do Principado. O próprio Tácito era possivelmente um provincial (assim como seu 2 Uma referência importante para esse contexto é Schellhase (1976). 3 Gaston Boissier dá uma boa indicação dessas leituras de Tácito em seu tempo, mas já marca sua desconiança com o triunfalismo de uma ciência histórica capaz de produzir uma visão deinitiva e verdadeira sobre o passado: “Nada dura nestas construções que com tantas pesquisas e trabalho nós tentamos erguer. Depois de pouco tempo, a descoberta de documentos novos, uma melhor interpretação dos textos, ou simplesmente um gosto pela novidade mudam as opiniões assentadas. Esta renovação perpétua dá a ideia de que nada é seguro na história e que ela está sempre recomeçando” (BOISSIER, 1903, p. 104). 70 sogro Agrícola), da Gália Narbonense. Não será demais destacar que também Ronald Syme era um “provincial”, vindo da Nova Zelândia, e, talvez por isso, ainda mais sensível a respeito desse aspecto. Em suma, o fato de os escritos de Tácito serem produções literárias não impede que sejam também documentos históricos, que nos permitam tanto compreender melhor a tradição literária em que se inserem quanto os conlitos que sua escrita acaba por registrar, além de permitir que conheçamos melhor a época de sua produção. Reiteramos esse ponto porque nos estudos mais recentes sobre o historiador latino parece haver certa tensão entre esses polos. Estudos como os de Dylan Sailor, Ellen O’Gorman e Holly Haynes, por exemplo, mostram-se atentos a questões voltadas à apresentação da narrativa e seus jogos de alusões, buscando entrever quais seriam os objetivos de Tácito ao escrever suas histórias, mas sem chegar a inquirir sobre um estudo histórico dos eventos que ele descreve. Esses estudos são tributários em larga medida da contribuição de A. J. Woodman que, inspirado pelas proposições do giro linguístico, buscou ressaltar as características literárias, discursivas da obra de Tácito, e sua autonomia com relação a seu próprio tempo e com uma verdade reconhecível nos termos da ciência moderna. A grande ênfase de Woodman é justamente contrapor o estatuto do texto historiográico antigo com relação aos parâmetros do que alguém poderia chamar de cientíico – seja lá qual for o sentido que se dê a cientíico. Woodman, em Rhetoric in Classical Historiography, ressaltou que a concepção de inventio, como deinida por Cícero no De Inventione4, tornaria a historiograia antiga essencialmente um gênero retórico, devendo ser classiicada mais como literatura do que história. A retórica atuaria na manipulação de verdades factuais por razões dramáticas, de maneira que o resultado seria antes uma narrativa do que poderia ter acontecido, e não do que aconteceu. Portanto, para Woodman, a historiograia antiga e a moderna contrapõem-se, devido ao papel da inventio, “um conceito que é naturalmente a antítese de ‘cientíico’” (WOODMAN, 1988, p. 199). Apoiando-se em Fleishman (1983), Woodman propõe uma via interpretativa importante, que chama a atenção para a forma como os textos historiográicos foram constituídos na relação com seus ouvintes. Ele marca bastante bem que o estatuto de verdade não é dado pela prova, na autenticidade dos fatos e eventos, mas que também não se confunde simplesmente com a icção. Woodman cita Fleishman para dizer que: “História era aquilo em que se acreditava de boa vontade” (1988, p. 201). Nessa mesma perspectiva, O’Gorman, em Irony and Misreading in the Annals of Tacitus, sustenta a ideia de que o recurso à ironia utilizado por Tácito visa a enfatizar o esvaziamento de sentido proporcionado pelo advento do Principado, como um palco de falsas aparências e verdades recônditas: Tácito, então, representa a Roma Imperial como um lugar e tempo onde a comunicação social rompeu-se em certa 4 Cícero, De Inventione 1.9: Inventio est excogitatio rerum verarum aut veri similium, quae causam probabilem reddant. 71 medida, resultando em mal-entendidos, ingimentos e talvez aporias. Não só a incompreensão generalizada serve como uma poderosa metáfora para a perversão do sistema político, na passagem do governo do Senado para o poder imperial, mas também funciona como o meio pelo qual Tácito se situa em uma tradição da historiograia cética, desde seu predecessor Salústio até o historiador grego Tucídides. Em todos os três historiadores [...] a perversão da linguagem e da sua capacidade de transmitir signiicado é apresentada como um sintoma de uma sociedade em meio à agitação social e moral (O’GORMAN, 2004, p. 14). Essa atitude cética teria como implicação levar o leitor a tomar uma posição na interpretação histórica. Teríamos, nesse caso, o predomínio da forma sobre o conteúdo na narrativa dos Anais, no sentido de que a escolha estilística do autor constrói uma representação colocada ao leitor para seu julgamento. Caminho semelhante segue Holly Haynes, em The History of MakeBelieve: Tacitus on Imperial Rome. Para a autora, Tácito não escreve sobre a realidade da política ou da cultura imperial, mas sobre o quadro imaginário que a sociedade imperial traça de sua relação com as condições concretas de existência. Ele, portanto, descreve a representação de uma representação: a imagem que a sociedade faz de uma relação imaginária com a realidade (HAYNES, 2003, p. 30). Haynes argumenta, por exemplo, que Oto e outros pretendentes ao trono em 69 herdaram uma icção da República estabelecida por Augusto, que os imperadores Júlio-Cláudios subsequentes perpetuaram. Consequentemente, os imperadores daquele ano de convulsões seriam meras icções de uma icção maior. Enim, trata-se do Principado como ordem simbólica reproduzida na narrativa, no sentido de que o pensamento de uma “sociedade imperial” reletese na escrita de Tácito. Dylan Sailor também retoma essa ideia, postulando que Tácito entendia que suas obras históricas competiam não apenas com outros escritos de história, mas com outros modos de representação políticos e culturais que emanavam do próprio princeps. O autor busca situar a decisão de Tácito em escrever história num contexto mais amplo de uma crise de autonomia e autoridade da elite sob o Principado. Esse regime teria subvertido antigos sistemas de representação e signiicado na medida em que o imperador passou a ser o centro a partir do qual as honras e cargos eram distribuídos pela aristocracia e sobretudo monopolizou as formas mais representativas de expressão da glória militar, como o triunfo. Tácito então, ao compor suas obras, pretendia passar a impressão de que era independente ao se manter afastado desse centro de poder. Diz ele: A im de produzir uma história condizente com o prestígio literário ou social, um autor deveria assegurar que seu livro seria visto como simplesmente um exercício de libertas, 72 uma produção independente de um indivíduo autônomo. A auctoritas do princeps teria um peso tal que um escritor deveria mostrar aos seus leitores que seu livro era independente; na ausência de uma demonstração convincente, ele estava sujeito a perder a autoria de seu próprio livro aos olhos do público leitor (SAILOR, 2008, p. 42). Paradigmática dessa perspectiva é sua biograia de Agrícola. De acordo com Sailor, no tratamento que Tácito confere à participação de Agrícola no contexto de competição intraelite por glória, essencial para a expansão e paciicação imperial, a Bretanha é retratada retoricamente como um espaço à parte do restante do Império e, portanto, alheio à inluência do princeps. Nesse sentido, o Império conigura-se como um processo constantemente autorrenovável de expansão, se movido por uma elite que busca airmar-se pela glória militar, construindo laços internos de reciprocidade, mas sem descartar a hierarquia. Essa economia da glória emerge como um sistema fechado, desempenhado numa província como que destacada do Império e marcado pela reciprocidade entre comandantes e subordinados, sem qualquer interferência imperial. Os governadores sobressaem-se como líderes independentes. Na Germânia, que Tácito teria composto após a Vida de Agrícola, temos novamente um território destacado do Império, mas não anexado, cuja sociedade guerreira governa-se por uma economia da glória semelhante àquela descrita na Bretanha. Comparando com a análise de Tácito feita por Syme, um primeiro aspecto que se destaca na bibliograia acima é a uniformidade de que se reveste a chamada “sociedade romana imperial”. É apresentado um quadro muito homogêneo, grosso modo contrapondo uma elite imperial a uma elite republicana, cada qual com um conjunto de valores uniicado. Syme já apontara a necessidade de entender uma elite provincial em ascensão, dinâmica e melhor preparada para assumir postos de serviço sob os imperadores, deixando para trás uma aristocracia romana que não se adequava aos novos tempos. Por im, ao se colocar demasiado relevo na arquitetura retórica da obra taciteana, e como esta elabora representações do Principado, este mesmo regime político acaba retratado de forma estática, sem qualquer mudança na diacronia, como se o tempo e contexto em que Tácito escreve, no século II, fosse essencialmente igual ao período Júlio-Cláudio que descreve nos Anais, por exemplo: mesmas tensões, mesmas ambiguidades causadas pela presença do princeps, sem mudanças na composição da elite imperial ou mesmo das características do poder do princeps. Essa forma rígida e imóvel de ver tanto o Principado quanto as elites nos parece servir mais para tentar qualiicar uma tópica em Tácito que explicaria todas as suas obras e sua forma de ver a história. Se essa tópica transparece na obra de Tácito e pode ser útil à compreensão dos trabalhos desse autor, é preciso admitir também que outras divisões, para além de elite republicana e elite imperial e regime republicano e regime do Principado, podem ser percebidas em Tácito. Talvez seja tempo de tentarmos retomar Syme: uma análise literária 73 não pode correr paralela a uma história social e política de Roma, mas deve se integrar a ela. A Vida de Agrícola e as elites sob o Principado de Domiciano, Nerva e Trajano Syme qualiica a Vida de Agrícola “como testemunha da escravidão passada e da felicidade presente” (1970, p. 2). Indica por essa via a ruptura entre um momento representado pelos quinze anos do principado de Domiciano, em que houve tirania e a aristocracia viveu sem qualquer liberdade, e o governo de Nerva e seu ilho adotivo Trajano, que propiciaram uma liberdade concedida a essa mesma aristocracia. Será que essa ruptura entre aristocracia sujeitada e, portanto, atuando de forma servil versus uma aristocracia libertada e vivendo em beatitude pode ser admitida a partir da leitura da Vida de Agrícola? Tácito, nessa obra, nos deixa claro que as mudanças não são tão céleres: “Contudo, é da natureza das fraquezas humanas que os remédios demorem mais que os males. Assim, como os nossos corpos rapidamente caem e lentamente se erguem, os gênios e os ânimos mais facilmente são abatidos do que reerguidos” (natura tamen inirmitatis humanae tardiora sunt remedia quam mala; et ut corpora nostra lente augescunt, cito extinguuntur, sic ingenia studiaque oppresseris facilius quam revocaveris, Agric., 3, 1). Essa passagem mostra que a mudança não era tão radical, ainda menos imediata. Para a construção do estado presente e lastimável que Nerva e Trajano vieram a interromper se passaram os quinze anos de Domiciano. Quantos anos seriam necessários então para que os remédios dessem im aos males? Segundo a visão que Tácito nos apresenta, muito tempo seria exigido para que a aristocracia se visse livre dos vícios ainda presentes. A aristocracia se mostrava dividida e em conlito, quer isso fosse estimulado por um tirano que alimentasse aduladores e estimulasse conspiradores (ambos perigosos para a preservação da aristocracia), quer em um contexto novo, no qual os velhos vícios não desapareceriam de imediato. Mesmo que Tácito, quando trata de Vespasiano, airme que o imperador tem um enorme poder de inluência sobre os hábitos da elite, parece que o mesmo não vale para as posturas dessa elite. Tácito, no capítulo 55 do livro III dos Anais, faz uma ampla digressão para criticar a adesão da elite romana ao luxo – e aqui a qualiicação “romana” merece todo o destaque como já tinha nos feito ver Ronald Syme. Tácito airma que, desde a guerra de Ácio, cada vez mais o luxo e a falta de limites prosperaram entre a elite romana. Com Galba, isso mudou, pois ele era austero. Segue narrando o crescimento do luxo que vinha no século que antecede Galba, mostrando que pouco a pouco ele foi se tornando incontrolável. A concorrência entre as casas aristocráticas fazia com que cada novo excesso fosse sempre ultrapassado. As redes de clientela tinham papel de grande importância nesse processo. Mas havia um freio a essa busca 74 por dignidades. Ele diz que “depois, como a grandeza da fama os levava a cair em desgraça, muitos acharam mais sábio mudar” (postquam caedibus saevitum et magnitudo famae exitio erat, ceteri ad sapientiora convertere). Ele destaca ainda que as famílias novas, vindas de fora de Roma (novi homines e municipiis et coloniis atque etiam provinciis) escapavam a esse comportamento, mantendo a parcimônia original. Assim, enriqueceram. Mais uma vez, podemos perceber a aristocracia romana dividida no pensamento de Tácito. Nesse ponto não concorrem entre si. Os romanos ou se arruínam pelo luxo, ou, vendo os perigos da notoriedade, se preservam, havendo ainda os que vêm de fora e enriquecem por sua parcimônia e por seu esforço (industria). Mas a virada veio com Vespasiano: “Mas o que levou mesmo à mudança dos costumes foi Vespasiano, homem de austeridade e temperança antigas. Assim, a imitação do exemplo dado pelo príncipe valeu mais que o medo e as penas das leis” (sed praecipuus adstricti moris auctor Vespasianus fuit, antiquo ipse cultu victuque. obsequium inde in principem et aemulandi amor validior quam poena ex legibus et metus). Vê-se assim que a lenta renovação da elite não altera a dinâmica anterior; nem o medo nem as leis alteram substantivamente o comportamento romano – o contexto dessa digressão é justamente o debate sobre uma lei para controlar o luxo ainda sob Tibério. As leis promulgadas para conter o luxo são ineicazes; os riscos da glória insuicientes para incutir moderação e, por im, o exemplo de uma nova aristocracia parece ser indiferente. É o vício da adulação que leva a parcimônia a voltar a ser um hábito entre a elite romana, do mesmo modo que ainda não havia deixado de ser entre os senadores que vinham de fora da capital ou entre aqueles que de forma mais sábia haviam se eximido de buscá-lo. As mudanças, assim, não são rápidas nem uniformes ou universais. Aqui, uma vez mais, a elite não aparece uniicada e coesa; muito antes pelo contrário. Um novo imperador levaria a elite rapidamente a imitar alguns elementos externos de seu comportamento. Mas o conjunto desses hábitos demoraria a se arraigar entre a elite como um todo, conformando uma nova postura dominante na aristocracia. Isso valeria para o mal, como foram os cem anos de aumento do luxo entre a batalha de Ácio e o breve governo de Galba, ou como foram os quinze anos de Domiciano, e para o bem, como viriam a ser o governo de Vespasiano/Tito ou de Nerva/Trajano, cuja duração era imprevisível naquele ano de 98 em que Tácito escreve a Vida de Agrícola. Comentando o emprego por Tácito do plural da primeira pessoa para descrever o sujeito da servidão sob o governo de Domiciano, Ash conclui que o autor se incluiu entre os que sucumbiram. Ele airma: “Tácito não se excluiu do grupo maior, que se humilhou e se lançou na pior espécie de escravidão. Para uma audiência da época, Tácito com certeza provocou, não orgulho por ter sobrevivido a um regime opressivo, mas sobretudo vergonha por tê-lo tolerado – e ele era culpado como qualquer outro” (ASH, 2006, p. 25). Mas, seguindo essa interpretação, atribui-se, na mesma perspectiva que já vimos predominar na historiograia contemporânea, uma unidade à aristocracia que não parecia existir de fato na visão expressa por Tácito. Ainda que em outro momento ele 75 considere a aristocracia ou o momento do Principado de forma uniicada, não cremos que essa seja a única visão expressa por Tácito tanto no que se refere à aristocracia quanto no que se refere ao Principado. Pelo contrário, a nosso ver, predomina em Tácito uma visão de que o Principado é dinâmico, corresponde a conjunturas muito diversas e a aristocracia se mostra predominantemente dividida e muitas vezes em conlito aberto. Talvez, seja mais razoável apreender a aristocracia como dividida em pelo menos três grupos no que se refere especiicamente à sua relação com a tirania de Domiciano. Um primeiro grupo é exatamente daqueles que se opuseram à tirania, sendo que alguns foram martirizados por ela. Tácito não pertencia a esse grupo e se opunha à sua postura. A escrita da biograia de Agrícola mostra que é possível ser útil à república, alcançar glória (mesmo que ela não seja reconhecida sob um tirano) e não causar perturbação à república através de uma contestação ao poder do príncipe que levará à perda de muitos pela morte e pelo exílio – quer o príncipe caia, quer se mantenha. Assim, Tácito não fez parte do grupo que se opôs mais ou menos abertamente à tirania. Ele se contrapôs aos conspiradores por serem ineicientes e por desestabilizarem a república. Ele os critica explicitamente quando diz que homens como Agrícola “são mais elogiados do que aqueles que, de forma abrupta e perigosa, buscaram uma morte ambiciosa sem nenhum proveito para a república” (eo laudis excedere, quo plerique per abrupta, sed in nullum rei publicae usum <nisi> ambitiosa morte inclaruerunt, Agric., 42, 6). Um segundo grupo é daqueles que serviram ao poder do tirano – e se beneiciaram dele. Sem ter méritos, alcançaram reconhecimento e produziram a perda de muitos através de delações e, em consequência de sua atuação, impediram que as pessoas mostrassem suas qualidades. Essa aristocracia que seria responsável por silenciar a elite e, portanto, por destruir a liberdade também foi vista por Tácito como nociva à república. Ainda que Tácito tenha avançado em seu cursus honorum sob a tirania, como ele mesmo admitiu (Hist., 1, 1), não é esse ainda o grupo em que ele próprio se classiicaria. Ele o fez preservando sua autonomia, e não graças à adulação. E eis que aí temos um terceiro grupo que é representado por aqueles que não se opuseram à tirania e buscaram servir a república, em que pese o governo do tirano e a atuação tanto daqueles que, por um lado, se opunham a ele e colocavam em risco também a outras pessoas que poderiam ser vistas como conspiradoras, mesmo sem o serem, quanto daqueles que apoiavam o tirano e sempre perseguiam aqueles que não se uniam a eles na bajulação. O grupo que se opõe ao tirano, assim, aumenta os riscos de membros da aristocracia mostrarem suas virtudes, pois podem ser confundidos com aspirantes ao poder. Por outro lado, por terem mérito, é natural e esperado que avancem no cursus honorum e alcancem algum reconhecimento porque o governo do tirano não é onipresente. Há espaços vazios para o exercício do poder, deixados pela própria leniência do tirano e de seus apoiadores. A inação destes, dedicados apenas à adulação e à delação, faz com que o governo ique a cargo ou de pessoas sem mérito ou daquelas que, tendo mérito, deveriam ser cautelosas para não afrontar 76 os poderosos e, assim, poderem se manter servindo à república. É entre estes que Tácito parece querer se colocar, em companhia de seu sogro Agrícola. Ele se inclui em uma parcela da aristocracia que servia à república com toda a moderação que a situação exigia. A prudência devia afastá-los de dois polos perigosos da existência política. Por um lado, não deveriam parecer capaces imperii (na famosa fórmula dedicada por Tácito a Galba) e, portanto, objeto da atenção de conspiradores e delatores. Mas, além disso, não deveriam também desejar ou esperar honras por sua atuação, incorrendo no ódio dos aduladores. Assim, este grupo se distinguiria daqueles que buscariam uma glória incerta pelo martírio, colocando em risco a república. Seria distinto também daqueles que a alcançavam, certa, porém breve, a serviço dos tiranos. Haveria um terceiro grupo que buscaria a glória servindo à república e se ajustando aos governos tirânicos que predominaram largamente na experiência do Principado que será estudada por Tácito em sua obra historiográica. Mais do que buscar os espaços deixados pela tirania, era preciso escapar dos delatores, sempre prontos a colocar a perder inocentes para extrair alguma vantagem, e dos conspiradores, que podiam também colocar alguém a perder sem qualquer propósito útil. Ainal, a retirada de um tirano não signiicava a ascensão de algum bom governante, como as sucessões entre os Júlio-Cláudios deixaram claro o bastante. Outrossim, a ascensão de um governante excelente não pressupunha uma conspiração, como mostrava a adoção de Trajano por Nerva. Syme, a nosso ver, qualiica corretamente esse evento testemunhado por Tácito no momento exato em que começa a produzir suas obras. Sobre o contexto a partir do qual Tácito começou a escrever, airma Syme (1970, p. 3): “Cônsul em 97, Tácito testemunhou a desintegração de um governo, a ameaça dos comandantes do exército e o golpe de Estado velado que levou Trajano ao poder”. Desse modo, o que a obra de Tácito procura mostrar é que não havia simplesmente um tirano que oprimia a aristocracia e que a ascensão de Trajano veio trazer uma nova época de liberdade. O quadro é mais complexo. Sob os tiranos, a aristocracia se divide e adota posturas diversas – e predominantemente deletérias! Sob um príncipe como Trajano, essa elite ainda se manterá dividida e, se não há mais o que temer da parte deste, as ameaças vindas da aristocracia continuam. É nesse novo contexto que Tácito busca se posicionar como distinto dos que conspiram e daqueles que não têm méritos. Ou seja, busca apresentar ao novo governante o único setor da aristocracia em que ele poderia se apoiar: aquele que tinha por membros pessoas como Agrícola e... Tácito. Trata-se de uma aristocracia dividida e competindo agressivamente por espaço, esta em que Tácito se insere. Ela não é em nada parecida, a nosso ver, com aquela aristocracia uniicada e com características comuns que existiria como uma imagem literária, como representação da representação, em contraposição a outra unidade dada pela aristocracia republicana. Tácito estava buscando o seu espaço e sabia que os outros estavam fazendo o mesmo. A aristocracia não era assim tão unida e seguidora de bons preceitos como muitos quiseram acreditar. O inimigo, indica Tácito, não é apenas o tirano, mas “nós mesmos”. Lançar sombra sobre as fronteiras destes “nós mesmos” parece 77 ser parte da estratégia para continuar existindo. Estudar essas sombras, tarefa do historiador. A mesma divisão tripartite pode ser pensada para aqueles que escreveram a história depois de Augusto. Nas Histórias, Tácito airma “A adulação (adulatio) é desonroso crime de escravidão (servitus); a maldade é falsa espécie de liberdade (libertas)” (1, 1). Entre a falsa liberdade e a desonrosa adulação estariam os escritos que eram movidos apenas por justos propósitos, dentre os quais Tácito diz poder se incluir. Nos Anais, do mesmo modo, ele se distinguiria tanto daqueles que escreveram buscando recompensas quanto daqueles que visavam a atingir quem os houvesse prejudicado. Tácito não pertenceria a nenhum desses grupos extremos, mas a um terceiro tipo de historiador, que escreveria segundo a célebre fórmula “sine ira et studio” (1, 1). Em nenhuma das obras ele airma quem comporia os grupos dos que adulavam ou quem formava o grupo dos que buscavam exercer uma liberdade excessiva, tanto menos quem são os que se mantêm distantes dos erros do ódio e da adulação. Seu argumento é, tanto nos Anais quanto nas Histórias, que o principado de Trajano abria um novo tempo e esse novo tempo possibilitava uma nova atuação, que, se era inédita entre historiadores na visão de Tácito, não era em outras atividades políticas, como o exemplo de Agrícola mostraria5. Ainda que Trajano propiciasse um novo momento, “quando é permitido sentir o que se quer e dizer o que se sente” (ubi sentire quae velis et quae sentias dicere licet, Hist., 1, 1), não signiica que todos farão isso de imediato. Ainal, poucos sentem coisas boas – ou mesmo têm a capacidade de distinguir por si mesmo o que são coisas boas, como cremos que mostra bem o exemplo da imitação das virtudes de Galba e Vespasiano por parte da aristocracia. E se não sentem coisas boas ou não são mesmo capazes de percebê-las, como poderão dizê-las, ainda que o possam fazê-lo livremente nesse novo tempo. Não basta permitir que a aristocracia atue virtuosamente. É preciso esperar que ela aprenda a agir virtuosamente e queira agir desse modo. Se antes isso não era permitido, agora não é possível a todos. Mesmo com o novo tempo, muitos seguem dirigindo sua conduta pelo ódio aos tiranos (e àqueles que os apoiaram) 5 O exemplo de Agrícola não é único. No campo militar, destacamos o caso de Corbulão, especialmente quando de sua atuação na guerra com os Partas pelo controle da Armênia, sob Nero. Mencionamos um outro exemplo que é destacado por Tácito sob Tibério. Ele airma que M. Lépido encontrou: “entre a contumácia repentina e a horrível subserviência (inter abruptam contumaciam et deforme obsequium) um caminho isento de ambições e perigos” (Ann., 4, 20). Por im, mais um obituário que traz curioso elogio ao equilíbrio de um aristocrata é aquele de Petrônio (Ann., 16, 18-19). Tácito diz que ele vivia de forma desbragadamente viciosa. Reairmando a incapacidade da elite de seu tempo de distinguir os vícios das virtudes, Tácito diz que ele alcançou pela sua negligência a glória que outros alcançaram por seu esforço. (Ann., 16, 18, 1: utque alios industria, ita hunc ignavia ad famam protulerat). Apesar disso, chamado a exercer o governo da Bitínia e, depois, o consulado, exerceu essas atividades com toda responsabilidade. Mas a sua boa fama de má conduta já havia chegado a Nero, que o chamou para se integrar aos seus próximos como arbiter elegantiae. Então, Petrônio voltou aos vícios, ou, como Tácito sublinha, à imitação dos vícios. Para Tácito, já não era possível saber se Petrônio era um homem virtuoso que se fazia calculadamente vicioso (Ann., 16, 18: dein revolutus ad vitia seu vitiorum imitatione inter paucos familiarium Neroni adsumptus est, elegantiae arbiter). Como Tácito mostra com o exemplo de Agrícola, sob um tirano é arriscado demais mostrar-se valoroso. Petrônio talvez fosse mais um que tivesse compreendido a lição, ainda que tenha sido morto por ter sido visto como concorrente por Tigelino. Envolvido na conspiração pisoniana, foi obrigado ao suicídio em 65 d.C., um ano sangrento para a aristocracia, como o de 93 d.C., ano em que morreu o próprio Agrícola. 78 e outros tantos pelos compromissos da adulação bem presentes. Estes dois grupos de aristocratas não podem escrever histórias que mereçam ser ouvidas e preservadas para a posteridade. Estes não podem ter um comportamento digno que supere os limites temporais de uma vida sob os tiranos para uma glória eterna. Tácito encerra a sua biograia de Agrícola exatamente com esta promessa auspiciosa: “Agrícola, narrado e transmitido para a posteridade, será sobrevivente” (Agricola posteritati narratus et traditus superstes erit, Agric., 46) – assim como seu narrador, ou seja, o próprio Tácito, que sobrevive pelo ato de narrar. Um sobrevive pelos feitos, outro pela narrativa mesma dos feitos, ambos virtuosos, ambos vitoriosos na acirrada disputa pela glória aristocrática. Conclusão Uma das grandes diiculdades impostas para a leitura da obra de Tácito talvez resida nisto: a nosso ver, sua obra é claramente uma ação política inserida em uma disputa violenta por glória. Ora, para ele, toda ação política deveria ser marcada por certo grau de dissimulação para não ser aproveitada por conspiradores ou delatores, ou afrontar o príncipe. Sua obra, sendo uma ação política, traria então essa marca da dissimulação. Se essa é uma das possibilidades de entendimento das obras de Tácito, não devemos procurar que ele nos diga isso de forma explícita e direta. Caberá a quem ouve sua obra concluir e assumir a responsabilidade por tal juízo. E, nesse ponto, parecem ter razão os estudos mais recentes. Mas insistimos em nossa conclusão de que esse exercício de pensar a obra literária e suas características, especialmente os mecanismos retóricos através dos quais foi construída, deve vir a par com uma relexão sobre a história social e política que essa fonte permite conhecer. Referências ASH, R. Tacitus. London: Bristol Classical Press, 2006. BOISSIER, G. Tacite. Paris: Hachette, 1903. FLEISCHMAN, S. On the Representation of History and Fiction in the Middle Ages. History and Theory, v. 22, p. 278-310, 1983. GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga. Politeia: História e Sociedade, v. 3, n. 1, p. 41-62, 2003. HAYNES, H. The History of Make-Believe: Tacitus on Imperial Rome. Berkeley: University of California Press, 2003. 79 O’GORMAN, E. Irony and Misreading in the Annals of Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. SAILOR, D. Writing and Empire in Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. SCHELLHASE, K. C. Tacitus in Renaissance Political Thought. Chicago: The University of Chicago Press, 1976. SYME, R. The Roman revolution. Oxford: Oxford University Press, 1939. ______. Tacitus. Oxford: Oxford University Press, 1967. ______. Ten studies in Tacitus. Oxford: Clarendon Press, 1970. TACITE. Annales. Texto estabelecido e traduzido por Henri Goelzer. Paris: Les Belles Lettres, 1953. 3 v. ______. Histoires. Texto estabelecido e traduzido por Henri Goelzer. Paris: Les Belles Lettres, 1951. 2 v. ______. Vie d’Agricola. Texto estabelecido e traduzido por E. de Saint-Denis. Paris: Les Belles Lettres, 1948. WOODMAN, A. J. Rhetoric in Classical Historiography. Portland: Areopagitica Press, 1988. 80 Parte II Cultura escrita e linguagem visual 81 DIFUSÃO E RECEPÇÃO DAS OBRAS LITERÁRIAS EM ROMA Leni Ribeiro Leite ma pessoa lê. A imagem que fazemos deste ato é imediata – um indivíduo, sozinho, se debruça sobre o livro, revista ou jornal que segura entre as mãos, ou talvez apoiado sobre uma mesa. A leitura é o produto universalmente partilhado de uma educação escolar, sempre uma relação íntima entre o leitor solitário e o objeto de sua leitura. Uma prática cultural, portanto, mas idêntica para todos, ou quase todos. Um dos maiores perigos para quem trabalha com o objeto clássico – ou medieval, ou de qualquer maneira afastado temporal e espacialmente do pesquisador – é a naturalização das formas de se fazer qualquer coisa, em especial as mais corriqueiras. O campo dos estudos culturais, nos últimos quinze ou vinte anos, tem trabalhado no questionamento desses gestos e objetos que, porque cotidianos, icam muitas vezes apagados do horizonte de visão do pesquisador. Como se prepara a comida, o que se veste, o que se carrega nos bolsos – há bolsos? – são objeto de estudo de historiadores, sociólogos, antropólogos e mais outros tantos que procuram ler nas atividades cotidianas informações vitais para a reconstrução e interpretação das vidas humanas em suas diferentes faces, no presente e no passado. A leitura é também uma prática cultural que foi bastante revisitada nas duas últimas décadas. u Leitura – formas e representações A compreensão de que todo ato de leitura está circunscrito por protocolos de leitura que deinem a interpretação do texto, seu uso adequado, seu leitor ideal, a postura, a atitude de leitura, entre outros, leva a interrogações instigantes, que se espalham por diversos pontos de vista, adotados pelos diferentes estudiosos de acordo com seus métodos ou opções pessoais. Por um lado, podemos ler nos textos que os diversos tempos nos legaram as leituras a que eles se destinavam, ou que consideravam aptas a decifrar o que se oferecia. Assim, o texto que dialoga com o leitor deixa entrever quem é esse leitor, e como ele deve se portar – o “leitor benévolo” de Almeida Garrett, o “desocupado leitor” de Cervantes, o “leitor hipócrita” de Baudelaire –, se ele 82 deve ou não ler um certo texto, e como ele deve ser lido. Vejamos, para início de conversa, esse epigrama de Marcial, autor latino do século I d.C.1: Huc est usque tibi scriptus, matrona, libellus. cui sint scripta rogas interiora? mihi. gymnasium, thermae, stadium est hac parte: recede. exuimur: nudos parce uidere uiros. hinc iam deposito post uina rosasque pudore quid dicat nescit saucia Terpsichore [...] si bene te noui, longum iam lassa libellum ponebas, totum nunc studiosa leges. (Marcial, 3.68) Até aqui, foi escrito para ti, matrona, o livrinho. Para quem foram escritos os seguintes, tu perguntas? Para mim. O ginásio, as termas, a pista de corrida estão nessa parte: afasta-te. Nós nos despimos: poupa-te de ver homens nus. Adiante, já abandonado o pudor, após o vinho e as rosas, Uma tonta Terpsícore não sabe o que diz [...] Se bem te conheço, já cansada, deixavas de lado O livro comprido; agora o lerás inteiro com interesse. Nesse poema breve, Marcial nos fala da expectativa em relação à composição de seu público leitor, ao comportamento socialmente esperado desse mesmo público e do comportamento que ele imputa real. Tudo isso, claro, fazendo graça, como é comum a seu gênero escolhido, o epigrama. Marcial é um autor que nos apresenta muitos comentários sobre o leitor, o ato de escrever e o próprio livro. Mas não só a partir de Marcial tem sido um campo frutífero o estudo do público leitor a partir dos próprios textos. Por outro lado, a leitura é ato aprendido. Parte-se daí para interrogar como se dava o acesso ao material escrito – das aprendizagens escolares, ordenadas, às subversivas ou fora-da-lei. O que se lê e como se lê, quando há o permitido e o proibido, por exemplo. Nos estudos clássicos, o caso de Ovídio é um que gera bastante interesse. Tendo sua obra sido possivelmente proibida nas bibliotecas públicas romanas, o fato de que grande parte dela chegou a nós é digno de nota e, ao menos, mostra que na Roma Imperial as bibliotecas públicas não ditavam o acesso aos textos. Há ainda a relação entre o escrito e o não escrito; como o escrito é representado no não escrito, o papel que ele tem enquanto ícone nas relações culturais e sociais que se estabelecem à margem do texto. O material escrito foi usado como símbolo de status social com espantosa frequência. Da modernidade ao século I a.C., são ininterruptas as imagens do livro, ou do escrito, como forma de airmar que a pessoa retratada é culta, abastada, séria, ocupada, enim, uma série de atributos que vão marcados pela simples presença do livro na igura. 1 Todas as traduções de textos latinos aqui apresentadas, salvo quando há indicação contrária, são de minha autoria. 83 Por im, há as marcas do extratextual no textual. Esta é uma face da qual nós, proissionais das Letras, tendemos a esquecer, mas que é fundamental, porque é parte do que forma o texto. Com Maingueneau, falamos aqui em um espaço literário, composto por vários planos, em que não há texto, de um lado, e contexto, de outro. O que há é texto-contexto: o extraliterário é parte formativa do literário, que por sua vez também é constituinte do extraliterário. Os textos, em especial os literários, envoltos em uma aura que lhes é própria, foram e por vezes ainda são encarados como algo imaterial, que transcende o tangível. Quando o douto estudioso cita Vergílio, não lhe passa pela cabeça o papel, a editora, o tamanho da letra, a capa, a sobrecapa. Vergílio lhe parece tão maior que tudo isso. No entanto, a experiência da leitura só se dá pela materialidade, que é, muitas vezes, deinidora da experiência de fruição ou não da obra literária – e, defendemos, de sua própria realização enquanto obra, ou seja, de sua criação. É sobre esse aspecto que desejamos centrar nossa atenção neste trabalho, sobre essa vida dupla do escrito, a imaterial e a material, que se entrecruzam e inluenciam mutuamente o tempo todo, e a qual, cremos, é benéico manter sempre sob os olhos. A atenção daqueles que estudam os textos antigos deve estar ainda mais posta sobre esse tema, porque lidamos com textos sujeitos a muitas intervenções em uma longa história de transmissão, raramente sem tropeços ou incidentes. Do texto de Cícero que lemos hoje, quanto é, de fato, de Cícero, e quanto é, diríamos, ciceroniano, no mesmo sentido em que os textos de Pseudo-Plutarco são de Plutarco, ou em que os textos do corpus hipocraticum são de Hipócrates – porque chegaram a nós através de uma mesma tradição? Essa é uma função suprida pelas edições críticas: as variantes encontradas em manuscritos, as emendas propostas por comentadores a trechos certamente corruptos, enim, o manancial dos estudos que nos precederam e que enfrentaram essas mesmas questões sobre a materialidade do texto. São muitas as mudanças, como muitos textos do mesmo texto, a que chegaríamos ao aceitar ou negar as diversas propostas que temos em mãos em uma dessas edições. A área de Clássicas lida com textos em permanente modiicação mesmo em suas palavras, e com textos que atravessaram séculos e conheceram muitos suportes, foram submetidos a muitos gestos e muitos protocolos de leitura. Como disse Roger Chartier: Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro, os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua compreensão (CHARTIER, 1999, p. 77). 84 Para bem conhecermos as pluralidades desses textos, há que se fazer a viagem com eles, sob pena de perder camadas interpretativas e, talvez, com elas, parte da diversão que é o mergulho nessas obras do passado. As recitações Começaremos, então, perguntando o que e como se lia na Roma Antiga. Primeiramente é preciso perceber que a literatura romana, conforme airma Raymond Starr (1991, p. 338), pode ser melhor descrita como “auditiva”, e não “oral”. A literatura era então apreciada primeiramente através dos ouvidos, ao invés dos olhos. Ou seja, a literatura romana era feita para uma leitura que raramente dela fazemos hoje em dia: a auditiva. O impacto desse fato não só na apreciação do texto mas na sua própria composição é difícil de medir. Naquele contexto, as recitações eram a principal forma de divulgação e contato com os textos escritos, principalmente os literários – a leitura silenciosa era geralmente reservada a escritos em que o conteúdo era o essencial, e o estilo tinha pouca importância, tais como documentos legais ou de negócios. Catherine Salles (1992, passim) ressalta o papel preponderante que as recitações tinham na criação e circulação de textos em Roma, desde a república até o im do império. Conforme demonstra Allen Jr. (1972), o próprio vocabulário usado nos textos literários romanos aponta para um protocolo de leitura em que a palavra oral tem vantagem sobre a palavra escrita – o verbo cantare, cantar, é usado com o sentido de ler em autores tão diversos entre si como Ovídio, Cícero, Horácio, Vergílio e Marcial. Asínio Polião, dizem a lenda e Seneca o Retor, foi o criador da recitatio, prática de leitura pública e em voz alta de texto literário, que rapidamente entrou em voga na sociedade romana, exatamente quando a atuação do princeps reduzia o peso da palavra oral junto ao Senado. Durante os séculos I e II d.C., as recitações ocorriam sob quatro formas: recitações privadas, recitações públicas, concursos literários - em que o texto era julgado a partir de uma leitura em voz alta - e a recitação quando da própria composição do texto. A recitação pública era, nesse período, a principal forma de divulgação dos textos literários, e talvez de alguma forma equivalente à publicação modernamente entendida. Em geral, nesse tipo de recitação pública, a voz leitora é do próprio escritor que faz a publicação de seus textos. E destacar esse termo pede que deinamos o que era a publicação de um livro na Antiguidade, para que essa ação responsável pela circulação dos textos não se limite às implicações modernas que o termo oferece. Ainda Starr (1991) defende que a partir do momento em que o autor envia a cópia de seu trabalho inalizada para um amigo, sabe que efetivamente está fora de seu alcance controlar a multiplicação das cópias. Publicare, naquele momento, antes de tudo refere-se ao “tornar público”, seja por meio oral, seja por meio escrito. Evidentemente, a predileção pela recitação como 85 publicação protege o autor da circulação de seus textos sob outro nome, ou seja, protege seu direito de autor, e reairma seus vínculos sociais, já que os pertencentes a seu círculo social-literário sempre terão preferência em relação ao recebimento da obra. Evidentemente, a circulação de cópias não implica pagamentos por vendas feitas por livreiros ou reconhecimento garantido ao autor. Apresentamos, a título de ilustração, o epigrama 1.66 de Marcial relativo aos “direitos autorais” (no caso, somente reconhecimento, não pagamento) que, segundo ele, só eram garantidos ao poeta quando seu texto era famoso: Erras, meorum fur auare librorum, ieri poetam posse qui putas tanti, scriptura quanti constet et tomus uilis: non sex paratur aut decem sophos nummis. Secreta quaere carmina et rudes curas quas nouit unus scrinioque signatas custodit ipse uirginis pater chartae, quae trita duro non inhorruit mento: mutare dominum non potest liber notus. Sed pumicata fronte si quis est nondum nec umbilicis cultus atque membrana, mercare: tales habeo; nec sciet quisquam. Aliena quisquis recitat et petit famam, non emere librum, sed silentium debet. Estás enganado, ávido ladrão dos meus livros, que julgas tornar-te poeta só pelo preço que custa a escrita e um rolo barato: os vivas não se compram por seis ou dez sestércios. Procura poemas inéditos e obras inacabadas, que, ocultas no escrínio, só uma pessoa conhece: guarda-as o próprio pai do papiro virgem, que se não enrugou puído por um queixo áspero. Um livro conhecido não pode mudar de dono. Mas se há algum com o rosto ainda não polido de pedra-pomes, e não adornado de cilindros e de capa protetora, compra-o: desses tenho eu; e ninguém o saberá. Quem recita o que é dos outros e procura fama, Não deve comprar o livro, mas o silêncio. (tradução José Luís Brandão) Tanto Marcial, em várias passagens da sua obra, quanto Plínio (em especial Ep. 3.21) deixam claro que os poemas não circulavam oralmente, mas em livros. Plínio (Ep. 1.13) lembra que, se você quer ouvir poesia uma vez, várias oportunidades existem, mas, se quer gozar da mesma poesia uma segunda vez, deve lançar mão do texto escrito. A circulação dos textos literários de fato ocorria por meio de livros, não podemos negar, mas as recitações eram extremamente importantes por fazerem parte não só da publicação como também da própria produção do texto. Havia, entretanto, aqueles que se mostravam desfavoráveis à prática pública. Juvenal, em sua Sátira I, justiica que um dos motivos para escrever 86 sátira seria não ter que lidar com assuntos tão repetitivos quanto os das recitações; o próprio Plínio admite que certos assuntos são cansativos para a audiência (como recitações de agradecimento ao princeps) e que esta se entedia facilmente, e com razão, se o orador não for bom; ainda cita, como Marcial, a reciprocidade que a prática exige. Em Plínio, Ep. 1.13.6, lemos: Possum iam repetere secessum et scribere aliquid, quod non recitem, ne videar, quorum recitationibus adfui, non auditor fuisse sed creditor. Nam ut in ceteris rebus ita in audiendi oicio perit gratia si reposcatur. Vale. Agora posso buscar um retiro e escrever outras coisas que não desejo recitar, para que não pareça para aqueles em cujas recitações estive presente que eu não fui um ouvinte, e sim um credor. Pois, assim como em outras situações, também o papel de ouvinte deixa de ser um favor se uma retribuição é exigida. Marcial, no epigrama 1.63, faz dessa necessária reciprocidade motivo de gracejo: Vt recitem tibi nostra rogas epigrammata. Nolo: non audire, Celer, sed recitare cupis. Pedes que te recite meus epigramas. Nem pensar! Tu não querer ouvir, Céler, queres é recitar. (tradução José Luís Brandão) Entretanto, antes das recitações públicas, recitações de caráter privado ocorriam, que tinham como propósito o aperfeiçoamento da obra literária que posteriormente seria exibida para uma audiência maior. Reciprocamente, aqueles que pertenciam ao mesmo círculo social-literário eram convidados para ouvirem as obras não inalizadas uns dos outros, a im de que fossem tecidos comentários, feitas objeções e propostas correções ao texto. Algumas cartas de Plínio evidenciam essa prática social. Em sua Ep.5.12.1-2, por exemplo, Plínio enumera dois motivos principais, e pessoais, para o convite feito a seus amigos: vencer o nervosismo perante um público maior e ser advertido dos erros que poderia ter cometido: Recitaturus oratiunculam quam publicare cogito, advocavi aliquos ut vererer, paucos ut verum audirem. Nam mihi duplex ratio recitandi, una ut sollicitudine intendar, altera ut admonear, si quid forte me ut meum fallit. Tuli quod petebam: inveni qui mihi copiam consilii sui facerent, ipse praeterea quaedam emendanda adnotavi. Emendavi librum, quem misi tibi. Estando eu pronto para recitar um pequeno discurso, que estou pensando em publicar, chamei alguns amigos, para criar em mim algum medo, mas poucos, para que eu pudesse ouvir a verdade. Tenho, de fato, dois motivos para essas leituras: controlar minha inquietação e ser advertido sobre os erros 87 que cometo, Se por acaso cometer um erro por minha própria ignorância. Consegui o que procurava, encontrei amigos que me deram abundância de seus conselhos, e, além disso, eu mesmo percebi algumas coisas a corrigir. Corrigi o livro, que agora te envio. Mas a apreciação auditiva do texto ia além dessas recitações que eram, muitas vezes, obrigações sociais. A leitura com os ouvidos era comum também em momentos festivos, como banquetes, em que poemas eram recitados para o deleite dos convidados. Sobre esse aspecto, cabe informar que cada família abastada possuía seus próprios lectores, isto é, escravos ou libertos especializados em leitura em voz alta. Um exemplo retiramos da Ep 9.36.4 de Plínio que, embora não cite o lector diretamente, evidencia seu uso cotidiano: “Cenanti mihi, si cum uxore vel paucis, liber legitur; post cenam comoedia aut lyristes; mox cum meis ambulo, quorum in numero sunt eruditi”2. A especialização era um fator importante na atividade dos lectores, que iam além de diversão nos momentos de lazer, e davam suporte tanto à atividade literária quanto à pesquisa. Existiam ainda os notarii (“anotadores”), os librarii (“secretários”) e os a manu (“copistas”), mas que não faziam necessariamente o trabalho uns dos outros: de um notarius se poderia esperar, se necessário, que lesse em voz alta, mas de um lector somente se esperava a leitura, não a escrita. Assim, começamos a perceber que não é apenas um hábito estranho, esse das recitações, muitas vezes citado como um modismo, uma febre que invadiu Roma na época do Império. Ao contrário, ela parece mais profunda, uma forma diferente de se relacionar com o texto literário, que teve um lugar bem menor no mundo moderno – talvez as leituras para crianças, talvez as radionovelas guardassem algumas semelhanças – mas que quem sabe esteja em plena recuperação, numa era de podcasts e audiobooks. De qualquer forma, esse ambiente cultural do mundo antigo, que envolve mas não se esgota nas recitações, tornava indissociável a palavra escrita da palavra oral. Mas a palavra escrita tinha seu lugar, como já observamos brevemente – além dos lectores, outros suportes também eram responsáveis pela recepção da obra literária. Uma breve explicação de cunho prático explica também a utilização de tais suportes, pois o uso de lectores não signiicava mera ostentação. Segundo Raymond Starr (1991, p. 343): But lectores had another function, perhaps even more basic and much easier to overlook. They made it possible for their masters to enjoy literary texts without having to read a handcopied roll. [...] For aristocratic readers, lectores provided the ultimate experience of literary texts; a polished rendition in which the auditor could focus on the literary work and not on the work of reading. 2 Se estou almoçando sozinho com minha esposa ou com poucos amigos, um livro é lido; depois do almoço, comédia ou música; depois passeio com meus amigos, dos quais muitos são eruditos (tradução nossa). 88 Mas os lectores tinham outra função, talvez até mais básica e muito mais fácil de esquecer. Eles tornam possível a seus patrões gozar dos textos literários sem ter de ler um rolo copiado à mão. [...] Para os leitores aristocratas, os lectores forneciam a melhor experiência de textos literários; uma leitura bem-realizada durante a qual o ouvinte poderia focar na obra literária, e não no trabalho da leitura. (tradução nossa) Suportes materiais da escrita Como lembrou Starr na citação acima, o suporte principal do escrito no mundo antigo era um rolo, copiado a mão. Mas não era o único, e não era feito de um só material. Vamos conhecer rapidamente os principais suportes e os principais formatos do texto escrito com o qual o homem romano lidava em seu cotidiano. Esse afresco encontrado em Pompeia, e portanto pintado antes de 79 d.C., ilustra claramente as convenções do escrito em sua época. Lê-se da esquerda para a direita – uma convenção que nós mantemos, mas que não se pode negar que seja uma convenção3. Muitos são os povos que leem em outros sentidos – da direita para a esquerda, de cima para baixo. Os gregos, inicialmente, liam uma linha da esquerda para a direita, a seguinte da direita para a esquerda, e assim sucessivamente. No afresco, à esquerda temos uma representação das tábuas de madeira, o suporte usado no mundo antigo para a escrita corriqueira. As tabellae eram feitas de madeira, mais comumente, mas também de marim ou metal. A tábua era escavada no meio, que era então preenchido com cera misturada a um pigmento, para torná-la negra. Nesse material se escrevia com um stylus, que tinha uma extremidade aguda, para a escrita, e a outra arredondada, para aplainar a cera novamente, em caso de erro. A tábua de cera era, portanto, o material usado para os rascunhos. A seguir, no afresco, temos um tinteiro e um cálamo (atramentarium e calamus), que eram os instrumentos usados para escrita no papiro, que é a terceira igura do afresco. Ou seja, da cera apagável, passamos ao texto inalizado, que será escrito à tinta no papiro, material que não se presta bem à reescritura. As tábuas enceradas eram de diversos tamanhos – desde as pequeninas que cabiam em uma só mão, pugillares, às grandes, usadas para documentos oiciais. As tábuas podiam ser ainda unidas em grupos, com várias “folhas”, formando grupos de duas (duplices), quatro (quaternos), cinco ou mais folhas. Elas eram amarradas nos cantos com tiras de couro, e eram assim portáteis e práticas, sendo o material escolar do aluno. Não eram, porém, os materiais nobres de escrita. 3 Este singular exemplo e sua interpretação foram retirados de Oliva Neto (2011). 89 Além das tabuinhas, havia certamente outros materiais menos comuns, menos nobres ou para ins especíicos. Um que durante muito tempo foi conhecido por descrições, mas cujos exemplares haviam de todo perecido era o linho. Os libri lintei, longas tiras de linho, eram um suporte próprio para textos religiosos, ligados a certos grupos devotos. Em meados do século XIX foi encontrado o liber linteus zagrabiensis, envolvendo uma múmia e contendo o mais longo texto etrusco que possuímos. O próprio termo liber, de onde vem nossa palavra livro, era usado para designar um material de escrita mais humilde: a casca de árvore. Havia também a cerâmica, os ostraka e as tábuas de chumbo, entre outros. O material nobre para escrita no mundo antigo foi, inicialmente, o papiro. Feito a partir do talo da planta que nasce às margens do Nilo, Plínio o Velho nos descreve no livro XIII da História Natural o processo de fabricação das folhas de papiro. Abria-se o talo da planta, cortando-o em tiras muito inas e amplas que, umedecidas pelas próprias águas do rio, eram então amolecidas e organizadas sobre uma mesa inclinada. Punham-se as tiras lado a lado, horizontalmente. Depois punham-se outras sobre as primeiras, verticalmente. Esse tecido de tiras era então batido (a própria seiva da planta servia de cola), prensado e secado ao sol. Ligavam-se então as folhas pelas extremidades, formando um rolo, o volumen, que era então comercializado em todo o Mediterrâneo. O fato de que, para a produção desse material, era necessário manter as ibras úmidas o tempo todo justiica que o rolo de papiro só pudesse ser produzido junto ao local em que a planta crescia. E assim o Egito foi, na Antiguidade, o único produtor de folhas de papiro, detendo o monopólio de produção e distribuição de um produto cada vez mais cobiçado, porém frágil. A escassez de papiro foi um problema enfrentado pelos povos do Mediterrâneo várias vezes, em caso de guerras ou embargos comerciais. Por isso, a busca por outro material de escrita começou muito cedo. O papiro, além de caro, era frágil e quebradiço, além de pouco amigo da umidade, o que tornava os livros difíceis de serem transportados, em comparação com outros materiais, mais baratos, porém menos duradouros. A vantagem do papiro sobre os demais materiais, até aquele momento, era que, se bem conservado, protegido do clima, da umidade e do fogo, o papiro era mais fácil de ler, mais bonito e muito duradouro. A criação do pergaminho, o material que veio a substituir o papiro, foi um avanço tecnológico de grandes proporções, pois mantinha as vantagens do papiro, sem algumas de suas desvantagens. Em primeiro lugar, ele eliminava o problema do monopólio de produção – o pergaminho pode ser feito em qualquer lugar em que haja criação de animais, pois nada mais é do que pele de animal tratada de forma correta. Claro, o uso de pele de animais para a escrita já era milenar na época do Império Romano, mas a grande desvantagem desse método era a conservação, já que as peles se deterioravam rapidamente com o tempo. Além disso, o pergaminho é lavável, e podia portanto ser apagado e reutilizado, o que era muito difícil de ser feito com o papiro. O pergaminho, chamado membrana pergamenea ou simplesmente membrana em latim, podia ser de vários tipos, de acordo com o tipo de animal 90 utilizado e o processo ao qual era submetida a pele. Conforme o próprio nome em português indica, acreditava-se que a técnica de conservação da pele havia sido desenvolvida ou, ao menos, aperfeiçoada na cidade de Pérgamo, mas muitas outras cidades logo desenvolveram suas próprias técnicas, mais ou menos apreciadas, no decorrer da Antiguidade e do Medievo. De qualquer forma, o preparo do pergaminho foi sempre um processo longo e complexo, que envolvia deixar a pele de molho em água corrente, mergulhá-la em preparados de cal, retirar os restos de sangue, pelo e gordura, secar e raspar a pele, até que se icasse com um produto seco, ino, consistente e opaco. Esta pele, secada sempre estendida de forma a atingir o máximo de sua extensão, era ainda tratada com vernizes ou outros produtos, antes ou depois de receber a escrita com tinta. O pergaminho era então um material durável, lavável e principalmente maleável, o que signiicava que ele não se quebrava, como ocorria com o papiro, e podia assumir diversos formatos, o que o papiro não podia. O papiro era comercializado e utilizado no formato do rolo, o único que ele assumiu de forma consistente em seu uso corrente. O rolo de papiro, ou volumen, era uma tira de papiro, com trinta centímetros de altura e entre três e quinze metros4. Os tamanhos-padrão do rolo são a origem da divisão de obras em tomói, tomos. Cada tomo era o que cabia em um rolo-padrão. Antes de escrever, o escriba lixava a superfície com pedrapomes, para alisá-la e retirar imperfeições na ibra que pudessem atrapalhar o correr do cálamo. O texto era escrito no recto, a parte interna do rolo, em que as ibras estavam dispostas na horizontal, facilitando a escrita; não era, porém, raro que, com a escassez do material, se escrevesse também no verso. A fricção, porém, desgastava o verso do rolo com mais facilidade, apagando a escrita. O papiro era enrolado em torno de uma vara de madeira – o umbilicus – que podia ser feito também de material mais nobre, como o marim. As pontas do umbilicus, chamadas cornua, podiam ser ricamente decoradas. O livro era lido desenrolando-o da direita para a esquerda. Conforme ia-se lendo, o livro ia saindo da mão direita e passava a ser enrolado na mão esquerda. Chegando-se ao umbilicus, ou ao im do livro, era preciso reenrolá-lo na direção correta – era considerado falta de educação devolver um livro enrolado do lado errado. Cada coluna de texto, ou pagina, era o que se podia confortavelmente ler com o livro aberto, segurando-se cada parte do rolo com uma das mãos. Ainda como acabamentos, o livro era coberto com óleo de cedro, que preservava a escrita e dava ao papiro uma tonalidade amarela, e podia ser protegido por uma capa de couro ou tecido, chamada de toga. Um conjunto de rolos era guardado em um estojo de couro chamado capsa, que podia conter alguns poucos ou uma grande quantidade de rolos. Imagens escolares, em geral, ou ligadas a cortes de justiça, trazem igurações de capsae. O volumen foi, durante toda a Antiguidade e parte do Medievo, o formato preferencial do livro. Era geralmente de papiro, mas também há notícias de rolos de pergaminho. O rolo foi o formato nobre e privilegiado 4 Skeat (1982) menciona rolos de até vinte metros, mas como exceção. 