Rito e celebração na Antiguidade
Rito e celebração na Antiguidade
Rito e celebração na Antiguidade
Rito e celebração na Antiguidade
Rito e celebração na Antiguidade
Leni Ribeiro Leite
Gilvan Ventura da Silva
Raimundo Nonato Barbosa Carvalho
Carla Francalanci
Organizadores
Rito e celebração na Antiguidade
PPGL
Vitória
2012
Rito e celebração na Antiguidade
© Copyright dos autores, Vitória, 2012.
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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Centro de Documentação do Programa de Pós-graduação em Letras da
Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
F477 Rito e celebração na Antiguidade / Leni Ribeiro
Leite ... [et al.], organizadores. – Vitória : Ed. PPGL,
2012.
337 p. : Il. ; 14 cm x 21 cm.
ISBN 978-85-99345-16-0
1. Civilização clássica – Discursos, ensaios,
conferências. 2. Celebração – Antiguidade clássica. 3.
Ritos – Antiguidade clássica. I. Leite, Leni Ribeiro.
CDU: 94(37+38)
Rito e celebração na Antiguidade
Sumário
APRESENTAÇÃO..........................................................................................................................08
CONFERÊNCIAS
DEUSES E ORDO NO LIVRO IV DAS ODES
Alexandre Pinheiro Hasegawa.....................................................................................................09
O LECTISTERNIUM E A PLACATIO DEORUM: UM ESTUDO DE CASO EM TITO LÍVIO, AB URBE
CONDITA, 22, 9-10
Claudia Beltrão Rosa....................................................................................................................27
RITOS MÁGICOS E SOCIABILIDADES RELIGIOSAS EM ANTIOQUIA: JOÃO CRISÓSTOMO E A
CENSURA AOS JUDEUS E JUDAIZANTES
Gilvan Ventura da Silva................................................................................................................44
RITO E COMEMORAÇÃO NA TRAGÉDIA ALCESTE DE EURÍPIDES.
Jaa Torrano..................................................................................................................................56
CELEBRAÇÃO E RETÓRICA EM ESTÁCIO
Leni Ribeiro Leite.........................................................................................................................67
RITO E POESIA NAS METAMORFOSES DE OVÍDIO
RaimundoCarvalho......................................................................................................................79
O RITUAL DO CASAMENTO EM ROMA E A POESIA LATINA
Zelia de Almeida Cardoso............................................................................................................86
COMUNICAÇÕES
O CULTO HERÓICO: ASSOCIAÇÃO ENTRE O ESPAÇO DE CULTO E O ESPAÇO POLÍTICO
Alessandra André......................................................................................................................101
A ATUAÇÃO DO AEDO NOS BANQUETES HOMÉRICOS
Ana
Gabrecht...................................................................................................................................108
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INSTITUIÇÃO CIVIL DO CASAMENTO NA URBS ROMANA
Ana Lúcia Santos Coelho...........................................................................................................117
UMA POSSÍVEL ABORDAGEM DA MÍMESIS A PARTIR DO LIVRO III DA REPÚBLICA
Anallú Guimarães Firme Lorenção............................................................................................125
OàBáNQUETEàMU“ICáLàNOàPE‘“áàDEàPLáUTOàEàáà CELEB‘áÇÃOàDáàE“PE‘TE)á
Rito e celebração na Antiguidade
Beethoven Barreto Alvarez.......................................................................................................134
A COMEMORAÇÃO DA BATALHA DE ÁCIO EM HORÁCIO
Camilla Ferreira da Silva Paulino...............................................................................................153
A INSTITUIÇÃO PRIVADA DO CASAMENTO NAS COMÉDIAS DE PLAUTO
Caroline Barbosa Faria Ferreira.................................................................................................164
DIALÉTICA E RETÓRICA NO SIMPÓSIO DE PLATÃO
Eliana Amarante de Mendonça Mendes...................................................................................173
ORFEU LÍDER RELIGIOSO NA ARGONÁUTICA
Fábio Gerônimo Mota Diniz......................................................................................................184
CELEBRAÇÕES DE FAMÍLIA NA ANTIGUIDADE: O CASAMENTO NA CONCEPÇÃO ROMANA
João Carlos Furlani....................................................................................................................193
A HERANÇA CLÁSSICA EM MAIMÔNIDES: RAZÃO, FÉ E ARISTOTELISMO NO GUIA DOS
PERPLEXOS.
Layli Oliveira Rosado.................................................................................................................205
MITO E RITUAL NA IFIGÊNIA ENTRE OS TAUROS, DE EURÍPIDES.
Marcelo Bourscheid..................................................................................................................215
A RAINHA DEVOTA: O RITO DE CLITEMNESTRA NAS ELECTRAS DE SÓFOCLES E EURÍPIDES
Marco Aurélio Rodrigues
Fernando Brandão dos Santos..................................................................................................226
A ADAPTAÇÃO VIRGILIANA DA INVOCAÇÃO AOS DEUSES AGRÁRIOS PELO VARRÃO DE DE RE
RUSTICA I
Matheus Trevizam.....................................................................................................................232
O ROMANO E O LAZER: REFLEXÕES SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DOS LUDI PARA A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE URBANA NO IMPÉRIO ROMANO [SÉC. III-IV]
Natan Henrique Taveira Baptista..............................................................................................242
RITO, CELEBRAÇÃO E RELEITURA EM A CEIA DOMINICANA: ROMANCE NEOLATINO, DE
REINALDO SANTOS NEVES
Nelson Martinelli Filho..............................................................................................................256
SÍRIUS: PRENÚNCIO DO RITO SACRIFICIAL
Paula Cristiane Ito.....................................................................................................................277
O BANQUETE CELTA AOS OLHOS MEDITERRÂNEOS: UMA ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DO
FESTIM CELTA A PARTIR DE TEXTOS GREGOS E LATINOS
Rito e celebração na Antiguidade
Pedro Vieira da Silva Peixoto....................................................................................................282
ENTRE O PRAZER DA PUNIÇÃO E A DOR DA EXPIAÇÃO: EPISÓDIOS DE ULTRAJE AO DEUS
PRIAPO NO SATYRICON DE PETRÔNIO
Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet...................................................................................296
O SIMBOLISMO DOS RITUAIS CRISTÃOS NO DISCURSO DO APÓSTOLO PAULO
Simone Rezende da Penha Mendes..........................................................................................303
CULTURA POLÍTICA, PODER E RITUAL NO SÉCULO IV D.C.: A CELEBRAÇÃO DO COSMOCRATOR
NO PANEGÍRICO A TEODÓSIO I
Thiago Brandão Zardini.............................................................................................................310
RITO E CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO NA ANTIGUIDADE E A INTERTEXTUALIDADE COM A
POESIA NO LIVRO DE SALMOS
Zilda Andrade L. dos Santos......................................................................................................327
Rito e celebração na Antiguidade
Apresentação
A presente obra recolhe as conferências e comunicações apresentadas por ocasião da II
Jornada de Estudos Clássicos da Universidade Federal do Espírito Santo – Rito e celebração na
Antiguidade, evento organizado pelos Programas de Pós-Graduação em Letras, em História e em
Filosofia e que contou com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do ES. Realizada em maio de
2011, a II Jornada de Estudos Clássicos congregou pesquisadores de diversas universidades e institutos
de ensino superior do País, que buscaram refletir sobre aspectos rituais e comemorativos próprios das
sociedades grega e romana que, como sabemos, atribuíam uma importância extraordinária ao domínio
religioso, à interferência do sagrado no ritmo temporal e nas atividades humanas, desde as mais
prosaicas e rotineiras, como o consumo de alimentos e a união conjugal, até aquelas responsáveis por
decidir os rumos da comunidade cívica, como a guerra.
De fato, quando abordamos os processos culturais e o cotidiano do Mundo Antigo, a
experiência religiosa adquire uma posição preeminente. Compartilhando mutatis mutandis o mesmo
panteão, gregos e romanos puderam, no decorrer dos primeiros séculos da sua história e, mais ainda,
no período de vigência do Império Romano, essa realidade multicultural, heterogênea e ao mesmo
tempo unitária que aproximou povos e culturas de um lado a outro do Mediterrâneo, experimentar as
mais variadas modalidades de intercâmbio com o sobrenatural, desde os ritos agrários de base familiar
até as comemorações públicas, que envolviam de um modo ou de outro toda a comunidade, sem deixar
de lado a contribuição cristã, cuja simbiose com os cultos da cidade antiga é algo hoje amplamente
reconhecido.
A devoção manifesta pelo homem antigo assumia por vezes uma interface altamente regrada,
ritualizada, enfatizando-se assim os procedimentos que compunham a cerimônia, razão pela qual não é
sem propósito que alguns se referem aos gregos e romanos como povos marcados por uma
religiosidade de natureza formalista. A despeito do exagero de tal afirmação, que tende a subestimar o
envolvimento emocional dos antigos com os seus deuses e deusas, o fato é que o rito, a performance
correta das práticas religiosas de acordo com os preceitos ancestrais – a assim denominada ortopráxis –
constituía um dos fundamentos da cosmovisão grecorromana.
e e uç oà o o iaà oà ueà osà pes uisado esà defi e à o oà
Todavia, no momento mesmo de
ei esti e toà si
li o ,à ouà seja,à aà
elaboração de novos significados para o ritual, elemento indispensável para a dinâmica religiosa, pois,
ao realizar uma dada cerimônia, os participantes não se limitavam a reproduzir ao pé da letra um
p oto oloà legadoà pelaà t adiç o,à asà ope a a à u aà leitu a à dessaà t adição de acordo com os seus
próprios objetivos e interesses, manipulando-a e transformando-a. Foi na tentativa de entender a
complexidade dos ritos e celebrações da Antiguidade que reunimos, na Universidade Federal do Espírito
Santo, especialistas de diversas áreas dos estudos clássicos, numa jornada de dois dias cujos resultados
oferecemos agora ao grande público.
Vitória, abril de 2012
Os Organizadores
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Rito e celebração na Antiguidade
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Rito e celebração na Antiguidade
Conferências
DEUSES E ORDO NO LIVRO IV DAS ODES*
Alexandre Pinheiro Hasegawa (USP/FFLCH/DLCV)
ahasegawa@usp.br
Ao abrir o quarto e último livro lírico, Horácio se dirige a Vênus e, próximo dos
cinquenta anos, pede para ser poupado pela deusa do amor. Mais do que afastá-la, o
poeta ordena que procure os jovens que a invocam, em especial Paulo Fábio Máximo,
que vai honrá-la de maneira adequada por ser talentoso. Por fim, na terceira e última
parte do poema (vv. 29-40), depois de declarar que não lhe agradam nem rapazes,
nem mulheres, confessa seu amor por Ligurino, jovem a quem dedica uma ode do livro
(carm. 4, 10)1. Antes, porém, de ver mais em detalhe o carm. 4, 1, convém situar o
quarto livro lírico na carreira horaciana, já que o poeta faz referência, de modos
diversos, à sua produção precedente2. Independentemente da discussão que se coloca
hoje sobre a publicação dos três primeiros livros, se foram publicados em conjunto ou
seperadamente, os carm. 1, 1 e 3, 30 delimitam um todo que se diferencia, de maneira
clara, do quarto livro. Entre estas duas produções líricas, Horácio publica seu primeiro
livro de epístolas, em que afirma, já velho, ter abandonado os versos e os outros
divertimentos (cf. epist. 1, 1, 10: nunc itaque et uersus et cetera ludicra pono). Assim, a
construção do éthos da persona loquens nas Epístolas passa para o lírico do quarto
livro, que é mais elevado em relação aos outros, como já foi apontado pela crítica.
Portanto, não é estranho que o poeta, depois dos três primeiros livros líricos,
inicie o quarto, procurando afastar Vênus. É significativo, porém, que Horácio, como se
*
Agradeço, antes de mais nada, o convite de Leni Ribeiro Leite para participar da II Jornada de Estudos
Clássicos da UFES: Rito e celebração na Antiguidade, realizada de 30 a 31 de maio de 2011, onde
apresentei uma primeira versão deste texto; agradeço ainda as sugestões de João Angelo Oliva Neto
para a atual versão.
1
Para relação entre carm. ,à àeà ,à ,à e àE.àMit hell,à Ti eàfo àa àe pe o :àoldàageàa dàtheàfutu eàofà
the Empire in Horace Odes ,àMD 64, 2010, pp. 43-76. Há ainda importantes observações sobre as odes
que louvam o império e o imperador (cf. pp. 73-74).
2
Para mencionar o exemplo mais evidente, o v. 5: mater saeua Cupidinum é citação do v. 1 do carm. 1,
19.
10
Rito e celebração na Antiguidade
sabe, segue, para ordenar os poemas do primeiro livro, as edições alexandrinas de
Alceu, que começavam por uma sequência de três hinos (frr. 307 V, 308 V e 343 V)3.
Sabe-se ainda que o início da edição de Anacreonte também era um hino (fr. 1 Gent.) 4.
Em nenhum deles, contudo, o poeta se dirigia a Afrodite: Alceu faz hino a Apolo, e
Anacreonte a Ártemis. Mas a edição helenística de Safo se iniciava pelo hino a Afrodite
(fr. 1 V) que, como já bem estudado5, Horácio imita na abertura do quarto livro. Porém,
mais do que segui-la, o poeta latino a inverte: se Safo invoca a deusa, Horácio procura
afastá-la, ainda que não consiga6. Vênus, portanto, presente no início e, como veremos,
também no fim (carm. 4, 15, 32) terá papel importante na construção do livro
horaciano.
Vejamos, então, de modo mais minucioso, o carm. 4, 1:
Intermissa, Venus, diu
rursus bella moues? Parce precor, precor.
Non sum qualis eram bonae
sub regno Cinarae. Desine, dulcium
mater saeua Cupidinum,
circa lustra decem flectere mollibus
iam durum imperiis; abi,
quo blandae iuuenum te reuocant preces.
5
Tempestiuius in domum
Pauli purpureis ales oloribus
comissabere Maximi,
si torrere iecur quaeris idoneum.
Namque et nobilis et decens
et pro sollicitis non tacitus reis
et centum puer artium
late signa feret militiae tuae,
10
15
et, quandoque potentior
3
Para este estudo, re etoà aà ‘.O.á.Mà L e,à Ho a eà Odesà Bookà à a dà theà ále a d ia à Editio à ofà
ál aeus ,àCQ 55, 2005, pp. 542-558.
4
Para tal informação, ver B. Gentili e C. Catenacci (orgs.), I poeti del canone lirico nella Grecia arcaica,
Milano 2010, p. 324.
5
Citamos aqui M. Putnam, Artifices of eternity. Ho a e sàfou thà ookàofàOdes, Ithaca-London 1986, p. 39
ss.;àG.àNag ,à Copiesàa dà odelsài àHo a eàOdesà . àa dà . ,àCW 87, 1994, pp. 415;à‘.àTa a t,à Da
Capo “t u tu eà i à so eà odesà ofà Ho a e ,à i à “.à Ha iso à ed. ,à Homage to Horace. A bimillenary
celebration, Oxford 1995, pp. 32-49: 45 s.; A. Cavarzere, Sul limitare. Il «motto» e la poesia di Orazio,
Bologna 1996, pp. 241-242; P. Fedeli e I. Ciccarelli (comm.), Q. Horatii Flacci, Carmina. Liber IV, Firenze
2008, p. 87. Não elencamos, obviamente, todos os estudiosos que se dedicaram às relações entre o
carm. 4, 1 de Horácio e o fr. 1 V de Safo, mas fizemos seleção dos mais importantes para nossa leitura.
6
“eà “afoà fazà u à
ι ὸςà ὕ ος,à Ho ioà fazà u aà esp ieà deà ἀ ο ο ή.à Pa aà estesà te os,à e à E.à
Fraenkel, Horace, Oxford 1957, p. 410, n. 3, que remete a fontes antigas.
11
Rito e celebração na Antiguidade
largi muneribus riserit aemuli,
Albanos prope te lacus
ponet marmoream sub trabe citrea.
20
Illic plurima naribus
duces tura lyraque et Berecyntia
delectabere tibia
mixtis carminibus non sine fistula;
illic bis pueri die
numen cum teneris uirginibus tuum
laudantes pede candido
in morem Salium ter quatient humum.
25
Me nec femina nec puer
iam nec spes animi credula mutui
nec certare iuuat mero
nec uincire nouis tempora floribus.
30
Sed cur, heu, Ligurine, cur
manat rara meas lacrima per genas?
Cur facunda parum decoro
inter uerba cadit lingua silentio?
Nocturnis ego somniis
iam captum teneo, iam uolucrem sequor
te per gramina Martii
7
Campi, te per aquas, dure, uolubilis .
35
40
Vênus, há muito interrompidas,
8
guerras de novo causas? Poupa-me, te imploro .
Não sou qual era sob o reino
da boa Cínara. Tu cessa de dobrar-me,
cruenta mãe da Cupidez
doce; a mim, próximo dos dez lustros e agora
áspero à tua suave lei;
vai onde as brandas preces dos jovens te chamam.
5
Mais a propósito, na casa
de Paulo Máximo farás festa, de teus
cisnes brilhantes sobre as asas,
se quiseres queimar um peito a ti propício,
pois, nobre e belo, não calado
em favor de acusados inquietos, jovem
de mil talentos, portará
as insígnias de tua milícia bem ao longe,
e quando rir, mais poderoso
que os dons de um generoso rival, sob a viga
de um limoeiro por-te-á,
feita em mármore, perto dos Albanos lagos.
7
8
10
15
20
O texto é da edição de D. R. Shackleton Bailey, Q. Horatius Flaccus Opera, Berlin 2008.
Desfizemos a geminatio do original (precor, precor), que dá idéia de insistência. Tentamos, porém,
o pe sa à o àu à e oà aisàfo teà i plo a àdoà ue,àpo àe e plo,à oga .
12
Rito e celebração na Antiguidade
Ali muitíssimos incensos
sentirás e serás deleitada por versos
mistos à tíbia Berecíntia
e à lira, sem faltar a flauta de Pã; jovens
ali, com tenras moças, duas
vezes por dia, deidade tua enaltecendo,
com brancos pés, a terra vão
sacudir, à maneira dos Sálios, três vezes.
25
A mim nem jovem, nem mulher,
nem esperança crédula numa alma mútua
me agradam mais, nem competir
com vinho, nem com flores novas coroar-me.
Mas, ai!, por quê? Meu Ligurino,
por que por minha face corre rara lágrima?
9
Por que em um tão pouco decoroso
silêncio cai loquaz minha língua, no meio
da fala? Em meus sonhos noturnos,
ora cativo te mantenho, ora por relvas
do Campo Márcio te persigo
10
alado ou por mudáveis águas, ah! cruel .
30
35
40
O livro começa com o particípio passado intermissa, que remete o leitor à
produção lírica precedente em que Vênus o dominava e ele estava sob o reino de
Cínara. A referência à lírica dos três primeiros livros não é apenas genérica, mas textual,
pois o quinto verso (mater saeua Cupidinum) é repetição do primeiro verso do carm. 1,
,à e à ueà oà poeta,à so à do
ioà daà
ue taà
eà daà Cupidez ,à a deà po à Gl e a,à eà
Vênus não lhe permite cantar matéria bélica, não lhe permite cantar nem os Citas nem
o valente Parto (cf. vv. 9-12: In me tota ruens Venus / Cyprum deseruit, nec patitur
Scythas / et uersis animosum equis / Parthum dicere nec quae nihil attinent)11. Assim,
como observa Elisa Romano12, há no carm. 1, 19 o tópos da recusatio, como nos carm.
9
Nossa tradução alterna versos de oito e doze sílabas. O v. 35 do original latino é hipermétrico. Assim,
traduzimos não por um verso de oito sílabas, mas por um de nove. É notável que a sílaba a mais se dá
justamente no verso em que aparece o adjetivo facunda lo uaz à ueà a a te izaà l gua,à ouà seja,à oà
verso mimetiza a loquacidade da língua com a sílaba excedente. Tal efeito já fora ressaltado por M.
Putnam, Op. cit.,à ,à ue,àpo àsuaà ez,à e eteàaà“.àCo
age ,à “o eàHo atia àVaga ies ,à SO 55, 1980,
pp. 59-70: 65-66.
10
Todas as traduções são nossas. Quando não for, indicaremos o tradutor.
11
A referência à matéria bélica parece evidente. Confronte-se ainda com a sétima estrofe do carm. 4, 5,
25-28: quis Parthum paueat, quis gelidum Scythen, / quis Germania quos horrida parturit / fetus,
incolumi Caesar, quis ferae / bellum curet Hiberiae?
12
E. Romano, Q. Orazio Flacco. Le Opere I (le Odi, il Carme secolare, gli Epodi), tomo secondo, Roma
,àp.à
:à Maà uestaà o à àsolta toàl odeàdelà ito oàdell a o e:àlaàte zaàst ofeà o tie eài fattiàu aà
variazione sul tema della recusatio. Poiché è innamorato, il poeta non può dedicarsi alla poesia epica; il
13
Rito e celebração na Antiguidade
1, 6; 2, 12, e 4, 15. Do confronto, estabelecido pelo próprio Horácio, podemos dizer
que, se no primeiro livro o poeta recusa a épica para dedicar-se à lírica erótica, no
início do quarto livro procura recusar a erótica para dedicar-se à lírica encomiástica13
que, segundo Fraenkel14, já se anuncia com a breve descrição de Paulo Fábio Maximo
(vv. 9-20). Portanto, para dedicar-se ao encômio das personagens romanas, suplica
ueà aà
eà ue taàdaàdo e15 Cupidez àoàpoupeàeàseàafasteàdele.
Outra relação que se estabelece entre os carm. 4, 1 e 1, 19 é a menção ao culto
de Vênus. No primeiro, fala-se da estátua feita de mármore por Paulo Fábio Máximo
que será posta perto dos lagos Albanos, onde haverá incenso, versos, música e dança
em honra da divindade (vv. 19-28); no segundo, fala-se de um altar em que há ramos,
taça com vinho e uma vítima imolada para deusa (cf. vv. 13-16: Hic uiuum mihi
caespitem, hic / uerbenas, pueri, ponite turaque / bimi cum patera meri: / mactata
ueniet lenior hostia). No primeiro, a persona loquens está ausente do culto; no
segundo, ela está presente e ordena que os jovens ali deponham os objetos para
honrar Vênus.
Se, como vimos, o livro começa com olhar retrospectivo16, não só voltado para
a produção lírica precedente, mas também para a declaração epistolográfica em que a
persona declara ter abandonado os versos e outros divertimentos, a obra se fecha,
referindo-se novamente a Vênus, com um olhar prospectivo (cf. carm. 4, 15, 32:
progeniem Venus canemus). Assim, a deusa, que o poeta procura no início afastar, na
verdade, estrutura o todo, e passa de deusa do amor, que tenta dominar o poeta, a
deusa geradora dos romanos, que lhes concede a paz, como veremos adiante. É
evidente, pois, que há tentativa de afastá-la, mas o poeta não consegue, como
mostram as duas últimas estrofes do poema de abertura, em que se revela o amor por
heàe ui aleàaàdi eà heàlaà o dizio eàdell i a o atoà àtutt u oà o àlaàs eltaàdellaàpoesiaàd a o eàe,ài à
ge e ale,àli i a .
13
São claramente encomiásticos os carm. 4, 4; 4, 5; 4, 14, e 4, 15, em que há, sobretudo, o elogio de
Augusto.
14
E. Fraenkel, Op. cit.,à p.à
:à Theà po t aità ofà Paulusà Fa iusà Ma i usà isà toà eà theà fi stà i à aà se iesà ofà
si ila ào es,àa dàthisàgalle àofàpo t aitsàisàtheà ostàdisti ti eàele e tàofàtheàfou thà ook .
15
É notável a inserção aqui do adjetivo dulcium (v. 4), que caracteriza Cupidinum (v. 5), criando oximoro.
Além disso, por estarem as duas palavras em final de verso, a terminação -um ecoa de uma para outra,
de um verso a outro. Ainda no início, nos versos seguintes, há a antítese: mollibus (v. 6) e durum (v.7).
16
Para o olhar retrospectivo do livro IV das Odes e a última produção lírica como chave de interpretação
pa aà osà t sà li osà l i osà p e ede tes,à e à á.à Cu hia elli,à Laà te pestaà eà ilà dioà fo eà edito ialià ei
Carmina diàO azio ,àDictynna 3, 2006, pp. 73-136: 126-128. O artigo é fundamental ainda para o estudo
dos deuses e a organização dos livros em Horácio.
14
Rito e celebração na Antiguidade
Ligurino (vv. 33-40), e as odes em que a matéria erótica se faz presente: carm. 4, 10; 4,
11, e 4, 1317.
Melpômene, musa do início e do fim
Na leitura do livro, o próximo poema dirigido a um deus é o carm. 4, 3, em que
o poeta volta a utilizar o quarto asclepiadeu (dístico formado por glicônio seguido de
asclepiadeu menor). O retorno do esquema métrico põe a ode em relação com a
primeira. Se no carm. 4, 1 apersona loquens está próxima dos cinquenta anos (cf. v. 6:
circa lustra decem ...), agora o poeta, dirigindo-se a Melpômene, não só a louva por lhe
ter permitido estar entre os vates (cf. vv. 13-15: Romae, principis urbium, / dignatur
suboles inter amabilis / uatum ponere me choros), mas por tê-lo visto, ao nascer, com
olhar benevolente (cf. vv. 1-2; 10-12: Quem tu, Melpomene, semel / nascentem placido
lumine uideris [...] / sed quae Tibur aquae fertile praefluunt /et spissae nemorum
comae / fingent Aeolio carmine nobilem). Assim, passamos do momento presente
(carm. 4, 1) às origens poéticas, ao nascimento presidido por Melpômene (carm. 4, 3),
que o acompanhará por toda a vida.
Além da relação interna no quarto livro das Odes, o carm. 4, 3, assim como o
carm. 4, 1, nos recorda poemas da produção lírica precedente. Já bem explorada pela
crítica18, a aproximação mais evidente é com o carm. 3, 30: os dois poemas são
dirigidos a Melpômene (cf. 4, 3, 1: Quem tu, Melpomene, semel; 3, 30, 16: lauro cinge
uolens, Melpomene, comam); em ambos menciona-se o Capitólio (cf. 4, 3, 9: ostendet
Capitolio; 3, 30, 8: crescam laude recens, dum Capitolium); nas duas odes há referência
aos modelos eólicos (cf. 4, 3, 12: fingent Aeolio carmine nobilem; 3, 30, 13: princeps
Aeolium carmen ad Italos). Portanto, Pasquali19 disse com precisão que Horácio cita a
si mesmo neste poema, que é não só elogio à Musa e à poesia, mas também ao
próprio poeta; elogio a si mesmo que já fizera no carm. 3, 30. Porém, aqui, no carm. 4,
17
Ressalte-se, porém, que a matéria erótica no quarto livro sempre é vista pela perspectiva de um poeta
que se coloca logo no início como velho. São exemplos evidentes o carm. 4, 10, dirigido a Ligurino, em
que o poeta lembra ao destinatário que também vai envelhecer, e o carm. 4, 13, dirigido à velha Lice,
que quer parecer jovem, mas Vênus há muito tempo se afastou dela.
18
E. Fraenkel, Op. cit., pp. 407-408; E. Romano, Op. cit., p. 861; M. Putnam, Op. cit., p. 74, e E. Nogueira,
A lírica laudatória no livro quarto das Odes de Horácio, Diss., São Paulo 2006, pp. 47-48.
19
G. Pasquali, Orazio lirico, Firenze 1920, pp. 145-146.
15
Rito e celebração na Antiguidade
3, recorda o nascimento e faz Melpômene, com seu olhar plácido20, figurar no primeiro
verso; lá, no carm. 3, 30, menciona a morte, que conseguirá evitar por meio da poesia,
e faz Melpômene, com a coroa de louros, figurar no último verso.
Sem mencionar outras alusões a odes dos três primeiros livros, importa dizer
que, depois de procurar afastar Vênus da nova recolha lírica, quase censurando-a por
tentar dominá-lo, já velho, Melpômene é a primeira deusa digna de louvor, que, como
vimos, estabelece também a relação entre os carmina precedentes e os atuais. Porém,
se a menção a Vênus, de certa forma negativa, indicia afastamento, sobretudo, da
matéria das Odes I, o retorno de Melpômene, em chave laudatória, sugere,
principalmente, aproximação da matéria das Odes III. Se é correto dizer que o quarto
livro é mais elevado do que os outros, é justo também afirmar que, entre os três
primeiros, há diferença de um para outro. Se o primeiro começa com constante
variação de metros e o terceiro se inicia sem variação métrica, o segundo, uma espécie
de meio-termo entre dois extremos21, abre com alternância de estrofes alcaicas e
sáficas. Mais do que isso, se o primeiro se conclui com a ação de beber (cf. carm. 1, 38,
8: uite bibentem) e com louvor da simplicidade (cf. carm. 1, 38, 5: simplici myrto nihil
adlabores ,à oà segu doà oà ifo
eà ate à fe haà oà li oà o à u aà não tênue22 asa (cf.
carm. 2, 20, 1-3: Non usitata nec tenui ferar / penna biformis per liquidum aethera /
uates), anunciando já o monumentum do carm. 3, 30. Se, por fim, o primeiro finaliza
com ódio ao luxo pérsico, em oposição à simplicidade (cf. carm. 1, 38, 1: Persicos odi,
puer, apparatus), o terceiro começa com sequência de longos poemas23 e com ódio do
vulgo profano (cf. carm. 3, 1, 1: Odi profanum uulgus et arceo). Portanto, se, como
dissemos, Vênus em 4, 1 representa a matéria erótica, mais humilde, que se deseja
20
É notável que, embora mencione explicitamente os modelos eólicos (Alceu e Safo), o poeta imite
Calímaco, poeta helenístico, que fala do olhar benévolo das Musas; olhar que, se recebido quando
menino, não o abandona quando em cãs (Aetia, fr. 1, 37-38 = epigr.à à Pf.:à ο σαιà ά ,à σο ςà ἴ ο à
α ιà αῖ αςà/ ὴ ο ῷ,à ο ιοὺςàοὐ àἀ έθ οàφί ο ς .àáài age ,àpo
,àj àest àe àHes odoà theog.
81-84:
ι αà ι ήσ σιàΔιὸςà ο αιà
ά οιο,à/ ι ό ό à 'à ἰσί σιà ιο φέ àβασι ή ,à/à ο ὲ à
ἐ ὶ ώσσῃ
ὴ à ύο σι à ἐέ σ ,à / ο 'à ἔ 'à ἐ à σ ό α οςà ῖ ί ι α .à Pa aà oà o f o toà o à
Horácio, ver M. Putnam, Op. cit. p. 72. Vale ressaltar ainda que o poeta latino, pela citação a si mesmo,
substitui as Musas de Calímaco e Hesíodo por Melpômene.
21
Não parece coincidência que no carm.à ,à ,à etadeà doà segu doà li o,à hajaà aà e p ess oà edia iaà
u ea à .à :àáu ea à uis uisà edio itate .
22
Acrescente-se que no programático carm. 1, 6 o poeta se define como tenuis (cf. v. 9: conamur,
tenues grandia, dum pudor), termo técnico em poesia, e, portanto, muito significativo dizer-seà
oà
t ue .
23
São os carm.à ,à ;à ,à ;à ,à ;à ,à ;à ,à ,àeà ,à ,à o he idosà o oà odesà o a as .
16
Rito e celebração na Antiguidade
afastar, com citação do primeiro livro (carm. 1, 19, 1), Melpômene, em 4, 3,
transformando o poeta em cisne (cf. vv. 19-20: o mutis quoque piscibus / donatura
cycni, si libeat, sonum), ave de Apolo que representa a elevação pindárica, mencionada
na ode precedente (cf. carm. 4, 2, 25: multa Dircaeum leuat aura cycnum), relaciona-se
com o terceiro livro, mais sublime, em que a Musa, por fim, recebe ordem de coroar o
poeta com louro.
Louvor ao divino Augusto
Feita a retrospectiva da vida poética em odes dirigidas a duas deusas, Vênus e
Melpômene, no mesmo metro (o quarto asclepiadeu), Horácio, então, faz encômio a
Druso (carm. 4, 4) e a Augusto (carm. 4, 5). Embora este poema se concentre nos
elogios a deuses, vale assinalar, antes de passarmos ao próximo hino do quarto livro,
dedicado a Apolo (carm. 4, 6), que Augusto, guardião da raça de Rômulo, é de origem
divina (carm. 4, 5, 1-2: Diuis orte bonis, optime Romulae / custos gentis), e já é
cultuado como foram Castor e Hércules (carm. 4, 5, 33-36: te multa prece, te
prosequitur mero / defuso pateris, et Laribus tuum / miscent numen, uti Graecia
Castoris / et magni memor Herculis). Augusto, como não poderia deixar de ser, tem
lugar junto aos deuses neste último livro lírico, louvado não só nos carm. 4, 4 e 4, 5,
mas também nos carm. 4, 2; 4, 14, e 4, 15.
Na leitura sucessiva dos poemas24, é importante destacar como Augusto é
associado a Apolo, deus louvado no carm. 4, 6. O primeiro poema dirigido ao
imperador é a ode imediatamente anterior, carm. 4, 5, que se abre com a origem
divina do bonus dux e o pedido de retorno à pátria, trazendo de novo luz aos romanos,
na tópica helenística de identificação do soberano com o sol25 (vv. 1-8):
Diuis orte bonis, optime Romulae
custos gentis, abes iam nimium diu;
maturum reditum pollicitus patrum
24
Para a importância da leitura sucessiva dos poemas, em que é fundamental, para o entendimento de
u ,àaàleitu aàdoàseuàa te ede teàeàdoàseuàsu se ue te,à e àJ.àE.àG.à)etzel,à Ho a e sà Liber Sermonum:
Theàst u tu eàofàá iguit ,àArethusa 13, 1980, pp. 59-77. Embora o artigo se concentre no estudo das
sátiras, o método vale para leitura de toda obra horaciana. Para retomada do artigo de Zetzel, ver K.
Freudenburg, The walking muse, Princeton 1993, pp. 198-211.
25
Para a tópica e louvor de Augusto como deus antes do culto oficial, ver G. Pasquali, Op. cit., pp. 183 ss.
17
Rito e celebração na Antiguidade
sancto concilio, redi.
lucem redde tuae, dux bone, patriae.
instar ueris enim uultus ubi tuus
affulsit populo, gratior it dies
et soles melius nitent.
5
De deuses bons nascido, da raça romúlea
ótimo guardião, já estás há muito ausente;
tu prometeste breve retorno ao conselho
sagrado dos padres, retorna.
A luz, bom chefe, faz tornar à tua pátria.
Pois, desde que teu vulto, qual a primavera,
ao povo fulgurou, mais grato vai o dia
e reluzem melhor os sóis.
5
O retorno (reditus), enfatizado pela figura etimológica dada pelo verbo (redire)
que conclui a primeira estrofe, é não só de Augusto, mas também da luz que ele traz26.
Aqui, entendemos que, além da tópica helenística da identificação do imperador com
oàsol,à o oàj à essalta os,àh àta
àasso iaç oà o àFe oà
οῖβος 27, deus radiante
(por vezes identificado com o sol) louvado no poema seguinte (carm. 4, 6), que, como
veremos, é responsável tanto pela fundação de Roma como pelo louvor da Vrbs e dos
romanos. Portanto, não é sem razão que Putnam28 assinale o eco de Diuisorte bonis,
início do encômio a Augusto (carm. 4, 5, 1) no Diue, início do hino a Apolo (carm. 4, 6,
1). E assim, Horácio canta diuos puerosque deorum, hinos e encômios, espécies líricas
elevadas, que caracterizam a última empreitada lírica do poeta.
Apolo, deus de Roma e da Poesia
No hino a Apolo, há claramente duas partes: a primeira (vv. 1-24), em que o
poeta se dirige ao deus como vingador e há uma longa digressão sobre Aquiles (vv. 524), e a segunda (vv. 25-44), em que se dirige a Febo como deus da poesia, reconhece
seu débito com a divindade e, por fim, muda bruscamente de destinatário: volta-se a
moços e moças de um coro (cf. v. 31: uirginum primae puerique claris). Na estrofe final
26
Como nota E. Fraenkel, Op. cit., p. 442, a conclusão com redi, com a idéia de retorno, repercute no
primeiro verso da estrofe seguinte com redde.
27
É ainda mais relevante esta identificação por ser assim mencionado o deus no hino seguinte (carm. 4,
6, 26: Phoebe, qui Xantho lauis amne crinis).
28
M. Putnam, Op. cit., p. 117.
18
Rito e celebração na Antiguidade
(vv. 41-44) termina, então, com a construção da fala de uma das moças do coro, em
época posterior, já casada, que reconhece a arte do poeta que compôs poema grato
aos deuses. Vejamos, então, as partes e como o deus atua no poema e no livro. Eis a
primeira parte (vv. 1-24):
Diue, quem proles Niobaea magnae
uindicem linguae Tityosque raptor
sensit et Troiae prope victor altae
Pthius Achilles,
ceteris maior, tibi miles inpar,
filius quamuis Thetidis marinae
Dardanas turris quateret tremenda
cuspide pugnax –
5
ille, mordaci uelut icta ferro
pinus aut impulsa cupressus Euro,
procidit late posuitque collum in
puluere Teucro.
ille non inclusus equo Mineruae
sacra mentito male feriatos
Troas et laetam Priami choreis
falleret aulam,
10
15
sed palam captis grauis, heu nefas, heu
nescios fari pueros Achiuis
ureret flammis, etiam latentem
matris in aluo,
20
ni tuis flexus Venerisque gratae
uocibus diuum pater annuisset
rebus Aeneae potiore ductos
alite muros
Ó deus, a quem a Niobéia prole
da audace língua vingador sentira,
e o raptor Tício e o Ftio Aquiles, quase
vencedor de alta Tróia,
mor que os outros, soldado a ti somenos,
posto que filho da marinha Tétis,
Dárdanas torres com a tremenda lança
guerreiro combatesse.
Ele, qual pinho que o mordace ferro
fere ou cipreste de Euros derribado,
ao largo cai, e em Teucro campo o colo
reclina; ele encerrado
no cavalo falaz, que sacrifícios
finge a Minerva, não enganaria
os imprudentes Teucros e de Príamo
o paço em danças ledo,
19
5
10
15
Rito e celebração na Antiguidade
mas, ai!, às claras aos cativos fero
queimaria, ó horror!, com as Gregas chamas
os filhos infantis, e os inda ocultos
nas maternais entranhas,
20
se dos deuses o pai, cedendo aos rogos
de Vênus grata e aos teus, não concedesse
a Enéias os muros levantados
29
com mais feliz auspício.
Como já observamos, depois de mostrar o deus como vingador da prole de
Níobe, de Tício e de Aquiles, faz longa digressão sobre o maior dos aqueus. Aquiles,
porém, não é maior do que Febo, embora seja filho de Tétis. O deus o matou com a
flecha pela mão de Páris. Depois de ter narrado o que aconteceu (vv. 5-8), passa o
poeta a descrever o que teria ocorrido, se ele não tivesse sido morto: Aquiles, por seu
caráter, jamais atacaria os troianos de surpresa, no momento em que dançavam,
alegres (vv. 9-16); Aquiles não pouparia ninguém, nem crianças incapazes de falar,
nem mesmo aquelas que ainda estivessem no ventre materno (vv. 17-20), ou seja, se
Aquiles tivesse entrado em Tróia, nem mesmo Enéias teria sobrevivido. O troiano só
conseguiu escapar, porque o maior dos aqueus não entrou na cidade e Vênus
intercedeu junto a Júpiter que, vencido pelos rogos da filha, lhe promete a fundação
da nova Tróia, Roma30 (vv. 21-24). Portanto, mais do que enfatizar o aspecto vingador
de Febo, parece-nos que o poeta mostra a importância do deus para a fundação da
Vrbs. Neste sentido, Febo merece ser louvado, é digno de um hino do tocador da lira
romana (cf. carm. 4, 3, 23: Romanae fidicen31 lyrae).
Por esta razão se opera a passagem do deus punidor e fundador do início da
odeàaoàdeusà ο σα έ ς,àguia das Musas, que é deus da poesia (vv. 25-30):
doctor argutae fidicen Thaliae,
Phoebe, qui Xantho lauis amne crinis,
Dauniae defende decus Camenae
leuis Agyieu.
spiritum Phoebus mihi, Phoebus artem
carminis, nomenque dedit poetae
29
25
30
Tradução de Elpino Duriense in A lírica de Q. Horácio Flaco, poeta romano, Lisboa 1807.
Para esta mudança, de Tróia a Roma, ver E. Fraenkel, Op. cit., pp. 402-403.
31
Veja que é a mesma palavra que aparecerá para identificar o deus no carm. 4, 6, que citamos logo
abaixo.
30
20
Rito e celebração na Antiguidade
Citaredo, que ensinas a canora
Talia, ó Febo, que no Xanto lavas
a melena, ó imberbe Agieu, defende
da Dâunia Musa a honra.
Fe oà eàdeuàaà i àesp ito;àFe o,
32
do verso a arte e o nome de poeta.
25
30
Louva-se Apolo, porque é deus que colabora para fundação de Roma, mas o
louvor é feito por meio da poesia e, portanto, o deus que a preside também merece
ser elogiado. Assim, há duplo louvor a Febo, como deus protetor dos troianos /
romanos e deus da ars carminis. Porém, tal hino é realizado por um poeta, e é justo
também que ele seja louvado. Ora, Horácio faz o próprio elogio por meio de uma
corista, em tempo futuro, já casada, que declara ter sido dócil aos modos do vate, e
assim fecha33 o àaàσφ α ίς,àda do ao carm. 4, 6 caráter conclusivo (vv. 41-44):
uptaàia àdi esà egoàdisàa i u ,
saeculo festas referente luces,
reddidi carmen, docilis modorum
uatisàHo ati.
Dirás tu já casada:
ua doàoàs uloàt agaàosàfestosàdias,
dei carme grato aos deuses, aprendendo
34
doà ateàHo ioàosà et os.
O hino, portanto, mais do que elogiar o deus, elogia o poeta que celebra os
deuses, Roma e os romanos, a poesia e o poeta35. Porém, deixa claro que quem lhe
deu o espírito (spiritus), a arte do canto (ars carminis) e o nome de poeta (nomen
poetae) foi Febo, de modo que é esse o deus que, no limite do livro, volta a
32
Tadução de Elpino Duriense.
De modo semelhante, o poeta assim conclui o epod. 16, 66: piis secunda uate me datur fuga. Para a
o lus oàdesteàepodo,à e àá.àCa a ze e,à Vate me. L a iguoàsigilloàdell EpodoàXVI , Aevum Antiquum
7, 1994, pp. 171,àeàá.àCu hia elli,à E osàeàgia o.àForme editoriali negli Epodi diàO azio ,àMD 60,
2008, pp. 69-104: 98-99.
34
Tradução de Elpino Duriense. Para estudo do metro desta ode (estrofe sáfica), o mesmo do Carmen
saeculare, e possível entendimento da conclusão com a fala da corista, ver o recente trabalho de L.
Morgan. Musa Pedestris, Metre and meaning in Roman verse, Oxford 2010, pp. 258-260.
35
Para conclusão semelhante, ver E. Nogueira, Op. cit., pp. 69-75. Lembremos ainda que o louvor à
poesia que vence a morte e tudo eterniza é tema fundamental do livro, explorado, sobretudo nos carm.
4, 8 e 4, 9. Destaque-se que o carm. 4, 8 ocupa posição importante, o centro do livro, e traz de volta o
asclepiadeu menor, metro usado apenas nos carm. 1, 1 e 3, 30, início e fim da produção lírica
precedente.
33
21
Rito e celebração na Antiguidade
comparecer e determinar o que deve o vate cantar. Se aqui o poeta se dirige a Apolo,
no fim o deus se dirige a Horácio.
Ultrapassar limites: Apolo e Vênus
Antes, porém, de chegar novamente a Febo do carm. 4, 15, devemos voltar à
ode precedente. Ao concluir o carm. 4, 14, dedicado, sobretudo, a celebrar as façanhas
de Tibério, o poeta faz elogio da paz e, por assim dizer, depõe as armas (cf. v. 52:
compositis uenerantur armis). Ora, no poema seguinte, carm. 4, 15, o poeta deseja,
como bem se sabe, cantar as armas (cf. carm. 4, 15, 1-2: ... uolentem proelia me loqui /
uictas e urbis ...), mas Febo o censura e o faz cantar a Pax Augusta. Além desta
transição do carm. 4, 14 ao 4, 15, ambos escritos em estrofe alcaica, no último verso
do primeiro alude-se à deusa que aparece no último verso do segundo36: Vênus (cf.
carm. 4, 14, 52: compositisVENERantur armIS; carm. 4, 15, 32: progeniem Veneris
canemus). Daí, se lembrarmos do início do livro, veremos que o poeta estabelece, com
a deusa, os limites de sua última obra lírica: Vênus é a segunda palavra da ode de
abertura (cf. carm. 4, 1, 1: Intermissa, Venus, diu) e a penúltima palavra da ode de
conclusão (cf. carm. 4, 15, 32: progeniem Veneris canemus). Porém, a Vênus inicial é
aquela das guerras eróticas e a final é a geradora dos romanos, a alma Vênus (cf. carm.
4, 15, 31-32: ... almae / progeniem Veneris ...), que nos remete ao início do De rerum
natura de Lucrécio37 (cf. 1, 1-2: Aeneadum genetrix, hominum diuomque uoluptas, /
alma Venus ...).
Deixemos por ora Vênus e voltemos atenção novamente a Febo que, desta vez,
mais que objeto do canto, é personagem que atua, que decide a matéria desta ode.
Vejamos o carm. 4, 15 na íntegra:
Phoebus uolentem proelia me loqui
36
Para outra aproximação horaciana de uenerantur e Veneris, citamos ainda o Carmen saeculare, vv. 4950: quaeque uos bobus uenerantur albis / clarus Anchisae Venerisque sanguis, o que reforça ainda mais
a alusão aVênus no carm. 4, 14, 52, poema que termina com elogio da paz, tema da ode seguinte. Para a
passagem do Carmen saeculare, ver A. Barchiesi, The uniqueness of the Carmen saeculare and its
tradition, in T. Woodman & D. Feeney, Traditions and contexts in the poetry of Horace, Cambridge 2002,
pp. 107-123: 109-110; para a parte final dos carm. 4, 14 e 4, 15, ver M. Putnam, Op. cit., p. 295.
37
Para o confronto das passagens de Lucrécio e Horácio, ver M. Putnam, Op. cit., pp. 295 ss., e A.
Cucchiarelli, Op. cit. 2006, p. 130.
22
Rito e celebração na Antiguidade
uictas et urbis increpuit lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
uela darem. Tua, Caesar, aetas
fruges et agris rettulit uberes,
et signa nostro restituit Ioui
derepta Parthorum superbis
postibus et uacuum duellis
Ianum Quirini clausit et ordinem
rectum evaganti frena licentiae
inIecit emouitque culpas
et ueteres reuocauit artis,
per quas Latinum nomen et Italae
creuere uires, famaque et imperi
porrecta maiestas ad ortum
solis ab Hesperio cubili.
5
10
15
Custode rerum Caesare non furor
ciuilis aut uis exiget otium,
non ira, quae procudit ensis
et miseras inimicat urbis.
20
Non qui profundum Danuuium bibunt,
edicta rumpent Iulia, non Getae,
non Seres infidique Persae,
non Tanain prope flumen orti;
nosque et profestis lucibus et sacris
inter iocosi munera Liberi
cum prole matronisque nostris
rite deos prius apprecati
25
uirtute functos more patrum duces
Lydis remixto carmine tibiis
Troiamque et Anchisen et almae
progeniem Veneris canemus.
30
Cantar querendo eu guerras e vencidas
cidades, me increpou com a lira Febo,
que pelo mar Tirreno não soltasse
curtas velas. Aos campos
férteis searas tua idade, ó César,
torna, e os pendões repõe ao nosso Jove,
arrancados dos Partos aos soberbos
portais, e já vazio
de duelos cerrou Quirinal Jano,
enfreou a licença, que vagava
fora da ordem; removeu os crimes;
trouxe as antigas artes,
pelas quais o Latino nome e as Ítalas
forças cresceram, e do Hespério leito
23
5
10
Rito e celebração na Antiguidade
té o berço do sol chegou do Império
a majestade e a fama.
Sob a guarda de César, civil guerra
nem força, ou ira que as espadas forja
e as míseras cidades torna imigas,
fará desejar ócio.
15
20
Nem o que bebe o alto Danúbio os Júlios
editos romperá, nem Getas, Seres,
ou Persas infiéis, nem os que habitam
junto do Tânais rio.
Nós entre os prêmios do jocoso Baco,
nos dias sacros e profanos, tendo
pios com nossos filhos e matronas
primeiro orado aos deuses,
25
o asàL diasàf autasà istu a doàoà e so,
segundo nossos padres, cantaremos
os claros capitães, e Tróia, e Anquises,
38
e a prole de alma Vênus.
30
O poema é claramente dividido em duas partes39: a primeira, com as quatro
estrofes iniciais (vv. 1-16), em que se celebram, com verbos no perfeito (cf. v. 2:
increpuit; v. 5:rettulit; v. 6: restituit; v. 9: clausit; v. 11: iniecit e emouit; v. 12: reuocauit;
v. 14: creuere; v. 15: porrecta est) o retorno da paz e a restauração dos costumes; a
segunda, com outras quatro estrofes (vv. 17-32), em que se celebra, com verbos no
futuro (cf. v. 18: exiget; v. 22: rumpent; v. 32: canemus) a paz na vida presente e futura
de Roma.
Ora, este louvor à paz, à Pax Augusta, é, por assim dizer, ordenado por Febo,
deus com que se identifica o imperador, já no carm. 4, 5, como assinalamos acima.
Além disso, por uma série de confrontos lexicais e pela utilização do mesmo metro, a
estrofe alcaica, os carm. 4, 5 e 4, 15 se relacionam de maneira clara, como encômios a
Augusto. Reforça ainda esta relação a colocação, imediatamente anterior a essas odes
dirigidas ao bonus dux e custos rerum, de duas outras odes encomiásticas para os
enteados40: o carm. 4, 4 a Druso e 4, 14 a Tibério41.
38
Tradução de Elpino Duriense.
Seguimos aqui E. Romano, Op. cit., p. 921, e P. Fedeli e I. Ciccarelli, Op. cit., pp. 601.
40
Ressalte-se que, embora haja louvor aos enteados, não se deixa de elogiar também Augusto.
41
Para este paralelo, ver E. Romano, Op. cit., p. 921.
39
24
Rito e celebração na Antiguidade
Assim, se se quer um altar poético42 dedicado à Pax Augusta,à gue asà eà
idadesà e idas à
oà pode à se à a tadas,à o oà ue iaà oà ate.à ápolo,à e t o,à
repreende o poeta com sua lira e, logo na primeira estrofe, temos uma recusatio43 da
épica, gênero que a ta,à osà dize esà doà p p ioà Ho
io,à asà t istesà gue as à f.à ars
72-73: Res gestae regumque ducumque et tristia bella / quo scribi possent numero,
monstrauit Homerus). Portanto, o poeta não deve lançar suas pequenas velas pelo mar
Tirreno, ou seja, o encômio, ainda que seja espécie lírica elevada, é humilde em
confronto com a sublime épica44.
Os romanos, então, celebrarão a prole da alma Vênus: Enéias e sua
descendência, incluindo, obviamente, Augusto, pertencente à gens Iulia. Assim, se o
poeta inicia o último livro com um olhar retrospectivo, com o particípio passado
intermissa 45 , encerra sua obra, seu outro monumentum lírico, com um olhar
prospectivo, com o futuro canemus. Diferentemente da conclusão do carm. 3, 30 em
que, após descrever o caráter perene de sua poesia, deseja a coroa de louros dada
pela própria Melpômene, aqui, no carm. 4, 15, a conclusão, ainda que encerre o livro,
não o conclui, mas aponta para um cantar futuro; canto de celebração das origens de
Roma à idade de Augusto que já se deu nesta obra, mas que se perpetuará46,
42
Para a relação do carm. 4, 15 com monumentos romanos em honra de Augusto, em especial com a
Ara Pacis Augustae, ver M. Putnam, Op. cit., pp. 327-339. Para a importância de Apolo no monumento,
ver M. Beard. Gliàspaziàdegliàdei,àleàfeste ,ài àá.àGia di a,àRoma Antica, Bari 2000, pp. 35-56. Para uso
das imagens por Augusto, remetemos ao célebre estudo de P. Zanker, Augusto e il potere delle
immagini, Torino 1989, e P. Martins, Imagem e poder: considerações sobre a representação de Otávio
Augusto, São Paulo, 2012 [no prelo].
43
Para estudo das fontes de Horácio (Calímaco, fr. 1, 21 ss. Pf.; Virgílio, ecl. 6, 3 ss.; Propércio 3, 3, 1 ss.),
ver E. Fraenkel, Op. cit., p. 449; M. Putnam, Op. cit., pp. 265-271; A. Cavarzere Op. cit. 1996, pp. 252253; P. Fedeli e I. Ciccarelli, Op. cit., pp. 601-609. Em Horácio, além do carm. 4, 15, há recusatio nos
carm. 1, 6; 1, 19; 2, 12. Acrescentamos também que, diferentemente de seus predecessores, Horácio
não usa o hexâmetro para a recusatio, metro usado pelos épicos desde Homero, como está claro na ars,
citada acima. É diferença importante, já que os outros simulam o compor épica pelo metro e pela
matéria, enquanto Horácio só pela matéria.
44
Ou ainda, como quer Pseudo-Acrão (Keller, 373, 6-7), uma matéria grande não deve ser encetada por
um engenho não adequado (magnam materiam non sufficienti ingenio ... non debere committi).
45
O verbo indica justamente a interrupção entre a primeira e a última produção lírica pela publicação do
primeiro livro de Epístolas.
46
De acordo com E. Romano, Op. cit., p. 925, seguida depois por outros, este final é homenagem
também a Virgílio: No à à statoà a asta zaà otatoà he,à o eà i à ,à à laà recusatio della poesia epica
conteneva una raffinata citazione omerica (...), così in questa recusatio finale, che fa da suggello alla sua
p oduzio eà li i a,à O azio,à e t eà p e deà leà dista zeà dall epi a,à non può fare a meno di ricordare il
poe aà diàVi gilio.àEàseàall i izioàdellaà a olta,ài à ,à ,àlaàg a deàepi aàe aà uellaàdiàO e o,àoggettoàdià
citazione per tecnica allusiva, qua la nuova grande epica è quella di Virgilio, i nuovi eroi sono i Troiani,
Eneaà eà laà suaà dis e de za,à o p esoà áugusto.à L ulti aà odeà dià O azioà sià hiudeà s à o à u aà lodeà pe à ilà
25
Rito e celebração na Antiguidade
ultrapassando assim os limites do livro. Em outras palavras, a conclusão poderia fazer
tudo, projetar no futuro a perenidade da poesia, mas não poderia concluir.
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27
iguit ,àArethusa 13,
Rito e celebração na Antiguidade
O LECTISTERNIUM E A PLACATIO DEORUM: UM ESTUDO
DE CASO EM TITO LÍVIO, AB URBE CONDITA, 22, 9-10.1
Claudia Beltrão da Rosa (UNIRIO)
terra mouit; in fanis publicis, ubi lectisternium erat, deorum capita,
quae in lectis erant, auerterunt se, lanxque cum integumentis, quae
Ioui apposita fuit, decidit de mensa. oleas quoque praegustasse
mures in prodigium uersum est. ad ea expianda nihil ultra, quam ut
ludi instaurarentur, actum est (Tito Lívio. Ab urbe condita, 40, 59,7)
Há alguns anos, estudos sobre os discursos e as práticas religiosas romanas vêm
revelando aspectos antes insuspeitados da sociedade romana, especialmente no
pe odoà t adi io al e teà i tituladoà epu li a o ,à eà aà eligi oà o a aà de o st ouà
ser um objeto de pesquisa de fundamental importância para a compreensão da
experiência romana no tempo e no espaço. Mas não apenas no que tange à religião,
como também em relação a outras manifestações culturais da antiguidade romana, é
preciso ultrapassar o enquadramento do pensamento judaico-cristão. É certo que
muitos estudos nos habituaram, nos últimos anos, à cautela contra qualquer pretensão
de objetividade radical na pesquisa histórica e à observação da alteridade.
Acreditamos, contudo, que a reiteração da necessidade da observação das categorias
discursivas, religiosas e ideológicas romanas merece ser feita, posto que o próprio
desenvolvimento dos estudos sobre as práticas e os discursos religiosos romanos ainda
su geàple oàdeàideiasàfu dadasàe à p e issasà istia iza tes à f.àBEá‘D,àC‘áWFO‘D,à
1985), que agem como pano de fundo de boa parte da pesquisa sobre a religião
romana, analisando-a a partir de categorias religiosas judaico-cristãs2.
Desenvolvemos atualmente as atividades do projeto de pesquisa intitulado
Religio romana: uma análise das instituições religiosas romanas em discursos tardorepublicanos, e nosso recorte temático é somente uma seção mínima do sistema
1
Este artigo retoma as ideias centrais da palestra apresentada na II Jornada de Estudos Clássicos da
Universidade Federal do Espírito Santo, em 2011. Agradecemos o convite da Prof.a Dr.a Leni Ribeiro
Leite e do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva por terem-nos proporcionado tanto o diálogo e a troca
intelectual durante a realização da Jornada quanto a publicação dos resultados do evento.
2
cf. as discussões do tema em SCHEID, 2010.
28
Rito e celebração na Antiguidade
religioso romano: os sacra publica, que podemos definir, grosso modo, como o
discurso e as práti asà eligiosasà ofi iais à daà idadeà deà ‘o a3. Acreditamos que esta
eligi oà ofi ial àe aàu àele e toà e t alàeà u ialàdosàsiste asà eligiosoàeài stitu io alà
romanos como um todo. Com isso, buscamos entrever algo da atmosfera religiosa na
urbs e do seu papel como fundamento de sua ordem e de sua coesão.
Voltaremos nosso olhar, neste artigo, para um discurso sobre uma prática
religiosa em particular, o lectisternium4, forma de banquete ritual que incluía as
divindades como comensais5 inserido num conjunto de ritos expiatórios – piacula – no
contexto da II Guerra Púnica, tendo como premissa a ideia de que a religio romana não
era uma miscelânea de cultos e práticas, mas um sistema religioso integrado, e que
sua lógica, suas práticas e seu desenvolvimento ainda estão por ser explorados,
observando-se analogias entre as ações e decisões da esfera religiosa e as da esfera
sociopolítica como um todo. Se a religião era parte integrante da sociedade romana, a
pesquisa sobre os fenômenos religiosos precisa, portanto, considera-los no contexto
específico da cultura romana, e não tomá-los como acidentes isolados.
Para o tema em questão, Tito Lívio é a nossa principal fonte, e rituais e práticas
religiosas ocupam um lugar central na narrativa do Ab urbe condita. O autor, com
frequência, dedica-se a temas religiosos, a notícias de fundações de templos, a rituais,
a registros de prodígios etc. Seu texto veicula imagens de como um romano deveria
cultuar os deuses, tal como era concebido em seu tempo, e o próprio autor chama a
3
Uma pista para a distinção entre sacra publica e sacra priuata é fornecida por Festo: Os ritos públicos
são aqueles realizados a expensas públicas em benefício do povo (...) em contraste com os ritos privados
que são realizados em benefício de indivíduos, das famílias, dos descendentes (Publica sacra, quae
publico sumptu pro populo fiunt quaeque pro montibus pagis curis sacellis; at priuata, quae pro dingulis
hominibus familiis gentibus fiunt. Ed. Linsay, 1930:350). Sacra priuata, como podemos depreender, não
eram apenas os ritos da religio domestica, mas tudo o que não se inseria na definição de publica sacra,
ou seja, os ritos realizados em benefício do povo romano (pro populo), por oficiantes sancionados e
financiados pelo tesouro público, com participação ativa de magistrados e sacerdotes, diante da grande
massa do público assistente, que geralmente participava – no todo ou em parte – do banquete após o
sacrifício e em outras ações, e.g., nas grandes procissões que caracterizavam as supplicationes. A própria
definição de sacrum é reservada para coisas e lugares consagrados oficialmente pelos pontífices (cf.
Gaio. Inst. 2,5; Ulpiano, Dig. I, 8.9.). Podemos assumir que a definição de sacra – ao menos
juridicamente – seguia os mesmos passos que definiam o ritual público, ou seja, um objeto ou lugar que
se tornava sagrado através de um ato ritual específico – a consecratio – que devia ser autorizado pelo
Senado, presidido por sacerdotes e magistrados e promovido com fundos públicos.
4
O nome deste ritual é derivado da expressão latina lectos sternere, indicando a disposição de lecti,
correspondentes aos klinai gregos, nos quais os comensais participavam do banquete deitados.
5
Abordamos o tema do banquete ritual do tipo lectisternia em duas publicações recentes, cf. BELTRÃO,
2012; 2011.
29
Rito e celebração na Antiguidade
atenção para isso em vários momentos6. Tito Lívio escreveu nos últimos anos da
República tardia e nos primeiros tempos do Principado, e é preciso ter cautela no
tratamento de seus textos, pois se referem a eventos ocorridos muitas vezes séculos
antes de sua redação.
Em relação à utilização da documentação literária para o estudo de fenômenos
religiosos do período republicano, invariavelmente tardios, atualmente percebemos
duas tendências da historiografia internacional da religião romana antiga: uma
tendência cética em relação à obtenção de qualquer conhecimento seguro sobre o
período arcaico romano (e.g. RÜPKE, 2009; ANDO, 2009) e uma tendência mais
otimista que se apoia nos estudos da etimologia e do ritual, renovando o interesse
pela releitura das fontes textuais (e.g. NORTH, 1989; SCHEID, 2003)7. Mesmo que
textos como os de Tito Lívio projetem dados e conteúdos religiosos de seu próprio
tempo no passado, acreditamos que a análise da documentação literária, mesmo
tardia, pode ser profícua para o estudo da religião romana8, observando-se que o
registro literário nos apresenta tais rituais num momento tardio de seu
desenvolvimento, ou mesmo em sua recuperação pela restauratio augustana,
ressaltando-se, contudo, que a tradição literária validava novos cultos e práticas
inovadoras com referência a antigas tradições religiosas (cf. NORTH, 1989).
O primeiro lectisternium em Roma de que se tem notícia ocorreu em 399 a.C., e,
no século IV a.C., Roma envolveu-se em guerras com diversos povos do Lácio e de
regiões vizinhas, como os povos samnitas. Interações – belicosas ou não – com outros
povos traziam então grandes transformações sociais e institucionais à urbs, e o
lectisternium de 399 a.C. foi apresentado por Tito Lívio como remedium para uma
peste que dizimava os rebanhos, em meados da guerra contra Veios, que fora
declarada um prodigium pelo Senado (AVC, 5. 13; BELTRÃO, 2012). Os duum uiri sacris
6
Ver, e.g., seu comentário sobre a deuotio de Décio Mus (AVC, 8, 11) e nossos comentários sobre o
supostoà eti is o à u aàp ojeç oà ode a àdeàTitoàL ioàe àBELT‘ÃO,à
.à
7
Ch. Smith, por exemplo, apresenta o ritual das Parentalia, arqueologicamente invisível, mas presente
em textos, apesar de rituais funerários comporem um dos mais significativos elementos dos registros
arqueológicos do Lácio entre 1000 e 500 a.C (SMITH, 2007: 32), além de Tesse Stek ter apontado a
ausência – ao menos aparente – do registro arqueológico sobre os rituais das Compitalia em espaços
rurais (STEK, 2008); suas discussões defendem a importância da documentação textual, cotejada à
análise do registro arqueológico, para a compreensão dos rituais.
8
Esses textos trazem, nitidamente, alguns elementos de fundo arcaico (cf. D. Hal. 7, 70, 2-3: tas archaias
kai topicas historias), que sobreviveram não fossilizados, ou seja, num contexto dinâmico, pois cada
geração reconstituía e ressignificava o ritual e o mito.
30
Rito e celebração na Antiguidade
faciundis9, após consultarem os Livros Sibilinos, recomendaram a introdução de um
tipo inédito de cerimônia na urbs: estátuas (simulacra) de divindades foram exibidas
publicamente como comensais de um banquete10, do qual participaram senadores,
sacerdotes e magistrados e, paralelamente, ocorreram vários ritos de hospitalidade e
partilha em casas particulares, envolvendo toda a urbs num grande movimento que
visava ao restabelecimento das boas relações entre seres divinos e seres humanos, pax
deorum-pax hominum, incluindo práticas religiosas inovadoras e divindades recéminstaladas na urbs11.
Cincolectisternia são mencionados para o século IV a.C., todos vinculados a
dificuldades para Roma. São distintos de, mas associados às supplicationes (SCULLARD,
1981: 21). Segundo T. Lívio, esses lectisternia foram idênticos ao primeiro, de 399 a.C.,
na forma e nas personagens divinas e humanas (AVC, 8, 25,1), e também foram
vinculados a epidemias e a fomes, visando a minimizar as pestilentiae e favorecer o
abastecimento. No século III a.C., contudo, um lectisternium seguiu outra lógica. Não
mais se tratava de uma pestilentia, mas da ameaça cartaginesa, no contexto da Batalha
de Trasímene (AVC. 22, 10, 9). Dessa vez, doze deuses participaram do banquete, nos
quais entrevemos os Dii Consentes: a Tríade Capitolina, Vesta, Vulcano, Marte, Ceres,
Vênus, Apolo, Diana, Mercúrio e Netuno, num espetáculo de potências divinas que
poderiam socorrer os romanos. Neste artigo, observaremos o relato de Tito Lívio sobre
os piacula, em Ab urbe condita, 22, 9-10, buscando ampliar a compreensão deste tipo
de rituais religiosos que promoviam importantes inovações na urbs.
Prodigia e piacula em Ab urbe condita, 22, 9-10.
9
Osà doisà ho e sà pa aà osà sa if ios ,à ol gioà sa e dotalà ueà ati gi à oà ú e oà deà à e
os,à osà
quindecem uiri sacris faciundis, responsáveis pela consulta aos Livros Sibilinos e questões relativas à
introdução de divindades e cultos em Roma (cf. BELTRÃO, 2006: quadro dos principais sacerdócios
públicos romanos).
10
É possível que o ritual tenha sido importado de cidades gregas, nas quais os banquetes rituais são bem
atestados, e Beard, North & Price chamam a atenção para a referência a algumas divindades de origem
grega, como Apolo e Latona, geralmente associadas à proteção contra pestes (BEARD, NORTH, PRICE,
1998, 1: 63 ss; 2: 130). Do mesmo modo, John Scheid depreende que os duum uiri de 399 a.C. foram
inspirados pela tradição grega da teoxenia, incluindo a disposição dos comensais em leitos, aos pares e,
paulatinamente, este ritual foi adotado em festivais e santuários diversos (SCHEID, 1985; cf. tb. FÉVRIER,
2008a).
11
Remetemos à nossa análise do lectisternium de 399 a.C, para o detalhamento das ações religiosas
descritas por Tito Lívio, AVC, 5,13: BELTRÃO, 2012.
31
Rito e celebração na Antiguidade
Podemos definir os prodigia como signos divinos que ocorriam fora do ritual,
de modo não solicitado:
As listas de prodígios transmitidas por Tito Lívio fornecem bons indícios
sobre tais fenômenos e seu papel na religio romana. Desastres naturais,
fomes, pragas, epidemias, eventos meteorológicos incomuns, tempestades
violentas, nascimentos monstruosos, a irrupção de animais selvagens no
espaço urbano etc., dentre os prodigia há pouco do que hoje
consideraríamos milagroso ou sobrenatural. Tais eventos, contudo,
escapavam às possibilidades de previsão humana, ou seja, à ordem
o al à dasà oisasà eà daà ida, necessária à manutenção da comunidade
enquanto tal e, para os romanos, implicavam que algo no mundo estava
e ado ,à oà ueà i ula a à aà u aà uptu aà dasà elaç esà pax deorum-pax
hominum, que garantia a ordem do mundo (BELTRÃO, 2012: 71-72).
Um prodígio, seja de ordem meteorológica, animal ou vegetal, era sempre
funesto, revelando uma ruptura da pax deorum. Trata-se de uma mensagem divina,
desenvolvendo-se não somente uma exegese dos prodígios e ritos expiatórios
específicos (BLOCH, 2002), mas também procedimentos jurídico-religiosos para
esconjurar seus efeitos (FÉVRIER, 2008b). A procuratio prodigiorum tinha, como
primeiro objetivo, expiare (eliminar; expurgar) o perigo e, como segundo,
placaredeorum (apaziguar os deuses), reconciliando os mortais com as divindades,
mediante algumas cerimônias que se constituíam como uma forma de comunicação
entre humanos e divindades. Certamente, essa comunicação era uma troca desigual;
os humanos viam-se sempre em posição de inferioridade (VEYNE, 2000: 12-13).
Observemos o texto de Tito Lívio:
Q. Fábio Máximo era então ditador pela segunda vez. No mesmo dia de sua
entrada na magistratura, convocou o senado e começou discutindo assuntos
religiosos; deixou claro aos senadores que C. Flamínio errou mais por sua
negligência em relação às cerimônias e suas obrigações religiosas do que por
sua imprudência como general, e que os próprios deuses, sustentou,
deveriam ser consultados sobre as medidas necessárias para dirimir sua ira e,
assim, decretou que os decênviros fossem chamados a consultar os Livros
Sibilinos, uma medida até então adotada somente quando os mais
alarmantes portentos eram reportados. Após inspecionarem os Livros do
12
Destino , [os sacerdotes] informaram ao senado que o voto feito a Marte
12
Beard, North & Price chamaram a atenção para o incremento de elementos de origem grega na
religião romana nos séculos IV e III a.C. (1998, v. 1: 63ss); os próprios Livros Sibilinos têm uma suposta
origem grega. A despeito das afirmações de escritores romanos antigos, pesquisas recentes vêm
insistindo na presença de elementos etruscos nos Livros Sibilinos anteriores ao incêndio do templo de
Iuppiter Optimus Maximus no Capitólio, ocorrido em 83 a.C. (invasão de Sila), com a consequente perda
dos oráculos. Em 76 a.C., uma comissão senatorial procurou refazer a coleção de oráculos, e os
XVuirisacris faciundis declararam autêntica uma coleção de livros de Samos, que foram enviados a
32
Rito e celebração na Antiguidade
devido à guerra não fora integralmente realizado, que deveria ser renovado
de modo ampliado e que deveriam ser realizados ludi magni para Júpiter, e
um templo para Vênus Ericina e um para Mens deveriam ser prometidos.
13
14
Um lectisternium e supplicationes deveriam ser feitos, e um uer sacrum
deveria ser dedicado se a guerra fosse bem sucedida e a república
permanecesse como era no início da guerra. O senado, como Fábio estaria
permanentemente ocupado com as necessidades da guerra, com a
aprovação unânime do colégio dos pontífices, designou o pretor M. Emílio
15
para cuidar que tudo fosse feito no tempo certo (AVC, 22, 9) .
Após essas resoluções terem sido tomadas pelo senado, o pretor consultou
o colégio [dos pontífices]; L. Cornélio Lêntulo, o pontifex maximus,
aconselhou que, em primeiro lugar, o povo deveria ser consultado sobre a
questão do uer sacrum, pois este tipo de voto não podia ser realizado sem o
consentimento do povo. (...) Então, um lectisternium foi realizado durante
três dias sob a supervisão dos decênviros dos [livros] sagrados; seis leitos
foram exibidos publicamente, um para Júpiter e Juno, outro para Netuno e
Minerva, o terceiro para Marte e Vênus, o quarto para Apolo e Diana, o
quinto para Vulcano e Vesta, o sexto para Mercúrio e Ceres. Depois foram
prometidos os templos. Q. Fábio Máximo, como ditador, prometeu o templo
de Vênus Ericina, porque fora determinado pelos Livros do Destino que a
promessa deveria ser feita por aquele que possuísse a maior autoridade
(maximum imperium) na cidade. T. Otacílio, como pretor, prometeu o
16
templo de Mens. (AVC, 22, 10) .
‘o a.àEssesà o os àLi osà“i ili osàe a ,àse àdú ida,àg egos,à asàpodeàte àha idoà o espo d iasà
entre os primeiros oráculos e os libri ostentaria (sobre prodígios) e os libri fatales (destino) etruscos: ver
esp. TAKÁCS, 2008: 67-70.
13
As supplicationes, neste caso,inseriam-se nos ritos expiatórios, tratando-se de orações feitas pela
população nos templos e altares, diante das divindades, apresentadas ao público em seus puluinaria
(assentos). Tal rito poderia ocorrer, igualmente, no caso de vitórias e no fim de situações consideradas –
pelo Senado – ameaçadoraspara toda a urbs (e.g., Cícero, Cat. III, 10).
14
Um rito excepcional no contexto dos piacula consistia em a comunidade dedicar as primícias – animais
e vegetais – nascidas entre as Kalendae de março e de abril, do ano seguinte ao voto. No caso desta
proposta de uer sacrum, o voto se restringia a animais.
15
Na íntegra: Q. Fabius Maximus dictator iterum quo die magistratum iniit uocato senatu, ab dis orsus,
cum edocuisset patres plus neglegentia caerimoniarum quam temeritate atque inscitia peccatum a C.
Flaminio consule esse quaeque piacula irae deum essent ipsos deos consulendos esse, peruicit ut, quod
non ferme decernitur nisi cum taetra prodigia nuntiata sunt, decemuiri libros Sibyllinos adire iuberentur.
Qui inspectis fatalibus libris rettulerunt patribus, quod eius belli causa uotum Marti foret, id non rite
factum de integro atque amplius faciundum esse, et Ioui ludos magnos et aedes Veneri Erycinae ac Menti
uouendas esse, et supplicationem lectisterniumque habendum, et uer sacrum uouendum si bellatum
prospere esset resque publica in eodem quo ante bellum fuisset statu permansisset. Senatus, quoniam
Fabium belli cura occupatura esset, M. Aemilium praetorem, ex collegii pontificum sententia omnia ea ut
mature fiant, curare iubet.(LIVY, History of Rome. Books XXI-XXII. B. O. Foster (ed.). Loeb Classical
Library.Harvard University Press, 1929).
16
Na íntegra: His senatus consultis perfectis, L. Cornelius Lentulus pontifex maximus consulente
collegium praetore omnium primum populum consulendum de uere sacro censet: iniussu populi uoueri
non posse. Rogatus in haec uerba populus: "Velitis iubeatisne haec sic fieri? Si res publica populi Romani
Quiritium ad quinquennium proximum, sicut uelim [uou]eamque, salua seruata erit hisce duellis, quod
duellum populo Romano cum Carthaginiensi est quaeque duella cum Gallis sunt qui cis Alpes sunt, tum
donum duit populus Romanus Quiritium quod uer attulerit ex suillo ouillo caprino bouillo grege quaeque
profana erunt Ioui fieri, ex qua die senatus populusque iusserit. Qui faciet, quando uolet quaque lege
uolet facito; quo modo faxit probe factum esto. Si id moritur quod fieri oportebit, profanum esto, neque
scelus esto. Si quis rumpet occidetue insciens, ne fraus esto. Si quis clepsit, ne populo scelus esto neue cui
cleptum erit. Si atro die faxit insciens, probe factum esto. Si nocte siue luce, si seruus siue liber faxit,
33
Rito e celebração na Antiguidade
Um ano antes, em 218 a.C., doze prodígios foram reportados de vários pontos
da Itália, incluindo a Etrúria, o território dos sabinos e o Piceno, a Sardenha e a Sicília.
Nesse ano, um exército romano fora arrasado em Trébia e, no início de 217 a.C., outro
fora aniquilado no Lago Trasímene. Os remedia desse ano incluíram, em Roma, um
nouemdiale sacrum17 em resposta à chuva de pedras no Piceno; uma lustratio urbis18;
um lectisternium, além de sacrifícios a várias divindades. Fora do território urbano,
houve a oferta de 40 libras de ouro a Juno Sospita, doação a cargo das matronas da
elite senatorial romana; uma procissão de sacerdotes e magistrados romanos ao
santuário do Lanuvium 19 (SCHULTZ, 2006), um lectisternium em Caere e uma
supplicatio para Fortuna no mons Algidus. Os romanos, nota bene, não apenas teriam
reconhecido prodigia em solo estrangeiro, mas também que expiações (piacula) teriam
lugar fora do solo romano (cf. ORLIN, 2002).
Após a derrota de Trasímene, Q. Fábio Máximo foi nomeado dictator e,
segundo Tito Lívio, seu primeiro ato foi o de persuadir o senado de que era necessário
apaziguar os deuses, consultando-os por intermédio dos Livros Sibilinos. Essa consulta
é apresentada pelo autor como extraordinária, já que a consulta aos Livros pelos
decem uiri sacris faciundis, sacerdotes responsáveis pela guarda e pela consulta aos
oráculos, ocorria em caso de prodígios, e não após desastres militares. A consulta
resultou em várias demandas: a repetição do juramento a Marte, sob a alegação de
que o primeiro – realizado no início da guerra – não fora feito apropriadamente; a
probe factum esto. Si antidea senatus populusque iusserit fieri ac faxitur, eo populus solutus liber esto".
Eiusdem rei causa ludi magni uoti aeris trecentis triginta tribus milibus, [trecentis triginta tribus] triente,
praeterea bubus Ioui trecentis, multis aliis diuis bubus albis atque ceteris hostiis. Votis rite nuncupatis
supplicatio edicta; supplicatumque iere cum coniugibus ac liberis non urbana multitudo tantum sed
agrestium etiam, quos in aliqua sua fortuna publica quoque contingebat cura. Tum lectisternium per
triduum habitum decemuiris sacrorum curantibus: sex puluinaria in conspectu fuerunt, Ioui ac Iunoni
unum, alterum Neptuno ac Mineruae, tertium Marti ac Veneri, quartum Apollini ac Dianae, quintum
Volcano ac Vestae, sextum Mercurio et Cereri. Tum aedes uotae. Veneri Erycinae aedem Q. Fabius
Maximus dictator uouit, quia ita ex fatalibus libris editum erat ut is uoueret cuius maximum imperium in
ciuitate esset; Menti aedem T. Otacilius praetor uouit.(LIVY, History of Rome. Books XXI-XXII. B. O. Foster
(ed.). Loeb Classical Library. Harvard University Press, 1929).
17
Este ritual era geralmente associado a prodígios meteorológicos, incluindo sacrifícios durante nove
dias.
18
Uma procissão solene e catártica realizada pelos colégios sacerdotais em torno do território urbano;
trata-se, portanto, de um rito expiatório (piaculum) que purificava o solo urbano.
19
Roma assumia, assim, Juno Sospita e o santuário do Lanuvium como parte integrante da religio
romana, ao passo que, ao assumi-los, reforçava os laços com Lanuvium e, por extensão, com outros socii
(SCHULTZ, 2006; ORLIN, 1997, 2010).
34
Rito e celebração na Antiguidade
realização de ludi magni para Júpiter; a dedicação de templos a Vênus Ericina e a Mens;
uma supplicatio; um lectisternium e a promessa de um uer sacrum no caso de Roma
ser vitoriosa20.
A análise da documentação nos permite depreender que os romanos eram
notoriamente abertos a influências externas e incluíam elementos religiosos
estrangeiros como parte de seu próprio sistema religioso, e Eric Orlin observa como
tais inovações afetavam a autodefinição romana (ORLIN, 2002). Explorando a inclusão
de divindades e cultos novos na urbs, correlata às modificações das definições
territoriais na República média (ca. séculos IV e III a.C.), Orlin apresenta conclusões
i te essa tesà so eà aà essig ifi aç oà dasà f o tei asà daà o a idade à f.à t .à O‘LIN,à
2010).
Ao longo de séculos, numerosos cultos, divindades e práticas rituais
encontraram um lugar na urbs – e o exemplo de Hércules no forum Boarium denota
que essas interações religiosas confundem-se com as próprias origens da cidade
(ORLIN, 1997; COARELLI, 1988)21. A inclusão ou a adoção de novas divindades e novos
cultos na urbs vêm sendo vistas à luz da expansão romana, na qual os elementos e
fenômenos religiosos acompanhavam a ampliação do território e a anexação ou
incorporação de novos cidadãos (NORTH, 1989: 9-11). Uma grande dificuldade da
pesquisa, contudo, é que a documentação textual é tardia, não havendo textos que
nos permitam observar detalhes – mesmo individuais ou de um grupo social em
particular – de tais inclusões, no sentido de quais elementos eram importantes ou
determinantes para definir quais cultos, divindades ou grupos humanos seriam ou não
incluídos na urbs. Dispomos de documentos mais abundantes e precisos a partir dos
dois últimos séculos da República, mesmo no que tange à documentação arqueológica.
A inclusão de cultos e de divindades trazia, certamente, dificuldades, e os métodos
pelos quais os romanos incluíam cultos, divindades, rituais e sacerdócios é um rico
campo de pesquisa. Tal processo não era automático, e nem todo culto ou divindade
20
No contexto da II Guerra Púnica, os romanos lançaram mão, em ocasiões diversas, de um grande
a se alà e piat io :à sa if ios,à u à nouemdiale sacrum, lectisternia, supplicationes, promessas de
templos a novas divindades, uma promessa de uer sacrum e, mesmo, um sacrifício humano (cf. Tito
Lívio, AVC, 21, 62; 22, 1, 14-20; 22, 9-10; 22, 57).
21
Atualmente há um relativo consenso entre historiadores da religião romana de que essa abertura
religiosa corresponde a uma abertura política, no sentido da concessão de direitos de cidadania, com ou
sem voto (SCHEID, 2003; 2010; BEARD, NORTH & PRICE, 1998, v.1: 313 ss).
35
Rito e celebração na Antiguidade
era integrado, bem como nem toda comunidade era admitida à cidadania. Através do
relato de Tito Lívio sobre as atividades religiosas dos piacula, percebemos que o
sucesso de Aníbal fora, então, tomado como uma quebra da pax deorum-pax hominum,
à qual os romanos atribuíam a existência e o sucesso da urbs, e depreendemos que a
manutenção da unidade pró-romana na Itália era, então, algo vital para Roma.
O lectisternium dos Doze Deuses
Observemos agora alguns aspectos do lectisternium em particular: em primeiro
lugar, a ligação entre o sacrifício e o banquete22. Há uma conexão reconhecida, mas
não necessária, entre o sacrifício e o banquete (RÜPKE, 2009; SCHEID, 2005; 1985;
BELTRÃO, 2011; 2012), e os templos costumavam ter cozinhas (culinae) e tricliniae
anexos para a preparação do banquete 23 . Jörg Rüpke pergunta, em relação ao
lectisternium, quem é o anfitrião e quem é o hóspede, e argumenta:
De Plauto a Marcial, de 200 a.C. a 100 d.C, um convite divino feito a um ser
hu a oà sig ifi a aà
o te à Plauto,à Rudens, 362; Marcial, 9, 91). A
expressão era irônica. Quando seres humanos convidavam os deuses, a
i te ç oàge al e teàe aàdeà ueàaàdi i dadeà iesseà o a àe àu àte ploà
que tinha sido construído. O uso da palavra lectisternium o expressa, por
isso, é melhor traduzi-laà oà po à a ueteà dosà deuses ,à eà si à po à
disposiç oàdosàleitos .àáàpala aàseà efe eà àp epa aç oàpa aàu à a ueteà
(lectus: leito para comer, correspondente ao gr. Kliné); (...) O banquete é
oferecido pelos próprios deuses (e me refiro à representação e não à
realidade, que, decerto, envolve seres humanos conduzindo bustos ou
estátuas de deuses, comida etc.). Estaríamos supondo que os seres
humanos atuariam como anfitriões, gerenciando o banquete em solo
22
Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, em 1979, organizaram uma obra que atualmente é referência
obrigatória para o estudo dos banquetes rituais, demonstrando que sacrificar é estabelecer relações que
organizam a sociedade e instituem o lugar de cada um de seus membros: seres humanos em relação às
divindades, cidadãos em relação a não-cidadãos, cidadãos entre si, e cidadãos em relação ao corpo
so ial,à aà pa ti à daà di is oà deà u à ali e toà ouà deà u aà ti a,à ali e ta do à asà elaç esà so iaisà eà
definindo a hierarquia cívica (DETIENNE, VERNANT, 1979).
23
J.-P. Vernant já chamara a atenção para tal tipo de sacrifício, que unia seres humanos e seres divinos
numa festa alimentar, ressaltando tratar-se de um esquema simbólico nítido, que une separando
(VERNANT, 1981: 33). Para Veyne, que segue aqui a linha de interpretação de Vernant, a menos que se
compreenda comensalidade por um viés rigorosamente durkheimiano, no qual os deuses são projeções
da sociedade e a sociedade humana banqueteava consigo mesma, simbolizando sua totalidade,
percebe-seà ueà dans le monde gréco- o ai e,à ilà a i eà ja aisà ueà dieu à età ho
esà fo e tà u à
tout,à u eà seuleà so iet ;à
eà s ilsà a ge tà o à loi à lesà u sà desà aut es,à ouà
eà s ilsà so tà
commensaux aux mêmes tables, il y aura toujours entre eu à l a
e... à
:à
.à ‘e ete os,à
também, à análise de John Scheid do ritual dos sacerdotes Arvais, que incluía banquetes rituais, nos
quais mortais e imortais não eram reunidos em leitos em torno do alimento, e o convite aos deuses
surge como metáfora (SCHEID, 1990).
36
Rito e celebração na Antiguidade
sagrado com os utensílios e acessórios ali encontrados? Improvável. Além
disso, sabemos que além da comida, traziam a si mesmos, pessoas comiam a
carne que fora tornada sacra eà li e ada àpeloàto ueàdoàofi ia te,àto a doa, assim, profana (RÜPKE, 2009: 144).
A participação num banquete radicava na premissa da igualdade dos convivas;
não a igualdade jurídica, teórica, dos ciues, mas uma paridade de nível e status social,
daí que o ius publica epulandi, o direito de consumir a carne sacrificial a expensas da
comunidade, era um privilégio reservado a magistrados, senadores e sacerdotes
públicos (Suetônio, Aug. 35.2). O sacrifício e o banquete, portanto, definiam
hie a uias.àOsàse esàdi i osà o ia
àp i ei o,àeà e e ia àasàexta, consideradas as
partes nobres das vítimas, pois são os órgãos vitais (uitalia: Varrão, LL, 5. 112; Plínio,
NH, 11. 186). Os seres humanos comiam depois; dentre esses, o oficiante comia em
primeiro lugar – e não aquele que lidava diretamente com o animal sacrificado24.
Participavam também os ministri, crianças ou adolescentes que levam a água, ou a
toalha, ou caixas de incenso para o sacrifício, e outros nobres. O público, a grande
assaà daà populaç o,à assistiaà aoà itual.à “egu doà ‘üpke, aà oç oà o a aà deà pú li o à
denota um espaço limitado no qual apenas as classes superiores podiam comunicar-se
e t eà seusà p p iosà e
os à ‘ÜPKE,à
:à
.à Noà e ta to,à o se a osà ueà aà
população romana participava ativamente das supplicationes e de outros ritos que
formavam os piacula, segundo sua responsabilidade religiosa na urbs.
O lectisternium incluía um complexo de símbolos; gestos, expressões verbais,
sons e objetos inserindo o indivíduo no mundo intersubjetivo do conhecimento
comum que resultava na ação, na prática comunal. Os rituais religiosos legitimavam as
instituições sociais, garantindo-lhes um status ontológico, localizando-as num quadro
de referências cósmicas. Garantindo uma definição ontológica para a sociedade que,
per se, é imaterial – e, consequentemente, sua legitimação –, ligava o tempo presente,
elemento mutável, a uma constante, ou seja, ao sistema de referencia cósmico e
eterno, sagrado. Sua finalidade última era a prosperidade da comunidade e, por
extensão, o sucesso e a manutenção do status quo. Religião e política eram, portanto,
interligadas; os cidadãos mais importantes eram também aqueles que detinham os
sacerdócios e os papeis rituais mais destacados.
24
Havia escravos especializados para tal, os uictimari e cultrarii, que surgem nas imagens carregando o
limus do açougueiro ou os cultri, as facas do sacrifício.
37
Rito e celebração na Antiguidade
A população conhecia esse sistema sacrificial, e o praticava tanto
domesticamente quanto nas cidades e nos santuários rurais 25 . Uma restrita
participação dos cidadãos nos sacra publica, contudo, vem sendo apontada como um
limite à religio romana, entendida (cf. BENDLIN, 2000, numa crítica ao conceito de
religião cívica) como uma religião de elite, com pouca penetração nas camadas
populares, ou seja, a maioria da população de Roma, mas John Scheid (2010) chama a
atenção para o princípio romano do tres faciunt collegium, ou seja, era suficiente que
três pessoas devidamente autorizadas para tal, em termos institucionais,
participassem ativamente do ritual para que um rito pro populo ocorresse e fosse bemsucedido, bem como observamos que as práticas da religio romana distribuíam as
responsabilidades religiosas por todo o corpo social (na domesticidade, nos collegia,
nas magistraturas etc.). Desse modo, os cidadãos agiam religiosamente segundo seu
nível de responsabilidade pública (BELTRÃO, 2003); o lectisternium era um rito
excepcional pro populo e, como tal, era realizado pelos seus representantes. A religião
romana é uma criação institucional da cidade,e os cidadãos se beneficiavam dos ritos
mesmo que não estivessem fisicamente presentes à sua realização.
Observemos agora a própria forma do lectisternium, desta feita no que tange à
participação das divindades – ou de seus simulacra –, o que garantia uma potente
epifania, uma manifestação das divindades, não apenas por meio de sons e outros
sinais, fenômenos naturais, mas também uma presença visual excepcional. O espaço,
os elementos rituais, os simulacra e a performance se combinavam para criar não
apenas a expectativa, mas também a realização de uma epifania, criando uma
experiência afetiva para todos os participantes. O poder das imagens era reforçado
pela performatividade do aparato ritual, bem como as imagens reforçavam a potência
afetiva e social do ritual, posto que os simulacra
oa a
àe àseusàte plos,àlo geà
dos olhos do público, salvo raras vezes em que eram trazidas a público em grandes
cerimônias. O lectisternium as apresentava aos olhos de todos.
25
Além de outros lectisternia já terem sido realizados, nos quais o povo romano também formava a
plateia do banquete, e apesar de muitos elementos de sua forma provavelmente terem sido resultado
de interações religiosas com cidades gregas, o lectisternium possivelmente remete a antigos rituais
realizados no âmbito da religio domestica, como o daps oferecido a Júpiter pelo paterfamilias (Iuppiter
Dapalis: cf. Catão, Agr. 50, 131-32; Cícero. De or. III, 19,73), e ao banquete oferecido a Picumnus e
Pilumnus (Var. de uita, 81, 82).
38
Rito e celebração na Antiguidade
Depreendemos o poder das divindades presentes ao banquete, mediado pelo
ritual religioso, no qual elementos rituais agiam sobre as sensibilidades como
mediadores da presença divina, e a experiência afetiva era potencializada (cf. GRAF,
2004: 117-118). A percepção visual da presença da divindade em simulacra criava,
portanto, uma tensão que intensificava os elementos espaciais e a teatralidade da
performance ritual. Os simulacra realizavam a presença da divindade, e o sacrifício
manifestava a intervenção da potência divina no mundo natural e humano (WERTS,
2006; PLATT, 2011).
Para Stanley Tambiah, a performance ritual é uma metalinguagem para os
participantes, e apresenta como exemplo as iniciações religiosas, nas quais o iniciados
aprendem conteúdos e ganham uma nova identidade e um repertório interpretativo
do ritual, e cita a repetição que reitera os elementos do culto, criando a expectativa
(TAMBIAH, 1981: 133). O aparato e a performance ritual são poderosos meios de se
consolidare reiterar a ordem social, vinculando seus participantes a um modo de ver e
sentir as coisas, a autoridade, as hierarquias, as distinções sociais, e Catherine Bell,
insistindo sobre a importância da análise do vocabulário e das ações rituais, relevando
suaà efi
iaà aoà le a à osà g uposà hu a osà aà assu ç esà so eà aà o de à dasà oisas à eà
so eàseuà luga à estaào de ,à ha aàaàate ç oàta
àpa aàasàf
ulasàa aiza tes,à
mesmo quando há novos elementos no ritual, ou seja quando se trata de um novo
ritual, ajudando a separar o momento do ritual de outras experiências da vida
quotidiana, como ocorre no caso em observação (BELL, 2009:160). Para ela, em rituais
deste tipo, o público é chamado a expressar publicamente sua ligação e aderência aos
valores religiosos da comunidade, através de uma comemoração hiperbólica, com
grande quantidade de comida e bebida, com o uso extravagante de riquezas:
O ritual reinvoca a mítica interdependência humano-divina, transmitindo-a
às novas gerações, e cumpre as obrigações inerentes a ela, numa
representação simbólica eficaz da unidade social e espiritual dos
participantes (BELL, 2009: 120).
Observemos algumas inovações no lectisternium em questão: em primeiro
lugar, se o número de dias foi diminuído de oito para três dias, o número de
divindades foi dobrado de seis para doze. As personagens divinas também merecem
nossa atenção: se os primeiros lectisternia, segundo o modelo do de 399 a.C., traziam
39
Rito e celebração na Antiguidade
os pares Apolo-Latona, Hércules-Diana e Mercúrio-Netuno, divindades com potencial
para dirimir pestilentia e garantir o abastecimento de Roma (BELTRÃO, 2012), os novos
pares não parecem mais terem sido reunidos com intenções profiláticas específicas.
Observemos as frases de Tito Lívio:
Então, um lectisternium foi realizado durante três dias sob a supervisão dos
decênviros dos [livros] sagrados; seis leitos foram exibidos publicamente,
um para Júpiter e Juno, outro para Netuno e Minerva, o terceiro para Marte
e Vênus, o quarto para Apolo e Diana, o quinto para Vulcano e Vesta, o
sexto para Mercúrio e Ceres (AVC 22,10).
Trata-se de uma organização de pares na qual surge sempre uma entidade
masculina e uma feminina, sendo a masculina citada em primeiro lugar26. Caroline
Février, analisando a cena a partir das personagens, tece alguns comentários que
consideramos relevante para nossos objetivos:
Podemos supor que os leitos foram repartidos entre as figuras masculinas
do grupo dos Olímpicos, citadas por ordem de importância: Júpiter, senhor
dos céus e soberano dos deuses; Netuno, deus todo-poderoso do elemento
líquido; Marte, deus da guerra; Apolo, deus da salubridade pública, mas
também, e já, deus das vitórias militares; Vulcano e Mercúrio, por fim, cujos
papeis parecem menos determinantes (FÉVRIER, 2008a: 152).
A autora aventa a possibilidade de um ritual que revela uma interpretatio já
realizada, unindo as divindades, contudo, em pares inéditos na tradição religiosa
romana, mas recorrentes na tradição grega, aproximando, e.g., Marte de Vênus, e não
de Bellona; Apolo de Diana (cuja interpretatio com Ártemis já era lugar comum no
Lácio), e não de Latona, sua mãe; Minerva com Netuno, seguindo a ligação tradicional
de Atená/Poseidon em Atenas etc., estabelecendo uma imagem do panteão romano
inexistente até então, e que teve grande sucesso nos séculos futuros, chegando a
nossos dias como sendo o panteão romano, uma reunião não de divindades guerreiras
26
Ressalte-se que a visão androcêntrica de mundo parece ter sido preponderante; as divindades
as uli as às oà itadasàse p eàe àp i ei oàluga ,àeàasàdi i dadesàfe i i asà oà e e e àasàho asà
em lecti, e sim em sellae, participando do banquete sentadas, como as matronae. Cf. também o futuro
epulum Iouis,à osà uaisàaà T adeàCapitoli a àe aàfo al e teà o idadaàaoà a uete,àap sàoàsa if io,à
e os senadores banqueteavam a expensas públicas, e Juno e Minerva, em sendo divindades femininas,
oàti ha àdi eitoàaàu àleito:à ... feminae cum uiris iubantibus sedentes cenitabant, quae consuetudo
ex hominum conuictu ad diuina penetrauit, nam Iouis epulo in tectulum, Iuno et Minerua in sellas ad
e a ài uita a tu à Val.àMa .àII,à -2); cf. BELTRÃO, 2011.
