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Livro questão social cap OSs.pdf

O Capítulo XIV: Presença e Implicações da Gestão da Saúde por Organizações Sociais, de autoria de Olívia Cristina Perez, Faz a reflexão sobre a presença das Organizações Sociais (OSs) na área da gestão dos equipamentos públicos de saúde, problematizando a sua atuação. Argumenta que o discurso que embasa o crescimento da presença das OSs no espaço público é o fato de que a sua gestão seria mais eficiente e livre da burocracia estatal, no entanto, verifica-se que as práticas e problemas da área privada têm sido transferidos para o setor público, ferindo os princípios do Sistema Único de Saúde, a saber: universalidade, integralidade e equidade. Conclui ressaltando, que essa valorização da gestão privada tem implicado no desmonte dos equipamentos públicos com a consequente transferência da função pública para o mercado, ainda que sob financiamento estatal.

1 QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ATUALIDADE 2 Maria do Rosário de Fátima e Silva Maria D’Alva Macedo Ferreira Simone de Jesus Guimarães (Organizadoras) QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS NA ATUALIDADE EDUFPI/2017 3 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Reitor: José de Arimatéia Dantas Lopes Vice-Reitora: Nadir do Nascimento Nogueira Superintende de Comunicação: Jaqueline Lima Dourado Editor Ricardo Alaggio Ribeiro EDUFPI - Conselho Editorial Ricardo Allagio Ribeiro (presidente) Acácio Salvador Veras e Silva Antonio Fonseca dos Santos Neto Cláudia Simone de Oliveira Andrade Solimar Oliveira Lima Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz Víriato Campelo Editora da Universidade Federal do Piauí - EDUFPI Campus Universitário Ministro Petrônio Portella CEP: 64049-550 - Bairro Ininga - Teresina - PI - Brasil Todos os Direitos Reservados FICHA CATALOGRÁFICA Q5 Questão social e políticas públicas na atualidade / Organiza doras, Maria do Rosário de Fátima e Silva, Maria D’Alva Macedo Ferreira, Simone de Jesus Guimarães. – Teresina: EDUFPI, 2017. 334 p. ISBN: 978-85-509-0199-2 1. Questão Social. 2. Políticas Públicas. 3. Gestão Pública. 4. Planejamento e Avaliação. I. Silva, Maria do Rosário de Fátima e. II. Ferreira, Maria D’Alva Macedo. III. Guimarães, Simone de Jesus. CDD 351.0073 4 Ficha Técnica Dr. José Arimatéia Dantas Lopes Reitor Drª Nadir do Nascimento Nogueira Vice-Reitora Profª. Dra. Regina Lúcia Ferreira Gomes Pró-Reitora de Ensino de Pós-Graduação Dr. Carlos Sait Pereira de Andrade Diretor do Centro de Ciências Humanas e Letras Drª Guiomar de Oliveira Passos Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas Universidade Federal do Piauí Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas Campus Ministro Petrônio Portella Bairro: Ininga Cidade: Teresina| Piauí | Brasil CEP: 64.049-550 E-mail: mpp@ufpi.edu.br Website: http://www.posgraduacao.ufpi.br//ppgppublicas 5 Sumário PARTE I - Questão Social e Desaios Contemporâneos.................................16 Capítulo I - Questão Social e as Tendências Familistas da Política de Assistência Social no Brasil.......................................................................................................17 Poliana de Oliveira Carvalho Solange Maria Teixeira O Capítulo II - Desaios da Reintegração Familiar de Crianças e Adolescentes: relexões mediante as expressões da questão social.............................................31 Ana Valéria Matias Cardoso Solange Maria Teixeira Capitulo III - Questão Social e Política de Assistência Social no Brasil: relexões para a atuação do psicólogo...................................................................................47 Davi Magalhães Carvalho João Paulo Sales Macedo Capitulo IV - O Programa Minha Casa Minha Vida e a Questão Habitacional no Brasil.......................................................................................................................63 Leandro Gomes Reis Lopes João Paulo Sales Macedo Capítulo V - A Política dos Amores Ousados: relexões ativistas na cena LGBT.. .................................................................................................................................80 Vitor Sampaio Kozlowski Ferreira Francisco de Oliveira Barros Júnior PARTE II - Políticas Públicas e Sociais: demandas da sociedade e ação do Estado....................................................................................................................97 Capítulo VI - A Política Social no Capitalismo Contemporâneo e Intersetorialidade: relexões a partir da política de saúde......................................;......................................98 Nayra Sousa Araújo Simone de Jesus Guimarães 6 Capítulo VII - A Gestão da Assistência Social no Estado do Piauí sob o Olhar do Orçamento.............................................................................................115 Luciana Evangelista Fernandes Franco Maria D’Alva Macedo Ferreira Capítulo VIII - A Política Pública de Assistência Social no Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes: breves relexões pós Constituição Federal de 1988....................................................................................................130 Mayra Soares Veloso Inez Sampaio Nery O Capítulo IX - A Gestão das Condicionalidades do Programa Bolsa Família no Piauí......................................................................................................................145 Adriana de Moura Elias Silva Maria do Rosário de Fátima e Silva Capítulo X - O Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE): experiência de gestão em Codó - MA .........................................................................................162 Francisco da Silva Paiva Jaíra Maria Alcobaça Gomes Profa. Dra. Maria D’Alva Macedo Ferreira PARTE III - Gestão Pública e Participação Democrática...................176 Capítulo XI - Gestão Social e em Redes: uma estratégia de gestão na Política de Assistência Social brasileira no contexto neoliberal..........................................177 Talila Arrais Amorim Solange Maria Teixeira O Capítulo XII - Gestão Democrática na Escola Pública: o papel dos conselhos municipais.............................................................................................................194 Renildo Barbosa Estêvão Maria D’Alva Macedo Ferreira Capítulo XIII - AAtuação dos Conselhos na Gestão da Política Pública de Saúde no Município de Teresina..........................................................................................209 Marcelo de Moura Carvalho Maria D’Alva Macedo Ferreira Capítulo XIV - Presença e Implicações da Gestão da Saúde por Organizações Sociais................................................................................................225 Olívia Cristina Perez 7 Capítulo XV - Grandes Projetos Urbanísticos e Participação Política: análise do Programa Lagoas do Norte em Teresina ............................................................255 Edmundo Ximenes Rodrigues Neto Antônia Jesuíta de Lima Capítulo XVI - Relexões sobre os Processos Participativos no Programa Lagoas do Norte em Teresina- PI......................................................................................270 Aline Teixeira Mascarenhas de Andrade Maria do Rosário de Fátima e Silva PARTE IV - Avaliação e Monitoramento de Políticas e Programas Sociais.........................................................................................................270 Capítulo XVII - Debates em torno da Avaliação no Âmbito das Políticas Sociais: contribuições teórico-práticas para pensar a construção de uma cultura avaliativa no Brasil................................................................................................................271 Soia laurentino Barbosa Pereira Simone de Jesus Guimarães Capítulo XVIII - Avaliação e Monitoramento de políticas Públicas pelo Tribunal de Contas do Estado do Piauí: análise dos resultados iniciais da aplicação do Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEGM)..........................................285 Gilson Soares de Araújo Nelson Juliano Cardoso Matos Capítulo XIX - Direitos dos Idosos e Avaliação de Políticas Públicas em Debate...................................................................................................................298 Juciara de Lima Linhares Cunha Maria do Rosário de Fátima e Silva Capítulo XX - A Realidade das Famílias do Entorno do Parque Lagoas do Norte após a Implantação das Ações de Recuperação da Região.................................315 Jovina Moreira Sérvulo Rodrigues Minicurrículos dos autores ................................................................................. 330 8 APRESENTAÇÃO O livro Questão Social e Políticas Públicas na Atualidade, tem como eixo organizador: questão social e políticas públicas na cena contemporânea: planejamento, gestão e avaliação de programas, projetos e serviços sociais. A referida publicação engloba a produção coletiva de docentes e discentes do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí, num esforço de socialização dos estudos e pesquisas realizadas no âmbito acadêmico da Pós-Graduação stricto sensu. Os assuntos abordados na presente obra, objetos de estudos de dissertações e teses de doutorado em Políticas Públicas têm articulação direta com o tema geral proposto, explorando os diferentes nuances da questão social e das políticas públicas na sua coniguração na cena contemporânea brasileira. A presente obra se encontra estruturada em quatro partes assim discriminadas: Questão Social e Desaios Contemporâneos; Políticas Públicas e Sociais: demandas sociais e ação do Estado; Gestão Pública e Participação Democrática; Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas. A Primeira Parte intitulada: Questão Social e Desaios Contemporâneos, envolve relexões acerca das expressões da questão social na realidade brasileira e piauiense e os desaios postos à intervenção do Estado no seu enfrentamento. Neste aspecto esta parte do livro articula os seguintes capítulos: O capítulo I: Questão Social e as Tendências Familistas da Política de Assistência Social no Brasil, de autoria de Poliana de Oliveira Carvalho e Solange Maria Teixeira, faz uma análise da Política de Assistência Social Brasileira com foco na responsabilização da família, reconhecida enquanto instituição de proteção, integração social e parceira do Estado, reproduzindo uma dialética de modernização e conservadorismo. O Capítulo II: Desaios da Reintegração Familiar de Crianças e Adolescentes: relexões mediante as expressões da questão social, de autoria de Ana Valéria Matias Cardoso e Solange Maria Teixeira, analisa os desaios que perpassam a reintegração familiar de crianças e adolescentes a partir das diversas manifestações da questão social num cenário neoliberal de desregulamentação do Estado e responsabilização familiar. Para isso resgata o signiicado da família no contexto histórico de enfrentamento da problemática social de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e risco social. O Capitulo III: Questão Social e Política de Assistência Social no Brasil: relexões para a atuação do psicólogo, de autoria de Davi Magalhães Carvalho e João Paulo Sales Macedo, aborda a questão social e as suas 9 expressões no atual cenário da política de assistência social no Brasil, considerando seu percurso histórico como base para a relexão da atuação proissional do psicólogo e dos desaios que cercam a inserção da proissão na política de assistência social. O capitulo IV: O Programa Minha Casa Minha Vida e a Questão Habitacional no Brasil, de autoria de Leandro Gomes Reis Lopes e João Paulo Sales Macedo, discute as contradições do Programa Minha Casa Minha Vida em relação ao enfrentamento do problema do déicit habitacional e de moradias irregulares no Brasil. Compreende a questão habitacional como uma das expressões da questão social em decorrência da relação tensa entre capital e trabalho. Neste sentido registra que desde o século passado o Estado brasileiro vem realizando intervenções no âmbito habitacional de forma contraditória. Trata-se de estratégias que reduzem o valor da força de trabalho e atendem à demanda dos trabalhadores, embora inserindo-os em lugares com baixa densidade de infraestrutura urbana, num processo conhecido como segregação sócioespacial. Neste cenário prevalecem as necessidades de reprodução do capital sobre as necessidades dos trabalhadores, agravando as suas condições de vida. O Capítulo V: A Política dos Amores Ousados: relexões ativistas na cena LGBT, de autoria de Vitor Sampaio Kozlowski Ferreira e Francisco de Oliveira Barros Júnior, reúne relexões de ativistas que têm acompanhado o cenário contemporâneo da luta pelo combate à homofobia. Dessa forma estimula o debate acerca da especiicidade das questões que atravessam o cotidiano de quem vive uma sexualidade diferente do padrão heteronormativo, identiicando as diiculdades vivenciadas neste campo enquanto uma relevante questão social focada nas dimensões afetiva e sexual dos indivíduos, o que enseja mobilização política e reconhecimento de direitos A Segunda Parte do livro com o título: Políticas Públicas e Sociais: demandas da sociedade e ação do Estado, engloba as relexões sobre o campo de intervenção das políticas públicas e sociais enquanto mediação do Estado frente as necessidades da sociedade civil, considerando as demandas postas pelos segmentos sociais na área da saúde, da assistência social, da educação e da transferência de renda, tendo como cenário a realidade brasileira na atual conjuntura, marcada por políticas de ajustes iscais e contenção de gastos principalmente na área social. Nesta perspectiva o Capítulo VI: A Política Social no Capitalismo Contemporâneo e Intersetorialidade: relexões a partir da política de saúde, de autoria de Nayra Sousa Araújo e Simone de Jesus Guimarães, traz a discussão de alguns aspectos relevantes acerca da relação entre questão social, capitalismo e políticas sociais, bem como concernentes à política de saúde no contexto brasileiro, compreendendo a intersetorialidade como instrumento de gestão para se alcançar a proteção social neste campo especí10 ico de atuação das políticas sociais. Ressalta que a materialização da visão ampliada de saúde proposta pela reforma sanitária e incorporada pela Constituição Federal de 1988, tem sido constantemente ameaçada pelo contexto neoliberal em curso no Brasil, uma vez que a atuação do Estado sobre as expressões da questão social, através das políticas sociais tem sido moldada de acordo com os interesses do capital. O Capítulo VII: A Gestão da Assistência Social no Estado do Piauí sob o Olhar do Orçamento, de autoria de Luciana Evangelista Fernandes Franco e Maria D’Alva Macedo Ferreira, trata do reconhecimento pós Constituição de 1988, da Assistência Social enquanto política de seguridade social não contributiva, assegurada como direito do cidadão e dever do Estado. Reforça que a partir de então muitos avanços na legislação foram alcançados, no entanto a materialização dos mesmos, passam necessariamente pelo orçamento e pelo processo de gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), concebido como diretriz que norteia os encaminhamentos práticos da política de Assistência social O Capítulo VIII: A Política Pública de Assistência Social no Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes: breves relexões pós Constituição Federal de 1988, de autoria de Mayra Soares Veloso e Inez Sampaio Nery, faz uma análise da política pública de assistência social com ênfase nas ações voltadas ao combate da violência sexual contra crianças e adolescentes, tendo como base de análise as ações no campo da proteção social especial operacionalizada pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social(CREAS). Conclui reconhecendo que apesar dos avanços identiicados na área da assistência às crianças e adolescentes, o atendimento especializado àquelas vítimas de violência sexual ainda se encontra em processo de consolidação. O Capítulo IX: A Gestão das Condicionalidades do Programa Bolsa família no Piauí, de autoria de Adriana de Moura Elias Silva e Maria do Rosário de Fátima e Silva, aborda o processo de gestão do programa Bolsa Família no Estado do Piauí, tendo como eixo de análise a operacionalização das condicionalidades estabelecidas pelo referido programa. Neste sentido elege como base material de análise os municípios de Teresina e Piripiri, buscando compreender como se processa o acompanhamento das condicionalidades nesses municípios com o objetivo de assegurar às famílias beneiciárias do PBF o acesso aos serviços sociais básicos nas áreas da saúde, educação e assistência social. O Capítulo X: O Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE): experiência de gestão em Codó-MA, de autoria de Francisco da Silva Paiva e Jaíra Maria Alcobaça Gomes, explora elementos relacionados à gestão de um programa no campo da política de educação, mais especiicamente, o Programa Dinheiro Direto na Escola a partir da experiência de gestão de duas 11 escolas municipais na cidade de Codó no Estado do Maranhão. A análise sobre as experiências de gestão escolar identiica que na implementação do referido programa no município referenciado, há uma transferência de responsabilidades da secretaria municipal de educação para as escolas, sem o fornecimento do devido suporte no tocante à infraestrutura para que a gestão do PDDE possa se tornar mais efetiva e abrangente. Ressalta que os recursos do programa têm sido de fundamental importância para o funcionamento das escolas, sendo necessário, no entanto, a efetuação de modiicações na atuação das diversas instâncias que o constituem no sentido do seu aprimoramento. A Terceira Parte constitutiva desta produção com o título: Gestão Pública e Participação Democrática, registra o debate de idéias no campo da gestão pública e do processo de participação social, compreendendo a análise de experiências no espaço da gestão pública de políticas, programas, projetos e serviços, sob a responsabilidade do Estado e também em parcerias com as organizações sociais. Na implementação das ações tendo por base o peril da gestão democrática, analisa-se as condições nas quais se estabelecem os processos participativos, envolvendo a manifestação da sociedade civil no processo de gestão e através dos canais democráticos de controle social. Iniciando as relexões nesta direção, o Capítulo XI: Gestão Social e em Redes: uma estratégia de gestão na Política de Assistência Social brasileira no contexto neoliberal, de autoria de Talila Arrais Amorim e Solange Maria Teixeira, traz a relexão sobre a conjuntura de desmonte de direitos e de crescente retração do Estado, exigindo da gestão pública novas estratégias de intervenção que se afastem das práticas burocráticas e setoriais e materializem uma nova perspectiva de gestão do trabalho em redes. Adverte no entanto, que essa mudança na forma de gerir o público se constrói sob bases contraditórias, pois ao tempo em que preconiza a descentralização, a participação social e relações democráticas entre os atores e instituições, fortalece também as práticas de um Estado mínimo, legitimando a divisão de responsabilidades na execução da política pública com esses atores, repassando as funções públicas estatais para o espaço privado da sociedade civil e do mercado. O Capítulo XII: Gestão Democrática na Escola Pública: o papel dos conselhos municipais, de autoria de Renildo Barbosa Estêvão e Maria D’Alva Macedo Ferreira, faz a discussão sobre o processo de gestão democrática nas escolas públicas, trazendo o papel das normas constitucionais e infraconstitucionais neste procedimento. Aborda os mecanismos de participação democrática e suas possíveis formas de atuação, enfatizando os Conselhos Municipais como alternativa para inserção da gestão democrática nas escolas públicas, realçando o papel da escola como instrumento propagador não só do conhecimento, como também, das experiências de participação democrática. 12 O Capítulo XIII: A Atuação dos Conselhos na Gestão da Política Pública de Saúde no Município de Teresina, de autoria de Marcelo de Moura Carvalho e Maria D’Alva Macedo Ferreira, traz uma análise sobre a atuação dos conselhos de saúde na gestão da política pública de saúde no município de Teresina, desde a sua criação em 1991 até o ano de 2016. Traça um panorama sobre a atuação do conselho municipal de saúde e dos conselhos locais de saúde no processo de gestão da política pública de saúde no município. Neste aspecto procura dialogar com os elementos que coniguram a reforma administrativa no setor de saúde, bem como, com a mobilização da sociedade civil em torno das questões atinentes a este setor, demarcando os avanços e as diiculdades que ainda permanecem nesta relação entre o poder público e a sociedade civil até os dias atuais. O Capítulo XIV: Presença e Implicações da Gestão da Saúde por Organizações Sociais, de autoria de Olívia Cristina Perez, Faz a relexão sobre a presença das Organizações Sociais (OSs) na área da gestão dos equipamentos públicos de saúde, problematizando a sua atuação. Argumenta que o discurso que embasa o crescimento da presença das OSs no espaço público é o fato de que a sua gestão seria mais eiciente e livre da burocracia estatal, no entanto, veriica-se que as práticas e problemas da área privada têm sido transferidos para o setor público, ferindo os princípios do Sistema Único de Saúde, a saber: universalidade, integralidade e equidade. Conclui ressaltando, que essa valorização da gestão privada tem implicado no desmonte dos equipamentos públicos com a consequente transferência da função pública para o mercado, ainda que sob inanciamento estatal. O Capítulo XV: Grandes Projetos Urbanísticos e Participação Política: análise do Programa Lagoas do Norte em Teresina, de autoria de Edmundo Ximenes Rodrigues Neto e Antônia Jesuíta de Lima, traz a relexão de como grandes projetos urbanos podem transformar física e urbanisticamente uma determinada região da cidade, podendo incidir positiva e/ou negativamente nas relações sociais, culturais e econômicas historicamente construídas pela população afetada. Neste aspecto relete sobre o padrão de governança que está orientando o Programa Lagoas do Norte em Teresina-PI, focalizando o conlito entre prefeitura e parte das famílias atingidas, gerado em torno da perspectiva de reassentamento voluntário. Argumenta que enquanto a prefeitura faz uso do discurso técnico da proteção ambiental e social das famílias como justiicativa central para retirada dos moradores, o movimento social alega violação de direitos e toma diversas iniciativas para não serem removidos, expondo a necessidade do debate, da interlocução e da participação dos distintos sujeitos no processo decisório. O Capítulo XVI: Relexões sobre os Processos Participativos no Programa Lagoas do Norte em Teresina- PI, de autoria de Aline Teixeira, Mascarenhas de Andrade e Maria do Rosário de Fátima e Silva, Toma como 13 base de discussão a construção dos processos participativos no Programa lagoas do Norte em implementação na cidade de Teresina, Estado do Piauí. Para tanto relete sobre as instâncias de participação constituídas em torno do referido programa a exemplo: do Comitê Lagoas do Norte; Fórum Lagoas do Norte e Associações de moradores da região, procurando compreender o nível de interlocução que se estabelece entre estas instâncias participativas no processo de gestão em curso. Conclui reconhecendo que esta relação tem sido marcada por tensões e conlitos, avanços e retrocessos, não esgotando, no entanto, as possibilidades de construção do diálogo e de condições efetivas de participação. A Quarta Parte do livro intitulada: Avaliação e Monitoramento de Políticas e Programas Sociais, reúne um conjunto de relexões acerca da Avaliação de Políticas Públicas enquanto campo de conhecimento e enquanto espaço de intervenção prática no âmbito da gestão pública de políticas, programas e projetos sociais na perspectiva de assegurar direitos aos diferentes segmentos sociais e garantir a eiciência e a efetividade nos processos de gestão. O Capítulo XVII: Debates em torno da Avaliação no Âmbito das Políticas Sociais: contribuições teórico-práticas para pensar a construção de uma cultura avaliativa no Brasil, de autoria de Soia laurentino Barbosa Pereira e Simone de Jesus Guimarães, inicia a discussão, fazendo uma análise teórico-crítica acerca da avaliação de políticas sociais, à luz da literatura especializada, buscando contribuir com o debate em questão e dando ênfase à necessidade de criação de uma cultura avaliativa no cenário brasileiro. A partir da discussão de diversas concepções de avaliação, defende a necessidade de ultrapassar-se a concepção técnico-burocrática do processo avaliativo que o encara como um mero controle de gastos e que não apreende a complexidade que compõe a realidade social nas quais as políticas sociais são parte integrante. O que implica na importância do reconhecimento do caráter político da avaliação, de forma que esta seja capaz de criar uma nova postura diante das políticas sociais. O Capítulo XVIII: Avaliação e Monitoramento de políticas Públicas pelo Tribunal de Contas do Estado do Piauí: análise dos resultados iniciais da aplicação do Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEGM), de autoria de Gilson Soares de Araújo e Nelson Juliano Cardoso Matos, trata da relexão sobre sistemas institucionalizados de monitoramento e avalição de políticas públicas, explorando como eixo de análise, a experiência do Tribunal de Contas do Estado do Piauí- TCEPI que implementou em 2016, o Índice de Efetividade da Gestão Municipal- IEGM, para monitorar e avaliar políticas públicas municipais, considerando sete dimensões da execução do orçamento público a saber: educação, saúde, planejamento, gestão iscal, meio ambiente, cidades protegidas e governança em tecnologia da infor14 mação. Reforça que o TCEPI pretende, a partir deste indicador, mensurar na gestão pública municipal a relação entre os meios utilizados e os resultados obtidos, bem como, o alcance dos objetivos e metas planejados, tendo em vista avaliar a pertinência dos meios utilizados, com a celeridade na prestação do serviço à população. O Capítulo XIX: Direitos dos Idosos e Avaliação de Políticas Públicas em Debate, de autoria de Juciara de Lima Linhares Cunha e Maria do Rosário de Fátima e Silva, discute a questão do envelhecimento no Brasil, ressaltando os direitos garantidos à pessoa idosa, após a promulgação da Carta Magna de 1988, que trouxe conquistas para este segmento populacional. Ressalta, contudo, a necessidade de se considerar os desaios diante da atual conjuntura do Estado neoliberal, enfatizando a importância da avaliação de políticas públicas como um mecanismo necessário ao aperfeiçoamento da gestão e do controle social das ações destinadas a este público, e da criação de espaços de participação direta dos cidadãos idosos nas decisões que lhes dizem respeito, fortalecendo o seu protagonismo. A título de conclusão das relexões desta quarta parte e da presente obra, temos o Capítulo XX: A Realidade das Famílias do Entorno do Parque Lagoas do Norte após a Implantação das Ações de Recuperação da Região, de autoria de Jovina Moreira Sérvulo Rodrigues, que aborda os principais aspectos de uma pesquisa sobre as condições de saúde das famílias que residem no entorno do Parque lagoas do Norte, após a implantação do empreendimento de urbanização denominado, Programa Lagoas do Norte na cidade de Teresina no Estado do Piauí. Os resultados da pesquisa mostraram que as vulnerabilidades e os riscos que perpassam o cotidiano das famílias residentes na região apresentam demandas, sobretudo relacionadas às políticas de habitação e saúde, ensejando ações imediatas de requaliicação ambiental, de recuperação das lagoas, realocação das famílias, reconstrução e reforma de moradias, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida e de saúde da referida população. Maria do Rosário de Fátima e Silva Maria D’Alva Macedo Ferreira Simone de Jesus Guimarães 15 PARTE I QUESTÃO SOCIAL E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS 16 CAPÍTULO I. QUESTÃO SOCIAL E AS TENDÊNCIAS FAMILISTAS DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL Poliana de Oliveira Carvalho Solange Maria Teixeira Introdução A história do Brasil é marcada por contradições e peculiaridades decorrentes da formação econômica, política e social do país, expressa, principalmente, pela formação de uma sociedade marcada por desigualdades sociais. Apesar dos avanços e investimentos em políticas públicas, desigualdade, pobreza, exclusão social, desemprego estrutural, preconceito e vários outros substantivos do gênero, podem compor um quadro que caracteriza minimante o cenário social do país. Diante de um contexto com diversos problemas sociais, de forma paulatina e fragmentada, constrói-se uma Política de Assistência Social, tendo como marco legal a Constituição Federal de 1988. Política essa que tem como foco o atendimento integral à família e indivíduos a partir de serviços especíicos e com moldes contraditórios. Lança bases para uma intervenção que busca a emancipação social e o investimento nas potencialidades da família, dos indivíduos e das comunidades, ao tempo em que se desenha uma política focalizada (que não consegue atender nem a população abarcada na focalização), que agi a partir das falhas nos papeis atribuídos como responsabilidades da família. A Política de Assistência Social é caracterizada como familista, em que se guia pelo preceito de que a obrigação maior pelo bem-estar do indivíduo é da própria família. O que gera atuações confusas e ineicazes, uma vez que, se guiam por diretrizes que não reletem sobre o contexto em que vivem e ainda culpabilizam a família por questões que são relexo direto de uma sociedade capitalista marcada historicamente por desigualdades. O objetivo desse artigo é problematizar mediante análise da questão social e das suas múltiplas expressões e das raízes que a geram e reproduzem, essa tendência familista da Política de Assistência Social. O artigo, realizado a partir de pesquisa bibliográica está organizado em três partes, em que primeiramente se realizará uma relexão sobre o processo de construção do fenômeno da questão social e a vulnerabilização e fragilização das famílias pobres no Brasil, em seguida em item intitulado “Família e a Política de Assistência Social brasileira” debate sobre o processo de instituição da Política de Assistência Social brasileira, sua atuação junto as famílias e as falhas apontadas por estudiosas da área, que identiicam traços conservadores, focalistas e ineicazes no trato à desdobramentos da questão social, que acabam por incentivar ações paliativas e de corresponsabilização 17 das famílias. Finalizando com as conclusões em que se coloca que se vive um momento de retrocesso do processo de construção de direitos, uma vez que, diante do recuo do Estado no trato de muitas expressões da questão social, coloca-se a responsabilidade na família, isentando-se o Estado, mas deixando a família fragilizada e sobrecarregada de funções. A questão social e a vulnerabilização das famílias pobres A questão social constitui-se em fenômeno complexo, tanto de difícil conceituação, devido o grande número de desdobramentos, como de percepção, uma vez que envolve questões subjetivas e o processo de relexão sobre a relação Capital/Trabalho com o mundo moderno. De acordo com Paulo Netto (2001), a expressão questão social nasceu para tentar nomear o fenômeno da pauperização do trabalhador na terceira década do século XIX. Suas determinações fundamentais decorrem do fenômeno socialização da produção de riqueza, portanto, a produção é coletiva, mas sua apropriação está nas mãos de poucos indivíduos que detém a propriedade dos meios de produção. O rebaixamento do valor da mercadoria força de trabalho, para reduzir custos da produção, gerou a pobreza de trabalhadores e suas famílias que associado ao fenômeno da mobilização dos trabalhadores e a impossibilidade de inseri-los no mercado formal de trabalho, produziu a exclusão social de massas de trabalhadores aptos e inaptos à vida produtiva, essas desigualdades se acentuam conforme das diferenças de gênero, raça, etnia, gerações dentre outras. No que se refere às pesquisas realizadas na área, trabalha-se com o consenso de que a questão social é produzida e reproduzida pela sociedade capitalista e para entendê-la faz-se necessário não só conhecer como funciona a dinâmica do sistema capitalista, mas do Estado produzido por ele. Ou seja, a questão social tem que ser analisada a partir do contexto em que está inserida, sem fragmentá-la. Na fase dos “30 anos gloriosos do capitalismo”, década de 1940 a 1970, o Estado capitalista interviu para garantir a acumulação e a legitimidade do capitalismo criando políticas públicas que atendiam a interesses do capital e do trabalho, administrando e reduzindo as desigualdades sociais. Na contemporaneidade, diante do processo da globalização e da instituição do neoliberalismo, em resposta a crise do capital do inal dos anos 1970, o desenvolver da questão social torna-se mais dramático, devido a um recuo do Estado no trato dos seus desdobramentos e um recrudescimento dos efeitos perversos das desigualdades econômicas e sociais geradas pelo ajuste estrutural à nova ordem mundial, em fase de modelo de acumulação lexível. Segundo Ianni (1996), diante dos fenômenos da globalização e neoliberalismo, transforma-se as condições de vida e de trabalho, que passam a ser marcado por uma procura de mão de obra barata, migrações, aumento do desemprego, destruição do meio ambiente, crescimento de expressões de vio18 lências e crimes devido a descriminações diversas etc. Os Impactos desses, segundo Iamamoto (2013), são mais sentidos por quem menos se beneiciam da globalização e crescimento econômico, ou seja, a população pobre. De acordo com Chauí (2006, p. 325): “Como consequência, a insegurança e o medo levam ao gosto pela intimidade, ao reforço de antigas instituições, sobretudo a família e o clã e refúgios contra um mundo hostil [...]”. Todo esse elenco de problemas sociais é aprofundado uma vez que o cenário econômico é quem hoje comanda a repartição e destinação social da riqueza, logo também moldam a vida não só na esfera econômica, mas em todas as outras dimensões. Apesar da aparência de naturalização das desigualdades econômicas e sociais, essas são produzidas e reproduzidas pelo fenômeno concentração e centralização do capital. Rosanvallon (1998), diante desse cenário, analisa que é preciso administrar situações particulares, e não selecionar indivíduos. Uma vez que os problemas advindos da questão social não são problemas individuais, são resultado de um contexto econômico excluídor, que tem repercussões devastadoras na vida dos indivíduos. No que se refere a realidade Brasileira, essa é historicamente marcada por contradições sociais mais profundas, decorrentes de um capitalismo tardio, que já emerge poupando mão de obra e gerando desigualdades e exclusões em proporções bem maiores, e de um Estado que assume a função de promover a modernização do país, mas que não se propõem a proteger o conjunto da população. Diante de um mercado capitalista pouco inclusivo e de reduzidas políticas públicas de proteção social, restou à família e a organizações da sociedade civil prover essa proteção social. As condições de inserção do país, a essa nova fase do capitalismo, da era da lexibilização e do neoliberalismo, vêm precarizando as incipientes políticas públicas conquistadas no inal dos anos 1980 que cedem lugar a políticas compensatórias, com foco nos extremamente pobres. O resultado é que apesar dos investimentos em políticas públicas para os mais pobres, queda do número de famílias extremamente pobre, o Brasil ainda ocupa o ranking de um dos países mais injusto da América Latina. Além de caracterizado por problemas sociais já culturalmente incrustados na sociedade, o país também é marcado por uma herança de conservadorismo que vai aprofundar as contradições com um trato da questão social ainda perpassado por moralismo e ações paliativas. No que se refere a relação do Estado com a família, segundo Pereira (2010) e Mioto (2010), desde a crise econômica mundial dos ins dos anos de 1970, a família vem sendo redescoberta como um importante agente privado de proteção social. Além de foco de culpabilização para muitas manifestações da questão social, como a violência doméstica, crianças e adolescentes em conlito com a lei, perca da capacidade de solidariedade, insegurança de renda, drogadição etc. 19 As autoras também chamam a atenção para o fato de que em tempos de políticas de corte neoliberal, a redescoberta da família, assim como o mercado e as organizações da sociedade civil denominadas de Organizações não governamentais (ONGs) vêm como importantes substitutos (ou parceiros) privados do Estado na provisão de bens e de serviços sociais básicos. A família é continuamente empurrada a assumir responsabilidades frente a uma retração crescente do Estado, amparado por um discurso de crise iscal, necessidades de contenção de gastos públicos e desregulamentação do Estado. Segundo Mioto (2010) e Pereira (2010) há um pluralismo de bem estar realizado pelo Estado, mercado e pela família. E cada uma dessas fontes ou agentes, compareceriam conforme Abrahamson (1992), com os recursos que lhes são peculiares: o Estado, com o recurso do poder, e portanto, da autoridade coativa, que só ele possui, o mercado, com o recurso do capital; e a sociedade, da qual a família faz parte, com o recurso da solidariedade. (PEREIRA, 2010, p. 32). A partir desse marco, desencadeou-se o desenvolvimento de um leque amplo de políticas articuladoras voltadas para as famílias, ou tendo-as como foco de intervenção, dentre elas a de assistência social. Mas, a direção dessa inserção da família nas políticas públicas é bastante contraditória e com diferentes perspectivas. Mioto (2004, p. 136) coloca que: A discussão no âmbito das políticas sociais, grosso modo, tem-se encaminhado a partir de duas perspectivas distintas. Uma que defende a centralidade da família, apostando na sua capacidade imanente de cuidado e proteção. Portanto, uma vê a família como o centro no cuidado e da proteção por excelência. A outra entende que a capacidade de cuidado e a proteção da família está diretamente relacionada ao cuidado e à proteção da família que lhes são garantidos através das políticas sociais, especialmente das políticas públicas. De modo geral, percebe-se que a crise econômica e a consequente redução de atuação do Estado ampliam-se e agudizam-se as expressões da questão social, ao mesmo tempo aumentam as responsabilidades das famílias, principalmente frente às vicissitudes da vida em sociedade de classe e das consequências advindas do modelo econômico vigente, assimilados como problemas individuais. Mediante o arrefecimento de muitas das expressões da questão social que incidem diretamente sobre as famílias, principalmente nas pobres, os problemas sociais se perpetuam e, contraditoriamente, ainda são vistos como um problema de família, causado pelas famílias ou pela ausência da família tradicional. Todavia, a família moderna inluenciada e em respostas as mudanças 20 macro societárias vem passando por transformações em seus modelos e funções, em que o modelo hegemônico de família (nuclear tradicional) com pai, mãe e ilhos, convive com outros modelos e acumulam vulnerabilidades sociais diversas decorrentes desse cenário contemporâneo. O cenário real traz na verdade famílias endividadas, com diiculdades de sustentar seus membros, abaladas pelo avanço da violência, drogadição, falta de emprego e ainda relegados a bairros distantes das cidades, muitas vezes sem uma estrutura mínima de serviços sociais. O que muitas vezes é propagado através de discursos diversos como problemas individuais, má vontade, preguiça, constituem-se na verdade em expressões da questão social que vão incidir fortemente nos indivíduos mais fragilizados da sociedade atual. Logo a luz das discussões realizadas por Paulo Netto (2012), chega-se a conclusão de que não se pode pensar a questão social como problemas individuais, uma vez que, ela está diretamente relacionada ao modo como a sociedade capitalista se desenvolve. Torna-se necessário entender o fenômeno a partir da análise do todo, desde o contexto político, histórico e social, o sistema econômico, assim como as políticas produzidas para o combate desse fenômeno. Com o intuito de conhecer a Política de Assistência Social brasileira, uma das principais frentes de combate à pobreza e outras expressões da questão social, se discutirá no próximo item como é realizado a proteção social das famílias através da mesma. A família e a Política de Assistência Social brasileira Quando se fala no conjunto de ações implementadas no combate a questão social no Brasil, uma das principais políticas de referência constitui-se na Política de Assistência Social. Produto de lutas e reivindicações tem o objetivo de superar visões focalizadas e restritas de pobreza, buscar a inserção das classes chamadas de “invisíveis”, tendo como foco de trabalho principal as famílias, a PNAS (2004) vem sendo tema de estudos e pesquisas que mostram uma defasagem entre o que está disposto nas leis e o que se vê em discursos e ações. A assistência social brasileira, como política pública, iniciou a sua organização na Constituição Federal de 1988 através, apenas, de dois artigos, 203 e 204, que resumidamente colocavam os pressupostos para o funcionamento da assistência social. O artigo 206 aponta a importância da família como base da sociedade e enfatiza a necessidade de proteção por parte do Estado. Em prosseguimento ao processo de regulamentação, e a passos mais lentos que as demais políticas, em 1993, é aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993), e, no ano de 2004, a tão esperada Política Nacional de Assistência Social (Resolução n. 145, de 15 de outubro de 2004.) que “[...] expressa a materialidade do con21 teúdo da assistência social como um pilar do Sistema de Proteção Social Brasileiro no âmbito da Seguridade Social” (BRASIL, 2004, p. 11). Nesse interesse, são aprovados outros instrumentos de proteção à família e seus membros: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Estatuto do Idoso etc. Fruto da mobilização conjunta de diversos atores sociais, a concretização da assistência social como integrante do tripé que forma a Seguridade Social (assistência social, saúde e previdência social), além de signiicar um avanço técnico e político através da universalização do acesso, ainda que normativamente, representa, de forma efetiva, o compromisso ao combate de práticas clientelistas e assistencialistas que se imiscuíram na cultura brasileira. Na verdade, esta é ainda uma política em formatação. A assistência social brasileira, hoje, prima por uma efetivação de serviços, como direitos, através de um sistema organizado (BRASIL, 2005) e continuado de ações voltadas para a família, superando as investigações e o atendimento pontuais e primando por uma visão da totalidade. Em suas diretrizes organizacionais, a partir da Constituição Federal de 1988 e da LOAS/1993, especiica a necessidade de se centrar na família, para a concepção e implementação de benefícios e serviços. Constituindo-se em um dos seus objetivos: “Assegurar que as ações em âmbito da assistência social tenham centralidade na família e que garantam a convivência familiar e comunitária” (BRASIL, 2004, p. 33). Em que segundo Mioto (2004), essa centralidade é perpassada pela premissa de que para cuidar dos seus entes, primeiro tem que receber os subsídios necessários através de políticas sociais direcionadas. No caso da assistência social esses subsídios são oferecidos por uma rede socioassistencial compostas por organizações governamentais e não governamentais, nos vários níveis de proteção social ofertados. Para superar os modos tradicionais de se analisar a pobreza e outros desdobramentos da questão social, a Política de Assistência desenvolve dois importantes conceitos: o de vulnerabilidade e de risco social. O risco, segundo Jaczura (2012), foi usado inicialmente pelos epidemiologistas em associação a grupos e populações. Atualmente refere-se a um conjunto de fenômenos ligados à conjuntura econômica, à cultura e às próprias vicissitudes da vida (envelhecimento, doenças, morte, etc) que afetam grupos especíicos da população. A vulnerabilidade refere-se aos indivíduos e às suas suscetibilidades ou predisposições a respostas ou consequências negativas, diante de situações de precariedades. Portanto, ainda são destacados os indivíduos e capacidades de respostas diante de situações problemas e não como decorrentes de processos estruturais. É importante ressaltar-se, contudo, que, para essa autora, existe uma relação entre vulnerabilidade e risco, a partir da máxima de que o risco se torna um problema ou só ocorre por causa da existência das vulnerabilidades sociais que são vivenciadas pelas famílias. 22 Há a tendência de se associar as vulnerabilidades apenas à situação econômica, o que limita o fenômeno que é bem mais complexo. Isso acontece devido aos amplos efeitos que a falta de um emprego ou a informalidade trazem para vida das famílias. Segundo Cronemberger e Teixeira (2013), as mudanças econômicas acentuam as desigualdades sociais e de renda familiar, afetando as suas condições de sobrevivência, minando as expectativas de superação da situação de pobreza e reforçando as necessidades dos serviços públicos existentes. Nessa perspectiva, vulnerabilidade social é um conjunto de situações precárias de vida, decorrente de processos estruturais e culturais, que, ao incidir, aumenta a probabilidade de situações de risco social. Esse último signiica situações-limite em que há violações de direitos e rupturas, parciais ou totais, de vínculos de pertencimento familiar e comunitário. Embora a falta de renda ou precariedade no seu acesso tenha centralidade no rol das vulnerabilidades, essa é mais ampla e envolve vulnerabilidades decorrentes das desigualdades de gênero, raça, etnia, geracional, dentre outras situações que aumentam a propensão de riscos, como de violências a esses segmentos, e outras violações de seus direitos que, quando são praticados por familiares, podem gerar rompimento de relações, ponto máximo dos riscos. Portanto, o risco é uma situação extrema. Mediante um cenário de retração da economia, das próprias políticas públicas, tem-se um quadro de famílias ainda mais empobrecidas precisando mais de políticas públicas, quando as mesmas estão funcionando de forma seletista e focalizada, incapazes de romper com as desigualdades sociais. Assim, as famílias acabam por se tornar reféns da miséria e vivem em situação cada vez mais precária. A situação de vulnerabilidade social da família pobre se encontra diretamente ligada à miséria estrutural, agravada pela crise econômica que lança o homem ou a mulher ao desemprego ou subemprego; e também às situações de intolerância, iniquidades decorrentes de diferenças sociais, culturais, entre outras, e à precariedade no acesso às políticas públicas e aos bens e serviços criados socialmente. A injustiça social diiculta o convívio saudável da família, favorecendo o desequilíbrio das relações e a desagregação familiar (GOMES; PEREIRA, 2005). São muitas questões entrelaçadas, na verdade: pobreza; insegurança de renda, alimentar, afetiva; drogas; falta de uma habitação digna, de qualidade de vida e serviços públicos de qualidade; não participação na esfera pública de decisão, etc. Diante de tantas vulnerabilidades, as famílias não conseguem suprir satisfatoriamente as necessidades apresentadas pelos seus entes, o que pode gerar situações de risco como as violências, maus tratos, negligências, abandonos, exploração sexual, trabalho infantil e outras situações de risco social. O quadro desenhado acima demonstra a realidade de grande parte da população brasileira. As concepções de pobreza e subalternidade passam a ser analisadas de forma mais ampla do que a mera ausência de renda. 23 Fonte: CARNEIRO (2005). Para a Política, o alcance de emancipação e empoderamento social constitui-se em um desaio diante da necessidade de primeiramente ultrapassar uma série de questões que requerem respostas imediatas: fome, desemprego, violência, etc. A emancipação nesse contexto só é possível a partir da identiicação da capacidade de ultrapassar as discussões de suas demandas individuais para aquelas que foquem num contexto mais amplo. As famílias contemporâneas, especialmente as mais pobres, não apresentam capacidade material nem de pôr em curso ações que venham a superar as vulnerabilidades vividas, nem os riscos sociais. Quando sua capacidade está totalmente esgotada, procuram suporte e apoio do poder público. Mas por si só a política já é desenhada de forma limitada, uma vez que é guiada pelo conceito de mínimos sociais. Em vez de se perseguir o ótimo, trabalha-se com a perspectiva de se alcançar o que minimamente seria considerado necessário para satisfazer as necessidades humanas. Para Pereira (2008), a busca de um patamar máximo é algo fugidio, mas pode ser identiicada com patamares mais elevados de acesso a direitos, serviços, políticas e bens. Um acesso de maior qualidade levaria indivíduos à maior capacidade de agência e criticidade e, assim, uma boa capacidade de escolha e decisão, itens imprescindíveis para os indivíduos terem capacidade de entender e questionar sua própria realidade. Sua ausência provoca o que a autora denomina de “sérios prejuízos” à vida material do homem e à sua atuação como sujeitos informados e críticos. “[...] Assim, ‘sérios prejuízos’ são impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de viver física e socialmente em condições de poder expressar a sua capacidade de participação ativa e crítica.” (PEREIRA, 2008, p. 67). No que se refere à análise dos dispositivos legais, operacionais dos Sistemas de Proteção Social Brasileiro, especiicamente na Política de Assistência Social, levando-se em consideração o lugar que a família ocupa quando busca respostas para suas demandas, caracteriza-se a política brasileira como 24 “familista”, que pressupõe a obrigação das famílias em assumir a responsabilidade pelo bem-estar social. (CAMPOS; MIOTO, 1998; MIOTO, 2004). A Política de Assistência Social busca a parceria com a família, mediante oferecimento de suporte para que a mesma exerça suas funções sociais de proteção social. Mas, o “suporte” direcionado para essas famílias por parte do Estado, é cada vez menor e com a parceria das Organizações não governamentais (ONGs), além disso as políticas sociais ainda são direcionadas para elementos especíicos do grupo familiar e com problemas para incluir a família na rede de serviços por causa da sua precariedade e baixa oferta de serviços pelo poder público. Delineando-se uma política de corte focalista e ainda fragmentada. A proteção social através da Política de Assistência é pensada a partir da garantia da segurança de sobrevivência (rendimentos e autonomia), de acolhida e de convívio e vivencia familiar. Nas entre linhas, lê-se que as duas primeiras seguranças citadas aconteceriam pelo Estado, a partir do momento em que a família não tenha as condições básicas para fornecê-las a todos os seus membros, ou seja perante a sua falha. Ressalta-se que perante o contexto atual, a família vem sofrendo diversos “ataques” do modo de vida moderno, em que sua dinâmica é desequilibrada pelo desemprego, violência, falta de tempo, sobrecarga de funções e outras questões que trazem constantemente a necessidade de mais intervenção do Estado, atuando de forma preventiva, antes da família se tornar incapaz de proteger seus membros. Mas, as ações de prevenção (da proteção básica) têm foco na preservação dos vínculos familiares e potencialização das funções protetivas da família, o que remete para dentro da família e com os seus recursos, a busca de enfrentamento de problemas que sofrem. Entretanto, os mesmos decorrem de uma estrutura desigual e excludente com repercussões nas relações interpessoais e familiares, e não da incapacidade ou incompetências das famílias. O que nos permite inferir que o foco está invertido, pois as vulnerabilidades apesar de diversas têm centralidade na condição material que se soma a outras, como a cultural, o acesso às políticas públicas, dentre outras. Diante da retração do Estado, as famílias são sobrecarregadas de funções e expectativas que não conseguem atender e ainda são alvo de culpabilizações por muito dos desdobramentos da questão social. Tudo que não vai bem com os membros é atribuído à família e, ainda torna-se comum nos prontuários, estudos, relatórios e laudos proissionais a presença de termos como “família desestruturada”, “falida”, “incompleta” que retrata a ideia que há uma estrutura ideal, sadia e que a ausência dessa estrutura gera personalidades doentias, marginalizadas, criminosas, drogadas, dentre outras descriminações aos diversos modelos familiares que destoam do hegemônico. A Política é organizada através de um Sistema Único de Assistência Social-SUAS, em que um dos seus principais eixos estruturantes também 25 é voltado especiicamente para a família, a matricialidade sociofamiliar. O texto oicial sobre o SUAS apoia a justiicativa na centralidade na família a partir do reconhecimento de que em um cenário de crise econômica, que afeta a todas as esferas da vida do homem, que contraditoriamente está instalado em um momento de conquistas e extensões de direitos e proteções, passa-se a exigir ainda mais o papel da família, a partir de ressigniicações da extensão de suas obrigatoriedades e o papel que exerce em sociedade. O SUAS traz o reconhecimento da necessidade de proteção da família, perante o acentuamento de fragilidades, para que essa possa exercer o papel essencial e primário de proteção: [...] faz-se primordial sua centralidade no âmbito das ações da Política de Assistência Social, como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primários, provedora de cuidados dos seus membros, mas que também precisa ser cuidada e protegida (BRASIL, 2004, p. 41) Todavia, questiona-se a capacidade da Política de Assistência Social articulada a outras políticas públicas e à rede socioassistencial de oferecer essa proteção social às famílias, pois suas realidades não vêm sendo alterada. Os reordenamentos institucionais, a capacidades dos municípios de implementarem a política com investimento em serviços de apoio às famílias está aquém do que seria necessário para munir a família de proteção social. Enfatiza que a Política de Assistência Social é direcionada a partir da interpretação da família como sujeito de direitos na qual os serviços, programas e benefícios deveriam ser organizados com base nas suas demandas, mas o que se assisti é a adaptação da família ao que a rede oferece e uma grande expectativa que ela possa proteger, assistir, cuidar, sustentar, educar, socializar independente dos seus formatos, vicissitudes da convivência familiar e condições de vulnerabilidade e risco social. Por isso segundo Mioto (2004) a Política de Assistência Social e as demais coniguram-se como políticas familistas, distanciando-se dos preceitos de uma política protetiva. Segundo Mioto (2010), a política protetiva, além de ser prioritariamente estatal, seria universal, prestada sem contrapartidas e fundadas na perspectiva dos direitos e da cidadania. A matricialidade sociofamilar, seria uma das estratégias de superação do processo de penalização e desproteção das famílias brasileiras, mas segundo Teixeira (2010), acaba por reforçar também essa tendência familista da política. Para Mioto (2010), constitui-se de forma contraditória essa atenção à família, uma vez que, ao mesmo tempo, que reconhece todas as mudanças empreendidas no âmbito familiar (formas de organização e de composição, diiculdades enfatizadas pelos desdobramentos da questão social), ainda se espera que mantenha o mesmo padrão de proteção e funções. 26 Conclusão A questão social, enquanto fenômeno complexo oriundo das contradições intensiicadas pelo sistema capitalista é fonte de preocupação para teóricos, pesquisadores, governos e sociedade. De difícil conceituação devido a um elenco complexo de desdobramentos, a questão social é corriqueiramente identiicada com o processo de pauperização. Entretanto, a pobreza é apenas uma de suas manifestações que se soma a outras como o desemprego, falta de acesso aos bens e serviços criados socialmente, violência e outras que se agudizam conforme as diferenças de gênero, geração, raça, etnias, diferenças regionais dentre outras que marcam o dia a dia de diversas famílias, principalmente e diretamente aquelas classiicadas como pobres. A família é uma referência para as políticas públicas e para o combate a pobreza a partir da década de 1990, como uma forma de diminuição das responsabilidades estatais e o repasse de funções para o setor privado e para sociedade da qual os núcleos familiares fazem parte. Quando se volta para o Brasil esse quadro é mais intenso, uma vez que as políticas sociais brasileiras sempre se beneiciaram da proteção social ofertada pela família e organizações ilantrópicas e caritativas de forma espontânea, informal e guiada pela autoajuda, reatualizada sob novas determinações pelas políticas sociais que têm como lócus privilegiado de atuação a instituição familiar. Mas a lógica de atendimento dos serviços, geralmente está voltada para famílias que falharam na responsabilidade do cuidado e proteção, principalmente em decorrência da pobreza, ou as em situação de vulnerabilidade, mas o foco da atuação não é o combate às vulnerabilidades pela alteração das condições de vida das famílias, mas do seu comportamento, das suas atitudes com o reforço de suas funções. Dessa forma, o foco da discussão da família no contexto de uma sociedade desigual e excludente, fortalece-se direta ou indiretamente, numa visão de família como produtora de patologias e busca-se a participação artiicial das famílias (MIOTO, 2004). Não há uma relexão sobre a produção de desigualdades produzidas pelo sistema capitalista, mas uma naturalização das mesmas como uma realidade dada, fruto de falhas individuais. Logo também há uma naturalização da questão social. Segundo Teixeira (2010), admite-se que na atualidade há uma pluralidade de conigurações familiares, mas trata-as como homogêneas em necessidades e funções. E identiicam a diversidade de conigurações como fonte dos problemas e não como uma reatualização da vida em família e, portanto, da sua importância enquanto instituição social geradora de identidade e sentimento de pertencimento. As intervenções voltadas ao trato da questão social estão embasadas, muitas vezes em lógicas arcaicas e enraizadas culturalmente, principalmente 27 no que se refere a problemas que incidem na família, em que se busca sempre padrões de normatividade e funcionalidade. Essa deve manter um elenco de responsabilidades para com os seus entes, não importa em que contradições estão mergulhadas. Logo, conclui-se, que além de se trabalhar com o combate de um fenômeno que tem a sua superação ligado a mudanças na ótica do fazer econômico (ou seja superação do capitalismo), o combate hoje de muitos dos desdobramentos da questão social no Brasil se fazem através de políticas familistas, que sobrecarregam as famílias de funções mediante a uma atuação do Estado reduzida e em moldes conservadores e pouco eicazes. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. ______. Lei Orgânica da Assistência Social. Lei n. 8.742/1993. 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A família na política de assistência social: concepções e as tendências do trabalho social com famílias no CRAS de Teresina. Teresina: EDUFPI, 2013. 30 CAPÍTULO II. DESAFIOS DA REINTEGRAÇÃO FAMILIAR DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: REFLEXÕES MEDIANTE AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL Ana Valéria Matias Cardoso Solange Maria Teixeira Introdução A questão social tem, na relação capital-trabalho, a sua gênese. Suas múltiplas expressões decorrem não somete das desigualdades dessa relação, que geram pobreza, desemprego, desigualdade social, fome, mas de outras desigualdades que se agudizam na ordem do capital como as desigualdades de gênero, raça, étnica, geracional, regional, dentre outras. O enfrentamento dessas manifestações da questão social necessita da articulação de diferentes ações das políticas públicas que possam ser capazes de superar a fragmentação social e atender, de forma integral, as demandas sociais. Todavia, a exacerbação do antagonismo e contradição, oriunda do sistema neoliberal posto, amplia os desaios, dada sua repercussão na desregulamentação estatal. As expressões da questão social afetam o público infanto-juvenil e suas famílias, especialmente por conta das desigualdades sociais existentes e devido à ineiciência de proteção social dado aos seus membros. Ao longo da história, crianças e adolescentes são as vítimas que mais sofrem com os efeitos perversos do sistema capitalista, estando, as próprias, suscetível às situações de vulnerabilidade social e algumas delas à situação de risco social, sendo muitas vezes, por isso, retiradas do seio familiar. Porém, devido ao avanço do desenvolvimento do capitalismo em direção à centralização e concentração da riqueza em escala planetária, o crescente alargamento e agudização das diversas expressões da questão social que circundam o contexto sócio-histórico e cotidiano de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e extremo risco, ampliam-se as demandas por proteção social para que as mesmas possam retornar ao ambiente de origem. Contraditoriamente, com as crises econômicas e avanço das reformas neoliberais, por exemplo, as responsabilidades são divididas com o mercado, sociedade, família e indivíduos, aprofundando o processo de desregulamentação estatal. Parte-se da premissa que as situações de vulnerabilidade e risco social são expressões da questão social, portanto, são estruturais, resultantes de processos que geram desigualdades, pobrezas, violências e violações diversas de direitos. Esse entendimento já expressa nosso ponto de partida e contraposição a visões reducionistas que atribuem aos indivíduos e aos seus comportamentos a raiz das vulnerabilidades e riscos que enfrentam e estão expostos. 31 Isso nos repete a literatura sobre essas categorias. Para Fraga (2010), o êxito da reintegração familiar relaciona-se ao trabalho desenvolvido para além do envolvimento da rede de proteção primária, devendo, necessariamente, contar com a rede formal de serviços. Sob o entendimento da autora, as entidades para promover a reintegração familiar devem esboçar mecanismos para garantir a convivência familiar dos sujeitos acolhidos. Isso é de fundamental importância, porque busca levantar as particularidades, potencialidades e necessidades especíicas da criança ou do adolescente. Além do trabalho com família, visando a reinserção familiar, tendo em vista, preparar as crianças e adolescentes para o desligamento do acolhimento, por exemplo. Nessa perspectiva, o objetivo central desse artigo é averiguar quais desaios estão sendo postos para se concretizar a reintegração de crianças e adolescentes em situação de risco social no atual contexto que agudiza as expressões da questão social, analisando que os múltiplos fatores que incidem na condição de risco social constituem facetas da questão social que ocorrem diretamente sobre esses sujeitos e que requerem intervenção estatal, mediante políticas públicas de forma integrada e articulada, para garantir integralidade na atenção a demandas dos segmentos e de suas famílias. As concepções de família e sua importância para crianças e adolescentes A família é o primeiro contato social que todo ser humano possui após o seu nascimento e ela existe desde o início da civilização aos tempos modernos. Todavia, ela não é uma instituição natural, mas uma criação histórico-social e cultural, variando de sociedade para sociedade sua conceituação e suas composições. Um dos modelos considerado ideal, normal, estruturado é o que entende a família composta pelo homem como o pai provedor da casa, a mulher como a mãe e genitora do lar e os ilhos como subordinados dos mesmos. Sociologicamente, na perspectiva sistêmica, a família é deinida como um sistema social pequeno e interdependente, dentro do qual podem ser descobertos subsistemas ainda mínimos, dependendo do tamanho da família e da deinição de papéis. Esses subsistemas formam a unidade central da família que é o pai e a mãe, isto é, os chefes da família, contudo, ainda existem outras composições intrafamiliares tal como pai-ilho, mãe-ilho, pai-ilha, mãe-ilha, irmão-irmã, haja vista ser a relação de convivência, consanguinidade e ainidade a instituir a organização familiar. A naturalização dessa concepção de família, vivida tanto consensualmente no cotidiano, quanto da própria análise por meio da relexão cientíica, leva à identiicação do grupo conjugal como forma básica e primeira da base familiar, visto que a percepção de parentesco e a divisão de papéis dentro da composição familiar como algo natural cria, por muito tempo, barreiras para o seu real conceito (BRUSCHINI, 2000). 32 Para se entender sobre a concepção de família, faz-se necessário “[...] dissolver sua aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável” (BRUSCHINI, 2000, p. 50), para tanto devem ser observados o grupo conjugal, a rede de parentesco e de ainidade, a organização doméstica e comunitária, as relações de afeto duradouro, a convivência para se apreender os tipos e concepções de famílias, tendo em vista sua mutabilidade e diferenciação em vários momentos históricos. As concepções atuais de família, das ciências sociais, ampliam a forma de conceituar e caracterizar a família, mostrando-a como uma instituição contraditória e ambígua, que se move pelo afeto, solidariedade, cooperação e ajuda mútua, mas também pelas relações de poderes, de hierarquias, onde se reproduz a divisão sexual do trabalho e as desigualdades de gênero e gerações, podendo ser também lugar de negligências, violências, desrespeitos por sofrer as inluências da estrutura social de uma sociedade desigual, patriarcal, machista e sexista. Sua composição pode ser variada e os papéis sociais negociados e lexíveis. Ferrari e Kaloustian (2010, p. 12), ao enfatizarem família, airmam que, apesar das contradições e das ambiguidades: É a família que propicia os aportes afetivos e sobretudo materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes. Ela desempenha um papel decisivo na educação formal e informal, é em seu espaço que são absorvidos os valores éticos e humanitários, e onde se aprofundam os laços de solidariedade. É também em seu interior que se constroem as marcas entre as gerações e são observados valores culturais. Sob esse aspecto, pode-se inferir que é a família o elemento importante para o processo de socialização, educação e cuidado de crianças e adolescentes. Todavia, as famílias contemporâneas acumulam vulnerabilidades sociais decorrentes do precário ou nulo acesso à renda, trabalho, às políticas públicas, que se agravam mediante outras desigualdades, como as de gênero, raça, etnia e gerações, diminuição do seu tamanho, ausência de cuidadores em tempo integral, vulnerabilidade de alguns modelos no desempenho de funções de provisão e cuidado, dentre outras, além das variadas formas de violências e violações que se dão nas relações interpessoais e familiares que requerem intervenção estatal, preventiva e após o agravo das situações de risco social. Mas, independentemente do suporte que tem, a família é vista, no atual contexto de avanço das reformas neoliberais, como a principal responsável pela proteção à criança e ao adolescente e pela inserção desses sujeitos a uma determinada cultura, valores, normas e condutas. Esta é vista como o espaço privilegiado e indispensável para a garantia da sobrevivência, desenvolvimento e proteção integral dos ilhos, independente do seu formato, vulnerabilidades e das vicissitudes da convivência familiar. 33 Na realidade brasileira, podemos airmar que as famílias patriarcais foram os primeiros modelos hegemônicos que cedem lugar para as famílias nucleares, típica da ordem capitalista. O modelo nuclear tradicional, do casal heterossexual com seus ilhos, persistiu até o século XX, como o modelo hegemônico e legalmente reconhecido como legítimo e, somente após a Constituição de 1988, outros modelos são reconhecidos e o homem e a mulher passaram a ser assumidos como sujeitos em igual direito e deveres dentro do lócus familiar (BRUSCHINI, 2000). Com o aprofundamento do processo de modernização, outros tipos de composição familiar começaram a surgir na sociedade como, por exemplo, as famílias monoparentais (femininas e masculinas), as extensas, as homoafetivas, as formadas por união estável, dentre outros. Apesar dos novos tipos de famílias que surgiram na contemporaneidade, a família nuclear (com renovação do patriarcalismo nas suas relações) e conjugal moderna ainda se mostram como o modelo familiar base, típico da sociedade capitalista. Neste sentido, ao se abordar sobre família, numa perspectiva crítica, é preciso considerar o ambiente familiar como um local para o desenvolvimento de potencialidades, momento de integração na dinâmica societária na qual seus membros estão inseridos, além de ser considerado um local de proteção, cuidado, assistência. Mas a família não é um espartilho que pode se esticar mais, pedir mais, imprimir mais responsabilidades sem oferecer proteção social pública como estratégia de garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Conceituar família, numa concepção de totalidade, engloba pensá-la para além da dimensão biológica (consanguínea e de parentesco), para incluir também relações de afeto duradouro, relações fraternais e de aliança, ainidade. Neste sentido, a família não é só parte de uma vida biológica, mas é fundamento da vida social. São, também, totalidade e parte da construção de identidade dos sujeitos no lócus familiar (CARVALHO, 2014). Para Carvalho (2014, p.79), “[...] não se trata de airmar a participação da família no sentido conservador e neoliberal de rateio do custo ou desresponsabilização do Estado, mas de compreender por que o Estado não esgota a função de proteção [...]” por meio do desenvolvimento de políticas públicas, por exemplo, porque a família também exerce funções de proteção social. A família também se desenvolve para além da esfera privada e exerce uma relação com a esfera pública, sendo a esfera pública, vista na igura do Estado, que garantirá, ou deveria garantir, o mínimo necessário para sua sobrevivência e com serviços sociais (atividades de socialização, educação, proissionalização, interação e inclusão) para ocupação do tempo livre dos seus membros familiares dependentes, principalmente para prevenir que seus membros se encontrem em situações de vulnerabilidade social e essa situação se agrave a ponto de virar um risco social. 34 Por conta disso, a família é colocada como prioridade na agenda política, sendo citada como centralidade na Política Nacional de Assistência Social, por exemplo, e conigura-se como meio para o reconhecimento público da legitimidade e como espaço de ampliação de seu protagonismo (BRASIL, 2004). Em síntese, entender o escopo familiar como elemento primeiro para o desenvolvimento humano constitui-se em uma análise complexa, pois a família, enquanto forma de composição, desenvolvimento e agregação social, possuem uma dinâmica única e singular e “se manifesta como um conjunto de trajetórias individuais e que se expressam em arranjos diversiicados e em espaços e organizações peculiares” (FERRARI; KALOUSTIAN, 2010, p. 14) que precisam ser protegidas, apoiadas, cuidadas pelas políticas públicas. Nesse sentido, ao abordar a família como elemento primordial de desenvolvimento de crianças e adolescentes, remete, necessariamente, a entender o papel do poder público na garantia desse direito fundamental e, principalmente, compreender que as situações de violações de direitos, que caracterizam os riscos sociais, não decorrem apenas da fragilidade dos vínculos familiares, mas de múltiplos fatores de ordem estrutural, subjetivo e cultural que determinam comportamentos e atitudes dos membros familiares. E por afetar um coletivo de indivíduos que vivem em territórios de vulnerabilidade são, não, problemas individuais, de incapacidade das famílias, mas expressões da questão social. A questão social e o contexto histórico de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social Ao se pensar sobre questão social, faz-se necessário entendê-la como um produto indissociável da sociabilidade de classes (burgueses e trabalhadores) na sociedade capitalista, em seus antagonismos e contradições, de modo que as desigualdades produzidas pela relação capital-trabalho contribuem para o desenvolvimento de várias manifestações dessa questão social. Como mostra Rosanvallon (1998), o surgimento da questão social é proveniente das disfunções do progresso das sociedades industriais, ou seja, do modo imanente de funcionamento do sistema capitalista que gera desigualdades sociais. E, considera que as mudanças societárias contemporâneas são decorrentes da crise capitalista e do novo modelo de acumulação, mas que não signiica superação da sociedade capitalista; que não se vive uma sociedade pós-moderna, pós-industrial, mas sim o aprofundamento do processo instituído com a modernidade, leva-nos a pensar que não existe, na contemporaneidade, uma nova questão social, pois a origem continua a mesma. Todavia, há novas expressões ou manifestações da velha questão social. Desse modo, a base de surgimento da questão social e a explicação da 35 sua existência encontram-se intrínsecas ao modo coletivo de produção e de apropriação particular dos frutos do trabalho, que tem implicado em concentração e centralização da riqueza em poucas mãos, rebaixamento das condições de reprodução do trabalhador, formação de exército de excedentes e de populações sem valor para o capital. Esta é a origem de uma das primeiras expressões da questão social: o pauperismo. Observa-se, assim, que o pauperismo, como uma expressão da questão social, por exemplo, é um dos resultados da forma desigual de acumulação do capital, portanto, decorrente da relação capital/trabalho (IAMAMOTO, 2013). Castel (1998) também analisa a questão social tendo como ponto de partida o trabalho e traz a questão da crise da condição salarial para as suas relexões. Nesse novo contexto, posto com a crise do capital nos anos 1970, além das disparidades salariais, precarização do trabalho, contratos de trabalhos temporários, subcontratação, terceirizações, tem-se, também, o desemprego estrutural, que se dá pelo fechamento de postos de trabalho, pelo novo peril de trabalhador exigido (qualiicado e polivalente), constituindo-se em situações de exclusão social, da formação das massas de sobrantes, entre outros elementos que caracterizam as diversas manifestações da questão social na contemporaneidade. Segundo Castel (1998), essas situações geram desiliação social e desintegração porque o trabalho não consegue ser alvo de integração e segurança social. Esse novo quadro se generaliza e atinge, mais duramente, os trabalhadores pobres e suas famílias, em especial, os que têm baixa escolaridade, trabalho informal e precário acesso às políticas públicas e se constitui o núcleo duro das vulnerabilidades sociais das famílias e que, consequentemente, afetam crianças e adolescentes. Como aponta Pastorini (2004), pensar o conceito de questão social é entendê-la como o conjunto de problemáticas sociais, políticas, econômicas que condensam a luta da classe trabalhadora e seu surgimento na sociedade capitalista, desse modo, o conceito de questão social se assenta, também, no cotidiano da vida social, na contradição proletariado e burguesia, portanto, fruto das consequências do sistema econômico capitalista. Entretanto, é interessante destacar que as múltiplas expressões da questão social não decorrem unilateralmente da relação capital/trabalho, entendendo que dessa relação surgem outras manifestações sociais ou que têm existência anterior e que se agudizam na ordem desigual do capitalismo, como as desigualdades de gênero, raça, etnia, gerações, regionais, dentre outras. Como destaca Ianni (1992 apud IAMAMOTO, 2013, p. 330): A “questão social” condensa múltiplas desigualdades mediadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais, relações com o meio ambiente e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens 36 da civilização. Dispondo de uma dimensão estrutural – enraizada na produção social contraposta à apropriação privada dos frutos do trabalho, a “questão social” atinge visceralmente a vida dos sujeitos numa luta aberta e surda pela cidadania. Partindo desse entendimento sobre questão social, as situações de vulnerabilidade social se ampliam para incluir as várias desigualdades econômicas, sociais, de gênero, geração, dentre outras que afetam de forma desigual as famílias brasileiras, sendo as famílias pobres e com crianças e adolescentes as que acumulam e sofrem as consequências dessas inúmeras desigualdades, em especial as famílias monoparentais femininas, de mulheres negras, velhas e nordestinas. Essas desigualdades sociais e inúmeros problemas sociais que geram e atingem as relações interpessoais e familiares, inluenciam sua dinâmica, sociabilidade e condições de existência e convívio, estando na origem das situações de risco social, como as violências domésticas, negligências, abandono e outras violações, motivos que levam a ruptura dos laços familiares. Destaca-se, ainda, traços culturais e subjetivos gerados por essa ordem capitalista que reatualizou e difundiu os traços patriarcais, sexistas e machista na educação informal e formal, que reproduz relações assimétricas, desiguais, hierárquicas, autoritárias, desrespeitosas com as mulheres, crianças, idosos e outras minorias. Embora esses problemas sociais (expressões da questão social) apareçam como individuais, na essência, são determinados por diversos fatores, desde os estruturais aos subjetivos, culturais e sociais, como pobreza, ausência ou insuiciência de renda e do acesso aos bens e serviços produzidos socialmente, trabalho infantil; até os interpessoais tais como: abusos, negligências, abandonos, violências, seja intrafamiliar, no espaço doméstico, seja as que ocorrem fora do domicílio. Para entender a trajetória histórica que permeia a implantação do processo de proteção social à criança e adolescente, são necessárias elucidações sobre risco social. Conforme coloca Janczura (2012), esse é um processo oriundo dos variados contextos histórico-sociais e da maneira como se expressam nas várias conjunturas, mas que quase sempre implicam em ruptura dos laços familiares. De acordo com Boswel (1988 apud RIZZINI, 2006), a história da institucionalização de crianças por conta da situação de precariedade na qual se encontrava possui um grande caminho histórico. Esse percurso histórico data do século XII, em Roma, onde um bispo, ao presenciar com frequência bebês na rede dos pescadores, determina a construção de casas de institucionalização para crianças e adolescentes órfãos ou abandonados. Rizzini (2006, p. 31) aponta que, no Brasil, a prática de conduzir crianças e adolescentes pobres “[...] para os chamados ‘internatos de menores’ ganha 37 força a partir do inal do século XIX. A fácil retirada da criança e de sua família para essas instituições criou uma verdadeira cultura de institucionalização”. As origens do assistencialismo destinado à criança e ao adolescente no Brasil surgem das iniciativas das organizações da sociedade civil de cunho religioso, por meio das Casas de Misericórdia e a Roda dos Expostos, esta última voltada para proteger os bebês abandonados. De acordo com Marcílio (2006), na trajetória histórica da atenção às crianças em situação de risco social, encontramos a Roda dos Expostos (proteção oferecida pelas instituições religiosas) utilizada por longo período como estratégia de sobrevivência para as camadas mais vulneráveis, haja vista as mesmas encontrarem-se em situação de pobreza, exclusão, sem infraestrutura básica, em condições físicas insalubres, entre outros, logo, sem condições materiais e econômicas para garantir proteção às crianças. A intervenção direta do Estado começa com o Código de Menores de 1927, sob a Lei 6.697/1927, voltado às crianças e adolescentes menores de 18 anos em situação irregular, considerados delinquentes pela situação de abandono, pobreza, sem habitação certa, sem pais ou guardiões ou que praticassem atos contrários à moral e aos bons costumes. O Código de Menores de 1927 se funda na doutrina do direito penal do menor e não nos direitos destes (MARCÍLIO, 2006). Em 1979, o Código de Menores é atualizado, na perspectiva da doutrina da situação irregular, ou seja, para as crianças e os adolescentes, denominado de menores, que perambulassem pelas ruas, cometessem infrações, não tivessem pais ou responsáveis. Assim, ainda que com objetivo ínimo e coercitivo, pela via da institucionalização, tanto de crianças, quanto adolescentes passaram a ser vistos como sujeitos que necessitavam de atenção e proteção. Observa-se que essa legislação foi um elemento jurisdicional para se admitir a responsabilidade sob crianças e adolescentes (MARCÍLIO, 2006). O Código de 1979 tinha nas ações severas e repressivas às crianças e aos adolescentes considerados em situação irregular, uma visão de dominação a esse segmento, pois como os motivos que os levavam à condição de vulneráveis e de risco eram interpretados como decorrentes exclusivos da situação comportamental, esses signiicavam um perigo à sociedade e, por isso, deveriam ser recolhidos e disciplinados. Por outro lado, a visão de dominação a esse segmento não era deixada visível à sociedade, o que se mostrava era uma visão de preocupação com a proteção e segurança dessas crianças e adolescentes, sendo justiicada pela necessidade de sua inserção em uma instituição asilar (LIMA; VERONESE, 2012). Essa situação é alterada com a Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Criança e Adolescente, regidos pela doutrina da proteção integral, pela condição peculiar de ser em desenvolvimento e de sujeitos de direitos. Posteriormente, com o Plano Nacional de Promoção e Defesa da Convivência Familiar e Comunitária e reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o 38 direito à convivência familiar e comunitária tornou-se um direito fundamental e passou a reordenar os serviços de acolhimento familiar e institucional. Conforme cita Faleiros (2005), a promulgação do ECA possibilitou, no âmbito do Executivo, que vários programas, serviços, legislações, entre outros, fossem implementados com o sentido de aplicar medidas protetivas e educativas. Assim, a partir da década de 1990, avançam as legislações que dão atenção especial ao direito da criança e do adolescente, baseados na doutrina da proteção integral e não mais em vias discriminatórias, punitivas e higienistas, historicamente usadas para esse público, denominado de menores. Segundo Plano Nacional de Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária - PNCFC (2006) O reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos é resultado de um processo historicamente construído, marcado por transformações ocorridas no Estado, na sociedade e na família. Como já expresso anteriormente no Marco Legal, do ponto de vista doutrinário, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária incorpora, na sua plenitude, a “doutrina da proteção integral”, que constitui a base da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2006, p. 25). Haja vista o exposto, considera-se a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, como indivíduos que necessitam ser protegidos em sua integralidade, assim como há a necessidade de se fortalecer os vínculos familiares de maneira a mantê-los em família, com afeto, proteção e cuidado. Conforme Trassi (2006 apud COSTA, 2013), o ECA avança no que diz respeito a garantia de direitos e minimização das condições de vulnerabilidade e de risco social, marcados por profundas transformações políticas, econômicas, sociais e culturais que motivaram os impactos sociais junto ao público infanto-juvenil. Ainda com ações fragmentadas, o Estado começa a assumir responsabilidades na área da infância e juventude. Costa (2013) destaca que as legislações, programas e serviços derivados do ECA ainda são marcados por continuidades e descontinuidades em relação à proteção social e as interpretações que fazem das condições de vida desses sujeitos. Desse modo, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente traga a condição de proteção integral em oposição à situação irregular anteriormente vivenciada por esses sujeitos, percebe-se que ainda não conseguiu, deinitivamente, romper com o projeto de sociedade e de políticas públicas focalizadas e fragmentadas comuns, também, nas antigas legislações. Como menciona o PNCFC (BRASIL, 2006), um dos pontos de fundamental importância para se entender o fortalecimento e o resgate dos vín39 culos familiares, em especial das crianças e adolescentes em situação de risco social, estão nas várias dinâmicas cotidianas que perpassam a vida desses sujeitos, ou seja, é no entendimento das diversas expressões da questão social que afetam cada família em sua particularidade, vitimada por situações de diiculdades, mas que podem exercer as funções de proteção social se potencializadas pelas equipes interdisciplinares. Todavia, acrescenta-se que, para cumprir com essas responsabilidades, a família precisa ser protegida, encarada como sujeito de direitos, direito a ter suas demandas e necessidades atendidas pelo Estado. Considerando que a família é, também, perpassada por contradições, sendo lugar de proteção, mas também de violações e violências, em casos de risco social e violação de direitos pela família, as crianças e adolescentes são colocados em instituições de acolhimento, para que as situações de vulnerabilidade social em que se encontram sejam superadas e, sobretudo, mantidos os vínculos familiares, segundo o princípio norteador da provisoriedade e excepcionalidade do acolhimento, o que permite o retorno das crianças e adolescentes ao lócus de origem ou a uma família extensa (rede de parentesco e compadrio) ou direcionada a adoção, se não houver possibilidade de reintegração. Contudo, as redes formadas por organizações não-governamentais, especialmente, muitas delas com arraigada cultura religiosa ou de benemerência, ilantropia, ajuda, boa vontade, ainda são pouco afeitas à lógica do direito e do trabalho técnico e sistemático com as famílias de origem e extensa e contribuem para o atual quadro de precarização das políticas públicas e insuiciência em atender as demandas com resultados efetivos na vida das pessoas, o que gera um desaio ao processo de reintegração familiar de crianças e adolescentes ao seu ambiente de origem. Contraditoriamente, o avanço normativo passa a conviver com o avanço das reformas neoliberais das últimas décadas, com orçamentos restritivo, corte nos gastos sociais, individualização das demandas e responsabilização familiar pelos problemas que seus membros sofrem. Esses sujeitos muitas vezes são culpabilizados pela situação em que se encontram e não se analisa, nem intervém, sobre o contexto social ao qual estão inseridos. Desaios à reintegração familiar de crianças e adolescentes sob a perspectiva das múltiplas expressões da questão social É, inicialmente, na família que crianças e adolescentes absorvem valores éticos, humanitários, educacionais e culturais. É na família que se estabelece o primeiro vínculo afetivo de crianças e adolescentes com os demais membros e se tem vínculos de pertencimento e identidade. A família também exerce funções de proteção social, educação, socialização desses sujeitos, devendo ser esta, também amparada por legislações e políticas sociais que deem suporte para tal cumprimento de funções de reprodução social. 40 Portanto, o direito à convivência familiar e comunitária é um direito social a ser garantido pelas políticas públicas, daí a ênfase nos vínculos familiares, no seu fortalecimento pelos serviços de assistência social. Todavia, a centralidade deve ser nas condições de existências, especialmente, na sua alteração, que é a base material das expressões das desigualdades sociais, associadas ao fortalecimento dos vínculos. Para o fortalecimento de tal convívio familiar exige-se uma reconstrução cotidiana das relações familiares, novos projetos de vida familiar fundado na cultura dos direitos e da não violação desses. Porém, as famílias pobres encontram grandes diiculdades, diante do contexto socioeconômico atual, na qual enfrentam diversas situações de vulnerabilidade social, sendo muitas vezes a criança e/ou adolescente retirado do meio familiar de origem e colocado em situação de abrigamento, a im de garantir que os direitos protetivos direcionados a esse público-alvo seja efetivado. As famílias tornam-se fragilizadas pelas problemáticas econômicas, sociais, culturais, que se agravam conforme as diferenças e desigualdades de classe, de gênero, de raça, dentre outros fatores. Portanto, as formas de enfrentamento devem incluir os membros familiares na rede de serviços que modiique essa realidade em que vivem, concomitante, o trabalho socioeducativo com a família para reconstrução de novas relações interpessoais fundada na cultura de direitos e respeito. Essas formas de enfrentamento, certamente, não resolverão os problemas, mas podem administrá-lo e reduzi-lo, porque a origem dessas refrações está no modo de funcionamento do capitalismo. Como aponta Netto (2001, p. 45): O desenvolvimento capitalista produz, compulsoriamente, a “questão social” – diferentes estágios capitalistas produzem diferentes manifestações da “questão social”; esta não é uma sequela adjetiva e transitória do regime do capital; sua existência e suas manifestações são indissociáveis da dinâmica especíica do capital tornado potência social dominante. A “questão social” é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. As famílias violadoras também são vítimas de um sistema que gera desigualdades sociais e as exclui do mundo produtivo (mercado formal) e do acesso aos bens e serviços criados socialmente. A cultura de violação se propaga e é transmitida entre as gerações e no ciclo de reprodução de muitas famílias. Mas, sem alterar a realidade social em que vivem, mediante acesso às políticas públicas, o trabalho socioeducativo é inócuo, porque visa apenas mudar comportamentos e condutas. Baseado nisso, faz-se necessário compreender que a reintegração familiar é parte da garantia do direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, em especial, das acolhidas em abrigos institucionais, direito de 41 retornarem ao convívio familiar de origem, quando possível e viável. Porém, o que se observa é que muitas famílias, fragilizadas pela incidência de várias expressões da questão social, não tem sua realidade alterada, não são incluídas em serviços capazes de oferecer melhorias sustentáveis nas condições de vida. Veriica-se, portanto, a necessidade de ações que tenham como objetivo superar as situações de vulnerabilidade e risco social, atingindo suas causas e não apenas sobre as consequências fenomênicas e imediatas. Apenas fortalecer vínculos, responsabilizar as famílias, ter delas o compromisso de não reincidir nas violações é insuiciente no enfrentamento das situações de risco social Entende-se que, a partir da construção de uma ordem societária mais igualitária, democrática e da instituição de uma cultura de igualdade entre gêneros e gerações, superação do patriarcalismo, do machismo e do sexismo, é possível a superação das desigualdades sociais e da retirada de crianças e adolescentes de suas famílias. Todavia, na ordem capitalista, são possíveis ações públicas de inserção dos membros familiares na rede de serviços que promovam a superação das situações de risco que motivam a retirada dessas crianças do seu lar. Toma-se como desaio, tal como pontua Pereira e Pereira (2014), superar a persistência que fomenta a desigualdade social, as injustiças sociais, o individualismo, fragmentação de classes sociais e de grupos, a restrição do direito e cidadania, estas expressões da questão social oriundas do sistema vivenciado. A família, crianças e adolescentes, ao serem colocados como elemento central nas políticas públicas e prioridade governamental, também desaiam o poder estatal a implementar e executar uma política social emancipatória. Nessa perspectiva, a política social deve ser desmercadorizante e desfamiliarizante, tornando os indivíduos menos dependentes do mercado e dos cuidados familiares. Percebe-se que a família passa a ser prioridade governamental e esse iltro da família para acesso aos serviços é uma tentativa de romper com as fragmentações e atingir a totalidade. Porém, ainda é um desaio superar as características fragmentadas, segmentadas, focalizadas como sinônimo de seletividade nas políticas públicas, o que faz com que esses sujeitos não tenham concretizado a possibilidade de retorno para o seio familiar, pela diiculdade de acesso ao mínimo de renda, logo, do acesso ao benefício monetário e serviços de inclusão social diversos, conforme as necessidades apresentadas. Isso ocorre porque a descentralização, privatização e focalização, implementados no Brasil, têm forte inluência das reformas neoliberais dos anos 1990 (DRAIBE, 1993). O resultado é um avanço da legislação social, reforçando a função reguladora do Estado, mas em detrimento das funções intervencionista, de ofertante de serviços sociais. Diante do atual contexto neoliberal, ao Estado cabe o desaio de efe42 tivar, de fato, a proteção e reprodução social das famílias. Mas, frente à nova lógica de desregulamentação do Estado e divisão de responsabilidades com a sociedade civil, mercado e famílias torna-se mais difícil superar esse desaio. Superar a implementação de serviços e programas seletivistas em parceria com as organizações não governamentais e caminhar para a construção de políticas que deem subsídios, apoio e suporte às famílias para que as mesmas possam ter garantido o bem-estar social. As ações dirigidas às famílias violadoras e vítimas das situações de risco social devem garantir inclusão social na rede de serviços das várias políticas sociais e trabalho socioeducativo, de modo a garantir a reintegração familiar de crianças e adolescentes que venham a superar as condições de vulnerabilidade social mais agravante. Os desaios aqui postos situam a diiculdade crescente de materialização de ações efetivas de reintegração familiar, porque o processo de acumulação capitalista, na sua atual fase, globalizado, inanceirizado e neoliberal inluencia opostamente a execução de tal medida, na medida em que precariza as políticas públicas, desregulamenta o Estado, repassa as responsabilidades para a sociedade civil, famílias e indivíduos. Logo, a superação da histórica problemática que circunda o processo de reintegração familiar abrange, também, o enfrentamento das contradições sociais existentes nessa realidade. Tais problemáticas sociais são complexas e dependem de esforços que superem as consequências trazidas pelas desigualdades sociais geradas pelo sistema capitalista e que contribuem, também, para a precarização e deterioração das relações afetivas e parentais. Observa-se que a resposta dada pelo poder público à família, sob a forma de políticas públicas, também deve representar uma resposta no intuito de realmente sanar as necessidades sociais das famílias. A centralidade na família deve ser no sentido de tomá-la como sujeito de direitos, direito a proteção social, minimizando suas funções de reprodução social e das expressões da questão social, compartilhadas com as políticas públicas, como direito de cidadania, para que o principal seja mantido, a convivência familiar e comunitária. Conclusão Conclui-se que o processo de acumulação capitalista gera problemas e necessidades sociais que se ampliam em momentos de crises. Essa situação requer maior intervenção do Estado, mediante políticas públicas, como resposta às necessidades que decorrem dos processos de produção e acumulação do capital e das suas consequências na sociedade, famílias e indivíduos. Todavia, o aumento das demandas sob o contexto de ajustes neoliberais não tem signiicado proteção social estatal, mas sim a divisão desta com a sociedade civil, família, comunidade e mercado, icando o Estado com as ações aos estritamente reduzidas e dirigidas aos mais pobres. Desse modo, as contradições 43 que são produzidas pelo sistema capitalista na contemporaneidade desencadeiam e agravam diversas problemáticas sociais, incluindo as situações de risco social, ao tempo que diicultam os processos de reintegração familiar. Contudo, para a criança e o adolescente serem protegidos, sendo-lhes garantidos e aiançados todos os cuidados que lhes são de direito, incluindo o direito à convivência familiar e comunitária, há a necessidade de que família tenha condições de sustentabilidade para tal, de modo que ela consiga cumprir com suas funções e mantenha fortes seus laços. Para tanto, faz-se necessário que as famílias tenham acesso à proteção social e que as problemáticas e as expressões da questão social, que perpassam o cotidiano das mesmas, também sejam enfrentados e superadas. As condições de vulnerabilidade social e de risco, ainda que temporárias, são expressões da questão social que precisam ser enfrentadas pelo poder público de forma a romper com o ciclo da pobreza, das violências e violações, principais causas da perda e da fragmentação familiar. Veriica-se a necessidade de amenizar as situações de vulnerabilidade e risco social, atingindo suas causas e não apenas sob as consequências fenomênicas e imediatas. Apenas fortalecer vínculos, responsabilizar as famílias, ter delas o compromisso de não reincidir nas violações é insuiciente no enfrentamento das situações de risco social. Ao se analisar o modelo de políticas sociais contemporâneas, em especial os serviços destinados a crianças e adolescentes em situação de risco social, vislumbra-se, em suas normativas, a ideia de proteção social a ser garantida por um conjunto de atores sociais, instituições, políticas setoriais, cuja inalidade é a garantia de direitos desses sujeitos. Assim, satisfeitas as suas necessidades e superados os fatores que na maioria das vezes determinam a ocorrência de situações de violação de direitos, pode-se garantir a reinserção desses sujeitos na sua família de origem. Mas, o avanço das reformas neoliberais, corte dos gastos sociais, orçamentos restritivos precarizam as políticas sociais, que associada à desregulamentação do Estado, principalmente da função de ofertante de serviços sociais, amplia os desaios do trabalho social com essas famílias e diicultam o retorno das crianças e adolescentes para suas famílias. Referências BRASIL. 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QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: REFLEXÕES PARA ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO Davi Magalhães Carvalho João Paulo Sales Macedo Introdução Este capítulo parte do campo de debates sobre o processo de constituição de políticas públicas sociais no Brasil, com foco no modelo da política de assistência social brasileira e a presença da Psicologia nesse contexto. Tal especiicidade se justiica pela importância que esse campo de discussões – e também de trabalho – vem ganhando na Psicologia nos últimos anos, haja vista a crescente inserção de proissionais psicólogos nesse campo e a necessária problematização das questões que inluenciam a atuação da proissão. Começamos por destacar que as políticas sociais – e, obviamente, a política de assistência social – são parte do processo de organização estatal dos valores que envolvem a realidade social brasileira ao longo do tempo. Todavia, conforme destaca Yamamoto e Oliveira (2010) qualquer política social concebida nos marcos do modo de produção capitalista se conigura como estratégia estatal para a resolução de problemas sociais particularizados, compondo um campo de oposição e constante contradição de interesses. Segundo esses mesmos autores, um tratamento adequado das políticas sociais nessa realidade demanda “[...] a consideração das chamadas questões de fundo, ou seja, os fundamentos na esfera do Estado para a deinição das políticas públicas” (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010, p. 10). É justamente considerando esse princípio, que entra em cena a face constitutiva dos principais problemas a que se destinam as políticas sociais: a chamada questão social. De acordo com Netto (2001), a expressão “questão social” surge para responder a um evidente fenômeno social da Europa Ocidental, quando esta experimenta os impactos da primeira onda industrializante, disparada na Inglaterra nas últimas décadas do século XVIII. Segundo o autor, trata-se do fenômeno do pauperismo, processo caracterizado por uma pauperização inédita, absoluta e massiva da classe trabalhadora daquele período, que não se desenvolve pela escassez da produção e das forças produtivas, mas pelo aumento da capacidade da produção de riquezas (NETTO, 2001; SANTOS, 2012). Na concepção da maioria dos autores de tradição marxista a questão social é compreendida a partir do processo de industrialização capitalista, tendo em vista a desigualdade social resultante do processo de acumulação e reprodução ampliada do capital através da exploração nas relações de trabalho e a reação da classe trabalhadora a essa condição. Baseado nesse princípio, a 47 questão social pode ser considerada como sendo “[...] as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade exigindo o seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado” (IAMAMOTO; CARVALHO, 1995, p. 77). Sua gênese está pautada no caráter coletivo da produção, no que isso se contrapõe à apropriação privada da atividade humana na forma do trabalho e do usufruto da totalidade de seus resultados pela classe trabalhadora (IAMAMOTO, 2001). Nesse sentido, a questão social se conigura como um dos traços constitutivos do capitalismo, produzida compulsoriamente pelo desenvolvimento desse modo de produção (NETTO, 2001) e enraizada no processo de exploração resultante da relação capital-trabalho. Tal exploração, fundamentada na lei geral da acumulação do capital, é condição essencial para a acumulação/reprodução do capital e tem como consequência geral a pobreza que atinge a classe trabalhadora em favor do acúmulo de riquezas para classe burguesa. Dessa forma, a questão social não pode ser compreendida apenas como uma sequela adjetiva ou transitória do regime do capital, pelo contrário, “[...] sua existência e manifestações são indissociáveis da dinâmica especíica do capital, tornando potência social dominante” (NETTO, 2001, p. 45). Ou de outra forma, enquanto “[...] parte constitutiva das relações sociais capitalistas [...]”, sendo “[...] apreendida como expressão ampliada das desigualdades sociais: o anverso do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social” (IAMAMOTO, 2001, p. 10). No entanto, a questão social toma diferentes formatos e expressões, resultantes das diversas mediações e implicações dos componentes históricos, políticos e culturais próprios de cada contexto em que o capitalismo se desenvolve. Assim, no cotidiano da vida, a questão social expressa a contradição capital/trabalho por meio de desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais que ganham intensidade e contornos diferenciados a depender dos elementos que constituem cada sociedade e o desenvolvimento desta, cada forma de governo assumida, o nível de organização política da população, bem como a resposta do Estado às suas manifestações (TAVARES, 2007). No estágio do capitalismo monopolista, uma das respostas do Estado é a intervenção contínua e sistemática às expressões da questão social, elegendo políticas sociais como estratégias de preservação e controle da força de trabalho – ocupada e excedente – e regulando o patamar mínimo de aquisição para o consumo (COELHO, 2013). Assim, a depender de determinados desdobramentos políticos, históricos e econômicos, principalmente a capacidade de organização política da classe trabalhadora, o Estado vem assumindo ao longo do tempo, mesmo de maneira parcial e fragmentada, algumas reivindicações da classe trabalhadora. Contudo, esse processo não se deu de forma pacíica, nem muito menos natural ou espontânea. Pelo contrário, o aprofundamento dos quadros de pobreza da classe trabalhadora após o processo de Revolução Industrial ocorrida 48 na Europa entre o século XVIII e meados do século XIX, e a organização desta classe em favor de suas necessidades foram determinantes para que o Estado (burguês) passasse a considerar na sua agenda algumas dessas respostas mais sistemáticas às reivindicações dos trabalhadores e suas condições de vida (PIANA, 2009; BEHRING; BOSCHETTI, 2007). Entretanto, o Estado – com a sua estrutura burguesa – somente incorpora essa posição por levar em consideração o caráter ameaçador da organização classista que poderia por em risco a harmonia social funcional à burguesia e ao fornecimento da força de trabalho para o capital. Essas respostas do Estado burguês em torno das expressões da questão social não se estendem a todas as reivindicações postas em questão, mas somente àquelas que são convenientes ao grupo dirigente no momento (VIEIRA, 1997; BEHRING; BOSCHETTI, 2007). Ou seja, o Estado opera essas respostas às manifestações sociais sob a lógica da fragmentação da questão social, providenciando ações estratégicas e pontuais apenas nas suas expressões, sem atingir os traços da sua estrutura. Por conta disso, observamos até hoje políticas estatais, ações e programas sociais cada vez mais especíicos e focados em questões pontuais do campo das necessidades humanas, quase sempre desmembradas do contexto macropolítico que as compõem. Dentro desse complexo e contraditório processo de resposta às expressões da questão social, destacamos nesse trabalho as ações de assistência social. Sobre isso, ao considerarmos o processo de exploração da força de trabalho liderada pelo grande capital através das suas estratégias de desenvolvimento altamente concentradoras de renda e capital, temos como consequência direta a queda do padrão de vida dos assalariados que, segundo Iamamoto (2013), se expressa em fatores como o agravamento da desnutrição, de doenças infecciosas, no aumento das taxas de mortalidade infantil ou dos acidentes de trabalho, convergindo para a ampliação da miséria absoluta e relativa de grande parcela da população trabalhadora. Na arena política, uma das importantes estratégias do Estado burguês é a progressiva desarticulação dos organismos político-reivindicatórios da classe trabalhadora, aliada à manutenção de uma política salarial comprimida. Assim, de posse de uma classe que produz e, ao mesmo tempo, politicamente fragilizada, o Estado opera através da conhecida articulação repressão-assistência como condição de preservação da harmonia social. Ou seja, [...] como substitutivo do esvaziamento dos canais de participação política dos trabalhadores, são intensiicados os programas de cunho assistencial, centralizados e regulados pelo Estado e subordinados às diretrizes políticas de garantia da estabilidade social e de reforço à expansão capitalista (IAMAMOTO, 2013, p. 96). 