91 por muitos séculos, e parece ter permanecido no imaginário ocidental como formato de livro, ou ao menos de documento importante, mesmo muito depois de seu uso já ter se tornado obsoleto. No entanto, ao mesmo tempo em que o avanço tecnológico do pergaminho dava largos passos, ele proporcionava uma outra mudança que seria decisiva para os diversos séculos vindouros. Ao oferecer ao escriba um material maleável, que se podia dobrar e costurar, os criadores do pergaminho proporcionaram aos escribas e aos leitores uma forma mais prática de carregar os seus livros: o códice. Jocelyn Penny-Small (1997) chama atenção para o fato de que o códice, enquanto formato, já existia muito antes, nas tabuinhas de muitas folhas, que já vimos antes. Há notícias de pequenos cadernos de folhas de papiro. O problema é que o papiro facilmente se fragmentava nas bordas e se quebrava na costura, deterioração indesejável em material de alto preço. Mas o pergaminho resolvia essas questões – e mais, pergaminho de boa qualidade pode ser escrito tanto no recto quanto no verso sem diiculdades para o escriba e sem perda de legibilidade. Surgia o objeto que hoje nós chamamos livro: folhas dobradas, costuradas juntas, envolvidas por uma capa, constituindo um volume portátil e durável. No século I a.C., a novidade já havia chegado a Roma. Mas o códice teria que enfrentar o prestígio do volumen, construído ao longo de séculos. Assim, a princípio, o códice ocupou o lugar das tabellae. O formato apropriado para o texto, seja uma carta ou uma obra literária, era o volumen, sendo o códice utilizado para ins mais humildes - Suetônio parece impressionado pelo fato de César enviar documentos importantes ao senado em formato de códice. No século I d.C., Marcial exalta as vantagens do códice sobre o rolo para obras literárias, mas no século IV d.C., Santo Agostinho ainda se sentia obrigado a pedir desculpas por enviar uma carta em formato de códice, na Epístola 171. A passagem do rolo ao códice está documentada de várias formas, escritas ou imagéticas. O chamado mosaico de Vergílio, em Hadrumetum, mostra um Vergílio segurando um rolo de papiro ou pergaminho, onde se lê Musa mihi causas memora, o início do oitavo verso do primeiro canto da Eneida. É interessante observar, porém, o modo como ele segura o rolo, extremamente antinatural para quem de fato estivesse lendo o rolo – Clio, de pé à esquerda está lendo o livro na posição normal. Iglesias Zoido (2010) comenta esse mosaico a partir de outras manifestações artísticas em que o livro aparece num momento de leitura interrompida, como aqui. Segundo pensa o autor, o artista que compôs esse mosaico vive já uma época em que o códice é o formato mais comum; talvez ele não tenha mais do que uma vaga ideia de como se lia o livro-rolo – a própria posição do livro é contrária à que, em geral, o livro era enrolado – mas, estivesse ele familiarizado ou não com o livro-rolo, ele certamente estaria com o livro-códice, e o próprio rolo na igura mais parece um códice, segurado pela spina, pousado no colo do leitor – uma postura de leitor comumente retratada na arte. 92 O cristianismo teve papel importante na difusão do códice como suporte de escrita. As razões para isso foram e são motivo de debate: o fato incontestável é que, nos primeiros séculos, quando o rolo era a escolha preferida para os textos pagãos, os textos cristãos já eram escritos em códice em grande número. Apesar das três décadas de idade, o texto de Roberts e Skeat (1983) ainda é bastante informativo acerca do assunto. Entre os muitos levantamentos numéricos que os autores izeram, destacamos os quadros a seguir: Literatura Grega Pagã, incluindo textos literários e cientíicos, excetuando-se exercícios escolares, folhas avulsas e tabelas Século Volumina Codices Total % volumina % codices I 252 1 253 100 0 I-II 203 4 207 98 2 II 857 14 871 98,5 1,5 II-III 349 17 366 95,5 4,5 III 406 93 499 81,5 18,5 III-IV 54 50 104 52 48 IV 36 99 135 26,5 73,5 IV-V 7 68 75 9,5 90,5 V 11 88 99 11 89 Literatura Cristã de origem grega Século Volumina Codices Total % volumina % codices II – V 14 158 172 8 92 Fonte: Roberts e Skeat (1983, p. 37-40) Por essas tabelas, podemos observar que o códice é praticamente inexistente como suporte para a literatura grega até o ano 200, e só começa realmente a competir com o rolo a partir de 250 ou 300. Um levantamento semelhante feito em relação à literatura cristã de origem grega revelou 172 itens até o ano 400; destes, 158 eram códices e apenas 14 eram rolos. Mais interessante ainda é notar que onze desses manuscritos foram datados do século II, e são portanto os textos cristãos mais antigos a chegarem a nossos dias – todos são escritos em papiro, todos são códices. As razões para tamanha preferência das comunidades cristãs em relação ao códice foram explicadas de diversas maneiras, dentre as quais as mais práticas – a) respondendo ao apelo da evangelização, os cristãos teriam encontrado no códice um formato mais durável e mais fácil de carregar, propício para viagens; b) o códice é econômico, porque escrito de ambos os lados; c) 93 o códice é compacto, podendo reunir muito mais conteúdo, por exemplo, os quatro evangelhos, em um só objeto; d) o códice é mais fácil de referenciar e usar, pois permite que uma das mãos ique livre para fazer anotações, e permite que se abra em uma página sem o estorvo de desenrolar o resto; entre outras. Há no entanto quem defenda que tais razões seriam tão propícias para os cristãos quanto para os pagãos e seriam a razão pela qual o códice foi, no inal das contas, o formato vitorioso, mas não explicariam a razão por que os cristãos, em especial, teriam adotado o formato antes, mesmo em folhas de papiro5. O fato é que o códice, como vimos na tabela, suplanta o rolo a partir do século V, e se torna o suporte preferido do escrito durante todo o medievo. Mesmo com o advento da imprensa – é interessante observar – os formatos se mantiveram. Quanto a isso, Roger Chartier é bastante contundente em uma opinião contrária à que se costuma ouvir: A transformação [do manuscrito para a impressão mecânica] não é tão absoluta como se diz: um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro pós-Gutenberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais – as do códex. Tanto um como outro são objetos compostos de folhas dobradas um certo número de vezes, o que determina o formato do livro e a sucessão dos cadernos. Estes cadernos são montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernação. A distribuição do texto na superfície da página, os instrumentos que lhe permitem as identiicações (paginação, numerações), os índices e sumários: tudo isto existe desde a época do manuscrito. Isso é herdado por Gutenberg e, depois dele, pelo livro moderno. [...] Há, portanto, uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso, embora durante muito tempo se tenha acreditado numa ruptura total entre uma e outra. Com Gutenberg, a prensa, os tipógrafos, a oicina, todo um mundo antigo teria desaparecido bruscamente. [...] O ponto fundamental, aqui, é a forte continuidade entre a arte do texto manuscrito, a caligraia, e o caractere impresso (CHARTIER,1998, p. 7-10). Para Chartier, a verdadeira mudança ocorreu quando houve a mudança de suporte, a mudança de gestos, de protocolos. Esses elementos, muitas vezes invisíveis, quase transparentes, considerados pouco dignos de nota, marcam a relação de uma sociedade com a literatura. São elementos variados que, porque parte do contexto literário, perpassam o texto literário. Como exemplo, pensemos a diferença entre a leitura em voz alta e a leitura silenciosa. Leitura: modo de usar No mundo romano, a palavra oral desempenha um papel de extrema relevância e na vida cotidiana dos cidadãos. Por isso, o ensino do bom uso 5 Para uma discussão das questões religiosas e sociais que envolvem os suportes da literatura cristã nos primeiros séculos de nossa era, remeto a Roberts e Skeat (1983, passim). 94 da palavra, de modo a orientar temática e estilisticamente o discurso para suscitar efeitos pré-determinados numa audiência, é um valor essencial da cultura romana. Tal valor liga-se intimamente à superposição da esfera pública em relação à vida privada e estabelece uma característica de grande importância para o funcionamento da literatura no mundo romano: a mediação de uma voz leitora apta a transformar a recepção de um texto literário numa experiência coletiva, análoga àquela por que passariam os contempladores de um monumento público ou os espectadores de uma peça teatral. A palavra oral, portanto, era central no contexto das obras literárias romanas, e leitura estava destarte ligada a termos como audição, cantar, recitar. Não só na sociedade romana a leitura está presa a campos semânticos muito diversos do que a ela ligaríamos hoje. Chartier, que se debruça com frequência sobre as práticas letradas do século XVII, comenta as leituras familiares, como as das famílias protestantes, em que o pastor, ou por vezes o pai de família, é a voz do livro, como um exemplo mais recente de preponderância do oral sobre o escrito como forma de leitura. Entre outras instigantes possibilidades abertas por esses conhecimentos, está a leitura mais signiicativa da própria poesia romana – abre-se um leque de signiicados que, de outra forma, nos escapariam. Como um brevíssimo exemplo, cito a abertura da primeira sátira de Juvenal: Semper ego auditor tantum? numquamne reponam uexatus totiens rauci Theseide Cordi? inpune ergo mihi recitauerit ille togatas, hic elegos? inpune diem consumpserit ingens Telephus aut summi plena iam margine libri scriptus et in tergo necdum initus Orestes? Sempre apenas ouvir? Nunca responderei, eu, tão farto da Teseida do rouco Cordo? então lerá pra mim, impune, este as togadas, outro elegias? E um dia esvairá, ingente, um Télefo, ou, já frente e verso do rolo escritos, e ainda assim não indo, um Orestes? 5 5 A propósito ainda desse poema, o frente e verso do rolo escritos é mais uma interlocução texto-contexto. Sabemos agora que o normal era que se escrevesse apenas na frente do rolo – escrever frente e verso é um exagero da quantidade, um desmedimento do autor do Orestes. Darei, a título de exemplo, à guisa de conclusão, alguns outros poemas da literatura latina que, lidos à luz dos conhecimentos sobre as formas da leitura, apresentam nuances e detalhes que, de outro modo, poderiam ser legados ao esquecimento ou à uma indesejada naturalização de formas nossas contemporâneas. O poema de abertura dos Tristia de Ovídio é um diálogo com o livro que, em lugar de seu escritor e como seu mensageiro, viajará à cidade de Roma. 95 Parue – nec inuideo – sine me, liber, ibis in Vrbem: Ei mihi! quod domino non licet ire tuo. Vade, sed incultus, qualem decet exulis esse. Infelix, habitum temporis huius habe! Nec te purpureo uelent uaccinia fuco – 5 Non est conueniens luctibus ille color – Nec titulus minio nec cedro charta notetur, Candida nec nigra cornua fronte geras! Felices ornent haec instrumenta libellos: Fortunae memorem te decet esse meae. 10 Nec fragili geminae poliantur pumice frontes, Hirsutus sparsis ut uideare comis. Ó meu pequeno livro – e não invejo – irás a Roma sem mim: Aonde, ai de mim!, a teu senhor não é permitido ir. Vai, mas sem ornatos como convém ser o de um exilado. Infeliz, exibe o aspecto desta presente situação. Nem as violetas roxas te cubram de púrpura – Não combina com lutos tal cor – Nem o título de vermelho seja adornado nem de cedro, o papel, Nem leves cornos brancos com uma fronte negra! Que esses ornatos embelezem livros alegres: A ti, convém a lembrança da minha sorte. Nem as duas frontes sejam polidas pela frágil pedra-pomes, Para que te vejam hirsuto, de cabelos desalinhados. (trad. Patrícia Prata) As referências ao luxo de certos volumes – pintados de púrpura, com cornua ornamentados – são de difícil compreensão a quem desconheça o formato do livro em Roma. Mas, mais do que isso, a compreensão da habilidade poética do autor comprometeria, como na imagem de um livro hirsuto, ou seja, coberto de pelos, comparável ao homem que não se barbeia por conta de luto ou de grande dor, pela falta de pedra-pomes. Marcial, como vimos antes, é autor que privilegia o fazer poético e a escrita como temas em sua obra. Selecionamos dois outros epigramas que tematizam o escrito e que dependem de conhecimento da materialidade do livro para que sua compreensão seja mais completa. Explicitum nobis usque ad sua cornua librum Et quase perlectum, Septiciane, refers. Omnia legisti, credo, scio, gaudeo verum est. Perlegi libros sic ego quinque tuos. (Marcial, 11.107) Desenrolado até os cilindros e como se tivesse sido todo lido, Assim devolves meu livro, Seticiano. Tu leste tudo; creio, sei, alegro-me, é verdade. Assim eu mesmo li teus cinco livros. Cicero in membranis Si comes ista tibi fuerit membrana, putato Carpere te longas cum Cicerone vias. (Marcial, 14,188) 96 Cícero em pergaminho Se este pergaminho for teu companheiro, acredita Que tu trilharás longos caminhos com Cícero É de rupturas e continuidades que se faz a leitura e estudos dos Clássicos, que são também um exercício de pensar tudo em perspectiva; inclusive os dias atuais. Em muito poucos momentos da história como atualmente a questão dos formatos do livro nos preocupou tanto. A sociedade ocidental conviveu durante séculos com um formato que superou múltiplas mudanças e adaptações. O códice passou de um objeto artesanal e manuscrito ao que sai das prensas de uma máquina. No entanto, no im da primeira década do século XXI, assistimos ao que se anuncia como o embate deinitivo que vai acabar com o formato do livro tal como o conhecemos até o presente momento. Todavia, a perspectiva que proporciona a longa história do livro e de seus formatos nos permite ver que não é a primeira vez que esse fenômeno ocorre e que, inclusive, em outros momentos, as mudanças foram de maior monta. Ao longo da história desse produto cultural, estabeleceu-se um constante diálogo entre dois formatos básicos do livro: um, baseado no contínuo; outro, no retângulo. Todos os modelos de livro que se têm sucedido ao longo dos séculos pertenceram, de uma ou de outra maneira, a um desses dois tipos. No contínuo, ou circular, como o chama Iglesias Zoido, se incluem o livro de linho, o rolo de papiro e o modo como hoje se lê uma página de internet, que vamos rolando indeinidamente para baixo. No molde retangular, temos as tabuinhas de argila, marim, metal, madeira; o códice, de papiro primeiro, depois de pergaminho, de papel; e agora de vidro ou polímero, ou mesmo o intangível suporte virtual. Em todos os casos, encontramo-nos diante dos mesmos modelos, porque, a rigor, sempre fazemos transições, adaptações aos nossos modos de fazer e ser. Assim, do manuscrito ao impresso. Assim nossos editores de texto nos proporcionam folhas, margens, linhas, que imitam as páginas impressas e nossos cadernos. Sem dúvida hoje podemos ter uma grande biblioteca em nossa bolsa, na memória do netbook ou do tablet – irônico como mesmo no vocabulário mantemos os termos – mas as transformações, que há, são luidas, acomodáveis, lentas. Segundo Iglesias Zoido, o im do livro como o conhecemos hoje, como quer que ocorra, da forma que for, será por imitações e acomodações dos protocolos que hoje temos e que nos fazem o que somos, porque não podemos deles nos livrar em menos do que algumas, muitas, gerações. Referências ALLEN JR., Walter. Ovid’s cantare and Cicero’s cantores Euphorionis. TAPA, Baltimore, v. 103, p. 1-14, 1972. 97 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. 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Se nos debruçarmos sobre o texto em pauta como sobre o de outros autores coetâneos, deparamo-nos com termos que qualiicam aquilo que no mundo antigo se chamou phúsis e natura, ars e tékhne2, de longa história e interesse para qualquer estudioso, entre outras “disciplinas”, da antiga retórica (tékhne rhetoriké para os gregos, ars rhetorica para os latinos, rhetorice para Quintiliano, que parece prender-se às raízes gregas das artes de que trata ao longo da Institutio). No caso, então, interessa-nos saber com que conceito de ‘natureza’ (referida, evidentemente, de modo especial ao homem) se opera na obra ou, falando no plural, com quais conceitos de ‘natureza’ (havendo, como veremos, mais de um aí implicado), tendo em vista a apresentação do antigo orador como um uir bonus dicendi peritus (Instit. orat. 12.1.1), clássica e 1 Agradecemos ao colega Paulo S. Vasconcellos (DL/IEL/Unicamp) a leitura crítica e amistosa da primeira (mas também de recente) versão deste texto, apresentado inicialmente como conferência de abertura (com o título “Natureza e artifício em Quintiliano”; cf. Pereira, 2010, p. 8 e 15) do XXI Seminário de Estudos Clássicos (“Representações e apropriações da natureza na Antiguidade”), havido de 05 a 07/10/2010 no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (Niterói, RJ). Também nos beneiciamos, recentemente, da leitura igualmente crítica e amistosa da colega Isabella T. Cardoso (DL/IEL/Unicamp). Seguidas ou não as sugestões de ambos, os equívocos restantes são nossos. 2 Não tratamos aqui, por constituir tema que nos pareceu secundário para os propósitos do ensaio, do importante, mas complexo, conceito de cultura, obviamente vinculado à discussão em pauta e apenas sinalizado, pelo que remetemos, por exemplo, à obra de Paiva e Moreira (1996), onde, entre muitas outras, ele é tratado de modo mais especíico por autores de diferentes áreas do conhecimento. 100 deinição catoniana, retomada por Quintiliano, de repercussão importante na posteridade. No entanto, não toquemos de imediato nesses conceitos, mas façamos um exercício um tanto anacrônico, envolvido numa consideração de diferentes momentos históricos, para tentarmos chegar ao ponto que nos interessa aqui, principiando por falar de um autor bastante conhecido, ou do qual ao menos muito se fala, que viveu em época muito posterior a Quintiliano, mas com o qual, como pensamos, se pode estabelecer certo diálogo no mínimo curioso. Talvez esse exercício anacrônico tenha algo relevante a nos dizer sobre o mundo antigo, o autor da Institutio e diferentes visões que se pode ter tanto da consideração do que chamamos, nós e os antigos, de ‘natureza’, quanto sobre as formas como nós, homens do momento presente, tendemos a considerar o passado. Comecemos, então, pelo mundo moderno. ••• “O criado pelo espírito é mais vivo que a matéria”.3 No capítulo XI de O pintor da vida moderna, texto no qual basicamente tece considerações sobre a obra de Constantin Guys, contemporâneo seu, Baudelaire nos apresenta uma visão do mundo natural e da arte que, poderíamos dizer, constitui uma espécie de refutação da concepção rousseauniana da natureza, bem como da tese aristotélica de que a arte é produto de sua imitação. Assim é que Baudelaire inicia o referido capítulo, intitulado “Elogio da maquiagem”, airmando que todo erro relativo à concepção do belo provém, em sua maior parte, da ideia (falsa, segundo ele) que o século XVIII fez da natureza como fonte de todo o bem e de toda a beleza – o que aparece exempliicado na ilosoia de Rousseau, que atribui à civilização (que tem por base, por assim dizer, uma renúncia feita pelo homem ao mundo natural, onde reinaria a paz, a felicidade etc.) a responsabilidade pela origem do mal. Tal concepção, reiterada depois, implicaria, ademais, segundo Baudelaire, a negação do pecado original, que teria feito o homem esquecer-se de que o mundo (natural) em que está inserido constitui um degredo, o lugar para onde foi destinado após a queda de Adão e onde sofre toda espécie de tormentos... Para Baudelaire, a natureza é, pois, algo “negativo”, fonte de padecimento. Ela “constrange” o homem a agir, a satisfazer necessidades próprias do animal, instigando-o mesmo ao crime. Se há uma ideia de bem, ou um desejo de praticar boas ações, não é da natureza que eles provêm, mas da ilosoia e da religião – fenômenos culturais e, portanto, não naturais, produtos do que Baudelaire chama “artifício”. “O crime”, airma ele, “é originariamente natural. A virtude, pelo contrário, é artiicial, sobrenatural”. Por isso, “tudo quanto é belo e nobre” só pode resultar do artifício, só pode ser produto “da 3 Baudelaire, citado por Sartre (1984, p. 29). Não havendo outra indicação em notas ou na bibliograia ao inal deste, as traduções das citações de trechos de obras escritas em outros idiomas são nossas. 101 razão e do cálculo”, faculdades que afastam a natureza humana da animal: “o bem é sempre produto duma arte”4. O belo e o bom, assim, ao contrário do que airmavam ilósofos que o precederam, nos séculos XVII e XVIII, não são, para o poeta, próprios da natureza, mas produtos do artifício, que enobrece o homem e cujo gosto, como o manifestado pelo “selvagem” e pela criança na admiração do adorno (“plumagens variegadas” e “tecidos multicores”, por exemplo), sinal da “nobreza primitiva” do homem, prova a existência, nele, de algo imaterial: sua alma. Baudelaire, portanto, vê mesmo o selvagem não como um despojado, mas como um soisticado, também dotado de um senso da beleza, isto é, do artifício... O homem, assim, aspiraria a algo mais que o natural, que o torna “grosseiro, terrestre e imundo”: em seu gosto pelo artifício, projeção de sua espiritualidade, ele revela um anseio pelo ideal, e este o leva a modiicar o mundo natural, “deformando-o” ou “reformando-o”. É o que se veriica na moda e, de modo especial, no caso da mulher, por exemplo, no gosto pela maquiagem. A mulher, airma Baudelaire, que “está no seu direito, e cumpre até uma espécie de dever, esforçando-se por parecer mágica e sobrenatural [...] deve [...] pedir a todas as artes o meio de se elevar acima da natureza para melhor subjugar os corações e impressionar os espíritos”5. Justiica-se, então, o uso da maquiagem. Do apelo a esse artifício (como também no uso do maillot, por exemplo), que corrigiria, mesmo, imperfeições da natureza, resulta que a mulher chega a aproximar-se da estátua, “dum ser divino e superior”. A maquiagem não deve, portanto, ser usada com o im ordinário que propõem muitos: “rivalizar com a juventude” ou, ainda pior, “imitar a bela natureza”. Não é esse o im do artifício. “Quem ousaria”, questiona o autor, como que refutando a tese tradicional sobre o fazer artístico, que remonta a Platão e Aristóteles, “atribuir à arte a estéril função de imitar a natureza?” Não foi assim, segundo Baudelaire, que procederam “todos os bons e verdadeiros desenhadores”, os quais “desenham segundo a imagem escrita no seu cérebro, e não do natural.”6 A “tese” de Baudelaire, pois, constitui como que uma reavaliação do fenômeno artístico, buscando desvinculá-lo de uma “relação submissa” que tradicionalmente mantivera com o real, pregada pelo princípio aristotélico da mímese e como que “reforçada” pela ilosoia iluminista, que, na valorização da racionalidade e em contraponto a um idealismo quase místico, exorcizara do mundo natural as forças celestes e demoníacas que a humanidade nele enxergava, reduzindo-o a um complexo de leis e princípios plenamente explicáveis pela razão, quando não de ação “mecânica”, por assim dizer, e, no caso de Rousseau, elegera aquele mesmo mundo natural como o domínio do belo, do nobre e do bom. Embora suas considerações se apliquem explicitamente à pintura, podese estendê-las às artes em geral – destacadamente, à literatura. Referindo-as ao fenômeno literário, pode-se ver nelas traços do próprio projeto estético de Baudelaire. Com a sua poesia, de fato, inicia-se um processo irreversível de 4 Cf. BAUDELAIRE, 1941. 5 Id., ibid. 6 Id., ibid. 102 desarticulação entre literatura e realidade (ou entre o fenômeno artístico, que constitui uma representação “deformadora” do real, e esse real), e isso podemos vislumbrar em seu ensaio. Nessa desarticulação, a literatura tem a primazia, e passa a constituir um mundo “à parte”, “independente” do real (ou natural), somente possível pela existência do homem, que, com sua faculdade espiritual, erige dimensões e cria realidades que chegam, no dizer de Baudelaire, a ser mais vivas que o mundo material onde habita o ser que as produziu. Parece, então, que a natureza e o mundo natural têm, para o autor francês, uma conotação capaz de provocar horror, ao passo que toda e qualquer coisa que cair sob a rubrica do artifício, artiicial ou artiicioso, especialmente se de algum modo relacionado ao produto de uma arte, ganha nele aspecto altamente positivo, tanto mais quanto maior for a distância que o separa do mundo natural. Em que pese, assim, certo amor pelo mundo dito natural, pela natureza, que vemos em épocas como a nossa, com sua (até certo ponto justiicável, evidentemente) preocupação ecológica (mas também “esotérica”), há no mundo moderno, para não dizer que mesmo no contemporâneo, certo pânico associado à ideia de vivermos longe de nossas cidades e das facilidades que elas encerram, supostamente distanciadas como estão de certa visão da natureza, onde imperariam certos elementos, ademais, especialmente e por deinição mais “selvagens” e mais ameaçadores que a vida citadina... ••• Ora, o termo ‘natureza’ recobre, como se verá, diversos sentidos, hoje como ontem. No que diz respeito à linguagem, tema de nosso interesse maior nesse contexto (mas fundamento, ainal, de tudo que se possa dizer do mundo dito “natural”, a crer em ilósofos como Protágoras, para quem “o homem é a medida de todas as coisas”), há três “objetos” aí relacionáveis, segundo autora que seguiremos doravante7: o cosmos, o homem e a linguagem (como “projeção” humana). O homem é o ser que não apenas se julga fruto da obra (ou “criação”) divina (i.e. da Natureza, personiicada pelos antigos, deusa geradora do que existe, como prova a etimologia do termo8), mas pode aperfeiçoar a mesma natureza a partir do uso que faz da (sua faculdade de) linguagem – dom que o separa dos demais seres. É assim, de fato, que ela aparece em Quintiliano, que lembra, no segundo dos doze livros que compõem sua Institutio, ao deinir a disciplina de que trata, mas falando de algo que nos interessa aqui diretamente, semelhanças e diferenças entre homens e animais: A verdade é que questões desse tipo [i.e. deinir a disciplina em pauta] talvez devam ser deixadas entre aqueles que atrelaram a meta da retórica ao poder de persuadir. Se a retórica é, no entanto, a ciência do dizer bem, deinição que nós adotamos, de modo que o orador seja antes de tudo um homem de bem, deve-se admitir, com toda a certeza, que ela é útil. 7 Cf. UHLFELDER (1966). 8 Relacionada a nascor (‘nascer’). 103 [...] aquele deus primeiro, pai das coisas e criador do mundo [...] distinguiu os homens dos outros animais [...] pelo dom da fala[.] Pois vemos aqueles seres não dotados de palavra levar vantagem isicamente por conta da robustez, da força, da solidez, da resistência, da rapidez, pouco necessitando de auxílio vindo de fora. Pela própria natureza, sem qualquer professor, eles sabem caminhar mais rápido, alimentar-se, nadar. E em sua maioria eles tiram a proteção contra o frio de seu próprio corpo, possuem armas inatas e retiram o alimento do que ordinariamente se lhes oferece: tudo coisas em torno das quais os homens despendem muito trabalho.9 Passando, então, a tratar daquilo que se poderia e costuma(va) justamente apontar como faculdade inerente ao homem – sua razão –, o autor nos informa que sequer é ela que nos distingue bem dos demais seres, mas a linguagem e, sobretudo, seu cultivo em situação bem especíica: É a razão, portanto, nosso dom superior, concedido por aquele que desejou nos associar aos deuses imortais. Mas a razão por si mesma não nos poderia valer tanto nem se manifestar tanto em nós se não pudéssemos também expressar na fala aquilo que teríamos concebido no espírito; e é isto, pelo que vemos, que falta nos outros animais, mais do que inteligência e certa relexão. Pois forrar tocas, tecer ninhos, criar os ilhotes e emancipá-los, até mesmo guardar comida para o inverno e realizar certas atividades impossíveis de serem reproduzidas por nós, como a [fabricação] da cera e do mel, nisto provavelmente existe algo de razão. Mas por lhes faltar a fala, os animais que realizam estas coisas são chamados de mudos e irracionais. E por im, para os homens a quem foi negada a palavra, de quão pouco pode servir aquele sopro celestial? Então, se não há nada que os deuses possam ter-nos dado de melhor que o discurso, o que podemos tomar como mais digno de cultivo e dedicação, ou em que mais podemos desejar ser superiores aos homens do que naquilo que torna os próprios homens superiores a todos os outros animais? Além do que, de fato, em que outro setor um trabalho pode ser mais amplamente recompensado? Isto icará ainda mais evidente se avaliarmos desde suas origens a que grau as possibilidades oratórias já chegaram, podendo progredir ainda mais. E para não mencionar o quão útil seja para um homem de bem defender os amigos, reger o senado com suas deliberações, conduzir o povo e o exército para onde se queira, não é em si mesmo maravilhoso alcançar com um entendimento comum a todos e com palavras usadas por todo mundo tanto louvor 9 Cf. QUINTILIANO, Instit. orat. 2.16.11-14: Verum haec apud eos forsitan quaerantur qui summam rhetorices ad persuadendi uim rettulerunt. Si uero est bene dicendi scientia, quem nos inem sequimur, ut sit orator in primis uir bonus, utilem certe esse eam conitendum est. Et hercule deus ille princeps, parens rerum fabricatorque mundi, nullo magis hominem separauit a ceteris, quae quidem mortalia essent, animalibus quam dicendi facultate. Nam corpora quidem magnitudine uiribus irmitate patientia uelocitate praestantiora in illis mutis uidemus, eadem minus egere adquisitas extrinsecus opis; nam et ingredi citius et pasci et tranare aquas citra docentem natura ipsa sciunt, et pleraque contra frigus ex suo corpore uestiuntur et arma iis ingenita quaedam et ex obuio fere uictus, circa quae omnia multus hominibus labor est (apud VASCONCELOS, 2005, p. 132 e 173. Trad. da autora, grifos nossos). 104 e glória que se parecerá não estar falando, mas sim, como se disse de Péricles, emitindo lampejos e trovões?10 Parece-nos evidente, nos trechos acima, que nos distanciamos das demais criaturas, devidamente inseridas, por sua vez, naquilo que chamaríamos de mundo natural, não bem por certa capacidade de conceber algo, supostamente exclusiva do homem, mas pela linguagem11, faculdade mediante a qual somos capazes de expressar, talvez não bem nosso pensamento (já se disse que ela serve mais para ocultá-lo12), mas certa racionalidade a nós inerente. Especialmente, no caso em pauta, se essa linguagem recebe certa roupagem que a torna mesmo distante daquela empregada no dia a dia, roupagem conferida, justamente, por certo ornamento com que a revestimos, tornando palatáveis ou aceitáveis, a nossos semelhantes, nossas ideias e intenções. Estaríamos, então, sobrevalorizando aí o artifício? Estariam Quintiliano e Baudelaire de acordo, por extensão, no que diz respeito a certo horror ao mundo natural? Que diferenças, ainal, podemos apontar entre tais considerações do mundo antigo e do mundo moderno no que diz respeito à relação entre arte e natureza? ••• Se considerarmos, de modo geral, os textos antigos que tratam da linguagem e nos quais se fala da natureza de algum modo, somos lembrados, por exemplo, de que os estoicos, que parecem ter impregnado mais a mente romana do que outros ilósofos (foram eles, ao menos, que tanto inluenciaram nosso autor), identiicaram-na com uma divindade que, associada ao “cosmos, dirige toda ação vital por trás da cena. Sua inluência é constantemente sentida, mesmo quando sua voz não é ouvida”13. Sem esquecer o preceito senequiano — exposto em várias obras do ilósofo, que viveu na mesma época de nosso 10 Cf. QUINTILIANO, Instit. orat., 2.16.14-19: Rationem igitur nobis praecipuam dedit eiusque nos socios esse cum dis inmortalibus uoluit. Sed ipsa ratio neque tam nos iuuaret neque tam esset in nobis manifesta nisi quae concepissemus mente promere etiam loquendo possemus; quod magis deesse ceteris animalibus quam intellectum et cogitationem quandam uidemus. Nam et mollire cubilia et nidos texere et educare fetus et excludere, quin etiam reponere in hiemem alimenta, opera quaedam nobis inimitabilia, qualia sunt cerarum ac mellis, eicere nonnullis fortasse rationis est; sed, quia carent sermone quae id faciunt, muta atque inrationalia uocantur. Denique homines quibus negata uox est quantulum adiuuat animus ille caelestis? Quare si nihil a dis oratione melius accepimus, quid tam dignum cultu ac labore ducamus aut in quo malimus praestare hominibus quam quo ipsi homines ceteris animalibus praestant: eo quidem magis quod nulla in parte plenius labor gratiam refert? Id adeo manifestum erit si cogitauerimus unde et quo usque iam prouecta sit orandi facultas; et adhuc augeri potest. Nam ut omittam defendere amicos, regere consiliis senatum, populum exercitum in quae uelit ducere, quam sit utile conueniatque bono uiro: nonne pulchrum uel hoc ipsum est ex communi intellectu uerbisque quibus utuntur omnes tantum adsequi laudis et gloriae ut non loqui et orare, sed, quod Pericli contigit, fulgere ac tonare uidearis? (apud VASCONCELOS, 2005, p. 132s e 173s, trad. da autora.) 11 Cf. CÍCERO, De or. 1.6.32: Hoc enim uno praestamus uel maxime feris, quod conloquimur inter nos et quod exprimere dicendo sensa possumus. Quintiliano retoma, em sua exposição, aqui e alhures, como se vê e lembra Vasconcelos (2005), muito do pensamento de Cícero sobre o tema em questão. 12 “La parole a été donnée à l’homme pour cacher sa pensée” (diria Malagrida ou, antes, Talleyrand em epígrafe de capítulo daquela que é talvez a mais conhecida obra de Stendhal [2001, p. 149]). 13 Cf. UHLFELDER, loc. cit. p. 583. 105 autor14, segundo o qual é preciso viver de conformidade com a (nossa/própria) natureza, seguindo-a (secundum naturam uiuere; naturam sequi) —, como se trata aqui de certos tipos de texto em especial, poderíamos também lembrar Prisciano, que em geral se aponta como responsável, desde o século VI, pela forma que entre nós assumiu a gramática (dita tradicional), outra disciplina provinda do mundo antigo que tinha a linguagem como objeto. Como airma o gramático cesareense, em certa passagem, o conceito de futuro (ou “futuridade”), por exemplo, linguisticamente signiicativo, “desenvolve-se em parte pela constatação, baseada em nossa experiência passada, de que o sol, que agora se põe, nascerá de novo”15. De fato, mesmo o gramático, que lida com a noção de tempo, ao menos “oferece um exemplo de como a Natureza, em seu aspecto mais amplo, provê o homem de uma demonstração instrutiva direta”16 quanto a essa noção. Voltando ao ponto, para os estoicos, pois, curiosamente apontados como sendo tão antropocêntricos quanto, por exemplo, o autor do livro do Gênesis17, herdamos de fato a consideração de que a linguagem é o maior índice da especiicidade da natureza humana, ao mesmo tempo que uma demonstração de que o homem comunga da mesma natureza dos deuses, ligado como está a tudo que existe, e de que pode, justamente, falar (e pensar e comunicar seu pensamento). Nesse contexto, como lembra a mesma autora que nos serve de base: A linguagem é geralmente compreendida como um dom natural que só pode pertencer a uma criatura dotada de razão. Quintiliano une ratio e oratio como as duas faculdades que constituem a excelência distintiva, a virtus (areté) do homem [...]. De modo semelhante, Diomedes desvela a proprietas humana, o traço que separa o homem dos outros animais, no poder racional da linguagem, a expressa ratio sermonis [...]. Varrão [...] segue os estoicos Zenão [...] e Crisipo [...] ao considerar a faculdade criadora da linguagem uma das oito partes da alma, juntamente com os cinco sentidos físicos e as forças racional e geradora.18 No entanto, lembra a mesma autora, o que nos interessa mais de perto: Um dos problemas mais recorrentes sobre a natureza humana diz respeito à relação entre natureza e arte, a qual, como produto humano, é inevitavelmente relevante para o homem. No De legibus [de Cícero] [...], com sua orientação ilosóica, a Natureza é chamada mestra do homem ao legar-lhe as 14 Mais precisamente, quando o ilósofo faleceu em 65 d.C., Quintiliano estava na casa dos 30 anos. 15 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 583, nota 1: De futuro quoque sumimus notionem...natura, ut cum videam solem occidentem in praesenti, possum scire naturali motu reversurum, quod est futuri. 16 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 583. 17 Id., ibid., p. 584. 18 Id., ibid. É, aliás, a Crisipo – sucessor de Cleantes e de Zenão na Stoa (cf. VASCONCELOS, 2005, p. 128, n. 81) – que se volta Quintiliano para deinir a disciplina de que trata principalmente na Institutio: a retórica é epistéme toû eû légein, expressão por ele traduzida, vistas muitas deinições, como scientia bene dicendi (cf. Instit. orat., 2.15.34-38. Salvo outra indicação, a edição por nós aqui seguida é a de Winterbottom, 1989). 106 artes. Por imitação da Natureza, segue o argumento, a razão alcançou o que é necessário à vida. Tal Natureza, instruindo o homem por meio do exemplo, é a deusa cósmica estoica. A visão aqui expressa é complementada pela crítica estética de Cícero no Brutus [...], que deine implicitamente o télos do artista como a imitação bem sucedida da natureza externa a ele. A Natureza, no sentido maior do termo, é, então, para Cícero, tanto o modelo como o objetivo da arte. Que o tópico arte versus natureza deva ser proeminente mesmo em textos linguísticos não surpreende, uma vez que grammatica e rhetorica são artes, cujo material bruto é o dom natural da fala [i.e. da linguagem] humana.19 Esse “material bruto”, de fato, eivado como é de irregularidades (fato sabido e tematizado no mundo antigo, por exemplo, no conhecido antagonismo entre analogistas e anomalistas de que fala, entre outros, Varrão), pode mesmo ser aperfeiçoado mediante o recurso às artes (grammatica e rhetorica, no caso). Assim, contornando e superando certa visão, segundo a qual o verdadeiro (ueritas) se identiica direta e automaticamente com o natural, com certa “aparência de naturalidade e falta de óbvio adorno artiicial”, os antigos (entre os quais, Cícero e Quintiliano) procurarão defender as artes (gramática e retórica, no caso) e seu aprendizado (em contraposição aos que defendiam o “uso natural” da linguagem, cujo corolário é a ausência de instrução, segundo os quais etiam rustici dicunt20), tendo em vista que elas possibilitam certo reinamento daquele “material bruto” constituído pela linguagem tal qual a Natureza a confere ao homem, encarregado de aperfeiçoá-la. “A natureza, assim,” lembra Quintiliano, “nos deu o fundamento do discurso; a imitação dela nos deu o fundamento da arte”21. Mantidas aí as devidas proporções (o autor não é contrário ao seguimento de certo usus da linguagem, ao menos no discurso oratório, como veremos), poderíamos dizer que a arte está para a natureza assim como o discurso (produzido segundo preceitos da gramática e da retórica) está para a linguagem em seu estado “bruto”, a qual deve ser capaz, entre outras coisas (pense-se na importância disto para o que conta, no caso: a formação de oradores), de veicular certo pensamento e convencer sobre certa causa... Trata-se, pois, de superar a dicotomia arte versus natureza, sobre a qual insistem os opositores das antigas artes da linguagem. Como lembra ainda nossa autora sobre o autor da Institutio e outros: Ele é crítico daqueles “primitivistas” [...] que se opõem ao cultivo artístico da natureza, e considera a arte e a tecnologia como em si naturais no sentido de que são a consequência normal de uma faculdade natural humana. Mário Vitorino argumenta, no mesmo sentido, que o cultivo das artes é tão natural ao homem quanto suas respostas menos premeditadas e os instintos nos 19 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 584s. 20 Cf. CÍCERO, De or. 3.155, apud UHLFELDER, op. cit., p. 586, n. 4. 21 Cf. QUINTILIANO, Instit. orat. 3.2.3: Initium ergo dicendi dedit natura, initium artis obseruatio (apud UHLFELDER, loc. cit., p. 585, n. 3). 107 animais [...]. A função da doctrina [...] é tornar imediatamente acessível ao homem aquelas habilidades que algumas vezes se manifestam espontaneamente, mas de modo acidental [...]. Em outras palavras, a arte confere ao homem controle irme e real sobre as potencialidades da natureza humana. [...] Todos os autores [no entanto, acrescentamos] estão de acordo com que a arte não pode compensar uma deiciência natural de uma aptidão humana, [o] ingenium.22 Esta última observação, como veremos, é de suma importância na consideração da proposta pedagógica de Quintiliano, mola mestra de sua obra, ao oferecer preceitos para a formação do seu orador. ••• “... certant grammatici...”23 Se, lembrando a expressão de Horácio, empregada por ele para referir-se às origens do verso elegíaco, mas signiicativa também para o que pretendemos, pode-se dizer já em sua época que os “gramáticos disputam”, e o fazem sobre variadas questões de linguagem – ou, mais concretamente, de língua –, é porque já se pode encontrar aí bom volume de textos que tratam da linguagem ou das línguas (no caso, evidentemente, o latim e o grego) e porque se tornou possível, desde o surgimento dos “mestres de primeiras letras” no mundo grego (grammatistaí) e do que se chamou ‘gramática’ (arte dos grammatikoí, encarregados de ensinar e explicar, a princípio, a língua dos poetas), etapa intermediária entre a “alfabetização” e a formação propriamente oratória junto ao mestre de retórica (rhetores), a “redução” da língua a sua forma escrita. Esta – a escrita – não só a tornou visível, como propiciou o advento de metalinguagens que desde então têm servido para reletir sobre essa faculdade humana que é a linguagem, consubstanciada nas diversas línguas existentes, ainda hoje cercada de “mistérios” ou, ao menos, desaiando modernos teóricos que procuram entender, através dela, o próprio funcionamento da “mente” humana. Provas, entre outras coisas, da consciência que tinham os antigos das potencialidades da língua ou linguagem se encontram em numerosíssimos textos que nos chegaram, seja como fragmento ou apenas citação, seja como obras completas que têm por tema, justamente, a linguagem ou as línguas (a princípio, latina e grega, repetimos), bem como, por vezes, seus usos especíicos. Mesmo sem dados imediatos sobre o efetivo funcionamento discursivo ou, melhor, prosódico dessas línguas, somos informados, não sem certo espanto, por exemplo, de que: Uma qualidade dos sons, a natural quantidade vocálica e silábica, era tão familiar ao falante nativo de latim que ela 22 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 585: “Ingenium, ‘aquilo [com] que [se] é nato’, [...] da mesma raiz de natura”. 23 ORAZIO, Ad Pis. [‘Arte poética’], v. 78. 108 fazia parte da herança cultural no seio da qual ele nascera. Em termos nossos, representava para ele uma segunda natureza, e ele não tinha de estudá-la na escola para conhecê-la, ao menos na prática. Cícero menciona, no Orator [...], que o frequentador médio de teatro podia, intuitivamente, dizer se uma sílaba tinha sido pronunciada com a quantidade errada, pois “iudicium ipsa natura in auribus nostris conlocavit”, i.e. “a própria Natureza pôs em nossos ouvidos uma capacidade de julgar”. A natureza aqui mencionada pode ser a deusa cósmica teleológica, mas também pode ser a natureza de sua criatura, o homem, um ser racional cujo cérebro, servido por seus sentidos, engaja-se espontaneamente na crítica estética.24 De fato, prossegue a autora, a herança genética por trás dessa habilidade é tal, que o homem, mesmo inculto, não é apenas capaz, naturalmente, de “avaliar a língua falada, incluindo-se aí quantidades, ritmo e qualidades sonoras”: A habilidade do homem não treinado como juiz em temas relacionados com o estilo é repetidamente trazida à baila. [...] O efeito da natureza humana na produção, bem como no julgamento da fala, é discutido em conexão com a sentença. As limitações da respiração conferem um limite natural ao luxo de palavras, de modo que uma sentença não pode estender-se além de certa duração [...]. O autor [da Rhetorica ad Herennium, no caso] mostra a necessidade biológica imposta igualmente sobre ouvinte e falante quando airma [...]: “Item fugere oportet longam verborum continuationem, quae et auditoris aures et oratoris spiritum laedit”.25 Mas, se há uma Natureza que confere ao homem a capacidade não só de produzir enunciados com determinada inalidade, mas de julgar o modo como são produzidos, há também uma natureza própria do homem, ao lado de uma natureza própria da linguagem, numa relação por vezes conlituosa. “Quando surge um conlito, a natureza humana tem precedência sobre a natureza da linguagem”26, airma a autora, e usos especíicos podem levar a alterar uma forma de linguagem não apropriada ao im visado. Logo, o uso se sobrepõe à “verdade” representada pela natureza da língua: “Consule veritatem: reprehendet; refer ad auris: probabunt” (“Consulte a verdade: ela encontrará uma falha; remeta o tema aos ouvidos: eles a aprovarão”)27, diz Cícero, como lembra ainda a mesma autora – e estamos aqui, evidentemente, falando novamente da oposição entre analogistas e anomalistas, que renderam boa discussão ainda no mundo antigo. Nessa disputa, tratava-se de saber, em suma, se havia ou não regularidade a reger o funcionamento das línguas, de modo a justiicar, entre outras coisas, opções a serem feitas no estabelecimento 24 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 588 (grifos nossos); CÍCERO, Or. 173. 25 Id., ibid., p. 588s: “Convém evitar, igualmente, uma longa sequência de palavras, incômoda tanto à audição de quem ouve quanto à respiração do orador”. 26 Id., ibid., p. 589. 27 Id., ibid. Cf. CÍCERO, Or. 159. 109 de textos e na correção da forma de língua empregada neles ou pelos falantes, bem como se havia uma forma apropriada, na língua, para se referir a entidades do mundo externo (a saber, por exemplo: o vocábulo potamós tem algo em si mesmo que o torne a melhor ou verdadeira forma de referir-se a um rio? Qual a melhor forma para referir-se ao genitivo de Zeus?). Os termos empregados para referir-se a uma e outra posição, a depender da época considerada, falamnos, de fato, de ‘natureza’ (phúsis) e ‘norma’ (nómos) no tempo de Platão e dos soistas, ‘natureza’ (phúsis) e ‘convenção’ (thésis) no período helenístico. Ao apontarmos para a discussão em pauta, aqui bastante simpliicada, queremos apenas assinalar tanto sua importância nesse período, quando foi levada ao mundo romano (pense-se na anedota envolvendo iguras como o erudito Crates de Malos, acidentado em Roma ao acompanhar certa embaixada e responsável, enquanto convalescia, por despertar o interesse romano pela gramática, além do próprio Varrão em seu monumental, mas quase totalmente perdido, De lingua Latina), quanto certas posições e certa direção que a disciplina gramatical, necessariamente abarcando a conhecida oposição entre analogistas e anomalistas, tomou e manteve de certo modo até hoje. Ora, os já mencionados estoicos, representados, por exemplo, por eruditos como o citado Crates, oriundo de Pérgamo, favoráveis tanto à ideia de que a linguagem teve uma origem natural (fato demonstrado, entre outras coisas, pelas onomatopeias) quanto de que era preciso respeitar as formas “dadas pela natureza”, abraçando, por isso mesmo, a tese anomalista, preferiam, assim, “aceitar as irregularidades tais como apareciam na língua corrente”, ao passo que seus antípodas analogistas, sediados em Alexandria, preocupavam-se com saber qual era a ratio que presidia às diversas formas do lógos. “O principal tema em questão, nessa controvérsia, era o sistema lexional, que os analogistas pensavam dever ser puriicado de suas irregularidades”28. Tratava-se, pois, não mais de pensar apenas numa suposta origem das formas linguísticas, coisa que a etimologia, tão cultivada pelos estoicos, procurava resgatar (amiúde fantasiosamente, segundo nosso [moderno] ponto de vista histórico, mas também segundo o próprio Quintiliano ao menos: cf. Instit. orat. 1.6.32 et sqq.), mas de dizer como deviam ser consideradas diante do inegável fato de que, à época helenística, havia não gregos, como depois houve não romanos, empregando uma língua de modo diferente daquilo que se considerava, havia tempos, a verdadeira Latinitas, o verdadeiro Hellenismós, como se fosse possível frear, em outros termos, a mudança linguística, fundamentando, ao mesmo tempo, determinadas práticas (usos). Os estoicos estavam essencialmente interessados na Natureza cósmica. A natureza que governa as lexões, contudo, é a natureza da linguagem. O termo declinatio foi usado por gramáticos para denotar tanto a lexão regular quanto a formação de palavras a partir de um radical, por exemplo, pela adição de suixos adjetivais aos substantivos. Este tipo de declinatio foi chamado voluntaria, dado que um certo 28 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 590. 110 número de alternativas possíveis tinha existido originalmente, a partir das quais uma forma fora escolhida. O tipo lexional foi chamado naturalis, dado que as demais formas do paradigma “nasceram” da primeira forma. Isto é, o paradigma foi ixado, e a lexão seguiu automaticamente o padrão existente, a menos que as formas resultantes apresentassem lagrante violação do uso corrente (usus ou consuetudo). [...] Os gramáticos estoicos, ávidos cunhadores de etimologias, estavam preocupados com a conexão entre as palavras e sua Natureza cósmica. Os alexandrinos, por sua vez, concentraram-se na estrutura formal das palavras, i.e. na natureza da linguagem.29 Para encerrarmos esta parte da discussão, acessória, de qualquer modo, é preciso salientar que o trabalho de mostrar que nem tudo se explica, na língua, em termos de regularidade ou irregularidade absolutas parece ter cabido ao romano Marco Terêncio Varrão, o primeiro a empregar, se cremos em Taylor (1975), o referido termo declinatio no bojo de algo apontado como uma “teoria da linguagem” sui generis entre os antigos. Seja como for, embora não defendamos, igualmente, uma posição “formalista” em sentido estrito, digamos, na consideração da linguagem ou das línguas, não resistimos a apontar também aqui, ainda uma vez com Cícero, algo que hoje consideraríamos talvez igualmente anedótico, não fosse, por outro lado, nossa crença de que há modos mais apropriados ou adequados, de acordo com diferentes contextos, de usar a linguagem: “agrada[va] aos estoicos chamar cada coisa por seu próprio nome”30... Ora, para além de considerações mais particulares sobre essa relação entre partidários ou adversários do princípio da regularidade nas línguas, de natureza mais complexa, mais intrincada e menos óbvia do que apresentamos aqui, o conceito de uso linguístico aí implicado, ainda hoje posto em questão, mesmo que sob outra roupagem31, tem, como vemos, uma importância já na Antiguidade, e, de fato, no que se refere – e este é nosso interesse maior – às concepções de língua e linguagem de Quintiliano, se assim podemos nos referir ao que se encontra nos “capítulos gramaticais” do livro I da Institutio, mas também em sua contraparte retórica (ao tratar da elocução nos livros VIII-X), sua consideração tem papel primordial: usus ou consuetudo, que encontramos nesse autor, como que chegando mesmo a agir à guisa de “força restritiva a im de checar possíveis excessos da arte retórica” (e gramatical, acrescentaríamos). Em suma, poderíamos dizer: A Natureza cósmica, Genetrix rerum, é um ser vivo, fonte fecunda e paradeigma de todas as naturezas subsidiárias. A natureza do homem, que é uma parte vital do cosmos, é a soma das qualidades com as quais ele nasce real ou potencialmente. Entre as forças potenciais na criança reside a tendência a criar as artes, incluída aí a linguagem, que se 29 Id., ibid., p. 590s. 30 Id., ibid., p. 593, n 19. Cf. CÍCERO, Ad fam. 9.22.1: placet Stoicis suo quamque rem nomine appellare; De in. 3. 31 Vejam-se, a título de exemplo, Robins (1988) e Lyons (1979). 