40
Rito e celebração na Antiguidade
– que a lógica do problema em questão, ou seja, as derrotas militares, demandaria – e
sim uma reunião de divindades com potencial para inserir Roma no âmbito das
interações religiosas do Mediterrâneo helenístico, granjeando o apoio das cidades
helenísticas ou helenizadas (cf. FÉVRIER, 2008a: 151-154).
O lectisternium, como um ritual expiatório visando à placatio deorum, é uma
ação excepcional e atinge toda a comunidade política; trata-se de uma das
manifestações mais características da religio romana, que rege as relações entre seres
humanos e divinos, com sua tônica na eficácia dos procedimentos. Os lectisternia
instituídos, a partir de 399 a.C., como um novo modo de procuratio prodigiorum,
ressurgem com destaque no contexto da II Guerra Púnica, em 218 e 217 a.C,
revelando-nos o papel das práticas de piacula na inclusão de novas formas rituais e de
divindades nos sacra publica e o papel da religio romana na redefinição da identidade
romana num momento crucial para a própria existência da urbs e de sua inserção no
contexto mediterrânico; a inovação religiosa foi um dos principais mecanismos de
inclusão de povos e territórios conquistados no imperium Romanum.
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Rito e celebração na Antiguidade
RITOS MÁGICOS E SOCIABILIDADES RELIGIOSAS EM
ANTIOQUIA: JOÃO CRISÓSTOMO E A CENSURA AOS JUDEUS
E JUDAIZANTES
Gilvan Ventura da Silva1
Em 386, logo após sua ordenação como presbítero, João Crisóstomo dá início a
uma série de oito homilias Adversus Iudaeos, por meio das quais se dedica a confrontar,
sem subterfúgios e recorrendo a uma linguagem abusiva, a comunidade judaica de
Antioquia, sua cidade natal. O repertório de ataques desferidos contra os judeus é
bastante extenso, incluindo desde acusações de fundo moral, como as de embriaguez,
prostituição e luxúria, até acusações de natureza religiosa (sacrifício de crianças, adoração
aos demônios) cujo propósito é abalar os alicerces da própria crença judaica.
No
pensamento de João Crisóstomo, assim como no de outros Padres da Igreja, produz-se
uma correspondência direta entre a etnia judaica e as práticas e crenças religiosas a ela
associadas, razão pela qual tudo que dissesse respeito aos judeus, mesmo os hábitos e
costumes mais prosaicos, era considerado impróprio para os cristãos. E, no entanto, é
preciso reconhecer a existência de uma decalagem evidente entre os interesses e
propósitos que movem a elite eclesiástica, sempre ciosa da sua posição de guardiã da
pureza e da ortodoxia, e a dinâmica da religião vivida como práxis pelos fiéis, responsáveis
por encontrar, no dia a dia, soluções para os problemas que os afligem à revelia de
qualquer orientação por demais restritiva, num fluxo contínuo de negociação que
alimenta toda uma rede de empréstimos, resignificações e apropriações culturais.
Quando percorremos o conjunto das homilias Adversus Iudaeos, um dos temas que mais
ressaltam da pregação de João Crisóstomo é a preocupação em fixar os limites entre a
congregação cristã, da qual é um dos líderes mais influentes, e a comunidade judaica local,
de modo a evitar qualquer tipo de contato que possa ameaçar a integridade da ecclesia,
1
Doutor em História pela USP. Professor de História Antiga da Ufes, membro do Laboratório de Estudos
sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq.
45
Rito e celebração na Antiguidade
como nos sugere a equiparação do judaísmo a uma doença que consome o corpo da
Igreja, imagem retórica manejada à exaustão pelo pregador. No esforço de estabelecer as
fronteiras religiosas entre judeus e cristãos, João nos permite alcançar, de maneira
indireta, lacunar e decerto involuntária, a vida cotidiana de Antioquia no final do século IV,
marcada por uma surpreendente proximidade entre os distintos grupos religiosos que
repartiam o território urbano.
Dentre os costumes nutridos pelos cristãos da cidade que suscitavam, da parte de
João Crisóstomo, a mais áspera reprovação, contava-se o interesse pelas práticas de
magia e adivinhação executadas pelos judeus, o que nos permite avaliar a vitalidade da
cultura judaica nos meios urbanos no final do Mundo Antigo, momento em que, segundo
a antiga tese do Spatjudentum, o judaísmo já teria sucumbido diante de um cristianismo
triunfante. No entanto, quando nos debruçamos sobre as homiliasde João Cristóstomo e
somos surpreendidos não apenas pela virulência do discurso, mas também pela repetição
ad nauseam dos mesmos temas, essa não parece ser uma conclusão satisfatória. De fato,
João inicia sua carreira sacerdotal num momento em que os nicenos, liderados por
Melécio, lutam pela liderança em Antioquia, o que os lança numa queda de braço com
Paulino, um bispo rival sustentado pelas igrejas do Ocidente. Todavia,o desafio de
Melécio e de seus seguidores não se restringia à obtenção do controle da sé da cidade,
incluindo igualmente o confronto com os pagãos, instalados nos postos mais altos da
hierarquia administrativa e militar e, de modo notável, com os judeus, que constituíam
uma força de atração religiosa impossível de ser ignorada. A presença dos judeus em
Antioquia era muito antiga, remontando à fundação da cidade por Seleuco I Nicátor, em
300 a.C.. Na ocasião, Seleuco teria instalado, no recinto da cidade, um contingente de
veteranos judeus provenientes da Babilônia que haviam lutado sob o seu comando,
havendo ainda a possibilidade de que, aos recém-chegados, houvessem se reunido judeus
provenientes do território sírio. Ao que tudo leva a crer, os judeus de Antioquia, embora
não fizessem parte da polis, ou seja, do corpo político de cidadãos constituído por
indivíduos de ascendência grega, gozaram, desde o início, do direito de politeia, de
associação reconhecida por lei. Desse modo, não apenas eram identificados como um
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Rito e celebração na Antiguidade
grupo distinto dentro da cidade como também possuíam autonomia para praticar os seus
ritos religiosos e exercer a sua própria jurisdição, sendo autorizados a manter suas
assembleias, a observar o shabat, a enviar dinheiro para a manutenção do Templo e a
solicitar dispensa das cerimônias religiosas oficiais, dentre outros benefícios. Mais tarde,
após Pompeu ter anexado a Síria-Palestina ao Império Romano, os judeus tiveram as suas
prerrogativas confirmadas pelos imperadores. Muito embora não tenhamos informações
precisas sobre o funcionamento da comunidade judaica de Antioquia sob o Império, é
possível supor, por analogia com realidades mais bem conhecidas, a exemplo de
Alexandria, que os judeus estivessem sob o comando de um arconte e de um sinédrio
instalado na sinagoga, responsáveis por mediar as relações com as autoridades municipais
(Zetterholm, 2003, p. 31 e ss.).
No período imperial, a comunidade judaica de Antioquia experimenta um
crescimento contínuo, vindo a se tornar, no século II, o principal reduto judaico na
Diáspora oriental devido à crise que atinge os judeus de Alexandria, Cirene e Chipre,
massacrados ou expulsos após a revolta de 115-117 (Skarsaune, 2007, p. 762). A forte
presença dos judeus no recinto urbano poderia nos sugerir a existência de um clima de
animosidade entre eles e os seus vizinhos, tal como observamos em Alexandria, o que em
absoluto não procede. Pelo contrário, no que diz respeito às relações entre a população
de Antioquia e os judeus, é digno de nota o fato de que não temos notícia de episódios de
violência explícita, como constatamos alhures.
Exceto por um breve período de
acirramento da intolerância, no contexto da Guerra da Judeia, quando então Tito foi
chamado a se pronunciar, ratificando ao fim e ao cabo os privilégios do politeuma judaico,
não temos conhecimento, nos séculos seguintes, de nenhuma restrição aos judeus da
cidade, que parecem bem integrados à vida local (Brooten, 2000, p. 32). Na realidade,
após o século I a comunidade judaica se torna praticamente invisível para nós, vindo a
ressurgir apenas no século IV por intermédio da pregação de João Crisóstomo, quando
então já nos encontramos em uma nova fase, marcada pela atuação militante das
autoridades eclesiásticas no sentido de obter tanto o controle sobre o espaço urbano
quanto a separação definitiva entre o judaísmo e o cristianismo. Por esse motivo, a
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Rito e celebração na Antiguidade
pregação de João Crisóstomo, como afirmamos, se reveste de um tom assaz agressivo ao
recolher um inventário de estigmas e estereótipos contra os judeus que, nos séculos
seguintes, fornecerá combustível para o antijudaísmo cristão.
Dentre os estigmas
manejados por João Crisóstomo com o intento de desqualificar a crença judaica, um dos
mais expressivos é, sem dúvida, o de feitiçaria, razão pela qual os judeus são amiúde
descritos como adoradores do demônio. À parte o fato de que, no Império Romano, o
exercício da magia era uma das acusações mais freqüentes contra os inimigos, fossem eles
adversários nas competições de retórica, adeptos de doutrinas ou práticas religiosas tidas
como bizarras (superstiones) ou mesmo usurpadores da púrpura imperial, o que os
tornava réus de crime de maleficium e, portanto, sujeitos à pena capital, a principal
questão subjacente à leitura das homilias de João Crisóstomo não é, a princípio, a
formulação de uma imagem distorcida dos judeus, um dado quase que transparente na
exploração da fonte, mas a constatação de que, para além das distorções possíveis
geradas pelo discurso eclesiástico, os judeus são de facto reconhecidos como hábeis nas
artes magicae, o que reforça o seu prestígio na cidade, inclusive aos olhos dos cristãos,
que consideram a sinagoga um recinto saturado de potência mágica e que buscam, na
ancestralidade dos ritos judaicos, um lenitivo para o seu sofrimento.
A reputação dos judeus como exímios feiticeiros, todavia, não é algo restrito a
Antioquia nem um acontecimento recente, remontando antes ao período helenístico,
quando a cultura judaica era reconhecida como uma das fontes principais da sabedoria
oriental. Nesse contexto, os judeus eram tidos como uma linhagem de filósofos e sábios
portadores de conhecimentos sobrenaturais, o que os tornava ao mesmo tempo
personagens admiradas e temidas. A associação entre judaísmo e artes mágicas já
aparece enunciada em Possidônio, um autor grego do final da República. Plínio, o Velho,
na sua História Natural, afirmava ser a Judeia a pátria dos magos e adivinhos. Celso, por
sua vez, considerava os judeus como praticantes contumazes da magia, que lhes teria sido
ensinada por Moisés (Janowitz, 2001, p. 25). Para além dos testemunhos literários acerca
da magia judaica, muitos deles eivados de um inequívoco tom depreciativo, as fontes
epigráficas e arqueológicas atestam a existência de uma escola de magia judaica bem
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Rito e celebração na Antiguidade
consistente sob o Império Romano, uma vez que, em virtude da sua notável difusão nos
territórios da Diáspora, as tradições religiosas do judaísmo cedo contribuíram para
alimentar todo um sincretismo próprio da bacia do Mediterrâneo. Por esse motivo é que
o hebraico, embora praticamente ausente das inscrições epigráficas fora da Palestina,
comparece com freqüência nos amuletos e papiros (Simon, 1996, p. 342 e ss.). Como
língua exótica, na maioria das vezes incompreensível e por isso mesmo dotada de uma
potência mágica superior, o hebraico era amiúde empregado para grafar toda uma
constelação de palavras e expressões (as voces magicae)que compunham os rituais de
magia. Nos papiros mágicos greco-egípcios, o Tetragrammaton, a sigla que identifica o
nome oculto da divindade hebraica (YAWH), bem como os nomes dos anjos Miguel, Rafael
e Gabriel e dos patriarcas Abraão, Jacó e Moisés são escritos em hebraico, sem dúvida
com o propósito de tornar mais eficiente a invocação.
Por outro lado, figuras
emblemáticas do Antigo Testamento, como Salomão e Moisés, passam à História como
fundadores de autênticas escolas de magia, o que dá margem a uma variedade de escritos
esotéricos a eles atribuídos.
Sabemos que sob a rubrica de Salomão circulou, na
Antiguidade, uma coleção de textos astrológicos, demonológicos e proféticos intitulada
Testamento de Salomão, ao passo que Moisés empresta seu nome a um repertório de
encantos dos quais os papiros mágicos greco-egípcios recolhem diversos exemplares
(Marcos, 1985).
Do ponto de vista dos círculos judaicos propriamente ditos, a magia não era, nem
de longe, uma prática incomum, como comprova o Sefer Ha-Razim (Livro dos Mistérios),
uma compilação de encantamentos redigidos num hebraico elegante e reunidos muito
provavelmente entre os séculos III e IV. Repleto de referências aos anjos e demais seres
celestiais, o Sefer Ha-Razim se propõe a fornecer soluções práticas para os inconvenientes
do dia a dia, ensinando as pessoas, por meio de sortilégio, a evitar o pagamento de uma
dívida, a obter a cura para alguma enfermidade ou mesmo a infligir dano aos inimigos
(Kee, 1992, p. 163). Muito embora o Sefer Ha-Razim contenha vários exemplos daquilo
que poderíamos qualificar como magia maléfica, importa salientar que as artes mágicas
nunca foram alvo de uma proibição geral por parte das autoridades rabínicas,
49
Rito e celebração na Antiguidade
prevalecendo as distinções conforme a finalidade do seu uso. Em geral, um rito mágico
o àu aài te ç oà e
fi aà
oàe aàe a adoà o oà feitiça ia ,àouàseja,à
oàe aàpass elà
de condenação, produzindo-se assim, nos meios judaicos, certa tolerância para com a
magia que tornava palatáveis os rituais terapêuticos e apotropaicos oficiados pelos
rabinos (Simon, 1996, p. 23). Por esse motivo, o emprego de encantos e amuletos tendo
por objetivo a cura de um paciente era um procedimento que as autoridades religiosas
judaicas tendiam a admitir (Werblowsky & Wigoder, 1997, p. 725). Além disso, por todo o
Oriente abundavam os tephilin, os filactérios judaicos confeccionados sob a forma de
pequenas caixas de couro preto que, contendo passagens do Antigo Testamento, eram
presas por correias à mão, ao braço ou à testa do usuário, um judeu adulto do sexo
masculino (Unterman, 1992, p. 261). Os tephilin simbolizavam, a princípio, um desejo de
aproximação com o verbo divino, mas com o passar do tempo se converteram em
amuletos de uso corrente, aos quais eram atribuídos poderes apotropaicos. Nos meios
cristãos, o emprego dos tephilin já é atestado desde a idade apostólica, quando aos
versículos do Pentateuco foram acrescentados excertos do Evangelho de João (Vázquez
Hoys & Munõz Martín, 1997, p. 182). Seu sucesso pode ser avaliado, por exemplo,
mediante o cânone 36 do Concílio de Laodiceia, que ameaça com a excomunhão os
sacerdotes flagrados portando amuletos (philacteria).
A ancestralidade da religião judaica e a eficácia simbólica dos ritos oficiados pelos
rabinos não deixaram de fascinar os próprios cristãos, a despeito dos severos ataques que
desde cedo a hierarquia eclesiástica desferiu contra os judaizantes, responsáveis por
introduzir, na congregação, os costumes judaicos, tidos como poluentes e profanadores.
A regularidade desses ataques nos alerta para a existência, no Império Romano, de zonas
ativas de interseção entre o judaísmo e o cristianismo que subvertem qualquer tentativa
de delimitação estrita das fronteiras entre ambos os sistemas religiosos, um processo que
somente logrará êxito à medida que avança o século V. Os fatores que mais contribuíram
tanto para o prestígio do judaísmo quanto para a manutenção das relações de
intercâmbio, cooperação e sociabilidade entre judeus e cristãos foram, por um lado, a
crença na eficácia dos ritos mágicos de inspiração judaica e, por outro, a sacralidade da
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Rito e celebração na Antiguidade
sinagoga, uma situação bastante incômoda para as lideranças episcopais. O assunto já é
merecedor de algum destaque no início do século IV, quando os padres reunidos no
Co
lioàdeàEl i aàde eta ,à oà
o eà
:à ueàseja àad oestadosàa uelesà ueà ulti a à
os campos, a fim de que não permitam que seus frutos, recebidos de Deus como ação de
graças, sejam abençoados pelos judeus, para que não pareça vã e ridícula nossa
e diç o .à à Maisà ta de,à oà o
lioà deà Laodi eia,à osà isposà dete
i a à
ueà
oà seja à
aceitos dos judeus os pães ázimos e que não se tome parte de modo algum em seus
sa il gios à
.à
.à à á
asà asà p oi iç esà seà e o t a , sem dúvida, conectadas ao
sucesso da magia judaica entre os cristãos. No primeiro caso, trata-se claramente de
evitar a concorrência dos rabinos, chamados a ministrar suas bênçãos sobre as colheitas
em detrimento dos sacerdotes cristãos, que se vêem assim desautorizados na sua
condição de mediadores do sagrado. No segundo caso, o propósito é impedir o consumo,
pelos cristãos, da matsá, do pão sem fermento confeccionado por ocasião da festa do
Pessach, ao qual a piedade popular atribuía propriedades curativas (Simon, 1996, p. 355).
Quando temos conhecimento de que, no final do Mundo Antigo, as tradições
judaicas eram admiradas e valorizadas, inclusive pelos cristãos, torna-se mais fácil
compreender o motivo pelo qual João Crisóstomo se dedica a refutar o judaísmo de modo
tão enfático, esforçando-se por equipará-lo à idolatria e aos cultos satânicos. Pelas
investidas do orador, é possível concluir que os cristãos buscavam o auxílio dos rituais e
encantamentos judaicos, especialmente no que dizia respeito à obtenção de cura para as
enfermidades que os afligiam. Na 8ª homilia Adversus Iudaeos (935), João exorta os
membros da sua congregação a identificar aqueles que porventura mantenham contato
com os judeus e a intervir com a finalidade de erradicar tal comportamento:
Suponham que ele [o judaizante] use as curas que os judeus efetuam como
des ulpa.àà“upo ha à ueàeleàdiga:à elesàp o ete a à eàfaze àoà e ,àassi àeuà
ouà at à eles .à à E t oà o sà de e à revelar os truques que eles usam, seus
encantamentos, amuletos, feitiços e encantos. Esse é o único meio pelo qual
eles tem a reputação de curar. Eles não efetuam curas genuínas. Os céus
proíbem que eles façam isso. Permitam-me dizer que se eles de fato curam
vocês, é melhor morrer que correr para os inimigos de Deus e ser curado desse
modo. Que uso há em ter o corpo curado se vocês perdem sua alma? Que
benefício há em encontrar algum alívio para a dor nesse mundo se vocês estão
caminhando para o fogo eterno?
51
Rito e celebração na Antiguidade
Mais adiante, na mesma homilia, João (hom. VIII, 936) evoca o sacrifício de Lázaro
de modo a reforçar os seus argumentos:
Lázaro lutou todos os seus dias com a fome, a doença e a pobreza, não apenas
por 38 anos, mas por toda a sua vida. Em todo caso, ele morreu enquanto
estava deitado na porta do homem rico, desprezado, maltratado, faminto,
prostrado diante dos cães que vinham e lambiam suas feridas. E mesmo assim
ele não procurou um adivinho, não amarrou pingentes em torno do pescoço e
não recorreu aos encantadores, ele não convocou os especialistas em magia
nem fez nada que era proibido fazer. Ele preferiu morrer desses males que trair
de algum modo sua fé em Deus. Olhem os tormentos e sofrimentos desse
homem. Que desculpas teríamos se por nossas febres e feridas corrêssemos
para as sinagogas, se convidássemos para as nossas próprias casas os feiticeiros,
os especialistas em feitiçaria?
O que ambas as passagens nos permitem entrever, a princípio, é uma situação de
cooperação e solidariedade entre os cristãos e os judeus em Antioquia, com a
manutenção de um intenso intercâmbio de informações tendo por objetivo prover a cura
dos doentes.
É possível, inclusive, supor que alguns judeus da cidade fossem
especializados em medicina, oferecendo seus préstimos à população mediante
pagamento e atendendo inclusive a domicílio. De fato, na mesma homilia João menciona
promessas de cura feitas pelos judeus aos doentes, um indício de que haveria algum
acordo de prestação de serviço entre as partes. Além disso, não apenas na passagem aqui
citada, mas também em outras (hom. VIII, 938), João alude à visita de médicos judeus ao
domicílio dos cristãos com o propósito de realizar consultas. Todavia, na avaliação do
presbítero, o principal comportamento a ser combatido era a presença, na sinagoga, de
membros da congregação cristã, que para aí se dirigiam na esperança de obter algum
conforto físico e espiritual. O comparecimento dos cristãos às sinagogas com finalidade
terapêutica é mencionado com clareza numa passagem da 1ª homilia Adversus Iudaeos
(852), quando João se ocupa em denunciar o caráter sacrílego dos locais de culto judaicos:
Mesmo se não há um ídolo instalado na sinagoga, ainda assim demônios
habitam o lugar. Eu não estou falando apenas sobre a sinagoga aqui, na cidade,
mas sobre a outra, em Dafne também, pois aí vocês têm um lugar de perdição
mais vil, que eles chamam de Matrona. Eu tenho ouvido que muitos dos fiéis
sobem aí e dormem ao lado do lugar. Mas os céus proíbam que eu chame essas
pessoas de fiéis. Para mim, o santuário da Matrona e o templo de Apolo são
igualmente impuros.
52
Rito e celebração na Antiguidade
João Crisóstomo faz referência, nessa passagem, a duas sinagogas. A primeira, a
mais antiga da cidade, denominada Kenesheth Hashmunith, ficava, ao que parece, nas
proximidades do bairro judeu. Já a segunda, situada em Dafne, um elegante subúrbio ao
sul de Antioquia, possuía o enigmático nome de Matrona, sem que saibamos muito bem a
razão (Kraeling, 1932, p. 140). Soler (2006, p. 98-99)) supõe que o termo empregado por
João comportaria um sentido claramente pejorativo, em virtude da associação do local
com o santuário subterrâneo de Hécate, situado nos arredores, ou com uma consorte de
Apolo, divindade cultuada em Dafne de longa data, mas essas são apenas conjecturas.
Pois bem, se os cristãos de Antioquia tinham por hábito freqüentar a Keneshet
Hashmunith com o propósito de obter prescrições terapêuticas sob a forma de bênçãos,
filactérios e similares, na Matrona se operava um outro rito mágico bastante difundido no
Mundo Antigo, ou seja, a incubatio, uma modalidade de consulta oracular na qual o
consulente pernoitava em um recinto tido como sagrado (uma fonte, uma gruta, um altar)
na esperança de obter da divindade a resposta para alguma demanda, em especial a cura
de enfermidades (Vázquez Hoys; Munõz Martín, 1997, p. 219). Prática recorrente entre os
pagãos, vemos a incubatio ser aqui praticada num contexto judaico, o que leva João
Crisóstomo, na seqüência de sua homilia, a equiparar a sinagoga da Matrona ao templo de
Apolo, também situado em Dafne. A intenção do autor nos parece evidente: reduzir
arquiteturas típicas do modus vivendi judaico e grecorromano ao mesmo nível de
degradação, de modo a demonstrar que a sinagoga, embora reputada por muitos como
um local digno de respeito e veneração por abrigar os rolos da Torá, se encontrava, na
realidade, saturado das mesmas entidades demoníacas que habitavam os locais de culto
pagãos.
Ao estigmatizar os judeus como praticantes de feitiçaria, João não desqualifica, em
absoluto, o saber médico do qual eram portadores, reconhecendo a eficácia dos ritos e
conjuros judaicos na produção da cura. O problema, nesse caso, é a fonte da qual
derivavam os poderes dos taumaturgos judeus, que, segundo o pregador, operavam suas
maravilhas por intermédio dos demônios. Cumpre notar, entretanto, que o principal
53
Rito e celebração na Antiguidade
enfrentamento de João Crisóstomo não é com os médicos, magos ou rabinos, razão pela
qual estas personagens são praticamente ignoradas em suas homilias. Conforme salienta
Lane Fox (1998, p. 695), o processo de cristianização próprio do final do Mundo Antigo
implicou menos o ataque aos especialistas de outras religiões do que aos santuários de
culto e devoção. Nesse sentido, a consolidação do cristianismo no Império Romano
envolveu, em primeiro lugar, o domínio sobre lugares e territórios que, despojados da sua
condição de sacralidade e convertidos em loci de impureza e poluição, causassem repulsa
aos seus freqüentadores. Consoante essa lógica de enfrentamento, João Crisóstomo se
esforça em demonstrar que os procedimentos terapêuticos judaicos, ao se encontrarem
associados à sinagoga, eram, na realidade, ritos de feitiçaria, uma vez que a sinagoga era
um local de adoração das forças demoníacas e, por assim dizer, de retroalimentação dos
poderes maléficos dos feiticeiros. A insistência de João nesse ponto não é nem gratuita
nem ocasional. Ao se posicionar de modo tão aguerrido contra os ritos terapêuticos
judaicos, João tentava bloquear um dos canais que favoreciam a sociabilidade entre
cristãos e judeus, ou seja, o intercâmbio de informações em torno de procedimentos
médicos, o que levava os cristãos a buscar socorro na sinagoga, um lugar que, como
mencionamos, era dotado de uma sacralidade incomum.
A partir do século IV observamos no Império, em especial nos territórios da SíriaPalesti a,à u à p o essoà ueà “ h a tzà
à ualifi aà o oà ejudaizaç o ,à ouà seja,à u à
investimento por parte das comunidades judaicas rurais e urbanas na afirmação da sua
crença por intermédio do estímulo à construção de sinagogas, que se multiplicam na
paisagem, em franca concorrência com as igrejas. Ao mesmo tempo, os edifícios tendem
a se tornar mais luxuosos, com a adoção de mosaicos coloridos, afrescos, colunas
esculpidas e arcos, numa nítida reprodução dos padrões decorativos empregados nas
construções públicas e nas residências da elite, o que traduz uma situação de expressivo
crescimento econômico. No entanto, a reafirmação da crença judaica em confronto com
o cristianismo, que então se expandia, não dependeu apenas da multiplicação dos lugares
de culto, o que por si só já seria um feito notável, diga-se de passagem. Pelo contrário,
pari e passu com esse aumento do número de sinagogas, ocorre uma ressignificação do
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Rito e celebração na Antiguidade
edifício, que se torna o receptáculo da Torá, como comprova a adoção de um nicho
central para abrigar os manuscritos sagrados. Na condição de receptáculos da Torá, as
sinagogas serão reverenciadas como recintos sagrados por excelência, razão pela qual elas
logo passam a despertar a atenção de gentios e cristãos, que para lá se dirigem na
expectativa de se beneficiar dos seus influxos mágicos. Disso resulta que as sinagogas
disputarão lado a lado com as igrejas e os martyria o privilégio de serem o vértice por
meio dos qual o sagrado atingia a terra e se irradiava sobre o território circundante. Essa
constatação não passa despercebida a João Crisóstomo, que desenvolve um amplo
repertório de argumentos com o firme propósito de demonstrar que as sinagogas, longe
de serem santuários da divindade, eram antros nos quais os judeus se entregavam à
prática da feitiçaria sob inspiração demoníaca. Não obstante o quanto esta associação
nos pareça excessiva, é preciso reconhecer que João tinha diante de si uma tarefa no
mínimo espinhosa, qual seja, a de delimitar, no perímetro urbano, os locais próprios e
impróprios para os cristãos, dentro de uma lógica discursiva bipolar que se apoiava nas
acusações de feitiçaria com o propósito de suprimir a porosidade entre a igreja e a
sinagoga, impondo assim aos ritmos da vida cotidiana um controle difícil de ser alcançado.
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56
Rito e celebração na Antiguidade
RITO E COMEMORAÇÃO NA TRAGÉDIA ALCESTE DE
EURÍPIDES.
Jaa Torrano (DLCV-FFLCH-USP)
Alceste, a mais antiga das tragédias supérstites de Eurípides, representada de
438 a. C., reflete sobre a condição de mortal, a distinção entre a vida dos mortais e a
vida dos Deuses imortais, e as necessárias implicações dessa distinção, sob quatro
pontos de vista, a saber, dos Deuses, dos Numes, dos heróis e dos homens mortais. Em
tão ampla e profunda investigação do sentido dos limites inerentes à condição de
mortal, os ritos funerários revelam o seu sentido de resistência ao caráter inelutável da
morte, e a comemoração atualiza o imaginário mítico tradicional com que se evocam
os tempos míticos e se explicam as relações numinosas e o convívio heróico entre os
Deuses imortais e os homens mortais, personagens deste drama, a saber, os Deuses
Apolo e Morte, e os mortais diversamente associados a esses Deuses, a rainha Alceste,
o rei Admeto, marido de Alceste, o ancião Feres, pai de Admeto, e o semideus Héracles,
filho de Zeus e hóspede de Admeto; o coro de cidadãos de Feras, cidade da Tessália, a
serva anônima, que assiste a rainha moribunda, e o servo anônimo, que interpela
Héracles, fixam a perspectiva estritamente humana dos meros mortais. A
comemoração, ao evocar as personagens dos tempos míticos, produz e revela a
contemporaneidade (e assim também a extemporaneidade) desses quatro diversos
(ora confusos, ora distintos) pontos de vista, a saber, dos Deuses, dos Numes, dos
heróis e dos homens mortais.
O prólogo (EUR. Alc. 1-76), com as suas duas partes: o monólogo de Apolo (EUR.
Alc. 1-27) e o diálogo entre Apolo e Morte (EUR. Alc. 28-76), configura uma unidade
enantiológica de ambos os Deuses, o luminoso Phoîbos, e a ulizadoà Fe o à Phoîbe,
EUR. Alc. 30) e o sombrio Thánatos,à t aduzidoà Mo te ,à Thánaton, EUR. Alc. 24), e
assim define a ambígua condição dos mortais no jogo inerente a essa unidade
enantiológica dos Deuses Apolo, dito Phoîbos,à Lu i oso ,àeàThánatos,à Mo te ,àfilhoà
da Noite tenebrosa.
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Rito e celebração na Antiguidade
A tragédia Alceste de Eurípides e os mitos hesiódicos de Prometeu têm em
comum a mesma perplexidade perante os limites distintivos e definitivos dos Deuses
imortais e dos homens mortais. Recorrendo à imagem hesiódica, pode-se dizer que o
tema desta tragédia é a participação dos homens mortais na partilha da opulência
entre os Deuses Imortais. Como na Teogonia hesiódica, nesta tragédia, a partilha é
presidida por Zeus, ou, por outra, Zeus é o princípio dessa partilha.
Na primeira cena, Apolo interpela a casa de Admeto com o afeto de nela ter
convivido como servo, guardador dos rebanhos de seu hospedeiro, e declara que Zeus
está na origem desse exílio no qual se deu o seu convívio com Admeto, o dono da casa:
por Zeus ter matado Asclépio, o filho de Apolo, Apolo em fúria matou os Ciclopes
fabricantes da arma de Zeus com que Zeus matou Asclépio, e por isso Zeus, em
represália, obrigou Apolo a servir como guardador de rebanhos na casa de Admeto
(EUR. Alc. 1-9). O coro diz na segunda antístrofe do párodo a razão de Zeus matar
Asclépio:àesteà essus ita a àosà o tos,àa tesàdeà)eusàdest u -lo com o raio (EUR. Alc.
123-129). A razão de Zeus para matar Asclépio é, pois, a necessidade de distinguir
entre os Deuses imortais e os homens mortais; Asclépio, filho de Apolo, apagava essa
distinção.
A reverente piedade de Apolo, correspondente à correlata reverente piedade
de Admeto, quando eram um hóspede do outro, duplica-se em dolo, quando Apolo
engana Partes (Moiras, EUR. Alc. 12), em favor de seu hospitaleiro amigo Admeto.
Apolo persuade as Deusas Partes a aceitarem outro morto em vez de Admeto, se
alguém se dispusesse a morrer por ele (EUR. Alc. 12-14).
Na tragédia Eumênides de Ésquilo, o coro homônimo das filhas da Noite acusa
Apolo de persuadir as Deusas Partes (Moíras, ÉSQL. Eum. 724) a tornarem os mortais
imortais. Pode-se dizer que, nesse drama de Ésquilo, essa acusação contra Apolo cessa
de ter importância, no final do julgamento, com a vitória da causa de Apolo; mas,
nesta tragédia Alceste de Eurípides, ao contrário, o dolo de Apolo contra as Deusas
Partes em benefício de Admeto se revela tão contraproducente quanto, nos mitos
hesiódicos de Prometeu, a tentativa por Prometeu de trapacear o sentido de Zeus em
benefício dos homens mortais (HES. T. 507-616, T. D. 42-105). Pode-se dizer que
ambas as tentativas de dolo – a de Apolo contra Partes e a de Prometeu contra o
sentido de Zeus – são contraproducentes não só por não abolir a distinção entre os
58
Rito e celebração na Antiguidade
Deuses imortais e os homens mortais, mas ainda pela contrapartida dos sofrimentos
dos mortais.
O dolo de Apolo reside em tentar ganhar dos sombrios Deuses ínferos uma
participação maior nos luminosos Deuses súperos para um dos mortais, Admeto, seu
amigo hospitaleiro. Apolo persuade Partes a preservarem Admeto, permitindo uma
permuta, se alguém se dispusesse a morrer por Admeto. Nem o pai, nem a mãe de
Admeto se dispõem a morrer por ele, mas, sim, Alceste, sua esposa. Alceste assim se
torna digna de honras heróicas e de veneração devidas aos Deuses ínferos. No entanto,
essa mesma permuta, proposta e defendida por Apolo, a favor de Admeto, implica,
para Admeto, a morte em vida e o desejo de morrer.
No dia de Alceste morrer, Apolo sobranceiro diante da casa de Admeto não
abandona a defesa da casa que lhe é cara, sem defrontar Morte; e, quando
impossibilitado de persuadir Morte a retroceder sem levar a mulher que lhe fora
prometida, Apolo ousa afrontar Morte com a predição de que um hóspede de Admeto
a obrigará a fazer igualmente o que agora lhe é pedido, sem que então por isso Morte
obtenha a gratidão de Apolo, uma vez que ela o fará à força e não por benevolência.
Ante a ameaçadora previsão de Apolo, Morte permanece inabalável, em sua
resolução de levar consigo aos ínferos a vítima porque a consagrou no rito da tonsura,
quando se corta o pelo do crânio da vítima sacrificial, antes da imolação (EUR. Alc. 7276).
O párodo (EUR. Alc.77-135) reitera, em perspectiva de mortais, a interpelação
do Deus Apolo à casa de Admeto e à presença de Morte, e assim contrasta a altivez e
sobranceria do Deus adivinho onisciente com a aflita expectativa, entre mortais, da
morte da rainha, de quem se diz ter sido a melhor esposa, para o seu marido (EUR.
Alc.77-85).
Inteiramente voltado para o objeto de sua indagação, o coro não se apresenta
a si mesmo e só é identificado como cidadãos de Feras na fala da serva no final do
primeiro episódio (EUR. Alc.212).
No párodo, o primeiro dos dois pares de estrofe e antístrofe (EUR. Alc.77-112)
elenca os principais itens de rituais funerários e do comportamento esperado perante
a morte, enquanto o coro observa o palácio e os possíveis indícios do que está
acontecendo. O segundo par de estrofe e antístrofe (EUR. Alc.113-130) constata a
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Rito e celebração na Antiguidade
inevitabilidade da morte, de que não se conhece nenhum sacrifício que nos possa
preservar, e morto Asclépio, o filho de Apolo, que restituía a vida aos mortos,
fulminado pelo raio de Zeus, todos os sacrifícios já feitos se mostraram ineficazes,
donde se conclui que para os males da morte não há remédio .
No primeiro episódio (EUR. Alc. 136-212) o coro interroga a serva do palácio se
a rainha está viva ou morta, ouve uma resposta ambígua (EUR. Alc.141), cuja
duplicidade de sentido prefigura a resposta de Admeto à pergunta de Héracles a
respeito de Alceste (EUR. Alc. 518-522). Essa ambiguidade entre vivo e morto, entre
ser e não ser, primeiro prenunciada (EUR. Alc.141), e depois amplificada (EUR. Alc.
518-522), configura uma avaliação do que possa ser, para os mortais, a condição de
mortais.
Cobrada explicação, a serva diz que a rainha está prostrada e agoniza (EUR.
Alc.143). Ante a violência e inexorabilidade do dia fatídico, o coro reitera o louvor da
esposa moribunda e comisera o marido que será viúvo, a serva ecoa louvor (hoías
hoíos EUR. Alc. 144, eukleés / aríste / aríste EUR. Alc. 150-152), e relata os preparativos,
por parte dos servos e da rainha, para as cerimônias funerárias (EUR. Alc.149, 158-162).
A rainha é a melhor esposa, para o seu marido, porque – segundo a serva – nada se
mostraria como maior honra ao marido do que consentir em morrer por ele (EUR.
Alc.154-155). A serva reproduz prece da moribunda rainha à Deusa Héstia, e descreve
o ritual de despedidas executado pela rainha (EUR. Alc.158-195). Tendo tudo
observado, a serva avalia, concluindo, com o grau de gravidade do inesquecível, a dor
de Admeto, por ter fugido à sua própria vez de morrer (EUR. Alc.197-198). Por fim, a
se aàdizà ueà o u i a à à ai haàaàp ese çaàdoà o o,àide tifi adoàe fi à o oà a tigoà
a igo àdoà eià EU‘. Alc. 212).
Um traço heróico distingue essa rainha do comum dos mortais: o
conhecimento prévio do dia em que ela mesma deve morrer, um aspecto notável de
sua participação no Deus Apolo, o Adivinho. A dolorosa ironia reside em que esse
conhecimento prévio torna mais pungente o sentimento da perda e mais opressiva a
iminência da morte.
O primeiro estásimo (EUR. Alc.213-237) tem um só par de estrofe e antístrofe.
No párodo, coristas individuais ou semicoros alternavam suas falas, no esforço ansioso
de observar o que acontecia no palácio real e investigar a situação da rainha; no
60
Rito e celebração na Antiguidade
primeiro estásimo, coristas individuais ou semicoros, cônscios dessa situação, agora
alternam as falas, em busca de recurso ante o impasse da morte anunciada.
A estrofe invoca Zeus, e indaga se haveria algum recurso diante da morte, além
do luto e de cerimônias fúnebres; apela ao poder maior dos Deuses; invoca Apolo
como rei Peã, o Médico, e suplica-lhe um meio de livrar-se de Morte e de Hades (EUR.
Alc. 213-225).
A antístrofe interpela Admeto – ausente, e não só lamenta a sua dolorosa
perda da esposa, mas ainda avalia se os mais terríveis modos de morrer são tão
dolorosos, ou menos dolorosos, que essa perda da esposa; e ainda lastima a
devastadora doença que leva a melhor esposa, sob a terra, ao ctônio Hades (EUR. Alc.
226-237).
O coro constata que as núpcias não alegram mais do que afligem, porque as de
Admeto e Alceste trouxeram a morte precoce de Alceste; e prediz que o peso dessa
perda de sua esposa imporá a Admeto um luto perene que tornará a sua vida
impossível (EUR. Alc. 238-243).
Inaugurado por essa previsão sombria do coro, o segundo episódio (EUR. Alc.
238-434) mostra o potencial destrutivo das despedidas dos esposos e do filho Eumelo.
Primeiro, Alceste se despede do Sol, da terra, vê birreme barco de Caronte e ouve-lhe
a
oz,à ád etoà la e taà adaà despedidaà eà i te pelaà aà do à deà
auà Nu e à
à
dýsdaimon, EUR. Alc. 258); Alceste invoca o transporte sob o olhar de alado Hades,
Admeto lastima a dor comum aos filhos (EUR. Alc. 259-265); Alceste, perto de Hades e
da Noite sombria, despede-se dos filhos; Admeto lastima, diz-se nulo com a morte de
Alceste e venerar o amor dela, isto é, o vínculo com ela (sèn gàr philían sebómestha,
EUR. Alc. 279); Alceste proclama o seu valor, contra a desvalia dos pais de Admeto, e
declara a sua última vontade: que os filhos não tenham madrasta (EUR. Alc. 305);
Admeto faz votos de ressentimento e ódio contra os pais, e votos de luto e de ilimitada
devoção pela esposa moribunda (EUR. Alc. 336-368); Alceste pede aos filhos
testemunho desses votos de Admeto (EUR. Alc. 371-373), lega os filhos e os cuidados
maternos a Admeto, e declara que não vive mais (EUR. Alc. 374-392); o filho Eumelo e
Admeto lamentam (EUR. Alc. 393-415); e o coro consola argumentando com a
necessidade e universalidade da morte (EUR. Alc. 416-419); Admeto decreta luto
comum a todos os tessálios (420-434).
61
Rito e celebração na Antiguidade
O segundo estásimo (EUR. Alc. 435-475) reitera a ordem das imagens da morte,
ressaltando o caráter negativo e destrutivo das despedidas do casal real de Feras. A
primeira estrofe situa a rainha perante o cenário sombrio dos ínferos: o palácio de
Hades, a morada sem sol, o Deus da cabeleira negra, velho condutor de mortos, lago
Aqueronte, lenho birreme (EUR. Alc. 435-444). A primeira antístrofe prevê que a rainha,
depois de morta, será celebrada com cantos em Esparta e Atenas (445-453). A segunda
estrofe manifesta o desejo (impossível) de trazê-la de volta do palácio de Hades, das
águas de Cocito; exalta o valor de Alceste, por ter morrido pelo esposo, e considera
horrenda a hipótese de Admeto ter outra esposa (EUR. Alc. 454-466). A segunda
antístrofe reitera a acusação – já feita pela falecida – de desvalia, contra os pais de
Admeto, em contraste com o valor de Alceste.
Por morrer em vez de seu marido, a rainha exige do marido tal reconhecimento
que tornaria impossível toda a vida restante do marido, convertida em vazia
expectativa da morte, somente aliviada pela interlocução em sonhos com a rainha
morta. O coro, porque reconhece o valor conferido à rainha pela renúncia da própria
vida em favor do marido, reconhece ainda a validade das últimas exigências da rainha,
e assim a indissolubilidade da dívida de luto absoluto contraída pelo rei Admeto.
O terceiro episódio (EUR. Alc. 476-567) tem três cenas, a primeira com Héracles
e o coro (EUR. Alc. 476-508), a segunda com Admeto e os mesmos (EUR. Alc. 509-550),
e a terceira com Admeto e o coro, sem Héracles (EUR. Alc. 551-567).
Na primeira cena (EUR. Alc. 476-508), Héracles, a serviço de Euristeu de Tirinto,
passa por Feras, em busca da quadriga de Diomedes da Trácia. O coro diz que o dono
daà uad igaà àfilhoàdeàá es,àeàosà a alosà o à o a idadeàde o a à a es à EU‘. Alc.
494) e Héracles recorda o caráter irrecusável de sua tarefa e os seus combates
anteriores contra filhos de Ares, cujos nomes evocam animais do domínio de Apolo:
Lupi o à Lykáoni, EUR. Alc.
à eà Cis e à Kýknoi, EUR. Alc.-
.à à Cis e à à oà
delinqüente que assaltava os peregrinos visitantes de Apolo a caminho de Delfos,
morto por Héracles, em missão de Apolo, no poema hesiódico O Escudo de Héracles.
,à ád etoà saúdaà H a les,à filhoà deà )eus,à
Na segunda cena (EUR. Alc. 509p oleàdeàPe seu à Diòs paî, EUR. Alc.
;àH a lesà otaàaà to su aàdeàluto à kourâi...
penthímoi, 512) e quer saber a identidade do morto, mas Admeto escamoteia a
esposta.ààQua doàH a lesàdizà ueà oàpaiàest à oàte po,àseàest àpa ti do à patér ge
62
Rito e celebração na Antiguidade
mèn horaîos, eíper oíkhetai, EUR. Alc. 516), parece regar as sementes da cizânia entre
o filho e o pai, plantadas pelas última palavras da falecida. A ambigüidade de Admeto,
na resposta à pergunta de Héracles a respeito da rainha Alceste, reflete da
ambigüidade entre viva e morta como uma imagem da condição de mortal; Admeto
diz:à Mo toà àoà o i u do,àeàaoàse ,à
oà à ais à teth ekh àhoà
llo àk a th d
àoukà
ést à ti, EUR. Alc. 527), mas o filho de Zeus, Héracles, refuta essa confusão, assinalando
la aàdife e çaàe t eà se àeàpe sa à ueà
oà
à EU‘. Alc. 528); Admeto escamoteia a
resposta, ocultando a morte da mulher, para convencer Héracles a aceitar sua
hospitalidade.
Na terceira cena (EUR. Alc. 551-567), Admeto justifica a recepção do hóspede e
a ocultação do luto com o argumento de que a fama de não ser hospitaleiro não
diminuiria, mas agravaria, o infortúnio.
No terceiro estásimo (EUR. Alc. 568-605), a primeira estrofe interpela o palácio
doà eiàád etoàe àFe as,àeàe o aàaàhospitalidadeàaàápoloàp tioà deà elaàli a à eulýras,
EUR. Alc. 568), que aceitou ser pastor, tocar flauta nas colinas e multiplicar o rebanho
(EUR. Alc. 568-577). A evocação dos tempos heróicos de convívio com o Deus Apolo
tem um caráter eminentemente comemorativo da interlocução entre Deus e mortal.
Dado que essa comemoração se dá numa contemporaneidade, a primeira
antístrofe interpela Febo e evoca a alegria e a dança dos animais selvagens ao som da
cítara do Deus: linces, leões e corças (EUR. Alc. 579-587).
Em consonância com essa contemporaneidade do Deus e do herói, a segunda
estrofe descreve a riqueza do palácio e a extensão de seu domínio, limítrofe com a
sombria estrebaria do Sol, sob o céu dos molossos, e com o litoral inóspito do monte
Pélion no mar Egeu (EUR. Alc. 588-596).
Em contraste com essa antiga contemporaneidade, a segunda antístrofe
retorna à presente situação do palácio, quando o rei oculta o luto, em respeito ao
dever de hospitalidade com Héracles, e louva a atitude do rei, considerando-a nobre
sabedoria e veneração aos Deuses (EUR. Alc. 597-605).
O quarto episódio (EUR. Alc. 606-961) tem quatro cenas que contrastam a
situação de Admeto e do coro no contexto dos ritos funerários, com as atitudes de
Héracles antes e depois de o servo informá-lo dos males presentes na casa de Admeto.
63
Rito e celebração na Antiguidade
Na primeira cena (EUR. Alc. 606-613): Admeto anuncia e descreve o rito da
ekphorá, a remoção do féretro da rainha e a procissão e saudações à morta; e o coro
anuncia a entrada de Feres, pai de Admeto, com um adorno funerário e
aparentemente com intenção de participar dos ritos funerários.
Na segunda cena (EUR. Alc. 692-733): Feres louva a excelência que Alceste
revela ao morrer por seu filho Admeto (EUR. Alc. 692-628); agón entre Admeto, que
repele o pai das honras à morta, e Feres, que repele as injúrias do filho, invertendo o
sentido de suas acusações; a esticomitia contrapõe as razões e as injúrias (EUR. Alc.
710-729); Feres parte prevendo represália à morte de Alceste por parte do irmão dela
Acasto (EUR. Alc. 730-733); Admeto sai para os funerais (EUR. Alc. 734-740), o coro
saúda Alceste e menciona Hermes ctônio, Hades e a noiva de Hades (EUR. Alc. 741746). Saem todos, o coro e o rei, para participar da procissão e cumprir os ritos
funerários.
Na terceira cena (EUR. Alc. 747-860), o servo reprova o comportamento de
Héracles hóspede a fazer feliz banquete em casa que guarda luto; Héracles reprova o
aspecto sombrio do servo, e como antídoto à inevitabilidade da morte aconselha que
seà gozeà adaà dia,à aisà ueà issoà depe deà daà so teà oà aisà à deà so te à t d llaà t sà
týkhes, EUR. Alc. 789), e que se honre a Deusa Cípris, (EUR. Alc. 791), convida a beber,
eà se te iaà ueà
o taisà de e à pe sa à o oà o tais ,à óntas thnetoùs thnetà kaì
phroneîn khreón, EUR. Alc.799); o servo revela a morte da rainha e o caráter
escrupuloso da hospitalidade de Admeto; Héracles se informa onde é o túmulo de
Alceste e propõe-se a salvá-laàdeà Mo te,à ai haà eg ialadaàdosà o tos àpo à eioàdeà
iol
ia,à o à oà pla oà alte ati oà deà i à
à asaà se à sol ,à pe suadi à aà do zelaà eà oà
se ho à dosà fe os à EU‘. Alc.852), e trazê-la de volta ao rei em retribuição pela
escrupulosa hospitalidade. O plano alternativo revela relações amistosas do filho de
Zeus com os Deuses ínferos; e ambos os planos revelam o caráter divino do herói
semideus.
Na quarta cena (EUR. Alc. 861-961), feitos os funerais, ao retornar à sua casa,
ád etoà te à ho o à aoà pal ioà deà suaà iu ez,à i ejaà osà fi adosà eà desejaà
oaà
a ueleàpal io à EUR. Alc. 867), tal refém Morte levou ao palácio de Hades (EUR. Alc.
861-872). A propósito, Christiane Sourvinou-I
64
oodà o se aà ueà aà expressão ritual
Rito e celebração na Antiguidade
do desejo de juntar-seà aoà fale idoà e aà pa teà doà itoà fu e
ioà g ego à “OU‘VINOU-
INWOOD, Christiane – Tragedy and Athenian Religion, 2003, p. 319).
Prossegue o pranto ritual cantado alternamente por Admeto e o coro (kommós,
EUR. Alc. 861-934): na primeira estrofe, o coro consola Admeto, que lastima a dor da
perda (EUR. Alc. 873-878); na primeira antístrofe, o coro consola Admeto, que lastima
não estar no Hades, além do lago ctônio (EUR. Alc. 879-902); na segunda estrofe, o
coro consola Admeto (EUR. Alc. 903-912), que contrasta os presentes funerais com a
sua festa de núpcias (EUR. Alc. 913-925); na segunda antístrofe, o coro conclui o
consolo, ressaltando o valor da vida convivida que permanece no vivo e a
universalidade da perda pela morte (EUR. Alc. 926-933). No fecho do quarto episódio,
o rei Admeto considera que o Nume da falecida teve melhor sorte que o dele mesmo,
porque a falecida está preservada da dor e está livre das fadigas, e constata que ter
morrido teria sido melhor que sobreviver à esposa. (EUR. Alc. 935-961).
O quarto estásimo (EUR. Alc. 962-1005) tem dois pares de estrofe e antístrofe.A
primeira estrofe (EUR. Alc. 962-972) descreve como superior aos mortais a força
coerciva da Morte (Anánkes, EUR. Alc. 965), para a qual não se descobriu, nos escritos
trácios, antídoto oriundo de Orfeu, nem se descobriram remédios de Apolo, colhidos
pelos médicos, ditos filhos de Asclépio.
A primeira antístrofe (EUR. Alc. 973-983) descreve a inexorabilidade dessa
Deusa, que não ouve preces nem aceita sacrifícios, e associa a inexorabilidade dessa
Deusa a Zeus. Essa associação da Deusa Anánke, entendida como a superioridade
coerciva do Deus Thánatos,à Mo te ,à aà )eusà Pe fe ti oà teleutãi, EUR. Alc. 979) tem
paralelo hesiódi oà
oà s à aà duplaà i se ç oà dasà Pa tes à Moirai) no catálogo dos
filhos da Noite e no catálogo dos filhos de Zeus e Têmis, na Teogonia de Hesíodo, mas
também na reiterada conclusão de ambas as narrativas hesiódicas do mito de
P o eteu,à aà sa e :à N oà seà podeà fu ta à e à t a sg edi à oà se tidoà deà )eus à HE“.à T.
,àeà ássi à
oàh à o oàe ita àoàse tidoàdeà)eus à HE“.àT. D. 105).
Na segunda estrofe (EUR. Alc. 984-994), o coro consola Admeto perante a
superioridade coerciva da Deusa (subentendido Anánke,à Coe ç o ,à alega doà aà
irreversibilidade e universalidade do fenômeno da morte. Perante a coerciva e
inelutável presença dessa Deusa, o louvor da falecida como a mais nobre de todas as
65
Rito e celebração na Antiguidade
esposas é o último recurso de sua participação nos Deuses súperos, perpetuada no
epitáfio e no epicédio pelo culto funerário.
Na segunda antístrofe (EUR. Alc. 995-1005), o coro recomenda honrar Alceste
o oàaosàDeuses àeàp e à ueàp e esàse oàdi igidasàaàelaà o oàaà e tu osoàNu e .à
Às cerimônias fúnebres e aos ritos funerários vistos como o último recurso diante da
morte, acrescenta -se o perene culto funerário, por inclusão da rainha morta no culto
dos Numes e dos Deuses ínferos, como a última e extrema consolação à dor da perda
pela morte.
O êxodo (EUR. Alc. 1006-1163) tem um sentido misteriosamente ambíguo: que
valem as palavras de Héracles a Admeto a respeito da mulher que se revela uma
imagem sem voz da rainha morta? A ambiguidade reside em que a esposa é restituída
ao esposo numa efígie símil à falecida, mas sem voz, reduzida ao silêncio; a
ambiguidade inerente à imagem nesta muda efígie oscila não somente entre a verdade
e a mentira, mas também entre a vida e a morte.
O contexto da fala de Héracles a Admeto – a saber, as relações de hospitalidade,
presididas por Zeus Hóspede – e o caráter do falante – a saber, Héracles, filho de Zeus,
e libertador de Prometeu nos poemas hesiódicos e no drama esquiliano –
recomendam que se tomem as palavras de Héracles como bem intencionadas com
Admeto, como condizentes com o falante e, portanto, apresentadas, na perspectiva do
drama, como verdadeiras. Ora, a verdade vista por essa perspectiva, no entanto, tem a
qualidade temporal do convívio dos heróis e dos Deuses, e assim se distingue do
horizonte temporal do convívio dos homens consigo mesmos na polis.
A perspectiva do drama leva a crer que, no terceiro dia depois de ser resgatada
dos ínferos, purificada desse contato, a rainha retorna à sua rotina cotidiana em casa
com o marido e os filhos.
Como Apolo predisse no final do prólogo, ocorre, entre o quarto estásimo e o
êxodo desta quarta tragédia da tetralogia, um jogo que redesenha os limites
definitivos e distintivos dos Deuses imortais e dos homens mortais, e confere a esses
limites um inesperado aspecto lúdico, com a presença e intervenção de Héracles.
Ao sublinharem o inesperado dessa reversão da morte, as palavras finais do
coro (EUR. Alc. 1059-1163) a explicam pelo comportamento dos Numes, imprevisível
66
Rito e celebração na Antiguidade
na perspectiva dos mortais, e assim resumem o sentido pio e reverente da tragédia a
que servem de fecho.
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67
Rito e celebração na Antiguidade
CELEBRAÇÃO E RETÓRICA EM ESTÁCIO
Profa. Dra. Leni Ribeiro Leite (UFES)
Estácio trabalha, na Silva 3.1, com a dedicação de um templo a Hércules em
Sorrento, como ícone de uma mudança cultural e literária operada durante o período
flaviano. Neste trabalho, pretendemos apontar, no poema 3.1, momentos em que a
celebração do templo de Hércules é também celebração do novo momento político
imperial.
As Silvae, poemas de ocasião do poeta Estácio, sofrem o estigma de terem sido
produzidas sob o governo de Domiciano, considerado por um longo tempo um
imperador tirânico e paranoico, egoísta e exagerado, sob o qual nenhuma forma
artística teve a liberdade para se desenvolver de forma plena, causador de uma plena
e sofrível decadência dos costumes e da sensibilidade artística da sociedade romana. A
literatura da época, comparada aos obeliscos e outras estruturas arquitetônicas
monumentais com as quais Roma foi povoada durante o império de Domiciano, nada
mais poderia ser do que exagerada, decadente, menor. No entanto, a partir da década
de 90, um movimento de revisão do período flaviano, em geral, e de Domiciano, em
particular, vem causando também renovado interesse sobre a produção literária do
período, de que escassos exemplares chegaram a nós: restam-nos, quase que
exclusivamente, as obras poéticas de Marcial e Estácio.
Dentro da obra de Estácio, ainda, as Silvae receberam menos atenção do que os
dois poemas épicos do mesmo autor, a Tebaida e a inacabada Aquileida. Duas
características da própria obra contribuem para esse posicionamento reticente da
crítica em relação às Silvae. Por um lado a indefinição genérica da obra e sua
caracterização pelo próprio autor como poesia menor a torna difícil de manejar com os
it iosà eà atego iasà usuais,à p i ipal e teà seà o pa adaà à est adaà atida à
oferecida pelas duas demais obras de Estácio, fáceis de serem acomodadas na moldura
daà pi aà e gilia a.àPo àout oàlado,àaàte
elemento das Silvae
ti aàdoàelogioà ue,àsegu doàCole a ,à à oà
aisàa tit ti oàe à elaç oàaoàgostoà ode o ,àp esta-se a gerar
afastamento ou descaso. Nossa intenção neste trabalho é propor uma leitura de um
poema de Estácio, o primeiro do terceiro livro das Silvae, a partir de reflexões acerca
68
Rito e celebração na Antiguidade
dessas duas dificuldades encontradas pelos críticos na obra. Defendemos que a causa
principal das dificuldades de leitura das Silvae é o caráter eminentemente inovador da
obra, tanto do ponto de vista formal quanto temático, que, por isso, não se molda
adequadamente aos padrões augustanos de literatura que são dela injustamente
esperados.
O poema em questão aqui, Silvae 3.1, é programático em ambos os aspectos.
Primeiramente, ao comemorar a construção do templo de Hércules, ele celebra
também as novas qualidades da sua poesia que ele mesmo aponta em seus prefácios –
lá, como defeitos, mas nos poemas, como virtudes. Ao mesmo tempo, porém, também
ilumina defeitos de outra ordem, do mundo extraliterário, do social, transformados em
qualidades sob a égide do Império: a riqueza e luxo que este proporciona, o ingenium
humano (a própria palavra ingenium aparece textualmente em todos os livros da
Silvae) que vence a natureza bárbara.
Newlands (1991:438) afirma que os trechos em que Estácio fala das Silvae
o oà poe asà feitosà sà p essas ,à deà o asi o ,à
e o es à s oà u à luga à o u à daà
poesia latina; compare-se com o mesmo efeito em Catulo e Marcial, autores cujas
obras já foram objeto de estudos de maior fôlego. A ocasionalidade esconde
complexidade – o leitor supostamente se surpreenderia ao encontrar, após prefácios
em que os poemas são descritos com termos como celeritatis, in singulis diebus effusa
(no prefácio ao primeiro livro),subito natos (3, praef, 4) os poemas refinados que se
seguem.
Quid quod haec serum erat continere, cum illa vos certe quorum
honori data sunt haberetis. Sed apud ceteros necesse est multum illis
pereat ex venia, cum amiserint quam solam habuerunt gratiam
celeritatis. Nullum enim ex illis biduo longius tractum, quaedam et in
singulis diebus effusa.
(Silvae, 1. praef. 10-15)
Além disso, era muito tarde para contê-los, pois você, certamente, e
os outros em cuja honra eles foram feitos os possuíam. Mas junto ao
público é necessário que abandonem muito do que receberiam de
indulgência, pois perderam o que só tiveram graças à rapidez. De
fato, nenhum deles levou mais do que dois dias para compor, alguns
foram feitos em um só dia.
69
Rito e celebração na Antiguidade
A questão do pertencimento genérico de Estácio será tema para um outro
trabalho; vale apontar, no entanto, as frutíferas comparações que têm sido feitas da
obra de Estácio com a de Marcial, e das Silvae com a poesia épica de Estácio e de
outros autores.
Segundo a mesma Newlands (2002), a obra de Estácio deve ser compreendida
como em diálogo em relação aos gêneros da Antiguidade, sem dúvida, mas também
como um esforço em estabelecer uma nova maneira de fazer poesia, mais adequada
às necessidades artísticas de sua época. O principal problema parece ser o fato de que
o instrumental teórico desenvolvido pelos estudos sobre poesia latina, pelo menos de
forma mais geral, tomam como exemplário a poesia do período de Augusto. O
instrumental assim gerado não é adequado para analisar obras de outros períodos.
As Silvae são conscientemente inovadoras ao marcar em sua relação com a
poesia sua anterior mais as diferenças do que as semelhanças, e ao trabalhar os
mesmos temas sob uma nova luz. Estácio rearticula e reinterpreta o passado literário
em sua própria poesia, reescrevendo-o: um processo que Stephen Hinds (1998)
esclareceu para a Aquileida, no quinto capítulo de Allusion and Intertext, mas até agora
pouco explorado nas Silvae.
No poema 3.1, o passado literário ao qual Estácio alude é, por um lado, o
calimaqueano, por outro, o vergiliano. Richard Thomas (1983) mostrou como o
terceiro livro das Aetia de Calímaco e o terceiro livro das Geórgicas, de Vergílio
começam com referências a Hércules. Assim também o terceiro livro das Silvae se abre
com um poema que pode por si mesmo ser considerado um aetion sobre o
reestabelecimento de um culto e sobre o novo templo na propriedade de Pólio.
Intermissa tibi renovat, Tirynthie, sacra
Pollius et causas designat desidis anni,
quod coleris maiore tholo nec litora pauper
nuda tenes tectumque vagis habitabile nautis,
sed nitidos postes Graisque effulta metallis,
culmina, ceu taedis iterum lustratus honesti
ignis ab Oetaea conscenderis aethera flamma.
Vix oculis animoque fides. tune ille reclusi
liminis et parvae custos inglorius arae?
unde haec aula recens fulgorque inopinus agresti
Alcidae? sunt fata deum, sunt fata locorum.
(Silvae, 3.1.1-11)
Tiríntio, Polião renova teus ritos interruptos,
70
Rito e celebração na Antiguidade
e explica os motivos para a pausa de um ano,
pois és cultuado sob um amplo domo, e não tens,
como um pobre, apenas uma choupana própria para marinheiros perdidos,
e sim marcos brilhantes e telhados suspensos sobre mármores gregos,
como se purificado novamente pelas achas de um fogo honrado
subisses ao céu a partir das chamas etéreas do Eta.
Mal podem crer os olhos e a mente. És tu
o inglório guardião do umbral sem porta e do pequeno altar?
De onde vieram esse novo palácio, esse inesperado esplendor do rústico
Alcides?
Têm seu destino os deuses, bem como os lugares.
Ainda que muitos dos poemas das Silvae tenham personagens mitológicas
como ponto de referência e de comparação, em apenas dois poemas uma personagem
mitológica é o tema central. Em ambos os casos, essa personagem é Hércules, visto em
uma instância sob a aparência de uma estátua - no poema 4.6, em que a estátua de
Hércules Epitrapézios, pertencente a Vindex Novius, é o tema central – e a propósito
de um templo, no poema 3.1. Ambos os objetos, tão diferentes, são mote para a
inclusão de novos capítulos ao percurso lendário de Hércules, e dão a ambos os
proprietários e ao poeta a oportunidade de renegociar suas próprias representações
com a cultura do passado. Já é consenso que a abordagem de Estácio em ambos os
poemas é uma variante romana da êcfrase. No caso dos poemas sobre Hércules, os
componentes descritivos são apresentados de forma a situar cada objeto dentro da
narrativa da carreira de Hércules. No poema 3.1, que nos interessa mais de perto,
Hércules auxilia o dono da villa, Pollius Felix, a reconstruir seu próprio templo, cujo
aspecto físico brilhante retoma o trabalho de construção da pira funeral no monte Eta,
instrumento de sua morte e de sua apoteose.
Este é o tipo de tema que interessaria a Calímaco, e a própria palavra causas se
encontra em posição de destaque após a cesura no segundo verso. Por outro lado, a
referência a Vergílio é também clara: bastaria observar que a obscura personagem
Molorchus, citada no verso 29, aparece na literatura latina predecessora a Estácio e
que chegou a nós em apenas duas outras obras; uma delas é o verso 19 do terceiro
livro das Geórgicas.
No proêmio das Geórgicas, Vergílio justifica uma mudança de tom, ao passar de
um tema rural, portanto menor, para um tema de maior importância, as ações de uma
figura política importante, Otaviano. Estácio cria uma ligação entre as duas obras para
criar quase um negativo do caminho vergiliano: as Silvae são a obra de dicção mais
71
Rito e celebração na Antiguidade
humilde de um poeta que já escrevera um poema épico de sucesso. Em retrospecto, o
anúncio de Vergílio vale não só para o terceiro livro das Geórgicas, mas muito mais
para sua obra seguinte, a Eneida; Estácio caminha na trilha inversa de Vergílio. Este foi
do Culex à Eneida: aquele sai da Tebaida para a experimentação calimaqueana das
Silvae. O estado fragmentário das Aetia não nos permite dizer se havia um templo
como tema no início do terceiro livro, mas nas Geórgicas há. O templo de Vergílio é
metafórico, em honra a Otaviano, representando o poema que ele se propõe a
escrever. Ambos os templos se situam na terra natal do poeta; o de Vergílio é em
Mântua (vv.12-15), o de Estácio é na Baía de Nápoles (v.64). Ambos os templos
instituirão jogos que, segundo os autores, superarão os famosos jogos gregos.
A relação literária entre Estácio e Calímaco, por um lado, e Estácio e Vergílio,
por outro, está claramente estabelecida. No entanto, sendo as Silvae claramente
calimaqueanas em estilo e tema, elas também se afastam de Calímaco em muitos
aspectos, reescritos por Estácio com base em Vergílio para sua poética particular. Por
exemplo, Estácio cita por que razão os jogos do novo tempo de Hércules serão maiores
do que os jogos pan-helênicos: porque aqueles começam sem a tristeza que marca,
mitologicamente, o início dos jogos Ístmicos e dos jogos de Nemeia. Ambos teriam sido
iniciados como jogos funerais. Aparentemente esses mesmos mitos teriam sido parte
dos Aetia: o início dos jogos pan-helênicos fascinaram Calímaco. Estácio se refere a
estes de uma forma alusiva bastante calimaqueana em si, mas para negá-los, como no
e soà
à litat felicior infans .à “eusà jogos,à o oà suaà poesia,à
mergulhar nosà ho o esà daà gue a,à ouà fala à deà t istezas:à
oà desejaà
aisà
ilà hisà t isteà lo is (v.141).
Mantendo esse espírito afastado da guerra e da infelicidade, que é um espírito poético
próximo a Vergílio nas Geórgicas, ambos os poetas participam das cerimônias de seus
templos, e ambos trazem presentes. Vergílio qualifica seus presentes, os poemas sobre
agricultura, como intactos ao fim do proêmio de Geórgicas 3; Estácio, no verso 67,
referira-se aos poemas cultivados por ele mesmo e por Pólio como intactaque carmina.
Desta forma, Estácio ao mesmo tempo aproxima-se de Vergílio, ao conformar
sua nova forma poética àquela de Vergílio, e afasta-se dele, uma vez que Vergílio, nas
Geórgicas 3 (e, mais tarde, na Eneida), despedir-se-á deste tipo de poesia, em favor de
formas mais elevadas, mais sérias, mais bélicas. Da mesma maneira, após unir-se às
fileiras de Calímaco, Estácio o rejeita. No mesmo trecho, vv.55-67, lemos que a poesia
72
Rito e celebração na Antiguidade
intocada fora cultivada pelo poeta e seu amigo no dia em que o culto a Diana Aricina
era celebrado e em lugar da celebração. Sérvio nos diz que Calímaco escreveu sobre
esse culto, mas Estácio deliberadamente informa que não participou do rito que tem
origem em sacrifício humano. Ou seja, apesar de evitar o ritual para escrever poesia
calimaqueana, seu espírito é vergiliano em sua pureza.
A dicção épica, porém, não está totalmente descartada: há vários momentos
épicos na poesia das Silvae, retrabalhados, porém, de forma burlesca. No poema 3.1, o
tom épico é anunciado pela invocação no verso 49: Calíope é chamada para contar
como surgiu o templo. No entanto, apesar do estilo passar a ser caracterizado como
grande e tenso, o acompanhante da musa é um Hércules bufão, tocando um arremedo
de música na corda do arco. (vv. 49-51). O trecho que conta a redescoberta do templo
em um dia de chuva é recheado de alusões à Eneida. Esses ecos, no entanto, soam
quase engraçados: Estácio mostra a Vergílio que não é necessário abandonar a dicção
humilde para fazer épica.
Citemos alguns exemplos apenas dessas referências à Eneida. Primeiro, quando
a tempestade força o grupo de amigos a procurar refúgio no pequeno templo, este é
comparado à caverna de Dido e Eneias, na Eneida 4:
Delituit caelum et subitis lux candida cessit
nubibus ac tenuis graviore favonius austro
immaduit; qualem Libyae Saturnia nimbum
attulit, Iliaco dum dives Elissa marito
donatur testesque ululant per devia Nymphae.
(Silvae, 3.1.71-75)
Speluncam Dido dux et Troianus eandem
deueniunt. Prima et Tellus et pronuba Iuno
dant signum; fulsere ignes et conscius aether
conubiis summoque ulularunt uertice Nymphae.
(Vergílio, Eneida, 4.165-168)
Uma cena de tamanha importância na Eneida, comparada a um grupo fugindo
da chuva, guarda um inegável traço cômico. O mesmo tipo de comparação é levada a
cabo ao se falar do trabalho em si de reconstrução do templo: o verso 122 de Estácio,
i do itus ueàsile à u aàfo a eàli ues it repete quase literalmente o verso 446 do
canto 8 da Eneida, em que Vulcano derrete metal em sua forja para a armadura de
Pala te:à vulnificusque hal sà astaà fo a eà li ues it . Vulcano, no entanto, faz um
73
Rito e celebração na Antiguidade
t a alhoà ueà esulta à e à o ti
io,à eà po à isso,à antra Aetnaea tonant, ualidique
incudibus ictus / auditi referunt gemitus à
paz de Hércules ressoa como música:
.à
-420), enquanto que o trabalho de
dites ueà Cap aeà i ides ueà esulta tà /à
Tau u ulae,àetàte isài ge sà editàae uo isàe ho. (vv. 128-129).
Desde o início de seu intermezzo épico, Estácio pontuou que seu poema falava
de paz, de criatividade, de um trabalho frutífero, e o estilo épico foi modificado para
transmitir prazer e alegria, uma profunda alteração nos usos desse tipo de poesia.
As alusões de Estácio, portanto, não são meras repetições passivas. Ao dialogar
com a literatura precedente, não só latina como grega, criando uma rede de
similaridades e dissimilitudes, Estácio marca uma distância poética que os separa,
ainda que parte da mesma estrada.
Apesar desses aspectos literários bastante evidentes, as Silvae foram mais lidas
e debatidas pelo aspecto das informações sobre a cultura e a sociedade romana do
período de Domiciano. De fato, ao descrever as villas, as estátuas, os banquetes, a
corte, as Silvae são uma fonte importante do ponto de vista social, e revelam muito
sobre um período em que o governo toma a feição drástica de uma monarquia
divina.Aqui, também, portanto, os padrões já não são os mesmos de períodos
precedentes. As Silvae merecem uma investigação cuidadosa acerca das condições de
produção artística sob um governo que, se levarmos em consideração o que diz Plínio
no Panegírico (1-2), transformou o elogio no tema literário mais perigoso.
De forma geral, as Silvae foram lidas como simples bajulação ou como literatura
subversiva. Em ambos os casos, porém, parte-se por alguma razão do princípio que
Domiciano é o tema central da poesia de Estácio, quando, de fato, o imperador não é o
recipiente de nenhum dos volumes das Silvae, todos dedicados a outras figuras pouco
importantes do período; e mesmo como tema dos poemas Domiciano é menos
frequente do que se esperaria se o elogio ao imperador fosse o tema central de Estácio:
ele está completamente ausente dos livros dois, três e cinco. Poemas acerca de amigos
e conhecidos são muito mais comuns, em geral pessoas que haviam se retirado da vida
pública, e refletem uma variedade de posições sociais e origens; com exceção do
imperador, o único personagem de alguma importância na vida de Roma que tem um
poema de elogio nas Silvae é Rutilius Gallicus, e o poema é um lamento por sua morte.
74
Rito e celebração na Antiguidade
A visão de que qualquer obra da literatura latina do período imperial servia à
elite, em especial aos interesses do imperador, sob pena de simplesmente não mais
existir, não leva em conta os diferentes grupos sociais nem sempre em acordo que
havia na época de Estácio, nem a mobilidade e confluência de grupos, papéis e
aspirações em um mundo em que a aristocracia tradicional estava sendo superada por
famílias oriundas das províncias, por libertos, por elementos das famílias equestres,
por um grupo de novos ricos que suplantavam ou ao menos ameaçavam os poderes
senatoriais.
Em uma sociedade de tal forma complexa, a poesia de Estácio está pronta a
mostrar o que há de novo e diferente em relação aos períodos anteriores.
Hardie (1983) e Coleman (1988), entre outros, debatem a questão do patronato
imperial, comparando, por exemplo, a produção de Horácio acerca do assunto, e
comparando-a com a de Estácio. Sem negar a importância deste tema para os estudos
das Silvae, abordaremos aqui um outro elemento da poesia de Estácio que também
parece surgir como resposta à nova ordem social e política, mas que ocupa menos a
atenção da fortuna crítica.
No início do poema, Pólio é um novo pauper Molorchus: apesar das riquezas no
entorno, a região onde se encontra o templo de Hércules é pobre, o templo em si,
risível. No entanto, Estácio não se entretém cantando a dignidade da pobreza, como
fariam os poetas helenísticos, e mesmo Vergílio, autores de poemas em que
personagens humildes são dignificados. Ao contrário, em uma inversão dos valores
tradicionais – que já não cabem em pleno fausto imperial – um Hércules bemhumorado observa a riqueza da propriedade ao redor e repreende Pólio pela situação
de abandono e pobreza de seu templo perguntando: mihi pauper et indignus uni
Pollius?
Plínio, o Velho, na Historia Naturalis, é um modelo do pensamento romano
tradicional acerca do luxo e da riqueza: seus livros sobre arte são uma história de
progresso técnico e decadência moral, o segundo o produto inescapável do primeiro. A
arte é feita de materiais naturais, e por isso essencialmente bons; esses materiais,
porém, podem ser pervertidos pela ganância humana para atender a desejos frívolos.
Para Plínio, o luxo é uma corrupção do mundo natural. A frugalitas era uma
característica essencial do mos Maiorum, e os excessos da riqueza inevitavelmente
75
Rito e celebração na Antiguidade
levavam ao relaxamento das virtudes – uma ideia não de todo inexistente em nossos
tempos modernos. No entanto, como os romanos do período imperial, em especial do
período flaviano, poderiam reconciliar seu cotidiano de villas luxuosas a um ideal de
virtude e moralidade que representava as suas origens?
Na poesia de Estácio, os valores tradicionais têm que ser atualizados para que
sejam compatíveis com as mudanças sociais. Assim, a virtude, e não a origem de uma
família tradicional, é o motivo de proteção dos deuses, ou de uma posição de prestígio;
a riqueza, quando bem utilizada, é marca de bom gosto e merecimento. A poesia de
Estácio mostra uma atitude muito diferente da tradicional em relação ao luxo e ao uso
do dinheiro para fins particulares; a riqueza é apresentada como uma virtude, ou ao
menos um elemento que põe em evidência a virtude de seu possuidor. Observemos as
palavras de Hércules para Pólio.
'tune,' inquit 'largitor opum, qui mente profusa
tecta Dicarchei pariter iuvenemque replesti
Parthenopen? Nostro qui tot fastigia monti,
tot virides lucos, tot saxa imitantia vultus
aeraque, tot scripto viventes lumine ceras ,
fixisti? Quid enim ista domus, quid terra, priusquam
te gauderet, erant? Longo tu tramite nudos
texisti scopulos, fueratque ubi semita tantum,
nunc tibi distinctis stat porticus alta columnis,
ne sorderet iter. Curvi tu litoris ora,
clausisti calidas gemina testudine nymphas.
Vix opera enumerem; mihi pauper et indigus uni
Pollius? [...]
(Silvae, 3.91-103)
Diz:à oà sàtuàoàdist i uido àdeà i uezas,à
que na juventude encheu igualmente as moradas de Dicarco e Partênope
com prodigalidade? Que erigiu em nossa montanha tantas torres,
tantos bosques verdejantes, tantas pedras e bronzes sob a forma de rostos,
Tantas formas de cera coloridas e como que vivas?
O que eram então esta casa, esta terra,
antes que se alegrassem contigo? Tu cobriste
os picos desnudos com uma longa estrada, e onde antes havia só uma trilha,
agora ergue-se teu alto pórtico com colunas separadas,
para que tenha elegância o caminho. Na margem do curvo litoral,
tu aprisionaste as águas termais com dois domos.
Mal enumero todas as melhorias; só para mim Pólio
é um pobre indigente?
Hércules apresenta Pólio não só como generoso, mas como o benfeitor de uma
região de outra forma rude e inóspita. Observamos aqui como, no novo esquema de
76
Rito e celebração na Antiguidade
relações, a natureza não é mais desejável, pura, mas selvagem e rude – faz-se mister
que a mão do homem venha domesticá-la, como no momento da construção do
templo. A transformação do espaço, perpetratada pelo homem, é agora um
aprimoramento do que a natureza fizera, e não uma deturpação.
[...] Coquitur pars umida terrae,
protectura hiemes atque exclusura pruinas,
indomitusque silex curva fornace liquescit.
Praecipuus sed enim labor est excindere dextra
oppositas rupes et saxa negantia ferro.
Hic pater ipse loci positis Tirynthius armis,
insudat validaque solum deforme bipenni,
cum grave nocturna caelum subtexitur umbra,
ipse fodit, ditesque Caprae viridesque resultant
Taurubulae, et terris ingens redit aequoris echo.
(Silvae, 3, 120-129)
[...]Coze-se a terra úmida,
para que proteja dos invernos e contenha as nevascas,
e a pedra indomada derrete na fornalha redonda.
Mas o pior trabalho é arrancar com as mãos
as pedras e rochas que resistem ao ferro.
Aqui, o próprio pai do lugar, o Tiríntio, abandonadas as armas,
sua ao cavar ele mesmo o chão rugoso com a picareta
quando o céu escuro é coberto pela sombra noturna;
a rica Capri e a verdejante Taurubula ressoam
e o eco imenso do mar retorna às terras
Ao fim do poema, Hércules visita o templo durante os jogos, e homenageia
Pólio e sua esposa, Polla. Assim diz Hércules:
Ma teàa i isàopi us ueàmeos imitate labores,
qui rigidas rupes infecundaeque pudenda
naturae deserta domas et vertis in usum
lustra habitata feris, foedeque latentia profers
u i a.àQuaeàti ià u à e ito u àp ae iaàsol a ?
(Silvae, 3.166-170)
Ho adoàpo àseuàesp itoàeàpor sua riqueza, imitador dos meus trabalhos,
domador das pedras rudes e dos ermos, vergonhas da natureza
infecunda, e que transforma antros habitados por feras
em locais úteis, e traz à luz as deidades escondidas
pela vergonha. Que prêmios agora te oferece eiàpeloàseuà
ito?
As palavras de Hércules não poderiam ser melhor escolhidas. O espírito de
Pólio é homenageado em paralelo a suas riquezas, como duas virtudes iguais e
mutuamente determinantes. Essas duas características elogiadas pelo deus são a razão
77
Rito e celebração na Antiguidade
de ser Pólio o responsável por uma mudança para melhor na natureza deserta e
infecunda do lugar; ele é o homem que, com suas qualidades, fecunda, embeleza,
aprimora a natureza.
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à Ja .à
à Multipleà i itatio sà ofà epi à odelsà i à theà Silvae. à I :à
NAUTA, VAN DAM & SMOLENAARS. Flavian Poetry. Leiden, Boston: Brill.
79
Rito e celebração na Antiguidade
RITO E POESIA NAS METAMORFOSES DE OVÍDIO
Raimundo Carvalho (UFES)
Com cerca de 12 mil versos, divididos em 15 livros, as Metamorfoses de Ovídio
são um dos maiores poemas legados pela antiguidade clássica. Escrito nos primórdios
da era cristã, é, ao mesmo tempo, uma súmula de vasto saber acumulado e uma
ruptura com os modelos épicos vigentes. Classificado como um poema épico, as
Metamorfoses não seguem o modelo usual, não concentra a ação na saga de um herói
específico, modelo de excelência guerreira e virtudes cívicas, mas se diversifica na
apresentação de relatos variados, que desfilam desde um saber cosmogônico sobre as
origens até o pormenor mitológico de sabor erudito e burlesco.
No prólogo, o poeta enuncia o assunto e o plano do poema, enquanto faz uma
invocação aos deuses todos, em vez de simplesmente invocar as musas:
In noua fert animus mutatas dicere formas
Corpora. Di, coeptis (nam uos mutastis et illas),
adspirate meis primaque ab origine mundi
ad mea perpetuum deducite tempora carmen.
Faz-me o estro dizer formas em novos corpos
mudadas. Deuses, (já que as mudastes também),
inspirai-me a empresa e, da origem do mundo
ao meu tempo, guiai este canto perpétuo.
Nas Metamorfoses, Ovídio criou um modelo dinâmico de escritura, um tecido
musical ininterrupto, capaz de abrigar em si um vasto imaginário, submetendo-o ao
princípio único e constante de mutação de todas as coisas, num processo de repetição
semelhante à técnica do letmotiv na música, com seus temas e variações. As histórias
sucedem umas às outras numa temporalidade que parte do instante da narração para
qualquer outro ponto do passado ou mesmo do futuro, numa linha que recobre muito
mais o in illo tempore da fábula do que os fatos considerados históricos. No entanto, as
circunstâncias históricas determinam toda a narrativa, fazendo com que os
personagens míticos ajam e sintam como seres humanos submetidos à sua lógica.
Além do mais, muitas das metamorfoses descritas são narrativas etiológicas que
80
Rito e celebração na Antiguidade
apontam para um estado de coisa atual. Ovídio opera contrapontisticamente dando ao
passado atributos do presente. O poema é ao mesmo tempo uma seleção de contos e
um diálogo dinâmico com a tradição literária e filosófica, através do jogo intertextual e
alusivo. Ovídio condensa, amolda e reorganiza os dados da tradição e do contexto,
traduzindo-os em novos termos, segundo o padrão de sua linguagem, tal como
acontece a um mito, que é sempre a tradução em novos termos de um outro mito,
como define Lévi-Strauss.
A arte do poeta consiste justamente em concentrar o problema da
metamorfose como uma questão de linguagem. É a linguagem que se move e que
reencena o jogo metamórfico. O poeta não encontra dificuldade, através de uma
suspensão temporal e da seleção de atributos, de perceber as analogias entre um
corpo e outro e assim proceder à transformação deste naquele.Estudando o processo
metamórfico ovidiano, Chcheglov
(1979, p 139-157) destaca o viés científico da
figuração dos objetos nas Metamorfoses que se distinguem uns dos outros pelas suas
propriedades físicas, isoladas em epítetos à primeira vista redundantes ou evidentes.
Construções como rigidus silex,à ped aà du a ,à curua falx,à foi eà u a ,à ouà liquidas
aquas,à guasàl
pidas , indicam que Ovídio trabalha com categorias abstratas e não
está preocupado em descrever um objeto isolado, mas um objeto-padrão típico que se
diferencia ou se assemelha a outro de outra série. A transformação de um em outro se
dará operando no detalhe destacado, seja na transmutação da propriedade de um
para o outro, seja na permanência do traço distintivo como marca de que a
metamorfose já estivesse determinada, inclusive do ponto de vista linguístico, com a
manutenção do nome do ser anterior no novo ser transformado. Chcheglov compara
essa técnica ao close-up cinematográfico, mas destaca também a existência de
g a desà pa o
i as,à o à uitasà figu as,à e asà deà assa,à o deà aà istaà a a aà deà
u aà s à ezà g a deà ú e oà deà o jetos ,à o à oà es oà p o edi e toà sistêmico de
isolar certas propriedades físicas da paisagem, como o monte, o campo, a floresta, o
rio, a margem, a praia, o mar, a caverna, etc. Após a leitura deste importante artigo,
fica-se sempre com a impressão de que faltou algo a ser dito: o procedimento ovidiano
de descrição dos objetos é tão somente uma técnica de encaminhamento do processo
metamórfico. O efeito final não é de distanciamento ou frieza em relação ao destino
do ser metamorfoseado, mas de caloroso envolvimento com o drama do personagem.
81
Rito e celebração na Antiguidade
Calvino (1994, 31-42) observa que Ovídio, para introduzir os seus leitores no
mundo dos deuses celestiais, começa por aproximar esse mundo do deles, a ponto de
torná-lo idêntico a Roma de todos os dias, nos seus aspectos urbanos, na sua divisão
em classe sociais, nos seus costumes (a multidão dos clientes), na sua religião, pois os
deuses têm em casa os seus penates e a eles prestam um culto domésticos, tal como o
faziam os romanos do seu tempo. Para Calvino, a contigüidade entre deuses e seres
humanos, tema dominante nas Metamorfoses, é apenas um caso particular da
contigüidade entre todas as figuras e formas existentes. O que o poeta opera, neste
trecho, como de resto em todo o poema, é uma espécie de tradução das realidades
celestes para a linguagem dos homens, os reais receptores da mensagem poética.
Ovídio é um mestre da recriação. De um ponto de vista macroestrutural, as
Metamorfoses se constituem como um longo tecido de histórias e mitos aproveitados
das mais variadas fontes e costurados com habilidade pelo poeta, a fim de terem a
aparência de um fluxo continuo. A contigüidade é um efeito de linguagem criado a
partir dos nexos que o poeta vai inventando para ligar uma história à outra.
Diante disso, poderíamos perguntar como Paul Veynne: Acreditavam os
romanos nos seus deuses? A resposta de Ovídio a essa questão não seria isenta de
ambiguidade. Os deuses existem, mas são criaturas poéticas, moldadas à medida do
desejo humano. A explicitação do caráter ficcional da divindade é algo que vai na
contramão dopoder temporal absoluto centralizado na figura do imperador que
procura sua legitimação no sistema de crenças. Ovídio tem consciência do caráter
perturbador de sua visão de mundo e sabe que ela contrasta com a política oficial. Daí
que procura se defender previamente de acusações que um dia lhe serão imputadas,
restringindo o alcance de suas formulações poéticas e semeando aqui e ali, em sua
obra, um augustanismo retórico e ritual, segundo a praxe da época. No entanto, é
preciso entender que a poesia de Ovídio é também ela fruto das transformações por
que passou a sociedade romana, com a ascensão de Augusto, marcando o fim das
guerras civis e o início de grandes conquistas territoriais e riquezas advindas dessas
conquistas. As idéias morais e religiosas do imperador contrastam com a da maioria
dos cidadãos embalados pelas riquezas e pelas oportunidades de prazer que uma
cidade florescente como Roma podia oferecer. Ovídio mais do que influir sobre ela,
82
Rito e celebração na Antiguidade
retrata essa nova consciência das classes abastadas, mas destituída de poder, todo ele
concentrado nas mãos do imperador.
Por volta do ano I d.C., Ovídio, tendo já concluído sua obra amatória, decide
trabalhar num projeto de grande envergadura. É desse desejo de superação de sua
condição de poeta elegíaco que irão nascer as Metamorfoses. Mas essa superação da
elegia, não se dá como negação. O poeta elegíaco se imiscui em todo o poema, cujo
gênero, se é épico pela métrica utilizada, se torna híbrido ao abrigar em si uma
multiplicidade de personagens, temas e estratégias literárias. A ausência de um herói
centralizador que, através de suas ações e exemplos, atrai a atenção do leitor, rompe o
esquema tradicional da épica. Ovídio funde o material mitológico grego com o romano
de forma totalmente diversa de Virgílio, por exemplo. A sua atenção se concentra,
quase sempre, no maravilhoso ou no grotesco, e a contigüidade entre mito e história,
em vez de servir de fundamento à ideologia do estado, retrata a instabilidade que é
viver sob um regime despótico, com seus rituais de violência, raptos, estupros e
assassinatos, enfim, toda espécie de violência institucionalizada no cotidiano e tornada
espetáculo nas lutas dos gladiadores no Circo. Mesmo os deuses ovidianos se
comportam de forma demasiado humana, bem longe das solenes divindades
retratadas por Virgílio e Horácio. O grande mérito de Ovídio nas Metamorfoses, no
entanto, é a utilização do mito, ainda que de forma paródica, para revelar aspectos da
realidade, ainda encobertos.
A ausência de um herói como figura central capaz de concentrar em si todas as
virtudes desejáveis ao bem social, tem conseqüências importantes do ponto de vista
da estruturação narrativa do poema. Assim como não há um herói único, também o
narrador se fragmenta em muitas vozes narrativas, ainda que não possamos falar de
uma verdadeira polifonia, já que estilisticamente eles não se diferenciam. Portanto,
não se trata de uma separação de vozes narrativas, mas de uma alternância de
elocuções, encenadas diretamente pela voz do poeta-narrador, segundo a lógica do
espetáculo, no processo de comunicação com o leitor-espectador, que experimenta,
assim, uma continua variação de vozes, de destinatários, de níveis e de
enquadramento narrativos.
Uma leitura atenta da obra deve levar em conta essas pluralidade de vozes e
eventos, pois ela está na base do princípio metamórfico, ao qual Ovídio submeteu
83
Rito e celebração na Antiguidade
todas as coisas, inclusive o seu próprio canto. Daí que uma atenção aos relatos
metadiegéticos, aqueles em que um personagem assume a palavra e conta uma
história a um ouvinte que é também um personagem da história em suspenso. Um
bom exemplo de metadiegese é a história da ninfa Siringe, contada por Mercúrio a
Argos, o cão de cem olhos da deusa Juno. A história é contada para fazê-lo distrair-se
de sua tarefa de vigiar a ninfa Io, rival de Juno, e dormir, o que acabou por lhe custar a
vida.
A metadiegese em Ovídio revela a consciência desperta do narrador e a
sofisticação da arte de narrar, com a sua intrincada teia de fios narrativos, com seus
narradores humanos e divinos. Não é sem importância que primeiro narrador interno
no poema é o próprio Júpiter (I, 182-243) e é dele também a última voz a falar (15,
807-42) antes de o poeta encerrar o poema. Dessa forma, o poeta demonstra grande
e ge hoà oàusoàdaàt
i aàdoà elatoàde t oàdoà elato :àoàassu toàdasàduasàhist iasà
são, respectivamente, a metamorfose de um tirano, Licáon, em lobo, e a metamorfose
de um líder (Júlio César) em estrela. Portanto, ninguém melhor que Júpiter, o deus que
detém a soberania, para enunciar o exemplo negativo de Licáon e o positivo de Júlio
César. Os dois eventos assim relacionados não deixam de ser uma advertência para
Augusto.
Outros narradores internos das Metamorfoses mereceriam a nossa atenção,
principalmente aqueles que evidenciam uma relação mais direta com o poeta-narrador
principal, tais como a ninfa Calíope, as Piérides, oponentes das musas, e Orfeu, uma
vez que eles representam aspectos divinizados da palavra poética. A intervenção
dessas personagens dá margens a uma reflexão metaliterária, que muito diz sobre as
concepções estéticas, políticas e existenciais do poeta, além de chamar a atenção para
a origem divina de sua atividade, o que lhe confere um lugar de destaque na hierarquia
terrena.
Para Marcel Detienne (1988, p 15-23), o poeta, segundo uma concepção muito
antiga e enraizada na cultura mediterrânea, é uma das três instâncias, o lado do
profeta e do rei, portadores de uma palavra eficaz e verdadeira: o rei na distribuição
da justiça, o profeta, na antecipação do futuro e o poeta no uso das palavras aladas
que salvarão do esquecimento os feitos dignos de serem lembrados. Razão pela qual,
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Rito e celebração na Antiguidade
retomando o topos horaciano da eternidade da obra, assim conclui Ovídio a sua
magnum opus:
Iamque opus exegi quod Iouis ira nec ignis
nec poterit ferrum nec edax abolere uetustas.
Cum uolet, illa dies, quae nil nisi corporis huius
ius habet, incerti spatium mihi finiat aeui;
parte tamen meliore mei super alta perennis
astra ferar, nomenque erit indelebit nostrum.
Quaque patet domitis Romana potentia terris,
ore legar populi, perque omnia saecula fama,
siquid habent ueri uatum praesagia, uiuam.
Obra acabei, que nem de Jove, a ira, o fogo,
e o ferro, ou tempo voraz jamais abolirão.
Que venha o dia extremo que só sobre o corpo
dispõe, e cesse a minha duração incerta:
mas a parte melhor de mim será perene,
alta estrela, e o meu nome indelével será.
E onde o poder romano se estender na terra,
pelo povo serei lido e graças à fama,
se é vero o vate, para sempre viverei.
Bem, para concluir, retomo aqui o binômio rito e poesia do título da minha
conferência, para indicar as duas linhas de força do texto ovidiano. Por um lado, o
poema, pelo seu assunto e pela mundivisão herdada de épocas remotas, tende ao
sagrado. Daí esse amálgama de narrativa, epos, e pequenos dramas de natureza ritual,
no qual a palavra adquire um caráter perfomático e se apresenta como hino, oráculo,
juramento, interjeições, súplicas, epitáfio, encanto, maldição, etc. A emergência da
palavra ritualizada contribui para a criação de uma atmosfera polifônica, de uma
vocalidade expressiva e plural. Por outro lado, o pendor geometrizante da técnica
composicional de Ovídio que lhe garante o controle sobre a palavra poética, aliado a
certo espírito lúdico e jocoso, produz um benéfico equilíbrio de forças no poema,
realçando a voz humana sob o pano de fundo sagrado que fundamenta tabus e
punições, mas não impede o devir transgressivo da história.
Referências bibliográficas:
CALVINO, Ítalo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo, Cia das Letras,
1994.
85
Rito e celebração na Antiguidade
CHCHEGLÓV,à I.à K.à álgu asà Ca a te sti asà daà Est utu aà deà As Metamorfoses de
O dio .àIn: SCHNAIDERMAN, B. (org.). Semiótica Russa. São Paulo, Perspectiva, 1979.
DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Trad. Andréa Daher, Rio
de Janeiro, Zahar, 1988.
HARDIE, Philip (org.). The Cambridge Companion to Ovid. New York, Cambridge
University Press, 2002.
Ovide. Les Métamorphoses. Texte établi par Georges Lafaye, émendé, présenté et
traduit par Olivier Sers, Paris, Belles Lettres, 2009.
SCHIMITZER, Ulrich. Ovídio. Trad. italiana Mariella Bonvicini. Bologna, CLUEB, 2005.
SEGAL, Charles. Ovidio e la poesia del mito: Saggi sulle Metamorfosi. Trad. italiana
deAlessandro Schiesaro e Marco Sabella, Venezia, Marsílio, 1991.