49 Assim, com objetivos claramente supericiais e de consenso, esse campo de ação do Estado e da sociedade volta-se diretamente para as expressões mais visíveis da questão social na vida cotidiana e, portanto, atua sobre as consequências mais diretas do pauperismo na dinâmica da vida social ou questões atravessadas por esse fenômeno na atualidade, tais como vulnerabilidades socioeconômicas (fome, pobreza, desemprego, trabalho infantil), violência (inclusive abuso e exploração sexual, violência ou violação de direitos contra crianças, idosos, deicientes e mulheres), a consequente fragilização de vínculos familiares e comunitários, dentre outros. Dentro dessa fragmentação e considerando a complexidade das situações em que atuam, as políticas de assistência social carregam fortes desaios para a ampliação de seus efeitos, principalmente por conta das limitações impostas pelo próprio sistema político que as organizam. Considerando, pois, esse processo contraditório de iniciativa do Estado para responder aos efeitos e às expressões da questão social na sociedade contemporânea, este ensaio se desenvolve no caminho do debate sobre o atual contexto da política de assistência social no Brasil e a atuação da Psicologia enquanto proissão inserida no núcleo dessa política. Em tempos de fortalecimento da lógica neoliberal, entendemos que os atravessamentos, tensões e contradições que constituem as políticas sociais e a política de assistência social resultam em contextos de trabalho cada vez mais desaiadores para prática proissional, transferindo para seus proissionais uma dinâmica de enfrentamentos diários e constantes na busca por transformação social. Desenhado nessa perspectiva, temos como objetivo possibilitar relexões sobre a atuação dos psicólogos na política de assistência social a partir dos movimentos e determinantes que constituem esse campo de ação do Estado na realidade brasileira, a partir de um levantamento bibliográico sobre a temática. Para tanto, faremos uma breve relexão sobre os componentes históricos que resultaram em ações de políticas sociais no Brasil e, em especíico no campo da assistência social para, em seguida, discutirmos os movimentos da Psicologia e da prática proissional do psicólogo nesse contexto. Questão Social e intervenção do Estado brasileiro: o caminho do SUAS Inluenciada por diversos fatores da nossa própria formação social desde o período colonial e a consequente divisão de classes advinda dessa condição, a questão social brasileira guarda na sua gênese características que, ora se aproximam, ora se distanciam da realidade de outros países que providenciaram políticas de resposta às suas expressões. Dentro de um processo de industrialização considerado tardio – se comparado com outros países capitalistas – as ações dessa natureza surgem no Brasil num cenário controverso de transformações econômicas internas e um momento de crise do capital a nível mundial, mais precisamente nas primeiras décadas do século XX. Internamente, o quadro geral econô50 mico-social nesse momento era marcado pela transição da mão-de-obra escrava para a mão-de-obra assalariada (CERQUEIRA FILHO, 1982). Entre 1930 e 1945 o governo Getúlio Vargas adota uma série de medidas econômicas e realiza inovações institucionais importantes, objetivando reformular a dependência estrutural que caracterizava o subsistema econômico brasileiro na época (IANNI, 1986). No campo econômico, tais transformações coincidem com um reposicionamento da produção da riqueza nacional, que deixa de ser essencialmente agrícola e passa a ser também industrial, fato que desencadeia uma série de mudanças não somente econômicas, mas também sociais, culturais, demográicas, dentre outras (CARDOSO JÚNIOR; JACCOUD, 2005). Frente a essas mudanças, icou cada vez mais explícita a necessidade de uma nova dinâmica social no país, impulsionada pelo nítido aparecimento das expressões da questão social advindas das transformações socioeconômicas, mas também como fruto da pressão das lutas sociais que agregam e adensam suas reivindicações, trazendo à cena pública os problemas sociais e transformando-os em demandas políticas com vistas à resposta do Estado (TEIXEIRA, 2007). Com isso, algumas ações de proteção social começam a ser implementadas pelo Estado brasileiro. Acontece que essas políticas sociais que surgem nesse período voltam-se exclusivamente para a classe trabalhadora (DRAIBE, 1990), ordenada diretamente pelo mercado, no sentido de garantir uma relativa proteção social a trabalhadores e seus familiares de certos riscos coletivos produzidos pelo próprio sistema econômico de produção. Em outras palavras, estamos falando de uma iniciativa estatal representada por um grande esforço de regulamentação do mundo do trabalho – exclusivamente o trabalho assalariado, voltado para os participantes diretos do processo produtivo que, eventualmente, sofressem alguma impossibilidade de exercer a sua condição de operário (CARDOSO JÚNIOR; JACCOUD, 2005). Por outro lado, aqueles que não participavam diretamente do processo de produção, ou que participassem apenas através de outros contratos à margem da regulação estatal, não eram alcançados pela tal proteção. A estes – a maioria da população brasileira – sobrava o duro desaio de inserir-se na lógica vigente do mercado para ter acesso aos benefícios do “progresso”. Conigurada assim, de maneira contributiva e focada apenas na classe que produzia, a provisão estatal aqui nesse período se revela incompleta, insatisfatória e basicamente instrumento mediador entre o mercado e as necessidades mínimas dos trabalhadores (COHN, 2000; TEIXEIRA, 2007; OLIVEIRA, 2000). Fora do projeto político/econômico de bem-estar adotado, a proteção social aos grupos populacionais não alcançados pelo trabalho assalariado acontece sob a lógica da ilantropia, apenas com apoio estatal na forma de alguns inanciamentos públicos a setores privados voltados para caridade e 51 solidariedade, sobre os quais atuavam ações de regulação do Estado, de uma forma que não se airmava a responsabilidade pública pela questão social. Dentro dessa lógica temos na década de 1930, durante o governo Vargas, a criação da Legião Brasileira da Assistência (LBA), a expansão das Santas Casas de Misericórdia, o surgimento do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), bem como organizações de setores hegemônicos burgueses ligados à Igreja Católica com o objetivo de “recristianização” da sociedade brasileira através de assistência aos mais pobres, cumprindo assim um dever moral, espiritual e de manutenção da ordem e do progresso, necessários à classe burguesa (CARDOSO JÚNIOR; JACCOUD, 2005; TEIXEIRA, 2007). Dessa forma observamos que, no Brasil, a emergência de políticas sociais para a maioria da população que necessitava, ocorreu por meio de ações e instituições de caráter não-estatal, pautados na caridade, solidariedade e no assistencialismo. Por conta disso, não nos surpreende que os resultados dessas ações fossem marcados pela baixa eiciência e pouco impacto social (DRAIBE, 1990; COSTA, 2006; COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2010). O atravessamento de interesses, sobretudo aqueles econômicos e de mercado, impediram que as propostas de políticas sociais interferissem de maneira signiicativa no cenário de desigualdade e pobreza que caracterizava a estrutura socioeconômica brasileira. No campo especíico da Assistência Social, recorte desse trabalho, testemunhamos situações ainda mais complexas. Historicamente baseada na matriz do favor, do clientelismo e da caridade, esse campo de práticas conigurou-se tradicionalmente num padrão arcaico de relações, geralmente utilizadas como moeda de troca entre os setores dominantes e a população que necessitava. Esta área de intervenção do Estado caracterizou-se por um longo período na história como uma não política, renegada como secundária e marginal no conjunto das políticas públicas estatais (COSTA, 2006; COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2010; TEIXEIRA, 1989; YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010; DRAIBE, 1990). A consolidação de um projeto forte, com capacidade real de tencionar o campo das políticas sociais no Brasil só aconteceu em 1988, com a aprovação da atual Constituição Federal e, no campo da assistência social, com a aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) de 1993, fruto de intensas mobilizações e enfrentamentos de interesses entre vários setores da sociedade civil e a estrutura política dominante (BEHRING; BOSCHETTI, 2007; YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010). A partir de então, as políticas de assistência social saem de uma base estritamente assistencialista, clientelista e é trazida para um novo campo: o da Seguridade Social e da proteção social pública. Trata-se agora do campo dos direitos, da universalização do acesso, não mais vinculada à condicionalidade do trabalho assalariado, mas concebida a partir da responsabilidade do Estado em promovê-la, passando a integrar um campo de defesas e atenção dos interesses dos segmentos mais vul52 neráveis da sociedade (LOBATO, 2009). Entretanto, mesmo com este importante avanço de integrar-se constitucionalmente como política pública de Estado, alguns importantes desaios impediram que a garantia legal fosse traduzida em ações efetivas de enfrentamento à pobreza e à desigualdade social predominante no país (TEIXEIRA, 2007). Trata-se dos já conhecidos interesses políticos e econômicos predominantes, com a pressão da agenda neoliberal sobre a política e a economia do país, transformando a assistência social em uma política com objetivos mínimos, recursos escassos e baixa capacidade institucional, provocando a desvirtuação da política como prioritária para a redução da pobreza e a secundarização de qualquer ação pública que se destinasse ao enfrentamento da questão social (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010). Dessa forma, durante toda a década de 1990 e início dos anos 2000, a assistência social foi marcada por um conjunto de ações fragmentadas, desarticuladas e sobrepostas, devido à pulverização de seus segmentos em vários setores ministeriais e à sua fragilidade institucional, retomando assim o caráter imediatista típico do período pré-1988, com pouco impacto frente às complexas necessidades sociais do país (COSTA, 2006; MACEDO et al., 2011). Apenas no ano de 2004 é que o campo da Assistência Social passa por um verdadeiro processo de reordenamento das suas práticas, a partir da aprovação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a consequente criação do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Estamos falando agora de um amplo sistema que propunha um modelo de gestão descentralizado e participativo, baseado na regulação e distribuição em todo o território nacional de ações socioassistenciais, cujos princípios apontam para a matricialidade sociofamiliar, a territorialização, a proteção proativa, a articulação direta com a seguridade social e outras políticas sociais e econômicas, dividindo-se em níveis de complexidade para melhor efetivação das suas ações: a Proteção Social Básica e Especial (BRASIL, 2004). O SUAS traz novidades importantes no que diz respeito à garantia e à ampliação da assistência social enquanto direito, com ações que visam responder ao caráter emergencial de famílias em situação de extrema pobreza por meio de programas de transferência de renda, aliado ao acompanhamento proissional de indivíduos e famílias com vínculos familiares e comunitários fragilizados, rompidos ou que eventualmente estejam expostos a algum tipo de violência e/ou vulnerabilidade. Insere, na sua lógica de atuação, a territorialidade como base para o planejamento e execução das suas ações, considerando os contextos em que os usuários vivem e estabelecem suas mais diversas relações. De acordo com a Norma Operacional Básica – NOB-SUAS/2005, o território é base de organização do sistema, cujos serviços devem obedecer à lógica de proximidade 53 dos usuários e localizar-se nos contextos territoriais de incidência de vulnerabilidade e riscos para a população (BRASIL, 2005). Contudo, a efetivação dos princípios de gestão e trabalho adotados pelo SUAS para o campo da assistência social coexistem diretamente com a reação conservadora do ideário neoliberal assumidos pelos governos brasileiros ao longo do tempo, resultando em um campo de estratégias e ações com inúmeros desaios a vencer para que, de fato, produza a transformação social a partir da diminuição das desigualdades. Passado quase um quarto de século após a aprovação da LOAS, as reformas do Estado brasileiro ainda comprometem a efetiva ampliação dos direitos sociais da forma como preconizado nas regulamentações, deixando claro que o campo legal não é capaz, por si só, de modiicar substancialmente o legado das práticas de assistência social mediatizados pela perspectiva de ajuda, ilantropia, clientelismo e iniciativas de programas governamentais especíicos (COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2010). Além disso, os avanços conquistados não escondem as contradições e adversidades estruturais existentes nesse processo de implementação do SUAS, ou ainda as consequências sociais na medida em que a LOAS e a PNAS são incorporadas por interesses divergentes do que as originaram. Sobre esse campo de contradições, Souza Filho et. al (2012) resumem alguns exemplos importantes, tais como a tendência de assistencialização e re-ilantropização da assistência social ao superestimar os programas de transferência de renda; as diiculdades estatais de estruturação do SUAS devido às condições objetivas da economia regidas por uma orientação neoliberal; a progressiva responsabilização da família através da matricialidade sociofamiliar em detrimento da primazia da responsabilidade do Estado; a ausência de retaguarda institucional para os municípios que, invariavelmente, buscarão a rede informal ou a rede voluntária para suprir as lacunas da rede de proteção social; a focalização do público-alvo passível de atendimento, onde os critérios de elegibilidade da NOB/SUAS tornam a política minimalista; e o enfrentamento da cultura política do país fortemente centralizadora, ao recomendar uma padronização e regulação dos serviços socioassistenciais em todo o território nacional sem favorecer o pacto federativo, dentre outros desaios postos diariamente no cotidianos dos serviços. Mesmo assim, é inegável que as novidades trazidas pela Constituição Federal de 1988 em torno das políticas sociais e, mais especiicamente da política de Assistência Social, possibilitaram a reorganização da oferta desses serviços, bem como a sua ampliação, contribuindo também para a incorporação de novos atores nesse cenário. É, pois, a partir desse processo de concepção da assistência social como política pública de direito e a organização sistemática da sua oferta através do SUAS que a Psicologia assume um espaço permanente nesse cenário. No âmbito interno da proissão, essa 54 entrada no campo socioassistencial representou um grande desaio, principalmente porque esse campo de trabalho demandou dos psicólogos competências técnicas atravessadas por sentidos políticos que historicamente a Psicologia brasileira não desenvolveu na formação de seus proissionais, ou sequer os articulou à realidade da questão social brasileira. Por outro lado, como vimos nos elementos reunidos acima, estamos tratando de um campo absolutamente político e politizado, marcado por avanços, recuos e contradições que exigem dos proissionais que se propõem a operar essa política um mergulho não supericial nesse mar de conceitos e determinações, para que se conheçam as forças sociais que se mantém em disputa, bem como os movimentos que estas produzem e como reletem em cada prática proissional assumida no cotidiano dos serviços. É justamente sobre essas questões, voltada para o encontro da Psicologia com a política de assistência social, que trataremos no tópico a seguir. A psicologia na política de Assistência Social: uma realidade em construção Inspirada pela racionalidade burguesa, a organização da política social no capitalismo, como vimos, é fragmentada em políticas sociais, onde o Estado responde de forma fracionada à questão social a partir do seu recorte em problemáticas particulares. Caracterizada dessa forma, como problemas sociais, as expressões da questão social vão sendo individualizadas e psicologizadas, tornando-se problemas pessoais atravessados por vieses moralizantes (COELHO, 2013). Quando o Estado, como agente “regulador” das relações sociais, toma para si a iniciativa pelas respostas às expressões da questão social, este cria as condições sócio-históricas de acesso e de manejo a essa realidade constituindo, no espaço ocupacional da divisão sociotécnica do trabalho, algumas práticas proissionais para atuarem nesse contexto. Nesse sentido, destaca-se aqui o campo de formação e atuação do Serviço Social (IAMAMOTO, 2001; NETTO, 2001; COELHO, 2013) e, mais recentemente, da Psicologia. No Brasil, a proissão de psicólogo surge na segunda metade do século XX, como um modelo de intervenção proissional centrado em valores éticos e morais cultuados pela burguesia e necessários para o estabelecimento e manutenção da ordem social, com a hegemonia dos modelos de intervenção clínica, sem o contato com a realidade social da grande maioria da população brasileira (HUR, 2012; LACERDA JÚNIOR, 2013). Entretanto, observamos que a psicologia tem experimentado, nas duas últimas décadas, um importante processo de ampliação do seu campo prático e redimensionamento de seus saberes, principalmente após a ampliação 55 e abertura de novos serviços no campo das políticas sociais. Nesse aspecto, o campo da assistência social tem sido, nos dez últimos anos, o principal campo receptor de psicólogos nas políticas públicas. Considerando os marcadores históricos, as transformações na proissão foram impulsionadas, ainda no século passado, pelas diversas mudanças no plano sociopolítico brasileiro, principalmente a partir do processo de redemocratização do país e do adensamento de movimentos e lutas por direitos sociais, civis e políticos entre as décadas de 1970 e 1980, que foram capazes de promover inúmeras alterações no jogo das forças sociais, mais precisamente na relação entre o Estado e a sociedade civil, quando esta passa a assumir posições participativas até então não experimentadas. Nesse cenário, a Psicologia passa a abrir mão gradativamente do seu núcleo elitista de atuação e se coloca diante de novas possibilidades e à disposição de campos de interesses até então inovadores, culminando com a vinculação de psicólogos, a partir daquele momento, a equipamentos de saúde pública, educação e serviços de assistência social de caráter ilantrópico/caritativo (DIMENSTEIN, 2001; YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010). Contudo, esse processo de aproximação da Psicologia do cenário que envolve as expressões da questão social brasileira, seja através das políticas de saúde, educação ou assistência social, não ocorre de forma linear, pacíica ou apenas como resultado de uma tendência naturalista entre a necessidade do Estado/sociedade nesse campo “social” e a prontidão da Psicologia em supri-la. Da mesma forma, seria também outro equívoco acreditarmos que a Psicologia se aproxima desse campo de atuação simplesmente por sentir a necessidade de assumir um compromisso ético e/ou político com as demandas sociais. Há, nesse complexo processo de entrada da Psicologia no campo das políticas sociais brasileiras, uma via de mão-dupla com aspectos que alimentaram essa possibilidade de contato e permitiram o avanço da proissão rumo às discussões e o campo prático das políticas sociais brasileiras (DANTAS, 2013). Se por um lado tivemos um processo de desenvolvimento progressista dessas políticas com vistas à organização e oferta de serviços visando à integralidade do olhar e do cuidado, sob o enfoque protetivo, incluindo a dimensão subjetiva dos problemas sociais a que essas políticas se direcionam; por outro lado, temos um movimento interno da proissão em direção a esse campo social em suas diversas expressões através de discussões mais próximas da questão social na realidade brasileira, ou com a adoção de novas metodologias de trabalho – embora em realidades muito pontuais e especíicas nos primeiros momentos – que envolvessem a multidimensionalidade das demandas sociais que são objeto dessas políticas. Acontece que, no campo da assistência social, diversos estudos que problematizam a prática proissional do psicólogo no SUAS têm demonstrando importantes entraves no cotidiano desses proissionais capazes de comprometer a efetividade dessa atuação e o seu alinhamento com a transformação 56 social esperada, o fortalecimento da cidadania dos usuários e a redução das desigualdades sociais. Trata-se de um conjunto de práticas protagonizadas por psicólogos e pelas equipes compostas por eles que convergem com as diversas indeterminações a que o SUAS está exposto, tais como: a adoção de práticas proissionais diferentes daquelas preconizadas pelos órgãos representativos da política; o trabalho individualizado em detrimento dos princípios inter/transdisciplinares propostos; os desvios de inalidades da atuação devido a fragilidades nos demais serviços que compõem as redes de proteção social locais ou devido à insuiciência de recursos humanos; e as diiculdades de exercer propostas de trabalho em conjunto com as famílias, dentre outras diversas expressões que marcam o cotidiano do trabalho dos psicólogos nesse contexto (OLIVEIRA et al., 2011; SENRA; GUZZO, 2012; OLIVEIRA et al., 2014; COSTA; CARDOSO, 2010). Diante disso, é inegável que tais diiculdades representam, dentro de um contexto político mais amplo, a vulnerabilidade a que estamos expostos enquanto atores de uma política social num país onde a agenda neoliberal ganha espaços cada vez mais confortáveis e, portanto, se intensiicam as forças contrárias ao avanço qualitativo dessas políticas. Além disso, dentro dessa mesma dimensão, precisamos considerar os efeitos do longo histórico de desvirtuação da política de assistência social na realidade brasileira ainda não superado pelo modelo atual, resultando em um campo de diversas indeinições dentro do SUAS. Contudo, para a Psicologia é nítido a sua diiculdade de lidar com essas questões, principalmente por conta do histórico distanciamento entre o seu campo de discussões/ formação e os elementos que constituem a própria questão social, expressada nas principais demandas das políticas sociais e, especialmente, no campo da assistência social. Por conta disso, observamos seus proissionais atuando cotidianamente em torno das expressões mais visíveis da questão social ou sobre aqueles problemas que geralmente são foco de programas governamentais especíicos, mas sem uma compreensão sistemática da constituição sociopolítica dessas situações. Tal realidade expressa um modelo de prática proissional conservadora, que se atém somente à fenomenalidade dos processos socais, àquilo que é mais aparente nas demandas do cotidiano, com forte risco de naturalizá-los. Nesse sentido, compartilhamos com a análise de Coelho (2013), quando, ao reletir sobre os processos que envolvem a prática proissional e a lógica da imediaticidade no Serviço Social, airma que Para conhecer a realidade a consciência movimenta-se da realidade para si e de si para a realidade, passando por diferentes estágios, tendo em vista apreender processualmente a realidade em sua totalidade. Se o movimento da consciência se atém à imediaticidade apreende-se tão somente a aparência do real (COELHO, 2013, p. 14). 57 Ou seja, um campo de práticas proissionais baseado apenas nas expressões mais visíveis da questão social indica que não há o movimento da consciência direcionado para conhecer a realidade, mas uma ligação imediata entre o pensamento e a ação, onde o fazer proissional se torna limitado às aparências, “[...] tanto no âmbito do conhecimento quanto da intervenção, pois o movimento da consciência para conhecer a realidade não chega à essência” (COELHO, 2013, p. 13). O imediato, a imediaticidade, aparece como uma oposição à mediação das dimensões teórico-metodológica e ético-política que compõem as proissões e os seus processos de inserção no jogo das forças sociais. Porém, mesmo circunscrita às aparências, às expressões fenomênicas e imediatas da realidade e da questão social, essas práticas proissionais são resultados de complexos processos de mediações que independem da consciência do sujeito e, por isso, carregam o risco de desvirtuarem as suas mais positivas intenções, ao permitirem que a aparência dos fenômenos se sobreponha aos fatores que compõem a sua essência. Isso se desdobra, na prática, em conjuntos de ações fragmentadas, descontinuadas e baseadas apenas na experiência do proissional como sujeito singular que anuncia a sua verdade sobre um objeto também singularizado. Na Psicologia, os vetores que contribuem para esse aprisionamento são múltiplos e alguns já foram até apresentados anteriormente. Porém, o que determina esse modelo de trabalho no campo da assistência social e, consequentemente, agudiza os nossos desaios práticos nesse contexto, é que a nossa prática proissional tem se alinhado acriticamente à prática hegemônica da sociedade capitalista e à sua correspondente racionalidade, levando-nos a um cotidiano de ações funcionais às demandas mais imediatas que são produzidas nos territórios, mas destituídas do sentido político necessário para a real superação destas. Diante disso, e considerando a atual sistematicidade dessas situações em nosso cotidiano, vale a relexão: para onde seguimos no campo político quando assumimos cotidianamente o risco de orientarmos a nossa prática a partir da certeza sensível e das nossas verdades enquanto sujeitos? No jogo das forças sociais em constantes disputas que caracterizam o espaço sócio-ocupacional da assistência social, quais as verdadeiras contribuições que operamos com as nossas práticas imediatas, quando destituídas das mediações éticas, políticas e epistemológicas necessárias? É inegável que o caminho da superação desses e de tantos outros desaios que marcam a entrada da Psicologia nas políticas sociais passa pela devida apreensão do campo de mediações que compõem a gênese e os desdobramentos da questão social no capitalismo contemporâneo e, especiicamente, na realidade brasileira. Além disso, e igualmente importante, é necessário que os fatores que compõem esse campo encontrem sentido nas respostas que oferecemos às demandas que nos chegam como 58 objetos de intervenção nos mais diversos encontros: nos espaços institucionais, nas casas, nas ruas, nos espaços das comunidades, nos nossos discursos, encaminhamentos e soluções. Portanto, temos no campo da assistência social um campo de ação complexo, multifacetado e diretamente atravessado pelo viés político que carrega a questão social e a resposta a suas expressões no seio de uma sociedade capitalista. Diante disso, exige-se dos proissionais que operam esse campo, mais do que o conhecimento dos determinantes histórico-políticos que o compõem e o tenciona, a capacidade de transformá-los em ações políticas e inovadoras com vistas ao fortalecimento da potência reacionária que carrega a política de assistência social na realidade brasileira. Conclusão Em tempos de neoliberalismo dominante, onde as responsabilidades sobre as condições adversas de subsistência e as condições de vulnerabilidades recaem cada vez mais sobre os indivíduos e as famílias, teorias e práticas nesse campo que se baseiem apenas nas expressões mais visíveis da questão social (pobreza, violência, vulnerabilidades) podem instrumentalizar um campo de trabalho focalizado, compensatório e, portanto, notadamente funcional às necessidades do capital. No campo do discurso, a Psicologia tem assumido nos últimos anos um compromisso com as demandas sociais, porém, conforme alerta Senra e Guzzo (2012) tal discurso tem se esvaziado de sentido político, o que se expressa na falta de articulação com práticas realmente coerentes com a transformação social almejada. Nesse sentido, precisamos retomar um projeto de proissão que, para além de um discurso político-correto, produza críticas consistentes sobre como temos percebido e respondido aos fatores que atravessam as demandas que nos chegam, partindo dos elementos que os constituem enquanto fenômeno social e não apenas nas suas expressões mais visíveis. Dentre outras coisas, esse movimento depende de releituras sobre nossa formação e exercício proissional, com destaque para a observância do campo macropolítico que sobre nós opera e, principalmente, nas formas como respondemos a tais coerções nos nossos discursos, fazeres, sujeições e inovações. Referências BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2007. BRASIL. Guia de Orientação Técnica – SUAS nº 1. Proteção Social Básica de Assistência Social. Brasília: DF, 2005. 59 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate À Fome. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: MDS, 2004. 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O PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA E A QUESTÃO HABITACIONAL NO BRASIL Leandro Gomes Reis Lopes João Paulo Macedo Introdução A questão social surgiu a partir do pauperismo do século XIX, quando a pobreza ameaça a coesão social e coloca em risco a ordem social burguesa, mobilizando a organização da classe trabalhadora que passam a explicitar suas necessidades no espaço político e não como um problema individual. Ela assume diversas expressões, mediadas de acordo com a conjuntura sócio histórica de um determinado lugar e época (GUERRA et al., 2007). O problema da moradia, enquanto questão habitacional, pode ser compreendido como uma das expressões da questão social decorrentes do modo de produção capitalista (PINTO, 2004-2005). Neste sentido, não se trata de uma simples carência que possa ser explicada pela relação oferta e demanda, equacionada pela mediatização do Estado, mas de um aspecto estrutural do capitalismo, sendo uma de suas contradições inerentes. As desigualdades sociais presentes nas sociedades capitalistas, em decorrência das contradições entre capital e trabalho, manifestam-se nos diferentes acessos à riqueza socialmente produzida, expressas em alto nível de desemprego, concentração de renda, diferenças de escolaridades e acessos diferenciados à saúde. Enquanto que a riqueza é socialmente produzida, apenas uma pequena parcela se apropria dela privadamente. No tocante à questão habitacional, a situação não é diferente, demandando do Estado intervenção no sentido de minimizá-la por meio de políticas sociais, seja de construção ou melhoria de moradia, como de implantação e extensão de infraestrutura urbana. Diante da omissão do Estado ou naquilo que Mautner (2010) chama de “política inconfessa”, pois baseada em ocupação irregular, a classe trabalhadora da periferia do capitalismo tem adotado a autoconstrução em áreas periféricas, sem infraestrutura adequada, devido ao processo de urbanização e especulação imobiliária levado à cabo pelo capital que supervaloriza o preço da terra urbanizada. Esta estratégia, no entanto, pode fornecer terreno para futura apropriação privada do capital, quando os loteamentos são legalizados e urbanizados pelo Estado. Caso isto ocorra, esta mesma área servirá de objeto para expansão do capital. A escassez da moradia não é um fenômeno recente. Já na segunda metade do século XIX, Engels (2015) airma que a situação de moradias precárias, superlotadas e insalubres acompanhou a história de todas as classes oprimidas. No entanto, os trabalhadores modernos teriam expe63 rienciado um agravamento dessa situação em decorrência de vários fatores, como a intensa migração do campo para a cidade e o aumento colossal dos preços de aluguel. Foi comum, muitos trabalhadores perderem suas moradias no processo de urbanização em decorrência dos alargamentos de vias ou instalação de ferrovias. Ao realizar uma análise sobre as políticas urbanas e habitacionais brasileira, Dumont (2014) relaciona diversos fatores da crise da habitação no Brasil. Ele destaca a abolição da escravidão e o surgimento do trabalhador livre, além das intensas migrações ocorridas no inal do Império e início da República. Além desses, pontua que o modelo de substituição de importação na Era Vargas foi acompanhado do aumento na demanda de serviços urbanos e de moradia, em particular. Botega (2008) ressalta a política de remoção e destruição de cortiços na área central, como uma mediação que empurrou os trabalhadores para áreas periféricas, iniciando um processo de fragmentação do espaço urbano. É importante ressaltar que, embora a Constituição Federal brasileira de 1988 tenha reconhecido vários direitos sociais, a habitação só foi incluída nesse rol no ano 2000, apesar da mobilização dos movimentos sociais urbanos, articulados em torno do Fórum Nacional de Reforma Urbana ainda na década de 1980. No entanto, isso não signiica dizer que a moradia digna seja uma realidade para todo cidadão brasileiro. A Fundação João Pinheiro, que se utiliza de dados censitários do Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE) dimensiona o déicit habitacional (necessidade de construção de moradias) em torno de 7 milhões em 2010. Desse total, 43,1% são relativos à dimensão da coabitação e 30,6% com gastos excessivos em aluguel. Os demais são domicílios precários e adensamento excessivos em domicílios próprios, com 19,4% e 6,9%, respectivamente (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2013). No Piauí, por sua vez, o déicit no ano de 2012 era de 100.105 unidades habitacionais, representando 10,8% das moradias do estado e atingindo 81,5% das famílias com até 3 salários mínimos. A composição desse déicit é diferente quando comparada com o a realidade brasileira no geral, pois apresenta 30,3% de habitação precária e apenas 10,1% com ônus excessivo em aluguel (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2015). Já para a capital Teresina, segundo dados da Fundação João Pinheiro (2013), existe um déicit de 32.243 moradias dividido nos quatros componentes: coabitação (57,8%); habitação precária (21,7%); ônus excessivo (16,1%) e adensamento (4,4%). Já quando levado em consideração a inadequação habitacional, o índice eleva-se para 74.079 moradias, tendo como principais componentes a carência de esgotamento sanitário com 66.493 domicílios seguido de precariedade de coleta de lixo com 7.473. Percebe-se, portanto, além da necessidade de construção de moradias, o fortalecimento da provisão de serviços urbanos. 64 Desde o século passado o Estado brasileiro criou várias estratégias para lidar com a questão habitacional. A mais recente foi o Programa Minha Casa, Minha Vida instituído em 2009 no qual previa a construção de 3 milhões de moradias até 2014, dividido em duas etapas. O programa está voltado para o atendimento de famílias com faixa de renda e mecanismos de funcionamentos distintos (ROLNIK et al., 2015). Embora fosse insuiciente para atender a demanda reprimida, trata-se de uma intervenção estatal que mais construiu unidades habitacionais em menor tempo. Para Loureiro, Macário e Guerra (2015), PMCMV trata-se também de uma medida anticíclica com o objetivo de estimular o crescimento da economia e enfrentar a crise capitalista de 2008 que ampliou a capacidade ociosa na construção civil. Este setor havia se utilizado de grandes estoques de terras e lançamentos imobiliários como fator de atratividade na Bolsa de valores, quando da abertura de seu capital no mercado inanceiro. Além disso, possui uma grande capacidade de dinamizar a economia e gerar empregos. Este duplo objetivo estava presente desde sua concepção, repercutindo no desenho institucional, implementação e desdobramentos (MOREIRA; RIBEIRO, 2016). Neste contexto, este artigo analisa o PMCMV enquanto uma das respostas do Estado frente a uma das expressões da questão social, a habitação, apontando para as contradições inerentes neste processo. Para tanto, foi realizado um estudo a partir de artigos indexados na base de dados da Scientiic Electronic Library Online (SciELO) acerca do Programa, realizando uma análise crítica na perspectiva marxiana de forma a inserir a discussão da política habitacional na questão social. A discussão centra-se na faixa 1 do público alvo do PMCMV, conforme trata a maioria dos estudos, por constituir-se pela população que mais sofre com as consequências da questão social no país. Inicia a discussão com uma problematização da questão social, incluindo suas expressões e intervenções na realidade brasileira, enfatizando a questão da habitação. Em seguida será abordado a problemática das políticas habitacionais enquanto estratégia do equacionamento da questão social. E, por im, será discutido os desdobramentos do PMCMV na reprodução social da classe trabalhadora, enfocando aspectos da segregação socioespacial. Compreendendo a questão social A questão social é bastante complexa e envolve signiicados e formas diferenciadas de seu enfrentamento sendo que para cada qual haverá possibilidades e limites de atuação correspondente (NETTO, 2012). É importante destacar que deve ser entendida numa perspectiva histórico-crítica, uma vez que está vinculada com determinados contexto sociais, políticos 65 e econômicos especíicos que serão abordados a seguir. De acordo com Netto (2001, 2012), a questão social emergiu no contexto do capitalismo urbano-industrial por volta de 1830, evidenciando o fenômeno do pauperismo que se expandiu na classe trabalhadora em função da relação de produção capitalista e não da escassez de recursos ou bens. A novidade é que os índices de pobreza dessa época cresciam na mesma proporção que o desenvolvimento das forças produtivas eram capazes de superar ou pelo menos minimizá-la. Neste contexto, a pobreza ganhou desdobramentos sociopolíticos uma vez que a classe trabalhadora ascende à consciência política de que sua condição de pauperismo e exploração está atrelada ao desenvolvimento da sociedade capitalista, exigindo seu reconhecimento enquanto agentes sociais. Está conformada, assim, a questão social. A partir da segunda metade do século XIX foram gestadas duas formas diferentes de conceber e lidar com a questão social que permaneceram até os dias atuais, embora tenham recebido outros matizes. Num primeiro momento o termo questão social foi usado de forma indistinta, independentemente da posição ideo-política, tanto pelo pensamento conservador de um lado, quanto do revolucionário do outro (NETTO, 2001). No caso do pensamento conservador, admite-se a existência da desigualdade social desde que não afete a solidariedade ou a integração social a partir de uma vertente laica e outra religiosa. Tal entendimento se expressa em Durkheim e pela doutrina social da Igreja Católica, respectivamente. Com efeito, a questão social é distanciada de sua estrutura histórica sem questionamentos da ordem socioeconômica estabelecida, portanto, de forma naturalizada. O enfrentamento desse problema, neste sentido, ocorreria principalmente por meio de medidas de cunho moral, seja pela educação ou pela evangelização católica. Aprofundando a discussão, Montaño (2012) ressalta a naturalização da questão social em decorrência da separação positivista de caráter conservador entre o econômico e o social. A questão social passou a ser vista como um “fato social” e, portanto, a-histórico e sem relação com os conlitos e interesses sociais, de forma que os sujeitos eram responsabilizados pela situação em que se encontravam. Assim airma: Começa-se a se pensar então a “questão social”, a miséria, a pobreza, e todas as manifestações delas, não como resultado da exploração econômica, mas como fenômenos autônomos e de responsabilidade individual ou coletiva dos setores por elas atingidos. A “questão social”, portanto, passa a ser concebida como “questões” isoladas, e ainda como fenômenos naturais ou produzidos pelo comportamento dos sujeitos que os padecem. (MONTAÑO, 2012, p. 272, grifos do autor). Atualmente essa posição ideo-política é expressa pela intervenção reformista de políticas sociais baseada na administração técnica de determinado 66 problema e racionalidade na gestão pública, sem questionamento de fundamentos da ordem econômica e social estabelecida (NETTO, 2001, 2012). As políticas sociais de viés keynesiano, de acordo com Montaño (2012), encaixa-se nesta perspectiva reformista pois não atua diretamente na esfera produtiva, mas na distribuição parcial da riqueza para uma parcela de pessoas que não possuem condições de acessar bens e serviços no mercado. Dessa forma, o enfrentamento da questão social baseia-se na “redistribuição”, sem transformar a contradição entre capital e trabalho, ou seja, ocorre nas expressões da questão social, sendo um paliativo, que em última instância amplia a pauperização. Essa lógica, por sua vez, ainda é predominante. Outra concepção, oposta ao pensamento conservador, foi a dos socialistas revolucionários. Airmam que a questão social é inerente ao modo de produção capitalista, como um desdobramento necessário do seu processo de acumulação. Os marxistas, compreendendo teoricamente o processo de produção do capital, insistiam que a melhoria das condições de vida não retirava os trabalhadores da sua condição de exploração. Isso não signiica fazer uma escolha entre realizar reforma ou revolução. Para Netto (2012), o enfrentamento da questão social deve modiicar os fundamentos socioeconômicos dessa ordem, propondo reforma e revolução ao mesmo tempo, pois a redução das desigualdades e reversão dos mecanismos de pauperização absoluta são importantes para a luta revolucionária. De acordo com Cerqueira Filho (1982), a questão social no Brasil é tratada dentro da perspectiva da integração social, na qual busca neutralizar os efeitos da luta de classe, utilizando-se dos aparelhos ideológicos e repressivos do Estado, com predomínio de um sobre o outro em diferentes contextos históricos. Ressalta que em momentos de aguçamento da crise de hegemonia, no sentido gramsciano, a questão social brasileira foi resolvida como “questão de polícia” e no campo ideológico com a ixação de ideias como “desordem e repressão”. Num contexto em que a tensão capital e trabalho acontecia nas franjas das relações sociais de produção, a questão social não se inseriu no pensamento dominante, ganhando legitimidade, mas icando marginalizada à classe subalterna e tratada como “ilegal” e de subversivo. Com a intensiicação da industrialização a partir da década de 1930 a questão social transforma-se em “questão de política” objetivando soluções mais soisticadas de dominação, tendo, por sua vez, o reconhecimento implícito da classe operária. Era considerado como um fenômeno mundial e expressão do próprio progresso no qual os conlitos eram tidos como básicos à sociedade, desde que dentro de certos limites. Tais intervenções são inseridas numa lógica paternalista no qual se busca a conciliação, sem incluir as classes subalternas, sendo elaboradas de cima pra baixo. As legislações trabalhistas do período de Vargas, por exemplo, eram consideradas como sinônimo de proteção à classe trabalhadora, muito embora servissem para desmobilizá67 -la. Essas duas lógicas de intervenção do Estado vão se alternando na história brasileira (CERQUEIRA FILHO, 1982). Um fato interessante no tratamento da questão social brasileira foi que a instituição de políticas sociais se fortaleceu em períodos ditatoriais, como uma compensação das perdas de direitos civis e políticos. Além disso, a garantia de vários direitos sociais expressos na Constituição Federal de 1988 não foram plenamente efetivados, contrariando as expectativas da classe trabalhadora de universalização e responsabilização do Estado na concretização desses direitos. As regulamentações posteriores ocorreram em contexto de recessão econômica mundial sob as diretrizes do neoliberalismo, reduzindo a intervenção do Estado neste âmbito. As medidas de privatização, aumento de carga tributária, achatamentos de salários e desinanciamento e monetarização das políticas sociais adotadas pelos Governos repercutiram negativamente entre os trabalhadores e ampliando a desigualdade social brasileira (PEREIRA, 2012). A seguir trataremos sobre algumas políticas e programas que interferiram na questão habitacional no Brasil como uma das expressões da questão social. Política habitacional, urbanização e segregação socioespacial A questão habitacional é um fenômeno inerente à sociedade capitalista e revela a profundidade da questão social no capitalismo. Por um lado, encontra-se a apropriação privada da terra, de maneira monopolizada, mesmo que a sua valorização ocorra pelo trabalho socialmente produzido. No outro lado, encontra-se a superexploração da classe trabalhadora, que numa sociedade capitalista tem o acesso à moradia diicultado e até impossibilitado de participar do mercado formal imobiliário (PINTO, 2004-2005). Diante desta expressão da questão social, o Estado lança mão de políticas sociais, enquanto estratégia de reprodução do sistema capitalista como um todo. Embora sejam sistemáticas, elas são concretizadas de forma fragmentária correspondendo às diferentes dimensões da questão social, cujas expressões e enfrentamentos são condicionadas sócio historicamente (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2010). Nesse sentido, pode-se dizer que a política habitacional é uma resposta do Estado que varia de acordo com as forças sociais presentes como também em determinado tempo histórico. As políticas habitacionais brasileiras, de acordo com Silva (1989), constituem-se por um processo social inserido na conjuntura sócio-econômica-política determinado pelo modo de produção capitalista. Trata-se de uma intervenção do Estado que tem se mostrado sempre insuiciente diante das diversas expressões e contradições imposta pela questão social, não esquecendo que as políticas propostas estão, muitas vezes, a serviço da acumulação do capital, por meio da mercantilização do Bem-Estar Social, na busca da estabilidade do social. 68 Para Netto (2012), a intervenção do Estado desmobiliza a classe trabalhadora no objetivo de superar os mecanismos que promovem as desigualdades sociais. No entanto, o debate e o exercício de organização e luta em prol da garantia do direito à habitação são elementos importantes para a produção de sujeitos históricos, podendo fortalecer os trabalhadores na luta de classe. Outro fator apontado por Silva (1989) é que as políticas habitacionais atuam na ixação do valor da força de trabalho, pois no Brasil a moradia sai da lista de consumo necessário para a reprodução do trabalhador rebaixando ainda mais o salário. Com efeito, a população passa a buscar as periferias visando a moradia por meio da autoconstrução como uma alternativa, mesmo que represente maior distancia para o trabalho ou maior precariedade do acesso ao trabalho, comércio e aos serviços públicos que necessita. Assim a autora propõe que a questão habitacional seja pensada num cenário de distribuição mais igualitária da riqueza, como também da garantia ao trabalho e da inclusão da habitação como item básico da reprodução da força de trabalho. Com a diiculdade ou impossibilidade de se inserir na cidade dentro do marco regulatório urbano e do sistema inanceiro formal, os trabalhadores promovem a construção de uma “cidade ilegal”. Dessa forma, ocupam favelas ou loteamentos irregulares e clandestinos em áreas de expansão periféricas e sem infraestrutura adequada para o atendimento de suas necessidades, como estratégia de sobrevivência, num processo denominado de segregação socioespacial (COSTA, 2014). De acordo com Maricato (2011), o mercado residencial brasileiro estabelecido de forma legal atende apenas 30% da população de forma que o restante buscam como alternativa as favelas ou loteamentos ilegais, especialmente em terras sem interesse ao mercado imobiliário ou de ecossistema frágil. Analisando criticamente a questão habitacional no Brasil, ela ainda airma que: Afinal, jogar para os ombros dos trabalhadores o custo de sua própria reprodução na cidade por meio da autoconstrução das casas e ocupações irregulares do solo é parte intrínseca da condição capitalista periférica de barateramento da força de trabalho de um lado, e manutenção de um residencial restrito ao ‘produto de luxo’ de outro. (MARICATO, 2011, p. 31). Foi no Governo Vargas (1930-1945), que o Estado brasileiro assumiu pela primeira vez a responsabilidade da oferta de habitação, por meio das Carteiras Prediais. No entanto, elas estavam relacionadas aos Institutos de Aposentadoria e Pensão (AIP), tendo uma atuação pouco relevante e fragmentária. Tinham o objetivo, aliás, de regulamentar a relação entre capital e trabalho, pois ao mesmo tempo que proporcionava a redução dos custos da força de trabalho, legitimava seu governo junto as massas populares, uma vez que a moradia representa um 69 alto custo para os trabalhadores (BONDUKI, 1994). Outra intervenção signiicativa do Governo Vargas neste campo ocorreu com a instituição da Lei do Inquilinato em 1942 enquanto uma estratégia de formação e fortalecimento da construção de uma sociedade urbano-industrial. Com o congelamento do preço do aluguel, os capitalistas reduziram investimentos no mercado habitacional de baixa renda e passaram a investir no âmbito das indústrias, uma vez que o lucro com o aluguel não se mostrava mais atrativo. Tratava-se, portanto, mais de uma política econômica do que social, ampliando, assim, a crise da habitação (BONDUKI, 1994). O primeiro órgão voltado para prover habitações populares foi a Fundação da Casa Popular (FCP) criada pelo Governo Dutra em 1946, com intervenção limitada e clientelista. De acordo com Santos et al. (2014), as condições de possibilidade da FCP encontram-se na necessidade de redução dos custos da força de trabalho (em um contexto de substituição do modelo de exportação brasileiro) como também um pacto entre trabalhadores e setores da construção civil e estratégia de cooptação diante da ameaça da instauração do comunismo. Assim, o Estado assumiu parte dos custos da reprodução da força de trabalho, evitando o aumento do salário que garantisse aos trabalhadores o acesso à moradia, massiicando uma ideologia da democracia capitalista amparar o trabalhador. O Banco Nacional de Habitação (BNH) foi criado durante a ditadura cível-militar para atender objetivos políticos e econômicos. No primeiro, visava ampliar a legitimação do regime político perante as massas populares urbanas, e transformar os setores progressistas em conservadores pela expansão da ideologia da propriedade privada concretizada na casa própria, na qual os trabalhadores passam a vida produtiva quase inteira para hipotecá-la. Em termos econômicos, buscava dinamizá-la ao mesmo tempo em que estruturava o setor da construção civil em moldes capitalistas, via inanciamentos, geração de emprego e renda (BONDUKI, 2008). Foi apenas no Governo Figueiredo (1979-1985) que a política habitacional se amplia para aqueles que recebiam menos de um salário mínimo e representavam grande parcela da população brasileira, que até então estava excluída das políticas públicas. No entanto, muitos deles não estavam em condição de assumir um inanciamento por 30 anos, em decorrência da instabilidade do mercado e superexploração dos trabalhadores, com arrocho salarial, alta inlacionária e especulação inanceira. O comprometimento da renda com habitação subiu de 35% em média em 1981 para 60% apenas três anos depois (SILVA, 1989). Este problemática, por sua vez, irá se repetir mais recentemente no PMCMV, pois para os mais pobres a nova moradia representa custos que até então não tinham. Muitos não pagavam aluguéis, contas de água, luz, condomínio, entre outras despesas que surgem devido à localização do empreendimento. 70 Outra questão promovida pelas políticas habitacionais é seu efeito segregacionista. Desde a época dos conjuntos habitacionais empreendidos pelo BNH, a inserção no espaço urbano é localizada em áreas periféricas, com pouco infraestrutura e baixa densidade de equipamentos e serviços públicos. Com efeito, a garantia do direito à moradia repercute negativamente na reprodução da força de trabalho, pelos distanciamentos e diiculdades de acesso que impõe à riqueza urbana socialmente produzida. Este aspecto segregacionista, por sua vez, não é uma característica da sociedade atual ou das políticas habitacionais. A análise econômica realizada por Engels (2015) do problema da escassez da moradia indica que se trata de uma questão do modo de produção capitalista, no qual a expansão das metrópoles promove um valor artiicial e exponencial de certas áreas, airmando que desse processo: O resultado é que os trabalhadores são empurrados do centro das cidades para a periferia, as moradias dos trabalhadores e, de modo geral, as moradias menores se tornam raras e caras e muitas vezes nem podem ser adquiridas, porque nessas condições a indústria da construção civil, para a qual as moradias mais caras representam um campo de especulação muito mais atrativo, apenas excecionalmente construirá moradias para trabalhadores. (ENGELS, 2015, p. 40). Neste sentido, as políticas habitacionais apenas reproduzem a lógica de reprodução ampliada da sociedade capitalista, pois atua dentro de seus parâmetros. Em Teresina, por exemplo, o Governo Federal favoreceu o espraiamento urbano por meio das políticas habitacionais. Na década de 1960 foram inaugurados cinco grandes conjuntos, sendo quatro deles na zona Sul, sendo a área em que mais concentrou tais construções. Na década seguinte foram inaugurados 11 conjuntos com destaque para os bairros Bela Vista (1977), Dirceu Arcoverde (1977) e Saci (1978) (FAÇANHA, 2003). Apesar de atualmente já terem sido incorporados pela malha urbana, na época em que foram inaugurados eram distantes do centro urbano e com baixa densidade de equipamentos e serviços públicos. Espindola, Carneiro e Façanha (2017) aprofundam o debate ressaltando que Teresina adotou desde a década de 1970 um modelo brasileiro de política pública que constrói pequenas moradias voltadas para população de baixa renda em áreas distantes e dispersas. Com efeito, o perímetro urbano da capital é bastante extenso com signiicativo espaço intraurbanos vazios ao mesmo tempo em que os mais pobres moram em áreas conectadas de forma precária com o núcleo da cidade. Esse modelo, por sua vez, promove problemas de infraestrutura nas periferias, devido ao alto custo dos serviços urbanos, e outros como violência e segregação. De uma forma ou de outra, a classe trabalhadora tem sido empurrada, por assim dizer, para as periferias das cidades à medida que o espaço urbano vai sendo valorizado pelo trabalho socialmente produzido, mas apropriado de maneira pri71 vada. A seguir será realizada uma discussão sobre o PMCMV enfocando a segregação socioespacial como um efeito das correlações de força de elaboração de uma política pública, e suas implicações para a classe trabalhadora. PMCMV e a segregação socioespacial O Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi instituído em todo o Brasil por meio da Lei Nº 11.977 de 7 de julho de 2009 com o duplo objetivo de reduzir o déicit habitacional e estimular o crescimento econômico enquanto uma medida anticíclica diante da crise capitalista de 2008. Previa a construção de mais de 3 milhões de unidades habitacionais até 2014, repartido no território nacional de acordo com o déicit de cada estado. Foram estipuladas três faixas, cada qual com metas, subsídios e formas de contratação diferenciadas. Como referimos anteriormente, focalizamos nos estudos que trataram da Faixa 1, que compreende famílias com renda de até R$1.600,00, com prestações limitada até 10% da renda durante um período de 10 anos. Sobre o impacto do PMCMV na superação do déicit habitacional deste segmento, cuja faixa de renda é de até 3 salários mínimos, é questionado por Maricato (2011) quando argumenta que apesar da demanda dessa faixa representar 90% do total, foram destinadas apenas 40% das unidades previstas voltadas para esta população, com uma redução de apenas 6%. Analisando o PMCMV¸ Klintowitz (2016) airma que o programa seguiu a mesma lógica das politicas habitacionais brasileiras do século XX que estavam mais voltadas para o atendimento das demandas de crescimento econômico do que ao direito de moradia, tendo em consideração a forte articulação entre Estado e setor produtivo. Foi elaborado inicialmente pela articulação entre a Casa Civil e Ministério da Fazenda em conjunto com setores imobiliários e da construção civil. Somente depois de elaborado os eixos macroestruturais de funcionamento do Programa foi que ocorreu a entrada do Ministério das Cidades nesse debate, demandando a incorporação no projeto de setores com renda de até três salários mínimos, com subsídios diretos do Governo Federal. De acordo com Netto (1992), o Estado atua como guardião das condições de produção capitalista intervindo nos constrangimentos inerentes do processo de acumulação, principalmente em período de suas crises estruturais. A função econômica do Estado (inserção em setores básicos não rentáveis, subsídios, garantia explícita de lucro, compras estatais etc.) deve ser legitimada politicamente. Para tanto, o Estado institucionaliza direitos e garantias cívicas e sociais, preservando, dialeticamente, a ordem econômica e a força de trabalho. Netto (1992) ressalta ainda que as “respostas positivas a demandas das classes subalternas podem ser oferecidas na medida exata em que elas podem ser refuncionalizadas para o interesse direto e/ou indireto da maximização dos lucros” (p. 25). 72 Os empreendimentos do PMCMV são construídos, via de regra, em grandes conjuntos habitacionais nas franjas urbanas do tecido urbano. Isso ocorre devido ao protagonismo exercido pelas construtoras que possuem a prerrogativa de que o mercado responderia à demanda de maneira mais eiciente. Tendo em vista a maximização do lucro, as construtoras buscam reduzir os custos por meio da compra de terrenos mais baratos e com ganho de escala, uma vez que é estabelecido um teto para cada unidade habitacional construída. É feito uma espécie de cálculo na localização do terreno, pois a procura dos terrenos baratos deve levar em consideração as exigências mínimas para a aprovação da operação (ROLNIK et al., 2015). De acordo com Moreira e Ribeiro (2016) o desenho do PMCMV priorizou aspectos inanceiros, materializado na quantiicação de unidades habitacionais a serem construídas pelo setor privado, em detrimento da gestão e controle social e da política fundiária. O PMCMV é efetivado sem nenhuma vinculação aos instrumentos de planejamento urbano, tais como os Planos Diretores ou Plano Local de Habitação de Interesse Social sendo, portanto, pouco efetivo no que diz respeito ao enfrentamento da questão fundiária. O uso e ocupação do solo são gerenciados como um objeto de disputa e acumulação do capital. Nascimento, Moreira e Schussel (2012) ressaltam que o PMCMV favorece a reprodução do capital em detrimento dos interesses dos trabalhadores, por meio de subsídios públicos, provocando uma elevação do preço da terra, contribuindo para a especulação imobiliária e os processos de segregação socioespacial. A construção de um empreendimento produz a valorização da terra ao redor, diicultando a localização de um outro conjunto habitacional, ao mesmo tempo que expulsam mais ainda para a periferia aqueles que não foram beneiciados e que não conseguem acessar à terra, cada vez mais cara, no mercado. A compreensão da segregação socioespacial, de acordo com Carlos (2013), deve ser realizada inserindo-a na totalidade da reprodução social da sociedade capitalista, pois manifesta-se nas diferenças de formas de acesso à moradia, como também em relação à mobilidade, deterioração dos espaços públicos e acessos às atividades urbanas. A segregação expressa a contradição da produção do espaço urbano, pois de forma dialética ele é ao mesmo tempo valor de uso, tendo em vista a realização da vida humana com todas suas necessidades e também valor de troca, entendido como mercadoria, na perspectiva da produção de valor. A urbanização brasileira é atravessada por uma desigualdade na distribuição de infraestruturas e equipamentos públicos, com efeito na qualidade de vida e problemas sociais. Moura (2014) explica que para acessar os serviços públicos, gastam mais tempo e dinheiro, encarecendo custos com mobilidade urbana, tanto para o Estado, por meio de investimentos para integração da malha urbana da cidade, quanto para os sujeitos. Em um estudos com moradores do PMCMV foram relatados altos custos das passagens e aumento na distância para o trabalho, fazendo com que alguns perdessem o emprego ou 73 maior diiculdade em relação à oferta de empregos quando comparadas com a situação anterior (BRASIL, 2014). Nesse sentido, pode-se dizer a mobilidade urbana e a reprodução social da família ica prejudicada para as famílias de baixa renda que demandam transporte para trabalhar, acessar serviços ou até mesmo estabelecer contatos pessoais e sociais. Maricato (2011) reforça este argumento airmando que o espraiamento de moradias precárias ocorre sem o automóvel para se deslocar e principalmente sem urbanização, diferentemente do ocorre para as indústrias, serviços e condomínios residenciais. Além disso, baseado em dados da Associação Nacional de Transportes Públicos de 2005, pode-se dizer que 37 milhões de brasileiros não acessam os transportes públicos por falta de recursos, como também que o transporte consome em média 26% da renda da família de baixa renda e apenas 10% dos estratos mais altos da sociedade. Assim, os mais pobres são mais prejudicados, tendo o direito à cidade restrito em decorrência de questão da ordem econômica. Outro aspecto relativo ao processo de segregação socioespacial diz respeito à baixa densidade de equipamentos ou serviços públicos nas proximidades do empreendimento, apontando para o acesso diferenciado aos recursos da vida, pois são concentrados espacialmente juntamente à parcela da população com maior renda e poder político. O estudo de Menezes (2016) indicou que embora todos os entrevistados tenham ressaltado uma melhoria na qualidade de vida em decorrência da nova moradia, eles tiveram suas expectativas frustradas no que diz respeito a pouca ou inexistência de infraestrutura, que em geral encontrava-se em situação inferior à moradia anterior. No caso de habitação de interesse social, isso vem a repercutir na qualidade de vida dos moradores e até mesmo da reprodução social da família, colocando em questão a eicácia e eiciência do próprio programa, pois a questão habitacional não se resume na simples construção de moradias. Silva (1989) airma que a localização no espaço urbano é determinante para a inclusão ou exclusão social, devido a sua estreita relação com o acesso aos benefícios urbanos, sendo encarada como a porta de entrada aos serviços, não podendo ser compreendida como mero abrigo. Ressalta ainda que a segregação social é funcional ao sistema capitalista, garantindo a reprodução da força de trabalho a baixo custo. Em pesquisa realizada em nível nacional, observou-se num dos empreendimentos do PMCMV que, apesar de haver creche e escola fundamental nas proximidades, elas não atendem a demanda dos moradores, podendo ser agravada com a construção dos outros empreendimentos previstos, de forma que muitos não estudam, esperando vagas. Tais dados apontam para o descompasso dos governos locais ou estudais em acompanhar a demanda suscitadas pelo próprio programa (BRASIL, 2014). Uma possibilidade de enfrentamento dessa expressão da questão social ocorreria pela organização e mobilização dos trabalhadores. No entanto, ana74 lisando a questão da moradia das classes populares na década de 1980 (não muito diferente dos modelos atuais), Silva (1989) airma que a fragmentação ou segregação no espaço urbano diiculta a formação de uma consciência de classe. De um lado, devido à distância física, sobra pouco tempo para a mobilização de assuntos de seu próprio interesse devido ao maior distanciamento entre sua moradia e o local de trabalho. De outro, as pautas de lutas dos moradores acabam sendo deinidos pela singularidade do espaço em que vivem, e não em função da condição de classe social. Acabam lutando por mais investimentos em políticas públicas, em detrimentos das estruturas que promovem a desigualdades sociais. Com efeito, os sujeitos têm que vencer mais uma barreira imposta pela dimensão do espaço para poder vivenciar a concretização de seus direitos ou na busca da ampliação, a partir das necessidades impostas pela realidade concreta. A distância física para os centros de decisão política na cidade é acompanhada de um distanciamento simbólico. Vinculados ao processo de estigmatização que estão submetidos tal população, como espaços de pobreza e violência buscam sua inserção na esfera pública para disputar pelos recursos urbanos, com outros setores da cidade, que concentram maior poder econômico e político. Reconhecendo as mudanças vivenciadas pelas famílias beneiciárias pelo PMCMV, o Estado instituiu em 2014 a obrigatoriedade do Trabalho Social nos empreendimentos por meio de fortalecimento do capital social, geração de trabalho e renda e atividades de educação inanceira para os usos e ocupação dos espaços. De acordo com Passos e Lima (2017), o Trabalho Social vem assumindo a perspectiva de legitimar as ações segregacionistas e disciplinadora de cidadãos. De forma como vêm sendo implementado não tem conseguido estimular a participação politizada e o protagonismo social em todas as etapas do processo e articulação intersetorial com as demais políticas sociais do território. Assim, a garantia do direito à moradia pelo PMCMV é atravessada pelas contradições que perpassam a sociedade capitalista e repercutem diretamente no capital e no trabalho. A expectativa da casa própria é relativizada diante de uma nova realidade concreta imposta à classe trabalhadora, principalmente para aqueles considerados supranumerários, que não levados em consideração na sua particularidade. Apesar da suposta homogeneidade existente dentro da Faixa 1, encontra-se desde trabalhadores assalariados como aqueles que não possuem sequer uma renda estável, vivendo de trabalhos esporádicos e ou transferência de renda. Neste sentido, a cobrança da mensalidade, mesmo que pequena, pode ser bastante onerosa para certas famílias, correndo o risco de perder a casa. Além disso, é comum aparecerem gastos para os quais não faziam parte de sua rotina, como referimos anteriormente, repercutindo negativamente na reprodução social dos trabalhadores. 