111 desenvolvem ou “nascem” da natureza original com a qual o homem é dotado ao nascer. Finalmente, a linguagem, fruto propriamente característico da natureza humana, é em si uma espécie de organismo metafórico com certos traços congênitos e com destacada potência no que diz respeito a gerar outras formas linguísticas. [...] No caso de um conlito entre a natureza humana e a natureza da linguagem, a prioridade da criatura propriamente natural sobre sua criação metaforicamente natural – uma prioridade implícita no conceito de usus – representa uma sã hierarquia de valores.32 Em outras palavras, a Natureza produz o homem, assim como as demais criaturas; o homem, ser natural porque fruto da Natureza, produz algo que também é natural em certo sentido: a linguagem, que lhe é própria, nasce com ele, mas está, embora de certa forma dada à partida, por conta dos diferentes usos que dela se fazem, mas também por conta de sua própria natureza cambiável (como tudo que diz respeito ao homem em particular, aliás), tanto sujeita a alterações – também naturais – quanto a adaptações referidas às diversas necessidades humanas. O homem, assim, único ser propriamente de linguagem, muda ou aperfeiçoa também nela, com ela ou por meio dela, por assim dizer, a própria Natureza, graças à qual, identiicada com a divindade, diriam algumas religiões, ele se apresentaria como co-criador do mundo – que não é, digamos, a entidade ou o conjunto de entidades externas ao homem tal como o entendemos habitualmente, i.e. uma entidade totalmente objetiva, mas uma realidade subjetiva, só existente por conta do usuário da língua ou linguagem, que, em certo sentido, não só cria como, através de seu discurso, ordena o mesmo mundo. No contexto da antiga retórica, isso é especialmente relevante, como lembra outra autora: As coisas não aparecem senão por meio das palavras e as opiniões são o efeito da persuasão. [...] Para mudar e inluenciar as convicções e as opiniões, uma certa prática é necessária: a prática do discurso persuasivo. Quando se tem o domínio da linguagem, se é mestre da verdade; em breve, se é um homem de poder. [...] Dentro da tradição retórica, qualquer um que fale ou escreva, quando tem algo a dizer e quando é capaz de dizê-lo bem, é alguém que cria e ordena o mundo. E fala e escreve de maneira que este mundo seja aceitável. 33 ••• “Tomemos [...] por orador [...] o homem probo, hábil no discursar”.34 Que liames é possível apresentar entre diferentes visões de mundo aqui elencadas, situadas em momentos tão diferentes e distantes no tempo? Ao tratarmos, na primeira parte deste ensaio, de um autor como Baudelaire, 32 Cf. UHLFELDER, loc. cit., p. 594s. 33 Cf. CHIAPPETTA, 1997, p. 18. 34 Cf. QUINTILIANO, Instit. orat. 12.1.1: Sit [...] nobis orator [...] uir bonus dicendi peritus. 112 que tomamos por representante exemplar, em certo sentido, do que se convencionou chamar de modernidade, vimos que se apresenta ali uma visão do mundo natural que parece chocar-se frontalmente com concepções mais antigas da natureza ou do mundo natural. Se, para o poeta francês, situado em momento emblemático na história (aquele no qual, depois do Iluminismo, este mesmo produto ou ponto culminante do pensamento de épocas anteriores que, ao menos desde o Renascimento, por obra de pensadores de variadas “escolas”, cobraram certa “racionalidade” na consideração do mundo e daquilo que há nele), há pouco ou nada que a natureza possa oferecer de positivo, cabendo à arte, no caso, elevar o homem acima do animal, os antigos, ao menos aqueles aqui mais referidos (Cícero e Quintiliano, no caso), longe de defenderem certa “atecnia” (i.e. certo desprezo por aquilo que não era julgado “natural” da parte dos opositores à disciplina retórica já no mundo antigo), preocupam-se com apresentar as diferentes artes como algo não só positivo como altamente desejável na formação de determinado tipo de homem, uma vez que não as enxergavam como algo antinatural, mas complementos importantes do homem e digno de cultivo e aprendizado – ainda que aquele termo, artes, sirva, ao menos nos textos aqui referidos, para recobrir algo a princípio diferente, talvez, do visado por Baudelaire: não a pintura ou a literatura, mas a gramática e a retórica, embora estas tenham certamente muito que ver, de qualquer modo, com a arte que denominamos literária. Estamos, pois, diante de modos diferentes de encarar a suposta oposição arte versus natureza, pelo que é preciso considerála em maior detalhe, mas em conjunto com outras concepções, a princípio distanciadas de nosso foco. A consideração feita por Baudelaire da natureza ou do mundo natural, tal como se pode depreender do passo citado de sua obra, parece implicar mesmo uma visão de mundo avessa ao mundo antigo porque, de certo modo, impregnada por considerações de ordem que poderíamos tranquilamente chamar religiosas, ainda que em outras de suas obras se façam referências a coisas que, seja do ponto de vista da estética clássica, seja de algumas formas do fenômeno religioso, poderiam soar grotescas ou pouco “pias” (pensese, a título de exemplo, no conhecido poema de Baudelaire que descreve a putrefação de um corpo, ‘Une charogne’ – o que, no entanto, parece casarse bem com as considerações feitas no texto inicialmente citado aqui). Falase, em O pintor da vida moderna, claramente em “queda”, “pecado original” e “animal”, em contraposição a “divino” etc., e na consideração de que este mundo é uma espécie de “degredo”, ao qual fomos submetidos como “castigo” e do qual é preciso sair, sendo a arte e o artifício, justamente, meios de fuga da situação ali descrita – o que não deixa de ser, evidentemente, um belo modo de considerar nossa situação. De qualquer modo, na visão de mundo aí pressuposta também lagramos o conhecido dualismo corpo versus alma, caro a diversas ilosoias e supostamente abraçado por diversas religiões, como o catolicismo de Baudelaire (que airmava rezar todas as noites por sua mãe e pela alma de Allan Poe, de que foi um dos primeiros tradutores...). Longe de considerarmos isso algo negativo, o que nos interessa aqui é assinalar pontos de proximidade 113 e distanciamento entre o pensamento aí contido e aquele do mundo antigo, pré-cristão, ao qual pertencem Cícero, Quintiliano e outros tantos autores de obras por nós estudadas, sejam eles, ou não, “pagãos”. Fala-se, enim, no texto que constitui nosso ponto de partida nestas considerações, igualmente, de algo “sobrenatural” ou “espiritual” no homem, associando-o ao cálculo e ao artifício. Ora, a consideração de que o homem tem, por um lado, um corpo (material, semelhante ao dos animais e perecível) e, por outro, uma alma (a ser salva, ou ao menos que o eleva acima do mundo natural ou animal por meio da arte ou do artifício, e imortal), remete-nos, imediatamente, tanto à ilosoia cartesiana35, por exemplo, quanto ao que seria, a princípio, a natureza humana para certa visão cristã (ou mesmo judaica). Segundo se pensa, de acordo com tal visão, o homem seria um composto de corpo e alma (recebendo, tanto um quanto outro elemento, digamos, denominações outras, dependendo do enfoque ou do interesse em pauta: ‘carne’ e ‘espírito’, por exemplo), estando o primeiro fadado à morte e à decomposição, enquanto à segunda caberia comungar, de algum modo, em momento posterior à mesma morte, quando separada do corpo, de sua verdadeira natureza, divina e celeste. Tal visão dualista, supostamente fundamentada, aliás, no texto bíblico (como se, ao que frequentemente parece, o conjunto de textos reunidos sob esta rubrica fosse um só texto – quando, na verdade, se trata de uma coletânea de livros, escritos em momentos diversos, por autores diversos e com interesses diversos, como a própria etimologia de seu nome revela: (tà) biblía, “[os] livros”), de forte peso e inluência sobre o pensamento de diversas personagens históricas (i.e. que existiram, de fato, como nós), tanto ilósofos quanto poetas, religiosos ou não (em suma, sobre autores diversos), no entanto, parece, na verdade, por assim dizer, pouco bíblica – ou, antes pouco cristã ou judaica –, na medida em que espelha, justamente, certa vertente do pensamento helênico, i.e. de pregadores que, na época cristã ou próxima dela, procuraram traduzir a nova religião, servindo-se da língua grega e de formas do pensamento grego, para povos de cultura grega, imbuídos ao mesmo tempo de uma nova crença, avessa ao pensamento e ao mundo grego. Não nos deteremos neste ponto, tanto por uma questão de foco quanto por sua complexidade e uma falta de relação mais direta com o que se propõe aqui, mas é de fundamental importância assinalar que a crença e a cosmologia cristãs, embora propagadas nos seus primórdios em língua grega e servindo-se de formas de pensamento características do mundo helênico (ora, o homem grego acreditava justamente numa fundamental separação entre corpo e alma), está incada em terreno semita e, para o judeu da época, o homem 35 Lemos, por exemplo, no L’homme de Descartes (2009 [1662], p. 249-251): “Esses homens serão compostos [...] de uma alma e de um corpo. É necessário que eu vos descreva, primeiramente, o corpo à parte, depois a alma também separadamente, e, enim, que eu vos mostre como essas duas naturezas devem estar juntas e unidas [...] | Suponho que o corpo não seja outra coisa senão uma estátua ou máquina de terra, que Deus forma intencionalmente [...] De modo que ele não apenas lhe dá externamente a cor e a igura de todos os nossos membros, como também coloca dentro dela todas as peças que são necessárias para fazer que ela ande, coma, respire e, enim, imite todas as nossas funções que possam ser imaginadas como procedentes da matéria e que só dependem da disposição dos órgãos.” Evidentemente, cabe observar, Descartes não foi o único a tratar do tema, embora seja o único ilósofo moderno (além de Rousseau) aqui citado. 114 não seria, como asseveram vários exegetas dos textos bíblicos36, divisível em duas partes ou entidades de natureza absolutamente diferentes, de modo que a novidade da pregação cristã, ao falar de “imortalidade da alma” ao homem de cultura grega, parece ter cabido bem, embora se referisse a outra concepção, da qual na verdade procurava falar, uma crença própria de outro ambiente, ainda que emprestando aos gregos, por assim dizer, termos e categorias de seu pensamento para referir-se a algo avesso ao mundo grego: a “ressurreição da carne” (ou do corpo)! O texto bíblico, se considerado atentamente, mostra essa estranheza do homem de cultura grega, digamos, diante da pregação inicial dos apóstolos e seus seguidores imediatos ou mesmo posteriores, cuja novidade, portanto, não era de uma separação de corpo e alma na morte, mas consistia no reassumir, após aquela, uma identidade ou personalidade que, para o semita, era indivisível nos termos (pres)supostos pelo pensamento grego – este, sim, dualista. Assim, de qualquer modo, para a posteridade, a nova religião não encontrou outro modo de expressar sua novidade que não implicasse insistir na visão grega, que, embora repetida mesmo entre pensadores cristãos, não parece ter sido seu fundamento. Por que insistimos no ponto? Porque, justamente, uma consideração de que a natureza humana, por deinição, ao menos para algumas correntes do pensamento judaico à época do surgimento do cristianismo, por um lado, é una, causou espécie entre povos de cultura grega, que acreditavam numa oposição fundamental entre corpo e alma; por outro, ao insistir no ponto e considerar que há algo perecível no homem que se identiica com o mundo natural, material, habitualmente considerado, e defender que apenas sua alma, de algum modo, se eleva aos céus ou retorna à divindade após a separação de ambos na morte, abriu-se caminho, de fato, entre outras coisas, para a consideração de que, porque habitamos uma espécie de degredo, ele é igualmente menos digno de conta do que tudo aquilo que diga respeito ao “espírito”, à “transcendência” – à religião, enim, e a quaisquer elementos considerados não naturais, mas “sobrenaturais” – como implicado no texto de Baudelaire. Há, portanto, uma complexidade a mais a levar em conta numa comparação como a que fazemos aqui, servindo-nos de textos compostos em momentos não só muito diferentes, por autores de formação diferente, mas muito distantes no tempo, o que nos obriga, com certeza, a estabelecer limites tais que nos permitam, ao menos até certo ponto, escapar ao indesejado anacronismo com o qual nos defrontamos em nossa área de estudos, que tem o mundo antigo como objeto – um mundo de concepções amiúde discrepantes das atuais. Assim, se a natureza, grafado o termo com inicial maiúscula ou minúscula, tem sentido negativo para um autor, poeta e pensador, diríamos, formado no seio de uma cultura que se acostumou a temer o mundo natural, que de fato ainda tem, para nós, alguma conotação própria a despertar no mínimo certa repulsa, quando não certo pavor (seja ao pensar em nossa frequente submissão, digamos, para seguir o pensamento de Baudelaire, a 36 Cf. p.ex. discussão em Pereira, 1995. 115 ações que nos tornam semelhantes aos animais, “sujeitos a seus instintos”, na busca de reproduzir-se e na luta por vezes acirrada pela vida, coisas que somos ensinados a tratar com determinado viés, se não religioso, ao menos ético ou ilosóico, seja em nossa própria morte e na putrefação de nossos corpos), para os antigos, embora pudesse, por vezes, ter certa conotação igualmente negativa, a relação estabelecida pelos autores aqui considerados não nos autoriza a uma identiicação pura e simples do natural com o feio ou torpe. Ao contrário, como seus textos procuram nos ensinar (sem saber, evidentemente, os desdobramentos e leituras que teriam, posteriormente, suas “teorias” ou formulações, próprias do momento em que produziram suas obras e carregadas, como não poderia ser diferente, de sua visão do mundo e da vida), em especial o autor de que nos ocupamos aqui mais de perto, com seu interesse em formar oradores, iguras tão importantes no mundo antigo (e ainda hoje, de certa forma, admiradas ou seguidas, embora não de modo direto ou com conhecimento de suas “teorias”), a natureza, grafado o termo com inicial maiúscula ou minúscula, convenção nossa, não é nem um lugar de degredo nem necessariamente inimiga, mas, como assevera Quintiliano logo à introdução da obra, fundamento mesmo de qualquer formação, alicerce sobre o qual se constrói sua pedagogia. Eis o que airma nosso autor sobre a relação arte/natureza logo no proêmio de sua Institutio: Uma coisa, porém, deve ser atestada de início: nada valem preceitos e técnicas se a natureza não for favorável. Por essa razão, ainda, estes escritos não servirão àquele a quem faltar talento mais do que o fariam ao chão estéril se tratassem do cultivo do campo. Há, além disso, outros auxiliares naturais para cada um: a voz, um vigor físico que suporte a fadiga, saúde, perseverança, boa aparência, os quais, se porventura ocorrerem modestamente, podem ser ampliados pela teoria, mas às vezes de tal modo estão ausentes que até mesmo arruínam os dotes naturais e o estudo, assim como nenhuma dessas coisas é eicaz, por si mesma, sem um mestre experimentado, o estudo constante, o contínuo e intenso exercício da escrita, da leitura, da declamação.37 Se atentarmos, por outro lado, para a deinição, seja da disciplina de que se trata principalmente na Institutio (a retórica é, para Quintiliano, ars ou scientia bene dicendi, ao passo que a gramática, sua auxiliar e propedêutica aos estudos retóricos, é ars ou scientia recte loquendi), seja daquele que se pretende formar (o orador, para Quintiliano, é uir bonus dicendi peritus, como vimos), notaremos que elas contêm tanto o que caracteriza o trabalho do orador frente ao usuário comum da língua (o orador bene dicit, além de que recte loquitur, como faz o homem comum), quanto as duas partes, indissociáveis, do homem 37 Cf. QUINTILIANO, Instit. orat. 1.Pr.26 et sq: Illud tamen in primis testandum est, nihil praecepta atque artes ualere nisi adiuuante natura. Quapropter ei cui deerit ingenium non magis haec scripta sint quam de agrorum cultu sterilibus terris. Sunt et alia ingenita cuique adiumenta, uox, latus patiens laboris, ualetudo, constantia, decor, quae si modica optigerunt, possunt raione ampliari, sed nonnumquam ita desunt ut bona etiam ingenii studiique corrumpant: sicut haec ipsa sine doctore perito, studio pertinaci, scribendi legendi dicendi multa et continua exercitatione per se nihil prosunt (grifos nossos). 116 de cuja concepção aí se trata: há, primeiro, um homem probo (uir bonus), que a doctrina ou a ratio retórica completa, depois, ao torná-lo também hábil no que se refere a produzir, pronunciar e julgar discursos (dicendi peritus). Se, portanto, a natureza lhe confere certo ingenium, como vemos na última passagem citada, a arte lhe confere a scientia. Em suma, rejeitando, como Cícero, a atecnia defendida por alguns contemporâneos ou predecessores seus, Quintiliano ousa (a)irmar a arte não só como complemento necessário da natureza de que se trata, mas seu pré-requisito fundamental. Natureza e arte – que conduz à prática de certo uso38 da linguagem –, assim, são necessárias e complementares para a produção do homem de que aí se trata, i.e. o orador. Uma vez, como se sabe, que conceitos retóricos não apenas frequentemente invadem e invadiram, por assim dizer, o terreno da gramática, mas também comparecem na poética, e uma vez que iniciamos nossa apresentação com um poeta moderno e depois citamos aqui, além de Cícero e Quintiliano, entre outros, o poeta Horácio, seja-nos permitido – por lembrança de conhecido colega39 –, inalizar esta exposição, relacionando-a ao tema principal de que nos ocupamos aqui (o já antigo tópos arte versus natureza), com a menção de dois passos daquela obra que – desde, justamente, Quintiliano – passou à posteridade com o nome de Arte poética40, e que procura dar conta da importante relação, depois retomada, também no âmbito da poesia portuguesa, entre engenho41 e arte: Já se perguntou se o que faz digno de louvor um poema é a natureza ou a arte. Eu por mim não vejo o que adianta, sem uma veia rica, o esforço, nem, sem cultivo, o gênio; assim, um pede ajuda ao outro, numa conspiração amistosa.42 Demócrito considera mais afortunado o gênio do que a mesquinha da arte e exclui do Helicão os poetas de juízo perfeito; por isso, boa parte deles descuida de aparar as unhas e a barba, busca lugares retirados, evita os banhos; ganharão, com efeito, o prestigioso nome de poetas, se jamais coniarem ao barbeiro Licino uma cabeça que as três Antíciras não conseguiram curar.43 38 Cf. QUINTILIANO, Instit. orat. 1.6.43ss; 3.2.1; 12.10.44ss. 39 Agradecemos ao colega Paulo S. Vasconcellos (DL/IEL/Unicamp), ainda uma vez, a oportuna lembrança dos versos aqui citados. A edição e a tradução indicadas são de nossa inteira responsabilidade. 40 Cf. a “epístola a Trifão” que abre as diversas edições da Institutio. 41 De ingenium (relacionável semanticamente aqui e alhures a natura), que também nos deu ‘gênio’ etc. 42 Hor. Ad Pis., v. 408-411: Natura ieret laudabile carmen an arte, / quaesitum est: ego nec studium sine divite vena, / nec rude quid prosit video ingenium: alterius sic / altera poscit opem res et coniurat amice. (Trad. Jaime Bruna, grifos nossos.) 43 Id. ibid., v. 295-300: Ingenium misera quia fortunatius arte / credit et excludit sanos Helicone poetas / Democritus, bona pars non unguis ponere curat, / non barbam, secreta petit loca, balnea vitat; / nanciscetur enim pretium nomenque poetae, / si tribus Anticyris caput insanabile nunquam tonsori Licino commiserit. 117 REFERÊNCIAS ARBOUSSE-BASTIDE, P.; MACHADO, L. G. Introdução a Rousseau. 2. ed. São Paulo: Abril, 1978. (Col. ‘Os Pensadores’) ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Introd. Roberto O. Brandão; trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix/USP, 1981. BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. Trad. e adapt. Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Inquérito, 1941. (Cf. BAUDELAIRE, C. Le peintre de la vie moderne [1863]. 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Diferentemente de seus romances mais conhecidos que já havia lido, como Sidarta ou Lobo das Estepes, esse livro é composto por pequenas histórias, lembranças da infância, trechos de cartas, de sonhos, relexões sobre a velhice, enim, fragmentos escritos entre 1947 e 1961, pouco antes de seu falecimento. O que mais me impressionou nessa obra e sempre me faz retomála é a delicadeza de suas relexões, em especial a relação que Hesse estabelece com a escrita e o ato de escrever, o signiicado das escolhas das palavras ou mesmo a maneira como se aproxima dos conceitos e os explora, como é o caso do termo felicidade, que dá origem ao nome da coletânea. Li pela primeira vez esse livro exatamente quando estava redirecionando minha pesquisa na UFPR e já estava claro para mim que, entre o mestrado e o doutorado, eu havia percorrido um caminho sem volta, marcado profundamente pela interdisciplinaridade: do estudo da literatura latina passava cada vez mais a me interessar pelo estudo da cultura material, em particular a Epigraia, o estudo das inscrições durante o início do Principado romano. Conquanto ainda não estivesse deinido exatamente o que faria, notava que o estudo da Epigraia era um campo bastante árido, com metodologia e técnicas bem deinidas, expressando uma busca pela objetividade que nem sempre me agradava. A coincidência de ter encontrado as relexões de Hesse nesse momento alteraram profundamente minha maneira de perceber o ato de escrever e as g 121 possibilidades de se observar como as pessoas, em diferentes tempos e espaços, lidaram com a escrita ‒ e, por isso, foi muito inspirador. Para explicar melhor essa relação e como sua sensibilidade me tocou, é interessante retomar aqui “Escritos e escrever”, uma breve relexão de 1961 que se encontra no livro Felicidade. Nesse fragmento, Hesse inicia nos contando que teve um sonho no qual era criança e o professor pediu para que escrevesse uma redação. Logo ele se viu preocupado com as normas e os meios de concretizar o trabalho pedido. O sonho o teria marcado naquela noite e, ao despertar, longe do olhar do professor, entregou-se ao acaso da forma para materializar seu pensamento. É a partir desse momento que somos introduzidos em uma bela relexão sobre a capacidade humana de se expressar da mais diferentes maneiras. Hesse diferencia ‘escrever’ (capacidade humana de rabiscar ou desenhar símbolos como os hieróglifos ou letras) e ‘escritos’, imagens e formas que nos falam sobre nossa existência (HESSE, 1999, p. 144). Para exempliicar a diferença, fala da criança em sala de aula que copia as belas letras do quadro-negro em seu caderno e que, secretamente, carrega seu canivete para cunhar no banco de madeira seu nome, quando o professor está distraído. Nessa contraposição Hesse vai, vagarosamente, diferenciando a norma da espontaneidade, dos lugares nos quais podemos escrever e o que nos é proibido, das formas de se escrever e dos silêncios. Não é à toa que, para ele, o menino ao usar o canivete está em luta com o professor e o resultado inal dessa luta tenaz será totalmente diferente do que as linhas cobertas com letras feitas de má vontade no caderno. É cem vezes contemplado, é fonte de alegria, de contentamento e de orgulho. Vai durar, e informar gerações futuras sobre Friedrich ou Emil, dar-lhes motivo de relexão e adivinhação, e vontade de realizar coisa semelhante (HESSE, 1999, p. 146). O que Hesse destaca a partir dessa contraposição entre a escrita formal ensinada pelo professor e o aluno que o desaia ao graitar o banco é a diversidade das formas e as possibilidades de transgressão que a escrita traz. A relexão sobre os ‘escritos’ segue pelo caminho da variedade: das maneiras de se escrever, dos instrumentos de que a humanidade lançou mão para deixar seus registros, as formas, os tipos de suporte da escrita, nomes, louvores, cifras, números, chegando aos animais que, em sua linguagem poética, ao caminhar pela natureza deixam, também, suas marcas. Partindo, portanto, da contraposição entre aluno e professor, Hesse expande sua relexão para aquilo que considera um engenho humano e sua efemeridade, pois acredita que “tudo o que foi escrito desaparece em breve ou longo tempo, em milênios ou minutos. O espírito do mundo lê todos os textos, lê também o apagamento de todos os textos e ri” (HESSE, 1999, p. 152). Por im, conclui dizendo que o que fez foi uma brincadeira, mas que temos sorte por poder conhecer alguns desses textos, de poder tentar de alguma forma pensar sobre seus signiicados e reescrevê-los dentro do estilo que cada um carrega. 122 Essa brincadeira de Hesse foi, para mim, profundamente tocante. A maneira poética pela qual ele descreve as formas e suportes de escrita me fez prestar mais atenção na relação das pessoas com o ato de escrever em diferentes superfícies. No caso romano, desde o texto canônico com seu estilo mais elaborado aos fragmentos de lápides ou graites de paredes, pessoas das mais diferentes origens ou condições sociais deixaram suas impressões espalhadas, que nem sempre foram lidas pelos especialistas da área. Assim, desde que li essa relexão iquei intrigada com a sensibilidade do escritor em captar aspectos da escrita pouco explorados na academia e, desde então, olhando para os graites de parede de Pompeia, tenho buscado possibilidades teóricas de estudá-los, pois sua potencialidade enquanto meio de abordar a diversidade de sentimentos e visões do mundo dos romanos é, arriscaria dizer, quase ilimitada. Assim, inspirada pelo olhar poético de Hesse e pelos estudos acadêmicos que buscam meios de trabalhar a experiência romana em sua diversidade, a ideia dessa relexão é explorar como os graites, pouco valorizados pelos estudiosos, podem nos fornecer visões múltiplas acerca do cotidiano romano. Para tanto, divido o texto em três partes: uma breve análise sobre as novas abordagens acerca dos estudos clássicos, uma explicação sobre a importância de Pompeia nesse contexto e a análise dos graites na tentativa de explorar novos olhares sobre aqueles que se entregaram ao acaso da forma e nem sempre foram lidos. Como se aproximar dos grafites de Pompeia? Iniciei essa relexão retomando Hesse e a sensibilidade de seus escritos para chamar atenção para a diversidade e efemeridade das emoções humanas, ou seja, comentei os escritos de Hesse na tentativa de buscar inspiração para construir uma abordagem que possa explorar a tensão entre os graites de Pompeia e a vida cotidiana romana, entre inscrição parietal e devir. Por se tratar de um trabalho acadêmico e que demanda conhecimentos técnicos da Epigraia, o desaio é construir uma abordagem que permita questionar a relação entre escrita e experiência vital, buscar um diálogo entre escrita, materialidade e experiência que não se resuma a compilação, descrição e a criação de tipologias das letras ou dos conteúdos, mas que permita desenhar uma cartograia de desejos desses homens e mulheres que viemos a conhecer devido ao acaso da erupção do vulcão Vesúvio. Nesse sentido, uma abordagem linear e descritiva não permitiria esse tipo relexão; por essa razão, compartilho da perspectiva de intelectuais que buscaram romper com formalismos e construir modelos interpretativos mais luidos, aqueles que não se contentaram em comentar sobre guerras e grandes acontecimentos políticos, mas discutiram sobre amores, paixões e desafetos cotidianos, pois estes também constituem parte da experiência histórica. Para deixar mais claro o lugar de onde parto para construir essas relexões, vale a pena iniciar a discussão sobre a mudança de perspectiva de análise da antiguidade clássica e os novos modelos interpretativos, retomando 123 considerações de Salvatore Settis (2006) em The future of the ‘classical’. Nesse livro, Settis parte de considerações que, em 1967, Momigliano fez para crianças sobre as razões do estudo do mundo romano e destaca dois aspectos em sua análise: 1) todos os povos merecem ser estudados e 2) a importância de entender a identidade italiana daquele presente a partir de suas origens romanas. Considerando esses dois pontos, Settis instiga o leitor a pensar se quarenta anos depois essas propostas de Momigliano continuam válidas. Ao longo do livro, Settis desenvolve a ideia na qual tais noções de identidade propostas por Momigliano não respondem mais os anseios dos estudiosos do século XXI e desconstrói essa perspectiva focada em uma incessante busca pela origem e a produção de um passado homogêneo, muitas vezes também excludente. Expondo de maneira direta o impasse dos estudos clássicos atualmente, Settis assume uma postura interessante, pois, se não concorda com as respostas de Momigliano, acredita que sua pergunta ainda é válida. A partir dessa perspectiva, Settis deixa claro que, se pensar a história como busca para as origens ocidentais ainda fazia sentido para Momigliano, para os estudiosos do século XXI que vivenciaram o 11 de setembro e os novos conlitos entre Ocidente e Oriente, manter visões normativas de cultura geram interpretações sem sentido em um presente que cada vez mais nos faz reletir sobre violência e exclusão. Ao airmar que o universo greco-romano precisa ser estudado em sua diversidade e pluralidade, permite pensar uma variedade maior de passados e, consequentemente, quebra a noção de que o passado clássico pertence somente aos europeus. Não há duvidas de que essa relexão de Settis está inserida em um contexto marcado pelos estudos pós-modernos. Mesmo que timidamente, na última década, a inluência do pensamento pós-moderno tem ajudado a mudar os rumos dos estudos clássicos. Richard Hingley (2005; 2010), em uma obra pouco anterior à de Settis, airma que uma das marcantes contribuições das críticas epistemológicas pós-modernas aos estudos clássicos é justamente esta que Settis busca explorar: a percepção de que o mundo antigo não está isolado do presente e, por isso, pensar os rumos da disciplina e reletir sobre a construção dos modelos interpretativos deve constituir parte do trabalho do estudioso. Se, por um lado, como airma Glaydson José da Silva (2007), a Antiguidade Clássica foi vista por séculos como conservadora e pouco teorizada, por outro, o entendimento dos estudos sobre o mundo antigo como discursos construídos na academia moderna têm indicado novas possibilidades de produção de um pensamento crítico fundamentado em análises mais plurais, evitando abordagens que viessem a obscurecer diferenças e conlitos. Settis, Hingley e Silva são estudiosos originados de diferentes contextos históricos e nacionais, mas enfatizam, cada um a seu modo, a importância de se pensar politicamente e historicamente a postura que se estabelece diante do passado antigo: se as bases conceituais para seu estudo foram propostas em um ambiente imperialista europeu, questionar a noção de legado torna-se fundamental para quebrar noções de hegemonia e buscar alternativas interpretativas. Considerando que as interpretações sobre o passado romano estão profundamente arraigadas no presente daquele que escreve e, portanto, não são neutras, mas construídas 124 a partir de teorias sociais e escolhas políticas dos estudiosos, passo a discutir os desdobramentos dessas críticas no estudo da cultura material romana em Pompeia e as contribuições brasileiras nesse processo. Por que estudar Pompeia no Brasil? Pompeia, essa pequena cidade romana, localizada no sul da península itálica e soterrada pelo Vesúvio em 79 d.C., passou a ser conhecida pelos brasileiros ainda no século XIX, no início de suas escavações, graças ao material enviado como presente à família imperial brasileira1. No entanto, é somente no inal do século XX que os estudos sobre sua cultura material ganham visibilidade no Brasil. Foi com as publicações “Cultura(s) dominante(s) e cultura(s) subalterna(s) em Pompéia: da vertical da cidade ao horizonte do possível”, na Revista Brasileira de História, e Cultura popular na Antiguidade Clássica que Pedro Paulo Funari (1986 e 1989) trouxe a pequena cidade para os estudos clássicos brasileiros sob uma perspectiva diferenciada. Os dois trabalhos se baseavam em graites de parede de Pompeia e discutiam temas pouco explorados até então na área: o estudo da cultura material romana e das suas camadas populares. Destacamos tais estudos pelo seu caráter questionador, pois apresentavam uma clara postura política em defesa da diversidade cultural das camadas populares durante o processo de redemocratização do país. Ambos os trabalhos exploravam como as evidências de Pompeia eram diversas, como suas paredes e suas inscrições nos apresentavam uma grande variedade de sujeitos sociais e acabou por se desdobrar em novas pesquisas que passaram a pensar Pompeia como um lugar de memória da diversidade étnica e de gênero (CAVICCHIOLI, 2004, 2008; FEITOSA, 2005; FUNARI, 1992, 2003a; GARRAFFONI, 2005a, 2005b, 2010 – para citar alguns exemplos). Com um constante diálogo com pompeianistas de diferentes países, essas pesquisas se desdobraram nas mais diferentes perspectivas e, embora Pompeia tenha sido muito usada para legitimar políticas fascistas e excludentes na Itália da primeira metade do século XX, tais estudos procuraram explorar outros vieses, transformando suas paredes em um importante meio de relexão sobre pluralidade no passado e no presente. É a partir dessa forma crítica de articular memórias que gostaria de apresentar minha relexão acerca dos graites. A proposta é pensar não só o conteúdo da escrita, mas os lugares em que foram cunhados, entendendo que as paredes de Pompeia se tornam espaços plurais de escrita. Os grafites de Pompeia e a diversidade Os graites a que me reiro são incisões de estiletes feitas nas paredes internas e externas de casas, muros e edifícios públicos e, por serem pequenos, 1 Tais peças encontram-se, até hoje, sob a guarda do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Cf.: <http://www. museunacional.ufrj.br/MuseuNacional/arqueologia/Cult_Mediter.htm>. 125 as pessoas precisavam se aproximar das paredes para poder lê-los. Registrados desde o século XIX no CIL (Corpus Inscripitionum Latinarum), foram pouco estudados pela academia, ainda que, como apontou Feitosa (2005), haja mais de onze mil registros no Corpus. Mesmo que Tanzer (1930) excepcionalmente tenha defendido sua importância para conhecermos aspectos do cotidiano romano na década de 1930, Cebe (1966), como a maioria dos estudiosos, considerava a escrita vulgar demais para ser analisada. Assim, no ramo da Epigraia há uma clara preferência para as pesquisas sobre as inscrições monumentais ou funerárias, em especial lápides de cidadãos importantes para se discutir a linhagem política de pessoas de renome nas cidades romanas, e as cotidianas têm sido mais estudadas nas últimas três décadas2. Um dos argumentos centrais para os poucos estudos realizados sobre os graites é o fato de muitos serem anônimos e fragmentados e, por isso, não constituírem um corpus e tampouco um objeto para estudo. Abel e Buckley (1977), no inal dos anos de 1970, rebatem essas airmações, pois para eles o estudo deve ser feito considerando o contexto e, no caso de Pompeia, constituem relatos espontâneos da vida cotidiana e permitem entender os temas que ocupavam as pessoas comuns. Além disso, o que parece banal pode ser desaiador para linguistas, historiadores e arqueólogos, pois para os primeiros há a possibilidade de pensar as alterações nas formas da escrita do latim e grego, para os segundos a materialização de temas sobre o presente daqueles que escrevem. De fato, um dos aspectos mais instigantes que as paredes de Pompeia trazem é essa possibilidade de rearticular modos de pensar efêmeros e luidos da experiência humana no passado. Por serem fragmentados, quando selecionamos e montamos um corpus de estudo acabamos por nos surpreender com a diversidade de temas para relexões, essa luidez permite que se construa uma leitura mais dinâmica do passado e nos desaia a rever os preconceitos modernos. Desde as letras do alfabeto cunhadas em paredes de edifícios públicos e privados por crianças (GARRAFFONI; LAURENCE, comunicação inédita) aos xingamentos, piadas e declarações de amor dos adultos de diferentes idades e camadas sociais, nos deparamos com um universo de declarações sobre as paixões cotidianas. Mas quem eram as pessoas que escreviam nessas paredes? É possível saber quem foram? Funari (1989; 2003a) e Feitosa (2005) izeram um amplo levantamento e constaram que a maioria dos graites é anônima; no entanto, dos que estão assinados temos agricultores, gladiadores, artesãos, vendedores de comida (padeiros, boleiros, servidores de bebidas, taberneiros, entre outros), criadores de animais (asnos, bestas, galinhas), escravos, feirantes, para citar alguns exemplos. Ou seja, embora não saibamos exatamente como se dava o processo de alfabetização das diferentes camadas sociais, pela quantidade de inscrições encontradas é possível pensar que escrever nas paredes, entre os minimamente letrados, tinha um caráter público (qualquer um poderia ler, comentar ou modiicar o graite) e constituía um importante meio para 2 Sobre a importância do estudo da Epigraia monumental, cf., por exemplo, Alföldy (2003); McMullen (1982); López Barja (1987); Meyer (1990). 126 circulação das ideias e visões de mundo3. Cabe ressaltar que as inscrições são diversas na língua ‒ a maioria está em latim, mas é possível encontrar exemplares em grego e osco ‒ e, também, na temática. Nas paredes de Pompeia encontram-se piadas, caricaturas, sátiras políticas, declarações de amor, xingamentos, letras, desenhos variados, referências às lutas de gladiadores ou caçadas, a amantes, a inimigos, a amigos, pedidos aos deuses, paródias dos cânones literários ou seus trechos, além dos que mesclam línguas ou letras dos alfabetos... Essa diversidade era conhecida e difundida na antiguidade, pois Plínio o Jovem airmou em uma de suas cartas (8,8, 7): “lerás, muitas vezes, em todas as paredes e em todas as colunas, muitos graites escritos por muitas pessoas” (FUNARI, 2003a, p. 80). Diante da imensa quantidade de inscrições e a variedade de assuntos, optei em selecionar, para essa ocasião, um pequeno corpus de inscrições que remetem às paixões da vida para essas pessoas. Nesse sentido, selecionei alguns graites que falam sobre felicidade, amor, proteção e encontros íntimos4. 1.(Grat)ae nostrae feliciter (perp)etuo rogo domna per (Venere)m Física te rogo ni me (...)us babeto mei memoriam. (CIL IV, 6865) [A minha querida Grata, com felicidade eterna. Te peço, senhora minha, por Vênus Física, que você não se esqueça de mim. Me tenha sempre em teus pensamentos!]5 2. Si potes et non uis cur gaudia difers spemque foues et cras usque redirei ubes? (Er)go coge mori quem sine te uiuere coges. Múnus erit certe non cruciasse boni. Quod spes eripuit spes certe redd(i)t amanti. (CIL, IV, 1837) [Se você pode e não deseja, porque adia a felicidade e acalenta a esperança, me dizendo sempre para retornar amanhã? Assim você força a morrer alguém que obriga a viver sem ti. Será um presente ao menos não me atormentar. Certamente a esperança devolve ao amante o que a própria esperança arrebatou.] 3. (H)ic sumus felices. Valiamus recte. (CIL, IV, 8657) [Aqui somos felizes. E continuamos irmes.] 4. (H)ic (h)abitamus: felices nos dii faciant (CIL, IV, 8670) [Aqui habitamos. Que os deuses nos façam felizes.] 5. Hysocryse puer Natalis uerpa te salutat (CIL IV 1655) [Jovem Hysocrysus, Natalis o falo te saúda] 3 Sobre a questão da alfabetização, cf. a dicussão de Funari (2003a, p. 69-90) 4 Alguns dos graites comentados a seguir se encontram em outras publicações, mas foram adaptados e reinterpretados para o contexto da presente discussão. Para outras possibilidades de interpretação e discussão dos mesmos graites, cf. Feitosa (2005); Garraffoni (2007); Feitosa e Garraffoni (2010); Garraffoni e Sanfelice (inédito). 5 A tradução dos dois primeiros graites é de Feitosa (2005), e as demais traduções são de minha autoria. 127 6. Fututa sum hic (CIL IV 2217) [Aqui fui possuída] 7. Albanus cinaedus est (CIL IV 4917) [Albanus é um cinaedus] 8. Crescens Publicus cinaedus (CIL IV 5001) [Crescens Publicus é um cinaedus] Essas oito inscrições foram destacadas com a intenção de exempliicar a diversidade de graites à qual me referia há pouco. Há graites extensos e poéticos, outros mais sintéticos e diretos; graites que expressam sentimentos, busca por proteção e afetividade; ainda outros que indicam conlitos e xingamentos. Alguns são simples relatos da necessidade de marcar sua passagem ou estadia pela cidade; outros registram lugares de prazer ou felicidade. Por constituírem fragmentos da vida cotidiana, sua reunião aqui pode nos ajudar a pensar o dia a dia dos romanos em Pompeia, suas preocupações, sonhos e rancores. Vejamos, então, como podem, na prática, trazer outras percepções sobre o passado romano, iniciando uma relexão sobre a felicidade para, em seguida, pensar a dinâmica dos encontros íntimos. Nos graites 1, 3 e 4, os termos traduzidos como “felicidade” são feliciter, felices, felicitas, todos derivados de um mesmo termo latino ‒ felix. Em seu sentido original, felix signiica “fértil”, “fecundo”, “favorável”, tornando seus derivados termos que signiicam a um só tempo “felicidade”, “fertilidade”, “abundância” e “sorte”, dependendo do contexto em que se encontram. Já no graite 2, o termo encontrado para designar felicidade é gaudia, que pode ser traduzido como “alegria”, “gosto do bem presente”, “prazer interior”. Esses diferentes sentidos são fundamentais para pensarmos sobre as inscrições selecionadas. A primeira é uma súplica amorosa feita a Grata, intermediada pela deusa Vênus, para que aquela receba felicidade eterna e não se esqueça do amor que vivera com o autor da inscrição. Já os graites 3 e 4 são registros mais sintéticos de momentos vividos e desejos de que os enamorados sigam juntos com a permissão dos deuses. Todos esses graites se referem ao campo afetivo, buscam pela manutenção do amor e felicidade, com a permissão dos deuses, e, como destaca Feitosa (2005), não necessariamente remetem a uma noção muito difundida na historiograia na qual a virilidade seria o atributo maior da masculinidade e, consequentemente, justiicaria o domínio e submissão da companheira. Esse tipo de interpretação, na qual a masculinidade se resume à virtude daquele que detém o poder para comandar a vida política é cunhada a partir de interpretações de leis e textos escritos pela elite romana, mas não necessariamente é a única forma de experimentar a vida, como nos faz pensar as inscrições destacadas. O que chama a atenção nessas três inscrições é a lógica menos hierárquica do cotidiano romano, ao menos daqueles que não 128 faziam parte das elites, o que nos leva a crer que domínio não era a única forma de relação afetiva entre homens e mulheres. Estamos, portanto, diante de registros menos convencionais para se pensar o universo masculino romano, pois o graite 1, direcionado a Grata, é uma súplica masculina por felicidade e amor, enquanto os 3 e 4 são pedidos de compartilhamento de bons momentos entre casais apaixonados ou de proteção aos deuses para que a felicidade siga presente em suas casas. Por sua vez, a inscrição 2 se insere em um ambiente emotivo por outro viés, pois destaca a dor e a frustração amorosa. Apesar do revés, a noção de felicidade daquele que cunhou a inscrição é bastante clara, como nos exemplos anteriores, de que para que seja completa precisa ser compartilhada. No início da inscrição, o termo gaudia foi empregado para opor o prazer do presente a uma possibilidade de retorno no amanhã, o que indica a relação da felicidade com o presente vivido e não com uma tênue esperança de reencontro futuro. Há aqui, portanto, um outro elemento que deve ser considerado em conjunto com os demais: a felicidade entre casais, além de compartilhada, deve ser reconhecida no presente dos enamorados. Os graites de 5 a 8 são mais sucintos e, no entanto, trazem à tona elementos das práticas sexuais, de encontros íntimos e seus múltiplos signiicados. Escritos em paredes externas de diferentes lugares e um deles próximo ao prostíbulo da cidade (6), essas quatro inscrições enfatizam prazeres, proteção e conlitos. O graite 5 pode ser entendido dentro do contexto aprotopaico, ou seja, é possível pensar que a saudação, relacionada ao pênis, seja um meio de desejar boa sorte e proteção ao jovem. Funari (1993; 2003b) airma que ‘falo’, na cultura popular, não só afastava o mal olhado, função de um objeto apotropaico, como também trazia sorte e felicidade, atrelando a imagem fálica de fertilidade com a possibilidade de boa fortuna. Há muitas imagens e objetos que atrelam o membro masculino em ereção com a percepção de vida, fecundidade e sorte. Nesse sentido, ao ler uma inscrição como esta é preciso evitar restringir a menção ao pênis à noção de pornograia moderna. Para entender melhor essa relação, Cavicchioli airma que no mundo romano as práticas sexuais não constituíam uma esfera compartimentada da vida, mas eram inluenciadas por outros aspectos como a moral e a religiosidade. Desse modo, mais do que isolar as menções aos encontros íntimos ou aos elementos fálicos, tão presentes nas paredes de Pompeia, é preciso perceber que constituem parte da religiosidade, da busca pela felicidade, proteção e fartura, dependendo do contexto. Por conseguinte, a inscrição de número 5, pensada em um contexto no qual as representações fálicas são abundantes, indica que separar a esfera sexual do religioso no mundo romano é mais um preconceito moderno do que uma percepção antiga. Funari, no referido estudo, aponta para a necessidade de nos despirmos de nossos próprios juízos de valores para perceber que a relação entre “felicidade” e “sorte”, entendida no contexto apotropaico, pode apresentar outro olhar sobre a cultura romana. As inscrições 6 a 8, no entanto, nos levam a explorar um outro viés, aquele que comenta encontros íntimos entre homens e mulheres ou 129 entre homens, pois são relatos de prazer feminino (6) e de conlitos (7 e 8), o que mais uma vez ressalta como as representações das práticas sexuais são múltiplas. Como já destacou Williams (1999), graites como esses de 6 a 8 são instigantes porque se referem ao vocabulário de cunho sexual, sejam eles entendido como forma de prazer ou como forma de crítica ao outro. Do ponto de vista do vocabulário, Williams (1999) destaca que mesmo que haja aqueles que se referem ao amor ou amizade, cerca de 260 graites possuem termos explicitamente sexuais como os substantivos mentula ou cunnus e os verbos futuere, pedicare ou fellare. Ou seja, a grande maioria das inscrições que tratam de encontros íntimos possui conotação sexual explícita. Para essa ocasião, além da declaração de prazer da mulher (6), optei por selecionar duas inscrições que trazem a igura do cinaedus, pouco mencionada nos estudos históricos, apesar de presente nos textos literários e nos graites. No levantamento feito por Williams (1999), há cerca de 30 inscrições em que o termo aparece, em geral nas fachadas voltadas para as ruas de Pompeia. O estudioso airma que, se seguirmos os padrões da literatura, os termos mais populares para ofender a honra seriam fellator, cunnilingus e cinaedus (WILLIAMS 1999, p. 293). Os cinaedi, como atesta Williams a partir de Sêneca (1999, p. 203), tinham presença garantida nas cidades e poderiam ser tanto homens mais velhos como jovens escravos. Há uma ampla discussão sobre o signiicado do termo cinaedus e este pode designar diferentes situações: dançarino que veio do Oriente; homem afeminado; aquele de rompe com as noções de masculino, mas que não necessariamente é penetrado (WILLIAMS, 1999; SIHVOLA; NUSSBAUM 2002). Ou seja, um cinaedus pode manter relações sexuais com mulheres e mesmo assim continuar sendo entendido como tal e, por outro lado, nem todos os homens que mantinham relações com outros homens são chamados de cinaedus. Nesse sentido, não é a penetração que deine o cinaedus, mas, para além disso, uma série de questões como maneira de andar, falar, de vestir, enim, de como se relaciona com seu corpo e extravasar as noções de feminino e masculino. Ou, como observou Halperin (2002, p. 36), a questão não estava na relação sexual em si e sim na subversão dos papéis de gênero. Os graites de 6 a 8 são exemplos do desaio de ler essas inscrições que comentava há pouco. Mesmo que não saibamos quem seja a mulher que registrou seu momento de prazer ou os homens ironicamente (ou não) chamados de cinaedus, o fato é que tais registros se encontram nas paredes, visíveis e ao alcance de todos letrados. Faziam parte da paisagem urbana e, por isso, não devem ser ignorados ou taxados de obscenos, mas pensados como parte do cotidiano dos homens e mulheres romanos comuns. Além disso, tais graites nos remetem a sujeitos que muitas vezes não aparecem na historiograia ou são pouco valorizados por ela e nos instigam a pensar outras formas de entender o passado, considerando a pluralidade das relações de gênero, suas ambiguidades, seus conlitos, enim, as diferentes formas de vivenciar os encontros íntimos, de representar o sexo ou o prazer e suas implicações culturais. Os exemplos selecionados são súplicas de amor, desejo de felicidade, 130 vontade de viver o presente sem esperar o futuro, proteção, prazer e desafeto. Escritos por pessoas anônimas, relatam momentos de solidão, alegria, de vontade de viver, de prazer, de desafeto, situações cotidianas que podem ser lidas ou conhecidas devido a uma tragédia natural ocorrida há mais de dois mil anos. Relexões poéticas ou declarações sucintas, essas inscrições permitem que possamos pensar a paisagem urbana como meio de expressão de sonhos, anseios e desentendimentos. As paredes de Pompeia ou as suas colunas, entendidas por essa perspectiva, nos desaiam a pensar os espaços de escrita sobre encontros íntimos, desejos de bons agouros ou de ofensas, fornecem pistas da vida daqueles que foram marginalizados pela historiograia, nos levam a reletir sobre o dia a dia e as apreensões humanas. Por im, cabe ressaltar que selecionamos oito inscrições para essa relexão e, mesmo assim, foi possível localizar muitas lacunas e silêncios em nosso conhecimento sobre o passado de Pompeia sob o domínio romano. Como há mais de onze mil cadastradas, a possibilidade de nos surpreender é muito grande, ainda. É por essa razão que acredito que um olhar atento a essa documentação, a partir de uma perspectiva menos normativa e mais interdisciplinar, é fundamental para que seja possível dar voz a experiências cotidianas que, muitas vezes, nos passam despercebidas, mas nem por isso são menos importantes para repensarmos a forma com que nos aproximamos do passado romano. Considerações Finais Embora esta relexão seja parte de um estudo que ainda está em desenvolvimento, o que tenho notado, cada vez que leio os graites de Pompeia, é que eles constituem um corpus único sobre estética, sentimentos humanos, expectativas, frustrações, ironia e paixões, enim, uma forma espontânea de registro que permite uma relexão ao mesmo tempo ilológica e histórica das emoções e percepções daqueles viveram ou passaram em Pompeia. Se os graites por si só já são evidências importantes para estudarmos a escrita popular e suas formas de ver o mundo, ao inseri-los no contexto material e espacial é possível pensar em um segundo aspecto: a cidade de Pompeia como espaço da escrita. Desse modo, o graite não precisa ser entendido apenas como variações do latim erudito, mas como meio de se estudar a interação das pessoas, de diferentes status sociais, com o espaço urbano. Se considerarmos os dois fatores, o conteúdo dos graites e os lugares onde foram escritos, é possível pensar de forma mais ampla a circulação das pessoas no meio urbano e as diferentes formas de construção de visões de mundo de pessoas que muitas vezes foram duplamente marginalizadas: pelo momento histórico em que viveram e pela historiograia moderna que raramente comenta sobre suas vidas e conlitos. Minha intenção com esta relexão foi, portanto, partir da percepção poética de Hesse, da sua habilidade em pensar a luidez e efemeridade da escrita 131 e a pluralidade das formas de viver e sentir, para construir um diálogo com os estudos epigráicos sobre Pompeia considerando sua potencialidade para uma aproximação do cotidiano romano a partir de uma perspectiva mais luida. O que tenho buscado com o desenvolvimento de minhas atuais pesquisas, desenvolvidas no Brasil em diálogo com estudiosos europeus, é reconhecer a fragmentação das formas de expressão dos romanos no contexto urbano antigo e sua diversidade não como um problema insolúvel que deve ser abandonado, mas como um meio fértil de pensar o devir, formas de vida e de expressão menos convencionais, mas não por isso menos importante. Essa postura está vinculada com perspectivas teóricas que comentei anteriormente e que, no fundo, visam aquilo que Margareth Rago (2000) chamou de leituras libertárias do passado, isto é, a busca por abordagens que considerem a multiplicidade das experiências humanas. Por im, gostaria de ressaltar que acredito que reconhecer o espaço da escrita como plural no passado permite pensarmos, também, as diferenças no presente, ou seja, signiica reconhecer a potência criadora das pessoas comuns nas mais diferentes formas, estéticas e temporalidades. Agradecimentos Gostaria de agradecer aos seguintes colegas pelas trocas de ideias em diferentes momentos: Ana Paula Vosne Martins, Lorena Pantaleão da Silva, Lourdes Feitosa, Marina Cavicchioli, Miriam Adelman, Pedro Paulo Funari, Pérola Sanfelice, Ray Laurence e Richard Hingley. Em especial, agradeço a Gilvan Ventura da Silva e Leni Ribeiro Leite pelo convite para participar desta coletânea. Institucionalmente, agradeço ao Programa de Pósgraduação em História e à British Academy. A responsabilidade das ideias recai apenas sobre a autora. Referências DOCUMENTOS CIL ‒ Corpus Inscriptionum Latinarum, volume IV (inscrições encontradas em Pompéia), Akademie der Wissenschften, Berlim, desde 1871. PLINIUS. Letters and panegyrics. Tradução de H. Rackham. Harvard: Harvard Universty Press, 1940. v. II, books 8-10. OBRAS DE APOIO ABEL, E. L.; BUCKEY, B. E. The handwriting on the wall – toward a sociology and psychology of grafiti. Connecticut: Greenwood Press, 1977. 132 ÄLFOLDY, G. 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Henri-Irénée Marrou (1975, p. 306-307) destaca que o prestígio destas últimas sobreviveu às condições sociais que as originaram, sendo que o desenvolvimento da eloquência e de sua técnica aperfeiçoaram-se e se transformaram com o im do regime político da cidade democrática ao estilo ateniense. A utilização da linguagem enquanto forma persuasiva e eicaz de comunicação, a denominada retórica, e a técnica da eloquência conferiam ao orador não só uma importância artística, mas também certa eicácia política. A utilização da retórica laudatória por textos políticos oiciais é um dos pontos que evidenciam certo tipo discursivo, conhecido como panegírico. O termo panegírico pertence à linguagem retórica grega (panegyrikós, que signiicaria reunião) (JOSÉ, 2011, p. 33), sendo utilizado originalmente para designar os discursos proclamados em complemento às assembleias solenes ou em reuniões festivas, como as que tinham lugar durante as Panatenaicas e os Jogos Olímpicos. Com o passar do tempo, passou-se a associar o termo aos discursos laudatórios e encomiásticos realizados tanto em solo grego quanto em território dominado pelos romanos (GALETTIER, 1949, p. VIII). Um panegírico poderia ser pronunciado em honra a uma pessoa, a uma cidade ou, de forma mais ampla, para gloriicar a pátria, a religião, a divindade, entre outros motes escolhidos para encadear os argumentos persuasivos. Alguns estudos, como os elaborados por E. Galletier (1949) e V.