86
O RITUAL DO CASAMENTO EM ROMA E A POESIA LATINA
Zelia de Almeida Cardoso (USP)
Levando-se em consideração o fato de que em Roma a família sempre
desempenhou papel fundamental como célula primeira da sociedade, contribuindo
para o equilíbrio da estrutura política, sendo o elemento básico para a constituição de
importantes alianças e garantindo a geração de filhos legítimos que continuarão os
empreendimentos e trabalhos de seus pais, as questões relativas à instituição do
casamento e a suas características rituais oferecem pretexto a muitas investigações.
Tito Lívio no prefácio da História de Roma (LIV. Ab Vrbe condita libri. Praef., 69)1, ao justificar a inserção de fábulas poéticas no relato dos primeiros tempos da
Cidade, afirma que, apesar de não poderem ser elas documentadas, prestam-se a seu
objetivo de historiador: o de apresentar a história como uma série de exemplos e de
modelos. Com esse intento, após ter relatado os fatos que ocorreram durante a
fundação de Roma, Tito Lívio se refere a um dos primeiros problemas enfrentados por
seusà ha ita tes:à aà aus
iaà deà ulhe es.à Oà estadoà o a o ,à dizà oà histo iado ,à j à
estava suficientemente fortalecido para concorrer com as cidades limítrofes em
guerras; mas a falta de esposas para os homens reduzia essa grandeza à duração de
uma única geração uma vez que não havia esperança de lar e de prole por meio de
asa e tosàe t eàosà izi hos 2. Foi quando então se pensou, de acordo com o relato
lendário preservado provavelmente em canções, no conhecido estratagema que a
história solidificou: convidar os povos das imediações e suas famílias para um
espetáculo de jogos e raptar-lhes, no calor da animação, as jovens que ali se
encontrassem. O rapto da sabinas – tal como foi conhecido o episódio – passou a
desempenhar em Roma uma espécie de função emblemática e paradigmática no que
diz respeito à constituição da família por meio do casamento. As moças raptadas, de
1
er
TITE-LIVE.Histoire Romaine. Trad. nouvelle, introd. et notes par E. LASSERRE. Paris: Garnier, 1944. T. 1 . p.
3 ss.
2
Id. ibid., p. 27-33. Iam res Romana adeo erat ualida, ut cuilibet finitimarum ciuitatum bello par esset;
sed penuria mulierum hominis aetatem duratura mgnitudo erat, quippe quibus nec domi spes prolis, nec
cum finitimis connubia essent (LIV. 1, 9, 1). Todas as traduções de textos latinos são de nossa
responsabilidade.
87
acordo com a lenda, foram investidas do caráter de esposas e, como tais, passaram a
ser honradas, acarinhadas e amadas. É o que nos diz Tito Lívio3.
Passadaàaà ha adaà po aàdosà eis ,à ueàseàeste deuàdeà eadosàdoàs uloàVIIIà
ao final do século VI a.C.4, estabeleceu-se em Roma o regime consular que durou, com
esporádicas modificações, até o fim da república. E foi em 462 a.C., depois das
primeiras vitórias políticas dos plebeus sobre os patrícios, que se pensou na redação
de um texto legal, uma espécie de constituição, que condensasse, por escrito, normas
que a tradição consagrara e que se amparavam no chamado mos maiorum. A redação
dessa lei única que delimitaria poderes, direitos e deveres dos cidadãos, estabelecendo
os princípios da organização política e social, foi proposta e promulgada por volta de
450 a.C.5 , sendo conhecida como Lei das XII Tábuas 6 . Em que pese o fato de
aparentemente ter desagradado a patrícios e plebeus, e de ter sido em parte abolida
em pouco tempo, a Lei das XII Tábuas é a base do direito romano7. Dela decorrem as
demais leis. Conhecida por citações e comentários de Cícero, Gaio 8 , Ulpiano 9 e
Justiniano 10 , chegou fragmentada a nossos dias, interessando-nos, para nossas
considerações sobre a família e o casamento romanos, o que constava das tábuas IV e
V, principalmente, e, de certa forma, das tábuas VI e XI nas quais também se toca no
assunto 11 .à “ oà alià esta ele idos,à uaseà o oà
3
a da e tos ,à algu sà p e eitosà
Accedebant blanditiae uirorum, factum purgantium cupiditate atque amore, quae maxime ad muliebre
ingenium efficaces preces sunt – ,à ,à à á es e ta a -se as carícias dos maridos que purificavam o
malfeito com desejo e amor, o que, para o espírito feminino corresponde com vantagem a preces
efi azes .
4
A data real da fundação de Roma é desconhecida; tradicionalmente, a partir de Varrão, considera-se
que a cidade foi fundada em 753 a.C., quando se inicia a época dos reis; a queda do último Tarquínio
ocorreu entre 510 e 509 a.C.
5
A proposta da lei foi obra do tribuno Gaio Terentílio Arsa.
6
Assim se denominou a lei por ter sido escrita em doze tabuinhas de madeira, das quais dez formaram
um primeiro bloco ao qual foram acrescidos mais dois, posteriormente.
7
Para Cícero (Leg. II, 59) e Tito Lívio (III, 34, 6) a Lei das Doze Tábuas, que consistia numa lista de
importantes regras legais, era a principal fonte de todas as demais leis romanas, públicas e privadas.
8
Gaio (110-180 c.) viveu durante os governos de Antonino Pio e Marco Aurélio; escreveu Institutiones,
obra que mostra a situação do direito romano em sua época.
9
Ulpiano foi um jurista da época de Caracala (211-217); suas obras, como comentarista jurídico, foram
aproveitadas por Justiniano no Digesto.
10
Justiniano foi imperador romano, de 525 a 565; reorganizou o direito romano com ajuda de
Triboniano; seu Corpus Iuris se compõe de: Institutiones,manual de direito para estudantes; Digestae,
extratos de escritos de juristas; Codex, atos de imperadores; e Novellae, leis promulgadas após a
publicação do Codex.
11
Tábuas I e II: Organização e procedimento judicial; Tábua III - Normas contra os inadimplentes; Tábua
IV - Pátrio poder; Tábua V - Sucessões e tutela; Tábua VI - Propriedade; Tábua VII - Servidões; Tábua VIII Dos delitos; Tábua IX - Direito público; Tábua X - Direito sagrado; Tábuas XI e XII - Complementares.
88
relativos à família: restringe-se, em parte, a patria potestas, o poder do paterfamilias,
até então absoluto12; dispõe-se sobre bens e heranças13, sobre a tutela dos menores
de idade, quando órfãos, sobre a curatela, para a administração dos bens de incapazes
e de mulheres solteiras, e, ainda, sobre a situação da mulher que vivesse em
concubinato e sobre a proibição de casamento entre patrícios e plebeus.
Na legislação de épocas posteriores, a partir da Lei das Doze Tábuas, há outras
determinações que tocam a estrutura social, a família e o casamento. Aos poucos
enfraquece cada vez mais a patria potestas, regularizam-se as questões referentes à
condenação à morte de membros da família e à venda e emancipação dos filhos, e os
direitos das mulheres com relação aos descendentes e à gerência dos bens14 passam a
ser reconhecidos.
Durante o final do período republicano e o início do império, o casamento – as
chamadas iustae nuptiae –, cuja finalidade primeira seria a geração de filhos, ainda era
visto como algo que consolidava as alianças e garantia a estabilidade dos lares e da
pátria. Segundo Gaio (Inst. 1, 111-113), jurista sabino que viveu no século II de nossa
era, possivelmente entre 110 e 180, o casamento romano, em épocas anteriores à sua,
quando a mulher passava da mão do pai à do esposo (matrimonium cum manu),
poderia realizar-se de três formas: por uso (usus), por compra (coemptio), ou por meio
de uma cerimônia de caráter familiar e religioso, a confarreação (confarreatio).
O casamento por usus era contemplado na Lei das XII Tábuas. Assim rezava o
te to,à o tidoà aà t
uaà VI:à áà ulhe à ueà esidi à du a teà u à a oà e à asaà deà u à
homem, como se fora sua esposa, será adquirida por esse homem e cairá sob seu
pode ,à sal oà seà seà ause ta à deà asaà po à t sà oites
12
15
. Se se consolidasse o usus, a
Apesar de algumas restrições ao patrio poder a LDT facultava ao paterfamilias a possibilidade de
matar o filho que nasceu disforme e lhe conservava o direito de morte e de venda dos filhos.
13
Quanto ao direito sucessório, dava-se preferência da sucessão testada sobre a intestada. Se a
sucessão ocorria neste último caso a lei estabelecia como primeiros herdeiros os filhos e a mulher que
tivesse uma filha; se não havia herdeiros necessários, herdava o parente mais próximo, depois os
parentes que contavam com um ascendente comum ao falecido. Se não houvesse herdeiros entre os
parentes consanguíneos, as pessoas com o mesmo sobrenome ou sobrenome que derivasse do mesmo
gentílico do falecido.
14
Cf. GRIMAL, P. A civilização romana. Trad. de I. S. AUBYN. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 82 ss.
15
Gaio faz o seguinte comentário a respeito do casamento por usus: Itaque lege duodecim tabularum
cautum est, ut si qua nollet eo modo in manum mariti convenire, ea quotannis trinoctio abesset atque eo
modo cuiusque anni usum interrumperet. Sed hoc totum ius partim legibus sublatum est, partim ipsa
desuetudine obliteratum est ássi à foià esta ele idoà aà Leià dasà XIIà T uas;à ueà seà elaà aà ulhe à oà
quisesse passar desse modo (pelo usus) à manus do marido, que saísse de casa todos os anos por três
89
mulher passaria a ser propriedade do homem e seria considerada parte da família.
Essa forma de casamento já não mais existia na época de Gaio.
O casamento por coemptio era simbólico e guardava vestígios de costumes
antigos; conforme Gaio, a mulher passa ao poder do marido por mancipação
(mancipatio), com anuência da família, por uma venda fictícia e simbólica, perante
cinco testemunhas16.
A confarreatio17era a forma mais antiga e solene do casamento entre os
patrícios romanos e assim se chamava por conta de um bolo de farinha de espelta
(far), que se oferecia a Júpiter Fárreo, sendo depois partilhado entre os convidados em
uma espécie de comunhão. Essa modalidade de casamento – provavelmente de
origem rural – conservava costumes tradicionais, nela se unindo a legalidade à
religiosidade, e consistia no ponto culminante de uma negociação precedente – um
compromisso de aliança entre duas famílias (sponsalia), realizada na presença de
testemunhas18, que tinha caráter legal e validade jurídica. Era nesse momento que se
fazia o pedido oficial, por parte do noivo, mediante o oferecimento de presentes entre
os quais o anel de noivado, discutiam-se as questões atinentes à mancipação da noiva
e ao dote que lhe seria concedido e se assinava o contrato do casamento que se
dias e assim interromperia a contagem do tempo. Mas essa disposição em parte foi suprimida pela lei,
e àpa teàfoiàes ue idaàpelaàdessuetude .àGAIUS, Institutiones 1, 111.
16
Coemptione vero in manum conveniunt per mancipationem, id est per quandam imaginariam
venditionem. Nam adhibitis non minus quam V testibus civibus Romanis puberibus, item libripende, emit
vir mulierem, cuius in manum convenit Pode àta
à asa -se por mancipação, por meio de compra,
isto é, por uma venda imaginária. Comparecendo ao ato não menos do que cinco testemunhas, cidadãos
romanos adultos, o homem compra, diante de um oficial público, a mulher para cuja manus elaà e
.à
Idem, ibid., 1, 113.
17
Veja-se o texto de Gaio: Farreo in manum conveniunt per quoddam genus sacrificii, quod Iovi Farreo
fit; in quo farreus panis adhibetur, unde etiam confarreatio dicitur; complura praeterea huius iuris
ordinandi gratia cum certis et sollemnibus verbis praesentibus decem testibus aguntur et fiunt. Quod ius
etiam nostris temporibus in usu est: Nam flamines maiores, id est Diales, Martiales, Quirinales, item
reges sacrorum, nisi ex farreatis nati non leguntur: Ac ne ipsi quidem sine confarreatione sacerdotium
habere possunt Pode à asa -se por confarreação, por meio de uma espécie de oferenda sagrada que
se faz a Júpiter Fárreo; para essa oferenda prepara-se um pão de farinha, daí ser chamada de
confarreação; além disso muitas outra coisas são exigidas por conta dessa ordenação legal, como
palavras precisas e solenes e dez testemunhas. Essa disposição legal ainda se acha em uso em nosso
tempo, pois os flâmines maiores, isto é, de Júpiter, Marte e Quirino, bem como os sumos sacerdotes,
não podem ser eleitos a menos que tenham nascido de um casamento por confarreação. E eles também
não podem obter o sacerdócio se àoà asa e toàpo à o fa eaç o .àIde ,àibid., 1, 112.
18
Cf. PLIN. MIN. Ep. 1, 9, 2: Nam si quem interroges 'Hodie quid egisti?', respondeat: 'Officio togae virilis
interfui, sponsalia aut nuptias frequentavi, ille me ad signandum testamentum, ille in advocationem, ille
in consilium rogavit' “eàpe gu ta esàaàalgu à– Queàfizesteàhoje? ,àtal ezàeleà espo da:à– Esti eàe à
afazeres da toga viril, participei de um noivado ou de um casamento, um me pediu para assinar um
testamento, outro para comparecer co oàteste u ha .
90
realizaria algum tempo depois, sobretudo se os noivos não tinham ainda atingido a
idade legal.
Para Gaio, o casamento por confarreatio era comum ainda em sua época e
constava de uma cerimônia festiva, na qual se procurava manter ritos antigos que
deveriam ser respeitados e preservados. Esses ritos se iniciavam na véspera do
casamento, quando a noiva oferecia seus brinquedos ao Lar familiar, e prosseguiam no
dia das bodas, com a presença de sacerdotes – o flamen dialis e o pontifex maximus –,
as orações de praxe, a tomada de augúrios, as oferendas – entre as quais a do bolo –, a
assinatura definitiva do contrato, perante dez testemunhas, a união das mãos dos
noivos (dextrarum iunctio), realizada pela prônuba, e a lauta refeição oferecida a
familiares e convidados. A noiva se vestia e se penteava de forma especial para a data,
de acordo com antigos ritos19. Após o banquete, ao surgir de Vésper, a noiva se dirigia
à casa do esposo, acompanhada de um séquito constituído de moças e rapazes. Faziam
parte do ritual as palavras de praxe pronunciadas pela noiva20, os gestos tradicionais e
passos específicos da cerimônia, tais como o simulado choro da moça e sua fictícia
relutância em sair de seu antigo lar, o arrebatamento da mesma para ser conduzida à
casa do esposo, com as palavras usuais 21 , a presença da prônuba e de duas
companheiras que levavam a roca e o fuso da nubente, a agitação das tochas levadas
por um grupo de mancebos, encabeçado pelo prônubo, a distribuição de nozes para as
crianças presentes, os cânticos nupciais e fesceninos entoados pelos jovens, ao som de
flautas, a chegada ao novo lar, quando a noiva enfeitava a porta com flores e flocos de
lã e untava os batentes com azeite. Após esse gesto ocorria o erguimento da moça por
membros do séquito, para que ela entrasse na casa do esposo sem tropeçar no limiar –
19
O vestido da noiva, a chamada tunica recta, era branco e de corte simples, atado à cintura por um
cinturão de lã, o cingulumherculeum; cobria-o um manto amarelo, o palla; na cabeça ela usava um véu
cor de laranja, o flammeum, que cobria os cabelos trançados, colocando-se sobre ele uma grinalda de
flores de manjerona e verbena ou de murta e flores de laranjeira; nos pés, calçava sandálias douradas,
os socci. Para maiores detalhes sobre o casamento romano, veja-se CARCOPINO, J. Roma no apogeu do
Império. Trad. de R.BLOCH. São Paulo: Companhia do Livro/ Círculo do Livro, 1990. p. 99-125; e Grimal,
op. cit. p. 84.
20
Após a realização de oferendas e a tomada de auspícios, a noiva, diante das testemunhas, dizia
palavras cujo significado real nos escapa, mas que selam o compromisso assumido: Vbi tu Gaius ego
Gaia O deàtuàfo esàGaioàeuàse eiàGaia .à
21
No momento em que a noiva era arrancada dos braços da mãe para ser conduzida à casa do noivo, os
jovens que a levavam gritam: Talassio! Pa aàTalassio! .à“egu doàTitoàL ioà ,à ,à ,àoà ostu eàdeà
gritar Talassio evoca o rapto das sabinas. De acordo com sua narrativa, quando os romanos entraram na
tenda da mais bela sabina para arrebatarem-na, assim exclamaram dizendo que ela seria entregue a
Talássio. Para E. Lasserre, trata-se de uma fantasia do historiador. Cf. Tite-Live, op. cit. p. 349, n. 38.
91
o que seria considerado um mau agouro – e a condução da noiva ao quarto nupcial,
tarefa exercida pela prônuba.
Muitos dos elementos simbólicos que faziam parte do casamento romano
foram aproveitados com algumas modificações pelo matrimônio cristão e perduram
até hoje.
Na poesia latina de todas as épocas, em todos os gêneros, há exemplos de
obras nas quais podemos verificar o aproveitamento de aspectos do ritual do
casamento como tema literário.
Nas comédias de Plauto e Terêncio, escritores da época helenística, cujos textos
foram as primeiras obras literárias latinas a chegarem até nossos dias praticamente na
íntegra, o casamento é frequentemente focalizado. São numerosas as referências à
paixão de jovens por prostitutas e escravas e as críticas à instituição matrimonial, às
relações familiares, aos papéis da matrona, do velho namorador, das amantes. A
Aulularia de Plauto, a conhecida Comédia da panelinha22, é uma peça em que tudo gira
em torno do casamento, o assunto central23. Sintomaticamente, a comédia se abre
com o prólogo recitado pelo deus Lar – a divindade latina protetora da família, sem
correspondente no panteão helênico. O deus fala de seu empenho em procurar
resolver a situação da jovem Fédria, uma moça devota, que sempre lhe oferecia
incenso, vinho e coroas de flores, embora fosse filha de um homem avarento. Ela fora
seduzida algum tempo antes, estava grávida e prestes a dar à luz. O deus Lar se dirige
ao público, esclarecendo que preside à lareira daquela família, onde estivera
escondida durante muito tempo uma panelinha cheia de moedas de ouro. Para
mostrar seu agradecimento à moça, ele fizera com que seu pai encontrasse o tesouro;
além disso, para forçar o sedutor a desposá-la, salvando-lhe a honra, faria com que um
velho rico, tio do jovem, a pedisse em casamento, levando o rapaz à ação. A trama da
comédia explora esses pontos e, de permeio a outros tópicos, focaliza alguns aspectos
do ritual do casamento por confarreatio tais como a formalização do pedido, a
discussão sobre o dote da noiva, a oferenda de incenso e flores aos deuses e a
preparação do banquete nupcial.
22
Cf. PLAUTO. Aulularia (A comédia da panelinha). Trad. introd. e notas de Aída COSTA. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1967.
23
PLAUTE. Amphitryon. Asinaria. Aulularia. Texte ét. et trad. par A. ERNOUT. Paris: Les Belles Lettres, 1970.
92
Na poesia lírica da época de Cícero, lembramos os dois epitalâmios de Catulo
(CAT. 61; 62), endereçados a Himeneu, o deus do casamento. O primeiro epitalâmio
(CAT. 61)24 é uma peça de circunstância, na qual se celebra a união conjugal de duas
figuras reais da sociedade de então25.àE à ueàpeseà e taài flu
seàpassoàaàpasso à oàpoe a,à o fo
iaàdeà“afo,à segue -
eàaàe p ess oàdeàLafa eà CATULLE, 1974, p. 61A, n.
1)26, todos os momentos que medeiam entre a saída da noiva do lar paterno e a
chegada à casa do esposo. Dirigindo-se a Himeneu que se ornamenta com adereços
nupciais femininos, o poeta alude às flores perfumadas de manjerona, que cingem a
cabeça do deus e evocam as que estariam coroando a da moça27, ao flammeum, o
alegre véu cor de fogo28 usado pelas noivas, aos escarpins amarelos29, aos hinos
nupciais30, às tochas olorosas feitas de madeira de pinheiro31, aos auspícios32, ao
desatamento do cinto de lã, estando já a esposa em sua nova casa, graças ao poder de
Himeneu33. Há referências ainda ao fato de ser a divindade patrona do casamento
quem permite que as moças em flor sejam arrancadas dos braços das mães para as do
jovem esposo ardente34. Graças a seu poder, são gerados os filhos sem os quais os pais
não poderiam apoiar-se numa posteridade35, nem teria a pátria defensores de suas
fronteiras36:
24
O primeiro epitalâmio (CAT. 61) é formado por estrofes compostas de cinco versos – quatro glicônicos
(um espondeu, troqueu ou jambo; um coriambo; um jambo ou pirríquio) e um ferecrácio (um troqueu,
jambo ou tríbraco; um dátilo; um espondeu ou troqueu).
25
Catulo celebra as núpcias de Lúcio Mânlio Torquato, de antiga família patrícia, e da bela Júnia, de
família também ilustre.
26
CATULLE. Poésies. Texte ét. et trad. par G. LAFAYE. 9a. ed. Paris : Les Belles Lettres, 1974.
27
Cinge tempora floribus/ suaue olentis amaraci – CAT. 61, 6- à Ci geàsua e e teàtuasàt po as/à o à
as flores da perfumada manje o a .
28
Flammeum cape laetus – à Colo aàaleg e e teàoàfl eo .
29
... ueni niueo gerens/ luteum pede soccum – à ...à e ,à alça doà es a pi sà a a elosà osà eosà
p s .
30
nuptialia [...]/ carmina – 12- à a tosà[...]à up iais .à
31
pineam [...] taedam – à to haàdeàpi hei o .à
32
Nubet alite uirgo – à asa-seàaà i ge ,à o fo eàosàausp ios .
33
... tibi uirgines/ zonula soluunt... – 52- à ...àpo àtiàasà i ge sàdesata àosà i tos .
34
Tu fero iuueni in manus/ floridam ipse puellulam/ dedis a grêmio suae/ matris – 56- à Ésà tu,à e à
pessoa,à ueà sà osàdoàjo e àa de te/àe t egasàaà o i haàe àflo ,à[ti ada]àdoàseioàdeàsuaà e .àOà
arrebatamento da noiva é visto como lembrança do rapto das sabinas.
35
Nulla quit sine te domus/ líberos dare, nec parens/ stirpe nitier; at potest/ te uolente – 66-69
Ne hu àla àse àtiàpode ia/àge a àfilhos,à e hu àpai/àapoia -se em sua estirpe; pode, porém,/ quando
tuàoà ue es
36
Quae tuis careat sacris/non queat dare praesides/ terra finibus – 71- à Ne hu aà ação que careça
deàteuà ulto/àpode iaàda àdefe so es/àaàsuasàf o tei as .
93
E à seguida,à oà euà a ado à ueà o duzà oà dis u soà seà di igeà à oi aà
propriamente dita, aconselhando-a a escalar mais um degrau do complexo rito
matrimonial: abrir a porta da casa dos pais, ver a tochas resplandecentes que sacodem
as cabeleiras de fogo e não retardar seus passos apesar do pudor e das lágrimas que
marcam a despedida37. Na sequência, ele exorta os jovens que formarão o séquito a
cantar fesceninos e sugere ao favorito do esposo, agora abandonado, que distribua às
crianças as nozes de praxe38, um dos símbolos da fertilidade.
Ao final do poema, há nova referência aos filhos que virão e que culminarão as
alegrias e os prazeres do rito nupcial:
Entregai-vos ao amor, como é vosso desejo,
e tende filhos em breve. Não seria conveniente
que um nome tão antigo permanecesse sem
filhos, mas, sim, que continuasse gerando-os,
39
como sempre .
O segundo epitalâmio (CAT. 62), em que um coro feminino se alterna em seu
canto com um masculino, é construído sob forma dialogada40; há nele referências a
dois outros elementos do ritual de casamento: a saída da noiva de seu lar paterno,
marcada pelo aparecimento de Vésper41, e o lauto banquete que termina com o
surgimento do astro42.
Na Eneida de Virgílio43, monumento épico do período de Augusto, o quarto
canto – o livro de Dido – à o sag ado,àtodoà ele,à aà u à asa e to à ue,à
oà se doà
casamento propriamente dito, nem romano, apresenta características dos ritos
nupciais observados em Roma. Abre-se o texto narrativo com a descrição do
37
Claustra pandite ianuae;/ virgo, ades. Vides ut faces/ splendidas quatiunt comas?[...] Tardet ingenuus
pudor [...] Flet quod ire necesse est – 76- ;à ;à à á iàosàfe olhosàdaàporta;/ que entres, ó virgem.
Vês como as tochas/ sacodem as esplêndidas comas? [...] Que o nobre pudor te retarde [...] ela chora
po ueà à e ess ioàpa ti .
38
Ne diu taceat procax/ fescennina iocatio,/ nec nuces pueris neget/ desertum domini audiens/
concubinus amorem – 126à Queà oà sile ie à po à aisà te po/à asà i adei asà fes e i as/à ueà
oà egueà ozesàaosà e i os/àou i doàdize à ueàseuàa o àfoiàdei adoàdeàlado/àoàfa o itoàdoàesposo .
39
Ludite ut lubet et breui,/ líberos date. Non decet/ tam uetus sine liberis/ nomen esse, sed indidem/
semper ingenerari – 211-215.
40
O poema é construído com hexâmetros datílicos.
41
Vesper adest, iuuenes, consurgite – Cat.à ,à à V spe àapa e e;àe guei- os,àjo e s .
42
Surgere iam tempus, iam pinguis linquere mensas – à J à hegouàoàte poàdeàdei a àasàfa tasà esas .
43
VIRGILE. Oeuvres. Texte publié par F. PLESSIS et P. LEJAY. Paris : Hachette, 1945.
94
florescimento da paixão no peito da rainha de Cartago (VERG. Aen. 4, 1-5)44. Tendo
acolhido Eneias em seu reino e ouvido a história das vicissitudes pela quais ele passara,
ela se vê tomada por um amor ardente que a inflama e consome. Ao confessar seus
sentimentos à irmã, esta a incentiva, dizendo-lhe que a concretização do amor em um
casamento seria proveitoso para a rainha e para a cidade (6-55)45. Dido dá então os
primeiros passos para cumprir o que se espera de uma noiva: dirige-se ao templo, em
companhia de Ana, oferece sacrifícios aos deuses, sobretudo a Juno que preside aos
vínculos matrimoniais46, e, valendo-se de uma prática empregada pelos arúspices
romanos – o que revela a utilização de um procedimento sincrético por parte do poeta
– tenta encontrar significados auspiciosos examinando as entranhas de animais
sacrificados (56-64)47. A verificação de que nada acalma a paixão da rainha, faz Juno, a
deusa protetora de Cartago, valer-se da ocasião para atingir seu objetivo principal:
frustrar as intenções do guerreiro troiano de fundar uma nova Troia, unindo-o à
mulher apaixonada (90-97). Pede, para isso, o auxílio de Vênus, acenando-lhe com o
possível casamento:
Mas qual será o fim (disto)? Por que tanta competição (entre nós)?
Por que antes não estimulamos uma paz eterna e o combinado
himeneu? Tens o que desejaste de toda a tua alma.
Dido se inflama, enamorada, e alimenta a paixão em seus ossos.
Conduzamos, portanto, este povo de nós ambas com auspícios
iguais: que ela possa servir a um marido frígio
48
e colocar em tuas mãos os dotes tírios (98-104) .
44
At regina graui iamdudum saucia cura/ uulnus alit uenis et caeco carpitur igni./ Multa uiri uirtus animo
multusque recursat/ gentis honos; haerent infixi pectore uultus/ uerbaque nec placidam membrisdat
cura quietem – VIRG. Aen. 4, 1- à Masà aà ai ha,à fe idaà h à uito por um grande cuidado/ alimenta o
ferimento nas veias e é consumida por um fogo escondido. Acorre-lhe à mente o grande valor do varão/
e a glória de sua raça; prendem-se fixados em seu peito o rosto/ e as palavras, e o cuidado não lhe
permite um plácido des a so .
45
Quam tu urbem, soror, hanc cernes, quae surgere regna/ coniugio tali! – VERG. Aen. 47- à Qu oà
g a deà e sàestaà idade,à i haài
,à ueà ei osà e sàsu gi à o àtalà asa e to à.
46
Principio delubra adeunt pacemque per aras/ exquirunt; mactant lectas de more bidentis/ legiferae
Cereri Phoeboque patrique Lyaeo,/ Iunoni ante omnis, cui uincla iugalia curae – 56-59 (Inicialmente
dirigem-se ao templo e por meio dos altares a paz/ procuram;/ imolam ovelhas escolhidas, segundo o
costume,/ à legífera Ceres, a Febo e ao pai Lieu/ e a Juno, antes de todos, a cujos cuidados estão os
ulosà o jugais .
47
... pecudumque reclusis/ pectoribus inhians spirantia consulit exta – 63- à osà o posà a e tosà dasà
reses/ observando as entranhas palpita tes .
48
Sed quis erit modus, aut quo nunc certamine tanto?/ quin potius pacem aeternam pactosque
hymenaeos/ exercemus? habes tota quod mente petisti:/ ardet amans Dido traxitque per ossa furorem./
Communem hunc ergo populum paribusque regamus/ auspiciis; liceat Phrygio seruire marito/ dotalisque
tuae Tyrios permittere dextrae – 98-104).
95
Juno relata então a Vênus seu projeto: como Dido e Eneias se preparam para
uma caçada a realizar-se no dia seguinte, a rainha dos deuses planeja fazer-lhes
sobrevir uma tempestade que os obrigue a procurar guarida na mesma gruta (105.à L àesta ei ,àdizàJu o,à e,àseàeuàti e à e tezaàdeàtuaà o tade,àlig -los-ei por um
matrimônio estável e a consagrarei como propriedade dele. Himeneu estará presente
ali à
-127)49.
Segue-se a bela descrição do início do dia. A Aurora surge, deixando o oceano;
diante do palácio os cartagineses aguardam as figuras principais, montados em seus
cavalos (129-
.à Fi al e teà elaà seà ap o i a,à a o pa ha do-a uma grande
o iti a ,à dize à osà e sosà daà Eneida; est à e oltaà e à u aà l
ideà sid
ia,à o à aà
fímbria bordada; sua aljava é de ouro; seus cabelos são atados com ouro; uma fivela de
ouro prende-lheà aà tú i aà pu pú ea à
-139)50. É como se a abundância do metal
precioso substituísse o laranja e o amarelo do flammeum das virgens e do escarpim
dourado.
Chega à à o ta haàpa aàaà açada,à asà oà u,à esseà eioàte po,à o eçaàaà
agitar-seà o àg a desàest o dosàeàso e
àu aà u e à a egadaàdeàg a izo à
161) 51 . A narrativa prossegue. Os caçadores se dispersam.
-
To e tesà deà guaà
precipitam-se das montanhas. Dido e o chefe troiano se refugiam na mesma gruta. A
Terra, em primeiro lugar, e Juno como prônuba dão o sinal; os relâmpagos fulgiram
bem como o éter, cúmplice do conúbio; e as ninfas bradaram nos cimos das
o ta has à
-168)52.
áà des iç oà a ati aà doà uad oà doà e o t oà seà e a i haà pa aà oà fi .à Masà
Dido não se importa com as aparências nem com a reputação; não julga que seu amor
seja clandestino: chama-oà deà asa e toà eà e o eà suaà ulpaà so à esteà o e à 69172)53.
49
Adero et, tua si mihi certa uoluntas,/ conubio iungam stabili propriamque dicabo./ Hic Hymenaeus erit
– 125-127.
50
Tandem progreditur magna stipante caterua/ Sidoniam picto chlamydem circumdata limbo;/ cui
pharetra ex auro, crines nodantur in aurum,/ aurea purpuream subnectit fibula uestem – 136-139.
51
Interea magno misceri murmure caelum/ incipit, insequitur commixta grandine nimbus – 160-161.
52
Ruunt de montibus amnes./ Speluncam Dido dux et Troianus eandem/ deueniunt. Prima et Tellus et
pronuba Iuno/ dant signum; fulsere ignes et conscius aether/ conubiis summoque ulularunt uertice
Nymphae – 164-169.
53
Neque enim specie famaue mouetur/ nec iam furtiuum Dido meditatur amorem:/ coniugium uocat, hoc
praetexit nomine culpam – 170-172.
96
As palavras equivalentes a casamento aparecem amiúde no livro 4, em suas
variantes, quer como coniugium (versos 48, 172,
338, 431), uincla iugalia (59),
conubium (126-169) ou hymenaeus (99, 127); do mesmo campo semântico, thalamus
aparece três vezes (392, 495, 550); maritus, uma vez (103); há referências ao dote
(dotalis Tyrios) (104), à pronuba – (167), à mulher que se torna propriedade do esposo
(103). Não se trata, porém, de um casamento reconhecido pelas leis e pela religião. A
Fama – o monstro descrito por Virgílio (173-195) – espalhaàaà ot iaàe t eàosàpo os:à aà
bela Dido se dignara unir-seàaoàt oia oà o oàaàu àesposo à
54
eà ago aàpassa a à
o inverno juntos, longo como ele é, na luxúria, esquecidos de seus reinos, tomados por
um desejo ve go hoso à
-194)55. As consequências não se fizeram esperar. A
notícia se espalhou pela terra e pelos céus. Jarbas, o rei da Numídia, declarou guerra a
Cartago; e Júpiter, por meio de Mercúrio, convocou Eneias para dar prosseguimento a
sua missão. Dido não pôde suportar a ausência do amante e após amaldiçoá-lo se
suicidou (195 ss.).
No século I de nossa era, em pleno império, durante o mando dos príncipes
Júlio-Cláudios, são compostas as tragédias de Sêneca. São tragédias que abordam as
paixões, sobretudo as que nascem do amor proibido. E entre essas peças – que
exploram tipologicamente as nuanças dos sentimentos exacerbados –, avulta-se
aquela que apresenta a catástrofe como uma decorrência natural da destruição de um
casamento por outro casamento e a destruição do segundo por quem se apresenta
como a vítima do primeiro: Medeia.
A tragédia Medeia se caracteriza por configurar-se como uma contraposição do
ritual do matrimônio. A princesa da Cólquida recita o prólogo. E nessa recitação ela se
dirige aos deuses numa prece, como se faz nos casamentos. Começa por chamar os
deuses conjugais, os Di coniugales (SEN. Med. 1), usualmente invocados56. Depois da
invocação aos deuses protetores do matrimônio, Medeia chama por Lucina, Atena,
Apolo, e passa então a clamar pelas divindades infernais e pelos numes do mal: Hécate,
o Caos, Prosérpina, as Fúrias.
54
... cui se pulchra uiro dignetur iungere Dido – 192.
... nunc hiemem inter se luxu, quam longa, fouere/ regnorum immemores turpique cupidine captos –
193-194.
56
O interessante é que a tragédia Medeia –a configuração da impiedade absoluta – se abre e se fecha
com a palavra deus.
55
97
Após pedir-lhesà aà o teà deà C eúsaà eà C eo te,à eà u à alà aio à ueà aà o teà
pa aà Jas o
57
, Medeia amaldiçoa o esposo infiel, dispõe-se a agir por sua conta,
arrancando com as mãos o fogo do céu58, e incita sua mente a procurar nas próprias
vísceras o caminho da vingança, a recuperar o antigo vigor, a despojar-se de medos
femininos e vestir-se com a ferocidade do Cáucaso59. A enfurecer-se totalmente, enfim,
para cometer os crimes inauditos que a esperam.
Para Helen Fyfe60, o prólogo de Sêneca é construído para esboçar a motivação
psicológica das ações de Medeia ante o desmoronamento da estrutura moral de seu
mundo. Para Florence Dupont61, o prólogo é um canto de dolor e um anti-canto de
hymen,à ap ese ta doà u aà est utu aà deà i e s o .à áà i o aç oà sà Fú iasà
-25)
demonstra a entrega de Medeia ao furor. As tochas negras que tais divindades
empunham e que substituem os brilhantes fachos nupciais também caracterizam a
inversão. As palavras de Medeia a levam a agir e ela se transforma na operadora das
antinúpcias, em prônuba e sacerdotisa simultaneamente, naquela que vai manipular as
tochas do incêndio, proceder ao sacrifício cruento, conforme suas próprias palavras62 e
cometer o nefas terrível, o crime hediondo para o qual não há perdão.
Reservamos ainda uma palavra para o párodo de Medeia, o alegre epitalâmio
em homenagem a Creúsa cantado pelo coro em sua entrada em cena e oposto, termo
a termo, à enlouquecida lamentação inicial contida no prólogo. É um cântico sui
generis no conjunto dos cantos corais das tragédias, que, por configurar-se como
cântico nupcial, se inicia com uma invocação aos deuses, contrastante com a que
Medeia faz no início do prólogo: agora só se invocam os deuses superiores, aos quais
serão oferecidos os sacrifícios conforme a práxis. Entre esses deuses são mencionados
57
... mihi peius aliud, quod precer sponso, malum – à ...à algu à alà pio ,à ueà euà pedi iaà pa aà euà
e
esposo .à Cf. SENEQUE. Tragédies. Texte ét. et trad. par L. HERRMANN. 5 . tir. Paris : Les Belles Lettres,
1973. T. 1.
58
Manibus excutiam faces/ caeloque lucem – 27- à Co àasà osàeuàa a a eiàoàfogoàeàaàluzàdoà u .
59
Per uiscera ipsa quaere supplicio uiam,/ si uiuis, anime, si quid antiqui tibi/ remanet uigoris; pelle
femineos metus/ et inhospitalem Caucasusm mente indue – 40- à Pelasà p p iasà s e asà p o u aà oà
caminho para o suplício,/ se estás viva, ó minh´alma, se algo do antigo vigor em ti/ subsiste; expulsa o
medo feminino/ e introduzàe àteuàesp itoàoàC u asoàfe oz .
60
Cf. FYFE,àHele ,àá àa al sisàofà“e e a sàMedea. In: BOYLE, A. J. (edit.).Seneca tragicus.Ramus essayson
senecan drama. Victoria (Australia), Aureal Publications, 1983. p. 77-93.
61
Cf. DUPONT, Florence. Le théâtre latin. Paris: Colin, 1988. p. 77 ss.
62
Hoc restat unum, pronubam thalamo feram/ ut ipsa pinum postque sacrificas preces/ caedam dicatis
uictimas altaribus – 37- à ‘estaàai daàu aà oisa:à o duzi -me-ei como uma prônuba junto ao tálamo/
para que, depoisàdasàto hasàeàdasàp e esàsa ifi iais,/àeuàp p iaài oleàasà ti asà osàalta esàsag ados .
98
Himeneu – a divindade protetora do casamento – eà V spe ,à aà est elaà daà ta de ,à
identificada com o planeta Vênus e com a deusa do amor. Após a invocação cantam-se,
como nos epitalâmios de Catulo, a formosura da noiva – mais bela do que as jovens
gregas de todas as partes a Grécia – e a beleza do esposo que supera a dos mais
formosos deuses e heróis. Para concluir seu canto, o coro compara Creúsa com Medeia,
a esposa terrível, e convida os jovens presentes a iniciar os folguedos próprios das
festas de casamento: os cantos dialogados, sob forma de desafios licenciosos.
O epitalâmio se fecha com mais uma invocação a Himeneu, com novo convite
aos jovens para que se divirtam e entoem fesceninos63 e com votos para que Medeia
se afaste de Corinto o quanto antes (114-116)64. Os ritos matrimoniais se unem aos
anti-ritos para a celebração da vingança e da morte.
Para concluir nossas observações, reportamo-nos a mais um gênero literário
em que encontramos um texto a focalizar um ritual do casamento: a sátira latina.
Tomamos Juvenal como exemplo, escritor latino que viveu entre 65 e 128,
aproximadamente. O poeta, que na conhecida sátira 6 constrói uma verdadeira
diatribe contra os vícios comuns nas mulheres casadas, focaliza na sátira 2 (117-130)
um outro tipo de casamento: o que une dois homens 65 . Depois de criticar
violentamente os homossexuais e seus hábitos, Juvenal descreve a cerimônia nupcial,
tal como a imagina, sem deixar de lembrar qualquer dos elementos rituais. Menciona o
dote que um gladiador ofereceria a um tocador de corneta66, as tabuinhas que seriam
assinadas67, os votos de felicidade que todos fariam68. Descreve a ceia que ocorreria69e
63
Trata-se de um curioso sincretismo empregado por Sêneca.
Festa dicax fundat conuicia fescenninus,/ soluat turba iocos – tacitis eat illa tenebris,/ si qua peregrino
nubit fugitiua marito – 113Que o mordaz fescenino dê motivo a festivas zombarias, que a turba
libere as brincadeiras e que nas trevas silentes se afaste quem, na fuga, desposou um marido
est a gei o .à
65
Juvénal. Satires. Texte ét. et trad. par P. LABRIOLLE et P. VILLENEUVE. Paris : Les Belles Lettres, 1974. p.
19-20.
66
Assim se expressa o poeta: Quadringenta dedit Gracchus sestertia dotem/ cornicini, siue hic recto
cantauerat aere – 117à G a oàdeuà uat o e tosàsest ios como dote/ a um corneteiro; ou talvez
eleàto asseàu ài st u e toà eto,àdeà o ze .
67
... signatae tabulae – à asàta ui hasàfo a àassi adas
68
... dictum 'feliciter' – à fala-se:à feli idades .
69
... ingens/ cena sedet – 19aàg a deà eiaàp ossegue .
64
99
a noiva a reclinar-se sobre o peito do marido70.à Eà oà eu- a ado à pe gu ta,à u aà
i dagaç oài dig ada:à H à e essidadeàdeàu à e so àeàdeàu àa úspi e?
71
A noiva/noivo é descrita, na sequência: usa um vestido longo, enfeites
bordados e o flammeum, o véu cor de laranja das nubentes72.à I dig ado,à oà eua ado à i te pelaà G adi o,à oà paià Ma te,à fu dado à daà açaà o a a.à Co oà p deà
acontecer isso com seus filhos?73 O deus não tomará nenhuma providência?74 Ele
responde: não pode tomá-las porque tem um dever a cumprir75.à Queà de e à se iaà
esse?
76
,à i sisteà oà sujeitoàdaà e u iaç o.à áà espostaà à la
i a:à U à a igoà seà asa ,à
diz o deus77.à Nubit amicus .àG adi oàe p egaàoà e oànubere, apenas usado quando
se fala de mulheres que se casam, quando o sujeito do enunciado é do sexo feminino;
equivale ao desusado maridar-se ou amaridar-se, em idioma vernáculo. Femina nubit
seàdizàe àlati ;à aà ulhe àseà asa ;àuir ducit uxorem, oàho e à o duzàaàdesposada ,à
o oàseàt aduzà aoàp àdaàlet a ,àe p ess oàe ui ale teàaà oàho e àseà asa .à
Tudoà e
,àdizàoà a ado ,à o lui doàsuaàe posiç o.à Queàseà i aàassi ;à ueà
as coisas sejam assim; que se façam essas coisas publicamente e, se quiserem,
egist adasà asàatas
78
.Custouàu àpou oàpa aà ueàosà otos àsa
sti osàdoàpoetaàseà
tornassem realidade.
E assim registramos alguns aspectos dos complexos ritos matrimoniais romanos
figurando como tema em todos os gêneros literários da poesia latina.
Referências bibliográficas
70
... gremio iacuit noua nupta mariti – à aà o aàesposaàseà e li aàso eàoàpeitoàdoà a ido .
.... censore opus est an haruspice nobis?(121).
72
... segmenta et longos habitus et flammea sumit (124).
73
O pater urbis,/ unde nefas tantum Latiis pastoribus? unde/ haec tetigit, Gradiue, tuos urtica nepotes? –
126-128 (Ó patrono de nossa cidade,/ de onde veio uma desgraça tão grande para os pastores latinos?
De onde veio esta urtiga que atingiu teus descendentes?
74
Traditur ecce uiro clarus genere atque opibus uir,/ nec galeam quassas nec terram cuspide pulsas/ nec
quereris patri. Vade ergo et cede seueri/ iugeribus campi, quem neglegis – 129Eisà ueàu àho e ,à
ilustre pelo nascimento e pelos bens se entrega a outro homem/ e tu não agitas teu capacete, não
percutes o solo com tua lança/ não te queixas a teu pai? Vai-te daqui, então, e renuncia às jeiras do
a poàsag adoàdeà ueàteàdes uidas!
75
Officium cras/ primo sole mihi peragendum in ualle Quirini' – 132à H à u à de e ,à a a h ,/à aoà
aia àdoàsol,à ueàde e àse à u p idoàpo à i à oà aleàdeàQui i o .
76
Quae causa officii?
à Qualà àoà oti oàdesseàde e ?
77
Nubit amicus –
à U àa igoà aiàse àdesposado .
78
Liceat modo uiuere, fient,/ fient ista palam, cupient et in acta referri (135-136).
71
100
CARCOPINO, J. Roma no apogeu do Império. Trad. de R. BLOCH. São Paulo: Companhia do
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101
Comunicações
O CULTO HERÓICO: ASSOCIAÇÃO ENTRE O ESPAÇO DE
CULTO E O ESPAÇO POLÍTICO
Alessandra André –Mestre (Ufes)
Esta comunicação tem o objetivo de promover uma breve reflexão acerca da
importância da simbologia do culto ao herói no mundo helênico em dois momentos.
Primeiro, nos reportaremos ao papel deste culto no processo de organização do
mundo políade. Segundo, nos deteremos sobre a proliferação deste tipo de culto no
momento em que a pólis entrou em um processo de desestruturação. Pensando ainda,
como foi possível a inserção de Filipe II da Macedônia, região não helenizada, dentro
do culto heróico.
Os primórdios da pólis, ainda são obscuros para nós. Sabemos que a pólis
arcaica, surgida no século VIII resulta da supressão dos basileis.1Autores como VidalNaquet, Finley e Vernant afirmam que há documentos que apontam que nesse
período houve desequilíbrio social promovido, por exemplo, pela concentração de
terras nas mãos dos aristóis. Foi deste período inclusive o primeiro momento de
colonização grega, que ocorreu por volta de 750.
Os poemas homéricos, escritos no século VIII, são de grande importância para a
análise de um aspecto simbólico importante no momento da organização do mundo
políade – a figura do herói. O herói, héros,aparece definido como um guerreiro
destacado nestes poemas, e quando de sua morte, ele deveria ser cremado, e seus
restos colocados em uma urna funerária e esta deveria ser depositada em uma
sepultura a altura da magnificência do herói em questão.
As evidências arqueológicas do século VIII a.C. indicam que, em um
determinado momento, as diferentes comunidades gregas começaram a
praticar esses rituais funerários de maneira sistemática e recorrente em
locais especificamente construídos para perpetuar a memória dos heróis. O
1
Todas as datas mencionadas neste trabalho são a.C.
102
estabelecimento desse culto heróico tornou-se um dos alicerces da religião
grega nas diversas póleis durante os Períodos Arcaico e Clássico (Souza,
2005, p. 2).
É claro que cabe ao historiador relativizar o discurso da fonte a luz de outros
materiais, como, por exemplo, a luz dos dados arqueológicos, como no clássico
trabalho escrito por Finley intitulado como O mundo de Ulisses. O autor afirma que o
século VIII é um período de transição, e que os poemas homéricos refletem esta
transição. Estes escritos trazem em si três temporalidades – o mundo micênico, a
Idade dos Heróis, e elementos da pólis nascente (Finley, 1988).2
Chamamos o tipo de sepultura mencionada na citação acima, que vai ser
dedicada ao herói, de hérôon. Os santuários construídos vão homenagear os heróis,
que são apontados como fundadores das póleis nascentes, assim, esses elementos são
seres que dão consistência as comunidades locais, e sua origem sempre será de
caráter aristocrático. 3 A legitimação dessas figuras tem encontro direto com a
narrativa mítica. O mito é uma modalidade de interpretação do mundo, retrata uma
criação, uma origem que estabelece uma interseção entre divino/social/natural. Possui
um caráter teleológico. Os grandes feitos que marcaram a vida dos heróis são a base
dos escritos míticos. “egu doàB a d o,àoàp o essoàdeà politizaç o àpeloà ualàpassa aàaà
pólisno decorrer do século VIII levou esses mitos a serem utilizados com intenções
políticas. O mito muitas vezes era deslocado, particularmente o mito dos heróis –
viessem de onde viessem os heróis passavam pela cidade de Atenas (Brandão, 1991, p.
28-29).
Por detrás da narrativa mítica que se refere ao herói, percebemos que ela
registra dois aspectos fundamentais para a importância da figura do héros no processo
de construção da politéia grega: a genealogia e a geografia. O primeiro da à
legitimidade para a elite governar, a família, no sentido de génos, se associa a um herói
mítico fundador. O segundo trata sobre de onde o herói parte e onde ele chega. Desta
forma, as narrativas míticas intercambiam um tempo onde essas duas esferas serão
respeitadas, o poeta tendo esses dois elementos possui a liberdade para escrever. O
rito, já seria a práxis do mito,à asà pala asà deà B a d oà oà itoà e e o a,à oà itoà
2
A Idade dos Heróis pode ser compreendida como o Período Homérico, que também pode ser chamado
de a Idade de Ferro.
3
Em seus primórdios todas as póleis foram aristocráticas.
103
o e o a .à Daià aà i po t
iaà daà o st uç oà doà hérôon, local onde se celebra a
fundação da cidade.
Como já colocamos os motivos para o alvorecer da pólis não são totalmente
claros, mas a adoção de cerimônias cívicas, com a construção de templos comuns para
a toda a sociedade demonstram um aspecto importante: a primazia que o público vai
receber em detrimento do privado.4
Burkert ao falar sobre as funções sociais do culto, fala da importância deste
para a criação da solidariedade no desempenho e na interação dos papéis sociais. O
autor afirma que todas as formas essenciais de comunidade foram ornamentadas e
forjadas pela religião. A participação em um culto definia a pertença a um coletivo. O
poder crescente da pólis manifestou-se no fato de ela poder apoderar-se do
monopólio dos cultos (Burkert, 1993, p.485-490). E o autor conclui:
No antigo mundo da pólis a solidariedade humana era mais importante do
que a exaltação da fé. A religião não era um caminho ou uma porta, mas
o de ,à i teg aç oà o s ie teà u à u doà di idido à eà li itadoà
,à
p.524).
Associado a este sentido de solidariedade e função social do culto, destacamos um dos
sentidos do sagrado, hieròs, que os helenos compartilhavam. O sagrado se ligava a
uma dimensão territorial, alocais de manifestação do sobrenatural, como no caso dos
túmulos dos heróis (Vegetti, 1993).
Esse novo olhar no período do surgimento da pólis, do social, ou melhor, do
público acima do privado, se reflete em outros âmbitos, como por exemplo, na
publicação de leis, na afirmação da família nuclear e na criação da falange hoplítica.5
Temos assim, em meados do século VIII o surgimento da politéia.O termopolitéiapode
4
Hannah Arendt, em seu trabalho intitulado A condição humana, deixa claro que mesmo tomando a
politéia tal importância para a comunidade de cidadãos, não deixou de haver a esfera privada, a esfera
daà fa lia.à Histo i a e te,à à uitoà p o elà que o surgimento da cidade-Estado e da esfera pública
tenha ocorrido às custas da esfera privada da família e do lar. Contudo, a antiga santidade do lar,
embora muito mais pronunciada na Grécia clássica que na Roma antiga, jamais foi inteiramente
esquecida. Isso impediu que a pólis violasse as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez ver como
sagrado os limites que cercavam cada propriedade. Não foi o respeito pela propriedade privada tal
como concebemos, mas o fato de que, sem ser dono de sua casa, o homem não podia participar dos
eg iosàdoà u doàpo ueà oàti haàluga àalgu à ueàlheàpe te esse à á e dt,à
,àp. -39).
5
A afirmação da família nuclear, ao invés do génos, reflete a valorização do demos. Assim como a
falange hoplítica, pois abre espaço para se integrar ao exército quem possa se armar, o que antes era
possível apenas a aristocracia.
104
significar tanto a comunidade dos cidadãos que formam uma pólis como o conjunto
das instituições que a constituem.Essa concepção de que o Estado são as pessoas
dotadasàdeà idada iaà à ha adaàpo àCa fo aàdeà o epç oàpessoalàdoàEstado (1993,
p. 115).6
No segundo momento deste trabalho, nos voltamos para o final do século V e o
século IV. A Guerra do Peloponeso (431-404) marca uma virada decisiva na História da
Grécia em todos os seus aspectos. Tal conflito daria início ao processo de
desestruturação da pólis clássica, de maneira que, de 431 a338, a Hélade se
encontraria imersa em um estado de guerra contínua. Neste momento crítico pelo
qual passava o mundo políade o culto heróico ganhou nova força, porém de forma
bem diversa do culto surgido no século VIII (André, 2009). Este agora seria destinado
aos generais vitoriosos, e não iria se configurar em um culto a tumba do herói, pois
esse processo de heroificação ocorria com o general em vida. Devemos então nos
perguntar como foi possível ocorrer essa apoteose de mortais e o que estas
representavam neste mundo.
Mossé nos fala que este tipo de culto não desaparece na pólis clássica, e que se
direcionavam cada vez mais para a figura do general. O fato novo era que essas honras
eram prestadas a um vivo, não a um morto, e que logo após o fim da Guerra do
Peloponeso, nos primeiros anos do século IV, vamos ver pela primeira vez estátuas
erigidas em honra a estrategos na ágora ateniense (2004).7
Usando como base para essa discussão a pólis ateniense, vemos que a
especialização militar, o estratego assumindo a figura de general, e o estado de guerra
constante entre as póleis, leva a um apego a imagem dos generais vitoriosos, que nem
sempre são homenageados pelas suas cidades de origem. A construção de estátuas
aos generais vitoriosos se prolifera, mas como forma de se reconhecer o heroísmo –
estes homens eram elevados à posição de heróis. Mas agora o herói não vinha como
característica da ascensão do público sobre o privado, mas como reflexo da crise desta
politéia que chegava a expressar muitas vezes simpatia pela figura da monarquia. A
figura do basileu, que havia tornado-se distante, inclusive esvaziada de seu sentido
6
Nesta concepção, o Estado não tem uma personalidade jurídica autônoma para além e acima das
pessoas; antes coincide com as próprias pessoas, com os cidadãos.
7
Mossé dá exemplos de generais e estrategos que receberam o culto: Brásidas, o estratego ateniense
ág o ,à fu dado àdeàá f polisàeàLisa d o.à
105
primeiro que era o de rei, e estendido aos membros da aristocracia, apareceu nos
discursos de diversos políticos. Esse contexto de crise e de proliferação do culto
heróico abriu caminho para o surgimento da figura de um estrangeiro como um herói
na ágora ateniense – Filipe II da Macedônia.
No que concerne à origem e natureza da realeza macedônica, contribui muito o
trabalho de Theml, onde esta faz um interessante diálogo com a arqueologia. A autora
aponta que enquanto o hérôon é um dos elementos que aponta a emergência do
mundo políade, na região que se insere a Macedônia vemos surgir outro tipo de tumba
– a tumba do guerreiro. Este tipo de construção funerária teria um significado bem
diverso do hérôon, mostra a existência de uma elite que era responsável pela
organização política da comunidade. Neste tipo de tumba os artefatos encontrados
nas sepulturas masculinas, como espada, facas e lanças, deixam bem claro a função
militar. Sobre estes dois tipos de tumbas reais a autora conclui:
Observamos que a presença, no VIIIº/VIIº séculos a.C, destasà tu asà eais à
he oifi adasà eà aà dasà tu asà deà gue ei os , marcam dois espaços com
tempos históricos diferentes. Um centro helênico onde se processa a
formação das póleis e uma periferia onde as comunidades organizam-se
politicamente através de uma elite guerreira em forma de chefias ou
realezas tradicionais (Theml, 1997, 303).
Este tipo de governo, exercido por uma elite guerreira, provém para a autora
de um processo de preservação da tradição praticado pelos macedônios, diante das
mudanças que provinham das regiões políades e das ondas migratórias. De acordo
com a autora, as indicações da cultura material da região macedônica, na Idade do
Bronze, mostram que os macedônios, os trácios e os brígios eram culturas guerreiras.
Várias etnias diferentes ocuparam e passaram pela Macedônia assim, houve uma
valorização dos costumes ancestrais como forma de defesa e manutenção da
identidade social. Esse processo foi desencadeado e mantido pelo grupo dos
macedônios. Mas havia por parte da elite macedônia uma reivindicação de origens
míticas ligadas aos deuses helênicos. Consideravam-se descendentes de Zeus, e
celebravam o seu festival de outono em homenagem a Zeus, além de serem
conhecedores e admiradores dos poemas homéricos (Borza, 1982).
Filipe, ao assumir o trono em 359, fez uma série de inovações de cunho político,
106
militar e econômico e assumiu uma política de caráter expansionista. E passou a
interferir constantemente na complicada política grega.O rei tornou-se membro da
assembléia anfictiônica, devido a uma vitória contra os fócios, e a Macedônia foi
reconhecida como membro (honorário) da família de Estados gregos. Em 338, Filipe
derrotou a liga dos estados helênicos e tornou-se hegemon dos gregos.Dentro deste
contexto, Filipe tornou-se um general vitorioso, então o culto heróico devotado a ele
seria normal, dentro do novo sentido que este culto assumiu no século IV.
Vemos que o culto ao herói neste período foge da solidariedade entre os
membros da sociedade que o culto do século VIII repousava. Isso ocorre, pois estes
cultos escapam do sentido político de que o poder repousa na comunidade dos
cidadãos e porque muitas vezes não são espontâneos. São exigidos como veneração
divina, como se fossem eles próprios deuses, como vai acontecer com estrategos
gregos, Filipe e Alexandre. Um elemento estrangeiro agora era venerado como
vencedor e salvador e não mais um cidadão.
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VERNANT, Jean-Pierre. O homem grego. Lisboa: Presença, 1994.
108
A ATUAÇÃO DO AEDO NOS BANQUETES HOMÉRICOS
Ana Gabrecht – Doutoranda Ufes/Fapes
Os banquetes são comuns na maioria das sociedades, antigas e modernas.
Podem ser entendidas como formas de ostentação ou divertimento; podem também
serem espaços para o compartilhamento de valores de uma determinada sociedade ou
grupo. Os banquetes descritos Odisseia, epopeia atribuída a Homero, são a
oportunidade dos aristoi – os melhores, a nobreza – demonstrarem seus valores e
assim, se diferenciar dos demais grupos sociais.1 São nesses banquetes que os aedos
executam suas performances e cantam as glórias da aristocracia. Nesta comunicação
pretende-se analisar a importância da performance poética durante as festividades
descritas na Odisseia e como o trabalho do aedo atua de maneira a corroborar os
valores aristocrático.
A Ilíada e a Odisseia, consideradas as obras fundadoras da literatura ocidental,
são atribuídas ao lendário Homero. Em ambas as epopeias aparecem poetas
profissionais responsáveis pelo entretenimento nas festas e eventos. Eles são
chamados de aoidoi, em português aedos.2 Se Homero existiu foi um desses aedos.3
Para alguns estudiosos (Latacz, 1996; Fränkel, 1975), o autor (ou autores) da Ilíada e
Odisseia, utilizou sua própria experiência para descrever os fictícios poetas.
A Odisseia nos fornece maiores informações acerca da atuação dos aedos, uma
vez que estes aparecem em maior número e com maior freqüência que na Ilíada.4 Esta
epopeia nos mostra apenas um aedo, o trácio Tamíris, mas ele não pode exercer sua
arte, pois havia se vangloriado, dizendo que poderia vencer qualquer um, inclusive as
Musas, filhas de Zeus. Como vingança, as deusas o cegaram, lhe tiraram a arte do
canto e o dom de tocar a cítara,
1
Para esta comunicação, optamos pela não acentuação das palavras gregas.
A palavra aiodos literalmente significa cantor. O aedo executa sua performance nas festividades e
banquetes acompanhado do phorminx, um instrumento musical de corda também chamado de lira ou
cítara – os três termos aparecem nas epopeias.
3
TheàHo e i à uestio à àu à a poàdosàestudosàho
icos que, com a colaboração de historiadores,
lingüistas, filólogos entre outros pesquisadores, busca responder questões sobre autoria, composição e
datação da Ilíada e Odisseia. Nenhuma destas questões foi ainda, definitivamente respondida (Nagy,
1996, p.1)
4
Por esse motivo nos restringiremos à análise da atuação dos aedos na Odisseia.
2
109
[...] as musas, saindo
ao encontro do trácio Tamíris, ao canto
dão-lhe termo (de Eucália, do palácio de Êurito,
ele voltava, ufano, desafiando as filhas
do porta-escudo, Zeus, dizendo ultrapassá-las;
coléricas, as musas o cegam; do canto
divino o destituem e da arte da cítara).
5
(Il., II, 594-9).
Este é o único exemplo de um aedo citado na Ilíada. Em contrapartida, quatro
aedos aparecem na Odisseia. Todos são descritos atuando nos salões da aristocracia. O
primeiro não tem seu nome revelado, mas é descrito como alguém bem próximo do
rei de Micenas Agamêmnon, pois é ao aedo que o soberano confia sua esposa
Clitemnestra quando parte para lutar na Guerra de Troia (Od., III, 267-9).6 Para Werner
(2005, p. 180) a história do aedo de Micenas, ilustra, o prestígio e a importância do
poeta na Grécia homérica, mas também a fragilidade da sua posição, sempre à mercê
de reviravoltas políticas.
Assim como o primeiro, não nos é dito o nome do segundo aedo descrito na
Odisseia. Atua no palácio de Menelau, rei de Esparta. Vemos sua performance durante
a celebração do casamento dos filhos do rei, Hermíone com o filho de Aquiles – um
trato que havia sido firmado em Troia – e Megapentes e a filha de Aléctor. Homero
descreve a festa (Od., IV, 15-9),
Banqueteavam-se, pois, no palácio de teto elevado
os agregados do Rei Menelau glorioso e os vizinhos,
alegremente. Cantava entre todos o aedo divino,
ao som da cítara, ao tempo, também, em que dois saltadores
cabriolavam, seguindo o compasso, no meio de todos.
e percebemos que a atuação do aedo é complementada com performance de
dançarinos, no entanto, isso não é uma regra. O terceiro aedo se chama Demódoco, é
o poeta cego a serviço dos do rei dos feácios, Alcínoo, na Esquéria, último lugar onde
5
A sigla Il. refere-se à Ilíada enquanto que a Od. àOdisseia. Os números romanos maiúsculos referem-se
aos cantos da epopeia citada e os números arábicos, aos versos.
6
Precaução que não obteve resultados, pois Egisto, o amante de Clitemnestra, capturou o aedo e o
deixou em uma ilha deserta para ser devorado por abutres (Od., III, 269-71).
110
Odisseu aporta na sua viagem de retorno para casa. O quarto aedo citado na Odisseia
é Fêmio, cantor de Ítaca, cidade do herói Odisseu. Além desses quatro, há ainda
Odisseu, que por vezes atua como aedo, ao contar suas aventuras, como faz na corte
dos feácios.
No entanto, são Demódoco e Fêmio os aedos que participam mais ativamente
da narrativa. Ambos cantam episódios da guerra de Troia, o retorno dos heróis e
histórias acerca de deuses e deusas, fornecendo assim, entretenimento durante
festividades descritas na epopeia.
Todos os aedos descritos por Homero são profissionais a serviço da aristocracia,
estabelecidos na corte de algum rei. Deslocamentos de aedos são pouco citados, mas,
de acordo com Moraes (2009, p. 63) é correto pensar que em uma sociedade de
cultura oral como a homérica, para se ter acesso às informações, na maioria das vezes
é preciso entrar em contato com aqueles que já dispõem delas. Em seus
deslocamentos, o aedo entra em contato com outros profissionais como ele e
incrementa seu repertório.
O aedo é um demiurgo. Um profissional itinerante que assim como o ferreiro, o
sapateiro, o vidente, oferece seus serviços a qualquer um que possa pagar, não apenas
a corte ou aos grupos mais abastados (Latacz, 1996, p. 31; Ulf, 2009, p. 87). Uma
passagem do canto XVII da Odisseia ilustra a importância deste profissional para a
comunidade: Antínoo, um dos pretendentes à mão de Penélope repreende Eumeu o
porqueiro, por ter trazido um mendigo ao palácio – o mendigo é Odisseu transformado
pelos poderes de Atena, sua deusa protetora. Na resposta do porqueiro, observa-se
que o aedo é agrupado aos demais profissionais que prestam serviços a comunidade.
Co ua toàsejas,àá t oo,àfidalgo,à o t sà oàfalaste;à
Pois quem teria prazer em chamar alguém de outras paragens,
a menos que se tratasse de um desses que aos povos são úteis,
áugures, ou carpinteiros, ou médicos para os doentes,
ou mesmo aedos divinos, que a todos deleitam com música?
Po à todaà aà te aà e te s ssi aà osà ho e sà so e teà aà estesà ha a à [...] à
(Od., XVII, 381-6).
Percebe-se então, que o aedo é um profissional reconhecido pela importância dos serviços
prestados à comunidade.
111
As Musas, filhas de Zeus com Mnemosine, são as divindades evocadas pelos
aedos homéricos para auxiliá-los no seu canto. No mundo homérico, são elas que
conferem legitimidade ao canto do aedo, oferecendo referenciais divinos para
corroborar a atuação dos mortais (Moraes, 2008, p. 110). Assim como ocorre com
Demódoco, o aedo cego dos feácios, que deve seu canto divinal à Musa que lhe
inspira:
Já pelo arauto trazido o cantor divinal se aproxima,
que quanto a Musa distingue, e a quem males e bens concedera:
tira-lhe a vista dos olhos, mas cantos sublimes lhe inspira.
[...] Tendo pois a fome e a sede saciado,
a Musa logo o incitou a falar sobre os feitos dos homens,
gestas dos heróis, cuja fama o alto céu, nesse tempo, atingira [...]
(Od., VIII, 62-4 e 72-4).
Afirmar que o canto do aedo é inspirado pelas Musas não é apenas um
elemento retórico, mas uma constatação. No mundo homérico, a criação poética não é
aprendida, mas concedida. Fêmio, aedo de Ítaca confirma esta idéia ao declarar que
recebeu seu talento e suas histórias dos deuses. Em uma passagem da Odisseia, vemos
o cantor afirmar isso ao implorar por sua vida no momento em que Odisseu executa
sua vingança contra os pretendentes e os criados que os serviram,
Osàteusàjoelhosàa aço,àOdisseu;àte sàpiedadeàeà espeito!à
Arrependido virás a ficar se matares a um vate
cujas canções sempre foram dedicadas aos deuses e aos homens.
Fiz-me por mim, tão-somente, que um deus em minha alma ditou-me
uitasà a ç es. à
(Od., XXII, 344-8)
Dodds (2002, p. 86-7) afirma que a atividade do aedo homérico assemelha-se a
do adivinho. Assim como a verdade sobre o futuro só é atingida se o homem entrar em
contato com um conhecimento sobrenatural, a verdade sobre o passado só pode ser
atingida nas mesmas condições. O aedo, assim como o vidente, possui recursos
técnicos e treinamento profissional, no entanto, a visão do passado, como a intuição
112
sobre o futuro, permanecia uma faculdade misteriosa, dependente em última
instância, das divindades – no caso do aedo, depende da Musa.7
Vernant (1990, p. 456-7) concorda com Dodds, ao afirmar que o poeta assim
como o adivinho, tem o privilégio de ver a realidade imutável e permanente, a Musa
p e-no em contato com o [evento] original, do qual o tempo, na sua marcha, só
des o eà u aà fi aà pa teà aosà hu a os,à eà pa aà o ulta à logoà ap s. à Essaà ideiaà à
perceptível na Odisseia quando Odisseu elogia a precisão do canto de Demódoco, que
relata fielmente os episódios da guerra de Troia como se lá estivesse. Dessa forma o
herói de Ítaca se dirige ao aedo feácio:
Maisàdoà ueàaàtodosàosà o tais,àteà e e o,à àDe do o!
Foste discípulo das Musas, as filhas de Zeus, ou de Apolo?
Tão verazmente cantaste as desgraças dos homens aquivos,
quanto fizeram, trabalhos vencidos, e o mais que sofreram,
o oàseàoà issesàtuàp p io,àouàsou essesàdeàalgu àfidedig o.
(Od., VIII, 487-91)
No entanto, é preciso ressaltar que apesar das semelhanças, a atuação do aedo é
distinta da atividade do vidente. O poeta não solicita que seja possuído, apenas age
como intérprete da Musa, pois é ela que conhece o passado, o aedo apenas empresta
sua voz para que os acontecimentos sejam revelados. Segu doàDoddsà
,àp.à
,à aà
tradição épica representava o poeta como capaz de retirar das Musas um
conhecimento acima do normal, porém não como alguém em estado de êxtase ou
es oàpossu doàpelasàMusas .
Podemos observar nas epopeias muitas referências acerca da cegueira dos
aedos. Na Odisseia, o canto do cego Demódoco é constantemente louvado, temos
ainda o exemplo do adivinho cego Tirésias que conduz Odisseu em sua viagem ao
Hades. O próprio Homero é muitas vezes tido como cego. Na opinião de Vidal-Naquet
(2002, p.13), isso ocorre pelo fato de os antigos considerarem que a memória de um
homem era mais extraordinária quando se encontrava desprovido de visão.
De acordo com Griffin (2004, p.7), uma explicação para a frequência com que
se referem aos aedos e adivinhos como pessoas desprovidas de visão é que, para a
7
Dodds (2002, p. 105, nota 118) nos informa que várias línguas indo-europeias possuem um termo
o u à pa aà poeta à eà ide te ,à o oà a o te eà o à aà pala aà vates do latim. Essa peculiaridade
lingüística faz com que as idéias de poesia e profecia estejam intimamente relacionadas.
113
sociedade grega do período homérico, um homem cego é possuidor de um
conhecimento obscuro, além do alcance dos demais humanos. Segundo este autor, há
também, nesta sociedade, a idéia de uma conexão íntima entre um dom recebido e
algum tipo de sofrimento. Sendo assim, um dom extraordinário concedido por uma
divindade faz daquele que o recebe uma pessoa envolta em sofrimento. Apesar da
função primordial do canto do aedo ser promover entretenimento, também pode
produzir dor e tristeza. Como exemplo, temos o episódio da Odisseia em que o rei
feácio Alcínoo oferece um banquete em homenagem a Odisseu. Demódoco é
convocado para cantar durante a festividade, porém enquanto os feácios deleitam-se
com o canto do aedo, Odisseu cobre sua cabeça com um pano e chora, pois para ele é
muito doloroso ouvir as histórias sobre a Guerra de Troia, devido ao seu envolvimento
profundo no conflito.8
Isso narrava o famoso cantor. Odisseu, entrementes,
com as mãos fortes o manto de púrpura para a cabeça
puxa, encobrindo-a com o fim de esconder as feições majestosas.
Envergonhava-se, sim, de que o vissem chorar os Feácios.
Sempre, porém, que o divino cantor a canção terminava,
ei-lo que o rosto de novo descobre, enxugando-lhe as lágrimas [...]
(Od., VIII, 83-88)
O rei Alcínoo é o único a perceber o pranto de Odisseu por estar sentado
próximo a ele. O soberano solicita, então, que o aedo pare de cantar e convoca todos
os participantes do banquete a sair da sala e se encaminhar ao exterior do palácio para
as competições atléticas em homenagem ao visitante:
O a,àes utai-me, Feácios, que sois conselheiros e guias;
já temos todos saciado a vontade nos dons do banquete,
como, também nas canções, que acompanham os lautos repastos.
Ora saiamos da sala e passemos às provas atléticas,
para que possa o nosso hóspede, quando entre os seus
encontrar-se, de volta à pátria, contar como em todos os jogos primamos,
no pugilato e na luta, no salto e no rápido cu so .
(Od., VIII, 97-103)
8
Para maiores informações a respeito do choro de Odisseu diante do canto de Demódoco consultar
Halliwell (2009).
114
Nessa e em outras cenas da Odisseia, percebemos que os banquetes eram os locais
privilegiados de atuação do aedo. O banquete é o espaço propício para que, por intermédio da
poesia, os valores que definem a nobreza sejam afirmados e propagados. Os aristoi são os
protagonistas das histórias cantadas pelos aedos, pessoas do povo ocasionalmente aparecem,
mas sempre em posição secundária.
A epopéia homérica é a celebração da moral heróica. Moral que pressupõe a
existência de uma tradição de poesia oral, repositória de uma cultura comum, que funciona
para o grupo como memória social. Não há kleos (glória) senão cantada (Vernant, 1978, p. 41).
Os heróis homéricos são guiados por um rígido código de valores, norteado principalmente
pelas idéias de time (honra), arete(virtude, excelência), kleos (glória), geras (privilégio).
Os valores apresentados em Homero são essencialmente os de uma aristocracia
guerreira, que necessita mostrar sua destreza em campo de batalha. De acordo com essa
moral, os nobres devem ser guerreiros proeminentes para, assim, desfrutar do poder e dos
privilégios. Gozam desses na devida proporção de suas habilidades bélicas (McGlew, 1996,
p.53). Ao aedo cabe então, a tarefa de perpetuar a kleos do herói, para que seus feitos nunca
sejam esquecidos, tornando-o imortal, uma vez que, seu nome não cairá no esquecimento.
Murray (2009, p.513 e ss.) afirma que os banquetes descritos na epopeia são o local de
autodefinição da elite dos aristoi diante dos demais membros da sociedade, aqueles que
foram excluídos do festim. Estes banquetes, regados a vinho e muita carne, são parte
intrínseca do estilo de vida da aristocracia guerreira do período homérico. Constituem
importante mecanismo de relacionamento entre a nobreza, pois fazem parte dos ritos de
hospitalidade tão presentes no mundo descrito pelo poeta. No canto XVII da Odisseia é
possível perceber a identificação do banquete com o modo de vida do nobre. Nesta passagem
Odisseu, disfarçado de mendigo, é conduzido ao seu solar pelo porqueiro Eumeu. O rei assim
se manifesta:
Estaà ,àse àdú ida,àEu eu,àaà o adaàdoàdi o Odisseu.
Reconhecê-la é mui fácil, té mesmo no meio das outras:
quartos e quartos se seguem, e o pátio é, todo ele, cercado
de muros altos e ameias; as portas são bem trabalhadas
com dois batentes; ninguém poderia por força arrombá-las.
Vejo que dentro da casa a banquete opulento se entregam
homens alguns, porque sinto de assados o cheiro e ouço música,
aà o pa hiaà ueàosàdeusesàaàtodosàasàfestasà o ede .
(Od. XVII, 264–71)
115
Em sua fala, Odisseu demonstra o banquete como um elemento que identifica
sua casa. No momento em que dialoga com Eumeu está ocorrendo um festim
organizado pelos pretendentes a mão de Penélope, todos eles pertencentes a famílias
importantes de Ítaca e ilhas vizinhas. Durante a ausência de Odisseu, esses nobres
banqueteavam-se com frequencia à custa do patrimônio do rei e sua família.
Os banquetes refletem a organização estrutural da sociedade homérica. O
tamanho das porções de alimento depende da honra e do mérito daqueles que as
recebem. Devido à importância dos aedos, estes também são homenageados com
melhores porções. Fascinado pelo canto divinal do aedo Demódoco, Odisseu lhe
oferece um generoso pedaço de carne de porco para honrá-lo:
Vira-se, então, o astucioso Odisseu para o arauto, ali perto;
corta um pedaço do lombo do porco de dentes recurvos
com bem gordura e, a seguir, um maior para si põe de parte:
Le aàestaàposta,à à apaz,àaàDe do o,àpa aà ueà o a;à
conquanto aflito, desejo, também, homenagem prestar-lhe.
Todos os homens que vivem no dorso da terra, os cantores
sabem cultuar e os veneram, por verem que as Musas os prezam
o oàdis pulos.àTodosàaà astaàdosà a dosàp eza os .à
(Od., VIII, 477-81)
As cenas de banquetes descritas nas epopeias revelam a importância que a
performance poética tem nesta sociedade. Concordamos com Moraes (2009, p.64)
quando afirma que é por intermédio de canto dos aedos que os méritos da elite são
louvados e propagados, auxiliando assim, a ratificar a proeminência dos aristoi sobre
os demais grupos sociais.
Referências Bibliográficas
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116
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and prose to the middle of the fifth century. New York: Harcourt Brace Jovanovich,
1975.
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HALLIWELL, Stephen. Odisseu: a solicitação e a necessidade do canto. Anais de
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Ano 15, vol. 15, n.02, Rio de Janeiro: Mauad X, 2009, p. 62-73.
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6, nº 11, 2º sem., 2005, p. 171-181.
117
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INSTITUIÇÃO CIVIL DO
CASAMENTO NA URBS ROMANA
Ana Lúcia Santos Coelho1
O casamento romano: principais aspectos e tradições
Na Itália romana, um século antes ou depois de nossa Era, havia cinco ou seis
milhões de homens e de mulheres livres e cidadãos. Eles viviam em territórios rurais
(civitas) que possuíam como centro uma cidade (urbs) com seus monumentos e casas.
Existiam ainda um ou dois milhões de escravos que poderiam ser domésticos ou
trabalhadores agrícolas.
Em relação aos homens livres, pode-se dizer que alguns deles nasceram livres
devido ao casamento de um cidadão e uma cidadã, outros nasceram escravos e foram
libertados e outros ainda eram bastardos nascidos de uma cidadã. O que importa
mesmo é que nenhum deles era mais cidadão que o outro e, sendo assim, todos
podiam recorrer à instituição civil do casamento.
O casamento romano era um ato privado, um acontecimento que nenhum
poder público precisava aprovar. Tratava-se de um ato não escrito – não havia
contrato de casamento - e informal, ou seja, não era necessário nenhum gesto
si
li oà ouà at à
es oà u aà e i
iaà p op ia e teà dita.à E à s tese,à [...]à oà
asa e toàe aàu àatoàp i ado,à o o,àe t eà
s,àoà oi ado à Ve e,à
,àp.à
.à
A união acontecia com ou sem o consentimento da mulher, que geralmente se
casava ao completar doze anos ou até mesmo antes. Segundo Silva (2009, p. 74), era o
pai ou o tutor que determinava se a filha iria se casar ou não e com quem ela casaria,
era uma política comum predestinar as filhas desde pequenas, pois a mulher solteira
com mais de dezoito anos não era bem vista na sociedade romana.
O justum matrimonium era uma prática legal e religiosa, através da qual a
mulher era transferida da esfera do poder (potestas) do pai para a do marido, podendo
1
Graduanda em História e Bolsista de Iniciação Científica da CNPq da Universidade Federal do Espírito
Santo.
118
ser de duas formas pré–estabelecidas: cum manus (com a mão), quando seu
patrimônio era passado para o pater potestas da família de seu marido, ou sine manus
(sem a mão), quando seus bens continuavam sob o poder de sua família.
Nenhum juiz ou qualquer outra autoridade poderia decidir se um homem e
uma mulher eram casados em núpcias legítimas. Somente o casal podia determinar,
em seu pensamento, se estavam casados. Nesse contexto, era extremamente
importante saber se o casal tinha se unido em núpcias legítimas de fato, pois o
casamento criava efeitos de direito e os filhos nascidos dessa união assumiam o nome
do pai e davam continuidade à linhagem. Caso o pai falecesse, eles eram seus
sucessores como proprietários do patrimônio.
De acordo com Paul Veyne (2008, p. 191), o divórcio, legalmente, era algo
bastante simples e comum: bastava que o marido, sozinho, ou a mulher, sozinha,
quisesse o divórcio para que a separação fosse legal. Não se estava expressamente
obrigado nem mesmo a comunicar e prevenir o outro cônjuge e houve em Roma
maridos divorciados de sua única esposa sem o saberem. Repudiada ou solicitando o
divórcio por iniciativa própria, a esposa seguia seu caminho livremente carregando
consigo o seu dote, se tivesse um, é claro.
Contudo, durante muito tempo subsistiu nos costumes certo repúdio ao
divórcio. Quando uma esposa de desentendia com o seu marido,
convidava-o à reconciliação perante uma jurisdição bastante peculiar, uma
divindade chamada Viriplaca,à aà ueàapla aàosà a idos ,à ujaà apelaàsitua ase no Palatino. Antes de tomar uma decisão extrema, maridos e mulheres
iam até lá e sob a proteção da deusa abriam o coração. Ao falar,
encontravam a calma; a tempestade se dissipava e pela graça de Viriplaca
voltavam para casa mais unidos que nunca. Todavia no final da República
Viriplaca perdeu muito de seu poder, e os divórcios tornaram-se bem
freqüentes (GRIMAL, 1991, p. 83).
Tendo tudo isso bem considerado, surge a pergunta: mas por que motivos,
então, as pessoas se casavam? Por duas razões: a primeira para enriquecer, por meio
do dote da esposa (esse era um meio honroso de enriquecer), e a segunda para gerar
filhos legítimos que perpetuariam o corpo cívico, isto é, o núcleo dos cidadãos. Sendo
assim, Grimal (1
,à p.à à afi
aà ueà à gens pouco importava a felicidade do casal,
119
bastava que conseguisse engendrar uma nova geração, que, por sua vez, perpetuasse a
aça .
As leis do imperador Augusto
Por volta dos primeiros anos do Império, acontece a primeira intervenção séria
na ordenação da instituição civil do casamento. O imperador Augusto decretou leis
sobre a família inaugurando o interesse do Estado em controlar a vida privada dos
romanos e é com essas leis que o casamento ganhou peso institucional.2 De alguma
fo
a,à segu doà Diasà
,à p.à
,à oà Estadoà e o he eà ueà aà idaà p i adaà dosà
romanos não é um assunto que se reflete apenas no curso da vida dos clãs, mas
ta
à aà idaà daà aç o .à áà Lex Iulia de adulteriis coercendis (28 ou 27 a.C)
determinava que os assuntos amorosos e o adultério constituíam matéria de
julgamento público; a Lex Iulia de maritandis ordinibus e o Ius trium liberorum (18 a.C.)
concebiam respectivamente o direito de os não casados herdarem o patrimônio
familiar e o direito de as mães que tivessem mais de três filhos ficarem libertas da
tutela familiar; por fim, a Lex Papia Poppaea (9 d.C), concebia o direito de as mulheres
disporem dos seus bens e de serem herdeiras dos seus filhos.
A partir dessas leis de Augusto, é importante ressaltar aqui dois aspectos: Por
esta altura, o casamento já não era a união mais estável e popular e que, de um modo
inovador, o primeiro imperador reconhecia na estabilidade do casamento um papel
institucional, por ele poder revelar-se como um veículo de reformas e mesmo de
propaganda de uma nova era.
Levando isso em consideração, muitos historiadores afirmam que durante o
período do Império um novo tipo de mentalidade conjugal se desenvolveu, muito mais
espiritualizada e exigente em termos de durabilidade da união. O próprio Paul Veyne
(2009, p. 46) afirma que as leis de Augusto propiciaram uma mudança de pensamento
visível no século II d.C. O casamento, além da dimensão institucional pública reforçada
pelas leis de Augusto, foi promovido como modo de realização afetiva, contribuindo
pa aàa uiloà ueàVe eà ha ouà i e ç oàdeàu aà o alàse ualàeà o jugal .
2
As leis de Augusto só exerciam sua força sobre as duas ordens principais, senadores e cavaleiros, e não
se preocupavam com os que estavam praticamente excluídos da vida pública.
120
Antes das leis do imperador, o que existia era uma moral cívica. O homem, ao
casar-se, devia se considerar como um cidadão que cumpriu todos os seus deveres
cívicos. Essa primeira moral dizia que casar era um dos deveres do cidadão e, por isso,
não questionava a fundamentação das normas, pois como apenas as justas núpcias
permitiam gerar cidadãos de modo regulamentar, devia-se obedecer e casar.
Já a nova moral determinava que o homem devia se casar e ser um bom marido
e, acima de tudo, devia também respeitar a sua mulher. A segunda moral dizia que
aquele que quisesse ser considerado um homem de bem só poderia fazer amor para a
procriação, pois o casamento não servia para a satisfação dos prazeres. Nesse sentido,
a nova moral,
menos militarista, quer descobrir um embasamento das instituições; como o
casamento existe e sua duração ultrapassa em muito o dever de gerar filhos,
deve ter outra razão de ser; fazendo com que dois seres racionais, o esposo
e a esposa, vivam juntos durante toda a sua existência, ele é portanto uma
amizade, uma afeição duradoura entre duas pessoas de bem, que só hão de
fazer amor para perpetuar a espécie (VEYNE, 2008, p. 194).
Na velha moral cívica, a esposa era apenas um instrumento da função de
cidadão e chefe de família, fazia filhos e aumentava o patrimônio. Na segunda moral, a
mulher é uma amiga, tornou-se a companheira de toda uma vida.
O casamento como dever cívico
De acordo com a antiga moral cívica, o casamento era como um dever entre
outros, uma opção. Não era o eixo de uma vida, mas apenas uma decisão que um
senhor deveria tomar. A esposa não passava de um objeto desse senhor, um ser
eternamente menor. Ela não era mais do que um dos móveis e utensílios da casa, que
compreendiam também os filhos, os alforriados, os clientes e os escravos. Os senhores,
chefes de uma casa, resolviam as coisas entre si, ou reuniam um conselho de amigos,
mas nunca discutiam o assunto com sua mulher.
No fim das contas, então, a esposa não passava de uma subalterna, uma
criança grande, que o marido era obrigado a tratar bem devido ao seu dote e ao seu
pai nobre. Um marido era dono tanto da mulher quanto das filhas e empregadas
domésticas. Se por acaso sua mulher lhe fosse infiel, isso seria considerado uma
121
infelicidade, pois ao ser enganado, o homem era criticado em pleno Senado por ter
afrouxado a vigilância e a firmeza, e principalmente, por permitir que o adultério
florescesse na cidade.
Portanto, a moral cívica exigia apenas a execução da seguinte tarefa: ter filhos e
cuidar da casa. No casamento, os esposos tinham o dever estrito de cumprir suas
respectivas tarefas. Se, além disso, se entendiam bem, este era um mérito adicional,
não uma pressuposiç o.àá o à [...]àeà asa e toà
u à doà out o à NOEL-‘OBE‘T,à
,à p.à
oàe a à o se ü
iasà e ess iasà
.à “e doà assi ,à oà a o à
oà e aà u aà
condição para o casamento e sim uma conseqüência que poderia vir ou não acontecer
aoàlo goàdosàa osàdeà o i
e aà oà
ia à “ILVA, 2009, p. 74). Não sendo obrigatório, maior
itoà deà t ata à e à aà esposa,à se à [...]à o à izi ho,à a fit i o,à a
o àaà ulhe àeà le e teà o àoàes a o,àdizàoà o alistaàHo
io à VEζNE,à
el,à eigoà
,àp.à
.à
A nova moral sexual e conjugal
Nesse momento o ideal do casal transformou-se num dever. Marido e mulher
deveriam manter um relacionamento sentimental, virtuoso e exemplar. Qualquer
desentendimento entre cônjuges passou a ser visto com maledicência ou derrotismo.
Uma conseqüência prática disso foi que o lugar reservado a esposa modificou-se. Na
antiga moral, ela se encontrava entre os serviçais domésticos, nos quais mandava por
delegação marital. Na nova moral, a mulher eleva-se ao nível dos amigos e o laço
conjugal passa a ser comparável a um pacto de amizade constantemente posto a prova.
A esposa passou a ser a companheira para toda a vida. Os maridos, inclusive, mudaram
a forma como falavam da mulher numa conversa ou no modo como se dirigiam a elas
na presença de terceiros.
Desse modo, o casamento se transformou em uma espécie de contrato mútuo.
Homem e mulher eram agora agentes morais e o adultério do marido passou a ser
considerado tão grave, legalmente, quanto o da esposa. Segundo Montero (1986, p.
203) surgiu, então, uma igualdade entre os sexos frente à lei e a sua aplicação garantia
às mulheres uma posição social nunca antes ocupada por elas na Antiguidade. Agora
elasàpode ia ào iga àoà a idoàaà o pe àaàu i oàeàpode ia àta
122
à [...]àagi à o oà
os homens em determinadas ocasiões, como na de receber e gerir seus dotes e
he a ças à “ILVá,à
,àp.à
.
Muitos historiadores dizem-se incapazes de encontrar uma explicação causal
para essa transformação moral. Alguns afirmam que foi o estoicismo e outros que foi
devido ao surgimento do cristianismo3. Os autores Paul Veyne (2008, p. 202) e Philippe
Ariès (1983, p. 138) afirmam que havia uma maior afinidade entre o estoicismo e a
nova moral conjugal.
Sabe-se que o estoicismo era uma doutrina da autonomia moral, da condução
do indivíduo racional por ele próprio, sobre seu interior, partindo do princípio de que
ele estava atento a todos os ideais na caminhada da vida. Por ser uma doutrina de
autonomia e controle, o estoicismo encarava a instituição matrimonial com muito rigor.
Dizia que os esposos teriam que controlar os seus gestos e não poderiam ceder aos
seus desejos, pois de acordo com o estoicismo, ceder aos desejos era algo imoral.
Nesse sentido, marido e mulher deveriam fazer amor apenas para ter filhos, para
procriar.
Observa-se, portanto, que o estoicismo tinha uma semelhança com a ascese
cristã. Assim como o primeiro, o cristianismo também pregava a racionalização dos
desejos e a propagação da espécie como finalidade e justificação do casamento.
Porém, não é porque existe essa semelhança que se torna possível concluir que a nova
o alà o jugalà foià o aà doà
istia is o.à áoà o t
io,à [...]à u aà te d
esta ilizaç oà doà asa e to,à[...]à su geà e à ‘o aà a tesàdaà i flu
iaà à
iaà doà istia is o à
(ARIÈS, 1983, p. 138). Veyne (2009, p. 55) sugere que, durante os primeiros séculos da
nossa era, uma transformação profunda dos costumes e valores introduzira no
casamento romano mais sentimento, uma maior exigência moral, um maior valor
reconhecido à sua duração; em resumo, impusera-se então uma moral, que se
transformará na moral cristã, mas que era pagã na origem.
Convém, por conseguinte, destacar que esta mutação aconteceu sem a
i flu
iaà ist .à áà auto aà Diasà
,à p.à
à o e taà ueà [...]à à à últi aà faseà doà
paganismo que pertence este apelo a uma vivência contida da sexualidade integrada
3
Segundo o dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano (2000, p. 384), o estoicismo pode ser
a a te izadoà o oà [...]à aà atitudeà deà ue à i eà oà i sta te,à ouà seja,à i eà pa aà olhe à oà ueà h à deà
i te essa teà aà ida,àdesp eza doàtudoàoà ueà à a al,ài sig ifi a teàeà es ui ho .
123
oà asa e to .àLogo,àoà istia is o,àe à elaç oà ào ige àdoà asa e to,à
oàfezà aisà
do que integrar e apropriar-se da moral das classes superiores do paganismo e divulgála como sua, contribuindo para a permanência desse modelo no futuro.
Considerações finais
Como foi possível perceber, na sociedade romana as pessoas recorriam à
instituição civil do casamento por duas razões básicas: porque tinham a intenção de
enriquecer, por meio do dote da esposa e porque queriam ter filhos legítimos que
aumentariam o núcleo dos cidadãos.
Num primeiro momento, os indivíduos encaravam o matrimônio enquanto um
dever cívico, uma obrigação. O amor não era uma condição necessária e, por conta
disso, os homens somente se casavam porque queriam ser respeitados e vistos como
pessoas de bem. A mulher era considerada subalterna e não passava de mais um dos
objetos do senhor.
Contudo, no início do Império o imperador Augusto decretou algumas leis e
elas contribuíram para o surgimento de uma nova moral conjugal. Agora, o homem
deveria manter um relacionamento sentimental e exemplar com sua esposa. Os
cônjuges tornaram-se iguais e só podiam manter relações sexuais para procriação.
Por fim, essa transformação moral não deve ser relacionada, exclusivamente,
com o cristianismo. A profunda mudança dos valores e costumes que introduziu o
sentimento no casamento romano foi pagã em sua origem, o cristianismo apenas se
apropriou disso. Se o cristianismo se aproximou desta moral pagã tardia no que
respeita à estabilidade e dignidade do laço conjugal, contribuiu de uma forma decisiva
para que este modelo de vida não dissesse só respeito a uma elite culta e rica, mas se
universalizasse.
Referências bibliográficas
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
124
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das Letras, 2009.
VEYNE, P. Sexo e poder em Roma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
125
UMA POSSÍVEL ABORDAGEM DA MÍMESIS A PARTIR DO
LIVRO III DA REPÚBLICA
Anallú Guimarães Firme Lorenção
Mestranda (UFES)
No Livro III da República de Platão, após a explanação sobre o conteúdo
adequado aos mitos – sobre o modo como os deuses, os heróis, o Hades e os homens
devem ser representados aos jovens guardiões, a fim de que os mesmos se formem
nas virtudes, Sócrates se atém a outra dimensão do lógos, não mais relativa ao seu
conteúdo imagético, mas à sua maneira de enunciação. O termo grego empregado
para designá-la é léxis, comumenteà t aduzidaà po à estilo ,à g
e o à doà dis u so.àà
Enquanto estilo literário, a narrativa mimética receberá criticas, e será tratada por
Sócrates com muita cautela. Acreditamos, entretanto, que as críticas e a cautela são
necessárias, tendo em vista a tendência mimética da alma. É porque a imitação é
importante na formação da alma, que ela não pode ser usada sem o devido cuidado
pelos homens. O estabelecimento de critérios para o seu bom uso refletirá em
guardiões melhor preparados para desenvolver a sua funç oàdeà a t fi esàdaàli e dadeà
daàp lis .ààààààààààààà
A sequência do Livro III nos indica que a poesia não afeta apenas pelo sentido
das palavras enunciadas, mas também pelo modo de se enunciá-las. Na Grécia Antiga,
tradicionalmente, a experiência poética envolvia o seu modo de expressão; os mitos
eram, na maior parte das vezes, recitados ou cantados. Esta prática de enunciação
constituía uma extensa parte da educação das crianças, que aprendiam com a
narração dos mitos os valores fundamentais de sua cultura. Concordando com esta
tradição, Platão nos indica que além do conteúdo, a forma de dizer também aponta
para um sentido, e precisa ser considerada como um elemento educador. Tendo em
vista esta outra dimensão de alcance da poesia, a proposta pedagógica tem
seguimento com a discussão a respeito dos estilos de narrativa. Sócrates pretende
precisar qual estilo de narrativa é mais adequado à formação proposta.
A discussão deriva, deste modo, do assunto do mito, do que é dito, para a
forma de expressão da poesia, o como é dito, a maneira da elocução das histórias.
126
Esta nova perspectiva de abordagem é denominada por Sócrates léxis, e é
incompreendida a princípio por Admanto. Diante da incompreensão, Sócrates inicia
sua explicação com o seguinte dizer sobre a poesia mitológica: tudo que os mitólogos e
os poetas contam não é um relato (diégesis) de fatos passados, presentes ou futuro?
(PLATÃO, 2000, 392d) Esta afirmação delimita o lógos mitológico a uma narrativa de
acontecimentos, relatos de eventos atuais, que já se passaram, ou que estão por vir.