75 Conclusão O “Programa Minha Casa, Minha Vida” foi criado num contexto de crise mundial do capitalismo de 2008 que se conigurou mais como uma medida econômica anticíclica do que voltado para atender as necessidades reais da população brasileira. O objetivo manifesto de redução do déicit habitacional por meio da construção de moradia apresenta-se como o outro lado do aspecto contraditório da política social, que nesse caso foi a legitimação de uma transferência de recursos públicas para o setor privado. É importante ressaltar que o protagonismo das empreiteiras e a intervenção do Estado têm atuado a favor do processo de especulação imobiliário e afastado a população pobre cada vez mais para as periferias das cidades. Faz-se necessário um maior controle do poder público para que terras urbanas estejam cumprindo sua função social e não voltados para a acumulação do capital, que nesse caso é a apropriação privada da terra, mesmo que ela seja socialmente produzida e valorizada, de forma que a classe trabalhadora não tem conseguido usufruir dos benefícios urbanos na sua totalidade. A manutenção da lógica que fragmenta o espaço diiculta a satisfação das necessidades básicas dos moradores tendo em vista a baixa densidade de equipamentos e serviços públicos nas áreas periféricas. Existem muitos lotes vazios em áreas urbanizadas, voltadas para especulação imobiliária, que poderiam incorporar aqueles que sofrem com a questão habitacional. Muitos custos acabam recaindo na população da baixa renda que precisa pagar mais caro para ter acesso à tais serviços. Deve-se levar em consideração as particularidades dessa população na implementação das políticas habitacionais no país para que a garantia do direito à habitação não repercuta negativamente na garantia dos demais direitos e na reprodução social das famílias beneiciárias, numa situação de desproteção social promovida pelo Estado e executada pelo setor privado. Por ser tratar de uma intervenção voltada para os setores populares que possuem diiculdades de satisfazer as suas necessidades sociais pela via do mercado, faz-se mais necessário ainda que a política habitacional seja acompanhada pela política urbana. Existem vários instrumentos ordenadores do espaço urbano, como o Plano Diretor e os Planos de Habitação de Interesse Social que asseguram a função social da propriedade e não foi levado em consideração na elaboração do PMCMV. O descompasso entre ambas repercute na reprodução da força de trabalho e na qualidade de vida dos moradores, pois as necessidades sociais icam subordinadas à necessidade de reprodução do capital. Por outro lado, tais políticas habitacionais, embora importantes tem um limite pois não modiica as condições estruturais da questão social, atuando apenas em uma de suas expressões. 76 Referências BRASIL. Ministério das Cidades/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Pesquisa de satisfação dos beneiciários do Programa Minha Casa Minha Vida. Brasília, DF: MCIDADES; SNH; SAE-PR; IPEA, 2014. 120 p. BONDUKI, N. Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspectivas no governo Lula. Revista Eletrônica de Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 70-104, jan./jun. 2008. ______. Origens da habitação social no Brasil. Análise Social, Lisboa, v. XXIX, n. 127, p. 711-732, abr./jun. 1994. BOTEGA, L. R. 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De acordo com elas, nós não temos direito a conquistar nada na vida, em nenhuma área, exceto na cama. Elas nunca veem a nossa inteligência ou as nossas criações. Elas simplesmente têm medo de caminhar do nosso lado ou de ter relações proissionais com a gente, pois nós poderíamos lhes dar uma má reputação. Eu escondo a minha homossexualidade dos meus amigos e da minha família. Aqui, os pais querem que a gente case e tenha netos para garantir o futuro do nome da família através das gerações. De qualquer modo, ser gay aqui é um crime e uma vergonha. E o que diz a lei Kuwaitiana? O artigo 193, registra: “As relações sexuais consentidas entre homens adultos (a partir de 21 anos) serão punidas com pena de até sete anos de prisão” (CASTETBON,2015, p.59). Tais discursos foram extraídos do livro “Condenados: no meu país, minha sexualidade é um crime” (CASTETBON, 2015), registro escrito e fotográico da exposição que icou sob a curadoria de Philippe Castetbon. No prefácio, o curador escreve: “A homossexualidade ainda é motivo de condenação em mais de 80 países” (CASTETBON, 2015, p.7). Na foto exposta do Kuwaitiano S., ele esconde os olhos com uma de suas mãos. São dados publicados em 2015 dando conta que, do Afeganistão à Zâmbia, atentados aos Direitos Humanos dos homossexuais, em escala mundial, 80 continuam sendo praticados. Em tais contextos sociais, eles não podem mostrar as suas caras e nem ousar dizer o nome dos seus amores. Pesquisar a homossexualidade não é um empreendimento frívolo. Em sintonia com a Sociologia clássica que estimula a capacidade de “estar à altura do cotidiano”, defendemos que “[...] tudo o que é humano merece ser objeto de nossa análise [...]”. Trilhamos um “vaivém entre os livros e o boteco”. Do gabinete professoral para o burburinho das ruas, é a “cultura vivida no dia a dia”. Comercializando ideias e amores, seguimos uma vertente holística cultural integradora dos “múltiplos aspectos da realidade humana” (MAFFESOLI, 2011, p. 92). O cotidiano, na sua multidimensionalidade, é alvo dos olhares sociológicos. Das relações internacionais às alcovas da nossa intimidade, tudo o que é humano não nos é indiferente. Os sociólogos atentam para os relacionamentos e o curso de vida. Entre os conceitos essenciais da Sociologia, a sexualidade recebe uma deinição prática, em meio a signiicados, interpretações, aspectos controversos e relevância contínua: “[...] características e comportamentos sexuais de seres humanos que envolvem aspectos sociais, biológicos, físicos e emocionais [...]” (GIDDENS; SUTTON, 2016, p. 203). A ligação entre o sexual e o social é trilha para ver o poder no contexto da modernidade, caracterizada pelo “movimento mais a incerteza”. Na confusão e rupturas da paisagem que inquieta e fascina, há abertura e agito nos espaços da família, do trabalho e das convenções morais. Pensando em liberação, “[...] a sexualidade liberou-se de um código rigoroso e sancionado [...]” (BALANDIER, 1997, p. 231). Na atualidade, as revolucionárias e muito profundas mudanças que afetam a sexualidade são alvo do observador atento à transformação da intimidade e o seu potencial subvertedor sobre o conjunto das instituições modernas. Um mundo social diferente ganharia corpo através da realização emocional dos seus sujeitos. Em curso, as democratizações da esfera privada e da vida pessoal. E falando em emancipação sexual, em um contexto democrático, indagamos: “[...] como as normas democráticas apoiam a experiência sexual em si”? (GIDDENS, 1993, p. 212). No Brasil de 1969 – 1980, vozes homossexuais que disseram “abaixo a repressão” demandavam por “mais amor e mais tesão” (GREEN, 2000). A discriminação e violência que envolve a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) no Brasil, em especial no Piauí, motivam a pesquisa sobre ações voltadas ao seu enfrentamento e promoção de cidadania deste segmento. Uma série de categorias conceituais povoam o cotidiano de quem é discriminado e violentado. Violência(s), no plural. Aqui, reletiremos sobre uma das suas facetas. Preconceito, estigma e homofobia são palavras-chave na vida de quem não é aceito pelo que é. Está em jogo uma questão de identidade. Ao relacionar crime e desvio, a Sociologia destaca as vítimas e os perpetradores criminosos. Os crimes contra os homos81 sexuais são destacados. Um “temor irracional ou desdém” em relação a eles deine o que seja homofobia (GIDDENS, 2005). Adentramos em um campo político de luta individual e coletiva. Tensões e conlitos marcam uma arena de diversidade. Cada uma das letras da sigla antes mencionada apresenta demandas especíicas. Os pleitos gerais não podem perder de vista as especiicidades de cada um dos grupos nela inseridos. Lésbicas e gays enfrentam questões que são comuns a ambos mas cada um, em separado, apresenta as suas marcas e pedidos singulares. O cenário a ser desvendado é complexo e não comporta visões maniqueístas e reducionismos. Quando a Sociologia lança o seu olhar sobre “gênero e sexualidade”, a homossexualidade é situada no contexto da cultura ocidental. As atitudes em relação aos homossexuais e as suas lutas por direitos e reconhecimento legais são alvos de relexões sociológicas. Entre as questões para relexão, uma recebe destaque: “[...] de que maneira a interação está estruturada em torno de uma norma heterossexual assumida?” (GIDDENS, 2005, p. 127). Quando as famílias são abordadas, o “s” do plural ganha justiicativa na observada diversidade familiar. Nas alternativas ao casamento, são levadas em consideração as “parcerias gays e lésbicas”. Na sociedade do espetáculo, regularmente são midiatizados casos de ações preconceituosas. Bullying, injúrias, agressões verbais e casos extremos de assassinatos com requintes de crueldade. Marcas sangrentas dos crimes de ódio. Homofobia nas violências em todos os seus matizes, incluindo a sua simbólica faceta. Homossexuais, pobres e negros são alvos de atitudes criminalizadoras. Nos objetivos políticos, dar visibilidade aos casos de violação de direitos e atos violentos em razão de orientação sexual e identidade de gênero. Limites na legislação que regulamenta a punição de atos discriminatórios contra LGBT aumenta a subnotiicação de casos. Na medida em que os homossexuais ampliam os seus espaços de aparição, provocam a ira dos conservadores. Vivemos na telânica sociedade do “sou visto, logo existo”. Um contexto de ambivalências e paradoxos. Progressos e regressões. As relações homoafetivas marcam presença nas novelas e crescem bancadas parlamentares evangélicas. Beijo e “cura” gays fazendo parte dos nossos shows cotidianos. Avanços nas conquistas e a consciência do muito a ser feito. Na linguagem política moderna o cidadão é inserido em um programa de democracia substancial. A democratização da sociedade, em seu conjunto, e o direito à participação política levam em conta os “[...] ins ou valores em direção aos quais um determinado grupo político tende e opera [...]” (BOBBIO, 2017, p. 206). Na esfera social o processo democrático considera o indivíduo “na multiplicidade de seus status”. A sociedade civil, lugar do surgimento e desenvolvimento dos conlitos grupais, apresenta os seus sujeitos: os grupos e os movimentos organizados. Dos orga- 82 nismos de decisão e de execução do Estado é esperada a sua mediação e a função de garantidor de resposta às demandas da coletividade. No debate atual observou-se o desenvolvimento das várias formas de participação e o crescimento das organizações de massa. As instituições estatais são permeadas pela sociedade. Um dicionário político traz os conteúdos e as substâncias das formas hodiernas das relações que dinamizam a vida democrática. Da parte dos governantes ou dos governados ganham relevância problemas políticos diversos, a liberdade dos cidadãos, a felicidade dos indivíduos e o direito de resistência (BOBBIO, 2017). Vivemos em ambivalentes tempos. Progressos e regressões lado a lado na dialética dos acontecimentos. As novas barbáries marcam presença em todas as telas. Consumir imagens violentas é uma das marcas de uma sociedade que espetaculariza atos violentos. A audiência em torno deles capitaliza investimentos. Neste contexto é justiicada a necessidade da produção de mapeamentos referentes às violências contra a população LGBT. As demandas partem dos movimentos sociais atentos aos casos violadores da dignidade de pessoas historicamente estigmatizadas e excluídas. Dar visibilidade a tais violações é um dos objetivos dos defensores dos direitos humanos de quem é invisibilizado. Cotidianas, institucionalizadas e estruturais, as violências que atingem os sujeitos da nossa pesquisa fornecem um vasto material para ser pesquisado. A promoção da cidadania e o enfrentamento da sua negação, materializada nas aludidas violentações, é responsabilidade do Estado. Em tal campo de conlitos, cobrar e pressionar são verbos a serem conjugados. Falamos no plural, por nosso umbilical envolvimento com a temática proposta. Somos sujeito/objeto da pesquisa desenvolvida. Um texto visceral porque falamos de dentro das questões que levantamos. Assumir o que somos é uma atitude política. O desejo é político quando encontra pedras no seu caminho. Enfrentá-las é uma bandeira levantada por quem luta por amplas liberdades. Na microfísica do poder, os confrontos acontecem nos múltiplos espaços do cotidiano. Nas famílias, escolas, igrejas, partidos e outras instituições, encontramos campos para a airmação das nossas identidades. Apresentamos um texto no qual uma substancial parte da nossa história de vida está nele contido. Somos os principais entrevistados de um artigo no qual nos sintimos como protagonistas. Tratamos de trajetórias inseridas em um projeto político coletivo. Pessoas no contexto de um movimento social especíico. Base para a escrita de memoriais. Subjetivações ancoradas em uma metodologia humanística focada em dados qualitativos. Na procura metodológica, a abordagem qualitativa na pesquisa é marcada pela abertura e lexibilidade. Quando a questão é o tamanho da amostragem, um caso pode ser considerado “[...] sempre que seja signiicativo [...]”. No foco, a escolha de “[...] uma simples história que ilumine a questão em estudo [...]” (BLASCO, 2002, p. 145-146). 83 LGBT: ativistas no campo da sigla da diversidade A motivação para produzir esta pesquisa está relacionada com o nosso envolvimento com o tema proposto. As nossas vivências enquanto ativistas gays em Teresina embasam as relexões que serão desenvolvidas. Nos nossos memoriais de vida não poderíamos desconsiderar o nosso engajamento político em torno de dimensões humanas fundamentais. Falamos de afetos e sexualidade. A descoberta das nossas homossexualidades e a aproximação com a temática ocorreu quando airmamos ser homossexuais e sentimos na pele as consequências de tal airmação sob a forma de conlitos familiares e rompimentos de laços. Vivências pessoais comungadas com um expressivo número de experiências vividas por outros. Não estávamos sozinhos para suportar a coerção social. Dilemas pessoais clamavam por enfrentamento. No plano doméstico tínhamos que os encarar, mas à medida que ampliávamos nossas consciências individuais concluímos que precisávamos extrapolar o espaço da casa e ir para as ruas lutar pelo direito de ser quem somos na companhia de um conjunto de outros indivíduos que compartilhavam conosco os sentimentos de exclusão e desrespeito em relação às nossas identidades. A relexão sobre um mundo líquido moderno situa o sexo em uma “[...] fase eletrônica virtual da revolução sexual em curso [...]” (BAUMAN, 2011, p. 33). Ainda não nos acostumamos com a cena de uma roda de homens e mulheres beijando-se com ardor e sem pudor algum. Entre os seus pares, especialmente nos guetos, é onde podemos assisti-los. Observar tais ações é libertador. Manifestações afetivas com um sentido político. Atitudes com força de provocação. Por ainda não se fazerem presentes de modo ordinário, nos nossos cotidianos, geram estranhamento. Entre as ações sociais, os afetos e os sentimentos ganham relevância sociológica por conduzirem signiicados. A homoafetividade provoca escândalo em um contexto tradicional. Na medida em que tais expressões afetivas são impedidas de uma livre manifestação, nos espaços públicos, provocam a reação dos seus atores em busca de proteção legal. Subjetividades contidas na amplitude da questão social brasileira. Beijaços, em atos coletivos, promovidos entre pessoas do mesmo sexo, são uma modalidade de resposta ao preconceito discriminatório. Como a “revolução gay” está “cambiando” o mundo? Tal questionamento parte de ensaio sociológico e geopolítico que vê uma outra história da globalização em marcha. Tomando como io condutor uma evolução das mentalidades, cita uma frase de Obama: “Las parejas del mismo sexo deben poder casarse”. Discurso que empodera e impulsiona o movimento gay, governos progressistas e a sociedade civil. Através do prisma da questão gay esta se converte em “[...] um bom critério para julgar o estado de uma democracia e da modernidade de um país [...]”. Ao apontar “[...] uma nova fronteira para os direitos humanos [...]”, Frédéric Martel está baseado na “[...] convicção de 84 que os direitos dos gays a nível internacional estão convertendo-se em uma questão de direitos humanos [...]” (MARTEL, 2014, p. 24). Os “movimentos pelos direitos dos gays” estão situados entre os “novos movimentos sociais (NMSs)” que colocaram “novas questões”. Uma “onda” que atingiu uma diversidade de países “[...] entre o inal da década de 1960 e meados da década de 1980 [...]” (GIDDENS; SUTTON, 2016, p. 327), a diversidade de representações e de airmações de identidade, um campo de tensão e um risco rico - material empírico para uma sociologia do conlito e da complexidade. Nos espaços de discussão e debate, durante a programação, as falas sempre indicam as diferenças entre os segmentos e suas demandas especíicas direcionadas, em especial, a áreas como saúde e segurança. O anseio por reconhecimento de expressões e airmações de identidades é colocado em evidência. Cobram do Estado um posicionamento em relação a tais demandas e que medidas sejam tomadas. Articular mentes, criar signiicado e contestar o poder são objetivos defendidos pelos movimentos sociais na era da internet. A faixa empunhada pelos ativistas traz a seguinte mensagem: “somos a rede social”. No horizonte de uma cultura da autonomia, as redes de indignação e esperança projetam a transformação do mundo (CASTELLS, 2013). Na sociedade em rede, os movimentos de libertação lesbiano e gay saem em “[...] defesa do direito humano básico de escolher a quem e como amar [...]”. Na construção dos espaços de liberdade, as expressões de identidade sexual vocalizam “o poder do amor”. A mobilização política desaia e critica a família patriarcal, a heterossexualidade compulsória e o “sexualmente normal”. Na era globalizada da informação, grupos e organizações de ativistas locais e globais contemplam a diversidade da experiência humana e o “esmaecimento das fronteiras sexuais”. Um ativismo amoroso e inclusivo abre brecha “[...] no cadafalso institucional erguido para controlar o desejo [...]” (CASTELLS, 2010, p. 256). Destacamos as conjunturas históricas nas quais as questões antes referidas ganharam mais visibilidade. O nosso ativismo está inserido em contextos históricos marcados pelas administrações do Partido dos Trabalhadores (PT). A nível nacional e particularizando o cenário piauiense, o nosso engajamento acontece sob administrações petistas. Na história da homossexualidade no Brasil, a mencionada agremiação partidária recebeu um destaque por ter pautado os interesses dos homossexuais em um contexto histórico onde a visibilidade das suas demandas era tímida, em meio a outros temas. Focalizamos os esforços do movimento LGBT brasileiro sob os governos do Partido dos Trabalhadores, em particular um programa voltado para o enfrentamento da homofobia e para a promoção de direitos: o Brasil sem Homofobia. Iniciativa de grande importância na ampliação de ações e na elaboração de marcos regulatórios e legais para o segmento. Qualquer análise crítica da atuação partidária, em relação a um especíico tema, deve apontar para os paradoxos e ambi85 valências das suas performances. Aludimos a progressões e regressões, avanços e recuos. Tais investidas não são lineares. A atenção está ligada nas contradições em torno de um assunto cercado por múltiplos interesses. Na arena política, o embate entre discursos partidários e religiosos em nome da moral e do zelo pela sagrada instituição familiar. Bancadas evangélicas e laicas em um enfrentamento discursivo de diversos matizes. Penetramos em um campo de complexidades. Conlitos, diferenças, disputas, alianças e concorrências. A questão LGBT, especíica, deve ser abordada de modo contextualizado. Junto com outras questões, conduzidas por outros movimentos, estão situadas em um mundo globalizado, com avanços neoliberais e outras características ligadas a uma sociedade de mercado e dos consumidores. Falamos de uma arena política dentro da qual ocorrem as movimentações sociais. Da causa ecológica à defesa da livre expressão sexual não podemos desconsiderar o chão conjuntural em cima do qual ocorrem todas as lutas políticas. Uma concepção ampla de política abrange múltiplos domínios e arenas morais. Da natureza ao corpo, passando pelas questões existenciais e de direitos humanos, a agenda dos movimentos emancipatórios pauta discussões relacionadas às vidas pessoais e às necessidades planetárias. Num nível individual e coletivo, o poder é gerador e com capacidade transformadora. As éticas da convicção e responsabilidade marcam presença e dentre as perguntas substantivas levantadas, destacamos a seguinte: “que limites devem ser postos ao uso da violência nos assuntos humanos?” Liberdade de escolha, auto-realização e o “como devemos viver” interessa a quem vê que o “pessoal é político” e refere-se à justiça, à igualdade e à participação. Acima de tudo o cuidado é direcionado para a superação dos relacionamentos sociais baseados na exploração, desigualdade ou opressão. Estamos no contexto do surgimento da política-vida (GIDDENS, 2002). Tomar partido, lutar e apaixonar-se são características do homem político. “Política não se faz exclusivamente com o cérebro”. Emoções, sentimentos e afetos entram no movimento. Atividade que exige esforço, tenacidade e energia. Movidos por convicção e responsabilidade éticas somos tomados por uma “força de alma” que dá um impulso, “a despeito de tudo!” (WEBER, 2011). Militar é fazer política. Esta engendra acordos, conchavos e alianças, mas é terreno de brigas, ruídos e fogueira das vaidades. Atividade demasiadamente humana. Consensos e rupturas. Unidade na diversidade é um objetivo trabalhoso. Tais relexões ancoram o modo como apresentamos o universo LGBT. Demandas gerais são comuns a todos os atores que fazem a sigla. Cada letra apresenta pleitos particulares. Rompendo com uma consciência ingênua, expomos as experiências de ativistas que enxergam tapas e beijos entre os protagonistas da batalha em prol do respeito pela diversidade humana. Na França, em Angola, no Japão e em Teresina os homens fazem acordos e rompem relações. Animais políticos que progridem e regridem nas ambivalências e paradoxos históricos. Tais vivências izeram com 86 que colocássemos os pés no chão e desenvolvêssemos um olhar mais crítico e realista acerca dos relacionamentos humanos. A história não deve ser lida de modo linear. Atentamos para uma visão dialética da práxis histórica. Avanços e regressões acompanham o processo histórico. Nos últimos anos o movimento LGBT tem ampliado conquistas. Há motivos para comemorações, mas persiste a consciência do muito para ser conquistado. Há muitas pedras no caminho. A luta continua com vitórias e nós para desatar. O pronome antes mencionado, na primeira pessoa do plural, encerra uma polissemia, pois os percalços estão presentes e a reação a eles é um empreendimento pesssoal e coletivo. Ao longo do texto elencaremos as razões para a realização de festas celebrativas e os obstáculos a ser enfrentados na luta pelo respeito à diversidade de expressões sexuais. A nível federal, estadual e municipal há registros positivos. No desenrolar da movimentação política cruzamos com os aliados e os adversários. Ambos demandam por visibilidade. No contexto teresinense, as iniciativas municipais, algumas articuladas com a participação do movimento LGBT, merecem menção. Em 2004, ocorreu a criação do Disque Cidadania Homossexual no âmbito da Secretaria Municipal do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (SEMTCAS) por meio de lei da então vereadora Flora Izabel do Partido dos Trabalhadores (PT). Outro salto foi dado com a emenda que regulamenta o artigo 9º da Lei Orgânica do Município que trata de atos discriminatórios contra homossexuais e prevê sanções como multas e perca de alvará de funcionamento institucional. No âmbito das intervenções preventivas voltadas para “homens que fazem sexo com homens”, o Projeto “Amar sem Preconceito”, desenvolvido pela Coordenação de DST/AIDS da Fundação Municipal de Saúde (FMS). A pesquisa que desenvolvemos é protagonizada por sujeitos que vivem na contraluz. Aos olhos de uma sociedade moralista, normatizadora, interessada na manutenção da ordem, da normalidade e voltada para a integração, eles são vistos como “desviantes”, “anormais”. Vivemos na sociedade de risco e as práticas sexuais fazem parte do cotidiano do segmento populacional pesquisado. A atuação do militante acontece em várias frentes. A multidimensionalidade humana deve ser encarada através dos múltiplos desejos dos seus portadores. Os direitos sexuais são vistos como direitos humanos. Um texto dissertativo que tenha características dialéticas apresenta passos de avanços e de retrocessos. A nível estadual, uma importante conquista foi a aprovação da Lei Estadual Nº 5.431/2004, de autoria da parlamentar Flora Izabel (PT), que dispõe sobre as sanções administrativas a serem aplicadas à prática de discriminação em razão de orientação sexual e dá outras providências (PIAUÍ, 2011). A nível federal e estadual, a minha militância está inserida em conjunturas históricas marcadas pelas gestões dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Na história da homossexuali87 dade no Brasil há registros de que algumas das suas alas, ao longo do seu histórico partidário, manifestaram uma particular sensibilidade em pautar as demandas dos homossexuais. Tal abertura provoca cisões e pode ser encarada como uma incorreção política. Em nome da moral e dos bons costumes, atuam vozes parlamentares interessadas em não provocar a ira de setores conservadores. Oportunismos e conveniências à parte, ganhar ou perder votos é um critério decisivo na hora de apoiar ou não determinada demanda. Convicção e responsabilidade éticas, entre sintonias e choques de posições. Em tal campo de tensões, atitudes ousadas e recuos estratégicos movimentam as ambiguidades das disputas partidárias. Limites impostos pelas negociações políticas que, em alguns momentos, impõem freios a alguns arroubos mais ousados. Do palanque para a burocracia administrativa, cabe uma relexão sobre a qualidade da atuação petista em suas políticas públicas por um Brasil sem homofobia. Quais os partidos que foram e são mais sensíveis à bandeira da livre expressão sexual? O PT, entre seus altos e baixos, está entre eles. Os governos Lula e Dilma, no plano nacional e Wellington Dias, no solo piauiense, merecem ser avaliados nas respostas positivas que deram e nos recuos dados na forma como administraram os pleitos da população LGBT. Não objetivamos realizar tal avaliação, mas o texto que apresentamos traz elementos que embasam a quem queira empreendê-la. As conquistas legais representam avanços na garantia de proteção contra possíveis atitudes violadoras do direito de ser o que se é. Os marcadores identitários, sob o respaldo legal, possibilitam uma vida menos opressiva para quem assume uma identidade sexual associada a minorias. Destacamos a aprovação da Lei Complementar 51/2005, também de autoria da deputada estadual Flora Izabel, que dispõe sobre a criação da Delegacia de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos e Repressão às Condutas Discriminatórias, apresentada como sendo a primeira especializada em reprimir atos de discriminação no país (PIAUÍ, 2011). A lei protege dois jovens, do sexo masculino, que tenham sido agredidos verbalmente, na praça de alimentação de um shopping center, por estarem se beijando em público? Esta e outras perguntas têm respostas redigidas em artigos e parágrafos de uma legislação a ser publicizada em resposta aos seus infratores. Difundir e compartilhar os seus conteúdos é responsabilidade do movimento LGBT. Tal difusão espalha armas de defesa contra posturas homofóbicas. Participamos de algumas importantes ações iliados ao grupo Matizes, o mais expressivo porta-voz da militância LGBT piauiense. As mulheres são destaque na sua condução. A atuação do Matizes dá material para uma dissertação de mestrado. Dissidências ocorridas nesse período envolveram disputas e airmação de identidades no interior do movimento local. A demanda da visibilidade lésbica, de travestis e mulheres trans apontou para caminhos 88 diferentes na mesma luta por direitos. Por conta de alguns conlitos, gays se organizaram para fazer parte de um grupo especíico: o Coletivo Mirindiba. Uma experiência grupal voltada para as especíicas questões dos homens que fazem sexo com homens. Neste campo de tensões e disputas, o coletivo Mirindiba se colocava como mais uma organização que contribuiria para a luta por direitos de LGBT no Piauí. Teve importante participação em eventos e articulações com instituições do poder público estadual e municipal. A presença majoritária de militantes homens, na sua condução, era uma de suas marcas. Em 2006, surgiu a oportunidade de participarmos da articulação do que futuramente seria o Centro de Referência Homossexual “Raimundo Pereira” (CRH-RP). O signiicativo convite veio da Coordenação de Livre Orientação Sexual – CELOS, a primeira iniciativa governamental voltada para a população LGBT do Piauí. Uma ação pública ligada à Secretaria da Assistência Social e Cidadania – SASC. Implantações datadas de 2003, no governo petista de Wellington Dias. A SASC substituiu o então Serviço Social do Estado (SERSE), em consonância com a nova política nacional de Assistência Social. A conjuntura política daquele momento histórico era favorável. Uma circunstância de abertura e ousadia por parte de uma gestão que mostrava estar disposta a ampliar os alvos das suas intervenções políticas. Expectativas foram produzidas no movimento LGBT. Aquela ocasião, visibilizada por pautas nos noticiários midiáticos, mostrou que os espaços governamentais sinalizavam para investimentos voltados para as demandas dos homossexuais. Uma administração simpatizante da bandeira do arco-íris. O estado do Piauí surpreendia e chocava. Era uma provocação a setores conservadores, ligados a um patriarcalismo familiar tradicional. De lá para cá, entre altos e baixos, como foram os desdobramentos das intenções iniciais? A implantação do CRH-RP ocorreu através da celebração de convênio com a então Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e a SASC. A CELOS foi a responsável pela articulação e operacionalização do projeto. Integrar um equipamento social que de alguma forma poderia enfrentar a homofobia, foi algo animador. No nosso memorial de militantes destacamos a formação de uma equipe que aos poucos se organizava e buscava apontar os caminhos para efetivar serviços especíicos de atenção ao segmento LGBT. Pensar e planejar em grupo é um exercício estimulante e exigente. Trabalhar com um conjunto de individualidades, em torno de questões coletivas, requer abertura em um microcosmo de diferenças individuais. Consensos, divergências, acordos e rachas fazem parte das rotinas grupais de quem lida com tendências. No cotidiano, a convivência com os representantes de cada uma das letras da sigla. A causa maior que nos liga é móvel para que nos eduquemos na participação em atividades grupais. Atentar para outras dores ou cruzes, carregadas pelos outros, fez com que nós percebêssemos que vivíamos em comunhão com aqueles que sofriam 89 por conta das violências produzidas por quem lida mal com a diversidade humana. As facetas da violência que passamos, em razão de orientação sexual, não foram tão doloridas quanto algumas vistas nos casos que chegavam ao Centro de Referência. Tal comparação relativizadora resulta de um encontro com a alteridade de quem sabe das “dores e das delícias de sermos quem somos”. Funcionários a serviço do governo estadual, ativistas gays e iliados ao Partido dos Trabalhadores. Estávamos no poder e tínhamos que pensar em realizações. A conjuntura estava favorável e expectativas foram criadas por conta das promessas feitas. Do palanque para a rotina administrativa chegava a hora de fazer algo substantivo pelo segmento LGBT. Ao longo destes anos participamos de diversas atividades e projetos locais, regionais e nacionais de diferentes áreas das políticas públicas e também de ações partidárias. Desde a sua fundação, o Centro de Referência LGBT passou por várias mudanças. Uma delas foi a ampliação do próprio nome para dar visibilidade aos diferentes segmentos. Alterações de endereço e de equipe fazem a sua história. Esta última foi icando cada vez mais reduzida, algo que teve relexo direto no funcionamento da Organização. Entramos no campo da empresa, burocrática e racional, sujeita aos múltiplos interesses. Um micro espaço dentro de uma macro administração estatal sujeita a ingerências diversas. As atividades a serem desenvolvidas icam na dependência dos ventos favoráveis ou não das conjunturas políticas. A continuidade dos projetos ica comprometida. O fazer concreto é atravessado pela vulnerabilidade. O sai daqui e vai pra lá e os altos e baixos das realizações cotidianas trazem a marca da instabilidade e da incerteza. A gestão das especíicas demandas do público LGBT, dentro da máquina do Estado, acompanha o trajeto histórico de uma cultura política com traços nepotistas, clientelistas e favoritistas. A apropriação privada do que é público é outro marcador de identiicação do modo como são gerenciados os recursos públicos. É neste contexto político brasileiro, piauiense e teresinense que vivemos as nossas militâncias. Conclusão Para a sala de aula debater sobre o “tornar-se gay” “Piauí sem discriminação” é um documento-guia patrocinado pelo governo do estado do Piauí, através da Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania/SASC. A Unidade de Direitos Humanos, a Coordenação de Enfrentamento à Homofobia e o Centro de Referência para Promoção da Cidadania LGBT Raimundo Pereira, através de seus gestores, assinam o conteúdo da citada fonte documental. O projeto “Piauí sem Homofobia” con90 juga o verbo capacitar e apresenta objetivos básicos em relação à população LGBT: promover os direitos humanos e efetivar políticas públicas airmativas. A “violência homofóbica” é destaque quando o foco incide sobre o quadro situacional de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. O que é homossexualidade? Conceituá-la é um primeiro passo. Doença? Pecado? Crime? Sem-vergonhice? Ao longo da história uma multiplicidade de discursos, provenientes dos mais variados campos, foram proferidos sobre as práticas homossexuais. As falas médicas, religiosas, legais e moralistas traziam receitas para a cura dos indivíduos “anormais”, “desviantes” e perigosos no sentido de serem uma ameaça para a manutenção da harmonia social. Uma sociologia da integração apresenta uma sociedade coercitiva e falante em nome da moral e dos bons costumes. Normalizar, normatizar e esquadrinhar são verbos-chave quando o olho do poder é vigilante. Práticas discursivas produzidas socialmente. Dos ativistas é esperada a conjugação do verbo desconstruir. Uma desconstrução sociológica desnaturaliza, desreiica e desessencializa. Abordagem teórica ainada com a ideia segundo a qual ninguém nasce isto ou aquilo. Tornamo-nos. Os guardiões da “ordem” querem impedir que tal “ideologia” seja abordada na sala de aula. Partindo da sexualidade, em uma perspectiva da microfísica dos poderes, protagonizamos movimentos de airmação nos quais são pensadas novas estratégias no campo de relações de poder produtivas. As “verdades” discursivas produzidas sobre a homossexualidade, em seus matizes jurídicos, morais, religiosos e médicos passam a enfrentar as resistências de um ativismo ancorado em uma teoria crítica que tem entre os seus objetivos fazer a história política de uma produção de “verdade”. Os nãos históricos, vigilantes, lançados em direção aos relacionamentos homossexuais constituem práticas proibitivas e limitantes. Tais coerções são desvendadas pela ótica de um bio-poder que amplia a visão acerca do controle da sociedade sobre os indivíduos. O alvo principal dos olhares policialescos é a realidade biopolítica chamada corpo. É no somático, no corporal que começa tal investimento controlador (FOUCAULT, 1979). Nossos corpos dariam um romance. Medicalizados, alvos de receitas, bulas, conselhos e ordens. De olho neles, os gerenciadores sobre o espaço corporal (DANIEL, 1984, p. 273). Em primeiro lugar há uma necessidade de deinições conceituais. A população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais dizem quem são. Quem está dentro da sigla LGBT e quer publicizar as especíicas experiências de ser um de seus membros, precisa atentar para o objetivo de deinir conceitos com os quais lidam nos seus cotidianos. Uma pergunta básica: o que é homossexualidade? Uma militância qualiicada deve estar atenta para a formação de seus sujeitos. Capacitá-los para posicionamentos mais consistentes, quando forem convocados para falar, é uma iniciativa que respalda e valoriza o conteúdo proferido e o seu emissor. A questão antes mencionada demanda uma pesquisa sobre a multiplicidade de discursos construídos, ao 91 longo da história, sobre o ser homossexual. Do discurso médico ao antropossociológico, o pesquisador faz as suas leituras para depois defender a sua deinição. De um militante é esperado um posicionamento crítico e desconstrutor. No enfrentamento do preconceito e estigma, que são construções sociais, a arma da crítica desvendadora. Na sequência conceitual, a deinição de identidade de gênero. Quando o foco é o conceito do que seja orientação sexual, são lançados distintos olhares sobre a variação cultural da sexualidade humana. Em suas análises, são várias as correntes de pensamento. Da Antropologia à Psicanálise freudiana, destacamos os critérios e parâmetros construtivistas dos autores: o sexo morfológico, o papel de gênero, comportamentos e papéis sexuais, estigma, o tipo de objeto de desejo e pulsão sexual (CARDOSO, 1996). Partindo da ideia segundo a qual somos multidimensionais, pensamos a sexualidade como uma das dimensões das nossas experiências humanas. A ela associamos desejos. Quando reletimos sobre o conceito de felicidade vem às nossas mentes uma visão complexa do que seja ser feliz. As nossas necessidades são múltiplas. Queremos comida, trabalho, lazer e afeto. A dimensão sexual está incluída e concluímos que, na medida do possível, devemos responder às demandas emanadas de cada um dos componentes da nossa multidimensionalidade. Para o assunto que, no momento, chama a nossa atenção, citemos um exemplo: um indivíduo, já adulto, bem situado do ponto de vista inanceiro e que vive desassossegado por ter diiculdades de assumir a sua homossexualidade. Uma situação particular, um caso privado mas compartilhado por um signiicativo número de outros indivíduos. Um drama íntimo que impacta nos relacionamentos de quem o vivencia. Uma experiência dramática comungada por uma grande quantidade de pessoas. Há quem fale em “minorias” sexuais mas, no cotidiano, acompanhamos o sofrimento dos muitos que sentem dores por não poderem ousar dizer o nome do seu amor. Diante da negação de um direito, são variados os desdobramentos subjetivos experimentados por quem sofre discriminação, exclusão, preconceito e estigmatização. Quem eu quero amar é uma questão das nossas intimidades mas é também um assunto coletivo, social e político. Importa atentar para a orientação sexual dos indivíduos. É algo visceral aos seus seres. Não se trata de um apêndice periférico, secundário. Estamos na esfera dos marcadores identitários. Eu sou, tu és, ele é, nós somos e assim por diante. Qualidade de vida, cidadania, política pública e democracia não podem desconsiderar as múltiplas fomes e sedes humanas: do pão nosso de cada dia às nossas carências afetivas e sexuais. Como ser feliz se não posso ser quem eu sou? A realidade, na nossa perspectiva teórica, é apresentada como uma construção social. Assumir tal referencial teórico implica desnaturalizar, desreiicar e desessencializar os processos humanos. A ideia de tornar-se, de vir a ser, do inacabado, recebe investimento. No movimento da dialética histórica cons92 truímos as nossas identidades e produzimos cultura. Pecado, doença, crime e sem-vergonhice são expressões que têm acompanhado a história da homossexualidade. Práticas discursivas de origem religiosa, médica, legal e moral. Construções históricas datadas e estigmatizantes para serem desconstruídas pela crítica socioantropológica. Daí a importância de projetos de capacitação visando formar militantes qualiicados para intervenções desconstrutoras. A crítica é uma arma no confronto ideológico. “Anormais” e “desviantes” são rótulos e enquadramentos que perseguem os homossexuais. Estigmatizá-los gera a invisibilidade dos mesmos. Entre os exercícios desconstrutores, desconstruir a ideia que diz ser a homossexualidade uma “opção” sexual. Somos convidados a penetrar na sigla LGBT. O que têm em comum Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros? Quais as singularidades de cada um dos segmentos nela inseridos? O que aglutina tal multiplicidade de experiências existenciais? Preconceito, estigma, exclusão e discriminação são palavras de um glossário comum a todos (as). Da performance mais discreta à mais espalhafatosa, estamos dentro de um campo plural protagonizado por indivíduos procedentes de variados contextos sócio-econômicos. Negros, brancos, pobres, ricos, jovens, velhos, homens e mulheres compõem a população de uma sigla marcada por consensos e divergências. Atitudes preconceituosas e discriminatórias são praticadas no seu interior. Pobreza e riqueza produzem seus diferentes espaços. Na trilha classista, homossexuais das classes sociais privilegiadas frequentam espaços compatíveis com as suas posições inanceiras. O contexto LGBT mostra ser uma espécie de microcosmo das contradições e desigualdades da sociedade onde está situado. Não cabem discursos apologéticos e maniqueístas para analisá-lo. O que acontece no seu exterior ganha roupagens internas em um terreno produzido pelas ambiguidades humanas. A letra T, da sigla LGBT, apresenta questões especíicas. Merece destaque a discussão teórica em torno da “identidade de gênero”. Os referenciais teóricos embasam as relexões sobre as pessoas travestis, transexuais e transgêneros. Como chamá-las na lista de espera de um consultório odontológico ou na chamada de uma sala de aula? Estamos falando do “nome social”. “A” travesti Tina Summer (atentemos para o uso do artigo no feminino) começa a frequentar um curso universitário e no momento de registrar a frequência o professor chama por Francisco das Chagas Ribeiro, nome de batismo de Tina. E “ela”, do seu salto alto, com um corpo esculpido, de batom e trajada com um vestido carmim, sente um certo desconforto para dizer “presente”. Tina espera que os outros discentes saiam e vai na direção do docente para comunicar que deseja ser identiicada pelo seu “nome social”. Uma delicada questão a ser encarada em outros contextos sociais, além dos espaços escolares. Daí a importância de reletirmos sobre tal assunto ao longo do processo de formação dos mais variados proissionais. São cenas cada vez mais 93 constantes nos nossos cotidianos. Tema que demanda respostas pedagógicas e legais. A legislação já contabiliza alguns retornos favoráveis às pressões dos movimentos de LGBT na direção da garantia de uma “carteira de identiicação do nome social”. Para além do carnaval, a homossexualidade masculina no Brasil do século XX provocou reações médico-legais. O discurso propunha controle e cura (GREEN, 2000). Vivemos em uma sociedade medicalizada e é neste contexto que registramos mais uma conquista para o movimento de LGBT. Desde os anos 70, do século passado, as associações e conselhos médicos, reunidos em suas assembleias, vinham trabalhando em uma direção desconstrutora, ou seja, desconstruindo uma ideia que medicalizava os homossexuais. Estes, durante muito tempo, foram tratados, nos confessionários da clínica médica, como doentes e desviantes. Com a sua despatologização, a “homossexualidade não é doença” e não é mais um problema médico. A Psicologia também seguiu um caminho desconstrutor. Os psicólogos não mais olhavam para o homossexual como doente e pervertido. Com o avanço do discurso cientíico moderno, desmedicalizando as práticas homossexuais, a ideia de “cura”, de reconvertê-los à normalidade heteronormativa sofre um abalo. Em tal contexto de avanços discursivos, convém o uso de uma terminologia mais congruente com os saltos qualitativos dados. “Homossexualidade ao invés de homossexualismo”. O argumento diz que o suixo “ismo” evoca a noção patológica de uma das formas de expressão da sexualidade humana. Não se trata mais de pessoas patologizadas mas de quem mostra um outro jeito de viver as suas experiências sexuais. A Sociologia promove um encontro entre gênero, sexualidade e educação. Vários são os temas a serem debatidos: diferenças de gêneros, a construção social do gênero e do sexo, feminilidades, masculinidades e relações de gênero, inluências sociais no comportamento sexual e a homossexualidade (GIDDENS, 2005). As famílias, as escolas e as igrejas não podem deixar de lado o enfrentamento de tal conjunto temático. Destacamos as instituições escolares enquanto espaços de formação. As salas de aula precisam dar um tempo para a discussão das questões referentes aos comportamentos sexuais dos indivíduos. O gênero e a orientação sexual são fontes de identidade. Assuntos relevantes para a relexão no contexto educacional. A capacitação dos docentes formadores na abordagem dos mesmos é uma condição necessária para que sejam tratados de forma complexa. Na conjuntura atual brasileira há, da parte de grupos religiosos, uma movimentação tentando excluir das escolas a exposição sobre a chamada “ideologia de gênero”. Segundo os seus porta vozes a ideia desnaturalizadora segundo a qual nos tornamos homens e mulheres, promove uma visão distorcida da teoria bíblica, cristã e criacionista. Consideramos que tal resistência religiosa está fundada em um desconhecimento das matrizes teóricas que alicerçam uma ótica construcionista dos processos sociais. Para além dos 94 referenciais evangélicos importa ampliar as nossas relexões com a abertura para um enfoque multidisciplinar. As ciências humanas e sociais, em especial, dispõem de um qualitativo capital de referências conceituais e analíticas para tratar das “identidades de gênero”. Quem desenvolve um projeto educativo voltado para a vida, integral e embasado na multidimensionalidade humana, não pode deixar de fora dos espaços escolares o estudo das relevantes questões ligadas às nossas sexualidades. Referências BALANDIER, Georges. O Contorno: Poder e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BLASCO, Pablo González. Medicina de Família & Cinema: Recursos Humanísticos na Educação Médica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002. BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: Fragmentos de um Dicionário Político. Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2017. CARDOSO, Fernando Luiz. O Que é Orientação Sexual. São Paulo: Brasiliense, 1996. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2010. ----------------. Manuel. Redes de Indignação e Esperança: Movimentos Sociais na Era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CASTETBON, Philippe. Condenados: No Meu País, Minha Sexualidade é Crime. Fortaleza: Sobral Gráica, 2015. DANIEL, Herbert. Meu Corpo Daria um Romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. 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São Paulo: Cultrix, 2011. 96 PARTE II POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIAIS: DEMANDAS DA SOCIEDADE E AÇÃO DO ESTADO 97 CAPÍTULO VI. POLÍTICA SOCIAL NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E INTERSETORIALIDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA POLÍTICA DE SAÚDE Nayra Sousa Araujo Simone de Jesus Guimarães Introdução No capitalismo monopolista, as políticas sociais são alvos de constantes problematizações. Muito se discute acerca dos seus limites, possibilidades, eicácia, eiciência e efetividade, principalmente diante de um cenário contemporâneo de ajuste iscal em moldes neoliberais e de redução do gasto público no âmbito social. A saúde é uma das políticas sociais que mais têm visibilidade no contexto brasileiro, pois se insere e tem inluência nos mais diversos aspectos da vida humana e, consequentemente, da organização da vida coletiva, em sociedade, indo além do processo limitado de saúde x doença, isto é, da concepção de saúde enquanto ausência de doença física. Nesse sentido, pode-se airmar que existe uma noção de saúde ampliada, que considera vários aspectos que a determinam e condicionam, a exemplo de moradia, trabalho, lazer, alimentação, entre outros. No Brasil, o principal marco legal para o entendimento da saúde enquanto política com um conceito ampliado é a Constituição Federal de 1988, intitulada cidadã, que introduz no país a perspectiva de direitos sociais dos cidadãos e a responsabilização do Estado pela garantia do acesso da população a tais direitos, tendo em vista o enfrentamento das desigualdades sociais (BRASIL, 1988). A partir de então, a saúde passa a compor a Seguridade Social, juntamente com as políticas de Previdência e Assistência Social. Na década de 1990, deu-se a promulgação das leis infraconstitucionais referentes a cada uma das três políticas sociais da Seguridade Social. O Sistema Único de Saúde (SUS) é delimitado, a saúde é reairmada enquanto direito de todos e dever do Estado, e o conceito ampliado de saúde é reconhecido ao se considerarem diversos determinantes e condicionantes do processo saúde-doença, dentre eles os determinantes sociais. Tal fato corrobora a necessidade de equipes multiproissionais, para além das proissões médicas, nos espaços sócio-ocupacionais que planejam e executam ações e serviços em saúde. Corrobora ainda a noção de que, com o conceito ampliado, o enfrentamento das questões de saúde precisa estar articulado com outras políticas públicas. Entretanto, é importante destacar que, na década de 1990, também houve o acirramento dos ideais neoliberais no Brasil, seguindo a tendência mundial de encolhimento da participação do Estado no âmbito social, principalmente no que se refere às políticas sociais. Assim, ao mesmo tempo em 98 que direitos sociais conquistados eram consolidados na legislação, também havia pressão por parte do grande capital para que o Estado redirecionasse o seu papel e se afastasse dos investimentos no âmbito social (BRAVO, 2008). Tal fato contribui para que, na contemporaneidade, haja uma disputa entre o projeto privatista, da saúde como mercadoria, e o projeto da saúde ampliada e direito de todos. A partir do entendimento de que as políticas sociais atuam sobre as expressões da questão social, que é produto do modo de produção capitalista, este artigo tem como objetivo realizar uma discussão acerca da Política de Saúde no Brasil enquanto política social, levando em consideração a relação conlituosa entre Estado, sociedade civil e capital. Pretende-se também discutir acerca da intersetorialidade entre políticas públicas e, no âmbito da política de saúde, como instrumento para se efetivar a universalização da proteção social no Brasil. Para cumprir o objetivo ora proposto, fez-se uso da pesquisa bibliográica como metodologia. O artigo está dividido em três partes, além da introdução e da conclusão. Na primeira parte, apresenta-se uma discussão acerca da questão social e do entendimento que o Estado deve atuar através de políticas sociais para manter a coesão social; em seguida, resgata-se um pouco da história da saúde no Brasil e as tendências neoliberais em curso na contemporaneidade; por im, discute-se a intersetorialidade entre políticas públicas e como é apontada na política de saúde. O Estado e a questão social no modo de produção capitalista: relexões sobre a problemática O advento do modo de produção capitalista traz consigo diversas implicações, que moldam a forma de organização, produção e acumulação da sociedade. É também nesse cenário capitalista que a questão social é produzida e reproduzida, passando a exigir respostas do Estado que se traduzem em políticas sociais. Cerqueira Filho (1982, p. 21) airma que é possível entender o termo questão social como um “[...] conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos [...]” que surge a partir da implantação do modo de produção capitalista, com o processo de industrialização e o consequente surgimento da classe operária e da fração industrial burguesa, emergindo como problema que demanda resposta do Estado. Assim, depreende-se que não se pode desvincular o termo da relação conlituosa entre o mundo do capital e o mundo do trabalho. De acordo com Netto (2001), o uso da expressão “questão social” surgiu na terceira década do século XIX na Europa Ocidental, considerada berço do modo de produção capitalista, para dar conta do fenômeno do pauperismo massivo da classe trabalhadora, instaurado após a implantação do capitalismo industrial-concorrencial, que teve início na Inglaterra. Porém o referido autor 99 ressalta que o pauperismo não correspondia apenas à pobreza e à desigualdade entre distintas camadas sociais, já existentes desde os primórdios da sociedade, mas ao fato de que, “[...] pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas” (NETTO, 2001, p. 42). Assim, o pauperismo que crescia na razão direta em que se desenvolviam os meios de produção (objetos de trabalho + instrumentos de trabalho) passou a ser denominado questão social, devido aos desdobramentos políticos da classe explorada (operária), que, inconformada com sua situação, passou a lutar para a supressão da exploração e da opressão por parte da classe burguesa. Como airma Pastorini (2004, p. 110), “[...] a ‘questão social’ apresenta-se, desde as suas primeiras manifestações, estreitamente vinculada à questão da exploração capitalista, à organização e mobilização da classe trabalhadora na luta pela apropriação da riqueza social”. Devido ao desenvolvimento do modo de produção capitalista e de suas modiicações produzidas em prol de sua sustentação e propagação na sociedade, a questão social consequentemente atingiu também novos contornos e signiicados, que não se restringiram apenas ao conlito entre o capital e o trabalho. Por isso, Ianni (1992, p. 92) é pertinente ao airmar que, “[...] conforme a época e lugar, a questão social mescla aspectos raciais, regionais e culturais, juntamente com os econômicos e políticos. Isto é, o tecido da questão social mescla desigualdades e antagonismos de signiicação estrutural”. Em outras palavras, a questão social também é perpassada por demarcadores de desigualdades, entre eles os aspectos raciais, regionais e culturais que, somados aos econômicos e políticos, a moldam de acordo com a conjuntura vigente. Porém vale ressaltar que, para o referido autor, independente da conjuntura em que se apresenta, a questão social é, em geral, naturalizada, principalmente por setores dominantes e representantes do Estado, como se as desigualdades sociais fossem inevitáveis e, portanto, reproduzidas em qualquer tipo de sociedade. O autor considera que [...] não é episódica, ao contrário, é permanente, a convicção de setores dominantes e governantes, civis e militares, de que as manifestações operárias e camponesas ameaçam a ordem pública, a paz social, a segurança, a ordem estabelecida ou “a lei e a ordem”. Qualiicam essas manifestações como problema de polícia ou também militar. (IANNI, 1992, p. 95-96). Até a década de 1930, a questão social era tratada pela classe dominante brasileira como algo ilegal, sem legitimidade, que deveria ser resolvida no interior dos aparelhos repressivos do Estado. A classe dominante também buscava barrar a emergência do movimento operariado, que vinha se intensiicando à medida que se desenvolvia o processo de industrialização brasileira. 100 De acordo com Cerqueira Filho (1982), foi apenas a partir de 1930 que a questão social no Brasil deixou de ser tratada como algo episódico, para ser tratada como uma questão eminentemente política, que merece a devida atenção e resposta por parte do Estado, “[...] não porque não existisse já, mas porque não tinha condições de se impor como questão inscrita no pensamento dominante” (CERQUEIRA FILHO, 1982, p. 59). A partir do exposto até aqui, pode-se airmar que a sociedade civil é o lugar onde surgem conlitos de diversas ordens (econômicos, políticos, sociais etc.), cabendo ao Estado e às instituições que o compõem o dever de resolvê-los a im de manter a coesão social e garantir o processo de acumulação do capital. Diante disso, existem as políticas públicas que “[...] são intervenções planejadas do poder público com a inalidade de resolver situações problemáticas, que sejam socialmente relevantes” (DI GIOVANNI, 2008, p. 2). Nesse sentido, as políticas públicas podem ser consideradas como instrumentos pelos quais o Estado atua sobre as demandas que surgem através da sociedade civil e das classes sociais em disputa. Tais políticas públicas, portanto, devem ser compreendidas de acordo com a evolução histórica da relação entre Estado, sociedade civil e classes sociais, pois, como airma Faleiros (2009, p. 60), “[...] as medidas de política social só podem ser entendidas no contexto da estrutura capitalista e no movimento histórico das transformações sociais dessas mesmas estruturas”. Netto (1992) airma que a atuação do Estado na sociedade se modiica de acordo com os diferentes estágios de desenvolvimento do sistema capitalista. Assim, no denominado capitalismo concorrencial, a atuação do Estado se dava basicamente para garantir a propriedade privada. Já no estágio de monopólios, o capitalismo passou a exigir uma atuação mais enérgica do Estado a im de garantir os seus objetivos econômicos de maximização dos lucros. Como diz esse autor, “[...] no capitalismo monopolista, as funções políticas do Estado imbricam-se organicamente com as suas funções econômicas” (NETTO, 1992, p. 21). Depreende-se disso que as políticas sociais são funcionais para o capitalismo monopolista uma vez que, de acordo com Netto (1992), cumprem a função de manter a coesão social através do controle e preservação da classe trabalhadora. Pastorini (2004, p. 110) também corrobora esse pensamento ao airmar que “[...] as ações estatais, como as políticas sociais, têm como meta primordial o enfrentamento daquelas situações que possam colocar em xeque a ordem burguesa [...]”, contribuindo, portanto, para o desenvolvimento em larga escala do capitalismo. Nesse sentido, [...] através da política social, o Estado burguês no capitalismo monopolista procura administrar as expressões da “questão social” de forma a atender as demandas da ordem monopólica conformando, pela adesão que recebe de categorias e setores cujas demandas incorpora, sistemas de consenso variáveis, mas operantes. (NETTO, 1992, p. 26-27). 