-J. Herrero-Llorente (1969), apontam que a primeira obra do gênero panegirístico foi um discurso de Isócrates, de 380 a.C., em gloriicação à cidade de Atenas, que pode ser designado como uma oração laudatória destinada a celebrar a m 135 excepcionalidade desta pólis. As características estilísticas empregadas nesse discurso relacionavam-se ao ensino das escolas fundadas por oradores e retores, que focavam na oratória enquanto arte suprema e na eloquência com inalidade cívica e patriótica, em última instância, sendo escolas de formação política (PEREIRA, 2003, p. 480-483). No Império Romano, os discursos panegirísticos começaram a ser utilizados com o engrandecimento da República e a formação do território imperial dominado pelos romanos, pois, além da necessidade de destacar personagens de prestígio, era costume que, na primeira vez em que o Cônsul falasse diante da Assembleia Centuriata, este aproveitasse a ocasião e izesse elogio aos seus pares. Mas foi somente a partir do período imperial que tal tipo de discurso alcançou uma signiicação política relevante, ao ter o elogio ao Príncipe como eixo principal. Com esta característica, tornou-se evidente que os panegíricos fossem proclamados em algumas das inúmeras ocasiões em que o orador fazia uso da palavra diante do soberano, como festas de nascimento, aniversários de fundação de Roma ou alguma outra cidade importante, aniversários de ascensão ao poder dos Imperadores, felicitações por uma campanha vitoriosa, entre outras possibilidades festivas de se promoverem orações públicas (GALETTIER, 1949, p. VIII). Como mostra Margarida Maria de Carvalho, transpassado pela cultura romana, o gênero panegirístico também passou a denominar um modelo discursivo elaborado para homenagear a vida de uma pessoa ilustre e/ou para criticar alguns expoentes políticos que a cercavam (CARVALHO, 2010, p. 24). A imagem do soberano idealizado era produzida por contraste com iguras consideradas inadequadas na arte da política. Assim, o panegírico se converteu num rol de virtudes a serem proclamadas como detidas pelos Príncipes gloriicados e, ao mesmo tempo, um elenco de vícios possuídos por usurpadores ou soberanos que governaram anteriormente ao soberano idealizado. Os Panegíricos como importantes fontes históricas Segundo Susanna Braund, os panegíricos eram utilizados para fundamentar a política imperial, tendo, para isso, como principal característica o elogio aos Príncipes por meio da laudatio, o exagero de suas características virtuosas (BRAUND, 1998, p. 55). Por isso, transformaram-se em importantes instrumentos propagandísticos, capazes de divulgar os feitos dos Imperadores e suas boas ações à frente do comando imperial. Aproveitava-se sua elaboração para expressar a admiração pelos soberanos e suas boas obras, ao mesmo tempo em que se divulgava a necessidade de obtenção de novas benesses. Tal característica tornou-se muito comum nos textos dos panegíricos elaborados nas províncias, cujas cidades dependiam, muitas vezes, da atenção imperial para a conquista de benesses tributárias, ou para a obtenção de permissão para 136 a construção de obras locais, ou mesmo para o envio de embaixadores à corte. Desse modo, a efetivação de um panegírico norteava a relação do soberano com as elites provinciais, pois tal recurso tornara-se uma arma política e ideológica. Muitos discursos podiam ser previamente encomendados aos melhores oradores. O próprio Imperador homenageado poderia indicar o orador para proferir o panegírico. Assim, o conteúdo era deinido pela consolidação da ideologia imperial e os argumentos e os recursos estilísticos eram dispostos de forma a cumprir as metas que direcionavam a elaboração das orações públicas. Os panegiristas buscavam fundamentar estes ideais através de abordagens que preiguram a imagem do homenageado em questão, por meio do resgate de vínculos que estabelecem ligações entre o presente e o passado, utilizando-se do ideal da tradição enquanto fonte legitimadora deste novo contexto político (FRANCHI, 2007, p. 101). O discurso panegirístico alicerçava o novo contexto político no início do Principado, criando novas bases para a relação estabelecida entre o Imperador e os aristocratas. Formava novos alicerces históricos para uma nova forma de governo, autocrática, estabelecida após o governo de Otávio Augusto. Em suas linhas, Imperadores encontravam grandes ancestrais, antepassados célebres, antigos defensores de Roma, que se tornavam origens da sabedoria, legitimidade, autoridade e poder dos soberanos (JOSÉ, 2011, p. 34). Por isso, a estrutura narrativa dos panegíricos seguia os repertórios de esquemas-chave aprendidos nas escolas de oratória, de forma que, segundo Rodriguez Guervás (1991, p. 11-30), esses discursos eram estruturados em geral sob três pontos principais: exórdio (no qual o orador airmava as causas que o levaram a pronunciar o discurso, sendo uma espécie de introdução ao elogio principalmente do Príncipe), proposição ou argumentação (parte na qual eram narradas as políticas empregadas, as campanhas militares e a grandiosidade das mesmas feitas pelos Imperadores) e, por im, a peroração (que resumia de forma tocante os feitos narrados, procurando mostrar os benefícios das políticas empregadas). Era a partir desse roteiro básico que os panegiristas desenvolviam suas próprias argumentações, que variavam de acordo com o contexto em que eram produzidas, sendo essa estrutura considerada como um fator positivo para a adesão dos ouvintes ao que estava sendo exposto. Ainda que no contexto do Império Romano os panegíricos apresentassem em seu conteúdo um forte espírito de adulação, seu valor histórico não pode ser negado. Com base nas ocasiões em que esse tipo de discurso era proclamado, E. Galettier (1949, p. VIII) – amparado pela obra de C. Jullian (Histoire de la Gaule) – estima que cerca de seis panegíricos, ao menos, eram pronunciados no decorrer de um ano. Logo, faziam referências aos acontecimentos recentes, sendo muitas vezes a única fonte sobrevivente sobre determinados assuntos, ou pelo menos a mais detalhada (caso das campanhas militares empreendidas pelos Imperadores). Herrero-Llorente (1969, p. 1062) destaca que, como os panegiristas proclamavam seus discursos diante de um 137 amplo público, conheciam de fato os acontecimentos que narravam e tinham pelo menos um comprometimento mínimo com a veracidade dos mesmos. Sob essa perspectiva, os panegíricos são importantes fontes que auxiliam na compreensão da trajetória política romana, tanto no Principado, com a Gratiarum Actio, professada por Plínio, o Jovem, quanto no Dominato, com os onze panegíricos que nos chegaram. Grande parte desses discursos panegirísticos não resistiu até os dias atuais, sendo que foram conservados de forma integral doze deles. Essas obras foram compiladas em uma coleção pela primeira vez em tempos mais modernos em 1433 por Giovanni Aurispa. Não estavam organizadas segundo a ordem cronológica e passaram a ser conhecidas como panegíricos latinos (RODRIGUEZ GUEVÁS, 1991, p. 11). Com exceção do panegírico atribuído a Plínio, o Jovem, realizado em homenagem ao Imperador Marco Úlpio Trajano e proclamado no ano 100 d.C., os demais discursos abarcam um período de um século, do ano de 289 d.C. até 389 d.C., e homenageiam os Imperadores Maximiano, Constâncio Cloro, Constantino, Juliano e Teodósio. A numeração dos discursos, segundo a ordem cronológica, passou a ser adotada após a compilação feita por E. Galletier em 1949, e se segue desde então. O Panegírico de Plínio e o Principado de Trajano Gaio Plínio Cecílio Segundo nasceu em Como, na Itália Transpadana, em 61 ou 62 d.C. Com a morte prematura de seu pai, passou à tutela de Lúcio Verginio Rufo, duas vezes Cônsul, em 63 e 69 d.C., e Governador da Germânia Superior, entre 67 e 68 d.C., que lhe permitiu uma educação elaborada dentro dos cânones aristocráticos. Seus primeiros estudos foram feitos ainda em Como, com o auxílio de um gramático. Depois, mudou-se para Roma, onde recebeu aulas de retórica grega com Nicetes, sacerdote de Esmirna, e de retórica latina, com Quintiliano, já famoso orador em seu tempo. Em 80 d.C., entrou no cursus honorum, ou seja, passou a se ocupar de funções públicas. Foi decemuir stlitibus iudicandis, o presidente de uma das quatro seções em que se dividia o tribunal dos centúnviros. Ainda vinculado a questões militares, foi nomeado tribuno militar da legião III Gálica da Síria, no começo do governo do Imperador Domiciano. Plínio contava com 34 ou 35 anos quando este Príncipe foi assassinado em seu Palácio em 96 d.C. Já havia sido Tribuno da Plebe, Questor e Pretor (entre 90 e 93 d.C.). De 94 a 96 d.C., ocupou a Prefeitura do Tesouro Militar, função que o habilitou a ascender à Prefeitura do Tesouro de Saturno em 98 d.C., designado por Nerva e Trajano. Desempenhou este cargo até 100 d.C., quando Trajano o recomendou para o Consulado. Como Cônsul Suffectus, isto é, em exercício no lugar do próprio soberano, que havia aberto mão deste cargo em prol de um aristocrata, Plínio pronunciou no Senado um discurso de agradecimento ao Príncipe pela honra alcançada, a chamada 138 gratiarum actio: uma oração de ação de graças pela oportunidade de servir à pátria. Este discurso proclamado em frente aos patres serviu como base para a reelaboração e posterior publicação, com os meios disponíveis à época (cópias em suportes de papiros e pergaminhos produzidas por escravos alugados e/ou comprados com essa inalidade), do que passou a se denominar de Panegírico de Trajano. Seu tamanho indica sua revisão antes da divulgação, pois seriam necessárias três sessões de declamação de uma hora ou uma hora e meia cada para que toda a obra fosse lida, e sabe-se que uma ação de graças deveria durar apenas uma hora da manhã ou da tarde do tempo dos Senadores (MARTÍN, 2007, p. 32). Plínio foi convidado em várias ocasiões a participar do Consilium Principis, o conselho privado do Imperador, cujos elementos integrantes eram responsáveis por fazer sugestões de medidas a serem tomadas em Roma e nas províncias. Assim, frequentou a corte e o Palácio e privou de conversações diretas com o soberano que homenageou em sua obra. Foi cumulado de honras por Trajano: tornou-se Áugure em 103 d.C. e diretor da limpeza das Cloacas (a rede de esgotos da capital) e supervisor das cheias do Rio Tibre em 104 d.C., algumas das magistraturas mais honradas e de maior responsabilidade do Império, reservadas aos mais importantes Senadores. Ao inal de sua vida, Plínio foi nomeado diretamente por Trajano para o Governo do PontoBitínia, como Legado Imperial Propretor com poderes proconsulares. Dessa forma, ele passava a representar Roma e seu governante numa das províncias imperiais paciicadas mais importantes dentro do limes. Da província que governava, Plínio passou a trocar correspondência com Trajano, o que permitiu a produção de um Epistolário composto de dez volumes (sendo o décimo volume integrado pelas respostas do Imperador, revistas, copiadas e divulgadas a mando de Plínio). Ele morreu na Bitínia entre 111 e 112 d.C., durante o desempenho de seu cargo. Ele agrupou em torno de si amplo círculo cultural, como era comum à época, do qual izeram parte Frontino, Marcial, Tácito, Suetônio, Canínio Rufo, Sencio Augurino, Gaio Fannio, Virgílio Romano, Titio Aristão, Domício Apolinário, Septício Claro, Vestício Espurina e Licínio Sura. Por meio da análise de sua correspondência, vê-se que detinha inúmeras propriedades fundiárias, que costumava visitar, e que considerava a literatura como o meio mais seguro de se conseguir a glória em vida e a imortalidade pela recordação (MARTÍN, 2007, p. 15). Todas essas informações devem ser levadas em conta ao se analisar o seu discurso de agradecimento ao Príncipe, denominado tardiamente de Panegírico ao Imperador Trajano, feito em seu próprio nome e no de seu colega de Consulado, Gaio Júlio Cornuto Tértulo, frente ao Senado e possivelmente na presença do próprio soberano. O título com o qual hoje se nomeia essa oração apareceu pela primeira vez numa epístola de Sidônio Apolinário (VIII.10.3), enquanto o próprio autor se refere à mesma como gratiarium actio, um discurso de agradecimento (PLÍNIO. Panegírico, 1.6; 53.6; 90.3). Desde o governo de Otávio, os Cônsules proferiam essa peça oratória em agradecimento aos deuses e dedicavam suas palavras ao Imperador, Pontíice Máximo, ponte entre o mundo divino e o mundo terreno. 139 Sua estrutura narrativa, como nos chegou, segue os cânones estilísticos dos panegíricos: introdução, proposição ou argumentação e peroração, dividindo os assuntos em três blocos: a vida de Trajano até sua ascensão ao Principado; as medidas políticas, econômicas e sociais julgadas mais importantes de seu governo; a rememoração de seu comportamento durante seus três Consulados. Toda a descrição da trajetória do soberano culmina com um fato religioso-político (estruturas indissociáveis no mundo romano): a outorga do título de Optimus pelo Senado, que ele dividia apenas com Júpiter, líder do panteão divino dos romanos (PLÍNIO. Panegírico, 88.4). Como Júpiter governaria os céus com sabedoria, clemência e autoridade, o mesmo ocorreria no plano terreno com Trajano, que deveria ser respeitado por sua benevolência, propriedade de conduta e predisposição a manter a ordem, a harmonia e a prosperidade. A liderança trajânica garantiria a ordenação capaz de gerar a abundância em todos os territórios controlados pelos romanos, por isso era fundamental divulgar os feitos do Imperador. O discurso pliniano responde ao gênero do encômio em prosa, que já contava com larga tradição no século II d.C., pois já haviam sido produzidas obras como Em Defesa de Marcelo, de Cícero, História de Roma, de Veléio Patérculo (no livro II.126-131 temos o elogio de Tibério), e Sobre a Clemência, de Sêneca, narrativas nas quais se pode rastrear as virtudes que deveriam conduzir o caráter dos bons magistrados e dos melhores homens públicos e os vícios que deveriam ser evitados para se conquistar a aprovação dos aristocratas e dos demais súditos e/ou concidadãos. Cada obra destas revela um rol especíico de qualidades e deméritos, considerados importantes por cada autor, mas que nos lembram que a ausência de uma regra sucessória deinida e de leis que demarcassem os poderes imperiais de forma clara levava os aristocratas a requisitarem dos soberanos travas morais. Só a ética bem aplicada poderia nortear as ações dos Príncipes. A sabedoria estava em eleger a conduta moralmente correta na hora exata, já que a legislação existente não deinia os direitos e os deveres exatos dos Príncipes. Como magistrados, representavam a comunidade, frente aos outros povos e aos deuses, e deveriam garantir a concórdia capaz de gerar estabilidade e riqueza. Assim, a prosa latina está repleta de referências da arte de bem governar, como é o caso do discurso de Plínio. Assim começa o discurso de Plínio: Com razão e sabedoria, pais conscriptos, nossos ancestrais estabeleceram que o começo de qualquer ato de nossa vida ou de qualquer discurso deve ser precedido de uma invocação aos deuses a partir da ideia de que os homens nada podem empreender favorável nem adequadamente sem a ajuda, o conselho e a estima dos deuses imortais. E quem deve com maior razão fazer uso desta tradição e respeitá-la senão um Cônsul? E que ocasião seria mais propícia do que, obedecendo à autoridade do Senado e a majestade do Estado, pronunciamos um discurso de agradecimento aos melhor dos Príncipes? (PLÍNIO. Panegírico, 1.1-2). 140 Já alcunhado de “o melhor”, a obra é repleta de elogios a Trajano, cujas virtudes eram exercidas tanto em ambientes privados quanto públicos: Certamente, o povo romano sabe estabelecer diferenças entre uns Príncipes e outros. Com a mesma unanimidade com a que pouco tempo antes se aclamava um governante por sua beleza, aclama-se agora este soberano por seu extraordinário valor, e com o mesmo critério com o qual em outro tempo se elogiou a expressividade e a voz de outro Príncipe, elogia-se em nossos dias a devoção ilial, a honestidade e a bondade do atual governante (PLÍNIO. Panegírico, 2.6). Estabelecendo a diferença entre os governos de Domiciano e Trajano, seres com características pessoais, físicas e administrativas diferentes, na narrativa pliniana, é a moral que conduz as medidas administrativas e inanceiras por Trajano tomadas, propondo um modelo de comportamento ideal para o Príncipe, que lhe permitiria governar com segurança. Com freqüência, pais conscriptos, meditei em silêncio quais qualidades e que grandeza convinha que possuísse aquele cuja autoridade e vontade deviam reger os mares e as terras, a paz e a guerra. Sem dúvida, quantas vezes imaginei e representei esse Príncipe ideal digno de administrar um poder só comparável ao dos deuses imortais. [...] Até agora não houve ninguém cujas virtudes não se vissem obscurecidas pela proximidade de algum vício. Pelo contrário, quantos méritos e quanta glória de todo tipo se reúnem na igura de nosso Príncipe que garante a mais absoluta concórdia e harmonia (PLÍNIO. Panegírico, 4.4-5). Além de exaltar o Imperador, Plínio apresenta a este a imagem de um Senado ativo, inluente e com peso político, que não deveria ser ignorado pelo soberano (MARTÍN, 2007, p. 35), como havia feito Domiciano. Este mérito se deve a tua modéstia, não a nossa irmeza, pois cedemos ante a tua vontade quando nos reunimos na Cúria não com a intenção de participar de uma competição de adulações, mas com o desejo de aplicar as leis e administrar justiça, com a ideia de que este é o melhor agradecimento que podemos expressar por tua franqueza e moderação (PLÍNIO. Panegírico, 54.5). Lembremos também que o Panegírico é praticamente nossa única fonte sobre a adoção de Trajano por Nerva (PLÍNIO. Panegírico, 7.1-7 e 8.12), visto que Suetônio inalizou As Vidas dos Doze Césares com a morte de Dominicano, Tácito não escreveu sobre Trajano, a História Augusta se inicia com Adriano, a parte das Histórias de Amiano Marcelino em que se narravam os tempos de Trajano se perdeu e em grego só temos as epítomes dos séculos XI e XII do livro LXVIII da História de Roma de Dion Cássio consagrado aos 141 governos de Nerva e Trajano (MARTÍN, 2007, p. 37). Trajano é apresentado tendo o beneplácito e a proteção das divindades: “A providência dos deuses te havia elevado ao primeiro posto do Estado” (PLÍNIO. Panegírico, 10.4). Além disso, conhecia seus governados de perto: Durante dez anos de campanhas, conhecestes os distintos costumes dos povos, a coniguração das regiões e as vantagens e desvantagens de seus territórios, e te acostumastes a suportar o diferente sabor de suas águas e as peculiaridades de suas estações como as fontes e o clima de nossa pátria (PLÍNIO. Panegírico, 15.3) Conhecendo as extensas possessões imperiais, Trajano saberia governar com sabedoria e conseguiria manter o Império em paz, inscrevendo seu nome na memória política romana, a partir de seus grandiosos feitos: Quanto se alegram todas as províncias de estarem sob nossa proteção e nossas leis desde o surgimento de um Príncipe capaz de transladar e mover ora aqui ora ali a ferocidade dos campos, segundo requeiram as circunstâncias e as necessidades, e de alimentar e sustentar gentes que habitam o outro lado do mar como se fossem parte do povo e da plebe de Roma (PLÍNIO. Panegírico, 32.1). Para Plínio, “a tirania e o Principado são dois regimes de natureza completamente diferentes” (PLÍNIO. Panegírico, 45.3) e “os seres humanos recebem uma melhor instrução dos exemplos” (PLÍNIO. Panegírico, 45.6). Dessa forma, o governante deveria ter uma conduta moderada, contida, sóbria, equilibrada, capaz de mover os súditos na direção das ações virtuosas, pois tudo seria acompanhado com interesse pelos subordinados: O fato de ocupar uma elevada posição na sociedade tem como efeito imediato que não se permite que nada permaneça coberto, que nada permaneça oculto, e assim não somente se abrem os Palácios dos Príncipes, mas também suas habitações e seus mais íntimos refúgios, e revela e põe em conhecimento da opinião pública todos os segredos de suas vidas. Não obstante, em teu caso, César, nada redundaria em mais benefício de tua glória do que se te conhecessem a fundo. São certamente ilustres as qualidades que exibes em público, mas não são inferiores aquelas que mostras dentro de tua casa (PLÍNIO. Panegírico, 83.1-2). Este denominado a posteriori Panegírico de Trajano serviu de modelo aos outros onze panegíricos produzidos nos séculos III e IV que a ele aparecem associados pela tradição manuscrita. O conjunto tem sido denominado como os XII Panegyrici Latini a partir de uma recopilação que os juntou ao inal do século IV. O primeiro testemunho manuscrito dessa tradição são os fólios palimpsestos do códex da Biblioteca Ambrosiana de Milão do século VI. Em 142 1433, como vimos, Giovanni Aurispa encontrou na Catedral de São Martinho de Mainz um manuscrito que guardava o texto dos doze panegíricos, do qual rapidamente fez uma cópia. Entre 1476 e 1482, produziu-se uma cópia em Milão por Franciscus Puteolanus, da qual se originaram cópias não italianas que se espalharam pela Europa. Os Panegíricos no Dominato Uma vez já destacado que o conteúdo dos panegíricos e a argumentação utilizada pelos oradores relacionavam-se ao contexto em que eram produzidos, no Dominato essas obras adquiriram características particulares, além de conquistarem um importante papel na política imperial. As antigas instituições republicanas não foram suicientes para a manutenção de um amplo Império, gerando a necessidade de uma reorganização do poder, o que já havia sido base do sistema de governo de Otávio Augusto, mas que agora necessitava de mais uma adaptação. Foi nesse momento que as bases que fundamentavam a dominação romana, como o ideal de cidadão a partir da res publica, converteram-se paulatinamente em uma estrutura de poder centralizada no Imperador, fortemente inluenciada pelas organizações monárquicas orientais e helenísticas. Aliado a esta questão, e até mesmo em decorrência dela, tem-se o aumento da pressão nas fronteiras pelos povos estabelecidos fora do limes. Essa intensiicação das invasões é potencializada pela fragilidade das relações do poder central com as províncias (estas serviam também como uma barreira à migração desses povos). Isso conduziu ao reforço do papel dos exércitos dentro da política imperial, e os generais aparecem então com maior destaque. É decorrente desse processo o fato de as elites provinciais adquirirem cada vez maior importância nas instituições políticas imperiais, fruto da necessidade de manutenção do próprio projeto de integração e assimilação entre o centro e as províncias, debate amparado a partir do conceito de romanização (BANCALARI MOLINA, 2007). Frente ao esgotamento das antigas instituições republicanas e a paulatina falência desse processo de integração, um elemento que se sobressaiu foi o número elevado de guerras civis que objetivavam a ascensão ao poder de inúmeros personagens. Essa série de usurpações, que tem seu apogeu durante os séculos III e IV d.C., reforçou a preocupação com a legitimidade da instituição imperial, e é nesse sentido que se percebe que um dos pilares da política de manutenção do Império assentava-se na reestruturação teórica e ideológica acerca do poder e da legitimidade do soberano, focando então na propaganda da política imperial e na promoção dos fundamentos do Dominato. Richard Miles (2005) entende que para manter o poder e o Império era essencial que o Imperador mantivesse uma rede regular de informações, promovendo a manutenção da integração entre centro e províncias, considerando então a comunicação como a própria representação do poder imperial. 143 Esses fatores ocasionaram repercussões na política educativa, desde a criação de cátedras estatais até privilégios iscais, o que possibilitava um processo de elevação social dos professores de retórica, que cada vez mais assumiam a tarefa de colaborar diretamente com o Dominus, estreitando assim a relação entre os retóricos, os grupos dominantes e a aristocracia provincial (RODRIGUEZ GUERVÁS, 1991, p. 11-17). Ao discorrer sobre a posição desses intelectuais na Antiguidade, Maria José Hidalgo de la Vega (1995, p. 49-53) ressalta a importância que eles adquiriram para a comunicação entre o Estado e os demais setores da população. Para a autora, esses “detentores do saber” sempre foram os responsáveis por preocupações acerca da problemática da justiicação do poder político, elaborando e modelando as categorias ideológicas do pensamento mais coletivo, principalmente pelo fato de que, sendo a educação privilégio de um grupo social elevado, acabavam por fundamentar e legitimar as preocupações desse grupo ao qual pertenciam. Marrou (1975, p. 471) airma que esse interesse mais direto dos Imperadores pela educação “[...] não se trata de apenas um efeito do desenvolvimento geral do embargo do estado sobre todas as manifestações da atividade pública, mas, antes, de uma vigilância especial, uma deliberada solicitude”. É sob essa ótica que a análise dos panegíricos latinos produzidos no Dominato adquire relevância. O controle dessa forma de comunicação garantiria a eicácia do processo de legitimação do poder, e é por conta disso que os discursos panegirísticos eram encomendados aos melhores oradores e, na grande maioria das vezes, estes oradores teriam sido indicados pelo próprio Imperador. Isso poderia ocasionar que o conteúdo das obras fosse composto por declarações políticas orientadas diretamente pelo soberano ou que, pelo menos, o texto inal passasse pelo seu aval. Embora somente seis panegíricos dessa coleção tenham a autoria identiicada, a situação social geral dos oradores pode ser especulada a partir de elementos do próprio discurso. Rodriguez Guervás (1991, p. 2125) discorre que todos tinham relação com as escolas de oratória da Gália, a maioria ocupava ou já havia ocupado cargos administrativos de maior ou menor importância, e um deles indica em seu discurso ter sido proprietário de terras. Nessa perspectiva, além dos panegíricos exporem os principais problemas concernentes à política imperial, e, empregando a laudatio, sob a forma de elogios aos Imperadores, tornaram-se importantes instrumentos utilizados na fundamentação dessa política ‒ logo, um eiciente meio de comunicação entre o centro e as províncias que também adquiria características propagandísticas. Ponderando essas questões, é possível compreender que a função ideológica dos panegíricos no Dominato consistiria em uma deinição do quadro imperial romano ao mesmo tempo em que procurava construir as bases do sistema emergente. Isso porque se pode destacar que essas obras e seus respectivos autores têm em comum uma ideologia compartilhada, formalizada por intermédio dos valores morais da aristocracia provincial ‒ que interiorizava o mos maiorum –, e defendia o conceito de Roma aeterna – que comportava a manutenção da ordem política (externa e interna) e o sistema econômico vigente (RODRIGUEZ GUERVÁS, 1991, p. 25). 144 Tais discursos panegirísticos proporcionam, desse modo, uma ampla visão sobre a história do período, uma vez que abarcam desde a reconiguração da política imperial com Diocleciano após 284 d.C., chegando aos prolongamentos deste período de instabilidade, com Teodósio, em 389 d.C.. Temos, então, as seguintes orações laudatórias: Panegírico de Mamertino em Honra de Maximiano Augusto (Mamertino, 289 d.C.), Discurso de Aniversário de Mamertino em Honra de Maximiano Augusto (Mamertino, 291 d.C.), Panegírico de Constâncio César (Anônimo, 297 d.C.), Discurso de Eumênio em prol da Restauração das Escolas de Autun (Eumênio, 298 d.C.), Panegírico em Honra a Maximiano e Constantino (Anônimo, 307 d.C.), Panegírico de Constantino (Anônimo, 310 d.C.), Discurso de Ação de Graças Dirigido a Constantino Augusto (Anônimo, 312 d.C.), Panegírico em Honra de Constantino (Anônimo, 313 d.C.), Panegírico de Constantino (Nazário, 321 d.C.), Discurso de Ação de Graças a Juliano (Cláudio Mamertino, 362 d.C.) e Panegírico de Teodósio Augusto (Latino Pacato, 389 d.C.). Boa parte dos discursos panegirísticos produzidos entre 289 e 389 d.C., de acordo com E. Galletier (1949, p. VII-X), foi pronunciada em cidades fora da Península Itálica, na maioria das vezes em cidades da Gália (somente três deles foram pronunciados em Roma), o que permite estabelecer um elo com a crescente inluência das regiões provinciais na participação política. As escolas de retóricas gaulesas tiveram grande importância na fundamentação de normas e hábitos escolares, com forte preocupação em fazer uso em suas produções do latim clássico. Rodriguez Guervás (1991, p. 20) enfatiza o signiicado da utilização do latim clássico pelos panegiristas em um momento de “plena anarquia e decomposição da língua”. O reforço ideológico da latinitas evidencia que os panegiristas não só defendiam o sistema de dominação romano, mas também participavam dele. Ao louvar a imagem dos Imperadores, boa parte dos panegíricos confeccionados no Dominato tem a preocupação de abordar as ameaças internas para a manutenção do Império ‒ questão da usurpação do poder imperial e legitimidade dos soberanos ‒, mas também as ameaças externas, quando fazem referências às ações que desestruturariam o sistema de dominação romana ‒ caso das investidas ao limes pelos povos bárbaros. Essas abordagens estão inseridas em um contexto histórico que Gilvan Ventura da Silva agrupa da seguinte forma: Ciclo da formação da Tetrarquia e Ciclo da crise da Tetrarquia (SILVA, 1995, p. 73), na medida em que muitos dos panegiristas apresentam argumentações com um fundo comum. Em relação ao ciclo de formação da Tetrarquia, pode-se encontrar referências nos discursos panegirísticos pronunciados nos anos de 289, 291, 297 d.C. Nessas obras, a principal preocupação dos oradores é a justiicação e manutenção do sistema tetrárquico e as alianças por ele consolidadas, onde procuravam, a partir da defesa de uma continuidade dinástica, garantir a reuniicação do Império e afastar as ameaças externas. Retoma-se, assim, a questão da necessidade de o Imperador velar pela ordem, pois só esta garantiria a prosperidade. 145 Nos discursos panegirísticos de 289 e 291 d.C., Mamertino procura dar destaque à primeira aliança feita por Diocleciano, no ano de 286 d.C., com Maximiano. Essa aliança precedeu a divisão tetrárquica do poder, que ocorreu no ano de 293 d.C. Embora o poder imperial possuísse dois representantes a partir desse momento, faz-se necessário destacar que, inicialmente, a nomeação de Maximiano como César respondia unicamente à necessidade militar de defesa dos territórios do Ocidente, sendo que este não possuía qualquer jurisdição administrativa sobre os territórios que lhe foram concedidos (HERREROLLORENTE, 1969, p. 1065). A mudança de estratégia de Diocleciano ao nomear Maximiano Augusto é evidente nesses panegíricos e se justiica por um novo elemento que ameaçava a integridade do Império: a dissidência de Caráusio. A tentativa de usurpação do poder imperial requeria uma resposta imediata para garantir a manutenção da integridade do território imperial, e um soberano ilegítimo só poderia ser combatido com eiciência por um Imperador legítimo. Logo, a partir desses discursos panegirísticos, percebe-se a preocupação do orador em justiicar a aliança entre Diocleciano e Maximiano, ressaltando a concórdia existente entre ambos. Por esse motivo, quando Mamertino louva Maximiano em diversos pontos de seu discurso, procura associá-lo a Diocleciano, retratando os mesmos como fundadores e restauradores do Império (MAMERTINO. Discurso de Aniversário de Mamertino em Honra de Maximiano Augusto, 7.3). Em contrapartida, o processo de legitimação de Maximiano deu-se também por meio da contraposição com Caráusio, que não aparece nominalmente no discurso, somente mediante alcunhas pejorativas, como “esse pirata”. É necessário destacar que a dissidência de Caráusio aparece somente na parte inal do Panegírico de 291 d.C., entretanto, essa referência aparentemente secundária justiica-se quando observamos a tentativa do orador em aludir a uma suposta tranquilidade e segurança do mundo romano, realidade que não é constatada pelas demais fontes sobre o período. A respeito disso, Herrero-Llorente (1969, p. 1062) discorre que, em relação aos fatos históricos, os panegiristas mais os omitem que os distorcem. Para o autor, os panegiristas se limitam a não fazer referências a alguns aspectos que poderiam obscurecer a glória dos Imperadores homenageados. Como as campanhas de Maximiano contra Caráusio não foram exitosas e este usurpador obtinha cada vez mais um controle efetivo sobre os territórios da Bretanha e da Gália, Diocleciano reorganizou pela segunda vez a distribuição da autoridade imperial, nomeando Constâncio Cloro e Galério como Césares — esse é o contexto do último panegírico referente ao Ciclo de Formação da Tetrarquia, o Panegírico de Constâncio César, datado de 297 d.C. Tal discurso em homenagem ao aniversário de designação de Constâncio Cloro ao Cesarato é a única fonte que oferece um relato completo das operações do poder imperial romano contra Caráusio, e mais uma vez podese constatar que a legitimação do homenageado, além de ser fundamentada pelas alianças da política imperial tetrárquica, é alicerçada pela maculação dos Imperadores ilegítimos ou aspirantes ao poder, que, devido ao insucesso de suas investidas, eram denominados de usurpadores. Deve-se também ressaltar que 146 a oração laudatória foi produzida para comemorar o renascimento do homem Constâncio como Imperador Constâncio, visto que foi proferida no aniversário de ascensão do Dominus, o que indica a permanência da importância desse tipo de festividades mesmo durante o Dominato, como forma de se estimular a estabilidade imperial e a imagem positiva do soberano. O que pode ser observado a partir desses três discursos panegirísticos é que a instituição da Tetrarquia foi fruto de necessidades práticas, sendo que o princípio que conduzia as medidas empreendidas por Diocleciano era a necessidade de defender a qualquer custo a unidade do Império, combatendo inimigos exteriores e se prevenindo internamente das secessões e usurpações (HERRERO-LLORENTE, 1969, p. 1066-1067). No que se refere ao Ciclo de crise da Tetrarquia, os panegíricos pronunciados nos anos de 307, 310, 312, 313 e 321 d.C. contribuem com inúmeros elementos para a compreensão das disputas imperiais acometidas após a morte de Constâncio Cloro, em 306 d.C., principalmente pelo fato de ter como centro o louvor a Constantino, que no ano de 324 d.C. conseguiu se consolidar como único representante do poder imperial. Uma das características da política tetrárquica era a tentativa de acabar com as usurpações, estabelecendo uma política sucessória consistente, ou seja, os Césares ascenderiam ao posto de Augustos após a morte destes ou decorridos vinte anos de governo, nomeandose assim novos Césares. Contudo, após a renúncia de Diocleciano em 305 d.C, seguida da de Maximiano, Constâncio Cloro e Galério ascenderam ao posto de Augusto e ocorreu a nomeação dos novos Césares, Maximino Daia e Severo, o que demonstrou mais uma vez a fragilidade da política imperial, tendo em vista que se negligenciou a pretensão de dois generais aspirantes que buscavam sua participação por meio do princípio da hereditariedade — Constantino e Maxêncio (ilhos de Constâncio Cloro e Maximiano, respectivamente). Até o ano de 306 d.C, essa situação não havia se tornado um problema efetivo, mas, com a morte de Constâncio Cloro neste ano, seu ilho (Constantino) foi aclamado Augusto por suas tropas na Gália. O Augusto Galério empenhouse em não deixar que essa aclamação desestruturasse a Tetrarquia com novas usurpações, reconhecendo Constantino como César sob Severo (que ocupou oicialmente o lugar de Constâncio Cloro), porém a fragilidade do sistema já havia sido exposta. Maxêncio foi aclamado Augusto pelos Pretorianos e Maximiano requisitou o poder ao qual havia renunciado em 305 d.C. O orador do Panegírico em Honra a Maximiano e Constantino (307 d.C.), ao celebrar a ascensão de Constantino como Augusto, procura legitimar este Imperador a partir da aliança com Maximiano (o qual airma nunca ter deixado de ser Imperador), celebrada também pelo seu casamento com Fausta (ilha de Maximiano). Contemporiza, então, a ascensão ao poder por meio das tropas, reconhecendo Constantino como César (posição concedida por Galério), mas airma sua honra ao dizer que este somente teria aceitado a posição de Augusto após nomeação de um Imperador legítimo, com o claro objetivo de afastar as possíveis argumentações de que Constantino havia usurpado o poder por meio da força militar, sendo, portanto, ilegítimo de ocupar referida posição 147 (ANÔNIMO. Panegírico em Honra a Maximiano e Constantino, 5.1). Uma vez que os discursos panegirísticos se relacionam diretamente com o contexto em que foram produzidos, com o im da aliança entre Constantino e Maximiano o orador do panegírico pronunciado no ano de 310 d.C., denominado de Panegírico de Constantino, estabelece algumas alterações substanciais em sua narrativa a respeito dos eventos que geraram a ascensão de Constantino: a ligação com Maximiano é praticamente deixada de lado como eixo da justiicação, sendo que esta passa à defesa de uma dinastia hereditária, na qual Constantino seria merecedor do Império por ocasião de seu nascimento e não em decorrência de seu casamento e/ou adoção. O interessante é que mesmo fazendo menção ao contexto de rompimento da aliança, o orador, tal qual nos demais discursos, não faz referência direta ao opositor da política imperial estabelecida, fazendo alusão a Maximiano como “aquele homem” (ANÔNIMO. Panegírico de Constantino, 14.1). Em continuidade, após Constantino derrotar Maxêncio na batalha da ponte Mílvia (312 d.C.) e depois dos primeiros enfrentamentos com Lícinio (314 d.C.), dois novos discursos panegirísticos foram confeccionados, o Panegírico em Honra de Constantino (313 d.C) e o Panegírico de Constantino Augusto (321 d.C.), seguindo a mesma lógica argumentativa dos discursos anteriores, ou seja, ressaltando-se a necessidade de uma sucessão hereditária. O que se pode perceber a partir da análise destes panegíricos em homenagem ao Imperador Constantino é uma constante procura por parte dos oradores em fundamentar a legitimidade do poder imperial baseada em uma herança familiar. A referência a Constâncio Cloro está presente em todos esses encômios, mas também percebese que os oradores estabelecem vínculos com Cláudio, o Gótico (ANÔNIMO. Discurso de Ação de Graças Dirigido a Constantino Augusto, 2.1-2), e celebram a nomeação de Crispo e Constantino, o Jovem, como Césares (NAZÁRIO. Panegírico de Constantino, 1-4). Existe um considerável intervalo entre a produção panegirística em louvor a Constantino e seus ilhos e os dois últimos discursos da coleção. O Discurso de Ação de Graças a Juliano de Cláudio Mamertino foi proclamado no ano de 362 d.C., quarenta e um anos após o panegírico de Nazário ter sido produzido, e há novamente uma separação de cerca de trinta anos até o surgimento do Panegírico de Teodósio Augusto de Latino Pacato, em 389 d.C. Essas obras também fazem referências à disputa imperial e detalham as batalhas empreendidas pelos Imperadores homenageados. É perceptível como estes são os dois problemas mais ressaltados pelos encomiastas: os problemas sucessórios e as invasões de povos estrangeiros, um diretamente vinculado ao outro, pois as usurpações causavam desordem, que propiciava o enfraquecimento da defesa do limes, visto que as forças coercitivas bélicas eram utilizadas internamente; de igual maneira, vários Imperadores sucumbiam em mãos de lideres bárbaros sem terem organizado sua sucessão. Por isso, esses são os eixos argumentativos mais elaborados pelos panegiristas em suas obras, já que os mesmos visavam fornecer aos ouvintes/leitores um espelho de seu tempo e propostas de solução para os problemas vigentes. 148 Cláudio Mamertino elabora seu discurso em ocasião de sua elevação ao Consulado por Juliano, como Plínio havia feito com Trajano. Assim, os elogios feitos a este Imperador aparecem com mais vigor, inseridos numa tentativa de demonstrar a todo custo que este novo soberano (proclamado Augusto pelas tropas em 360 d.C., mas reconhecido após a morte de Constâncio II em novembro de 361 d.C.) era digno do poder imperial, tanto pelo seu valor militar, como por suas virtudes pessoais (HERRERO-LLORENTE, 1969, p. 1298). Com o Panegírico de Teodósio Augusto tem-se mais um exemplo da proclamação desse tipo de discurso após campanhas militares vitoriosas, sendo que Latino Pacato procurou exaltar o Imperador Teodósio após a vitória sobre o usurpador Máximo (388 d.C.), que foi executado por seus partidários (LATINO PACATO. Panegírico de Teodósio Augusto, 43-44). Com isso, as vitórias militares enfatizadas são duplas: sobre problemas sucessórios internos que desestabilizavam o poder imperial e sobre invasões externas que se apropriavam dessa desordem para invadirem o território romano, desarranjando ainda mais as já combalidas inanças imperiais. Percebe-se, então, que em um contexto de instabilidade da política imperial, no qual despontam inúmeras usurpações do poder, a manutenção da posição alcançada pelo Imperador era extremamente necessária. Para tanto, os governantes utilizavam de instrumentos que pudessem garantir a legitimidade de sua ascensão e de seu governo, e os discursos panegirísticos cumpriam tal função ao ampliar a propaganda da política imperial e ao estabelecer as bases teóricas da política oicial, por meio da defesa da res publica conduzida pelos Imperadores elogiados frente aos usurpadores e aos grupos rebeldes do Império (RODRIGUEZ GUERVÁS, 1991, p. 27-31). Considerações Finais Tanto em Roma quanto nas províncias conquistadas, esperava-se a manutenção do equilíbrio, de que a bonança permanecesse pelo status quo. O maior bem que se esperava da constituição do Império era a estabilidade, a proteção da propriedade privada que marcara a formação da res publica (GALINSKY, 1998, p. 7). Karl Galinsky airma que o retorno aos valores dos antepassados e a rearticulação dos princípios políticos e legislativos por Otávio garantiram popularidade e legitimidade ao seu governo, dando-lhe auctoritas (GALINSKY, 1998, p. 10). E esse governo passou a servir de parâmetro para que seus sucessores, possuidores de potestas, auctoritas e imperium para governar o amplo território conquistado e anexado pelos romanos ao longo da República, fossem descritos pelos autores latinos e gregos. A autoridade no agir viria da capacidade de gerar consenso, um consenso universal que adviria do fato de a presença no poder de comando do Imperador gerar estabilidade, capaz de acalmar o corpo de cidadãos, de permitir a manutenção do Império territorial e de colocar as forças produtivas em ação. 149 A liderança do governante, tanto no Principado quanto no Dominato, garantiria os interesses de todos, pois o próprio sentido de auctoritas, como demonstra Francisco Javier Casinos Mora, no livro La Noción Romana de Auctoritas y la Responsabilidad por Auctoritas (2000), indica a necessidade de reciprocidade entre o Princeps, o Senado e o povo romano. O homem que possui autoridade possui também direito e dever de participação e de julgamento (arbitrium), exercendo a partir disso uma liderança antes de tudo moral. Como diz Galinsky, não se trata de uma liderança simplesmente carismática, mas deinida em termos de virtudes tradicionais a serem exercidas e compartilhadas (GALINSKY, 1998, p. 80). Como garantidor da paz doméstica, dos privilégios aristocráticos e da segurança pelas leis, o Imperador garantiria o consenso fundamental para se governar o Império. E é essa imagem de paciicador, de ordenador, de líder, de general vitorioso que perpassa os panegíricos produzidos em honra aos Imperadores. Mesmo no Discurso de Eumênio em prol da Restauração das Escolas de Autun, dedica-se o mesmo ao soberano, que por suas virtudes veria a importância da reabertura das escolas gaulesas, nas quais o ensino de retórica e oratória capacitaria os estudantes a louvarem as atitudes dos líderes. Os encômios foram antes de tudo exemplos de divulgação dos atos dos Imperadores e da outra face do poder em Roma: a necessidade de agradar os súditos e/ou concidadãos. Pelas orações laudatórias, podemos perceber o que os oradores, e aqueles que eles representavam, desejavam do soberano. Os Panegíricos foram, portanto, constituídos por uma amálgama de desejos, ambições e frustrações. REFERÊNCIAS DOCUMENTAÇãO PRIMÁRIA PANÉGYRIQUES Latins. Trad. E. Galletier. Paris: Les Belles Lettres, 1949. T. I. PANÉGYRIQUES Latins. Trad. E. Galletier. Paris: Les Belles Lettres, 1952. T. II. PANÉGYRIQUES Latins. Trad. E. Galletier. Paris: Les Belles Lettres, 1955. T. III. PLINIO, El Joven. Epistolário e Panegírico del Emperador Trjano. Trad. J. C. Martín. Madrid: Cátedra, 2007. OBRAS DE APOIO BANCALARI MOLINA, A. La Romanización como processo histórico de larga duración: fundamentos teóricos e La teoría y el estudio de la Romanizacion: pluralidad de modelos. In: ______. Orbe Romano e Império Global: La Romanizacióm desde Augusto a Caracalla. Santiago: Universitaria, 2007. p. 27-98. BRAUND, S. 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Phoînix, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.73-84, 1995. 151 IMAGENS “BORDADAS” NA PEDRA: OS MOSAICOS COMO FONTE PARA O ESTUDO DA SOCIEDADE ROMANA Gilvan Ventura da Silva Dialogando com a cultura material o publicar, em 1954, De la connaissance historique, obra traduzida anos mais tarde para a língua portuguesa com o título Sobre o conhecimento histórico, Henri-Irénée Marrou, um dos mais renomados especialistas em História do Cristianismo, já airmava: “constitui um documento toda fonte de informação de que o espírito do historiador sabe extrair alguma coisa para o conhecimento do passado humano, considerado sob o ângulo da questão que lhe foi proposta”. Uma deinição de documento histórico como essa representava, à época, um avanço considerável na maneira pela qual os historiadores lidavam com o seu ofício, pois destituía o texto escrito, em geral a lei, a correspondência oicial, o relatório de chancelaria, os registros cartoriais do privilégio de portar em si mesmos a História, ou seja, de serem os suportes privilegiados nos quais os traços dos processos históricos vividos icariam retidos até serem reunidos pela ação laboriosa do pesquisador. Ao formulá-la, Marrou exprimia, ainda que de maneira discreta, sua iliação a um movimento de renovação historiográica delagrado na França nos inais da década de 1920 e que icou conhecido como Escola dos Annales, muito embora os autores que gravitaram em torno dos Annales – na realidade, em torno da revista, que se tornou o carro-chefe das novas concepções que surgiam sobre como interpretar a História – nunca tenham gozado da uniformidade intelectual que muitas vezes somos levados, de modo um tanto ou quanto naïve, a atribuir-lhes (REIS, 1994, p. 28 e ss.). Não obstante as múltiplas orientações metodológicas e os múltiplos interesses temáticos agrupados sob o rótulo dos Annales (rótulo muitas vezes desejado, na medida em que signiicava a adesão ao que era inovador, moderno, arrojado em termos de pesquisa histórica), um dos fatores que conferiam certa coesão à Escola era justamente a maneira pela qual concebiam a categoria documento. Nesse domínio, como em tantos outros, os epígonos declarados ou ocultos de Lucien Fébvre, Marc Bloch e, mais tarde, de Fernand Braudel, formularam os seus argumentos em oposição à História praticada no século XIX, que nutria a 153 um apego excessivo ao texto, ao documento escrito. Na contracorrente desse apego, os “analistas”, se é que podemos denominá-los assim, operaram um alargamento sem precedentes da noção de documento, propondo que todo e qualquer suporte capaz de fornecer ao historiador informações sobre a vida dos homens no passado, não importa em que dimensão, deveria ser considerado um documento e, como tal, passível de ser submetido às regras da crítica externa e interna com o propósito de garantir o caráter idedigno do testemunho. Convém salientar, todavia, que essa “revolução” em termos metodológicos não foi um acontecimento isolado, mas fez-se acompanhar de outra, tão ou mais importante: a diversiicação dos próprios objetos de investigação histórica. Na medida em que os pesquisadores não se limitavam mais a esquadrinhar os bastidores da política, com destaque para a política institucional, o que explica a ênfase então dispensada ao estudo do Estado e dos órgãos que o compunham, passando agora a se dedicar a um repertório de outros temas por meio dos quais pretendiam captar a dinâmica da sociedade, o comportamento dos seus grupos, classes e estamentos em interação – daí o termo História Social, que muitas vezes é utilizado como sinônimo de História feita à moda dos Annales – era necessário buscar alhures dados que suplementassem os textos. Renovando os objetos, os “analistas” foram igualmente obrigados a renovar as suas fontes de informação, o que signiicou um notável estímulo para que os mais variados suportes fossem sistematicamente explorados como, por exemplo, a paisagem, os utensílios e instrumentos de trabalho, os monumentos, a indumentária e as imagens. Doravante, os historiadores estarão autorizados a validar as suas conclusões por meio de indícios obtidos em qualquer circunstância, não necessitando mais evocar o texto escrito como um iel depositário da “verdade histórica”. Ocorre, no entanto, que essa inovação proporcionada pelos Annales, embora extremamente salutar, não foi capaz de alterar de imediato a maneira pela qual os círculos acadêmicos concebiam o ofício do historiador. Referimonos aqui às etapas de formação do proissional, ou seja, ao treinamento de nível superior que o habilita a exercer a docência da disciplina, bem como a elaborar projetos de pesquisa na área. Ainda que programas consistentes de investigação tenham sido executados mediante a inclusão, no corpus de fontes, de documentos variados, a exemplo do The king’s two bodies, a study in medieval political theology, de Ernst Kantorowicz, obra surgida em 1957 na qual o autor faz uso de moedas, iluminuras, medalhas e pinturas, a proposta dos Annales de que os documentos não textuais fossem de uma vez por todas incorporados ao modus faciendi do historiador não recebeu a atenção devida por parte dos departamentos universitários e institutos superiores de pesquisa, com exceção de um ramo especíico do conhecimento histórico: a História da Arte. Na maioria dos cursos superiores de História o peso, na grade curricular, das disciplinas voltadas para o estudo da documentação material, visual e oral é bem menor se comparado ao investimento na leitura e interpretação das fontes textuais. Ao im e ao cabo, tanto no âmbito do magistério quanto no da pesquisa, o proissional de História é treinado basicamente para lidar com o 154 texto escrito, o que resulta numa distinção contraproducente entre, por um lado, os historiadores, especializados em reconstituir e explicar os processos vividos no passado mediante a interpretação dos textos e, por outro, arqueólogos, antropólogos e historiadores da arte, dedicados à exploração de artefatos, monumentos e imagens. De certa forma, esse relativo distanciamento dos historiadores diante da documentação material foi uma das variáveis que conduziram, em meados do século XX, a uma renovação da própria Arqueologia, que tende então a se desvencilhar dos procedimentos rotineiros de descrição e catalogação dos artefatos para propor modelos e teorias capazes de extrair de tais artefatos explicações inteligíveis sobre a sociedade em questão, o que aproxima os arqueólogos do trabalho dos historiadores, embora o inverso não tenha ocorrido, ao menos num primeiro momento (SCHNAPP, 1976, p. 4). Essa renovação, estimulada pelo estruturalismo em voga à época, propiciou o surgimento da assim denominada Arqueologia Processual, cujo objetivo era revelar, mediante o recurso à cultura material, os padrões de organização e funcionamento das sociedades. Ainda que o interesse dos arqueólogos processuais não recaísse nos movimentos de diacronia, de sucessão temporal, mas de sincronia, de integração sistêmica, não resta dúvida de que esses proissionais, ao manipularem vestígios deixados por sociedades pretéritas, tinham forçosamente que recorrer à explicação histórica, razão pela qual sua contribuição para o conhecimento do passado humano se tornou decisiva, ainda mais em se tratando das sociedades anteriores ao século XIX, para as quais o volume de textos escritos é consideravelmente menor se comparado aos séculos posteriores. No decorrer das décadas de 1970 e 1980, as potencialidades contidas nos monumentos e utensílios são amplamente exploradas pelos pesquisadores, em particular no que diz respeito aos ritmos da vida cotidiana, como convinha a uma época marcada por um desejo de compreensão das redes de produção, distribuição e consumo de bens e da interação homem/natureza mediada pelo trabalho. Pouco a pouco, no entanto, observa-se uma mudança de enfoque condicionada mutatis mutandis pela airmação do paradigma culturalista, quando então a cultura material passa a ser interpretada nos termos dos sentidos que engendra, ou seja, da sua capacidade em transmitir concepções, valores e sentimentos, os quais exercem uma inegável inluência sobre os usuários e espectadores (REDE, 2012, p. 140). A essa altura, os monumentos e artefatos se convertem tanto em repositórios de representações quanto em instrumentos de práticas sociais, recuperando-se assim o lugar da materialidade no desencadear dos processos culturais, que ocorrem sempre num espaço construído ou dominado por meio da ação humana e que dependem amiúde não apenas da intervenção dos códigos linguísticos (leia-se: a fala e a escrita), mas também da manipulação de utensílios e objetos. O investimento no estudo da materialidade dos processos culturais realizado pelos arqueólogos, embora indispensável para a compreensão da dinâmica social do presente e do passado, ainda não foi devidamente reconhecido pelos historiadores, que continuam a fazer das fontes textuais a 155 pedra angular do seu trabalho. As razões pelas quais esse diálogo entre a História e a Arqueologia ainda não se consolidou devem-se a pelo menos três fatores. Em primeiro lugar, a uma concepção segundo a qual as informações passíveis de serem extraídas dos artefatos e monumentos são menos completas (ou mais lacunares) do que aquelas contidas nos textos, operando-se assim uma distinção hierárquica entre as diversas modalidades de testemunho. Ora, como bem observa Schnapp (1976, p. 5 e ss.), se é verdade que o vestígio arqueológico é, por sua natureza, residual e lacunar, não é menos verdade que os textos também apresentam um caráter fragmentário, isso quando não se encontram eivados de interpolações e de juízos de valor, o que nos obriga a manter com eles uma atitude de permanente cautela. Desse ponto de vista, não há documento mais ou menos incompleto, mas documentos mais ou menos aptos a fornecer indicações sobre aquilo que se pretenda analisar. Um documento, qualquer que seja ele, será mais ou menos útil de acordo com o objeto de investigação deinido pelo pesquisador. Decerto, tentar extrair das moedas