Na sequência da explicação sobre a léxis, Sócrates expõe os possíveis modos
dos poetas relatarem as suas histórias: E não conseguem este desiderato ou por
simples exposição (haplê diegésis), ou por imitação (dià miméseos), ou por ambos os
modos ao mesmo tempo?(PLATÃO, 2000, 392d) Nesta pequena passagem,
encontramos a distinção inaugural do dizer poético em três formas: narração simples
ou exposição, imitação e misto. É neste contexto, que o tema da mímesis é posto em
questão. O filósofo continua a explanação explicando a particularidade de cada tipo, e
apresentando alguns exemplos retirados dos clássicos homéricos para ilustrá-los. Na
a ati aàsi plesà
ue àfalaà àoàpoeta,àoà ualà
oàp o u aàle a à ossaàate ç oàpara
outra parte nem se esforça por parecer que não é ele, mas outra pessoa que está com
aà pala a PLáTÃO,à
,à
a .à Oà fatoà à a adoà e à te ei aà pessoa,à oà a ado à
reproduz as falas sem se confundir com os personagens representados. O exemplo
socrático para este tipo de composição é a prática dos ditirambos. Já quando o
a ado à ep ese taà aà pe so age ,à seà esfo çaà pa aà dei a à suaà li guage ,à ta toà
ua toàposs el,àpa e idaà o àaàdaàpessoaàpo àeleà es oàa u iada à PLáTÃO,à
,à
393c), ele faz uso da narrativa por imitação. As tragédias e as comédias são incluídas
como exemplos de poesias de estilo imitativo. O terceiro gênero exposto se constitui
como uma mistura dos dois tipos anteriores, onde é intercalada a narração e a
imitação, os exemplos deste tipo são a epopéia e outras formas de poesias.
Sócrates passa, deste modo, de uma discussão sobre o conteúdo dos mitos
para uma formalização teórica sobre os gêneros literários, sobre a forma de exposição
da poesia. O foco passa a ser o poeta, o seu modo de expressão. A léxis, de acordo
com a passagem acima, pode ser definida como a maneira de o poeta falar, a elocução,
o seu modo de trazer à linguagem a narrativa. A importância estética desta discussão
específica sobre o estilo da poesia pode ser comprovada pelo lugar que assume na
história da teoria literária.
127
A importância estética destas passagens, contudo, não se restringe às
considerações sobre o estilo da narrativa. A entrada em cena da mimética também
concede à discussão uma maior atenção aos temas estéticos. É só neste segundo
momento que a mímesis adquire efetivamente o estatuto de questão, e passa a ser
problematizada.
A princípio, o tema da mimética surge como um dos estilos narrativos
mencionados. A narrativa, diégesis, que inicialmente foi associada por Sócrates à obra
do poeta de modo geral, passa, com a distinção dos estilos, a representar um das
formas de narração: a simples. Na narrativa simples não há ocultação, o poeta se faz
presente para contar a história. Ao narrar os fatos, ele se posiciona sempre distante
dos acontecimentos, deixa o espaço, entre o lugar de narrador e a história, explícito. Já
no estilo mimético, temos, por outro lado, a predominância da ocultação. O poeta,
enquanto narrador, se encobre para aparecer como os elementos da história, ele se
apresenta o mais parecido possível com o outro. O aparecimento da narrativa
mimética é, deste modo, permeado por ocultação, pelo encobrimento do poeta e da
distância em relação ao conteúdo narrado. Nestas primeiras considerações sobre a
mimética, Sócrates sinaliza principalmente a ocultação do caráter do narrador para o
seu aparecimento semelhante, próximo a outro.
A transposição socrática das falas miméticas da Ilíada para a narrativa simples
confere à história distanciamento; o narrador se interpõe diante das personagens, e o
ouvinte deixa de ser influenciado, atingido tão intimamente pela história. Ao separar o
caráter do personagem, o seu modo de ser, do modo do narrador, a história adquire
certa neutralidade; o que antes alcançava intimamente o ouvinte, o passa a ser
indiferente.
As considerações socráticas sobre os tipos de léxis nos mostram a importância
fo
ati aàat i u daàaoà o oàdize .àN oà às àoà ueà àditoà ueàt a s iteàu àse tido,à
os estilos literários também apontam e afirmam um significado específico, já dizem
algo. O modo de se enunciar as histórias, da maneira como é trabalhado por Sócrates,
é portador de um significado não explícito, mas suficientemente forte para agir na
formação da alma. A maneira de falar educa tanto quanto o que se diz, entretanto
mais imperceptivelmente, pois o modo de dizer aparece encoberto, velado para os
jovens ouvintes da narrativa atentos à história.
128
A imitação, como estilo, é apresentada por Sócrates com os seus riscos
inerentes: da mesma forma que pode auxiliar na formação de bons guardas, também
pode facilmente corromper a classe. Ela oferece riscos tanto aos que narram as
poesias imitativas, representando os personagens, quanto aos ouvintes, que as
escutam e as recebem. A recepção da poesia é pensada por Sócrates como uma
experiência ativa de formação, as crianças, ao interiorizarem e reproduzirem os
modelos expressos, passam a agir como eles. A audição das histórias incute
imperceptivelmente nos jovens as primeiras feições do seu caráter. É interessante
observarmos como, nesta experiência, em comparação à narrativa simples, as
narrativas miméticas afetam mais intensamente os ouvintes e, por isso, tem um poder
paidêutico maior. O pathos, o sentimento dos personagens é inteiramente transmitido
ao espectador, atingindo-o e afetando-o intimamente. Enquanto estilo de narrativa, a
imitação proporciona uma aproximação mais afetiva ao conteúdo da poesia. Parecenos possível afirmar que os jovens ouvintes, diante de uma narração imitativa, ficam
mais próximos da história, e mais suscetíveis a reproduzir os modelos apresentados.
Tendo visto o perigo que esta prática representa, Sócrates, por outro lado, não
escolhe aboli-la integralmente da cidade. O estilo essencialmente narrativo é descrito
como mais adequado à expressão dos homens marcados pelo princípio unidade, em
contraposição ao mimético, mas a escolha socrática é pelo estilo misto, que intercala
imitação e narração simples. Em meio à discussão do estilo, quando questionado sobre
como deve se expressar o indivíduo de valor, Sócrates sentencia:
[...] há uma modalidade de estilo narrativo em que poderá exprimir-se o
indivíduo de verdadeiro valor, sempre que tiver o que dizer, como há outra
que difere inteiramente dela e que se atém em sua exposição quem, por
dotes naturais e educação, for o oposto do primeiro. [...]
Sou de parecer, continuei, que quando o indivíduo equilibrado tem de
reproduzir no decurso de sua exposição algum dito ou gesto de homem de
bem, esforça-se por falar como se fosse essa mesma pessoa e não se
envergonha em imitá-la, principalmente quando a imitação disser respeito a
algum ato de firmeza e sabedoria que lhe seja atribuído; com menor
disposição e mais raramente o imitará quando o vir cambaleante por efeito
de doença ou do amor, ou mesmo por embriaguez ou qualquer outra
infelicidade. Quando tiver de haver-se com quem não for digno dele, não se
resolverá a imitar seriamente uma pessoa inferior, ou só o fará de
passagem, numa ou noutra ação meritória. Sim, terá de envergonhar-se, a
uma, por não ter o hábito de imitar gente dessa laia; a outra, porque lhe
repugna forçar a sua natureza em moldes inferiores; despreza do fundo da
alma semelhante procedimento, a não ser como brinquedo. (PLATÃO, 2000,
396b-e)
129
Parece-nos que em sua alternativa, o filósofo propõe ficar com o que há de
mais vantajoso nos dois estilos: a imitação só deve ser usada quando o que for imitado
estiver condizente com o caráter virtuoso do guardião; nos outros momentos, quando
precisar referir-se a personagens ou ações duvidosas, deve fazer uso da narrativa
simples, com o seu distanciamento característico. A escolha do estilo dependerá dos
modelos aparentes no discurso. Se forem bons, virtuosos, os guardiões deverão imitálos para reforçar a sua natureza, mas se, por outro lado, o estilo for mantido, e os
jovens imitarem ações viciosas, eles terão suas naturezas corrompidas, e dificilmente
conseguirão adquirir novos hábitos. Neste último caso a narrativa simples é apontada
como indispensável à boa formação.
Com a escolha do gênero misto, Sócrates faz uso da mimética para o que lhe
convém. Diante do seu poder e ambiguidade próprios, ele escolhe manter o seu uso, e
assim reafirmar a sua importância. Esta escolha, contudo, traz uma ressalva
importante. A imitação só deve ser usada em modelos bem direcionados ao fim
almejado, a saber, formar os guardiões na virtude. A ambiguidade da mimética, o seu
poder de formar tanto para o bem quanto para o mal, é deixada de fora da pólis
conjuntamente com os poetas imitadores.
O exemplo mimético paradigmático do poeta
A conhecida censura platônica ao poeta também é uma temática que está, na
República, relacionada à mimética. Platão o usa como um exemplo privilegiado de
imitador nos Livros III e X. Nas obras poéticas, de modo geral, seja na narrativa simples
ou na mimética, o poeta, por intermédio da imitação, faz aparecer uma pluralidade de
situações e coisas sobre as quais não tem um saber específico para criar, contrariando
completamente o princípio técnico da cidade. A sua produção não se embasa em um
saber próprio ao que está sendo construído; ela se desenvolve em outro nível, no nível
da linguagem.
Osàpoetasàs oàdefi idosàpo à“
algu aà oisaà po à
ates,àdeà odoàge al,à o oà pessoasà ueàe p eà
eioà daà pala a à PLáTÃO,à
,à
.à áà pala aà
a aà aà
especificidade da produção poética. O que o ele produz é a narrativa, uma composição
130
de palavras, que podem ser edificadas sobre uma variedade infinita de temas,
produzindo uma série de imagens sobre os mais variados assuntos. A poesia, neste
sentido, pode trazer qualquer coisa à vista, à presença, mas, as coisas apresentadas
não podem ser conhecidas por elas mesmas, são apenas visualizadas, na narrativa,
enquanto superfície de aparecimento, enquanto o que elas dão a ver. Da maneira
como o fazer do poeta é abordado pelo filósofo, neste contexto, é difícil circunscrever
a individualização da sua produção; a poesia, enquanto imitação, traz a marca
essencial da pluralidade.
Apesar desta contradição radical que a produção poética de modo geral guarda
com o princípio técnico, Sócrates não descarta a necessidade da poesia para educar os
cidadãos. Mas em relação ao modo de exibição do poeta, as críticas ao modo mimético
de apresentação da narrativa são incisivas. Na cidade poetada não tem lugar para o
poeta imitador tradicional, cuja riqueza do seu fazer estava associada à intensidade
que transportava os ouvintes para dentro de suas histórias. Em relação a este poeta,
Sócrates tece o seguinte comentário:
[...] se viesse a nossa cidade algum indivíduo dotado de habilidade de
assumir várias formas e de imitar várias coisas, e se propusesse a fazer uma
demonstração pessoal com seu poema, nós o reverenciaríamos como a um
ser sagrado admirável e divertido, mas lhe diríamos que em nossa cidade
não há ninguém como ele nem é conveniente haver; e depois de ungir-lhe a
cabeça com mirra e adorná-lo com fitas de lã, o poríamos no rumo de
qualquer outra cidade. Para nosso uso, teremos de recorrer a um poeta ou
contador de histórias mais austero e menos divertido, que corresponda aos
nossos desígnios, só imite o estilo moderado e se restrinja na sua exposição
a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por lei, quando nos
dispusermos a educar nossos soldados. (PLATÃO, 2000, 398b-c)
O poeta imitador, que impressiona os seus ouvintes com histórias divertidas e
dramáticas, impregnadas de eloquência narrativa, e com a representação da emoção
das personagens, precisa ser encaminhado para fora da pólis; a cidade não comporta
este tipo de produtor.
A mímesis será criticada por Sócrates, de início, por conta do seu caráter
múltiplo, que vai de encontro ao princípio uno constitutivo da pólis: cada homem é
marcado pela unidade e responsável por uma única só tarefa, a que sabe realizar
melhor. Na cidade poetada, a divisão do trabalho foi estabelecida baseada na téchne,
todo o indivíduo, assim como todo saber técnico, se destina a um tipo específico de
131
fazer. Os homens encontram a sua liberdade ao trabalharem em prol da unidade da
pólis e da sua própria alma. Para o bom funcionamento da cidade, eles precisam aderir
à especialização do trabalho, e exercer uma única função designada de acordo com as
suas aptidões naturais. Nas palavras de Sócrates:
[...] será preciso que cada um exerça uma única atividade, aquela para que
for naturalmente indicado; é só dessa maneira que o cidadão permanece
único, não múltiplo, com o que lucra a própria cidade, que não se multiplica,
porém, se mantém indivisa. (PLATÃO, 2000, 423d)
A imitação, por outro lado, pode produzir muitas coisas diferentes. Sua prática
não é uma produção específica, pautada pela unidade. A respeito desta
incompatibilidade, questiona Sócrates:
Não faz parte do que foi dito antes, que cada um só pode sair-se bem em
uma única profissão, não em muitas, e que se experimentar a força em
várias a um só tempo fracassará totalmente e não se distinguirá em
nenhuma?
[...]Dificilmente, portanto, conseguirá alguém exercer ao mesmo tempo,
com eficiência, funções importantes ou ser um bom imitador de muitas
coisas, pois nem mesmo as duas imitações que tão próximas parecem uma
da outra podem ser praticadas com êxito por uma só pessoa; é o exemplo
dos autores de comédia e de tragédias. (PLATÃO, 2000, 394e-395a)
A mimética, tanto em seu sentido de produção artística, quanto de tendência
da alma, representa um grave problema à pólis técnica. A imitação, ao contrário da
téchne, é uma prática que permite, e, de alguma maneira, incita a multiplicidade. O
seu processo de produção e as suas obras não trazem a marca da unidade e
especificidade necessária a pólis. A imitação guarda a possibilidade de trazer, de uma
maneira própria, qualquer coisa à manifestação. O imitador, ao copiar uma série de
coisas diferentes, mostra, apresenta, por intermédio de suas obras, as coisas imitadas.
Ele, diferente do técnico, não precisa ser possuidor do saber relativo ao que é imitado
para produzir, não é com base no saber sobre a coisa que a sua produção é realizada.
A produção mimética confronta diretamente a caracterização da natureza
hu a aàp opostaàpo à“
ates:à áà atu ezaàhu a a, Adimanto, se me afigura dividida
em pedacinhos ainda menores, de forma que é impossível a qualquer pessoa imitar
e à
uitasà oisasà ouà faze à asà p p iasà oisasà ueà aà i itaç oà ep oduz à PLáTÃO,à
2000, 395b). A imitação apresenta uma produção múltipla, impensável para a natureza
132
una dos cidadãos. Não é possível, na cidade, a imitação de coisas tão distintas pelo
mesmo homem, como é de práxis aos imitadores. Segundo Sócrates, cada homem
nasce com uma tendência maior para certo tipo de tarefa, tendência esta que precisa
ser reforçada pela formação. A formação, devido à capacidade mimética da alma, é
pensada essencialmente como imitação. Contudo, a imitação, enquanto processo de
formação, precisa estar diretamente vinculada ao fazer próprio do indivíduo. Ela que
aperfeiçoará a alma para fazer aquilo que lhe foi, por natureza, determinado. Qualquer
prática que incite o indivíduo a produzir uma pluralidade de coisas, diferentes da qual
foi destinada naturalmente a fazer, agirá contra este movimento de formação e contra
a ordenação da pólis como um todo. A multiplicidade não se ajusta ao projeto de
organização proposto, a cidade é o lugar da unidade e o âmbito da mímesis o da
multiplicidade.
O poeta que tem o seu lugar garantido na cidade, por outro lado, é cercado de
normas e determinações do filósofo. Em troca da sua presença na cidade, ele perde a
sua liberdade criativa, torna-se obediente; ele precisa construir as narrativas com o
mínimo de imitação possível, sem a intenção de iludir, baseando-as nos modelos
indicados pelo filósofo; o humor das histórias é eliminado, a seriedade ganha um peso
importante. O lugar paidêutico da poesia continua, deste modo, garantido na pólis.
Mas, o lugar do poeta como o maior educador grego é, de alguma forma, abalado. Se a
música e a poesia continuam sendo o fundamento da formação inicial dos jovens
gregos, é como base em uma série de direcionamentos e normas impostas pelo
filósofo.
Esta recusa do poeta grego tradicional, contudo, está textualmente pautada em
uma manutenção e reafirmação do lugar privilegiado concedido à poesia na formação
inicial da alma humana. Na renuncia dos mitos e do estilo de narrativa tradicional
encontramos, conjuntamente, a afirmação platônica da importância da narrativa e da
imitação neste momento paidêutico preciso. O filosofo se volta para os poetas, porque
as suas palavras são portadoras de um grande poder educacional; presente não só no
que dizem, mas, também, no seu modo de dizer. E, neste sentido, a multiplicidade,
instaurada pela fala poética imitativa, apresenta uma grave ameaça ao principio uno
dos cidadãos. Enquanto o poeta tem a sua produção artística pautada pela
multiplicidade, o filósofo está construindo a sua imagem de cidade regulada pela
133
unidade e simplicidade, princípios que, no movimento de construção, são postos como
o fundamento do que está sendo criado. Neste sentido, o poeta, capaz de iludir e
enganar, é totalmente dispensável à cidade, que preza e valoriza a sua composição
baseada em contornos simples e bem demarcados.
Referências bibliográficas
PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes, 3 ed., Belém: EDUFPA, 2000.
134
O BANQUETE MUSICAL NO PERSA DE PLAUTO E A
“CELEBRAÇÃO DA ESPERTEZA”
Beethoven Barreto Alvarez
Introdução
O presente estudo1 pretende tratar de uma possível relação entre música e
produção de efeitos de sentido no drama cômico romano, em especial na comédia
Persa (Persa), uma peça pertencente ao maior corpus de comédias legadas de Roma
antiga, a obra de Tito Mácio Plauto (255?-184 a.C.). Nesta fase inicial, como se verá,
nossa abordagem parte, sobretudo, da perspectiva dos trabalhos de T. J. Moore2,
professor da Universidade do Texas, que se tem dedicado à musicalidade na comédia
romana. O aparato métrico e o texto latino estabelecido da comédia Persa utilizados
aqui são de C. Questa, do livro Titi Macci Plauti Cantica (1995). Todas as traduções de
citações de línguas estrangeiras modernas e do texto latino são nossas, e, a princípio,
pretendem se manter bem próximas aos originais.
Comédia e Música
A música na comédia latina de Plauto é um elemento tão importante quanto à
própria performance3 – ambas perdidas e praticamente irreconstruíveis. Lembrando
Cha lesà ‘ose :à Todaà performance hoje é uma tradução; uma reconstrução do som
original é a tradução mais equivocada porque pretende ser o original, ao passo que o
sig ifi adoà dosà so sà a tigosà udouà i e oga el e te à apud MARTINDALE, 1993, p.
1
Este estudo, apresentado na forma de comunicação oral, é parte de nosso trabalho de doutorado (em
andamento no IEL/Unicamp, sob orientação da Prof.ª Isabella Tardin Cardoso).
2
Principalmente, seu capítulo Music in Persa em Faller (ed.), “tudie à zuà Plautus à Pe saà (2001), e seus
artigos Music and Structure in Roman Comedy (1998) e Whe àDidàtheà Ti i e àPla ?àMeter and Musical
Accompaniment in Roman Comedy (2008). Ver Referências Bibliográficas.
3
Utilizaremos a palavra performance como sinônimo de atuação ou encenação de uma peça de teatro
por personagens, em um palco. Vale notar que o dicionário Houaiss já apresenta o significado atuação
para o verbete performance, embora não o tenha aportuguesado.
135
9)4. O que nos resta é apenas investigar para compreender como essa performance e
esse som original podem ter produzido efeitos no tempo de Plauto.
Por um lado, sabemos que a comédia romana era muito musical 5 – o que, na
verdade, configurava-se como uma grande inovação em relação à tradição musical da
Comédia Nova Grega, vejamos, por exemplo, Barsby:
Uma das grandes inovações dos comediógrafos romanos foi transformar o
drama predominantemente falado da Comédia Nova Grega em uma
performance substancialmente musical, como fica claro para nós (na
ausência de qualquer evidência musical) a partir dos metros empregados.
(1991, p. 13)
Autores e gramáticos antigos testemunharam também o caráter musical da
comédia romana do período da República, em especial, atestando uma dicotomia
entre partes puramente dialogadas (diverbia ou deverbia) e momentos cantados
(cantica) possivelmente com acompanhamento musical6. Segundo Moore:
Lívio, Petrônio e os gramáticos da antiguidade tardia parecem assumir essa
divisão dupla em cantica e deverbia. Deverbia, passagens relevantes
sugerem, eram as partes desacompanhadas do drama, escritas em senários
[iâmbicos]; e cantica eram as partes acompanhadas, escritas em outros
metros. (2008, p. 20)
Por outro lado, citando Duckworth:
O leitor moderno da comédia romana é prejudicado por seu
desconhecimento da natureza musical das peças. Certas cenas eram faladas,
outras eram recitadas com acompanhamento da flauta, e outras ainda (em
Plauto) eram cantadas, mas nós não temos o conhecimento das melodias
que acompanhavam os textos dos atores. (1952, p. 362)
Ou seja, quanto à musicalidade da comédia romana, algumas dúvidas
permanecem até hoje: (a) na comédia romana, em que momento da encenação a
música acompanharia o texto? (b) qual seria a relação entre metro e música na
4
Essa citação sobre a atualização do texto antigo foi-nos apresentada na conferência proferida pelo
Prof. Paulo Sérgio de Vasconcellos na abertura do II Encontro de Professores de Latim, realizado no
IEL/Unicamp, em 17 de maio deste ano.
5
Sobre a musicalidade na comédia romana, além de Moore (1998), ver Fraenkel (1960, p. 381, n. 107),
Duckworth (1952, p. 142, 176, 375-6), Beare (1964, p. 318), Lejay (1925, p. 37) e Law (1922) et alii.
6
Aprofundando a discussão, além de Moore (2008), ver Lindsay (1922, p. 260-265), Fraenkel (1960, p.
219-251), Duckworth (1952, p. 361-383), Beare (1964, p. 320-334), Questa (1967, p. 263-269), Boldrini
(1992, p. 89-91).
136
comédia romana? E mais uma pergunta que podemos adicionar é: (c) quais seriam os
possíveis efeitos da alternância entre passagens musicais e outras puramente faladas?
Aqui, a partir de algumas funções que Moore7 atribui para a alternância da
música e levando em conta também nossa análise do texto cômico, trataremos da
peça Persa, de Plauto. Nossa apreciação destacará, então, certos aspectos musicais da
parte final da peça: o banquete musical da enganação.
Entretanto, antes disso, precisamos rever como se infere a música a partir do
texto plautino transmitido.
Manuscritos e Música
Os manuscritos plautinos transmitidos à modernidade dividem-se, como se
sabe, em duas famílias, a do palimpesto ambrosiano, datado do séc. V, e a da tradição
palatina, cujo mais antigo exemplar é datado do séc. X ou XI8. Embora tenham sido
alvo de interpolações ao longo do tempo e apresentem elementos discordantes e
incertos, lacunas e incorreções, tais textos apresentam-se a nós como fonte
importantíssima para o entendimento do que poderia ter sido essa relação entre
metro e música, e entre música e performance no teatro cômico romano da época de
meados da República. Contudo, a real compreensão de como a música estava
associada à encenação parece ter sido perdida ainda na Antiguidade.
Ora, sabemos que o palimpsesto ambrosiano, manuscrito mais antigo
remanescente contendo texto plautino não é datado da Antiguidade, e sim do séc. V.
Questa (1984, p. 164-165, 176-179 apud MOORE, 1998, p. 245), por exemplo, especula
que, nos manuscritos dos atores da época de Plauto, não haveria notação musical ou
rubricas indicando quando os músicos tocavam. As marcas nos manuscritos que
indicariam trechos acompanhados com música ou sem acompanhamento teriam
surgido apenas no séc. II d.C. Questa e Moore supõem que mesmo editores e copistas
do Império9 não devem ter entendido completamente qual teria sido a relação entre
7
Moore (1998, p. 245-262) conceitua três funções para a alternância entre passagens musicais e apenas
dialogadas na comédia romana: a criação de unidades, de paralelismos e de enquadramentos.
8
Detalhadamente, ver Tarrant (1984, p. 303-307).
9
Sobre os escritores e copistas dos manuscritos plautinos do Império Romano, novamente ver Tarrant
(1984, p. 303-307).
137
música e texto, uma vez que estavam afastados um ou dois séculos das performances
originais, estas, portanto, já muito distantes do teatro cômico do início do Império.
Mesmo assim, no corpus dos textos legados, resistiram ao tempo preciosas
notações manuscritas que nos ajudam a pensar sobre a dimensão musical da
encenação (DV e C) – notações essas que seriam explicadas com mais clareza apenas
na segunda metade do séc. XIX por Friedrich W. Ritschl10, segundo lembra Moore:
As iniciais se escrevem para diverbium e canticum; e sua associação,
respectivamente, com cenas em senários iâmbicos e cenas em outros
metros implica que, na comédia romana, passagens em senários iâmbicos
não eram acompanhadas, ao passo que passagens em todos os outros
metros eram cantica, acompanhadas pelas tibiae. (1998, p. 245)
Porém, Moore (1998, p. 248) indica que as implicações dessa distinção para a
estrutura da comédia romana permaneceram, entretanto, sem apreciação por muito
tempo.
Vale lembrar que o próprio Ritschl asseverava que a composição musical se
o figu a aà o o:à te aà [...],à ueà o fessoà se à
a
guoàdeà uitasàfo
as à
,àp.à
oà s à difi li o,à
asà ta
à
.
Há uma grande discussão a respeito desta dicotomia11, contudo aqui vamos
partir apenas de uma distinção básica entre: (1) versos em senários iâmbicos – não
acompanhados por instrumentos musicais; (2) versos em todos os outros metros –
acompanhados por instrumentos musicais.
Ainda dentro deste cenário, duas generalizações devem ser evitadas, segundo
Moore (1998, p. 249): em primeiro lugar, não se deve tentar perceber regras universais
de estruturação musical das comédias; em segundo, deve-se evitar assumir que a
estrutura foi o elemento mais importante para determinar quais cenas seriam
a o pa hadasà ouà
o.à E t eta to,à postulaà duasà eg asà est utu aisà i
two unbreakable structural rules :à aà p i ei aà à aà alte
ue
eis à
iaà deà passage sà
acompanhadas e não acompanhadas de música; e, a segunda: a maioria das peças
começa sem acompanhamento musical – das 21 que nos chegaram, apenas quatro não
10
Friedrich W. Ritschl (1816-1876), professor alemão, editor e autor de diversos estudos de Plauto,
como: Canticum und Diverbium bei Plautus em Opuscula Philologica, v. III. Leipzig: Teubner, 1877, p. 154.
11
Moore (2008) trata amplamente da questão, desde os antigos gramáticos até estudiosos modernos.
138
obedecem a este modelo (Cistellaria, Epidicus, Persa e Stichus). Nesse sentido, Persa, a
comédia objeto de nosso estudo, é uma das quatro exceções. Passemos, pois, a ela.
Persa e Música
O escravo Tóxilo (Toxilus) abre a comédia com uma monodia de entrada12 (1-6),
substituindo o prólogo13 e apresentando o tema do enredo e do engano ao mesmo
tempo: a guerra do amor e a falta de dinheiro.
Em Persa, em nenhum momento, atores representam senhores (senes)
respeitáveis (muito menos generais e deuses, como ocorre em Anfitrião 14), ou ainda
jovens livres apaixonados (adulescentes). Os personagens são dois serui callidi,
escravos espertos, Tóxilo e Sagaristião (Sagaristio), e um parasita, Saturião (Saturio),
ueà pa ti ipa à deà todoà oà e ga o.à ál
à disso,à h à u aà es a aà eà u à es a i ho ,à
Sofoclidisca (Sofoclidisca) e Pégnio (Paegnium), que servem respectivamente a uma
cortesã, Lemniselene (Lemniselenis), e a Tóxilo. Há ainda um cafetão, Dórdalo
(Dordalus), e uma jovem (Virgo), filha do parasita. Paradoxalmente, mesmo sendo uma
personagem mulher, sem nome e, a princípio, joguete nas mãos dos escravos espertos,
esta jovem demonstrará ser o contraponto ético e cômico do enredo e se encherá de
virtude, para ser alvo da brutalidade cômica dos demais personagens15.
Além disso, em diversas passagens percebe-se uma vocação tipicamente
farsesca16 desta obra plautina, especialmente nas cenas de Sofoclidisca e Pégnio (183250 e 272-301).
12
Uma monodia seria um monólogo cantado, segundo Duckworth (1952, p. 104-105). Duckworth ainda
amplia o conceito de monólogo, dividindo-o, além da monodia, em: solilóquio – monólogo em que o
personagem fala alto e sozinho sob forte emoção; e o monólogo propriamente – quando haveria a
quebra da ilusão dramática e quando são francamente direcionados ao público, com excessiva narrativa,
servindo para esclarecer a audiência sobre a trama. Quanto a esta monodia de Tóxilo, em especial, ver
Fraenkel (1960, p. 124, 162-164) e Duckworth (1952, p. 323, 382-383).
13
A análise mais abrangente (ainda que datada) dos prólogos plautinos é de Lionel Abel, em Die
Plautusprologue (Frankfurt, 1955). Sobre a composição e efeitos do prólogo plautino quanto a clareza e
suspense na obra, cf. Duckworth (1952, p. 211-218). De um modo geral, o prólogo seria utilizado por
Plauto (e outros comediógrafos) para atrair a atenção e boa vontade do público, e expor informações
importantes da trama. Embora simplificada, ver a Introdução de Aires do Couto, do livro Comédias de
Plauto, editado pela Imprensa Nacional-Casaà daà Moedaà Lis oa,à
:à Plautoà o itiu-o em apenas
cinco comédias – Go gulho,àEp di o,àáàCo diaàdoàFa tas a,àOàPe saàeàEsti o à p.à .
14
A questão dos personagens-tipo no Anfitrião, por exemplo, é discutida em Costa (2010, p. 21-25).
15
Quanto à discussão sobre esta personagem, ver Lowe (1989).
16
Sobre o caráter de farsa da comédia romana, ver Hunter (1989, p. 18-23).
139
O enredo é simples de resumir: Tóxilo, depois de entrar em cena lamentando
sua sorte (1-6) e encontrar Sagaristião (16), explica que está apaixonado (24-25), que
sua amada (amica) é uma escrava (no caso, Lemniselene) de um cafetão (33-35) e que
precisa de 600 sestércios para libertá-la (36). Tóxilo pede um empréstimo a Sagaristião
(36-
,à asàseuàa igoàta
à est à ue ado .àE t oàT iloà olaàu àpla oà
. Ele
pede ao parasita, Saturião, que se disfarce de um mercador persa e faça sua filha
representar sua prisioneira achada no exterior, na intenção de vendê-la a Dórdalo,
pelos mesmos 600 sestércios (127-164). Sagaristião, no meio tempo, aparece com o
dinheiro para libertar a amada de Tóxilo, pegando a quantia que seu senhor lhe tinha
dado para comprar alguns bois (250-255). Depois que o cafetão compra a suposta
escrava estrangeira (683), seu pai, Saturião, aparece e toma de volta sua filha,
ameaçando levar Dórdalo aos tribunais por tentar escravizar uma jovem nascida livre
(694-752). Assim, Dórdalo fica sem Lemniselene, sem a nova escrava do exterior e sem
os 600 sestércios. No fim (753-858), Tóxilo e companhia preparam um grande
banquete para comemorar.
É importante ressaltar ainda o grande número de passagens musicais em Persa:
59% da peça são compostos que seriam acompanhados de música (ou seja, por outros
metros que não senários iâmbicos), o que leva por exemplo, Sedgwick a elencar Persa,
junto com Casina e Pseudolus, como as peças contendo as maiores porcentagens de
música da comédia plautina17 (1925, p. 58 apud DUCKWORTH, 1952, p. 380).
Além de começar com acompanhamento musical (algo pouco comum na
comédia romana, só ocorrendo em outras três peças plautinas que nos restaram:
Cistellaria, Epidicus e Stichus), Persa também termina com música (o que só acontece
em mais duas: Pseudolus e Stichus)18.
Vejamos então a cena final.
Música e o Banquete Final
17
Segdwick, nessa hora, relaciona esta característica a uma proposta cronologia das peças, sugerindo
u àau e toàg adualàdeà t i a àasso iadoàaoàau e toàdoà ú e oàdeàpassage sà usi aisà – o que, a
nosso ver, é altamente controverso. Na lógica de Segdwick, Persa seria uma das últimas comédias
escritas por Plauto.
18
Sobre música associada à estrutura das comédias romanas, ver Moore (1998) e Law (1922, p. 1-5).
140
O banquete final merece especial atenção no que diz respeito à presença da
música, que se pode inferir a partir da variação métrica, do ritmo dos versos e de
referências textuais, como, por exemplo, à dança em cena. De tal presença musical,
poderemos inferir também alguns efeitos.
A cena começa com a entrada de Tóxilo19:
8
an
8
an
8
an
7
an
8
an
TOX. hostibus uictis, ciuibus saluis, re placida, pacibus perfectis,
bello exstincto, re bene gesta, integro exercitu et praesidiis,
quom bene nos, Iuppiter, iuuisti, dique alii omnes caelipotentes,
eas uobis habeo gratis atque ago, quia probe sum ultus meum inimicum.
nunc ob eam rem inter participes diuidam praedam et participabo.
753
754
755
756
757
TÓX. Vencidos os inimigos, salvos os cidadãos, tranquilizada a situação, concluída a paz,
extinta a guerra, bem alcançada a vitória, ileso o exército e as guardas,
ó Júpiter e todos os outros deuses poderosos do céu, como bem nos tendes ajudado,
faço e direciono a vós esses agradecimentos, porque me vinguei direitinho do meu inimigo.
Agora, por causa disso, entre meus companheiros vou dividir e repartir o prêmio.
A entrada de Tóxilo em sua última monodia (753-757), em versos
acompanhados por música (septenários e octonários anapésticos)20 sugere, segundo
Moore (2001, p. 266-267), que este início musical tenha sido usado por Plauto para
criar um paralelo estrutural com o início da peça (1-6), quando Tóxilo também faz uma
monodia de entrada, em versos iâmbicos – também longos e com o mesmo ritmo
as e de te à dosà a ap sticos21 –, acompanhados por música. Contudo, desta vez, o
monólogo chamaria a atenção do público para a mudança de circunstâncias.
7
4ʌ
ia tr
7
ia
8
ia
8
ia
8
ia
8
ia
TOX. qui amans egens ingressus est princeps in amoris uias,
superauit aerumnis suis aerumnas Herculei.
nam cum leone, cum excetra, cum ceruo, cum apro Aetolico,
cum auibus Stymphalicis, cum Antaeo deluctari mauelim
quam cum Amore: ita fio miser quaerendo argento mutuo,
e à ui ua à isià o àest às iu tà ihià espo dere quos rogo.
1
2
3
4
5
6
TÓX. Aquele amante que ingressou pobre primeiro nos caminhos do amor
superou, com seus trabalhos, os trabalhos de Hércules.
Pois com o leão, com a serpente, com o cervo, com o javali etólico,
com as aves do Estinfalo, com Anteu, eu preferia lutar
19
A seguir, passamos a notar o esquema métrico dos versos citados. Seguiremos o modelo de
8
abreviações de metros adotado por Questa (1995, p. 53), em que, por exemplo, an indica anapésticos
6
octonários; ia , iâmbicos senários; etc.
20
A despeito da discussão sobre o modo como estes versos seriam proferidos pelo ator – se recitados
ou cantados. Sobre esta discussão, ver Moore (1998, p. 247) e ainda muito especialmente Moore
(2008). Diversos autores, como Fraenkel e Duckworth (passim), por exemplo, tomam como certo que
versos longos tenham sido recitados e que versos líricos tenham sido cantados.
21
Versos ascendentes seriam aqueles em que o tempo breve precede o tempo longo, que é o caso dos
anapestos (à–à àe dos iambos (à–à ,àcf., entre outros, Boldrini (1991, p. 87).
141
a (lutar) com o amor: assim permaneço miserável, pedindo dinheiro emprestado,
adaàse oà oàh àsa e -me responder aqueles a quem peço.
Assim como, no início, na abertura da comédia, o acompanhamento musical
apresenta um Tóxilo derrotado, ita fio miser (5), no fim, ao contrário, a música traz um
Tóxilo vencedor, hostibus uictis (753). Desta forma, não só o tema da fala de Tóxilo,
mas também o formato musical poderiam criar uma conexão entre as duas situações
distintas. Além disso, ao público esta nova monodia poderia sugerir então o final da
peça22 – uma vez também que, em nenhum outro momento, Tóxilo realiza um
monólogo de abertura sem ser em versos não acompanhados (senários iâmbicos).
Podemos pensar que tal prática fosse semelhante ao recurso de caracterização de
determinados momentos do enredo por meio de uma certa trilha musical – o que hoje
reconhecemos tanto no teatro moderno quanto no cinema23.
O ritmo anapéstico do início do banquete seria um elemento muito plautino e
muito típico de seus cantica, com o que Lindsay (1922, p. 292) chega a fazer uma
brincadeira: Quintiliano (35-95 d.C.) considerou os escritos de Terêncio, compostos
aisà deà doisà s ulosà a tes,à osà
esti esse à e à t
aisà elega tes,à eà
aisà ai daà te ia à g açaà seà
et os à si intra versus trimetros stetissent)24. Comparando com
Plauto,àLi dsa àe t oàdizà ueàTe
ioàte iaàsidoà elho :à si citra anapesticos stetisset à
(se estivesse antes dos anapésticos).
Ademais, na cena final de Persa, o primeiro verso (753) mantém, de forma
única e particular, nos quatro metros a mesma sucessão de um dátilo e um
espondeu:–– – –– – –– – –– – (an8), marcando um ritmo constante, que,
por sua singularidade, deveria gerar um efeito característico aos ouvidos do público,
provavelmente gerando o riso. Fraenkel (1960, p. 162-163) confere à passagem um
ritmo de imprecação religiosa, associando o conteúdo da fala a outros textos
22
De tal maneira, só em Asinaria, Casina, Miles Gloriosus, Pseudolus e Trinummus, de Plauto, e Heauton
Timorumenos, de Terêncio, que há uma primeira entrada com música e uma outra última entrada
também com música, de forma paralela, realizada por um mesmo personagem.
23
Talvez, pudéssemos ainda pensar em uma possível Ringkomposition musical.
24
In comoedia maxime claudicamus. Licet Varro Musas, Aeli Stilonis sententia, Plautino dicat sermone
locuturas fuisse si Latine loqui vellent, licet Caecilium veteres laudibus ferant, licet Terenti scripta ad
Scipionem Africanum referantur (quae tamen sunt in hoc genere elegantissima, et plus adhuc habitura
gratiae si intra versus trimetros stetissent) .à Inst. Orat. 10, 99)
142
gratulatórios 25 proferidos por generais romanos em triunfos; assim, um escravo
realizando uma oração de agradecimento solene, num ritmo marcante, por ter
o seguidoàsu essoà aàsuaà gue a àdoàa o àpode iaàte àsidoà id ulo26.
Logo após sua entrada, Tóxilo convida seus companheiros para comemorar a
vitória sobre o cafetão. Para isso, pede que os amigos organizem um grande banquete,
em que promete deixá-losà
o te tes,à
i alh esà eà aleg es à hilaros, ludentis,
laetificantis, 760):
4
cr
4ʌ
an
4
cr
4ʌ
an ?
8
an
8
an
8
an
ite foras: hic uolo ante ostium et ianuam
758
meos participes bene accipere.
758ª
statuite hic lectulos, ponite hic quae adsolent:
759
hi àstatuiàuoloà†àp i u àa uilaà ihià†
759ª
unde ego omnis hilaros, ludentis, laetificantis faciam ut fiant,
760
quorum opera mi facilia factu facta haec sunt quae uolui ecfieri.
761
nam inprobus est homo qui beneficium scit accipere et reddere nescit. 762
Venham para fora: eu quero aqui, na frente da entrada e da porta,
receber bem os meus companheiros.
Ajeitem os leitos [do jantar] aqui, ponham aqui aquelas coisas de costume.
27
Quero que ajeite aqui primeiro uma águia para mim,
de onde eu vou fazer que fiquem todos contentes, brincalhões e alegres,
os serviços deles tornaram estas coisas que quis fazer mais fáceis de fazer para mim.
Pois desonesto é o homem que sabe aceitar o benefício mas não sabe recompensar.
Agora, finda a imprecação, muda-se o ritmo: com dois versos em créticos,– ,
Tóxilo dá as ordens. Note-se que nos dois casos, no primeiro pé, o ritmo é acelerado
pela substituição de duas breves por um longa, –(759), e até duas breves por uma
breve,– – (758). Lindsay chega a dizer que os créticos em Plauto poderiam indicar
agitaç oàdaà e te à
,àp.à
,àe,àe
o aàessaàasso iaç oàdeàu aà e taàe oç oàaà
um determinado metro mereça sérias ressalvas, se podemos acreditar nessa
associação28, aqui vemos que poderia caber muito bem a imagem de um Tóxilo
ansioso por começar o banquete.
Ainda, neste trecho, corrobora a interpretação o fato de que ocorre o adjetivo
ludens. Portanto, logo no início do banquete, ouve-se uma palavra que evoca o sentido
25
Acerca do tema, estamos realizando estudos paralelos para a verificação de alusões cômicas a outros
te tosàeàta
àso eàposs eisà e os à t i osài te os.
26
Aqui caberia muito bem a imagem da Glorifizierung (glorificação cômica do personagem), ver Cardoso
(2005, p. 173, n. 521).
27
Muito se discute sobre esta passagem. Aqui traduzimos literalmente por enquanto. Optamos
também, por ora, por não anotar a tradução de forma detalhada, como será feito em posterior trabalho.
28
Lindsay não aponta que bases o levam a especular essa associação. Moore (2001, p. 257) sugere não
realizar este tipo de associação.
143
deà
i adei a à ludus), que ligado ao significado de ludĕ e (brincar) pode também se
este de àaà festeja ,à idi ula iza ,à e ga a
29
.
Prosseguindo a ação, Lemniselene, então liberta, aparece, abraça Tóxilo,
a a doàoàt iu foàdoà a a teà ueàpo e i g essouà osà a i hosàdoàá o à
ago aà supe ouàosàt a alhosàdeàH
8
an
8
an
8
an
4
an
ules à
,àeà o idaàaoài
ioàdoà a
àeà ueà
uete:
LE. Toxile mi, cur ego sine te sum, cur tu autem sine me es? TOX. agedum ergo,
accede ad me atque amplectere sis. LE. ego uero. TOX. oh, nil hoc magis dulcest.
sed, amabo, oculus meus, quin lectis nos actutum commendamus?
LE. omnia quae tu uis, ea cupio.
763
764
765
766
LEM. Meu Tóxilo, por que estou sem você, mas por que você está sem mim? TÓX. Então vem,
chega perto de mim e me abraça. LEM. Eu, claro. TÓX. Oh, nada é mais doce que isso.
Mas, por favor, meu bem, por que não nos deitamos nos leitos imediatamente?
LEM. Tudo que você quer, eu desejo.
Nesta fala de Tóxilo, o ritmo dos anapésticos continua e é interessante
perceber não só a referência ao cenário (leitos recém-postos, 765), mas também o
ritmo do verso 765: depois de dois anapestos iniciais, se sucedem seis espondeus, –
– – – – – – – – – – – – –. Tal sequência impõe um ritmo mais constante (por se tratar
de metros iguais, com tempos idênticos) para o trivial convite à mesa do banquete – o
que poderia ainda soar como uma paródia a um tom mais solene.
Tóxilo depois convida Sagaristião a tomar seu lugar, continua gerenciando os
preparativos para o a
4
an
4
an
4
an
4
an
4
an
4
an
2
an
r
c
7
an
ueteàeàelegeàLe
isele eàaà ditado a à dictatrix)30 de todos:
TOX. mutua fiunt a me. age, age ergo,
tu Sagaristio, accumbe in summo.
SAG. ego nil moror: cedo parem quem pepigi.
TOX.àte pe i.à“áG.à ihiàistu à te pe i àse ost.àà
TOX. hoc age, accumbe. hunc diem suauem
meum natalem agitemus amoenum:
date aquam manibus,
apponite mensam.
do hanc tibi florentem florenti. tu hic eris dictatrix nobis.
766ª
767
767ª
768
768a
769
769ª
b
769
770
TÓX. O mesmo acontece comigo. Vamos, vamos então,
você, Sagaristião, deita no leito de cima.
SAG. Eu não me importo: passa para cá meu companheiro como combinei.
TΧX.àE à oaàho a.à“áG.àPa aà i àestaà oaàho a à àta de.
TÓX. Vai lá, deita. Vamos passar este agradável dia
do meu aniversário alegremente.
Lavem as mãos,
29
Significado de ludĕ e cf. OLD. Ver Cardoso (2010), sobre ilusão e engano em Plauto.
Seria uma brincadeira com a figura do magister bibendi. Para uma abordagem bem significativa da
organização dos banquetes plautinos, ver as notas da tradução de Bettini (1981, p. 265-266).
30
144
coloquem a mesa.
Dou esta flor para você, uma flor. Você será aqui nossa ditadora.
Depois da ordem de Tóxilo, já em anapésticos mais curtos, as falas começam a
criar um ritmo intercalado: Tóxilo fala para Sagaristião sentar-se (com um tetrâmetro
anapéstico composto de dois dátilos e dois espondeus). Sagaristião responde no
mesmo tetrâmetro metro (anapéstico), mas agora muito rápido (pois, desta vez, o
tetrâmetro é em anapestos e um proceulesmático). Tal rapidez rítmica refletiria,
possivelmente, o estado de agitação do grupo neste momento inicial.
Note-se que antes de voltar para anapésticos septenários (770), falas menores
e de ritmo variado (um colon reizianum e um dímetro anapéstico) ainda dão mais
direções para a preparação do banquete (769ª-769b).
Lemniselene prepara o ambiente para Tóxilo fazer um brinde e ordena que
Pégnio inicie as festividades, hos ludos (771), bebendo o vinho de suas taças:
7
an
2
an
LE. age, puere, ab summo septenis cyathis commite hos ludos:
moue manus, propera.
772
771
LEM. Vai, escravo, do seu lugar, pelas sete taças começa estes jogos.
Mexe essa mão, ande logo.
Então a festa (ludus) começa. Vejamos que, quando Lemniselene pede que
Pégnio se apresse, o ritmo da sua fala é muito rápido e ascendente (em um dímetro
anapéstico com um proceleusmático e um anapesto,–, (772), caracterizando
bem sua pressa.
E e a doàu à dueto à ueàa eàoà a
uete,àT iloàeàLe
isele eà i da àoà
amor e o sucesso do dia:
4
an
4
an
2
an
r
c
7
an
4
an
4
an
r
c
4
an
r
c
TOX. Paegnium, tarde cyathos mi das;
cedo sane. bene mi, bene uobis,
bene meae amicae,
b
optatus hic mi
773
dies datus hodiest ab dis, quia te licet liberam me amplecti.
LE. tua factum opera. TOX. bene omnibus nobis!
hoc mea manus tuae poculum donat,
ut amantem amanti
decet. LE. cedo. TOX. accipe. LE. bene ei qui inuidet mi
et ei qui hoc gaudet.
TÓX. Pégnio, você me dá muito devagar as taças;
me dá logo. Para o meu bem, para o bem de vocês,
para o bem da minha amiga,
145
772ª
773
773ª
774
775
775ª
776
776ª
b
776
foi desejado por mim
este dia de hoje, dado pelos deuses, porque você, livre, pode me abraçar.
LEM. Seu trabalho é fato. TÓX. Para o bem de todos nós.
Minha mão dá este copo à sua,
como convém o amante, à amada.
LEM. Dá aqui. TÓX. Tome. TÓX. Para o bem daquele que me inveja
e para aquele que se alegra com isso.
O brinde de Tóxilo em anapésticos curtos (772a-776b) finaliza em um ritmo que
sugere uma fala rápida e crescente (até o único longo septenário anapéstico (774) que
se encontra neste trecho se realiza com mais sílabas breves). Especulativamente,
poderíamos inferir um grande movimento de Tóxilo erguendo a taça enquanto fala,
até encerrar, numa sucessão de espondeus, mais candenciados, em que há um hiato
no fim do verso, me amplecti (774), que mimetizaria no ritmo da sua fala um possível
abraço amoroso em Lemniselene,––– – – –| – – –.
Neste trecho até aqui (753-774), além dos longos versos (anapésticos
septenários e octonários), encontramos passagens em vesos curtos (créticos,
anapésticos curtos (dímetros e tetrâmetros) e cola reiziana). Para Moore (2001, p. 267),
esta utilização de metros líricos na passagem final sugeriria uma música mais
elaborada. Donde seu papel ainda mais importante neste final do Persa31.
Para Moore (2001, p. 256), o efeito central da musicalidade na peça, contudo,
se iaà oà deà efo ça à asà e oç es,à po à e e plo,à aà o e oà e t eà úsi aà eà e oç oà à
mais evidente quando se considera a alternada presença e ausência de
a o pa ha e toà usi al .à
Analisando passagens anteriores à cena final (753-858), lembramos que, bem
antes de começar o banquete, a cena no engano de Dórdalo (470-672) foi realizada em
metros acompanhados. Porém, o desfecho dessa passagem, em um trecho não
acompanhado (673-752), em senários. Portanto, concordamos com Moore com a ideia
de que a música, iniciando novamente com o início do banquete (753) e continuando
agora até o fim da peça (858), poderia, pela alternância de trechos musicais e não
musicais, reforçar o tom emocional de comemoração e alegria do final da peça.
Não só no trecho inicial do banquete musical, mas até o final (753-858), além
de grandes passagens em anapésticos e trocaicos longos (septenários e octonários),
31
Semelhantemente apenas ao final de Estico, em toda comédia romana. Para uma análise desta peça,
cf. Cardoso (2006).
146
verificam-se vários trechos em versos tipicamente líricos, de variadas possibilidades
rítmicas (cola reiziana e ainda em créticos e báquicos)32.
Por um lado, Moore (2001, p. 257) explica que tentar associar um determinado
tipo de metro a um comportamento ou a uma emoção específica pode não ser uma
ideia bem sucedida; por um lado, além de ressaltar a importância da música da peça
como um todo, a música por sua alternância pode suscitar um reforço emocional para
a performance.
Assim, perceber a variação entre metros, entre os compassos (próprios de tipos
de versos) e entre sílabas breves e longas poderia ajudar muito mais a observar o
it o àdaàpe fo
a eàdoà ueàaàte tati aàdeàasso ia àe oç esàespe iaisàaà adaàtipoà
de metro. Entretanto, o próprio Moore adiciona que haveria tendências:
Há, no entanto, tendências e, na cena final do Persa, Plauto tira vantagem
de duas destas tendências. Créticos, com sua sílaba curta entre as duas
longas, tendem a ser jocosos. [...] Báquicos, por outro lado, com as suas
duas sílabas longas seguindo uma curta, tendem a sugerir solenidade – ou
brincar com a solenidade [...]. Mais importante do que o ethos de um metro,
nomeadamente, no entanto, é a velocidade relativa dos metros
acompanhados. (2001, p. 257)
Além disso, é plausível supor que o acompanhamento musical não devia ter
sido monódico, mas sim variado. A variação rítmica produziria logo outros efeitos,
possivelmente acompanhando o tempo dos metros33.
Ainda, na observação de Moore (2001, p. 269), o ritmo anapéstico do canticum
final poderia relembrar outras passagens ao longo da peça, criando uma espécie de
referência intratextual34 por meio de ecos rítmicos, por exemplo, na sequência do
texto, o cafetão, Dordálo, aparece e será humilhado e agredido pelo bando de
escravos – sempre animados e cheios de falas invectivas. Na sua entrada e em toda
sua monodia, ele anuncia sua derrota e prenuncia sua desgraça, sempre em
anapésticos longos, o que poderia criar uma ligação com a passagem em que
Lemniselene era o tema prenunciado de sua derrota (168-174 e 272) e depois quando
ele próprio começava a ser enganado (490)35.
32
Cf. Moore (2001, p. 267).
Cf. Fraenkel (1960, p. 219-220).
34
Este aspecto pretendemos explorar posteriormente em outro estudo.
35
Cf. Moore (2001, p. 267).
33
147
7
an
8
an
8
an
8
an
7
an
7
an
7
an
8
an
8
an
786
8
an
DOR. qui sunt, qui erunt quique fuerunt quique futuri sunt posthac,
solus ego omnibus antideo facile, miserrimus hominum ut uiuam!
perii, interii! pessumus hic mi dies hodie inluxit corruptor:
ita me Toxilus perfabricauit itaque meam rem diuexauit!
uehiclum argenti miser eieci [amisi] neque illuc quam ob rem eieci, habeo.
qui illum Persam atque omnis Persas atque etiam omnis personas
male di omnes perdant! ita misero Toxilus haec mihi conciuit!
quia ei fidem non habui argenti, eo mihi eas machinas molitust:
quem pol ego ut non in cruciatum atque in compedis cogam, si uiuam;
777
778
779
781
782
783
784
785
siquidem huc umquam erus redierit eius, quod spero... sed quid ego aspicio?
787
DÓR. Dos que existem, que existirão, que existiram e que hão de existir daqui para frente,
eu sozinho precedo a todos facilmente, o mais miserável dos homens enquanto vivo.
Estou morto, enterrado! Este maldito dia hoje nasceu para mim um ladrão:
Não só Tóxilo me enganou como me roubou minhas coisas.
Eu, miserável, larguei, joguei fora um caminhão de dinheiro e nem sei por que joguei.
Que todos os deuses acabem com aquele persa e com todos os persas,
e também com todos os personagens! Sem dúvida, Tóxilo fez isso comigo, um miserável,
porque não lhe emprestei aquele dinheiro; por isso preparou para mim essas maquinações:
por Pólux, se eu estiver vivo, como não vou mandá-lo para a cruz e as correntes?
Se, contudo, agora o senhor dele voltasse para cá, o que espero – mas o que eu vejo?
A monodia de Dórdalo, embora continuando o metro anapéstico, apresenta um
ritmo mais cadenciado, sem muitas alternâncias entre breves e longas; pelo contrário,
o grande número de espondeus poderia sugerir um tom mais grave à sua fala,
carregada agora de pessimismo. Note-se, por exemplo, a quantidade de espondeus em
sua imprecação,– –– – – –– – – – – – – –(783).
Na sequência, o início do diálogo de Dórdalo, em anapésticos, com Sagaristião e
Tóxilo (788-792), agora fica mais entrecortado (com dímetros e tetrâmetros) e se
alternam mais breves e longas, em especial observam-se as falas de Tóxilo e Pégnio
com mais sílabas breves, enquanto Dórdalo mantém o tom do seu discurso:
8
an
8
an
8
an
4
an
2
an
r
c
hoc uide, quae haec fabulast? hic quidem pol potant. adgrediar. o bone uir,
788
salueto, et tu, bona liberta. TOX. Dordalus hic quidem est. SAG. quin iube adire.789-90
TOX. adi, si libet. SAG. agite, adplaudamus! TOX. Dordale, homo lepidissume,
salue! 791
locus hic tuus est, hic accumbe.
792
ferte aquam pedibus;
792ª
b
praeben tu puere?
792
Veja isso, que história é esta? Por Pólux, sem dúvida, estão aqui bebendo. Vou lá. Olá, bom
homem,
e você, boa liberta, olá. TÓX. Dórdalo está aqui mesmo. SAG. Por que não manda se aproximar?
TÓX. Se aproxime se quiser. SAG. Vamos, vamos aplaudir. TÓX. Dórdalo, um homem
distintíssimo, salve.
Este lugar é seu, sente aqui.
Tragam água para seus pés.
Você, escravo, não oferece (nada)?
148
Depois, Dórdalo fala com Pégnio e Tóxilo (793-796) e se dirige a Lemniselene
(798). Nessa hora, Plauto coloca em cena, pelo menos, cinco personagens, em diálogo
seguido por acompanhamento musical. Neste trecho (797-802), Tóxilo, Lemniselene e
Dórdalo cantam ainda em anapésticos curtos (tetrâmetros), numa cena cheia de
movimento e ação:
8
an
8
an
8
an
8
an
4ʌ
an
14
an sy
14
an sy
14
an sy
14
an sy
14
an sy
14
an sy
14
an sy
DOR. ne sis me uno digito attigeris, ne te ad terram, scelus, adfligam.
PáEG.àatàti iàegoàho à o ti uoà athoào ulu àe utia à†tuu †
DOR. quid ais, crux, stimulorum tritor? quo modo me hodie uersauisti, 795
ut me in tricas coniecisti, quo modo de Persa manus mi aditast?
TOX. iurgium hinc auferas, si sapias.
DOR. at, bona liberta, haec sciuisti et
798
me celauisti? LE. stultitiast,
798ª
cuii bene esse licet, eum praeuorti
799
litibus. posterius te istaec
800
magis par agerest. DOR. uritur cor mi.
801
TOX. da illi cantharum, exstingue ignem, si
801ª
cor uritur, caput ne ardescat.
802
793
794
796
797
DÓR. Não pense em me tocar com um só dedo, se não, o jogo no chão, seu criminoso.
PÉG. Mas na mesma hora vou arrancar seu olho com esta taça.
DÓR. O que você diz, desgraçado, saco de pancadas? Como você me enrolou hoje?
Como me jogou na armadilha? Como o bando da Pérsia me atacou?
TÓX. Leva daqui a discussão, se tem senso.
DÓR. Mas, boa liberta, você sabia destas coisas
e me escondeu? LEM. É estupidez
a quem pode estar bem
estar preocupado com discussões. É mais indicado
você tratar disso depois. DÓR. Meu coração se inflama.
TÓX. Dê-lhe um cântaro, apague o fogo, se
o coração se inflama, que não arda a cabeça.
Em seguida, Tóxilo e Pégnio atormentam Dórdalo em ritmo crético e báquico,
com iâmbicos curtos intercalados (803-818), até que Tóxilo pede para Pégnio parar
(818). Moore sugere que cenas como essa sejam cheias de música, em especial,
porque nenhuma informação da trama precisa ser revelada, aqui apenas o riso era
esperado (1998, p. 249):
3
cr
4
cr
3 2
cr tr
3 2
cr tr
4
ba
2
c
ba ba
2
c
ba ba
4
ba
4
ia
DOR. ludos me facitis, intellego.
TOX. uin cinaedum nouom tibi dari, Paegnium?
quin elude, ut soles, quando liber locust hic.
805
hui, babae! basilice te intulisti et facete!
806
PAEG. decet me facetum esse; et hunc inridere
lenonem lubidost, quando dignus est.
TOX. perge ut coeperas. PAEG. hoc leno tibi!
DOR. perii! perculit me prope. PAEG. em, serua rusum.
DOR. delude, ut lubet, erus dum hinc abest.
149
803
804
807
808
809
810
811
4
ia
4
ba
4
ba
c 4ʌ
ba tr
4
ba
c
3
ba ba
3ʌ
ba
PAEG. uiden ut tuis dictis pareo?
sed quin tu meis contra item dictis seruis
813
atque hoc quod tibi suadeo facis? DOR. quid est id? 814
PAEG. restim tu tibi cape crassam ac suspende te. 815
DOR. caue sis me attigas, ne tibi hoc scipione
malum magnum dem. PA. utere, te condono.
TOX. iam iam, Paegnium, da pausam.
812
816
817
818
DÓR. Zombam de mim, eu entendo.
TÓX. Você quer que um novo pederasta seja dado a você, Pégnio?
Que brinque como costuma quando este lugar está livre.
Oh! Opa! Vem elegantemente e faceiramente.
PÉG. Cabe-me ser faceiro e é desejoso
rir deste cafetão, quando ele merece.
TÓX. Vá em frente, já que começou. PÉG. Isto, cafetão, é teu.
DÓR. Estou perdido, ele quase me derrubou. PÉG. Aqui! segure de novo.
DOR. Abuse como quiser, enquanto seu senhor está longe daqui.
PÉG. Vê como presto atenção as suas palavras?
Mas por que, ao contrário disto, não obedece às minhas palavras
e faz o que te aconselho? DÓR. O que é isso?
PÉG. Pegue uma corda grossa para você e se enforque.
DÓR. Tome cuidado se pensa em me tocar, se não, com este bastão,
dou-lhe uma grande porrada. PÉG. Dê, eu deixo.
TÓX. Já chega, já chega, Pégnio, pára.
Então, inicia uma longa série de trocaicos septenários, intermeada de
anapésticos e cola reiziana36:
tr
7
7
an / an
r r
c c
4
an
7
tr
819-842
8
843-848
849
850
851-853
Brincadeiras com Dórdalo
Advertência de Tóxilo a Lemniselene
Agressões de Pégnio e Sagaristião a Dórdalo
Convite a Dórdalo para o jantar
Último anapesto de Dórdalo em recusa
Dórdalo encerra: male disperii!
Deste trecho da peça vale notar a seguinte passagem (821-826):
7
tr
7
tr
7
tr
7
tr
7
tr
7
tr
TOX. age, circumfer mulsum, bibere da usque plenis cantharis.
iam diu factum est, postquam bibimus: nimis diu sicci sumus.
DOR. di faciant ut id bibatis quod uos numquam transeat.
SAG. nequeo, leno, quin tibi saltem staticulum, olim quem Hegea
faciebat. uide uero si tibi satis placet. TOX. me quoque uolo
reddere, Diodorus quem olim faciebat in Ionia.
821
822
823
824
825
826
TÓX. Vai, circule o vinho doce, dá de beber até sem parar a cântaros cheios.
Já passou muito tempo depois que bebemos, há muito tempo estamos secos demais.
DÓR. Que os deuses façam que nunca desça o que bebem.
SAG. Eu não posso, seu cafetão, deixar de dançar para você a dancinha que Hégeas fazia
antigamente. Sim, veja se não lhe agrada bastante.TÓX. Eu também quero repetir
aquela que Diodoro fazia antigamente na Jônia.
36
Neste trabalho, os comentários focaram mais o início do banquete, sobretudo a análise dos versos
anapésticos e determinados outros versos líricos.
150
Destacamos aqui a referência à dança que os personagens fazem em cena:
além do efeito cômico e da satirização da situação do cafetão, podemos supor que a
música fosse de essencial importância nessa hora – afinal, em cena os personagens
estão dançando e ainda variando a dança que realizam. Alguns consideram que, talvez,
o público até reconhecesse seu ritmo37.
Por fim, outros versos líricos, sugerindo variação musical (quaternários
iâmbicos, 854-855, e báquicos, 856-857) finalizam os castigos infligidos a Dórdalo e
encerram o triunfo dos escravos. Um último trocaico septenário (858) convida o
público a aplaudir.
4ʌ
ia
4ʌ
ia
4ʌ
ia
4
ba
?
7
tr
TOX. satis sumpsimus supplici iam.
DOR. fateor, manus uobis do.
TOX. et post dabis sub furcis.
SAG. abi intro ... in crucem. DOR. an me hic parum exercitum hisce
habent? TOX. conuenisse te Toxilum me * * *
spectatores, bene ualete! leno periit: plaudite.
854
855
855ª
856
857
858
TÓX. Já o punimos com bastante punição.
DÓR. Confesso que sim, dou o braço a torcer.
TÓX. E depois vai dar sob a forca.
DÓR. Vá para dentro – para cruz. DÓR. Será que não me têm como pouco castigado?
TÓX. Ter me encontrado, Tóxilo * * * .
Meus espectadores, fiquem bem. O cafetão morreu. TODOS. Aplaudam.
Considerações finais
Acima de qualquer tentativa de estabelecer ora quais partes seriam realmente
cantadas, recitadas ou faladas ora se haveria um padrão fixo métrico-emocional que
Plauto teria adotado, é a observação da alternância estrutural que a música provoca
em Persa, como sugere Moore, e da variação rítmica, como pudemos perceber.
Nossa investigação demonstra as observações de Moore quanto à alternância e
efeitos de entradas musicais. Nossa análise do texto e da variação métrica da cena
final contribui também para uma interpretação que ressalta as características e efeitos
humorísticos da presença da música.
37
Sobre a dança jônia, ver Fraenkel (1960, p. 348), que comenta a possibilidade de a tradição teatral do
sul da Itália poder já ter apresentado esta dança ao público romano e, sobre a mesma dança jônica em
Stich. 769, ver Cardoso (2006, p. 187), além de ressaltar seu tom fescenino. Ainda há referência a esta
dança em Pseud. 1275.
151
Pudemos ver que a música no banquete de Persa inicia com a monodia de
Tóxilo, criando possíveis efeitos de paralelismo com o início também musical desta
peça. Isso por si já confere características especiais ao aspecto musical de Persa.
Analisamos o ritmo de alguns versos e percebemos que sua variação é
significativa. A intercalação de versos longos anapésticos com curtos versos líricos
(créticos e báquicos) mereceu atenção. Embora nenhuma associação direta possa ser
feita entre emoção e determinado metro, se pretendeu demonstrar que essa variação
poderia ressaltar a importância do acompanhamento musical, supostamente variado
de acordo com a mudança do ritmo das falas.
Destacamos algumas palavras e situações que também ressaltariam o papel da
música nessa festa (ludus) dos escravos espertos.
Discutimos, em paralelo, ideias e observações de estudiosos de Plauto, que em
nossas investigações posteriores deverão ser analisadas com mais vagar.
Assim, embora a música da comédia plautina nos seja efetivamente
inapreensível, sua presença ou ausência, bem como a variação entre metros e entre a
quantidade das sílabas que os compõe, como apontamos, podem nos ajudar a
si estesi a e teà pi ta à u à uad oà
aisà heioà deà o esà dessaà ealidadeà
i aà
musical.
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153
A COMEMORAÇÃO DA BATALHA DE ÁCIO EM
HORÁCIO
Camilla Ferreira Paulino da Silva1
Breve contextualização
A Batalha de Ácio encerrou mais que o conflito entre os dois antigos
triúnviros, Marco Antônio e Otávio. Ela é ponto fulcral para a tão aclamada
restauração da República e marca a soberania romana sobre o Egito, que após a
rendição aos exércitos de Otávio, se torna uma província romana.
As dissenções entre Otávio e Marco Antônio marcam a década de 30 a. C.
em Roma. Após o segundo Triunvirato ser desfeito, o mundo romano se divide em
dois pólos: as províncias ocidentais ficaram sob controle de Otávio e as orientais
com Antônio (MENDES, 2006, p.25). Para financiar suas guerras no Oriente, este
buscou em Cleópatra VII utilidade, iniciando uma relação político-amorosa que irá
ser atacada veementemente por Augusto e seus partidários (BUCHAN, s/d, p.69).
Em 32 a.C., os ataques se tornam mais intensos. Otávio proclama um
discurso, conhecido como Juramento in verba Octaviani2, que é mencionado na Res
Gestae, pelo qual buscou (e obteve) apoio do populus italiae contra Marco Antônio.
Porém, cerca de 1/3 do Senado romano toma partido deste último, o que fez com
que Otávio redirecionasse seu discurso contra a rainha do Egito. Chega em maio de
32 a notícia em Roma de que Antônio se divorciou da irmã de Otávio, com a qual
era casado, para contrair matrimônio com a rainha do Egito. Além disso, teria
reconhecido seus filhos com Cleópatra como seus herdeiros e teria lhes distribuído
possessões romanas. A partir de então, a afeição por Antônio diminui e fica mais
1
Graduanda da Universidade Federal do Espírito Santo. Membro do grupo de História de Roma, do LEIR
e bolsista do CNPq. Orientador: Gilvan Ventura da Silva. E-mail: camillaninnny@hotmail.com
2
A menção a esse discurso é feita nos comentários de G. D. Leoni no livro Res Gestae Divi Augusti
(1957).
154
fácil Otávio manejar o populus para a guerra que culminou justamente na Batalha
de Ácio (BUCHAN, s/d, p.81).
A guerra então tem início ano seguinte, sendo que o último confronto ocorre
no mar de Ácio, na Ircânia, a 2 de setembro de 31 a.C. Vários desertam a favor de
Otávio e Cleópatra bate em retirada, seguida por Antônio. O Egito, em 30, é sitiado
pelas tropas de Otávio e ocorre o desfecho com o suicídio dos consortes
(ARAÚJO,1998, p.27).
A Batalha de Ácio é tida como símbolo da salvação e do resgate de Roma da
destruição. Foi uma batalha pelos valores romanos contra o ataque orientalizante
representado por Cleópatra. O impacto dela na sociedade foi tanta, que segundo
Wallace-Hadrill (1993, p.6-7) quando a batalha terminou o que Otávio precisou
justificar não foi sua posição em Ácio, mas sua posição dali em diante. O mito da
Batalha de Ácio mostra que a ameaça é eminente e que Roma estaria sempre em
perigo, precisando para sempre de um salvador. Como propõe Zanker (2010, p.79),
se àosàa o te i e tosàdeà
àa.C.à
oàha iaàaàp opaladaà estau aç oàdaà‘epú li a à
por Otávio.
O poeta, sua obra e seu contexto
Quinto Horácio Flaco (69-8 a.C.) foi um poeta latino que alcançou grande
renome no seu tempo e posteriormente. Apesar de filho de escravo liberto, seu pai
dera-lhe uma educação privilegiada, tendo Horácio estudado em Atenas. O que
chegou a nós de sua obra foram os livros Epodos, Sátiras, Odes, Epístolas e o Canto
Secular, que variam em estilo métrico e de recepção. Aqui nos focaremos em alguns
poemas selecionados nos livros de Odese no livro de Epodos.
O livro de Epodosé composto em versos jâmbios (versos cuja unidade
métrica consta de duas sílabas, uma breve seguida de uma longa) e são escritos em
tom satírico. Segundo Grimal (1960, p.64), é anterior a entrada de Horácio no
círculo de Mecenas. Já o livro de Odes, que é considerada a obra de um Horácio
amadurecido em sua poética e estilo, foi composto a partir de certa estrutura
métrica objetivando uma execução oral, cantada ou recitada (ROSA, 2008, p.132).
Sabemos que na Antiguidade existiam várias formas de leitura e a recitatio, que
155
ocorria em locais públicos, como círculos literários e teatros, era um recurso
bastante utilizado pelos romanos (CHARTIER;CAVALLO, 1998, p.82).
Como Horácio escreveu antes, durante e depois do conflito entre Marco
Antônio e Otávio, sua obra nos possibilita ver o desenrolar dos fatos e também a
mudança no tom dos escritos com o passar dos anos e acontecimentos. No Epodo
16 ele demonstra descontentamento com as guerras civis e as desgraças
provenientes dessas, e amargurado diz para que os romanos fujam, porque não
haveria outra solução além desta:
Eis nova geração a consumir-se em discórdias civis, e Roma a sucumbir sob
asà p p iasà fo ças.à […]à so osà s,à açaà piaà eà sa gui ia,à osà ueà a osà
perdê-la,à eà oà ossoà soloà se à deà o oà oà efúgioà dasà fe as.à […]à Va osà pa aà
onde nos conduzirem os passos, para onde nos levarem, por entre as ondas,
o Noto ou o impetuoso Áfrico. Agrada-vos assim? Ou há quem tenha melhor
3
conselho a dar?
Na Ode I.2 Horácio também fala sobre as desgraças de seu tempo e de Roma,
e clama aos deuses por alguém que possa resolver os problemas de sua geração:
A mocidade Romana, rareada pelos crimes dos pais, terá um dia notícia das
nossas lutas fratricidas; saberá que cidadãos afiaram contra si mesmos o
ferro que houvera sido melhor empregado nos temíveis Partas. Para que
Divindade apelará o povo afim de acudir ao Império que desaba? [...] A
quem confiará Júpiter a missão de expiar os nossos crimes?
Este, claro, é Otávio, a quem Horácio chama no final do poema de pater
atque princeps. Nessa Ode, então, além de falar dos problemas que enfrentavam os
romanos, Horácio deixa claro que a missão de Otávio em salvar e proteger Roma de
crimes internos e externos é uma missão providencial.
Outra Odeenfática sobre as desilusões de Horácio sobre os rumos da
República fica por conta da Ode I.14, em que o poeta serve-se de uma alegoria, uma
nau que se acidenta em uma tempestade, para falar dos rumos de Roma e os
pe igosà ueà aà e a ,à seà p ossegui e à asà gue asà i is:à No asà o das,à à au,à
oà
outra vez levar-te para o mar! Que fazes? Conserva-te firme no porto. Não vês as
3
As traduções das Odes e Epodos são de Francisco Antonio Picot, 1893, exceto quando especificado.
156
tuasàa u adasàfaltasàdeà e osàeàteuà ast oàpa tidoàpeloài petuosoàãf i o?à[…]à“eà
não queres ser ludibrio dos ventos, acautela-te!
Existem outros poemas nos qual Horácio fala sobre o tema e nota-se que
antes da Batalha de Ácio, há um tom melancólico. Quando ocorre a Batalha e
Otávio sai triunfante, o tom muda, tornando-se comemorativo e esperançoso por
uma renovação do mos maiorum romano e da manutenção da grandeza de Roma.
Levando em conta o papel moralizante e educador que exerciam em Roma
os poetas (SILVA, 2001:36), Horácio pode ser lido de modo a entender como
Augusto reuniu em sua imagem tudo aquilo que se esperava de um romano ideal,
com a ajuda de esculturas, moedas e, claro, poetas. Horácio tinha percepção de seu
papel na sociedade, ao dizer na Epístola II.1 que os poetas podiam resguardar a
memória e conduzir as novas gerações:
Ainda que sem vigor e sem coragem no trato com as armas, o poeta é útil a
cidade, se tu concordas que as pequenas coisas podem ajudar as grandes. O
poetaà oldaàaà o aàte aàeàgagueja teàdasà ia çasà[…].àEleà a aàasà elasà
canções, supre de exemplos ilustres as gerações que chegam [...]
A Batalha de Ácio nos poemas
ásà Odestidasà o oà
i is à s oà a uelasà e à ueà Ho
ioà falaà so eà a vida
política romana em geral. Nestas, são variados os temas, que vão de conselhos do
poeta para as gerações vindouras à narrativas sobre grandes romanos e seus feitos.
Como bem nota Grimal (2008:199), nestes poemas Horácio dá voz à nova
valorização que Otávio dá às tradições romanas, que pareciam ter se perdido por
conta das décadas de enfrentamentos civis.
Ode III,6
Nesta Ode Horácio faz alusão ao confronto que estava por vir entre Antônio
e Otávio, citando os Dacos e os Etíopes, povos que estavam aliados ao Egito de
Cleópatra, e que compuseram o exército de Marco Antônio na Batalha de Ácio:
Romano! Expirarás, sem o mereceres, os crimes dos teus maiores, enquanto
não reedificares os templos dos Deuses(...) Por duas vezes já, Monéses e o
157
exército de Pacoro repeliram os nossos ataques, não aprovados pelos
auspícios. Eles, que só possuíram mesquinhos colares, folgam de se
enriquecer com os nossos despojos. Dilacerada pela guerra civil, Roma
esteve a ponto de cair aos golpes do Daco e do Etíope, este temível pela sua
armada, aquele pela destreza no vibrar da seta.
No trecho citado e em toda essa Ode notamos o respeito aos deuses, marca
do que seria considerado ideal romano. O citado Monéses foi o general dos Partos,
que venceram Crasso em 53 a.C. (GRIMAL, 2008, p.62), que não teria consultado os
auspícios antes da batalha. Nota-se então um medo que a história se repita, que
novamente despojos romanos caiam nas mãos de estrangeiros. Outro ponto é
perceber nesse poema, e na propaganda augustal de modo geral, que essa conexão
com os deuses é recorrente, para enfatizar que a missão de Otávio em salvar e
resguardar Roma de todos os males era providencial.
OdeI,37
Este poema é escrito estritamente em tom comemorativo à vitória de Otávio
em Ácio, notícia que teria chegado a Roma no outono de 30 a.C. O poeta convida os
amigos a beberem para celebrar o fim da ameaça egípcia e do desgosto de ver
romanos lutando contra romanos. Esta Ode é aqui citada integralmente, por ser a
mais representativa sobre a batalha em questão:
Soou a hora, amigos, de beber, de bater o chão com o pé livre, de cobrir
com iguarias dignas dos sacerdotes de Marte a mesa dos deuses. Até hoje
fôra crime tirar o Cécubo dos celeiros paternos, enquanto, à testa de um
bando de homens contaminados de moléstia contagiosa, uma rainha
insensata, embriagada pelo delírio das esperanças e da fortuna feliz,
preparava a queda do Capitólio e a ruína do Império. Acalmou-se-lhe, porém
o furor, quando viu que uma nau apenas escapara ao incêndio da armada.
Verdadeiro terror se lhe apoderou do espírito, toldado pelos vapores do
Mareótico, quando César, acossando à força de remos a nau que a levava
longe da Itália, - como o açor persegue as tímidas pombas, ou o caçador
ligeiro aperta a lebre pelos campos nevados da Hemonia – se empenhava
em acorrentar o monstro fatal. Ansiosa por morte mais gloriosa, nem
empalideceu feminilmente perante o punhal, nem procurou, com a nau
veloz, praias ocultas. Mas, intrépida, encarando com semblante sereno o
palácio derrubado, ousou apertar nas mãos horríveis serpentes para que lhe
introduzissem nas veios o mortal veneno, mais altiva ainda por haver
resolvido morrer, e ciosa sem dúvida de furtar às naus Liburnas a glória de
conduzir a Roma, na pompa do triunfo, uma rainha ilustre, como se fosse
humilde mulher.
158
É muito representativo notar o desfecho desse poema, que fala sobre a
perspectiva de Horácio sobre a Batalha de Ácio. O final do conflito se dá com a
morte de Cleópatra – ela é a inimiga de Roma e ela é a causa da guerra: portanto o
final do confronto só poderia ter sido dado com a morte da rainha.
Outro ponto interessante nessa Ode é o modo como o poeta trata dos
vinhos. Ele clama aos amigos para celebrar a vitória de Otávio tomando um vinho
romano, o Cécubo. Este vinho é tido como especial, e antes do desfecho do conflito
era um sacrilégio bebê-lo. Já outro vinho citado no poema, o Mareote, deixa a
mente de Cleópatra perturbada. Esses simbolismos são interessantes: o vinho
romano é sublime e sagrado, enquanto o egípcio deixa a mente insana (SILVA, 2009,
p.7). Nota-se que Cleópatra é também depreciada por estar ébria da doce Fortuna,
em oposição à virtus, pela a qual Otávio que se guiava(BELTRÃO, 2008: p.142).
Epodo 1
Indo para o livro dos Epodos, iniciamos pelo primeiro poema do livro em que,
como de praxe encaminhado a Mecenas, Horácio convida o amigo a lutar na
Batalha de Ácio:
Irás, caro Mecenas, nas ligeiras galeras da Libúrnia acometer as altas torres
das naus inimigas, disposto a afrontar todo o perigo que ameaçar a
César?[...] Irei: seguir-te-ei impávido pelos cumes dos Alpes, pelo inóspito
Cáucaso, ou até os confins do Ocidente. Perguntarás talvez, como eu, tão
fraco, tão pouco apto para a guerra, poderei aliviar com as minhas as tuas
fadigas?
Aqui, Horácio faz efe
iaà sà ligei asà gale asà daà Li ú ia ,à ueà segu doà
Francisco Antonio-Picot,(1893), eram embarcações inventadas pelos povos da
Dalmácia e eram muito velozes. A esquadra de Otávio, durante a Batalha de Ácio,
contava com muito desses barcos que manobravam com muita facilidade e que
te iaàfa ilitadoà asta teàaà it ia.àJ àaà efe
iaà sà altasàto esài i igas à àalus oà
aos navios de Antônio, que seriam altos e dariam a impressão de serem fortalezas.
Nesteà poe a,à Ho
ioà dizà ue,à apesa à deà
oà se à u à
a oà fo te à eà se à
pou oà aptoà pa aà aà gue a ,à eleà ue à i à à gue aà aoà ladoà deà seuà o pa hei oà
159
Mecenas. Horácio demonstra sua vontade em lutar nessa batalha e querer defender
Otávio de qualquer perigo que o acometa. O poeta segue em tom laudatório a seu
amigo Mecenas, porém é valioso no que diz respeito à Batalha de Ácio por se tratar
de momentos anteriores.
Epodo 8
Este poema cheio de simbolismos é em comemoração a Batalha de Ácio,
dando-nos indícios de certas manobras de guerra e afins. Aqui, mais uma vez,
Horácio se dirige a Mecenas:
Quando me será dado, ditoso Mecenas, celebrar a minha alegria pelo
triunfo de César, bebendo contigo, na tua casa elevada (assim apraza a
Júpiter), aos acordes da lira Dória unida à flauta Frígia, esse Cécubo
reservado para os dias de festa? Assim fizemos há pouco quando o filho de
Netuno, expulso de nossos mares, fugiu vendo as suas naus abrasadas, ele
que ameaçara Roma com os mesmos ferros de que a sua benigna mão havia
livrado pérfidos soldados. O romano, ai! Feito escravo de uma mulher
(vindouros, de certo, o não acreditareis), levam estacas e armas à voz de
eunucos decrépitos; e o sol viu tremular, por entre as águias Romanas, o
pavilhão desonrosa de uma egípcia! Indignados com semelhante espetáculo,
passaram-se dois mil gauleses com os seus ginetes para o nosso campo,
aclamando César; e as naus inimigas, virando de bordo à esquerda, fogem a
esconder-se nos portos.[...] Debelado por terra e mar, o inimigo trocou o
manto de púrpura pelas vestes de luto. Ludibrio de ventos contrários, busca
a ilha de Creta, orgulhosa das suas cem cidades, ou as Syrtes açoitadas pelo
Noto, ou navega errante à mercê das ondas. Escravo, traze copos maiores
com vinho de Chio e de Lesbos, ou deita-nos o Cécubo que reconforta o
estômago desfalecente. Agrada-me afogar no doce vinho os cuidados e os
sobressaltos que nos causarão César e a sua fortuna.
Neste poema, Horácio convida seu amigo Mecenas a beber em
comemoração a vitória de Otávio na batalha, e assim como na Ode I.37,
representando mais uma vez a inimiga Cleópatra ao passo que o Cécubo romano é
elogiado. O absurdo aqui são os romanos que obedeceram as ordem da rainha
egípcia, que Horácio utiliza a palavra feminae para se referir. É claro que a posição
de Cleópatra, que além de estrangeira era mulher, é elaborada numa relação
desigual de poder, uma vez que ela estava sendo representada por um poeta latino,
que estava declaradamente a favor de Otávio, e a natureza de Cleópatra faz com
que a missão deste em derrotá-la seja fundamental para os itálicos (JOSÉ, 2008, p.3160
.à à Maisà ai da,à aoà es e e à oà o a o,à ai![...]à feitoà es a oà deà u aà
ulhe ,à
Horácio está se referindo à Marco Antônio. Observa-se que ele aponta o general
como emancipatus4 feminae, algo como sob domínio da mulher.
Ao falar sob eà passa a -se dois mil gauleses com seus ginetes para o nosso
a po ,àHo
ioà efe e-se a Amintas, rei da Galácia, que fora aliado de Antônio até
a Batalha de Ácio, e que vendo a derrota iminente deste, passa para o lado de
Otávio. Sabemos que no decorrer da batalha, muitos do exército de Marco Antônio
e Cleópatra desertaram, tanto em mar quanto em terra (BUCHAN, s/d, p.84-85).
Considerações finais
A Batalha de Ácio foi um ponto de mudança para Otávio, no sentido de que
ela o marcou como vindex libertartis, posição o afastava da imagem de um César
golpista e obteve um consenso dos itálicos e ocidentais, de modo geral (MENDES,
2006, p.26). O engrandecimento de Otávio passou pelas representações sobre seu
poder, sendo que estas produzem o vínculo entre o governante e sociedade,
si to iza doà aà aç oà dosà go e a tesà eà asà aspi aç esà dosà go e ados à MENDE“;à
SILVA, 2004, p. 242) De fato, tudo o que almejava a sociedade romana desse
período de guerras civis, Otávio buscou demonstrar oferecer, por meio de projetos
como restauração de antigos templos, construção de novos e leis que visavam à
manutenção da moral e bons costumes. Além disso, por meio da sua representação
nas moedas, estátuas e dos poetas que reuniu ao redor de sua causa, pôde
resignificar sua identidade, dando a ela uma posição privilegiada, que reunia as
virtudes necessárias para ser um líder conduzido Roma à sua grandeza. Ao analisar
a ação política de Otávio, percebe-se uma associação de tradicionais valores
romanos com a sua persona (ANTIQUEIRA, 2008, p7).
Há que se mencionar que o conceito de representações entendido aqui é o
elaborado por Roger Chartier (1991, p. 177-
,à ueà pe saà oà te
oà o oà asà
at izesàdeàp ti asà o st uto asàdoàp p ioà u doàso ial ,à ueàfa i a à espeitoà
e submissão quando o recurso à força bruta faltar, e são produzidas por indivíduos
4
Emancipatus é um termo jurídico utilizado para a venda do filho pelo pai, por virtude do poder
paterno, que colocava os descendentes sob a dominação absoluta dos ascendentes.
161
ueà us a à da à se tidoà aoà u doà ueà à oà deles .à Po à se e à asà ep ese taç esà
construídas por interesses de grupos, é necessário relacionar os discursos
proferidos com a posição de quem os utiliza (CHARTIER, 1990, p.17). Portanto,
pensar nos poemas de Horácio é pensar os poemas de alguém inserido dentro de
u à
uloàdeàpode ,à o he idoà o oà
uloàdeàMe e as ,àse doàesteàa igoàdeà
Otávio.
Horácio resguarda a memória de um Otávio vitorioso e virtuoso em seus
poemas sobre a Batalha de Ácio, e por isso durante muito tempo Cleópatra ficou
estigmatizada devido a suas representações e de outros autores latinos. A
sobrevivência de certas histórias e a percepção desta Batalha como símbolo da
salvação, do resgate de Roma da destruição, demonstra que existiu uma
propaganda em prol de Otávio (WALLACE-HADRILL,1993, p1-7).
Ao idealizar Cleópatra como insana e afins, Horácio está fazendo o discurso
de seu contexto histórico e social. Ao analisar a obra dele e de qualquer autor devese, como diz Maingueneau (1995, p.18-19) relacionar o texto e o contexto como um
monumento transmitido pela tradição.
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164
A INSTITUIÇÃO PRIVADA DO CASAMENTO NAS
COMÉDIAS DE PLAUTO
Caroline Barbosa Faria Ferreira (UFES)
Historiadores e poetas afirmam que o casamento, durante muitos séculos, foi
uma das instituições mais sólidas e importantes da urbe romana. Segundo Paul Veyne,
o casamento romano era um ato privado, um fato que nenhum poder público deveria
sancionar. Para que um cidadão romano fosse considerado casado, não era necessário
que ele passasse por um juiz ou por um sacerdote. O casamento não era um ato
escrito (não existia contrato de casamento, mas apenas um contrato de dote) e era
total e teà i fo
al:à e hu à gestoà si
e aàu àfatoàp i ado,à o oàe t eà
li oà e aà o igat io.à E fi ,à oà asa e toà
sàoà oi ado .à Ve e,à
Veyne (2009) cita várias reflexões acerca do casamento feitas no passado que
demonstram a visão que os romanos tinham sobre essa instituição. Antipater de Tarso
e si aà aosà o a osà ueà estesà de e à asa à pa aà da à idad osà à p t iaà eà po ueà aà
propagação da espécie humana está em conformidade com o plano divino do
u i e so .à Mus
ioà afi
aà ueà oà asa e toà e isteà pa aà aà p o iaç oà eà pa aà aà ajudaà
útuaà e t eà osà esposos.à Epi tetoà dizà ueà
ou a à aà
ulhe à doà p
indelicado quanto tirar a porção do porco servida ao vizinho daà
i oà à t oà
esa .à E à suasà
pala as:à Qua toà sà ulhe es,à àaà es aà oisa:àasàpo ç esàfo a àdist i u dasàe t eà
osàho e s .à
Mas, afinal, por que os cidadãos romanos se casavam? Simplesmente para
poderem ter filhos legítimos? Não apenas por isso, mas também para receberem o
dote que o pai da noiva era obrigado a pagar ao noivo por este casar com sua filha, um
dos meios honrosos de se enriquecer.
Muitas são as alusões que Plauto faz dentre as suas peças que chegaram até nós
ao casamento.
Segundo Santos (2000), Plauto mostra em suas peças que o casamento podia ser
considerado em sua época como uma verdadeira transação comercial: um homem, ao
adquirir uma esposa, ganhava também um belo dote da família da noiva.
165
Em Roma, não obstante o fato de que a obrigação de dotar não fosse jurídica,
mas sim moral, dificilmente uma mulher encontraria um bom marido sem dote. Essa
questão é bem expressa na peça Aulularia (A comédia da marmita), em que uma
jovem que possuía todas as qualidades que deveria ter uma esposa estaria sujeita a
não se casar por ter condições humildes e conseqüentemente não ter um dote:
EVCL. Meam pauperiem conqueror.
190
virginem habeo grandem, dote cassam atque inlocabilem,
neque eam queo locare cuiquam. (v. 190-192)
Trad.: Euclião: Da minha pobreza me lamento. Tenho lá uma donzela
espigada, sem um tostão de dote nem esperança de arrumação... É que não
vejo mesmo a possibilidade de a arrumar com ninguém... (Trad. Walter
Medeiros)
Plauto demonstra na peça Trinummus (As três moedas) que entregar uma mulher
sem dote era totalmente desonroso, visto que essa ação não somente a condenaria à
pobreza, mas também a exporia à opinião pública, que diria que a jovem foi entregue
como uma concubina e não como uma esposa. O jovem Lesbônio não aceita entregar
sua irmã a seu amigo Lisíteles, que a ama, porque ela não tem dote. Ele assim diz:
... ne mi hanc famam differant,
me germanam meam sororem in concubinatum tibi,
si sine dote <dem>, dedisse magis quam in matrimonium.
quis me improbior perhibeatur esse? haec famigeratio
te honestet, me conlutulentet,... (v. 689-693)
690
Trad. Para que não espalhem contra mim esta calúnia de que entreguei a
minha irmã mais em concubinato que em matrimônio, se eu der a minha
irmã sem dote. Quem terá pior reputação do que eu? Este boato te dá
distinção e arrasta-me na lama. (Tradução minha)
Já o contrário seria totalmente passível de ocorrer nas peças plautinas. Uma
mulher que não possuísse condições morais, mas tivesse um dote considerável poderia
ad ui i à u à a ido,à eà estaà te iaà todoà oà pode à so eà oà seuà
juge,à poisà oà a idoà
mais pobre entregaria toda a sua autoridade à mulher. Sobre essa questão, o senex
Megadoro afirma na peça Aulularia:
MEGA. narraui amicis multis consilium meum
de condicione hac. Euclionis filiam
laudant. sapienter factum et consilio bono.
nam meo quidem animo si idem faciant ceteri
166
475
opulentiores, pauperiorum filias
ut indotatas ducant uxores domum,
480
et multo fiat ciuitas concordior,
et inuidia nos minore utamur quam utimur,
et illae malam rem metuant quam metuont magis,
et nos minore sumptu simus quam sumus.
in maximam illuc populi partem est optimum.
485
(v. 475-485)
Trad. Contei a muitos amigos o partido que tomei quanto a este projeto de
casamento. A filha de Euclião merece o aplauso de todos. Acham que foi
uma sensata resolução e um partido acertado. De fato – em minha opinião,
pelo menos –, se os outros fizessem o mesmo, isto é, se os ricaços casassem
com os filhos dos pobretanas, que não tem dote, haveria muito mais
concórdia na cidade; nós enfrentaríamos uma hostilidade menor do que
aquela que enfrentamos; elas teriam mais receio dos nossos castigos do que
têm; e nós faríamos menos despesas do que fazemos. (Trad. Walter
Medeiros)
E mais à frente conclui: dotatae mactant et malo et damno viros. à As que têm
dote são a desgraça e a ruína do marido).
Sobre essa questão, o personagem Demeneto, na Asinaria (Comédia dos Asnos)
diz: Argentum accepi, dote imperium vendidi . (v. 87) (Trad. Aires Pereira Couto:
Recebi o dinheiro, vendi a minha autoridade pelo dote.)
As famílias retratadas por Plauto normalmente não aceitavam com boa vontade
que seus filhos se casassem com moças que não tivessem um dote. Sobre essa questão,
Filtão, personagem da peça Trinummus (As três moedas) diz a seu filho Lisiteles, que
queria casar sem dote com a irmã de seu amigo: Sine dote uxorem? Egone indotatam
te uxorem ut patiar? à .à
àeà
à T ad.à i ha:àU aàesposa sem dote? Eu suportar
que cases sem dote?) O personagem Perifanes, da peça Epidicus (Epidico), que já
e te a aà aà p i ei aà esposa ,à o e saà o à seuà a igoà so eà u à poss elà segu doà
casamento:
AP. pulcra edepol dos pecuniast. PER. quae quidem pol non maritast. 180
Apécides: Mas, com a breca, é tão lindo o dote, todo em metal sonante...
Perífanes: Pois é, caramba, se não viesse a mulher com ele... (Trad. Walter
Medeiros)
O dote recebido estava sujeito à administração do cônjuge, mas a renda deveria ser
gaὅta apenaὅ com aὅ neceὅὅidadeὅ da família e “ὅe não havia meio legal de impediὄ que
167
um marido pouco escrupuloso o dilapidasse, em caso de dissolução do casamento esse
dote em geὄal devia ὅeὄ ὄeὅtituído à mulheὄ”.(Grimal, 1991)
Plauto constrói em suas peças um mundo em que o amor conjugal não era a base
do casamento e nem a condição do casal. Cabia aos esposos o dever de cumprir suas
respectivas tarefas. Se, além disso, se entendessem bem, seria um mérito adicional, e
não uma pressuposição.(Grimal, 1991)
Legalmente cada romano tinha uma esposa, porém, os maridos não eram
obrigados pela lei e pelos costumes a serem fiéis a estas. Os amores passageiros eram
permitidos enquanto não ferissem a honra de uma mulher casada ou de um a moça de
família. É o que afirma a escrava Sira a sua ama Doripa, na peça Mercator:
Ecastor lege dura uiuont mulieres
multoque iniquiore miserae quam uiri.
nam si uir scortum duxit clam uxorem suam,
id si rescivit uxor, impunest uiro;
820
uxor uirum si clam domo egressa est foras,
uiro fit causa, exigitur matrimonio.
utinam lex esset eadem quae uxori est uiro;
nam uxor contenta est, quae bona est, uno uiro:
qui minus uir una uxore contentus siet?
825
ecastor faxim, si itidem plectantur uiri,
si quis clam uxorem duxerit scortum suam,
ut illae exiguntur quae in se culpam commerent,
plures uiri sint uidui quam nunc mulieres.— (v. 817-829)
Trad. Por Cástor, as pobres mulheres vivem sob uma lei dura e muito mais
injusta do que os homens. Pois, se um marido, às escondidas de sua esposa,
mantém uma prostituta, se a esposa descobre isso, o homem fica impune;
uma esposa, se sai fora do lar às escondidas do marido, torna-se para o
marido motivo para terminar o casamento. Oxalá que a lei fosse a mesma
para a esposa e o marido, pois a esposa que é boa se contenta com um
único marido; por que um homem não se contentaria com uma só esposa?
Por Cástor, se os homens fossem castigados da mesma forma, se algum
mantivesse uma prostituta às escondidas da esposa, da mesma forma que
elas são repudiadas se cometem a falta, mais maridos estariam sem cônjuge
do que as esposas agora. (Trad. Damares Barbosa Correia)
Na peça OsMenecmos,Plauto retrata o desentendimento entre um casal por
motivo de traição do marido, em que o pai da esposa se coloca contra a sua filha,
demonstrando não haver nenhuma culpa na sua infidelidade:
SEN. quid istuc autem est? MAT. ludibrio, pater,
habeor. SEN. unde? MAT. ab illo, quoi me mandauisti, meo uiro.