101 A atuação do Estado sobre as expressões da questão social historicamente tem-se dado, no Brasil, através de políticas setoriais, ou seja, em cada setor da vida em sociedade vão sendo criadas políticas próprias. Tal divisão por setores é fruto da própria lógica capitalista que orienta que “[...] a política social deve constituir-se necessariamente em políticas sociais: as sequelas da ‘questão social’ são recortadas como problemáticas particulares [...] e assim enfrentadas” (NETTO, 1992, p. 28). Isso acaba por fragmentar a atuação do Estado no atendimento às demandas oriundas da população, perdendo de vista que a questão social está intrinsicamente relacionada ao conlito entre capital e trabalho e ao conjunto das desigualdades produzidas pelo modo de produção capitalista. Mesmo sendo funcionais ao capitalismo, as políticas sociais não devem ser reduzidas somente aos interesses das classes dominantes, pois, como pontuam os autores Netto (1992) e Pastorini (2004), são também frutos da reinvindicação e mobilização da classe trabalhadora que, desde os primórdios do capitalismo, se coloca na posição de lutar por melhores condições de trabalho e pelo reconhecimento dos seus direitos. É possível airmar que as políticas sociais são permeadas por contradições e conlitos entre interesses antagônicos, assim expressos: de um lado, o capital que busca cada vez mais alcançar a maximização dos lucros, de outro lado, a classe trabalhadora que luta para ser reconhecida como detentora de direitos. Pastorini (2004, p. 111) airma que as políticas sociais “[...] devem ser vistas como uma relação, uma mediação entre a sociedade civil e o Estado, que relete sua dupla característica de coerção e de consenso, de concessão e de conquista”. Assim, embora sejam utilizadas como instrumentos do capital para manter a coesão social, as políticas sociais podem signiicar também poder de negociação e conquistas para a classe trabalhadora. Nas palavras de Behring (2009a, p. 315-316), [...] as políticas sociais são concessões/conquistas mais ou menos elásticas, a depender da correlação de forças na luta política entre os interesses das classes sociais e seus elementos envolvidos na questão. No período de expansão, a margem de negociação se amplia; na recessão, ela se restringe. Como dito anteriormente, a atuação do Estado na sociedade se modiica de acordo com os diferentes estágios do capitalismo. Nesse sentido, a tendência contemporânea é de encolhimento da participação do Estado no âmbito social, principalmente no que se refere às políticas sociais, seguindo a agenda neoliberal. Conforme aponta Behring (2009b), os ideais neoliberais surgiram a partir dos anos de 1970 por conta de uma forte onda de estagnação que abalou os países capitalistas, ocasião em que os detentores do capital reagiram propondo medidas que atingiam principalmente os direitos trabalhistas e sociais conquistados em período anterior. Diante disso, o que se percebe é uma política de redirecionamento do “[...] fundo público como um pres102 suposto geral das condições de produção e reprodução do capital, diminuindo sua alocação e impacto junto às demandas do trabalho, ainda que isso implique em desproteção e barbarização da vida social” (BEHRING, 2009b, p. 46). De acordo com Behring e Boschetti (2010), o ideário neoliberal traz consigo um trinômio para as políticas sociais: privatização, focalização e descentralização, que se materializam em diversas tendências, entre elas: a transferência das responsabilidades estatais para a sociedade civil, principalmente para o chamado “Terceiro Setor”, termo que faz referência às organizações e instituições geridas pela sociedade; a privatização dos direitos, bens e serviços, como a saúde, por exemplo; a focalização das políticas sociais, submetendo a população aos critérios, muitas vezes vexatórios, de seletividade. Com isso, a lógica de proteção social, enquanto conjunto de políticas públicas sociais, se fragmenta e a população encontra entraves para ter acesso aos direitos e serviços assegurados em leis. Nas palavras das referidas autoras: A tendência geral tem sido a de restrição e redução de direitos sob o argumento da crise iscal do Estado, transformando as políticas sociais – a depender da correlação de forças entre as classes sociais e segmentos de classe e do grau de consolidação da democracia e da política social nos países – em ações pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos mais perversos da crise (BEHRING; BOSCHETTI, 2010, p. 156). Montaño e Duriguetto (2010) airmam que o neoliberalismo tem impacto também sobre a organização e mobilização da classe trabalhadora, bem como do seu poder de negociação. De acordo com os autores, para além dos impactos objetivos do neoliberalismo, a saber: desemprego, subemprego, precarização, terceirização, entre outros, há também impactos no ideal de classe trabalhadora, isto é, há uma fragmentação, desmobilização dos trabalhadores, que passam a atuar de forma corporativista, individualizante, perdendo o poder político de organização. Com isso, o capital ganha força e “[...] aposta na desmobilização mediante a resignação frente a fenômenos supostamente naturais, irreversíveis, inalteráveis” (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2010, p. 220). Diante da conjuntura neoliberal, a Política de Saúde, integrante da Seguridade Social, também vem enfrentando desmonte e precarização que vão de encontro ao conceito ampliado de saúde defendido pelo Movimento da Reforma Sanitária e inscrito na Constituição Federal de 1988. No próximo item, serão apontados alguns aspectos históricos da saúde no Brasil, bem como algumas tendências contemporâneas em curso. Política de Saúde no Brasil: resgate histórico e tendências contemporâneas Até a década de 1960, a saúde era tratada de forma curativa, voltada apenas 103 para o tratamento da doença física, e a organização dos serviços públicos de saúde priorizavam as campanhas sanitaristas (BRAVO, 2008). Nesse período, a política de saúde não era considerada um direito de todos, pois dava ênfase ao atendimento dos problemas de saúde dos indivíduos que estavam inseridos no mercado de trabalho. Tal fato pode ser constatado quando se observa o processo de estruturação das primeiras iniciativas de proteção social, como, por exemplo, as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), e o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), criadas para dar cobertura apenas aos trabalhadores urbanos que eram contribuintes e com uma medicina curativa, individualizada e focada nas questões que envolviam o processo doença-trabalho (SOUSA, 2014). A partir da década de 1970, surgiu, no cenário mundial, um debate no qual se enfatizou a determinação social e econômica da saúde, ultrapassando a direção até então centrada na doença, priorizando também as necessidades humanas básicas como fatores que determinam e condicionam a saúde. No Brasil, em meados da década de 1980, a saúde assumiu uma dimensão mais política, vinculada à democracia, pois o contexto era de redemocratização do país, após o im da ditadura militar (BRAVO, 2008). Nesse período, surgiu a proposta do Movimento de Reforma Sanitária, que defendia a universalização das políticas sociais, a garantia dos direitos sociais, uma concepção mais ampla de saúde que ultrapassasse os aspectos físicos e biológicos da doença, considerando também os aspectos sociais e culturais, bem como as condições de vida da população. De acordo com Mendes (1994, p. 42), [...] a Reforma Sanitária pode ser conceituada como um processo modernizador e democratizante de transformação nos âmbitos políticojurídico, político-institucional e político operativo, para dar conta da saúde dos cidadãos, entendida como um direito universal e suportada por um Sistema Único de Saúde, constituído sob regulação do Estado, que objetive a eiciência, eicácia e equidade [...], criação de mecanismos de gestão e controle populares sobre o sistema. A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986 em Brasília - Distrito Federal e levando em consideração os ideais da Reforma Sanitária, foi um fato marcante e fundamental para a discussão da questão saúde no Brasil, tendo, como principais eixos: a saúde como um direito universal, de todo ser humano, a criação de um sistema de saúde que se estendesse a todo território brasileiro e, ainda, o inanciamento (BRAVO, 2008). A descentralização das discussões foi um fator decisivo nesse processo de ampliação da questão saúde, pois o debate não se concentrou apenas entre os técnicos, ou seja, outros atores participaram, tais como: partidos políticos, sindicatos, representantes da população, entre outros, assegurando uma dimensão mais política. 104 As mudanças e recomendações propostas durante a 8ª Conferência Nacional de Saúde foram levadas para discussão na Assembleia Constituinte, realizada entre os anos de 1987 e 1988, caracterizada como um dos marcos do processo de transição democrática, período em que o país saía de um regime ditatorial e visualizava novos rumos pautados na democracia. Assim, em 1988, a nova Constituição Federal, intitulada “constituição cidadã”, introduziu, no cenário brasileiro, a política de saúde como um direito de todos e um dever do Estado, instituindo o atual Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 1988). Dois anos depois, em 1990, o SUS foi regulamentado pela Lei Federal 8.080/90, sendo considerado, no art. 4º, como “[...] o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público” (BRASIL, 1990). A organização dos serviços do Sistema Único de Saúde deve ocorrer observando alguns princípios norteadores que também são provenientes dos ideais da Reforma Sanitária. Dentre eles, destacam-se: a) universalidade: os serviços de saúde devem ser acessíveis a todos os cidadãos, do mais pobre ao mais rico, sem distinções; b) integralidade: as ações e serviços devem articular as dimensões curativas e preventivas, individuais e coletivas, levando em consideração os múltiplos aspectos que envolvem a saúde em uma perspectiva de totalidade; c) participação da comunidade: os cidadãos têm o direito de participar ativamente das discussões, do planejamento e da iscalização das questões de saúde da nação, através dos conselhos e conferências de saúde; d) descentralização político-administrativa: os serviços de saúde devem ser descentralizados para os municípios, regionalizando-os e hierarquizando-os, a im de proporcionar uma maior cobertura dos problemas de saúde da população de um determinado território. Ademais, é importante ressaltar que a iniciativa privada pode participar do SUS de maneira complementar (BRASIL, 1990). Considerando o que foi exposto até aqui, pode-se airmar que a saúde é uma das políticas públicas que mais têm visibilidade, avançando principalmente no que diz respeito aos aspectos constitucionais e legais. Porém, para além dos avanços na legislação, o que se percebe é uma diferenciação entre o “SUS legal” e o “SUS real”. Tal fato ocorre, principalmente, por conta de um contexto neoliberal que tem impactado diretamente o âmbito das políticas sociais contemporâneas, que pautam suas propostas levando em conta os princípios de “[...] seletividade e focalização das ações públicas sobre os segmentos mais necessitados da população, de ruptura com compromissos de gratuidade e de privatização dos serviços destinados às camadas mais aquinhoadas da população” (DRAIBE, 1993, p. 98). O neoliberalismo vai exatamente contra os princípios que orientam a política de saúde no Brasil, expressos a partir da Constituição de 1988. Com base nas políticas governamentais neoliberais, os desdobramentos para a Política de Saúde manifestam-se, por exemplo, no surgimento cada 105 vez mais crescente de estabelecimentos privados que caracterizam a saúde como mercadoria, impregnando, na sociedade, a lógica de que só aquilo que é pago pode ter alta qualidade. Isso faz surgir um mix público-privado, onde aqueles que podem pagar se voltam para a rede privada, enquanto aqueles que não podem têm que recorrer aos serviços públicos de saúde, enfrentando diversos obstáculos até conseguir um atendimento para sua demanda. Assim, de acordo com Mamede (2009), pode-se airmar que existe [...] uma cidadania diferenciada aos que podem pagar pelos serviços e aos que não podem. Os primeiros, na sua maioria, são assistidos pelos planos privados de saúde com melhor padrão de qualidade, no que diz respeito à média e baixa complexidade; na alta complexidade, muitas vezes recorrem ao SUS, em virtude da não-autorização dos planos privados. Aos que não podem pagar pelos serviços, a tendência é que sejam ofertados programas focalizados, fragmentados e seletivos para atendimento ‘aos pobres’, com baixo padrão de qualidade (MAMEDE, 2009, p. 100). Percebe-se que há ainda um longo caminho para materializar de fato os avanços legais conquistados pela Política de Saúde, principalmente em um contexto de constantes disputas entre o projeto privatista e o projeto da Reforma Sanitária, onde o primeiro busca a participação do Estado para assegurar sua reprodução, apregoando a intervenção estatal mínima no âmbito social, e o segundo busca garantir que a verba pública seja usada para garantir a universalidade da saúde, bem como a sua concepção ampliada. Nesse sentido, a intersetorialidade entre políticas públicas é uma importante perspectiva que deve ser levada em consideração nessa arena de disputas onde, infelizmente, os interesses do capital detêm a hegemonia. Política de Saúde e intersetorialidade: um debate necessário A atuação do Estado sobre as expressões da questão social que se manifestam na sociedade civil se dá através de políticas setoriais, ou seja, em cada setor da vida em sociedade vão sendo criadas políticas próprias. Tal divisão por setores acaba por fragmentar a atuação do Estado no atendimento às demandas oriundas da população, reletindo em serviços burocráticos, focalizados e hierarquizados que não consideram a totalidade da realidade social e de seus problemas. Porém percebe-se que, para que o indivíduo alcance uma boa qualidade de vida, faz-se necessário que as políticas atuem de forma integrada, levando em consideração uma visão ampliada dos problemas sociais. Ademais, no que se refere à Política de Saúde, é importante ressaltar que, [...] um dos mais conhecidos sentidos atribuídos ao atendimento integral se refere ao reconhecimento do todo indivisível que cada 106 pessoa representa, trazendo como consequência a não-fragmentação da atenção, reconhecendo os fatores socioeconômicos e culturais como determinantes da saúde, e, principalmente, sugerindo um modelo integral de atenção que não tem como suposto a cura da doença, mas alarga os horizontes do mundo da vida espiritual e material (NOGUEIRA; MIOTO, 2006, p. 7). Nesse sentido, tem-se no estudo das políticas públicas o debate acerca da perspectiva da intersetorialidade que reairma a importância de uma visão ampliada das problemáticas sociais, bem como das suas soluções, considerando que apenas uma política setorial é insuiciente para dar respostas eicazes. A intersetorialidade, portanto, pode ser deinida como “[...] um modo de gestão [o que] desenvolvido por meio de processo sistemático de [como] articulação, planejamento e cooperação entre os distintos [com quem] setores da sociedade e entre as diversas políticas públicas para atuar sobre [para que] os determinantes sociais” (AKERMAN et al., 2014, p. 4294, colchetes do autor). Além disso, conforme airma Nunes (2012), [...] a intersetorialidade proclama a união entre as políticas públicas que devem, em esforço conjunto, desenvolver ações que possam responder de forma articulada à proteção social, fazer enfrentamento das desigualdades sociais que permeiam as mais variadas áreas. Isso pressupõe um conjunto de programas e projetos que tenham abrangências múltiplas, que visem à superação da fragmentação e a unilateralidade da atenção pública às demandas sociais da população. (NUNES, 2012, p. 97, apud GUIMARÃES; ORTH, 2014, p. 110). De acordo com Bronzo (2010), a perspectiva da intersetorialidade como instrumento para se efetivar um sistema de proteção social parte do entendimento de que a pobreza é permeada por diversas dimensões que se apresentam de forma distinta na trajetória de cada sujeito, cada família, cada comunidade. Portanto, não se pode incorrer no engano de que, diante de tal multiplicidade, as políticas setoriais, atuando de forma isolada, conseguem dar respostas eicazes. Nas palavras da referida autora, [...] para contemplar todas as dimensões, a consequência é desenhar estratégias de intervenção capazes de abranger distintos setores das políticas públicas, remetendo à atuação conjunta e necessária de vários programas e iniciativas sociais. Esta exigência se traduz, no plano do desenho de políticas, em intervenções intersetoriais. A intersetorialidade na gestão é a contraface da multidimensionalidade da pobreza; a intersetorialidade é uma decorrência lógica da concepção da pobreza como fenômeno multidimensional. Este é o primeiro registro sob o qual se deve examinar o tema da intersetorialidade (BRONZO, 2010, p. 127). 107 Diante da complexidade das expressões da questão social, depreende-se que é necessária uma intervenção mais ampliada nas necessidades sociais da população em todos os serviços, bem como a articulação entre as demais políticas sociais, com vistas a fortalecer a integração entre as políticas, constituindo-se, a partir disso, uma rede, buscando efetivar os direitos sociais garantidos através da Constituição Federal de 1988 e das legislações infraconstitucionais. Com base nisso, Costa (2010, p. 218-219) aponta que [...] a intersetorialidade tem que ser construída coletivamente. Para tanto, requer ser projetada de forma compartilhada, envolve decisão política e engajamento. Como um processo socialmente construído, requer o conhecimento da realidade, no sentido de ir além das demandas explicitadas em direção às reais necessidades da população, exigindo disposição para partilhar e trocar saberes, dúvidas e poderes. A Política de Saúde compõe a Seguridade Social que “[...] compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, 1988, Art. 194). Veriica-se, aqui, que a própria Constituição Federal já airma, em seu texto, que as ações devem ocorrer de forma integrada. Na Política de Saúde, a perspectiva da intersetorialidade entra em cena no momento em que se considera a saúde de uma forma ampliada, ou seja, não é mais centrada só na doença física, mas passam a ser considerados outros aspectos que a determinam e condicionam. Ao se considerar isso, a operacionalização da saúde não ocorre somente através de processos de trabalhos de médicos, enfermeiros, entre outros, mas surgem, nesse cenário, novos proissionais que passam a somar saberes e práticas em prol da efetivação dessa concepção ampliada de saúde. É nesse sentido que a Política Nacional de Promoção de Saúde de 2006 considera [...] a intersetorialidade como uma articulação das possibilidades dos distintos setores de pensar a questão complexa da saúde, de coresponsabilizar-se pela garantia da saúde como direito humano e de cidadania e de mobilizar-se na formulação de intervenções que a propiciem [...]. Tal processo propicia a cada setor a ampliação de sua capacidade de analisar e de transformar seu modo de operar a partir do convívio com a perspectiva dos outros setores, abrindo caminho para que os esforços de todos sejam mais efetivos e eicazes (BRASIL, 2006, p. 13-14). Com base no exposto acima, constata-se que a Política de Saúde traz, em seus arcabouços legais, referências à importância da intersetorialidade 108 no seu processo de operacionalização. Assim, faz-se necessário romper com práticas rotineiras e superar a visão construída ao longo dos anos de fragmentação, burocratização e focalização das políticas públicas e incorporar práticas proissionais que considerem a complexidade e a totalidade dos problemas sociais. Para tanto, Viegas e Penna (2015) consideram que a perspectiva da intersetorialidade na saúde requer [...] ações que ultrapassem os muros das unidades de saúde e atinjam o contexto histórico, social, cultural, político e econômico dos indivíduos ou coletivos, no sentido de promover a saúde dos mesmos. Para isso, articulações e arranjos podem ocorrer por meio de parcerias entre diferentes setores e segmentos sociais para a produção da saúde e promoção da qualidade de vida das pessoas e do coletivo, tomando como objeto: os problemas, as necessidades, os determinantes e os condicionantes de saúde (VIEGAS; PENNA, 2015, p. 1095). Materializar a intersetorialidade entre políticas sociais constitui um grande desaio. Como airma Faleiros (2009), não se pode perder de vista a contradição que permeia o âmbito das políticas sociais, pois elas consideram, ao mesmo tempo, os interesses dos trabalhadores e os interesses do capital, ou seja, valorizam o capital e validam a força de trabalho. Nessa relação contraditória, os interesses do capital detêm a hegemonia. A partir disso, depreende-se que “[...] a intersetorialidade não é uma estratégia técnica, administrativa ou simplesmente de boa prática gerencial. Pelo contrário. É um processo eminentemente político e, portanto, vivo e conlituoso” (PEREIRA, 2014, p. 37). De acordo com Bronzo e Veiga (2007), a construção da intersetorialidade esbarra também no modo como a administração pública foi-se desenvolvendo ao longo da história: pautada em uma lógica que valoriza as especializações dos saberes, a organização vertical, hierárquica e dividida em setores. É nesse sentido que Andrade (2006) reconhece que [...] sobre a intersetorialidade há um consenso discursivo e um dissenso prático. Esse dissenso nasce da contradição entre a necessidade de integração de práticas e saberes requeridas pela complexidade da realidade e um aparato de Estado setorializado, onde se acumulam, com maior ou menor conlito, poderes disciplinares e poderes advindos de composições político-partidárias. (ANDRADE, 2006, p. 308). Levando em consideração esse dissenso prático que permeia o âmbito da administração pública, Bronzo e Veiga (2007) airmam que, para a construção da intersetorialidade, faz-se necessário compreender que a mesma requer: decisão política, mudanças nos arranjos institucionais e mudanças nos processos de trabalho. Para as referidas autoras, a decisão política refere-se à intenção e ao engajamento em superar o sistema setorializado e hierarqui109 zado, tendo em vista alcançar uma visão mais ampliada acerca da realidade social. Já as mudanças nos arranjos institucionais dizem respeito à necessidade de organizar as instituições, os recursos inanceiros, os recursos humanos de forma que a articulação intersetorial seja possível. Por im, há a necessidade de mudanças nos processos de trabalho das instituições e dos proissionais para que seja possível ir além das práticas centradas apenas em técnicas e especializações que não conseguem se articular e cooperar (BRONZO; VEIGA, 2007). Ressalta-se que a intersetorialidade não pode ser vista como algo natural, pois, para ser construída, envolve negociação com diversos interesses, muitas vezes contrários, que estão em constantes disputas no âmbito da administração do Estado e das políticas sociais (BRONZO; VEIGA, 2007). Nesse sentido, Yasbek (2014, p. 98) airma que a intersetorialidade [...] supõe vontade, decisão, que tem como ponto de partida o respeito à diversidade, e às particularidades de cada setor ou participante. Envolve, portanto, estruturação de elementos de gestão que materializem princípios e diretrizes, a criação de espaços comunicativos, a capacidade de negociação e também trabalhar os conlitos para que inalmente se possa chegar, com maior potência, às ações. Diante da contradição de interesses abordada, tem-se que, para operacionalizar uma Política de Saúde que considere de fato o atendimento integral das necessidades humanas, faz-se necessário ampliar os canais de debates e negociações entre os diferentes setores, entre as diferentes políticas, os diferentes proissionais, bem como entre a população, para discutir e materializar propostas que reconheçam a importância da intersetorialidade entre políticas públicas tendo em vista alcançar uma concepção ampliada de saúde da população. Conclusão Ao longo deste artigo, foram abordados alguns aspectos importantes acerca da questão social, bem como das políticas sociais e da sua relação com o Estado, o capitalismo e as classes sociais. Percebeu-se que a atuação do Estado sobre as expressões da questão social é moldada de acordo com as necessidades de acumulação do capital, mas que também sofre inluências do poder de reivindicação exercido pela classe trabalhadora organizada e mobilizada. Constatou-se que a saúde foi uma das políticas sociais que mais avançaram após a Constituição Federal de 1988, sendo o SUS regulamentado logo no início dos anos 1990, bem como a sua operacionalização discutida ao longo de toda essa década, através de portarias, capacitações de recursos humanos, desenvolvimento de pesquisas, entre outros mecanismos de coor110 denação do Ministério da Saúde. O processo de construção de uma concepção ampliada da Política de Saúde foi fruto da incessante participação dos movimentos sociais que defendiam que os ideais da Reforma Sanitária fossem incorporados pela Constituição de 1988. Tal fato corrobora o entendimento de que as políticas sociais são permeadas por constantes disputas entre interesses antagônicos e que, em que pese a força do capital, a sociedade civil organizada tem potencial para reivindicar direitos. Nos documentos que orientam a referida política, há referências à importância da intersetorialidade para que a população tenha acesso universal à proteção social integral e tenha suas necessidades atendidas por completo. Porém o que se percebe na realidade é que cada uma das políticas que compõem a Seguridade Social é operacionalizada de maneira separada, sendo a articulação intersetorial um desaio a ser alcançado. Nesse sentido, é importante ressaltar que as expressões da questão social se manifestam em diversos setores, de diferentes formas, ou seja, as demandas sociais da sociedade não seguem um único padrão, pois são resultados de processos históricos, frutos de diferentes conjunturas sociais, econômicas, políticas, culturais, etc. As demandas sociais, portanto, exigem uma concepção ampliada, uma integralidade entre as diversas áreas, saberes e práticas. Daí a importância de se aprofundar o debate acerca da intersetorialidade entre políticas públicas. Diante de um cenário neoliberal onde os direitos sociais conquistados são constantemente ameaçados, o capital exige uma intervenção mínima do Estado no âmbito social e cortes no orçamento destinado às políticas sociais com o objetivo de “superar crises”. Mas é importante não perder de vista a relevância do debate acerca das relações e dos interesses que estão em conlito no âmbito de tais políticas, das estratégias de gestão que podem ser executadas em prol da proteção social, como a intersetorialidade, bem como da importância da classe trabalhadora organizada e mobilizada, enquanto classe fundamental para alterar a coesão social tão necessária ao acúmulo capitalista. Referências AKERMAN, M. et al. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 11, p. 4291-4300, jan./nov. 2014. ANDRADE, L. O. M. A saúde e o dilema da intersetorialidade. São Paulo: Hucitec, 2006. BEHRING, E. R. Acumulação capitalista, fundo público e política social. 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Luciana Evangelista Fernandes Franco Maria D’Alva Macedo Ferreira Introdução Este artigo tem como objetivo discorrer sobre a Política de Assistência Social no estado do Piauí a partir de peças/ documentos como o Plano Plurianual – PPA, relatórios do Balanço Geral do Estado, que consolidam “os dados registrados no Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios – SIAFEM, retratando a execução orçamentária, inanceira, patrimonial e contábil dos atos e fatos praticados pelos gestores do Estado do Piauí” (PIAUÍ, 2015, p.8) e a legislação nacional e estadual no âmbito da assistência social. O orçamento é um instrumento importante para auxiliar na compreensão da política social, pois relete a correlação de forças e os interesses envolvidos na destinação dos recursos públicos, fato que desemboca na importância dada a cada política pública na conjuntura social, política e econômica vivenciada quando da elaboração do mesmo. A Assistência Social, após a Constituição Federal de 1988, passou a integrar o sistema de Seguridade Social e com isso tornou-se um direito social e conquistou, também, um espaço orçamentário próprio. No entanto, a materialização deste feito está condicionada à efetivação do orçamento da seguridade social, conforme princípio constitucional estabelecido que garante a diversidade das bases de inanciamento, que advém de contribuições sociais exclusivas. Somadas a essas contribuições as receitas arrecadadas sobre a folha de pagamentos, mais impostos provenientes do orçamento iscal, seriam alojadas num fundo público redistributivo da seguridade social. Dois pontos merecem destaque diante da realidade supramencionada: o primeiro é que na década de 1990 houve a regulamentação da previdência, saúde e assistência social por leis distintas, o que acarretou em uma organização administrativa de forma estanque, separada. O segundo ponto é que, no mesmo período, o projeto neoliberal desembarcou uma série de reformas de Estado, bem no estilo das atuais, com cortes na previdência social, nos fundos de aposentadorias e pensões, nos programas assistenciais e nos serviços de saúde pública. A consequência natural dessa situação foi o enfraquecimento das políticas sociais que compõem a seguridade social e o fortalecimento das ideias de privatização da mesma. Na contramão dessa história, as demandas por proteção social só cresceram e a manutenção de um modelo reduzido de gasto social limita a ação do Estado e inviabiliza o alcance das metas de universalização do atendi115 mento, de melhor redistribuição da renda, de promoção da dignidade humana, entre outras, o que justiica a relexão proposta. O método crítico dialético utilizado para analisar a Política de Assistência Social no estado do Piauí, na atual conjuntura social, política e econômica, possibilitou maior esclarecimento dos documentos e peças orçamentárias como o Plano Plurianual - PPA referente aos períodos 2012-2015 e 20162019, do Relatório de Balanço Geral do Estado (2012, 2013, 2014, 2015 e 2016) e da legislação nacional e estadual no âmbito da Assistência Social. A escolha do PPA/ Piauí referente ao período 2016-2019 deu-se por necessidade de mostrar o que já foi planejado para a política de assistência social para o próximo quadriênio, pois se trata de uma outra administração, ou seja, a inalidade, nesse caso (e somente nesse), não é analisar a execução mas o planejamento em si, o olhar para o futuro da assistência social no estado do Piauí. Compreendendo o Orçamento Público e o Financiamento Assistência Social da Detalhando o entendimento, anteriormente exposto, de orçamento público, vale dizer que é um instrumento de gestão usado para organizar os recursos inanceiros, devendo demonstrar uma previsão de receita e de despesas (vinculando os gastos à presença daquela despesa no orçamento). Para tanto existem princípios que, conforme Manual Técnico do Orçamento de 2014, devem nortear todo processo de construção do orçamento público, estabelecendo regras no intuito de conferir racionalidade, eiciência e transparência na elaboração, execução e controle do orçamento público. Há duas categorias distintas: os princípios orçamentários clássicos ou tradicionais consolidados ao longo do desenvolvimento do orçamento, com forte conotação jurídica e os princípios orçamentários modernos que ultrapassaram as fronteiras da legalidade e adentraram no universo do planejamento (programação) e da gestão (gerência). Entre os princípios orçamentários mais essenciais temos: Princípio da Anualidade - o orçamento deve ter vigência limitada a um exercício financeiro. Conforme a legislação brasileira, o exercício financeiro precisa coincidir com o ano civil; Princípio da Clareza - o orçamento deve ser claro e de fácil compreensão a qualquer indivíduo; Princípio do Equilíbrio - os valores autorizados para a realização das despesas no exercício deverão ser compatíveis com os valores previstos para a arrecadação das receitas. O princípio do equilíbrio passa a ser parâmetro para o acompanhamento da execução orçamentária. Princípio da Exclusividade - a lei orçamentária não poderá conter matéria estranha à fixação das despesas e à previsão das receitas; Princípio da Legalidade - estabelece que a elaboração 116 do orçamento deve observar as limitações legais em relação aos gastos e às receitas; Princípio da Não Afetação (não vinculação) das Receitas - segundo esse princípio, nenhuma parcela da receita poderá ser reservada ou comprometida para atender a certos ou determinados gastos; Princípio da Publicidade - diz respeito à garantia da transparência e pleno acesso a qualquer interessado às informações necessárias ao exercício da fiscalização sobre a utilização dos recursos arrecadados dos contribuintes; Princípio da Unidade Orçamentária - diz que o orçamento é uno, ou seja, todas as receitas e despesas devem estar contidas numa só lei orçamentária; Princípio da Universalidade - todas as receitas e todas as despesas devem constar da lei orçamentária, não podendo haver omissão; Princípio do Orçamento Bruto determina que todas as receitas e despesas devem constar na peça orçamentária com seus valores brutos e não líquidos. Entre os princípios orçamentários modernos tem-se o Princípio da Simpliicação - onde planejamento e o orçamento devem basearse a partir de elementos de fácil compreensão, essa simpliicação está bem reletida na adoção do problema como origem para criação de programas e ações; Princípio da Descentralização - é preferível que a execução das ações ocorra no nível mais próximo de seus beneiciários. Com essa prática, a cobrança dos resultados tende a ser favorecida, dada a proximidade entre o cidadão, beneiciário da ação, e a unidade administrativa que a executa e o Princípio da Responsabilização - os gerentes/administradores devem assumir de forma personalizada a responsabilidade pelo desenvolvimento de um programa, buscando a solução ou o encaminhamento de um problema (BRASIL, 2013, p. 07-10). No Brasil esses princípios nem sempre são respeitados. Na época da ditadura militar (1964-1985), conforme Salvador (2010), os princípios da unicidade, da universalidade, da transparência e do equilíbrio foram esquecidos, e dessa forma a sociedade e os seus representantes no Poder Legislativo ficavam impedidos de avaliar, acompanhar e fiscalizar as contas públicas. Hoje, de acordo com Brasil (2013), o princípio da não afetação ou da não vinculação das receitas está sendo burlado, ou seja, algumas receitas estão sendo vinculadas a despesas específicas, “vários fundos foram criados vinculando a receita a áreas como telecomunicações, energia e ciência e tecnologia” (BRASIL, 2013, p.9), o que assegura a regularidade no aporte de recursos para determinadas áreas e, consequentemente, prejudica a possibilidade do governante implementar outras políticas públicas, ou seja, em algumas áreas teremos recursos demais e em outras de menos e com a impossibilidade de remanejar, o que é mais grave. 117 Mergulhados ainda nesse processo de construção do orçamento, após compreender a existência e a inalidade dos princípios orçamentários no percurso, faz-se premente enxergar os instrumentos complementares para a elaboração do mesmo. O Plano Plurianual – PPA, criado na Constituição Federal de 1988, deine as diretrizes, metas e objetivos da administração pública em cada esfera de governo (federal, estadual e municipal) pelo período de quatro anos. No processo de construção do PPA faz-se necessário elaborar um diagnóstico da realidade, deinir uma visão de futuro, eleger prioridades, planejar a articulação de estratégias para sua execução e das políticas de apoio e a formulação de programas para atingir as prioridades ixadas com a receita existente. A Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO deve se basear no PPA e apontar as diretrizes e metas da administração pública. Conforme Piscitelli, Timbó e Rosa (2006) a LDO contribui para a racionalização e o disciplinamento das inanças públicas, sendo a maior novidade, em matéria de orçamento, trazida pela Constituição Federal de 1988, funcionando ainda como elo de ligação entre o PPA e a Lei Orçamentária Anual – LOA que, por sua vez, deve conter a discriminação da receita e da despesa de maneira a deixar evidente a política econômica inanceira e o programa de trabalho do governo observando-se os princípios da unidade, universalidade e anualidade. Conforme Fabrício de Oliveira (apud Salvador, 2010, p.179), “a escolha do programa a ser implementado pelo Estado e dos objetivos de política econômica e social relete os interesses das classes, envolvendo negociações de seus representantes políticos, em que o orçamento é expressão das suas reivindicações.” Nessa perspectiva enfatiza-se que o orçamento, para além dos valores contidos ao revelar receitas e despesas, traduz a vida política de uma sociedade. Daí, a necessidade de apropriação dos aportes técnicos do orçamento bem como da conjuntura social, política e econômica que o cerca. Antes de inserirmos nesse debate do orçamento público as ações da assistência social, é mister pontuar que a Constituição Federal de 1988 logrou êxito no que tange às conquistas de direitos da cidadania e criou expectativas em torno da consolidação de um sistema de bem-estar social no Brasil, no entanto, na década de 1990, a ideologia neoliberal e a “reforma” do Estado tolheram a possibilidade de efetivar as mudanças propostas pela Constituição Cidadã. E por que fazer alusão a esse episódio antes de adentrar na discussão em torno da assistência social? É simples. Como dito anteriormente, a regulamentação da previdência social, assistência social e da saúde ocorreu nos anos de 1990, em meio às reformas estruturais que promoveram, conforme Boschetti e Teixeira (2003), o “enfraquecimento da função social do Estado brasileiro e o fortalecimento de seu papel no provimento das condições necessárias à expansão do capital inanceiro”. As consequências são catastróicas, como: a política deliberada de juros altos, o endividamento acelerado do Estado (comprometendo o 118 inanciamento das políticas sociais) e a desregulamentação das relações de trabalho, acentuando a informalidade e a redução de direitos. E esse é o cenário que cerca a estruturação da política de assistência social após Constituição de 1988. Retomando o debate em torno da assistência social, a partir da Constituição Federal de 1988, é importante resgatar a fundamentação e diretrizes abaixo: Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes: I - Descentralização político-administrativa: a coordenação e as normas gerais cabem à esfera federal; a coordenação e a execução dos programas são de responsabilidade estadual, municipal, de entidades beneicentes e de assistência social; II - Participação da população: as organizações representativas são fundamentais para a formulação das políticas e o controle das ações em todos os níveis (BRASIL, 1988). Em evidência temos três avanços concretos se materializando, a partir de então, fora aqueles decorrentes destes. O primeiro diz respeito às fontes de inanciamento da assistência social que foram asseguradas, o segundo foi o direcionamento dado para a formatação da Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, a partir da descentralização das competências e da participação popular e posteriormente, como consequência deste percurso, o terceiro, que resulta no novo modelo de gestão, o Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Entre as outras conquistas decorrentes daquelas supramencionadas tem-se uma promovida pela LOAS (1993) que, ao acrescentar que a assistência social é de responsabilidade do Estado, assegura a continuidade das ações e desvincula essa política pública dos riscos de meros programas político-partidários, e ainda cria o Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS, instrumento responsável pela gestão de recursos de toda política. Boschetti (2003) lembra-nos que a regulamentação do Fundo Nacional de Assistência Social – FNAS saiu quase dois anos após a Lei Orgânica da Assistência Social (1993) ter determinado 180 (cento e oitenta dias) para sua legalização. Dessa forma, percebe-se o comprometimento dos repasses de recursos para a política de assistência social, prejudicando a própria política pública, os entes federados (estados e municípios) e o público alvo. Voltando o olhar para a relação das diretrizes supramencionadas com a concretização legal das mesmas podemos somar ao FNAS a Política Nacional de Assistência Social – PNAS (1998 e 2004), que vai apresentar as dire119 trizes norteadoras da assistência social, e o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, que promove a participação e o controle da população sobre as ações da assistência social no âmbito público e privado. Dessa forma consolida-se a assistência social no espaço da administração pública. Mas, como era realizado o inanciamento antes do SUAS e como está hoje, na era SUAS? É tudo muito recente e é possível resgatar esse histórico de forma breve e precisa. A princípio, nos anos 1996 (quando o FNAS torna-se efetivamente o principal mecanismo de inanciamento da assistência social) e 1997, a União irmava termos de responsabilidade e repassava recursos, sob a lógica dos convênios, para os estados e estes podiam executar as ações ou optar pela execução indireta e, nesse caso, transferia recursos para os municípios ou para outras entidades. Em 1998 foi elaborada uma nova forma de inanciamento (Lei nº 9.604/98) instituindo o repasse fundo a fundo, conforme previsto na LOAS. Sendo que apenas os municípios que se habilitaram na gestão municipal, conforme reza artigo 30 da LOAS, tiveram acesso aos repasses da União, ou seja, nesse período (1998-1999) coexistiram dois tipos de repasses: o anteriormente citado, com termos de referência e planos de trabalho e um mais simpliicado, voltado apenas para os municípios habilitados, onde a União repassa diretamente aos municípios que executam as ações e estes, por sua vez, assim como os estado, têm autonomia de optar pela execução direta ou pela indireta e, em sendo assim, transferir estes recursos para entidades sem ins lucrativos executarem a ação. Havia a exigência de Certidão Negativa de Débitos (CND), para viabilizar o repasse dos recursos. A partir do ano 2000, conforme Brasil (2013), passou-se a utilizar portarias ministeriais e o Plano de Ação, indando a era dos termos de referência. Vale expor que entre os anos 2000 e 2004 permanecia a existência de municípios habilitados e outros não, o que implica na transferência direta da União para os estados ou para os municípios habilitados, e ainda as possibilidades de execução direta dos serviços e utilização dos recursos por parte do estado ou do município habilitado (repasses fundo a fundo) e na execução indireta, com transferência de recursos do estado para os municípios não habilitados/ entidades e dos municípios habilitados para as entidades sem ins lucrativos. Nesse período manteve-se a exigência da CND e os repasses eram conforme atendimentos realizados (recursos per capita). Após serviço prestado a União ressarcia o estado ou município habilitado. Em 2005 novos paradigmas para o inanciamento da política de assistência social foram irmados, decorrentes de mudanças provocadas pelas deliberações da IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada em 2003, promovidas pela nova PNAS de 2004 e pela Norma Operacional Básica de 2005 (NOB/ SUAS). Entre as mudanças evidenciadas temos aquela referente ao critério de atendimento per capita sendo substituída pela lógica de disponibilização de 120 serviços à população, como os serviços onde os critérios de inanciamento passam a ter por base o referenciamento de famílias; outra mudança diz respeito aos modelo de inanciamento denominado de Serviço de Ação Continuada (SAC), que indou em meados de 2005 devido à organização do inanciamento em níveis de proteção e em pisos especíicos para atendimento a determinado público-alvo. Coaduna com essa relexão a contribuição de Salvador (2010), quando airma que: A partir da aprovação NOB/SUAS (Resolução nº 130 do CNAS, de 15 de julho de 2005), foram instituídos pisos de inanciamento relacionados aos níveis de proteção social, garantindo o repasse automático, portanto, não vinculado a convênios, considerandose determinados indicadores sociais e ampliando a autonomia do município para alocação dos recursos federais repassados via fundo. A repartição de responsabilidades com entes da federação no tocante à gestão, ao inanciamento, ao planejamento, ao acompanhamento e ao controle social ainda se encontra em estágio de construção. A divisão de responsabilidades em relação à gestão da política de assistência social vem sendo construída de forma progressiva, tendo por referência a aprovação das Normas Operacionais Básicas. A descentralização feita na NOB/SUAS permite maior autonomia para os municípios organizarem sua rede de proteção, os quais são iscalizados, principalmente pelos respectivos conselhos de assistência, como destaca o boletim Políticas Sociais – Acompanhamento e Análises do IPEA, n. 13 (2007). O SUAS também introduz o Relatório Anual de Gestão, ao exemplo do que ocorre nas políticas de saúde e educação, simpliicando o processo de prestação de contas e evitando atrasos no repasse de verbas federais aos entes subnacionais (SALVADOR, 2010, p. 322). Ao tempo em que se desenha com mais nitidez a organização legal da política de assistência social, contemplam-se também as diiculdades que essa política enfrenta para estancar a pulverização de recursos em programas que não são de assistência social; em irmar-se com uma institucionalidade própria (nomenclaturas mais recentes: Ministério do Bem-Estar Social - MBES, Ministério da Previdência e Assistência Social – MPAS, Ministério do Desenvolvimento Social - MDS, hoje Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário - MDSA) e, ainda, para equacionar os parcos recursos diante do comprometimento de grande parte com os programas de transferência de renda como o Benefício de Prestação Continuada – BPC e o Bolsa Família, inviabilizando recursos para a rede de serviços assistenciais por nível de proteção. Essa é a situação da assistência social no Brasil. Agora pretende-se olhar mais atentamente para a realidade dessa política no estado do Piauí. 121 O Orçamento e a Assistência Social no Estado do Piauí: um longo caminho a percorrer. Para esse artigo utilizaram-se apenas os dados relativos à previsão de despesas (disponibilizados nos Planos Plurianuais e nas Leis Orçamentárias Anuais) e dados referentes às despesas realizadas no âmbito da assistência social, que estão disponíveis no site da Secretaria de Fazenda do Estado do Piauí – SEFAZ, mais especiicamente, no Relatório Balanço Geral do Estado (referentes aos anos de 2012, 2013, 2014 e 2015). As peças estudadas revelam três pontos que merecem atenção: a discrepância entre o planejado e o gasto realizado, o grande aumento de recursos previstos para gestão e manutenção (tendo em vista o planejado para 20122015 comparado com o de 2016-2019) e a destinação dos recursos do Fundo Estadual de Assistência Social (FEAS) a programas com ações não tipiicadas enquanto serviço socioassistencial. Os quadros a seguir foram elaborados à partir dos Planos Plurianuais e auxiliarão, juntamente com dados do balanço geral do estado, a nortear essa análise no âmbito da assistência social. Quadro 1 - Orçamento previsto para Assistência Social no estado do Piauí (PPA 2012 – 2015) PROGRAMA UNIDADE GESTORA AÇÃO 01 – Gestão moderna voltada para resultados. 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania. Modernização da infraestrutura e qualiicação de servidores. Coordenação geral da SASC. 90 – Gestão e manutenção do poder executivo. 30101 - Secretaria de Assistência Social e Cidadania TOTAL DA UNIDADE 30101 - Secretaria de Assistência Social e Cidadania 07 – Direitos humanos, direitos de todos. 07 – Direitos humanos, direitos de todos. 122 VALOR EM R$ 4.864.073,00 82.834.761,00 87.698.834,00 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social. Promoção e articulação de ações de igualdade de gênero. Entre os produtos desta ação temos a realização da conferência estadual da mulher e a reforma e ampliação do Centro de Referência da Mulher e a da Casa Abrigo. 6.880.761,00 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social. Promoção, articulação e implementação de ações de igualdade racial, etnia e orientação sexual e identidade de gênero. Entre os produtos desta ação têm-se a realização da Conferência Estadual de Direitos Humanos, o fortalecimento das instâncias de controle social. 8.909.372,00 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Implementação de ações de segurança alimentar e nutricional e inclusão produtiva de famílias (priorizando as famílias em situação de extrema pobreza) 14.226.056,00 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Desenvolvimento de ações de proteção social especial para inclusão de idosos, crianças, adolescentes, pessoas com deiciência e usuários de substâncias psicoativas. 45.237.816,00 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Gestão do Sistema Único de Assistência Social. 17.907.736,00 04 – Assistência Social e Cidadania 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Implementação do Sistema Nacional Socioeducativo - SINASE. 36.477.828,00 04 – Assistência Social e Cidadania 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Promoção da inclusão social com a implementação de ações de cidadania. 65.528.805,00 TOTAL DA UNIDADE 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social 05 – Mais Viver 04 – Assistência Social e Cidadania 04 – Assistência Social e Cidadania TOTAL GERAL 195.168.374,00 282.867.208,00 Fonte: PPA/ Piauí 2012-2015. Elaboração Própria Esse quadro mostra, a priori, a existência de programas (07- Direitos Humanos, Direitos de Todos e o 05 – Mais Viver) com ações que não estão tipiicadas enquanto serviço socioassistencial, mas que constam no Fundo Estadual de Assistência Social, ou seja, corroboram com análises de Salvador (2010) e Boschetti e Teixeira (2003) quando se reportam a pulverização de recursos do Fundo de Assistência Social em programas que não são de assistência social. Outro quesito necessário para entendermos a importância dada à política é a previsão orçamentária. Como diz a expressão, “previsão” são aproximações, não o valor exato a ser gasto, não obstante, expressa também o peso político das decisões, do foco, das prioridades da gestão, pois dos R$ 282.867.208,00 (duzentos e oitenta e dois milhões, oitocentos e sessenta e sete mil e duzentos e oito reais) planejados somente R$ 87.241.668,00 (oitenta e sete milhões, duzentos e quarenta e um mil e seiscentos e sessenta e oito reais) foram executados durante esses quatro anos, ou seja, em torno de 30,8% de tudo que foi planejado, conforme valores anuais apresentados a seguir. 123 Tabela 1: Orçamento realizado no âmbito da assistência social no estado do Piauí ANO REALIZAÇÃO PARTICIPAÇÃO VALOR REAL (DEFLACIONADO PELO IPCA) CRESCIMENTO REAL 2012 16.302.576,00 0,24% 16.302.576,00 - 2013 20.606.431,00 0,28% 19.456.549,00 19,35% 2014 15.846.217,00 0,21% 14.060.676,00 -27,73% 2015 34.486.444,00 0,44% 27.650.252,00 96,65% TOTAL 87.241.668,00 77.470.053,00 Fonte: Balanço Geral do Estado (2012, 2013, 2014 e 2015), SEFAZ/ PI e IBGE http://seriesestatisticas.ibge.gov.br. Elaboração própria. A realização signiica o que realmente foi gasto com assistência social no estado do Piauí em cada um dos anos especiicados e a participação é o percentual de gasto dessa política tendo como parâmetro todos os gastos do estado com as demais políticas (saúde, educação, segurança, previdência, administração, trabalho, cultura, habitação, agricultura, entre outras), com o legislativo, com o judiciário e com a dívida. Delacionando esses valores pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA encontramos valores atualizados e o crescimento real dos recursos aplicados na política de Assistência Social. O que evidencia o crescimento negativo no ano de 2014 e o súbito crescimento em 2015 tendo em vista o realizado nos demais anos (2012, 2013 e 2014). Conforme o Balanço Geral do Governo do Estado, no anexo “Despesa por função, subfunção e programa” (2015, p. 175-182), entre as ações mais prejudicadas, por pouco recurso aplicado e às vezes nenhum recurso, temos: a implantação do sistema de informação e acompanhamento de crianças e adolescentes SIPIA/SINASE, a implantação da escola de socioeducação, o fortalecimento das instâncias de controle social e pactuação, o apoio e incentivo a instituições que prestam serviço de assistência social nos municípios piauienses e o coinanciamento da proteção social básica e especial (de média e de alta complexidade). Fica evidenciado que não há como materializar todo planejamento, previamente idealizado para o quadriênio supramencionado, nem mesmo aproximar-se do previsto, tendo em vista a redução drástica dos recursos. Com o PPA de 2016-2019 apresentado no quadro abaixo percebe-se que o valor projetado para ser aplicado na assistência social aumentou consideravelmente, no entanto, não foi no Fundo de Assistência Social (unidade gestora 30102), mas na unidade gestora da Secretaria (30101) e, mais especiicamente no que tange a administração geral, que envolve gastos com pessoal, entre outras despesas. Nesse sentido, com uma execução comprovadamente aquém do planejado e com o foco na gestão e manutenção do poder executivo, constata-se a 124 diiculdade de avançar no aprimoramento da gestão do SUAS. Sem ampliação do orçamento na unidade orçamentária que responde pelos serviços socioassistenciais (30102) o risco de haver um engessamento da política é iminente. Quadro 2- Orçamento previsto para Assistência Social no estado do Piauí (PPA 2016-2019) PROGRAMA UNIDADE GESTORA AÇÃO VALOR EM R$ 01 – Gestão moderna orientada para resultados 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania Modernização e aprimoramento da gestão da SASC 90 – Gestão e manutenção do poder executivo. 30101 – Secretaria da Assistência Social e Cidadania Administração Geral da Secretaria da Assistência Social e Cidadania. 234.440.000,00 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania Expansão das ações de inclusão produtiva através de projetos de economia solidária 2.800.000,00 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania Fortalecimento da gestão e aprimoramento das instâncias de pactuação e controle social e da rede de proteção social 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania Implementação de ações de cidadania a famílias em situação de vulnerabilidade social 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania Promoção da segurança alimentar 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30101 – Secretaria de Assistência Social e Cidadania. Proteção e defesa de Direitos Humanos, com ênfase nas pessoas com direitos violados ou em situação de iminente violação. TOTAL DA UNIDADE 30101 – Secretaria de ssistência Social e Cidadania. 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Aprimoramento da gestão do cadastro único e monitoramento do Programa Bolsa Família. 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Coinanciamento da proteção social básica possibilitando a ampliação, qualiicação e manutenção dos serviços socioassistenciais, programas, benefícios e projetos no âmbito do SUAS 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Coinanciamento da proteção social especial possibilitando a ampliação, qualiicação e manutenção dos serviços e estruturação da rede de proteção social especial. 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Implantação de serviços de caráter regional ou de unidades regionais de proteção social especial de média e alta complexidade. 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social Modernização da gestão do sistema único da assistência social. 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 23.000.000,00 3.130.000,00 32.278.385,00 23.660.000,00 10.070.000,00 329.378.385,00 2.000.000,00 56.522.400,00 9.926.200,00 23.800.000,00 10.200.000,00 125 Promoção dos Direitos de crianças e adolescentes por meio da proteção social básica e especial com objetivo de enfrentar as situações de violência, de trabalho infantil e de exploração sexual. 500.000,00 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social TOTAL DA UNIDADE 30102 – Fundo Estadual de Assistência Social 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30104 – Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente - FEDCA. Promoção dos direitos de crianças e adolescentes mediante a proteção social básica e especial. 146.000,00 04 - Assistência, inclusão social e garantia de direitos 30104 – Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente - FEDCA. Reordenamento do atendimento socioeducativo do estado do Piauí, incluindo a infraestrutura física, contratação e capacitação de recursos humanos. 