romanas informações acerca das disputas teológicas entre cristãos e arianos será uma tarefa bem menos produtiva se comparada à leitura das homilias dos Padres da Igreja. No entanto, se o propósito da pesquisa for elucidar os mecanismos de produção e difusão da imagem imperial, as moedas tornam-se indispensáveis, ao passo que decresce a importância das homilias. Em síntese, é prudente admitir que somente falamos do passado aquilo que o próprio passado, por meio dos vestígios que nos legou, nos permite falar. Nessa tarefa, a consulta a toda e qualquer fonte de informação disponível é válida, desde que adotemos algumas precauções, o que nos conduz ao segundo entrave ao diálogo entre historiadores e antropólogos: o emprego, pelos primeiros, da cultura material como uma evidência cujo papel é apenas o de corroborar a opinião contida nas fontes textuais, procedimento que pode gerar graves distorções se aplicado sem a devida precaução, assunto ao qual retornaremos mais adiante. Por último, mas não menos importante, é o despreparo dos historiadores no trato com a documentação material, uma vez que, salvo raras exceções, disciplinas como Pré-História, Arqueologia e Iconologia não fazem parte do currículo básico dos cursos de graduação e pósgraduação em História, o que exige do proissional interessado em se aventurar para além dos textos um esforço adicional no sentido de obter a qualiicação necessária para explorar outros tipos de fontes. Todavia, quando pensamos numa área de investigação como a História de Roma, cuja documentação textual é em boa parte dispersa, fragmentada e descontínua, como ignorar as potencialidades que a cultura material oferece? Deixar de lado o volume de monumentos, utensílios e artefatos produzidos pelos romanos, e que aumenta dia a dia à medida que novos sítios arqueológicos são abertos, não seria certamente a mais inteligente das estratégias. Nesse sentido, propomo-nos, no presente capítulo, a reletir sobre os limites e possibilidades da cultura material para o conhecimento da sociedade romana antiga. No entanto, o escopo por demais abrangente do assunto reclama maior precisão, razão pela qual optamos por discutir o uso da documentação visual como um recurso eiciente para a abordagem de temas conectados à vida cotidiana no Império Romano, o que 156 será feito tendo como referência os mosaicos, uma modalidade de expressão artística bastante familiar à sociedade greco-romana, podendo ser encontrada em todas as províncias, da Bretanha à Mesopotâmia. Antes, porém, de tratarmos dos mosaicos romanos propriamente ditos, impõe-se uma relexão, ainda que breve, sobre a relação entre História e imagem. Clio revelada pelo olhar Muito embora, nas últimas décadas, as imagens, em especial a fotograia e a pintura, venham recebendo uma atenção cada vez maior por parte dos historiadores, cumpre assinalar que estes, em virtude justamente das limitações impostas por sua formação acadêmica, não são equipados com o aparato teórico e metodológico necessário para interagir com as imagens e delas colher evidências capazes de sustentar as explicações que elaboram acerca dos processos históricos. Na avaliação um tanto ou quanto ácida de Gaskell (1992, p. 237), especialista em História da Arte, os historiadores convencionais, quando utilizam as fontes visuais, o fazem, na maioria dos casos, de modo meramente ilustrativo, assumindo assim um comportamento ingênuo, corriqueiro ou ignorante sobre a matéria, deiciência que urge ser superada em virtude da importância atribuída à comunicação visual tanto no passado quanto no presente. Em apoio a Gaskell, Peter Burke (2004, p. 12) qualiica os historiadores como “analfabetos visuais”, pois, segundo o autor, mesmo aqueles que se preocupam em incluir no seu corpus fontes visuais costumam tratá-las como provas adicionais de argumentos que já haviam sido enunciados com base na interpretação das fontes textuais, o que converte as imagens em elementos acessórios – e, portanto, dispensáveis – para a interpretação de um determinado acontecimento histórico, estabelecendo-se assim uma incômoda relação hierárquica entre fontes visuais e fontes textuais que pode, no limite, comprometer a pesquisa. Mas esse panorama desanimador traçado por Gaskell e Burke tem se alterado pouco a pouco nas últimas décadas, com a emergência da História do Cotidiano e da Nova História Cultural, duas especialidades do conhecimento histórico com as quais as imagem têm muito a contribuir. A princípio, no entanto, devemos esclarecer que os historiadores, mesmo os do século XIX, nunca foram inteiramente refratários à exploração das fontes visuais. Burckhardt, por exemplo, desenvolveu boa parte das suas relexões sobre a história da Itália e da Holanda no período renascentista com base na comparação entre pinturas e textos, mas tal procedimento não era, em absoluto, usual. Somente na década de 1960 começa a se delinear, com os historiadores de língua inglesa convencidos da utilidade da fotograia para a compreensão do cotidiano das pessoas comuns, aquilo que William Mitchell denominou “virada pictórica”, movimento que se faria sentir igualmente na França, como comprovam os trabalhos de Michel Vovelle e Maurice Agulhon, dentre outros. Mais de vinte anos depois, em 1985, a “virada pictórica” recebeu um 157 impulso decisivo num congresso de historiadores norte-americanos dedicados à discussão da “arte como evidência” cujos trabalhos foram publicados numa edição especial do Journal of Interdisciplinary History, um marco na eleição das imagens como fontes para o historiador (BURKE, 2004, p. 15). Desde então, o interesse pelo estudo das imagens tem sido crescente. O incentivo à exploração das imagens obriga o historiador a se familiarizar com os procedimentos básicos para a correta manipulação dessa modalidade de testemunho, uma vez que as imagens não são evidências “diretas” do passado, como muitas vezes se supõe. Pelo contrário, sua produção e consumo exibem uma complexidade que não deve ser ignorada, o que equivale a submetê-las a uma crítica prévia que dê conta do contexto em que foram produzidas; dos responsáveis pela sua encomenda e/ou confecção; do lugar em que foram exibidas e da função aí exercida; do tipo de suporte empregado; dos temas representados (a “retórica visual”); do seu caráter “intertextual”, ou seja, das características que compartilham com outras imagens contemporâneas, anteriores ou posteriores; das transformações pelas quais passou ao longo do tempo; do tipo de público apto a consumi-las; isso sem negligenciar, naturalmente, as indagações acerca da autenticidade, pois assim como os textos são sujeitos a interpolações, supressões e falsiicações, o mesmo ocorre com as imagens. Como se pode constatar, a interpretação das imagens requer cuidados semelhantes àqueles dispensados à documentação textual, com a agravante de que, conforme mencionamos, há um risco permanente de as imagens serem “lidas” a partir da bitola do texto. Ainda que, em certos casos, as fontes visuais terminem por corroborar as conclusões obtidas por meio da análise das fontes textuais, cabe ressaltar que as imagens – como qualquer outro suporte de informação – devem ser interpretadas por elas mesmas, ou seja, como testemunhos a princípio independentes, que podem eventualmente complementar os textos ou que, ao contrário, podem refutá-los in totum. Assim, é recomendável que, ao se valer dos dados contidos nas imagens, o historiador não pretenda uma associação imediata e transparente entre elas e os textos, mas que as considere como uma modalidade de documento que conserva uma lógica própria e que pertence a um campo de representação particular. Fontes textuais e fontes visuais são suportes fragmentários que nos permitem reconstituir, com maior ou menor precisão, um dado processo histórico, mas as informações que veiculam são amiúde regidas por interesses distintos conectados a grupos sociais igualmente distintos, transmitindo assim mensagens muitas vezes irredutíveis entre si (MENESES, 2012, p. 253). No que diz respeito aos instrumentos dos quais o historiador dispõe para interpretar as imagens, o método desenvolvido por Panofsky (1892-1968), um historiador da arte que fazia parte do círculo do eminente pesquisador alemão Aby Warburg, permanece válido até hoje, embora apresente algumas limitações. Com a intenção de levar adiante o trabalho de Warburg na fundação de uma “ciência da arte”, ou seja, de um campo de relexão acerca das obras de arte que fosse além da descrição de formas e estilos, método predominante na passagem do século XIX para o XX, Panofsky se dedica à criação das bases 158 daquilo que seria a Iconologia, disciplina voltada para a revelação dos níveis mais densos e profundos das imagens de natureza artística, níveis estes que permitiriam captar o “espírito da época” ou a visão de mundo própria de uma dada sociedade. Na concepção de Panofsky (2011, p. 47 e ss.), toda obra de arte – e, por extensão, toda e qualquer imagem – poderia ser “lida” em três etapas sucessivas, num grau crescente de complexidade. A primeira delas é qualiicada pelo autor como pré-iconográica. Nessa etapa, o objetivo é descrever o conjunto dos elementos “factuais”, isto é, as formas elementares exibidas pela obra (um homem, uma casa, um animal), bem como identiicar as características “expressionais”, a sensação que a imagem provoca nos espectadores (alegria, angústia, medo). Para tanto, o pesquisador se concentra em motivos, cores e formas, recorrendo ao stock de conhecimento do senso comum para proceder à descrição. A segunda etapa, por sua vez, é a da análise iconográica (de eikon, imagem, e graphia, descrição), por meio da qual se Figura 1: Apolo e Daphne. Exemplar de opus tessellatum proveniente da Casa de Menandro, em Antioquia (séc. II-III d. C.) 159 obtém a decifração do signiicante, ou seja, daquilo que a imagem representa. Nas palavras de Panofsky, a iconograia nos permite conectar “os motivos artísticos e as combinações de motivos artísticos (composições) com assuntos e conceitos”, uma operação mais soisticada do que a mera descrição das formas e temas por exigir a decodiicação do caráter convencional da imagem. Desse modo, se contemplamos um afresco retratando um homem robusto portando a pele de um leão, é quase certo que essa associação de motivos queira signiicar o semideus grego Hércules. De acordo com Panofsky, para realizar tal dedução não recorremos aos nossos conhecimentos prévios, como na análise pré-iconográica, mas ao estudo metódico das tradições culturais vigentes no contexto de produção da obra. A última etapa é a da análise iconológica, quando então é possível desvelar o conteúdo subjacente da imagem, a “atitude básica de uma nação, período, classe, crença ilosóica ou religiosa”. A Iconologia seria assim responsável por fornecer uma interpretação sintética da obra de arte, revelando a sua importância e o seu signiicado no mais alto nível de abstração, operação que depende, por um lado, das faculdades cognitivas do pesquisador (daquilo que o autor nomeia como “intuição sintética”) e, por outro, da comparação do testemunho imagético com outros documentos contemporâneos a im de ampliar a perspectiva de análise. Acerca desse último ponto, vale a pena mencionar que, já na década de 1930, Panofsky recomendava a utilização sistemática das imagens pelos historiadores em geral e não apenas pelos especialistas em História da Arte, uma realidade que ainda hoje está longe de ser alcançada. Não obstante a validade do método de análise desenvolvido por Panofsky, é preciso reconhecer os avanços trazidos pelas relexões mais recentes acerca do lugar ocupado pelas fontes visuais na interpretação dos processos sócio-históricos, as quais têm o mérito de reparar algumas ideias do autor, bem como o de acrescentar novos argumentos ao debate. Conforme Meneses (2012, p. 47), são três as principais ressalvas feitas, atualmente, ao trabalho de Panofsky. Em primeiro lugar, a sua opção por incluir no corpus apenas as imagens deinidas a priori como artísticas, sem atentar para a historicidade do próprio conceito de arte, o que poderia suprimir da agenda de investigação suportes e artefatos que não teriam, a princípio, uma função estética, ainda que dependessem de modo visceral do arranjo visual das informações, a exemplo dos cartazes de publicidade. Em segundo lugar, o seu “idealismo epistemológico”, por supor que uma obra de arte seja capaz de condensar ou sintetizar o “espírito” de uma época ou sociedade. Atualmente, o colapso do conceito de “mentalidades”, tão caro à terceira geração dos Annales, e a consolidação do paradigma culturalista empregado por Clifford Geertz (1989) e Roger Chartier (2002), dentre outros, nos impedem de alcançar, mediante a interpretação de uma imagem, mesmo que se trate de uma obra-prima, uma “visão de mundo” compartilhada pela totalidade do corpo social. Portadoras de representações, as imagens, assim como os textos, monumentos e artefatos, são confeccionados pelos distintos grupos que compõem a sociedade, dando vazão a ideais, valores e concepções caras a estes grupos, mesmo quando apresentadas como expressão da “opinião 160 pública” ou de uma “voz geral”, cabendo ao pesquisador reconhecer e explicar essa aderência indissolúvel entre o “discurso” visual e a categoria social que o produziu. Em terceiro lugar, a tendência de Panofsky em superestimar as fontes textuais e orais em detrimento das fontes visuais, pois, em sua opinião, a análise iconográica dependeria muito mais das informações registradas nos textos ou legadas pela tradição do que da familiaridade do pesquisador com as formas e motivos contidos na obra, uma distorção no julgamento do grau de importância das fontes que a crítica contemporânea tem tentado a duras penas superar. À parte esses reparos ao trabalho de Panofsky, que, insistimos, não invalidam tout court o seu método, os especialistas têm lançado luz sobre alguns aspectos da interpretação iconológica não contemplados pelo autor, como, por exemplo, o papel do suporte físico na transmissão das informações, uma vez que toda imagem visual tem de se realizar no espaço, numa superfície, qualquer que seja ela ‒ uma parede, um pavimento, uma moeda, uma ânfora (cf. MANGUEL, 2009, p. 25). A atenção às técnicas de produção do artefato é um requisito indispensável para a análise daquilo que é retratado, pois a escolha do suporte interfere diretamente na composição da cena em, pelo menos, dois níveis: a) num nível que poderíamos designar como funcional, ou seja, conectado com a função social do artefato, e que determina a expectativa do que deve ou não deve ser representado. Desse modo, sobre as moedas emitidas pelo Estado romano encontramos um repertório de temas e motivos que não equivalem, por exemplo, ao repertório dos vitrais das igrejas medievais, pois, no primeiro caso, se trata de um artefato destinado a celebrar as glórias do Império e do imperador e, no segundo, a difundir a “pedagogia” cristã dentre um conjunto de ieis iletrados1; e b) no nível material, pois os recursos disponíveis para a confecção do suporte condicionam o tratamento visual do tema, havendo diferenças evidentes na composição da cena quer se trate de uma tapeçaria, de um baixo-relevo ou de uma pintura. Recorrendo a uma comparação com a literatura, poderíamos dizer que, assim como os gêneros literários (epopeia, drama, romance) interferem no teor das informações presentes nos textos, os “gêneros visuais” (pintura, escultura, gravura, arte musiva) interferem nas informações de natureza visual. Outro aspecto relevante não contemplado no método de Panofsky diz respeito às redes de recepção (ou consumo) das imagens, assunto que tem atraído bastante a atenção dos pesquisadores em virtude da existência de uma decalagem entre as intenções dos produtores da imagem e a maneira como esta é absorvida pelos espectadores, que se revezam ao longo do tempo. Naturalmente, um homem do Renascimento não poderia contemplar as estátuas dos imperadores da mesma maneira que um romano, uma vez que os iltros culturais a partir dos quais uma imagem é “lida” não são impermeáveis ao tempo. Ainda que estejamos tratando de uma mesma época e 1 Mesmo em se tratando das obras de arte, valorizadas muito mais por seus atributos estéticos do que pelos funcionais, não é raro identiicarmos uma inalidade de ordem prática para elas, pois, como sustenta Panofsky (2011, p. 31), o fato de um artefato reclamar uma experiência estética não invalida a possibilidade de que ele, ao mesmo tempo, seja empregado como vetor de comunicação ou como instrumento/aparelho de uso prático, a exemplo das ânforas gregas ou dos túmulos régios da Idade Média. 161 sociedade não é possível constatar uma apreensão unívoca das imagens, pois toda sociedade, como diria Veyne (1983), é “um feixe mal atado de grupos e indivíduos”. Desse modo, poderíamos nos interrogar se, no Principado, um senador e um escravo esboçariam a mesma reação diante da imagem imperial. A resposta nos parece negativa. Entretanto, quando se trata do Mundo Antigo estamos muito mal informados sobre como os diversos grupos sociais consumiam, liam ou interpretavam tanto os textos quanto as imagens, uma limitação da qual é difícil escapar. Quando agregamos as fontes visuais ao conjunto de fontes exploradas numa pesquisa, não devemos julgar que a história assim construída encerre uma dimensão epistemológica diversa, superior ou inferior àquela produzida com o auxílio dos textos. Na realidade, como propunham os autores iliados à Escola dos Annales, os processos históricos podem e devem ser investigados com base na prospecção de todas as fontes disponíveis para o estudo de um determinado objeto ou problema. Assim, não existe uma História das Imagens propriamente dita, mas uma história qualquer, seja ela de caráter político, econômico, cultural, social, que é escrita por meio das representações visuais, não havendo razão para o historiador abrir mão desse tipo de testemunho. Além disso, é bom lembrar que nem sempre texto e imagem são realidades independentes, desconexas, mas encontram-se por vezes integradas num mesmo suporte, como veremos no caso dos mosaicos romanos, muitos dos quais trazem inscrições visando a facilitar a identiicação das personagens e das cenas, constatação que deveria nos deixar muito menos receosos em explorar as fontes visuais. A porosidade entre texto e imagem se revela igualmente por meio do esforço que alguns autores contemporâneos têm feito para analisar as representações visuais com base em pressupostos originários da Linguística e da Teoria Literária. Muito embora as imagens não componham um sistema linguístico propriamente dito, elas manifestam uma extraordinária capacidade de comunicar, razão pela qual os pesquisadores julgam ser possível discernir, por exemplo, a inluência que exercem sobre os espectadores, propondo assim a existência de “atos de imagens” à semelhança dos “atos de fala”2. Outra vertente promissora é aquela que busca situar a imagem no contexto de uma performance ou cerimônia, o que permite apreendê-la, não de modo isolado, como sói acontecer, mas como parte integrante de um ritual ou celebração capaz de tornar mais eiciente o seu impacto sobre a audiência (MENESES, 2012, p. 256). Quanto a isso, um dos exemplos mais notáveis são as estátuas imperiais que, pelas províncias, compunham os cortejos e as cerimônias oiciais na condição de mimesis do próprio imperador, recebendo súplicas, homenagens e orações. A despeito da validade desses procedimentos, que tentam facilitar a decifração da ordem “discursiva” das imagens, ou seja, da lógica que encerram, é impossível não atentar para os entraves à formulação 2 O assim denominado “ato de fala” é uma teoria concebida por John Austin com base em relexões de Wittgenstein. O princípio básico da teoria é a suposição de que dizer algo equivale a fazer algo, uma vez que as palavras são capazes de produzir alterações no comportamento (GREINER, 2008, p. 89). 162 de um sistema coerente de leitura das fontes visuais similar ao da escrita, pois, como assinala Manguel (2001, p. 32-33), “em contraste com um texto escrito no qual o signiicado dos signos deve ser estabelecido antes que eles possam ser gravados na argila, ou no papel, ou atrás de uma tela eletrônica, o código que nos habilita a ler uma imagem, conquanto impregnado por nossos conhecimentos anteriores, é criado após a imagem se constituir”. Cientes dessa restrição, nada nos impede, no entanto, de falar em “narrativa visual”, como vemos em alguns mosaicos norte-africanos constituídos por cenas interligadas dispostas em níveis ou patamares (BUSTAMANTE, 2003). A arte musiva romana No Império Romano, ainda que tenha ocorrido entre os séculos I e II d.C. um aumento do número de leitores, como sugerem estudos tendo por base a frequência de cenas de leitura presentes nos afrescos, mosaicos e baixo relevos e o lorescimento, nas principais cidades, das tabernae librarie (livrarias), cada vez mais numerosas ao longo do período imperial (CAVALLO, 2002, p. 76), não resta dúvida de que o número de alfabetizados não deveria ser expressivo, pois o acesso à educação formal (paideia), mesmo em nível elementar, como aquela provida pelo mestre-escola e pelo grammaticus, sempre foi, no Mundo Antigo, uma tarefa difícil, especialmente nos meios rurais, onde se concentrava a maioria da população. Por esse motivo, as imagens em Roma, assim como na Grécia, ocuparam desde cedo uma posição de destaque quando se tratava de comunicar uma mensagem, encontrando-se dispersas sobre os mais variados artefatos de uso cotidiano (vasos, moedas, amuletos, lamparinas, sarcófagos), sem mencionar as modalidades clássicas de expressão artística, como a pintura, a escultura e o próprio mosaico. Ao contrário dos textos literários, muitos dos quais eram conhecidos na íntegra apenas por uma elite suicientemente letrada para dominar a obra de autores como Virgílio, Tito Lívio, Sêneca e outros, as imagens circulavam livremente de um lado a outro do Mediterrâneo, compondo assim uma rede de transmissão e recepção de informações de longo alcance. A esse respeito, merecem certamente destaque as estátuas que, erguidas pelas cidades em honra ao imperador ou aos membros das elites senatorial e local, cumpriam o importante papel de reforçar o prestígio dos líderes aristocráticos (os boni, clarissimi e optimi), constituindo, portanto, um eicaz veículo de comunicação política. Atentos à importância do uso sociocultural das imagens entre gregos e romanos e inluenciados pela “virada pictórica” que se delineava a partir da década de 1970, os especialistas em História Antiga deram início à exploração sistemática da cultura material (e das imagens nela contidas) como fonte para o estudo de inúmeros aspectos da Antiguidade, dispensando aos vestígios arqueológicos um cuidado até então inédito. Nesse percurso, foram guiados por duas diretrizes: a) a compreensão da imagem como um “texto”, ou seja, como uma seleção de motivos icônicos cujo arranjo, longe de ser fortuito, 163 visa a transmitir uma mensagem ao receptor, ainda que esta mensagem possa assumir signiicados distintos em função da polissemia subjacente a todo signo visual ou linguístico; b) a suposição de que o produtor das imagens, seja ele o responsável pela encomenda da obra ou mesmo o artesão que a executa, mantém com a sociedade da qual faz parte uma relação dialógica, exprimindo visualmente ideias, valores e concepções extraídas do patrimônio cultural comum, mas interferindo no sentido de reforçar ou de submeter à crítica esse mesmo patrimônio. Desse modo, clientes e artíices são capazes, em maior ou menor grau, de exercer inluência sobre as expectativas e o comportamento da audiência, o que requer de nós um olhar mais atento às imagens que os antigos nos deixaram (BUSTAMANTE, 2003, p. 315). Figura 2: A imperatriz Teodora e sua comitiva. Opus musivum proveniente da igreja de São Vital, em Ravena (século VI) Dentre as formas de expressão imagética que loresceram no Império Romano, uma das mais apreciadas foi a arte dos mosaicos. Ainda que alguns autores não os considerem uma modalidade artística de primeira grandeza nem lhes atribuam maior importância como fonte visual – e, quanto a isso, a ausência de um capítulo ou mesmo de uma seção dedicada aos mosaicos numa obra como a de Peter Burke (2004) é apenas mais um exemplo dentre muitos – não podemos deixar de reconhecer que, tanto em termos quantitativos como em termos qualitativos, os mosaicos constituem documentos valiosos para o estudo da vida cotidiana das sociedades antigas, iluminando práticas e representações que têm como cenário os ambientes públicos (termas, templos, teatros, aniteatros) e privados, muitas das quais somente são passíveis de visualização por intermédio da arte musiva, uma arte que, pelas suas próprias condições de produção, estava destinada a vencer o tempo e a degradação. O termo “mosaico” deriva das Musas, as nove divindades clássicas tidas como 164 protetoras das ciências e das artes. A origem da técnica remonta ao antigo Oriente Próximo (3000 a.C.), embora a arte musiva propriamente dita tenha surgido em território grego na transição do período clássico para o helenístico. Os exemplares mais antigos que podemos datar com segurança são os mosaicos bicromáticos (branco e preto) provenientes de Olinto, cidade grega das margens do Egeu arrasada pelos macedônios em 348 a.C. Instalados no chão da sala de jantar (triclinium) de residências da elite local, os mosaicos reproduzem cenas mitológicas, como a de Belerofonte matando a Quimera e a de Dioniso com seu séquito de sátiros e bacantes. No início, os mosaicos helenísticos eram confeccionados com seixos até que, no século III a.C., passaram a ser empregadas as tesserae (ou tessellae), pequenos cubos de pedra, vidro ou terracota com não mais do que 4 ou 5 cm e cuja principal vantagem, em comparação aos seixos, era a maior variação de cores, o que permitia aproximar as composições musivas das pinturas. Conquanto não saibamos ao certo onde esta inovação teve lugar, foi nos reinos helenísticos dos Atálidas (Pérgamo) e dos Lágidas (Egito) que o emprego das tesserae gozou de imediata receptividade, daí se difundindo por toda a bacia do Mediterrâneo oriental. Com o domínio progressivo dos romanos sobre o Oriente ao longo dos séculos II e I a.C., a Península Itálica começa a receber os inluxos da cultura helenística, o que se traduz na importação maciça de técnicas, instrumentos e manifestações artísticas, dentre as quais a arte musiva, ocorrendo inclusive a importação de mosaicos fabricados no Oriente para decorar as residências da elite romana. Não que os mosaicos fossem completamente desconhecidos dos romanos antes dessa época, pois tanto os cartagineses do norte da África e da Sicília quanto os gregos das poleis do sul da Península Itálica, povos com os quais Roma manteve desde cedo intensos contatos políticos e comerciais, já confeccionavam mosaicos. No entanto, é apenas na fase inal do período helenístico que os mosaicos são apropriados pelos romanos como um soisticado recurso de decoração que será, mais tarde, integrado à lógica da própria expansão imperial, quando teremos a ampla difusão da arte musiva pelas províncias ocidentais (LING, 1998, p. 19 e ss.). No Império Romano, assim como no mundo helenístico, os mosaicos eram utilizados exclusivamente para decorar ambientes arquitetônicos. Consistindo na inserção de pequenas peças de material resistente sobre uma superfície de cimento ou reboco, os mosaicos se prestavam bastante bem à reprodução de temas geométricos (os mais comuns), vegetais ou igurativos (homens e animais), o que lhes permitiu inclusive suplantar a pintura como principal técnica de decoração de interiores. No estudo dos mosaicos antigos, os especialistas costumam dividi-los em dois grandes grupos, de acordo com o local onde eram instalados: o opus tessellatum (Fig. 1), assentado no pavimento dos edifícios e residências, e o opus museum ou musivum (Fig. 2), os mosaicos das paredes e abóbadas3. A maioria esmagadora dos mosaicos romanos que 3 Além dessa divisão primária entre opus tessellatum e opus musivum, há ainda outras duas categorias de mosaicos: o opus sectile (Fig. 3), confeccionado com peças maiores de pedra ou vidro cortadas no formato de losangos, quadrados, triângulos e polígonos, e o opus vermiculatum (Fig. 4), confeccionado com tesserae minúsculas, donde deriva o seu nome, pois vermiculus signiica verme, larva. 165 chegaram até nós é do tipo opus tessellatum, o que se deve, em parte, aos acidentes de preservação, pois, em se tratando de uma construção antiga, a primeira parte a ruir são justamente o teto e as paredes, cujos destroços, ao se depositarem sobre o mosaico de chão, terminam por protegê-lo das oscilações climáticas e da depredação humana. Por esse motivo, os exemplares de opus musivum provenientes das residências e dos edifícios públicos romanos são bem poucos. Somente a partir do período cristão, com as séries de mosaicos das igrejas, é que passaremos a ter uma quantidade maior de material dessa natureza. Todavia, o maior número de mosaicos de chão do qual dispomos não se deve tão somente aos acidentes de preservação, mas também ao caráter extremamente funcional do opus tessellatum em comparação ao opus musivum. Dado o gosto romano pela decoração dos pavimentos, os mosaicos, bastante duráveis, representavam uma excelente alternativa, podendo resistir ao desgaste do trânsito incessante de pessoas sobre a sua superfície, ao passo que, no caso das paredes e abóbadas, era possível recorrer a meios menos dispendiosos de decoração, como afrescos e pinturas (BUSTAMANTE, 2009, p. 85). Na realidade, o opus musivum era próprio de edifícios mais imponentes, como os palácios imperiais e as basílicas cristãs, além das termas. Por outro lado, como pondera Ling (1998, p. 10), o emprego maciço do opus tessellatum não resultou apenas de um cálculo de custo e benefício, mas também das suas potencialidades estéticas, uma vez que os artesãos, manipulando tesserae multicores, eram capazes de criar belos efeitos visuais. As tesserae de cor negra, branca e cinza eram confeccionadas com rocha calcária ou, em casos mais raros, com mármore. A ardósia e o basalto também poderiam fornecer o preto e o cinza. O vermelho, o amarelo e demais tonalidades eram obtidas por meio da terracota (o mais usual) ou de pedras naturais. Cores difíceis de encontrar em pedra ou terracota, como o azul e o verde, exigiam o recurso ao vidro, o que encarecia a obra, além de torná-la menos durável. Para confeccionar as tesserae, supõe-se que o artesão cortasse a matéria-prima em tiras e depois, com o auxílio de martelo e cinzel, fosse destacando os cubos (BUSTAMANTE, 2009, p 88). Na montagem do mosaico, costumava-se dispor primeiro uma ou duas camadas de cimento, totalizando entre 5 a 8 cm. Em seguida, vinha uma camada mais ina sobre a qual eram assentadas as tesserae. Como a tarefa consumia amiúde vários dias, os artesãos trabalhavam por seções, demarcando o cimento fresco com incisões e preenchendo em seguida os espaços com as tesserae. Ao que tudo indica, os mosaicos romanos eram produzidos de modo direto, ou seja, por inserção das tesserae sobre o cimento fresco, evitando-se assim a técnica de reversão, na qual as peças são coladas ao reverso sobre um painel de tecido ou algum outro material de fácil remoção e depois apostas de uma só vez sobre o chão ou a parede. Desse modo, os mosaicistas do Império preferiam trabalhar no próprio local de instalação da obra. Apenas algumas cenas mais detalhadas poderiam eventualmente ser compostas na oicina do artesão e depois inseridas no painel. Essas peças, transportadas de um lugar ao outro, eram denominadas emblemata. Uma vez concluída a composição, vinha a fase do acabamento, que envolvia 166 o polimento e o nivelamento. Era fundamental que a superfície do mosaico de pavimento fosse completamente plana, pois o desnível na instalação poderia provocar o deslocamento das tesserae e a gradual desintegração da obra. Já o mosaico de parede não requeria o mesmo cuidado, pois um dos seus atrativos estéticos era justamente a irregularidade da superfície (LING, 1998, p. 14-16). Ainda que o opus tessellatum fosse de fabricação menos onerosa do que o opus musivum e que houvesse diferentes tipos de mosaico, desde os bicromáticos e geométricos até os policromáticos e igurativos, é importante não perder de vista que a arte musiva não se encontrava à disposição de todas as camadas da população. Pelo contrário, os mosaicos constituem uma técnica de decoração reinada ao alcance principalmente da aristocracia e, quando muito, de alguns setores médios urbanos, como os comerciantes. Embora possam ser encontrados em diversos edifícios públicos, com destaque para as termas e igrejas, os mosaicos romanos que conhecemos provêm, em sua maioria, das residências da elite, que por meio deles eternizavam em pedra suas preferências, valores e crenças, ao mesmo tempo em que reairmavam o seu prestígio diante dos pares, não sendo por acaso que os mosaicos maiores e mais suntuosos eram instalados nas salas de recepção (oeci) e de jantar (triclinia), aposentos nos quais os notáveis tinham por hábito receber os seus convidados ao cair da tarde para cear e debater os mais variados assuntos (BUSTAMANTE, 2002, p. 331). Nesse contexto, os temas escolhidos pelo cliente para igurar nos mosaicos conectavam-se com a cosmovisão do grupo ao qual pertencia, como comprova a predominância, nos mosaicos igurativos da fase imperial, de referências à mitologia greco-romana, espinha dorsal da paideia; às formas de lazer cívico (ludi gladiatorum, combates de feras, mimos e pantomimas), cujo patrocínio era motivo de enaltecimento público; aos esportes, especialmente a arte da caça (cinegética), um passatempo dos mais ricos; e ao cotidiano das villae, das propriedades rurais da aristocracia. Ling (1998, p. 134-135) sugere que a interpretação do signiicado desses temas seja uma operação arriscada na medida em que a presença, nos mosaicos, de temas mitológicos ou outros não constituiria uma evidência segura acerca da crença ou das reais intenções do cliente. Para o autor, a escolha dos temas ocorreria de modo banal, aleatório, envolvendo por vezes a consulta a livros-moldes, cuja existência é atestada, mas dos quais infelizmente não possuímos nenhum exemplar. Ling supõe também que a motivação do proprietário poderia obedecer, em certos casos, ao desejo de tornar a residência mais elegante para si mesmo e para os visitantes, uma meta que seria alcançada recorrendo-se a elementos da cultura clássica. Uma opinião como essa, é bom que se diga, prende-se a uma interpretação por demais restritiva acerca das composições musivas. Ainda que pudessem ser instalados em praticamente todos os aposentos, caso o proprietário dispusesse de recursos suicientes para tanto, os mosaicos mais luxuosos, ou seja, os policromáticos e igurativos, alguns dos quais de amplas proporções, eram destinados aos oeci e triclinia, constituindo parte integrante de celebrações nas quais anitriões e convidados discutiam os mais variados assuntos e assistiam a performances literárias e artísticas, como recomendavam as regras 167 do symposium. Isso implica concluir que os mosaicos, embora circunscritos ao interior das residências urbanas e rurais, adquiriam, em certa medida, uma dimensão pública, pois eram consumidos por integrantes da elite local e das ordens superiores da sociedade romana. Reunidos nos oeci e triclinia, anitriões e convidados estabeleciam relações de sociabilidade que incluíam, sem dúvida, articulações de natureza política e o debate de assuntos concernentes à vida cívica que, no momento, despertassem o interesse. Em recintos tão valorizados como os oeci e triclinia, a arte musiva desempenhava um papel central em termos decorativos, dado que não deve ser desprezado quando se trata de avaliar o seu impacto social. Atentos a isso, os pesquisadores têm atualmente se empenhado em recolocar os mosaicos greco-romanos no seu devido contexto, uma vez que muitos deles integram hoje o acervo dos museus e galerias europeus e norte-americanos, não sendo incomum encontrarmos dispersos pelo mundo painéis que outrora faziam parte do mesmo conjunto musivo, circunstância que diiculta a correta percepção acerca das nuances estéticas das composições. O que tem motivado os pesquisadores numa tarefa tão difícil como essa é a constatação de que os mosaicos faziam parte de um cenário no qual a disposição dos assentos, as eventuais entradas e saídas, a ereção de fontes, estátuas e pórticos, as dimensões do aposento e a possibilidade de o indivíduo se colocar de pé sobre o mosaico interferiam diretamente na perspectiva de observação. Em outras palavras, na confecção dos mosaicos os artíices orientavam-se por regras visando a otimizar as potencialidades estéticas da obra, o que somente reairma a posição de destaque da qual esta gozava. Difícil crer que com tantos cuidados os clientes não atribuíssem um valor afetivo ao que era representado. Um reforço ao argumento segundo o qual os clientes deveriam ser bastante ciosos na escolha dos temas da arte musiva provém da constatação de que, uma vez instalados, os mosaicos permaneceriam em uso por décadas a io, não sendo a sua substituição uma operação das mais simples, como ocorre hoje com o papel de parede ou os pisos sintéticos. Ainda a esse respeito, é bom lembrar que, muito embora os mosaicistas pudessem se apoiar em cadernos de moldes e que diversos motivos tenham sido reproduzidos continuamente ao longo dos séculos, nenhum mosaico é idêntico ao outro, variando conforme as dimensões, a forma e a função dos aposentos que decoravam, os materiais disponíveis, a habilidade técnica do artesão e, acima de tudo, as predileções do proprietário (BUSTAMANTE, 2009, p. 94). Isso equivale a dizer que, em se tratando da arte musiva, não estamos lidando com utensílios produzidos em série, mas com objetos artesanais de um expressivo conteúdo estético que exibem notáveis singularidades quando comparados entre si. Ao contrário de Ling, acreditamos que os mosaicos, em virtude da natureza e da função do suporte, constituam testemunhos indispensáveis quando se trata de captar as variações de sensibilidade e comportamento no Império Romano, e isso não apenas em termos temporais, mas igualmente em termos espaciais, pois a tradição musiva praticada no norte da África, por exemplo, conserva características próprias que a distinguem da tradição musiva da Península Ibérica ou do Oriente Próximo. A qualidade da informação 168 transmitida pelo mosaico e, por extensão, o seu maior ou menor potencial para servir a uma história cultural, social, política ou mesmo econômica dependerão dos interesses do pesquisador e da sua habilidade em formular perguntas para as quais os mosaicos possam fornecer respostas, procedimento análogo àquele que é adotado quando analisamos um diário de viagem, uma correspondência ou um inventário. O fundamental, no entanto, é não ignorar que os mosaicos, instalados via de regra em ambientes nos quais circulava um maior número de pessoas, atendiam às exigências de uma elite que buscava alcançar dois propósitos: airmar a sua opulência, pois os mosaicos, como dissemos, eram artefatos de confecção onerosa; e exibir os traços distintivos de uma cosmovisão compartilhada, donde resulta que os mosaicos eram artefatos que concorriam para a coniguração de uma determinada identidade. E mesmo que a arte musiva antiga, como de resto qualquer outra manifestação artística, não fosse isenta dos seus topoi, das suas fórmulas canônicas, devemos argumentar que um topos iconográico nunca se reduz a um estereótipo insípido e inócuo, a uma mera Figura 3: Competição de aurigas. Opus sectile proveniente da tumba de Júnio Basso, em Roma (séc. IV) praxe ou convenção, como querem alguns, pois enquanto ele estiver em uso, isso signiica que os usuários reconhecem nele um propósito. Quando um topos não for mais tido como válido, ou seja, como um elemento indispensável à composição, a tendência será o seu desaparecimento. Por essa razão, devemos desconiar de análises como as de Ling (1998, p. 109), que interpretam os temas próprios da cultura clássica presentes nos mosaicos da fase inal do Império Romano como elementos “profanos”, ou seja, não cristãos, empregados como “deferência a uma tradição decorativa persistente”, sugerindo uma cisão 169 temerária entre o que é representado e as crenças dos consumidores da obra, pois, se assim fosse, a presença do Chi-ro, o monograma de Cristo, e da pomba numa lápide ou num sarcófago não nos autorizaria a airmar que o defunto ou sua família fossem adeptos do cristianismo, uma conclusão que os especialistas prontamente refutariam. A estratégia mais prudente ao nos deparamos, nos mosaicos dos séculos IV e V, com temas e motivos extraídos do repertório mitológico greco-romano ou conectados com o modus vivendi da cidade clássica seria tomá-los como indício de que a assim denominada “cristianização” do Império foi um processo muito mais complexo do que costumamos supor, difundindo-se de modo descontínuo por entre o tecido social, num movimento semelhante àquele que ocorre em termos topográicos. Julgamos que uma situação como essa vigora em Antioquia, cidade que nos legou a maior coleção de mosaicos de pavimento oriundos das províncias orientais do Império. Antioquia e seus “tapetes” de pedra multicor Entre 1932 e 1939, uma expedição liderada pelos arqueólogos da Universidade de Princeton cuidou de trazer à luz a cidade de Antioquia, a antiga metrópole da província da Síria que, atualmente, faz parte da Turquia com o nome de Antakya. Além do núcleo urbano de Antioquia, o circuito de escavações compreendeu o subúrbio de Dafne, uma estância de veraneio situada a 8 km ao sul de Antioquia; Selêucia Piéria, cidade portuária às margens do Mediterrâneo; Yakto, distrito de Dafne e alguns sítios isolados, como Feleet e Narlidja. Aí foram localizados cerca de oitenta edifícios, entre termas, igrejas, necrópoles, teatros e residências, embora os grandes monumentos, como a igreja octogonal (Domus Aurea) de Constantino e Constâncio, o fórum de Valente, o complexo palaciano da ilha do Orontes e as sinagogas conhecidas como Matrona e Keneshet Hashmunit não tenham sido identiicados, em parte devido à espessa camada de sedimentos sob a qual se encontram soterrados, em parte à instabilidade política do Oriente Médio à época, uma vez que a eclosão da Segunda Guerra Mundial determinou a suspensão dos trabalhos de escavação, que não foram mais retomados (KONDOLEON, 2001, p. 7). O inventário epigráico de Antioquia, por sua vez, é ainda mais escasso, incluindo um punhado de inscrições em grego e em latim, ao passo que apenas uma inscrição de procedência judaica foi recuperada, a despeito de a cidade contar com um contingente não desprezível de judeus assentados tanto na zona urbana quanto na rural (DOWNEY, 1961, p. 6; BROOTEN, 2001, p. 34). Em agudo contraste com a escassez de construções e edifícios, os pesquisadores foram surpreendidos por uma profusão de mosaicos, a maioria proveniente das residências particulares da elite urbana. A coleção de mosaicos é composta por cerca de trezentos painéis situados num arco cronológico que vai do século II até a invasão persa de 540, quando se constata um súbito abandono do uso da técnica musiva de decoração. Alguns deles integram o acervo do Hatay 170 Archaeological Museum, em Antakya; outros se encontram ainda in situ, mas a maioria foi repartida entre o Louvre, o Baltimore Museum of Art, o Worcester Art Museum e o Museum of Historic Art at Princeton. Desde a sua descoberta, os mosaicos de Antioquia deram ensejo a diversas publicações. Uma seleção preliminar, bastante restrita por sinal, veio a público ainda no decorrer das escavações por meio do trabalho pioneiro de C. R. Morey (1938), cabendo, no entanto, ao arqueólogo italiano Doro Levi a confecção de um catálogo mais abrangente, dividido em dois volumes. Intitulada Ancient Mosaic Pavements, a obra foi publicada em 1947 pela Universidade de Princeton, permanecendo até hoje como a mais completa, embora catálogos posteriores, como os de Sheila Campbel (1988) e Fatih Cimok (1995), tenham buscado oferecer um novo approach ao material arqueológico, particularmente no que diz respeito à inserção do mosaico no sítio em que foi descoberto, procedimento não adotado por Morey e Levi, cujo enfoque primário recaiu sobre o mosaico e não sobre o seu contexto. A despeito dessa renovação, somente nos últimos anos temos observado uma tentativa consistente de utilização dos mosaicos como fonte para o estudo dos processos históricos devido ao empenho de pesquisadoras como Christine Kondoleon e Janet Huskinson, cuja contribuição para o despertar do recente interesse por Antioquia tem se revelado decisiva. Nesse domínio, como em tantos outros, constata-se a inluência dos estudos culturais, pois o que se busca iluminar por intermédio da análise das cenas musivas é o cotidiano da elite citadina, seus hábitos e concepções, bem como a sua inserção nos circuitos da vida urbana, reconhecendo-se que, além das fontes textuais, os pesquisadores dispõem de uma documentação visual bastante rica e até certo ponto inexplorada (HUSKINSON, 2004, p. 135). Do ponto de vista estilístico, os mosaicos de Antioquia sugerem uma notável continuidade com a tradição musiva helenística, tanto no que diz respeito aos temas clássicos exibidos, em geral cenas mitológicas, quanto aos demais elementos de decoração. A maior parte dos mosaicos é constituída por motivos geométricos, mas o repertório contém composições de homens e animais em estilo naturalista e policromático, recurso empregado amiúde pelos artesãos do período helenístico visando a aproximar o mosaico da pintura. A antiga fórmula helenística de representar uma igura central ladeada por padrões geométricos ou motivos vegetais permaneceu como a principal estratégia decorativa, com a ressalva de que as cenas igurativas foram pouco a pouco aumentando de tamanho, em detrimento das bordas (LING, 1998, p. 49). Nos mosaicos de pavimento remanescentes, Dioniso e Afrodite são as principais divindades retratadas. A iconograia do primeiro, composta por cenas de banquetes e casamentos, exibe um nítido tom festivo. Já a iconograia de Afrodite, conquanto não desprezível, comparece com um peso menor, pois ao contrário do que se observa em outras regiões, onde a deusa domina muitas cenas musivas, em Antioquia ela é sempre acompanhada por outras personagens (KONDOLEON, 2001, p. 65). Cabe ressaltar também que, embora Calíope fosse considerada uma das divindades tutelares de Antioquia, nenhum 171 mosaico encontrado faz referência às Musas, omissão talvez resultante da abrupta suspensão dos trabalhos de escavação. Do mesmo modo, com exceção do mosaico da Megalopsychia, em Yakto, não temos outras representações Figura 4: Pombas numa bacia. Opus vermiculatum proveniente da Vila de Adriano, em Tívoli (séc. II-III d.C.) de cidades ou mapas, um tema bastante comum nos mosaicos romanos da fase tardia. Outra ausência lamentável é a de mosaicos portando o nome dos artesãos, o que poderia nos fornecer indícios acerca do seu status social. No que se refere ao lugar ocupado por Antioquia no contexto da arte musiva praticada no Império Romano, constatamos que na cidade, como de resto em todo o Oriente Próximo, os mosaicistas absorvem com certa lentidão temas e motivos explorados há pelo menos um século pelos seus colegas do Ocidente, o que não nos autoriza a concluir por um possível “atraso” estético, mas a reletir sobre as condições que favorecem ou não a incorporação de um determinado tema ao repertório explorado na região. Assim é que, se apenas no século V os mosaicos de Antioquia passam a exibir cenas de inspiração campestre ou associadas à cinegética, isso parece nos sugerir o apego da elite da cidade a temas associados aos circuitos da vida urbana, uma vez que Antioquia, nos séculos IV e V, não experimenta a “ruralização” veriicada em outras regiões do Império, mas conserva ativas as suas redes de muniicência pública, que somente serão desmanteladas ao longo do século VI devido aos sucessivos abalos sísmicos que arrasam a cidade e ao ímpeto expansionista dos persas (NATALI, 1975). Uma característica singular dos mosaicos do Oriente Próximo, dentre os quais os de Antioquia não fogem à regra, é o emprego de 172 inscrições gregas para identiicar as personagens e as cenas, uma inovação do século III, mas que se torna recorrente no século IV. Os artesãos antioquenos demonstram predileção pela personiicação alegórica de conceitos como Ktisis (Fundação), Bios (Vida) e Anaenosis (Renovação), em geral simbolizados por bustos de mulher (LING, 1998, p. 55). Os especialistas debatem ainda as razões pelas quais, na fase tardia do Império, o texto escrito se torna parte integrante dos mosaicos, havendo duas explicações plausíveis: o aumento da presença de iguras alegóricas, de personiicações de valores e virtudes, o que diicultaria a “leitura” imediata da imagem pelo espectador; e um abandono progressivo da cultura clássica, de modo que somente por intermédio de “legendas” seria possível compreender o que estava sendo representado. Em face daquilo que conhecemos acerca da vida cotidiana de Antioquia no século IV, momento em que a cidade experimenta um notável desenvolvimento econômico, social e artístico, como comprovam os textos de Libânio e João Crisóstomo, a primeira explicação nos parece mais plausível. Antioquia, na Antiguidade Tardia, é uma cidade em plena expansão. Do ponto de vista arquitetônico, isso pode ser acompanhado não apenas pela multiplicação dos edifícios públicos, a exemplo das termas e do Plethrion, recinto destinado às competições de luta e ao pugilato, mas também pelo aumento nas dimensões do triclinium, a sala de jantar das residências privadas, o que requer, em contrapartida, o aumento dos mosaicos de pavimento, que passam a cobrir todo o chão como se fossem tapetes, um inequívoco sinal de riqueza dos proprietários, ainda que não saibamos quase nada sobre esses indivíduos, exceto que eram certamente membros da elite citadina (HUSKINSON, 2004, p. 137)4. Em Antioquia, os triclinia, além de abrigarem os mosaicos mais imponentes, eram concebidos como uma extensão do recinto urbano, comportando via de regra pórticos, colunas e um nymphaeum (fonte) com nichos onde eram erigidas estátuas, numa evidente replicação da arquitetura da cidade, famosa pela avenida das colunatas e por seus pórticos, que noite e dia atraíam citadinos e visitantes (SILVA, 2011). De acordo com Dobbins (2001, p. 60), não é razoável supor a existência, em Antioquia, de uma clivagem rígida entre espaço privado e espaço público, como se ambos constituíssem esferas autônomas, pois detectamos uma “contaminação” da arquitetura doméstica pelos padrões da arquitetura cívica. Assim como os pórticos, nas residências, regulam a entrada dos aposentos, os pórticos da cidade regulam a entrada nos edifícios públicos, ao passo que a função do nymphaeum doméstico é semelhante à do grande nymphaeum, situado na conluência da avenida das colunatas: a de ixar um ponto de convergência espacial. Na avaliação do autor, essas similitudes arquitetônicas, associadas aos temas mitológicos dos mosaicos, permitiam que, mesmo num espaço tido como “privado”, os moradores e eventuais visitantes se 4 Originalmente, o Plethrion de Antioquia, em virtude das suas dimensões reduzidas, abrigava uma audiência restrita. Entre 332 e 336, entretanto, uma reforma ampliou bastante o espaço destinado aos espectadores. Quanto aos banhos, Valente é responsável pela construção de um complexo termal nas imediações do hipódromo, na ilha formada pelo Orontes (DOWNEY, 1961, p. 435; YEGÜL, 2001, p. 147). Como podemos perceber, a vida urbana de Antioquia no século IV continua a se pautar pelas atividades próprias da cultura greco-romana, o que se traduz na manutenção do evergetismo municipal. 173 mantivessem vinculados às redes de sociabilidade urbana, marcadas ainda, nos séculos IV e V, por um inegável ethos clássico. Uma conclusão como essa nos obriga certamente a reconsiderar a opinião de Huskinson (2004, p. 141), para quem, muito embora as cenas mitológicas contidas nos mosaicos exprimam a adesão da elite de Antioquia à paideia, é difícil determinar se esta adesão seria supericial ou não. Além disso, de acordo com Huskinson, há certo descompasso entre a situação de Antioquia tal como documentada nas fontes literárias e a realidade evocada pelas composições musivas, pois a aristocracia local tenderia a decorar suas residências com símbolos de uma cultura compartilhada pela elite de todo o Império, não transportando assim para os mosaicos aspectos da vida cotidiana da cidade. Na verdade, a autora, mesmo reconhecendo a importância dos mosaicos para o estudo da vida social e cultural de Antioquia, ainda se mantém, de certo modo, presa aos argumentos de Ling a respeito dos lugares comuns da arte musiva, que seriam reproduzidos de uma província a outra quase que automaticamente. Ora, tomando os mosaicos, não de modo isolado, mas como parte de um cenário arquitetônico no qual predominam as referências à cultura citadina, é implausível supor que as composições não nos revelem aspectos da vida cotidiana de seus proprietários. Na medida em que os mosaicos atestam a familiaridade das elites locais com as tradições culturais greco-romanas, incluindo o culto às divindades pagãs, isso se converte numa informação extremamente relevante para avaliarmos, por exemplo, o grau de cristianização do espaço urbano de Antioquia entre os séculos IV e V, assunto com o qual pretendemos inalizar o capítulo. A comunidade cristã de Antioquia, como se sabe, é uma das mais antigas, sendo nesta cidade que, conforme a narrativa contida em Atos, os cristãos (christianoi) foram pela primeira vez assim nomeados. Ainda que, nos primeiros tempos, christianoi não designassem propriamente uma congregação cristã, mas sim uma sinagoga na qual se reuniam os judeus crentes em Jesus (ZETTERHOLM, 2003), é bem possível que no século II os cristãos já fossem considerados uma categoria à parte do judaísmo, como nos informa Inácio, o célebre bispo da cidade martirizado por volta de 130, em suas epístolas. Não obstante a antiguidade da congregação antioquena, no inal do século IV, sob o governo de imperadores como Teodósio e seus ilhos, os cristãos nicenos liderados por Melécio e Flaviano ainda se esforçam por obter a “cristianização de massa” de Antioquia (SOLER, 2006), um processo muito mais turbulento do que comumente se imagina. Em termos arqueológicos, as escavações de 1932-1939 revelaram apenas três igrejas, o martyrion de Bábilas, em Kaoussie; a igreja de Machouka e a igreja de Selêucia Piéria, as duas primeiras decoradas com mosaicos de chão contendo apenas motivos geométricos (HUSKINSON, 2004, p. 142). No mosaico da igreja de Selêucia Piéria, cuja construção é datada de ins do século V, os ambulatórios contêm mosaicos retratando uma procissão de pássaros e outros animais (elefantes, gazelas, zebras, hienas, girafas, cavalos, leão), o que talvez represente a transposição para a arquitetura eclesiástica da tradição de mosaicos de caça que abundam nas villae do período (KONDOLEON, 2001, p. 218-219). Seja como for, os 174 mosaicos das igrejas de Antioquia acompanham a tendência de se evitar o emprego de temas bíblicos, de símbolos cristãos e de iguras humanas, numa contraposição às cenas mitológicas naturalistas, que tinham na exploração da plasticidade do corpo humano uma das suas principais características (LING, 1998, p. 98). Comparando-se as evidências obtidas nas residências da elite e aquelas que nos são fornecidas pelos mosaicos das igrejas, é possível constatar um nítido descompasso. De um lado, temos os cristãos, que se esforçam por obter o controle sobre o território urbano por meio da multiplicação das igrejas e martyria (túmulos dos mártires) decorados com temas, digamos, “neutros” e, por outro, a elite pagã, em cujas residências abundam mosaicos igurativos que remetem à paideia, à formação cultura greco-romana, bem como ao modus vivendi cívico, que sempre suscitou reprovação por parte das autoridades eclesiásticas. Postas lado a lado, a iconograia dos mosaicos e a das residências demonstram níveis distintos de difusão do cristianismo, que nos séculos IV e V avança, mas não sem recuos, uma vez que setores da elite antioquena continuam a se valer de motivos conectados à tradição clássica, incluindo cenas nas quais o corpo humano ocupa o primeiro plano. Esse é apenas um exemplo, dentre tantos outros possíveis, sobre como a iconograia musiva é capaz de tornar mais abrangente a nossa compreensão do passado romano. REFERÊNCIAS BROOTEN, B. J. The Jews of Ancient Antioch. In: KONDOLEON, C. (Org.). Antioch, the lost ancient city. Princeton: Princeton University Press, 2001. p. 29-37. BURKE, P. Testemunha ocular: História e imagem. Bauru: Edusc, 2004. BUSTAMANTE, R. M. C. Representações do espaço rural em dois mosaicos norte-africanos: ‘Laberii’ e ‘Dominus Iulius’. Phoînix, Rio de Janeiro, n. 8, p. 328-358, 2002. BUSTAMANTE, R. M. C. 