SEN. ecce autem litigium. quotiens tandem edixi tibi,
168
ut caueres, neuter ad me iretis cum querimonia? 785
MAT. qui ego istuc, mi pater, cauere possum? SEN. men interrogas?
MAT. nisi non uis. SEN. quotiens monstraui tibi, uiro ut morem geras, 787788
quid ille faciat, ne id obserues, quo eat, quid rerum gerat.
789
MAT. at enim ille hinc amat meretricem ex proxumo. SEN. sane sapit,
atque ob istanc industriam etiam faxo amabit amplius.
MAT. atque ibi potat. SEN. tua quidem ille causa potabit minus,
si illic siue alibi libebit? quae haec, malum, impudentiast?
una opera prohibere, ad cenam ne promittat, postules,
neue quemquam accipiat alienum apud se. seruiren tibi
795
postulas uiros? dare una opera pensum postules,
inter ancillas sedere iubeas, lanam carere.
MAT. non equidem mihi te advocatum, pater, adduxi, sed uiro.
hinc stas, illim causam dicis. (v. 782-799)
Trad. Velho: O que está acontecendo?
Mat.: Estou sendo desprezada, papai!
Vel.: Por quem?
Mat.: Pelo homem a quem o senhor me confiou, a meu marido.
Vel.: Brigados novamente! Quantas vezes lhe recomendei evitar que
qualquer dos dois me venha dar queixa do outro?
Mat.: Mas como posso evitar isso, papai?
Vel.: A mim o pergunta? Basta querer. Quantas vezes lhe expliquei que deve
ser obediente a seu marido e não espionar o que ele faz, onde vai, no que se
ocupa?
Mat.: Mas é que ele ama a rapariga da casa da frente.
Vel.: (à parte) E tem bom gosto. (alto) E, por causa desta iniciativa que você
tomou, imagino que ainda mais há de amá-la.
Mat.: E ele bebe em casa dela.
Vel.: Então, só por atenção a você, há de deixar de beber, ali ou onde mais
lhe aprouver? Que petulância é essa, ora bolas?! Você podia, do mesmo
passo, pretender que ele fosse proibido de aceitar um convite para jantar ou
de convidar alguém para sua casa. Você pretende que os maridos virem
servos? Da mesma forma, você poderia querer que ele fiasse uma tarefa de
lã, que se sentasse entre as escravas, que cardasse a filaça.
Mat.: Pai, parece que o chamei para defender, não a mim, mas a meu
marido! O senhor está do meu lado, advogando a causa do lado oposto!
(Trad. Jaime Bruna)
Plauto representa o casamento, com muita freqüência, demonstrando ser este
uma calamidade inevitável para o homem. O quadro que ele pinta da vida conjugal é
deveras pessimista. A esposa é representada como um tirano; ela seria até mesmo
capaz de afligir ao marido as piores violências inclusive físicas. Dessa maneira, o
casamento serviria como forma de punição a filhos que fizessem tolices:
CHARM. ...si tu modo frugi esse uis.
haec tibi pactast Callicli <huius> filia. LESB. ego ducam, pater,
et eam et si quam aliam iubebis. CHARM. quamquam tibi suscensui,
miseria <una> uni quidem hominist adfatim. CALL. immo huic
169
parumst, 1185
nam si pro peccatis centum ducat uxores, parumst. (v. 1182-1186)
Trad. Charmides: Se queres ser um homem de bem, escuta, tornei-te noivo
da filha de Calicles!
Lesbonico: Esposa-la-ei, meu pai, e a todas as que tu quiseres.
Charmides: Por mais que eu esteja zangado contigo, basta uma punição
para um só homem.
Callicles: Não, para ele é pouco; se esposasse cem mulheres, por seus
pecados, seria pouco! (Trad. Maria de Lurdes Santos)
Na circunstância da morte de uma mulher, um dos personagens plautinos
acrescenta ao viúvo que aquela tinha sido a primeira vez que a esposa dera prazer ao
marido (Cas., 240). Não havia pior maldição do que dizer a um homem: em nome da
tua velhice, em nome daquela que temes, quero dizer, tua mulher, se hoje não
disseres a verdade a meu respeito, que os céus façam tua mulher sobreviver a ti... (As.,
19-22).
Demêneto assim fala de sua mulher à sua amante:
DEM. Edepol animam suauiorem aliquanto quam uxoris meae.
PHIL. dic amabo, an fetet anima uxoris tuae? DEM. nauteam
bibere malim, si necessum sit, quam illam oscularier.
895 (v. 893895)
Trad.Demeneto: Meu Deus, como esse hálito é bem mais agradável do que
o da minha mulher.
Filênio: Diz-me lá, a tua mulher tem mau hálito?
Demeneto: Fu! Preferia beber água de curtumes, se fosse caso disso, a
beijá-la. (Trad. Aires Pereira do Couto )
Com frequência Plauto faz menção a maridos atormentados por suas esposas.
U à dessesà
a idosà afi
a:à sedà u o à
eà e
u iat,à uiaà uiuit. à .à
à áà
i haà
mulher tortura- eàpeloàsi plesàfatoàdeàesta à i a .àEàout o:à te ueàutà ua àp i u à
possi à idea àe o tua . à .à
à Eà ueàeuàpossaàteà e à o taàp i ei o. ààà
O pai da jovem noiva conservava em suas mãos a faculdade de romper o
asa e toàdaàfilhaàsegu doàseuà ue e ,àse àoà o se ti e toàdoà asal.ààE,à aàesposaà
que escapasse da manus do marido permanecia sujeita à do pai; continuava
pa ti ipa doàdaà eligi oàdaà asaào deà as e a .à G i al,à
àNaàpeça Sthicus (Estico),
o pai propõe o fim do casamento de suas duas filhas devido à longa ausência de seus
maridos :
ANT. Edepol uos lepide temptaui uostrumque ingenium ingeni.
sed hoc est quod ad uos uenio quodque esse ambas conuentas uolo:
170
mi auctores ita sunt amici, ut uos hinc abducam domum.
SOR. at enim nos, quarum res agitur, aliter auctores sumus.
nam aut olim, nisi tibi placebant, non datas oportuit,
130
aut nunc non aequomst abduci, pater, illisce apsentibus.
ANT. uosne ego patiar cum mendicis nuptas me uiuo uiris? ( v. 126-132)
Trad.: Antifonte: Por Pólux! Estão aprovadas com louvor vocês e a índole de
sua índole. Mas a razão por que venho até vocês e por que quero as duas
reunidas é esta: meus amigos me aconselharam a levar vocês
definitivamente para minha casa.
Panégiris: Nós, porém, a quem o assunto diz respeito, o aconselhamos de
outro modo. Pois, ou antes, se nossos maridos não lhe agradavam, não
deveríamos ter sido dadas em casamento a eles, ou não é correto sermos
separadas deles, pai, agora que estão ausentes.
Antifonte: E eu devo admitir que vocês fiquem casadas com maridos que
são uns mendigos, estando eu próprio vivo? (Tradução Isabella Tardin
Cardoso)
Pode-se perceber que o teatro plautino faz referência na maioria das vezes a
mulheres casadas com idade madura e raramente focaliza esposas mais jovens. Essa
ausência se deve, possivelmente, ao fato de que seria um escândalo retratar uma
jo e àapai o adaàpo àseuà a idoà a uelaà po a.àPois,àsegu doàG i alà
aà po aàdeà
Plauto, a moral romana não se ofendia com cenas mais picantes, desde que a
apai o adaàfosseàu aà o tes àeà
oàu aà oçaàdeàfa
lia .à G i al,à
àáà uest oà
não seria representar o amor em si, nem mesmo a vida familiar, mas sim o amor
legítimo.
Apesar da aparente hostilidade ao sexo feminino que se pode verificar em Plauto,
se tem um belo retrato de uma jovem mulher que ousou amar verdadeiramente seu
marido com o amor carnal, e ainda assim, conservar a sua honra e o seu senso de
dever. Essa personagem é Alcmena, da peça Amphitruo (Anfitrião), uma das peças
mais conhecidas do autor.
Pela primeira vez no teatro plautino percebe-se uma jovem esposa falando como
uma amante, sem véus, em uma profissão de fé heróica e apaixonada, demonstrando
um amor legítimo ao seu amado Anfitrião. Ela tinha consciência daposição de seu
marido e se orgulhava disso. Não desempenhava um papel ativo em questões externas
à sua casa, mas superava todas as dificuldades em benefício de seu amor:
ALCVMENA satin parua res est voluptatum in uita atque in aetate agunda
praequam quod molestum est? ita cuique comparatum est in aetate
hominum;
ita diuis est placitum, uoluptatem ut maeror comes consequatur:
635
quin incommodi plus malique ilico adsit, boni si optigit quid.
171
nam ego id nunc experior domo atque ipsa de me scio, cui voluptas
parumper datast, dum uiri mei mihi potestas uidendi fuit
noctem unam modo; atque is repente abiit a me hinc ante lucem.
sola hic mihi nunc uideor, quia ille hinc abest quem ego amo praeter
omnes. 640
plus aegri ex abitu uiri, quam ex aduentu uoluptatis cepi.
sed hoc me beat
saltem, quom perduellis uicit et domum laudis compos reuenit:
id solacio est.
absit, dum modo laude parta
domum recipiat se; feram et perferam usque
645
abitum eius animo forti atque offirmato, id modo si mercedis
datur mi, ut meus uictor uir belli clueat.
satis mi esse ducam.
uirtus praemium est optimum;
uirtus omnibus rebus anteit profecto:
libertas salus uita res et parentes, patria et prognati 650
tutantur, seruantur:
uirtus omnia in sese habet, omnia adsunt
bona quem penest uirtus. (v. 633-653)
Tradução: Alcmena: Realmente temos bem pouco prazer em nossa vida,
durante toda a nossa existência, ao preço de todos os sofrimentos! Assim é
a vida dos humanos; os deuses quiseram que a todo prazer sucedesse a dor,
que digo eu, que logo haja mais dor e sofrimento, quando se experimentou
alguma satisfação. Sim, experimento-o agora, por mim mesma, sei-o muito
bem, eu, que tive um instante de prazer, quando me foi dado ver meu
marido – uma só noite, não mais; e depois ele partiu, deixou-me ao raiar do
dia. Agora estou sozinha, pois ele não está comigo, o único homem que eu
amo dentre todos... No entanto, o que pelo menos me faz feliz é que venceu
os inimigos, voltou para casa coberto de glórias. Isso me consola. Pode estar
longe, desde que ao retornar traga a glória! Com firme e enérgica coragem
suportarei sua ausência até o fim, se ao menos tiver a compensação de ver
meu marido chamado vencedor; considerarei que é suficiente para mim. A
coragem é a mais bela recompensa, a coragem certamente supera todas as
coisas: liberdade, segurança, vida, fortuna, parentes, pátria, família são por
ela protegidos e salvos. A coragem tudo contém em si, possuí-la é ter todos
os bens! (Tradução de Carlos Alberto Louro Fonseca)
Nesta breve análise da retratação do casamentofeita por Plauto em algumas de
suas comédias, pode-se constatar que, em comum, estes casamentosaqui analisados
têm a frustração amorosa tanto dos maridos quanto das esposas em relação a essa
instituição. Constata-se que, para grande parte dos personagens plautinos, o
casamento era realizado por conveniência, e estava relacionado principalmente a
interesses sociais e econômicos. E por isso, os maridos estavam sempre se queixando
das esposas e buscavam fugir da monogamia imposta através de relacionamentos com
cortesãs e também as esposas mostram-se, freqüentemente, decepcionadas com seus
maridos.
172
Referências bibliográficas
GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
PLAUTO. Amphitruo. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Asinaria. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Aulularia. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Casina. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione critica
instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Cistelaria. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Epidicus. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Menaechmi. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
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PLAUTO. Mercator. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. I. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Sthicus. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione critica
instruxit. t. II. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
PLAUTO. Trinummus. LINDSAY, W. M. Comoediae. Recognouit breuique adnotatione
critica instruxit. t. II. New York: Oxonii Typographeo Clarendoniano, 1989.
SANTOS, Maria de Lurdes C. M. Maia e. A família de Roma na obra de Plauto. Braga.
Edições APPACDM, 2000.
VEYNE, Paul (org.). História da vida privada 1: Do império Romano ao ano mil . Trad.
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
173
DIALÉTICA E RETÓRICA NO SIMPÓSIO DE PLATÃO
Eliana Amarante de Mendonça Mendes (UFMG)
Na Grécia antiga, o simpósio doà g egoà σ
όσιο à − simpósio ) era um
banquete, seguido de vinhos, que se realizava na residência de um nobre. Era,
portanto, não uma festa pública, mas uma festa privada.
O simposiarca, que podia ser o próprio anfitrião ou um dos simposiastas, era o
responsável pela organização e realização do evento. Além de festa gastronômica e
enológica, era um espaço para o debate de temas diversos, para os nobres gabaremse de seus feitos e posses, ou simplesmente para o divertimento. O simpósio era
também realizado para comemorar a introdução de rapazes jovens na sociedade
aristocrática, para celebrar vitórias em competições esportivas, poéticas e teatrais e
em outras ocasiões especiais. Cumpria-se também um ritual, em que se incluiam hinos
aos deuses, libações em honra às divindades e para prantear os mortos. Nesse tipo
de festa, usava-se o melhor serviço, os melhores pratos, as melhores louças, os
melhores copos.
As esposas, bem como as mulheres livres, de status na sociedade, não podiam
participar do simpósio, mas admitam-se bailarinas, garçonetes, flautistas (aulos) e
prostitutas de alto nível, com a finalidade de entreter os convivas. Era uma reunião de
homens, realizada na parte das casas reservadas aos homens (o ándron). O número de
o i asà −à osà si posiastasà −à a ia a de 4 a 20, dependendo do número de divãs
disponíveis. Estes eram dispostos em forma de ferradura. O anfitrião ficava na extrema
esquerda e à sua direita ficava o hóspede de honra. O costume era os convivas
reclinarem-se em nesses divãs almofadados. Rapazes jovens não podiam reclinar,
tinham que se manter assentados. Depois do jantar, bebia-se, conversava-se, jogavase, e faziam-se competições musicais e outras.
Cabia ao simposiarca supervisionar o simpósio e decidir quão forte deveria ser
o vinho servido na noite, dependendo do estilo de simpósio que se pretendesse:
discussões sérias ou simples entretenimento. Os gregos e os romanos normalmente
serviam o vinho misturado com água. O consumo de vinho puro era considerado um
hábito dos povos incivilizados.
174
Em um fragmento de uma peça perdida de Eubulos, o próprio Dioniso, o deus
do vinho, estabelece a maneira correta de beber: os homens sensatos devem beber
t sàtaçasà−àu aàpa aàaàsaúde,àaàsegu daàpa aàoàa o àeàoàp aze àeàaàte ei aàpa aàoà
sono. O homem sábio, depois de tomar essas três taças, vai para casa. A partir daí, o
vinho passa a ser nocivo: a quarta taça leva ao mau comportamento, a quinta provoca
gritaria, a sexta leva a grosserias e insultos, a sétima leva a lutas corporais, com a
oitava quebram-se os móveis, a nona provoca depressão e a décima leva à loucura e
inconsciência.
Era, pois, da responsabilidade do simposiarca, para atender à virtude grega da
moderação, evitar que os convivas perdessem o controle. Entretanto, conforme
narrado em obras literárias e também comprovado na arte pictórica, o limite de três
taças não era sempre observado.
Algumas obras clássicas descrevem a realização do simpósio grego: os diálogos
socráticos Simpósio de Platão e Simpósio de Xenofonte, além de poemas gregos como
as elegias de Theognis de Megara.
Mas o mais famoso dos simpósios foi o imortalizado por Platão no Diálogo
Simpósio (O Banquete), escrito por volta de 380 a.C., que narra o simpósio realizado na
casa do poeta Agatão, por ocasião de sua primeira vitória em uma competição teatral
(Dionísia), em 416 a.C., que teve Sócrates como principal conviva.
Os outros
simposiastas foram Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, além, naturalmente, do
anfitrião Agatão.
A estrutura do simpósio
Uma vez que Agatão e seus convivas tinham bebido em excesso na noite
anterior, na comemoração de sua vitória na competição teatral de Dionísia, estavam
todos muito indispostos. Pausânias propõe, então,
que eles não bebessem, mas
conversassem, discutissem ou que cada um apresentasse algo diferente. Todos
aceitaram essa proposta, Erixímaco, então, sugere que todos fizessem elogios a Eros.
Os discursos do simpósio
Fedro (o retórico)
175
O primeiro a discursar sobre o tema foi Fedro, que começou seu discurso
dizendo que Eros era uma divindade poderosa e admirável, tanto entre os homens
como entre os deuses, por várias razões, mas, antes de tudo, pelo nascimento. Fedro
condena os poetas que têm por missão cantar hinos aos deuses, mas se esquecem de
Eros. Com o objetivo de elogiar Eros, Fedro diz que esse é o deus mais antigo, mais
respeitável e o mais capaz de levar o homem à posse das virtudes e da felicidade,
nesta vida e depois da morte.
Pausânias (o legislador)
Pausânias, o segundo a discursar, censura a falta de precisão do discurso de
Fedro e tenta uma definição concreta para Eros. Para ele, existem dois tipos de Eros:
um vulgar e repudiável, e outro, uma força educadora.
O Eros usual e corrente, o
instinto irrefletido e vulgar, é vil e repudiável, porque tende à mera satisfação dos
apetites sensuais; em contrapartida, o outro é de origem divina e impulsiona o homem
a servir ao verdadeiro bem e a buscar a perfeição do amado. Como legislador,
compara as leis e as normas referentes a assuntos amorosos de Atenas e de outras
cidades.
Erixímaco (o médico)
O médico Erixímaco, após dar conselhos médicos a Aristófanes, para acabar
com o soluço que o acometia, inicia seu discurso. Segundo ele, o amor não exerce
influência apenas nas almas, mas dá, ainda, harmonia ao corpo.
O discurso de Erixímaco ultrapassa o homem e atinge a natureza. Na visão
naturalista de médico, apresenta Eros como um deus poderoso, princípio e devir de
todo o físico, "como potência criadora daquele amor primogênito que tudo anima e
penetra, com o seu ritmo periódico de pleno e de vazio." (JAEGER, 2001, p. 730). Para
ele, há um Eros bom e um ruim. É o Eros bom que promove o bem-estar e a harmonia,
estando em todas as esferas do cosmo e das artes humanas. Diz que o homem deve se
consentir o prazer, mas não deve se deixar corromper por ele.
176
Aristófanes (o poeta cômico)
O próximo a falar é Aristófanes, que inicia seu discurso dizendo que sua forma
de discursar será diferente. Denuncia a insensibilidade dos homens para com o poder
milagroso de Eros, e sua consequente impiedade para com um deus tão amigo.
Segundo ele, para conhecer esse poder, é preciso antes conhecer a história da
natureza humana, passando então a narrar o mito da nossa unidade primitiva e
posterior mutilação. Segundo Aristófanes, havia inicialmente três gêneros de seres
humanos, havia o gênero masculino e o feminino, que eram duplos de si mesmos, e
ainda o gênero masculino/feminino, que era chamado de andrógino. Por terem
ofendido os deuses, como vingança os deuses cortaram-nos ao meio. Os seres que
resultaram da cisão do andrógino, sejam homens ou mulheres, procuram o seu
contrário. Isto explica o amor heterossexual. E aqueles que foram o corte do feminino
e do masculino procuram se unir ao seu igual, o que explica o amor homossexual.
Quando estas metades se encontram, sentem as mais extraordinárias sensações,
intimidade e amor, a ponto de não quererem mais se separar, e sentem a vontade de
se fundirem novamente em um só. O amor para Aristófanes é, portanto, o desejo e a
procura da metade perdida por causa da nossa injustiça contra os deuses.
Terminado Aristófanes, Agatão e Sócrates começam a discutir para saber quem
iria falar primeiro. Sócrates não perde a oportunidade para lançar sua ironia: diz-se
numa posição temerosa, a de falar sobre o amor depois do belo discurso que
provavelmente Agatão proferirá. Fedro interfere e decide que Agatão deve ser o
próximo.
Agatão, anfitrião do simpósio (o dramaturgo)
Diferentemente dos oradores que o precederam, diz não se propor a valorizar o
bem que Eros faz ao homem, mas sim a elogiar o próprio deus e a sua essência, e
apresentou uma longa lista de virtudes atribuídas a Eros. Para ele, Eros é o deus mais
bem-aventurado, o mais belo e melhor. Na descrição de Agatão, Eros é jovem, fino e
delicado, e só mora em locais floridos e perfumados. Eros não se sujeita à coação, pois
177
o seu reino é o da vontade pura e livre. Possui todas as virtudes: a justiça, a prudência,
a bravura e a sabedoria. É um grande poeta e ensina os outros a sê-lo. Desde que Eros
entrou no Olimpo, o trono dos deuses passou de terrível a belo.
Sócrates (o filósofo)
Finalmente chegaa hora de Sócrates discursar, momento ansiosamente
esperado por todos. Ele diz que, sendo o Amor, amor de algo, esse algo é por ele
certamente desejado. Mas este objeto do amor só pode ser desejado quando ele falta
e não quando se o possui, pois ninguém deseja aquilo de que não precisa: quem deseja,
deseja aquilo de que é carente; se não for carente de algo, não deseja esse algo.
Sócrates, em sua argumentação, faz uso do mito de Diotima. Ele havia, certa
ocasião, pedido à profetisa Diotima de Mantinea que o instruísse sobre Eros. Isso
revela que o discurso de Sócrates aparece não como uma sabedoria própria, mas como
uma verdade que ele desvelou. De acordo com esse mito, Eros é filho de Poros
(Recurso) e de Penia (Pobreza). Isso coloca Eros em uma posição intermediária: ele não
é nem feio e nem belo, nem participa da bem-aventurança, característica essencial da
divindade. Eros é um ser duplo, herdado da diferença de seus pais, o que o coloca
numa posição intermediária. Eros teria a natureza da falta justamente por ser filho de
Recurso e Pobreza. O Eros socrático é o anseio, de quem se sabe imperfeito, por se
formar espiritualmente. É o que Platão entende por filosofia: a aspiração de conseguir
modelar dentro do homem o verdadeiro Homem.
O simpósio encerra com a chegada de Alcibíades e seu bando: todos bêbados.
Alcibíades põe fim aos louvores a Eros e inicia elogios a Sócrates.
Alcibíades (político e estrategista)
Com o encerramento das honrarias a Eros, Alcibíades inicia seu encômio a
Sócrates, que encarna o próprio Eros, ou seja, encarna a filosofia. Além dos louvores
ao mestre, Alcibíades declara seu grande amor por Sócrates: um jovem de beleza
exuberante tece elogios e anuncia o seu amor (philia) a um velho desfeito como
178
Sócrates. Insere-se aí a valorização da filosofia e um novo valor: a beleza interior é
superior à beleza exterior, perecível.
O Simpósio (O texto)
Em relação ao texto deste simpósio, cumpre primeiramente notar que ele
revela a importância da tradição oral e da memória na época. Na introdução, pode-se
verificar que Platão ouviu a narrativa sobre o simpósio à quarta mão. A versão de
Platão foi uma quinta. A partir daí, até chegar a nós, via tradução, é uma longa história.
Abordar uma obra através de uma tradução é sempre uma tarefa arriscada,
uma vez que a tradução pode e costuma não refletir a riqueza do original. E a questão
da fidelidade na tradução torna-se ainda mais complexa se se trata de um texto escrito
há milênios. Cumpre então tomar cuidados especiais: que pelo menos a tradução parta
de uma versão do original cuidadosamente estabelecida e que seja amplamente
reconhecida como uma boa tradução. Para esta análise, valho-me da tradução para o
Português de José Cavalcanti de Souza, feita a partir de dois textos: o texto
estabelecido por J. Burnett, da Biblioteca Oxoniensis (Oxford) e o texto estabelecido
por L. Robin, da Coleção Les Belles Lettres. Em alguns casos recorri à tradução francesa
de Luc Brisson e à inglesa de Benjamin Jowett.
Esse diálogo, como os demais diálogos de Platão, e talvez mais que os outros,
não é o que se considera hoje propriamente um diálogo numa conversação autêntica.
Pelo contrário, embora se possa dizer que cada um dos discursos dialoga com os
outros, cada um deles é uma oração completa em forma monológica. Há algumas
possibilidades de leitura desse diálogo, que menciono resumidamente.
Pode-se considerá-lo um drama: uma comédia em três atos, com uma
introdução, dois interlúdios e um epílogo. 1
Na introdução, faz-se a contextualização e a encenação, por Apolodoro, que se
estende até a chegada de Sócrates e a decisão de se fazer uma disputa de discursos
sobre o amor. A ação principal consiste de três atos: Fedro versus Pausânias; Erixímaco
e susàá ist fa esàeàágat oà e susà“
ates,àsepa adosàpo àdoisài te lúdiosà
1
i osà−à
Essa leitura, de autoria anônima, encontrei-a na internet: http://condor.depaul.edu/ds acesso em
04/04/2011
179
o soluço de Aristófanes, e as recomendações médicas de Erixímaco, e o embate entre
Ágatão e Sócrates. O epílogo teria início com a chegada de Alcibíades e iria até o fim
de sua fala.
Justifica-se entender esse diálogo como comédia, se se considerar a relação
existente entre as duplas:
Fedro versus Pausânias
Fedro aspirava a ser um poeta trágico e ansiava por ser admitido no pequeno
círculo de artistas aristocratas atenienses, do qual Agatão era líder. Era, portanto, rival
deà Paus ias,à oà e t oà a a teà deà ágat oà −à a
osà osà o ado esà isa a à i p essionar
Agatão em uma competição que envolvia oratória e sexo.
Erixímaco versus Aristófanes
Outro índice de comicidade é o par Erixímaco, ostentando seu jargão médico e
seu conhecimento da filosofia de Heráclito, e Aristófanes, o poeta cômico, que gostava
de criticar as pomposidades.
Agatão versus Sócrates
Temos também a comicidade do par Agatão versus Sócrates. O narcisista e
elegantíssimo Agatão, contrastando com Sócrates, extremamente simples e fora de
moda.
Além dessa leitura dramática, focada no conflito das personalidades dos
simposiastas, costuma-se entender o Simpósio como uma pura competição retórica,
em que cada fala pode ser julgada por seu estilo e conteúdo e como uma reflexão
moral sobre a pessoa do orador.
De fato, em todos esses discursos, em uns mais e em outros menos,
encontram-se inúmeras evidências da retórica, sejam quantoà aoà estiloà l is à −à s oà
todos vazados como monólogos e neles sobejam lugares-comuns, paradoxos,
po
ios,à pa alelis osà e age ados;à seja à
180
ua toà à i e ç oà h u esis à −à aà
recorrência do uso da argumentação retórica por meio de entimemas (a dedução
retórica) e, principalmente, a argumentação pelo exemplo (a indução retórica),
valendo-se sempre das narrativas míticas para a persuasão do auditório, apelando,
portanto, pelo lógos retórico. Também quanto à disposição (táxis), encontram-se
alguns índices da retórica nos discursos. É recorrente também o apelo pelo páthos,
para sensibilizar o auditório, no caso, constituído pelos demais simposiastas, e pelo
éthos, buscando argumentos de autoridade, geralmente grandes poetas e filósofos,
para reforçar o éthos dos oradores.
Sob essa perspectiva, uma leitura possível é que Platão quis mostrar a
superioridade do estilo retórico plano, usado por Erixímaco e, de certa forma, por
Sócrates, com a predominância de figuras de pensamento (como a imagem, a
metáfora, a alegoria, a ironia, etc.) em oposição ao estilo floreado de Agatão e
Erixímaco, impregnado de figuras de linguagem (como efeitos sonoros de ressonância
e ritmo, principalmente no discurso de Agatão), além da superioridade do irônico
sobre o hiperbólico, do científico sobre o mítico e do visionário sobre o sensual.
Constata-se que, para Platão, o apelo para os sentidos é inferior, como modo de
instrução, do que o apelo pelo intelecto.
Considerando somente as falas de Fedro, Pausânias, Aristófanes, Erixímaco e
Agatão, e mesmo a de Alcibíades, que não participou de fato do simpósio, pode-se
mesmo pensar que o objetivo de Platão tenha sido criticar o estilo (léxis) retórico de
uns e outros oradores.
Entretanto, considerando a posição assumida por Platão em relação à retórica,
não considero que essa leitura do Simpósio dê conta de tudo que Platão pretendeu
mostrar com seu texto. No meu entender, ele não quis somente mostrar a
superioridade de um estilo em relação ao outro: a leitura mais plausível do Simpósio,
no meu entender, é a de uma severa crítica à retórica.
Platão condenou a retórica. Foi seu maior adversário. Em seus diálogos,
principalmente em Górgias e em Protágoras, constata-se sua preocupação com a
atitude dos sofistas, que usavam suas habilidades oratórias para fins ilícitos, fazendo
manipulação política. Não sem razão. Os retóricos de então, à exceção de Isócrates,
grande orador que desenvolveu um ensino sério e eficiente da retórica, davam mais
atenção a métodos escusos de persuasão: eles ensinavam como difamar, como
181
provocar emoções na audiência, como distrair a atenção do auditório, fazendo com
que as pessoas se esquecessem do assunto em pauta. Esse tipo de retórica levava a
que nos júris e assembleias, se deliberasse rapidamente sobre os assuntos tratados,
deixando-se todos renderem pela lábia dos litigantes.
No Simpósio, mutatis mutandis, percebe-se o uso da retórica para fins alheios à
proposta inicial de se falar sobre Eros. Cada um dos oradores usou a retórica para
outros fins: falar sobre Erosà foià u à si plesà p ete toà −à oà ueà p ete de a à foià
afirmarem-se frente ao grupo.
Em Górgias, Platão introduz a oposição entre opinião (dóxa) e saber (epistéme).
Eleàe te deà ueàaà et i aàdosàsofistasàs àle aà àpe suas oàpelaàopi i oà−à ueàpodeàse à
verdadei aàouàfalsaà−àeà u aàpeloàsa e ,à ueà àse p eà e dadei o,àu aà ezà ueà
oà
existe falso conhecimento. (PLATÃO, Górgias, p. 62-63). Assim, segundo Platão, para
cada assunto, existe uma verdade universal e absoluta, que é desconsiderada pela
retórica. Para Platão, a retórica lida preferencialmente com o superficial: não dá conta
de cuidar de matérias de substância, verdade, ou razão, como consideradas na religião,
na dialética ou na filosofia.
Como se pode constatar, os discursos dos cinco primeiro oradores se apoiam na
opinião (dóxa) que eles têm sobre o amor: não há uma preocupação com a verdade
(epistéme). Para esses oradores o que importa é apresentarem-se da melhor maneira,
construindo um éthos de sabedoria, de grande oradores, não apresentando
argumentos além de opiniões e apelando pelo páthos, para persuadir sua audiência.
Para Platão, a preocupação retórica com a audiência contrasta com o discurso
filosófico, que prefere orientar-se para a verdade (alethéia) mais do que para a opinião
(dóxa) do público. (Platão, Górgias). Platão, portanto, só poderia visar a uma crítica aos
discursos desses oradores.
O discurso de Sócrates, o último, o mais extenso e o mais importante, que
Platão expressou nos moldes do chamado método socrático, se prestou, no meu
entender para mostrar o que é um discurso de qualidade, como se faz a construção do
conhecimento.
Sócrates, antes de iniciar sua fala, diz, ironicamente, sentir-se embaraçado por
te àdeàfala àdepoisàdeàágat o,à ...àdepoisàdeàp ofe idoàu àt oà eloàeà olo idoàdis u so. àà
Depois diz que, por ingenuidade, entendeu que todos diriam a verdade sobre o amor.
182
E não foi isso o que ocorreu: não houve preocupação com a verdade, todos,
retoricamente, só se preocuparam em falar o mais belamente possível.
No seu discurso, Sócrates, diferentemente dos monólogos retóricos, usou sua
técnica dialógica de perguntas e respostas. Assim, foi examinando a fala de Agatão,
com a colaboração dele e, ironicamente, mas de forma polida, foi desconstruindo todo
o seu discurso, pegando Agatão em contradição e levando-o a admitir, com humildade,
sua ignorância.
A partir daí, num segundo momento de sua maiêutica, conduziu seus
interlocutores a uma nova perspectiva acerca do tema amor. Sócrates, que não se
julga aàdo oàdaà e dade,à “ àseià ueà adaàsei àap ese touàoàdi logoà ueàte eà o àaà
sacerdotisa Diotima de Mantinea sobre Eros e mais uma vez deu um exemplo de como
se adquire conhecimento e se aproxima da verdade. Para Sócrates, a busca da verdade
é primordial e é mais fácil chegar a ela através de um inquérito sistemático do que
através da posição de uma única autoridade, pois é melhor ter duas cabeças pensantes
do que só uma.
Na fala de Sócrates, portanto, ironizando a beleza dos discursos retóricos e
apresentando a superioridade do método socrático, da dialética, Platão critica
severamente a retórica da época.
É curioso verificar, porém, que, a despeito da crítica dirigida à retórica, Platão,
que se supõe reproduzindo falas alheias, paradoxalmente faz uso também da própria
retórica para criticá-la. Não há melhor evidência do predomínio da retórica na época
do que o fato de se utilizar dela própria para a atacar, ou seja, em teoria, Platão era
contra a retórica, mas na prática a utilizou, pelo menos no diálogo Simpósio, até
mesmo em alguns momentos, quando supostamente reproduziu o discurso de
Sócrates.
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184
ORFEU LÍDER RELIGIOSO NA ARGONÁUTICA
Prof. Ms. Fábio Gerônimo Mota DinizPG doutorando FCLAR/UNESP
Introdução
Como veículo terreno da voz das Musas, o aedo grego no período arcaico se
assemelha ao sacerdote, por ambos serem propiciadores de rituais onde se encenam
eventos que refundam um momento mítico fundamental por intermédio de uma
intervenção divina. Quando o aedo canta os heróis de antigamente ele está repetindo
uma tradição antiga que reverbera nele, e ele é o responsável por manter essa
tradição viva. Da mesma forma, o sacerdote que propicia um sacrifício ou uma libação
traz para o presente um momento muito antigo, quando deuses e homens separaramse e os mortais passaram a estabelecer seu elo com os imortais através da encenação
da primeira partilha de alimentos entre Prometeu e Zeus. Quando Hesíodo narra esse
evento na Teogonia, ele apresenta-nos o sacrifício primordial, a ser re-encenado
sempre que os homens estabelecerem contato com os olímpicos.
O princípio do canto do aedo e do ritual de um sacerdote religioso é o mesmo:
o que Mircea Eliade (1962:1992, p. 52-53) designa como imitatio dei, ou seja, uma
rep oduç oà dasà aç esà di i asà o oà odelosà doà o po ta e toà hu a o,à poisà Oà
homem só se torna verdadeiro homem conformando se ao ensinamento dos mitos,
i ita doàosàdeuses.
Nesse contexto, Orfeu é um personagem destacável por justamente atuar no
âmbito mágico, místico e também por servir de paradigma do aedo antigo. A mais
antiga referência ao herói encontra-se em Íbico, poeta do século VI a.C., em um
fragmento destacado por Brandão (1990, p. 26).
Seu importante papel de aedo é destacado já por Píndaro (Pítica IV, 313-315),
que o chama de pai dos aedos1 (ἀοι ᾶ à α ή .à ál
à disso,à seuà a te à
sti oà à
atestado pelo mesmo autor ao afirmar que o próprio Apolo o enviara para auxiliar a
expedição de Jasão e os argonautas (Pít. IV, 176-177): ἐ à Ἀ ό
1
οςà ὲ φο
ι ὰςà
Apesar disso, seu nome não aparece nem em Homero, nem em Hesíodo, tidos como os aedos patronos
da poesia épica.
185
ἀοι ᾶ à α ὴ /ἔ ο
,à ὐαί
ος,à Ὀ φ ύς;à Deàápoloà oà to ado à deà li a/ e ,à paiàdosà
aedos,à e o adoàO feu .
Devido ao seu caráter místico, Orfeu esteve sempre ligado aos chamados cultos
de mistério da Grécia antiga, sendo figura central do orfismo, movimento que tinha
entre seus princípios as noções de reencarnação e origem divina da alma – conceitos
que influenciaram desde os pitagóricos até Platão. O orfismo foi uma das mais fortes
correntes religiosas a surgirem na Grécia antiga, e que perdurou no imaginário além da
época antiga. Atribui-se muitas vezes ao mito mais famoso de Orfeu – a ida ao mundo
inferior para resgatar a amada Eurídice – a origem desse culto, pois a viagem em si
teria um caráter iniciático, trazendo-lhe a sabedoria sobre a outra vida2.
Mas há outro mito do qual Orfeu toma parte, que é de grande importância para
compreendermos esse personagem: Orfeu também é participante ativo da viagem dos
argonautas em busca do velocino de ouro. E uma das mais importantes fontes para
esse mito é o poema de Apolônio de Rodes, Argonáutica.
Apesar de não ser um herói intimamente ligado ao belicismo (GUTHRIE/1956,
p.52), ele é convocado por Jasão para integrar a nau junto a outros diversos heróis
importantes, como Perseu, Heracles, Castor e Polideuces. Mas mais notável que isso,
Orfeu divide espaço com outra figura mística importante: Medeia. As práticas
realizadas por Medeia, porém, se distanciam das de Orfeu, pois envolvem a invocação
deà fo çasàest a has ,à o oàoàpode àdaàdeusaà t
i aàH ate,àoà ueàa ed onta até os
próprios argonautas.
Fundamental é estabelecer aqui, a partir do levantado acima, os possíveis
caminhos de análise da participação dos agentes mágicos Orfeu e Medeia na
Argonáutica, bem como definir o que se entende por magia em ambos os contextos, e
qual a abrangência desse conceito para cada personagem. Mas, para perscrutar tal
abordagem, a relação inicial fundamental é a que se estabelece entre a natureza da
ação mágica desses personagens com o âmbito religioso de sua atuação. Ambos, Orfeu
e Medeia, são representantes religiosos junto aos seus, respondendo por práticas que
2
Tringali (1990, 16) observa que as viagens de outros personagens ao mundo inferior tem também esse
caráter, como a viagem de Odisseu no canto XI da Odisseia, a viagem de Enéias no canto VI da Eneida e
até na viagem ao inferno na Divina Comédia de Dante. Além disso, Baco, o deus cultuado pelo orfismo,
também foi ao mundo inferior em busca de sua mãe, Sêmele.
186
são dignas de respeito, admiração, encanto e/ou espanto. Porém, a oposição
ritualística se dá tanto na matéria quanto na filiação de seus ritos.
Telxis e Techne
Orfeu é definido assim quando da sua chegada à nau Argo (I, 23-34):
Π ῶά
àὈ φῆοςà
σώ θα,à ό àῥά ο ᾽ αὐ ὴ
Κα ιό àΘ ήι ιàφα ί αιà ὐ θ ῖσα
Οἰά ῳ σ ο ιῆςàΠι
ί οςàἄ ιà έσθαι
25
αὐ ὰ à ό ᾽ ἐ έ ο σι àἀ ι έαςàοὔ σιà έ ας
θέ αιàἀοι ά àἐ ο ῇ ο α ῶ à àῥέ θ α.à
φ οὶ ᾽ ἀ ιά ς,à ί ςàἔ ιàσή α αà ο ῆς,
ἀ ῆςàΘ ι ί ςàΖώ ςàἔ ιà
θό σαι
ἑ ί ςàσ ι ό σι àἐ ή ι οι,àἃςàὅ ᾽ ἐ ι ὸ
30
θ ο έ αςàφό ι ιà α ή α àΠι ί θ .
Ὀ φέαà ὲ à ὴ οῖο àἑῶ àἐ α
ὸ àἀέθ
Αἰσο ί ςà ί
οςàἐφ οσύ ῃσιà ιθήσας
έ α ο,àΠι ίῃ Βισ
ί ιà οι α έο α.
Primeiramente de Orfeu nos lembremos, que em outro tempo
a própria Calíope, conta-se, com o trácio Éagro
deitou-se próximo ao alto da Pimpléia, dando à luz.
25
Além disso, contam que as inflexíveis rochas sobre as montanhas
e o curso dos rios podia encantar com os sons das canções.
Os carvalhos silvestres são sinais ainda daquela melodia,
eles, sobre a costa trácia de Zona, florescentes,
alinham-se juntos, em ordem; eles que,
encantados pela lira, trouxe do alto da Piéria.
Tal, pois, Orfeu, que como ajudante em seus trabalhos
o Esonida, obediente às ordens de Quíron,
acolheu, o regente da Piéria Bistonida.
30
No trecho acima, o aedo apresenta o poder de Orfeu de encantar a natureza,
subjugá-la com sua música. Ele utiliza-se de sua melodia para organizar o conjunto de
árvores na Trácia, bem como é capaz de encantar rochas e rios. Esse poder mágico de
Orfeu é delimitado pela utilização de palavras com o radical θ
-, que compreendem
o domínio do encantamento e da sedução através da música. Esse poder está
i t i se a e teà ligadoà à oç oàe p essaàpelaàpala aà e a ta e to à e à po tugu s,à
se levarmos em conta o efeito causado pela música de Orfeu sobre seus companheiros
(I, 512-518):
187
῀Ἠ, αὶὁ ὲ φό ι ασὺ ἀ β οσίῃσ έθ αὐ ῇ.
οὶ ᾽ ἄ ο ο à ή α οςàἔ ιà ού ο οà ά
α
ά ςàὁ ῶςàὀ θοῖσι àἐ ᾽ οὔασι àἠ
έο ς
θ ῷ:à οῖό àσφι àἐ έ ι àθέ
ο àἀοι ῆς.
οὐ ᾽ ἐ ὶ ὴ à έ ι αà ασσά οιàΔιὶ οιβάς,
ἣ θέ ις,àἑσ ῶ ςàἐ ὶ ώσσῃσιà έο ο
αἰθο έ αις,àὕ ο à ὲ ιὰ έφαςàἐ ώο ο.
515
Disse, e deteve a lira com sua voz imortal.
E eles, pois tendo parado, ainda ávidos inclinavam as cabeças
todos juntos em silêncio, com os ouvidos atentos, cativados
pelo fascínio: tal foi o encantamento do canto que os envolveu.
515
Não muito tempo depois fizeram libações para Zeus,
como se deve, eles em pé as línguas mergulharam
no fogo, e cortejaram o sono pela escuridão.
Goldhill (1991, p.60) observa que esse termo utilizado para descrever o dom do
argonauta, ligado a thelxis Cla e/
,à p.
,à
à utilizadoà u aà a iedadeà deà
o te tos,à asàe àpa ti ula àpa aàdes e e àaàseduç oà e alàeàse ual .àN oào sta te,à
o papel de thelxis no contexto religioso envolve a própria potência do canto como algo
advindo de um contexto divino. Haja vista a relação entre Orfeu e Apolo, e ainda mais
do próprio poder das Musas sobre os mortais, por intermédio do canto. Na 4ª Ode
Neméia de Píndaro encontramos um testemunho desse poder (Nem. IV, 1-8):
ἄ ισ οςà ὐφ οσύ αà ό
à
ι έ
ἰα ός:àαἱ ὲ σοφαὶ
οισᾶ àθύ α ςàἀοι αὶ θέλ α ι àἁ ό αι.
οὐ ὲ θ
ὸ àὕ
à όσο à à α θα ὰ έ ι
ῖα,à όσσο à ὐ ο ίαàφό ι ιàσ άο ος.
5
ῥῆ αà ᾽ ἑ
ά
à ο ιώ ο àβιο ύ ι,
ὅ ιà àσὺ à α ί
àύ ᾳ
ῶσσαàφ ὸςàἐ έ οιàβαθ ίας.
Alegria, para as penas vencidas, é o melhor
médico: as hábeis
filhas das Musas, as canções, encantam com seu toque.
nem a cálida água molha tão suave
os membros, quanto o louvor que acompanha a lira.
5
A palavra vive mais que os feitos,
se, por benefício das Graças,
a língua a tira do fundo do coração.
188
Píndaro diz que a alegria (ἄ ισ ος) é o melhor médico para as dificuldades3, e
que a canção é o veículo pelo qual as Musas realizam esse encantamento. O
encantamento das canções, assim, remedia o sofrimento infligido como consequência
de duras provas vencidas.
J àMedeia,à o oàafi
f
aàá go,à à ο
φά
α ο à III,à
;àIV,à
à aàdeà uitosà
a os ,à ueà esseà o te toà o siste no seu domínio sobre várias ervas, remédios
ou venenos, como uma curandeira. Quando a descreve para os argonautas, ele
ressalta as características de sua magia, bem como sua ligação com a deusa Hécate (III,
528-533):
ού à ιςà ά οισι àἐ ι έφ ᾽ Αἰή αο,
ὴ àἙ ά à
ία αàθ ὰ ά àτεχ ήσασθαι
φά α ᾽, ὅσ᾽ ἤ ι όςà àφύ ιà αὶ ή ο àὕ
,à
οῖσιà αὶ ἀ α ά οιοà ὸςà ι ίσσ ᾽ ἀ ή,
αὶ ο α οὺςàἵσ σι àἄφα à α ι ὰ ῥέο ας,
ἄσ αà à αὶ ή ςàἱ ῆςàἐ έ σ à
ύθο ς.
530
Há uma jovem criada no palácio de Eetes,
4
a quem Hécate ensinou como preparar habilmente
poções, do quanto produz a terra e a água abundante,
e acalma o hálito do incansável fogo,
também interrompe a ruidosa corrente dos rios,
atrela os astros e os caminhos da sagrada lua
530
Clare (2002, p.245-246) analisa a relação entre os dois magos como uma
oposição entre os poderes do caos (Medeia) e da ordem (Orfeu). E é esse poder, que
Medeia ensina a Jasão para que ele possa suplantar os desafios impostos por seu pai, o
Rei Eetes. Mas esse poder é espantoso, assustando o herói (III, 1221-1224):
Αἰσο ί
à ᾽ ἤ οιà ὲ àἕ à έος,àἀ ά ι àοὐ ᾽ ὧς
ἐ ο α ι ό ο à ό ςàἔ φ ο ,àὄφ ᾽ ἑ ά οισι
ί οà ιώ :àἤ à ὲ φό ςà ιφό οςàὕ
θ
Κα άσο àἠ ι ὴςàἨὼςàβά àἀ έ ο σα.
O medo então tomou o Esonida, mas ele nem mesmo
olhou para trás enquanto seus pés o levavam, e com seus companheiros
uniu-se voltando; já a luz por cima do nevado
Cáucaso, a Aurora lançou matutina surgindo.
3
É o mesmo argumento de Hesíodo, na Teogonia, 98-103, quando diz que o canto, dom das deusas,
apaga da memória os pesares no coração dos homens.
4
A tradução de
ία α po à ha il e te à p e à alia à oà se tidoà doà adjeti oà aoà daà fo aà e alà
ήσασθαι, o que salienta a techne como uma arte ensinada, como uma habilidade em oposição a
algo inato.
189
Ambas as cenas apresentadas acontecem em contextos ritualísticos, onde as
especialidades de Orfeu e Medeia ficam bem claras do ponto de vista de sua realização.
Enquanto o argonauta entoa uma canção cosmogônica, que acompanha a seguir
libações em honra a Zeus, o ritual que Jasão pratica pelos ensinamentos de Medeia
acompanha a aparição da Hécate, aparição assustadora e violenta.
São, portanto, duas instâncias mágicas em oposição dentro da Argonáutica.
Para uma melhor definição de um desses magos, Orfeu, faz-se necessário elucidar as
características de ambos os caminhos mágicos:
CAMINHOS MÁGICOS
(i) a thelxis (encantamento)
Representa
nte
(ii) techne (técnica)
- Orfeu;
- Medeia;
- poder inato, ligado à sua
origem;
- o poder é ensinado pela deusa e
pode ser passado adiante
- poder ligado a um deus
Olímpico;
- poder ligado a uma deusa
ctônica;
- Apolo simboliza o sol, a luz e a
ordem;
- Hécate simboliza a escuridão, o
caos e a violência;
Característic
as
- encantar o curso dos rios,
organizar árvores, mover a
natureza (rochas) [ordem e
movimento];
- acalmar o fogo, interromper o
curso de rios, e astros [caos e
estático];
Instrumento
- música.
- fármacos.
Origem
Divindade
Aqui, vemos uma oposição em vários níveis, seja da origem do poder dos
personagens, seja pela divindade evocada por ambos ou ainda pelas características
funcionais e instrumentos utilizados por eles em suas ações mágicas. Esses efeitos
encaixam, por exemplo, na divisão que Durand (1997, p. 58) fará dos regimes da
imaginário, diurno e noturno:
Oà egi eà diu o tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das
armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais de elevação e
da purificação; o regime noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e
190
cíclica, a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os
valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a
segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da
indústria téxtil, os símbolos naturais e artificiais do retorno, os mitos e os
dramas astrobiológicos..
A partir dessa leitura, podemos observar que o Regime diurno, que responde
por Orfeu, predomina, de tal modo, nos dois primeiros cantos da Argonáutica,
momento em que ele assume a postura de líder religioso da expedição, ladeando com
Jasão o comando da nau. A divisão da liderança se dá pela natureza da divindade
patrocinadora da viagem, Apolo, que não apenas é a origem do domíno mágico de
Orfeu, mas corresponde a um parâmetro de comparação constante para Jasão, pela
sua beleza, ferramenta que, junto a sua lábia, o levará a conquistar a ajuda da feiticeira
Medeia na viagem. A apóstrofe ao deus Apolo no primeiro verso da Argonáutica,
delimita a atuação do deus, sendo a origem da viagem seu oráculo. Para Houghton
(1987, p. 82), Apolo simboliza o poder intelectual5. A autora levanta duas razões para
essa apóstrofe: (i) o oráculo de Apolo que impele Pélias a enviar Jasão em busca do
eloà eà ii à oà fatoà deà se à oà deusà pate o à doà he i.à “egu doà aà auto a,à eleà à oà jo e à
varão olímpico perfeito, não servindo apenas de exemplo para Jasão, mas para todos
que almejam essa juventude.
Considerações finais
Jasão e Orfeu, dessa forma, como duas faces do deus Apolo, trazem as suas
características: a beleza, a liderança, a magia e a música. E considerando que o poema
tem seu princípio em Apolo, levando em conta a ambiguidade também no vocábulo
(ἀ ό
ος ,àte osàa àaà az oàdaàpoesiaàdeàápol
io,àseuàp i
pio.
De tal modo o líder religioso que estabelece a ligação entre esse deus e os
ho e sà daà e pediç o,à O feuà à su stitu do à po à Medeiaà oà poe a,à justa e teà e à
sua metade, no canto III, onde seu nome nem sequer é mencionado. A instância diurna
da telxis dá lugar à instância noturna da techne, com implicações diversas para o futuro
da expedição e de Jasão. Mas, ao identificarmos seu oposto, Medeia, e a importância
5
Ele é o deus do canto, ligado às artes poéticas e tutor de poetas, como os poetas do período
helenístico o vêem (Werner, 2005, p.80).
191
da presença de Orfeu nesses dois primeiros cantos, já trouxemos à baila considerações
suficientes sobre sua função religiosa no que tange a atuação da instância do
encantamento na Argonáutica. As implicações disso em sua ausência no canto III e da
convivência das duas instâncias no canto IV não são matérias do presente artigo, mas
são portas abertas pela própria estrutura narrativa do poema épico, que merecem
também investigação subsequente e pormenorizada.
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193
CELEBRAÇÕES DE FAMÍLIA NA ANTIGUIDADE: O
CASAMENTO NA CONCEPÇÃO ROMANA
João Carlos Furlani1 (UFES)
Introdução
Ao estudar o Mundo Antigo, muitos pesquisadores, na tentativa de não cair em
anacronismos, acabam por criar uma barreira que separa firmemente a Antiguidade do
Medievo, assim como da Modernidade e Contemporaneidade. Desta forma, agem
como se estivessem estudando universos estanques, desconexos no tempo e espaço.
Tratando-se de Roma, no entanto, não há como entendermos, de modo
comparativo, todos os processos ocorridos em uma época tão distante, o que poderia
nos conduzir a analogias extremas. Em todo caso, faz-se necessário um estudo da
Antiguidade mais aprofundado a fim de conhecermos parte de uma herança cultural
que vem se perpetuando e se transformando até nossos dias, como um contraponto
para analisarmos certas características do nosso mundo e da posição que ocupamos
nele (SILVA, 2006, p. 13).
Trataremos, aqui, de uma das celebrações que hoje servem de ponto de partida
ou de base para a formação da estrutura familiar: o casamento.
A palavra matrimonium,à aizà lati aà deà asa e to à eà
at i
io ,à defi iaà aà
função principal da instituição, destinada, principalmente, à geração de filhos legítimos
para serem herdeiros dos pais (Dionísio, Ant. Rom., p. 25), como expressão do
pensamento romano no qual cidadãos devem produzir novos cidadãos (TREGGIARI,
1991). Entretanto, isso não quer dizer que o casamento não pudesse ter outras
finalidades, como ser utilizado para forjar alianças políticas ou firmar acordos
comerciais.2
1
Membro do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (LEIR) e do grupo de pesquisa em História
de Roma da Universidade Federal do Espírito Santo. atua doà aà li haà deàpes uisa:à Hist iaà so ialàdoà
Bai oàI p ioà‘o a o ,àeà oàp ojetoà Cidade, corpo e poder no Império Romano ,àsob orientação do
prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva.
2
Por exemplo, Julia, filha de Júlio César e de Cornélia Cinnila, inicialmente estava comprometida com o
político e militar romano, Marco Júnio Bruto, porém, por intervenção de seu pai, acabou casando-se
com Pompeu, o que favoreceu a formação do Primeiro Triunvirato, em 59 a.C. (JACKSON, 1968, p. 582).
194
O casamento romano em uma perspectiva histórica
O que entendemos por casamento romano durante o período republicano e
imperial diferencia-se, e bastante, do que tinha sido na Roma arcaica, pois sabemos
que nos tempos mais antigos não havia necessidade de uma cerimônia religiosa formal
ou de algum ato jurídico para que o casamento fosse legalmente reconhecido. Bastava
a convivência entre um homem e uma mulher para que os mesmos fossem
considerados casados. A exigência legal para o matrimônio apenas se desenvolveu
durante a República, sendo modificada ao longo do Império (JACKSON, 1968, p. 594).
Até o ano de 445 a.C., só poderia haver casamento legal entre os patrícios, mas
essa situação sofreu alteração após a instituição da Lei Canuleia, que permitiu
oficialmente a união entre patrícios e plebeus. No entanto, poucos seriam os patrícios
que, à época, se casariam com plebeus.3
Já sob o governo de Augusto, primeiro imperador romano, as leis referentes ao
casamento foram alteradas ainda mais. Isso devido a uma baixa demográfica,
principalmente entre os patrícios, que, hipoteticamente, teria sido causada pela
diminuição da fertilidade derivada do desejo dos casais em não ter mais do que dois
filhos a fim de evitar o fracionamento dos bens, pois para a manutenção do status
social, a fortuna pessoal era determinante. Diante disso, Augusto percebeu que algo
deveria ser feito; então, visando a promover uma reforma moral entre os romanos,
promulgou uma série de leis, chamadas de Leis Julianas. Dentre elas, destacamos duas:
a primeira em 18 a.C., a Lex Iulia de Maritandis Ordinibus e a segunda em 17 a.C., a Lex
Iulia de Adulteriis Coercendis. Mas no que consistiam tais leis?
Primeiramente, a Lex Iulia de Maritandis Ordinibus tinha como objetivo impedir
o casamento entre pessoas de status superior, como os senadores, com libertos e
destes últimos com os ditos infames, ou seja, pessoas consideradas de categoria
inferior, como proxenetas, atores, gladiadores e prostitutas. A lei ainda incentivava o
casamento consecutivo dos viúvos e divorciados, concedendo incentivos àqueles que
possuíssem três filhos ou mais e punindo com restrições na capacidade de herdar
3
No latim Lex Canuleia. Autorizava o casamento entre patrícios e plebeus. Mas, na prática só os plebeus
mais abastados conseguiam casar-se com patrícios.
195
aqueles que não procriassem. Dentre os incentivos concedidos encontrava-se, por
exemplo, prioridade nas competições por cargos públicos.
Já a Lex Iulia de Adulteriis Coercendis visava a combater o adultério, banindo os
adúlteros, enviando-os para ilhas diferentes, confiscando parte de suas propriedades.4
Autorizava também os pais a matarem suas filhas e os parceiros delas, se os dois
fossem flagrados em adultério na casa dos pais ou do marido, pois tais lugares eram
considerados honrosos. Porém, caso o pai viesse a matar apenas um deles, era
considerado assassino, logo, ambos os adúlteros deveriam ser mortos ou deixados
vivos. O marido, flagrando o adultério, tinha o direito de matar o parceiro que
mantinha relações sexuais com sua mulher.
Mais tarde, em 9 a.C., com o propósito de reafirmar parte das leis estabelecidas
por Augusto, foi promulgada pelos cônsules M. Papius Mutilus e Q. Poppaeus
Secundus a Lex Papia Poppaea.5
Assim como previa a grande massa de seu Direito, os romanos utilizavam
diversos critérios e condições para que o matrimônio fosse realizado e legalizado. Um
dos requisitos para a legalidade matrimonial era o conubium, definido por Ulpiano
(Frag. V.3) como sendo uxoris ducendae facultas jure, ou seja, a faculdade pela qual
um homem pode fazer de uma mulher sua esposa legítima. Porém, esta não é uma
definição em todos os âmbitos. Conubium pode ser apenas um termo que compreende
todasàasà o diç esàdeàu à asa e toàlegal.àUlpia oàas es e taà ueà [...]àosàho e sà
cidadãos romanos têm conubium com os cidadãos romanos mulheres (cives Romanae),
mas com Latinae e Peregrinae há apenas nos casos em que for permitida. Com os
escravos não há conubium" (Frag. V.3).
Dessa forma, só gozavam do conubium, a princípio, os cidadãos romanos. Os
atores e as pessoas que praticavam ações desprezadas ou mal vistas dentro de Roma,
como a prostituição, eram proibidas de se casar, embora o conubium fosse concedido
em alguns casos especiais. Entre os cidadãos romanos, adotavam-se outras restrições,
como a de não haver conubium entre irmãos, mesmo que fossem meio-irmãos, nem
4
O Próprio Augusto foi obrigado a invocar a Lex Iulia de Adulteriis Coercendis contra a própria filha, Júlia
(enviada à ilha de Pandateria) e contra sua filha mais velha (Julia, a Jovem). Tácito destaca que Augusto
foi mais rigoroso com seus próprios parentes do que era realmente necessário perante a lei (Ann., III
24).
5
Embora tenham aprovado a Lex Papia Poppaea, que consiste em incentivar o casamento, ambos não
eram casados.
196
entre pais e filhos, mesmo que o filho em questão tivesse sido adotado. Era proibido,
também, o casamento entre tio e sobrinha ou tia e sobrinho. No entanto, na família
imperial, verificamos, em alguns casos, a ruptura desta regra. Evocamos como
exemplo o caso de Cláudio, que obteve a permissão do Senado para se casar com sua
sobrinha, Agripina, em 49 (Suetônio, Vida dos Doze Césares).
Outro requisito para o casamento era a idade mínima, sendo-o relacionado à
puberdade (pubertas). Para os homens, esta idade girava em torno de 14 anos (pubes)
e para as mulheres em torno dos 12 anos (viri potens).6 Mesmo a idade para o
casamento sendo relativamente precoce, raros são os casos de homens que se
casavam antes dos 30 anos. O casamento de um homem com uma mulher com
metade da sua idade, ou idade para ser sua neta, o que hoje não é aceito com
naturalidade, era comum entre os romanos. Porém, uma mulher de idade mais
elevada, casando-se com um homem com metade da sua idade ou que acabou de
atingir a puberdade, já não era bem aceito entre eles.
Em Roma, ser desprovida de uma grande fortuna deveria ser um problema,
mas não em todos os casos, já que as mulheres, ao se casar antes de terem
completado seu desenvolvimento físico, corriam o risco de ter uma morte prematura
durante o parto ou em decorrência de complicações. As mulheres menos ricas, por sua
vez, demoravam a obter o dote necessário. Consequentemente, demoravam a casarse e diminuíam as chances de vir a falecer cedo.
Dentre os requisitos exigidos aos noivos havia algumas limitações a serem
respeitadas, como por exemplo: pessoas que tinham certas imperfeições corporais,
como eunucos, ou hormonais, não poderiam se casar, pois, embora houvessem
atingido a pubertas no decorrer do tempo fixado, esta noção incluía a capacidade física
para o ato sexual, ou seja, não poderia haver pubertas se houvesse uma incapacidade
física qualquer.
A última exigência importante para o casamento era o consentimento de
ambos, homem e mulher, e também do paterfamilias.7 Para Ulpiano a essência do
casamento era o consentimento e a autorização
6
O termo traduzido seria: ueàpode ia àsupo ta àu àho e .
O paterfamilias, também escrito como pater familias (patres familias no plural) era o chefe de uma
família romana. O termo em latim significa "pai de família"ouo "proprietário da terra da família". A
7
197
[...] tanto daqueles que vêm junto, e daqueles em poder de quem eles são.
[...] casamento não é afetado pela união sexual, mas por consentimento; e
aqueles que não tinham, a rigor, conubium, ou a facultas uxoris ducendae
jure, em outro sentido, tinham conubium em virtude do consentimento
daqueles em poder de quem eles eram, se não houvesse outro
impedimento (Dig. tit 23 1. s11-13).
Diante desse trecho, percebemos que o conubium, normalmente reconhecido
como a faculdade pela qual um homem pode fazer de uma mulher sua esposa legítima,
poderia ser obtido também por meio do consentimento, caso não houvesse mais
empecilhos ao casamento.
Qualquer união ilegal entre homens e mulheres não constituia conubium.
Sendo assim, o homem não tinha uma esposa legal e os filhos não tinham um pai
perante a lei, o que não lhes garantia o nome da família.
As sponsalia e as variações no casamento
Dentre os ritos do casamento romano, encontram-se as sponsalia, que mesmo
não sendo obrigatórias, eram muito comuns. Tratava-se de uma cerimônia celebrada,
geralmente, na casa da futura esposa, com uma reunião da família do homem e da
mulher, na qual, de acordo com Sérvio, firmavam um contrato por stipulationes e
sponsiones do marido e do pai da futura esposa, respectivamente. A moça prometida
em casamento era chamada de sponsa; e o homem que viria a ser noivo chamava-se
sponsus. As sponsalia, nesse sentido, era um acordo visando ao casamento, feito para
dar a cada um o direito de ação em caso de não cumprimento de qualquer uma das
claúsulas, sendo que a parte que cometesse a violação seria condenada por danos ao
cônjuge. Em alguns casos, o noivo presenteava a noiva; e entre os presentes
oferecidos, pelo menos durante o período do Império, havia um anel de ferro, que
posteriormente seria substituído pelo de ouro, simbolizando sua fidelidade à noiva,
sendo colocado no dedo anelar da mão esquerda desta (Macrob. Sat. VII 0,13). As
sponsalia poderiam ocorrer entre aqueles que ultrapassassem a idade de sete anos.8
forma é irregular e arcaica em Latim, preservando o término de idade genitivo em as. O paterfamilias
sempre foi um cidadão romano.
8
Idade mínima para que os pais pudessem prometer seus filhos em casamento.
198
Mas sabe-se que o regulamento de Augusto declarava que as sponsalia não seriam
válidas se o casamento não se consumasse dentro de dois anos (Suet. Augusto c.34).
Por fim, as sponsalia não eram vinculativas. Se qualquer uma das partes quisesse
renunciar ao contrato, poderia fazê-lo, dissolvendo-se também o casamento.
Em termos jurídicos, havia entre os romanos o casamento cum manus, no qual
a mulher passava da autoridade do pai ou tutor para o marido. Trata-se de uma forma
patriarcal de matrimônio, na qual a mulher não tinha nenhum tipo de direito sobre
seus bens, incluindo sua vida.9
O casamento cum manus, passou por variações, havendo pelo menos três
formas dele. A primeira e mais antiga é a farreum ou confarreatio, a mais solene
modalidade de casamento romano, tendo sido praticada pelos patrícios por longo
tempo (Gaio, I. 112). Contudo, para casarem sob a confarreatio, os noivos tinham quer
ser filhos de pessoas que também tinham sido casadas sob ela (confarreati parentes)
(Tácito, Ann. IV.16)
A confarreatio era o único rito de casamento ao qual o flamen Diales,10
representando Júpiter, e o pontifex maximus compareciam. 11 Era celebrada na
presença de dez testemunhas, com os noivos de cabeças cobertas e sentados um ao
lado do outro em bancos revestidos com pele de ovelha oferecida em sacrifício. Após,
pronunciavam-se algumas palavras e os noivos davam uma volta pelo lado direito do
altar, tomavam um pouco de sal e um bolo de espelta (panis farreus).12 Porém, com o
passar do tempo, a farreum tende a cair em desuso, sendo observada apenas por
alguns, como ressalta Gaio (I. 112).
A segunda forma de casamento cum manus era a coemptio, uma reconstituição
si
li aà doà te poà e à ueà osà ho e sà o p a a
à asà ulhe esà pa aà pode e à seà
casar (Gaio, I. 118). Sua cerimônia era feita de forma menos complexa, requerendo
9
Em certo ponto, tal situação é assemelhada à condição à dos filhos sujeitos à patria potestas.
O flamen Dialis era um alto sacerdote em representação de Júpiter, sendo um importante cargo
religioso na Roma Antiga. Quando o cargo estava vago, três pessoas descendentes de patrícios casadas
de acordo com a cerimônia do confarreatio eram nomeadas pela comitia. Um dos três era eleito
(captus) e consagrado (inaugurabatur) pelo pontifex maximus.
11
Na Roma Antiga, o termo latino pontifex maximus designava o sacerdote supremo do colégio dos
sacerdotes, a mais alta dignidade na religião romana.
12
A espelta ou trigo-vermelho (Triticum spelta) é uma espécie da família das gramíneas, próxima do
trigo. Muito consumida em partes da Europa desde a Idade do Bronze até a Idade Média, hoje é pouco
plantada, embora ainda seja cultivada em certos locais, como na Europa Central e na Itália, e tenha
encontrado um novo mercado na área de alimentos saudáveis (HOUAISS, 2009).
10
199
apenas cinco testemunhas. Na presença destas, o noivo entregava ao pai da noiva uma
moeda de prata ou bronze, que era colocada em uma balança sustentada por um
homem, o pesador (libripens) (BONFATE, 1928, p. 138).
A terceira e última forma de casamento cum manus era o per usum ou usus;
ocorria quando uma mulher tivesse coabitado com um homem de forma ininterrupta
pelo período de um ano. Porém, se a mulher, por qualquer motivo, não quisesse se
casar era só não passar três noites seguidas com o homem, o que é chamado de
trinoctio. Desta forma, a mulher continuava solteira e sob tutela do pai (Gaio, I.111).
Como já dito, ao longo da Roma Antiga, o casamento foi se transformando e
adquirindo novas concepções e modelos matrimoniais. Diante disso, observamos o
surgimento de uma segunda modalidade de casamento jurídico, já que o cum manus
caiu em desuso no final da República, abrindo lugar para o casamento sine manus
(Gaio, I.111). Este era baseado na ideia de que a mulher, mesmo casando-se,
permanecia sob a tutela de seu pai ou tutor. Diferentemente do cum manus, ela
poderia dispor dos seus bens e até receber herança. Dessa forma, em caso de divórcio,
a esposa receberia parte do dote, que antes era retido integralmente pelo marido.
Ritos e celebrações
Ao abordarmos as cerimônias matrimoniais, temos de ter em mente que,
provavelmente, a confarreatio foi a única forma de casamento em que foram
celebrados ritos religiosos; o que nos faz crer que nas outras formas realizavam-se
apenas atos civis.
Antes do casamento, os noivos cuidavam de marcarem a data mais propícia,
pois os romanos acreditavam que não era aconselhável casarem-se em certos dias do
ano, por serem nefastos ou por coincidirem com os festivais do calendário, como o das
Parentalia (Macrob. Sat. I.15). 13 Sabendo em quais datas o casamento não era
considerado propício, um sacerdote buscava saber quando seria bem-sucedido, por
13
Parentalia era um festival religioso da Roma Antiga que honrava os mortos. Era celebrado, no que
corresponde hoje, entre os dias 13 e 21 de fevereiro. Durantes os dies parentales os templos
encontravam-se fechados, era proibida a celebração de casamentos e os magistrados não utilizavam as
insígnias dos seus cargos. As famílias visitavam os túmulos de seus familiares e realizavam oferendas
(ADKINS, 1996).
200
meio de rituais que lhe diriam se o dia era fasto ou nefasto. Porém, em se tratando das
viúvas, a situação era inversa, sendo elas aconselhadas a casarem-se nos dias de
festival, de modo a não chamar a atenção (Macrob. Sat. l.c.).
Marcada a data, dava-se início aos ritos. Na véspera do casamento, a noiva
dedicava seus brinquedos aos deuses que abençoaram sua infância; abandonava a sua
toga praetexta,14 e vestia a tunica recta, que era branca e comprida (Plínio, o Velho,
História Natural, VIII, 48). Colocava o cingulum, um cinto atado com um nó especial
para a ocasião, o nodus herculeus, que só deveria ser desatado pelo marido quando o
casamento fosse confirmado.15 Usava uma franja púrpura ou adornos com fitas de
cores vivas (Juv. II.124). Seu cabelo era dividido, especialmente para o casamento, em
seis madeixas (sex crines) com a ponta de uma lança (Plut. Quest. Rom. p. 285). O véu
da noiva, chamado flammeum, era de cor amarelada brilhante, assim como seus
sapatos (Plin. H. N. XXI.8).
No dia seguinte, a casa da noiva era decorada com galhos de árvores com
folhas e flores. A noiva era levada pela pronuba, uma parteira casada apenas uma vez
e que ainda vivia co àoà a ido,à ep ese ta doàaà esposaàideal .àElaàfaziaà o à ueàoà
casal apertasse as mãos (iunctio dextrarum), e logo após, a noiva declarava: ubi seu
gaius, ego gaia (aonde você for, eu vou junto). Os noivos assinavam um registro de
casamento diante de testemunhas, davam-se as mãos e rezavam juntos para que o
matrimônio fosse honroso (FUNARI, 2003, p. 98-99).
A cerimônia, na ainda residência da futura esposa, terminava com um sacrifício
em honra aos deuses. Um carneiro era sacrificado e sua pele posta sobre duas cadeiras,
na qual os noivos sentavam-se com as cabeças cobertas (Serv. Aen. IV 0,364). Feito isso,
o casamento se consumava após palavras solenes ou uma oração. Celebrava-se, em
seguida a cena nuptialis, um banquete na qual participavam familiares e convidados,
prolongando o evento até o fim da noite. Por fim, era realizada a deductio, uma
simulação de rapto da noiva feita pelo noivo. Esta se refugiava nos braços da mãe ou
14
A toga praetexta era uma toga branca que apresentava uma banda larga de cor púrpura. Era usada
pelos rapazes que ainda não tinham tomado atoga uirillis e pelas jovens que ainda não tinham casado,
bem como pelos principais magistrados e sacerdotes.
15
Simbolizava a fertilidade dos casais, fazendo alusão a Hércules, que segundo as lendas teria tido mais
de setenta filhos.
201
de outra de pessoa que teria que entregá-la, encenando súplicas e lágrimas, de modo
que o noivo pudesse fingir que a arrancava à força da tutela de seus pais.16
Após a deductio, os noivos seguiam para a futura casa do casal, a casa do
marido. A noiva era acompanhada por três meninos, cujos pais ainda fossem vivos
(patrimi et matrimi). O primeiro ia à frente, segurando uma tocha, e os outros dois
caminhavam ao seu lado, apoiando-se em seus braços. Enquanto a procissão
transcorria, a noiva carregava a roca e o fuso, símbolos da vida doméstica (Plínio, H. N.
XVI O, 18). Nessa procissão, encontravam-se amigos e convidados do casal que
também compareceram na cerimônia na casa da noiva. Plutarco (Quest. Rom.)
menciona que durante o trajeto até a casa do noivo, carregavam-se cinco velas acesas,
que poderiam simbolizar a luz da sociedade que seguia a noiva.
Ao chegarem à nova habitação, o marido recebia a noiva, à qual oferecia fogo e
água, nos quais deveria tocar, simbolizando a purificação (Serv. Anuncio aen. 0,104 IV).
Em seguida, a esposa realizava um ritual com azeite e gordura, na qual ungia os
umbrais da porta da casa. Era então levada ao colo para dentro da casa pelos
acompanhantes ou pelo marido, para que não tropeçasse ao entrar em sua nova
residência, o que seria interpretado como um sinal funesto. A pronuba a conduzia ao
leito nupcial, onde seria consumada a união; ajudava a retirar as roupas e as jóias. O
noivo poderia então entrar, mesmo que no exterior continuasse a festa. Antes de
partir, a pronuba realizava um sacrifício e, por fim, o marido fornecia um banquete aos
convidados, encerrando a solenidade do dia (Suet. A vida dos Doze Césares, Calig. 25).
Considerações finais
Além da complexidade da instituição matrimonial romana e dos detalhes das
suas celebrações, podemos perceber, diante dos testemunhos analisados, as múltiplas
finalidades do casamento e os motivos que o levava a se consumar em Roma, tais
como: a formação de alianças políticas, a realização de acordos e atos de fidelidade; o
que não quer dizer que não havia uniões por laços afetivos. Porém, ao que parece, na
16
De acordo com a lenda, o Rapto das Sabinas é o nome pelo qual ficou conhecido o episódio em que a
primeira geração de homens romanos teria obtido esposas para si mediante o rapto das filhas das
famílias sabinas vizinhas. Sendo tal, narrado por Lívio e Plutarco (Vidas Paralelas II, 15 e 19).
202
maioria das vezes, sua finalidade era a geração de filhos legítimos, capazes de serem
herdeiros de seus pais, os cidadãos romanos.
No que tange às relações conjugais, a noção do casamento romano era a união
do masculino e do feminino, de costumes de toda uma vida tradicional, de
intercomunhão de direitos sagrados e não sagrados. O que não significa que o
matrimônio era completamente regulamentado por leis.
A consumação do casamento era dada por mútuo consentimento; permanecia
pela harmonia; e, em casos de discordância de qualquer uma das partes, quando
formalmente expressa, poderia ocorrer a ruptura da relação. Porém, mesmo
obediente ao jus civile, o casamento romano foi adquirindo novas concepções e
transformando-se ao longo do Império, perdendo sua concepção clássica. Pensando
dessa forma, imaginemos as mudanças ocorridas até nossos dias.
Mesmo com a ação do tempo, contudo, vários ritos do casamento romano
foram herdados pelo mundo ocidental e representados de diferentes formas e
maneiras. Ao serem transmitidos, muitas vezes, tiveram seu sentido alterado, sendo
apropriados para outros fins. No entanto, como exemplos de uma permanência
romana que atravessou os séculos e se perpetuou até hoje, citamos a utilização de um
anel para selar o compromisso entre os casais, as cerimônias, o emprego do véu e o
consentimento dos pais dos noivos.17 Ao que parece, o que é algo comum para nós
hoje, de certa forma, também o era para os romanos.
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205
A HERANÇA CLÁSSICA EM MAIMÔNIDES: RAZÃO, FÉ E
ARISTOTELISMO NO GUIA DOS PERPLEXOS.
Layli Oliveira Rosado (UFES)
Introdução
No período que abrange os séculos XI e XII, o mundo judaico ocidental estava
dividida entre os domínios muçulmanos e cristãos, fruto da vivência na Diáspora.1 A
vida da comunidade judaica estava em franca influência do choque com essas
sociedades. Contudo, a historiografia nos faz crer que, nesse período, o ambiente
cultural no mundo muçulmano suscitava, mesmo em meio as eventuais perseguições,
certo desenvolvimento cultural (BEN-SASSON, 1988: 611).
No mundo islâmico era presente um público numeroso e exigente, o qual
propiciava a circulação de livros e ideias. Eruditos muçulmanos realizaram traduções
de textos clássicos gregos, o que deu grande impulso ao desenvolvimento cultural da
época, colocando ao alcance das camadas letradas a ciência e a filosofia produzidas no
mundo helenístico. Como este era um momento de grande debate intelectual entre as
três religiões monoteístas, Judaísmo, Islamismo e Cristianismo, essa convivência
estimulou, também, a investigação teológica, movida pela necessidade de explicar e
justificar a superioridade de uma religião sobre as outras.
O nível educacional e cultural das comunidades judaicas do mundo muçulmano
era relativamente alto, sendo possível constatar diante da qualidade dos textos
filosóficos e do estilo utilizado nas obras dos grandes filósofos judeus da época (BENSASSON, 1988:615). Foi o período de produção de uma grande variedade de escritos,
principalmente nas áreas da compilação da halakhá,2 da filosofia, da literatura e das
ciências.3
1
A Diáspora judaica faz referência às séries de expulsões sofridas pelo povo judeu através da história,
que consequentemente geraram a formação de inúmeras comunidades fora dos domínios de Israel.
Sendo a terra de Israel compreendida pelos judeus como benção divina para a verdadeira religião.
2
A halakhá representa as regras que governam a vida religiosa judaica.
3
Nesse ponto, as mais estudadas eram a astronomia, matemática, física, medicina e metafísica.
206
Desse modo, é possível verificar certa estabilidade vivida pelo povo judeu, o
que abriu caminhos para um apego à racionalidade. Ou seja, uma procura por novas
explicações, mais racionais, para a vida e pensamento judaico. De forma que os judeus
pudessem explicar ou relacionar o passado, a sua atual situação no mundo, o Exílio,4 a
vida na Diáspora, e as perspectivas para o futuro. Portanto, as obras deste período
representam um dos pontos mais altos do pensamento judaico, evitando que
pensemos a Idade Média como um momento de decadência intelectual, visão comum
na historiografia tradicional. É em meio a esse mundo, junto a inúmeras obras e
pensadores, que podemos destacar o homem chamado Moisés ben Maimon, mais
conhecido como Maimônides.5
Maimônides
Maimônides foi um rabino medieval e estudioso da lógica aristotélica. Para
Haddad, foi um homem comum que tem suscitado imensa curiosidade, sendo
reconhecido como um dos maiores pensadores judeus. No que concerne à filosofia, foi
considerado por seus predecessores uma das maiores autoridades rabínicas póstalmúdicas. 6 É universalmente admirado e respeitado por judeus, cristãos e
muçulmanos, sendo citado, por exemplo, por São Tomás de Aquino (HADDAD, 2003:
14). Junto com a filosofia, dedicou-se também ao estudo da medicina, exercendo a
profissão de médico na sua comunidade. Produziu inúmeros tratados de medicina, os
quais possuem grande atualidade, e um dedicado estudo da astronomia.
Maimônides nasceu por volta de 1135, em Córdoba (Andaluzia). Quando ainda
era menino sua família foi exilada da Hispânia, deslocando-se por toda a região entre
1150
a
1160.
7
Interessante,
entretanto,
é
que
apesar
da
perseguição
muçulmana,Maimônides nunca guardou rancor do Islã, e sempre deixou claro em seus
4
O Exílio remonta a expulsão em massa dos judeus do Reino de Judá para a Babilônia, iniciado por volta
de 590 a.C. Durante toda a história judaica o sentimento de Exílio e suas consequências são levantadas ,
quase sempre como algo que deve ser superado e a crença de que um dia haverá o retorno para a terra
de Israel (BEN-SASSON, 1988: 629).
5
Mai
idesà àaàfo aàg egaàdeàseàe p essa à filhoàdeàMai o ,à o oà oàhe ai oàusa-se Moisés ben
Maimon.
6
Pós criação do Talmude. Sobre o Talmude ver nota 8.
7
Era um período de grande perseguição religiosa. Na Hispânia acontece a invasão dos almoades,
gerando o exílio de várias famílias judaicas para regiões de relativa tolerância.
207
escritos sua admiração pelos filósofos árabes (MAIMON, 1904). Por volta de 1160, sua
família fixa-se em Fustat, onde hoje é o Cairo. Após o falecimento de seu pai e de seu
irmão, Maimônides sofreu sérios problemas de saúde, além de ter sido alvo da
hostilidade muçulmana e de alguns círculos judaicos, principalmente do círculo
rabínico de Bagdá. Ele havia desferido severas críticas à instituição dos gueonim,8 a
qual estava desacreditada na época (HADDAD, 2003: 29). Foi nesse período que ele
passa a exercer a medicina, conseguindo grande reputação como médico. Tornou-se,
também, o guia incontestável da comunidade judaica de Fustat. Podendo, dessa
forma, exercer a proteção e favorecer o desenvolvimento cultural de sua comunidade.
Sua vida era a de um homem absorvido pela meditação filosófica e religiosa. Faleceu
em 13 de dezembro de 1204, deixando uma extensa lista de publicações em várias
áreas de conhecimento a serviço da fé e, para ele, apenas com esse intuito o estudo de
certa ciência não seria entendida como perda de tempo.
Começou seus estudos muito cedo com seu pai, em diversas áreas de
conhecimento. Estudou profundamenta a literatura talmúdica e rabínica, assim como a
filosofia grega, a astronomia, entre outras ciências. Suas primeiras obras foram o
Tratado acerca do Calendário e o Tratado de Lógica, e realizou também anotações do
Talmude.9 Contudo, foi criticado, em suma, por defender a compatibilidade entre a
razão e a fé. Maimônides pretendeu provar a universalidade da razão, realizando
releituras do Antigo Testamento, submetendo-o ao cânone aristotélico. Por séculos
i ú e osà pe sado esà ti e a à deà passa à po à seusà es itos,à eà p ati a e teà todosà osà
movimentos de renovação do Judaísmo do século XX se basearam no pensamento
ai o idia o à HáDDáD,à
:à
.
Na filosofia, Maimônides era influenciado principalmente por Aristóteles,
conhecimento este proveniente da leitura de filósofos muçulmanos, como Al Farabi,
Ibn Bajja, Avicena e Averróes. Portanto, o aristotelismo judaico teve forte mediação
8
Os gueonim são os líderes religiosos das academias judaicas da Babilônia, responsáveis pelo
ensinamento e estudo da Torá e da Lei judaica. É o plural de gaon. Basicamente, Torá é o nome dado
aos cinco primeiros livos da Bíblia Hebraica, e constituem o texto central do judaísmo. Os cinco livros
são: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
9
O Talmude é um registro das discussões rabínicas quanto a Lei, costumes e história judaica. Foi muito
criticado por ser uma obra pós-bíblica. É composto por duas partes: a Mishná, que é um compêndio
escrito da Lei Oral judaica; e a Guemará, que é, por sua vez, uma discussão da Lei Oral e de temas
expostos no Tanach. O Tanach consiste no conjunto mestre de livros sagrados, o que é o mais próximo
do que denomina-se Bíblia Judaica. O a Torá é parte do Tanach.
208
islâmica e desenvolveu-se, principalmente, nas comunidades que viviam sob domínio
a e.à Co oà afi
aà Fal el,à pa aà eleà aà filosofiaà à oà eioà eà oà a i hoà ueà o duzà à
di i dade à FáLBEL,à
:à
. Ou seja, é através da fé e do conhecimento filosófico
que o homem é capaz de ascender espiritualmente.
Maimônides produziu uma extensa produção bibliográfica, desde tratados científicos,
responsas,10comentários, até obras filosóficas. Seus três trabalhos mais célebres são o
Comentário sobre a Mishná,11 o Mishné Torá12 e o Guia dos Perplexos.13 Em uma
resumida descrição das três, Dujovne afirma ueà Apesar de serem vários assuntos
comuns às três, pode-se afirmar que as duas primeiras têm um interesse
particularmente judaico. A terceira pertence a história da filosofia universal
(DUJOVNE, s/d: 12).Entretanto, ao defender a compatibilidade entre razão e fé,
Maimônides deixou de ter boa reputação, e suas obras foram submetidas a severas
críticas e censuras (FALBEL, 1984). Fazendo com que grande parte do que produziu não
pudesse ser estudada pelos fiéis. Importante ressaltar, também, que no mundo
medieval qualquer teoria que não concordasse com a teologia tradicional era
considerada herética.
10
As responsas são cartas que respondem às questões formuladas quanto a aspectos da legislação
rabínica. De Maimônides são 464 no total, e estão relacionadas a sua atividade como estudioso do
Talmude. Maimônides foi reconhecido como um importante talmudista, ou seja, especialista no direito
rabínico.Suas responsas formam uma importante fonte sobre o seu pensamento profundo, e deixam
claro, também, o papel que ele desempenhava nas comunidades judaicas do Egito e regiões
circunvizinhas.
11
O Comentário sobre a Mishná foi a primeira grande obra de exegese talmúdica maimonidiana. A
Mishnásão as Leis Orais reveladas a Moisés, o profeta, no Sinai de acordo com a tradição bíblica, o que é
fundamental para o Judaísmo. Em sua obra, Maimônides, propôs em apresentar o conteudo da Mishná
de forma sistemática, oferecendo uma introdução ao estudo do Talmude. Queria diminuir a dificuldade
do texto, ressaltar o que deve ser pertinente em determinado enunciado, e esclarecer eventuais
contradições. Nesse trabalho, ele expõe os princípios religiosos do judaísmo, seus treze dogmas
(DUJOVNE, s/d: 13).
12
O Mishné Torá surge a partir dos seus estudos como talmudista, sua obra mestra. Uma tentativa de
fornecer um estatuto quase científico ao direito rabínico. São catorze livros divididos em seções e
capítulos, em que procura fornecer um resumo ordenado das prescrições bíblicas e talmúdicas, onde ele
as classifica e as explica. É formada de reflexões práticas e teóricas. Tinha o objetivo de tornar a Lei Oral
conhecida por todos, de forma clara e sem diferenças ou dificuldades. O livro de maior interesse
doutrinário é o primeiro, conhecido como Livro da Sabedoria. Foi alvo de profunda crítica por contrariar
as idéias tradicionalistas. Por causa do seu tamanho, o Mishné Torá está restrito aos especialistas,
apesar de ser tido como uma das maiores obras da jurisprudência rabínica (HADDAD, 2003: 66). Mishné
Toré e e euàesseà o eàpo àMai
idesàoà o side a à o oàaà epetiç oàdaàLeiàO al à MáIMON,à
.
13
O Guia dos Perplexos foi publicado no século XII, e recebeu esse nome pois, para Maimônides,
perplexo é aquele que realiza uma interpretação errônea das passagens bíblicas, movido pela
interpretação literal. Desde jovem, ele observava que muito da tradição judaica estava se perdendo. Em
seu entendimento tanto por conta da Diáspora, pela convivência com outras religiões – afirma que a
idolatria cristã estava influenciando os judeus, deixando-os cair em falsas interpretações das Escrituras,
quanto pela dificuldade dos comentários feitos pelos círculos rabínicos (MAIMON, 1904: 02).
209
Maimônides procurou romper a distância existente entre fé e razão, uma
atitude que se inicia anteriormente e tem nele o seu ápice, como é possível notar na
seguinte afirmação de Guinsburg: Oà o i e toà filos fi oà ueà seà i i iaà o à á a oà
ibn Daud e que exige uma síntese orgânica, racional, entre as doutrinas peripatéticas e
osà te tosà es itu ais,à e o t aà aà o aà deà Mai
idesà aà suaà “u aà a
i a à
(GUINSBURG, 1968: 405).
A hostilidade em torno dos escritos maimonidianos recebeu o nome de Grande
Controvérsia.14 Não nos convém, no momento, entrar em maiores detalhes sobre seus
desdobramentos, mas cabe destacar sua importância para o entendimento da história
doà pe sa e toà judeuà oà Medie o.à Co o da doà o à Mau i eà K iegel:à I po ta teà
destacar essa controvérsia, pois permitiu apreciar ao mesmo tempo o poder da
suspeição na qual é vista a filosofia, e a ambiguidade das posições defendidas por seus
pa tid ios à K‘IEGEL,à
:à
.
Portanto, a controvérsia e todas as polêmicas em torno de Maimônides nos
deixa claro como a filosofia grega era vista como uma ameaça às tradições teológicas
judaicas. Do século XI ao XIII, ao mesmo tempo em que marca o grande florescimento
do pensamento judaico medieval, trouxe consigo inúmeras querelas.
O aristotelismo em Maimônides
Com tudo o que já foi dito aqui, podemos afirmar, então, que o período mais
brilhante e mais rico em renovações e enriquecimentos doutrinais para a história
intelectual judaica foi o século XIII. Maimônides, e seus partidários da corrente
racionalista do pensamento judeu medieval, procuravam reforçar a fé, e assegurar que
esta não iria contra à razão humana. A maioria daqueles que receberam uma formação
filosófica verdadeira aliava um intelectualismo exigente a uma prática impenetrável, e
14
A Grande Controvérsia configurou o debate entre as duas maiores correntes do pensamento judaico
medieval: os racionalistas e os místicos, estes eram adeptos da doutrina da Cabala. Cabala é o nome do
pensamento místico expresso na literatura judaica, o que quer dizer tradição ou revelação constante.
No século XIII, a Cabala produz o seu monumento com o conjunto de escritos reunidos no Zohar. Vale
ressaltar, também, que não surgiu por acidente, mas principalmente para fazer frente às concepções
racionalistas maimonidianas (KRIEGEL, 2006: 50). A polêmica sempre permeou o pensamento judeu,
mas no caso dos racionalistas, dentre os seus partidários, Maimônides é tido como o maior expoente
(WOLFSON, 1912).
210
considerava a observância como condição indispensável da apreensão do divino
(KRIEGEL, 2006: 51).
Dessa forma, a polêmica provocada por Maimônides concentra-se,
principalmente, no debate sobre a razão e a filosofia e sua relação com a fé e a
tradição, e os elementos culturais ou espirituais que deveriam fazer parte da educação
deà u à ho e à judeuà eà seguido à daà To .à Co oà si tetizadoà po à Fal el:à Noà fu doà
tratava-se do choque entre a fé monoteísta, revelada no Monte Sinai a Moisés, e a
filosofia, considerada apenas como um produto de racionalização hu a a à FáLBEL,à
1984: 60).
Em seu Guia dos Perplexos, Maimônides, procura realizar sua grande aspiração
i tele tual:à o ilia à filosofiaà eà eligi o.à Pa aà ele,à aà e çaà eligiosaà à u aà fo
o he i e toà eà aà filosofiaà à oà fu da e toà daà p p iaà eligi o à FáLBEL,à
aà deà
:à
.à
Com o intuito de mostrar a identidade entre a verdade religiosa e a verdade filosófica,
Maimônides precisou adaptar e modificar o aristotelismo. Na introdução de sua obra,
ele afirma:
[...] the hidden meaning, included in the literal sense of the simile to a pearl
lost in a dark room, which is full of furniture. It is certain that the pearl is in
the room, but the man can neither see it nor know where it lies. It is just as if
the pearl were no longer in his possession, for, as has been stated, if affords
him no benefit whatever until he kindles a light (MAIMON, 1904: 06).
Nessa passagem, temos a pérola como o profundo sentido das palavras da Lei e
a aceitação literal não têm valor em si. Logo, Maimônides coloca a luz que se acende
como todo o conhecimento necessário para o entendimento verdadeiro dos mistérios
divinos, de forma que a filosofia é incluída e fundamental nesse ponto. Ele era
extremamente contra a interpretação literal das Escrituras, e defendia que era
necessário realizar uma interpretação alegórica para um entendimento correto.
Assim, no Guia dos Perplexos, Maimônides procura mostrar que as Escrituras e
o Talmude, corretamente interpretados, harmonizam com a filosofia de Aristóteles,
tendo como fundamento a metafísica aristotélica. Onde ele mesmo afirma:
You are no doubt aware that the Almighty, desiring to lead us to perfection
and to improve our state of society, has revealed to us laws which are to
regulate our actions. These laws, however, presuppose an advanced state of
intellectual culture. We must first form a conception of the Existence of the
211
Creator according to our capabilities; that is, we must have knowledge of
Metaphysics (MAIMON, 1904: 04).
Wolfson, indo mais além, afirma que, Maimônides, antes de tudo foi um
verdadeiro aristótelico medieval, que usou a religião judaica como uma ilustração da
metafísica aristotélica (WOLFSON, 1912: 314). De fato, a matriz aristotélica se encontra
na interpretação bíblica maimonidiana. Para ele, os capítulos refentes a Criação no
livro do Gênesis encerram conceitos filosóficos mais profundos da física aristotélica, e
na descrição mística do primeiro e décimo capítulos do livro de Ezequiel se esconde
uma fonte de idéias metafísicas relativas a Deus. Nesse ponto, ele desenvolveu essas
interpretações com rigidez racionalista, e quando aplicadas à narrativa da Criação, ele
encontrou as doutrinas aristotélicas da matéria e forma, dos quatro elementos, da
potência e ato, das diferentes forças da alma e tudo o que é conhecido da filosofia de
Aristóteles (FALBEL, 1984: 68). No Livro de Job, ele e outros filósofos entendem como
um texto muito mais profundo do que a narrativa bíblica revela, em que é possível
encontrar concepções sobre a Providência divina, sabedoria divina, liberdade humana,
entre outras.
Esse é o caso da concepção maimonidiana dos atributos positivos e negativos
de Deus. Para Maimônides, não podemos dizer nada positivo sobre Deus, uma vez que
Ele nada tem em comum com os homens. Deus está infinitamente distante das
criaturas. Dessa forma, quando nas Escrituras afirma-se queà Deusà à s
io ,à aà
verdade está dizendo que Deus não é tolo. Permanecer na afirmação positiva, para ele,
é uma blasfêmia e idolatria, ou seja, inadmissível para o verdadeiro judeu. No terceiro
volume do Guia, Maimônides diz:
Theà ea i gàofà k o ledge , theà ea i gàofà pu pose àa dàtheà ea i gàofà
p o ide e ,à he àas i edàtoàus,àa eàdiffe e tàf o àtheà ea i gsàofàtheseà
terms when ascribed to Him. When the two providences or knowledges or
purposes are taken to have one and the same meaning; difficulties and
doubts arise. When, on the other hand, it is know that everything that is
ascribed to us is different from everything that is ascribed to him, truth
becomes manifest (MAIMON, 1904: 20).
E no primeiro volume ele afirma brevemente:
Whatever, on the other hand, is commonly regarded as a state of perfection
is attributed to Him, although it is only a state of perfection in relation to
ouserlves; for in relation to God, what we consider to be a state of
perfection, is in truth the highest degree of imperfection. It, however, men
212
were to think that those human perfections were absent in God, they woud
consider Him as imperfection (MAIMON, 1904: 35).
Ele compreende Deus metafisicamente, como uma entidade transcendental,
cujas provas de existência tornam-se necessárias. Em seus argumentos procura
mostrar não apenas que Deus existe, mas que também é impossível que não exista.
Entretanto, se religião e aristotelismo estão, nas concepções maimonidianas,
sendo reconciliáveis, concessões são necessárias para ambos (KENNY, 2005: 52). Por
exemplo, quando Maimônides ilustra a doutrina da Criação e a doutrina da
Providência. No caso da Criação, é a cosmologia aristotélica que direciona; mas no
caso da Providência, temos a visão tradicional. Ao acreditar que o mundo foi criado no
tempo, Maimônides rejeita a concepção aristotélica de um Universo eterno. Porém,
concorda com Aristotéles de que não existe ocasião para indagar sobre o propósito da
existência do Universo, ou acerca do final dos tempos. Ele oferece argumentos
filosóficos procurando demonstrar que o tempo pode não ter tido um início.Sem sobra
de dúvidas, a intenção de Maimônides era, de certa forma, ortodoxa e de devoção.