34.000.000,00 TOTAL DA UNIDADE 30104 – Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente - FEDCA. 04 – Assistência, inclusão social e garantia de direitos 11111 – Superintendência de Representação do Estado em Brasília TOTAL GERAL 102.948.600,00 34.146.000,00 150.000,00 Apoio a imigrantes piauienses em vulnerabilidade social 466.622.985,00 Fonte: PPA/ Piauí 2016-2019. Elaboração Própria As novidades apontadas por este PPA foram: a criação da unidade orçamentária 30104 (Fundo Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente), a potencialização das ações viabilizadas pela unidade orçamentária 30101 (Secretaria de Assistência Social e Cidadania), em detrimento da unidade 30102 (Fundo Estadual de Assistência Social) que, se comparada ao plano anterior, teve uma previsão orçamentária diminuída. Em termos práticos, saímos de uma possibilidade de gastos em ações tipiicadas enquanto serviços socioassistenciais no valor de R$ 195.168.374,00 (Cento e noventa e cinco milhões, cento e sessenta e oito mil e trezentos e setenta e quatro reais) para uma previsão de apenas R$ 102.948.600,00 (cento e dois milhões, novecentos e quarenta e oito mil e seiscentos reais), correspondendo a uma diminuição em torno de 47,25%. Enquanto que o programa 90-Gestão e manutenção do poder executivo avançou de uma previsão de R$ 82.834.761,00 (oitenta e dois milhões, oitocentos e trinta e quatro mil e setecentos e sessenta e um reais) para R$ 234.440.000,00 (duzentos e trinta e quatro milhões, quatrocentos e quarenta mil reais) signiicando um aumento em torno de 183%. Vale ressaltar que todos os programas e ações são importantes e merecem um olhar sob a perspectiva de crescimento dos recursos a serem aplicados, entretanto a tendência aqui apresentada é o prejuízo nítido da unidade gestora que responde pelos programas, projetos, serviços e benefícios pertinentes à Política de Assistência Social. Já o público criança e adolescente ganhou um espaço dentro do orçamento, e existe a possibilidade de fortalecer as ações planejadas pelo Con126 selho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA, bem como de potencializar àquelas previstas nos planos de atendimento socioeducativo, de enfrentamento à violência sexual contra a criança e o adolescente e o de enfrentamento ao trabalho infantil. Na última ação pontuada no PPA/Piauí (2016-2019), apesar de ter vindo no programa Assistência, Inclusão Social e Garantia de Direitos, os recursos são de uma unidade orçamentária vinculada à Superintendência de Representação do Estado em Brasília, não comprometendo nenhuma das unidades de gestão da SASC. Perante a atual situação de crise, como já é conhecida devido ao ciclo de reprodução do capital, somado à crise ética e política, às catástrofes ambientais e ao terrorismo, vivenciado concomitantemente em muitos países, é importante relembrar dos cenários desoladores do pós-guerra que impulsionaram as demandas para o Welfare State e que, conforme Soto (2016), Lavinas (2013) e Behring e Boschetti (2007), a implementação de políticas de seguridade social tornou-se questão central com o advento do Estado de bem-estar social, obrigando o Estado a aplicar mais recursos inanceiros para efetivação de tais políticas, investindo menos em determinados setores mais interessantes à reprodução do capital. Conclusão O estudo do orçamento é indispensável para se compreender as políticas sociais e a correlação de forças envolvidas na apropriação de recursos públicos, pois os recursos do fundo público, no âmbito do orçamento estatal, são disputados por cada pasta dos órgãos executivos, pelo legislativo, pelo judiciário e na sociedade, tornando-o arena de disputa de interesses. O texto do PPA/ Piauí (2016-2019) expõe a necessidade de efetivarem-se políticas pú-blicas de modo que evidencie uma gestão eiciente com transpa¬rência e controle social. Nesse sentido, vale lembrar que a participação na construção do Plano Plurianual não descarta o acompanhamento da execução do mesmo pela população. O exercício do controle social deve ser diário e requer aprimoramento constante. Sobretudo este acompanhamento (controle social) do destino dado aos recursos públicos possibilitará maior precisão do direcionamento destes aos interesses e necessidades da população. Nas peças orçamentárias a Política de Assistência Social do estado do Piauí apresenta-se conforme o desenho da Política Nacional, mas, no âmbito da gestão, percebem-se ausências importantes que precisam de revisão no intuito de otimizar os recursos previstos e, na arena de disputas, contar com os resultados dos índices de gestão para garantir verbas que possam dar à assistência social a visibilidade necessária. Entendendo que o Brasil (e nele o Piauí) não se conigura como um 127 Estado provedor, mas tem como paradigma, no que tange ao emprego de recursos, a Seguridade Social (Saúde, Assistência Social e Previdência), que se faça valer um planejamento eiciente, eicaz e efetivo que alcance os menos favorecidos e promova a justiça social. Referências BEHRING, E. R.; BOSQUETTI, I. Política social: fundamentos e história. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007. BOSCHETTI, I.; TEIXEIRA, S. O. Imprecisão conceitual e pulverização dos recursos federais na função assistência social. 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Disponível em: <http://portal.sefaz.pi.gov.br/balanco/2014/index.html> Acesso em 10 de jan. de 2017. _______ Relatório contábil 2015. Disponível em: <http://portal.sefaz.pi.gov.br/balanco/2015/index3.html> Acesso em 10 de jan. de 2017. _______ PPA/ 2012-2015 Disponível em: <http://bibspi.planejamento.gov.br/handle/iditem/350 > Acesso em 16 de jan. de 2017. _______ PPA/ 2016-2019 Disponível em: <http://www.seplan.pi.gov.br/ppa.php> Acesso em 10 de jan. de 2017. PISCITELLI, Roberto; TIMBÓ, Maria; ROSA, Maria. Contabilidade Pública. 9. Ed. São Paulo: Atlas, 2006. Publicações da Escola da AGU: LOAS - Comentários à Lei Orgânica da Assistência Social – Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 - Escola da Advocacia-Geral da União Ministro Victor Nunes Leal - Ano VII, n. 36. (jan./fev. 2015). Brasília: EAGU, 2012. Mensal. SALVADOR, Evilásio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. SOTO, Silvia Gabriela Fernández. 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Essa relevância decorre de um processo de mobilização social, de luta da sociedade civil nacionalmente e internacionalmente em prol dos direitos humanos preconizados na Constituição Federal Brasileira (1998), no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº8069/90 (BRASIL, 1990) e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989). O presente artigo tem como objetivo oferecer uma perspectiva de análise para o estudo da política pública com um recorte pós Constituição Federal de 1988, com ênfase na política de assistência social e a violência sexual contra crianças e adolescentes. A discussão apresentada é fundamentada em uma revisão de literatura, adotou-se alguns procedimentos seguindo Dionne e Laville (1999, p. 113): “[...] revisitar trabalhos disponíveis sobre a referida temática, objetivando selecionar tudo o que possa servir a pesquisa proposta”. Foi feita uma pesquisa do tipo bibliográica com a leitura crítica e relexiva de obras, tendo como autores de base: Arretch (2000), Castro (2009), Guerra (2015), Vieira (2012) e Jaccoud (2009). Além de legislações brasileiras como Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, a Política Nacional de Assistência Social de 2004, Orientações Técnicas do Centro de Referência Especializado de Assistência Social de 2011 e a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/SUAS) de 2006. O tema foi desenvolvido em três momentos: no primeiro, expõe-se a trajetória da política pública pós Constituição Federal de 1988; no segundo, a política de assistência social e no terceiro momento a política de assistência social no enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. 130 A trajetória da política pública pós Constituição Federal de 1988 A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) representou um signiicativo avanço no que se refere a proteção social até então vigente no Brasil, avançando em uma perspectiva de universalidade dos direitos sociais. Foi um marco na formulação e implementação das políticas públicas, estabelece autonomia político-administrativa aos municípios. Estes passaram a ter capacidade e autonomia na formulação e implementação de políticas públicas. Esta descentralização trouxe o desaio da coordenação intergovernamental na gestão pública. A descentralização está relacionada a redemocratização, é um processo político e não apenas técnico-administrativo. Ao discutir o processo de descentralização de políticas sociais, Arretche (2000, p. 34) diz que: A descentralização das políticas sociais no Brasil envolve um processo de reforma do Estado de dimensões consideráveis, sob um Estado federativo, em um país caracterizado por expressivas desigualdades estruturais de natureza econômica, social, política e da capacidade administrativa de seus governos locais. No Brasil pós Constituição Federal de 1988, os municípios foram deinidos como entes federativos autônomos. Essa redeinição de competências e atribuições na esfera de gestão das políticas sociais realiza-se sob as bases de um Estado federativo. Dessa forma, Estados e municípios passam a assumir funções de gestão de políticas públicas seja por iniciativa própria ou mesmo por imposição constitucional. Arretche (2000, p. 48) destaca que: A adesão dos governos locais à transferência de atribuições depende diretamente de um cálculo no qual são considerados, de um lado, os custos e benefícios derivados da decisão de assumir a gestão de uma dada política e, de outro, os próprios recursos fiscais e administrativos com os quais cada administração conta para desempenhar tal tarefa. Essa descentralização não signiicou somente a transferência do poder decisório para os entes federativos, mas também a delegação na implementação e gestão de grande parte das políticas sociais. Conforme Arretch (2000, p. 53): O grau de sucesso de um programa de descentralização está diretamente associado à decisão pela implantação de regras de operação que efetivamente incentivem a adesão do nível de governo ao qual se dirigem: reduzindo os custos financeiros envolvidos na execução das funções de gestão; minimizando os custos de instalação da infra-estrutura necessária ao exercício das 131 funções a serem descentralizadas; elevando o volume da receita disponível; transferindo recursos em uma escala em que a adesão se torne atraente; e, finalmente, reverendo as condições adversas derivadas das políticas, do legado das políticas prévias. Assim, as políticas públicas de proteção social surgem como forma de minimizar as distorções existentes na sociedade. Essas políticas se destinam a vários campos, dentre eles destacam-se a: educação, saúde, segurança e assistência social. E o Estado ica responsável pela realização de um conjunto de ações, na perspectiva de garantir os direitos sociais assegurados em Lei. A Constituição Federal de 1988 constituiu um avanço no padrão de proteção social no Brasil, deiniu e consolidou os direitos civis, políticos e sociais. A assistência social tornou-se um direito social, devendo ser operacionalizada pelo Estado através de políticas públicas. E junto com a saúde e previdência passa a compor o tripé da seguridade social. Segundo Draib (1990, p. 29): A ampliação e extensão dos direitos sociais (novos direitos, assim como sua homogeneização a novas categorias sociais), a universalização do acesso e a expansão da cobertura, um certo afrouxamento do vínculo contributivo como princípio estruturante do sistema, a concepção de seguridade social como forma mais abrangente de proteção, a recuperação e redeinição de patamares mínimos dos valores dos benefícios sociais e, enim, o maior comprometimento do Estado e da sociedade no inanciamento de todo o sistema. Diante da concepção de seguridade social, amplia-se as ações referentes a previdência, saúde e assistência social. E dentre os princípios que devem direcionar essas ações tem-se a universalidade, a equidade e participação. Mas a reforma democrática anunciada na Constituição Federal de 1988 não é vivenciada na sua plenitude, vive-se um período de tensão para que esses direitos constitucionais sejam minimamente assegurados. Nos anos de 1990 instala-se um processo de reformas justiicadas por crises econômicas e que perdura até os dias de hoje. Behring e Boschetti (2011, p. 148) apontam que: Reformando-se o Estado, com ênfase especial nas privatizações e na previdência social, e, acima de tudo, desprezando as conquistas de 1988 no terreno da seguridade social e outros – a carta constitucional era vista como perdulária e atrasada -, estaria aberto o caminho para o novo “projeto de modernidade”. O discurso da reforma era o defendido pelo governo, se propagava na mídia e difundia-se na sociedade. Resultando em um processo de desmonte das 132 políticas públicas e consequente redução de direitos sociais, indo assim na contra-mão do que preconiza a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). O argumento usado é o da crise iscal do Estado transformando assim as políticas sociais em ações pontuais e compensatórias direcionadas para os efeitos perversos da crise (BEHRING; BOSCHETTI, 2011). De acordo com Castro (2009, p. 96): Se, por um lado, a Constituição fez com clareza a distribuição das receitas entre os entes federados, por outro lado não tratou adequadamente da distribuição de responsabilidades relativas aos encargos sociais entre esses mesmos entes, submetendo à legislação ordinária os pontos mais polêmicos. Esse processo gerou desequilíbrios e controvérsias que iriam perdurar durante toda a década de 90. Consequentemente gerou também um conjunto de restrições no âmbito econômico para a população brasileira, tudo isso em nome da estabilização monetária. No âmbito da política social, sendo implementada uma estratégia de política pública que se manteve “[...] presa a uma universalização restrita, a uma focalização sobre a pobreza, a uma ampliação da descentralização para municípios, a uma limitada participação social e a uma privatização da parte rentável das políticas sociais” (CASTRO, 2009, p. 124). Ainda de acordo com Draib (1990), percebe-se uma transformação na saúde no que se refere ao princípio da universalização do atendimento e no acesso igualitário a toda população, o que se diferencia do que acontecia antes da Constituição Federal de 1988. Mas Castro (2009, p. 124) destaca que: A provisão e produção de saúde e de ensino fundamental, embora tenham alcançado níveis bastante elevados de cobertura e, mais marcante, consolidado, ao menos formalmente, o caráter universalizante (público e gratuito) dos programas e ações governamentais – muito mais que a cooperação/complementação – dos setores privados. Isso ocorreu tanto na saúde, pela oferta limitada e a qualidade questionável dos serviços públicos, como na educação, em virtude da ênfase conferida pelo Estado ao ensino fundamental. No caso da assistência social a Constituição Federal de 1988 apresenta um avanço ao prevê proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, além do amparo às crianças e adolescentes carentes. Mas nos últimos anos essa política também teve limitado a universalidade de cobertura e do atendimento. Visando aprofundar um pouco mais essa questão, a seguir será discutido a política de assistência social. 133 A Política Nacional de Assistência Social Pode-se destacar o marco da Constituição Federal de 1988 ao garantir direitos humanos e sociais como responsabilidade pública e estatal (BRASIL, 1988). E ao introduzir a assistência social no tripé da seguridade social. Como airma Sposati (2009, p. 14): A inclusão da assistência social na seguridade social foi uma decisão plenamente inovadora. Primeiro, por tratar esse campo como conteúdo da política pública, de responsabilidade estatal, e não como uma nova ação, como atividades e atendimentos eventuais. Seguindo, por desnaturalizar o princípio da subsidiariedade, pelo qual a ação da família e da sociedade antecedia a do Estado. O apoio a entidades sociais foi sempre o biombo relacional adotado pelo Estado para não quebrar a mediação da religiosidade posta pelo pacto Igreja-Estado. Terceiro, por introduzir os direitos sociais. Com a Constituição Federal de 1988 a assistência social torna-se política pública, compondo o tripé da seguridade social, sendo de responsabilidade do Estado e direito do cidadão, de caráter democrático, gestão descentralizada e participativa. É necessário compreender que a assistência social como toda política social perpassa por um conjunto de concepções interesses e tradições. Ela se alinha como política de defesa de direitos humanos, e se coloca no campo da vida relacional. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, no seu Art. 1º deine a assistência social como “[...] direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. Ainda no campo das conquistas, destaca-se a IV Conferência Nacional de Assistência Social realizada em dezembro de 2003 em Brasília/DF, que teve como principal deliberação a construção e implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), elemento essencial para a efetivação da assistência social como política pública. Resultando na Resolução nº 145 de 15 de outubro de 2004 que aprova a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), sendo aprovado em julho de 2005 o SUAS. E em 2011, a Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011, Lei que assegurou a institucionalização do SUAS no país. Há um avanço signiicativo na assistência social, e partindo do que preceitua a Lei Orgânica da Assistência Social, a Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2005, p. 32) tem como princípios democráticos: I – Supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica; 134 II – Universalização dos direitos sociais, a im de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas; III – Respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessidade; IV - Igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se equivalência às populações urbanas e rurais; V – Divulgação ampla dos benefícios, serviços, programas e projetos assistenciais, bem como dos recursos oferecidos pelo Poder Público e dos critérios para sua concessão. Guiada por esses princípios o novo modelo de proteção social no Brasil se materializa com a criação e implantação de novos programas de governos, a Política Nacional de Assistência Social/2004 deve aiançar as seguranças de: sobrevivência; acolhida e convívio. A assistência social inicia sua trajetória no campo dos direitos, e de acordo com Sposati (2009) as principais agressões à vida relacional estão nos campos: do isolamento; da resistência à subordinação; da resistência à exclusão. E que no que se refere aos direitos, compete à assistência social prover a rede de atenções para que a dignidade humana seja assegurada e superada. Assim, a Política Nacional de Assistência Social/2004 (BRASIL, 2005) materializa o esforço de sistematizar o conteúdo da assistência social como política de proteção social, sendo responsável por três funções: vigilância social que se refere “[...] à produção, sistematização de informações, indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social” (BRASIL, 2005, p. 39); defesa de direitos socioassistenciais e proteção social. A proteção social no âmbito da Política Nacional de Assistência Social/2004 agirá sobre situações de proteção às fragilidades, vulnerabilidades próprias ao ciclo de vida, proteção às fragilidades da convivência familiar, proteção à dignidade humana e combate às suas violações, através de uma rede hierarquizada de serviços e benefícios. O Sistema Único de Assistência Social organiza-se em dois níveis de proteção: Proteção Social Básica (PSB) e Proteção Social Especial (PSE). A Proteção Social Básica (PSB) de acordo com as Orientações Técnicas (2011, p. 17) oferta um conjunto de serviços, programas e projetos e benefícios da assistência social que visa “[...] prevenir situações de vulnerabilidades e riscos pessoais e sociais, por violação de direitos, por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários”. 135 A Proteção Social Especial (PSE) organiza a oferta de serviços, programas e projetos de caráter especializado, que visa contribuir para a reconstrução de vínculos familiares e comunitários, a proteção das famílias e indivíduos para o enfrentamento das situações de risco pessoal e social decorrentes da violação de direitos (BRASIL, 2011). De acordo com o agravamento e a especiicidade do trabalho ofertado a PSE de divide em: Proteção Social Especial de Média Complexidade (PSE/MC) e Proteção Social Especial de Alta Complexidade (PSE/AC). Os Serviços de Proteção Social Especial de Média Complexidade destinam-se a indivíduos e famílias que tiveram seus direitos violados, mas que continuam com os vínculos familiares e comunitários. Já os Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, destinam-se aos indivíduos e famílias com direitos violados mas com rompimento dos vínculos familiares e comunitários. No âmbito de atuação da Proteção Social Especial de Média Complexidade, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) é uma unidade de referência na oferta de serviços, que tem a inalidade de fortalecer os vínculos e reconstruir os laços familiares e comunitários, para que a situação de violação de direitos vivenciada seja superada. Esse atendimento é ofertado através do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI). O CREAS deve ofertar obrigatoriamente o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), que caracteriza-se conforme a Tipiicação Nacional de Serviços Socioassistenciais, Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009, p. 19) como um: Serviço de apoio, orientação e acompanhamento a famílias com um ou mias de seus membros em situação de ameaça ou violação de direitos. Compreende atenções e orientações direcionadas para a promoção de direitos, a preservação e o fortalecimento de vínculos familiares, comunitários e sociais e para o fortalecimento da função protetiva das famílias do conjunto de condições que as vulnerabilizam e/ou submetem a situações de risco pessoal e social. O serviço do PAEFI destina-se a famílias e indivíduos que vivenciam violações de direitos por ocorrência de: violência física, psicológica e negligência; violência sexual: abuso e/ou exploração sexual; afastamento do convívio familiar devido à aplicação de medida socioeducativa ou medida de proteção; tráico de pessoas; situação de rua e mendicância; abandono; vivência de trabalho infantil; discriminação em decorrência da orientação sexual e/ ou raça/etnia; outras formas de violação de direitos decorrentes de discriminação/submissões que provocam danos e agravos a sua condição de vida e os impedem de usufruir autonomia e bem estar; descumprimento de condiciona136 lidades do PBF e do PETI em decorrência de violação de direitos. Vale destacar que alguns grupos são particularmente vulneráveis à vivência destas situações, tais como crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deiciência, mulheres e suas famílias. Nesse universo o presente estudo faz um recorte para os segmentos crianças e adolescentes, aprofundando o olhar para a intervenção da política de assistência social no enfrentamento da violência sexual desse público escolhido. A Política de Assistência Social no enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes A criação dos CREAS foi de extrema importância para a garantia de proteção de crianças e adolescentes que vivem situação de violência sexual. Isso não signiica que antes não existiam programas que já ofereciam a proteção a essa categoria, um exemplo é o Programa Sentinela que era um programa federal criado para atender à determinação da Constituição Federal de 88, da Lei Orgânica de Assistência Social, do Estatuto da Criança e do Adolescente, e fazia parte do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Esses serviços passaram a ser incorporados aos CREAS dentro de uma abrangência local ou regional. É preciso considerar que a violência sexual contra crianças e adolescentes é um fator de natureza social que relete aspectos culturais e que se reproduz na sociedade há muito tempo. As mudanças que acontecem dentro da sociedade interferem diretamente nas relações sociais. Para entender esse universo de diversidades culturais, é necessário a integração das pessoas, tendo em vista que cada um tem sua forma de pensar e ver as coisas. Arendt (1983) apud Almeida (2008, p. 469) diz que: A realidade das coisas não existe por si só. As coisas adquirem realidade quando aparecem a nós e quando notamos que não estamos sozinhos em nossa percepção, mas que a compartilhamos com outros, embora cada um veja as mesmas coisas a partir de sua perspectiva. Entende-se que as culturas são diversas assim como os valores reproduzidos por cada uma, mas necessita-se manter a sensibilidade para lidar com essas diversidades. Porém sem perder de vista o real compromisso com a defesa dos direitos das crianças, desenvolvendo a análise crítica de perceber quando uma prática é meramente cultural e permitida ou totalmente abusiva afetando a integridade da criança. Acredita-se não ser fácil tal prática, mas entende-se ser fundamental. Almeida (2008, p. 471) destaca que “[...] a criança pequena necessita de proteção contra o mundo para que possa desenvolver a sua singularidade [...]”, 137 e que isso só é possível em um espaço onde exista a relação entre pessoas. A proteção a criança e adolescente passa a ser vista como responsabilidade de todo, não só da família essa discussão sobre violência ocupa lugares públicos, saído do âmbito privado familiar. A violência contra a criança e o adolescente se manifesta de várias formas podendo ser do tipo: estrutural, simbólica, institucional, negligência, física, psicológica e sexual. Dentre as diversas formas de violência cometidas contra o referido seguimento, destaca-se a violência sexual como uma das mais cruéis e considerada um fenômeno multidimensional como destaca Vieira (2012, p. 209): Essa expressão da violência configura-se como um fenômeno multidimensional de extrema violação de direitos contra a pessoa humana. A violência contra crianças e adolescentes revela um perverso cenário da sociedade brasileira, em que a violência estrutural aparece como característica de sociedades em que são prevalecentes a distribuição desigual das riquezas socialmente produzidas, a dominação entre classes e as profundas desigualdades sociais e econômicas. São diversos os fatores condicionantes do fenômeno da violência, dialeticamente imbricados na composição da estrutura social. No processo de construção histórica a violência sexual era vista apenas como um crime contra a liberdade sexual. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente, tal questão passa a ser vista como uma violação dos direitos humanos, ou seja, direito ao respeito, à dignidade, à liberdade, à convivência familiar e comunitária e ao desenvolvimento de uma sexualidade saudável. Assim, a mobilização social voltada ao combate da violência sexual contra crianças e adolescentes teve sua expressão política na década de 90, quando foi incluída na agenda civil como sendo uma questão relacionada à luta nacional e internacional pelos direitos humanos, preconizados na Constituição Federal Brasileira (1998), no Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA- Lei 8069/90 e na Convenção dos Direitos da Criança (1989). Essa congruência de forças deve-se ao compartilhamento de responsabilidades frente à defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Diante disso, é necessário compreender que a violência sexual contra crianças e adolescentes infelizmente é uma questão ainda muito presente na sociedade e que para a realização de ações que visem a prevenção e o enfrentamento é fundamental conhecer os relexos dessa violência na vida desses sujeitos. Vieira (2012, p. 209) considera a violência sexual um “[...] fenômeno transversal, apresentando múltiplas dimensões que complexiicam o seu enfrentamento, bem como a compreensão do seu acometimento. A violência sexual é fenômeno fruto de relações de poder”. 138 Guerra (2015, p. 415) deine a violência sexual como “[...] todo ato ou jogo sexual, relação hétero ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por inalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente, ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa”. A violência sexual contra crianças e adolescentes é uma violência que vem sendo construída historicamente no interior das relações sociais, Vieira (2012, p. 207) airma que “[...] sua apreensão não pode limitar-se a determinismos e impreterivelmente a teorias explicativas unívocas”. Decorre da cultura machista e de pensamentos do senso comum atitudes e comportamentos que acabam revitimizando e culpabilizando as vítimas. Vieira (2012, p. 207) aponta que: Por estar historicamente constituída nas relações desiguais entre adulto/criança, homem/mulher, a violência sexual não pode ser apreendida sob o prisma da naturalização, é imprescindível compreender esse fenômeno dentro das dinâmicas dimensões dos diferentes contextos, tempos e espaços nos quais ela se manifesta. A violência sexual encontra-se diretamente associada a condição de fragilidade das crianças e adolescentes vítimas e perpetua-se por meio de pactos de silêncio que são estabelecidos no âmbito familiar, deve ser compreendida como uma expressão da questão social e não como um fenômeno isolado. Exigindo assim a construção de ações conjuntas e articuladas das instituições, Fuziwara (2012, p. 111) considera: O Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) instrumentos fundamentais para o enfrentamento e, principalmente, para a prevenção da violência contra a criança e o adolescente, seja intra ou extrafamiliar, sexual, psicológica ou física. Além disso, temos um acúmulo na literatura científica sobre a concepção e metodologias sobre a questão da violência, sobretudo contra a população infanto-juvenil. Portanto, não há carência de elementos teórico-metodológicos, mas a urgência de afirmação da direção social que concretize a condição de sujeito de direitos deste segmento e promova uma justiça que se volte mais à liberdade e menos à punição. É necessário então pensar o atendimento a essas crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, no âmbito da Política de Assistência Social esse atendimento é ofertado pelos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) através do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), mas deve-se garantir de acordo com Fuziwara (2012, p. 112): 139 Que o sujeito violado seja atendido como tal, em sua integridade, e não como um corpo violado. Trata-se de restituir ou construir o lugar social desse sujeito, que é detentor de direitos e que deve ter acesso aos serviços que os viabilizem. Portanto, combater a revitimização é buscar mecanismos efetivos para a superação dessa situação, provocando o poder público, a família, a comunidade para que a vítima seja reconhecida como sujeito. O que tem sido é que as políticas estão precarizadas, em geral perpetuando relações tuteladoras, assistencialistas, compondo um quadro permanente de violência social e política. O trabalho social a ser desenvolvido pela equipe proissional no CREAS tem como eixos norteadores: atenção especializada e qualiicação do atendimento; território e localização; acesso a direitos socioassistenciais; centralidade na família; mobilização e participação social; e trabalho em rede. De acordo com as Orientações Técnicas (BRASIL, 2011, p. 28): A oferta de trabalho social nos CREAS pressupõe a utilização de diversas metodologias e técnicas necessárias para operacionalizar o acompanhamento especializado. Requer, ainda, a construção de vínculos de referência e confiança do usuário com a unidade e profissionais da equipe, além de postura acolhedora destes, pautada na ética e no respeito à autonomia e à dignidade dos sujeitos. Nesse contexto, a escuta qualificada em relação às situações e sofrimentos vivenciados pelos usuários tornam-se fundamentais para o alcance de bons resultados e a viabilização do acesso a direitos. A Resolução nº 269, de 13 de dezembro de 2006, aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social (NOB-RH/SUAS), e a Resolução nº 01, de 25 de janeiro de 2007, publica o texto da NOB-RH/SUAS. As diretrizes da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social devem orientar a ação de gestores, de trabalhadores e representantes das entidades que executam a política de assistência social. A NOB-RH/SUAS (BRASIL, 2012) deine equipes de referências para o trabalho social no CREAS, considera que essas equipes sejam formadas por servidores efetivos que sejam responsáveis pela organização e oferta de serviços, programas, projetos e benefícios. A equipe de referência para a prestação de serviços e a execução das ações no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade, com relação a proissionais de nível superior, deve ser composta por: assistente social, psicólogo e advogado. O acompanhamento especializado deve compreender atendimentos continuados e possibilidades para o desenvolvimento do indivíduo e sua família, seguindo as demandas e especiicidades de cada situação. Segundo as Orien140 tações Técnicas (BRASIL, 2011), esse acompanhamento deve: proporcionar um espaço de escuta qualiicada e de relexão, de suporte social, emocional e jurídico-social; deve visar o empoderamento, enfrentamento e construção de novas possibilidades de interação familiares e com o contexto social; deve ter como ponto de partida a construção de um Plano de Acompanhamento. Ainda segundo as Orientações Técnicas (BRASIL, 2011, p. 60), o Plano de Acompanhamento deve ser construído de forma conjunta com “[...] cada família/indivíduo, o Plano de Acompanhamento deve delinear estratégias que serão adotadas no decorrer do acompanhamento especializado, bem como os compromissos de cada parte, em conformidade com as especiicidades das situações atendidas”. Cada equipe técnica do CREAS deverá avaliar a peridiocidade dos atendimentos bem como a duração dos mesmos, sempre levando em consideração as demandas observadas e os acordos estabelecidos com os usuários durante o processo de acompanhamento. Considerando a complexidade das situações vivenciadas pelas famílias e indivíduos que são atendidos no CREAS, torna-se necessário uma articulação em rede para o êxito das ações desenvolvidas. De acordo com as Orientações Técnicas (BRASIL, 2011, p. 62) compete ao órgão gestor de assistência social a “[...] interlocução com outras políticas e órgãos de defesa de direitos e na institucionalização da articulação do CREAS com a rede, inclusive, por meio da construção e pactuação de luxos de articulação e protocolos intersetorias de atendimento”. Seguindo o que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente, as políticas públicas destinadas a crianças e adolescentes objetivam a promoção, a proteção e a defesa dos direitos desse público e não a criminalização. Norteado pelo o que estabelece o Sistema Único de Assistência Social vale ressaltar que não cabe ao CREAS investigar e punir, seu trabalho deve pautar-se na perspectiva da garantia de direitos. Conclusão A Constituição Federal de 1988 foi um marco no campo dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Uma vez que a visão de criança como miniatura, objeto e menor passou por um processo de mudança signiicativa, até então a ser vista como pessoa detentora de direitos. Nesse período, passou a ser assegurado juridicamente às crianças e adolescentes a condição de sujeitos de direito. O Brasil se destaca como sendo o primeiro país a promulgar um marco legal conhecido como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em consonância com a Convenção sobre os Direitos das Crianças e dos Adolescentes (1989). Com o ECA veio a implementação de um sistema de justiça e de segurança destinado a crianças e adolescentes, e a criação de Juizados da Infância 141 e Juventude, Núcleos Especializados no Ministério Público e Defensoria, além de Delegacias Especializadas. No ano de 2000, o Brasil avança de forma signiicativa na área de enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, com a aprovação pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), de políticas nacionais temáticas. Surge, diante disso, o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Em 2003, o Governo Federal assume o compromisso de priorizar ações para a erradicação da exploração sexual de crianças e adolescentes, e de implementar ações articuladas nesse sentido, por meio da Comissão Intersetorial de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Essa criada pelo então Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva e coordenada pelo Ministério da Justiça até 2006, quando foi integrada à então Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Ainda em 2003, inicia-se um processo de atualização do Plano Nacional, visando à inclusão de indicadores de monitoramento e avaliação do seu impacto na formulação de políticas públicas. Esse processo foi coordenado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, e culminou com a publicação em 2007 do “Relatório do Monitoramento 2003-2004”. Com a instituição do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e da Comissão Intersetorial no âmbito do governo federal, há o fortalecimento das redes locais, e, consequentemente, o surgimento de campanhas de sensibilização sistemáticas (Ex.: 18 de Maio – Dia Nacional da Luta contra a Exploração e Abuso Sexual), a criação do serviço de Disque Denúncia Nacional gratuito – Disque 100, e ainda a realização do III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (sediado no Brasil no ano de 2008). Em 2004 o atendimento a criança e adolescente vítima de violência sexual no âmbito da Política de Assistência Social passa a ser de responsabilidade do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) através do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI). Há um avanço no desenvolvimento de politicas públicas pós Constituição Federal de 1988. Mas considerando o crescente número de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, percebe-se que ainda está em processo de consolidação o atendimento especializado às crianças e adolescentes, na perspectiva de assegurar a proteção integral como preconiza os dispositivos legais. É preciso um trabalho em rede, de acordo com PNAS (BRASIL, 2005, p. 48), no caso da assistência social, a formação de rede pressupõe 142 a participação do Estado como referência “[...] global para sua consolidação como política pública. Isso supõe que o poder público seja capaz de fazer com que todos os agentes desta política, OGs e, ou, ONGs, transitem do campo da ajuda, ilantropia, benemerência para o da cidadania e dos direitos”. Mas torna-se urgente o investimento nas políticas públicas visando um atendimento especializado, com proissionais qualiicados nessa expressão da questão social, sensíveis para a temática, com condições adequadas de trabalho, com a garantia de equipe mínima nos serviços. Referências ALMEIDA, Vanessa Sievers de. Educação e liberdade em Hannah Arenddt. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n. 3, p. 465-479, set./dez. 2008. ARRETCH, Marta. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. São Paulo: Revan, 2000. BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1988. ______. Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Brasília, 1993. ______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 13 de julho de 1990, Presidência da República. do Adolescente. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS. Brasília: MDS, 2011. ______.______.______. Norma Operacional Básica – NOB/SUAS. Brasília: MDS, 2012. ______. ______.______. Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004. Brasília: MDS, 2004. 143 ______. ______. ______. Tipiicação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília: MDS, 2009. CASTRO, Jorge Abrahão de Castro. Política Social: Alguns aspectos relevantes para discussão. In: BRASIL. Concepção e Gestão da Proteção Social não Contributiva no Brasil. Brasília: MDS/UNESCO, 2009. p. 87-132. DIONNE, J.; LAVILLE, C. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Tradução de Heloísa Monteiro e Francisco Settineri. Porto Alegra: Artmed; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999. DRAIB, Sônia. As políticas sociais brasileiras: diagnósticos e perspectivas para a década de 90. In: IPEA. 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A instituição da equipe de gestão do Programa Bolsa Família (PBF) no Estado do Piauí se deu em 2004 em uma perspectiva de organização e de constituição de uma rede de proteção às vulnerabilidades identiicadas entre as famílias beneiciárias, a partir do acompanhamento das condicionalidades estabelecidas pelo Programa. Ao planejar e implementar o PBF, o Governo Federal implementou a construção de uma rede de responsabilidades por esfera governamental, o que pressupõe a ixação prévia de atribuições aos entes federados com papéis claros sobre a formulação e a execução do programa. No Piauí, o PBF iniciou em outubro de 2003, atendendo, inicialmente, 29.596 famílias e até 2015 já atendia 451.957 mil famílias, ultrapassando a realidade mensurada pelo Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), conforme o censo de 2010, que apontava o montante de 397.268 famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. A ação desenvolvida pelo Governo local no tocante à inserção das famílias em situação de vulnerabilidade no PBF possibilitou a universalização do programa no Estado. A gestão do PBF se dá de forma compartilhada, intersetorial e descentralizada, o que compreende a conjunção de esforços entre os entes federados. O Governo do Piauí dá o destaque necessário ao PBF na medida em que busca cumprir seu papel como indica as diretrizes. Cabe aos governos estaduais, por exemplo, o papel coordenador no âmbito de seus territórios. Esses devem exercer a função de estimuladores e apoiadores de desenvolvimento das atribuições previstas para os municípios, não só estimulando a ação local qualiicada, como também dando suporte e apoio técnico necessário ao planejamento e desenvolvimento do Programa. (BRASIL, 2005, p. 26). O Estado do Piauí, desde a concepção do Programa Bolsa Família, organizou-se na perspectiva de corresponder às demandas oriundas dos municípios, assim como das orientações encaminhadas pelo então Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), renomeado em 2016 para Ministério do 145 Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA), por meio da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), órgão responsável pela gestão e operacionalização do Programa Bolsa Família em nível federal. No Estado do Piauí, o processo de gestão do PBF envolve as seguintes atribuições: apoio aos municípios para a realização do acompanhamento das condicionalidades, suporte operacional, capacitação técnica, articulação com outras áreas e programas de promoção da intersetorialidade. Para realização do acompanhamento das condicionalidades, fez-se necessária a composição de uma equipe técnica composta por: um coordenador geral do PBF, representando a assistência social, juntamente com corpo técnico para realização das atribuições aferidas ao Estado; um representante da educação; uma equipe técnica da área e representante da saúde e equipes especializadas no acompanhamento da gestão na saúde do Piauí. Aos municípios, em razão da proximidade com os beneiciários do PBF, couberam as ações mais operacionais relacionadas à gestão de condicionalidades: o registro dos acompanhamentos, a localização das famílias e a visita domiciliar, assim como o desenvolvimento de ações sócio assistenciais com os beneiciários do PBF. Assim como o Estado se fez necessário, a mesma composição da equipe gestora também se fez, de modo a garantir uma gestão compartilhada. Ao identiicar a importância do papel dos gestores no processo de gestão do PBF no Estado do Piauí, observou-se que o entendimento quanto às orientações de condicionalidades favorece não só a identiicação de vulnerabilidades, mas também a tomada de decisões para a materialização de políticas públicas voltadas para as famílias. As condicionalidades estabelecidas pelo PBF são compromissos assumidos pelas famílias beneiciárias e, em especial, pelo poder público, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais básicos de cidadania por meio do acesso aos serviços nas áreas de educação, de saúde e de assistência social, conforme Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate (2005). Para que esse acesso seja garantido aos beneiciários do programa, é necessário que os serviços nas áreas de educação, de saúde e de assistência existam nos municípios e sejam disponibilizados às famílias. O conceito de condicionalidades apresenta-se sobre pontos de vista diferentes. Há autores que reletem sobre as condicionalidades como fator punitivo e excludente da noção de direito, como Clóvis Zimerman, ao airmar que: Sob a ótica dos direitos, os programas sociais brasileiros, devem ser desenhados, formulados e concebidos de forma universal, irrestrita, em que a condição de pessoa seja o requisito único para o aferimento de um direito. Além do provimento universal, os programas sociais devem garantir mecanismo de acesso em caso de violação, que sejam hábeis, rápidos, visando garantir a inclusão dos portadores de direito nos programas sem maior morosidade e burocracia. (ZIMMERMANN, 2006, pág. 39). 146 Ainda sobre esse tema, há autores que falam do caráter educativo das condicionalidades, como Silva, Guilhon e Lima, ao mencionarem que: A questão que coloco é que o debate sobre condicionalidades nos Programas de Transferência de Renda deve ser orientado em duas direções. Tem-se o dever do Estado, nos seus três níveis, de expandir e democratizar os serviços sociais básicos de boa qualidade, disponibilizando-os a toda a população. Entendendo que uma vez disponíveis esses serviços seriam utilizados por todos, sem imposição e obrigatoriedade. O trabalho do Estado e da sociedade, nesse aspecto, poderia voltar-se para o desenvolvimento de ações educativas, de orientação, de circulação de informações, de encaminhamento e acompanhamento das famílias para que essas pudessem buscar ter acesso e fazer uso adequado dos serviços disponíveis. (SILVA; GUILHON; LIMA, 2013, p. 12). Importante destacar que as relexões que ora se apresentam tomam por base a posição defendida por autores que tratam das condicionalidades do PBF como determinante educativo, uma vez que garante o acesso aos serviços básicos de saúde, de educação e de assistência social por meio do rompimento do ciclo intergeracional da pobreza. As famílias do PBF que descumprem condicionalidades são, potencialmente, as que se encontram em situação de maior vulnerabilidade e risco, sendo necessário identiicar os motivos que diicultam o acesso aos serviços básicos para promover o retorno regular a esses serviços e garantir continuidade na transferência de renda. Nessa perspectiva, novas responsabilidades se atribuem aos entes institucionais na gestão, fortalecendo o compromisso do poder público no acompanhamento das famílias que apresentam diiculdades em acessar os serviços de educação e de saúde, a im de que promovam o retorno do acesso a esses serviços com segurança de renda (BRASIL, 2012). A forma da implementação do PBF nos estados e munícipios propiciou uma gestão preocupada apenas com a coleta e transmissão dos dados ao MDS nas datas estabelecidas para o acompanhamento das condicionalidades. Pouco se dava ênfase à observância dos mecanismos que articulassem a oferta e a demanda por serviços públicos de saúde, de educação e de assistência social por parte das famílias beneiciárias do programa. Nos encontros e capacitações sobre o PBF e sobre a Gestão de Condicionalidades promovidos pela SENARC/MDS, observou-se que o Piauí, assim como outros Estados, tinha como objetivo central o cumprimento das metas, estabelecidas quanto ao número de beneiciários, acompanhados por meio do sistema de Condicionalidades (SICON) de informação. No desenho federativo brasileiro, Estados e municípios têm autonomia política e administrativa, assim, a implementação de políticas nacionais 147 depende, em grande medida, da capacidade de coordenação da União, dos Estados e municípios e dos instrumentos institucionais disponibilizados para o alcance dos seus objetivos. Assim, o presente artigo tem como objeto de estudo a análise do ciclo de gestão de condicionalidades do PBF no Piauí, procurando averiguar até que ponto os gestores do programa contribuem para o fortalecimento do acesso aos direitos, assim como procurou-se identiicar em que condições se dão a oferta dos serviços de saúde, de educação e de assistência social, buscando analisar as implicações da gestão pública na implementação da rede de proteção social em nível local a partir dos resultados das condicionalidades. Ademais, apresenta a discussão sobre o ciclo de gestão de condicionalidades do PBF, destaca as ações que compõem o processo de acompanhamento dessas condicionalidades e seus resultados nos serviços de saúde, de educação e de assistência social, tendo como base de análise a gestão do PBF nos municípios de Teresina e de Piripiri, compreendendo o período de 2003 a 2015. Por im, faz uma análise sobre como se encontra estruturada a gestão institucional do programa bolsa família do Piauí a partir da análise documental, como também analisa elementos recolhidos por meio de vivências da pesquisadora no acompanhamento da gestão de condicionalidades nos âmbitos municipal, estadual e federal, momento em que assumiu o papel de gestora e técnica do programa durante 13 anos de gestão, correspondendo ao período de 2003 a 2013. As relexões, ora apresentadas, sistematizam os resultados parciais da pesquisa de mestrado que tem como tema: A gestão das Condicionalidades do Programa Bolsa Família no Estado do Piauí, que se encontra em andamento no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. Condicionalidades do Programa Bolsa Família: fator punitivo versus caráter educativo Os programas de transferência de renda ou de garantia de renda são estabelecidos como uma política pública de transferência monetária a famílias ou a indivíduos, sendo que a maior incidência e visibilidade desses programas ocorrem em uma conjuntura em que grandes modiicações na economia ocasionam grandes consequências ao mundo do trabalho, sobretudo, nas condições de vida da população pobre (SILVA, 2016). Quanto aos programas de transferência de renda, tem-se, no Brasil, o Programa Bolsa Família, que apresenta formato de programa de transferência condicionada de renda, tendo sido foi criado pelo governo federal por Medida Provisória em outubro de 2003, sendo esta posteriormente transformada na Lei n. 10.836, de 09 de janeiro de 2004 e regulamentado pelo Decreto n. 148 5.209, de 17 de setembro de 2004. O Programa tem como foco beneiciar, com a transferência de renda, famílias em situação de pobreza e extrema pobreza (BRASIL, 2005). De acordo com Silva (2016, p. 160): O BF, maior programa de transferência de renda em implementação no Brasil, ocupa, com outros programas de transferência de renda, a centralidade do Sistema de Proteção Social do país. De caráter não contributivo, situa-se no contexto da Política Nacional de Assistência Social, provendo benefícios para famílias pobres e extremamente pobres, independente de contribuição prévia. Foi instituído em outubro de 2003, como política intersetorial, objetivando uniicar os programas de transferência de renda em desenvolvimento. Entre os objetivos do Programa, ressalta-se a promoção às famílias beneiciárias do acesso à rede de serviços públicos, em especial, de saúde, de educação e de assistência social (BRASIL, 2005). Desse modo, ao ampliar o acesso a estes serviços por meio das condicionalidades postas, o Programa propicia aos beneiciários a possibilidade de superar as condições de vulnerabilidade, contribuindo ainda para a quebra do ciclo de reprodução da pobreza entre gerações. As condicionalidades que perpassam o Programa estão situadas por divergentes entendimentos, ora são vistas como um fator punitivo que condiciona o acesso e não garantem direitos, ora como caráter educativo que possibilita o acesso e ampliação de direitos. De acordo com Silva (2016), as condicionalidades como acesso e ampliação de direitos expressam o caráter educativo e volta-se para combater a transmissão geracional da pobreza, bem como tem como foco o seu alívio imediato. A compreensão das condicionalidades pelo viés educativo, ao tempo em que representam a possibilidade de acesso para as famílias aos serviços de saúde, de educação e de assistência social, também pode ser um fator de pressão social a im de que a demanda acerca da oferta adequada desses serviços sociais básicos seja atendida pelo Estado. No tocante ao caráter punitivo como são interpretadas e/ou implementadas as condicionalidades do PBF, ressalta-se o entendimento que põe como foco a responsabilização e a culpabilidade das famílias, que são estimuladas a cumprirem as determinações do programa sob pena das sanções de suspensão provisória ou mesmo de perda integral do benefício. Para Silva, Guilhon e Lima (2013), o fator punitivo das condicionalidades do PBF reside em características que podem agravar as situações de descumprimento do Programa, ou seja, responsabilização às famílias pelas situações, que muitas vezes estão fora do seu alcance, como a ausência de serviços básicos nos municípios, o que contribui para que a famílias não estejam 149 enquadradas dentro do cumprimento das condicionalidades propostas. Segundo Franco (2006), o programa, ao estabelecer condicionalidades, enxerga o beneiciário como sujeito ativo e participante no processo de alcance dos objetivos propostos pelo Programa, e que a superação da condição de pobreza depende dele por meio do cumprimento das exigências e contrapartidas que visam interligar a transferência de renda com os mecanismos estabelecidos como necessários no enfrentamento da pobreza. As famílias que descumprem tais compromissos estão sujeitas às sanções gradativas previstas em lei, que vão desde a notiicação, suspensão do benefício, podendo chegar ao cancelamento deinitivo do mesmo. No presente texto, ressalta-se a defesa das condicionalidades baseadas no caráter educativo. Concorda-se com Silva (2016) ao mencionar que estas são expressões de acesso e de ampliação de direitos, sendo elementos que visam combater a pobreza e a extrema pobreza, com políticas estruturantes, com relevância nos campos da saúde, da educação e da assistência social. Neste entendimento, as condicionalidades, enquanto fator educativo, constituem pressupostos para o acesso das famílias beneiciárias aos serviços básicos, cuja estruturação e oferta são de responsabilidade do poder público. A natureza educativa das condicionalidades aqui defendidas as encara enquanto recomendações, orientações e medidas de apoio às famílias beneiciárias do Programa para que estas tenham acesso aos serviços sociais que devem obrigatoriamente ser prestados pelo Estado. O caráter educativo das condicionalidades reside nas ações que podem complementar e auxiliar o processo educativo e formativo dos beneiciários, oportunizando novas práticas sociais para desenvolvimento de suas potencialidades na direção de sua inclusão social. Ciclo de Gestão de Condicionalidades do Programa Bolsa Família O processo de gestão das condicionalidades, segundo a Portaria n° 251 de 2012 do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), menciona que a gestão de condicionalidades compreende a coleta e o registro das informações sobre o acompanhamento realizado junto às famílias beneiciárias, no tocante ao cumprimento das contrapartidas referentes às ações no campo da saúde de crianças e de adolescentes e em relação ao seu acesso e sua permanência na escola, bem como o seu desempenho escolar. Outro campo de contrapartida exigido às famílias está relacionado à participação das mães e/ou titulares do benefício nas ações socioassistenciais. A análise e interpretação das informações colhidas por meio do processo de acompanhamento permite aos gestores do programa identiicar as situações de cumprimento e de descumprimento das condicionalidades, bem como poderá contribuir para dimensionar o próprio desempenho do programa nos municípios. 