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The National Gallery, Londres, Inglaterra. 179 q ual seria o principal ponto de unidade entre as quatro pinturas? Um observador atento, que conheça o evangelho de João numa versão um pouco só mais antiga do que daquelas que hoje estão em circulação (ver item II), não terá nenhuma dúvida em responder: todas essas quatro pinturas dialogam com a cura realizada por Jesus de um enfermo na piscina de Betesda (Jo 5:1-9). Imagem 3. William Hogarth. Mural. Cristo cura o enfermo na piscina de Betesda. 1736. Escadaria do St. Bartholomew’s Hospital, Londres, Inglaterra. Imagem 4. Carl Heinrich Bloch. Óleo sobre tela. Cristo cura o enfermo na piscina de Betesda. 1883. Brigham Young University Museum of Art. 180 Essas representações, situadas entre os séculos XVII e XIX, trazem alguns elementos comuns: em todas elas, Betesda aparece como um belíssimo complexo monumental, com uma de suas construções dotada de pórticos e o entorno da piscina abarrotado de deicientes, muitos deles caracterizados como pessoas simples e miseráveis. Anjos se fazem presentes em três dessas pinturas (imagens 1, 2 e 3), assim como um cão aparece em uma delas (imagem 2). Mas o foco central de todos esses trabalhos é a presença de Jesus, em pé, diante de um enfermo sentado ou deitado no chão, como a dizer (Jo 5:8): “Levanta-te, toma o teu leito e anda”! Muito embora o enfermo apareça em destaque, é somente na pintura de Pieter van Lint (imagem 1) que ele dá mostra de ter sido curado, pois está claramente se colocando de pé. É também nessa pintura que se pode identiicar, a julgar pelas suas vestimentas, um grupo de judeus, situados imediatamente atrás de Jesus. Eles observam atentamente aquela cura miraculosa, com um deles gesticulando, possivelmente protestando com Jesus, pela atitude do ex-enfermo de carregar seu leito no dia de sábado (Jo 5:10). II. Muito embora a cura de um homem enfermo em Betesda não tenha sido um dos temas preferidos de mecenas e artistas, aqueles que quiseram trabalhá-lo estavam livres para fazê-lo, sem que lhes fosse imposto qualquer tipo de restrição especíica a um ou mais versículos que compunham aquele relato joanino. O mesmo não pode ser dito da imensa maioria dos atuais leitores de Jo, que, sem saber, lança mão de textos revisados, onde já constam notas de rodapé explicativas; e/ou uso de colchetes – sugerindo passagens problemáticas (ver Anexo I); e/ou ainda a simples supressão de versículos inteiros – a aplicação dessa regra se torna cada vez mais comum (ver Anexo II). Não se trata aqui de dizer, sugerir ou defender que a referida passagem joanina, na sua antiga versão, fosse melhor e/ou que as atuais revisões sejam piores do que a versão anterior. Não é isso que está em discussão aqui, e sim um tipo de visão teológica que sustenta o argumento de que se devem fazer notas de rodapé explicativas, e/ou revisões, e/ou ainda supressão de versículos bíblicos. Tomar-se-á aqui a narrativa de Jo 5:1-9, a partir da Bíblia de Jerusalém, pois ainda ali se encontra toda a história, tal como os antigos pintores a conheceram e a retrataram nas suas respectivas pinturas (ver imagens 1, 2, 3, 4). Serão também trazidas à discussão as três notas de rodapé relativas à referida passagem, já que os tradutores deixam transparecer, sem nada dizer, os problemas inerentes ao passo Jo 5:3-4. Eis a passagem joanina: [1] Depois disso, por ocasião de uma festa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém. [2] Existe em Jerusalém, junto à Porta das Ovelhas, uma piscina que, em hebraico, se chama Betesda, com cinco pórticos. [3] Sob esses pórticos, deitados pelo chão, numerosos doentes, cegos, coxos e paralíticos icavam esperando o borbulhar da água. [4] Porque o Anjo do Senhor 181 descia, de vez em quando, à piscina e agitava a água; o primeiro, então, que aí entrasse, depois que a água fora agitada, icava curado, qualquer que fosse a doença. [5] Encontrava-se aí um homem, doente trinta e oito anos. [6] Jesus, vendo-o deitado, e sabendo que estava assim havia muito tempo, perguntou-lhe: “Queres icar curado”? [7] Respondeu-lhe o enfermo: “Senhor, não tenho quem me jogue na piscina, quando a água é agitada; ao chegar, outro já desceu antes de mim”. [8] Disse-lhe Jesus: “Levanta-te, toma o teu leito e anda”! [9] Imediatamente o homem icou curado. Tomou o seu leito e se pôs a andar. Ora, esse dia era um sábado. Seguem-se as três notas de rodapé: eis a primeira delas: Var.: “a festa”. Talvez Pentecostes. A segunda nota de rodapé é a seguinte: “Betesda”: “casa de misericórdia” Var.: “Bezatha”, “Bethsaida”, “Belsetha”. – O quinto pórtico dividia o quadrilátero em dois tanques, onde se juntava a água, usada depois no Templo. Mas ao lado desses dois reservatórios havia outros menores, ligados a um santuário pagão de curas (o itálico é meu). A terceira nota de rodapé traz a seguinte informação: Qualquer que seja a causa dessa efervescência (aluxo intermitente de água?), Jesus vai usar das circunstâncias para revelar-se como o verdadeiro terapeuta, o que dá e restitui a vida do corpo e da alma (v. 14; 3,15+; cf. Sb 16:6-13). Numerosos testemunhos omitem “esperando o movimento da água” e todo o v. 4 (todos os itálicos são meus). Os meus itálicos, nas três notas de rodapé, levantam as seguintes questões: que santuário pagão de cura é esse localizado ao lado dos tanques de Betesda? Como entender a ênfase de Jesus como o verdadeiro terapeuta? Por que omitir de Jo 5, parte do versículo 3 e todo o 4? As respostas, para essas questões, moldam a chave que dá acesso à forma como são aplicados os iltros de leituras no material neotestamentário. O impacto causado por eles é de tão grande magnitude que terminam por afetar o simples exercício cotidiano, realizado por milhares e milhares de indivíduos, de ler um texto bíblico. Não deixa de ser interessante notar que, embora os iltros de leitura sejam os responsáveis por mediar o sentido “exato” que possa ter uma passagem bíblica, esse leitor quase nunca os percebe em ação. Ele parece mesmo estar preocupado apenas em fazer a sua fé crescer, não conseguindo entender o quanto o “seu” entendimento é norteado pelas notas de rodapé explicativas, colchetes e omissões de versículos. Pode-se mesmo airmar que, devido à sua ingenuidade intelectual, esse leitor sequer dá conta de que suas percepções são afetadas 182 Figura 1. Igreja de Santa Ana, Jerusalém (MURPHY-O’CONNOR, 2008, p. 31). Figura 2. Detalhe da Porta da Igreja de Santa Ana, em Jerusalém, com a inscrição mandada fazer por Saladino (JÉRUSALEM, 1963, prancha 10) 183 Figura 3. Complexo de Estruturas associados à Piscina Probática (DUPREZ, 1970, prancha III). Observar as duas grandes bacias bem à esquerda do Complexo. Figura 4. Forma de pé humano, esculpido em mármore, contendo uma inscrição em grego: “Pompeia Lucilia dedicou-o” (JÉRUSALEM, 1963, prancha 5). Figura 5. Estatueta Feminina (DUPREZ, 1970, prancha 17,2). Figura 6. Barco Votivo (DUPREZ, 1970, prancha 21). 184 por informações dali derivadas, que, ao mesmo tempo em que lhes prometem a robusteza da fé, lhes proporcionam também o crescimento da intolerância religiosa. Fortalecimento da fé e falta de respeito religioso, ultimamente esses dois elementos têm andado juntos, possivelmente como resultado do recrudescimento dos iltros de leituras, cujo propósito inal está mais para municiar o leitor da Bíblia com informações que mais parecem tijolos, que ele utiliza para blindá-lo, como se fosse uma espécie de redoma, servindo apenas separar, nunca para uni-lo a pessoas diferentes. III. As respostas às três questões levantadas passam pela Igreja de Santa Ana, localizada em Jerusalém (ver Figura 1). Ela foi construída pelos cruzados entre os anos de 1131 e 1138, mas, ainda naquele século XII, especiicamente em 25 de julho de 1192, o Sultão Saladino transformou-a em uma escola teológica muçulmana (JEREMIAS, 1966, p. 24; MURPHY-O’CONNOR, 2008, pp. 28, 30, 32), tal como ainda hoje se pode ler na inscrição acima de sua entrada principal (ver Figura 2). Em um dado momento, não muito preciso, essa igreja foi literalmente abandonada, chegando mesmo a icar em ruínas. Entretanto, no im de 1856, após a guerra da Crimeia, em sinal de reconhecimento, o Sultão do Império Otomano, Abdou’l Majid, doou-a ao imperador francês, Napoleão III, que, então, mandou restaurá-la, preservando a sua maior parte ainda original do século XII (JÉRUSALEM, 1963, p. 11; JEREMIAS, 1966, p. 25; MURPHYO’CONNOR, 2008, p. 32). A começar pelos anos entre 1856 e 1888, quando ocorrem os processos de construção e de restauração da Igreja de Santa Ana, passando por diferentes fases de escavações1, com as descobertas das ruínas de uma igreja bizantina2, datada do primeiro quartel do século V, e das piscinas de Betesda, até culminar nos mais recentes trabalhos arqueológicos3, esse sítio tem municiado os pesquisadores com importantes informações. Pode-se datar o aparecimento inicial de notas de rodapé, passando pelo uso de colchetes, até chegar à omissão de dois versículos de Jo 5, quando novas e desconcertantes descobertas foram feitas no curso das escavações dirigidas por Rousée e de Vaux, entre 1957 e 1962. No lado leste, entre as duas piscinas (ver Figura 3), foi descoberto um conjunto de galerias subterrâneas (ROUSÉE, 1962, p. 108; JEREMIAS, 1966, p. 32; DUPREZ, 1970). Implica dizer que, bem abaixo da antiga igreja bizantina, encontrada 1 Para os principais estágios e pesquisadores envolvidos nas escavações desse sítio arqueológico, ver Pierre e Rousée (1981, p. 23). 2 Não há consenso entre os especialistas se essa igreja bizantina seria aquela consagrada à Virgem Maria. Em favor dessa identiicação, ver: o pequeno livreto trilíngue, sem autoria, possivelmente vendido aos visitantes da igreja de Santa Ana, como uma espécie de guia (JÉRUSALEM, 1963, p. 7-10); Wilkinson (1988, p. 102); Murphy-O’Connor (2008, p. 30). Para uma posição contrária, ver: Jeremias (1963, p. 19-20). 3 A Revista Proche-Orient Chrétien acabou de publicar um número especial (2011), cujo título é La Piscine Probatique. De Jésus à Saladin. Le Projet Béthesda (1994-2010). 185 em 1876, estava um santuário politeísta de cura4, contendo uma rica cultura material (ver Figuras 4, 5, 6, 7), que, pelo menos na sua segunda fase de ocupação, foi atribuído a Asclépio / Serapis (DUPREZ, 1970; PIERRE; ROUSÉE, 1981; WILKINSON, 1988, p. 98, 102-104; MURPHY-O’CONNOR, 2008, p. 28; CHARLESWORTH, 2010, p. 108-116). Convém destacar as posições assumidas por dois dos mais inluentes estudiosos do cristianismo antigo, já que elas impactaram muito do que passou a ser dito após a publicação dessa descoberta. De imediato, Jeremias (1966, p. 34), que participou de uma das fases da pesquisa arqueológica sobre o sítio de Betesda5, acha que só é possível a existência de um santuário como esse após a derrota de Bar Kochba, em 135, que culminou com a expulsão dos judeus de Jerusalém. O próprio autor (JEREMIAS, 1966, p. 34) resume assim o seu raciocínio: “[...] é difícil conceber um santuário de cura na Cidade Santa nas décadas anteriores a 70 EC”. Já Brown (1966, p. XLII, 205, 207), ciente dessas descobertas, apesar de não as mencionar diretamente, não só coloca entre colchete parte de Jo 5:3, “[esperando pelo movimento das águas]”, que ele inclusive acha que pode ser original, como também suprime todo Jo 5:4, sob o argumento de que esse verso seria uma glosa, devido à sua pobre atestação textual e ao emprego de sete palavras não joaninas. O impacto das posições assumidas por Jeremias e Brown sobre a pesquisa acadêmica pode ser sentido pelo silêncio6 que paira sobre o tema, por um lado, e pelo senso comum dos especialistas, tal como sistematizado por Murphy-O’Connor, por outro. Esse último autor (MURPHY-O’CONNOR, 2008, p. 29) diz que esse templo de cura em Jerusalém tinha, desde o seu início, uma relação de exclusividade com soldados politeísta instalados na fortaleza de Antônia. As colocações de Jeremias e Brown, ecoadas por MurphyO’Connor, são por demais restritvas e excludentes, na medida em que não consideram a possibilidade de que aquele santuário de cura estivesse aberto a todos aqueles que quisessem recorrer ao deus que operasse ali, inclusive 4 Dos dados advindos das escavações arqueológicas, pode-se refazer muito da história daquele santuário de cura. Segundo Pierre e Rousée (1981, p. 26-27, 35) ele conheceu dois níveis distintos de ocupação: o primeiro deles pode ser datado entre meados dos séculos II aEC e 70 EC. Esse templo, cuja divindade não é conhecida, utiliza-se de cavernas naturais, localizadas a leste das piscinas de Betesda. Essas cavernas teriam sido adaptadas para servir como pequenas salas de banhos (MURPHY-O`CONNOR, 2008, p. 29; ver também Duprez (1970, p. 38-54, incluindo pranchas I-III). Inicialmente ele se encontrava localizado fora das muralhas da cidade, mas, em meados do século I, Herodes Agripa, ao expandi-las, acabou por incorpora-lo à área urbana de Jerusalém. A segunda fase de ocupação, isto é, a partir da primeira metade do século II, quando Adriano reconstruiu a cidade santa, agora com o nome de Aelia Capitolina, ele o expandiu, tornando-o um grande templo dedicado aos deuses Asclepio e Serapis. A curvatura dos muros baixos mostrou claramente que duas salas (ver Figura 7, salas de n. 5) eram abobadas, sendo que uma delas era bastante escura, a im de permitir que os iéis do deus, após se banharem, pudessem dormir ali (MURPHY-O`CONNOR, 2008, p. 29, 33). 5 Essa informação consta do Prefácio da Edição Inglesa de sua obra citada na bibliograia deste capítulo. 6 Não deixa de ser interessante observar que Wahlde (2006, p. 563), apesar de reconhecer o pequeno número de trabalhos publicados sobre as piscinas de Betesda, não tenha ido além desse reconhecimento. Acho que as colocações de Jeremias e de Brown não podem ser dissociadas sobre o pouco interesse despertado na pesquisa teológica pelos dados arqueológicos de Betesda, principalmente aqueles advindos das escavações do inal dos anos cinquenta do século XX. 186 Figura 6a. Detalhe Interno do Barco Votivo (DUPREZ, 1970, pl. 22,1). Figura 7. Fragmentos de placa votiva (DUPREZ, 1970, prancha 18,1-3). muitos judeus, se assim o desejassem. É visível que Jeremias trabalha com o argumento centrado na obviedade, mas o óbvio não é nem de longe a única possibilidade de entendimento, muito menos serve como prova de que aquele santuário fosse de uso exclusivo de uma população não judaica. Já Brown centra seus argumentos na glosa e nos ecos de uma tradição popular sobre a piscina, deixando transparecer, nesse último aspecto, como o popular e a magia andariam juntos. Vale lembrar que Jerusalém era uma cidade cosmopolita (At 2:5-11; Josefo. GJ 6:424; DUPREZ, 1970, p. 118), muito helenizada (CHEVITARESE; CORNELLI, 2007), podendo mesmo proporcionar, conforme deixa transparecer a narrativa joanina (5:1-9), por meio de indícios, um cenário de violenta tensão entre duas divindades, com fortes características terapêuticas: Jesus e Asclépio (EDELSTEIN; EDELSTEIN, 1998, v. II, p. 132-138; HART, 2000, p. 183-199). IV. Se essa passagem joanina fosse a única considerada problemática em todo o material neotestamentário, com o pesquisador tendo pouca ou nenhuma 187 informação sobre Betesda, as atuais argumentações teológicas, presentes nas notas de rodapé, nos usos de colchetes e nas omissões de versículos, passariam praticamente incólumes pela crítica. Mas essa passagem não é um caso único no corpus neotestamentário, muito menos Betesda carece de poucas informações. Para efeito de demonstração, considerem o seguinte exemplo no próprio material joanino: trata-se de uma mulher pega em lagrante adultério (Jo 8:3-11). Por mais célebre, tocante e popular que essa história possa parecer, com um inal absolutamente maravilhoso, deveria ser perguntado: ela é mesmo joanina? Convém deixar de lado, por um rápido momento, a história da mulher adúltera e relembrar os argumentos utilizados por Brown (1966, p. 207) para eliminar todo o passo Jo 5:4: a sua base argumentativa está assentada no fato de que esse verso seria uma glosa, devido à sua pobre atestação textual e ao emprego de sete palavras não joaninas. Após relembrar esses argumentos, pode-se, então, voltar a Jo 8:3-11. Não deixa de ser surpreendente notar que o mesmo Brown, diante de elementos bem parecidos, opte por não adotar o mesmo critério de análise para a história da mulher adúltera. Considerem os seus três principais argumentos: de imediato, ele (BROWN, 1966, p. 335) constata que esse passo não é achado em qualquer importante testemunha textual antiga grega de proveniência oriental, carece de uma ausência de comentários ao longo de todo o primeiro milênio cristão e que a evidência dessa história, como Escritura, está coninada à Igreja Ocidental – e ainda assim, somente a partir dos séculos IV e V com Ambrósio, Jerônimo e Agostinho. A seguir, Brown (1966, p. 336) observa que o estilo, o vocabulário ou a gramática não são joaninos. Na verdade, do ponto de vista estilístico, a história é mais lucana do que joanina. Talvez por isso mesmo, um importante grupo de testemunhas coloca essa história no Evangelho lucano, depois de Lc 21:38. Trata-se mesmo de uma localização mais apropriada do que a posição presente da história, onde ela quebra a sequência dos discursos sobre os Tabernáculos. Por im, Brown (1966, p. 336) é transparente em dizer que o fato de a história da mulher adúltera ter sido aceita por Jerônimo, os católicos, como ele, observam-na como canônica. Como um balanço, pode-se dizer, seguindo de perto os argumentos de Ehrman (2006, p. 73-75), que Jo 8:3-11, apesar de trazer uma bela e profunda história, não se encontra em nossos mais antigos e melhores manuscritos, possui um estilo de escrita muito diferente daquele que é encontrado no restante do Evangelho joanino, além de incluir um grande número de termos e frases que são estranhas a João. Mas, apesar de toda essa avassaladora crítica textual, a história da mulher adúltera permanece na sua inteireza intacta, enquanto a narrativa de Betesda precisa ser retalhada, com alguns de seus versos acusados de serem glosas. V. Recentemente, apareceu traduzido para o português mais um livro de Gibson (2009). Seguindo uma escolha, adotada por muitas editoras que entendem que o público leitor brasileiro é incapaz de entender qualquer coisa 188 com mais de um milímetro de profundidade, essa obra traz à tona um conjunto de temas que, apesar de serem importantes e atuais, são apresentados de forma muito rasa. O que é uma pena, principalmente quando se considera quem é Shimon Gibson e o lugar que ele ocupa na Arqueologia israelense. Baseando-se nos seus estudos sobre Betesda, o autor (GIBSON, 2009, p. 90-91) airma que essa construção, formada por uma bacia gêmea, constituída por cinco pórticos, seria da época de Herodes, o Grande. Ela teria como função exclusiva ser um tanque de puriicação ritual (GIBSON, 2009, p. 91-95)7. Torna-se evidente, no decorrer das poucas páginas consagradas por Gibson a esse sítio arqueológico, que ele está discordando de alguns interlocutores. Mas, pelos motivos editoriais já mencionados, essas discussões resumem-se a colocações do tipo: “Portanto, a data do tanque, em deinitivo, não é a Idade do Ferro ou a Helenística, como sugerem alguns estudiosos” (GIBSON, 2011, p. 91). Nesses raros momentos, resta ao leitor ir à nota para saber quem seriam esses estudiosos. E ele para aí, não conseguindo ir além das simples indicações bibliográicas. Assim, o leitor permanece em sua mais completa e total ignorância, pois ica sem entender a real dimensão do problema, daquilo que efetivamente está sendo objeto de contestação. Mesmo sendo supericial, o livro de Gibson permite que venham à tona algumas importantes questões: de imediato, como um não dito, o santuário de cura em Betesda. Apesar de não o mencionar, pode-se dizer com toda a segurança que o autor o conhece, pois citou os trabalhos de Duprez (1970, p. 43-54) e Pierre & Rousée (1981, p. 26-27, 35). Esses autores são categóricos em airmar, com provas substanciais, a existência desse templo, que estava em atividade desde o século II aEC. A seguir, Gibson (2009, p. 90; cf. tb. BROWN, 1966, p. 207) airma, como se sua leitura fosse a única possível, que as duas piscinas eram cercadas por cinco pórticos com colunas. Duprez (1970, p. 37-38), que, da mesma forma que Gibson, também pesquisou todo o sítio de Betesda, deixa claro que “os dados arqueológicos não permitem airmar a existência efetiva dos cinco pórticos. [Além disso] nenhum traço concreto de colunas foi achado in situ”. Por im, Gibson (2009, p. 95) associa as duas grandes piscinas de Betesda como sendo o lugar onde Jesus operou a cura do homem enfermo. Uma vez mais, essa não é a única, muito menos a melhor leitura para Jo 5:1-9. Ela pode até ser a mais amplamente aceita pelos pesquisadores, mas, a julgar pelas informações contidas na própria passagem joanina e pelos dados arqueológicos disponíveis, também é a que mais carece de provas. Duprez (1970, p. 95-96), após um exame aprofundado da documentação, e munido por um ótimo arcabouço teórico, observou que a passagem atribuída a Jo (5:1-9) dialoga com uma antiga tradição popular, onde as pessoas com todos os tipos de doenças, politeístas residentes em Jerusalém (DUPREZ, 1970, p. 116-117) e judias da Palestina ou da diáspora (DUPREZ, 7 Seria esse o trabalho de Gibson, ou pelo menos parte dele, que Wahlde (2006, p. 563, nota 123) citou como sendo capaz de apresentar argumentos diferentes (e mais consistentes) daqueles trazidos por Duprez? Acredito que isso deva ser apenas parte das conclusões alcançadas por Gibson (2009, p. 209, nota 125), a julgar pelas próprias informações que ele mesmo disponibilizou em seu livro. 189 1970, p. 117-127), especialmente, mas não exclusivamente, oriundas das classes mais pobres (am-ha-arez), acorriam à cura por meio de um banho ritual no interior do santuário de um deus, cujas funções eram marcadamente terapêuticas. Pierre & Rosée (1981, p. 34-35) situam-se no mesmo campo de análise de Duprez, pois além de compartilharem do pressuposto de que haveria uma obscura tradição (popular) presa a esse santuário politeísta, cuja divindade, na sua primeira fase de ocupação seria desconhecida, também observaram que o lugar onde Jesus operou a cura do homem enfermo seria muito pouco conhecido, salvo pelos poucos insights contidos nos dados arqueológicos e na própria narrativa joanina, como a de um anjo que vinha de tempos em tempos para se banhar e agitar as águas. VI. Esse último aspecto aparece como um ponto nevrálgico na passagem joanina, ao mesmo tempo que leva essa discussão para o seu inal. Convém retomar o argumento de Brown (ver item III) de que todo o passo joanino (5:4) seria uma glosa. O referido autor (BROWN, 1966, p. 207) reconhece que essa explicação poderia não apenas dialogar com o conhecimento de uma tradição popular sobre a piscina, como também daria subsídios para entender o borbulhar da água, mencionado em Jo (5:7). Esse fenômeno poderia ser causado talvez por uma fonte intermitente, de que se pensava ter poderes de cura. Portanto, a imaginação popular estaria por trás da glosa. As análises de Duprez são novamente bem mais completas e profundas do que a fraca e supericial argumentação trazida por Brown. De imediato, Duprez (1970, p. 160) observa corretamente que esse “borbulhar” da água não é para ser procurado ou encontrado em alguma instalação material ou natural, mas ele parece pertencer ao tema tradicional de cura pelas águas. A seguir, Duprez (1970, p. 134-135) constata, por meio de uma análise literária e ilológica, que Jo 5:2-4 não é joanino, o que não quer dizer que seja uma glosa tardia, como será observado. Mesmo não sendo joanino, os passos 2-3a aparecem nas antigas tradições manuscritas, enquanto que os versos 3b-4 não constam num importante conjunto de testemunhos, principalmente nos membros da família alexandrina. Diante dessa constatação, o autor (DUPREZ, 1970, p. 135) levanta duas possíveis hipóteses sobre o porquê dessa omissão de Jo 5:3b-4: essa passagem seria uma glosa tardia – a maioria dos atuais comentadores de João, incluindo o próprio Brown, se insere aqui; ou teria sido omitida pelo fato de colocar um grande número de questões que os antigos (e os atuais) comentadores de Jo não tinham condições de responder – Duprez trabalha com essa possibilidade. Muito embora Jo 5:2-4 apresente uma série de palavras que raramente ou nunca são utilizadas pelo autor e/ou redator do Quarto Evangelho, incluindo os sete harpax, Duprez (1970, p. 136, 142) argumenta corretamente que esses versos provêm de uma tradição popular que João inseriu propositalmente no seu Evangelho. Esse pesquisador baseia-se principalmente em Jo 5:7, que é um passo amplamente reconhecido como sendo joanino, pois nenhum comentarista colocou-o em dúvida. Implica dizer, não é Jo 5:2-4 que depende 190 de Jo 5:7, mas é exatamente o contrário: é Jo 5:7 que precisa de Jo 5:2-4. Esses versos pertencem a uma tradição popular que descreve, em Jerusalém, um lugar onde se operavam curas por meio de banhos rituais (DUPREZ, 1970, p. 133). As escavações arqueológicas conirmaram não apenas essa realidade, assim como a antiguidade desses lugares de cura. Elas também impuseram uma distinção necessária entre a piscina com cinco pórticos e aquela da Probática (DUPREZ, 1970, p. 133-134). Duprez (1970, p. 142-143) está correto quando argumenta que essa tradição popular, contida em Jo 5:2-4, especialmente nos versos 3b-4, que descrevia o santuário politeísta de cura, pareceria chocante aos antigos copistas associados à ortodoxia da igreja. Esse “anjo do Senhor” que “descia” na água e que, segundo alguns manuscritos, “banhava-se” permanecia suspeito, sobretudo se os leitores do Evangelho conhecessem o caráter heterodoxo do local onde acontecia a cura. Por motivos parecidos, a ortodoxia também “tatuou” em Maria Madalena a fama de prostituta arrependida. Mesmo em anos recentes, quando buscou remover-lhe essa tatuagem, icaram algumas marcas, como lembranças, que ainda impedem os cristãos de a enxergarem com outra lente, bem diferente daquela utilizada pelo Papa Gregório, o Grande, no inal do século VI. VII. Para efeito deste capítulo, a questão não é saber que divindade era aquela do santuário de cura, dotado de cinco pórticos, em Betesda: se um deus ligado à tradição semítica (DUPREZ, 1970, p. 57-63, p. 85-89, p. 108116); ou o próprio Asclépio8; ou ainda Serapis/Asclépio9. Essa não é a questão central, pelo menos aqui neste capítulo. O mais signiicativo é que o autor do Quarto Evangelho, de forma deliberada, ao colocar Jesus no interior de um templo cuja divindade exercia funções terapêuticas, não o mostrou raivoso, agredindo os que lá se achavam, muito menos destruindo estátuas ou objetos cultuais desse deus. É bem possível que parte do cenário da história de Jo 5:1-9 tenha como pano de fundo a rivalidade entre duas divindades – Jesus e o deus do templo com cinco pórticos –, mas, mesmo nesse caso, o Senhor lá esteve de maneira pacíica e respeitosa. Essa bem que poderia ser uma das possibilidades de conclusão dessa história joanina, mas, para que ela possa ser identiicada como sendo uma, entre as várias possíveis, é prioritário que os iltros de leituras sejam removidos, que os tijolos que estão nas mãos dos fundamentalistas deixem de ser utilizados para construir redomas e passem a ser usados na construção de pontes, que sirvam para unir as pessoas exatamente naquilo que as distingem, isto é, nas suas diferenças. 8 Como parece sugerir Charlesworth (2006, p. 34). 9 Com certeza, a partir do inal da primeira metade do século II EC (DUPREZ, 1970; PIERRE; ROUSÉE, 1981). 191 Referências BÍBLIA Ave Maria. In: BÍBLIA Católica Online. 2013. 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[6] Vendo-o deitado e sabendo que já havia muito tempo que estava enfermo, perguntou-lhe Jesus: Queres 193 icar curado? [7] O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho ninguém que me ponha no tanque, quando a água é agitada; enquanto vou, já outro desceu antes de mim. [8] Ordenou-lhe Jesus: Levanta-te, toma o teu leito e anda. [9] No mesmo instante, aquele homem icou curado, tomou o seu leito e foi andando. Ora, aquele dia era sábado. Bíblia Ave Maria (http://www.bibliacatolica.com.br/01/50/5.php). Anexo II [1] Depois disso, houve uma festa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. [2] Ora, existe em Jerusalém, perto da Porta das Ovelhas, uma piscina com cinco pórticos, chamada Bezata em hebraico. [3] Muitos doentes, cegos, coxos e paralíticos icavam ali deitados. [5] Encontrava-se ali um homem enfermo havia trinta e oito anos. [6] Jesus o viu ali deitado e, sabendo que estava assim desde muito tempo, perguntoulhe: “Queres icar curado?” [7] O enfermo respondeu: “Senhor, não tenho ninguém que me leve à piscina, quando a água se movimenta. Quando estou chegando, outro entra na minha frente”. [8] Jesus lhe disse: “Levanta-te, pega a tua maca e anda”. [9] No mesmo instante, o homem icou curado, pegou sua maca e começou a andar. Aquele dia, porém, era um sábado. Bíblia da CNBB (http://www.bibliacatolica.com.br/02/50/5.php). 194 A FORMAÇÃO DO CÂNON DO NOVO TESTAMENTO NO MUNDO ROMANO: ATOS DOS APÓSTOLOS E A CONSTRUÇÃO DE UMA UNIDADE CRISTÃ Monica Selvatici Introdução m uitas são as relações a serem estabelecidas entre história e literatura, sendo a primeira delas, em nossa opinião, a de que toda produção literária nasce em determinado contexto histórico e, por isso mesmo, sofre certas imposições dele (sejam elas de ordem temática, estilística, etc.). A literatura cristã, e especiicamente o cânon de livros considerados inspirados que compõe o Novo Testamento, constitui um bom exemplo nesse sentido uma vez que o seu contexto de produção está ligado a certa coniguração histórica – a realidade maior do Império Romano na qual ocorriam diversos embates ideológicos relacionados à crença judaica, à cultura helênica e a outras formas de pensamento – embates estes que suscitaram nas autoridades cristãs a necessidade de conferir uma unidade à fé cristã. Além disso, o estudo do movimento cristão e do seu desenvolvimento como crença autônoma no Mediterrâneo romano permite enxergar um elo ainda maior entre literatura e história ao observarmos o aspecto marcadamente discursivo da crença cristã. Em outras palavras, o que aqui queremos salientar é a ligação entre a fé cristã e a realidade do texto. O cristianismo herda do judaísmo a grande importância atribuída a um conjunto de textos considerados sagrados, considerados a Palavra de Deus. E, mais do que nunca, é tal centralidade do texto – a Bíblia – no cristianismo aquilo que vai melhor deinir a construção de uma identidade cristã e de uma história cristã. A suposta divisão clara acima apresentada entre duas formas de relação entre literatura e história se trata, na realidade, mais de um recurso didático do que propriamente de uma realidade concreta, já que ambas as 195 questões estão intrinsecamente ligadas, pelo menos no que diz respeito à relação entre a produção dos primeiros textos cristãos (e de uma identidade cristã) e os embates ideológicos envolvendo o judaísmo presentes no mundo romano de cultura helênica em que se situavam. No presente capítulo procuraremos desenvolver essas duas formas de relação entre história e literatura, tendo por objeto de estudo a formação da literatura cristã no mundo romano dos séculos I e II d.C. e, especiicamente, uma análise da seleção e divulgação do texto Atos dos Apóstolos, que integra o cânon do Novo Testamento. Os primeiros textos cristãos no mundo romano A Bíblia se trata de uma compilação de 73 livros, divididos em dois grupos, intitulados Testamentos ou Alianças, que correspondem respectivamente à antiga tradição judaica e à tradição cristã. O Novo Testamento (NT) constitui a segunda parte do cânon das Bíblias Cristãs, que tem no Antigo Testamento (AT) a sua primeira parte, e foi escrito em grego koiné1, que era falado nas comunidades helenizadas da região mediterrânea nos períodos helenístico e romano. Sua redação é datada das chamadas épocas ‘apostólica’(período compreendido entre 30 e 70 da nossa era) e ‘subapostólica’ (70 a 100 d.C.). Trata-se de uma compilação de textos considerados sagrados pelos adeptos, uma vez que trazem a ‘palavra de Deus’ e a experiência do divino, traduzido na pessoa de Jesus Cristo. Este foi interpretado na religião cristã como o Messias (a palavra judaica para ‘ungido’). No Antigo Testamento, o rito cerimonial da unção servia para conferir certos cargos superiores ou, em outros termos, elevar alguém à dignidade de sumo sacerdote, rei e também profeta. Sua tradução para o grego, ‘Cristo’, tornou-se muito cedo, entre os discípulos, um nome próprio ligado a Jesus e acabou por dar o nome à devoção que se desenvolveu à igura dele. Essa devoção envolvia tanto a crença em Jesus como o salvador, o redentor, político que viria libertar Israel do domínio estrangeiro (o Messias-rei, descendente de Davi), como a crença em sua origem divina, que estava associada à compreensão de que ele ressuscitara dos mortos. Esta última prevaleceu e levou à noção de Jesus como o ‘ilho de Deus’ (ver Gálatas 1:16a) e/ou o próprio Deus (João 1:1). Segundo Robin Lane Fox, a crença cristã no texto como sendo a palavra de Deus é uma continuação da concepção judaica da escrita da lei (da história) por mãos divinas: “os cristãos rapidamente estenderam a mesma divina autoria a seus autores ‘apostólicos’, embora estes [diferentemente dos textos judaicos] fossem muito menos remotos no tempo” (1998, p. 158). É importante salientar, no entanto, que a produção de textos ligados à fé cristã não data do princípio do movimento, uma vez que o próprio Jesus nunca deixou textos escritos a seus discípulos e nem seus primeiros seguidores 1 Excetuando-se alguns textos primeiramente redigidos em aramaico, como a versão aramaica do evangelho de Mateus. 196 assim o izeram. Os primeiros textos cristãos foram simples cartas enviadas pelo missionário Paulo de Tarso às comunidades que ele estabeleceu ao longo da região oriental do Mediterrâneo romano em suas viagens de divulgação da Boa Nova cristã. Tais cartas tratavam de questões particulares, próprias do contexto de cada comunidade. A necessidade de se narrar a vida e os feitos de Jesus só apareceu mais de trinta anos após a sua morte (ao longo da década de 60 d.C.), quando as testemunhas oculares do tempo de Jesus começaram a morrer e a história dele correu o risco de não ser lembrada às gerações posteriores.2 Dessa forma, os quatro primeiros livros (os evangelhos) que compõem o NT se ocupam da narração da vida, morte e ‘ressurreição’ de Jesus Cristo e constituem fontes de seus ensinamentos. O termo evangelho, do grego euaggelion, tinha no grego koiné o signiicado de uma boa notícia ou Boa Nova e também o anúncio da chegada de uma personagem famosa. Com a pregação cristã, ele adquiriu como sentido a mensagem que Jesus Cristo veio trazer. O consenso maior na historiograia do NT é que os evangelhos compreendem tradições orais e escritas de determinadas comunidades cristãs apostólicas retrabalhadas por quatro redatores da época subapostólica, embora sob a autoridade de um nome apostólico. Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas seguem certa tradição, chamada a tradição petrina. São considerados sinópticos porque possuem a mesma estrutura narrativa: concordam entre si no que diz respeito aos principais eventos da vida de Jesus, diferindo em detalhes e em alguns ensinamentos atribuídos a Jesus. Lucas e Mateus são ainda mais próximos um do outro no que se refere a certos ensinamentos dele, a tal ponto que a existência de uma fonte oral comum – a fonte ‘Q’3 – é defendida por um número signiicativo de pesquisadores. Já em relação ao evangelho de João, diferem bastante4. Este, de tradição muito antiga, muito possivelmente do próprio apóstolo, foi posteriormente, em função da elaborada teologia nele expressa, retrabalhada e compilada por discípulos dele. O conjunto de textos canônicos, isto é, oiciais, que compõem o NT integra, além dos quatro evangelhos, 21 epístolas, um livro de atos e um apocalipse. O livro de Atos dos Apóstolos, como veremos em detalhes no próximo item, narra a história da expansão da mensagem cristã na época apostólica, enfatizando a ação missionária de Paulo em relação à dos doze apóstolos, dentre os quais o próprio Pedro (que recebe destaque no livro somente na primeira metade dele). Além desses livros e do Apocalipse, o gênero epistolar, como vemos, é privilegiado no cânon cristão. Trata-se do prolongamento da 2 Dito isso, torna-se evidente o fato de que a reunião em um cânon de textos cristãos é um processo tardio (se tivermos em mente as primeiras gerações de discípulos cristãos) e que serve a propósitos diversos, especíicos de seu contexto, como veremos em detalhes, na segunda parte deste texto. 3 Sua designação vem da inicial da palavra alemã ‘Quelle’, que signiica ‘fonte’. Trata-se de um evangelho reconstruído que, supõe-se, conteria as palavras e os discursos de Jesus. Ver: Burton Mack (1994). 4 Os evangelhos apócrifos diferem ainda mais dos mencionados, e de acordo com M. Goodman (1997, p. 317-318) esta é uma provável razão para sua exclusão do cânon na época em que este foi estabelecido, no século II d.C. 197 comunicação oral direta, “a comunicação à distância ixada por escrito” (FABRIS, 1996, p. 90). A epistolograia das origens cristãs (cerca 50-150 d.C.) contém analogias estruturais e linguísticas às cartas greco-romanas do mesmo período, mas também apresenta características próprias. A língua utilizada é o grego popular – o grego koiné – cuja escrita é interpolada por particularidades procedentes da Bíblia grega – a Septuaginta (tradução da Bíblia hebraica redigida no Egito e inalizada, segundo a tradição, em 250 a.C.) – e da linguagem das sinagogas da diáspora judaica. No NT, mais da metade das epístolas/cartas pertence ao corpus paulino (14 delas), das quais apenas sete são consideradas autênticas, segundo consenso quase unânime dos especialistas. No corpo das epístolas de Paulo, aparecem diversos gêneros literários5 e formas de expressão: trechos autobiográicos que têm por im exaltar sua condição de Apóstolo de Cristo, trechos apologéticos e outros, polêmicos. Além disso, é forte também a inluência da literatura escatológico-apocalíptica judaica, característica do período no qual Paulo escreve, o judaísmo tardio. Já um consenso em relação ao inverso, ou seja, no que diz respeito à desconsideração de Paulo como autor, só existe para com a décima quarta epístola, a Epístola aos Hebreus, anônima, que lhe foi atribuída a partir do século II d.C. As demais seis epístolas (2 Tessalonicenses, Colossenses, Efésios e as chamadas ‘epístolas pastorais’, isto é, 1 e 2 Timóteo e a epístola a Tito) são, de acordo com um maior ou menor consenso da crítica textual, pseudoepígrafas, isto é, “foram escritas posteriormente por um anônimo que se escondeu por trás do nome do prestigioso Apóstolo [...]. Não estamos, porém, diante de falsiicações, mas de testemunhos da tradição” (BARBAGLIO, 1993, p. 202-203). Tais testemunhos da tradição, no que se refere a cartas atribuídas a autores maiores ou a mestres (no caso das escolas ilosóicas), são muito recorrentes entre os documentos antigos que chegaram à atualidade. Assim aconteceu com determinadas cartas que vieram à luz sob os nomes de Platão, Aristóteles ou Demóstenes. No caso do Antigo Testamento, como o melhor exemplo dessa tradição de escritos pseudoepigráicos está a Torá (ou Pentateuco)6 que foi transmitida sob a autoridade de Moisés. E dentro desse contexto se encaixa também uma série de escritos cristãos primitivos cujo “intuito [...] era conservar, atualizar e defender a doutrina apostólica” (BARBAGLIO, 1993, p. 203). Averil Cameron assevera neste sentido: Saídos da estrutura do judaísmo, e vivendo como eles viviam no Império Romano e no contexto da ilosoia grega, da prática pagã e das ideias sociais contemporâneas, os cristãos 5 O gênero literário de um discurso é deinido, segundo C. H. Holman em A Handbook to Literature (1972, p. 232), pelos atributos que ele tem em comum com outros discursos. Tais atributos comuns, segundo C. F. Cardoso (1999, p. 103), devem ser reconhecidos mais ou menos explicitamente nas diferentes sociedades e épocas históricas. 6 A palavra hebraica Torah tem o sentido literal de ‘doutrina’, mas se traduz comumente por ‘lei’. Constitui o centro da religião judaica: “o ensino oicial distinguiu-a entre a Torá escrita – no sentido rigoroso: o Pentateuco; mas no sentido mais amplo: o cânon das Escrituras – e o seu complemento necessário, a Torá oral” (VERMES, 1990, p. 9). 198 construíram para si um novo mundo. Eles assim izeram em parte por meio da prática [...] e em parte por meio de um discurso que foi ele próprio constantemente controlado e disciplinado (1994, p. 21, grifos nossos). Os autores acima citados tratam, cada um à sua maneira, de uma questão crucial ligada à formação da literatura cristã: Giuseppe Barbaglio, ao mencionar uma ‘defesa da doutrina apostólica’, e Averil Cameron, ao discorrer sobre a forma como ‘o discurso cristão foi controlado e disciplinado’, remetem à tentativa de construção de uma ortodoxia sobre a natureza de Cristo, a história inicial dos cristãos, em suma, sobre todas as questões que compunham a doutrina cristã. Essa busca por construir a ortodoxia foi iniciada na segunda metade do século II d.C. pelos bispos cristãos através da deinição de um cânon de textos que deveriam ser considerados sagrados e mais importantes para os cristãos, o Novo Testamento. Nesse processo, o texto de Atos dos Apóstolos desempenhou um papel-chave. O universo canônico: Atos dos Apóstolos e a construção de uma unidade cristã O livro dos Atos dos Apóstolos se propõe como um relato histórico da expansão da Boa Nova cristã no primeiro século de vida do movimento de Jesus. Atos foi classiicado pelos eruditos modernos mais otimistas quanto ao seu valor histórico – dentre eles Martin Hengel – como uma monograia histórica7. Já pelos autores céticos, a obra foi entendida como um trabalho de icção que cumpria a função de entreter o seu público. Nesse sentido, Richard Pervo (1987, p. 11) airmou: A comparação com a historiograia antiga produz resultados limitados pela simples razão de que Lucas não escreveu um tratado erudito. Ele era um escritor ‘popular’ […]. Obras populares eram, sem dúvida, bastante ediicantes […]. Elas tinham também muito frequentemente a função de entreter, algo que não diminuía o seu valor como obras iluminadoras e aprimoradoras. Finalmente, entre os dois extremos, uma série de opiniões relacionadas ao seu valor histórico foram apresentadas, em especial a vertente que enxerga Atos como um exemplo de historiograia apologética8 e a vertente que entende, em termos mais gerais, que o livro corresponda a uma narrativa teológica9, dentro 7 M. Hengel (1979, p. 36). 8 Gregory Sterling assim o faz em Historiography and Self-Deinition, traçando um paralelo entre a obra terceiro evangelho – Atos e os trabalhos de Josefo. Já Marianne Bonz compara Atos a um épico antigo em sua obra The Past as Legacy. 9 Beverly R. Gaventa assim o deine na introdução ao texto de Atos para a HarperCollins Study Bible (1993, p. 2056). 199 da qual se encontram muitos outros gêneros (biograia, homilia e apologia). O autor de Atos é identiicado, desde o último quartel do século II d.C., com Lucas10, o médico discípulo de origem gentílica do apóstolo Paulo que o teria acompanhado em sua segunda e terceira viagens missionárias. A Lucas, desde a mesma data, é também atribuída escrita do terceiro evangelho. Isso se deve ao fato de que ele foi redigido em grego para os cristãos da gentilidade por um autor que utilizou alguma linguagem médica ao longo dos textos. No entanto, a historiograia moderna não continua a partilhar dessa opinião porque não há indícios no corpo dos textos que comprovem tal autoria: além de não haver uma identiicação por parte do autor, não existe menção alguma a um médico e discípulo chamado Lucas no texto de Atos e a própria linguagem médica empregada relete mais “uma convenção difundida do que um conhecimento técnico”, segundo Beverly Roberts Gaventa (1993, p. 2056). O mais provável é que os livros, em sua forma atual, sejam o resultado da mão cuidadosa de um autor cristão de origem gentílica, dotado de boa educação literária, que analisou cuidadosamente as escrituras judaicas. Entende-se normalmente que Atos tenha sido redigido por volta dos anos 80 ou 90 do século I d.C.11 Embora a maioria dos autores situe a redação do livro em tais décadas, não há consenso na historiograia quanto à sua datação. Autores menos coniantes em relação ao valor histórico dele situam a sua escrita já no início do século II d.C.12 Um dos motivos pelos quais tais autores conferem uma datação tardia ao texto de Atos é o fato de que a existência do livro é atestada apenas a partir da segunda metade do século II, em torno de 185 d.C., quando ele é citado e amplamente utilizado por Irineu, bispo de Lyon, na província romana da Gália. Já uma referência ao evangelho de Lucas é encontrada algumas décadas antes, por volta de 140 d.C., nos escritos de Marcião. Uma certeza, porém, já foi conquistada: Atos é, certamente, continuação do relato do terceiro evangelho uma vez que o autor teve a intenção de redigir um trabalho composto de dois volumes. De fato, as semelhanças entre Atos e o Evangelho segundo Lucas são fortes. A relação entre ambos os textos é indicada por seus prólogos e por seu parentesco literário, isto é, a linguagem é bastante similar. Em ambos os prólogos, o autor se dirige a um Teóilo (que, coincidentemente ou não, em grego signiica ‘amigo de Deus’). No prólogo de Atos, especiicamente, faz-se referência ao evangelho como o ‘primeiro livro’ do autor, além de se apresentar o resumo do conteúdo deste último, e também a reprodução dos acontecimentos inais, nele relatados, de forma a dar sequência à narração. Além disso, questões teológicas que são iniciadas por Lucas13 no evangelho só ganham sentido quando analisadas em conjunto com a narrativa de Atos – fato que revela o elo entre o conteúdo das duas obras. 10 A igura de Lucas aparece, no Novo Testamento, nas epístolas aos Colossenses 4:14; 2 Timóteo 4:11 e Filêmon 24. 11 Ver: Gaventa (1993, p. 2057); Brown (1997, p. 226); já Conzelmann (1987, p. xxxiii) estende o período mencionado acima de 80 até 100 d.C. 12 Assim, H. Clark Kee et al. (1997, p. 521) datam Atos do início do século II d.C. e Christopher Mount (2002, p. 168) confere à obra a data aproximada de “algum momento antes de 130”. 13 Por uma questão de simplicidade, referir-nos-emos ao autor de Atos como Lucas. 200 Na realidade, um estudo mais próximo da recepção dos escritos que vieram a integrar o Novo Testamento na segunda metade do século II d.C. aliado à crítica interna da obra completa ‘evangelho de Lucas – Atos’ apontam para o fato de que esses dois textos constituíam, no início, um único livro de dois volumes que foi, no inal do século I, desmembrado em duas obras diferentes e, no im do século seguinte, incorporado ao cânon da forma como aparecem os livros do Novo Testamento: a primeira parte da obra transformada em um evangelho a dividir espaço com outros três – Mateus, Marcos e João – seguidos da segunda parte, o relato de Atos. A veiculação do texto de Atos por Irineu de Lyon em ins do segundo século teve como objetivo principal deter a proliferação das chamadas heresias14 – dentre as quais ele incluía as ideias de Marcião. O bispo dava passos fundamentais, assim, para o estabelecimento de uma ortodoxia na igreja cristã baseada na escolha de determinados textos ligados a Jesus e à história inicial do movimento cristão reunidos no Novo Testamento – o cânon das escrituras cristãs. Por essa razão, Christopher Mount (2002, p. 180) defende a tese de que “o Novo Testamento ele próprio representa uma construção polêmica das origens cristãs proposta no im do século II de maneira a conferir ordem a uma diversidade de movimentos religiosos associados a Jesus”. O título Atos dos Apóstolos foi dado à segunda parte da obra de Lucas em seu formato neotestamentário pelo próprio Irineu, que seguia, assim, os seus propósitos de construir uma história normativa das origens cristãs. O bispo tinha por objetivo responder, na obra Adversus haereses (“Contra as heresias”), de forma sistemática a escritos que ele considerava hereges por manterem ideias muito diferentes acerca do caráter divino e humano de Jesus e do que teria sido a história dos primeiros anos do movimento cristão. Dentre tais escritos se encontravam aqueles de Marcião que, tendo arrebanhado muitos seguidores, postulava uma diferença fundamental entre o Deus dos judeus e o Deus dos cristãos. Para ele, o primeiro se tratava de uma divindade menor. A total desvinculação da igura de Jesus em relação ao judaísmo proposta por Marcião, no entanto, colocava em xeque a noção primeira e mais cara aos cristãos dos séculos I e II d.C. de que Jesus constituía a realização das profecias seculares de Israel acerca da vinda do Messias. O cristianismo perderia, assim, a sua longa linhagem determinada pelas escrituras judaicas e poderia ser facilmente acusado de constituir uma religião “nova” – característica que deveria ser evitada naquele mundo mediterrâneo de cultura helenística e dominado por Roma, que legitimava as crenças por sua antiguidade e repudiava a superstitio vana (vã superstição). Esse temor se mostrava justiicado porque há indícios, ainda no tempo do imperador Nero, de ter ele determinado que “acusações de superstitio illicita podiam ser livremente propostas contra os cristãos” (CHEVITARESE, 14 O termo háiresis, segundo Flávio Josefo (1990, livro II, 118-119), signiicava originalmente uma ‘escola ilosóica’ em meio a várias. No entanto, dentro do movimento cristão no século II d.C., o termo passa a designar as formas outras de vida e crença na igura de Jesus que foram consideradas incorretas pelos bispos da Igreja e que contribuíram para o estabelecimento do cânon dos livros sagrados redigidos após a vinda de Jesus, o Novo Testamento – dentro do qual o livro dos Atos dos Apóstolos desempenha papel fundamental. 201 2006, p. 167). Além disso, mais tarde, em 80 d.C., o imperador Domiciano declarou o movimento cristão uma superstitio iudaica (superstição judaica). Dentre as formulações peculiares de Marcião acerca do cristianismo, constava ainda o destaque dado apenas ao apostolado de Paulo em detrimento de feitos dos outros apóstolos, que ele considerava desvirtuarem o verdadeiro evangelho de Jesus. Ele entendeu os cristãos judaizantes que aparecem nas epístolas de Paulo ameaçando o evangelho pregado a judeus e a gentios pelo missionário como corruptores arquetípicos da mensagem de Jesus e os identiicou com os apóstolos de Jesus. Assim, ele descartou todas as importantes iguras da era apostólica, com exceção única e exclusivamente de Paulo. Irineu de Lyon, ao refutar, dentre outras, as ideias heréticas de Marcião, enxergou no texto de Atos uma prova fundamental da unidade apostólica na questão da proclamação do evangelho. A seu ver, todos os apóstolos eram contemplados no texto – com apenas uma menção ou por meio de grandes trechos dedicados a eles. Daí a explicação para o título Atos dos Apóstolos dado pelo bispo à obra – título este que, na realidade, faz pouco jus ao conteúdo do livro. Irineu entendeu que todos os apóstolos pregavam a mesma doutrina e, por isso, os diferentes evangelhos escritos pelos apóstolos ou por seguidores deles eram concordantes entre si. Os quatro evangelhos eram, cada um à sua maneira, depositários da verdade dos apóstolos com base na qual o verdadeiro evangelho de Jesus poderia ser alcançado. O livro de Atos, situado logo em seguida, conferia unidade à diversidade primeiramente apresentada na reunião daqueles quatro relatos. A ordem estabelecida era inalizada com a presença das epístolas paulinas que, posicionadas em último lugar, serviriam de guias hermenêuticos para a leitura dos livros anteriores e teriam em Atos uma introdução a elas na medida em que esse livro inseria a igura de Paulo na cena cristã. O autor do terceiro evangelho e de Atos, no entanto, não parecia ter, na segunda metade do século II, uma ligação estabelecida com membros das eras apostólica e subapostólica15, tal como o evangelho de Mateus (que teria sido redigido pelo antigo coletor de impostos e apóstolo de Jesus), o de Marcos (que teria sido escrito por um discípulo do apóstolo Pedro de mesmo nome) e o de João (que, como o próprio nome indica, teria sido composto pelo apóstolo de Jesus que era irmão de Tiago). Irineu encontrou as informações sobre os evangelhos de Mateus e Marcos nos escritos de Papias. Outras fontes o informaram sobre o evangelho de João. Todas as narrativas sobre a vida de Jesus, contudo, foram escritas no século I d.C. de forma anônima e também não constituíam ‘evangelhos’ – o gênero literário criado a partir delas. Eram textos com o propósito de apresentar a mensagem de Jesus e de demonstrar que ele era, de fato, a realização das profecias de Israel acerca do Messias. Daí o grande número de citações de trechos da bíblia hebraica e dos profetas. A questão da autoridade dos textos se tornou 15 Antes do estabelecimento do cânon, a obra Lucas-Atos não possuía forte relação com iguras especíicas dentre os apóstolos, apenas de forma geral em função do prólogo que airmava ser dependente de ‘testemunhas oculares e ministros da Palavra’. C. Mount (2002, p. 178) adiciona a informação de que “o seu uso por grupos hostis a Paulo sugere que ele [o texto de Atos] não fosse ligado a um discípulo de Paulo”. 