Pois sempre afirmou que o principal objetivo da vida, e insistiu muito nesse aspecto,
era conhecer e amar Deus.
Considerações Finais
Vale ressaltar, entretanto, que Maimônides não é um aristotélico puro, uma
vez que em boa parte de suas obras filosóficas tem-se uma fusão de conceitos
extraídos da filosofia de Aristóteles com concepções neoplatonizantes (FALBEL, 1984:
66). Contudo, Maimônides rompeu com a separação entre fé e razão, sem se dar conta
do alcance dessa atitude. Não quer dizer, entretanto, que não havia oposição entre
elas, mas sim um apoio mútuo na busca pela verdade. Como Haddad afirma em sua
obra Maimônides,à aà B liaà to ou-se o livro da fé em Deus, e foi aberto o caminho
pa aàaà i
iaà ode a HáDDáD,à
:à
.
Os tradicionalistas judeus entenderam os pensamentos maimonidianos quanto
à interpretação dos textos sagrados como blasfêmias. Durante a polêmica gerada por
seus escritos, a Grande Controvérsia, principalmente pelo Mishné Torá e pelo Guia dos
Perplexos, suas obras e de outros judeus racionalistas foram proibidas. Assim como a
213
leitura da filosofia grega por judeus menores de 25 anos. Ordenaram que livros dos
comentaristas que extremavam a interpretação alegórica da Bíblia fossem queimados
e proibidos para o público em geral. Rasbá, um racionalista partidário de Maimônides,
escreveu uma epístola que foi, praticamente, um tratado em defesa do ponto de vista
maimonidiano. O qual dizia que a maior contribuição da filosofia grega para o
Judaísmo foi o reestabelecimento, em Israel, do monoteísmo puro (BEN-SASSON,
1988: 641).
Durante a querela, a própria sociedade cristã acabou intervindo no conflito. Em
1232, livros de Maimônides foram queimados pelos dominicanos, os quais foram
entregues pelos próprios judeus antimaimonidianos (COHEN, 1983:55).
Referências bibliográficas
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COHEN, J. The friars and the Jews: the evolution of medieval anti-Judaism. Londres:
Cornell University Press, 1983.
DUJOVNE, L. Maimonides. São Paulo: Federação Israelita de São Paulo, s/d.
FALBEL, N. Aristotelismo e a polêmica maimodiana. Leopoldianum. Vol. XI, No 32,
dezembro de 1984.
GUINSBURG, J. (org). Do estudo e da oração: súmula do pensamento judeu. São Paulo:
Perspectiva, 1968.
GORODOVITS, D.; FRIDLIN, J. Bíblia hebraica. São Paulo: Sefer, s/d.
HADDAD, G. Maimônides. São Paulo: Liberdade, 2003.
KENNY, A. Medieval philosophy: a new history of western philosophy. Oxford:
Clarendon Press, 2005.
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MAIMON, M. Mishné Torá: o livro da sabedoria. Rio de Janeiro: Imago, 2000
MAIMON, M. The guide for the perplexed. 2 ed. London: Routledge and Kegan Paul
Ltd., 1904.
214
SELTZER, R. M. Povo judeu, pensamento judaico. Vol. II. Rio de Janeiro: A. Koogan,
1989.
WOLF“ON,à H.à Mai o idesà a dà Hale i:à aà stud à i à t pi alà Je ishà attitudesà to a dsà
G eekà philosoph à i à theà Middleà áges .à I :à TWE‘“Kζ,à I;à WILLIáM“,à G.à Studies in the
history of philosophy and religion. 1 ed. Cambridge, Mass: Harvard University Press,
1977.
215
MITO E RITUAL NA IFIGÊNIA ENTRE OS TAUROS, DE
EURÍPIDES.
Marcelo Bourscheid (PG – UFPR/ CAPES)
As fontes literárias do mito de Ifigênia
Nos poemas homéricos, não há qualquer menção ao mito de Ifigênia. No
segundo canto da Ilíada (v. 303-330), Homero menciona o acampamento das tropas
gregas em Áulis, mas não faz qualquer referência ao sacrifício relacionado ao episódio.
Algumas fontes, porém, associam Ifigênia à figura de Ifianassa, apresentada no poema
homérico como uma das três filhas de Agamêmnon, ao lado de Cristótemis e Laodice. 1
É provável, portanto, que na época da composição dos poemas homéricos o sacrifício
da filha de Agamêmnon, ou até mesmo o parentesco de Ifigênia com o chefe das
tropas gregas, fossem variantes desconhecidas do mito.2
No século VII a.C., encontramos as primeiras manifestações literárias
relacionadas diretamente ao mito de Ifigênia. Os Cantos Cíprios, atribuídos a Estasino
e conhecidos apenas por fonte indireta 3, estabelecem, pela primeira vez, a relação
entre a figura de Ifigênia e a de Agamêmnon:
α
ύ ο à θ οισ έ ο à ο σ ό ο à àΑ ί ιàἈ α έ
à
θ ῶ à
βα
à ἔ αφο à
βά ι à ἔφ σ à α
àἌ
ι .à
ίσασαà
θ ςà
έσ à α ο ςà ο
ο
ι ῶ αςà ι έ ο σα.à Κά α οςà
ό οςà
à ῆςà θ ο ῆ ι à α φι έ ια à
ύσα οςà θύ ι à ῆιà Ἀ έ ι ι,à ὡςà
ά ο àα ῆ àἈ ι ῖ
α
ά οιà θύ ι à ι ι ο σι .à Ἄ
ιςà
α
à α άσἀσαà ςà Ταύ ο ςà
α ο ί ιà α ἀθά α ο à οι ῖ, ἔ αφο à
4
ἀ
ῆςà ό ςà α ίσ σιà ῶιàβ ῶι.
1
Ilíada, 9.144-5: ῖ ς έ
ἰσ ύ α ς ἐ
ά ῳἐ
ῳ, Χ σό
ς α Λα
α
Ἰ ά ασσα. Te hoà t sà filhasà e à euà pal io:à C is te is,à La di eà eà Ifi assa .à Essaà asso iaç o,à oà
entanto, é problemática, pois Agamêmnon não poderia prometer a Aquiles uma filha sacrificada
anteriormente.
2
Esse desconhecimento é apontado por um escoliasta da Ilíada 9.145-287 (apudREBELO, 1992, p.17).
Alguns estudiosos, como Murray, não acreditam que o autor dos poemas homéricos desconhecesse o
mito, e atribuem a lacuna homérica à aversão do poeta aos sacrifícios humanos (MURRAY, p.150).
3
Há uma ampla discussão sobre a datação dos Cantos Cíprios, e também sobre a sua anterioridade ou
posteridade em relação aos poemas homéricos. Sigo a corrente que defende a anterioridade dos
poemas homéricos e atribui a datação dos Cantos Cíprios ao final do século VII a.C. Para uma ampla
discussão sobre o tema, ver Rebelo (1992).
4
Proclo, Chrestomatia, 80- , .àBe a .à Eà ua doàaàe pediç oàseà eu iuàe àãulisàpelaàsegu daà ez,à
Agamêmnon atingiu um cervo durante uma caçada, e disse ter superado até mesmo a Ártemis.
Encolerizada, a deusa impediu a navegação, enviando tempestades. Calcas, então, falou da cólera da
deusa e exortou-os a sacrificar Ifigênia a Ártemis. Mandando buscá-la a pretexto de um casamento com
216
Os principais mitemas5 constituintes do mito explorados posteriormente na
tragediografia encontram-se presentes no fragmento dos Cantos Cíprios citados por
Proclo, inclusive a substituição da filha de Agamêmnon por uma corça no momento do
sacrifício e a sua transferência para o país dos tauros.6 Portanto, já na primeira
manifestação literária do mito, a variante táurica encontra-se presente, o que confirma
a antiguidade dessa variante.
Em um fragmento atribuído a Hesíodo (fr. 23ª Merkelbach – West), conhecido
como Catálogo das Mulheres, encontramos uma referência bastante completa ao mito
deàIfig
ia,àde o i adaà oàf ag e toàdeà Ifi ed ia .
ῆ [ à à ι ά οςà α àἀ ]ῶ àἈ α έ
ού[ àΤ
α έοιοàΚ αι ήσ]
à α ῶ [ι ·
[έ à φι έ
à α ίσφ ] ο à à ά ο[ισι àààààààààààààààààààààààààà15
έ
àθ à
οςà ή ισ àἀ[θα ά] ισι .
φι έ
à àσφά α à
ή[ ]ι ςàἈ αιο
β ῶ[ιàἔ àἈ έ ι οςà σ α ]ά [ο ]
α ι ῆς,
α [ιà ῶιà à
σ àἀ έ ] ο àἼ ιο à [ σ
οι [ à ισό οιà α ισ]φύ ο àἈ ιώ[ ]ς,ààààààààààààààààààààààààààà20
[ ο ·àα ή à à αφ βό] οςà ο έαι α
ῖαà ά à σά[ σ ,à α ἀ β οσ]ί à[ ]α [ι
σά à α
ῆ[θ ,à αàο ] ςà[ἔ]
[ ]ο[ς] [ ,
θῆ à àἀθά α ο[ à α ἀ ή ]αο à α[ αà ά α.
à
à α έο[ σι à
]θο φ àἀ [θ ώ
ààààààààààààààààààààààà25
7
Ἄ
ι à ο ί[ ,à ό ο ο à ] ο [ο] [ ]αί [ ς.
Temos aqui outros mitemas importantes: o casamento de Agamêmnon e
Clitemnestra, a hybris do chefe dos argivos, a imortalidade de Ifigênia, sua
Aquiles, eles tentaram sacrificá-la, mas Ártemis arrebatou-a, transportou-a para os Tauros, tornou-a
i o talàeà olo ouàso eàoàalta àu aà o çaà oàluga àdaàdo zela .ààT aduç oàdeà‘i ei oà
,àp. ,àg ifoà
meu.
5
Mite aà à [...]à aà e o à u idade miticamente significativa do discurso. Seu conteúdo pode ser
i dife e te e teà u à oti o,à u à te a,à u aà at osfe aà ti a,à u aà situaç oà d a ti a à DU‘áND,à
1975, pp. 6-7, tradução minha.
6
Apesar de se tratar de uma fonte indireta e fragmentária, os Cantos Cíprios apresentam especial
interesse ao estudioso da tragédia, pois, segundo Aristóteles, esses cantos foram a fonte para várias
tragédias. Cf. Poética, 1459 b1-8
7
Casou-se, por causa da beleza, o senhor de guerreiros Agamêmnon com/ a filha de Tíndaro,
Clitemnestra de olhos sombrios,/ que deu à luz, no palácio, a Ifimedéia de belos tornozelos/ e a Electra,
cuja aparência rivaliza com a dos imortais./ A Ifimedéia sacrificaram os aqueus de boas grevas,/ Sobre o
altar da clamorosa Ártemis de flecha de ouro,/ No dia em que, com as naus, navegaram para Tróia,/ A
fim de infligir castigo por causa da Argiva de belos tornozelos,/ Uma imagem: A Ifimedéia a caçadora de
cervos, atiradora de flechas,/ Muito facilmente salvou, e agradável ambrosia/ Derramou da cabeça aos
pés, para tornar-lhe duradoura a pele,/ E deixou-a imortal e sem envelhecer, para sempre./ Atualmente,
sobre a terra, as raças de homens a chamam/ De Ártemis protetora de caminhos, servidora da gloriosa
ati ado aàdeàfle has .àT aduç oàdeà‘i eiro (2006, p 41).
217
identificação com Ártemis e a salvação in extremis. Um aspecto inovador da descrição
de Hesíodo refere-se à substituição de Ifigênia, desta vez não por um animal, mas por
u aài age à
ο ,àte aà uitoà e o e teà aàlite atu aàg ega.àIfig
iaà àele adaà à
condição divina e imortal, o que remete ao seu caráter de divindade arcaica e à
constante relação entre os aspectos divinos e mortais envolvidos na configuração
deste mito.
Outra fonte importante que gostaria de ressaltar é Heródoto, que
provavelmente foi uma referência direta para a elaboração dos elementos geográficos
e para os rituais descritos por Eurípides em IT.8 A análise dos hábitos e da geografia da
antiga Cítia, região onde habitavam os tauros, é bastante detalhada, ocupando parte
significativa do quarto capítulo do livro do historiador de Halicarnasso. O autor nos dá
uma interessante descrição dos hábitos e dos rituais dos tauros:
Desses povos, os tauros adotam os seguintes costumes: sacrificam à virgem
os náufragos e helenos por eles capturados durante ataques em alto-mar, e
o fazem da maneira seguinte: depois de consagrar a vítima eles lhe golpeiam
a cabeça com um bordão. Segundo alguns informantes eles jogam o corpo
do alto da escarpa (o templo é construído no topo de um rochedo
escarpado), e prendem a cabeça a uma cruz; segundo outros, concordes
com os precedentes quanto ao que é feito com a cabeça, o corpo não é
lançado do alto do rochedo e sim enterrado. De conformidade com as
informações dos próprios tauros, a divindade à qual eles oferecem sacrifício
seria Ifigênia, filhaà deà ága
o à
à
α ο αà α
à ῃ θ ο σιà
έ ο σιà α ο Τα οιà φι έ ια à
à Ἀ α έ ο οςà αι .à Quanto aos
inimigos capturados, eles procedem da seguinte maneira: o vencedor lhes
corta a cabeça, trazendo-a consigo; em seguida, ele a finca na extremidade
de uma vara longa e a põe o mais alto possível por cima de sua casa, de
9
preferência por cima do orifício por onde sai a fumaça.
Além da descrição dos rituais de sacrifícios de estrangeiros semelhantes aos
descritos por Eurípides, temos em Heródoto a divinização de Ifigênia, para a qual,
segundo Heródoto, eram sacrificados os estrangeiros que aportavam à região. O
hábito dos tauros de lançar seus inimigos do alto dos rochedos é textualizado em IT
pelo rei Toas, que afirma que irá lançar Orestes e Pílades dos rochedos táuricos
quando prender os fugitivos (v.1429-30).
Na tragediografia, tanto Ésquilo quanto Sófocles escreveram peças
fundamentadas no mito de Ifigênia, que infelizmente chegaram até nós de forma
8
9
Doravante utilizo a sigla IT para as referências à Ifigênia entre os Tauros.
Heródoto, 4.103, tradução de Mário da Gama Kury.
218
bastante fragmentária. Além disso, alguns estudiosos defendem que a tragédia Crises,
de Sófocles, encenada entre 414 e 415, seja anterior à IT e trate do resgate de Ifigênia
por Orestes e Pílades. Na dramaturgia grega supérstite, o Agamêmnon, de Ésquilo e a
Electra, de Sófocles, fazem breves menções ao mito. No párodo do Agamêmnon (v. 40257), Ésquilo descreve com detalhes todos os antecedentes do sacrifício em Áulis: o
oráculo de Calcas, a cólera de Ártemis, os ventos adversos, a hesitação de Agamêmnon
em realizar o sacrifício. Diferente da versão do mito utilizada por Eurípides, em Ésquilo
a morte de Ifigênia é concretizada, não havendo a substituição in extremis.
Em Sófocles, as referências principais ao mito de Ifigênia encontram-se em
Electra, no ágon entre Climemnestra e Electra (v. 516-659). Tanto em Sófocles como
em Ésquilo, o sacrifício em Áulis foi realmente efetivado, não havendo a salvação pela
deusa Ártemis. Respondendo às justificativas da mãe pelo assassinato do chefe das
tropas argivas em seu retorno da guerra de Troia, Electra demonstra certa indiferença
para com o ocorrido com a sua irmã, concentrando toda sua atenção na defesa do pai
assassinado (v. 555). Por fim, ressalto como aspecto relevante da abordagem
sofocleana a apresentação de Ifianassa como irmã de Electra, Crisótemis e Ifigênia (v.
159), recorrendo provavelmente à versão do mito constante nos Cantos Cíprios.
O tratamento do mito em Ifigênia entre os Tauros
Apresentadas algumas fontes literárias do mito, vejamos como Eurípides se
apropriou dessas fontes para o tratamento da variante da Ifigênia táurica em IT. Para a
composição deste mythos, Eurípides realizou um diálogo com a tradição literária que o
precedeu, não deixando, no entanto, de inovar em importantes aspectos do mito.
Mesmo sendo difícil tecer conjecturas sobre o grau de inovação na apropriação do
mito por Eurípides, especialmente por terem se perdido fontes importantes, como as
peças de Ésquilo e Sófocles dedicadas à Ifigênia, alguns elementos podem ser
apontados como inovações estruturais de Eurípides.
O primeiro aspecto inovador com relação aos dramaturgos que o precederam é
a sobrevivência de Ifigênia após o sacrifício em Áulis. Como vimos, tanto Ésquilo
quanto Sófocles apresentam, em suas obras, o sacrifício de Ifigênia como algo
concretizado. Em IT, Eurípides utiliza a salvação da deusa como ponto de partida para
219
a elaboração do mythos. Ifigênia, salva de um sacrifício que ela mesma considerava
injusto, torna-se responsável por sacrifícios tão criticáveis quanto o que seu pai quase
realizara. Ao apresentar essa inovação, Eurípides é cuidadoso para não entrar em
contradição com a variante mitológica apresentada por Ésquilo na Oresteia, que teve
grande impacto na recepção ateniense do período. Em IT, a salvação de Ifigênia é um
fato desconhecido por todos os argivos, incluindo Orestes, que pressupõe a efetivação
do sacrifício como algo dado.
Outro elemento que pode ser considerado inovador no tratamento de
Eurípides é o motivo da ira de Ártemis. Em IT, a fúria da deusa não é causada pelo
abate de um animal sagrado ou por palavras proferidas por Agamêmnon, mas pela
negligência do cumprimento de um voto feito à deusa, o de oferecer em sacrifício o
que de mais belo houvesse recebido no ano do nascimento de Ifigênia (v. 20-23). Nesta
variante, a culpabilidade de Agamêmnon é um elemento ambíguo, pois podemos ter
tanto uma hybris, com o chefe dos aqueus negando conscientemente um sacrifício
votivo, como um mero desconhecimento de sua parte, se considerarmos que
Agamêmnon só se torna ciente do motivo da ira da deusa após ouvir as palavras de
Calcas (v. 15-24).
A associação entre os mitos de Ifigênia e de Orestes, que nos tratamentos
anteriores apresentavam pouca relação, e a presença de Orestes na região táurica,
desconhecida em todas as versões literárias anteriores do mito, são outras das
inovações apresentadas em IT. A presença de Orestes na região táurica, com os
desdobramentos da continuação da perseguição após o julgamento no Aerópago, do
retorno de Orestes ao templo de Delfos e da missão, dada por Apolo, de salvar a
estátua de Ártemis da região táurica, são elementos em que a crítica é praticamente
unânime em considerar como criações euripideanas.
Com relação à etiologia dos cultos de Ártemis em Halas e Bráuron apresentada
em IT,10 os estudiosos estão longe da unanimidade: em que medida essa etiologia
euripideana é invenção do dramaturgo ou uma apropriação de rituais religiosos
conhecidos no seu tempo? Alguns autores apontam a ausência de fontes anteriores
como um indício de uma etiologia fictícia criada por Eurípides, enquanto outros
10
Cf. discussão no próximo capítulo.
220
partem da ideia de uma assimilação euripideana de diferentes lendas sobre a criação
desses cultos.11
Ritual e ressignificação mitológica
οà p logoà deà IT, Ifigênia faz um relato de sua genealogia, dos antecedentes
que a levaram até a região táurica e apresenta a sua situação como sacerdotisa
incumbida dos ritos cruéis em honra à deusa Ártemis, envolvendo em sua realização o
sacrifício humano.
αοισιà ᾿ à οῖσ ᾿
α à θ σ
,àἌ
ις,à ο ῆςàà οὔ ο ᾿ ςà α à
οισι àο σι à
αιàθ
᾿ αàσι ῶ,à àθ àφοβο
θ à
à οςà ο
ο à α
à
ι
ςà à α θ ιà
à ῆ àἝ
à
à
α
ο αιà
àσφ ιαà ᾿ οισι à
ι
12
᾿ἔσ θ à ῶ ᾿ἀ α
àθ ᾶς.à
ο
Ifigênia demonstra o caráter indesejado e involuntário de sua condição de
sacerdotisa e tece críticas à deusa. A especificidade das vítimas sacrificiais (gregos do
sexo masculino), acentuava o descontentamento da sacerdotisa em relação à sua
condição de argiva responsável pelo sacrifício de argivos. Apesar de não concordar
com sua situação, Ifigêniaà seà alaà σι ῶ), em sinal de temor à divindade e ressalta o
caráter do seu ritual, fazendo questão de mencionar que não será ela a sujar suas
mãos com o sangue grego, mas apenas irá iniciar os ritos, efetuando as libações e
purificações necessárias. 13
Devido à falsa interpretação de um sonho (v. 45-64), Ifigênia acredita que
Orestes esteja morto, e começa a realizar os ritos funerários, descrevendo
minuciosamente esses rituais.
ὧιà σ à ο ςà
11
Para uma ampla discussão do tema e de sua bibliografia, cf. Rebelo (1992).
35- .à Eà esteà te ploà eà olo ouà o oà sa e dotisa/à o deà aà Deusaà ã te isà seà aleg aà /à e à u aà
festa que tem só o nome de belo./Mas me calo sobre o resto, por temor à Deusa.)/ Segundo a lei desta
cidade, sacrifico a todo homem grego/ que ancore nesta terra./ apenas dou início aos sacrifícios/
ocupam-seàdasà o tesàout os/ào ultosà oàte ploàdaàdeusa .ààTodasàasàt aduç esàdeà IT neste trabalho
são de minha autoria.
13
Informação reiterada nos versos 620-624
12
221
à α ῆ αà à àφθι
ι à α αςà à
οιςà
α ςà ᾿ο
ιᾶ à à σ
Β ο à ᾿ο
à οιβ ςà
ο θᾶ à à
αà ισσᾶ ,
14
οῖςàθ
ιαà ῖ αι.à
α
Mel, leite e vinho: os elementos característicos da libação estão presentes no
ritual preparado por Ifigênia. Como descreve Burkert (p. 153-159), as libações eram
realizadas especialmente em honra aos mortos e aos deuses ctônicos. Os lamentos
fú e esà θ
ος àdeàIfig
ia,àaliadosàaàestesà ituais,ài stau a àu ài te essa teàjogoà
entre ritual e engano (apaté), pois no momento em que as escravas gregas do coro e
Ifigênia lamentam a morte de Orestes e preparam os ritos fúnebres em sua
homenagem, todos os espectadores já visualizaram Orestes. A falsidade involuntária
do ritual, por render homenagem a um morto que todos os espectadores já viram em
cena, cria um interessante contraponto com o ritual voluntariamente falso do final da
peça, conforme veremos mais adiante.
O altar em IT é um elemento cenográfico impactante, compostos pelos crânios
dos estrangeiros mortos nos sacrifícios ministrados por Ifigênia e dos despojos de suas
vítimas (v. 72-75). Como nota Wiles (1997, p. 202), há uma rica tradição iconográfica
descrevendo esta cena da peça de Eurípides, o que indica que este altar deve ter
causado uma forte impressão na recepção de sua primeira performance. O altar
manchado de sangue utilizado nessa performance apresenta uma concretização cênica
dos sacrifícios realizados por Ifigênia no passado e cria a tensão dramática de um
futuro sacrifício envolvendo os personagens de Orestes e Pílades, o que sugere um
novo derramamento de sangue entre familiares na funesta tradição de crimes
o sa gu eosà dosà át idas.à
Oà fatoà deà osà alta esà fi a e à e sa gue tadosà
(haimássesthai) à a a te sti oàdoàsa if ioàe àge al à BU‘KE‘T,à
,àp.
,àeàoàalta à
repleto de sangue desta peça é um exemplar impactante da relação entre ritual e
performance cênica no teatro ateniense do século V a.C.
Ao relatar, antes do reconhecimento, o sacrifício que irá preparar para o
estrangeiro que ela ainda ignora ser o seu irmão, Ifigênia apresenta outra descrição de
14
159.à áàeleà/àde oà e de àli aç es,à o àaà atera dos mortos / molhar o dorso da terra / com leite
de vacas montanhesas/ libação do vinho de Baco / e o árduo labor de douradas abelhas / coisas que
o fo ta àosà o tos .à
222
um ritual, desta vez os ritos funerários que serão realizados dentro do templo de
Ártemis, onde há a pira com o fogo sagrado.
ο à à
àσοιà σ ο à
α θῶιà ᾿ α ιàσῶ αàσ
α ῆςàὀ αςàἀ θ
ο θῆςà
σσ ςà ςà
θ σ à φ ι
à α ασβ σ
ο à οςà
15
àβα ῶ σ θ .
Aqui temos a presença do azeite (ἔ αιο ,àout oàele e toà uitoàutilizadoàe à
libações e ritos funerários. Ifigênia demonstra um carinho especial para com o
estrangeiro que está prestes a sacrificar, pelo fato de Orestes ter lhe revelado ser de
Argos. Podemos nos perguntar se o ritual descrito pela sacerdotisa era comum a todas
as vítimas ou se Ifigênia estava abrindo uma espécie de exceção ritualística para com o
seu conterrâneo.
Dentre as diversas formas de rituais presentes em IT, os ritos de purificação são
os mais importantes para estrutura dramática da peça. O estratagema elaborado por
Ifigênia ao final de IT é constituído por um falso ritual de purificação. A sacerdotisa diz
ao rei Toas que não pode sacrificar os estrangeiros, pois estes foram contaminados por
matricídio cometido na Grécia. A estátua de Ártemis, segundo Ifigênia, também fora
tocada por Orestes, tornando-se impura. Para purificar a estátua e os estrangeiros, ela
precisa ir até o mar realizar um ritual de purificação.
O ritual coloca em cena a oposição entre o sagrado (hágnos) e sua mácula
(míasma) (BURKERT, 1993, p.168). A contaminação dos forasteiros com o matricídio
pode contaminar toda a região dos tauros, e Ifigênia adverte os habitantes da região a
permanecerem em suas casas para não correrem o risco de se contaminarem.
O conceito da pureza especificamente cultual é definido quando certas
perturbações mais ou menos graves da vida normal são entendidas como míasma. Tais
perturbações são o ato sexual, o nascimento, a morte e, sobretudo, o homicídio.16
A sacerdotisa solicita ao rei que permaneça dentro do templo até terminarem
os ritos purificadores. O rei Toas é orientado para que, ao entrar no templo e cruzar
com os estrangeiros, cubra sua cabeça para não contaminar-se com a impureza de
Orestes e Pílades (v. 1160-1220). Como a cena pressupõe que este cruzamento entre
15
v. 632.à Muitosào a e tosà olo a eiàe àseuàsepul o/oàdou adoàazeiteà e terei em seu corpo/e
oàesple do àso idoàdasàflo esàpelasà o ta hesas/ààa elhasàdou adasàla ça eiàso eàtuaàpi a .
16
idem
223
as personagens seja visível cenicamente, e como o ator que interpreta Toas também
faz o papel de Pílades, podemos supor uma rápida entrada de Toas, com a cabeça
coberta, cruzando com Orestes à entrada daskené. Em seguida, o mesmo ator que entrou
no papel de Pílades, com a mudança de máscara, sai no papel de Pílades, em uma cena de
extrema dinamicidade dramática.17
Os estrangeiros saem acompanhados do templo com as mulheres que a
auxiliam nos seus rituais. Acompanham o séquito do ritual alguns animais que serão
sacrificados para que, com seu sangue, possam purificar as impurezas. (v. 1222-25). Os
rituais de purificação com sangue eram realizados principalmente com homicidas, e
Orestes era considerado, na Grécia antiga, um paradigma dos homicidas em busca de
purificação. Geralmente, o pescoço do animal era cortado e o sangue vertido sobre a
cabeça de quem deveria ser purificado.18
Oà a à à oà espaçoà es olhidoà pa aà oà falsoà itualà deà pu ifi aç o.à Oà eio mais
habitual de purificação é a água, e, nos rituais de purificação gregos, o contato com a
guaà àfu da e tal à BU‘KE‘T,à
,àp.à
.ààáoà hega à o àosàest a gei osà oà a ,à
Ifigênia inicia os rituais, e os soldados de Toas que lhe acompanhavam ficam distantes,
em respeitoso silêncio, com medo de presenciar um ritual proibido (v. 1342). Ifigênia
entoa gritos mágicos e incompreensíveis canções de purificação (v. 1336-1331),
elementos que compunham os rituais purificatórios, mas que no contexto da cena
apresentam a sacerdotisa em um ato de ritualização performativa e ficcionalizada,
beirando quase ao sacrilégio, um ritual que tem como único objetivo o de enganar os
guardas que acompanham, à distância, o falso ritual. Esse engano ritual, feito sob a
aparente aquiescência das deusas envolvidas (Ártemis e Atena), possibilita a fuga dos
argivos do mundo bárbaro e a restauração dos cultos para o seu lugar de origem,
reestabelecendo a ordem simbolizada pela pólis grega em contraposição à desordem
ritualística do mundo bárbaro.
No fim da peça, (v. 1449-1454), a deusa Atena, ex machina, intercede em favor
dos fugitivos, e ordena que Toas abandone a sua perseguição. Atena indica para
Orestes e Ifigênia os procedimentos que devem tomar ao chegarem à Grécia. Temos
17
Temos a seguinte distribuição dos papéis na peça: o protagonista interpretava Ifigênia e a deusa
Atena; o deuteragonista, Orestes, o vaqueiro e o mensageiro; e por fim, o tritagonista interpretava
Pílades e o rei Toas. Também havia personagens mudos, como os guardas e as servas de Ifigênia.
18
(ibidem, p.174).
224
então a descrição etiológica da criação do templo de Ártemis Taurópola em Halas
Arafênides e o de Ártemis Braurônia em Bráuron.
Halas era um porto localizado na costa sudoeste da Ática, e foi neste lugar que,
segundo o mito descrito por Eurípides em IT, Orestes colocou a imagem da deusa
roubada aos tauros. Pouco sabemos sobre os rituais praticados em Halas, mas
Eurípides descreve um rito que certamente deveria ser praticado na região: em
rememoração à libertação de Orestes da perseguição das Erínias, um homem deveria
ser conduzido ao altar na condição de vitima sacrificial, e com uma espada seria feito
um corte em seu pescoço, com o sangue vertido ao solo e dedicado a deusa Ártemis (v.
1457-62). No festival anual chamado de Taurópila, além destes rituais em memória a
Orestes, havia cerimônias noturnas em que mulheres e meninas realizavam danças em
t i utoà àã te isà po tado a-da-luz ,àu àdosà uitosàep tetosàdaàdeusa.
Ifigênia, por sua vez, foi incumbida por Atena de exercer o sacerdócio no
templo de Ártemis em Bráuron, cidade situada a uns 37 km de Atenas. Neste local,
realizava-se, a cada quatro anos, o festival da Braurônia, em que meninas de até dez
anos eram consagradas à deusa, em rituais que consistiam de danças em que as
meninas imitavam ursas, um rito conhecido como
αà eà ue,à segu doà aà aio iaà
dos pesquisadores, seria um ritual de transição entre a infância e a vida adulta.
Escavações arqueológicas iniciadas em 1948 e coordenadas pelo professor J.
Papadimitriou revelaram a existência de um templo do século VI a.C., confirmando um
importante aspecto do mito tratado por Eurípides no final de IT (v. 1462-1467): a
suposta existência do túmulo de Ifigênia nas imediações do templo. Segundo
Eurípides, Ifigênia seria enterrada em Bráuron e, em seu túmulo, seriam colocados,
como oferenda, as roupas de mulheres mortas durante o parto. Os estudos
arqueológicos encontraram uma ampla diversidade de tecidos, provavelmente de
parturientes mortas, além de outros objetos de uso feminino, como jóias, caixinhas
para óleos, perfumes, pedras preciosas, brincos e colares.19 Esses estudos atestam a
importância deste rito que parece ter sido bastante popular na época da composição
da obra. No final de IT,à te os,à po ta to,à u aà e dadei aà liç oà deà a ueologiaà
19
Cf. Rebelo (1992, p. 91).
225
religiosa e de toponímia sobre o culto de Ártemis Taurópola, em Halas, e de Ifigênia,
e àB u o à ‘EBELO,à
,àp.
.
Trabalhando com as fontes mitológicas fornecidas pela tradição literária que o
antecedeu e com as crenças oriundas da cultura popular de seu período, Eurípides
ressignificou o mito de Ifigênia, através de uma performance em que os rituais,
narrados ou performados, são os princípios estruturantes dessa obra que causou
profunda impressão nos antigos, recebendo o parecer positivo de um crítico tão
severo quanto Aristóteles.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
BERNABÉ, A. Poetarum Epicorum Graecorum Testimonia et Fragmenta, pars I. Stuttgart
und Leipzig: B.G. Teubner, 1996.
BURKERT, Walter. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993.
DIGGLE, J.(ed.) Euripidis Fabulae. Tomus II. Oxinii. E Typographeo Clarendoniano. 1986.
DURAND, Gilbert. "A propos du vocabulaire de l'imaginaire."In Recherches et Travaux,
n°15, 1975, p.5-9
HERÔDOTOS. História. Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury.
Brasília: Editora da UNB: 1988.
MURRAY, Gilbert. The Rise of Greek Epic. New York: Oxford University Press, 1960.
MURRAY, A.T. Homer Illiad. London, Harvard University Press, 1999.
REBELO, António Manuel Ribeiro Rebelo. Mito e culto de Ifigênia Táurica. Dissertação
de Mestrado em Literatura Grega. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1992.
RIBEIRO JR., Wilson Alves. Iphigenia Aulidensis, de Eurípides: Introdução, Tradução e
Notas. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas. São Paulo, USP, 2006.
______. Hesíodo Fr. 23a Merkelbach-West: tradução e comentários. Calíope, Rio de
Janeiro, n. 12, p. 84-92, 2004.
WILES, David. Greek Theatre Performance: an introduction. Cambridge University
Press, 2000.
226
A RAINHA DEVOTA: O RITO DE CLITEMNESTRA NAS
ELECTRAS DE SÓFOCLES E EURÍPIDES1.
Marco Aurélio Rodrigues2
Fernando Brandão dos Santos3
Um aspecto que nunca gerou dúvidas, pelo menos nos estudiosos da
atualidade, acerca do mito estabelecido como mote na tragédia grega, diz respeito ao
livre arbítrio com o qual os tragediógrafos lidaram com os diversos heróis, suas famílias
e maldições. Se por um lado, os gregos conheciam exaustivamente a história do
destino traçado entre os Labdácidas, coube a Sófocles, por exemplo, alterar e
combinar da forma que lhe fosse mais pertinente o mito de Édipo, fato este que
contribuía, inclusive, para que o autor inserisse seu estilo e intenções pessoais.
O mito no qual se insere Clitemnestra funde duas famílias distintas, mas, nem
por isso, pouco enraizadas em grandes conflitos internos e com destinos cruelmente
predestinados. A rainha, que mais tarde seria esposa de Agamêmnon e, portanto, unirse-ia à linhagem dos Atridas pertence à família dos Tintáridas, ou seja, uma família que
deriva de Tíndaro e Leda, o herdeiro de um trono espartano e a filha do rei da Etólia
que, enamorada de Zeus, teve seus quatro filhos chocados por ovos: Helena e
Clitemnestra, consideradas mortais e Cástor e Pollux, ambos imortais.
Não bastasse a perigosa ligação que unia a origem de Clitemnestra como
resultado da paixão de Zeus por uma humana, fato este que sempre resulta em
aspectos desastrosos para toda a descendência, a rainha devota, primeiramente, tal
qual sua irmã Helena, foi disputada e teve seu primeiro marido e filho mortos por
Agamêmnon, que a desposou, gerando Ifigênia, Orestes, Crisótemis e Electra.
Ambas as tragédias remanescentes, tanto de Sófocles como de Eurípides, que
trazem particular destaque ao desfecho da vida de Clitemnestra, denominam-se
Electra. E, é justamente nessas tragédias, que a abordagem do tema mítico se constrói
1
Comunicação apresentada na II Jornada de Estudos Clássicos da UFES (Universidade Federal do Espírito
Santo ) - Campus de Goiabeiras.
2
Doutorando e bolsista Capes do programa dePós Graduação em Estudos Literários (Teorias e Crítica do
Drama) da Universidade Estadual Paulista – FLC – Campus de Araraquara.
3
Docente do programa de Pós Graduação em Estudos Literários (Teorias e Crítica do Drama) da
Universidade Estadual Paulista – FLC – Campus de Araraquara.
227
de acordo com um desejo próprio dos autores de transmitir uma ideia. Na Poética
(ARISTÓTELES, 1460b 33), embora Aristóteles faça a distinção da tragédia de Sófocles
como a representação dos homens "como eles devem ser" e o drama de Eurípides dos
homens "como eles são", ambos não deixam de utilizar o mito para expor a o destino
final de Clitemnestra e seu amante Egisto. Completa Vieira (2009) que as diferenças
nas obras dos dois autores estão no tom, na configuração de certos personagens e em
certos elementos estruturais.
Um dos aspectos que marca a diferença clara entre o pensamento de Sófocles
ao de Eurípides nas tragédias Electra, diz respeito ao caráter que cada um dos
tragediógrafos dá ao discurso motivador da protagonista para a morte de sua mãe. As
emoções que motivam Electra na tragédia de Sófocles, para Romilly (2008), referem-se
à piedade com os mortos, enquanto em Eurípides os impulsos obedecem questões
ligadas à sensibilidade: "elas não agem em função de um ideal claramente definido,
mas em função de medos e de desejos."
Todavia, independentemente da forma como os dois autores abordam o drama
de Electra e o destino dos Atridas, são evidentes os traços próximos que ambos
destinam à construção da imagem de Clitemnestra. Em um recente estudo sobre
Helena (HUGHES, 2009), a autora constrói um paralelo entre as meias-irmãs Helena e
Clitemnestra, alegando terem ficado as duas com o pesado fardo de uma geração,
e
ua toàosài
osàdi i osàPollu àeàC sto ,àosàDi s u osà ιόςà οῦ οι àpassa ia àaàse à
cultuados por toda a Grécia e, com maior intensidade mais tarde, em Roma. Dessa
forma, Clitemnestra, por sua origem e linhagem, apresentaria uma maior devoção do
que uma simples mortal que busca a redenção. A rainha conhece os desígnios dos
deuses e encara os acontecimentos de sua linhagem e a de seu marido como
predestinação, fatos inerentes à sua vida.
Na tragédia sofocliana, representada entre 420-415 a.C, a rainha, ao fazer a
primeira aparição em cena, está acompanhada por uma escrava que transporta
oferendas, e seu primeiro confronto com Electra já demonstra que os argumentos de
Clitemnestra são amparados por sua devoção à Justiça divina (Dike) e às leis naturais
da maternidade:
[...] Teu pai morreu (insistes nesse assunto)
228
por minha causa. Sim, por minha causa!
Não serei eu quem vai negar, mas Dike,
a Justiceira, deu-me aval, fiz algo
em que me secundaras, se pensaras:
esse teu pai, por quem debulhas lágrimas,
foi o grego que consentiu - o único! na imolação de tua irmã aos deuses.
Mas quem sofreu a dor do parto? O sêmen
dele? Não! Quem sofreu fui eu! Dirás
que ele a sacrificou em prol dos argivos.
Com que direito matam minha filha?
Se a matou em favor do próprio irmão,
não deveria me pagar por isso?
Não seria mais certo Menelau
matar um de seus filhos (tinha dois),
se o estopim da guerra foi Helena
4
e ele? [...] (SÓFOCLES, Electra, 525-541)
A tragédia euripidiana, por sua vez, representada em 413 a.C., faz exatamente
alusão ao mesmo aspecto defendido por Clitemnestra em Sófocles. Todavia, a
presença da rainha no casebre de Electra, umas das alterações na estrutura do mito
realizada por Eurípides, atenta para a empatia da mãe pela filha, que também acabara
de ter tido um filho e, possivelmente, compreenderia os sentimentos que motivaram
sua ação:
Nasceste para amar teu pai. A vida
é assim: há quem prefira o sexo másculo
e há quem ame a mãe mais do que o pai.
Não me tiras do sério, filha: eu mesma,
não é que me envaideça do que fiz.
Mas tu, como é que no pós-parto foste
largar mão de ti mesma, um asco só?
Os planos que tramei só me entristecem!
Excedi-me na fúria contra o esposo!
(EURÍPIDES, Electra, 1103-1110)
Embora Winnington-Ingram (1980) aponte para a fragilidade dos argumentos
de Clitemnestra na defesa de sua justificativa para a morte de Agamêmnon, Conacher
(1967) aproxima a imagem da rainha em Ésquilo, Sófocles e Eurípides como detentora
de uma personalidade que já seria pré-concebida no imaginário do homem grego.
Apesar das distintas formas de abordagem dos tragediógrafos, a rainha, até mesmo
com sua postura mais rígida e manipuladora, no Agamêmnon de Ésquilo, mantém uma
4
As duas traduções utilizadas no artigo, tanto a de Sófocles quanto a de Eurípides, são de Trajano Vieira.
229
seriedade própria de sua confiança na devoção e motivação instintiva e divina de seus
atos.
Essa altivez transmitida por Clitemnestra deve-se em grande parte ao papel de
devoção que a rainha demonstra apresentar, pelo menos em Sófocles e Eurípides, em
relação às divindades. Para Vernant (2006), as motivações que implicam um rito e o
credo nas divindades são próprias de cada ser humano, pois não dependem de um
arsenal próprio que imponha aos fiéis um conjunto de regras e normas. Sendo assim,
fazer honras aos deuses, no caso de Clitemnestra, é cumprir seu papel como devota,
como enfatizam os dois autores, na Justiça Divina (Dike), que agiu através dela na
vingança da morte de Ifigênia.
A rigorosidade com a qual os autores enfatizam a presença da devoção e dos
ritos realizados por Clitemnestra fica clara de duas formas distintas. Em Sófocles, é
durante o processo ritualístico que Clitemnestra é abordada por Electra e, portanto,
para encerrar a discussão entre as duas, a rainha faz uso do ritual para colocar um
po toàfi al à oàde ate,à ua doà o lui:à"“e à ueàpossoà o lui à euà ito/àe àpaz,à
depois que te deixei falar?" (SÓFOCLES, Electra, 630-631). Além disso, o autor coloca
em cena, logo à saída de Electra, o ritual de Clitemnestra rogando a Apolo que ele a
conserve e a deixe viver, intuição que deixa aparente a preocupação da rainha com seu
futuro incerto diante de Electra.
Por sua vez, na tragédia de Eurípides, Clitemnestra é convidada e convencida a
entrar na casa de Electra, fato este que ocasionaria seu assassínio, como pretexto para
auxiliá-la nos ritos de costume ao nascimento do primeiro filho. Dessa forma, diz
Electra:
Não deves ignorar que dei à luz.
Realiza o que eu não sei: o sacrifício
na lua décima, como é o costume.
Não tenho prática: é o primeiro filho.
(EURÍPIDES, Electra, 1124-1127)
Sendo assim, embora de formas diferentes, os dois tragediógrafos fazem uso da
devoção de Clitemnestra e de seu rito como forma de atingirem a concretização da
tragicidade a qual se objetiva o mito e, por conseguinte, os dramas encenados. Dessa
forma, Clitemnestra, nas Electras, cumpre o papel ao qual se referia Aristóteles às
230
obras dos dois autores. De um lado, os homens "como eles devem ser" de Sófocles,
mostra a rainha temente e, de certa forma, em uma realidade paradoxal: manifesta
seu ponto de vista, mas, ao mesmo tempo, suplica que os deuses defendam-na. De
outro, os homens "como eles são" de Eurípides, apresenta uma rainha altiva em um
novo contexto contraditório: uma aparente arrogância da nobreza perante a
fragilidade e pobreza da filha e uma imediata reação de comiseração diante dos ritos
da maternidade.
Responsabilidade de sua devoção ou não, Clitemnestra apenas cumpre o papel
para o qual já estava destinada, tal qual sua irmã Helena, papel este, que o Coro tão
bem enfatiza nos versos finais da tragédia sofocliana: "Estirpe atrida, quanta provação/
para ser livre, enfim!/ Com essa meta se realiza o fim." (SÓFOCLES, Electra, 1508-1510).
E, que em Eurípides, ganham força nas vozes dos irmãos gêmeos da rainha, os
Dióscuros: "Comum a ação, comum a sina,/ a ambos/ uma ruína de ancestres
aniquila." (EURÍPIDES, Electra, 1305-1307).
Referências bibliográficas
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231
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HUGHES, B. Helena de Tróia.Tradução de S. Duarte. Rio de Janeiro: Record, 2009.
LLOYD-JONES, H. The Justice of Zeus. Revised Edition. 2.ed. London: University of
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ROMILLY, J. A Tragédia grega. Tradução de Leonor Santana Bárbara. 2.ed. Lisboa:
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SÓFOCLES. Édipo Rei. Tradução de Trajano Vieira. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
SOPHOCLES. Tragédies. Tome II: Ajax, OEdipe Roi, Electre. Texte établi par A. Dain et
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VERNANT, J.P. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução de Joana Angélica D'Ávila
Melo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
WINNINGTON-INGRAN, R. P. Sophocles: an interpretation. London: Cambridge
University Press, 1980.
232
A ADAPTAÇÃO VIRGILIANA DA INVOCAÇÃO AOS DEUSES
AGRÁRIOS PELO VARRÃO DE DE RE RUSTICA I
Matheus Trevizam FALE-UFMG
Introdução
A prática da invocação inaugural divina, comum nas obras poéticas ocidentais
desde a empreitada homérica correspondente à Ilíada,1 à sua maneira encontrou, em
dois dos mais importantes textos da literatura agrária romana, seus correlatos.
Referimo-nos, ao mencionar os textos latinos inseridos nesta específica categoria
compositiva, ao De re rustica, do polígrafo e erudito Varrão de Reate, e às magistrais
Geórgicas virgilianas, no todo correspondentes, como não se esqueceriam seus
habituais frequentadores, a tentativas de sistematizar aspectos da realidade e dos
trabalhos agrários na Itália antiga.
Acreditamos em que a recorrência, embora precária, à ideia dos graus de
ficcionalidade presentes em uma ou outra obra possa auxiliar-nos num primeiro
exame da questão que aqui nos diz respeito, isto é, a depreender os peculiares traços
artísticos das invocações aos deuses a cada vez de sua ocorrência no livro inicial do De
re rustica e das Geórgicas mesmas. De fato, como se nota em muitas partes do poema
didático correspondente às Geórgicas a presença de uma camada mais espessa de
elaboração estilística e semântica do texto, ou, como assinalou R. F. Thomas (1994, p.
,à deà u à augusta is o à o p ee didoà o oà
us aà deà faze -se bastante
sofisticado, ao gosto dos leitores romanos coevos, há que se esperar também neste
tópico de análise a manifestação de características afastadas do mero e ingênuo
i te toàdo u e tal,à o oàse,àape as,à t a s e esse àoàpoetaàu aàp e eài o at ia,à
ou um canto (HORNBLOWER; SPAWFORTH, 2003, p. 735), a apelar a doze divindades
rústicas exatamente como fariam os devotos de seus dias.
1
HOMERO, 2008, p. 45 (I, 1- :à Ca ta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles/ A ira tenaz, que, lutuosa aos
Gregos,/ Verdes no Orco lançou mil fortes almas,/ Corpos de heróis a cães e abutres pasto:/ Lei foi de
Jo e,àe à i aàaoàdis o da e /àOàdeàho e sà hefeàeàoàMi ido àdi i o à t aduç oàdeàOdo i oàMe des .à
233
Mutatis mutandis, algo semelhante se dá com o Varrão do De re rustica, pois a
invocação a que nos referimos nesta sua obra em si não corresponde a algo, formal2 e
funcionalmente falando, com estritos traços ritualísticos. Contudo, segundo
espe a osàde o st a àe àseguida,àaà e osàde saà fi io alidade àdessesàdi logosàdeà
sua lavra, no sentido de uma mais fácil aproximação do texto com o comum da
experiência agrária em Roma, favorece entendê-los, e a seus conteúdos, como
elaborações em razoável contato com aspectos do ideário campesino peninsular.
Desse modo, sem desviar-se tanto, à maneira de Virgílio, para os planos da feitura
artística e poética, Varrão amiúde opta por oferecer-nos, no tocante ao domínio sacro
ou de outras práticas quaisquer, imagens menos buriladas do que trata, sem, com isso,
deixar de fazer-se moderado e atento artífice da palavra (TRAGLIA, 1985, p. 89-97).
Aspectos estruturais e significativos da invocação aos doze deuses rústicos em De re
rustica I
A invocação divina a que nos referimos insere-se no primeiro diálogo do De re
rustica varroniano como parte de sua praelocutio: tendo assim procedido,
observamos, o autor adentra o gênero em pauta em sua espécie aristotélica (TRAGLIA,
1985, p. 91) e com peculiares intentos de elaborar literariamente os dizeres, inclusive
se encontrando, sobretudo pela feliz iniciativa de um Cícero, bastante em voga nas
letras latinas do tempo a difusão de saberes pela via dialogal. Ora, sob os ditames
desse modelo, o prólogo ou praelocutio significava uma prévia ao corpo de saberes
essencial e estritamente técnico dos textos, fossem eles filosóficos ou retóricos, em
Cícero, ou agropecuários, como no De re rustica de Varrão. Assim, ajudam a
complementar o prólogo de De re rustica I em sua função introdutória e cativante da
e e ol
iaà doà pú li oà out asà pa tesà a ess ias ,à o oà aà afetuosaà dedi aç oà daà
obra a Fundânia, a esposa do autor, a proposição mesma do tema – identificada, neste
caso, com tópicos variadíssimos da agricultura e da arboricultura – e o erudito
at logo à deà auto esà a tigosà deà algu à odoà dedi adosà à a o dage à dessesà te asà
2
No De agri cultura catoniano, em que se transcrevem várias preces em contextos de recomendações
pa aà aà o duç oà deà e dadei osà itosà ag ios,à aà let aà dasà o aç es à dei aà e t e e à t açosà a ados,à
como o direto endereçamento divino em segunda pessoa, a repetição enfática, inclusive como forma de
desambiguição dos pedidos, a abundância de vocábulos no caso vocativo...
234
rurais (como Magão Cartaginês, Hesíodo de Ascra, Aristóteles, Teofrasto, Menecrates
efésio...).
E ide te e te,à u aà i o aç oà aà dozeà deusesà ústi osà logoà à a e ei a à deà
uma obra com tais características reveste-se de significados de base que vale a pena
recordar: referimo-nos à indelével carga de tradicionalismo do tema rural numa
sociedade como a romana. De fato, não só teve este povo ciência e orgulho de ter-se
alçado das mais humildes origens à posição de senhor do mundo então conhecido
como ainda, do ponto de vista prático, quiseram por séculos prestigiosos segmentos
sociais, como os senadores, manter intactos os vínculos econômicos e ideológicos de
seu estrato com o campo.3 Portanto, ao iniciar assim o tríptico do De re rustica, o autor
anui a um dos pontos-chave do imaginário do romano sobre si, em habilidoso gesto de
despertar a empatia de leitores, talvez, tão privilegiados na vida da Cidade quanto
algumas das personagens dos diálogos, como ele mesmo, seu sogro, Fundânio (livro I),
Tito Pompônio Ático (livro II) e o áugure Ápio Cláudio (livro III).
Quanto à sua estrutura, a invocação divina de que nos ocupamos se reveste de
características passíveis de descrição: assim, de início o autor propõe-se a fazê-la como
aà e osàpo ueàdeàalgu à odoà dize
à atu al e teàau ilia e àosàdeuses...àaàtodos
os homens empenhados em agir. E, de maneira fundamental para o direcionamento
de sentidos dado ao todo dessa passagem, ele se recusa, então, a servir a uma mera
convenção literária de raízes estrangeiras, por mais prestigiosa que fosse, revelandonos não desejar apelar às musas como Homero e Ênio: em seu lugar, antes quererá
invocar doze Dei Consentes,4 cuja listagem completa nos apresenta na sequência e aos
pares. Segundo explicação de Heurgon (VARRON, 2003, p. 93-94), comentador de certa
edição francesa do livro I do De re rustica, as entidades em geral referidas por tal nome
até certo ponto atualizam, em Roma, o concílio helênico dos dódeka theoí, na medida
em que, além do número idêntico ao deles, receberam imagens de fato veneradas
3
T‘EVI)áM,à
,à p.à :à O a,à sa e osà ueà osà se ado esà sof ia à est iç esà oà to a teà sà ati idadesà
econômicas a que poderiam dedicar-se: o temor da concentração desmesurada de fortunas nas mãos
de líderes particulares, por um lado, e a desconfiança da estabilidade dos bens móveis, por outro,
fizeram com que se coibisse o envolvimento de sua ordem com o grande comércio e as finanças; a
legislação que limitava a capacidade dos navios cuja posse lhes era permitida, por sinal, é um típico
e e ploàdessasà edidas .àCf.,àai da,àPie eàG i alà
,àp.à
-143).
4
Como explica Heurgon, comentador da edição Les Belles Lettres de De re rustica I, Consentes proviria de
um hipotético verbo consum, formado por analogia com praesum e em designação desse grupo divino
como um concílio unificado (VARRON, 2003, p. 93).
235
num templo ao pé do monte Capitólio. Varrão, porém, introduz notórias diferenças no
cotejo com tais matrizes inspiradoras, pois, enquanto ali havia as seis grandes
divindades masculinas (Júpiter/ Netuno/ Apolo/ Marte/ Vulcano/ Mercúrio) e as seis
femininas (Juno/ Minerva/ Diana/ Venus/ Vesta/ Ceres), favorecendo-nos inclusive
propor-lhesà aà u i oà o oà asais ,à oà eati oà su stituià
ias,à o oà Ju oà pelaà Te a,à
ápoloàeàDia aàpo àp osai osà “ol àeà Lua ,àMe ú io,à o oà pa àdeàCe es,àpeloàit li oà
Líber, Netuno por Vênus, na companhia a Minerva – o que, evidentemente, elimina um
par típico de seu rol (Marte e Vênus) e possibilita a ele aventar outro e inusitado casal,
Robigo/ Flora, em quarto lugar –, e, por fim, em vez dos sempre ígneos Vesta e
Vulcano, apresenta Linfa e Bom-Evento, todavia a terminarem a lista. Como se nota,
além dos rearranjos ditos, a dupla constituída por Vênus e Minerva chega a romper a
pola idadeàest itaàe t eàfe i i oàeà as uli oà ueà a a te iza aàaàlistage à a
i a à
dos doze Dei Consentes da religião de Roma.
Tais violações, no entanto, não nos parecem de todo aleatórias, dadas as
peculiares características de uma obra como o De re rustica. De fato, como revela a
raiz mesma empregada para designá-lo em latim, grego e sânscrito (BRANDÃO, 1993,
p. 189), Júpiter guarda ligações com o céu5 e certos fenômenos naturais de grande
peso para o homem agrário, como as chuvas, os raios, os trovões e os granizos; Tellus,
sua contextual consorte, corresponde à deusa Terra divinizada dos latinos, possível
contraponto da grega Gaia e substrato de vida para todos os seres viventes; o Sol e a
Lua, quotidianos coadjuvantes da lida com o homem do campo, servem-lhe, além de
l
padas à atu ais,à pa aà a a à oà it oà doà t a s o e à dosà t a alhos,à peloà ueà seà
explica, em tantas obras da literatura agrária antiga, a coexistência de um calendário
solar e outro lunar; Minerva, por sua vez, associa-se ao dom da oliveira, que
lendariamente presenteara à humanidade em concorrência com o cavalo a nascer de
um golpe do tridente de Netuno/ Posídon (COMMELIN, 1983, p. 39); Vênus, além de
sua associação com uma primitiva divindade itálica dos jardins, corporifica a
fecundidade de todos os seres vivos, sobretudo os animais e humanos, cuja vida
pressupõe a união sexuada entre feminino e masculino; Ceres, ente do misterioso
germinar das sementes do seio da terra, repõe a grega Deméter como ofertante do
5
Especificamente, notar-lheà oà sig ifi adoà p i ei oà oà i doeu opeu,à Paià daà Luz à hipot ti osà dyew- =
luz,à la idade,à ilho à+àpiter =à pai,à hefeàdeàfa lia .à
236
dom dos cereais à humanidade; o itálico Líber, por sua vez, correlato do Dioniso
helênico, associa-se de imediato à videira, uma das plantas de maior relevo na
economia mediterrânea antiga e, consequentemente, nesta obra agrária de Varrão;
po à out oà lado,à e
o aà sai a osà ueà
elho à lheà a e iaà o oà
o so te ,à u aà
listagem divina de fato preocupada com documentar acurada a religiosidade
campesina em Roma, a deusa Líbera (BRANDÃO, 1993, p. 206), nota-se como não soa
deslocada sua fortuita união a Ceres, à maneira de claros indicadores do pão e do
vinho, ou, em outras palavras, da própria sobrevivência material humana; Robigo,
como nos explica o comentário de Heurgon (VARRON, 2003, p. 95), correspondia a
u aà di i dadeà
as uli aà i uladaà à
ol stiaà daà fe uge
à dosà g os,à a iúdeà
invocada com fins do apaziguamento ou nulidade de seus efeitos nefastos sobre as
searas; a Flora, ainda, celebrada entre os latinos nos Ludi Florales de 28 de abril, cabia,
além de salvaguardar as culturas cerealistas, também fazê-lo em relação às árvores no
crucial momento de florescerem durante a primavera, o que, obviamente, importava
para a própria vinda futura dos frutos (VARRON, 2003, p. 95); Linfa, em nexo com o
grego Nymphé, remete-nos na passagem ao elemento líquido, sem o qual, como
observa o próprio Varrão, haveria esterilidade, jamais a vida (VARRON, 2003, p. 96);
Bom-Evento, enfim, personifica a vinda oportuna de todos os dons da terra no
momento da colheita, irmanando-se a divindades romanas funcionalmente análogas
como a Vitória e a Boa-Fé.6
Desse modo, as eventuais rupturas no tocante ao rol dos Dei Consentes sempre
se justificariam pelo desejo de aclimatar mesmo a invocação divina ao tom de uma
obra cujo enfoque se volta decisivo para a ruralidade. Então, também nestes detalhes
se patenteia o intento varroniano de fazer-se verdadeiro scriptorrerum rusticarum, não
mero tratadista técnico desprovido de intentos harmonizadores ao compor o todo.
Ainda, certos detalhes de regularidade formal da passagem parecem confirmar-nos
essa hipótese, como a presença de alguma expressão quantitativa antes de cada par
divino citado (primum, secundo, tertio, quarto, item, nec non etiam) e a decidida
preferência pelo caso acusativo para expressar os nomes de todos os deuses, apesar
de se encontrarem eles no interior de estruturas frasais, por vezes, diferentes.
6
Vários deuses romanos, com efeito, correspondiam a personificações de forças ou sentimentos
abstratos (COMMELIN, 1983, p. 289ss.).
237
Reatualizações virgilianas no cotejo com a invocação aos doze deuses em De re
rustica I, de Varrão
Pronunciando-nos sobre esse ponto do livro I das Geórgicas de Virgílio,
entendemos, por ele, os dezenove versos concernentes aos deuses em nexo mais
direto com as práticas rurais (v. 5-23), não os dezenove seguintes, nos quais a
inusitada divindade benfazeja corresponde a ninguém menos que Otaviano Augusto.
Isso se justifica por ser nosso intento, nesta breve apresentação, comentar do poema
didático em pauta apenas o trecho de fato tributário do construto prévio de Varrão.
Em primeiro lugar, assim, observamos que o poeta mantém constante a quantia dos
e tesà ueàseài o a:àse ia àelesàosàsu e te didosà“olàeàLua,àouà luzesà la ssi asàdoà
u do à .à - ,à L e àeàCe esà iado a à .à ,à Fau os à .à
(v. 11), Netu oà .à
,àu àa
i oà
-
,à MoçasàD ades à
o ado àdosà os ues à .à
,à ueàdes o i osà
tratar-se de Aristeu, o filho apicultor/ pastor de Apolo e da Ninfa Cirene a ressurgir ao
término do poema no epýllion o ju toà o à O feu,à oà g egoà P à .à
correlato dos Faunos itálicos na natureza semi-hu a a,à Mi e a à
i o i adoà
e i oà i e to à doà a adoà u o à .à
deà T ipt le o,à eà “il a o à .à
,à al
,à ade ais,à
.à
,à out oà
,à o espo de teà à figu aà
ti aà
à dosà Deusesà eà deusasà todos,à ujoà uidadoà à
guardar os campos, que alimenta(m) searas novas sem semente alguma e manda(m)
hu aà asta teàfa taàdoà u à .à
-23).
A composição dessa listagem apresenta peculiaridades que vale a pena
explorar: de início cessa, no cotejo com a obra de Varrão, a maior obviedade ao
fo
a à asais ,àouà e asàduplas.àE à ezàdissoàseà ost a,àe etoàtal ezàaàduplaàL e /à
Ceres e Faunos/ Moças Dríades, um modo mais rebuscado7 de lembrar e apelar aos
entes sacros. Uma vez que acima já nos explicamos suficientemente sobre os motivos
simbólicos da união entre Ceres – pão – e Líber – vinho – quando aludimos a eles na
7
Oà“olàeàaàLuaà oàs o,àpo ta to,à itadosàdi eta e te,à asàape asàsuge idosàpo à luzes claríssimas do
u do ;àL e àeàCe esàoàs oàe pli ita e teàeàlado a lado, bem como a dupla Faunos/ Moças Dríades; os
t sàpa esàsegui tes,àNetu o/àMi e a,à o ado àdosà os ues /à e i oài e to àdoàa adoà u o ,àP /à
Silvano estão separados internamente a cada par assim constituído, mas em sequência duas vezes
regular (um deus ou deusa nomeados, um ente não nomeado, uma divindade campesina nomeada).
Agradeço ao prof. Alexandre Hasegawa (FFLCH-USP) pela observação sobre o último detalhe da
dispositio virgiliana.
238
p e e à a o ia a,à pa e eà ago aà e ess ioà e po à e à e apitulaç oà algu sà t açosà
definidores dos Faunos e Dríades: os primeiros correspondem a entes da mitologia
romana em inicial associação com a guarda de rebanhos e pastores nos campos,
tendo-se,àpo
,à i uladoàdeà odoàfo te,à aà po aà l ssi a,à o àosà li idi ososàP s,à
“ile osà eà “ ti os,à
etadeà ho e s,à
etadeà odes à B‘áNDÃO,à
,à p.à
;à asà
Dríades, com outras categorias de ninfas do imaginário helênico, mantém evidentes
contatos com espaços e elementos da natureza – fontes, montanhas, carvalhos,
bosques... 8 Espe ifi a e te,à asà D ades à ouà D adas à o espo dia ,à segu doà
observação de Junito Brandão, àquelas das árvores, ou, mesmo, apenas dos carvalhos.
Qua toà aosà de aisà deuses,à e à se p eà ag upadosà aosà asais ,à s oà oà “olà eà aà Lua,à
indiretamente enunciados em lembrança de sua providencial importância para os
agricolae e, mesmo, das chances de antropomorfização válidas para si, pois a mitologia
antiga tantas vezes os identificou com Apolo e sua irmã Diana (COMMELIN, 1983, p. 45
e 48).
A referência a Netuno/ Posídon, não se pode omitir, corresponde a um aspecto
direcionado pelo teor do terceiro livro das Geórgicas, de tema pecuário e no qual os
equinos – lendariamente ofertados ao ser humano pelo golpe do tridente do deus na
Acrópole ateniense (COMMELIN, 1983, p. 103) – ocupam posição de destaque.
Minerva, por sinal, na mesma ocasião dera aos homens a utilíssima oliveira, pelo que
se justifica sua inclusão neste rol virgiliano não só ao lado de Netuno, mas ainda de
Ceres e Baco, no último caso, todos símbolos de alguns dos mais frutíferos itens da
agricultura mediterrânea antiga.
á isteu,à ujosà at i utosà j à de osà deà passage ,à P à eà oà
a adoà u o à Tipt le o,àle d ioàp
enino inventor do
ipeàeleusi oàaà ue àseàat i u aàaài e ç oàdaà
agricultura)9 apresentam em comum o fato de serem entes diretamente incorporados
do mundo grego, sem qualquer tentativa de aclimatá-losà aoà
h o à it li o. Pã,
sobretudo, tão cultuado na Arcádia como o deus agreste de corpo de bode da cintura
para baixo e a quem cabia a descoberta da flauta de canas que lhe tem o nome
8
BRANDÃO, 2009, vol I, p.
:à E às tese,àte osàosàsegui tesàtiposàdeàNinfas: Oceânides, ninfas do
alto-mar/ Nereidas, ninfas dos mares internos/ Potâmidas, ninfas dos rios/ Náiades, ninfas dos ribeiros e
riachos/ Creneias, ninfas da fontes/ Pegeias, ninfas das nascentes/ Limneias, ninfas dos lagos e lagoas/
Napeias, ninfas dos vales e selvas/ Oréadas, ninfas das montanhas e colinas/ Dríadas, ninfas das árvores
eàpa ti ula e teàdosà a alhos/àHa ad adas,à i fasàdosà a alhos .àà
9
THOMAS, 1994, p. 72.
239
(BRANDÃO, 2009, vol. II, p. 200), sendo de longe o mais conhecido dos três, soa
marcadamente literário ao início das Geórgicas, poema, em grande parte, centrado
nos problemas do campesinato romano.
Por outro lado, Silvano, deus itálico dos mais antigos – recomendando-se
mesmo um rito a Marte/ Silvano em De agri cultura LXXXIII de Catão Censor, a primeira
das obras conservadas da literatura agrária romana –, cujos atributos mantém nexo,
como indica seu nome, com o ambiente natural dos bosques/ siluae, furta-se à
ressalva do parágrafo anterior, pois, cogitamos, de fato poderia ser invocado por um
a po
a
sà daà It lia.à Osà agosà e tesà a ess ios à e o adosà po à Vi g lio,à e fi ,à
i osàdeusesàeàdeusasà ueàse àe eç oà gua da àosà a pos,àali e ta àsea asàeà
a da à hu asà asta teà fa tasà doà
u ,à i di a à aà p ti aà a tigaà deà p e a e -se –
justamente não restringindo demais o alcance do pedido de bênçãos pelo específico
endereçamento a um grupo restrito de entes nomeados – da ofensa a alguma
divindade esquecida. Idêntico modo de proceder, por sinal, já se encontra bem
documentado numa súplica do próprio De agri cultura catoniano (cap. CXXXIX).
Já a escolha dos deuses e o modo de apresentar alguns – como os encobertos
Triptólemo e Aristeu – apontam para o grande privilégio da estilização literária da
invocação em Virgílio, pois, quer por serem eles cruamente gregos, ou distantes do
ambiente cultural sob seu foco, quer por se apresentarem de modo erudito,10 a
requerer um conhecimento mítico mais refinado do público (em absoluto não
integrando Aristeu e Triptólemo a galeria dos principais deuses ou heróis!),
invariavelmente perdem eles em efetiva verossimilhança devota na prece. O mesmo,
notamos, não ocorrera exatamente em Varrão, a despeito de suas inovações diante do
at logo à p -existente dos Dei Consentes, uma vez que ali todos foram claramente
nomeados e se poderiam cogitar como entes de culto ou, ao menos, do respeito de
verdadeiros agricultores romanos.
Do ponto de vista estritamente formal, por sua vez, destacam-se na passagem
de Virgílio os vocativos de endereçamento a todos os deuses vistos, e que se realizam
linguisticamente quer como pronomes de segunda pessoa no caso correspondente
(uos, v. 5, 10/ tu, v. 12), quer como os próprios nomes das divindades (Liber et alma
Ceres, v. 7/ Fauni... Dryadesque puellae, v. 11/ Neptune, v. 14/ Pan, v. 17/ Minerua
10
THOMAS, 1994, p. 71.
240
inuentrix, v. 18-19), quer como algum apelativo diverso (o clarissima mundi lumina, v.
5-6/ cultor nemorum, v. 14/ ouium custos, v. 17/ Tegaee, v. 18/ uncique puer
monstrator aratri, v. 19). Além disso, outros detalhes, como o repetido cavalgamento
entre os versos da prece – v. 5/ 6 (clarissima mundi/ lumina), v. 12/ 13 (frementem/
fudit equom), v. 18/ 19 (Minerua/ inuentrix) – e a rápida apresentação dos deuses em
linhas muitos gerais, embora cultas, por vezes mesmo omitindo-lhes os nomes ao
modo alexandrino,11 reforça uma impressão de urgência, como se fosse necessário ao
magister didático de fato passar pela(s) prece(s) para logo dar início a tantos dizeres
técnicos, sobre tópicos tão variados...
Sem, em absoluto, o esgotamento de todos os aspectos possíveis das
peculiaridades construtivas da invocação divina nesses dois autores antigos,
esperamos ao menos ter-lhes apontado sucintos alguns polos de contraste, como o
modular-se da direta disposição aos pares em Virgílio, a maior e dramática
expressividade de todos os dizeres nesse último, sua forte vinculação a um plano
eminentemente poético – o que se dá, inclusive, sob ditames alexandrinos no ponto
doàe uditoà a o e ta e to ào o
sti oàdeàT ipt le oàeàá isteuà–, o tom, sobretudo,
itálico e, até, despojado em Varrão e o desvio para o filo-helenismo e para o inegável
requinte no outro... Desse modo, pois, patenteia-se nas invocações algo da distinta
natureza das respectivas obras agrárias de Varrão e Virgílio como, apesar de
invariáveis e cuidados construtos literários, produtos a enfatizarem menos ou mais o
aspecto do burilamento artístico e a ficcionalidade dos textos, não sem consequências,
por outro lado, para sua real eficácia técnica ou de verossimilhança significativa.
Referências bibliográficas
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BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico. Mitologia e religião romana. Petrópolis/
Brasília: Vozes/ Edunb, 1993.
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CATON. De l'agriculture. Texte établi, traduit et commenté par Raoul Goujard. Paris:
Les Belles Lettres, 1975.
11
Cf. supra nota 9.
241
COMMELIN, P. Nova mitologia grega e romana. Tradução de Thomaz Lopes. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1983.
GRIMAL, P. Virgílio, ou o segundo nascimento de Roma. Tradução de Ivone Castilho
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TREVIZAM, M. Linguagem e interpretação na literatura agrária latina. Tese inédita,
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Linguística do IEL-UNICAMP para
obtenção do título de Doutor. Campinas: UNICAMP, 2006.
VARRON. Économie rurale. Texte établi, traduit et commenté par J. Heurgon. Paris: Les
Belles Lettres, 2003. Vol. I.
242
O ROMANO E O LAZER: REFLEXÕES SOBRE A
CONTRIBUIÇÃO DOS LUDI PARA A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE URBANA NO IMPÉRIO ROMANO [SÉC. III-IV]
Natan Henrique Taveira Baptista - Ufes
Esta comunicação apresenta alguns dos resultados parciais da minha pesquisa
deà i i iaç oà ie t fi aà i tituladaà Cotidia o,à agiaà eà o flitoà oà I p ioà ‘o a o:à ásà
defixiones como instrumentos de poder nas competições do anfiteatro e do
hip d o o ,à o à esta pesquisa, pretendeu-se realizar um estudo das práticas
mágicas como instrumento de administração de conflitos na sociedade romana, com
base nas fontes denominadas defixiones ou cursetablets, e dessa forma, compreender
o cotidiano urbano das cidades norte-africanas no Baixo Império Romano, por
intermédio da análise dos conflitos entre aurigas no espaço do circus. Desta forma,
nesta crítica, traçar-se-á um panorama de como ocorriam as competições no recinto
das cidades, com ênfase nos ludi circenses, ou seja, nas atividades esportivas do circo
romano, identificado também pela cultura helênica como hipódromo. Para tal, o
aporte teórico-metodológico segue o referencial das representações das práticas
sociais, desenvolvido pelo historiador francês Roger Chartier, ligado à Nova História;
juntamente com a perspectiva de cotidiano, e este por sua vez, relacionado ao lazer e
ao espetáculo.
Em função disso, a intenção dessa comunicação é tripla. Primeiramente,
pretende-se analisar o espaço das civitates romanas inseridas no Império, além do
circo romano, loci dos ludi do circo, na intenção de apreender as atividades
desenvolvidas dentro da perspectiva de lazer. Em um segundo momento, fazer um
pa aleloà o à oà espaçoà itadi oà daà Cidadeà Ete a .à Po à fi ,à a alisa -se-ão as
contribuições desses ambientes na realidade social, como também no processo de
construção da identidade romana na Antiguidade Tardia.
O romano e a civitas: as práticas cotidianas do Império Romano
243
Co oàpo tuaàNo e toàLuizàGua i elloà
,àp.
,à oàI p ioà‘o a oàe aàu à
I p ioàdeà idadesàe,àaoà es oàte po,àoàI p ioàdeàu aà idade .àElu idati a e te,à
o que o autor expressa, é que com as anexações territoriais, a vida e a estrutura
cotidianas de Roma passaram por expressivas alterações. A Capital imperial
enriqueceu e a vida dos romanos modificou-se; juntamente com todo o seu
entendimento sobre o mundo. Neste momento, Império Romanoabarcava desde
possessões ocidentais e orientais na Península Itálica, ao extremo norte com a
Germânia, perpassava a Península Ibérica; contemplava a bacia mediterrânea da África
e da Ásia Menor, além de outros domínios pelo mar Negro e no Oriente Próximo
continental até o delta do Nilo. Acredita-se que, nessa confluência, cada área
dominada apresentava seus aspectos idiossincráticos, principalmente no que concerne
a sua sociedade, para além de sua economia.
Em função da natureza da fonte, optou-se pelo recorte local ocidental,
especificamente o norte da África para essa comunicação. As civitates norte-africanas,
grosso modo, compunham um emaranhado de cidades de origens diversas. Dessa
maneira, em nosso estudo, enfocaremos a cidade de Cartago. Esta apresentava, como
as outras grandes cidades imperiais, uma efervescente cultura lúdica, com destaque
para seu hipódromo.
Para além do topográfico, poderíamos conceber o extenso Imperium Romanum
– um Império heterogêneo, comportando diferentes culturas e povos – como uma
confederação de cidades relativamente autônomas, com Roma exercendo o papel de
centro político hegemônico (MENDES, 2004, p.258). Lima Neto (2011, p.72) entende
que as diversas civitates, espalhadas pelo orbis romanorum, serviram como células
base de sustentação dessa centralidade política. Em função disso, acredita-se que
novos mecanismos foram implementados a fim de permitir ações socioculturais de
integração e sociabilidade, relacionando os diferentes indivíduos pertencentes aos
diversos grupos sociais dentro do território imperial, criando assim um elemento
legitimador pelo sentimento de pertencimento (OMENA, 2008, p.01). 1 Esses
1
Concordando com Mendes, consideramos que esse elemento de manutenção esteve ligado à criação
de um sistema de valores compartilhados entre seus membros, embora apresentem motivações e
interesses distintos, formado com base nos padrões culturais do centro imperial, que sobrepujou a
diversidade local. Isto se refletiu em todas as variáveis que marcam a presença imperial (formas de
organização do espaço, arte, cosmologia, estilo arquitetônico, práticas sociais, rituais), as quais, atuando
244
mecanismos foram colocados em prática pelos vários imperadores ao longo da história
de Roma, e nossa apreciação se deterá na análise lúdica do espaço urbano, que está
intimamente imbricado a essas relações de poder entre o princeps e os súditos.
Esta e os,à i e ita el e te,à e fo a doà oà pode à doà so e a oà aà so iedadeà o a a,à
entretanto, a relevância dele assim como dos outros agentes sociais ocorrem por
serem pessoas através das quais o poder transita, quer dizer, como figuras
i po ta tesà oà a poàdasà elaç esàdeàpode à OMENá,à
,àp.
.
Observamos, na experiência romana, que a prática de fundação de cidades era
importante para manutenção do domínio nas regiões conquistadas; sendo identificada
também como o fator civilizador. Deu-seà elasà
oàs àoà o a iza -se ,à
asàta
à
novas concepções que propunham novas formas de organização política e social para
asà easà o
uistadas à BO‘GE“,à
,à p.
ideiasà oà e te di e toà deà Pie eà G i alà
.à Dessaà fo
,à p.
a,àpode osà si tetiza àessasà
:à [...]à aà idadeà o a aà e a,à
sobretudo, o símbolo onipresente de um sistema religioso, social, político e cultural
que formava a estrutura da humanitas .
Deve-se fundamentar a presente discussão na importância que esse ambiente
citadino possui, sobretudo, como forma de expressão de poder, que se manifesta na
criação das identidades, e conseqüente mobilização dos indivíduos nela reunidos.
Essas manifestações só podem ser percebidas, porque o espaço urbano é o produto da
realidade social, exprimindo conflitos, tensões, censuras e as estruturas de domínio.2
Acerca dessa relação, concordamos com Regina Bustamante (2006, p.116) que
em termos materiais, o poder de Roma precisava ser evidenciado na
organização e na construção de monumentos e obras públicas que tinham a
cidade como seu espaço privilegiado. Os antigos romanos pretendiam
de forma não coercitiva, favoreceram a cooptação, a cooperação e a identificação dos grupos locais com
o centro dominante. (MENDES, 2000, p.442)
2
Para definir-se espaço aceita-se as noções conceituais utilizadas por Borges (2009, p.02) com base em
Henri Lefebvre (1991) em seu The Production of Space. “egu doà oà auto ,à [...]à oà espaçoà podeà se à
compreendido como um produto social no qual cada sociedade produz a sua própria concepção com
base na especificidade de suas relações so iaisà eà deà pode .à Desseà odo,à oà estudoà deà taisà espaçosà
so iais à le a iaà e à o taà aà a liseà o ju taà dasà p ti asà so iaisà e ol idasà oà p o esso,à asà
representações do espaço construídas e disseminadas no ethos da sociedade e a criação de espaços
represe ta io aisà ueà pe petua à aà is oà deà u doà o pa tilhada. à Eà asà pala asà deà Pete à Bu keà
(2006), onde identifica o espaçoàu a oà o oà oàse doà [...]àu àa o toadoàdeàped as,à o st uç esàeà
vielas, mas um local em que se caracteriza pela materialidade como forma de retenção e transmissão de
memórias como lápides, estátuas, medalhas, monumentos particulares e públicos como é o caso do
f u ,àdoàteat o,àdoàa fiteat oàeàdosà al e iosà o a os .
245
ordenar e integrar os lugares que governavam como edificadores de cidades,
ou seja, transformando-os em espaços urbanos, que se constituíram em um
sistema de signos, em um relato do seu poder. A cidade tornava-se, então, a
construção material e simbólica do lugar pelo Império Romano.
Tal como citado pela autora, a criação de espaços públicos afetou
sobremaneira a constituição de um ambiente simbólico dentro da urbs, pois se
e te diaà [ ue]àoàte it ioàdeàu aà idadeàe aàpe e idoà o oàse doàpa teài teg a teà
deà ual ue à o u idadeà
itaç oàdeàJoh àGage à
i a à POTTE‘,à
,àp.
,à p.
.à Es la e edo aà ta
à à aà
àsegu doàaà ualà nas grandes cidades do mundo do
Mediterrâneo antigo, a ampla parte da vida desdobrou-se em lugares públicos –
teatros, anfiteatros, hipódromos, odeums, estádios e o circus .à Eà à pa ti doà desseà
pressuposto que traçaremos uma leitura da complexa relação entre cidade e lazer.
O romano e o circo: a complexa relação entre a política e o lazer
Parece-nos claro que cada um desses recintos supracitados por Gager merece
uma análise cuidadosa, principalmente os complexos de entretimento. Nessa breve
crítica, optou-se pelo circo romano, uma das maiores instalações da arquitetura cívica,
que juntamente com o teatro e anfiteatro compunham a trilogia de lazer na época
imperial. Os circos romanos, inspirados nos hipódromos e estádios gregos, devem ser
entendidos como "edifícios de entretenimento de grandes dimensões utilizados em
primeiro lugar para as corridas com quatro cavalos (quadrigæ) ou com dois cavalos
(bigæ), [...] (e) sede dos mais populares, mais caros, e dos mais grandiosos espetáculos
o a os à HUMPH‘Eζ,à
6, p.01). Era um recinto alargado e de grandes instalações
destinadas a divertir o povo, com remates circulares nos extremos. A arena, alongada,
era dividida em duas partes pela spina, que costumava ter colunas e estátuas bem
como obeliscos comemorativos, formando duas ruas por onde corriam os cavalos e
seus cavaleiros (FUTRELL, 2006, p.73). A fachada exterior da estrutura muito se
assemelhava ao esquema decorativo dos teatros e anfiteatros romanos, ou seja, uma
série de arcos e colunas que permitia o acesso do espectador e sua movimentação. O
circo, como um tipo de construção formal, atingiu seu ápice com as inovações
concebidas para as reconstruções do Circus Maximus, fornecendo então um modelo
246
para todas as outras estruturas fora do território da capital,3 mas que igualmente eram
espaços destinados a corridas, espetáculos e representações que comemoravam os
acontecimentos do Império (FUTRELL, 2006, p.68).4
Foi sob o comando imperial que os jogos (ludi em latim; agones em grego)
foram incluídos definitivamente no calendário de festividades romanas (feriae). Este
era imenso e comportava verdadeiros ciclos festivos bastante heterogêneos nas
formas de comemoração. Os Spectacula eram empreendimentos públicos feitos por
razões religiosas e/ou políticas e que ajudavam a reforçar a ordem e o status social de
seus participantes.Entendemos espetáculo tal como Jean-Marie Apostolidès (1993,
p.
,à aà opi i oà daà auto a,à [...]à oà espet uloà à u aà e essidade intrinsecamente
associada ao exercício do poder: o monarca deve deslumbrar o povo. O cerimonial
associado ao monarca tem por função tornar visível o imaginário do corpo simbólico.
[...] longe de serem autônomas, as diferentes artes só encontram sua vitalidade no
dis u soà pol ti oà ueà asà o ga iza .à Deà fato,à estesà e a à p o o idosà ta toà peloà
imperador quanto pelos magistrados locais. São comumente divididos pelos locais em
que ocorriam: chão dos circos (ludi circenses), para corrida de cavalos e carros, arena
de anfiteatros (ludi) para combates de gladiadores e de feras (munera e venationes), e
palco dos teatros (ludi scaenici), para representações cênicas e concursos e
apresentações de música, mímica e pantomimas (GONÇALVES, 2008, p.49). Cada um
desses eventos tem uma história particular de desenvolvimento, sendo que as
modalidades clássicas de entretenimento urbano em Roma se ampliam entre o
primeiro e quarto século, o que exprime a habilidade considerável do sistema imperial,
tanto para absorver como influenciar as escolhas das populações que se estabeleciam
pelos amplos domínios do Império. O circenses, em especial, era o espetáculo mais
antigo que os jogos de gladiadores, e tinha sua provável origem em tradições etruscas
3
[...]àtodaà o st uç oà àu aàesp ieàdeà o u e to,àtoda iaàoàseusàse ti e tosàeàsuasàse saç esàpa aà
serem sentidas pelos indivíduos, estes deverão possuir umconhecimento pré-existente do seu conteúdo
ou significado. Essa percepção se fundamenta pelo fato de que monumento foi uma derivação da
palavra memorial, que por sua vez remonta ao nome da deusa grega da memória, chamada Mnemosine
(grego) ou Moneta lati
à OMENA, 2008, p.15).
4
John Humphrey (1986, p.579) apresenta o início do século IV, como a época mais importante para a
construção de circos, sendo cinco estreitamente datados a este período por razões estilísticas. Ele traça
uma associação entre os novos e aprimorados circos e as residências imperiais no final do Império.
Dio le ia oàesta ele euàoà odelo em Nicomédia e os outros líderes tetrarquicos seguiram ligando os
circos aos palácios imperiais. [...] deste grupo, o Circo de Maxêncio, em Roma, representa o final do
dese ol i e toàdoàp ojetoàdosà i osà o a os .
247
e um sentido estritamente religioso, como vemos nas lendas romanas que atribuíam a
Rômulo a criação dessas provas, provavelmente, em honra a Plutão; e posteriormente
associadas pela tradição ao reinado de Tarquínio Prísco (616-579 a.e.c.), que teria
mandado construir o primeiro circo, ainda de madeira, em Roma. Essa crença se baseia
no fato de que teria sido neste lugar que Rômulo e seus companheiros teriam raptado
as Sabinas. Este, que viria a se tornar o Circus Maximus, foi um dos maiores
hipódromos da Antiguidade. A corrida teria um caráter religioso, pois ao seu término o
cavalo vencedor era sacrificado e seu sangue era usado para purificações rituais com o
fim de garantir a fecundidade da terra e do povo. A corrida seria o instrumento para se
perceber o vigor dos animais e selecionar o melhor deles, cujo sacrifício seria mais
eficaz a urbs (ALMEIDA, 2009, p.106).
As cerimônias dos Jogos eram iniciadas com pompa, uma procissão solene
semelhante à cerimônia romana do triunfo, decretado pelo Senado aos magistrados
que houvessem terminado uma campanha militar com vitória significativa. Nos Ludi
Romani, realizados entre cinco e dezenove de setembro, comemorava-se o aniversário
do templo de Júpiter. Os festejos eram iniciados com um banquete em homenagem à
divindade. Posteriormente, uma procissão, que ia do Capitólio ao Circo, representava a
hierarquia da sociedade romana. A procissão solene, com imagens de deuses e de
imperadores falecidos divinizados, terminava com sacrifício e era instituído o início dos
Jogos, que ao final adquiria um caráter religioso. O sinal de largada era dado pelo
magistrado que presidia os jogos, ao agitar um lenço branco. Ele ficava em uma
tribuna acima dos carceres. As carruagens partiam em grande velocidade para uma
corrida de sete voltas na pista do hipódromo.
No entanto, para além das corridas, como observado anteriormente, havia
outros tipos de espetáculos. Não havia somente corridas, pois, o entretenimento no
ludi circenses deveria ser muito mais complexo, obrigatoriamente se fazia como um
espetáculo completo que divertisse o populus por dias inteiros. Dessa maneira, havia
corridas de homens montados em dois cavalos emparelhados, nas quais se julgavam a
rapidez dos animais e a perícia dos cavaleiros (desultores) em passar de um cavalo para
outro em certos momentos da corrida, ocorrendo exibições hípicas mescladas com
acrobacias. Eram eles que entretiam a multidão nos intervalos das grandes corridas.
Exposições foram montadas com armas e jogos de guerra, para simular combates e
248
grandes vitórias. Outras atividades também estão documentadas, como a luta entre
pugilistas (pugillatus), o atletismo, dardo e disco. As corridas, ao mesmo tempo, eram
a oportunidade para os romanos se divertirem com outra de suas grandes paixões: a
aposta – denominada sponsio (GONÇALVES, 2008, p.51).
O romano e os ludi circenses: uma leitura do lúdico e da tensão social
Percebemos, a partir da atuação do Estado e de sua relação com uma
população urbana, carente de entretenimento, é que os ludi se afirmam como umas
das principais modalidades de lazer, com várias implicações sociais. No circo ou nos
anfiteatros, os imperadores demonstravam sua opulência e mediam sua popularidade,
preocupados em oferecer um espetáculo digno aos concidadãos e receber prestígio do
po o.àáfi al,à [...]àtodosàsa ia à ueàaà a ei aàpol ti aàdeàu àho e àpú li oàdepe dia,à
entre outras coisas, da quantidade e da qualidade dos espetáculos por ele oferecidos à
idade à FE‘‘EI‘á,à
,à p.
.à Elessi
oliza a à igual e teà ades o a um
determinado processo de identificação, gerando fidelidades e lealdades por parte de
determinados setores da população romana, mas também o afastamento de outros
grupos, como por exemplo, os cristãos que eram contrários desde o começo aos jogos;
isso pode ser percebido pela análise de Alison Futrell (2006, p.76) em seu livro The
Roman Games em que entende que para alguns romanos, o circo foi uma
manifestação do cosmos. O autor afirma que
os motivos por trás desta afirmação estão incorporados na ligação entre a
religião e a arquitetura, que vão além dos significados específicos atribuídos
pelos autores antigos para as características de corridas de bigas e do
próprio circo. Os rituais de fundação da cidade, por exemplo, eram um meio
de elaboração do paraíso para dentro da paisagem terrena, incutindo no
ambiente urbano o poder e a proteção do divino. As ligações específicas
entre o espetáculo e o poder imperial, feitas pelos imperadores
proeminentes, também estão incluídas entre a ordem divina e da realidade
experiencial dos jogos romanos: o Imperador foi o agente dos deuses, e
tudo que ele criou foi abençoado e santificado pelos próprios.
Flo e eà Dupo tà
,àp.
,à e te diaà [...]à aàidaà aosà espet ulosà o oà u à
sinal de submissão direta ao imperador, por isso, os senadores consideravam os
prazeres lúdicos populares como sendo desprezíveis, principalmente por recusarem no
jogoàoàseuàsig ifi adoàpol ti o .àIssoà osào igaàaào se a àu ài po ta teàfato à o tidoà
249
nos espetáculos: eles eram muito mais do que um mecanismo reprodutor de uma
hegemonia de grupos dominantes. Expressavam uma complexa relação de mútuo
auxílio entre a massa e o princeps: este distribuía privilégios e benefícios, e a massa,
por outro lado, reconhecia-o e legitimava-o no poder. Dessa maneira, entendemos que
osà espaçosà dasà
idadesà e a à
aisà doà ueà espaçosà
o u e tais,à
asà ta
à
ajudaram a difundir os ideais políticos e culturais de Roma, em áreas sob controle
o a o à EDMOND“ON,à
,à p.
.à Masà e à se p eà asà idadesà o ta a à o à aà
estrutura necessária para os jogos.
O pré-requisito para as corridas eram hipódromos, para acomodar a multidão,
e esta é provavelmente a razão pela qual esse tipo de ludus demorou a se difundir por
todo o Império. Até o século III não possuímos relatos de circos de importância além
do de Roma e de outras grandes cidades do Império, como Alexandria, Antioquia e
Cápua. Fato é que até o final deste século, o pulvinar, a plataforma que dá suporte ao
camarote imperial, no Circus Maximus na Capital, havia se tornado o principal lugar
para a comunicação entre o imperador e seus súditos, fazendo do circo romano uma
extensão quase que obrigatória da paisagem urbana e do palácio imperial, onde quer
que estes fossem construídos (POTTER, 2006, p.387-388). Segundo Potter (2006,
p.408-409):
O governo imperial desempenhou um papel significativo na formação do
gosto de seus súditos, uma das características mais marcantes da paisagem
urbana do Império Romano é a onipresença de edifícios associados a todos
os tipos de entretenimento. [...] o Estado romano, apoiando o governo local
baseado em um modelo de beneficiamento cívico, favoreceu a difusão de
toda a gama de entretenimento. O resultado foi que entre os séculos I e IV
d.C a cultura do espetáculo surgiu no território do Império Romano, e
ajudou a forjar uma cultura comum urbana ímpar antes da era moderna.
Destarte, a posição política dentro do circo romano não se restringia apenas ao
pulvinar imperial, muito pelo contrário, as relações de poder dentro do espaço do
circus perpassavam as tribunas, os assentos comuns até os carceres. Freqüentemente
eram oferecidas as magistraturase as ordo decurionum os privilegiados assentos nas
primeiras filas ressaltando a predominância social desses estamentos políticos nas
ocasiões cívicas, que não se encerravam nesses espaços delimitados, se prolongando
em banquetes ou jantares, de óbvia excludência social, à custa do tesouro público.
Porém, eram na contribuição de fundos para a realização de jogos e instalação de
250
complexos de entretenimento vistos como melhoramento da vida cívica, que a elite
local angariava o apoio dos membros menos abastados de sua comunidade e deixavam
sua marca na paisagem citadina (EDMONDSON, 2006, p.275). Afinal, os decuriões
deveriam contribuir com fundos para a organização dos espetáculos no ato de seu
ingresso na cúria da cidade.
A situação para o participante-espectador nos carceres e nos assentos comuns,
segu doàJoh àGage à
,àp.
àe aà o idaàpelaàte s o,à [...]àsuspe seàeàaàe ultação
em relação aos resultados, e dependendo deste, o prazer da vitória ou o desespero da
de ota .àPa aàtodosàosàe ol idos,àoà esultadoàdaà o petiç oàe aàfu da e tal.àE a à
nos carceres que ficavam os veículos empregados nas competições, principalmente as
bigas (carruagem com estrutura de madeira muito leve puxada por dois cavalos) e as
quadrigas, bem como seus condutores, que, em função de seu desempenho, gozavam
deà oto iedade.àU aà o idaà li pa àe aà istaà o oàe tedia teàeàu à o hei oàdeà is oà
tornava-se um ídolo das massas. Com a popularização das corridas, os corredores
foram se dividindo em equipes repartidas por cores, as chamadas factiones, que se
organizavam em associações profissionais. 5 Existiam as equipes vermelha (factio
russata), branca (factio albata), azul (factio veneta) e verde (factio prasina).6 As
equipes representavam as estações do ano. O vermelho, o verão; o azul, o outono; o
branco, o inverno e o verde, a primavera. Isso ajudava o público, inclusive o imperador,
a identificar o seu corredor em função da sua preferência.
Em meados do século V, associações de admiradores de uma factio específica
seàag upa a àe à lu es,àestesàe a à [...]àg uposàp i adosà o àp ese çaàpú li a,àu à
dos meios restantes de elaboração de identidade social em um mundo que diminuía as
filiaç esà t adi io ais à FUT‘ELL,à
,à p.
.à Estesà i teg a tes,à talà o oà osà
competidores, usavam as cores de suas facções quando participavam dos espetáculos,
o que era um marcador visível de sua filiação ao grupo. Sentavam-se juntos em seções
5
Somente as grandes cidades com jogos freqüentes na Península Itálica ou nas províncias maiores
poderiam apoiar facções economicamente. Na maioria das áreas, eram os magistrados locais que
fizeram os seus próprios jogos. As Facções, na opinião de HUMPHREY (1986, p.370), aparecem como
uma instituição formal de financiamento público para regular as raças e a necessidade de maior
eficiência e profissionalismo na organização das populares corridas.
6
Durante a República, havia apenas duas facções a russata e albata. No início do século, são
adicionadas a prasina e veneta. Domiciano (81-96), outro amante das corridas, chegou a criar mais duas
equipes, a dourada (factio aurata) e a púrpura (factio purpurea), mas não tiveram longa vida,
desaparecendo com sua morte. Estas representavam as cores do poder imperial e eram organizadas e
financiadas pelos recursos inesgotáveis do Imperador. (EDMONDSON, 2005, p.19-21)
251
reservadas, onde adotavam um comportamento que lhes conferia identidade como,
po àe e plo,àoàe p egoàdeà pala asàdeào de
,àouà o i hosà e ài gl s,à their group
chants; traduzidos em uma versão livre como gritos-de-guerra) que com gritos e
palmas, eram destinados a estimular os seus atletas ou intimidar seus adversários.
Ta
à podia à a ti ula à uest esà deà i te esseà pú li o.à Elesà pode ia à a ta à
demonstrando alívio em tempos de escassez de cereais, para flexibilização dos
impostos, e para melhoriasà oàespet ulo à FUT‘ELL,à
O
,àp.
-211).
conceitoromanodelazerestáprofundamenteimbricadonanoçãode
status.