150 No que se refere ao descumprimento das condicionalidades, a gestão se volta para o conhecimento das razões que o motivaram, contribuindo para a tomada de decisão em relação aos investimentos necessários do poder público na implementação de políticas públicas, tendo em vista o enfrentamento da situação de vulnerabilidade social identiicada. As ações que compreendem o ciclo de gestão de condicionalidades do PBF subdividem-se em: período de acompanhamento, período de registro, repercussão, recurso on-line e acompanhamento familiar, como pontuado no gráico abaixo: Gráico 1 - Ciclo Periódico de Condicionalidade Fonte: MDSA (2012). Para melhor compreender as informações do ciclo de gestão das condicionalidades, faz-se importante esclarecer alguns conceitos que expressam as etapas que compõem este ciclo de gestão, conforme estabelecido pela Portaria n° 251 de 2012 do MDS: Período de acompanhamento: é o período em que os beneiciários são acompanhados pelas escolas e pelas unidades/equipes de saúde. É o momento em que as informações do acompanhamento são coletadas. Na educação, a frequência dos alunos entre seis e dezessete anos é acompanhada a cada dois meses (fev-mar/abr-mai/jun-jul/ago-set/out-nov). Já na saúde, na qual são acompanhadas as crianças menores de sete anos e as mulheres gestantes, esse processo é semestral. Período de registro: é o período em que as informações coletadas durante o acompanhamento são registradas nos sistemas. Na educação, o registro referente aos bimestres de acompanhamento ocorre (fev-mar/abr-mai/jun-jul/ ago-set/out-nov) em abril, junho, agosto, outubro e dezembro. Na saúde, o 151 período de registro é concomitante ao período de acompanhamento, ou seja, no decorrer da vigência de um semestre. Ao inal de cada período de acompanhamento e registro, conforme o calendário de cada condicionalidade, o MDS informa, por meio do Sistema de Condicionalidades (SICON), às famílias que descumpriram as condicionalidades no período e terão repercussão sobre o benefício. Essas famílias são notiicadas por meio de correspondência escrita e pela mensagem do extrato bancário do benefício. A partir daí o efeito dessa repercussão vai para a folha de pagamento. Repercussão: é a aplicação gradativa dos efeitos de descumprimento das condicionalidades sobre o benefício da família ou do jovem. Para cada registro de não cumprimento da condicionalidade de educação e/ ou de saúde, há um efeito correspondente, que vai da advertência escrita, passa pelo bloqueio e suspensão do benefício, podendo chegar ao seu cancelamento. Esse processo ocorre em todos os meses ímpares do ano, exceto janeiro. Apenas nas situações de suspensão e cancelamento a família deixa de receber o benefício relativo ao mês do descumprimento. Na situação de bloqueio, o benefício não é pago na data correspondente, mas pode ser acessado junto com a parcela do mês seguinte. Recurso On-line: é a contestação dos efeitos do descumprimento registrado pelos gestores locais do Programa mediante solicitação da família que sofreu o efeito. O prazo para o registro e para a avaliação do Recurso On-line é o último dia útil do mês seguinte ao que ocorreu a repercussão. O recurso deve ser utilizado para corrigir situações que ocasionaram erros ou falhas na aplicação dos efeitos previstos pelo descumprimento das condicionalidades. Acompanhamento familiar: inclusão das famílias consideradas mais vulneráveis em atividades socioassistenciais, oferecidas pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e/ou Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS). O descumprimento das condicionalidades é um dos indicadores dessa maior vulnerabilidade, resultado da diiculdade de acesso aos serviços sociais a que estas famílias têm direito. O acompanhamento familiar na área da assistência social não segue um luxo pré-estabelecido, como no caso da educação e da saúde, já que as famílias podem ser inseridas nas atividades socioassistenciais a qualquer momento, independentemente da repercussão (BRASIL, 2012). As condicionalidades são compromissos assumidos pelas famílias beneiciárias e, em especial, pelo poder público, contribuindo para a efetivação dos direitos sociais básicos de cidadania, por meio do acesso aos serviços nas áreas de educação, saúde e assistência social. Todos os Estados e municípios 152 que integram o sistema de acompanhamento de condicionalidades, desde a concepção do programa seguem calendário pré-determinado para realização desse acompanhamento para poder avaliar o desempenho do programa e o alcance de metas pré-estabelecidas (BRASIL, 2006). A compreensão das ações que compõem o ciclo de gestão das condicionalidades e seu devido acompanhamento se tornam importantes para que a rede responsável pela implementação da gestão das condicionalidades adote estratégias com respeito às especiicidades das áreas, mas consciente de que cada informação gerada tem relexos sobre o processo como um todo e interfere no dia a dia das famílias do PBF. O processo de gestão do PBF envolve papéis pelos três entes federados (União, Estado e Municípios) deinidos tais como: ações de acompanhamento periódico das famílias beneiciárias registrando as informações em sistemas informatizados especíicos para o programa, avaliação dos registros de descumprimento de condicionalidades, identiicação e acompanhamento das famílias em descumprimento de condicionalidades, sendo este último de competência apenas dos Municípios. Gestão de condicionalidades da saúde no Piauí O ciclo de acompanhamento das condicionalidades de saúde é semestral: a primeira vigência de janeiro a junho e a segunda vigência de julho a dezembro. A cada período, são divulgadas aos municípios as listas com informações cadastrais das famílias com peril saúde a serem acompanhadas. Tais listas são elaboradas pelo MDS, hoje designado MDSA, com base na folha de pagamento do PBF. Posteriormente, as listas são encaminhadas ao Ministério da Saúde para divulgação junto aos municípios no início do período de vigência do acompanhamento (BRASIL, 2012). O registro das condicionalidades da saúde das famílias beneiciárias do PBF é realizado por meio do Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família na saúde, disponível no endereço eletrônico: http://bolsafamilia.datasus.gov. br/w3c/bfa.asp. Atualmente, todos os municípios brasileiros têm acesso ao Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família na Saúde e este sistema é o instrumento para registro das condicionalidades de saúde, com o objetivo de contribuir para a melhoria da gestão de informações nessa área e de facilitar a rotina de acompanhamento às famílias beneiciárias do PBF. Cabe destacar que a execução da ação tanto pode ser realizada pelos responsáveis da gestão das condicionalidades de saúde na Secretaria Municipal de Saúde, quanto pelo gestor do PBF. Para tanto, são necessários veriicar: A identiicação e a impressão das listas contendo a relação das famílias beneiciárias a serem acompanhadas; 153 O registro do acompanhamento das condicionalidades da saúde (peso, estatura, vacinação em dia ou não para crianças); Vinculação da família beneiciária à equipe de saúde que realizou o acompanhamento; Visualização do histórico de acompanhamento da família; Visualização das famílias em descumprimento de condicionalidades da saúde para busca ativa; Geração de relatórios consolidados com os resultados parciais do acompanhamento das condicionalidades de saúde por município (BRASIL, 2012). No Estado do Piauí, esse acompanhamento tem sido feito desde a primeira vigência do monitoramento das condicionalidades do PBF no campo da saúde, em 2005, até a segunda vigência, em 2015. O número de famílias totalmente acompanhadas nas condicionalidades de Saúde foi, em média, de 79, 22%. Vale ressaltar que, para além dos acompanhamentos registrados, isso signiica que 20% das famílias beneiciárias deixaram de ser acompanhadas neste quesito, o que ocorreu devido àquelas famílias que estão fora do alcance do programa, embora detenham peril compatível com os requisitos exigidos para reinserção no Programa. Após o registro do acompanhamento das condicionalidades no Sistema de Gestão, os dados transmitidos são consolidados pelo Ministério da Saúde e encaminhados ao MDSA para que sejam apurados os possíveis casos de não cumprimento de compromissos assumidos pelas famílias. Em caso de descumprimento das condicionalidades por parte de integrantes da família beneiciária, isso poderá ter efeito no benefício, que vai desde a advertência até o bloqueio, suspensão e, em último caso, cancelamento, caso persista a situação de descumprimento (BRASIL, 2012). Para a avaliação do desempenho da Agenda de condicionalidades de saúde do PBF nos Estados e municípios, são considerados indicadores relacionados à gestão das ações nesta área, tais como: os percentuais de famílias acompanhadas e não acompanhadas, com especiicação daquelas que não foram visitadas e as que não foram encontradas em seus endereços. Os resultados do acompanhamento podem sinalizar situações de insegurança alimentar e de nutricional infantil, bem como o percentual de crianças sem vacinação em dia (BRASIL, 2012). Tais informações interessam, sobretudo, aos proissionais de saúde que atuam na gestão do PBF, podendo revelar tanto lacunas na oferta dos serviços nesta área quanto as vulnerabilidades no processo de gestão ou, ainda, falta 154 de investimento em oportunidades de aperfeiçoamento do processo de acompanhamento das famílias do PBF no âmbito dessa política. Destarte, para o cumprimento da agenda de acompanhamento das condicionalidades de saúde do PBF por parte dos gestores municipais e estaduais, faz-se importante não só a relexão dos mesmos quanto às condicionalidades da saúde, bem como são necessárias ações na perspectiva da melhoria do desempenho dos serviços nesta área, sobretudo, na qualidade da informação registrada, para um efetivo acompanhamento das famílias beneiciadas. Isso requer uma formação proissional orientada para a compreensão de seu papel no processo de gestão das condicionalidades do PBF e na priorização das famílias beneiciárias para oferta das ações e dos serviços de saúde, fortalecendo a rede local de serviços nesta direção. Nos municípios piauienses, o que vem sendo realizado no sentido de melhorar a rede de serviços de saúde e, consequentemente, o acesso das famílias a esse direito é o acesso à informação sobre as possibilidades e os entendimentos sobre o programa. Nos municípios de Teresina e de Piripiri, os processos de implementação do PBF na área da saúde envolvem as atividades de acompanhamento semestral da lista. As secretarias municipais de saúde fazem o monitoramento em relação aos registros de saúde nesse período com os agentes comunitários de saúde, com o enfermeiro e com equipe da saúde, promovendo reuniões, para sensibilização da importância desse acompanhamento, e o direito à saúde, aproveitando para preencher as ichas de acompanhamento do peso, medida e altura, e assim coletar dados para alimentação de um sistema especíico. Gestão de condicionalidades da educação no Piauí A gestão de condicionalidades de educação ocorre por meio da parceria entre União, Estados e municípios, os quais se organizam com o objetivo de acompanhar a frequência escolar das crianças e dos adolescentes beneiciários do PBF. O acompanhamento bimestral das condicionalidades de educação, conforme prevê o Programa, é realizado por meio da conjugação de esforços entre os entes federados (BRASIL, 2012). As ações de gestão das condicionalidades de educação envolvem: veriicação dos percentuais de crianças e adolescentes acompanhados com frequência escolar mínima de 85% e baixa frequência; dados sobre os beneiciários não localizados e sobre beneiciários sem informação de retorno à escola. É também considerada a falta de informação do motivo da baixa frequência pela escola, dentre outros (BRASIL, 2012). Tais informações podem 155 revelar lacunas que interessam, sobretudo, aos proissionais da educação que atuam na gestão do PBF, pois permitem identiicar possibilidades de aperfeiçoamento do processo de acompanhamento dos alunos beneiciários do PBF. O registro das condicionalidades da educação das famílias beneiciárias do PBF é realizado por meio do Sistema de Presença da educação e atualmente todos os municípios possuem um técnico responsável pela gestão do PBF no acompanhamento da frequência escolar. Este sistema permite aos responsáveis pela gestão das condicionalidades de educação na Secretaria Municipal de Educação a execução das seguintes ações: A identiicação do público com peril para acompanhamento das condicionalidades de educação (6 a 17 anos); Coleta de informações, pelo município, e o registro periódico no Sistema Presença, disponibilizado pelo MEC; A aplicação dos efeitos decorrentes do descumprimento das condicionalidades de educação; E a sistematização de informações sobre famílias do PBF com crianças e adolescentes em situação de descumprimento de condicionalidades na educação para subsidiar o acompanhamento pela política de educação e por outras políticas públicas, de forma a reduzir as vulnerabilidades identiicadas (BRASIL, 2012). No Piauí, desde o início do registro de acompanhamento das condicionalidades do PBF pela educação, em 2004 até 2015, o número de famílias acompanhadas nas condicionalidades de Educação manteve-se com média de 80,00%, tendo com isso bom resultado, uma vez que só restaram 205, variando a cada período. O resultado obtido relete que os motivos de descumprimento da agenda de educação foram superados, já que esse resultado mostra o direcionamento de uma intervenção e/ou indicação de caminhos realizados numa perspectiva preventiva e de promoção de acesso aos serviços buscando a qualidade dessa oferta. A gestão das condicionalidades de educação ao adotar o monitoramento periódico da matrícula e da frequência escolar como medida, busca avaliar o acesso e a permanência escolar das crianças e dos adolescentes do PBF em situação de pobreza. No Piauí, como em outros Estados, o acompanhamento das condicionalidades da educação e da saúde se torna importante à medida em que as informações sobre o acesso dos beneiciários do PBF a esses serviços, ou ainda aos obstáculos que impedem o pleno acesso a esses direitos, possibilitarão ao Gestor público repensar e/ou formular políticas públicas direcionadas às reais necessidades dos beneiciários neste campo. 156 No que se refere à educação nos municípios de Teresina e de Piripiri, o acompanhamento bimestral se dá por meio da indicação de representante responsável em gerar listas para serem distribuídas nas escolas para o devido preenchimento da frequência escolar dos beneiciários do PBF no sistema Presença. Para cada criança e adolescente que descumpre a condicionalidade de educação, as redes de educação identiicam e registram os motivos relacionados à baixa frequência. Tais motivos são selecionados com base uma lista deinida pelo MDSA, como possíveis motivos de descumprimento, e os gestores dos dois Municípios buscam por meio dos resultados levantar as principais vulnerabilidades para o devido encaminhamento aos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), por considerar indicio de situação de vulnerabilidade. Gestão de condicionalidades do PBF no Piauí na área da assistência social As condicionalidades do programa visam o reforço dos direitos sociais por meio do monitoramento da oferta desses serviços e pela realização de trabalho com as famílias mais vulneráveis no acompanhamento socioassistencial realizado no âmbito dos (CRAS) e dos CREAS. Os trabalhos da assistência são de suma importância, pois é uma forma de tentar entender a situação da família e buscar soluções para os casos de descumprimento. O CRAS, por sua vez, faz um trabalho de visita a essas famílias e elas são inseridas no sistema como forma de reverter quadro de vulnerabilidade, identiicado por meio do acompanhamento de condicionalidades. O assistente social faz a visita e registra as informações no sistema especíico para tratamento e monitoramento do caso. Nos municípios de Teresina e de Piripiri, a assistência social, a partir da listagem de famílias em descumprimento, as famílias são territorializadas por equipe de referência dos CRAS, e os proissionais do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) iniciam um trabalho social com as famílias registrando as informações de atendimento para o devido acompanhamento familiar às famílias em descumprimento. O descumprimento de condicionalidades, como indicador da vulnerabilidade da família, favorece a sinergia e a intersetorialidade entre assistência social com as outras políticas de saúde e de educação. Estrutura Institucional da Gestão do Programa Bolsa Família no Piauí Mediante as vivências desta pesquisadora junto à gestão do PBF no Piauí, no período de 2003 a 2013, oportunidade em que assumiu-se a função de 157 coordenadora do programa em âmbito estadual, pôde-se observar que, dentre os fatores que inluenciam o cumprimento das condicionalidades, encontram-se: a oferta dos serviços nas áreas da educação, da saúde e da assistência social e o nível de qualiicação desses serviços; o peril da gestão pública; e as condições econômicas e sociais que dão sustentação à implementação do programa em nível governamental. A análise desses fatores inluencia diretamente no desempenho do processo de gestão dos programas sociais e, em especíico, do PBF, objeto de análise dessas relexões. No âmbito das gestões locais, observou-se a atuação efetiva da rede intersetorial do programa por meio de comitês gestores intersetoriais do PBF, traduzindo maior articulação entre as áreas, compartilhando, assim, as informações acerca das famílias, propiciando um planejamento conjunto de ações, que é inanciado por meio de um recurso a ser repassado para Estados e municípios para aprimoramento da gestão do Programa. A utilização do Índice de Gestão Descentralizada (IGD) para aferir os resultados da gestão local do PBF é uma estratégia utilizada pelo governo federal para apoiar estados e municípios por meio da transferência de recursos inanceiros. Os valores do repasse são proporcionais ao número de beneiciário do programa residentes no território e calculados a partir do desempenho das administrações locais na gestão do Cadastro Único e no acompanhamento das condicionalidades. Os recursos podem ser usados para atividades voltadas à gestão do PBF. No que diz respeito ao acompanhamento das famílias beneiciárias do Programa no Piauí, a equipe gestora das condicionalidades previstas tem registrado diiculdades relacionadas aos seguintes aspectos: ausência de visita domiciliar por parte dos agentes técnicos do PBF às famílias acompanhadas; falta de esclarecimento dos gestores sobre o objetivo principal das condicionalidades do PBF; ausência de condições institucionais que possibilitem aos agentes técnicos estrutura mínima de atuação local; a má qualidade do registro de dados sobre a frequência escolar dos alunos, sob a responsabilidade das escolas municipais; falta de estratégias de comunicação mais diretas com as famílias, de modo a conscientizá-las acerca da importância e da possibilidade de acesso aos serviços de saúde, de educação e de assistência social disponibilizados; diiculdades quanto à mobilização das famílias beneiciárias a im de que elas compreendam os objetivos e importância das condicionalidades como forma de acesso e manutenção do benefício. Ademais, falta maior investimento na capacitação e no aprimoramento do agente técnico para que este possa operacionalizar o sistema presença e o SICON; há, ainda, a carência de capacitação para as equipes municipais envolvidas com o PBF no território; falta aos agentes gestores do PBF maior 158 estímulo aos beneiciários quanto à importância de sua participação nas reuniões e em outras atividades que promovam maior conhecimento sobre o programa, uma vez que isso diiculta o entendimento sobre o cumprimento das condicionalidades estabelecidas. Outra diiculdade registrada se refere à falta de articulação e de comprometimento dos diferentes órgãos de controle social (a exemplo dos Conselhos de saúde, de assistência social, do idoso, conselhos escolares e conselhos dos direitos da criança e do adolescente, bem como conselhos tutelares), no acompanhamento e na iscalização das ações que compreendem o Programa Bolsa Família. Neste sentido, a falta do aprimoramento do processo de gestão do PBF, no sentido de operar adequadamente as suas condicionalidades, articuladas ao desenvolvimento de ações estruturantes que venham signiicar a médio e longo prazo a autonomização das famílias em relação ao benefício, pode contribuir para aprofundar a dependência dos beneiciários ao programa. Do contrário, o seu aprimoramento possibilitará o rompimento do ciclo intergeracional da pobreza e, dessa forma, potencializará o acesso das famílias aos direitos sociais básicos e ao exercício da cidadania. Conclusão O PBF apresenta-se como parte de uma estratégia maior do Governo brasileiro de combate à pobreza ao proporcionar a transferência de renda a famílias em situação de extrema carência social. Por meio das condicionalidades, incorpora a questão do reforço ao exercício dos direitos sociais e da articulação com as redes de proteção e de desenvolvimento social das famílias. Por meio das condicionalidades, objetiva-se ampliar o acesso aos serviços de saúde, de educação e de assistência social, identiicando e atuando sobre as situações de vulnerabilidade das famílias. O PBF foi proposto com o objetivo de colaborar para o rompimento do ciclo de reprodução da pobreza entre gerações. Tal aporte faz com que o foco das condicionalidades recaia, em especial, sobre as crianças e os jovens das famílias beneiciárias nos três ciclos: educação, saúde e assistência social. Daí a necessidade de envolver o poder público para garantia da oferta dos direitos nestas áreas. O desempenho do Programa no Estado do Piauí, e nos municípios priorizados pela pesquisa, Teresina e Piripiri, tem sido realizado de acordo com as orientações nacionais e normativas, com a observância quanto ao acompanhamento sistemático das vulnerabilidades das famílias no que se refere ás condições de acesso aos serviços de saúde, de educação e de assistência social, compreendendo as condicionalidades como “radar” para identiicar onde as ofertas e/ou demandas não são atendidas pelo Estado. As condicionalidades do PBF e seus resultados no Piauí demonstram 159 que os três elementos que compõem o seu ciclo, ou seja, saúde, educação e assistência social, desde que articulados, são uma importante estratégia para a superação das vulnerabilidades sociais que perpassam o cotidiano dos beneiciários. Neste aspecto, as ações realizadas pela gestão pública e o modo adequado como são concebidas e operacionalizadas as condicionalidades do programa se tornam um fator bastante signiicativo para alcance dos seus objetivos. No Piauí, considerando a realidade de implementação do PBF nos municípios tomados como base de análise, torna-se necessário estreitar relações e fortalecer a intersetorialidade entre a política de transferência de renda e as demais políticas públicas, sobretudo no campo da saúde, da educação e da assistência social. Neste sentido, um dos desaios postos é a busca de soluções coletivas para as demandas identiicadas no tocante à fragilidade dos serviços sociais básicos ofertados. Para tanto, a sensibilização dos gestores públicos no que se refere aos investimentos necessários, à qualiicação continuada da equipe técnica e à responsabilização dos atores envolvidos, dentre eles, em destaque, as famílias beneiciárias; pode ser o diferencial no sentido do aprimoramento do programa e de sua efetividade na perspectiva do enfrentamento das desigualdades sociais e da redução da pobreza. Referências BRASIL. Cadernos de Estudos Desenvolvimento em Debate. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005. ______. Portaria GM n° 251, de 12 de dezembro de 2012. Regulamenta a Gestão de Condicionalidades do Programa Bolsa Família. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2012. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/_doc/portarias/2012/Portaria%20no%20251%2012%20de%20dezembro%20de%20 2012.pdf>. Acesso em: 4 jun. 2017. ______. Programa Bolsa Família: perguntas e respostas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2006. Disponível em: <http://www.mds.gov.br>. Acesso em: 13 jan. 2017. FRANCO, Rolando. Modelos de política social en América Latina en el último cuarto de siglo. In: ______; LANZARO, Jorge (Coord.). Política y políticas públicas em los processos de reforma de América Latina. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2006. p. 147-168. 160 SILVA, Maria Ozanira da Silva e. As condicionalidades no Programa Bolsa Família: sua face conservadora e limites para a implementação da renda básica de cidadania no Brasil. In: TEIXEIRA, Solange Maria (Org.). Política de Assistência Social e temas correlatos. Campinas: Papel Social, 2016. p. 155 -179. ______; GUILHON, Maria Virgínia Moreira; LIMA, Valéria Ferreira Santos de Almada. As condicionalidades e o índice de gestão descentralizada (IGD) enquanto dimensões centrais do Bolsa Família (BF): uma incursão na realidade do programa no Maranhão. Cadernos de Pesquisa, Maranhão, ano 1, n. 1, p. 17-57, 2013. Disponível em: <www.gaepp.ufma.br>. Acesso em: 13 jan. 2017. ZIMMERMANN, Clóvis Roberto. Os programas sociais sob a ótica dos direitos humanos: o caso do Bolsa Família do governo Lula no Brasil. Sur, Rev. int. direitos humanos, [online]. 2006, v. 3, n. 4, p. 144-159. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1806-64452006000100009>. Acesso em: 4 jun. 2017. 161 CAPÍTULO X. O PROGRAMA DINHEIRO DIRETO NA ESCOLA (PDDE): EXPERIÊNCIA DE GESTÃO EM CODÓ-MA Esp. Francisco da Silva Paiva Prof. Dra. Jaíra Maria Alcobaça Gomes Profa. Dra. Maria D’Alva Macedo Ferreira Introdução Objetivo desse artigo é discutir a gestão do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), tendo como campo empírico duas escolas públicas do município de Codó no Estado do Maranhão. Para a construção da investigação optou-se pela realização de uma pesquisa de campo, como forma de conhecer a gestão do referido programa nas duas escolas pesquisadas. Estudar um programa ou uma política pública requer a compreensão do contexto social e político em que essa iniciativa foi pensada ou construída. Dessa forma, antes de abordar diretamente o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), fez-se a opção de reletir sobre o contexto de implantação do programa. A análise do contexto demonstra que o PDDE foi concebido em um período político em que predominou um forte ideário neoliberal que impactou em várias iniciativas daquele período. A própria ideia da transferência de responsabilidades, travestida de descentralização, é algo presente no desenho dessa política educacional. Ao abordar diretamente a constituição do programa percebe-se que existe uma divisão de responsabilidades entre Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pelos repasses dos recursos do programa; as unidades executoras, que tem papel de fazer a gestão dos recursos; as escolas, que em tese são as beneiciarias dos recursos geridos pelas unidades executoras; Estados e municípios, que fazem a gestão dos recursos das escolas que não tem unidades executoras. As unidades executoras são de natureza privada e as responsáveis pela gestão dos recursos recebidos para serem aplicados na escola. Elas são entidades privadas que administram recursos públicos, a priori, essa condição tornou essas unidades instituições polêmicas e foram alvos de muitas críticas. Mas, nas escolas pesquisadas foi possível constatar que a unidades executoras foram escolarizadas, ou seja, sua constituição é feita quase inteiramente pelos proissionais da escola, não tendo na prática diferenciação entre a gestão da unidade executora e a gestão da escola. A gestão do programa, nas escolas pesquisadas, é do tipo democrática para os proissionais da escola, ou seja, os professores e a equipe pedagógica participam da gestão dos recursos do programa, mas os alunos e os demais membros da comunidade não têm espaço para contribuir ou deliberar sobre esse assunto. Fica evidente também que há um sobrecarga de responsabilidades das escolas em relação a aplicação dos recursos do PDDE, uma vez que, a gestão 162 da educação no município está transferindo para as escolas atribuições inanceiras além da capacidade do programa. Para a realização desse trabalho foram necessárias a realização de uma pesquisa de campo, uma pesquisa bibliográica e uma pesquisa documental. Para análise das entrevistas semiestruturadas foi utilizada a técnica de análise de conteúdo. O PDDE e o contexto social, político, conômico e ideológico de sua criação O Programa Dinheiro Direto na Escola foi criado em 1995 no governo do então presidente da república Fernando Henrique Cardoso. Essa iniciativa fez parte de uma ampla reforma na educação básica ocorrida naquele período, dentre as medidas mais conhecidas pode-se citar: a aprovação da Lei de diretrizes e Bases em 1996 (BRASIL, 1996), a aprovação dos Parâmetros Curriculares Nacionais em 1998 e a aprovação do FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério) em 1997. A justiicativa oicial para essa reforma era a modernização do ensino fundamental e o elemento que perpassou todas essas iniciativas foi a fundamentação neoliberal, transposta da econômica para as políticas educacionais. Observando de uma forma mais ampla o ideário neoliberal foi a base de sustentação para toda reforma do Estado, na época conduzida pelo Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, sob a responsabilidade do ministro Bresser Pereira (PERONI, 2011). O legado dessa reforma do Estado foi uma economia dependente das exportações de commodities, um endividamento público incomparável historicamente, a doação ao capital nacional e internacional de parte signiicativa das empresas públicas, uma política educativa focalizada no ensino fundamental em detrimento dos outros níveis e modalidades, um sistema único de saúde estraçalhado e a soberania nacional comprometida com as relações submissas do país com o FMI, entre outros elementos. Não é demais lembrar que o receituário neoliberal que foi implantado no Brasil na década de 1990 foi importado das experiências inglesas e norte americanas, mas preservou muito do ideário do liberalismo clássico do século XIX, principalmente a ideia de que Estado é um mal para economia. A justiicativa para adoção do radicalismo neoliberal foi o controle inlacionário. Para tal o instrumento escolhido por FHC foi a política cambial por meio da elevação das taxas de juros. No seu auge dessa política em 1997, o Banco Central ixou uma taxa Selic em 45,67 pontos (ROSSI, 2015). Essa taxa contribuiu para retrair o consumo interno, diminuir a produção industrial e baixar as receitas públicas. A soma desses elementos explodiu com uma grande crise iscal que fez o país recorrer várias vezes ao caixa do Fundo Monetário Internacional. Foi nessa mesma crise iscal que o país privatizou boa parte de seus ativos para 163 quitar pagamento de juros da dívida pública. Dos ativos negociados o que mais chamou atenção foi a venda da Companhia Vale do Rio Doce, terceira maior mineradora do mundo. Ainda como forma de dar prioridade ao pagamento dos juros e amortizações da dívida pública em detrimento dos investimentos sociais foi aprovada em 1994 a DRU (Desvinculação de Recursos da União). Um instrumento que possibilitou ao governo drenar 20% dos recursos da saúde, educação e outas áreas sociais para atingir as metas de superávit primário. Em outras palavras, pagar a “bolsa banqueiro”. Essas medidas do governo PSDB estavam de acordo com que Friedman (NAOMI, 2007) chamou de “Doutrina do Choque”. Que signiica a criação de um clima de instabilidade para que sejam justiicadas medidas radicais contra o Estado. Em outros termos, as ideias desse pesquisador podem ser resumidas em menos Estado e mais mercado. A ênfase nas virtudes do mercado, de um lado reforçava a ideia de um mercado que poderia funcionar a partir de suas próprias leis e de outro criou-se a ideia de um Estado incompetente, ineicaz, lento e corrupto. A crença em uma economia que funciona harmonicamente se deixada a sua própria sorte foi desconstruída pela Polanyi (2000) em sua obra magistral: A grande Transformação. Mais recentemente Piketty (2014) deixou claro, em sua obra o Capital do século XXI, que o mercado deve ser regulado, do contrário, ele aumentará progressivamente a concentração de renda. Outra importante voz contra o consenso neoliberal foi Bourdieu (2015) que classiicou o neoliberalismo do inal do século passado como sendo “uma espécie de máquina infernal”. Para o pesquisador francês o neoliberalismo ameaça a vida humana, é uma corrida para o abismo. Retomando o ponto de partida, pode-se airmar que o cenário de estadofobia em que foi criado do PDDE é importante para compreender o por que se preferiu efetivar a gestão do programa a partir das unidades executores e não diretamente pelos canais já instituídos em âmbito escolar. Esse modelo de gestão representa, pelo menos em termos formais, a transferência da responsabilidade pela gestão de recursos públicos para entidades privadas. Conigura-se o que os reformadores do Estado classiicaram como públicos não estatal. De forma resumida é a transferência de responsabilidades públicas para entidades privadas. O PDDE e seus elementos constitutivos A criação do PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola) é parte de uma longa tradição autoritária brasileira de fazer leis, editar Medidas Provisórias, implantar projetos, políticas, programas e ações educacionais sem nenhum tipo de participação popular. No período em que o Ministro Paulo Renato de Sousa esteve à frente da gestão do Ministério da Educação (1995-2002) essas práticas se fortaleceram mais ainda. Políticas como FUNDEF e os Parâmetros Curriculares Nacionais para Educação Básica 164 foram implantados sem a participação popular. No caso da Lei de Diretrizes e Bases até houve participação, mas o texto inal da lei desconsiderou as contribuições dos movimentos sociais. Com o PDDE não foi diferente, criado pela Medida Provisória (MP) nº 1. 784 de 14 de dezembro 1995 (BRASIL, 1995) sem diálogo com os movimentos e entidades que militam nesse campo. A MP que criou deiniu como principal objetivo do mesmo: Prestar assistência inanceira, em caráter suplementar, às escolas públicas da educação básica das redes estaduais, municipais e do Distrito Federal e às escolas privadas de educação especial mantidas por entidades sem ins lucrativos, registradas no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) como beneicentes de assistência social, ou outras similares de atendimento direto e gratuito ao público (MEC, 2016). Ao deinir que os recursos do programa seriam de caráter somente suplementar a Medida Provisória deiniu que as escolas beneiciadas continuariam recebendo suporte inanceira das secretarias de educação. Mas o ponto mais polêmico da MP foi a abertura para repassar recursos inanceiros para entidades privadas. Esse ponto contraria inclusive a Lei 9394/96 que havia deinido que as crianças com necessidades educacionais especíicas deveriam frequentar a rede regular ensino. Além disso, acrescenta-se outro, em um país em que os recursos para educação já são restritos por que direcionar parte desses recursos para entidades privadas? A inclusão das instituições de ensino privadas, que trabalham com educação inclusiva, foi resultado de um forte lobby da rede APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) e de outras instituições similares. Essas instituições, sempre conseguiram historicamente, mobilizar um forte apoio popular e parlamentar para suas pautas. O gráico abaixo demonstra como o Programa Dinheiro Direto na Escola é organizado. Figura 1 – Instancias da gestão do PDDE Fonte: produzido pelo autor 165 Conforme o gráico, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação repassa os recursos diretamente para as unidades executoras. Caso não haja unidade executora constituída na escola os fundos são repassados para os municípios, no caso das escolas municipais ou para o Estado no caso das escolas estaduais. De qualquer forma para os recursos chegarem as escolas precisam passar por um intermediário, seja unidade executora; seja Estado ou município. De todos os elementos que compõem a estrutura do PDDE, não há dúvida, que aquele que causou mais estranheza foram as unidades executoras. As unidades executoras a rigor não são parte da estrutura das escolas, ao contrário, elas são entidades com personalidade jurídica de direto privado, sem ins lucrativos, instituídas por iniciativa da escola, da comunidade ou de ambas. Peroni (2005) explica que dependendo da região ou Estado as unidades executoras podem ser chamadas: Caixa Escolar, Associação de Pais e Professores, Associação de Pais e Mestres e Círculo de Pais e Mestre. Independente do nome as unidades terão como principais atribuições: Administrar recursos transferidos por órgãos federais, estaduais, distritais e municipais; gerir recursos advindos de doações da comunidade e de entidades privadas; controlar recursos provenientes da promoção de campanhas escolares e de outras fontes; fomentar as atividades pedagógicas, a manutenção e conservação física de equipamentos e a aquisição de materiais necessários ao funcionamento da escola; e prestar contas dos recursos repassados (BRASIL, 2016, p.27) Ver-se que além dos recursos provenientes do PDDE as unidades executoras podem administrar recursos de outras origens. Com relação a composição as unidades executoras são constituídas da seguinte maneira: Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Diretoria e Conselho Fiscal. A Assembleia Geral é a responsável por fundar a Unidade Executora, eleger e dar posse à Diretoria, ao Conselho Deliberativo, ao Conselho Fiscal, discutir e aprovar o estatuto da entidade (MEC, 1997). O Conselho Deliberativo é composto por um presidente, um secretário e um número de conselheiros deinidos pela assembleia geral. Esse conselho será responsável pela aprovação do plano de trabalho, revisar os balancetes de receitas e despesas, apresentados nas reuniões pela diretoria, promover sindicância para apurar ocorrência de irregularidade no âmbito de sua competência, determinar a perda de mandato dos membros da diretoria por violação do estatuto, emitir parecer conclusivo sobre matérias levadas à apreciação do colegiado, reunir-se ordinariamente uma vez por bimestre (MEC, 2016). 166 A diretoria terá os seguintes membros: presidente, vice-presidente, secretário e tesoureiro. A diretoria será a responsável por elaborar e executar a programação anual e o plano de aplicação de recursos da unidade executora, deliberar sobre aplicação e movimentação dos recursos, encaminhar aos conselhos iscal e deliberativo o balanço e o relatório, assinar os cheques (presidente e tesoureiro) e cuidar de toda documentação da unidade executora (FNDE, 2016). Por último o Conselho Fiscal será composto em assembleia geral, não tem o número deinido de membros. A quantidade de pessoas será deinida em cada caso pelo regimento da unidade. Terá como atribuição iscalizar as ações e a movimentação inanceira, examinar e aprovar a programação anual e o relatório e a prestação de contas. Fonte: produzido pelo autor A recomendação é que os mandatos sejam de dois anos, permitindo uma recondução. Essa orientação não é uma imposição, por isso, o que deinirá o mandato dos membros das unidades é o regimento de cada uma delas (MEC, 2016). Uma vez constituída a unidade executora precisa registrar as atas em cartório e fazer o registo junto a receita federal. Esse último procedimento pode ser feito de forma eletrônica. Após a conclusão do registo da unidade executora junto a receita federal, deve-se proceder o cadastro eletrônico no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Concluído todos esses tramites a unidade estará apta a receber os recursos. A transferência de recursos para as unidades executoras é de responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A origem dos recursos é o salário educação, uma contribuição social destinada ao inanciamento de programas, ações e projetos educacionais (MEC, 2016). Os valores são repassados uma vez por ano (sem necessidade de assina167 tura de convênio). Com esses recursos as unidades executoras podem adquirir material permanente, material de consumo e podem contratar pequenos serviços de manutenção, conservação, capacitação e aperfeiçoamento de proissionais da educação. O cálculo dos valores recebidos por cada unidade escolar é feito de acordo com o número de alunos matriculados no ano anterior ao repasse. Uma mudança importante no programa foi instituída em 2009 com a Medida Provisória 455 de 28 de janeiro daquele ano. Com essa alteração houve uma ampliação da abrangência do programa para toda educação básica, antes somente as escolas de ensino fundamental tinha acessos aos recursos. Em decorrência da inclusão das escolas de educação infantil e de ensino médio o programa liberou, em 2009, 2,38 bilhões para mais 134 mil escolas públicas e privadas de educação especial e contemplou 43 milhões de alunos (FNDE, 2016) Outra alteração relevante do programa ocorreu 2013 quanto foi instituído uma mudança no cálculo dos recursos repassados. Antes desse ano todo recurso era baseado exclusivamente no número de alunos matriculados nas escolas, a partir desse ano foi incluído um valor ixo para as escolas com unidades executores próprias (MEC, 2016). Essa modiicação instituiu além do valor per capita os seguintes valores: escolas com unidades executoras próprias localizadas em áreas urbanas passaram a receber um valor ixo de 1.000,00 (mil reais); escolas localizadas em áreas rurais passaram a receber um valor ixo de 2.000,00 (dois mil reais); e escolas privadas de educação especial passaram a receber 1.000,00 (mil reais) (MEC, 2016). Nesses vinte e um (21) anos de funcionamento do PDDE, o programa foi aprimorado, se tornou mais inclusivo e mais abrangente. Contexto da pesquisa A pesquisa de campo foi realizada em duas escolas municipais de ensino fundamental: Escola Desembargador Sarney de Araújo Costa e Colégio Ananias Murad. A Escola Desembargador Sarney de Araújo Costa ica localizada na Praça Padre Giuseppe Pelegrini s/n, bairro Nova Jerusalém, no município de Codó, Estado do Maranhão. Ela foi inaugurada em 16 de abril 1996, Decreto 367 de 24 de agosto de 1994, na gestão do prefeito Benedito Francisco Figueiredo. Em agosto de 2015 a Lei Orgânica nº 1730 renomeou as escolas com nome de pessoas vivas, dessa forma, esta escola passou a ter a denominação atual, antes seu nome era: Escola Municipal Deputado Sarney Filho. No ano letivo 2016 a escola tem 609 alunos distribuídos nos turnos 168 matutino, vespertino e noturno, oferece vagas para 4º ao 9º ano. O Colégio Ananias Murad foi fundado em 21 de maio de 1968 pelo Decreto Lei 342/68, na gestão do Prefeito René Bayma. Teve sua primeira sede localizada na Rua Henrique Figueiredo, s/n no centro da cidade. O nome da escola é uma homenagem ao maçom Ananias Murad, libanês que chegou a cidade Codó no ano de 1918 e tonou-um grande comerciante. Atualmente o colégio está funcionando no prédio do antigo Colégio Codoense que pertencia a CNEC (Companhia Nacional de Escolas da Comunidade), situada na Rua César Brandão, nº 1060, Bairro São Pedro. Este ano o Colégio Ananias Murad funciona nos turnos matutino e vespertino, oferece matrícula para alunos do 4º ao 9º ano e conta com 670 alunos. A escolha dessas duas escolas para a realização da pesquisa se deu por serem escolas que já trabalham há bastante tempo com recursos do PDDE, além de serem escolas grandes, considerando a realidade do município. Gestão do PDDE no Colégio Ananias Murad e na Escola Desembargador Sarney de Araújo Costa Arretche (2001) airma que é na prática que a política é realmente feita. A prática incorpora adequações, adaptações, as crenças e os valores dos atores envolvidos no processo. Dessa forma, torna-se mais compreensivo as mudanças efetuadas no âmbito das políticas na hora da execução Foi com esse olhar que realizamos o trabalho de campo e posteriormente foram analisados os dados da pesquisa. Ou seja, buscando compreender as dinâmicas e os conlitos presentes na gestão do programa. A partir dessa premissa, foi possível constatar que a Unidade Executora da escola Desembargador Sarney de Araújo Costa é composta basicamente pelos proissionais da escola; são dez membros ao todo, sendo dois representantes da comunidade e não há participação de alunos. No Colégio Ananias Murad a situação é semelhante, ou seja, são nove servidores e um representante da comunidade. A composição da unidade é bem distinta em relação as orientações do FNDE. Pelas orientações cada unidade deve ser composta por três instâncias: Conselho Fiscal, Conselho Deliberativo e a Diretoria, conforme exposto anteriormente. Na prática a Unidade Executora é composta, nas duas escolas, somente pela diretoria, pois, é a diretoria que é a responsável pela gestão dos recursos. As demais instâncias teriam responsabilidade pelo planejamento, pelo acompanhamento do planejamento e pela iscalização das ações e gastos. A justiicativa apresentada para a não composição dos conselhos é a falta de pessoas interessadas. Há um desinteresse em participar das atividades da escola, de tal forma, que para compor a diretoria é um desaio. Fazer parte 169 da Unidade Executora é visto pelos docentes e pela comunidade, segunda as duas diretoras entrevistas, como um trabalho a mais a ser realizado. Foi possível constatar que a Unidade Executora foi absorvida completamente pela escola, ou seja, ela foi pensada para ser uma instituição privada, separada e que administra os recursos para a instituição, mas na prática a unidade ao ser composta quase totalmente por servidores se tornou parte integrante desta. Signiica airmar que no caso das escolas pesquisadas não ocorreu o que Branco (2006, p. 13) descreve: A constituição do PDDE por meio da instituição obrigatória da UEx pode ser considerada uma estratégia de descentralização das ações do Governo Federal aos municípios e estados e, consequentemente, para a sociedade repassando para esta, a responsabilidade de aplicação, prestação de contas dos recursos financeiros e manutenção física das escolas, sendo esta uma característica da redefinição do papel do Estado. Essa integração, ao menos nas escolas pesquisadas, faz com que a divisão entre unidade executora e escola seja mera formalidade. Na prática como as funções da Unidade Executora são todos desempenhadas por servidores da escola não há transferência de responsabilidade para comunidade, mas um acréscimo de funções aos agentes escolares. Em ambas as escolas, os recursos do PDDE são considerados fundamentais para o bom funcionamento das escolas. As diretoras admitiram que é a principal fonte de recurso recebido e argumentaram inclusive que sem esse recurso haveria um comprometimento das atividades escolares. Uma das maiores controvérsias do programa é o processo de compras. A recomendação é que as compras sejam feitas pelo critério do menor preço, mediante pesquisa em três empresas distintas. Sobre isso as gestoras relataram que as vezes icam obrigadas a fazerem aquisição de materiais de baixa qualidade, uma delas aponta essa como sendo uma fragilidade do programa. Em ambas as escolas as diretoras airmaram que são bem familiarizadas com a gestão inanceira do programa e que não tem diiculdade na hora de executar o recurso e prestar contas. Ambas já possuem sete anos de experiência de gestão, em suas respectivas escolas, e estão com mesmo tempo à frente das unidades. Uma consequência indesejada do PDDE é que a secretaria municipal de educação (SEMED) não auxilia as escolas na aquisição de recursos administrativos, pedagógicos e reformas prediais. Essas despesas icam sob responsabilidade da escola é a verba do PDDE que deveria ser suplementar, termina sendo o recurso central para o funcionamento da escola. Algumas pesquisas (MAFASSIOLI, 2015; MARINHEIRO, 2015; 170 BRANCO, 2006) demonstram que o programa é uma estratégia neoliberal para transferir a responsabilidade da gestão pública para a comunidade, eximindo o Estado da responsabilidade pela gestão. Nossa pesquisa de campo revelou uma situação diferente que foi a transferência da responsabilidade do âmbito municipal para o âmbito escolar. Várias vezes as gestoras relataram que a secretaria municipal de educação sabendo que as escolas recebem, por meio das unidades executoras, os recursos do PDDE vem transferindo para a escola a responsabilidade pela aquisição de todos os suprimentos necessários ao funcionamento das unidades. A diretora do Colégio Ananias Murad airmou, entrevista realizada em outubro de 2016: “sempre que a escola precisa de algo e solicita para secretaria, recebe a informação de que não há recursos e que a escola deve usar os recursos do PDDE”. A SEMED vem assumindo uma postura que é de responsabilizar as escolas por uma responsabilidade que é sua, pois, recebe recursos do FUNDEB (O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Proissionais da Educação) para comprar suprimentos para as escolas. Esse cenário impõe as gestoras a priorização do que é essencial e básico para o funcionamento administrativo e pedagógico. Não há um planejamento estruturado, conforme solicita o desenho do programa. Para as diretoras, planejar coletivamente as compras é praticamente impossível, em virtude da necessidade de investir no imediato, no indispensável. Dentro dessa lógica, são atendidas com mais frequência a compra de recursos para serem utilizadas nas aulas. Os professores solicitam verbalmente um material que irão utilizar e a direção da escola, que também é a gestora da Unidade Executora, realiza as compras. Conclusão É possível identiicar duas intenções que motivaram a criação do PDDE uma explicita e outra implícita. A explicita, e que está nos documentos oiciais, é a intenção de descentralizar de forma suplementar recursos para as unidades escolares, por meio das unidades executoras. A outra motivação não revelada é a transferência para a sociedade da responsabilidade pela gestão de recursos públicos. Nossa pesquisa de campo demonstrou que a transferência de recursos de recursos para as escolas vem ocorrendo de forma regular nessas duas décadas de funcionamento do programa. Pode-se airmar que nesse ponto o programa vem executando o que prometeu. Com relação a transferência da responsabilidade de gestão inanceira do Estado para a comunidade não foi possível caracterizar. Pois, o mecanismo necessário para a concretização dessa transferência é a participação da comu171 nidade na composição da unidade executora. Esse aspecto, não vem ocorrendo, porque as unidades executoras são constituídas pelos proissionais da escola, tendo a comunidade um papel decorativo e periférico. O que foi possível constatar foi que a secretaria municipal de educação não vem auxiliando as escolas na compra de materiais de expediente e materiais pedagógicos, fazendo com que os recursos do PDDE sejam direcionados para aquisição desses itens. Um recurso que foi pensado para ser uma verba auxiliar passou, no caso das escolas pesquisadas, a ser a principal fonte de manutenção das unidades escolares. Em relação a gestão do PDDE, nas escolas pesquisadas, pode-se airmar que é do tipo participativa. Mas, essa participação não é extensiva aos estudantes e a comunidade do entorno, se restringe a participação dos docentes e demais servidores. Estes apresentam suas solicitações cotidianamente e a direção faz a aquisição dos recursos solicitados. Não existe propriamente momentos especíicos para a discussão, planejamento, execução e avaliação da aplicação dos recursos. Para o programa impactar de forma mais profunda na educação são necessárias algumas mudanças a nível nacional, local e escolar. Nacionalmente é lagrante a necessidade do Ministério da Educação ampliar o volume de recurso de tal forma que permita as escolas o desenvolvimento de um conjunto maior de ações; realizar o repasse dos recursos ao longo do ano e não somente no inal e tornar mais lexível o processo de compras dando mais autonomia para as escolas realizarem suas aquisições No plano municipal é necessária uma mudança de postura da secretaria municipal de educação no sentido de repassar os materiais de expediente, mobílias e recursos pedagógicos que as escolas necessitam. Se isso ocorrer as escolas terão como utilizar os recursos do PDDE em ações mais estratégicas do ponto de vista pedagógico. A nível local é necessário que as escolas dialoguem com a comunidade não para transferir responsabilidades estatais, mas para construir junto com esses atores as prioridades político-pedagógicas das escolas. Apesar de todos questionamentos em relação do PDDE é necessário reconhecer sua importância para o funcionamento das ações escolares. Representa a única fonte de recursos que as escolas têm acesso e por isso é indispensável para o funcionamento das suas atividades administrativas e pedagógicas. Referências ARRETCHE, M. T. S. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: BARREIRA, M. C. R. N.; CARVALHO, M. do C. B. (Org.). Tendências e Perspectivas na Avaliação de Políticas e Programas 172 Sociais. São Paulo: IEE/PUC, 2001. p. 43-56. BOURDIEU, P. A essência do neoliberalismo. São Paulo: Biblioteca da ilo, 2015. Disponível em: <https://bibliotecadailo. iles.wordpress. com/2013/10/40-bourdieu-a-essc3aancia-do-neoliberalismo.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2016. BRANCO, M. M. P. Programa dinheiro direto na escola: o papel das unidades executoras na gestão de escolas públicas do município de Araçatuba 2003-2015. 2006. 119f. 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O novo modelo de acumulação lexível, que emerge em resposta à crise, exige uma nova superestrutura - jurídica, política e ideológica - que é o neoliberalismo e redeine os papéis e funções do Estado, que nessa perspectiva ideológica, deve ser de um Estado mínimo, posto que sua intervenção é criticada como excessiva, geradora de déicit iscal, paralisadora do crescimento econômico. Nesse enquadramento, o Estado intervencionista sofre um processo de “demonização”, é visto como burocrático, centralizador, oneroso, ineicaz, um “trambolho”. A demanda do capital é que ele se retraia e repasse algumas das suas funções para o privado, para o mercado. E que mude seus modelos de gestão pública. Nessa perspectiva, a redução do Estado intervencionista acarreta também a crise do bem-estar social garantido por políticas públicas governamentais. Segundo Pereira (2010, p. 31) o cenário contemporâneo “[...] caracterizada pelo arrefecimento do crescimento econômico, pelo desequilíbrio iscal e pela perda da legitimidade das políticas sociais públicas, revelou-se um atestado inconteste da incompatibilidade da estrutura daquele Estado com a ordem socioeconômica emergente [...]”. No contexto do neoliberalismo, o Welfare State sofre “mutações”, o Estado retira-se da função principal de intervir e proporcionar políticas públicas e se coloca apenas como mediador, regulador e coordenador das parcerias. Nota-se o repasse dessa função para o mercado, para aqueles que podem pagar e para a sociedade e instituições do terceiro setor, enim, é um Welfare Mix ou Welfare Society, conforme Vianna (2000). No que se refere ao Brasil, cabe frisar que o Estado de Bem-Estar Social não se materializou de fato; o que foi instaurado em solo brasileiro como próximo desse modelo foi instaurado com a Constituição Federal de 1988, mas que mesmo antes de ser implementado já foi alvo de reformas, de desmontes e retrocesso, sob a inluência neoliberal, a partir dos anos de 1990. Assim, sob a justiicativa de melhorar a eicácia das políticas sociais frente ao contexto de crise e como alternativa à “ingerência” do Estado, fortaleceu-se a necessidade do trabalho através de redes e parcerias entre o Estado e a sociedade civil, o Estado e o Mercado, e entre o Estado e o Estado (descentralização polí177 tica e municipalização dos serviços). Esse novo Estado de Bem-Estar Social que prevê a parceria entre público e privado é conceituado por Pereira (2010) como um pluralismo de bem-estar social. Para a autora, trata-se de uma estratégia de esvaziamento da política social como direito à cidadania. O Estado neoliberal trata a “questão social” de maneira fragmentada e focalizada em detrimento da universalização, sob a alegação de falta de recursos ou limitações orçamentárias. Diante disso, os trabalhadores são penalizados, principalmente aqueles em condições de trabalho precárias e terceirizadas, bem como outros grupos, considerados “invisíveis” para o capital, sobretudo o exército industrial de reserva e a camada lazarenta, que são excluídos e colocados à margem das relações sociais. A pobreza aumenta exponencialmente e, em consequência disso, o país atinge níveis de desigualdade social alarmantes, que vão de encontro à cidadania conquistada através dos direitos legitimados pós-Constituição de 1988. Diante dessa conjuntura, o que se constata é a exponenciação da “questão social”. As novas demandas da sociedade contemporânea e as diferentes e complexas expressões da “questão social” ancoradas nesse novo cenário vêm exigindo da gestão pública novas estratégias de intervenção, uma gestão que se afaste cada vez mais da burocratização e setorialização engessada e se aproxime das práticas participativas e descentralizadas, uma gestão social, materializada por meio da gestão em redes. No entanto, esse tipo de gestão atende a interesses antagônicos, do Estado neoliberal por uma gestão enxuta, ágil e de baixo custo, à medida que conta com os recursos e serviços dos parceiros, constituindo-se campo fértil de legitimação da desresponsabilização do Estado, reduzindo a função deste para apenas a de regulador e coordenador de uma rede de serviços. É dos movimentos sociais, do período da redemocratização brasileira, por um Estado descentralizado, que divide poderes e recursos e com gestões democráticas, efetivas e que atenda integralmente as demandas sociais, a partir de modelos alternativos de intervenção estatal, com serviços de base comunitária ou territorial, diurnos, com equipes interdisciplinares, com centralidade na família, dentre outros. Neste sentido, o presente artigo de caráter bibliográico e documental, tem como objetivo reletir acerca desse modelo de gestão descentralizado e participativo preconizado no cenário contemporâneo e apropriado pelo Estado Neoliberal, utilizando como exemplo a Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004. Gestão social e a emergência das redes: abordagens e tendências de gestão pública na conjuntura neoliberal As mudanças ocasionadas pelo capitalismo levam alguns autores a acreditar no surgimento de uma nova questão social – a exclusão social. Con178 tudo, para analisar esse novo contexto, se faz necessário pensar a questão social sem vê-la como total novidade e, ao mesmo tempo, sem naturalizá-la como problemas que sempre existiram e sempre existirão. Pastorinni (2004), levando em consideração a relação dialética entre o antigo e o novo, entende que só seria possível airmar que existe uma “nova questão social”, diferente da que surgiu no século XIX, se a antiga não existisse mais, porque foi superada ou resolvida. No entanto, a questão social fincada na relação capital vs trabalho não foi superada; a novidade trazida foram as novas formas com que essa “questão social” se expressa. Os diferentes estágios do capitalismo produzem distintas manifestações da “questão social”; no presente estágio, a “questão social” se manifesta pelo desemprego, violência, além das questões urbanas, de gênero, das lutas rurais e dos homoafetivos etc (PASTORINNI, 2004). Assim, os preceitos do neoliberalismo passam a inluenciar não apenas as questões econômicas, mas também o contexto das políticas públicas, especiicamente as sociais, exigindo a implantação de um Estado Mínimo, políticas sociais extremamente focalizadas, proteção social apenas para os mais pobres, privatização das empresas públicas, incentivo da parceria público-privada, ou seja um redirecionamento também da gestão pública, uma gestão que consiga compartilhar com todos os sujeitos sociais as funções que seriam de fato do ente estatal, uma gestão social. Sousa Filho e Gurgel (2016, p. 257) airmam que é necessário estabelecer um controle da burocracia, da administração burocrática, “[...] para que ela não se aproprie dos meios de administração e produção da sociedade [...]”