202 central apenas posteriormente, no im do século II d.C., quando tais narrativas foram ligadas a iguras importantes da primeira geração do movimento de Jesus. Irineu de Lyon foi responsável, então, por buscar no corpo das cartas de Paulo indícios de um Lucas – nome ao qual a obra ‘evangelho–Atos’ já era relacionada16 – de maneira a fornecer uma biograia para ele. Ele encontra na epístola de Paulo a Filemon, na epístola aos Colossenses e na segunda epístola a Timóteo menções a um companheiro e discípulo de Paulo chamado Lucas e vincula os textos à pessoa dele. Ao analisar o texto de Atos, Irineu passa a acreditar, assim, que o Lucas que ele identiicara tivesse introduzido, de forma não proposital, a primeira pessoa do plural em grandes passagens do texto pelo fato de tais trechos narrarem viagens das quais ele próprio participara como companheiro de Paulo17. Construindo as origens do movimento cristão em termos de indivíduos e de textos, Irineu de Lyon cumpre o seu propósito de conferir unidade à crença em Jesus baseada na autoridade daqueles que receberam o evangelho diretamente dele18. No início do terceiro livro da obra Contra as Heresias (III, 1:1), o bispo airma o seguinte: Mateus também produziu um evangelho escrito entre os hebreus em sua própria língua, enquanto Pedro e Paulo proclamavam o evangelho em Roma e construíam os fundamentos da Igreja. Após a partida deles, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, também nos legou em escrita aquilo que foi proclamado por Pedro. E também Lucas, o companheiro de Paulo [ho akolouthos Paulou], colocou num livro o evangelho pregado por ele. Posteriormente, João, o discípulo do Senhor, que também repousou no seio dele, publicou, de igual maneira, o evangelho enquanto permaneceu em Éfeso na Ásia. Como é possível observar, o livro de Atos foi utilizado, a partir de Irineu, como um relato com o propósito de divulgar e propagandear o sucesso da expansão da fé cristã no mundo helenizado do Mediterrâneo romano e de apresentar a unidade da igreja cristã baseada nas ações de suas personagens principais. Isso aconteceu porque Lucas, em seu relato, veiculou representações sobre o movimento de Jesus. Essas representações que o autor veicula em sua obra têm o poder de interferir na realidade social dos leitores cristãos na medida em que articulam e conferem sentidos vários – por meio da narração de uma ‘certa’ história do movimento de Jesus – ao conjunto das práticas e das crenças cristãs. Ao desenvolver a noção de uma obediência dos apóstolos às determinações do Espírito Santo em sua missão de levar o evangelho ‘até os conins da terra’, Lucas é capaz de conferir um sentido de unidade (na 16 C. Mount aventa, em função de tal informação, a hipótese de que a obra Lucas-Atos tivesse sido redigida, não por Lucas o companheiro de Paulo, mas por um indivíduo qualquer de nome Lucas na primeira metade do século II d.C. 17 Ver Adv. Haer. III, 1:1; 10:1; 14:1+. 18 Paulo, é preciso lembrar, não conheceu Jesus em vida, mas alegou frequentemente em suas epístolas ter recebido o evangelho diretamente do Cristo ressuscitado. 203 realidade, muito pouco presente) aos momentos iniciais da seita judaica que enxergou em Jesus o Messias de Israel. Em razão dessa qualidade, o livro de Atos fornece um exemplo de narrativa cristã que é rapidamente seguido no im do século II, com Irineu de Lyon que procurava, em seu próprio tempo, pôr im aos desenvolvimentos que ele considerava heréticos da crença cristã. Conclusão Averil Cameron, em sua análise – inspirada nos trabalhos de Michel Foucault – sobre o desenvolvimento do discurso cristão dentro do Império Romano (1994, p. 4), faz a seguinte consideração: o estudo do discurso cristão no mundo romano [...] é um processo duplo – não apenas [...] o discurso cristão fez o seu impacto na sociedade como um todo, mas [...] ele próprio foi transformado e moldado no empreendimento. O discurso cristão teria sido diferente sem o ambiente do mundo romano. As palavras de Cameron são muito sintéticas quando não se apontam os muitos exemplos da relação entre literatura cristã e história do mundo romano. Neste capítulo procuramos analisar a forma pela qual os adeptos da fé no Cristo produziram textos ligados à sua crença que serviram a propósitos variados: em primeiro lugar, algumas cartas tinham por função apenas dirimir problemas e eliminar dúvidas sobre a vida em Cristo de comunidades especíicas (que não podiam se apartar isicamente do modo de vida próprio das pólis gregas do mundo romano). Mais tarde, a vida e os feitos de Jesus ganham destaque com a redação de livros que seriam chamados ‘evangelhos’. A primeira expansão cristã é narrada em um texto – Atos dos Apóstolos – que busca conferir unidade ao movimento que, no im do século I d.C., por sua natureza plural, incorpora crenças bastante diferentes entre si. Com a organização da hierarquia da Igreja no século II d.C. e a primazia dos bispos, a necessidade da construção de um pensamento ortodoxo se torna mais forte, principalmente após o aparecimento de coleções de textos cristãos, como aquela de Marcião, que decidem renegar as origens judaicas do movimento. Como sobreviver em um mundo de importantes escolas de pensamento (como os estoicos, epicureus, cínicos, etc.) se nem mesmo as raízes judaicas do cristianismo são mantidas? O próprio judaísmo já fora “propagandeado” como uma escola ilosóica por judeus da diáspora como Fílon de Alexandria no século I d.C. Além disso, o perigo da acusação de superstitio pairava sobre os cristãos, que já angariavam alguma antipatia dos habitantes daquele mundo romano e politeísta. Constituir crença única, eliminar pensamentos muito heterodoxos e saber “vender seu peixe” aos não cristãos era imprescindível aos olhos das autoridades da Igreja. A construção do cânon do Novo Testamento procurava alcançar boa parte desses objetivos. No entanto, além do cânon, outros textos e 204 outros autores cristãos deram sua contribuição para tornar o cristianismo mais palatável no mundo romano. Como exemplo inal, icamos com Justino o Mártir que, uma vez convertido à fé em Cristo, desenvolveu uma defesa ilosóica de sua crença. Nas palavras muito perspicazes de Michael L. White (1998), A apologia de Justino ao cristianismo também é um argumento ilosóico para a legitimidade do movimento cristão dentro do quadro maior da vida intelectual e religiosa romana... Apologistas como Justino provavelmente tiveram um importante impacto na expansão do cristianismo, senão por outra razão, porque eles deram a ele certa respeitabilidade intelectual dentro da tradição intelectual grega e romana. Eles o tornam ilosoicamente aceitável, e como resultado disso devemos imaginar que por volta do inal do século II e certamente no início do século III, o cristianismo atrai cada vez mais pessoas dos segmentos mais abastados da sociedade. Como pudemos observar, as relações entre história e literatura são muitas quando o assunto em questão se trata do cristianismo e dos textos cristãos no mundo romano. REFERÊNCIAS DOCUMENTAÇãO PRIMÁRIA JOSEPHUS, Flavius. The Jewish War. 6. ed. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press (Loeb), 1990. v. II. BÍBLIA de Jerusalém. Novo Testamento. São Paulo: Paulus, 1994. IRENAEUS. Contre Les Hérésies. Paris: Cerf (Sources Chrétiennes), 1965. 5 v. NESTLE-ALAND. Novum Testamentum Graece. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. OBRAS DE APOIO BARBAGLIO, G. São Paulo, o Homem do Evangelho. Petrópolis: Vozes, 1993. BONZ, Marianne P. The Past as Legacy: Luke-Acts and Ancient Epic. Minneapolis: Fortress, 2000. CAMERON, Averil. 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O hebraico, idioma que preenchia não só todo o contingente talmúdico, mas fundamentalmente todo o extenso volume oral de comentários rabínicos que lhes deram origem, deveria ser suprimido de suas recorrentes atribuições culturais e religiosas. Até então, constituía-se como língua vernácula na educação e na realização de práticas litúrgicas e rituais das comunidades. Sua ausência, segundo Justiniano, deveria ser suprida pela utilização do grego3 ou de qualquer outro idioma inteligível, principalmente, quando se tratassem de atividades de publicização, tais como leituras ou n 1 “[...] Quae vero deuterosis, quase secundaria traditio ab ipsis dicitur, in Universum interdicimus, ut quae sacris libris comprehensa non sit, neque de super tradita per prophetas, sed excerpta quaedam virorum contineat, qui terrena duntaxat loquantur, neque quidem in se divini habeant numinis. Sed et ipsas utique sacras voces legant, cum sacros libros evolvunt; neque celantes ea quae inibi prolata sunt extrinsecus assumant nusquam scriptas vocum inanitates, ab ipsis ad perditionem simpliciorum excogitatas” (MIGNE, J. P. (Ed.). Patrologiae. Cursus Completus. Serie Latina. Paris: Garnier, 1844/1864. Novella CXLVI, p. 1051. 2 É importante aqui salientar que, nas Novellas de Justiniano, encontramos o termo deuterosis como referência ao Talmud. Entretanto, a historiadora Marie de Menaca alerta para fato de que, na verdade, deuterosis corresponderia não só ao texto talmúdico, mas principalmente aos comentários rabínicos que formam o seu escopo, ou seja, a Mishnah (Torah oral). 3 Para o historiador Luis A. Garcia Moreno este projeto teve o apoio incondicional da comunidade judaica de Alexandria, que já fazia recorrente uso do grego como idioma oicial nos rituais sinagogais e no ensino religioso. 209 explicações da exegese judaica4. O historiador Roger Chartier, envolto nos debates sobre textualidade e leitura no mundo ocidental, encaminha-nos a pensar as relações entre poderes formais e Judaísmo Rabínico através dos chamados conlitos de práticas de leitura (CHARTIER, 1996, p. 19-22). Airmemos que Talmud encontra-se no cerne desses conlitos. Podemos airmar, já de início, que a leitura judaica do Talmud no mundo bizantino, escapava às projeções universalistas de cultura pretendidas por Justiniano. Tais projeções eram facilmente percebidas na ambiciosa tentativa de resgate de uma suposta soberania territorial e religiosa de Bizâncio, comumente chamada de Reconquista (LEVINE, 2004). Respaldado por incursões de caráter militar e evangelizador realizadas sobre as diversas extensões do Império, a Reconquista acrescentou ainda aos seus projetos aquilo que Roger Chartier (1996, p. 13) deine “protocolos de leitura”. Deinindo o que deveria ou não ser lido pela sua população, Justiniano, antes de reiterar a difusão missionária da ortodoxia cristã, enuncia um confronto de poderes e práticas culturais. Em plena conformação nos primeiros séculos da Idade Média, o poder rabínico, ampla e localmente atuante nas diversas comunidades judaicas diaspóricas, é tomado como mais um desaio da Reconquista Justiniana. Como se pode perceber, determinar limites para essa autoridade, controlando a circularidade de importantes textos, cujos conteúdos reairmavam a própria hierarquia rabínica, constitui-se em um dos principais meios encontrados para acelerar a aculturação judaica no mundo bizantino. Entretanto, não somente Justiniano, mas diversos governantes germânicos do medievo5 izeram uso de tais mecanismos de aculturação, condenando a intrusão “não controlada e incontrolável”6 do Talmud no universo da cultura escrita. Sem nos esquecermos da forte inluência que a Patrística exerceu sobre a conduta política dos monarcas medievais com relação às comunidades judaicas, é importante ressaltar, contudo, que no estudo da política de Justiniano dirigida aos judeus e às apropriações em torno da literatura rabínico-talmúdica, encontramos importantes valores culturais e religiosos sobre os quais se inspirariam, quase um século depois, expoentes membros da monarquia e episcopado na Península 4 “[...] Didicimus quod ex ipsis quidam sola lingua tenentur hebraica, eaque intendum esse in sacrorum librorum lectione volunt, quidam etiam graecam assumendam contendunt, et longo jam tempore ea de re seditiones inter se agitant. Nos igitur de hac controversia edocti meliores esse judicavimus eos que graecam etiam linguam in sacrorum librorum lectione voluerunt assumere, et omnem denique linguam quam locus accommodatiorem et magis familiarem reddat auditoribus. Sancimus igitur ut in quibus omnino locis Hebraei sunt, Hebraeis qui volunt licentia sit in eorum synagosis graeca etiam lingua... aut quacumque alia pro loci ratuibe mutata lingua sacros libros intelligentibus legere, neque facultas sit ipsorum interpretibus qui solam Hebraicam assumunt linguam ut suo arbitratu malitiose hanc tractent, vulgi ignorantia suam legentes improbitatem.” MIGNE, J. P. (Ed.). Patrologiae. Op.cit., p. 1051. 5 Os Monarcas visigodos Recesvinto (649-672) e Ervigio (680-687) representam importantes exemplos de governantes que teriam alertado para a difusão da cultura talmúdica nas aljamas. 6 Segundo Chartier deve-se dar “[...] à leitura o estatuto de uma prática criadora, inventiva, produtora e não anulá-la no texto lido, [...] . Em seguida, pensar que os atos de leitura que dão aos textos signiicações plurais e móveis situam-se no encontro de maneiras de ler, coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras, íntimas ou públicas e de protocolos de leitura depositados no objeto lido [...].” Cf. CHARTIER, R. (Dir.). Práticas de Leitura... Op.cit., p. 78. 210 Ibérica e Reino Franco, em suas formulações sobre a “questão judaica”. Nesse sentido, é em defesa da legitimidade da literatura medieval como campo de estudo que o medievalista Paul Zumthor alerta para necessidade de se suplantar, no processo de pesquisa, a atitude comum de tomar a análise do texto literário como “mera decodiicação ilológica” (ZUMTHOR, 2009, p. 20). Normalmente tendia-se a se recusar tudo “o que se destacava das letras”, negando que o universo de signiicações que delas se depreendesse pudesse ser passível de análise, ou mesmo digno de apreciação crítica7. Zumthor (1990) exige audácia analítica do medievalista ao se defrontar com os textos. Tomados como práticas sociais discursivas, os fatos literários ultrapassam a prática ilológica/linguística e permitem a compreensão dos universos sociais dos produtores dos discursos e dos sujeitos históricos, objetos de suas discursividades8. Nesse sentido, é necessário redeinir a textualidade medieval em termos de sua historicidade, de seus impactos sociais e semioticidades, o que equivale a buscar os estatutos sociais dos documentos e os níveis de receptividade. Se para Roger Chartier e Paul Zumthor os textos percorrem todo o universo das representações das práticas e experiências sociais – objetivo último e fulcral da análise histórica –, é então premente a extensão do conceito de texto, que vai além da práxis da cultura literária escrita9. Zumthor denuncia a diiculdade, até hoje percebida entre os medievalistas, de desligamento de uma História da Literatura ancorada em um positivismo mecanicista, tomada ainda pelo primado da forma e da “retidão intelectual”. Em detrimento do conteúdo, da ambientação, das recepções sociais dos discursos e das intencionalidades de seus autores, os medievalistas ainda se debruçam sobre os textos literários como se revelassem, por si mesmos, grandes estruturas lógicas e coerentes de compreensão. Dessa forma, os textos são insatisfatoriamente “concretizados”, recaindo-se em processos analíticos tautológicos, que não ultrapassam a superfície e a generalização. Sabemos que os textos não se deixam apreender por si mesmos. E que nenhuma atividade crítica, como nos lembra Zumthor, deve sucumbir a tal “primado da objetividade”. Esta camula a necessidade de se trilhar os caminhos sociais que vão da produção do texto à recepção e apropriação dos discursos dele apreendidos. Tal caminho é evidência do que Chartier denomina de “concretização do texto”, e tal deve ser a tarefa do historiador. É necessário, igualmente, “investir o objeto de sentidos”, mas que isso não signiique que o texto queira dizer tudo: “Enquanto ele subsiste materialmente, o que ele diz é apenas uma visão nova, apropriada por leitores sucessivos daquilo que no começo ele declarou. Toda a hermenêutica de Dilthey a Gadamer e a Paul Ricoeur girou em volta desse problema”.10 7 Idem. p. 25. 8 ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: EDUC, 1990. 9 CHARTIER, R. A Leitura: uma Prática Cultural. In: CHARTIER, R. (Org.). Práticas de Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p. 229-253. 10 Idem. p. 48. 211 Aplicáveis aos estudos sobre a Patrística Nicena e Pós-Nicena, à literatura rabínico-talmúdica ou às dimensões materiais das disputas identitárias, Zumthor nos levanta três pressupostos epistemológicos que podem, a contento, orientar os historiadores dedicados à análise hermenêutica das altercações discursivas, erigidas a partir dos conlitos judaico-critãos. Da materialidade exibida pelas polêmicas sobre o outro à profusão literária de gênero polêmico, Zumthor nos apresenta as possibilidades de identiicação de uma trilogia formada pela textualidade, teologia e memória, a partir das seguintes linhas epistemológicas: 1) Todo texto pressupõe a existência de uma longa série de relações interpessoais dialógicas – sem dúvida, móveis – e articuladas ao longo do tempo a partir dos próprios usos feitos sobre ele. Portanto, todo texto enuncia um conjunto de valores e práticas sociais. 2) É pelo viés das relações interpessoais dialógicas, inscritas na textualidade, que a História adentra ao debate sobre os discursos literários, no desejo de se aproximar aos sentidos possíveis da linguagem do outro. O texto é lido em busca do homem que nele reside. Ele é, para Zumthor, “causa, efeito e circuito de toda a signiicação existente”. E o que é existente é, inalmente, socializado pelo texto. 3) Afastando-nos de toda causalidade na explicação histórica, os textos nos apresentam lugares de semiose coletiva, abrindo-nos para o campo da chamada “estética da recepção”. Logo, para formularmos possíveis respostas para as condenações canônicas e civis aos textos judaicos, é necessário dedicarmos uma especial atenção às prováveis e divergentes concepções construídas, no Talmud, sobre o Cristianismo, a igura de Jesus e, principalmente, sobre as redes relacionais judaico-cristãs perceptíveis não apenas por todo o Oriente Médio romano, mas também nas primeiras realezas cristãs ocidentais na Antiguidade Tardia e Medievo. No intuito de galgar atributos identitários diante da proliferação de práticas e crenças absolutamente contrárias aos princípios do Judaísmo Rabínico, encontraremos, não somente no Talmud, mas em toda a literatura rabínica, a necessidade de discutir uma clara distinção já airmada no âmago dos debates mishnaicos e tanaíticos na Palestina dos primeiros dois séculos da era comum – os contatos entre judeus e idólatras. Tal distinção é construída ao longo dos textos, a partir de dois grandes eixos de relexão. O primeiro, busca distinguir historicamente a trajetória judaica dos demais povos pagãos da Antiguidade. No tratado talmúdico de Shabbat, veremos os categorizados de idólatras serem comparados a “adoradores de estrelas devassos e lascivos”11. Indivíduos espiritual e moralmente condenados, 11 “Why are idolaters lustful? Because they did not stand at Mount Sinai. For when the serpent came upon Eve he injected a lust into her:1 [as for] the Israelites who stood at Mount Sinai, their lustfulness departed; the idolaters, who did not stand at Mount Sinai, their lustfulness did not depart.2 R. Aha son of Raba asked R. Ashi. What about proselytes? Though they were not present, their guiding stars3 were present, as it is written, [Neither with you only do I make this covenant and this oath], but with him that standeth here with us this day before the Lord our God, and also with him that is not here with us this day.4 Now he differs from R. Abba b. Kahana, for R. Abba b. Kahana said: Until three generations the lustful [strain] did not disappear from our Patriarchs: Abraham begat Ishmael, Isaac begat Esau, [but] Jacob begat the twelve tribes in whom there was no taint whatsoever.” THE SONCINO TALMUD. Chicago: Davka Corporation/Judaica Press Inc., 1996. 1 disco compacto: digital. The CD-ROM Judaic Classics Library. Shabbat, 145b-146a. 212 e que, por essa razão, ao contrário do que ocorrera com os prosélitos ao judaísmo12, não teriam estado presentes na teofania do Sinai, não teriam vivenciado o sagrado momento de entrega das leis ao “povo de Israel”. O segundo eixo busca diferenciar a identidade judaica, não apenas da doutrina do pecado original, mas igualmente livrá-la de estereótipos sociais comumente associados aos pagãos, tais como imoralidade sexual, adultério e bestialidade. Essa distinção, que possui um caráter coletivizante, tanto no que concerne à formação do ethos judaico, quanto na concessão de uma identidade devassa aos pagãos, demonstra que o Judaísmo Rabínico-Talmúdico construía inegáveis e atuantes mecanismos internos de exclusão. Esses mecanismos exibiam seus efeitos mais rígidos, principalmente sobre membros da comunidade que fugissem aos intentos disciplinares das autoridades rabínicas e de suas dimensões normativas – a Halachah. Ainda assim, devemos airmar que não chegaram os rabinos debatedores a estabelecerem orientações unívocas (canônicas) que impunham uma direta projeção do sujeito social cristão na categoria de “gentio” ou o “idólatra”, reproduzindo-se a velha tradição mishnaica para os casos anteriores de contatos entre Judaísmo e diversas formas de práxis pagã romano-helenísticas. Não era consensual a airmação silogística de que o cristão do século IV seria o equivalente aos gentios (Minim – do hebraico, “tipos”, “incrédulos do povo”) dos séculos I e II e que, uma vez aproximados pelos exercícios de práticas consideradas idolátricas (panteões, imagens santas e deuses humanizados), geraria a obrigatoriedade comunitária, nada conveniente, de evitar e determinar qualquer tipo de contato com as populações cristianizadas. As antigas proibições bíblicas e mishnaicas, de difícil e relativo cumprimento cotidiano, poderiam ser aqui divididas em três grupos principais (KATZ, 1961), posteriormente revisados no Talmud, e entre os Talmudistas da Idade Média Central: a) a proibição dos casamentos mistos, incluindo quaisquer formas de intercurso sexual entre judeus e gentios sem matrimônio; b) a proibição das práticas coletivas de comensalidade (banquetes, festividades e congraçamentos); c) a proibição preventiva de estabelecimento de contato com gentios, participando de rituais considerados idolátricos, ou negociando trabalhos para que deles obtivessem benefícios sociais e retribuições materiais. É curioso veriicar que nas situações em que a comunidade judaica assumia papel minoritário, ou quase marginal, a mesma iria se apresentar integrada internamente, reproduzindo, porém, a título de preservação, algumas formas habituais de agir da sociedade majoritária, principalmente no que se referiam às práticas a e b supracitadas. Tal constatação é evidenciada empiricamente quando aludimos às fontes canônicas da Alta Idade Média, repletas de condenações, sejam rabínicas, sejam episcopais, aos casamentos 12 Esse problema nos remete ao difícil e inconclusivo debate rabínico em torno do estatuto conferido ao prosélito no seio comunitário judaico na Idade Média, discutido por Maimônides em tratados como Iggeret Hashmad (Tratado sobre o Extermínio) e Iggeret Teyman (Tratado sobre o Yemen) , ambos produzidos no século XII. Cf. SANCOVSKY, Renata R. Inimigos da Fé. Judeus, Conversos e Judaizantes na Península Ibérica. Século VII. 2. ed. Rio de Janeiro: Imprinta/CHCJ/ LEI-USP, 2010. 213 mistos entre cristãos e judeus e aos costumes de refeições e bênçãos coletivas envolvendo judeus e camponeses ibéricos no período ariano, segundo cânones do Concílio de Elvira, de 303. Parece-nos que as preocupações seriam semelhantes. Delagram-se, então, importantes e largos distanciamentos entre as proposições mishnaicas de isolamento do século II e a nova condição dos judeus no Mediterrâneo ao início da Idade Média. A exemplo do corpo canônico hispano-visigodo, atestamos o repúdio episcopal por aqueles que optaram por dividir suas vidas com pessoas que seguiam a “superstición judía” (IV Concílio de Toledo, cânone LXIII). Há que se considerar, contudo, que os casamentos mistos eram repudiados pelas lideranças rabínicas, não somente por questões de reprodução física e cultural dos judeus, mas também, como revela Daniel Boyarin, pelas divergências ilosóicas cabais entre as visões judaica e cristã com relação à sexualidade, ao ato sexual, ao divórcio e ao discurso sobre o corpo (BOYARIN, 1994). As constatações de Boyarin derrubam algumas teses que procuram homogeneizar as tradições de sexualidade do Judaísmo e Cristianismo em uma única visão “judaico-cristã” sobre o casamento. Boyarin defende, ao estudar a importância conferida ao corpo na sexualidade judaica expressa no Talmud, o predomínio de fortes antagonismos entre dois grandes conjuntos de tradições coevas sobre a relação entre corpo físico e o corpo social na Antiguidade Tardia. Referimo-nos especiicamente às tradições agostinianas e rabínicas. Jean-Christophe Attias ressalta, ainda, que seja possível pensar a função dos mecanismos de exclusão cultural e social entre os judeus, com base nas características discursivas intrínsecas do texto talmúdico (ATTIAS, 1997, p. 3-9). Certamente, a multiplicidade e o hibridismo de uma suposta “identidade judaica”, fatores sobremaneira veriicados no Talmud, tornavam o trato com o outro uma questão ainda mais complexa para o Judaísmo, diferentemente do que representava para outros grupos monoteístas do Mediterrâneo medieval. Neste caso, a deinição de pertencimento comunitário fundamentava-se exatamente na instabilidade de conclusões que a comunidade fazia de si mesma, e do outro. Encontraremos, talvez, uma resposta para o comportamento híbrido do judeu medieval e de sua identidade (GINZBURG, 1991, p. 43-89) nas estruturas narrativas do Talmud, mais precisamente, em suas expressões literárias13. O caráter polêmico, dialético e a prática dialógica permeiam grande parte dos debates rabínicos. Muito além de perseguir esquemas dogmáticos ou teológicos, o Talmud visa suscitar polêmica e discordância. Alguns historiadores chegam a airmar que o sentido de heteroglossia do Talmud reside antes na absorção que faz da matéria-prima que origina uma discussão ou um debate, do que propriamente nos resultados que se poderia, porventura, vir a alcançar. Todas as opiniões discordantes entre si apresentam, portanto, os mesmos atributos de autoridade para o discurso talmúdico (OUAKNIN, 1993). Ao contrário da Patrística - uma das expressões ilosóicas e literárias 13 Carlo Ginzburg ressaltara diversas vezes em seus escritos que, exatamente na condição híbrida do judeu em sociedade, residiria o cerne do antissemitismo medieval e das inúmeras polêmicas cristãs em torno do Judaísmo. 214 cristãs mais divergentes com relação ao Judaísmo a partir do IV século -, o Judaísmo Rabínico não construiu uma teologia oicial. Sua metodologia não se assentava, como propunha a ilosoia dos Padres da Igreja, no desaparecimento de textos e na negação de opiniões divergentes ou minoritárias. Para Gerald Bruns, as discordâncias no Talmud aparecem de forma conjunta e, na maior parte das vezes, difusa num mesmo texto ou até no mesmo parágrafo: [...] De um ponto de vista transcendental, esta teoria da autoridade é paradoxal, pois se apóia no caráter heteroglóssico do diálogo, na fala de muitas vozes, ao invés de buscar o princípio lógico da univocidade, da fala de uma única opinião. Ao contrário, a idéia de falar com uma única opinião [...] é explicitamente rejeitada; ela levaria apenas ao surgimento de diversas ‘facções’ [...] (BRUNS, 1990, p. 189-213). Para o Talmud, aquilo que signiicaria produzir falas com muitas vozes, seria, para a identidade judaica medieval, o mesmo que estabelecer um eterno diálogo com sua condição sui generis em sociedade, ou ainda, com outras formas de experiência religiosa e cultural. Calcando sua legitimidade de existência a partir da chamada “verdade revelada”, o Judaísmo Rabínico, conforme apontamos anteriormente, assumiu a responsabilidade de ser o canal de transmissão dessa verdade, colocando o “povo de Israel” em patamar hereditariamente superior aos chamados Minim. Caso acatássemos a tese do historiador Yossef H. Yerushalmi (1992) sobre um provável “desinteresse” dos escritos rabínicos sobre as mudanças de seu tempo, de sua época, poucas chances teríamos em nosso trabalho de desvelar as opiniões e conceitos das elites rabínicas sobre o crescimento da Igreja Cristã no mundo mediterrâneo ou, ainda, sobre a imagem de Jesus segundo o Judaísmo. Entretanto, uma análise mais pormenorizada, indiciária, da documentação talmúdica, evidenciou caminhos absolutamente contrários às proposições de Yerushalmi, no que tange à temática do tempo presente no texto talmúdico. Ainda que o autor tenha razão quando situa a Torah -- e consequentemente o Tanach - em patamar superior de relevância nos interesses rabínicos a partir do IV século, estaríamos reduzindo as possibilidades interpretativas sobre as relações entre judeus e cristãos no medievo, caso nos recusássemos a veriicar de que forma o Talmud entendia o Cristianismo, e de que forma articulou o pertencimento cristão ao grupo dos minim, recriando identidades. Sabemos que grande parte das críticas rabínicas aos minim estão concentradas nas atitudes idólatras precisamente pagãs. Entretanto, a partir de trabalhos como o do historiador Robert Travers Herford ainda em inícios do séculos XX e, mais recentemente, dos historiadores Yaakov Teppler (2007) e Marc Bregman (2004), podemos veriicar, de fato, que o Talmud e o Midrash apresentam conteúdos não consensuais a respeito do Cristianismo e sobre as relações entre judeus e cristãos dos primeiros séculos da era cristã aos primeiros séculos medievais, incluindo discussões, referências cifradas e ponderações dissonantes sobre a igura de Jesus e suas metáforas, e dos minim. 215 Sabe-se que a literatura rabínica não fornece maiores informações aos historiadores acerca da trajetória do Cristianismo antigo. Entretanto, são ricas as parábolas e proposições haláchicas sobre o status da monolatria e, de maneira igurada em parábolas, dos novos dilemas impostos pelos evidentes processos de cristianização, com perdas dentro e fora das suas comunidades. Poderemos saber, também, quais desses pensamentos teriam norteado parte da cultura judaica medieval, notadamente entre os talmudistas dos séculos XI a XIII, em relação às autoridades e sociedades cristianizadas com os quais conviveram por séculos. Assim, como é notoriamente perceptível na profusão discursiva episcopal a partir do gênero literário adversus iudaeos (SANCOVSKY, 2010), a cultura rabínica, profundamente arraigada aos princípios culturais e religiosos difundidos pela leitura do Talmud e do Midrash, encontrava-se igualmente atingida pelas novas integrações sociais judaico-cristãs no Mediterrâneo nos séculos IV, V e VI. Reiterando o lugar da memória testamentária no seio da tradição judaica da Alta Idade Média, o Talmud buscava explicar e avaliar os novos dilemas enfrentados por centenas de comunidades judaicas mediterrâneas, fundamentalmente aqueles advindos da experiência fora dos limites da kehilá (do hebraico “comunidades”). As antigas dicotomias literárias entre hebreus e gentios, judeus e idólatras continuariam a gerar debates e polêmicas na produção talmúdica e midráshica, porém apresentando contundente reformulação pelo Judaísmo Rabínico Tardo Antigo. Entre os séculos IV e VI, o “martírio judaico do convívio” seria narrado na literatura rabínica, ora sob fortes tons de agravamento e temor pelo “retorno à idolatria”, ora como compensação às privações e perdas impostas em tempos bíblicos. Nesse difícil cenário literário de discussões em torno da regulamentação haláchica das relações judeus-gentios e suas contradições para a conjuntura tardo-antiga e medieval constata-se a inclusão de novos componentes relacionais e religiosos nas narrativas do século IV: o Cristianismo, Jesus e as relações entre judeus e cristãos. Pelas novas condições impostas à galut (diáspora judaica) pelo Cristianismo pós-teodosiano, os debates talmúdicos e pós-talmúdicos apresentariam tentativas contraditórias de equilibrar os antigos esquemas tanaíticos judeus-gentios às peculiaridades das relações judaico-cristãs no mundo mediterrâneo. Na transição da Antiguidade ao Medievo, as tradições discursivas talmúdicas na aplicação de termos como minim, poshe’ei Israel ou Umot Haolam passariam pela reconstrução ou ressigniicação das visões judaicas sobre os “gentios”, alargando seus campos semânticos e tornando possível, justiicável ou minimamente aceitável a experiência judaica de vida entre outros povos, desde que controlada por uma ortopraxia ideal. No estudo pioneiro de Jacob Katz (1961), airma-se que, entre centenas de parábolas e impasses travados entre escolas interpretativas antagônicas, os dilemas judaicos ocasionados pelas experiências relacionais eram colocados no campo coletivo de debate. Se no texto mishnaico, ainda do século II, o problema e as orientações 216 sobre segregação dos gentios em suas relações com a kehilá, ainda seguiam rígidos padrões de conduta, o mesmo não se pode airmar em relação ao período talmúdico, que perpassa não apenas pelo processo de oicialização do Cristianismo como religio licita, mas como credo oicial calcedoniano de teor politicamente universal (katoliké). A construção da literatura rabínico-talmúdica perpassa também pela crise econômica do modelo escravista, pelos intensos processos migratórios ocasionados por escassez alimentar, doenças e forte diminuição da expectativa de vida, que não passaria dos 35 anos no século V. A retração acompanhava o aumento das experiências cotidianas de contatos e trocas socioeconômicas entre judeus e cristãos, à revelia do que sugeriam não apenas as antigas tradições mishaicas que remontavam aos séculos I e II, mas enfaticamente as pregações e homilias episcopais presentes na literatura patrística, entre os séculos III e VI. Na literatura talmúdica, não há menções ou reconhecimentos explícitos desses fenômenos que rodeavam e cerceavam a produção rabínica nas academias da Palestina setentrional, mas sim textos cifrados, metáforas e alegorias sobre a nova condição dos judeus no Império Romano. Em seus dilemas materiais e rituais, as discussões acaloradas demonstram grande praticidade. Os primeiros séculos medievais apresentam entre os talmudistas a evidência de que seus preceitos deveriam sofrer revisões, que suas comunidades já não mais se apresentavam como organismos completamente autocentrados e autorreferidos, mas obrigados a fragmentar algumas de suas fronteiras sociais, culturais e econômicas. Aqui, como em muitos outros impasses cotidianos, a práxis torna-se irredutível ao discurso, chegando muitas vezes a forçar alterações e aprofundar os debates no interior das academias rabínicas do Oriente Médio tardorromano. Como lidar com os fenômenos de matrimônios mistos? Seria possível enfrentar o problema da escassez material e da demanda interna de trabalhadores (escravos ou colonos), sem que se lançasse mão do trabalho doméstico e campesino de não judeus para a fabricação de alimentos? Como coibir totalmente a circulação de judeus em mercados e feiras? Como evitar que judeus fossem compelidos a contratar serviços pessoais de cristãos circunvizinhos? Como resolver o problema da circulação de bens materiais e de produção no shabat por trabalhadores não judeus prestadores de serviços da kehilá urbana ou também em ambientes rurais? Parece-nos bastante evidente que a Guemará discutia longamente, em centenas de páginas dos tratados talmúdicos (a exemplo do tratado de Avodah Zarah, do hebraico, idolatria) os dilemas dos novos tempos, mostrando certa resignação diante da inevitabilidade das mudanças em curso; porém não encontraremos nos casos relatados, qualquer tipo de comentário conjuntural explícito14. Pelo método do debate de casos onde as situações cotidianas vividas 14 A aparente “despreocupação” rabínica com o universo ao seu entorno ou a taxativa ideia de que a literatura talmúdica dos séculos IV a VI seriam propositalmente “descoladas” do contexto coevo de formação de várias Cristandades mediterrâneas, são ilações historiográicas absolutamente equivocadas. A metodologia dialógica dos componentes talmúdicos traziam os dilemas e as mudanças de forma subliminar aos debates e estudos de caso. A contribuição das análises do ilósofo Emannuel Levinas são indispensáveis ao olhar histórico sobre as práticas talmúdicas de leitura de mundo. 217 tornavam-se matéria jurisprudencial e poderiam, ou não, se tornar parte da Halachá, muitos rabinos não deixavam de mostrar apreensão com os perigos que poderiam advir dos contatos exógenos, cada vez mais incontroláveis. Entre a Mishnah do século II e o Talmud dos séculos IV-VI, são evidentes as mudanças perpetradas sobre as leis que regiam a fabricação do pão e do vinho consumidos por judeus. No período mishnaico vigorava a tradição rabínica de produção endógena e estritamente ritual de alimentos pela comunidade, vetando a busca por auxílio de mão de obra gentia. A Antiguidade Tardia e os primeiros séculos medievais desnudam realidades sociais e econômicas onde as antigas prerrogativas mishnaicas de excessiva autorreferência deveriam ser, de certa forma, superadas, muito embora ainda fosse proibido aos judeus, por exemplo, beber do vinho produzido fora de sua comunidade. Como tal proibição fosse praticamente inviável, a Guemará passaria a discutir brechas legais para que “gentios” pudessem fazer parte das primeiras etapas de produção e divisão do trabalho nas videiras. Todavia, assim como ocorreu com todos os demais tipos de alimentos (vegetais e animais) consumidos, após as colheitas o manuseio dos frutos e o preparo do vinho ainda permaneceriam tarefas exclusivamente judaicas na Idade Média. No período pós-talmúdico, já encontraremos em cidades do Mediterrâneo Ibérico, Franco e Norte-Africano denúncias conciliares de diversos casos de escravos domésticos cristãos que, uma vez convertidos ao Judaísmo pelas normas da Halachá, já participavam de todas as etapas de preparação de alimentos, segundo os rígidos padrões das leis dietéticas judaicas – o kashrut. Advertindo que as concepções talmúdicas acima descritas – principalmente o proselitismo – pudessem, de fato, vir a ser mais intensamente aplicadas pelos membros das aljamas, e das kehilot, veremos, a partir dos estudos sobre o Cristianismo no Talmud, de que forma e por que teriam diversas autoridades cristãs da Alta Idade Média se utilizado dos escritos rabínicos. Tal utilização não visava apenas ao exercício condenatório, mas porque se reconhecia, nessa literatura, os parâmetros lapidares formadores do cotidiano judaico medieval. Na condição de exiladas, as gerações diaspóricas assumiam, tais quais suas lideranças, atributos salvíicos. Na visão rabínica, a convivência com o outro só se tornava mais suportável pela resignação perante uma suposta missão judaica de existência – que se traduzia, primeiramente, no combate à idolatria e, em segundo lugar, no exercício do proselitismo (SONCINO TALMUD, Pessachim, 87b)15. Entre as experiências literárias que nortearam o cotidiano judaico medieval, vejamos, a partir de agora, como o Talmud apresentou de forma difusa e inconclusiva uma série de concepções a respeito do Cristianismo. Inicialmente, os textos dispõem comentários e algumas parábolas 15 Em Pessachim encontraremos igualmente descrições de diversos atributos salvíicos judaicos entre os demais povos da Antiguidade. Lembremos também, para essa questão, que o proselitismo judaico em terras visigodas, por exemplo, acatou a prática de conversão de escravos cristãos por senhores judeus, cabal e repetidamente condenada pelas autoridades civis e eclesiásticas por todo o século VII. 218 nada amistosas sobre personagens (reais ou ictícios) cujas referências estariam sob pseudônimos como Ben Stada; Ben Pandira; Jeshu ben Pandira, etc. No tratado talmúdico Sanhedrin (43ª)16, temos as seguintes declarações (os grifos são nossos): [...] GUEMARÁ. Abaye disse; Isso também precisa ser anunciado: Em tal e tal dia, em tal e tal hora, e em tal e tal lugar [que o crime foi cometido], no caso de haver alguém que sabe [pelo contrário], de forma que eles possam apresentar-se e provar os testemunhos do tipo Zomemim. 32. E UM ARAUTO O PRECEDE etc. Isto implica somente imediatamente antes [da execução], mas não previamente à mesma. 33 [Em contradição a isso] foi ensinado: Na véspera da Páscoa, Yeshu 34 foi pendurado [na cruz]. Durante os quarenta dias antes da execução acontecer, um arauto postou-se adiante e gritou: ‘Ele irá ser apedrejado pois praticou bruxaria e induziu Israel à apostasia. Aquele que puder dizer algo em seu favor, venha e advogue em seu nome.’ Porém, como nada foi dito em seu favor, ele foi pendurado na véspera da Páscoa! 35 — ‘Ulla replicou: Você supõe que uma defesa poderia ser feita por ele? Não foi ele um Mesith [aliciador], que de acordo com o que as Escrituras dizem: Não deverás nem o poupar, nem o esconderás? 36 Com Yeshu foi diferente, pois, ele era ligado com o governo [ou realeza, ou seja, os inluentes].17 Na suas alusões ao temor do retorno à idolatria entre os membros de Israel, o Talmud apresenta a visão de alguns rabinos sobre os supostos atributos mágicos e supranaturais associados à Jesus segundo as narrativas sinóticas. Buscando descaracterizar o poder que lhe era conferido na versão neotestamentária, o Talmud menciona a provável utilização por Jesus de uma prática muito comum entre os “feiticeiros egípcios”, e totalmente condenável entre os judeus do período romano. Trata-se da chamada “incisão sob a carne”, um corte feito na pele, onde nele se inscreveriam palavras ou nomes que dariam ao seu portador poderes mágicos, curativos e supranaturais. Pela origem judaica de Jesus, o Talmud ressalta que nenhum descendente de Israel poderia utilizar-se de práticas mágicas, lidas como idolátricas, para valer-se de 16 Em algumas edições mais antigas do Talmud (sob a autorização da versão de Munich e de Oxford) encontramos a importante menção a Ben Stada, segundo R. T. Herford, um pseudônimo para Jesus, em sua punição por ser um falso messias : “[...] And this they did to Ben Stada in Lydda (LOD), and they hung him on the eve of Passover. Ben Stada was Ben Padira [...]” Cf. HERFORD, R. T. Op.cit., p. 37. 17 “[…] GEMARA. Abaye said; It must also be announced: On such and such a day, at such and such an hour, and in such and such a place [the crime was committed], in case there are some who know [to the contrary], so that they can come forward and prove the witnesses Zomemim. 32. AND A HERALD PRECEDES HIM etc. This implies, only immediately before [the execution], but not previous thereto.33 [In contradiction to this] it was taught: On the eve of the Passover Yeshu 34 was hanged. For forty days before the execution took place, a herald went forth and cried, ‘He is going forth to be stoned because he has practiced sorcery and enticed Israel to apostacy. Anyone who can say anything in his favour, let him come forward and plead on his behalf.’ But since nothing was brought forward in his favour he was hanged on the eve of the Passover!35 — ‘Ulla retorted: Do you suppose that he was one for whom a defence could be made? Was he not a Mesith [enticer], concerning whom Scripture says, Neither shalt thou spare, neither shalt thou conceal him?36 With Yeshu however it was different, for he was connected with the government [or royalty, i.e., inluential]. 219 poderes proféticos e curativos oriundos da vontade divina. O caso exemplar do evento mosaico narrado no livro de Êxodo, quando o cajado do líder profético choca-se contra a pedra, jorrando abundante quantidade de água, além de outros desvios cometidos por levitas, foram discutidos exaustivamente no tratado de Sanhedrin. Nesses casos, um paralelo poderia ser aludido às condições e usos, por Jesus, de poderes supranaturais. É interessante portanto veriicar como o tratado de Shabbat lida com a polêmica questão da “incisão sob a carne”, a escrita em pergaminho, folhas ou pele durante o descanso do sábado, prática supostamente atribuída a Jesus (os grifos são nossos): [...] Guemará: ELE QUE DESENHA A MARCA EM SUA CARNE, [etc.] foi ensinado. R. Eliezer disse aos Anciãos: Mas Ben Stada não trouxe bruxaria do Egito por meio de incisões [na forma de encantos] sob sua carne? Ele foi um tolo, responderam eles. E prova nenhuma pode ser apresentada por tolos (SONCINO TALMUD, Shabbath, 104b).18 Outros vários exemplos de descaracterização da igura de Jesus, tal qual é descrita nos textos sinóticos, podem ser encontrados no Talmud. Nesse caso, Jesus é questionado não somente no que concerne aos seus poderes, vistos como ilícitos, mas também quanto à sua origem social. Desde seu nascimento até sua execução, os pseudônimos são rotulados com a palavra hebraica mamzer (rznn), que signiica “ilho bastardo” (SONCINO TALMUD, Yebamot, 49b)19. No âmago das vivências rabínicas, durante todo o século IV, e em torno da expansão do Cristianismo e das políticas imperiais romanas em relação às comunidades judaicas no Oriente mediterrâneo, outros textos rabínicos como o Midrash discutem o tema da unicidade divina. Muito em função talvez dos desdobramentos teológicos do Concílio de Niceia, de 325, quando o Cristianismo Ortodoxo concretiza suas impressões sobre a Santíssima Trindade, o Midrash reairma os princípios básicos do monoteísmo judaico em contraposição, ainda que implícita, à multiplicidade divina no Cristianismo e à santidade messiânica de Jesus. Aludindo a uma passagem do texto de Isaías, reairma-se na mentalidade rabínica a indivisibilidade divina (os grifos são nossos): [...] R. Abahu disse; A parábola de um rei de carne e osso; ele reina, e tem um pai ou um irmão. O Sagrado, abençoado seja Ele, diz: Eu não o sou, Eu sou o primeiro, Eu não tenho pai; e Eu sou o último, Eu não tenho ilho, e ao meu lado não há nenhum Deus, Eu não tenho nenhum irmão (Midrash Shemot Rabbah, 51b, apud HERFORD, 1975, p. 303).20 18 “[...] Guemará: HE WHO SCRATCHES A MARK ON HIS FLESH, [etc.] It was taught. R. Eliezer said to the Sages: But did not Ben Stada bring forth witchcraft from Egypt by means of scratches [in the form of charms] upon his lesh? He was a fool, answered they. and proof cannot be adduced from fools” (SONCINO TALMUD, Shabbat, 104b). 19 É importante ressaltar, contudo, que a passagem talmúdica referente a uma possível menção a Jesus em sua origem bastarda encontra-se somente na versão babilônica do Talmud e não na versão Yerushalmi. 20 “[...] R.Abahu said, A parable of a king of lesh and blood; he reigns, and he has a father or 220 Como podemos perceber, a postura rabínica em relação aos minim ora se apresenta como taxativa, ora extremamente contraditória: tratar-seia de povos que, perdidos e iludidos em suas idolatrias, não estariam aptos a receber a mensagem salvíica. Alguns tratados talmúdicos, como Sanhedrin, Avodah Zara e Berachot, fazem diversas referências àqueles que teriam levado Israel à idolatria, realizando mágicas ou mesmo divulgando a chegada da era messiânica, e iludido, segundo os Rabinos, a população. Quanto à produção escrita deixada pelos minim, alguns comentários rabínicos defendem a sua não preservação. Havia ainda rabinos que defendessem, por outro lado, que esses escritos, caso contivessem nomes sagrados para o Judaísmo, deveriam ser salvos ou, em último caso, eliminar-se-iam os termos sagrados para assim ser possível sua eliminação. O Talmud trabalha ainda alguns casos hipotéticos, tais como em ocasião de um incêndio, dever-se-iam antes salvar os rolos da Torah, enquanto que os escritos dos minim, comparados a espaços em branco ou vazios, seriam deixados consumir pelas chamas, uma vez que não teriam qualquer valor religioso. No tratado Shabbat encontramos a curiosa discussão sobre o que fazer com os livros produzidos pelos minim: Venha e ouça: os espaços em branco e os Livros de Minim não podem ser salvos do fogo, mas eles devem ser queimados em seus lugares, eles e os Nomes Divinos contidos neles. Agora, certamente isso signiica as partes em branco de um Pergaminho da Lei? Não: os espaços em branco nos Livros de Minim. Vendo que não podemos salvar os Livros de Minim, seus espaços em branco precisam ser expostos? — Seu signiicado é: e os Livros de Minim são como espaços em branco. Foi exposto no texto: os espaços em branco e os Livros de Minim não podem ser salvos do fogo. R. Jose disse: Nos dias da semana deve-se cortar os Nomes Divinos contidos [nos livros], escondê-los, e queimar o resto. R. Tarfon disse: Que eu enterre o meu ilho se eu não os queimar juntamente com os Nomes Divinos se eles vierem até minhas mãos? [...] (SONCINO TALMUD, Shabbat, 116a).21 A partir das situações expostas, podemos identiicar aspectos da dialética rabínica em seus antagonismos nas relações com os minim. O sentido conferido aos seus comportamentos estava, ainda que de forma difusa, associado a brother. The Holy one, blesses be He, saith, I am not so, I am the irst, I have no father; and I am the last, I have no son, and beside me there is no God, I have no brother.” (Midrash Shemot Rabbah, 51b, apud HERFORD, 1975, p. 303). 21 “Come and hear: The blank spaces and the Books of the Minim may not be saved from a ire, but they must be burnt in their place, they and the Divine Names occurring in them. Now surely it means the blank portions of a Scroll of the Law? No: the blank spaces in the Books of Minim. Seeing that we may not save the Books of Minim themselves, need their blank spaces be stated? — This is its meaning: And the Books of Minim are like blank spaces. It was stated in the text: The blank spaces and the Books of the Minim, we may not save them from a ire. R. Jose said: On weekdays one must cut out the Divine Names which they contain, hide them, and burn the rest. R. Tarfon said: May I bury my son if I would not burn them together with their Divine Names if they came to my hand ? [...]” (SONCINO TALMUD, Shabbat, 116a). 221 à questão da fé, ou antes, de suas ausências ou desvios. Assim, seria possível considerarmos, aqui, a hipótese de que grande parte dos trechos talmúdicos, ao se referirem aos membros do “povo de Israel” acusados de apostasias, descrença nas leis e no Deus de Abrahão, Isaac e Jacob (como demonstrado no Tratado de Sanhedrin), estivessem aludindo de forma subliminar e cifrada à existência das primeiras comunidades cristãs da Palestina do século II. Mais especiicamente, referir-se-iam a um judeucristianismo socialmente manifestado entre os séculos III e V. Para o Talmud, esses membros, já rechaçados do convívio social, eram judeus que sabidamente haviam renegado suas tradições, abraçando princípios religiosos divergentes às visões em torno da monolatria judaica do IV século. As concepções messiânicas de Jesus e seus seguidores e a tripartição do poder divino poderiam estar, talvez, nesse rol de apreensões literárias. Segundo Hyam Maccoby, ao longo de quase toda a Idade Média, o Talmud fora coibido e condenado pela suposição de que se airmariam, em seus textos, a imoralidade e a negação da fé cristã (1993, p. 29-32). Uma vez que seus fundamentos dialógicos não tivessem sido compreendidos pelas autoridades eclesiásticas, o Talmud foi julgado como um tratado eminentemente teológico, supostamente dedicado à condenação do Cristianismo e de Jesus. Sem levar em conta seu caráter dialético e heterodoxo, no qual o cerne estaria no ato da discussão e não propriamente em seus resultados, importantes setores do episcopado mediterrâneo, conforme se pode evidenciar nos cânones conciliares apresentados anteriormente, atribuíram ao Talmud uma visão religiosa monolítica que, na realidade, mais se aproximava a uma concepção cristianizada de mundo. Longe de conhecerem a heteroglossia dialógica talmúdica, seus volumes foram rotulados como literatura anticristã e, portanto, subversiva. Entre as promulgações de 535 d.C nas Novellae de Justiniano, e as de 1933 pelos decretos do III Reich, o Talmud foi réu em quase três dezenas de processos judiciais, canônicos e civis, sendo condenado em todas os eventos acusatórios. Dos processos existentes, mais da metade datam da Idade Média e neles encontramos dados referentes desde os séculos VI e VII, concentrandose o rol denso de acusações nos séculos XIII e XIV. De igual repercussão foram aqueles ocorridos durante os períodos da Inquisição Ibérica, Reforma Protestante, Rússia Czarista e da Alemanha Nazista. Em todos eles, o livro torna-se réu acusado de blasfêmia, de perseguição a Cristo e ao Cristianismo, de pacto diabólico ou mesmo complô político contra as potências europeias. Entre 1240 e 1933, da França de Felipe V ao Regime Hitlerista, encontramos mais de uma dezena de eventos públicos de grande impacto teatral, quando da aplicação de pena capital ao “réu-livro”, tendo seus volumes queimados em fogueiras rituais ou incinerados em ruas de modernas capitais europeias no século XX. Através de argumentações e disputas, na construção pioneira do sujeito “réu-livro” temia-se que lideranças rabínicas, valendo-se de suas autoridades, semeassem o repúdio e a aplicação formal de medidas contra os cristãos em suas comunidades e arredores. Documentalmente, evidencia-se que as supostas “ameaças talmúdicas” ecoadas a partir do século VII constitur-se222 iam em um dos maiores mitos literários medievais, forjado por setores do alto clero secular, reforçando visões estereotipadas dos judeus e do Judaísmo. Sabemos que o Talmud efetivamente inluenciou, através da intermediação do papel rabínico em comunidade, o comportamento judaico na Alta Idade Média. Entretanto, longe de representar o exercício de uma autoridade cega e absoluta, as comunidades judaicas encaravam o poder rabínico como garantia e manutenção de suas tradições culturais, principalmente no que concerne ao universo ritual, litúgico e educacional, sendo, desse modo, seu poder absolutamente questionável e substituível (LEVINAS, 2001). Isso signiica airmar que, provavelmente, salvo questões relativas aos casamentos mistos, pouco destaque era dado ao Cristianismo como objeto de condenação no seio das discussões religiosas nos bairros judeus. O destaque e a perplexidade diante da hegemônica Cristandade é um tópico que se torna constante na literatura rabínica ashkenazi posterior, difundida por rabinos talmudistas ou halachistas da Europa Central e do Leste que, a partir do século XI22, se destacam como conhecidos tossaistas (do hebraico “aqueles que compilam, acrescentam”). Não temos conhecimento de relatos, nem mesmo por parte de autoridades episcopais ou civis acerca de súbitos ataques ou manifestações de violência judaica às comunidades cristãs circundantes. Antes, a análise indiciária das fontes nos leva a trajetórias interpretativas bem diferentes23. Tais constatações nos ajudam a derrubar um dos grandes mitos construídos pela historiograia tradicional em relação aos judeus do Ocidente medieval. Estamos nos referindo aqui ao mito isolacionista. Mesmo que possamos supor uma absoluta eicácia da autossuiciência comunitária dos judeus, a tese isolacionista mostra-se insuiciente quando, no Talmud, encontramos muitas alusões críticas à questão da assimilação cultural entre judeus e “gentios”. Portanto, se, nos Concílios ibéricos e francos e bizantinos, veriicamos nítidos traços de integração social entre judeus e cristãos, a mesma integração já havia sido discutida e identiicada, séculos antes, no momento de compilação do Talmud. As chamadas “prescrições e orações dos gentios” ou Birkat Haminim (TEPPLER, 2007) e a permissividade dos povos idólatras são mencionados no Talmud evidenciando de forma indiciária o difícil reconhecimento rabínico de inegáveis interações entre membros das comunidades judaicas e outros conjuntos culturais, fossem estes, em suas intrínsecas diversidades, “romanos pagãos”, ou “cristãos”. 