Alguns estudiosos, tais como Toner (1995), Balsdon (1969) e mais recentemente Fagan
(2008) discutem os jogos propondo que Oàlaze à àu àsiste aàdeàs
olosà ueàatuaà
para estabelecer uma sensação de liberdade eprazer pela elaboração de um senso de
es olhaà eà desejo à FAGAN, 2008, p.369-370). Certamente que é nessa intensa
capacidade de excitar que reside a característica primeira do jogo, porém, o jogo
também pode ser compreendido a partir da função social que desempenha
(HUIZINGA, 2007, p.05-6). É nessa perspectiva que procuraremos discutir sua
importância, afinal muito do que se tem escrito acerca das arenas de diversão pública
no Império descrevem como estas realçaram o domínio e reforçaram a ordem social
romanaafirmando-se na dinâmica das relaçõessociaisdentroda cidade no mundo
romano.
Em Roma, o lúdicose apresentava muitomenosordenadodo que se sugere.Tal
como Huizinga (2007,à p.
eal .àPeloà o t
à des e eu:à [...]à oà jogoà
oà à idaà o e te à e à idaà
io,àt ata-seàdeàu aàe as oàdaà idaà eal àpa aàu aàesfe aàte po
iaà
deàati idadeà o ào ie taç oàp p ia ,àju ta e teàGonçalves (2006, p.16) elucida que
áà li guage à festi a é sobretudo imagética, o que explica seu alto poder de
persuasão, de busca de consentimento e de apoio ao poder, garantindo uma
i p ess oà deà u idade,à fu da e talà pa aà aà a ute ç oà doà o a do .à à Parece-nos
claro então que não é possível dissociar a prática lúdica dentro do circus romano do
conceito maior já discutido de espetáculo ou da festa. Esse espetáculo deve ser
entendido como momento festivo, uma cerimônia tipicamente pública. Sobre isso
Go çal esà
,à p.
à a es e taà ueà
à u aà fo
aà sofisti ada muito antiga de
comunicação com objetivo político, pois as festas ajudam a manipular a opinião
pública, a persuadir através de imagens e a legitimar o mando, sendo, deste modo, um
252
dosà
iosài st u e tosàdeàpode .ààPe e eàe t oà ueà àpo à eioàdasà e sagens, da
imagética e dos símbolos que fortificarão ou implementarão a manutenção do mando,
ajudando assim no controle social (GONÇALVES, 2006, p.16). Fundamental é esse
entendimento. As manifestações de poder dentro destes ambientes não se associam à
simplicidade; muito pelo contrário sua principal característica é a grandeza e a ostentação
estas demostradas pelos organizadores dos jogos, a citar os magistrados ou o próprio
imperador.
Assim
tambémasdivisõesestamentaispresentesna
organizaçãodoespetáculoeram susceptíveis deser contestadas.Virtualmentetodos os
aspectosdahierarquiaromanapoderiam ser em alguma circunstância, ameaçados pelos
jogos e festas. De acordo com Potter (2006, p.385):
[...]
execuções
em
público
poderiamdar
erradose
amultidãoexigissealiberaçãodoscondenados, gladiadorespoderiamse tornarheróis,
cavaleirospodiamse tornarmilionários, eos atorespoderiamdesafiara ordem da
sociedadepelocaminhoque eles escolhessem paraproferirsuaslinhas. Para serbem
sucedido,
um
espetáculotinha
queofereceruma
oportunidadepara
aradicalmudançasda fortuna, se quissesse incitar as paixõesdos seus espectadores.
A paixão cotidiana dos romanos pelos jogos extravasava nos locais de
entretenimento, tornando-os, em alguns casos, locus de comportamento transgressor.
Autores antigos já enfatizavam a dificuldade em limitar o entusiasmo da população e os
perigos do caos representado pela ameaça de mobilização política na área externa ao circus
(FUTRELL, 2008, p.214). Outro motivo de preocupação para as autoridades municipais
eram os tumultos que colocavam a segurança geral em risco, principalmente devido
aos partidarismos descontrolados. Futrell (2008, p.214) reconhece que apenas uma
pequena minoriadosadmiradoresformalmentefiliadosaos clubes se responsabilizava por
ajudar aorganizaras suasatividades,especialmenteaquelasquenãose limitavam àarena;
fato é que as identidades sociais criadas em função da intensa conexão e o sentimento
de pertencimento gerado entre os participantes dos clubes eram um dos fatores das
rebeliões populares.
Nossa intenção nessa comunicação foi justamente perceber a interação dos
ludi com o ambiente citadino dentro da matriz imperial romana da Antiguidade Tardia.
Propor análises e uma leitura daquilo que entendemos como fatores contributivos
para o desenvolvimento de identidades e relações de pertencimento no recorte
253
proposto. Porém, é impossível não finalizar denotando que todos esses fatores, dentro
e fora do circus, possibilitaram que admiradores exaltados surgissem. Afinal, foi dentro
desse contexto, que as práticas mágicas e o envenenamento de rivais permearam o
ambiente citadino, e igualmente o hipódromo. As fontes atestam o uso freqüente da
magia com esse propósito. Entre as tabellae defixionum ou curse tablets - tabuinhas de
maldição ou feitiçaria, em uma tradução literal - encontradas próximas aos túmulos ou
aos locais de espetáculo, foram achadas algumas que conjuravam a vitória de um
atleta mediante a eliminação de seu oponente (CARCOPINO, 1990, p.260).7 As fontes
utilizadas em nossa pesquisa foram exatamente esses encantamentos. Analisando
essas tábuas execratórias, buscamos alcançar o intenso convívio dos habitantes das
cidades nos circos e hipódromos, que estimulava a rivalidade e o conflito; perceber o
cotidiano. A magia foi um dos meios utilizados para a resolução desta desordem social,
temos que igualmente ressaltar como Artur Ribeiro (2006, p.239-240), que elas
São documentos que se situam na fronteira, notoriamente mal definida, em que
magia, religião e, em certa medida, o direito se mesclam. Estamos na área da sorte
e do azar [...] onde se envolve a própria saúde e as relações com outras pessoas,
domínios em relação aos quais se procura obter toda a ajuda possível. As tabellae
defixionum servem, ao mesmo tempo, para assegurar azar de outro indivíduo ou
para corrigir o azar do próprio.
Referências bibliográficas
Documentação primária impressa
GAGER, John Goodrich. Curse Tablets and Binding Spells from the Ancient World. New
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Obras de apoio
7
Às vezes, os corredores não apenas aguardavam o que tinha sido pedido na defixionum tabellae.
Existiam casos não raros em que o condutor do carro para tentar a sorte, prejudicava o adversário ou
seus cavalos através do uso de venenos. Vindo a utilizar até mesmo especialistas em envenenamentos.
O condutor do carro que fosse flagrado na prática de magia para prejudicar outros, seria imediatamente
o de adoà à pe aà
i aà eà e e uç o.à La existencia de magos profesionales está suficientemente
estudiadaà à de ost ada,à [...]à id.,à aà D.‘.à Jo da ,à [
]. à LOPÉ)à JIMENO,à
,à p. ) O condutor do
carro que fosse flagrado na prática de magia para prejudicar outros, seria imediatamente condenado à
pena máxima e execução.
254
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256
RITO, CELEBRAÇÃO E RELEITURA EM A CEIA
DOMINICANA: ROMANCE NEOLATINO, DE REINALDO
SANTOS NEVES
Nelson Martinelli Filho (Mestrando – UFES)
O ato de aproximar duas obras literárias carrega consigo algumas
responsabilidades que nem sempre são atendidas. É provável que a causa de tal
negligência tenha origem num velho e equivocado pensamento de que tudo se pode
numa interpretação ou, em outros termos, que não há interpretação errada em
literatura. Essa indiferença às peculiaridades de cada obra produz leituras anacrônicas
ou forçadas que culminam, às vezes, em um completo descaso a fatores históricos e
sociais que balizam as produções, deixando de se considerar que contextos diferentes
podem engendrar valores diferentes. A situação torna-se ainda mais desafiadora
quando se trata de um texto produzido a uma grande distância temporal, ou mesmo
geográfica, daquele que se põe a perscrutá-lo. Nesse caso, como não mencionar o
emblemático estudo sobre Gregório de Matos efetuado por João Adolfo Hansen1?
Alinhar duas obras produzidas em contextos históricos, sociais, econômicos e
geográficos distintos, portanto, torna-se um exercício de equilibrismo cujo
balanceamento entre as partes é fundamental para a sustentação do todo. Este
trabalho, todavia, divide a responsabilidade de tal empresa com o próprio autor,
Reinaldo Santos Neves, que assumidamente vai buscar no Satyricon, de Petrônio, o
modus operandi de sua obra A ceia dominicana: romance neolatino (2008). Apesar de
ser substancial, o texto petroniano não é o único a ser utilizado por Reinaldo para
compor o seu romance. Com efeito, A ceia dominicana é um intrincado conjunto de
alusões, citações, apropriações e releituras de textos clássicos. Em maior ou menor
grau, encontramos referências a Odisseia, de Homero, Sátiras, de Horácio,
Metamorfoses, de Ovídio, O asno de ouro, de Apuleio etc. A Antiguidade clássica está
tão arraigada em A ceia dominicana que se trata, muitas vezes, de uma tarefa
impossível determinar onde começam e onde terminam as vozes desses autores e a de
1
Cf. HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia no século XVII. 2. ed. rev.
São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
257
Reinaldo. Do mesmo modo, seria fatalmente frustrada qualquer tentativa de retomar
todos esses textos neste trabalho de curto fôlego. Por isso, concentraremos nossa
atenção na obra reinaldiana sob apenas alguns vieses de um único texto: o Satyricon.
Obviamente, o conceito de intertextualidade perpassará por todo este trabalho.
Em teorias modernas, sabe-seà ueàelaà desig aà
oàu aàso aà o fusaàeà iste iosaàdeà
influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado
por um te toà e t alizado ,à ueà det
à oà o a doà doà se tido à JENNζ,à
,à p.à
.à
Porém, o exercício de referir-se a um texto em outro possui variada terminologia
quando se fala da Antiguidade clássica – a teàalusi a ,àimitatio etc. Sobre esse assunto,
adotaremos a posição de Alessandro Barchiese e Gian Biagio Conte2:
Por sua maior amplitude, vem-se afirmando o termo todo-abrangente
intertextualidade. Ele tem a vantagem de englobar objetiva e empiricamente
o fenômeno da co-presença de um ou mais textos em outro. Não por acaso o
conceito nasce quase como resposta implícita e contra-altar a
i te su jeti idade :à o oà aà dize à ueà e à lite atu aà oà seà podeà o fia à
somente num diálogo entre sujeitos, mas é preciso admitir a existência de um
sistema formado de relações entre textos. A vantagem é que pensando em
termos de intertextualidade não se exclui aquilo que imitatio ouà a teàalusi a à
sabem captar, e se adapta a abranger muito mais. Por exemplo, a atividade
cooperativa do leitor que o texto prevê está aí incluída da mesma forma que
a transformação dos modelos operada pelo autor (BARCHIESI; CONTE, 2010,
p. 93-94).
Isso posto, vale a pena elaborar uma questão para iniciar a exegese: o que
levaria um autor, em pleno século XXI, a tomar como base um texto fragmentário e
rodeado de indeterminações para construir, mais de 1900 anos depois, um romance
ambientado em tempos e regiões completamente distintos? Para além de meramente
apontar os contatos entre ambos os textos, tentaremos pôr em jogo esse
questionamento para, jogando-o de diversas maneiras, esboçarmos alguns traços que
permitam delinear, sob um certo ponto de vista, a(s) estratégia(s) adotadas por
Reinaldo Santos Neves para a releitura de um texto clássico.
Antes, entretanto, de ir diretamente aos textos literários, convém tecer alguns
breves comentários sobre ambos os autores e suas respectivas obras. Reinaldo Santos
Neves nasceu em 1946, em Vitória-ES, e publicou, entre outras obras, oito romances:
Reino dos Medas (1971), A crônica de Malemort (1984), As mãos no fogo: o romance
2
Gian Biagio Conte é também o autor de um conhecido trabalho sobre o Satyricon: CONTE, Gian Biagio.
The hidden author:à a à i te p etatio à ofà Pet o ius sà Satyricon. Translated by Elaine Fantham.Berkeley;
Los Angeles; London: University of Califórnia Press, 1996.
258
graciano (1984), Sueli: romance confesso (1989), Kitty aos 22: divertimento (2006), A
longa história (2007), A ceia dominicana: romance neolatino (2008) e A folha de hera:
romance bilíngue (2010). Por outro lado, pouco se sabe sobre Petrônio ou mesmo
sobre sua obra. Assim como muito do que foi produzido na Antiguidade, grande parte
do Satyricon não chegou até nós3. Sobreviveram, ao todo, 141 capítulos, que se
constituem como fragmentos de três livros consecutivos (14, 15 – este com maior
integridade – e 16). Sendo uma obra tributária à Odisseia, alguns pesquisadores
arriscam dizer que sua extensão pudesse ser a mesma desta épica homérica, ou seja,
vinte e quatro livros. Assim, o que temos seria apenas um pequeno trecho, ainda por
cima lacunar, do texto original, o que diminui a possibilidade de produzir conclusões
peremptórias sobre a narrativa. Resta aos leitores supor, a partir desses fragmentos,
possíveis situações e cenas apresentadas nos livros que faltam ou mesmo calcular a
importância, em termos de conjunto, do que chegou à contemporaneidade. Além
disso, a própria identidade do autor é rodeada de incertezas. Algumas das poucas
informações biográficas que poderiam ser associadas ao Petrônio autor do Satyricon
seriam as encontradas nos Anais4, de Tácito, mais especificamente no livro 16, que
trata da morte de um C. Petrônio, que dedicava o dia a dormir e a noite a suas
obrigações e prazeres (Anais 16: 18-20). Apesar disso, não era considerado um
depravado, mas, antes, um apreciador dos prazeres. Sendo cônsul da Bitínia e
i teg a teà daà seletaà o teà deà Ne o,à hegouà aà se à o side adoà
it oà daà eleg
ia à
(elegantiae arbiter). Sobre o seu período de produção, com alguma segurança, pode-se
dizer que o texto foi escrito entre 62 e 64 d.C. É importante salientar, no entanto, que
não há consenso geral sobre essas questões sobre Petrônio e sua obra, embora boa
parte dos estudiosos concorde com essas versões aqui sinteticamente comentadas.
Po
,à o oà e àdisseàálf edàE out,à e à e it ,àtoutesàlesàsuppositio sà u o àpou aà
fai eà à eà suje tà eà se o tà ja aisà ueà fa taisieà età jeuà d i agi atio
aà e dade,à
todas as suposições que poderemos fazer sobre esse assunto serão somente fantasia e
jogoà deà i agi aç o 5) (ERNOUT, 1954, p. 14, tradução nossa). Assim sendo, o que
3
Para mais detalhe sobre os manuscritos encontrados, Cf. ERNOUT, Alfred. Le texte de Pétrone. In:
PÉTRONE. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Belles Lettres, 1958.
4
Cf. TÁCITO. Livro 16: 18-20. Anais. Tradução: J. L. Freire de Carvalho. São Paulo: W. M. Jackson, 1964. p.
436-437.
5
Agradeço à Profa. Dra. Fabíola Padilha pelo auxílio na tradução deste trecho.
259
importa, no nosso caso, é abandonar as especulações e se debruçar sobre o texto que
chegou até nós da exata maneira como ele se encontra, isto é, considerando-o uma
narrativa com início, meio e fim.
Da mesma forma que o Satyricon, A ceia dominicana possui a particularidade,
posto que em vias ficcionais, de ser um manuscrito encontrado cuja narração se dá em
primeira pessoa (Graciano no texto contemporâneo e Encólpio no clássico). Trata-se
de um texto deixado por Graciano Daemon, o mesmo de As mãos no fogo (1984) e de
Poe aà g a ia o à
supostaào aà
,à a tesà deà suaà epe ti aà o te,à e à
,à aosà
à a os.à áà
oàdei aàdeàte àfolhaàdeà ostoà aà ualàpode osàle à áà eiaàdo i icana:
Gratiani Daemoni satyrici liber à eà Notaà i t odut ia à NEVE“,à
,à p.à
-19)
ficcionais a fim de realçar o caráter de texto encontrado (recurso que se repetirá, mas
de modo diferente, em A folha de hera). A divisão em capítulos, aqui chamados de
rapsódias, retoma o modelo da Odisseia: 24 partes. Dessa maneira, poderíamos dizer
que se trata de uma recuperação palimpséstica, visto que o Satyricon, como já foi dito,
funda suas bases na epopeia de Homero e possivelmente teria o mesmo número de
capítulos. Este autor grego aparece ipsis litteris asà p gi asà
à assi à o oà seteà
a tigasà idadesàdisputa a àoàho osoàt tuloàdeà e çoàdeàHo e o àeà
à EàHo e o,à
lembrei. Ele meneou a cabeça: Não, as sereias de Homero não eram mulheres-peixes,
eram mulheres-p ssa os àdaào aà ei aldia a;àUlisses,àpo àsuaà ez,à à itadoàe à uat oà
o asi es:à asà p gi asà
Pe
à Le
ou-me, ali, um Ulisses canino reclamando a sua
lopeà eà to a doà posseà delaà se à faze à asoà algu à daà tu aà deà i ais ,à
à
Dei a do-me então atrair pelas azeitonas, estendi a mão e, assim como o ciclope
Polifemo colheu dois dos homens de Ulisses para curar a fome, colhi duas das
azeito asà e des ,à
à Qualàu àfilo
ti oàUlissesàdeàLi eu,à a a doàoàolhoàu oàdeà
um pobre ciclope indefeso e inofensivo àeà
à Daà a tadaàdessasàse eiasàs àes apouà
Ulisses,à eà assi à es oà po ueà eteuà u asà olhasà osà ou idos .à Out oà ele e toà
provindo das obras de Homero é a série de epítetos dados a alguns personagens, como
oà asoàdeàDo igosàCa i,à ha adoàdeà alu oàdeàdeus 6 (p. ex.: NEVES, 2008, p. 351).
6
Cf. PASSOS, Lucas dos. Gestos e nomes: Domingos Cani, de Reinaldo Santos Neves, e Eulálio
d ássu pç o,à deà Chi oà Bua ue.à Bravoscompanheiros e fantasmas4: estudoscríticossobre o autor
capixaba. Vitória: PPGL/MEL/Ufes, [2011?]. (Em fase de publicação)
260
Ainda sobre os aspectos formais de A ceia dominicana, deve-se destacar a
coexistência entre prosa e poesia no corpo do texto, tomando por empréstimo uma
das características de sátira menipeia do Satyricon. Os diálogos também espelham a
forma dos textos latinos, sendo amalgamados à narrativa sem travessões, aspas ou
parágrafos. Por último, a utilização de asteriscos (no caso de A ceia dominicana,
vinhetas) para separar partes da narrativa é um recurso herdado de modernas edições
de textos clássicos, tal como a de Alfred Ernout, do Satyricon. Todas essas informações,
e à o oàout asàso eàde aisàassu tos,às oàe o t adasàj à oà P ef ioàdoàauto à p.à
9-14), que precede os elementos ficcionais de falsa atribuição já mencionados.
Uma das primeiras referências ao texto petroniano, apesar de discreta, é
á editeià aàpala aàdelaà o oàe ào
uloàdeàsi ila à NEVE“,à
,àp.à
,à epeti do-
seàp gi asà àf e te:à áàsi ilaàdeàCu as,àaoàpedi àaosàdeusesàaà idaàete a,àes ue euàdeà
pedi à ta
à aà ete aà ju e tude à NEVE“,à
,à p.à
.à Esseà t e hoà e upe a iaà oà
seguinte mito citado no Satyricon:à Eàaà“i ila,àe t o?àE àCu asàeuà es oà hegueiàaà
vê-la com meus próprios olhos, dependurada numa garrafa. E como os garotos lhe
dissesse à “ibila, que queres?7 ,àelaà espo diaà Que oà o e ! à[Cá]8 (Satyricon 48: 8).
Para além de ser uma tangência ao texto clássico em pauta, esse trecho ganha maior
importância uma vez que foi recuperado em The waste land, de T. S. Eliot, um dos
textos de maior i flu
iaà oà Poe aà g a ia o à ta
à ha adoà deà O e à ouà Oà
e tau oà aàfo a 9), que forma uma trilogia com A ceia dominicana e As mãos no fogo,
e um dos autores favoritos do próprio Reinaldo. Alia-se a isso o fato (anunciado já no
P ef ioà doà auto ) de que é desse livro de Eliot que vai ter origem o personagem
Eugênides, portador de um bolso repleto de passas, que tenta seduzir Graciano. Além
do mais, o assunto (assumidamente recuperado de The adventures of Roderick
7
O mito da sibila de Cumas referido no Satyricon aparece, por exemplo, na Eneida. No livro 6, é ela que
acompanha Eneias pelos caminhos do Hades a fim de encontrar Anquises, pai do protagonista, nos
Campos Elísios.
8
Utilizaremos aqui as traduções de Sandra Braga Bianchet (2004), indicada pela sigla [SBB], e de Cláudio
Aquati (2008), indicada por [CA], de propostas distintas, mas igualmente importantes. Para o nosso
caso, será utilizada mais a primeira que a segunda, pois foi uma das quais Reinaldo Santos Neves leu.
Assim como fez o romancista em questão, não serão abordadas as traduções de Paulo Leminski e
Marcos Santarrita por terem se baseado em uma edição de Satyricon que tentou completar as lacunas
existentes no texto original.
9
áà ligaç oà e t eà essesà doisà te tosà à atestadaà pelaà pe so age à B a aà Go di à e à suaà Notaà
i t odut ia àaoà o a e.
261
Random, de Tobias Smollett) que Eugênides utiliza para conquistar o protagonista é
exatamente a única citação direta do nome Petrônio e de sua obra:
Mas seria esperar muito da Fortuna, não seria, você ter lido Petrônio? Já
leu Petrônio, o árbitro da elegância? [...] Sei que deveria ter mentido. Sei.
Senti. Mas vaidade me veio à cabeça e, fosse como fosse, eu tinha não só
lido Petrônio, e mais de uma vez, como também assistido ao filme de Fellini.
Ridículo dizer que não. Então disse que já. O Sr. Eugênides se embeveceu, e
minha vaidade sorriu satisfeita. Meu rapaz, disse ele, você me caiu em linha
reta dos céus, me caiu do Olimpo, qual um Ganimedes! Pérola rara, você. A
Fortuna está sendo generosa demais para comigo! Mal posso crer! Já leu
Petrônio! [...] Não é à toa, me perdoe a imodéstia, que o Satyricon é meu
livro de cabeceira! Não: meu livro de travesseiro! É a maior das obrasprimas, pra mim. [...] Nasci atrasado dois mil anos, meu rapaz. Meu consolo
é Petrônio. Meu livro de travesseiro. Onde vou eu, Petrônio vai junto. Não
acredita? Provo. Vamos até a ponta dos Fachos, meu rapaz, vamos até meu
chalé, que eu te mostro. Você pode vasculhar meu quarto, não vai achar
outro livro a não ser minha edição de luxo de Petrônio, editada em Portugal,
ilustrada, feita pra saborear página por página! Você vai gostar. Primorosa!
Ah, já leu mesmo Petrônio? Mal posso crer. Ah, quero ouvir sua opinião
sobre cada parágrafo, cada cena! Encólpio, o menino Gitão, que
personagens. E o poeta Eumolpo? Sou eu: me vejo nele, escarrado e
cuspido. Ah, vamos jantar juntos, meu rapaz, só nós três: eu, você e
Petrônio. Vamos varar a noite conversando sobre o Satyricon. Nem vamos
sentir a noite passar, nem vamos acreditar quando a Aurora com seus
róseos dedos entrar de mansinha pela janela e iluminar os lençóis da cama!
(NEVES, 2008, p. 63-64).
Prosseguindo a leitura, nos deparamos com Agamemnon, figura conhecida dos
leitores de textos clássicos. Entretanto, mais que um personagem de Homero ou
Virgílio, Agamemnon é um dos seres míticos que povoam as lendas sobre a guerra
entre gregos e troianos. Fazendo parte também do Satyricon, seria razoável afirmar
que o Agamemnon reinaldiano retoma o petroniano, que, por seu turno, paga tributo
a Homero (uma vez que, como já ressaltado, Satyricon bebeu largamente do texto
desse autor) – novamente num processo de palimpsesto. Em A ceia dominicana, pouco
se pode resgatar do personagem de Homero, mas a ligação se fortalece quando o foco
é ajustado para a obra de Petrônio. Nos dois casos, temos um professor que lida
matreiramente com os meios de atrair a atenção dos alunos, decerto que o da obra de
Reinaldo é ainda mais exagerado em seus traços e táticas, resultando num mau
262
exemplo de profissional10. No entanto, em Petrônio, Agamemnon é professor do
protagonista, em Reinaldo, colega de departamento.
[...] Sic eloquentiae magister, nisi tamquam piscator eam impossuerit hamis
escam, quam scierit appetituros esse pisciculos, sine ape praedae moratur
in scopulo ([...] Também o mestre da eloquência permanecerá em seu
rochedo sem esperanças de presa, a não ser que, tal como um pescador,
11
coloque nos anzóis somente a isca que ele sabe que atrairá os peixinhos
[SBB]) (Satyricon 3: 4).
[...] Faça os alunos rirem, e não bocejarem. Entendeu? Nunca os faça
bocejarem. Essa é a minha didática, que recomendo a você. Entre um riso e
outro, você ensina a matéria: mas não gaste nisso mais que vinte por cento
da aula. Perguntei como ele aplicava essa metodologia. Muito simples,
respondeu. Quando estou indo pra escola, sempre vejo alguma coisa no
caminho que pode servir de assunto pra aula daquele dia. Uma batida
entre um carro e uma carroça, um periquito que canta o hino nacional,
uma velha com um chapéu espalhafatoso, qualquer coisa desse tipo. Abro a
aula com um desses assuntos, e improviso a partir daí. Descrevo, exagero,
provoco o debate. Nisso vai meia hora. Dou dez minutos de matéria e o
resto do tempo eu ocupo com outro assunto de interesse geral (NEVES,
2008, p. 42).
A relação entre o protagonista e o professor também revela outros paralelos
das duas obras em questão. Em ambas é Agamemnon que convida e leva o protegido,
se é que se pode usar a expressão, a um suntuoso banquete oferecido por alguém
extravagante: Trimalquião, em Satyricon, e Domingos Cani, em A ceia dominicana.
Nesse evento, a descompostura por que Agamemnon passa a certa altura do texto de
Reinaldo pode ser vista no de Petrônio.
Vide isà ihi,à ága e o ,à di e e:à Quidà isteà a gutatà olestus? à Quia tu,
qui potes loquere, non loquis. Non es nostrae fasciae, et ideo pauperorum
uerba derides. Scimus te prae litteras fatuum esse (Acho que você pensa,
ága
o :à Oà ueà à ueà esseà hatoà fi aà epeti do? à Éà ueà o ,à ueà
pode falar, não fala. Você não é do nosso nível, e por isso faz pouco do jeito
que o pobre fala. A gente sabe que por causa do estudo você virou um
12
idiota [CA]) (Satyricon 46: 1).
Esse agá no seu nome, doutor Memnon, é agá de quê – de homissexual?
Tomado de surpresa, Agamemnon não entendeu a pergunta e falhou de
responder. Indalécio disparou: Olha aqui, seu bunda mole, eu sei a sua
10
Curiosamente, a universidade citada em toda a obra não é, como se poderia esperar, a Universidade
Federal do Espírito Santo, mas uma Universidade do Espírito Santo que, de modo subreptício, mantém
feições da primeira.
11
[...]àássi à àoàp ofesso àdeàelo u ia:àaà oàse à ue,à o oàoàpescador, coloque no anzol uma isca
talà ueàsai aàapete e àaosàpei i hos,àeleàpe a e e à oà o hedoàse àaàespe a çaàdeàu aàp esa à[Cá].
12
ága
o ,à pa e eà ueà euà ou ià o à dize :à po à ueà se à ueà esteà hatoà fi aà taga ela doà se à
pa a ? à Po ueà o ,à ueà pode falar, não fala. Você não é do nosso meio e, por isso, zomba da
li guage àdosàpo es.àN sàsa e osà ueà o à oàseà istu aàpo à ausaàdeàsuaài st uç o à[“BB].
263
opinião que você tem de mim, mas fica sabendo que eu não sou pouca
porcaria não (NEVES, 2008, p. 340-341).
Por último, uma das evidências mais importantes nessa comparação é o fato de
a relação de Graciano com Agamemnon ser colocada na mesma clave que a união
entre o protagonista Encólpio e o seu disputado companheiro (no sentido afetivo)
Git o:à Ni go asà
eteu o charuto de novo na boca: entendera tudo: eu era o
irmãozinho doàp ofesso à NEVE“,à
,àp.à
,àg ifoà osso .àPo àout oàlado,àdu a teàaà
narrativa, quem mais se comporta como irmãozinho de Graciano é Átila, aliás, Átis,
sujeito que segue filosofias peculiares sobre o próprio corpo e que, por caminhos
to tuosos,àa a aà ealiza doàu àleg ti oà se oà asà o as à o àoàp otago istaà NEVE“,à
2008, p. 181-184). O termo irmãozinho mostra-se como uma das possíveis traduções
para frater que mantém a carga semântica de parceiro sexual:
Nec adhuc quidem omnia erant facta, cum Ascultos furtim se furibus
admouit discussisque fortissime claustris inuenit me cum fratre ludentem (E
com certeza tudo aquilo não tinha ainda acabado, quando Ascilto
furtivamente chega de fora e, tendo forçado violentamente as trancas da
13
porta, encontrou-me brincando com meu irmãozinho [CA]) (Satyricon 11:
2).
Do ponto de vista dos rituais, A ceia dominicana vai construir algumas
importantes peripécias de Graciano de acordo com os moldes do Satyricon. Nesse
sentido, deve-se destacar o rito de iniciação para uma espécie de seita dedicada a
receber apenas mulheres que passaram, em algum momento de suas vidas, por algum
caso ou fenômeno de hermafroditismo. Graciano encontra esse grupo de mulheres
(aproximadamente sete ou oito) atrás de um casebre que descobrira ao tentar cortar
caminho em meio a um bosque. Elas trajavam túnicas e máscaras vermelhas, além de
uma guirlanda de margaridas sobre a cabeça. A líder do grupo, ou sacerdotisa, mais
velha que todas, vestia uma túnica azul e não usava máscara. A inicianda, por sua vez,
usava túnica e capuz brancos. Após entoarem hinos de iniciação, a sacerdotisa toma a
pala a,à se doà ue,à aà adaà f aseà ditaà po à ela,à asà dis pulasà epetia :à Madeiaà
pe i adeia à NEVES, 2008, p. 217). Esse refrão é oriundo do Satyricon:
13
Eà ai daà oà t ha osà a a ado,à ua doà ás iltoà seà ap o i ouà fu ti a e teà daà po taà e,à depoisà deà
arrebentar a fechadura com tamanha força, encontrou- eà t a sa doà o à euà o pa hei o à [“BB].à
Essa cena se assemelha a quando o velho Tito Lívio, que sustenta Átis, o encontra na cama com
Graciano (NEVES, 2008, p. 185-186).
264
Atque ipse erectis supra frontem manibus Syrum histrionem exhibebat
concinente tota familia: madeia perimadeia (E ele próprio, com as mãos
erguidas sobre a testa, imitava o ator Siro, enquanto todos os criados
14
cantavam em coro: madeia perimadeia [SBB]) (Satyricon 52: 9, grifos da
tradutora).
Sandra Braga Bianchet vai dizer, em nota à sua tradução, que se trata de um
tipoà deà ef oà ueà a o pa haà u aà da ça,à deà o ige à eà se tidoà des o he idos.à áà
ocorr
iaàdaàe p ess oà àatestadaàape asà esteàt e hoàdeàPet
io à BIáNCHETàapudà
PETRÔNIO, 2004, p. 287). Mais à frente, a nova discípula revela que, ao ser iniciada,
pretende adotar o nome Psiquê:
Segundo aprendi, querida mãe, Psiquê em grego significa alma e, segundo
entendo, a alma humana não tem sexo. Além disso, ouvi dizer que a letra
grega psi representa não só a união de duas letras, pi e sigma, que
equivalem às nossas letras p e s, mas também a união dos dois sexos. Por
isso escolhi para mim o nome Psiquê.
[...]
Vejo que gostas de pesquisar as coisas, e o nome Psiquê traz em si seis das
oito letras da palavra pesquisa (NEVES, 2008, p. 220).
Isomorficamente, Reinaldo Santos Neves, como pesquisador, apanha esse
nome que aparece discretamente no texto de Petrônio. Trata-se de uma escrava de
Quartila, uma sacerdotisa do culto a Priapo15, que, possivelmente, em alguma das
partes perdidas do Satyricon, deve ter sido profanado por Encólpio ao assistir a um
ritual proibido para homens. Quartila então castiga os jovens com torturas de cunho
sexual.
O
mesmo
ocorre
com
Graciano
ao
ser
descoberto
observando
voyeuristicamente o ritual das mulheres do bosque, igualmente vetado para homens.
Curiosamente, Graciano entrega a sua posição de observador ao ser atacado, com
bicadas, por um ganso e se põe em fuga ao ser perseguido pelas mulheres. Em paralelo,
Encólpio mata um ganso quando sofre investidas desse animal, que também vai acabar
14
Eà eleà p p io,à osà e guidasà sobre a testa, imitava o ator Siro, com todos os escravos em coro: –
Madeia perimadeia à[Cá]à g ifosàdoàt aduto .
15
Priapo é retratado portando um imenso falo desproporcional ao seu corpo. O falo avantajado é
característico tanto de Encólpio quanto de Graciano. A esse respeito e para mais informações sobre essa
divindade, cf. textos introdutórios e iconografia presentes em: OLIVA NETO, João Ângelo (Org.).Falo no
jardim: priapeia grega, priapeia latina. Tradução de João Ângelo Oliva Neto. Cotia, SP: Ateliê Editorial;
Campinas: Editora da Unicamp, 2006. Nessa obra, é possível encontrar, por exemplo, representações de
detalhes utilizados por Reinaldo em A ceia dominicana, tais como o falo com asas (NEVES, 2008, p. 298)
eà aà i s iç oà Hic habitat felicitas à a uià o aà aà feli idade à istaà u aà dasà olu asà daà asaà deà
Domingos Cani (idem).
265
em uma atrapalhada fuga, ao ser levado ao templo de Enótia (Enoteia), outra
sacerdotisa de Priapo, a fim de ser curado de sua impotência. Aqui, uma série de
aproximações – tarefa árdua de descrever de tão numerosas16 – une as peripécias de
Encólpio e Graciano em ambas as obras.
Para começar, o ardente desejo de Circe 17 , que se apaixonara pelo
protagonista18, se assemelha ao de Eugênia Aleixo Neto, que, após Graciano ser
acometido por uma impotência no primeiro encontro, dá a ele uma nova chance por
meio de um bilhete enviado por mãos de Daiane (ou Filomena), sua empregada
doméstica, ao passo que, em Satyricon, o recado é levado por Críside, escrava de Circe,
intermediadora do infausto encontro entre os dois: Encólpio também é vítima da
impotência. Ambas as mulheres, Circe e Eugênia, concedem uma segunda chance aos
pretendentes, que novamente falham. Desse problema, ocorrem duas cenas muito
bem-humoradas nos textos em análise: a ríspida agressão verbal de Graciano e
Encólpio contra seus membros sexuais. A impotência, nos dois casos, decorre de uma
série de fatores místicos: a de Encólpio muito provavelmente seria uma maldição por
ter profanado o culto a Priapo; Graciano, a seu turno, passara por diversas desventuras
que podem ter contribuído para essa disfunção, fatos considerados como dignos de
castigo por parte das divindades: ter relações sexuais e fazer as necessidades
fisiologias no mar, deflorar uma menina de 13 anos (ocorrido em As mãos no fogo), a
perseguição e a maldição das mulheres do bosque, o caso homossexual com Átis
enquanto dormia, a separação repentina da noiva19 ainda em noite de núpcias, entre
outros. Trauma ou castigo divino, a personagem Cristácia, velha moradora de
Manguinhos, sabe que num desses ocorridos, ou na união de todos, é que está o
problema de Graciano. Não obstante, se, em Satyricon, o órgão sexual de Encólpio
16
Depois do banquete de Trimalquião, o caso entre Circe e Encólpio foi o mais recuperado por Reinaldo
Santos Neves em seu romance.
17
Esse nome é citado em A ceia dominicana na página 310.
18
Satyricon e A ceia dominicana fazem menção à paixão de Circe por Ulisses em Odisseia.
19
Um dos sobrenomes da noiva de Graciano, Alice Dóris de Assis Lima, provém de Satyricon:à E,àassi ,à
eu, até então antigo apaixonado por Dóris, pela primeira ezà desp ezeià euà a o à po à ela à [“BB]à
(Satyricon 126: 18). Coincidência ou não, a mulher que fez Encólpio esquecer sua antiga paixão, Dóris, é
exatamente Circe, cujo papel se assemelha ao de Eugênia Aleixo Neto em A ceia domincana. É por meio
da própria Eugênia que Graciano tenta esquecer a sua esposa, Alice, chamada apenas de Dóris por Átis
e àduasào asi es:à E t oàa a ouà asa doà o àD is?àU aà ezà eàdisse a à ueà o àesta aà o àela,à
asà oàpe seià ueàfosseà a o oàs io à NEVE“,à
,àp.à
àeà Queà ue você está fazendo aqui então?
Cad àD is?àQueà ueàa o te eu,à euàa igo? à ide .
266
funciona após algum feitiço ou encanto da velha Proselenos (mas que depois volta a
falhar com Circe), em A ceia dominicana é a velha Cristácia que opera o mesmo
milagre também temporário: Graciano falha uma segunda vez com Eugênia. Como já
foi dito, as cenas nos dois romances se imbricam de tal forma que seria dispendioso
relatá-las por completo; entretanto, para isso, seria necessário outro estudo dedicado
apenas a esse caso.
Seguimos, então, para uma das partes fulcrais da conexão entre A ceia
dominicana e Satyricon: o banquete anual oferecido pelo novo-rico Domingos Cani.
Como já foi dito, é Agamemnon que se propõe a levar Graciano pela primeira vez a
esseàfa osoàe e toà aà egi o,àj à ueài àaà Ma gui hosàeà
que ir em Roma e não ver Ne o à NEVE“,à
,àp.à
oà e àD .àCa ià àoà es oà
.à“e doàa logoàaoàT i al ui o,à
do Satyricon, Domingos Cani saiu de uma infância pobre, sustentada por um poeta que
concedia abrigo, não sem segundas intenções, a crianças, e conseguiu, ao herdar a
herança de uma viúva rica, tornar-se um homem extremamente poderoso no estado
do Espírito Santo superfaturando obras empreitadas pelo governo (NEVES, 2008, p.
347-348). É assim que acaba virando um aliado do regime militar de 1964, sendo ele
u à esp lio,à po ta to,à deà u aà o ju ç oà e t e pat i o ialis oà eà pat ia alis o à
(PASSOS, 2010, p. 3). Similarmente, Trimalquião é um ex-escravo que construiu seu
império, como liberto, ao receber uma herança do ex-patrão e multiplicá-la em
negócios e empréstimos a outros libertos (Satyricon 75: 10-11; 76: 1-9). Ressalta-se
ainda o fato de que ambos os ricaços, na infância pobre, mesmo sendo aliciados por
quem os sustentava (o patrão a um e o poeta a outro), não deixaram de satisfazer
sexualmente também as respectivas esposas deles (NEVES, 2008, p. 399; Satyricon 75:
11).
Com relação às próprias esposas, as comparações também podem ser prolíficas.
Sobre a aparência, é bem verdade que as duas mulheres – Fortunata, em Satyricon, e
Berecíntia, em A ceia dominicana – se vestem de forma a ostentar a riqueza que
possuem, não poupando adereços, quase sempre produzidos em ouro, que as deixem
mais luxuosas. Nesse caso, um dos ornamentos fundamentais é o bracelete utilizado
por uma e por outra (NEVES, 2008, p. 329; Satyricon 67: 6-7), feito igualmente de
267
pesado ouro, que causa inveja nas demais mulheres das obras20. A semelhança entre
as duas também é bastante numerosa, podendo-se ressaltar: o passado antes de se
juntarem aos atuais maridos – Berecíntia era prostituta (NEVES, 2008, p. 348) e
Fortunata, cuja função anterior não se revela, fazia algo visto com desprezo (Satyricon
37: 2-4); os ciúmes – Berecíntia teve ciúme de seu marido com uma das funcionárias
da casa (NEVES, 2008, p. 355), enquanto Fortunata, de um escravo a quem Trimalquião
elogiara (Satyricon 74: 9-11); etc.
O confronto entre os banquetes de Trimalquião e Domingos Cani resulta numa
série incontável de semelhanças. Uma das primeiras a aparecer é o notável cão,
pintado ou disposto em mosaico na entrada das duas casas, que trazia como legenda a
inscriç oà CAVE CANEM à
uidadoà o àoà o à NEVE“,à
,àp.à
;àSatyricon 29: 1).
Além dessa figura, nas duas obras são ilustradas chamativas imagens de momentos
marcantes, ou fictícios, da vida de seus respectivos moradores:
Ego autem collecto spiritu non destiti totum parietem persequi. Erat autem
uenalicium [cum] titulis pictum, et ipse Trimalchio capillatus caduceum
tenebat Mineruaque ducente Romam intrabat. Hinc quemadmodum
ratiocinari didicisset deinque dispensator factus esset, omnia diligenter
curiosus pictor cum inscriptione reddiderat. In deficiente uero iam porticu
leuatum mento in tribunal excelsum Mercurius rapiebat (Eu, no entanto,
prendendo a respiração, não deixei de percorrer toda a parede até o fim.
Tinha sido ali pintado um mercado de escravos, com suas tabuletas, e o
próprio Trimalquião, de cabelos compridos, segurava o caduceu e entrava
em Roma, conduzido por Minerva. A partir daí, ele teria aprendido a fazer
cálculos e, em seguida, teria sido promovido a tesoureiro; tudo isso o
minucioso pintor tinha reproduzido diligentemente, com letreiros. Já no
final do pórtico, Mercúrio arrastava-o erguido pelo queixo em direção a
uma plataforma elevada [SBB]) (Satyricon 29: 2-5).
Distraiu-me desses pensamentos o belo mosaico panorâmico, todo ele
ilustrado com uma sequência numerosa de cenas diversas, que usurpara de
fora a fora a parede do fundo da galeria. [...] Ivone, sempre atenta e solícita,
acudiu a explicar que o mosaico registrava alguns dos principais momentos
da vida de Domingos Cani — que nascera no ano da passagem do cometa
20
Uma das mulheres que ficaram com inveja dos braceletes de Berecíntia é Lucrécia, uma ex-prostituta,
cuja referência à Antiguidade clássica resvala na personagem histórica de Tito Lívio. A Lucrécia romana
era uma mulher pura e diligente, mas que acabou sendo estuprada por Sexto Tarquínio e cometeu
suicídio logo depois. A mutação dessa personagem durante o tempo, tanto no meio literário quanto no
pictórico, saindo da pureza até se tornar uma ex-prostituta interesseira, é um ponto bastante instigante.
Cf. LÍVIO, Tito. História de Roma – primeiro volume. 2. ed. Tradução de Paulo Matos Peixoto. São Paulo:
Paumape, 1995. p. 98-99. Deve-se pôr em relevo que há um homônimo desse autor em A ceia
dominicana: o já mencionado Tito Lívio Panterotti, um falso-italiano cujo nome verdadeiro é Titânio
Peixoto (NEVES, 2008, p. 317). Além do mais, poder-se-ia dizer que o considerável número de italianos
na obra de Reinaldo é uma referência, além da própria imigração típica de algumas regiões do Espírito
Santo, também à própria Roma?
268
Halley: a data, 1910 D. C., bem visível no ângulo esquerdo da obra, parecia
prescrever, pelas iniciais que a cronometravam, que a partir desse ano o
calendário cristão se associava a outro: o dominicano. /// Detive-me ali,
admirando a obra admirável. Algumas cenas me pareceram especialmente
líricas ou então dramáticas (NEVES, 2008, p. 308).
As entradas das casas são guardadas por guaritas, cujos porteiros se
entretinham catando ervilhas (Satyricon 28: 8) e feijões (NEVES, 2008, p. 294) – prática
esta mais comum deste lado do Atlântico do que a primeira. Também é característica
dos anfitriões a superstição de entrar com o pé direito em suas casas (NEVES, 2008, p.
303; Satyricon 30: 5-6), sendo alertados todos os convidados para que sigam o mesmo
costume. Dentro das mansões, sobressaem o luxo, a abundância e a ostentação, tudo
de forma demasiadamente exagerada. Domingos, por exemplo, tem um busto
es ulpidoà o àsuasàfeiç esà ep oduzi doàoàpo teàdeàu à o eà o a oà
ueàoàpu haà
em pé de igualdade com um Nero, um Galba ou um Vitélio – ou, em termos neoo a os,à o à u à Mussoli i à NEVE“,à
,à p.à
4). Compõem, ainda, o cenário
estátuas e objetos valiosos ou luxuosos, que, em ambas as obras, revelam um exagero
que se alia muitas vezes à ignorância tanto do dono da casa quanto de grande parte
dos convivas. A respeito dos objetos na casa de Domingos, por exemplo, estariam
e e pla esàditosàaut
ti osàdeàauto esà o oà ‘u e s,àI g es,àDa id,àMo et,àMa et,à
Va à Gogh,à Laut e ,à Pi assoà eàModiglia i à NEVE“,à
,àp.à
,à i lusi eà u aà Vênus
de Milo com braços inteiros, entre muitas outras obras de arte. Novamente, deve-se
ter em vista que os detalhes coadunados são quase infindáveis para poderem ser
elencados neste cotejo.
Esse exagero presente tanto nas ações quanto na linguagem, que geralmente
descamba para equívocos grosseiros, é um dos pontos nodais da relação entre
Domingos Cani e Trimalquião. Durante todo o tempo em que estão presentes na
narrativa, a pompa desses dois personagens entra em conflito com o que fazem e
dizem, disso resultando duas figuras burlescas que são louvadas pelos demais por
similaridade de comportamento ou por influência de poder, ou seja, os convidados ou
compartilham da ignorância dos anfitriões ou lá estão apenas pelo prestígio social e
político. Eis alguns exemplos de situações cômicas criadas pelos equívocos de
Domingos Cani:
Que que você me diz, Agamemnon, de escrever minha autobiografia em
duas bilínguas, português e latim? Não quero que leiam só no Brasil e
269
Portugal, mas que todas as comunidades acadêmicas e científicas do
mundo possam ler também, e aí só em latim (NEVES, 2008, p. 375).
É o único velho amigo que me resta, você e Tito, mas Tito é mais novo, não
é daquela nossa geração perigosa que desabrochou na belepoque da
década de trinta [...] Os outros, uns morreram, outros estão aí, mas não são
mais da nossa farinha. Crispim, por exemplo, tem anos que não dá as caras.
Não dá mais bola pros amigos, não me visita, não visita ninguém. Vive o
tempo todo socado em casa feito ostra, virou ostracista. Só lendo e
estudando. Soube que passa vinte horas em cima dos livros, vinte horas,
meus patrícios, onde já se viu tamanho descalabro? Virou um ser dissocial
(NEVES, 2008, p. 375-376).
Mas gosto mais é da boa poesia antiga, dos simbólicos e pernasianos. Meus
preferidos são Olavo Bilac e Gonçalves Dias. Bilac é mais singelo, com seus
ora direis, e Gonçalves Dias, com seus versos tupinambás, é mais profundo.
[...] Mas pois é, tenho o maior respeito por poeta. Os poetas são criadores
da emoção, príncipes da arte, modeladores de mundos. Por músico
também: gosto de música clássica e música de novela. Por filósofo, não.
Não acredito na filosofia. Se filosofia servisse pra alguma coisa, nós não
estaríamos até hoje sem saber se viemos de uma casca de noz ou de uma
caixa de fósforos. Algum filósofo resolveu essa questão? Nenhum. Então
fodam-se os filósofos (NEVES, 2008, p. 382).
Essa descrença ante a filosofia se emparelha ao epitáfio que Trimalquião deseja
para si mesmo21:
C. Pompeius Trimalchio Maecenatianus hic requiescit. Huic seuiratus
absenti decretus est. Cum posset in omnibus decuriis Romae esse, tamen
noluit. Pius, fortis, fidelis, ex paruo creuit; sestertium reliquit trecenties, nec
umquam philosophum audiuit. Vale: et tu (Aqui jaz C. Pompeu Trimalquião
Mecenaciano. Foi escolhido como séviro augustal mesmo durante sua
ausência. Podia estar em todas as decúrias de Roma, mas não quis.
Religioso, corajoso, fiel. Veio do nada, deixou trinta milhões de sestércios. E
22
nunca ouviu um filósofo. Descanse em paz. – Tu também [CA]) (Satyricon
71: 12).
Sobre isso, talvez possamos afirmar que o desprezo da filosofia se deva ao fato
deà ueàa
osà o st u a àsuasà i uezasà
aàp ti a ,ài depe de te e teàdeàalgu aà
21
áà t tuloà deà o pa aç o,à oà epit fioà desejadoà po à Do i gosà à oà segui te:à á uià jazà Do i gosà Ca i.à
Olha aqui para você. E embaixo o desenho de uma mão assim — e, à guisa de ilustração, formou com o
trio de dedos do meio o gesto ortofálico, que, passeando a mão no ar, apontou contra todos nós. Ante o
nosso assombro, riu-se e disse: Estou brincando com vocês. Falando sério, meu epitáfio vai ser este:
á uiàjazàDo i gosàCa i,à ueàfoiàoà ueàfoiàeà uitoà ais,àeàago aà epousaàeàdo eàe àsa taàpaz à NEVE“,à
2008, p. 459-460). Salta aos olhos, portanto, a preocupação de ambos, Domingos e Trimalquião, com os
preparativos de seus funerais.
22
GaioàPo peuàT i al ui oàMe e ia oàdes a saàa ui.àEsta doàeleàause te,àfoi-lhe concedido o direito
de ser séviro. Embora pudesse estar em todas as decúrias de Roma, no entanto, não o quis. Piedoso,
forte, fiel, veio da pobreza, deixou trinta milhões de sestércios, apesar de nunca ter ouvido lições de um
fil sofo.àPasseà e !àVo àta
à[“BB].
270
reflexão teórica sobre o modo como devessem agir para isso, embora ambos sejam
declaradamente a favor de poetas, considerando-se poetas também, e poemas (p. ex.:
Satyricon 55: 2-6; NEVES, 2008, p. 382-383). A essa falsa erudição se associa
novamente o exagero decorrente da ostentação: Domingos gaba-se de possuir duas
bibliotecas, uma em português e outra em línguas estrangeiras, só de obras raras.
Todavia, seu prazer não é o de ler ou consultar tais obras, mas, tendo uma coleção de
espátulas de vários modelos e materiais, seu deleite consiste em destacar as folhas de
li osà u aà a tesà lidos:à Oà p aze à oà asoà
esp tula à NEVE“,à
,àp.à
oà à aà leitu a,à à aà deflo aç oà o à aà
.àU àdetalheà et atadoà asàduasào asàeà ueàpodeàse à
considerado de mau gosto para muitos e que não seria um comportamento de
homens de tais posições sociais é o fato de os anfitriões falarem abertamente para os
seus convidados sobre os gases intestinais (NEVES, 2008, p. 267-268; Satyricon 47: 2-6).
A forma como os banquetes se constituem também os avizinha em diversos
aspectos, inclusive em minúcias gastronômicas, tais como as azeitonas pretas e verdes
servidas na entrada (NEVES, 2008, p. 316; Satyricon 31: 9). No entanto, um dos trechos
de mais difícil compreensão do Satyricon – por se tratar de elementos cujos sentidos
não são apreensíveis provavelmente devido à distância histórica –, que é a cena dos
presentes dados aos convidados por meio de bilhetes sorteados (Satyricon 56: 7-9),
ganha novas proporções nas mãos de Reinaldo Santos Neves. Os presentes em A ceia
dominicana s oàf utosàdeàu à Testamentum felinum àp epa adoàpa aàa o pa ha àu à
p atoà de o i adoà Gatoà o à e ejas à NEVE“,à
,à p.à
.à Po à eioàdeàu à papelà
enrolado em forma de pergaminho, Domingos Cani lê o testamento supostamente
deixado pelo gato, que permite que todos ceiem do seu corpo, acrescentando ainda
uma série de prendas escritas em verso aos convidados da noite. Por exemplo, o verso
dedi adoà aà ága e
o à foià oà segui te:à Muitosà pontapés no lombo me deu um
p ofesso à/àdaàu i e sidade.à/àOàlegadoà ueàlheàlegoàlheàda àdeà i à uitaàsaudade à
(NEVES, 2008, p. 388). Tais versos acompanhavam um embrulho que, após aberto,
revelou-se uma bota velha. E assim sucessivamente com os demais convivas, inclusive
o próprio Graciano, que ganhou ovos de pau utilizados por costureiras para costurar
meias. Outro caso sintomático é a passagem de uma ceia rival à de Trimalquião e à de
Domingos Cani. No texto de Reinaldo, é o personagem Nicágoras da Silva que, chegado
de um banquete na casa de um certo Nasidieno, conta detalhadamente, após apelos
271
do curioso anfitrião, o que lá se passara (NEVES, 2008, p. 425-429); Trimalquião, por
sua vez, interpela Habinas, construtor de túmulos, para que relate como foi o
banquete promovido por Scissa, tão farto quanto aos dos três anteriores (Satyricon 65:
5-11; 66: 1-7). Fica clara, entretanto, a intenção de ambos: conferir se as suas
respectivas ceias eram as melhores das suas localidades.
Um último ponto a se destacar é a presença dos protagonistas Graciano e
Encólpio numa embarcação em algum momento de suas obras. Apesar de irem ao mar
por motivos diferentes – Graciano segue, junto com os demais participantes do
banquete de Domingos, em uma romaria marítima até o Convento da Penha,
enquanto Encólpio embarca num navio para fugir de Ascilto, com quem brigara por
causa de seu irmãozinho Gitão –, o destino de ambos é o mesmo: um fatídico
naufrágio. Este signo, de suma importância para A ceia dominicana (e também para a
obra de Reinaldo como um todo), cumpre o papel de iniciar e concluir este romance:
no primeiro caso, um casamento que vai a pique ainda na noite de núpcias; no
segundo, a tempestade que atinge o barco em que seguiam até o Convento e que faz
algumas vítimas, inclusive a surreal Fausta (ou Célia, ou Psiquê), que se perde em
definitivo em meio às águas agitadas. No Satyricon, por outro lado, o naufrágio é
apenas o ponto de partida para outras desventuras do agora novo triângulo amoroso
(Encólpio-Gitão-Eumolpo) ao chegarem à cidade de Crotona até – não se sabe onde
nos livros que se perderam. Apesar das diferenças, há que se sublinhar que, antes de
as respectivas embarcações afundarem, os casais em questão, Graciano/Fausta e
Encólpio/Gitão, se abraçam como que num gesto de desespero antes de uma morte
provável (NEVES, 2008, p. 501; Satyricon 114: 8-13).
Após esse breve apanhado de dados sobre as tangências entre A ceia
dominicana e Satyricon, podemos recobrar aquela questão proposta no início deste
trabalho: o que levaria um autor, em pleno século XXI, a tomar como base um texto
fragmentário e rodeado de indeterminações para construir, mais de 1900 anos depois,
um romance ambientado em tempos e regiões completamente distintos? Não se trata,
aqui, de responder consultando as intenções ou desejos de um Autor (aquele com
inicial maiúscula, o Autor-Deus, portador de todas as chaves e soluções acerca de sua
obra e onde o sentido definitivo sobre o texto se encerraria). A reflexão se concentra
272
nas estratégias de releitura23 de objetos clássicos – objetos, pois, além do texto
petroniano, há referências a outras manifestações clássicas que chegaram até nós –
que desembocam numa releitura do próprio tempo do autor.
A seu modo, o Satyricon também opera uma retomada de tradição. Como
Cl udioàá uatià essalta,à oà alo àdoàSatíricon reside na sua concepção intertextual, isto
é, o diálogo entre as formas literárias de que Petrônio lança mão, e entre ele e a
t adiç oà aà ueà o sta te e teà seà op eà eà ueà p o u aà t a sg edi à áQUáTIà apud
PETRÔNIO, 2008, p. 235). Todavia, o próprio Cláudio Aquati vai destacar, em outro
texto, a forma como se constrói esse diálogo:
Permito-me, assim, ver no Satíricon, ao contrário de um posicionamento
ideológico anti-clássico, um revigoramento das tradições clássicas, não
como modelo, mas como cabedal cultural, por meio de uma revisitação e
reavaliação dessas tradições, com a produção de um novo texto com novas
perspectivas literárias (AQUATI, 2006, p. 238-239).
Parece-me haver um movimento semelhante na obra de Reinaldo Santos Neves.
O dialogo com a tradição – seja ela literária, folclórica, histórica etc. – não se resume a
um maniqueísmo entre louvá-la e/ou criticá-la. Lançar um olhar particular sobre a
tradição, ou seja, relê-la, também pode significar uma revisão da própria
contemporaneidade: o que permaneceu, o que mudou e o que desapareceu. Esse tipo
de olhar é um dos pontos nevrálgicos de A ceia dominicana (bem como em outras
obras do mesmo autor). Se há um projeto que perpassa a obra de Reinaldo Santos
Neves, esse projeto é certamente o de retomada da tradição. A consciência, por parte
do autor, dessa operação já é evidente no próprio texto, mas há ainda a confirmação
numa entrevista recente:
Eu acho que é quase impossível escrever um bom romance, uma boa obra,
sem você, em outras palavras, ir à tradição. [...] Por isso que eu acho [que]
muita pobreza literária é por causa da recusa dos autores de, vamos dizer
assim, pagar o pedágio à tradição. Eu não trabalho sem a tradição, exceto
Reino dos Medas (1971). Reino dos Medas não tem isso. Acho que eu
queria falar só das minhas angústias de adolescente. Não dá. Dali pra frente,
quase tudo, os meus contos também, eles têm uma carga muito pesada de
dívida com a tradição. É sempre novo quando você trabalha com a tradição,
23
O termo releitura é utilizado aqui em seu sentido amplo, não atrelado a correntes específicas sobre
este assunto.
273
entende? Você sempre renova a tradição, você não repete a tradição. É
sempre o novo. Coisa nova.
[...]
Gente, a tradição é riquíssima, cara! Não falta o que reescrever em termos
de tradição. Não sei pra quê as pessoas ficam tirando da cabeça umas
pobrezas de espírito, entende? Qualquer coisa lá de trás dá pra
reaproveitar e fazer coisa muito boa. Por isso que sou fã, escravo da
tradição.
[...]
Não podemos renegar as nossas origens, né? Então eu me identifico muito
com isso, com ele [Jorge Luis Borges]. Eu também acredito nisso. E eu
escrevi sobre as coisas brasílicas, vamos dizer, também. A Ceia Dominicana
é folclore brasileiro puro, só que com um pé lá atrás porque lá atrás estão
as origens do folclore brasileiro, também, em determinados aspectos. Você
tem muita coisa do folclore que vem do índio, que vem do negro, entendeu?
24
Mas a maior parte vem de Roma, de Portugal, essas coisas (NEVES, 2011).
O rito e a celebração, que já estão sendo relidos no Satyricon por meio da sátira
dos costumes (entre eles, obviamente, o literário), ganham novos contornos sob o
comando de Reinaldo Santos Neves. Como vimos até aqui, A ceia dominicana reproduz
um rito, à Satyricon, com pessoas hermafroditas25, cuja ideia de gênero é rasurada,
envolvendo, ao mesmo tempo, o humor a partir de cenas inusitadas e a seriedade ao
tocar em assuntos mais delicados (a violência falocêntrica, por exemplo), mas não só:
toda a obra é rodeada de figuras/eventos místicos pairando quase sempre sobre uma
indecisão ou uma incerteza, como no caso do hermafroditismo, em que os olhos do
protagonista (que são, consequentemente, os nossos olhos) não chegam a observar a
genitália de nenhuma daquelas mulheres da seita do bosque. Na única chance para
isso, ao ver Fausta nua no barco, nota-se apenas o órgão feminino, pondo sob suspeita
ta toàoàp p ioàhe
af oditis oà ua toàaàpossi ilidadeàdeàu à
ilag e à ueàaàti esseà
livrado do membro masculino: é impossível decidir. Nesses termos, todo evento
ritualístico ou místico em A ceia dominicana surge sob o signo da ambiguidade.
Há também, muitas vezes, a possibilidade de ação de algum celícola sobre os
eventos em Manguinhos. Só para citar alguns trechos: um infortúnio como ação de
algum deus ou deusa (p. 21), castigo das divindades marinhas (p. 257), Chapim dos
‘eisà o oà u à
e ig oà deus à p.à
,à e adoà dosà deusesà p.à
24
,à e t eà
uitosà
Essaà e upe aç oàdaàt adiç oàta
à oàfol lo eàpodeàse à istaà oà asoàsi to ti oàdaà Pu adaàdoà
ast o .à Faze doà pa teà daà festaà deà “ oà Be edito,à popula à oà Esp itoà “a to, tem suas origens
remontadas à deusa egípcia Ísis Pelágia (NEVES, 2008, p. 199).
25
Vale salientar que o próprio deus Priapo é retratado, em algumas ocasiões, como hermafrodita.
Cf.OLIVA NETO, op. cit., p. 18.
274
outros casos semelhantes. Da mesma forma, o nome de divindades clássicas aparece a
mancheias no romance de Reinaldo: Vênus (p. 73; p. 76; p. 69; p. 417; p. 456), Hera (p.
87), Baco (p. 112), Fúrias (p. 266), Júpiter (p. 356) etc. Como não poderia deixar de ser,
o deus mais citado no texto é Netuno, cujo nome aparece 8 vezes (p. 44; p. 154; p. 273;
p. 352; p. 494; p. 498; p. 502; p. 504). Por esses e outros motivos é que a personagem
Do aà “ à aià defi i à Ma gui hosà o oà u à luga à o deà oà ueà te à deà a o te e à
acontece. É lugar mágico, cheio de maravilha, fantasia, sombração, milagre, viração de
u aà oisaà p aà out a à NEVE“,à
,à p.à
.à Nesseà se tido,à aà di e s oà dosà rituais e
deidades se constitui, tanto em A ceia dominicana quanto em Satyricon, a partir da
sátira e da profanação. Se traçarmos um paralelo entre as duas obras em questão e a
Odisseia, por exemplo, teremos a seguinte configuração: Ulisses é perseguido por
Netuno, Encólpio – à Ulisses – é perseguido por Priapo, mas e Graciano? Por seres
divinos/mitológicos? Pelo Destino? Pelo Acaso? Em meio a todas as ambiguidades, o
mais seguro é afirmar que Graciano é perseguido por si mesmo, por seus próprios atos
e ações, cujas consequências muitas vezes são desastrosas.
Por último, a celebração, concentrada, neste trabalho, no banquete de
Domingos Cani, também se amolda de acordo com o Satyricon. Nas duas obras,
convivem de forma quase harmoniosa o nobiliárquico e o popular: aquele relacionado
à ostentação de posses e poderes e este como herança de uma origem humilde de
parte das personagens. A mistura de registros de linguagem26, muito característica de
todo o Satyricon, em especial da Cena Trimalchionis – mas não somente, conforme
estudo elaborado por Sandra Braga Bianchet (BIANCHET apud PETRÔNIO, 2004, p. 291323) –, revela a tentativa do autor de retratar as distintas formas de falar das
diferentes posições sociais e as suas respectivas idiossincrasias, especialmente de
libertos que fizeram fortuna e procuram esbanjá-la das mais diferentes formas sem
perder totalmente os laços com o período de escravidão. O mesmo ocorre em A ceia
dominicana, que demonstra como algo igualmente picaresco é verossímil a nosso
tempo.
Como conclusão, resta-nos assumir que talvez o maior contato entre A ceia
dominicana e os textos clássicos está exatamente no ato de realizar uma prática
26
Lembrando que a linguagem de A ceia dominicana,à al à doà aspe toà itado,à i esteà u à dis etoà
ap o eita e toàl i o,àsi t ti oàeàeti ol gi oàdoàlati à NEVE“,à
,àp.à .
275
comum da Antiguidade clássica: a intertextualidade como instrumento de releitura. Se
o Satyricon retoma, atualiza e transforma textos de uma tradição ainda anterior, é
bem verdade que Reinaldo Santos Neves manobra com destreza as heranças dessa
Antiguidade – e de outras épocas e lugares – para produzir obras que são mais que
contemporâneas: são atuais.
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XVII. 2. ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2004.
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276
estudoscríticossobre o autor capixaba. Vitória: PPGL/MEL/Ufes, [2011?]. (Em fase de
publicação)
PÉTRONE. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Belles Lettres,
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TÁCITO. Anais. Tradução de J. L. Freire de Carvalho. São Paulo: W. M. Jackson, 1964.
(Coleção Clássicos Jackson; v. XXV)
LÍVIO, Tito. História de Roma – primeiro volume. 2. ed. Tradução de Paulo Matos
Peixoto. São Paulo: Paumape, 1995.
VIRGÍLIO. Eneida. Tradução de Manuel Odorico Mendes. Campinas: Editora da
Unicamp, 2008.
277
SÍRIUS: PRENÚNCIO DO RITO SACRIFICIAL
Paula Cristiane Ito
Doutoranda em Estudos Literários – UNESP / FCLAr
[...] essa estrela feita das lágrimas que a brevidade da vida arrancou um dia
ao orgulho humano ficará pendente do céu como o astro da ironia, luzirá cá
de cima sobre todas as multidões que passam, cuidando não acabar mais e
sobre todas as cousas construídas em desafio dos tempos. Onde as bodas
cantarem a eternidade, ela fará descer um dos seus raios, lágrima de Xerxes,
para escrever a palavra da extinção, breve, total, irremissível. Toda epifania
e e e àessaà otaàdeàsa as o.
(Machado de Assis, Lágrimas de Xerxes)
É comum que estudiosos de Eurípides afirmem que ele praticamente
abandonou os deuses. Para Jacqueli eà deà ‘o ill à
,à p.à
à [...]à osà deusesà
deixaram de ser para ele os responsáveis, sempre presentes, de tudo o que acontece
oà u do. à áà Ifigênia em Áulis, nesse sentido, vem contrária à crítica tradicional, já
que é o augúrio divino, manifestado pela presença da estrela Sírius, dado logo a
princípio, que norteia toda a peça. É ela a anunciação, graças ao seu significado no
imaginário grego, do rito sacrifical que está por vir.
A tragédia se inicia com um diálogo entre Agamêmnon e um velho servidor de
sua casa. Ambos estão onde logo saberemos ser um acampamento das tropas gregas
que se encontram reunidas em Áulis aguardando ventos propícios para a empresa da
expedição a Tróia, em busca da fugitiva Helena.
Nos primeiros versos (6-8) Agamêmnon pergunta ao ancião qual é a estrela que
atravessa o céu, ao que o velho responde: Sírius. Há alguma divergência quanto à
edição do texto nesta passagem. No texto que adotamos, de François Jouan (EURIPIDE,
1983), Sírius vem grafada com letra maiúscula, enquanto na edição de James Diggle
(EURIPIDES, 1994), seguida por alguns tradutores, sua grafia traz o sigma minúsculo, o
que pode fazer passar despercebido um elemento poético fundamental para a
constituição do drama. Além disso, seguindo a edição de Diggle (EURIPIDES, 1994),
esbarra-se em outro problema, que altera substancialmente a leitura do trecho; a
278
resposta ao rei seria dada por meio de uma frase interrogativa, o que não parece fazer
muito sentido, visto que, se assim fosse, esperar-se-ia na fala seguinte de Agamêmnon
uma confirmação, o que não ocorre, ao contrário, Agamêmnon parece dar-se por
satisfeito com a resposta que possivelmente teria recebido, prosseguindo com seu
discurso.
Quanto a estas duas questões, estamos de acordo com a edição francesa, já
que a grafia dá base para a hipótese aventada, da referência à estrela enquanto
recurso poético, e porque a resposta do ancião parece mais coerente com a resposta
do comandante. O soberano pergunta ao velho o nome da estrela que percorre o céu;
por que esse último responderia, conforme a tradição cristalizada na edição de Diggle
(EURIPIDES, 1994) tratar-seàdeà U àast oà ilha teà[...] à ‘IBEI‘OàJUNIO‘,àW.àá.,à
,à
p. 159), sendo um homem experimentado, cuja idade e vivência provavelmente o
fariam capaz de conhecer o nome do astro mais brilhante do céu?
Essa hipótese encontra apoio na tradução de Ifigênia em Áulis para o espanhol
de Carlos García Gual e Luis Alberto de Cuenca e Prado (EURIPIDES, 1998a, 261),
aseadaà oàte toàeditadoàpo àGil e tàMu a :à á ia o:à“i io, que avanza cerca de la
Pl adeàdeàlasàsieteàest ellas,à aàe àsuà e it.
O mesmo ocorre com a tradução de Carlos Alberto Paes de Almeida (EURÍPIDES,
1998b, p. 89) que baseou seu trabalho principalmente na edição de Diggle (EURIPIDES,
1994), com a variação de que, para esse tradutor, Agamêmnon teria lançado uma
pe gu taà et i a,à à ualàeleà es oàd àaà esposta:à ága
o :àQueàest elaà àestaà
que cruza o espaço? Sírio, que junto das sete Plêiades se precipita no meio do céu.
Considerando então que no texto se afirma a passagem da estrela Sírius pelo
céu no momento em questão, a primeira hipótese que se levanta habitualmente é que
Eurípides estaria utilizando este artifício para marcar a estação do ano, já que este
astro só pode ser avistado à noite durante oà e o.à Co à essaà e ç oà itol gi aà
encontra Eurípides uma forma poética de fornecer indicações sobre a hora do dia e a
estaç oàdoàa oàe à ueàaàpeçaàde o e. ,à olo aàPaesàdeàál eidaà EU‘ÍPIDE“,à
,àp.à
177, N. 1 do T.)
Duas considerações devem ser feitas a respeito desse comentário.
Primeiramente quanto ao fato de se tratar de uma menção mitológica. Embora Sírius
esteja envolvida em um mito grego, que também se mostra relevante – Sírius é o cão
279
caçador do gigante Órion, tendo esse último encontrado a morte por intermédio de
Ártemis, justamente a deusa que prende as tropas de Agamêmnon em Áulis e exigirá o
sacrifício da jovem Ifigênia – não se considera, aqui, que o maior valor tenha sido
atribuído à significação mitológica, mas, sobretudo, à significação astronômica, a partir
da qual se podem encontrar crenças populares do período arcaico acerca do astro.
O segundo ponto, e mais relevante, é que não acreditamos que essa referência
à estrela tenha sido feita unicamente com o propósito banal de indicar a época do ano.
A hora do dia já era sabida, já que Agamêmnon vai à tenda do velho enquanto todos
dormem; a estrela viria então unicamente para marcar a estação do ano. A informação
poderia ser pertinente, desde que nos apontasse algum tipo de obstáculo à navegação,
caminho que nos levaria a crer na ausência de uma intervenção divina e na existência
de um obstáculo natural, que, no entanto, os combatentes, como navegadores
experimentados, sem dúvida conheceriam e, portanto, não estariam aportados na ilha.
Qual seria então o real propósito da figuração da estrela logo nos primeiros
versos da peça? Seu aparecimento tem passado quase despercebido pelos críticos até
o momento, porém se observamos sua simbologia entre os gregos na antiguidade,
notaremos que seu uso não parece ter sido meramente como indicativo de uma
estação do ano, mas como auspício divino que irá nortear todo o drama.
Vernant (1999, p. 126), em um estudo sobre os arômatas, afirma que Sírius é
u à [...]àast oà a i ula à ujoàapa e i e toà a aàoà o e to em que a Terra e o Sol,
normalmente separados, se acham na maior proximidade, período ao mesmo tempo
deài e soàpe igoàeàe t e aàe altaç o.
Desde Hesíodo, são encontradas referências à estrela. É bastante provável que
Eurípides conhecesse tais referências e as crenças populares que envolviam Sírius, o
que faz pensar que seu aparecimento no poema não é gratuito. Tomamos então a
estrela como presságio divino, que para nós parece sutil, mas talvez fosse bastante
claro ao homem grego que tinha um conhecimento bem vivo dos mistérios de Sírius,
atestado pelas várias referências ao astro presentes na literatura grega.
N Os trabalhos e os dias Hesíodo (1979, p. 108, 114 e 115, respectivamente; no
texto original, v. 414-419, 582-588 e 609-614) faz três referências ao astro:
Quando cessa a força do sol, calor ardente
280
que causa suor, ao mandar as chuvas outonais
o poderoso Zeus, e quando o corpo dos homens se torna
mais ágil, é então o momento em que a estrela Sírius
pouco tempo sobre a cabeça dos homens votados à morte
caminha durante o dia e por mais tempo retorna de noite;
Quando o cardo floresce e a sonora cigarra,
pousada na árvore, espalha o melodioso canto,
pela fricção das asas, na penosa estação do calor,
nessa altura são mais gordas as cabras, e o vinho melhor,
mais ardentes as mulheres e moles os homens;
Sírius abrasa-lhes a cabeça e os joelhos,
fica-lhes ressequida a pele pelo calor.
Quando Órion e Sírius atingirem o meio
do céu e a Aurora de dedos róseos por ver Arcturo,
Perses, colhe então todas as uvas e leva-as para casa,
expõe-nas ao sol durante dez dias e durante dez noites,
deixa-as cinco dias à sombra e no sexto verte em vasilhas
os dons do jucundo Dionisos.
No Agamêmnon de Ésquilo (2009, p. 169, v. 966-969) aparece nova referência
na voz de Clitemnestra. Ao receber o esposo, dissimulando seus verdadeiros
sentimentos, a rainha compara a vinda de Agamêmnon com uma sombra que se
espalha contra Sírius canina, a contenção dos males provocados pelo astro:
se há raiz, a fronde vem ao palácio
espalhando sombra contra a canícula,
e com tua vinda ao doméstico lar
o calor mostra veio no inverno.
Com base nas informações que possuímos sobre o significado de Sírius para os
gregos, desde épocas anteriores a Eurípides e que possivelmente perduraram até seus
dias, pensamos nessa interpretação possível para o aparecimento de Sírius nos
primeiros versos da Ifigênia em Áulis. Sírius, sendo a estrela que passa sobre a cabeça
dos homens votados à morte, o astro do infortúnio, apresenta-se como prenúncio do
sofrimento das personagens que vivem sob seus raios e do rito sacrifical que está por
vir. Além disso, a aproximação de extremos marcada pela estrela, do perigo e da
exaltação, parece ser a linha mestra deste drama, pontuado por aproximações e
distanciamentos em vários níveis, fortemente, inclusive, no que concerne a mulheres e
homens, já que no período em que Sírius se mostra à noite as mulheres são mais
lascivas e mais frágeis são homens.
281
Referências bibliográficas
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Introd. Trad. y Notas de Carlos García Gual y Luis Alberto de Cuenca y Prado. v. 3.
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Coimbra: Instituto de Alta Cultura – Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 1998b.
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José Ribeiro Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 2005.
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2005. 307 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
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1998.
VERNANT, J-P. Mito e sociedade na Grécia antiga. Trad. Myriam Campello. 2ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1999.
282
O BANQUETE CELTA AOS OLHOS MEDITERRÂNEOS: UMA
ANÁLISE DAS REPRESENTAÇÕES DO FESTIM CELTA A
PARTIR DE TEXTOS GREGOS E LATINOS
Pedro Vieira da Silva Peixoto1
«La plus belle femme du monde ne remplacera jamais un
bon banquet.» (Pascal Bruckner)
2
«Étrangers, vous m'avez accueilli comme un frère,/ Et fait
asseoir dans vos banquets.» (Victor Hugo)
3
Introdução
Parte considerável do que dispomos, nos dias atuais, para o estudo das
sociedades célticas advém de textos antigos, de língua grega ou latina, que em um
dado momento dedicaram-se à descrição de práticas, costumes, acontecimentos,
e o t osà eàpe ulia idadesà ela io adasà aà so iedadesà out as ,à lo alizadasàpa aàal
à
do Mediterrâneo, como frequentemente acontece com as populações da Europa
Centro-Ocidental da Idade do Ferro, comumente identificadas sobre a alcunha de
eltas .à Cu ioso,à so etudo,à à o se a à e à algu sà es itosà a tigosà aà i po t
iaà
(religiosa, social e política) atribuída à esfera do banquete para os celtas4. Neste
sentido, imagino que seja possível o desenvolvimento de uma reflexão mais cuidadosa,
ou ao menos mais crítica, a respeito de como as dinâmicas e, principalmente, as
especificidades de tais práticas foram interpretadas e discursivamente construídas por
autores como Aneu Floro, Diodoro da Sicília e Ateneu.
1
Possui graduação em História pela UFRJ, e atualmente é mestrando do PPH da UFF, sob a orientação da
Prof.ªDrª. Adriene Baron Tacla. É membro do LHIA (UFRJ), NEREIDA (UFF) e colaborador do NEA (UERJ).
2
áà aisà elaà ulhe àdoà u doà oàsu stitui iaàja aisàu à o à a uete .àBRUCKNER, Pascal. Les
Ogres anonymessuivi de L'Effaceur: deux contes. Paris: Grasset, 1998.
3
Est a gei os,à sà eàa olhestesà o oàu ài
oàeà eàdestesàluga àpa aàse ta àe à ossosà a uetes .à
HUGO, Victor. « Và:àâàl á ad ieàdesàJeu àflo au . » In: _____. Odes et Ballades. Paris: Eugène Fasquelle
Editeur, n/d.
4
Utilizo-me das rubricas anal ti asà a uete à eà festi à para englobar e descrever formas de
atividades rituais, não necessariamente que denotem um caráter sagrado (MOORE & MYERHOFF, 1985),
asà ueàesteja à e a a hadasàaàu aàteiaàdeàsi olis os àseà o titui doà o oàdis u sosàpa ti ulares
e privilegiados que, por sua vez, se dão a partir da consumação comunal de comidas e bebidas
(cf.DIETLER, 2001: 67).
283
Mais ainda: uma vez que os rituais de comensalidade 5 parecem ter
desempenhado um papel fundamental nas sociedades célticas como importante
espaço de interação social que frequentemente acaba por construir e reforçar
identidades, afiliações, diferenças e hierarquias entre indivíduos, parece, portanto,
válido questionar-se: como tais práticas foram então representadas a partir dos textos
gregos e latinos?
Como veremos, parte da documentação disponível para o estudo de tal
temática entre os celtas indica-nos a possibilidade de uma articulação entre a esfera
gue ei a àdaàdisputaà i lusi eàa
ada! àeàaàdoàfesti .àLogo,àoà ueào jeti oà o àesteà
artigo, ainda que de maneira concisa, é tão somente propor uma reflexão a respeito de
tais representações criadas a partir do Mediterrâneo antigo, atentando para a
possibilidade de entendê-las, primeiramente, como um discurso particular de barbárie;
isto é, que reforça e (re)constrói identidades e estabelece alteridades tomando como
ponto de partida um espaço de festividade para, então, constituir, dentro de uma
cadeia enunciativa, um conjunto de atributos e marcas de diferenciações entre aquilo
ueà àe te didoà o oà i ilizado àeà
a o .àà
Pensando o espaço do banquete: algumas considerações teóricas6
Cada vez mais, historiadores e arqueólogos vêm se debruçando sobre a
temática dos festins/banquetes como um campo privilegiado no estudo das
sociedades antigas. Atualmente, aliada aos estudos de matrizes mais antropológicas
vinculadas, até mesmo, à análise da consumação alcoólica, esta é uma área de
pesquisas que cresce e revela-se de particular importância. Isto porque,
5
A palavra comensalidade tem origens latinas – com mensalis –e refere-se ao ato de compartilhar o
alimento a mesma mesa – ou seja, comer junto. Embora seja sabido que diferentes culturas e
populações ao longo dos tempos desenvolveram meios de se alimentarem sem o uso de uma mesa e
ueà oà te o,à po ta to,à possuaà o ige sà tipi a e teà eu opeias/O ide tais,à a editoà ueà eleà fo e eà
uma ma ei aà o e ie teàdeài di a àu aà s ieàdeà fo asàdeà o su aç oà o u alàdeà ali e tos à eà à
muito mais útil do que inventar neologismos como práticas co-alimentares, co-gustatórias dentre outras
possi ilidades,à ueàpa e e àu à e e ioàpeda teàeàdes e ess io à DIETLE‘,à
:à
-105).
6
Por questões óbvias de extensão, mais do que elaborar análises teóricas específicas a respeito de
modos particulares de banquetes – como as divisões elaboradoas por Dietler (2001) entre festins
diacríticos, patronais e promocionais –, optei por desenvolver uma proposta de entendimento teórico
mais amplo a respeito de como a comensalidade, em suas múltiplas variedades, pode ser pensada como
prática social e objeto válido à pesquisa histórica, não limitando-se apenas ao caso dos estudos célticos,
embora tendo estes em mente.
284
frequentemente, nos permite um olhar diversificado a respeito dos modos pelos quais
processos e relações sociais podem ser estabelecidos em diferentes níveis dentro de
uma mesma sociedade, ou, ainda, desta com outras sociedades, através das referidas
práticas (cf. DIETLER, 1990, 2001; DIETLER & HAYDEN, 2001; VENCL, 1994). No caso dos
celtas e das sociedades do Mediterrâneo antigo, isto é ainda mais evidente quando,
por exemplo, observamos arqueologicamente a existência de consumação de bens
mediterrâneos importados inclusive em contextos funerários de populações da Europa
Centro-Ocidental da Idade do Ferro (cf. ARNOLD, 1999; DIETLER, 1990). Porém, como
pensar teoricamente o espaço do banquete aliado à presente proposta de pesquisa?
Matthieu Poux e Michel Feugère (2002) tenham, talvez, oferecido uma boa e
o isaàdefi iç o:à Laàp ati ueàduà a
uetà i e,àhisto i ue e t,àa e à elleàduàpou oi à
(POUX & FEUGÈRE, 2002: 199)7. De certa forma, isto se faz visível a partir de alguns
aspectos fundamentais como a possibilidade de ofertar comidas e alimentos em
grandes quantidades, a presença de convidados e a existência de um local com as
infraestruturas necessárias. Todos estes são elementos que indicam e pressupõem
certo poderio econômico e político por parte daqueles que promovem tais eventos;
todos estes elementos, por sua vez, bem como a própria noção do festim, estão, por
conseguinte, interconectados à ideia de excedente e riqueza. Como Dietler (2001: 75)
olo ou:à aà hospitalidadeà doà festi à ,à o ia e te,à ape asà u à de t eà
pote iaisà daà aç oà pol ti aà ueà podeà se à a ti uladoà deà a iadasà
iosà a posà
a ei as . Neste
sentido, os banquetes podem ocupar um local maior dentro da sociedade que os
pratica: ao aspecto festivo se associam também, provavelmente, os aspectos políticos,
religiosos e a constituição de hierarquias sociais que se repercutem em diferentes
níveis: alianças, privilégios, controle de riquezas etc. (POUX & FEUGÈRE, 2002: 216).
Logo, a postura que gostaria de propor é a seguinte: que entendamos,
primeiramente, o espaço do banquete como espaço socialmente praticado e
construído e, além disso, como uma arena dupla: local privilegiado tanto para
representações simbólicas como para a manipulação de relações sociais. É, portanto,
muitas vezes um local complexo e contraditório no qual e através do qual diferentes
tensões operam simultaneamente – da mesma forma que cria, desconstrói; ao mesmo
tempo que reafirma, preserva e mantém, pode, também, questionar, contestar e
7
Lite al e te,à aàp ti aàdosà a
uetesà i a,àhisto i a e te,à o àaàdoàpode .
285
reformular. Destarte, o espaço do banquete pode definir e re-criar limites sociais, ao
passo que, simultaneamente, é capaz de construir um senso de comunidade (DIETLER,
2001: 88)8.
Portanto, a relevância do estudo da temática dos festins celtas parece estar
aliada ao entendimento de que a análise das práticas de comensalidade, na medida em
que considera os diversos fatores sociais, acaba por implicar uma abordagem acerca
da própria sociedade (FERNANDES, 1997). Permite, assim, localizar signos particulares
de uma determinada identidade social através de estilos de ações (maneiras, gostos,
etc.) ou o uso e a consumação de objetos (comidas, bebidas, equipamentos para
comer etc.) (DIETLER, 2001: 86). Em todos os casos, parece ser preciso, entretanto, ter
em mente que a comensalidade – desde que constitua, no interior da sociedade, um
sistema de comunicação formado na base da intersubjetividade – situa-se num campo
de interrelacionamentos (FERNANDES, 1997: 8).
Práticas sociais pelas quais as pessoas fazem negociações, buscam prestígio
social, bens econômicos e políticos, competem por poder, criam, reproduzem e
contestam as representações ideológicas da ordem social e da autoridade (DIETLER,
2001: 66), os banquetes são, por excelência, polissêmicos, em termo de audiência,
motivações e formas de aquisição de poder (DIETLER, 2001: 78).
Resumindo, acredito ser possível prosseguir, após uma introdução teórica,
ainda que breve, tendo em mente os seguintes aspectos, no que diz respeito à prática
dos banquetes: o caráter relacional, ritual e dinâmico, a capacidade de formação de
identidades e hierarquias, a possibilidade de estabelecimento de diferentes relações
de trocas (materiais ou simbólicas) e a constituição de um espaço social privilegiado
que pode, ao mesmo tempo, reforçar como também contestar uma dada realidade ou
autoridade.
Os banquetes celtas: uma análise a partir dos textos antigos
8
Ainda de acordo com Dietler (2001), pode-seà e te de à ueàosà a uetesà ia àeà a t à elaç esà
sociais que unem as pessoas em vários grupos e redes sociais em largas escalas, desde o espaço
pa ti ula àdeàu àa ie teàdaà asaàat àaà o u idadeàpol ti aà egio al. à DIETLE‘,à
,àp. -69).
286
Não raramente os ritos de comensalidade celta aparecem como objeto de
discussão nos textos gregos e latinos. Tendo muitas vezes por base os relatos de
Possidônio, diversos autores buscaram apresentar certos aspectos que lhes eram mais
marcantes e significativos nos ba
uetesà ealizadosà po à estasà populaç esà out as ,à
destacando as peculiaridades de tais encontros.
É possível dizer que as principais referências à temática dos banquetes celtas
advêm dos relatos perdidos de Possidônio. O historiador e filósofo estoico Possidônio
de Apameia (c.135–50 a.C.) pode ser considerado como grande marco no
conhecimento e nos saberes relativos aos celtas (CUNLIFFE, 1997: 7; FREEMAN, 2006;
NASH, 1976; TIERNEY, 1960). Tendo escrito em meados do segundo século a.C. uma
série de Histórias,em torno de cinquenta e dois livros, que supostamente serviriam de
continuação à obra de Políbio (c.203–120 a.C.), Possidônio gozou de respeito e
autoridade mencionados por outros autores, por suas descrições e relatos. De sua obra,
contudo, nada chegou a nós a não ser fragmentos e passagens citadas por outros
escritores como Estrabão, Ateneu e Diodoro da Sicília. Esses autores posteriores que
sofrem influência direta da obra de Possidônio e que se utilizaram deste último como
referência para suas próprias descrições passaram a fazer parte daquilo que
histo iog afi a e teàfi ouà o he idoà o oà T adiç oàPossid
i a à cf. TIERNEY, 1960;
NASH, 1976; PIGGOT, 1999: 96-98).
Gostaria, então, primeiramente, de chamar a atenção para o relato de Diodoro
da Sicília (c.90–30 a.C.). Neste, podemos identificar algumas das primeiras referências
a certos aspectos particulares presentes no universo dos banquetes celtas e
comumente destacados pela documentação: os ritos de hospitalidade9, a possibilidade
de disputas entre gue ei osàeàaàpo ç oà deà a e! àdoà a pe o .
Co se ue te e te,à e ua toà elesà [osà gauleses]à est oà o e do,à seusà
bigodes ficam emaranhados na comida e quando eles bebem, a bebida
passa, através de seus bigodes como se fossem um tipo de coador. Quando
eles têm suas refeições, todos se sentam, não sobre cadeiras, mas no chão.
Usam peles de lobos ou de cães. As refeições eram servidas por jovens,
tanto meninos quanto meninas, em idade apropriada. Próximos da fogueira
de pilha de carvão estão os caldeirões com espetos cheios de pedaços de
carne. Os guerreiros mais bravos são recompensados com a melhor porção
9
Cunliffe (2003:95), por exemplo, chama a atenção para o fato de que a hospitalidade funcionava como
um valor guerreiro-aristocrático fundamental que permitia a manutenção de uma coesão de grupo e o
cultivo de relações exteriores com diferentes comunidades.
287
de carne, da mesma forma que os poetas receberam Ájax quando de sua
exaltação pelos chefes após o seu retorno vitorioso do combate singular
o àHeito :à Para Ájax, então, a porção traseira. Pedaços, enormes, em sua
10
ho a.
Eles convidam estrangeiros para os seus festins e não fazem perguntas, tais
como, quem eles são e do que necessitam até após a refeição. Também é
seu costume, sempre durante o curso da refeição, de, por qualquer questão
trivial, criar uma ocasião para disputas e desafiarem-se uns aos outros em
u à o ateà si gula ,à se à ual ue à p eo upaç oà o à suasà idasà ... . à
(DIODORO, Biblioteca Histórica, V, 28)
Ateneu, fazendo uso de relatos de Possidônio, igualmente destaca o caráter
competitivo e a arena de disputas que pode ocorrer na prática dos banquetes celtas11:
E à seuà ig si oà te ei oà li oà dasà Histórias Possidônio diz: Os celtas,
algumas vezes, se degladiam durante os banquetes. Com efeito, equipados
de suas armas, eles se engajam em combates fictícios e praticam ataques
simulados uns aos outros; em certas ocasiões eles avançam até o ponto de
se ferirem e então, exasperados por conta disto, se os companheiros não
intervierem, eles podem chegar a se matar. Em tempos mais antigos, diz ele,
que quando porções inteiras de carne eram servidas, o melhor homem tinha
direito à coxa. Mas se alguém as reclamasse, os dois adversários, em um
combate singular, duelavam até a morte. Outros coletavam ouro e prata –
ou em certos casos, ânforas de vinhos – nos locais de assembleia pública e,
tendo conseguido coletar a quantidade suficiente de premiações, eles
decretavam que os bens coletados deveriam ser distribuídos como
presentes aos parentes e aos mais queridos; então eles se deitavam de
costas sobre seus escudos e àqueles que estivessem ao seu lado cortariam
12
suas cabeças com espadas .(ATENEU, Deypnoshopistae, IV, 154)
Entretanto, não apenas aspectos bélicos são destacados pela documentação
antiga a respeito dos festins. As abundâncias e farturas de alimentos e bebidas, o
caráter político e religioso, a importância social, a circulação e presença de riquezas e
bens diversos: todos estes são aspectos, constantemente, presentes.
10
Conferir HOMERO, Ilíada, XVII, v.320-2.
É provável que o erudito bizantino Eustácio de Tessalônica (c.1115-1195/6 d.C.) tenha se baseado na
mesma passagem quando afirmou que Possidônio teria mencionado que os celtas, em seus banquetes,
cobiçavam os pedaços traseiros das carnes e as coxas e que em ocasiões onde estas porções eram
distribuídasà oà elho à ho e à te iaà aà o a;à asà seà algu à aà e la asse,à elesà pode ia à duela à at à aà
o teàpa aàseàde idi e à EU“TãCIOàDEàTE““áLÔNICá, Comentários sobre a Odisséia de Homero apud
OLIVIERI, 2008:46).
12
Ateneu menciona que Eufórion de Cálcis, em suas Notas Históricas te iaàes itoàoà ueàsegue:à e t eàosà
romanos, vinte moedas eram oferecidas a qualquer um que bravamente oferecesse a sua cabeça para
ser decapitada por um machado, na condição de que seus herdeiros recebessem o valor. E
frequentemente, quando muitos se voluntariavam, eles disputavam entre si qual deles teria mais direito
aàte àsuaà a eçaà o tada à áTENEU,àDeypnoshopistae, IV, 154).
11
288
Uma inscrição antiga preservou o nome de dois sacerdotes gálatas, pai e filho,
que contribuíram com o templo do culto do imperador Augusto no séc I d.C.,
promovendo banquetes:
ál io i àfilhoàdeà Ateporix realizou dois banquetes públicos (23/24 e 26/27
d.C.);
á isto lesàfilhoàdeàál io i à ealizouàu à a ueteàpú li oà / àd.C. .
(Orientis Graeci Inscriptiones Selectae, 553)
Ateneu, fazendo uso de passagens de Filarco, historiador grego do séc. III a.C.,
e io aàoà asoàdeàá ia
es,àu à eltaà uitoà i o à o oàeleàoà ha a,àeà ue,àte doà
prometido entreter a população durante um ano, mandou construir grandes
alojamentos à beira de estradas capazes de conter aglomerações, e lá colocou grandes
caldeirões contendo todo tipo de carne – de boi, porcos, carneiros, dentre outras – e
bebidas à disposição, incluindo vinho. (ATENEU, Deipnosophistae, IV, 150). O mesmo
autor narra, igualmente, a estratégia usada por Lovérnio que, buscando aumentar sua
popularidade entre as pessoas, percorria os campos em um carro puxado por cavalos,
distribuindo ouro e prata e que, ainda, para ganhar os favores do povo, mandou
construir um recinto no qual jarros cheios de vinho eram colocados e comida era
preparada abundantemente de modo que durasse dias. Ateneu chega a fazer alusão,
até mesmo, à presença de poetas em tais banquetes (ATENEU, Deipnosophistae, IV,
152). Por sua vez, o autor latino Aneu Floro (c.70-140 d.C.), de forma semelhante,
destaca que os gauleses, liderados por Vercingetorix, encontravam-se em locais de
assembleia (conciliabulis) e juntavam multidões para promoverem festins (festis)
enquanto seu líder, Vercingetorix, os estimulava a irem à guerra contra os romanos e a
lutarem por sua liberadade (FLORO, Epitoma, XLV, 3.10).
Interessante, ainda, notar o comentário, anteriormente apresentado, feito por
Diodoro a respeito da hospitalidade do banquete celta. Segundo ele (DIODORO,
Biblioteca Histórica, V, 28), a hospitalidade dos ritos de comensalidade não restringiase unicamente aos habitantes de uma mesma localidade mas estendia-se, inclusive, a
estrangeiros, sem que, ainda, a origem ou as intenções destes fossem questionadas.
Em parte, tal característica pode ser atribuída tanto à construção ideológica de uma
image à doà eltaà o oà
o à sel age
à o o,à ta
,à a editoà ueà possaà osà
forneçer indícios para entendermos que a promoção de banquetes pode ser encarada
289
como uma atividade que proporcionava prestígio e poder àquele que a realizava. Em
outras palavras, a hospitalidade do banquete parece-me estar embricada a uma noção
de liderança, abundância e chefia e acabava por reforçar e legitimar a autoridade
daquele que organizava tais eventos na medida em que este, se por um lado
acumulava prestígio, status e fama reforçando seu papel e importância social, por
outro fazia com que riquezas circulassem e era capaz de estabelecer diferentes tipos
de alianças e redes de contatos (comerciais, militares e políticas) utilizando-se do
espaço do baquete como uma arena dupla de negociação do poder.
Práticas de banquetes muito semelhantes são, igualmente, descritas nos textos
edie aisài la desesà o oàoà ha adoà Festi àdeàB i iu
13
(irl.antigo = Fled Bricrenn)
eà oà Oà o toà doà po oà deà Ma à daà Th à i l.à a tigo=à Scéla Muicce Meicc Da Thó)14.