22 Citemos lideranças intelectuais da escola ashkenazi de talmudistas, vinculadas à formação franco-germânica de tossaistas de Mainz na Idade Média central: Rabi Gershom Ben Yehudah (o “Me’or Há-Golah” – 960-1028), Shlomoh Yitzhaqui de Troyes, o “Rashi” (1040-1105), Rabi Eliezer Ben Natan (1090-1170), Rabi Yehudah He-Asid (1146-1217), Rabi El’azar Ben Yehudah de Worms (1165-1230). 23 É interessante aqui resgatar o cânone do IV Concílio de Toledo, que reproduzimos ao início deste texto, dirigido àqueles que “oferecem ajuda a favor dos judeus contra os cristãos”. 223 Referências DOCUMENTAÇãO PRIMÁRIA FUERO JUZGO. 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Evidentemente, não pretendemos aqui responder por quatro séculos do cristianismo, mas fazer um recorte nesse tempo histórico a partir das fontes. Desse modo, temos em cartas de Paulo de Tarso (ca 5 d.C. – 67 d. C) o exemplo do primeiro modelo de educação; em Eusébio de Cesareia (263 – 340)1, particularmente na obra História Eclesiástica, buscamos os exemplos educativos baseados no martírio; com são Jerônimo (347-420), em Cartas que o 1 É importante destacar o silêncio que há sobre Eusébio de Cesareia e São Jerônimo nos campos da história e da ilosoia da educação. Um dos mais recentes manuais traduzidos para o português que procura abarcar a educação em ‘todos os tempos’ da história é o livro de Franco Cambi, História da Pedagogia. Nele não há nenhuma menção a Eusébio e, acerca de são Jerônimo, somente dois parágrafos, nos quais ainda deine Jerônimo como um defensor ‘parcial e fraco’ da paideia. “No campo educativo, para São Jerônimo, apresentam-se dois modelos: o ascético, articulado em torno do “temor a Deus” e que conjuga educação intelectual e formação moral, e o clássico, ligado à paideia, mas do qual Jerônimo é um defensor parcial e fraco, diferentemente dos padres orientais” (CAMBI, 1999, p. 130). O mesmo silêncio em torno desses dois autores ocorre na clássica obra de Boehner e Gilson, História da Filosoia Cristã. Nela, os autores apresentam análises desde os primórdios da Patrística e avançam até Nicolas de Cusa. Todavia, não há nenhum item no qual se dediquem a Eusébio de Cesareia ou a são Jerônimo. Da época desses autores ou próximas a eles, Boehner e Gilson elegem Tertuliano (ca 160 - ca 220 d.C.) e santo Agostinho (354-430). Por im, acerca do silêncio desses autores, mencionamos a obra de Jacopo de Verazza, que apresenta verbetes sobre a vida dos principais personagens da Igreja cristã, na qual não há menção a Eusébio de Cesareia, mas sim a Eusébio de Vercelli. 229 tratam da educação2, evidenciamos a terceira proposta de educação cristã que, ainda que se mantenha no interior dos primórdios do cristianismo e preserve o ideal cristão como objeto, destaca a importância da aprendizagem da escrita e da leitura para se tornar cristão. As relexões que nortearão este texto explicitarão que as propostas dos três teóricos se diferiram entre si. A intenção é explicitar que as propostas pedagógicas, embora conservem um mesmo princípio durante séculos, se vistas e acompanhadas pela história, nos possibilitam perceber que não há uma forma única e deinitiva de educação, porque esta, como todas as demais ações, é proveniente do agir humano e, portanto, se modiica em consonância com as vicissitudes sociais3. Sob esse aspecto de permanência e ruptura, a religiosidade cristã nos brinda com um bom exemplo acerca das mudanças e permanências. Ela se constitui em uma mesma religião que modiica sua forma de propagação em virtude da diversidade do tempo histórico. Ela é o exemplo de que, no âmbito da educação, não há uma forma linear e única de prática e de discurso se o objetivo é atingir e modiicar o outro. Ao contrário, nos quatro primeiros séculos do cristianismo, assistimos aos seus teóricos apresentando propostas distintas de educação, sempre que as contingências históricas assim o exigiram. Desse modo, nesses ‘três tempos’ e autores que elegemos, vincularemos as suas propostas de cristianização com o contexto histórico em que foram erigidas4. Os autores cristãos estavam muito atentos para veriicar se o seu ouvinte/leitor estava sensibilizado por seus discursos. Nos três autores selecionados, observamos uma grande preocupação não só em se fazerem entender, como também pretendiam desenvolver, por meio de seus discursos e práticas, uma ação de convencimento, pois não se tratava somente de educar, 2 Neste texto, usaremos as Cartas traduzidas por Ruy Afonso da Costa Nunes e analisadas na obra História da Educação na Antiguidade. Observamos que há poucos trabalhos, no Brasil, sobre as epístolas de Jerônimo. Encontramos alguns artigos e teses na área de Letras, que procuram recuperar as qualidades de estilo e de linguagem de Jerônimo. No campo da história encontramos poucas pesquisas sobre as Cartas. Dentre elas destacamos a dissertação e a tese de Marcos Cruz, defendidas na UFRJ, na década de 1990. Em Portugal, encontramos vários artigos que mencionam as Cartas de Jerônimo, mas destacamos que são mencionadas, na maioria das vezes, associadas ao período do Renascimento, em virtude dos estudos que Erasmo de Roterdã fez sobre elas. A maioria dos artigos portugueses cita as epístolas de Jerônimo a partir da publicação “Erasmus e a edição de Cartas de Jerônimo no Renascimento”. O artigo “Crítica e Humanismo no Renascimento”, do professor Jorge Alves Osório é um bom exemplo. No campo da história da educação não encontramos, ao menos digitalizada, nenhuma pesquisa sobre as Cartas de Jerônimo, à exceção da obra de Ruy Nunes. 3 Comungamos com a ideia apresentada por Anísio Teixeira acerca da mobilidade constante na sociedade e na educação. “A educação e a sociedade são dois processos fundamentais da vida, que mutuamente se inluenciam. Processos fundamentais da vida, dizemos, e intencionalmente. Porque, de fato, nada nos podemos referir sem logo deixar subentendida a contingência de mobilidade, transformação e perpétuo vir-a-ser, imanente à natureza evolucional do mundo em que vivemos” (TEIXEIRA, 2000, p. 94). 4 Durkheim, ao discorrer sobre as origens da escola na França, na obra Evolução Pedagógica, ressalta a importância dos autores cristãos no interior do mundo romano. Ao fazer essa análise, o sociólogo do século XIX, observa que o cristianismo na prática educativa erigiu suas bases teóricas nos autores greco-latinos. “Ora, para inculcar práticas, um simples adestramento basta ou até é o único eiciente, mas idéias e sentimentos não podem comunicar-se senão através do ensino, quer esse ensino seja dirigido ao coração ou à razão, ou a ambos ao mesmo tempo. Por isso é que, logo que foi fundado o cristianismo, a prédica, desconhecida na Antiguidade, assumiu um lugar importante; pois predicar é ensinar. Ora, o ensino, a prédica supõem, em quem ensina ou prega, uma certa prática da língua, uma certa dialética, um certo conhecimento do homem e da história. Ora, onde encontrar esses conhecimentos, senão nas obras dos antigos?” (DURKHEIM, 2002, p. 29). 230 mas de educar para formar o cristão. É nítido nas propostas o projeto do qual estavam imbuídos: para se ter o cristão era necessário, antes, formá-lo. Nesse sentido, os autores cristãos ‒ que designaremos como mestres ‒ sabiam ‘o que’, ‘por que’ e ‘como’ ensinar. Suas metas educativas eram construir e consolidar uma mentalidade nova de viver e entender o mundo. Em decorrência disso, seus discursos e ensinamentos não podiam estar dissociados do projeto que tinham em mente para a sociedade. Não existia neles uma separação entre teoria e prática. Aliás, essa era uma inquietação que certamente não existia entre esses teóricos, uma vez que difundir o cristianismo era ensinar, converter, mas, também, estabelecer princípios de convívio social. Cartas de Paulo Principiemos nossa análise pelas Cartas de Paulo de Tarso. Elegemos para nossas relexões algumas passagens das Cartas aos Romanos5 e aos Coríntios. Elas são notáveis porque Paulo procura, na verdade, organizar a vida dos cristãos em um mundo muito pouco afeito à religião que surgia. A primeira passagem que selecionamos versa sobre a obediência às autoridades. O Apóstolo indica aos romanos que estes devem obedecer aos poderes laicos estabelecidos. Do seu ponto de vista, a ordem na sociedade era imprescindível para a existência de todos6. 1 Obedeçam as autoridades, todos vocês. Pois nenhuma autoridade existe sem permissão de Deus, e as que existem foram colocadas nos seus lugares por ele. 2Assim quem se revolta contra as autoridades está se revoltando contra o que Deus ordenou, e os que agem desse modo serão condenados. 3Somente os que fazem o mal devem ter medo dos governantes, e não os que fazem o bem. Se você não quiser ter medo das autoridades, então faça o que é bom, e elas o elogiarão. Porque as autoridades estão a serviço de Deus para o bem de você. Mas, se você faz o mal, então tenha medo, pois as autoridades, de fato, têm poder para castigar. Elas estão a serviço de Deus e trazem o castigo dele sobre o que fazem o mal. 5É por isso que você deve obedecer às autoridades; não somente por causa do castigo de Deus, mas também por que a sua consciência manda que você faça assim. 6 É por isso também que vocês pagam impostos. Pois quando as autoridades cumprem os seus deveres, elas estão a serviço de 5 Segundo Gardner, a Carta aos Romanos teria sido escrita na década de 50 d. C. “É uma epístola escrita a uma igreja que o apóstolo nunca visitara. É cheia de louvores pela fé e pelo compromisso deles com Cristo. Seu tema principal enfatiza que a justiicação se opera pela fé em Jesus, tanto para os judeus como para os gentios. Existe alguma discussão sobre o motivo que levou Paulo a escrever esta carta. Alguns dizem que estava consciente das divergências entre os convertidos judeus e os gentios na igreja e a necessidade que tinham de uma ajuda pastoral. Outros alegam que a carta formou a base teológica para a sua estratégia missionária de levar o Evangelho aos gentios e que o apóstolo esperava o apoio dos cristãos de Roma no seu projeto de viajar à Espanha”. (GARDNER, 2005, p. 516). 6 Essa carta de Paulo causou muita polêmica no inal da Idade Média nas disputas entre os poderes eclesiástico e laico, especialmente quando foi usada por Ockham no Brevilóquio... para combater a supremacia do poder papal. O mestre Franciscano recorre a essa carta para airmar que o poder absoluto do papa não era legítimo. 231 Deus. Portanto, paguem ao governo o que é devido. Paguem todos os seus impostos e respeitem e honrem todas as autoridades. (Rm 13: 1-6). Paulo não questiona o poder e a existência do governante romano. Ao contrário, legitima-os. A seu ver, toda autoridade emana da vontade divina; portanto, o bom cristão respeita e honra seu governante. Não há, nessa passagem, nenhum lampejo de revolta contra a ordem estabelecida. Ele aconselha que os seus ouvintes não só respeitem os governantes laicos, mas também paguem seus impostos. No seu discurso ele propõe que os cristãos sejam, na plenitude, súditos dos romanos, pois o governante laico é o representante de Deus na terra. O governante, dessa forma, puniria o cristão por vontade divina. Evidentemente, os conselhos e ensinamentos de Paulo devem ser entendidos no contexto do século I, quando a religião cristã não representava uma grande ameaça ao Império e, ainda que Estado já se encontrasse em crise, o cristianismo não colocava em risco as estruturas do poder vigente. Por outro lado, a passagem também revela que, quando do seu nascimento, essa religião não ambicionava, no âmbito do poder, a conquista do governo. Ela, se assim se pode dizer, não propunha uma revolução. Ao contrário, as palavras de um de seus maiores divulgadores foram no sentido de conservar o poder da forma que se encontrava. Se na passagem citada ica evidente a preocupação de Paulo em difundir a ideia de que o cristão deve viver sob a observância das leis romanas e, por conseguinte, em formar pessoas para viver em comum no Império, na passagem que se segue o apóstolo se dirige, nitidamente, à formação do cristão enquanto indivíduo. 8 Não iquem devendo nada a ninguém. A única dívida que vocês devem ter é a de amar uns aos outros. Quem ama os outros está obedecendo à lei. 9Os seguintes mandamentos: “Não cometa adultério, não mate, não roube, não cobice” – esses e ainda outros mais são resumidos num mandamento só: “Ame os outros como você ama a você mesmo”. Quem ama os outros não faz mal a eles. Portanto, amar é obedecer à lei. (Rm 13: 8-9). Essa passagem é bastante elucidativa acerca dos princípios de Paulo: no que diz respeito à sociedade como um todo, o bom cristão precisa seguir as leis do governante porque ele próprio é, da perspectiva do apóstolo, um representante da vontade divina. Todavia, no que diz respeito às atitudes pessoais, o bom cristão deve amar o próximo. Transparece no discurso desse propagador do cristianismo a preocupação de que cada pessoa saiba se comportar; daí ele iniciar aconselhando que se deve amar uns aos outros. Não se trata de amor incondicional, mas daquele manifestado nas atitudes. É pelo agir que o cristão explicita seu amor ao outro e, de tal modo, seguir os dez mandamentos não é somente sinal de conversão e aceitação de um princípio de religiosidade, mas de disposição para o bem amar. Assim, ao respeitar os preceitos cristãos, os homens criam, individualmente, normas de conduta que os possibilitam viver em comum. 232 Nessas duas passagens Paulo apresenta aspectos essenciais à educação social. Ao obedecer ao governante, o cristão estabelece um agir social; ao amar o próximo, traça um caminho de conduta individual; o apóstolo, por sua vez, ao difundir o cristianismo, traça um modelo educacional que cuida do indivíduo no singular e no coletivo ‒ a preocupação de Paulo está sempre dirigida ao cristão nesses dois sentidos. Em outra passagem da Carta aos Romanos ele prega que cada um deve fazer bom uso de suas habilidades: que saibam aproveitar dos seus ‘dons’ para melhor viver em sociedade. O título dessa passagem é muito sugestivo: ‘A nova vida no serviço de Deus’. 6 [...] Portanto, usemos os nossos diferentes dons de acordo com a graça que Deus nos deu. Se o dom que recebemos é o de anunciar a mensagem de Deus, façamos isso de acordo com a fé que temos. 7Se é o dom de servir, então devemos servir; se é o de ensinar, então ensinemos; 8se é o dom de animar os outros, então animemos. Quem reparte com os outros o que tem, que faça isso com generosidade. Quem tem autoridade que use a sua autoridade com todo o cuidado. Quem ajuda os outros, que ajude com alegria. (Rm 12: 6-8). Servir a Deus é servir ao próximo. Eis a máxima cristã: para que se ganhe o reino dos céus é preciso servir bem na terra. Eis um princípio eminentemente social. O cristão deve sempre pensar no viver em comum e fazer bem o que melhor sabe: desde as atividades destinadas ao lazer como até as que cuidam da arte de governar, todas as ações precisam ter a mesma inalidade, dispor-se a fazer o melhor para e pelo outro. As ideias de harmonia e de comunidade perpassam as cartas paulinas. Tenham por todos os mesmos cuidados. Não sejam orgulhosos, mas aceitem serviços humildes. Que nenhum de vocês iquem pensando que é sábio. 17 Não paguem a ninguém o mal com o mal. Procurem agir de tal maneira que vocês recebam a aprovação dos outros. 18No que depender de vocês, façam todo o possível para viver em paz com todas as pessoas. 19Meus queridos irmãos, nunca se vinguem de ninguém; pelo contrário, deixem que seja Deus quem dê o castigo. (Rm 12: 16-19). 16 Paulo propõe que o cristão não seja arrogante e viva com humildade. Evidentemente ele procura diferenciar o comportamento do cristão dos povos não cristãos. Como Paulo foi um dos precursores do cristianismo ‒ portanto, de uma religiosidade muito recente e original ‒, ele se dirigia aos judeus, aos hebreus, aos romanos e outros povos. Enim, o seu discurso era destinado a todos os povos que o entendessem e que pudessem se converter ao cristianismo. Assim, ele evidencia que não era a origem que, a priori, deinia o cristão, mas o seu comportamento. Para os nossos dias, essa forma de pensar é inconcebível porque pensamos e nos vemos a partir da nossa nacionalidade. A noção de 233 territorialidade é o que forja nossa identidade, nossos documentos indicam quem somos, ao menos em termos jurídicos, inclusive em âmbito mundial. Daí nossos projetos e propostas de educação serem circunscritos, quando muito, aos limites nacionais, pois, mesmo que sejamos inluenciados pelas medidas globais, dentre elas as políticas econômicas e sociais, são os parâmetros nacionais que delineiam as diretrizes para a educação. No projeto paulino de educação, o que prevalecia era a condição de compreensão e de mudança, ou seja, o discurso precisa ser feito de forma clara e na língua do ouvinte. Na Primeira Carta aos Coríntios, o mestre discorre sobre a importância disso. 1 Portanto, esforce-se para ter amor. Procurem também ter dons espirituais, especialmente o de anunciar a mensagem de Deus. 2Quem fala em línguas estranhas fala a Deus e não às pessoas, pois ninguém o entende. Pelo poder do Espírito Santo ele diz verdades secretas. 3Porém quem anuncia a mensagem de Deus fala para as pessoas, ajudando-as e dando-lhes coragem e consolo. 4Quem fala em línguas estrangeiras ajuda somente a si mesmo, mas quem anuncia a mensagem de Deus ajuda a Igreja toda. 5 Eu gostaria que vocês todos falassem em línguas estranhas, mas gostaria ainda mais que tivessem o dom de anunciar a mensagem de Deus. Porque quem anuncia a mensagem de Deus tem mais valor do que quem fala em línguas estranhas, a não ser que esteja ali alguém que possa interpretar o que está sendo dito, para que toda a igreja seja ajudada espiritualmente. 6 Por isso, irmãos, quando eu os visitar, que proveito vocês terão se eu lhes falar em línguas estranhas? É claro que nenhum, a não ser que leve a vocês alguma revelação de Deus ou algum conhecimento, ou alguma mensagem inspirada, ou algum ensinamento. (1 Co 14: 1-6). Para o autor, o discurso só resultará em algo se aquele que ouve entender o que está sendo dito. Não há conversão sem compreensão e entendimento. A tarefa do pregador é falar em uma linguagem comum a todos. Paulo airma, inclusive, que não se difunde a palavra de Deus em línguas estranhas àqueles que se quer converter. Dentro dessa perspectiva, pode-se ser cristão, mas não é um pregador aquele que não consegue se comunicar com os outros. Mais uma vez observamos o pressuposto educativo paulino: não se ensina nada a outro se não se consegue estabelecer a condição de comunicação7. Do ponto de vista de Paulo, só contribui para o fortalecimento da igreja aquele que fala a linguagem comum. E é preciso considerar que a Igreja era a instituição que dava a identidade à comunidade dos cristãos, era, 7 Esta relexão de Paulo sobe a importância da compreensão na linguagem permite uma analogia com a nossa experiência na docência. Paulo está falando da língua na qual o pregador deve difundir a ‘verdade do cristianismo’ e nós, historiadores da educação, no Brasil, ainda que falemos a mesma língua que nossos alunos temos muitas diiculdades de sermos entendidos, dado o fato de que muitos deles não compreendem os pressupostos básicos dos conteúdos que estamos ensinando. O distanciamento entre o que se é ensinado e o que é apreendido pelo aluno, é tão imenso que é como se falássemos em língua estrangeira. Podemos dizer, tal como Paulo, sobre aquele que não fala a língua comum: é cristão, mas não pregador, somos professores, mas não ensinamos, ou seja, não formamos nossos alunos. 234 portanto, o espaço de legitimação da nova religiosidade que nascia e o aporte espiritual da pessoa. 7 Por exemplo, além da voz humana, existem os instrumentos musicais, como a lauta e a harpa. Se os sons não saírem com toda a clareza, como poderá alguém saber o que está sendo tocado em um ou outro instrumentos? Se quem toca a corneta não der um som bem claro, quem se prepara para a batalha? 9 Assim, também, como é que os outros vão entender o que vocês estão dizendo se a mensagem por meio de línguas estranhas não for clara? Vocês estariam falando para o vento. 11 Porém, se eu não entendo a língua na qual alguém está falando comigo, então quem fala essa língua é estrangeiro para mim, e eu sou um estrangeiro para ele. 12Por isso, já que vocês estão com tanta vontade de ter os dons do Espírito, procurem acima de tudo ter os dons que fazem com que a igreja cresça espiritualmente. (1 Co 14: 7-12). Por isso, o Apóstolo insiste na necessidade de os cristãos não serem estrangeiros entre si, mas falarem numa língua em que todos pudessem estabelecer laços de pertencimento. Observa-se, na passagem acima, que a língua é condição para o fortalecimento da igreja, e ressalte-se que a Igreja, nesse momento, era a única ‘sociedade’ que pertencia aos cristãos, tudo o mais era estrangeiro. Quando Paulo se refere à igreja, não podemos entendê-la como a instituição que veio a ser a partir dos séculos IV e V, mas trata-se de uma comunidade frágil que está dando seus primeiros passos. Logo, difundir o cristianismo e o fortalecimento da igreja era a mesma coisa: formar a ‘nação’ dos cristãos. Há que se destacar um último aspecto que consideramos relevante acerca da questão da língua. Para Paulo, se os homens que divulgam os ensinamentos cristãos não os difundirem na linguagem dos ‘simples’, estes não se tornarão verdadeiros cristãos, mesmo que se prontiiquem a ouvir. Como a linguagem lhes é estrangeira, não compreendem a mensagem, em nível intelectual; consequentemente, não modiicam também seus comportamentos porque não apreendem o discurso. Portanto, quem fala em línguas estranhas deve orar pedindo a Deus que lhe dê o dom de interpretar o que elas querem dizer. 14Porque, se eu orar em línguas estranhas, o meu espírito, de fato, estará orando, mas a minha inteligência não tomará parte nisso. 15 O que vou então? Vou orar com o meu espírito, mas também vou orar com a minha inteligência; vou cantar com o meu espírito, mas também vou cantar com a minha inteligência. 16Se você dá graças a Deus em línguas estranhas, como é que uma pessoa simples, que estiver na reunião, poderá dizer “amém” à oração de agradecimento que você fez? Ela não vai conseguir entender nada do que você está dizendo. 17Mesmo que a sua oração seja muito boa, essa pessoa não receberá nenhuma ajuda. 18Eu agradeço a Deus porque falo em línguas estranhas muito mais do que vocês. 19 Porém nas reuniões da igreja preiro dizer cinco palavras que 13 235 possam ser entendidas, para assim ensinar os outros, do que dizer milhares de palavras em línguas estranhas. 20 Irmãos, não pensem como crianças. Sejam como crianças para o que é mau, mas sejam adultos no seu modo de pensar. (1 Co 14: 13-20). As palavras de Paulo patenteiam algo importante no que diz respeito à educação. Só conseguiremos sensibilizar e alterar algo no outro se o alcançarmos por meio do seu intelecto. A educação se processa quando atingimos as capacidades cognitivas de quem ouve. Nessa passagem da Carta, Paulo faz uma pequena autobiograia: reconhece que é uma pessoa culta, pois relata que conhece várias línguas8. Mas explicita que, ao se dirigir ao povo, é necessário falar na linguagem que ele pode apreender. Assim, aconselha a falar pouco, mas que este pouco seja aprendido. Dito de outro modo, é pela simplicidade que o pregador consegue converter a pessoa simples ao cristianismo. Por im, o apóstolo aconselha o pregador a ser adulto, ou seja, que tenha clareza dos caminhos que deve seguir para ensinar o cristianismo. Tal como Paulo aconselha, sejamos simples com os nossos alunos, mas tenhamos a certeza e a responsabilidade para perceber se os nossos discursos estão atingidos nossos ouvintes, se, de fato, estamos conseguindo modiicar comportamentos. Certamente nossos objetivos são bem distintos dos de Paulo porque não pretendemos ensinar nenhuma religião, mas é importante reletir sobre seus escritos para veriicar se estamos falando a mesma língua daqueles que pretendemos formar; se nossos discursos estão promovendo o desenvolvimento intelectivo de nossos discentes e, acima de tudo, se somos adultos quando nos dirigimos à tarefa de ensinar. Tomemos um último exemplo de Paulo para este primeiro momento de nossa análise sobre a proposta pedagógica cristã. Trata-se da questão da autoridade. 8 O senhor Jesus me deu autoridade sobre vocês, não para destruí-los mas para fazê-los crescer espiritualmente. E, embora eu tenha me orgulhado um pouco demais da minha autoridade, não tenho nada de que me envergonhar. 9Não quero que pareça que estou tentando assustar vocês com as minhas cartas. 10 Alguém vai dizer: “As cartas de Paulo são severas e duras; mas, quando ele está conosco, é tímido e, quando fala, é um fracasso”. 11 Porém essa pessoa deve saber que não existe diferença entre o que escrevemos nas cartas, quando estamos longe, e o que fazemos, quando estamos aí com vocês. (2 Co 10: 8-11). Ao dirigir-se aos Coríntios, Paulo não hesita em airmar que, se necessário for, usará o peso da sua autoridade para com eles e os ameaça, inclusive, de que os castigará se não estiverem praticando os valores cristãos. O 8 Gardner observa que Paulo era luente em várias línguas: “Com a educação que possuía e a proissão de aceitação universal, é bem provável que Paulo já tivesse viajado bastante antes de se tornar cristão. Com certeza era luente nas línguas grega, hebraica, latina e aramaica” (GARDNER, 2005, p. 507). 236 discurso do apóstolo é irme porque se trata de um processo de convencimento no qual a autoridade deve ser evidenciada. Airma que os Coríntios o acusam de ser contraditório entre o que discursa quando está na presença deles e o que escreve, ou seja, que ele possui duas naturezas de comportamento. Paulo insiste no fato de que não deve existir diferença entre o que se pratica e o que se escreve e refuta as acusações que lhe são feitas. Percebemos dois aspectos relevantes desse debate de Paulo. O primeiro é a irmeza que devemos ter quando nos dispomos a ocupar o lugar de mestre. Temos que agir sempre com a certeza de que o que propomos é o mais correto naquele momento. Não se trata, contudo, de sermos duros ou arrogantes, mas de termos segurança no que estamos fazendo. Esta segurança é vital no processo de ensino e aprendizagem pois, se não a temos, deixamos os alunos inseguros quanto ao caminho a ser seguido. Sob esse aspecto devemos seguir a máxima de Paulo — e, muitos séculos depois, a de Kant — de que são os adultos que conduzem a educação. A segurança que nos possibilita a autoridade deve decorrer do conhecimento que possuímos e da premissa de que estamos elegendo o melhor caminho no momento em que transmitimos determinado conteúdo, de uma determinada forma. O segundo aspecto que consideramos relevante na passagem de Paulo relaciona-se à importância de não existir diferença entre a forma como agimos e o que escrevemos ou dizemos. Lembremo-nos, sobre essa questão, de Aristóteles e Tomás de Aquino, que insistem no fato de que somos homens pelos nossos atos. Nesse sentido, o professor deve manter a coerência entre o que ensina e o que pratica porque, em última instância, o que será a medida para a formação de seus discentes será o seu agir e não o seu discurso. Por isso, Paulo adverte que ele é o que escreve, o que prega e o que faz. O professor, por seu turno, é o que ensina, o que faz e o que escreve. É preciso lembrar que Paulo pode apontar como problemas no seu processo de difusão do cristianismo questões como autoridade, linguagem, amor ao próximo, obediência às leis, já que ele está pregando às pessoas que possuem um mínimo de cultura e de ‘letramento’, se assim podemos dizer. Ele se dirige, seja no Ocidente ou no Oriente do Império romano, a um grupo de pessoas que conhece a escrita e que se prepara, com esse nível de conhecimento, para difundir a ‘palavra sagrada’ aos mais simples. O tempo de Paulo é também um momento cujas bases culturais estão preservadas. Podemos falar de crise no Império, mas é uma crise que ainda não está disseminada em todos os segmentos, e o conhecimento da ilosoia se faz muito presente: Roma, à época de Paulo, convive com Sêneca e outros pensadores estoicos, por exemplo. Eusébio de Cesareia A realidade do tempo de Eusébio de Cesareia é outra. Esse autor vive entre os séculos III e IV d. C., momento em que o Império Romano, 237 particularmente a parte do Ocidente, vivencia uma grande crise. Nesse tempo o cristianismo tornara-se uma religião importante, com muitos adeptos. Ousamos airmar que, em termos de construção mental da sociedade, ele principiava a ser a força motora. Ainda que a religião fosse submissa às forças do mundo e da autoridade romanas, os seus adeptos e proselitistas se consideravam pertencentes ao cristianismo. Existia, nesse sentido, diferentemente do tempo de Paulo, uma identidade cristã que se irradiava por quase todos os espaços do Império Romano no Ocidente e no Oriente. Outro fato histórico bastante importante que explicitou o fortalecimento dos cristãos foi o primeiro Concílio de Niceia, realizado em 325 d. C., convocado por Constantino I (272-337). Segundo Guizot (1907), tal concílio expressou a importância que os homens da Igreja, especialmente os bispos, representavam junto ao Império. Ainda, de acordo com esse historiador, o fato de o imperador chamar para junto de si e sentar-se à mesa para ouvir e considerar as propostas dos cristãos representou um grande fortalecimento dos bispos, pois a inluência dos representantes da Igreja foi reconhecida pelo poder político. Além disso, outro aspecto que contribuiu para o fortalecimento do poder dos bispos no Ocidente foi o fato de Constantino ter transferido a sede do Império da cidade de Roma para Constantinopla. Ao fazer isso, o Imperador deixou vazio o poder que rapidamente foi ocupado pelos homens da Igreja. Assim, quando Eusébio de Cesareia escreve sua História Eclesiástica, o cristianismo não era apenas uma religião dos gentios e de ilósofos convertidos, a exemplo de Paulo, mas estava se tornando, gradativamente, ‘religião de Estado’. Esse autor escreve de forma diferente de Paulo: não se trata mais de cartas ou textos que exaltam a crença, mas da elaboração de uma justiicativa da importância do povo e da religião cristã. § 4 Mas se somos evidentemente novos e este nome de cristãos, novo na verdade, é conhecido a pouco entre as nações, nosso gênero de vida e nosso comportamento segundo os ensinamentos da piedade não foram recentemente inventados por nós. Foi, por assim dizer, desde a primordial criação dos homens que os amigos de Deus de outrora, por conhecimento natural os tiveram conforme vamos demonstrar. § 5 O povo dos hebreus não existe há pouco, mas é respeitável diante de todos por sua antiguidade e geralmente conhecido. A tradição oral e escrita entre eles relata que outrora viveram homens, raros e pouco numerosos, contudo eminentes pela piedade, pela justiça e pelas demais virtudes, uns antes do dilúvio, outros depois, como os ilhos e descendentes de Noé, e certamente Abraão, que os ilhos dos hebreus se gabam de ter por chefe e ancestral. § 6 Não incorreria em erro quem desse o apelativo de cristãos, se não pelo nome, ao menos pelas ações a todos aqueles cuja justiça é atestada, remontando de Abraão até o primeiro homem. § 7 Efetivamente, este nome signiica que os cristãos, através do conhecimento e ensinamento de Cristo, se distingue por prudência, justiça, força de caráter e virtude, coragem e 238 piedosa conissão de um só e único Deus supremo. Tudo isso, aqueles varões não buscaram com menor zelo do que nós (EUSÉBIO DE CESARÉIA, L. 1, c. 4). Como historiador, ele procura evidenciar a tradição de um povo cristão nos hebreus. De acordo com Eusébio de Cesareia, ainda que o nome cristão fosse recente, data de três séculos atrás, em seu tempo as suas origens deitavam raízes entre os primeiros hebreus, ou seja, desde Abraão existiam cristãos. Por ser historiador, o autor procura legitimar a importância de seu povo e crença pelo passado, pela longevidade de existência. A vinculação entre os cristãos e os hebreus não estaria na linhagem, mas especialmente no comportamento virtuoso dos primeiros hebreus que legaram aos cristãos as virtudes da prudência, da bondade, da justiça e, especialmente, a crença em um Deus único, diferentemente dos romanos. É, pois, no modo de agir que os cristãos podem ser considerados herdeiros de Abraão e Davi. Ser cristão, para Eusébio, está associado a uma forma de conduta e crença e não a uma etnia ou povo. Nesse aspecto, Eusébio, conserva-se dentro da perspectiva paulina, de que a identidade do cristão é dada pelo seu modo de agir e a crença em um Deus único e não a sua espacialidade. Todavia, se à época de Eusébio podemos aiançar que o cristianismo ganhou força e tornou-se gradativamente a explicação mental das relações sociais, na época de Paulo a condição de ser cristão era bem diversa. A população à qual Eusébio se dirige é bem distinta. Na época do apóstolo veriicamos que aqueles que se convertiam ao cristianismo o faziam porque eram convencidos pelos discursos e relatos que ouviam ou liam. No tempo de Eusébio, a população a ser convertida era composta, na sua maioria, por pessoas oriundas das hordas nômades: os romanos citadinos eram pouco afeitos ao conhecimento, os romanos do campo também tinham muito pouco acesso à cultura letrada. Logo, em geral, a população a ser convertida tinha muito pouco conhecimento tanto das Escrituras Sagradas como também da ilosoia e escrita greco-latina. De que modo, então, propagar o cristianismo e conquistar mais adeptos? Que prática pedagógica a ser adotada para promover a conversão e a educação da população em ins do século III e início do IV d. C.? Pela leitura de Eusébio de Cesareia ica evidente que era necessário usar outros meios de convencimento além do discurso falado e escrito. Por isso ganham relevância, a nosso ver, em Eusébio de Cesareia, os intensos e extensos relatos sobre o martírio. § 27 Assim falando, gritavam ainda e pediam ao asiarca Filipe que soltasse um leão Policarpo; mas ele respondeu que isso não era lícito, porque os combates de feras haviam acabado. Então, unânimes começaram a gritar Policarpo fosse queimado vivo. § 28 Era, de fato, preciso que se cumprisse a visão que tivera, quando em oração viu o travesseiro a arder, e voltando-se para os iéis ao seu redor, prenunciar profeticamente: ‘Devo ser queimado vivo’. § 29 Fez-se isso mais rapidamente do que fora dito. A multidão trouxe, imediatamente, das oicinas e dos balneários lenhas 239 e gravetos; sobretudo os judeus, conforme seu costume, colaboravam. § 30 Pronta a fogueira, Policarpo por si mesmo despiu-se, e desamarrou o cinto; tentou tirar os calçados, o que antes não fazia, porque sempre os iéis se apressavam para lhe tocar o corpo; em tudo, por causa da sua vida eminente, fora honrado mesmo antes de lhe aparecerem as cãs. § 32 Amarrado, com as mãos às costas, parecia um cordeiro escolhido, tirado de grande rebanho, para se tornar um holocausto agradável a Deus onipotente (cf. Sb 3,6). [...] § 38 Finalmente, os malvados, vendo que o corpo não podia ser consumido pelo fogo, ordenaram ao carrasco que se aproximasse e o atravessasse com o punhal. § 39 Ele o fez e jorrou tal quantidade de sangue que o fogo se apagou. A multidão icou admirada da grande diferença entre os incrédulos e os eleitos, aos quais pertencia também este admirável varão, em nosso tempo mestre e apostólico e profético, o bispo da Igreja católica de Esmirna. Toda palavra proferida por sua boca, efetivamente, cumpriu-se e haverá de se cumprir. § 40 O maligno, invejoso e ciumento, adversário dos justos, vendo a grandeza de seu martírio, a vida irrepreensível que levara desde o início, a coroa de incorruptibilidade que o ornara, o prêmio inegável que obtivera, cuidou de que nem mesmo o cadáver fosse recolhido por nós, apesar de muitos terem desejado possuí-lo e ter uma porção de relíquias (EUSÉBIO DE CESARÉIA, L. 4, c. 15). Esta passagem destaca os diversos aspectos do martírio que eram exaltados no relato de Eusébio de Cesareia. O primeiro deles diz respeito ao fato de que a pessoa que sofria o martírio via, nele, um ato de salvação e aproximação de Deus e não um sofrimento. Em última instância, trata-se de puriicação. Criara-se no imaginário social a ideia de que todo aquele que sofresse o martírio chegaria ao reino do céu. Logo, ainda que ser queimado vivo pudesse ser algo atroz, pelo relato do historiador cristão era a certeza da felicidade eterna. Um segundo ponto é a rapidez e o fervor com que a população participava do martírio e colaborava com ele. No relato do martírio de Policarpo, é o povo que constrói a fogueira. Desse modo, a população, ao mesmo tempo em que é sensibilizada pelo exemplo de destemor, de coragem do martirizado, revela um lado sombrio do ser humano: o gosto pelo trágico e o prazer que se sente em ver o trágico e de colaborar com ele9. Um terceiro aspecto diz respeito à apropriação da imagem simbólica do cordeiro que aceita a morte, sem se lastimar, apenas e tão somente lacrimeja. O exemplo da analogia ao cordeiro é bastante visível: o bom cristão não titubeia em sofrer calado, se esse sofrimento implica em defender a religião 9 Essa ideia aparece com frequência nos relatos cristãos e, depois, na literatura de um modo geral. No caso da Bíblia, por exemplo, veriica-se que a população que se volta contra Madalena e passa a apedrejá-la. No romance O nome da Rosa, de Umberto Eco, a população assiste ávida à condenação das pessoas à fogueira. O que não dizer dos relatos da própria população denunciando judeus, no Renascimento, à inquisição. 240 cristã e, principalmente, não negar a sua fé, ainda que essa posição conduza-o à morte. Esse aspecto é signiicativo para a construção de um ideário do SER cristão: a propagação de duas virtudes consagradas para os conversos do Novo Testamento: a coragem e a resignação. Um quarto aspecto vincula-se à ideia de que os elementos da natureza não provocam a morte do cristão. Essa relação entre o homem e a natureza, como criaturas divinas, foi muito comum na literatura contemporânea de Eusébio de Cesareia. Como o homem e os elementos da natureza têm a mesma origem divina, Deus não deixaria que um ‘seu ilho’ fosse imolado por outra criatura ou elemento que ele também criará. Por isso o fogo não atinge Policarpo, mas faz com que exale de seu corpo um cheiro perfumado10. Somente um instrumento criado pelo próprio homem pode ceifar a vida do mártir. Ainda assim, seu sangue teria o poder de apagar o fogo, ou seja, ambos são criações divinas, portanto, possuem poderes similares. Um último aspecto que observamos no relato do martírio é a exaltação das virtudes do cristão e, em decorrência delas, a difusão da cultura das relíquias, pois, certamente na mentalidade popular, este homem, por ser um mártir, seria também um santo. Logo, era natural que o cristão quisesse preservar consigo algo que recordasse o personagem virtuoso. Ao descrever o martírio, Eusébio de Cesareia deine o modelo de cristão ideal: virtuoso, honesto, resignado, bondoso, aquele que conserva a tradição e a memória dos personagens sagrados, mas, acima de tudo, aquele que crê incondicionalmente em uma força mental exterior ao homem, que é a religiosidade cristã. O cristão de Eusébio é aquele que sente, recorda e conia piamente. Nesse sentido, o âmbito da formação ocorre a partir das sensações emocionais e do exemplo. A tônica geral desse princípio educativo não é mais a leitura, mas o prático, o sentir, ver e vivenciar. Com efeito, nesse cenário, as Cartas de Paulo não teriam muito sentido educativo, uma vez que uma parte signiicativa da população não tinha mais o domínio da leitura. De tal modo, ainda que o sujeito de Eusébio seja o mesmo que o de Paulo, o cristão, o projeto e a prática pedagógica não podem mais ser as mesmas porque os homens a serem formados são outros, e Eusébio, como mestre e sábio, reconheceu essa mudança e a propôs explícita. O autor faz, inclusive, uso de determinados princípios que se mantiveram na história: a tradição, a memória e o exemplo. São Jerônimo Passemos agora para o último momento de nossa análise, quando a história registra uma Igreja com força e os seus homens já se veem e são 10 O martírio foi uma prática louvada durante toda a Idade Média, bem como a ideia de que os elementos da natureza não atingem ao cristão devoto. No século X, a monja Roswita, ao ensinar matemática às suas alunas, no interior de um mosteiro, recupera a Peça Sabedoria, do século III, escrita por Tertuliano. Nela, a monja também mostra que nem o fogo e nem a água conseguiram matar as ilhas de Sabedoria, uma senhora grega, convertida ao cristianismo. 241 vistos como dirigentes. Nessa época, o tempo de são Jerônimo, o cristianismo se constitui em uma mentalidade social ampla que abarca muitas regiões e povos; as instituições romanas, por seu turno, encontram-se em um processo de franca dissolução. É, pois, o tempo de transição entre a sociedade grecoromana e a sistematização das relações sociais medievais. Assim, o cenário no qual são Jerônimo vive e escreve é bastante distinto do de Paulo e de Eusébio de Cesareia. O propósito dele é o mesmo que os autores anteriores: pretende difundir as ideias cristãs e, principalmente, formar o homem ‘moldado’ à essência do ‘ser cristão’; todavia, o cenário social é outro, e a sua prática pedagógica e o seu projeto formativo também deverão ser distintos daqueles dos séculos anteriores. O aspecto que julgamos inovador em são Jerônimo é que ele não apresenta um projeto de conversão, mas, sim, de formação. A ideia original a ser destacada nesse autor é que é preciso educar as crianças para que elas se tornem cristãs. De acordo com Ruy Nunes (1978), o projeto de são Jerônimo encontra-se explícito na Carta à Leta (Carta de no. 7), destinada a sistematizar um plano de estudos a Paula, neta de santa Marcelina e ilha de Leta. “O que nos impressiona logo de início nesta carta é a alusão de Jerônimo aos cristãos e à decadência religiosa da Roma antiga. As pessoas não nascem, diz ele, mas tornam-se cristãs, iunt, non nascuntur Christiani [...]” (NUNES, 1978, p. 179, sublinhado nosso)11. Eis a ideia essencial de prática educativa que se originou com esse mestre da antiguidade tardia, ou da alta Idade Média, e que permanece até os dias atuais: se queremos modiicar uma dada sociedade devemos principiar com a educação das crianças, porque nelas poderemos imprimir comportamentos distintos dos já cristalizados nos adultos. Inúmeros autores de tempos distintos, de concepções teóricas diversas do cristianismo, apontam para esse mesmo caminho12. Nas Cartas de Jerônimo dedicadas à educação de crianças e jovens observa-se um programa de estudo bastante detalhado, no qual o mestre destaca os diferentes momentos de formação da pessoa cristã. Diz Quintiliano [em Educação do Orador] que as crianças devem receber um ensino atraente, correspondente à sua idade, de tal modo que o estudo se torne um jogo agradável; as crianças recebam perguntas e aplausos, e tenham despertado o seu espírito de concorrência, recebendo, por mérito, prêmios adequados à sua idade. E quando o menino começar a aprender a escrever, aconselha Quintiliano, será muito bom que se sirva de uma tabuinha onde possa gravar as palavras com o estilete através dos sulcos que assegurem o traçado das letras. Isso dará irmeza aos seus dedos e ele não precisará ter a mão do mestre sobre a sua para dirigi-la. Não se trata de um cuidado à toa, uma vez que é de importância capital na educação 11 Informamos ao leitor que as passagens que citaremos das Cartas de Jerônimo encontram-se traduzidas e publicadas na obra Ruy Afonso da Costa Nunes, História da Educação na Antiguidade. 12 O exemplo de Kant, no inal do século XVIII e início do XIX, é a nosso ver um dos mais notáveis. Na obra intitulada Sobre a Pedagogia, o ilósofo alemão observa que a educação só pode modiicar uma sociedade se as crianças forem cuidadas e educadas desde a mais tenra infância (1996, p. 42). 242 aprender a escrever bem e depressa (JERÔNIMO, 1978, p. 180, grifos nossos). Essa passagem tem muito a nos ensinar. Em primeiro lugar, deve-se procurar ensinar a criança a partir daquilo em que ela tem interesse, ou seja, é preciso estimular seu espírito para que ela se concentre no que está aprendendo. Em segundo lugar, é necessário que a criança seja admirada e exaltada quando aprender algo. Em terceiro lugar, que a criança aprenda desde muito cedo a competir, pois a concorrência é algo que deve ser encorajado por ser condição de desenvolvimento do seu espírito. Em quarto lugar, a importância de usar o instrumento adequado para desenvolver, o que convencionalmente deinimos como coordenação motora. Em nossa escola, hoje, seria o uso adequado do lápis. Por im, que a criança aprenda a escrever rapidamente, para que consiga compreender o que está lendo com mais segurança. Nesse programa de estudos às crianças, na Carta 22 destinada à educação de Eustóquia, ilha de Santa Paula, Jerônimo insiste na importância da leitura constante: “[...] lê com muita freqüência e aprende o máximo. Surpreenda-te o sono com o livro na mão, e caia o teu rosto sobre a página santa” (JERÔNIMO, 1978, p. 178). De acordo com Jerônimo, é preciso sempre estimular a criança para que ela tenha o interesse em aprender; portanto, não se deve castigar aquele que tem diiculdades em aprender, mas procurar sempre animá-lo porque, se a criança perde o interesse para o conhecimento, ela o carregará para sempre. Ela deve ganhar um prêmio quando juntar as sílabas, e deve ser estimulada com presentinhos agradáveis à sua idade [...] Se ela tiver diiculdade para aprender, mais vale animála com louvores do que censurá-la. É preciso muito cuidado para que não se aborreça com os estudos, a im de que essa repugnância não estenda a sua sombra comprida através dos anos (JERÔNIMO, 1978, p. 180). Atento a todos os aspectos importantes da educação da criança, o mestre salienta o cuidado que os pais devem ter quando forem escolher os professores dos ilhos: O mestre, [adverte São Jerônimo,] deve ser escolhido pela sua idade, vida e instrução, e qualquer douto varão não deve envergonhar-se de educar uma nobre virgem menos do que Aristóteles, quando foi convidado para ser preceptor de Alexandre. Essa questão do mestre é muito séria, pois a própria pronúncia das letras e o primeiro ensino saem de um modo da boca do homem douto e de outro da boca do rústico (JERÔNIMO, 1978, p. 181). A questão da eleição do professor é bastante destacada por Jerônimo pois, para ele, o professor precisa ser adulto não só em termos de idade, mas 243 também não deve possuir vícios, na medida em que está formando o cristão. Precisa ter conhecimento dos escritos sagrados e dos autores antigos. O professor sempre é um dos principais exemplos que a criança seguirá. Desse modo, além de ter que ser um bom professor no âmbito do conhecimento, precisa também ser uma pessoa virtuosa, uma vez que sua conduta será seguida por seu discípulo. Ainda dentro de seu propósito de educação da criança, são Jerônimo destaca que, em última instância, os responsáveis pela educação e, por conseguinte, pela formação do bom cristão são os pais. Os pais devem estar atentos a tudo isso na educação das ilhas, pois deslizamos com facilidade para o precipício dos vícios e, antes de os meninos atingirem a idade do senso crítico e da responsabilidade pessoal, todo o encargo da educação corre por conta dos pais, que responderão a Deus pelo modo como educaram os seus ilhos. A responsabilidade dos pais, no entanto, ainda é maior quando, como no caso de Paulinha, eles consagram os seus ilhos a Deus antes mesmo do seu nascimento (JERÔNIMO, 1978, p. 181, grifo nosso). Do ponto de vista do mestre cristão, são os adultos ‒ no caso de Paulinha, os pais ‒ os responsáveis pela formação da criança. É importante ressaltar nessas relexões de Jerônimo que ele explicita que a criança depende inteiramente das decisões do adulto. Hoje, contraditoriamente, assistimos a situações opostas à apresentada pelo autor. Em geral é a criança que deine os rumos da família em muitas situações, por exemplo, nas compras do mercado, na escolha de roupas, etc. Nós não sabemos mais o que fazer com os nossos ilhos, independentemente da idade. Por omissão, recai sobre os seus ombros a responsabilidade de suas decisões e não percebemos, como nos alerta são Jerônimo, que as crianças, precisamente por serem crianças, ainda não atingiram o senso crítico para tomar para si os rumos de suas vidas. Em face da nossa realidade, é perceptível o projeto pedagógico apresentado por são Jerônimo. Diante da crise que atinge o seu tempo histórico13, não titubeia em apresentar um caminho à sociedade, e nele a educação da criança ocupa lugar central. A Carta a Pacátula é um exemplo desse posicionamento. O mestre Jerônimo se preocupa porque as pessoas vivem o presente como se ele fosse o tempo único do homem: “Nestes tempos, [inaliza São Jerônimo,] nasceu Pacátula, e entre tais brinquedos decorre sua primeira idade. [...] Vai ver, imagina que o mundo sempre foi assim. Desconhece o passado, foge do presente e anela pelo futuro” (JERÔNIMO, 1978, p. 187, grifo nosso). Para o autor, as pessoas precisam reletir sobre o passado e, efetivamente, considerar as perspectivas do futuro. A preocupação de Jerônimo é despertar nos pais a responsabilidade em educar seus ilhos, especialmente 13 De acordo com Nunes, Jerônimo: “Lembra que o mundo desmorona e Roma se consome num só incêndio, e enquanto as Igrejas foram reduzidas a cinzas, nós nos entregamos ansiosamente à avareza. Vivemos, diz ele, como se tivéssemos de morrer no dia seguinte, e ediicamos como se tivéssemos de viver sempre neste mundo. (JERÔNIMO, 1978, p. 187). 244 aqueles destinados à vida religiosa. As suas cartas são dirigidas aos pais e aos avós, e não à criança. A preocupação do autor evidencia, também, a sua compreensão da história porque os tempos de crise são aqueles nos quais a sociedade, em geral, e as pessoas, individualmente, menos se inquietam com os destinos das instituições e dos indivíduos. Ficamos todos como que sem vínculos, sem esperança de mudanças possíveis. O projeto pedagógico de formação cristã de Jerônimo é válido em virtude dessa situação de crise que ele viveu e que nós vivemos. Se queremos pensar no futuro, precisamos conhecer os exemplos do passado e cuidar da educação das crianças no presente, pois elas serão o futuro. Se não dermos a elas a possibilidade de serem adultos responsáveis estaremos comprometendo seus destinos e os da sociedade. Considerações Finais Ao reletirmos sobre o projeto educacional cristão nos primeiros séculos da Igreja cristã, por meio de três de seus maiores teóricos, Paulo de Tarso, Eusébio de Cesareia e São Jerônimo de Strídon, tivemos como objetivo evidenciar que, embora as propostas apresentadas pelos três autores tivessem como inalidade formar o ‘cristão’, este indivíduo se modiicou constantemente ao logo do tempo. Dessas alterações podemos depreender que tal como acontece na sociedade, na educação as transformações ocorrem na mesma intensidade. Assim, ainda que os teóricos cristãos da Antiguidade e da primeira Idade Média apresentassem projetos para formar o cristão, ele não foi o mesmo para os autores, já que viveram em tempos distintos e conviveram com pessoas distintas. Não existiu um cristão, mas vários e, por isso, não se manteve um único ‘modelo’ de cristão, mas múltiplos. Os três autores, cada um a seu modo, apresentaram projetos de cristianização dos homens de seu tempo, mas esta pessoa a ser educada, o cristão, se modiicou em cada um dos séculos e as mudanças decorreram das transformações históricas que atingiam o Império Romano do Ocidente e do Oriente. Tais alterações nortearam e mapearam os caminhos desses teóricos que apresentavam propostas educativas para a sociedade. Em Paulo, os homens aprendiam a linguagem cristã e a assimilavam por meio do discurso oral e escrito, porque ainda viviam em condições nas quais a escrita e a leitura condiziam com as suas condições sociais, já que o mundo romano estava em crise, mas ainda não estava no estado de ruína que se desdobrará séculos mais a frente. Com Eusébio de Cesareia a realidade social é outra e os cristãos precisam ser formados a partir dos exemplos dos mártires, pois as condições nas quais as relações eram tecidas não possibilitavam que os homens aprendessem e se convertessem ao cristianismo por outro caminho que não o da tragédia. Aliás, a tragédia se convertera em condição de futuro, pois, quem morria na condição de mártir certamente ganharia o reino do céu, logo, a felicidade eterna. Com Jerônimo de Strídon, as condições são outras ainda, e para se formar o cristão o 245 discurso e o martírio não signiicavam mais o caminho. Como o próprio autor explicitou, Roma caiu, não existe mais o Império, as cidades foram saqueadas e queimadas, a população foi obrigada a se refugiar no campo e nos mosteiros. Ela encontra-se sitiada entre a ruína das instituições romanas e os costumes nômades que, para os cristãos e romanos, são desconhecidos. Como formar cristãos nesse cenário? Mais: como reconstruir essa sociedade que se encontra em ruína? A solução, ou uma das soluções que Jerônimo apresenta, é ensinar as crianças a ler e a escrever e, ao mesmo tempo, mostrar aos adultos que eram eles os responsáveis por ensinar as crianças. Em última instância, eram os adultos que poderiam apresentar uma possibilidade de futuro à sociedade, se assumissem a orientação das crianças. Por im, os três autores tinham o mesmo propósito: formar o cristão para viver no seu respectivo presente, com perspectivas de vida futura. Diferencia-os e, por conseguinte, o que torna diversos seus projetos sociais é o tempo histórico. Portanto, é a época que torna as práticas pedagógicas cristãs dessemelhantes. Cada um dos autores analisados almejou formar cristãos, mas por caminhos distintos, em consonância com as exigências próprias de seus respectivos presentes. Referências BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003. v. IV (Novo Testamento). 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