Acredito que tais textos, no tocante a diversas questões dentre as quais incluo, aqui, os
rituais de comensalidade, por sua vez fornecem um importante corpus documental
que possibilita, em geral, a articulação de elementos importantes, bem como a
reformulação de hipóteses e a elaboração de novos problemas relacionados a práticas
culturais específicas em instâncias em que estas permaneceram suficientemente
similares, desde a Idade do Ferro até o período medieval (KARL, 2005: 257). Por mais
que neste momento, devido a questões óbvias de extensão e recorte de pesquisa, a
presente análise não se proponha a desenvolver um estudo comparado-intercruzadoarticulado entre a documentação antiga e medieval, imagino ser válido destacar que os
textos irlandeses – ainda que se leve em consideração a particularidade de seus
contextos de produção, as variabilidades regionais e cronológicas e a ausência de
qualquer dado a priori ueà possaà se à ide tifi adoà o oà u à esp itoà elta à ouà u aà
13
O texto, que possui uma das versões preservadas tardiamente no Lebor na hUidre (O livro da vaca
marrom – c.1160d.C.), remonta ao século IX d.C.. A narrativa diz respeito a um festim organizado por
Bricriu no qual três dos principais guerreiros-heróis irlandeses, a saber Lóegure Búadach, Conall Cernach
eàCúàChulai ,àdisputa àpelaà po ç oàdoà a pe o à i l.a tigoà=à curadmír,cf.MacKILLOP, 2004: 87,121)
oferecida pelo anfitrião, Bricriu.
14
A história gira em torno da disputa entre o ulates (de Ulster), sob a chefia de Conchobar mac Nessa, e
os connachta (de Connaught), liderados por Aillil e Medb. As duas populações que apresentam um longo
histórico de disuputas e conflitos reúnem-se sob o teto do rei Mac Da Thó, em Leincester, para reclamar
seus direitos sobre um cão especial, que havia sido prometido tanto a Aillil como a Conchobar. O
problema é contornado por Mac Da Thó, que segue o conselho de sua mulher, e decide promover um
grande banquete no qual a questão seria resolvida através da disputa pela porção do campeão. O texto
contém uma mistura de aspectos míticos e sátiras (cf. GANTZ, 1981: 179-187).
290
ess
iaà elta à – forneçam algumas pistas ou indícios a respeito de certas práticas
culturalmente compartilhadas relativas às esferas dos banquetes.
Existe na documentação irlandesa, em especial, um ponto em comum com o
que foi apresentado a partir dos relatos antigos: os banquetes irlandeses também são
apresentados como um espaço no qual guerreiros podem disputar (verbal e
fisicamente) a fim de reivindicarem para si mesmos o direito de destrinchar uma
porção de carne destinada ao campeão (irl. antigo = curadmír,cf.MacKILLOP, 2004:
87,121). Mais, ainda, os textos medievais irlandeses fazem referência a uma possível
função iniciadora de armas presente nos espaços dos banquetes, na qual os mais
jovens guerreiros se apresentariam e seriam testados, avaliando-se suas habilidades,
honras e proezas, diante dos olhos de todos (cf. Scéla Muicce Meicc Da Thó, VIII e XIV).
Mais do que, necessariamente, se oporem, creio que ambos os documentos, antigos e
medievais, apesar de suas particularidades diversas, acabam por contribuir com o
debate em torno dos ritos de comensalidade praticados pelas populações célticas.
Parece-me, portanto, frutífero que uma análise mais extensa e detalhada possa ser
desenvolvida, futuramente, levando-se em consideração uma articulação mais
completa entre a documentação textual antiga, medieval e a cultura material
produzida por estas sociedades.
Considerações finais
Partindo-se da documentação textual antiga, os relatos aqui apresentados
parecem indicar a possibilidade de três comportamentos distintos presentes na esfera
dos festins celtas:
1- o destrinchar de porções de carnes que serão, respectivamente, entregues
de acordo com o status àqueles que gozassem de maior prestígio social e
guerreiro: em outras palavras, estas porções são, portanto, dotadas de um
grande valor simbólico que funciona como elemento de distinção;
2- a agressão aberta entre participantes, física ou verbal, em busca de
legitimação de uma autoridade reconhecida por todos e, por fim,
291
3 - a possibilidade de se penhorar a própria vida, em casos mais extremos, a fim
de se obterem riquezas e bens diversos a serem distribuídos entre parentes e
pessoas queridas. (CUNLIFFE, 1997: 105).
Parece natural que os banquetes celtas tenham sido representados pelos
autores helenos e latinos como um universo de barbárie por excelência. Se o banquete
que, entre os helenos, desde Platão, é pensado idealmente como espaço por
excelência de debate e discussão elevada, na qual cidadãos – indivíduos iguais em
direitos e deveres –reuniriam-se para discutir o rumo da pólis, a política, o amor, a
filosofia, as artes e no qual relações de philía poderiam ser construídas entre os
presentes, o discurso que se contrói em relação ao banquete celta traz características
opostas: este é um espaço de bárbaros, no qual, ao invés de unirem-se em um
sentimento de amizade pura, homens degladiam-se livremente sem amor à vida por
um simples pedaço de carne. Além dos relatos de disputas mortais, Ateneu, por
exemplo, faz constantemente menção ao modo primitivo por que os celtas levam o
alimento às bocas e o destrincham com seus dentes, como se fossem animais (ATENEU,
Deipnosophistae, 151). Mais, ainda, marcas de alteridades são visivelmente
construídas por diversos autores antigos em relação ao modo por que os celtas
costumavam consumir o vinho – istoà ,à efo ça doàoàaspe toà
a o à aà edidaàe à
que bebiam o vinho puro e não o diluíam em água, como era costume entre os helenos.
Pode-se, portanto, afirmar que as diversas narrativas antigas que tratam das
p ti asà ali e ta esà deà out as à populaç es,à oà aso,
a os à se p eà situadosà à
a ge àdoàu i e so ,àa a a à po à o st ui àu à e a is oà aseadoà aà disti ç oàeà
identidade, situando, assim, esses grupos como selvagens ou civilizados de acordo com
os seus costumes alimentares (SAÏD, 1985: 139-150). Em linhas gerais, os relatos
clássicos contradizem ou desvalorizam a complexidade social que envolvia a prática
dos banquetes, mas, indiretamente, acabam por fornecer indícios de que este era um
espaço importante para as sociedades célticas (CUNLIFFE, 1997: 105). Entretanto
parece ser plausível afirmar que o festim celta, uma vez dotado de uma alta carga
simbólica que se faz presente e materializada, até mesmo, nas porções de carnes que
são consumidas, constituía-se,àe t o,àe àu aàesp ieàdeà teat o àonde as tensões da
sociedade manifestavam-se e operavam de formas multifacetadas (OLIVIERI, 2008: 53).
292
Isto implica dizer que a comida transcende sua própria função inicial biológica – a
alimentação como forma de aquisição de energia e propriedades necessárias à vida – e
passa a adquirir, ritualmente, uma significação sócio-cultural que pode vir a
caracterizar, legitimar ou reforçar hierarquias e poderes dominantes ou que querem se
apresentar como tal. De certa maneira, uma analogia, para fins lúdicos e ilustrativos,
poderia aqui ser mencionada em relação à prática contemporânea comum a
festividades de aniversários na qual o bolo é cortado e o primeiro pedaço é,
tradicionalmente, entregue àqueles mais queridos, importantes ou afetivamente
próximos do aniversariante, pressupondo e reforçando uma hierarquia (de afetividade)
entre os presentes.
Se é possível ampliar a pergunta inicial –
dosà a
o oà e te de à asà ep ese taç esà
uetesà eltasà aà pa ti à dosà auto esà a tigos? à – para uma questão ainda mais
ampla – deà ue modo pode-seàe te de àosà eltasàaàpa ti àdosàte tosàg egosàeàlati os? à
– eu diria que, antes de tudo, como um constructo. Ou seja, os relatos sobre as
práticas de banquetes entre celtas na Antiguidade dizem mais respeito às sociedades
que as escreveram do que propriamente às sociedades que são por elas relatadas (cf.
ARNOLD, 1995: 153; SAÏD, 1985: 150). Mais ainda, entendo que a questão seja dotada
de complexidades para muito além de indagações e afirmativas simplistas do tipo
dete
i adoàauto àesta aàse doà aisàouà e osàho estoàaoàdes e e à e taàp ti a à
ouàai daà esteà àu à elatoàfa tasioso,à e ti oso,àfalsoàeà
oàde e,àpo àisso,àse àle adoà
e à o ta .à
Assim sendo, quero destacar meu entendimento e posicionamento crítico de
que as representações gregas e latinas do banquete celta não eram completamente
inventadas – elasà seà asea a à e à u aà ealidade à t a s itidaà eà t a sfo
adaà po à
indivíduos que não entendiam em sua totalidade a dinâmica interna das sociedades as
quais retratavam (EHRENBERG, 1989: 152; WEELS, 2002: 109) manipulando-a, devido a
motivações das mais variadas. O que surge, portanto, é uma caricatura, e como todas
as caricaturas, o estereótipo deve ser sempre generalizado, seletivo e exagerado, ainda
ueàte haà e taà aseà aà ealidade à CUNLIFFE, 2003: 11).
Parece-me, então, por um lado, que autores como Possidônio, Diodoro da
Sicília e Ateneu tenham sido capazes de identificar práticas relativamente importantes
à esfera do banquete tais como a possibilidade de disputas e a competição entre
293
convivas, a importância política e social que os banquetes possuíam nestas sociedades,
a existência de porções de alimentos dotados de um grande valor simbólico e a
possíbilidade de aquisição de prestígio, popularidade e status como resultado da
promoção de tais eventos, dentre outras. Por outro lado, esses mesmos autores, na
medida em que relatavam e construíam representações textuais sobre a prática dos
banquetes, descontextualizaram-nos, retirando, em parte, o conjunto de significados
(religiosos, culturais, sociais, políticos) iniciais, acabando, assim, por apropriarem-se
discursivamente de tais rituais de comensalidade, inserindo-os em discussões diversas
acerca da barbárie eàdoà ela io a e toà o àoà out o .à
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296
ENTRE O PRAZER DA PUNIÇÃO E A DOR DA EXPIAÇÃO:
EPISÓDIOS DE ULTRAJE AO DEUS PRIAPO NO SATYRICON
DE PETRÔNIO
Profa. Dra. Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet (UFMG)
Introdução
Ao longo dos 141 capítulos da obra Satyricon de Petrônio que chegaram até nós
desenvolvem-se muitos episódios que nos são apresentados da perspectiva do
narrador homodiegético. A obra de Petrônio, que pode ser enquadrada, não sem
controvérsia, o oà pe te e teà aoà g
e oà o a e ,à podeà se à esu idaà o oà u à
registro autobiográfico das aventuras e/ou desventuras de Encólpio e de seus
companheiros: Gitão e Ascilto, até certo momento da narrativa, e em seguida Gitão e
Eumolpo.
Nesses episódios do Satyricon o deus Priapo ocupa o lugar de divindade
perseguidora de Encólpio. A perseguição divina de que o narrador se declara vítima
tem como motivo a violação do culto ao deus da fertilidade/sexualidade, revelada nos
episódios iniciais, razão pela qual Encólpio e seus amigos são submetidos a um ritual
de prazeres e a uma sequência de castigos sexuais pela sacerdotisa Quartila, que teve
o culto violado, e por seu séquito. Nos episódios finais, a ira de Priapo contra Encólpio
se intensifica, e o narrador experimenta o vexame de perder a força de seu membro
viril e a dor das tentativas de expiação de seu crime contra a divindade ultrajada. No
entanto, ainda que indiretamente, o narrador do Satyricon não escapa à vigilância da
divindade ultrajada nem mesmo nesse interim.
O caráter pouco sério de tratamento da divindade no Satyricon põe em
destaque o viés burlesco amplamente associado a Priapo, adequado à obscenidade
inerente a sua forma de representação: uma figura humana de poucos tratos, que
apresenta um falo desproporcional.
A partir da análise das referências textuais a Priapo no Satyricon, buscar-se-á
apontar como a dessacralização do divino expressa, no Satyricon, um ato de
297
impietasque reflete e reforça o jogo paródico do autor e se enquadra no conjunto de
características irreverentes do personagem, o que permite defini-lo como um herói às
avessas.
Priapo, um deus menor
As diversas vertentes que buscam justificar o culto a Priapo e sua figuração
itifálica destacam o falo enorme que Priapo ostenta como uma deformidade, um
castigo, provavelmente imposta por Hera/Juno. Trata-se de um desequilíbrio gerado
pela desproporcionalidade e, por conseguinte, distante do belo, e não apenas nesse
aspecto que salta aos olhos. Assim, no panteão latino Priapo é indiscutivelmente um
deus menor. Seu lugar entre os deuses é muitas vezes questionado por ele mesmo,
como, por exemplo, no poema 36 da Priapeia Latina, quando, para justificar o fato de
seu membro viril desproporcional estar sempre à mostra, apresenta um catálogo dos
traços físicos mais marcantes característicos de diversos deuses (Febo, Hércules,
Minerva, Vênus, Marte, dentre outros) e deixa seu traço por último, com a ressalva de
que talvez seu nome não caiba naquela listagem (Quod si quis inter hos locus mihi
restat - Porque se entre estes me resta algum lugar, deus Priapo mentulatior non est. –
Não há deus com pau maior que o de Priapo).
Se inicialmente pode-se vislumbrar a associação da imagem itifalica à questão
da fertilidade, no desenvolvimento do mito o deus Priapo foi vinculado ao aspecto
puramente sexual. Segundo Mora (2009), o caráter menor do deus fica evidente nas
duas vertentes simbólicas que o representam: como deus agrário, guarda os jardins, e
não as extensões de terra, a cargo de Baco e Ceres; como deus da sexualidade, suas
funções estão relacionadas com as paixões mais, por assim dizer, imediatas, por
oposição à sexualidade erótica inequivocamente ligadas a Vênus e Cupido.
Oliva Neto (2006), em seu estudo Falo no jardim, afirma que o Priapo fálico na
figuração é objetivamente feio para os antigos porque é desproporcional, dissimétrico.
Isso tornou esse deus uma personagem pouco séria, propícia ao surgimento de uma
literatura jocosa, agrupadas num subgênero conhecido como priapeus (epigramas
298
dedicados ao deus Priapo, com a característica fundamental do caráter burlesco e
licencioso).
No Satyricon, o fato de Priapo ter sido eleito como divindade perseguidora
revela o caráter burlesco e risível da obra como um todo e do narrador em particular.
Enclópio, um herói menor
Encólpio viola o culto a Priapo quase que como uma brincadeira juvenil. As
consequências, no entanto, revelam um jogo entre seriedade e jocosidade com limites
nem sempre muito bem definidos.
Ainda nos episódios iniciais (capítulo 17), o leitor é informado de que a violação,
ou melhor, a audácia da violação ao culto a Priapo deverá ser alvo de punição. De fato
o ultraje é apresentado como um inexpiabile scelus. Apesar de inexpiabile, logo em
seguida descreve-se o remédio que deverá ser dado pelos jovens e imprudentes
violadores, que mudarão de status, passando de violadores a participantes ativos da
cerimônia em honra do deus da sexualidade. Dá-se, então, a efetiva realização da
expiação ao longo dos capítulos seguintes, em que o trio de rapazes (Encólpio, Gitão e
Ascilto) sofre todo tipo de abordagem sexual. É o que pode ser chamado de prazer da
punição.
Durante o grupo de episódios da Cena Trimalchionis, a referência textual a
Priapo ocorre na descrição de um novo ato de impietas (Sat. 60): os convivas, incluindo
aí
obviamente
Encólpio,
após
simular
uma
reverência,
lançam
a
mão
desarvergonhadamente nos frutos guardados pelo Priapo de massa, feito pelo padeiro.
Trata-se, de fato, de mais um ato de impietas, ao qual o narrador dá pouca
importância. No entanto esse episódio aparentemente isolado no jantar atua como
uma imagem que cumpre o papel de fazer lembrar, trazer à memória a violação ao
deus perseguidor.
A referência textual seguinte (Sat. 104) cumpre também o papel de trazer à
presença do narrador e, por conseguinte, dos leitores, a figura de Priapo como
divindade perseguidora. Em sonhos (em evidente jogo paródico com episódios de
299
interferência divina próprios da poesia épica) Priapo denuncia a presença de Encólpio a
Licas, um ex-amante do narrador.
A partir desse episódio, que culmina em um naufrágio, a ira de Priapo contra
Encólpio se torna cada vez mais intensa e presente na narrativa. A partir daqui
Encólpio irá experimentar a dor máxima da expiação de seu inexpiabile scelus.
O drama de Encólpio começa no capítulo 126, quando Circe, uma habitante de
Crotona, cidade que recebeu os náufragos, envia sua escrava Críside até Encólpio, com
o intuito de convidá-lo para momentos de prazer ao lado de sua domina, que ficara
encantada com a beleza do rapaz, que se passava por escravo. A escrava afirma que foi
justamente o fato de ele ser um escravo que despertou o interesse de sua refinada
senhora sobre ele. Encólpio, sempre aberto a novas aventuras, aceita o convite e a
escrava Críside, sem demora, coloca Circe diante dele. É assim que Encólpio se refere à
beleza de Circe:
"Nulla uox est quae formam eius possit comprehendere, nam quicquid
dixero minus erit". (Petr. Sat. 126, 14)
Encólpio, extasiado pela beleza de Circe, age como se estivesse diante de uma
deusa e continua a se referir a ela de modo doce e respeitoso. Em contraste com esta
postura de Encólpio, Circe mantém-se firme rumo a seu propósito e, após algumas
palavras, para justificar a união dos dois, abraça-o e o leva a um local próximo, descrito
como ideal para o amor.
"In hoc gramine pariter compositi mille osculis lusimus quaerentes
uoluptatem robustam". (Petr. Sat. 127, 10)
Lugar ideal, mulher ideal. É neste cenário que a uoluptas de Encólpio se esvai e
ele não consegue realizar os desejos de Circe. Ela, sem entender o porquê disso, busca
explicações: seria seu beijo que o desagradara? Talvez seu hálito? Ou será que fora o
suor de suas axilas? Se o problema não era com ela, será que ele ficara com medo de
que Gitão descobrisse? A estas colocações incisivas de Circe, Encólpio responde
mantendo o tom de reverência, que fora vítima de um feitiço.
300
Circe, ofendida, abandona Encólpio e se dirige ao templo de Vênus. Encólpio,
aterrorizado, refugia-se em seus versos, para depois desabafar com Gitão:
"Crede mihi, frater, non intellego me uirum esse, non sentio. Funerata est
illa pars corporis, qua quondam Achilles eram". (Petr. Sat. 129, 1)
Circe, movida pelo desejo, envia uma carta a Encólpio, em que, após chamá-lo de
"paralítico e sem nervos", dá-lhe a receita para a cura:
"Recipies neruos tuos, si triduo sine fratre dormieris".(Petr. Sat. 129, 8)
Encólpio, por sua vez, aos insultos de Circe responde com tentativas de explicação,
sem perder o tom respeitoso com que sempre se dirige a ela.
"Illud unum memento, non me, sed instrumenta pecasse. Paratus miles
arma non habui. (...) Forsitan animus antecessit corporis moram, forsitan
dum omnia concupisco, uoluptatem tempore consumpsi". (Petr. Sat. 130, 45)
Encólpio encerra a carta com o pedido de mais uma chance e a promessa de não mais
decepcioná-la.
Com a ajuda de Críside e de uma velha feiticeira, chamada Proselenos, Encólpio
realiza uma tentativa de quebrar o feitiço que acredita ter sido lançado sobre ele. Após
alguns rituais de encantamento, a velha consegue o que parecia impossível.
Satisfeito com o resultado, Encólpio sai à procura de Circe, que o recebe com sarcasmo:
"Quid est, paralytice? Ecquid hodie totus uenisti? (Petr. Sat. 131, 11)
Encólpio, bastante seguro de si, não se refere a ela em tom reverencioso e diz:
"Rogas potius quam temptas?" ((Petr. Sat. 131, 11)
Certamente Circe prefere experimentar, mas, mais uma vez, o "equipamento"
de Encólpio não funciona. Extremamente irritada, Circe pune severamente Encólpio,
301
sua escrava Críside e a velha responsável pelo funcionamento efêmero do membro
viril do rapaz.
Humilhado pela segunda vez, Encólpio se desespera, não sabe o que fazer,
chega a reclamar com seu próprio membro viril, conversa com Gitão. Nada disso
adianta.
Por fim, Encólpio se junta novamente à velha Proselenos no santuário de uma
sacerdotisa poderosíssima, que consegue fazer até mesmo a lua descer do céu e que,
segundo suas próprias palavras, é a única capaz de resolver o problema de Encólpio.
Interessante notar aqui que a causa do mau funcionamento do membro viril de
Encólpio é buscada fora do campo religioso, no mundo da magia. Assim o é também a
tentativa de cura, através da realização de outros encantamentos, como o descrito em
Sat. 138, em que Encólpio se submete a um dolorosíssimo antídoto, feito com pênis de
couro, pimenta, urtiga e azeite. Nesse episódio chama a atenção o fato de que,
enquanto busca a cura para seu grave problema nas artes mágicas, Encólpio comete
inconscientemente mais um ato de impiedade contra Priapo: mata três gansos
consagrados à divindade. Mais interessante ainda é notar o desfecho para essa
situação problemática: a sacerdotisa, inicialmente muito irritada com o ato de Encólpio,
muda de estado de espírito quando ele promete pagar pelos gansos com moedas de
ouro. Assim os gansos viram um opíparo jantar, regado a muito vinho.
Encólpio, vítima da ira de Priapo, esgotados todos os recursos disponíveis,
continua sem recuperar sua uoluptas, sem proporcionar a Circe o prazer que ela
espera dele, sem fazer com que seu membro viril funcione. E esta situação se mantém
inalterada. Os nervos de Encólpio permaneceram, por assim dizer, paralisados até o
penúltimo capítulo, quando Mercúrio favorece Encólpio com a restituição de sua
integridade física.
Conclusão
A partir da análise apresentada, pode-se perceber que os atos de impietas do
narrador do romance de Petrônio, bem como de seu séquito, realmente refletem e
reforçam o jogo paródico do autor, ao compor as características do narrador, de modo
inversamente proporcional ao herói cantado pela poesia épica. Como se numa imagem
302
espelhada e destorcida, Encólpio, ao se pretender herói, se afirma na condição de antiherói.
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303
O SIMBOLISMO DOS RITUAIS CRISTÃOS NO DISCURSO DO
APÓSTOLO PAULO
Simone Rezende da Penha Mendes – Mestranda – UFES
No século I, provavelmente entre 52 e 54 d.C., o apóstolo Paulo escreve cartas
endereçadas à comunidade cristã em Corinto (KOESTER, 2005, p. 136), uma colônia
romana, capital política da província senatorial da Acaia, na Ásia Menor. O objetivo de
Paulo é intervir nos conflitos suscitados no seio dessa igreja que dizem respeito ao
comportamento dos cristãos 1 que convivem numa sociedade greco-romana. A
composição da ekklesia coríntia se mostra diversificada: agregava convertidos de
procedência judaica, grega e, provavelmente, romana. A estrutura social dessa
comunidade ajuda a explicar a motivação dos conflitos relacionados à estratificação
social e ao comportamento desses cristãos em relação à sociedade, o que implicava na
forma como conviviam com as instituições romanas, importando alguns modelos
destas para dentro de seu círculo.
Essas tensões, por sua vez, motivaram o discurso paulino em favor do
fortalecimento de uma unidade, uma coesão interna dentro de um grupo
caracterizado por fronteiras instáveis. Isso pode ser constatado nos discursos
proferidos por Paulo em suas cartas - consideradas autênticas - acerca dos rituais.
Nosso objetivo é analisar a simbologia expressa por Paulo em relação aos rituais do
atis o àeàdaà Ceiaàdoà“e ho .à
Quanto ao batismo, o tebilah, um rito judaico normal de purificação por
imersão, embora revele um simbolismo diferente do batismo cristão, provavelmente
foi seu antecedente. Esse batismo judaico por imersão geralmente era realizado num
poço de água parada, o mikveh. Se tratando do rito cristão, o rio parece atender as
p es iç es,à deà
guaà i a à o e te,à suge idasà pelaà Didaqué (MEEKS, 1992, p. 224-
225). A mesma Didaqué ouà Dout i aàdosàDozeàáp stolos à- um antigo compêndio de
diretrizes da igreja cristã, redigida em algum momento do século II, mas baseada em
materiais do século I, provavelmente das primeiras comunidades na Síria (KOESTER,
1
Qua doàutiliza osàoàte oà ist o àesta osà osà efe i doàaà judeusà ist os àpo àe te de osà ueàoà
cristianismo surge no interior do judaísmo como mais uma vertente judaica e até o final do século I, o
cristianismo ainda não deve ser considerado como uma religião distinta do judaísmo.
304
2005, p. 174) - também recomenda o derramamento de água sobre a cabeça do
neófito na falta de água suficiente para a imersão. No século III, as catacumbas e
sarcófagos romanos costumam representar o candidato em pé na água, recebendo
sobre sua cabeça a água derramada pelo oficiante. Não nos é mencionado se nas
comunidades paulinas esse rito se dava de fato por imersão. Talvez, a necessidade
física tenha adaptado a ritualística do batismo nos grupos paulinos, informação que a
documentação paulina omite (MEEKS, 1992, p. 224-225), só nos é possível extrair das
cartas a simbologia desse rito, recomendada pelo apóstolo.
O simbolismo da imersão judaica no mikveh estava associado à pureza e não à
iniciação. Até mesmo a imersão exigida dos prosélitos faz parte das purificações
ordinárias e não de iniciação, enquanto o simbolismo do batismo cristão apresentava
u à o oàele e to:à o e t a aàe àsiàtodaàaàfu ç oàdeài i iaç o ,àt a sfo
a do-o
no ponto decisivo da entrada numa comunidade exclusiva (MEEKS, 1992, p. 228-229).
Como acentua Wayne Meeks (1992, p. 229), o batismo cristão não era precedido por
banho, era o próprio banho: ele é quem li itaàpe
a e te e teàoàg upoà li po àeàoà
u doà sujo ,àoà ueàpodeàse à ep ese tadoàpelosài i iadosàeàosà ueà
Pa aà Pie eà Bou dieuà
,à p.à
oàfo a . 2
,à aà i stituiç oà seà o stituià u à atoà deà
agiaàso ialà apazàdeà ia àaàdife e ça ,àu àatoàdeài stituição notifica a alguém uma
identidade - e também autoridade - perante todos. Uma investidura, por exemplo,
sanciona e santifica uma diferença (preexistente ou não), fazendo-a conhecer e
reconhecer publicamente. De fato, a separação que é levada a cabo durante o ritual
e e eàu àefeitoàdeà o sag aç o à BOU‘DIEU,à
,àp.à
-101). De certa forma, um
rito de iniciação pode ser considerado como um rito de instituição, pois ambos
consagram a diferença. E é exatamente este sentido do rito batismal – o de separar o
puro do impuro – que Paulo expressa através de suas admoestações em 1 Cor 5 e 6.
Numa comunidade cristã como a de Corinto, famosa por sua composição mista
e por seus vínculos relacionais com a sociedade greco-romana, definir os limites ou as
fronteiras de grupo era um dos objetivos de Paulo, que produziu um discurso marcado
por expressões dualistas a fim de reforçar a ordem social e a coesão interna do grupo.
As advertências e recomendações de 1 Cor 5 e 6 revelam a concepção da comunidade
cristã como devendo ser um espaço puro e santo, separado do mundo exterior tido
2
Ver 1 Cor 6,9-11 e Rm 6,2-4.
305
o oà i pu oà eà p ofa o.à áà idaà dosà deà fo a à à a a te izadaà
oà s à pelasà p ti asà
sexuais reprováveis, mas por uma variedade de outros vícios (MEEKS, 1992, p.156).
Para Paulo, era fundamental não ser confundido com pagãos por meio das práticas
sexuais, pelos banquetes realizados com as carnes sacrificadas aos ídolos, pela procura
de tribunal pagão para resolver questões entre os próprios crentes e, sobretudo, no
que tange às práticas ou rituais do culto pagão (SILVA, acesso em: 25 jan. 2009).
Sendo assim, para Paulo, todos os que ingressam na comunidade cristã devem
seà atiza ,àpe
iti doà ueàseja à la ados ,à sa tifi ados àeà justifi ados à àCo à ,
.à
A fim de estabelecer limites, evitando a contaminação do grupo exterior, o ritual
ep ese taàoà
o e àeàoà essus ita àe àC isto,àsupo doàoà o e àpa aàasà oisasàdoà
u do,à despi do-seàdoà elhoàho e
ho e à o o ,à aà
àeà as e doàpa aàu aà idaà o aà o àC isto:àoà
o aà iatu a à ‘ à , .à E à contrapartida, para Paulo, o que os
prosélitos foram antes do batismo deve ser irrelevante após ele. Enquanto para os
judeus a circuncisão é um ritual que estabelece diferenças hierárquicas, pois separa o
grupo daqueles que são passíveis de serem circuncidados (meninos e homens)
daqueles que não o são (as mulheres e os gentios) (BOURDIEU, 2008, p. 98); em Paulo,
essa observância fica em segundo plano e após o batismo, a igualdade em Cristo é que
deve imperar na vida social de todos os cristãos (CROSSAN, 2007, p. 210).3
Ou seja, na concepção paulina, ao mesmo tempo em que o batismo impõe, no
âmbito exterior, uma linha divisória entre os puros e impuros (cristãos e os não
cristãos), ele também iguala a todos os batizados entre si por meio da salvação em
Cristo no âmbito interior.
Out oà itualà ueà osà i te essaà desta a à à aà Ceiaà doà “e ho .à ásà ú i asà
referências sobre tal rito estão expostos em 1 Cor 10,14-22 e 11,17-34. Elas nos
fornecem poucas informações sobre o processo ordinário do ritual (MEEKS, 1992, p.
234). Do que podemos extrair das cartas, e também dos Evangelhos Sinóticos, é que
esse ritual consiste numa refeição comunitária com ênfase no partir do pão e do vinho.
Assim como o batismo, a ceia não era uma inovação cristã, a ação com o pão e o vinho
remonta à refeição familiar de um lar judeu. Neste, costumava-se iniciar a refeição
com a partilha e a distribuição do pão e ao término da refeição, era compartilhada
uma taça de vinho, sendo que a cada gesto, benções especiais eram pronunciadas
3
Ver: Gl 3,27-29 e 1 Cor 12,13.
306
(BRANICK, 1994, p.100). Entre os romanos, refeições festivas faziam parte da vida das
associações voluntárias de todos os tipos. Mais tarde, no início do século II, tais
associações já não eram bem vistas e suas refeições foram proibidas pelo decreto do
imperador Trajano na Bitínia, província da Ásia Menor governada por Plínio, o Moço.
Em 112 d.C. Plínio teria interpretado a Ceia dos cristãos como uma dessas refeições
como expõe em sua Carta a Trajano (MEEKS, 1992, p. 234) (KOESTER, 2005, p. 16).
Quanto ao local, sabe-se que as refeições comunais cristãs eram realizadas nas casas
particulares dos cristãos em que se reuniam a ekklesia.
Quando Paulo está escrevendo aos coríntios sobre como deve ser conduzida a
ceia do Senhor, ele nos fornece sua interpretação quanto à simbologia desse rito, o
qual estava sendo deturpado pelos cristãos coríntios durante a sua celebração. A
tradição mais antiga sobre a refeição comunal está citada em 1 Cor 11, 23-26 que
relaciona a essa prática o simbolismo do sofrimento vicário de Jesus e a instituição
dessa refeição na última ceia de Jesus na noite em que foi entregue (KOESTER, 2005, p.
102-103).No entanto, Paulo só relembra a simbologia dessa tradição eucarística com o
intuito de tratar os conflitos que surgiram durante a celebração dessas refeições. Em 1
Cor 11,17-34, ele diz:
[...] quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a Ceia do Senhor;
cada um se apressa por comer a sua própria ceia, e, enquanto um passa
fome, o outro fica embriagado. Não tendes casas para comer e beber? Ou
desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm?
[...] Portanto, meus irmãos, quando vos reunirdes para a Ceia, esperam uns
aos outros. Se alguém tem fome, coma em sua casa, a fim de que não vos
reunais para a vossa condenação [...].
A fim de entendermos esse conflito relatado por Paulo é necessário
remontarmos às relações desenvolvidas pela sociedade romana imperial do século I.
Nos dois primeiros séculos do cristianismo, as comunidades cristãs, ou igrejas
domésticas, se reuniam em salas privadas nas casas daqueles que tinham condições de
patrocinar as reuniões da ekklesia (LAMPE, 2004, p. 439), isto é, dos membros mais
abastados que se tornavam os anfitriões das comunidades cristãs (CROSSAN, 2004, p.
465). Como todos os cristãos de uma cidade geralmente não cabiam numa casa
particular coexistiam várias igrejas domésticas nas maiores cidades como é o caso de
Corinto e Cencreia, onde os grupos se concentravam nas casas de Estéfanas, Gaio, Tito
Justo, Crispo e Febe. Segundo Rm 16,23, Gaio, um cristão coríntio batizado por Paulo,
307
hospedou e patrocinou as atividades do apóstolo (LAMPE, 2004, p. 439, 443). Abrindo
sua casa para reuniões da ekklesia coríntia, não seria incomum se Gaio tivesse se
o po tadoà o oà u à pat o oà i oà deà asso iaç oà p i adaà ouà deà so iedadeà últi aà
ge t li a .à“eàdu a teàasà efeiç esà o u sàdaà o u idade,à ealizadasàe àsuaàsalaàde
ja ta ,àeleàfizesseàdisti ç esà oàali e toàdeàa o doà o àoà
e à C isto ,à issoà
elàso ialàdeàseusà i
oà seà o stitui iaà u aà atitudeà fo aà doà p o edi e toà o di
osà
ioà deà
acordo com prática comum adotada nas reuniões festivas da sociedade gentílica
(MEKKS, 1992, p. 112-113). Nos banquetes festivos oferecidos pelos patronos aos seus
clientes, costumava-se servir a comida e vinho inferiores aos clientes mais pobres,
enquanto a comida e o vinho superiores eram servidos ao anfitrião e seus amigos mais
honoráveis (CHOW, p. 127-128).
O que a crítica de Paulo aos coríntios tratada em 1 Cor 11,17-34 nos remete a
pe sa à à ueà osà i osà esta ia à desp eza doà aà Ig ejaà deà Deus à eà e e go ha doà
a uelesà ueà adaà t
,à osà po es.à à Co oà a e tuaà Joh à Do i i à C ossa à
, p.
465), na interpretação de Paulo:
A Ceia do Senhor deve ser uma refeição compartilhada com patrocínio, na
qual ricos e pobres alimentam-se juntos, mas naturalmente, a comida e
bebida, no todo ou em sua maior parte, deve vir dos ricos. Entretanto, [...]
os ricos que não trabalham chegam antes dos pobres que trabalham e
juntos comem o que trazem ou o que o anfitrião prepara para eles. Quando
osà po esà hega ,à oà estaà aisà adaà pa aà eles,à po à isso,à e ua toà u à
passa fome [os pobres], o outro [os ricos] fi aàe
iagado ,à o oàPauloàdiz.
Nesteà aso,à oà o flitoà seà d à e t eà dife e tesà pad esà deà o po ta e to,à
entre as expectativas de um status específico e as normas de uma comunidade de
a o à MEEK“,à
,à p.à
.à Pauloà ad e teà ueà osà i osà te ha à suasà efeições
privadas em casa, pois na Ceia do Senhor a norma de igualdade deve prevalecer. O
modelo vertical do patronato se torna simétrico em Paulo, quando aos cristãos
recomenda o respeito e o amor mútuo, sendo que a igualdade deveria governar as
relações so iaisàdosà ist os.àPa aàPete àLa peà
,àp.à
,à esseà odeloàsi
t i oà
est à oà o te toà i ediatoà dosà pat o os à ueà uida à dosà ist osà e o o i a e teà
a e tesà eà ueà a e à suasà asasà o oà hospedei os .à Noà e ta to,à esseà igualita is oà
parece ser meramente sacramental, ficando restrito no nível puramente simbólico,
não surtindo efeito sobre os papéis sociais desempenhados pelos membros (MEEKS,
,à
,à poisà aoà es oà te poà e à ueà e a à a
308
eis à pa aà ajuda ,à p otege à eà
apoiar os mais pobres se constituíam numa ameaça à unidade e igualdade da ekklesia
devido à rede de relações as quais estavam obrigados a desenvolver com a sociedade
romana imperial, como por exemplo, os seus contatos com amigos, clientes e patronos
não cristãos (CROSSAN, 2007, p. 306). O discurso de Paulo advertindo os cristãos
coríntios a não frequentarem os jantares pagãos (1 Cor 10,14-22) também é um
desdobramento desse problema fornecido pelas redes de patronato.
Desta forma, entendemos que o simbolismo do batismo e da Ceia do Senhor
para Paulo tende a favorecer a solidariedade de grupo e seus limites. O batismo
encerra simbolicamente para o iniciante uma separação do mundo exterior ao mesmo
tempo em que abole as diferenças étnicas, sexuais e hierárquicas entre os membros
no interior da comunidade através da igualdade celebrada em Cristo. Já a Ceia do
Senhor dá ênfase ao aspecto comunitário (a communitas), à fraternidade e, assim
como o batismo, à igualdade. Todas essas expressões simbólicas são importantes para
o apóstolo na tentativa de criar uma unidade de grupo, fortalecer o sentimento de
pertença dos cristãos e definir as fronteiras para com os não cristãos. De fato, numa
comunidade tão diversificada do ponto de vista étnico, o choque com o cristianismo
pregado por Paulo se tornou inevitável, resultando em tensões conectadas com as
práticas sociais dos membros coríntios. Podemos imaginar o quão difícil seria, por
exemplo, para um cristão coríntio mais abastado - como um patrono - que possuía
vínculos tão estreitos com a sociedade greco-romana, de repente abolir seus contatos
com o mundo exterior e ao mesmo tempo se enxergar e se comportar como igual a um
escravo ou mesmo um liberto. Isso acabou gerando conflitos e uma das formas que
Paulo utiliza para contornar esses conflitos está refletida na simbologia dos rituais que
ele interpreta e prescreve a fim de reforçar a unidade e igualdade da ekklesia de
Corinto.
Referências bibliográficas
Documentação primária impressa
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Novo Testamento. São Paulo: Ed. Paulus, 2006.
309
FRIBERG, B & FRIBERG, T. Novo testamento grego analítico. São Paulo: Ed. Vida Nova,
2006.
Obras de apoio
BOURDIEU, P. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo:
Edusp, 2008.
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religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Ed. Paulus, 2004. p. 111129.
CROSSAN, J. D. O nascimento do cristianismo: o que aconteceu nos anos que se
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CROSSAN, J. D & REED, J. L. Em busca de Paulo: como o apóstolo de Jesus opôs o Reino
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KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento, volume 2: história e literatura do
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“ILVá,à T.à I.à “.à Oà p o le aà daà se ualidadeà e à Co i toà oà p i ei oà s ulo .à I :à
ENCONT‘Oà DEà INICIáÇÃOà CIENTÍFICáà EMà E“TUDO“à CLã““ICO“à CULTU‘áà CLã““ICá:à
INTER-RELAÇÕES Eà PE‘MáNèNCIá .à .,à
,à á a a ua a.à á ais...à Dispo
<http://www.fclar.unesp.br/ec/anais2008.php>. Acesso em: 25 jan. 2009.
310
elà e :à
CULTURA POLÍTICA, PODER E RITUAL NO SÉCULO IV D.C.:
A CELEBRAÇÃO DO COSMOCRATOR NO PANEGÍRICO A
TEODÓSIO I
Thiago Brandão Zardini (Mestre, UFES)
Em junho de 389 d.C., o retórico gaulês Pacato Drepânio chegou a Roma para
declamar o panegírico direcionado a Teodósio I em celebração da sua conquista sobre
as Gálias, derrotando o usurpador Máximo. Na cerimônia em que Pacato anunciou seu
discurso, uma multidão recebeu o imperador, que voltou ao Ocidente justamente para
comemorar sua vitória e restabelecer os laços com esta metade do Império. Assentado
em seu trono, rodeado pelo Senado e pelos mais influentes representantes da
aristocracia ocidental, Teodósio escutava as palavras do orador gaulês, que
demonstrava o júbilo de seu povo pela vitória alcançada.
A conexão entre o conteúdo do panegírico e as aspirações da própria sociedade
poderia ser medida pela ocasião de sua própria promulgação que, como neste caso
que nos ocupa aqui, foi feita durante as festividades do adventus, em que ocorriam os
rituais de adoração da imagem do imperador, dos quais o discurso do panegirista era
parte integrante. Este ritual do adventus consistia na cerimônia de recepção do
imperador, mas também, em outras ocasiões, de suas representações iconográficas
(estátuas) ou de um enviado especial por parte das comunidades locais. A cidade era
preparada com antecedência e não faltavam aclamações em forma de cantos e
orações. Até mesmo a procissão que acompanhava o cortejo imperial seguia um
padrão: os cidadãos mais notáveis seguiam na frente, vestidos de branco, depois os
representantes dos collegia, os sacerdotes e, por último, os súditos populares (Silva,
2003, p.138). Não resta dúvida de que o momento de aclamação do panegírico era um
dos mais esperados.
Com a apresentação do panegírico em público, comemorando a presença do
basileus na cidade, o autor tem a chance de externar todos os anseios de seus
conterrâneos com relação ao soberano que os governa, o que corrobora a afirmação
de MacCormack (1981, p.6), que demonstra que os panegíricos, inseridos num
cerimonial tão magnificente, ao enfocar as virtudes imperiais, representam menos um
311
discurso isolado de características particulares do que uma ponte de acesso à
complexa rede de rituais da corte baixo-imperial.
Entre os recursos usados pelo discurso para apresentar o poder imperial não
poderia faltar a conexão com a esfera celeste, ou, em outros termos, a relação com
a(s) divindade(s), sobretudo ao considerarmos que Teodósio apresenta-se conforme a
imagem do basileus, representante da realeza sagrada bizantino-cristã – a basileia –
que legitima o sistema político do Baixo Império desde o governo de Constâncio II.
É exatamente este o nosso foco aqui: elucidar a relação que se estabelece entre
a política de Teodósio e o poder de representação da sua imagem sagrada. Essa
relação, defendemos, ocorre por meio da ritualização, ou seja, de um conjunto
cerimonial de procedimentos sobrenaturais que servem de apoio à manutenção da
legitimidade do governante. Optamos, então, por analisar a ritualização dos
cerimoniais porque se compreende que este recurso é fundamental para representar o
poder imperial, algo que permite ao basileus congregar e medir em torno de si a
confiança de seus súditos.
Assim, cremos que o poder atribuído ao soberano representa uma construção
social cuja força é medida pela mobilização simbólica que encerra, pela crença dos
grupos que a reconhecem (Bourdieu, 2000, p.185). Defendemos, portanto, que a
representação do governante e de seu poder como ordenador do mundo é legitimada
porque a própria sociedade crê que existe nele algo de superior, capaz de defender e
garantir a perpetuação da ordem estabelecida, o que fica claro nas festividades
imperiais.
Por outro lado, não há duvidas sobre a significativa rede de benefícios mútuos
das quais gozavam os círculos aristocráticos senatoriais perante a corte no século IV
d.C., e de como essa elite obtinha ainda maior expressão política ao enaltecer a figura
imperial mediante a promoção de rituais públicos. Disso tudo, o tema de investigação
aqui proposto pretende voltar-se para uma visão cultural e sociológica que o discurso
propaga, buscando adentrar por camadas mais profundas das relações sociais que se
estabelecem pelos grupos em questão. Em outras palavras, nosso interesse é superar a
visão parcial que explora a análise do panegírico dirigido a Teodósio enquanto uma
obra de propaganda política, cujo objetivo é pura e simplesmente de promover a
312
imagem do Estado, agindo ideologicamente a fim de manipular a opinião pública para
exercer sua dominação.
Visto isso, nossa proposta é de investigar as relações sociais no século IV d.C.,
com base no que o panegírico informa sobre a cultura política que naquela realidade
pode ser observada. Eliana de Freitas Dutra, por meio de seu artigo História e culturas
políticas: definições, usos, genealogias (2002), empenha-se em repensar este conceito,
egresso das ciências sociais, para aplicá-lo ao passado, sob uma perspectiva histórica.
Nesteàse tido,à ele
aà ueà oàatoàpol ti o,àe
ua toàfe
e oà o ple oà ueàeleà ,à
se aplica por referência a um conjunto de representações compartilhadas por um
grupo bastanteà a ploà oà seioà deà u aà so iedade à Dut a,à
,à p.
.à E à out asà
palavras:
O entendimento da cultura política pressupõe a existência de um conjunto
coerente de elementos que, ao se interrelacionarem estreitamente, não
apenas constituem um patrimônio cultural, mas, ao fazê-lo, permitem a
definição de uma identidade aos indivíduos e às coletividades que a
reclamam. Assim, no interior desse conjunto, uma leitura do passado
histórico compõe-se com utilizações de uma linguagem política e de um
vocabulário de símbolos, ritos, gestos e representações visuais que
confluem para uma mesma visão de mundo a ser partilhada. (Dutra, 2002,
p.25)
A gama de interesses que perpassam as relações políticas entre o imperador e a
aristocracia no Baixo Império, assim, envolvem-se numa rede cultural mais rica em
a adas,àeà ueàe pli aàoà atoàpol ti o àe àsuaàess
iaà itualà eà
oàso e teà oltadoà
para interesses classistas ou ganhos econômicos, ou diretamente prestígio político e
dominação de massa). Daí refletirmos o contexto que envolve o cerimonial no qual
está inserido o panegírico com base no conceito de cultura política, selecionando do
discurso elementos que representam os grupos em sua inclusão e apoio à autoridade
do basileus.
Feitas tais referências ao modelo de poder sagrado que respalda as discussões
aqui presentes, esclarecemos nosso recorte temático: pela limitação das dimensões
deste artigo, e também pela relevância do objeto, optamos por apresentar o poder de
representação de um elemento específico contido no panegírico de Pacato Drepânio,
que acarreta uma categoria impar de autoridade e domínio, ao mesmo tempo em que
reflete em benefícios para os súditos, a saber, o título de cosmocrator concedido ao
imperador.
313
Nas inscrições, o termo cosmocrator surge representando a transposição dos
símbolos imperiais para a divindade e, inversamente, dos atributos sobrenaturais –
reservados aos deuses – para o imperador, confundindo-se as imagens de ambas as
entidades (Silva, 2003, p.115). Neste aspecto, abundam referências no panegírico que
remetem a esta relação: ao justificar a atividade constante do imperador para atender
as necessidades do Império, Pacato se volta para metáforas celestes:
Do mesmo modo que o céu é arrastado por um movimento de rotação
infatigável, do mesmo modo que os mares são agitados pelo fluxo e refluxo,
do mesmo modo que o sol desconhece a imobilidade, assim tu, imperador,
tens sido arrastado por incessantes negócios que se renovam
periodicamente. (Pan.Lat., XII, X, 1)
Comparado ao sol, ao céu e ao mar, vencendo as adversidades tal como os
astros incessantemente o fazem, o imperador assume as características de um
autêntico cosmocrator, e o seu incessante movimento garante o funcionamento do
cosmos,à doà esta ele i e toà daà o de à e à suaà totalidade.à Estaà i ti idade à o à asà
instâncias celestes e sagradas é deflagrada com mais evidência ainda quando então
afi
aà ueà Teod sioà à
o fidente dos desígnios celestiais e dos segredos da
atu eza à Pan.Lat. XII, XIX, 2). E não só confidente, como também controlador da
atu eza,à ua doàoàauto àp o la aà ueà àaoài pe ado à ueà e àtodoàoàu i e so,àosà
povos dirigem súplicas, o marinheiro pede bom tempo, o viajante, bom retorno e o
o
ate te,àfelizesàp ess gios à Pan.Lat. XII, VI, 4).
E esta visão cosmológica do imperador é demonstrada até mesmo quando
Pacato Drepânio intenta pedagogicamente exortar Teodósio a ser mais tolerante com
a cobrança de impostos, haja vistas que o imperador vencido, Máximo, fora retratado
como um sedento usurpador das riquezas das elites gaulesas. Assim, então, propõe o
panegirista:
Se a divina lei e a piedade autorizam aos mortais julgar as coisas celestiais,
não pode haver maior felicidade para o príncipe do que fazer venturosas as
pessoas, combater a miséria, vencer as riquezas e dar um novo destino aos
homens. Por isso o imperador que tem a idéia exata de sua majestade deve
considerar menos seu o que tem recebido dos outros do que o que tem lhes
dado. Pois, uma vez que todas as coisas voltam a ele, do mesmo modo que o
oceano que cerca o globo e recebe das terras as águas que ele lhes
proporciona, tudo o que flui do príncipe aos cidadãos volta ao príncipe. Um
imperador serve bem a seus interesses e a sua reputação quando é
generoso. Ele se beneficia da glória dando bens que hão de retornar a ele.
(Pan.Lat. XII, XXVII, 3-5)
314
A este ponto, então, reafirmamos a proposta de que, uma vez renovada no
Ocidente a imagem sagrada do soberano por meio da proclamação do panegírico, no
cerimonial público de entronização de Teodósio, na cidade de Roma, em 389 d.C., não
se tem motivos para duvidar de que novos laços se estabeleceram entre
imperador/senado/ aristocracia/súditos, visando a reordenar a paz e a prosperidade
entre toda esta rede de relações sociais aqui envolvidas, pelo princípio ao qual, muito
mais do que receber prestígio político ou benefícios gerais, revigora uma ordem
sobrenatural que garante a segurança para os súditos e a concórdia dos senadores e
das elites ocidentais para atuarem no âmbito público e privado, em tempos de crises
tão agudas no seio do Império. Esta concórdia é, então, mencionada no panegírico
ua doà Pa atoà des e eà ueà Teod sioà fo aà eleitoà p
ipeà o coração do Império,
mediante o sufrágio de todo o exército, com o consentimento de todas as províncias,
e fi ,à o àoàapoioàdoàp p ioài pe ado à ei a te à Pan.Lat. XII, XXXI, 2). E a premissa
de que os interesses públicos, bem como os privados, estão resguardados pelo
governo teodosiano são confirmados quando observamos a seguinte passagem:
a uiloà ueàseàpedeàaoài pe ado àpa e eàse à e e idoàdesdeàoà o e toàe à ueà àpo à
eleàou ido à Pan.Lat. XII, XVIII, 4).
Todas estas passagens, claro, são facilmente identificáveis com o padrão
exigido de uma obra laudatória, e não temos dúvidas do quão cada um destes
símbolos e epítetos representam verdadeiros topoi literários. O que não esvazia o
sentido de suas afirmações: ao contrário, reforça a continuidade de uma tradição
imperial e literária que vê na autoridade política um meio – senão o único – de garantir
a perpetuação da ordem social, o que (já afirmamos) adequa-se perfeitamente ao
conceito de cultura política.
A metáfora referente ao imperador que é enaltecido por todo o globo, ou,
u aà t aduç oà
aisà lite al,à po à todoà oà
u do ,à à ta
à u à dosà topos mais
recorrentes do final da antiguidade e início do medievo, conforme afirma Ernest R.
Curtis (1996, p.215). Mas é também recorrente a presença constante do globo grafado
nas moedas cunhadas neste mesmo período. Tal relação entre a representação de
Teodósio como cosmocrator no panegírico e a constância do globo simbolizado nas
315
moedas nos leva a segunda parte deste artigo, que visa demonstrar como se opera a
difusão da imagem do cosmocrator por meio da imagética imperial.
O material numismático1 permitirá compreender a visão que o próprio governo
cria para si, uma vez que as moedas são artigos repletos de símbolos da majestade
imperial. Tais moedas, cunhadas e distribuídas por todo o Império, assumem aqui um
caráter histórico e tornam-se objeto de estudo pela difusão e representação que
possuem da domus imperial (Coimbra, 1957, p.11), sobretudo no que tange a imagem
sagrada do soberano.
Para este estudo, foram selecionadas as moedas cunhadas por Teodósio,
Máximo e seu filho, Vitor, por oferecerem a imagem do soberano como ordenador do
mundo2. Isso porque encontramos no seu reverso, comemorações e acontecimentos
políticos rememorados e vislumbramos como os imperadores queriam legitimar-se por
meio das imagens cunhadas, de modo que estas peças monetárias constituem
verdadeiros monumentos imperecíveis que tornam passível de estudo aspectos da
vida política e social, ou que as fontes escritas não abarcam ou, como no nosso caso,
que reforçam um símbolo já recorrente de modo visual (Coimbra, 1957, p.13).
Desse modo, apresentamos um solidus do período datado entre 392-395 d.C.,
em que o imperador Teodósio representava uma imagem vitoriosa. No verso temos a
figura do imperador portando o labarum e o globo em suas mãos, pisando sobre um
corpo estendido, traduzido como os restos mortais de Máximo, o usurpador (Figura 1).
1
Sendo a Numismática a ciência que estuda as moedas, desde a pesagem, seleção e classificação até a
análise dos símbolos, consideramos nesta pesquisa as moedas enquanto material numismático, já
selecionado e hábil a ter suas imagens analisadas.
2
Durante seu governo (379-395 d.C.), Teodósio, então imperador do Oriente, teve de sufocar duas
usurpações do trono no Ocidente que lograram apoio e duraram tempo suficiente para estabelecer uma
base de governo e emitir moedas: aquela de Máximo, que matou o imperador Graciano, tomando seu
lugar, e dividiu o Império de 383 a 388 d.C.; e a investida de Eugênio que, apoiado na influência militar
do general Arbogasto e de parte do senado, durou de 392 a 394 d.C.
316
Figura 1: Símbolos cristãos do triunfo de Teodósio
Fonte: Kent et al., 1973, p.157 (Fig. 726)
O globo torna-se comum a partir do século III d.C., nas emissões monetárias,
como expressão da investidura do imperador pela divindade. No século IV d.C., porém,
tomará o sentido de domínio do basileus sobre todo o universo, tornando-seà at i utoà
imprescind elàpa aàoài pe ado à ueàaspi aà àu i e salidade à “il a,à
,àp.
.àNaà
verdade, o que se busca ratificar é que o basileus é sempre o triunfador, o que nos
reporta também ao título de invictus (Silva, 2003, p.123), traduzido como uma virtude
de invencibilidade militar tão poderosa que torna o imperador capaz de vencer a
desordem e a destruição simplesmente por sua presença/existência. Tal representação
traduz a mesma mensagem transmitida pelo panegírico que, por sua vez, ajunta as
idéias de respaldo das divindades e aceitação pública (vide as citações anteriores) para
afirmar também a imagem do cosmocrator.
E, fica comprovado pelas próprias moedas, que a figura do globo é mesmo a
mais constante na imagética deste período. Tal símbolo é inclusive o meio pelo qual os
usurpadores – Máximo e seu filho Vitor – tentam legitimar seus assaltos ao trono,
representando os governos Ocidental e Oriental como duas mulheres no trono, que,
em paralelo, seguram ambas um globo em suas mãos (figura 2). Um aspecto
interessante está colocado nesta moeda (Figura 2) em que Máximo ousa grafar não a
317
figura de Teodósio, mas a inscrição e a imagem de seu filho, Vitor, junto a sua, na
tentativa provável de garantir sua perpetuação no trono, antevendo um collegium
imperial com seu filho, ainda puer.
Figura 2: Victor, filho de Máximo, representado como Augusto
Fonte: Kent et al., 1973, p. 156 (Fig. 724)
Figura 3: Máximo, representado em concórdia imperial com Teodósio
Fonte: Kent et al., 1973, p. 156 (Fig. 723)
Na peça acima (Figura 3), Máximo busca firmar sua concórdia com o governo
de Teodósio por meio da inscrição VICTORIA AVGG, o que, é reforçado não só pela
318
imagem do globo, como também pala letra grega χ (chi) grafada no centro deste, o que
junto a letra ρ (rô) representa o monograma de Cristo, elo religioso fundamental para
estreitar as relações entre os imperadores.
É assim, contudo, que entra em vigor a função da moeda como instrumento de
poder. Maria Beatriz Florenzano atesta que, desde um passado remoto, os romanos
emitiram moedas em decorrência de sua expansão militar e política em direção à
Mag aàG
ia,àdeà odoà ueà ‘o aàseàfaziaà ota àat a sàdeàsuasà oedas,à ost a doà
aosàg egosàdoàsulàsuaàfo ça,àsuaàa
iç o à Flo e za o,à
,àp.
.
Assim sendo, não se tem dúvida de que, já no século IV d.C., era preocupação
da domus imperial inspecionar as cunhagens na extensão de todo o Império. Somos
adeptos da tese apresentada por M. H. Crawford (1983, p.47), que demonstra que
partia da casa imperial a escolha dos tipos de cunhagem, a fim de chamar a atenção
para as virtudes e os êxitos dos imperadores, de modo que tivessem um grande
impacto sobre os súditos.
Sendo tão importante a imagem do imperador como cosmocrator, haja vistas a
difusão deste epíteto por meio do simbolismo do globo pelas moedas cunhadas pela
domus imperial, lançamos a hipótese de que, ao remontar a tal idéia por meio do
discurso, o panegirista – e o grupo que ele representa – não só pretendem oferecer
seu apoio ao soberano, e estreitar suas relações políticas com ele, como visam
prioritariamente manter a ordem pública por meio da manutenção da autoridade
política, a fim de salvaguardar os princípios norteadores da sociedade que anseiam
perpetuar.
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320
AS HISTÓRIAS DE HERÓDOTO COMO MONUMENTO:
ENTRE A CELEBRAÇÃO DO PASSADO E A IMORTALIZAÇÃO
DA SPHRAGIS DO AUTOR
Tiago da Costa Guterres Mestrando em História (UFRGS)
E à seuà
le eà a tigoà i tituladoà Oà ueà à u à auto ? ,à es itoà e à
,à oà
pensador francês Michel Foucault apresentou uma nova noção para as reflexões a
respeito da questão do autor: a de função-autor. Segundo Foucault,
Em uma palavra, o nome do autor funciona para caracterizar um certo
modo de ser do discurso: o fato de ter um nome de autor, o fato de poder
dize à istoàfoiàes itoàpo àFula oàdeàTal ,à Fula oàdeàTalà àoàauto àdisto ,ài di aà
que o discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se
vai, que flutua e passa, uma palavra que pode ser consumida imediatamente,
mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de certo modo e que
deve receber, em uma dada cultura, certo estatuto. (FOUCAULT, 1999, p. 8).
O nome do autor é então o elemento unificador do discurso em uma
dete
i adaà ultu a,àa ueleà ueà ep ese taàoà selo àeàaàga a tiaàdaà posse àda uiloà
que é escrito. O nome de Heródoto de Halicarnasso, por exemplo, durou mais do que
uma habitual apresentação na praça pública de alguma cidade grega do século V a.C.
“euà selo à at à hojeà espo deà peloà ueà foià es itoà h à u sà doisà ilà eà ui he tosà a osà
at s.àEàosàat i utosà a ia a :àdeà paiàdaàHist ia àaà e ti oso,àHe dotoàso e i euà
tanto quanto outros autores gregos ,à eà e ta e teà
aisà doà ueà
uitos.à Paià daà
Hist ia ,àhoje,àj à e àta to.àDefi i àoàestatutoàdeàsuaào aàtal ezà
oàsejaàoà elho à
caminho a seguir. Historiador? Geógrafo? Etnógrafo? Investigador certamente, no
sentido mais amplo possível, que viaja, que vê, que lê, que ouve pessoas, mas também
que escolhe, critica, e organiza. Enfim, Heródoto foge às nossas anacrônicas definições.
Para o que importa aqui, basta por enquanto dizer que ele é um autor. Um sujeito cuja
iniciativa não resultou apenas nas Histórias, mas nas Histórias de Heródoto de
Halicarnasso. E daqui advém o problema a ser explorado no presente texto. Buscarei
examinar os modos pelos quais Heródoto, ao celebrar e salvar do esquecimento a
memória dos gregos e dos bárbaros, torna seu próprio nome indissociável do tema
tratado, impedindo a ele próprio do esquecimento.
321
Para isso, examinarei brevemente duas passagens da Histórias. Em primeiro
lugar o nome próprio. Pode-se dizer que é sob a clara vontade de assinar suas obras
que se apresentam os autores gregos entre os séculos VI e V a.C. Tal aspecto,
denominado por G. E. R. Lloyd (1995, p. 60) de «egotismo», pode ser encontrado nos
mais diversos campos, por exemplo, nos médicos (os autores hipocráticos) e filósofos
da natureza. Segundo Lloyd, o contraste dos gregos em relação ao Oriente Próximo é
marcante no que se refere à presença autoral apresentada nos textos. Se entre os
eg p iosà eà esopot
i osà s oà a osà osà e e plosà deà talà p ese ça ,à oà es oà
oà
ocorre quando tratamos da Grécia. Quanto aos gregos, a poesia se apresenta como um
dos principais exemplos: se o primeiro exemplo que dispomos é o do beócio Hesíodo
(final do século VIII a.C., ou início do VII a.C.), os autores posteriores não abandonaram
a iniciativa, resultando nos mais diferentes modos de apresentação de seu próprio
nome. Um bom exemplo dessa variedade é o caso de Safo de Lesbos (século VII a.C.).
“euà o eà
oàapa e eàdaàfo
aà usual ,àouàaoà e osà
oàdaàfo
aà aisà o he idaà
por nós, onde o autor inicia por apresentar seu nome de forma direta, marcando o
ponto inicial de seu texto. Ao contrário, de maneira indireta, há uma espécie de
invocação inicial, e um pedido por parte da autora (ainda anônima no início do poema)
a Afrodite:
Imortal Afrodite de colorido trono,
filha de Zeus, artificiosa, te suplico
que não submetas a infortúnios nem dores,
oh Soberana, meu coração. (SAFO, I: 1-4).
O nome da autora, então, é inserido não pela própria autora, reivindicando sua
autoria; a tarefa cabe a própria Afrodite que, depois de ser chamada, dirige-se a autora,
chamando-aà peloà p p ioà o e:à áà ue à desejasà ago aà ueà i haà pe suas oà t agaà
at àteuàa o ?àQue ,àohà“afo,àteàato
e ta? à “áFO,àI:à
-20).
No que se refere se refere à dependência da figura divina para apresentar o
conteúdo de sua obra, Safo se difere de Hesíodo, sempre grato às Musas. Mas embora
Safo não trate do mesmo assunto que Hesíodo (nem do(s) aedo(s) anônimo(s)
conhecido(s) sob o nome de Homero), o fato é que sua ligação com uma entidade
divina como Afrodite pode ser equiparada à relação de outros poetas com as Musas.
322
Relação de intimidade diferenciada, que possivelmente fazia dos poetas sujeitos
também diferenciados em seu meio.
Hecateu de Mileto que, ao que parece, Heródoto tomou como rival, também
apresentou seu nome próprio em uma de suas obras, a julgar pela famosa citação de
Demétrio de Falero:
Assim fala ( theītai) Hecateu de Mileto: escrevo (g phō) isso como me
parece ser verdadeiro ( oià dokeīà alēth aà eī ai); pois os relatos (lógoi) dos
gregos são, como me parecem, muitos (polloí) e ridículos (geloīoi). (apud
HARTOG, 2001a, p. 40-41).
“eàosàg egosài e ta a àalgo ,àes e euàoàhisto iado àf a
sàF a çoisàHa tog,à
foià e osà aà hist iaà doà ueà oà histo iado à o oà oà sujeitoà ueà es e e à Há‘TOG,à
2001b, p. 14). Hartog se referia ao fato de que bem antes de os gregos criarem, no
século V a.C., uma forma de investigação com o intuito de preservar para as gerações
futuras as coisas tidas como significativas de seu passado, outras sociedades tiveram
iniciativa semelhante1. Se sua afirmação quanto ao conceito de história parece vaga e
requer maior precisão, sua colocação referente à presença do sujeito produtor da obra
deà hist ia à dosà g egosà pa e eà
lida.à ásà p i ei asà pala asà ap ese tadasà asà
Histórias já apontam nessa direção:
Esta é a exposição das investigações (histo íēsà ap de is) de Heródoto de
Halicarnasso, para que os feitos dos homens não se desvaneçam com o
tempo, nem fiquem sem renome (akleāàg ētai) as grandes e maravilhosas
empresas, realizadas quer por Helenos quer por Bárbaros; e sobretudo a
razão (aitíē) por que entraram em guerra uns com os outros. (HERÓDOTO, I:
01).
Trata-se de um preâmbulo não apenas destinado a um ouvinte-leitor imediato.
Jesper Svenbro analisou as primeiras inscrições gregas sob o ponto de vista da
apresentação do nome próprio. No que se refere aos monumentos funerários, por
exemplo, Svenbro notou que a primeira pessoa não designa jamais o autor, e sim o
objeto, como neste escrito encontrado em Thassos de 625o u e toà fu e
ioà deà Glaukosà [...] à “VENB‘O,à
1
,à p.à
à a.C.:à eu sou o
-80). Colocado na
Como é o caso do Egito, com suas listas reais que remontam até o fim do quarto milênio a. C., e da
Mesopotâmia onde, no fim do terceiro milênio a. C., a monarquia dos Akkad incumbiu a escribas a
tarefa de escrever sua história – uma história feita pelos reis. Nos dois casos, no entanto, não se trata
p op ia e teàdeàu aàp eo upaç oà o àoàpassado,à asàsi ,àaà us aàpelaàete idade àpelosàeg p ios,àeà
aàlegiti aç oàdoàpode à ealà oàp ese te àpa aàosà esopot iosà Há‘TOG,à
,àp. .
323
terceira pessoa, o sujeito produtor parece prever sua ausência no futuro. Para um
ho e à g egoà a ai o,à pa e eà i útilà es e e à seà esta à p ese te.à Osà deusesà
es e e
oà
, coloca Svenbro (2004: 80), pois eles são imortais. Fenômeno que pode
causar certo estranhamento no início, mas que pode, segundo Svenbro, ser
o pa adoà sà o asà dosà p i ei osà histo iado es ,à poisà estesà i i ia à po à ap ese ta à
seus nomes (terceira pessoa), pa aàdepoisà desliza e
àpa aàoàeu (primeira pessoa) no
interior do texto.
Se escrever significa, de certa forma, confessar sua mortalidade, apresentar-se
sob a terceira pessoa (como Hecateu, Heródoto, e Tucídides) possui uma conotação
o u e tal ,à u à fator de grande relevância para uma maior compreensão do
significado da apresentação autoral por parte de Heródoto.
Assim, as obras dos três historiadores portam inscrições em alguma espécie
monumentais na primeira página. Vistas do exterior (se se admite que seja a
primeira frase que permite entrar na obra), elas designam seus autores na
terceira pessoa, então como ausentes. Os autores não estão mais ali. No
momento onde o leitor futuro se colocará a ler suas obras, eles não estarão
efetivamente mais ali. Não é mais do que por ficção que eles se designam
em seguida na primeira pessoa, no interior de suas obras, como se eles
estivessem presentes no texto [...]. (SVENBRO, 2004, p. 85).
O linguista francês Émile Benveniste demonstra, em seus estudos de
enunciação, como cada pessoa verbal se opõe ao conjunto das outras e sob que
princípio se funda a sua oposição, uma vez que não podemos atingi-las a não ser pelo
que as diferencia:
Nas duas primeiras pessoas, há ao mesmo tempo uma pessoa implicada e
um discurso sobre essa pessoa. Eu designa aquele que fala e implica ao
es oàte poàu àe u iadoàso eàoà eu :àdize doàeu,à oàpossoàdei a àdeà
fala àdeà i .àNaàsegu daàpessoa,à tu à à e essa ia e teàdesig adoàpo àeuà
e não pode ser pensado fora de uma situação proposta aàpa ti àdoà eu ;àe,à
aoà es oàte po,àeuàe u iaàalgoà o oàu àp edi adoàdeà tu .àDaàte ei aà
pessoa,à po
,à u à p edi adoà à e à e u iadoà so e teà fo aà doà eu-tu ;à
essaà fo aà à assi à e etuadaà daà elaç oà pelaà ualà eu à eà tu à seà
especificam. Daí, ser questionável a legitimidade dessa forma como
pessoa .à BENVENI“TE,à
,àp.à
.
Constata-seà e t oà ueà oà ele e toà pessoal à
oà est à o tidoà aà te ei aà
pessoa, pois se refere exclusivamente ao campo do eu e do tu. Ela representa então a
forma não pessoal da flexão verbal. Heródoto, na apresentação das Histórias,
324
inicia o à aà te ei aà pessoaà seuà o e ,à e t oà u aà
o-pessoa ,à osà dize esà deà
Benveniste. Em outras palavras, o autor que então se faz presente no início de sua
narrativa apresenta-se justamente como u aà figu aàause te ,à ueà àaà o otaç oà ueà
possui a terceira pessoa. A terceira pessoa pode ser entendida então como ferramenta
utilizada por Heródoto no sentido de manter seu distanciamento como autor e, ao
mesmo tempo, impedir que o tempo apague sua autoria, assim como os grandes feitos
dos humanos, como o próprio autor escreveu no preâmbulo das Histórias. Quando sua
obra for lida, ele não estará presente. É preciso uma marca, que unifique o que é lido e
direcione ao seu responsável, seu autor.
O segundo exemplo encontra-se no decorrer da narrativa, onde o nome próprio
não aparece. Uma vez apresentada a sphragis inicial, torna-se possível a presença do
eu. Há uma articulação contínua entre o nome próprio e o uso constante do eu. Longe
de ser anônimo, o eu remete ao nome apresentado no início da obra, formando assim
uma unidade autoral que se impõe frente às múltiplas vozes presentes nas Histórias.
O passo que destaco provém também do Livro I:
Isto é o que contam os Persas e os Fenícios. Quanto a mim, a respeito de
tais acontecimentos, não vou afirmar que as coisas se passaram assim ou de
outra maneira, mas, depois de assinalar aquele que eu próprio sei ter sido o
primeiro a cometer atos injustos contra os Helenos, avançarei na narrativa,
examinando indistintamente as pequenas e as grandes cidades dos homens.
Das que antigamente eram grandes, muitas delas tornaram-se pequenas,
enquanto as que no meu tempo eram grandes (t àd àep àe eûàē à eg la),
eram primeiro pequenas. Persuadido de que a felicidade humana nunca
2
permanece firme no mesmo ponto, mencionarei por igual umas e outras.
(HERÓDOTO, I: 05).
Heródoto apresenta seu próprio presente ao leitor como pretérito. Também ele
(Heródoto) – assim como as inscrições referidas por Svenbro – não estará mais lá
quando seu texto for lido. O autor que reconhece sua mortalidade parece ao mesmo
tempo estar consciente da imortalidade de sua obra e, por conseqüência, de si próprio.
Os dois casos mencionados acima são extremamente significativos para o que
diz respeito às marcas do autor em sua produção. Ao erigir um novo monumento aos
2
Faço aqui uma leve (mas significativa para meus propósitos) modificação na tradução de José Ribeiro
Ferreira e Maria de Fátima Silva. A tradução destes autores, em meu entender, não considera o
pretérito imperfeito ē .à “u stituo,à e t o,à asà ueà oà euà te poà s oà g a des à po à asà ueà oà euà
tempo eram g a des ,àaàpa ti àdaàleitu aàdoàte toàg egoàesta ele idoàpo àPh.-E Legrand. Os destaques
são meus.
325
gregos, Heródoto deixa sua marca autoral, que é o ponto onde a partir de então deve
ser atribuída a responsabilidade. Responsabilidade não de todas as informações e
versões contidas nas Histórias, visto que nela encontram-se numerosos grupos de
informantes, mas a responsabilidade pela iniciativa como um todo na constituição e
elaboração da obra. Pois o eu que o autor utiliza nos casos que mencionei, assim como
os muitos outros no decorrer de seu texto remetem ao nome próprio inicial. Assim, há
uma construção da figura do autor enquanto responsável pela iniciativa de conservar a
memória dos Gregos (e também dos Bárbaros, devido sua importância na constituição
da própria identidade grega .à He dotoà foià us a à a ueleà ate ialà dispe so ,à a uiloà
que diziam os Persas, os Egípcios ou qualquer outro grupo. Muitas dessas narrativas
certamente estariam destinadas ao esquecimento, não fosse a elaboração de uma
obra que as reunisse. A esse material desorganizado e condenado à efemeridade
Heródoto contrapõe a tentativa de um agrupamento, uma organização e a
conservação. Ao fazer isso, sua assinatura atua como uma espécie de ferramenta, que
lhe permite inserir a si mesmo na memória grega. A partir de então, seu nome
encontra-se gravado e indissociável daquilo que é apresentado em sua obra. Seja para
criticá-lo, seja para recorrer-se ao autor, seu nome é presença obrigatória. Ao construir
um monumento em forma de texto para os gregos, Heródoto acaba por cristalizar e
preservar do esquecimento não apenas os feitos humanos, mas também acaba por
ga a ti à ueàeleà es o,àoàauto ,à
oàsejaàes ue idoà o àoàpassa àdoàte po .
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327
RITO E CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO NA ANTIGUIDADE
E A INTERTEXTUALIDADE COM A POESIA NO LIVRO DE
SALMOS
Zilda Andrade L. dos Santos
Introdução
Esta pesquisa tem como objetivo identificar, no âmbito da História, possíveis
semelhanças do rito e celebração do casamento nas culturas grega, romana e hebraica,
e o modo como o discurso dos costumes da antiguidade dialoga com determinadas
produções literárias, que também servem como fontes para fortalecer o discurso
histórico. Na literatura Latina, Lucano usa esse fenômeno cultural para se expressar na
narrativa do casamento de Catão, na produção da Farsália, em meados do século I d.C.
Também, na cultura hebraica, o poeta se expressa através do Salmo 45, com uma
descrição do ritual do casamento, em que alguns aspectos se mostram na
intertextualidade com o Novo Testamento, na narrativa da parábola das dez virgens.
No texto bíblico, a representação discursiva da imagem de noivo e noiva está presente
tanto no Velho quanto no Novo Testamento.
Na perspectiva desta pesquisa, partindo de uma concepção mais ampla de
intertextualidade, como defende Maingueneau, duas dimensões podem ser
observadas neste trabalho: uma dimensão de intertextualidade externa, que permite
relacionar História e Literatura e outra de intertextualidade interna, que aponta para o
diálogo entre os próprios textos literários (Maingueneau, 2007, p. 82). Considerando a
discursividade construída pelos efeitos da intertextualidade, a externa transita no
campo da metáfora na busca do rito e celebração do casamento, como uma alegoria
carregada de sentidos, tanto para a poesia no Salmo 45 como na parábola das dez
virgens, que internamente dialogam entre si, permitindo a produção de variados
significados, tanto na construção de sentidos através de seu valor poético quanto no
religioso. No texto bíblico, a representação discursiva das imagens de noivo e noiva,
como figura metafórica que fornece sentidos para compreensão de determinados
328
conceitos abstratos, perpassa o antigo e novo testamento, culminando com o livro de
Apocalípse.
Intertextualidades do rito e celebração do casamento em diferentes culturas
O termo intertextualidade começa a circular com base nas concepções do
dialogismo bakhtiniano e nesse sentido, deve-se a Julia Kristeva o uso da designação
intertextualidade ao se tratar de um corpus literário, em que se identifica, em um
mesmo texto, diferentes vozes em relação de intertextualidade (Charaudeau e
Maingueneau, 2008, p. 288).
As reflexões de Bakhtin e seu círculo muito têm contribuído para os estudos
lingüísticos, principalmente as que se referem à polifonia. Bakhtin considera que o
dialogismo é princípio constitutivo e característica essencial da linguagem, sendo
condição do sentido do discurso.
Nos seus estudos sobre dialogismo, o referido autor aponta para o diálogo não
somente entre interlocutores, mas entre enunciados também. Nesse sentido, a
produção da linguagem, num enfoque dialógico, se articula duplamente: na situação
de interação (comunicação oral ou escrita entre falantes) e entre discursos que
circulam nos meios sociais. A esse respeito, Bakhtin argumenta:
Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si
mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns aos outros.
Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno
de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela
identidade da esfera de comunicação discursiva (BAKHTIN, 2006, p. 297).
Um enunciado pode ser introduzido no outro sob formas variadas, numa
interação dialética com o próprio texto, o que estabelece novos dados para a
compreensão de outros textos, num processo dinâmico, para garantir a comunicação.
No dizer de Bakhtin, a expressão do enunciado, em maior ou menor grau,
responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não só a
relação com os objetos do seu enunciado (2006, p.298). Essa contribuição bakhtiniana
sobre o dialogismo que se instaura na linguagem, através das palavras e enunciados, é
fundamental para compreensão da visão dialógica que se estabelece entre diferentes
discursos no campo da linguagem.
329
Nessa perspectiva, Bakhtin considera a palavra como eco de outros enunciados,
de algo dito em outro lugar, em outro momento. A expressão da palavra como recurso
da linguagem concebe o diálogo de uma língua com outra língua, ou ainda de cultura
para cultura. Palavras, obras, enunciados refletem as tradições de cada época e de
cada cultura. Desse modo, esta pesquisa interliga tais considerações aqui mencionadas
sobre a natureza do rito e celebração do casamento, com o objetivo de verificar em
que aspectos essas manifestações culturais dialogam entre si, mesmo ocorrendo em
diferentes culturas e épocas.
Maingueneau (1997, p. 120) postula que a produção do discurso se realiza no
bojo do interdiscurso e, em linhas gerais, pode-se dizer que o interdiscurso é
constituído pela relação existente entre os discursos. Entende-se que essa relação
particulariza um determinado discurso, como também sustenta historicamente os
sentidos nele inscritos. Ainda, o próprio Maingueneau considera a possibilidade de
uma intertextualidade interna no interior de discursos pertencentes ao mesmo campo
discursivo, e a externa, alusiva às relações intertextuais entre diferentes campos
discursivos (Maingueneau, 2007, p. 82). Desse modo, identificam-se diálogos entre
diferentes culturas em relação aos rituais de celebração do casamento, como também
o estabelecimento de uma intertextualidade que se firma entre costumes de
diferentes épocas históricas.
Cultura Grega e Romana
Na Antiguidade, entre gregos e romanos o ritual do casamento guardava entre
si grandes semelhanças e estava interligado à religião doméstica. Segundo Coulanges,
os ritos, as palavras da oração, os cantos que faziam parte essencial dessa religião
doméstica, eram patrimônio ou propriedade sagrada que a família não participava a
ninguém (Coulanges, 1961, p.52). Dessa forma, essa religião não era exercida nos
templos, mas nas casas, pois cada deus protegia apenas uma família. Nos ritos da
religião doméstica só era permitida a participação dos homens, sendo que as mulheres
eram apenas assistentes.
Coulanges afirma que o casamento foi a primeira instituição estabelecida pela
religião doméstica. Quando uma jovem recebia um pedido de casamento, estava
330
implícita a mudança da religião da casa paterna para a do marido, assim ela passava a
venerar o deus do esposo, partilhando com ele os segredos dos rituais de sua nova
família (Coulanges 1961, p.59).
Ao abordar sobre o casamento na Antiguidade, tanto na cultura grega quanto
na romana, Coulanges menciona a realização do ritual em três atos. O primeiro ato
acontecia na casa do pai da noiva, reunidos em família e com a presença do
pretendente. Após o ritual do sacrifício, marcado pelo pronunciamento de entrega da
jovem, naquele exato momento o pai da noiva oficializava seu desligamento dos laços
da casa paterna, tornando-a livre para o ingresso na religião do seu esposo. No
segundo ato, a jovem era conduzida à casa do noivo, com o rosto coberto com um véu
e uma coroa na cabeça. Como em todo ato religioso, a cor do vestido era branca e o
véu alaranjado. Em todo o percurso era cantado um hino religioso. Um rapto era
simulado, quando na entrada, a noiva era erguida nos braços do noivo, sendo
carregada até o interior da casa, com o devido cuidado, para não tocar a soleira da
porta. O terceiro ato era composto do ritual em frente ao fogo sagrado, como
emblema da divindade doméstica, e a água lustral, presente nos atos religiosos. Essa
solenidade introduzia a noiva à religião de seu esposo. Logo a seguir, o casal oferecia
libações, pronunciando orações, partilhando juntos do manjar de flor de farinha e bolo.
Nesse contexto, família e religião eram indissociáveis, fato que servia para fortalecer a
forma de casamento cum manu, com poder centralizador na figura paterna.
Na literatura, uma das fontes em que um texto menciona o ritual do casamento
na antiguidade é encontrado na obra de Lucano, quando ele descreve sobre o segundo
casamento de Catão, considerando a ausência do cerimonial da época.
[...] a união desprovida de pompas, no entanto lhe aprouve, e um SIM
firmado à vista só dos deuses. Festivo enfeite não recobre o frontispício,
nem dos umbrais lacinhos brancos se desprendem, falta a tocha ritual e o
leito de marfim distinto por lençóis de doirados enfeitados; sem a turrífera
coroa, pouco importa à noiva se tocou seus pés no chão da entrada. Nem
cobertura leve à timidez da noiva, a renda flâmea cobre a cabisbaixa face,
nem jóia a lhe cintar o volátil vestido nem colar adequado, também nada
aos ombros veste, nem véu lhe cai por sobre os braços nus (Lucano, FarsáliaCanto II, 210-212).
331
Na sua construção da Farsália, Lucano remonta aos tempos da guerra civil
entre César e Pompeu, e como consequência do estado de guerra, o segundo
casamento de Catão com Márcia1 não seguiu o protocolo como previa o rito do
casamento. Porém, a descrição de Lucano é um rico material para confirmação e
reforço para a história, na descrição do modo de apresentação de tais costumes. A
discursividade estabelecida pela remissão aos rituais antigos do casamento demonstra
um valor a tal costume, que é quebrado pela consequência da guerra e outras
possíveis circunstâncias.
Em Roma, no final da República, se prenuncia uma nova realidade e visão de
mundo, que aos poucos, também se mostra na transformação e concepção do
casamento, em que a força da autoridade do marido foi diminuindo, e gradativamente,
o casamento cum manu foi cedendo lugar ao casamento sine manu, quando a
autonomia da mulher passa a ser preservada, em vários setores da vida, inclusive na
liberdade religiosa, sem a obrigação de adotar os segredos e rituais da religião do
esposo, no ato do casamento.
Segundo Coulanges, com o advento do cristianismo, a sociedade da antiguidade
passa por transformações sociais. Desse modo, a religião doméstica perde sua função
no âmbito familiar e citadino, Da exclusividade do culto familiar passa-se para os
costumes do culto em coletividade (Coulanges, 1961, p. 628).
Cultura hebraica
Nos primórdios da cultura hebraica, na época de Abraão, o casamento seguia
alguns ritos que podem ser identificados no capítulo 24 do livro de Gênesis. Abraão
envia seu servo à terra de sua parentela para conseguir uma esposa para seu filho
Isaque. Alguns aspectos dos costumes daquela antiguidade podem ser identificados no
relato da narrativa. O pai era o responsável pelo arranjo do casamento do filho; era
costume buscar uma noiva entre os parentes, para não misturar com povos estranhos;
o noivo presenteava o pai da noiva (dote); acontecia o cortejo que levava a noiva em
1
Márcia anteriormente havia sido esposa de Catão e teve com ele três filhos. Cumprida a missão de
procriação, foi dada como esposa a Hortênsio e lhe deu filhos, os quais morreram na guerra e também
Hortênsio. Márcia retorna para ser acolhida por Catão, quando acontece o segundo casamento descrito
por Lucano.
332
direção ao noivo, assim como a noiva Rebeca se dirigiu à terra de Isaque,
acompanhada das jovens que a serviam; a noiva cobria-se com um véu para se colocar
diante do noivo, como fez Rebeca antes de se encontrar com Isaque.
Tempos depois, Jacó, o filho de Isaque, fugindo da vingança de seu irmão Esaú,
por ter conseguido dele o direito de progenitura, orientado por sua mãe Rebeca,
também se dirigiu à terra de seu tio Labão, a fim de encontrar uma esposa entre suas
filhas. O interesse de Jacó se voltou para Raquel, a segunda filha, mas como não
possuía condições para o devido pagamento (dote), se dispôs a trabalhar sete anos
para conseguir seu objetivo. Como o costume da época era o casamento da filha mais
velha, em primeiro lugar, foi lhe entregue Lea como esposa. Para concretizar seu
intento de desposar Raquel, foi lhe necessário trabalhar mais sete anos. Jacó e suas
duas esposas formaram uma numerosa família. No final de 20 anos de dedicação ao
sogro Labão, Jacó resolveu retornar à sua terra, em Canaã. Na preparação para a longa
jornada, Raquel resolveu furtar de seu pai os deuses domésticos. Assim, como na
antiguidade romana e grega, os semitas também cultivavam uma forma de religião
doméstica. Segundo os costumes, a filha casada não tinha mais direito aos rituais
religiosos da casa paterna. Não se sabe os motivos da atitude de Raquel, visto que
Abraão, Isaque e Jacó não seguiam esses rituais, desde o encontro de Abraão com o
Deusà Ja .à áà e p ess oà deusesà do
sti os à pe
iteà u aà i te te tualidadeà ueà
identifica semelhança entre diferentes culturas que assim procediam religiosamente
na antiguidade.
Assim como o rito e celebração do casamento é mencionado na literatura latina,
é também mencionado na literatura hebraica, através do Salmo 45:
Com o coração vibrando de boas palavras recito os meus versos em honra
do rei; seja a minha língua como a pena de um hábil escritor. És dos homens
o mais notável; derramou-se graça em teus lábios, visto que Deus te
abençoou para sempre. Prende a espada à cintura, ó poderoso! Cobre-te de
esplendor e majestade. Na tua majestade cavalga vitoriosamente pela
verdade, pela misericórdia e pela justiça; que a tua mão direita realize feitos
gloriosos.Tuas flechas afiadas atingem o coração dos inimigos do rei;
debaixo dos teus pés caem nações. O teu trono, ó Deus, subsiste para todo
o sempre; cetro de justiça é o cetro do teu reino. Amas a justiça e odeias a
iniqüidade; por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te dentre os teus
companheiros ungindo-te com óleo de alegria. Todas as tuas vestes exalam
aroma de mirra, aloés e cássia; nos palácios adornados de marfim ressoam
os instrumentos de corda que te alegram. Filhas de reis estão entre as
mulheres da tua corte; à tua direita está a noiva real enfeitada de ouro puro
333
de Ofir. Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos: Esqueça o seu
povo e a casa paterna. O rei foi cativado pela sua beleza; honre-o, pois ele é
o seu senhor. A cidade de Tiro trará seus presentes; seus moradores mais
ricos buscarão o seu favor. Cheia de esplendor está a princesa em seus
aposentos, com vestes enfeitadas de ouro. Em roupas bordadas é conduzida
ao rei, acompanhada de um cortejo de virgens; são levadas à tua presença.
Com alegria e exultação são conduzidas ao palácio do rei. Os teus filhos
ocuparão o trono dos teus pais; por toda a terra os farás príncipes.
Perpetuarei a tua lembrança por todas as gerações; por isso as nações te
louvarão para todo o sempre.
Esta produção poética além de focalizar aspectos do ritual do casamento, em
especial, está relatando uma cena de um casamento de um rei. Não há identitificação
desse rei, mas percebe-se os elogios e a enaltação à sua pessoa. Alguns aspectos dessa
enunciação dialogam com outros textos bíblicos e também com a história dos
costumes antigos. Depois de descrever toda a imagem da representação do rei para a
cerimônia nupcial, com os festejos animados pelos instrumentos de cordas, aparece a
figura da princesa, a noiva escolhida entre as demais, com destaque para suas vestes
ornamentadas. O poeta se dirige à noiva dizendo-lhe para esquecer seu povo e a casa
paterna, numa intertextualidade com a história da criação do mundo, quando Deus
formou o primeiro casal, assim concluindo: Portanto deixará o homem a seu pai e a
sua mãe, e unir-se-á à sua mulher, e serão uma só carne (Gênesis 2:24). Na descrição
do ritual, o cortejo de virgens conduz a noiva até a presença do noivo. O salmista fala
dasà i ge sà o oà
o pa hei asà ouà da asà deà ho a à ueà segue à aà oi a.à Esta
referência conduz a uma intertextualidade com a parábola das dez virgens, relatada no
livro de Mateus, demonstrando que havia semelhanças entre rituais existentes entre
épocas muito distantes.
No Primeiro século de nossa era, na cultura judaica o ritual do casamento
mantinha algumas semelhanças com os costumes entre gregos e romanos, mas
também se diferenciava em alguns aspectos. Como nas outras culturas, também havia
três estágios no processo matrimonial: primeiro vinha o compromisso, quando era
feito um contrato formal entre os pais do noivo e da noiva; depois vinha o noivado,
uma cerimônia feita na casa dos pais da noiva, quando eram feitas promessas na
frente de testemunhas. O noivo tinha o prazo de um a dois anos para construção e
arrumação da moradia, que na cultura judaica dos tempos antigos era designada de
chupá ou huppah, como uma extensão da casa do pai, sendo este o local da cerimônia
do nissuin (casamento).
334
Nesse período, a noiva também se preparava, aguardando a chegada do noivo
que poderia acontecer numa data totalmente imprevista, pois o noivo também
aguardava a autorização paterna. Conforme os antigos rituais judaicos do casamento,
ua doàoà oi oàe aài dagadoàso eàaàdataàdoà asa e to,àeleà espo dia:à s àoà euàpaià
sa e .à Oà diaà dasà úp ias era esperado pela noiva, acompanhada de damas que a
auxiliavam, aguardando o momento de compor o cortejo. A noiva mantinha sua
lâmpada, o véu, a coroa, e todos os utensílios a serem usados na cerimônia, junto de
sua cabeceira. As damas também aguardavam junto com a noiva, preparadas com suas
lâmpadas, pois normalmente a chegada do noivo acontecia à meia noite, e era
anunciada através de uma espécie de arauto. O shofar era o instrumento que emitia o
som da proclamação da chegada do noivo, que era acompanhado pelos seus
convidados. Com a chegada do noivo, dava-se início ao cortejo nupcial. A noiva saía de
sua casa acompanhada das pessoas que formavam o seu grupo. O destino era a casa
do pai do noivo, onde havia sido construído o chupá, ou huppah. Os dois grupos eram
constituídos de amigos de cada um, que iam caminhando com as lâmpadas acesas,
tocando instrumentos musicais ou cantando e espalhando flores pelo caminho. É a
esse cortejo que Jesus se refere ao narrar a parábola das dez virgens (Mateus 25:1-13).
Nessa narrativa, a função das 10 virgens era a de aguardar a chegada do noivo e
acompanhar o cortejo para as bodas.
Nessa parábola, o uso da alegoria do ritual do casamento como metáfora,
particulariza o aspecto da espera do noivo. Não se sabia a hora da chegada do noivo,
assim a noiva e as virgens acompanhantes deveriam estar preparadas. Na narrativa, 5
virgens foram consideradas prudentes por terem se preparado para a espera da
chegada do noivo, sendo que as outras 5 não reservaram azeite suficiente para suas
lâmpadas, e ao ouvir o anúncio da chegada do noivo, saíram para comprar o azeite, e
quando tentaram entrar no local do banquete, as portas já estavam fechadas. Jesus
conta essa parábola ilustrativa no contexto do sermão dos sinais do fim dos tempos,
como descrito nos capítulos 24 e 25 de Mateus. Este sermão norteia uma concepção
de escatologia, que tem sua culminância no livro de Apocalípse, em que a imagem de
noiva adornada para seu esposo ocupa um sentido metafórico, construído
discursivamente em todo o perpassar do texto bíblico. E eu, João, vi a santa cidade, a
335
nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus, preparada como uma noiva,
adornada para o seu marido (Apocalípse 21:2).
Le Goff considera o sentido de escatologia em diferentes aspectos. Partindo de
uma base conceitual como doutrina dos fins últimos do indivíduo e da humanidade, a
escatologia, presente em todas as religiões, das mais diversas formas,pensa o
tempocomo tendo um fim.
Numa abordagem histórica, Le Goff situa mito e
escatologia em diferentes concepções. O mito se volta para o passado, exprimindo-se
pela narrativa. A escatologia se volta para o futuro, projetando uma perspectiva
profética. Nestes termos, Le Goff assim se expressa: A escatologia pode tornar-se um
dos temas mais interessantes de história geral, para os historiadores contemporâneos
e futuros, graças a um novo olhar sobre a escatologia na história, a espera e a sua
variante religiosa, a esperança (Le Goff, 1990, p. 316).
Com o advento da internet, facilmente tem se espalhado notícias sobre o final
do mundo, com cálculos mirabolantes, como os referentes ao dia 21 de maio de 2011.
Outra previsão muito propagada é a do fim do mundo em 2012, segundo o calendário
da cultura maia. Anteriormente, sem os recursos tecnológicos do mundo virtual, a
ideia do fim do mundo era passada até via ditado popular: O mundo a dois mil anos
chegará, mas de dois mil não passará.
De certo modo, a cultura hebraica e a cristã contribuem para a concepção do
fim do mundo, e essas indagações escatológicas podem também originar da leitura de
significados das alegorias e metáforas que perpassam profeticamente o texto bíblico,
sendo o rito e celebração do casamento uma fonte para o imaginário construído
discursivamente, pela imagem do noivo e da noiva, como representação simbólica
dessa celebração.
Considerações Finais
Ao se pensar o ritual e celebração do casamento na antiguidade, tanto pelo viés
da história quanto da literatura, percebe-se um diálogo entre diferentes culturas e
épocas.
Na atualidade, o rito do casamento, em vários de seus aspectos, retoma os
costumes antigos, dialogando com alguns significados que se mantiveram e
336
perpetuaram ao longo da história No dizer de Le Goff, a memória social histórica
recebe seus dados da tradição e do ensino, aproximando-se, porém do passado coletivo
(Le Goff, p. 181).
Na cultura grega e romana, os rituais do casamento eram indissociáveis da
religião doméstica, e mais tarde, o abandono desse costume religioso, estritamente
familiar, não se desvencilhou da religiosidade. Na era cristã, tal rito manteve seu status
religioso, mas numa concepção monoteísta e não na diversidade dos deuses
domésticos, que imprimiam um autoritarismo no sistema patriarcal.
No primeiro século de nossa era, o ritual da cerimônia do casamento no
Império Romano era tão significativo que grandes autores fizeram referências em suas
obras de diferentes aspectos que envolvem o casamento como instituição na cultura
romana. Nessa perspectiva, Jesus lança mão da descrição de parte desse costume,
usando como metáfora para entendimento de sua volta, que será como a chegada do
noivo, que aguarda a autorização do Pai para sua chegada.
No século XIX, a rainha Vitória estabeleceu na Inglaterra uma inovação nos
costumes do rito e celebração do casamento, fazendo uma releitura dos costumes da
antiguidade e influenciando marcadamente outras culturas no mundo ocidental.
Desde então, o casamento real passou a ter configurações que servem de modelo e
orientam os costumes em grande parte do mundo ocidental, como registrado também
no casamento da Lady Diana, e mais recentemente, a cerimônia do casamento do
príncipe William.
O casamento real se torna um simbolismo que dialoga com a representação do
casamento real na poesia do Salmo 45, que para muitos intérpretes, contém também
uma mensagem messiânica e escatológica.
Seguindo as considerações de Maingueneau (1995) sobre discurso fundador,
identifica-se que o ritual do casamento na antiguidade se tornou uma cena validada no
imaginário da sociedade atual, na busca da permanência da instituição da família.
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