. Segundo os autores o que se propõe de um modo geral, para corrigir este fenômeno repetitivo, é “(a) a transparência; [...] (b) participação da sociedade organizada nas decisões relativas às políticas públicas; e (c) o controle social”(Idem). Diante desse prisma, Souza Filho e Gurgel (2016, p. 257) airmam que “[...] o desenvolvimento desse debate gerou uma importante corrente da administração pública intitulada de gestão social. A gestão social postula um gerenciamento mais, participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por diferentes sujeitos social [...]”. Dowbor (1999, p. 16) já airmava sobre essa questão que: Na realidade, os paradigmas da Gestão Social ainda estão por ser definidos, ou construídos. É uma gigantesca área em termos econômicos, de primeira importância em termos políticos e sociais, mas com pontos de referência organizacionais ainda em elaboração. 179 Para Fischer (2002, p. 27), a gestão social é caracterizada por: um processo de mediação que articula múltiplos níveis de poder individual e social. Sendo um processo social e envolvendo negociação de signiicados sobre o que deve ser feito, por que e para quem, a gestão não é uma função exercida apenas por um gestor, mas por um coletivo que pode atuar em grau maior ou menor de simetria/assimetria e delegação, o que traz uma carga potencial de conlito de interesse entre atores envolvidos e entre escalas de poder. Para Kauchakje (2007, p. 27), a gestão social refere-se à “[...] gestão de ações sociais públicas para o atendimento de necessidades e demandas dos cidadãos, no sentido de garantir os seus direitos por meio de políticas, programas, projetos e serviços sociais [...]”. Nesse aspecto, próximo ao que demandava os movimentos sociais, no processo de redemocratização do Estado brasileiro. De acordo com Maia (2005), a gestão social tem sua origem vinculada à inluência do capital e do incentivo do desenvolvimento da participação do Terceiro Setor. Para ele, a questão da responsabilidade social seria o ponto chave desse tipo de gestão no setor privado. Essa lógica é transportada para o setor público, na busca por parceiros impulsionada por essa noção de responsabilidade social, corresponsáveis pelo bem-estar social, participação social, dentre outras expressões. No que se refere ao setor estatal, a gestão social tem sido orientada para o alcance dos objetivos da Seguridade Social (SPOSATI, 2005), um conceito que airma que a oferta dos serviços públicos de atenção social aos cidadãos não é exclusividade do Estado, conforme legitimado na Constituição Federal de 1988 em diferentes artigos: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Art. 195. A seguridade social será inanciada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais (BRASIL, 1988). Neste sentido, Carvalho (1999, p. 42) airma que a gestão social [...] funda-se na concepção de um Estado Social de Direito e, portanto, comprometido com a cidadania de todos os cidadãos de uma nação. Ancora-se em princípios constitucionais que dão forma e conteúdo às políticas, programas e aos serviços públicos. Reconhece no Estado a autoridade reguladora das ações públicas. 180 A autora ainda reforça quo o cenário atual leva a crer na presença de um pós-Welfare e, em consequência disso, a instituição de um Estado cada vez menos interventor e mais mediador, um Estado considerado por Carvalho (1999) como coordenador, que continua formulando a política pública, mas repassando a função de executar as ações públicas para os demais entes sociais. Carvalho (1999) ainda aponta duas ordens de tensão que movimentam a formatação da gestão da política social. A primeira é a tensão entre eiciência e equidade: a privatização e o repasse das ações do Estado para outros entes, visando assim a maior eiciência no gasto público; contudo esse processo é permeado pelo risco de não garantir a equidade das ações para os cidadãos. A outra tensão se dá entre a lógica da tutela ou compaixão e a lógica dos direitos. A autora destaca que se faz presente “[...] o risco da ilantropização dos serviços de direitos dos cidadãos, ou ainda da manutenção do receituário neoliberal impedindo o avanço na conquista da equidade social [...]” (CARVALHO, 1999, p. 25). Neste sentido, a gestão social concatena-se a essa ideia de descentralização e torna-se o tipo de gestão “ideal” que, ao mesmo tempo, responde aos movimentos sociais que buscam a descentralização e gestão participativa e a comitiva neoliberal que propõe cada vez mais o recolhimento do Estado na intervenção das políticas sociais. A Constituição Federal de 1988 tornou-se o marco da instituição da gestão pública partilhada no Brasil, no entanto, mesmo que as conquistas constitucionais sejam fruto das lutas dos movimentos sociais da década de 80, o que se constata, como destaca Dagnino (2005), é que o projeto neoliberal se apropria do potencial transformador do discurso dos movimentos sociais e apropria-se dos principais referenciais do modelo democrático: descentralização, participação, rede, ressigniicando-os numa outra lógica, o que responsabiliza a sociedade e o mercado pela oferta de serviços e, portanto, como agentes de proteção social, executor de políticas públicas, das parcerias, do mix público/privado no enfrentamento das expressões da questão social. A ação pública como airma Gomà (2004, p. 16): [...] sob uma tripla pressão de mudança: a transição em direção às políticas transversais, capazes de integrar a complexidade; às políticas participativas, capazes de assumir os processos de subjetivação em curso; e às políticas de inclusão, capazes de promover novas lógicas de coesão e redistribuição. A agenda da inclusão se converte, assim, em uma peça-chave do Estado de bem-estar do século XXI. Em síntese, a nova arquitetura da gestão pública prevê uma nova lógica irmada na cidadania e que proporcione uma ação integral, desenvolvida com 181 base na característica de territorialização, municipalização (o microterritório deve ser considerado como campo do desenvolvimento das ações; é nesse espaço que os direitos são materializados de fato) e intersetorialidade, com o desenvolvimento de políticas públicas que se complementam. Ao mesmo tempo baseia-se em uma nova relação entre sociedade civil e Estado, no incentivo de formações de redes e parcerias público-privadas. Esse novo modo de pensar os arranjos da política pública, que pretende superar a setorialização, convoca a gestão de políticas públicas a se adaptar e integra-se aos sistemas participativos que visam ao desenvolvimento das ações articuladas, no que se refere aos programas e projetos sociais. Os programas sociais passam a se desenvolver sob a lógica da ação em rede, agregando diversos serviços, projetos, sujeitos e organizações no âmbito do microterritório, que é o do município. A modiicação na gestão pública favoreceu o desenvolvimento da municipalização das políticas sociais. Diante desse processo de descentralização e implementação da gestão social, o município assume o papel principal na implementação das ações das políticas sociais. A emergência pelo desenvolvimento do local como saída para o enfrentamento das expressões da questão social coloca em relevo o município como espaço territorial mais compatível para a lexibilização das políticas e da proteção social. A Constituição Federal e as principais legislações sociais regulamentam uma gestão compartilhada, colocando o município com a função de execução, juntamente com as parcerias privadas formadas nesse território. Neste sentido, segundo Farah (1999), a descentralização, a municipalização e a participação são percebidas como ingredientes fundamentais de reorientação substantiva das políticas sociais. De acordo com Brant de Carvalho (2012, p. 53), [...] a gestão pública municipal deve comprometer-se com os propósitos maiores de desenvolvimento social local. As secretarias municipais e outras agências governamentais devem se submeter a um plano estratégico que exige abandonar a perspectiva isolacionista e setorial da gestão tradicional. No entanto, analisar a municipalização no contexto brasileiro é tarefa complexa; um país continental formado por mais de cinco mil municípios com diferentes características econômicas, culturais e marcados por desigualdade regionais, onde, em grande parte deles, em especial os mais interiorizados, a discussão política ainda é marcada pela inluência do coronelismo político. Desse modo, é necessário trazer à baila que esse processo ainda não se consolidou, e sua construção encontra-se incrustada em solo marcado por contradições homéricas, acarretando entraves e desaios para que a munici182 palização seja de fato efetivada como forma de descentralização da gestão. Para melhor compreensão sobre a gestão social vinculada à emergência das redes, é necessário realizar uma revisão acerca das principais tipologias em referência à categoria gestão social e, especiicamente, a um dos seus subtipos, a gestão em redes, sobre a qual se discorre abaixo. Tipologias de gestão pública e gestão social A partir da década de 80, Behring (2016) aponta que, “[...] em contexto de crise do capital, todos os países capitalistas de norte a sul do globo seguiram orientações do Banco Mundial e instituíram contrarreformas [...]” (BEHRING, 2016, p. 122). A maioria se reorganizou sob as tendências neoliberais, as reformas, no entanto mantêm ou pioram a situação existente. As reformas aconteceram em todos os âmbitos: político, econômico, social e administrativo; neste sentido, ocorreram modiicações na administração pública, como já se ressaltou anteriormente no presente escrito. Assim, se faz necessário evidenciar algumas tipologias da administração, para que se possa ter um entendimento comparativo e perceber o seu processo evolutivo, utilizando estudo do autor Pereira (2005), bem como as principais modalidades da gestão social cujas deinições são trazidas pela autora Kauchakje (2007), e a rede como estratégia de gestão debatida por Teixeira (2002) e demais autores. De acordo com Bresser Pereira (2005), a administração pública, no contexto brasileiro, tem sua evolução baseada em três modelos: o patrimonialista, o burocrático e o gerencial. Para Pereira (2005), o “patrimonialismo” signiica a incapacidade ou relutância do príncipe distinguir entre o patrimônio público e seus bens privados; a administração pré-capitalista era assim patrimonialista. Esse tipo de concepção administrativa era o mais supericial e o menos racional, pois foi construído no terreno comprometido com critérios baseados em privilégios, tradição, parentesco e outros, bem distantes da meritocracia do modelo burocrático. A administração pública do tipo burocrático surge a partir da evolução histórica dos modelos de administração. Pode ser caracterizada por uma proissionalização e racionalização dos processos administrativos. Este modelo traz respostas ao modelo anterior onde era ilimitada a possibilidade de junção entre o público e o privado (PEREIRA, 1996). Pereira (2005, p. 26) assim explica: Com o surgimento do capitalismo e da democracia, estabeleceu-se uma distinção clara entre res publica e bens privados. A democracia e a administração pública burocrática emergiram como as principais instituições que visavam a proteger o patrimônio público contra a 183 privatização do Estado. Democracia é o instrumento político que protege os direitos civis contra a tirania, que assegura os direitos sociais contra a exploração e que airma os direitos públicos em oposição ao rent-seeking. Burocracia é a instituição administrativa que usa, como instrumento para combater o nepotismo e a corrupção – dois traços inerentes à administração patrimonialista -, os princípios de um serviço público proissional e de um sistema administrativo impessoal, formal e racional. A redeinição no papel do Estado, cada vez mais reduzido a apenas coordenar as ações, forçou a emergência de um novo modelo de administração pública, o modelo denominado pelo autor de “gerencial”. O autor deine algumas características básicas da administração gerencial que, para ele, [...] É orientada para o cidadão e para a obtenção de resultados; pressupõe que os políticos e os funcionários são merecedores de grau limitado de coniança; como estratégia serve-se da descentralização e do incentivo à criatividade e à inovação; e utiliza o contrato de gestão como instrumento de controle dos gestores públicos (PEREIRA, 2005, p. 28). Nesta perspectiva de compreensão dos modelos administratitos, Kauchakje (2007) se referencia na discussão de Pereira, contudo, apresenta novos modelos de gestão. A autora destaca cinco modalidades de gestão social e airma que estão inseridas num contexto sociocultural, portanto ligadas a momentos históricos dentre os quais, um ou outro modelo, ganha predominância. São eles: gestão patrimonial, gestão técnico-burocrática, gestão gerencial inspirada na análise de Pereira, gestão democrático-participativa e gestão em redes. Serão destacados os dois últimos modelos trazidos pela autora, pois trata-se de uma inovação na descrição dos processos administrativos. As duas novas formas administrativas encontram-se em pleno processo de desenvolvimento e expansão no cenário contemporâneo marcado pelos preceitos do neoliberalismo e ao mesmo tempo por pressões de participação da sociedade. A autora especiica que a gestão democrático-participativa, [...] se caracteriza pela ação local, descentralização, intersetorialidade de políticas e programas e a articulação entre as esferas de poder governamental. Esta gestão adota como prioridade as demandas das classes populares, realizando uma inversão das gestões tradicionais que privilegiam os grupos de poder já estabelecidos. Ela prevê o acesso da população aos serviços essenciais e privilegia os interesses populares, tidos como garantia de direitos e não mero assistencialismo, bem como 184 amplia o processo de democratização com a adoção de instrumentos e mecanismos de participação social (KAUCHAKJE, 2007, p. 91). E, no que concerne à gestão em redes, objeto de pesquisa do presente estudo, Kauchakje (2007, p. 98) airma que essa modalidade de gestão [...] está focada na articulação das políticas, hoje fortemente setorizadas, para potencializar recursos e assegurar serviços que atendam às necessidades da população. Suas características principais são: horizontalidade, negociação, articulação de atores sociais, participação da sociedade civil, aproveitamento de recursos, intersetorialidade, negociação e diversidade. Constitui-se numa tentativa de superação das políticas setorizadas e desarticuladas que prejudicam a garantia de direitos vistos em seu conjunto. Teixeira (2002) aponta que a rede de políticas e, por inferência, a gestão de redes, tem como principais características a horizontalidade e a interdependência. Tais peculiaridades as distinguem dos outros formatos de gestão; por esse ângulo, a gestão de redes possui algumas vantagens que a autora destaca: pluralidade de atores – possibilita maior mobilização de recursos e diversidades de opiniões; capilaridade – as decisões são tomadas de maneira mais democrática, presença pública sem criar burocracia; lexibilidade e gestão adaptativa; estruturas horizontalizadas; metas compartilhadas, entre outras (TEIXEIRA, 2002, p. 12). Sousa Filho e Gurgel (2016) acreditam que a importância da formação de redes, do ponto de vista da organização da gestão pública democrática, se encontra no fato de elas poderem articular os nexos entre as diversas sequelas da questão social, “[...] tensionando a dinâmica fragmentária e parcial de seu enfrentamento pelo Estado e, dessa forma, podem potencializar o atendimento às necessidades das classes subalternas, para muito além de um mero formalismo gerencial [...]” (SOUSA FILHO; GURGEL, 2016, p. 295). Por esse ângulo, percebe-se que a gestão por meio de redes, em especial nas políticas sociais, trata-se de “[...] um instrumento fundamental para a gerência das políticas sociais [...]” (TEIXEIRA, 2002, p. 20); no entanto, sabe-se também que o terreno das políticas sociais é marcado por contradições e complexidades. Quando se destaca a Política de Assistência Social, essas características se reairmam e tornam-se mais explícitas, assim a emergência das redes representa nesta lógica uma tentativa de, ao mesmo tempo, superar e tornar essa política mais acessível e efetiva, como também de responder aos fenômenos de transformação social, globalização, descentralização e ofensiva neoliberal. Nesta lógica, a estratégia de gestão social através das redes permeiam os direcionamentos das políticas sociais, especiicamente a Política de Assis185 tência no Brasil pós CF/88 e pós Lei Orgânica de Assistência Social- LOAS/ 1993, bem como as legislações recentes: Política de Assistência Social – PNAS /2004, Sistema Único de Assistência Social – SUAS/2005 e as Tipiicações e normativas, sobrelevam as ações em redes como uma diretriz essencial para a eicácia da política, uma referência de gestão e administração descentralizada a ser seguida. A Política Nacional de Assistência Social – PNAS: novos princípios da gestão e proteção social A Constituição Federal de 1988 com os Artigos 194 a 204 e a Lei Orgânica da Assistência Social de 1993 reconhece a assistência social como política pública no campo da proteção social e da Seguridade Social, airmando o caráter de direito e política social aiançada pelo Estado (BRASIL, 1988; BRASIL, 2011). Sposati (2005) chama a atenção que a validação da assistência social acontece de maneira fragilizada e aponta que ocorreu “[...] uma regulação social tardia e frágil na efetivação dos direitos sociais, principalmente pela vivência de processos ditatoriais agravados pela sua duração e travamento da maturação democrática da sociedade [...]” (SPOSATI, 2005, p. 508). Neste sentido, a LOAS 1993, possibilitou um novo desenho para a Política de Assistência Social, a deinindo como um direito de caráter não contributivo, ou seja, a participação e o acesso aos benefícios socioassistenciais não estavam vinculados a contribuições prévias, poderiam ser acessados por quem necessitar (BRASIL, 2011). No entanto, como já supracitado anteriormente, Couto, Yazbek e Raichelis (2010, p. 87) destacam que a regulamentação desses benefícios ocorre nos anos 90, sob forte inluência das reformas neoliberais. Os autores destacam que com a “[...] apreensão do Consenso de Washington, com a sua proposição que é preciso limitar a intervenção do Estado e realizar reformas neoliberais [...]” esse direito foi limitado aos estritamente pobres ou miseráveis. Isso se revela nos critérios rígidos e ultra seletivos de acesso aos benefícios não contributivos, bem abaixo da linha de pobreza ou a presença de condicionalidades. As autoras ainda destacam que a primeira Política Nacional de Assistência Social é aprovada apenas em 1998, cinco anos após a promulgação da LOAS, no entanto devido ao cenário de contrarreforma, as duas legislações caminham paralelamente ao Programa Comunidade Solidária, que no governo FHC foi apresentado como principal ação para o enfrentamento da pobreza. Desta feita, os anos de 1990 foram marcados pela ofensiva neoliberal e perdas incalculáveis para a classe trabalhadora; esfacelamento da proteção 186 social e dos direitos garantidos constitucionalmente; as legislações da assistência social, tornaram-se letras mortas e as práticas ou implementações foram incapazes de superar a cultura do assistencialismo, das práticas ilantrópicas e religiosas. Mesmo depois nos anos 2000, sob os governos petistas, com o avanço da legislação, ela ainda assim não foi capaz de romper com a cultura da parceria público-privado, deinido o Sistema Único de Assistência Social como composto por organizações governamentais e não governamentais, que formam uma rede denominada de socioassistencial. A PNAS 2004, aprovada pela Resolução n.145, de 15 de outubro de 2004, do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, foi resultado de intensas pressões populares e manifestações, que foram condensadas e deliberadas durante a IV Conferência Nacional de Assistência Social em 2003. A PNAS 2004 “[...] realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, considerando as desigualdades socioterritoriais, visando seu enfrentamento, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais [...] (BRASIL, 2004, p.25)”. Apresenta como objetivos: I - Prover serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e, ou, especial para famílias, indivíduos e grupos que deles necessitarem; II - Contribuir com a inclusão e a equidade dos usuários e grupos especíicos, ampliando o acesso aos bens e serviços socioassistenciais básicos e especiais, em áreas urbana e rural; III- Assegurar que as ações no âmbito da assistência social tenham centralidade na família, e que garantam a convivência familiar e comunitária (BRASI, 2004, p. 27). E organiza-se seguindo as seguintes diretrizes, I - Descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneicentes e de assistência social, garantindo o comando único das ações em cada esfera de governo, respeitando-se as diferenças e as características socioterritoriais locais; II - Participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis; III - Primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo; 187 IV - Centralidade na família para concepção e implementação dos benefícios, serviços, programas e projetos (BRASIL, 2004, p. 27). No que se refere a Gestão da PNAS 2004, essa se dá pela perspectiva da descentralização e territorialização, uma gestão compartilhada pelos três entes federativos, União, estados e municípios e Distrito Federal. O SUAS, [...] cujo modelo de gestão é descentralizado e participativo, constituise na regulação e organização em todo o território nacional das ações socioassistenciais. Os serviços, programas, projetos e benefícios têm como foco prioritário a atenção às famílias, seus membros e indivíduos e o território como base de organização, que passam a ser deinidos pelas funções que desempenham, pelo número de pessoas que deles necessitam e pela sua complexidade. Pressupõe, ainda, gestão compartilhada, co-inanciamento da política pelas três esferas de governo e deinição clara das competências técnico-políticas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com a participação e mobilização da sociedade civil e estes têm o papel efetivo na sua implantação e implementação (BRASIL, 2004, p. 32). O SUAS se organiza por meio de sete diretrizes estruturantes no que concerne a execução da política de assistência, são eles: primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social; descentralização político-administrativa e comando único das ações em cada esfera de governo; inanciamento partilhado entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; matricialidade sociofamiliar; territorialização; fortalecimento da relação democrática entre Estado e sociedade civil; controle social e participação popular (BRASIL, 2004; NOB/SUAS, 2005). Ainda sobre esse prisma, da Gestão do PNAS/SUAS, a Norma Operacional Básica de 2012 conirma a responsabilidade de cada ente federativo na gestão desse sistema e das ações socioassistenciais nele assumidas, [...] A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, conforme suas competências, previstas na Constituição Federal e na LOAS. Assumem responsabilidades na gestão do sistema e na garantia de sua organização, qualidade e resultados na prestação dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais que serão ofertados pela rede socioassistencial (BRASIL, 2012, p. 5). Ao garantir a coparticipação dos entes federativos nas três esferas governamentais, cria-se uma deinição de rede socioassistencial no contexto da Política de Assistência Social. “Considera-se rede socioassistencial o conjunto integrado da oferta de serviços, programas, projetos e benefícios de 188 assistência social mediante articulação entre todas as unidades de provisão do SUAS” (BRASIL, 2012, p. 5). Visto isso, a legislação aponta que é no âmbito municipal que as ações dessa rede socioassistencial irão se materializar. Ao município cabe [...] organizar, coordenar, articular, acompanhar e monitorar a rede de serviços da proteção social básica e especial [...] viabilizar estratégias e mecanismos de organização para aferir o pertencimento à rede socioassistencial, em âmbito local, de serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais ofertados pelas entidades e organizações de acordo com as normativas federais [...] (BRASIL, 2012, p. 10). Além de ser o ente responsável pela, [...] identiicação da rede socioassistencial disponível no território, bem como de outras políticas públicas, com a inalidade de planejar a articulação das ações em resposta às demandas identiicadas e a implantação de serviços e equipamentos necessários; diagnostico territorial aprimoramento da gestão [...] (BRASIL, 2012, p. 10). Na proposta do SUAS, a reciprocidade das ações em rede é condição fundamental, e deve acontecer entre [...] a rede de proteção social básica e especial, com centralidade na família, sendo consensado o estabelecimento de luxo, referência e retaguarda entre as modalidades e as complexidades de atendimento, bem como a deinição de portas de entrada para o sistema. Assim, a nova relação público e privado deve ser regulada, tendo em vista a deinição dos serviços de proteção básica e especial, a qualidade e o custo dos serviços, além de padrões e critérios de ediicação. Neste contexto, as entidades prestadoras de assistência social integram o Sistema Único de Assistência Social, não só como prestadoras complementares de serviços sócio-assistenciais, mas, como co-gestoras através dos conselhos de assistência social e co-responsáveis na luta pela garantia dos direitos sociais em garantir direitos dos usuários da assistência social (BRASIL, 2004, p. 41). No tocante a vigilância Socioassistencial, a atuação desta também ocorrerá por meio de redes, no mesmo momento que essa divisão será responsável por monitorar as ações desenvolvidas da rede socioassistencial, “[...] coordenar, de forma articulada com as áreas de Proteção Social Básica e de Proteção Social Especial, as atividades de monitoramento da rede socioassistencial [...]”, de forma a avaliar periodicamente a observância dos padrões de referência relativos à qualidade dos serviços ofertados. Durante esse monito189 ramento cabe a vigilância “[...] produzir informações que subsidiem o monitoramento e a avaliação da rede socioassistencial e da qualidade dos serviços e benefícios prestados aos usuários [...]” (BRASIL, 2012, p. 35). Cabe ressaltar, que além da materialização da rede socioassistencial no interior da Política de Assistência Social, as mudanças nas normativas inauguram outra estratégia de gestão das ações da política, a intersetorialidade, que é deinida como a “[...] integração e articulação da rede socioassistencial com as demais políticas e órgãos setoriais [...]”(BRASIL, 2012, p.10). Assim, a noção de gestão em redes, implica tanto a articulação entre políticas, como também a noção de rede para além dos poderes públicos e dos entes governamentais, em direção a participação do Terceiro Setor como parceiro, logo, com diferentes atores e instituições. O custo da busca da integralidade é contar com os serviços privados (com ins lucrativos ou não), mecanismo que legitima o princípio liberal de que o enfrentamento da questão social é de responsabilidade de todos, não apenas no inanciamento, mas executando políticas, como agente de proteção social, compartilhando recursos e objetivos. Conclusão O movimento em torno dessa expectativa de gestão descentralizada, democrática e de relações horizontais vai se ampliar, considerando o ajuste iscal neoliberal e as propostas de redução dos gastos públicos. Coutinho (2000, p. 68) airma que “[...] a ampliação da cidadania, termina por se chocar com a lógica do capital [...] a democratização das relações sociais é um processo contraditório, sujeitos a avanços e a recuos, [...]”, e o que se assiste são recuos da lógica do Estado de Bem-Estar Social e o avanço de um novo modelo de fazer política social em parcerias com o privado. Esse modelo impõe novas formas de gestão pública, a gestão em redes, que tem aspectos positivos ao apontar para a intersetorialidade, para o controle social da sociedade civil, para a descentralização e municipalização, mas que acentua a noção de descentralização saindo do Estado para a sociedade civil e mercado, além da família e indivíduos, parceiros ou agentes ditos “naturais” da proteção social a ser impulsionada e potencializada para otimizar a parca proteção social oferecida pelo Estado. Além do repasse de responsabilidades para os entes municipais sem os devidos recursos inanceiros necessários a oferta de serviço em quantidade e qualidade para atender as demandas sociais. • A gestão social e em redes de políticas públicas, se assemelha a estratégia do capital ao descentralizar-se, terceirizar e tornar suas relações com outras empresas mais lexíveis e de troca; tem os mesmos objetivos, reduzir gastos ou custos, na lógica neoliberal. Portanto, não se trata da prevalência da lógica da solidariedade que rege as articulações entre inúmeras organizações 190 de assistência social, mas a presença da racionalidade instrumental do mundo econômico para a gestão pública, na busca de tornar a administração pública enxuta, ágil, reduzindo o tamanho do Estado repassando suas demandas para outros setores e reduzindo o gasto social. • A gestão e o trabalho em rede respondem de maneira favorável ao capital, reairmando a retirada da responsabilidade central do Estado pela proteção social, enquanto direito do cidadão. Essa modernização da gestão consagra a divisão de responsabilidades e a retração do Estado, reprivatizando as formas de enfrentamento da “questão social” e sobrecarregando o ente municipal, as ONGs e as famílias. Na política de Assistência Social essa lógica está clara no familismo posto pela centralidade da família, na organização da rede socioassistencial, repasse da execução das políticas para o contexto municipal, uma descentralização nos moldes neoliberais (sem os recursos necessários, infraestrutura adequada para a oferta qualiicada de serviços). Trata-se sem dúvida, de um modelo de gestão que se gesta nas empresas e difundem-se para o Estado, que desmantela a política social como direito de cidadania, que mercantiliza ou reilantropiza as formas de enfrentamento da questão social, uma (re) privatização do seu enfrentamento, em oposição latente ao Estado intervencionista. A descentralização é do Estado para a sociedade civil, uma sociedade que faz, que protege diretamente seus membros mais pobres, típica do pensamento neoliberal. O projeto neoliberal se apropria dos signiicados de compartilhamento, participação e democracia trazidos pela gestão social e em redes para reproduzir a lógica capitalista de modo mascarado. Referências BRASIL. Constituição Federal do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, Presidência da República, 1988. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 10 ago. 2012. ______. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. 2. ed. Brasília: MPAS/SEAS, 2011. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB\SUAS). Brasília: MDS/SNAS, 2012. ______. ______. Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Brasília: MDS/SNAS, 2004. 191 BEHRING, R. E. A política social no capitalismo tardio. 6. ed. São Paulo: Editora Cortez, 2016. CARVALHO, M. do C. B. de. 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Tal projeto ganhou força a partir da Constituição Federal de 1988, porque o novo modelo de gestão tornou-se princípio norteador da educacional nacional, tanto por meio de dispositivos constitucionais quanto infraconstitucionais (Lei Complementar nº 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB); Lei Complementar n° 13.05/2104 – Plano Nacional de Educação (PNE)). Essas normas, constitucionais e infraconstitucionais, colocaram em pauta a ideia de participação de novos atores nas comunidades escolares dentro de uma gestão democrática da educação pública, tornando-se relevante a discussão sobre o modelo de gestão escolar e a concepção de “participação” democrática. O que seria e como se daria a gestão democrática passou a ser uma interrogação na mente dos debatedores do tema. Para Dourado, Moraes e Oliveira (2006, p. 4), por exemplo, a gestão democrática se daria com a participação dos vários segmentos da comunidade escolar nos processos decisórios da escola, notadamente nos seguintes pontos: • participação democrática na deinição da aplicação dos recursos recebidos pela escola; • eleição democrática na escolha de dirigentes escolares; • criação de instâncias colegiadas de caráter deliberativo; • autonomia da escola. Dourado, Moraes e Oliveira (2006) destacam ainda alguns mecanismos de participação essenciais à gestão escolar, tais como: Conselho Escolar, Conselho de Classe, Associação de Pais e Mestres, Grêmio Estudantil e Conselho Municipal. 194 Assim, entendemos ser de grande importância esta discussão, tendo em vista a necessidade de se compreender o que é a participação democrática e como ela se dá por meio dos novos atores da comunidade escolar. Este artigo buscará em Pateman (1992) as respostas sobre o lugar da participação numa teoria da democracia moderna e sua viabilidade. O objetivo é discutir sobre a gestão democrática nas escolas, trazendo, primeiramente, considerações sobre o lugar da participação numa gestão democrática, dando ênfase aos seus conceitos. Em seguida, aborda-se o papel das normas constitucionais e infraconstitucionais dentro do processo da gestão democrática nas escolas. Por im, elencam-se alguns mecanismos de participação democrática e suas possíveis formas de atuação, enfatizando os Conselhos Municipais como alternativa para inserção da gestão democrática nas escolas públicas. Participação e Democracia Muito se tem discutido sobre a temática da “participação democrática na gestão escolar” (HORA, 2007; DOWBOR, 2007; DOURADO; MORAES; OLIVEIRA, 2006) como forma de solução de problemas na gestão escolar local, notadamente por meio de uma maior participação política dos atores envolvidos no processo educacional. No entanto, é preciso, para se entender tal expressão e sua viabilidade, remontar ao verdadeiro signiicado de “participação democrática” ou “democracia participativa”. Ainal, a disputa sobre o signiicado contemporâneo de democracia gerou uma extraordinária diversidade de modelos democráticos, desde visões tecnocráticas de governo até concepções de uma vida social marcada por extensa participação política (HELD, 2006, p. 241). A democracia participativa revela-se, dentro do desenho dos modelos de democracia esboçados por Held (2006), uma das variantes do modelo pluralista de democracia. Segundo este modelo, há uma necessidade de que grupos ativos de vários tipos e tamanhos participem do processo democrático para que os cidadãos consigam promover seus objetivos. Dessa forma, a participação democrática se daria por intermédio do envolvimento direto e contínuo dos cidadãos. A crítica de Held (2006) ao modelo refere-se à diiculdade de se concretizar um sistema que dependa da participação de cidadãos comuns, visto que eles não demonstram tanto interesse pela participação no gerenciamento da sociedade e da economia. Pateman (1992), nesta seara, enfrentou o problema de saber qual o lugar da participação numa teoria da democracia moderna e sua viabilidade, seja na tentativa de dar uma resposta ou de fornecer elementos para isso. É sobre esta busca da autora que iremos abordar a seguir. 195 Carole Pateman e a teoria democrática Para responder à pergunta sobre “Qual o lugar da ‘participação’ numa teoria da democracia moderna e sua viabilidade?”, Pateman (1992) retoma obras de teóricos clássicos, como Joseph Schumpeter, Jean-Jacques Rousseau, John Stuart Mill, G. H. Cole, Robert Dahl, Bernard Berelson, Giovani Sartori, Harry Eckstein, dentre outros. Inicialmente, a autora esboça o entendimento que os teóricos da democracia contemporânea têm sobre a participação maior do cidadão na política. Em seguida, explora a visão adotada pelos adeptos da democracia participativa. Nos últimos anos da década de 1960, a palavra “participação” popular tornou-se foco de discussões e, a partir daí, passou a ser empregada por diferentes pessoas para se referirem a uma grande variedade de situações. Isto colocou uma questão crucial para a teoria política: qual o lugar da “participação” numa teoria da democracia moderna e sua viabilidade? (PATEMAN, 1992). Vários foram os achados da autora, os quais podem ser divididos em dois eixos, um primeiro que engloba estudos que defendem a pouca ou nenhuma participação e um segundo que adapta os que entendem a necessidade de participação no sistema democrático. Dentro do primeiro eixo, conforme se pode observar nos achados de Pateman (1992): • a participação não tem um papel especial ou central, necessitando apenas de um número reduzido de líderes; • a participação limitada e a apatia têm uma função positiva, no con junto do sistema, ao amortecer o choque das discordâncias, dos ajustes e das mudanças; • o aumento da participação do homem comum representa um perigo, visto que os grupos de condição socioeconômica baixa têm pouca participação política e também revelam personalidades autoritárias, o que representaria um perigo para a estabilidade do sistema democrático; • demonstra-se medo de que a participação ativa da população no processo político leve ao totalitarismo; • a participação da maioria seria apenas para a escolha daqueles que tomam as decisões e como forma de proteção do indivíduo contra decisões arbitrárias dos líderes eleitos. Quanto ao segundo eixo, a participação revela funções bem abrangentes e fundamentais para o estabelecimento e manutenção do Estado Democrático. Consoante os estudos de Pateman (1992), os teóricos desta linha defendiam que: 196 • a participação individual de cada cidadão no processo de tomada de decisões provocaria um efeito psicológico sobre os que participam e, consequentemente, uma maior participação na política; • era indispensável haver igualdade e independência econômica entre os participantes, pois, assim, nenhum cidadão seria rico o suiciente para comprar o outro e nem tão pobre que tivesse que se vender; • a participação deveria ser apenas por indivíduos e não por meio de grupos; • a participação tem, também, uma função educativa, mas o indivíduo deve ser preparado no âmbito local para poder participar no governo nacional; este âmbito teria um papel educativo de participação onde o indivíduo aprenderia a se autogovernar; • os homens precisam participar da organização e da regulamentação de suas associações como experiência democrática. A autora esclarece ainda que, para uma teoria de democracia participativa, é preciso que as pessoas tenham socialização ou “treinamento social” em outras esferas, de modo que as atitudes e qualidades psicológicas possam se desenvolver por meio da participação. O local de trabalho seria, então, adequado para se adquirirem importantes experiências empíricas de participação e com isso adquirir também senso da política. Para ela, as oportunidades de participação nas decisões, no próprio local de trabalho, são fundamentais para o aprendizado no mundo da política. Ou seja, seria uma espécie de laboratório democrático, representando um sistema político por excelência, o que demonstra, segundo a autora, que o estabelecimento de uma forma de governo democrática, consistente numa sociedade participativa, não é irrealista (PATEMAN, 1992). Em suas conclusões, Pateman (1992) airma que os dados obtidos em investigações empíricas revelaram, como característica da maior parte dos cidadãos, a falta de interesse generalizada por política e por atividades políticas, bem como atitudes não-democráticas ou autoritárias. Mas, segundo ela, ainda é possível dispor de uma teoria da democracia moderna, viável que conserve, como ponto central, a noção de participação. Como acomodar ideias e teorias da democracia participativa no âmbito escolar é o que iremos expor a seguir. 197 A democracia participativa na gestão escolar A gestão democrática, também chamada de compartilhada ou participativa, faz “parte da luta de educadores e movimentos sociais organizados em defesa de um projeto de educação pública de qualidade social e democrática” (DOURADO; MORAES; OLIVEIRA, 2006, p. 1). Tal forma de gestão democrática torna-se princípio e toma corpo a partir da Constituição Federal de 1988, o que se dá em vários campos de atuação da Administração Pública, como observaremos a seguir. Um dos instrumentos que consolidaram a participação no âmbito local foi a Lei Complementar (LC) 10.257/2001, com a criação do Estatuto da Cidade, um marco normativo que determinou a participação da sociedade na elaboração e implementação do Plano Diretor dos municípios. Com este Estatuto, a política urbana passa a ter como diretrizes a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (BRASIL, 2001, art. 2º). Nos municípios, a Lei Orgânica passou a dispor sobre a participação das associações representativas no planejamento municipal, conforme consta no inciso XII, art. 29 da Carta Magna (BRASIL, 1988). O art. 82 da mesma Carta Magna estabelece que os estados, o Distrito Federal e os municípios instituam Fundos de Combate à Pobreza, cujos valores deverão ser geridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil. Na área da assistência social, por sua vez, expressa o art. 204 que as ações governamentais, de formulação das políticas e no controle de ações, serão realizadas com a participação da população ou por meio de organizações representativas. Quanto ao campo da Seguridade Social, a gestão administrativa passou a contar com a participação quadripartite de governos, trabalhadores, empresários e aposentados (art.114, VI, CF/1988). Na educação, a gestão democrática da educação pública tornou-se princípio norteador da educação nacional, conforme estabelecido pelo inciso VI, do art. 206 da Constituição Federal: “[...] O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios [...]. VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; [...]” (BRASIL, 1998). Em atendimento a tal dispositivo constitucional, a gestão democrática educacional foi reforçada pela Lei Complementar nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB) e pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Este Plano, por exemplo, que foi estabelecido em conformidade com o art. 214 da Carta Maior, resguarda o princípio da gestão democrática em seu art. 9º, o qual diz que 198 Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão aprovar leis especíicas para os seus sistemas de ensino, disciplinando a gestão democrática da educação pública nos respectivos âmbitos de atuação, no prazo de 2 (dois) anos contado da publicação desta Lei, adequando, quando for o caso, a legislação local já adotada com essa inalidade (BRASIL, 2014). A LDB, por sua vez, estabelece, em seu art. 14, que Os sistemas de ensino deinirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I - participação dos proissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. (BRASIL, 1996). A partir destes dispositivos legais, percebe-se que a gestão democrática, no âmbito educacional, deve fazer parte das propostas e do desenvolvimento das políticas educacionais, como forma de garantir a participação coletiva nos processos e decisões nas unidades escolares. Afinal, democratizar a gestão da educação pública é importante para que se possa “planejar, decidir, coordenar, executar ações, acompanhar e controlar, avaliar as questões públicas [...] ( SOUZA, 2001, p. 1), com o envolvimento de vários atores. É importante que se discuta a gestão democrática com os gestores, responsáveis pelas políticas e práticas educacionais, para que tenhamos uma gestão educacional mais crítica, coletiva e inclusiva. Mas o que seria e como se daria esta gestão democrática? Dourado, Moraes e Oliveira (2006, p. 4) respondem bem a esta pergunta ao airmarem que a gestão democrática é entendida como a participação efetiva dos vários segmentos da comunidade escolar, pais, professores, estudantes e funcionários na organização, na construção e na avaliação dos projetos pedagógicos, na administração dos recursos da escola, enim, nos processos decisórios da escola. Dessa forma, segundo os autores, a democratização da gestão seria uma maneira de efetivar nas escolas um processo de participação coletiva que possa transformar a gestão na escola pública, possibilitando a melhoria da qualidade pedagógica no seu processo educacional. Tal efetivação se daria, conforme os autores, nos seguintes pontos básicos: • participação democrática na deinição da aplicação dos recursos recebidos pela escola; 199 • eleição democrática na escolha de dirigentes escolares; • criação de instâncias colegiadas de caráter deliberativo; • autonomia da escola. A participação democrática se daria, então, com o envolvimento coordenado de funcionários, professores, pessoal técnico-pedagógico, alunos e pais envolvidos no processo educacional. Ainal, quanto maior a participação, maiores são as possibilidades de acerto quanto às decisões tomadas e efetivadas na escola. Nas palavras de Hora (2007, p. 4), a participação representa “um dos elementos essenciais para a democratização de uma nação, oferecendo amplas e reais possibilidades de decisão e de usufruto dos benefícios públicos”. Quanto à escolha democrática dos dirigentes escolares, dentre as modalidades elencadas por Dourado, Moraes e Oliveira (2006), poderiam se dar de cinco formas distintas, segundo as características abaixo destacadas: a) diretor livremente indicado pelos poderes públicos: é um processo cujo critério de escolha é o favorecimento e o clientelismo, sem considerar a competência ou o respaldo da comunidade escolar; b) diretor de carreira: toma como critério de escolha o tempo de serviço, merecimento e/ou distinção, escolarização, entre outros, numa tentativa meritocrática de escolha, entretanto, sem a participação da comunidade escolar; c) diretor aprovado em concurso público: esta forma, segundo seus defensores, transparece objetividade na escolha por méritos intelectuais, mas valoriza demais as atividades administrativas e burocráticas e secundariza o processo político-pedagógico, além de desconsiderar a participação da comunidade escolar e limitar a gestão escolar à pessoa do dirigente até sua aposentadoria; d) diretor indicado por listas tríplices ou sêxtuplas ou processos mistos: esta modalidade constitui-se, essencialmente, na consulta à comunidade escolar, ou a setores desta, cabendo ao executivo nomear o diretor dentre os nomes destacados. Esta modalidade tem a vantagem de ter um mandato temporal deinido e a participação da comunidade escolar no início do processo, entretanto, como cabe ao executivo a indicação inal do diretor, corre-se o risco de ocorrer uma indicação por critérios não político-pedagógicos; e) eleição direta para diretor: modalidade historicamente reputada 200 como a mais democrática pelos movimentos sociais e trabalhadores da educação. A participação dos servidores nesse processo é fundamental para a escola e para a constituição de sua identidade. Em certos casos, há deinição legal e operacional para o andamento e a transparência do processo, como data, local, horário, regras de propaganda e de debates. Em relação à concretização da modalidade “eleição direta para diretor”, embora seja a mais democrática para Medeiros (2011), o autor alerta para os seguintes problemas: (a) corporativismo na relação do diretor com os colegas; (b) populismo junto aos alunos; e (c) a falta da qualiicação técnica e do comprometimento com um projeto junto à comunidade escolar. Este autor elenca três formas de solução para as problemáticas: (i) a realização de uma prova para os pré-candidatos que comprove não apenas habilidades intelectuais, mas também o grau de informação sobre legislação e políticas públicas adotadas; (ii) submissão de uma proposta de trabalho, desenvolvida pelos diretores, a ser previamente analisada por um colegiado; e (iii) “capacitação em serviços” dos diretores eleitos (MEDEIROS, 2011). A eleição direta para diretor é, segundo Dourado, Moraes e Oliveira (2006), a modalidade mais adequada como instrumento para o exercício democrático, mas alertam que não é a única garantia da democratização da gestão, devendo tal eleição ser apenas mais um instrumento associado a outros na luta pela democratização possível das relações escolares. Isso porque, para se efetivar uma gestão democrática, são necessárias mais ações compartilhadas, como discussões onde os atores envolvidos participem na solução dos problemas. Ainal, a democratização da gestão escolar implica a superação dos processos centralizados de decisão e a vivência da gestão colegiada, na qual as decisões nasçam das discussões coletivas, envolvendo todos os segmentos da escola num processo pedagógico (DOURADO; MORAES; OLIVEIRA, 2006, p. 11). Um exemplo de mecanismo de participação democrática na gestão escolar é o Conselho Escolar, por meio do qual é possível envolver diferentes segmentos das comunidades local e escolar nas questões e problemas escolares. Como será destacado a seguir, outros mecanismos de participação também podem ser construídos no estabelecimento de uma gestão democrática, como Associação de Pais e Mestres, Grêmio Estudantil e Conselhos de Classes. Gestão democrática na educação brasileira: mecanismos de participação democrática na escola Para se garantir uma gestão democrática escolar, além da participação de todos os componentes da comunidade escolar nos processos decisórios 201 e da existência de um amplo processo de informação, é preciso considerar ainda outros elementos: 1.º) a criação de estruturas e processos democráticos pelos quais a vida escolar realize-se, representada pela participação geral nas questões administrativas e políticas; planejamento cooperativo na escola e na sala de aula; atendimento a preocupações, expectativas e interesses coletivos; posição irme contra o racismo, a injustiça, o poder centralizado, a pobreza e quaisquer formas de exclusão e desigualdade presentes na escola e na sociedade. 2.º) o desenvolvimento de um currículo que ofereça experiências democráticas aos estudantes, cujas características são expressas pela ênfase na ampliação das informações; garantia, aos que têm opinião diferente, do direito de se fazerem ouvir; construção social do conhecimento; formação de leitores críticos da realidade; inclusão de um processo criativo de ampliação dos valores democráticos; inclusão de experiências de aprendizado organizado em torno da problematização e do questionamento (HORA, 2007, p. 5). A questão da democratização da escola pública no Brasil, segundo a autora, tem sido analisada sob três aspectos, conforme a percepção dos órgãos oiciais ou na perspectiva dos educadores: (i) democratização enquanto ampliação do acesso à instituição educacional; (ii) democratização dos processos pedagógicos; e (iii) democratização dos processos administrativos (HORA, 2007). Os órgãos oiciais entendem a democratização do ensino, explica Hora (2007), como a facilidade do acesso à escola pelas camadas mais pobres da população por meio de políticas públicas que objetivem o aumento do número de escolas e de salas de aula - refere-se à democratização enquanto ampliação do acesso à instituição educacional. Na perspectiva de alguns educadores, democratização da escola seria o desenvolvimento “de processos pedagógicos signiicativos, pela adoção de um currículo concreto e vivo que garanta a permanência do estudante no sistema escolar, eliminando e impedindo o processo de exclusão, representado pela evasão e repetência” (HORA, 2007, p. 6). Um outro grupo de educadores, por sua vez, quanto ao aspecto da democratização dos processos administrativos, defende a idéia de que a democratização realiza-se pelas mudanças nos processos administrativos desenvolvidos nos sistemas educacionais e no interior das escolas, por meio da participação de pais, alunos, professores e da sociedade civil em geral nas decisões tomadas em assembléias, de eleições para os cargos diretivos e da eliminação das vias burocráticas de gestão (HORA, 2007, p. 6). 202 A análise realizada pela autora é de que o processo de democratização da escola só será completo quando houver a combinação orgânica dos três aspectos. Ou seja, não basta criar escolas, é preciso criar estruturas e processos democráticos e também, por outro lado, construir um currículo crítico e criativo que ofereça experiências democráticas ao estudante. Assim, Hora (2007) conclui que tudo isso deve possibilitar à escola o exercício da autonomia, da descentralização das decisões e da adoção da gestão colegiada. A participação democrática é, portanto, um processo complexo que envolve vários cenários e múltiplas possibilidades organizativas, com a participação da comunidade escolar na formulação e execução do seu projeto político-pedagógico. No entanto, as normas regulamentares do sistema de ensino não podem ser desconsideradas. Assim, a autonomia da unidade escolar signiica, portanto, a possibilidade de construção coletiva de um projeto político-pedagógico que esteja de acordo com a realidade da escola, que expresse o projeto de educação almejado pela comunidade em consonância com as normas estabelecidas pelas políticas educacionais ou legislação em curso (DOURADO; MORAES; OLIVEIRA, 2006, p. 83-84). As possibilidades e os limites da autonomia escolar passariam, segundo os autores, por quatro dimensões fundamentais: administrativa, inanceira, jurídica e pedagógica. A autonomia administrativa consistiria na possibilidade de a escola elaborar e gerir seus planos, programas e projetos. Já a autonomia inanceira trataria da existência e utilização de recursos inanceiros capazes de dar à instituição educativa condição de funcionamento efetivo. Por outro lado, a autonomia jurídica estaria ligada à possibilidade de a escola elaborar suas normas e orientações escolares conforme as legislações educacionais, enquanto a autonomia pedagógica estaria voltada para a essência do projeto pedagógico da escola, como sua identidade, função social, organização curricular ou avaliação. No âmbito das dimensões fundamentais, destacam-se os Conselhos Escolares, mas os autores acrescentam outros mecanismos de participação essenciais à gestão escolar, tais como o Conselho de Classe, a Associação de Pais e Mestres e o Grêmio Estudantil. Sobre estes mecanismos, Dourado, Moraes e Oliveira (2006) fazem as seguintes descrições, a saber: • Conselho Escolar: órgão que deve ser constituído por representantes de todos os segmentos da comunidade escolar, sendo de caráter consultivo e/ou deliberativo; • Conselho de Classe: tem a possibilidade de articular os diversos segmentos da escola com o objetivo de estudar o pro203 cesso de ensino, num espaço de avaliação permanente do trabalho pedagógico e das atividades escolares; • Associação de Pais e Mestres: representa uma forma de aproximação entre os pais e a instituição, fazendo com que se ultrapassem os muros da escola; • Grêmio Estudantil: tem papel fundamental na formação do aluno como um indivíduo crítico, participativo e político que pode participar das discussões do cotidiano escolar e de seus processos decisórios (DOURADO; MORAES; OLIVEIRA, 2006, p. 12-13). Acrescentamos aos mecanismos acima o Conselho Municipal de Educação o qual, segundo Dowbor (2007), é um irradiador da construção do enriquecimento cientíico mais amplo do local e da região, promovendo, segundo ele, um novo desenho para a educação municipal consoante os princípios democráticos e republicanos. Isto porque as pessoas que compõem os conselhos têm uma maior possibilidade de, conhecendo bem o seu município, o seu bairro, conhecer também os problemas mais amplos do desenvolvimento local, bem como sua rede escolar. O Conselho Municipal da Educação é uma instituição de democracia representativa, através da qual representantes diretamente eleitos nos diversos segmentos da cidade (proissionais da educação, governantes, população em geral) se reúnem para estudar, deliberar, acompanhar e avaliar, acerca das questões educacionais de forma mais cotidiana (SOUZA, 2001, p. 4). Para Dowbor (2007), um Conselho desempenharia importante papel na busca de uma inovação pedagógica, baseada na valorização proissional docente e no incentivo à criatividade. Por outro lado, seria um polo de audiências, análises e estudos de políticas educacionais do seu sistema de ensino, fato importante para o enfrentamento do desaio de encontrar instrumentos de publicização de informações para que a população entenda o orçamento e iscalize o poder público. Isto porque, quanto mais as informações são monopolizadas ou herméticas e confusas, “menor é a capacidade da sociedade participar e de inluenciar o estado, o que acaba enfraquecendo a noção de democracia, que pode ser medida pelo luxo, pela qualidade e quantidade das informações que circulam na sociedade” (DOWBOR, 2007, p. 81). Assim, para este autor, o grande desaio é a transparência no sentido do empoderamento. A transparência na escola, como organização social, é importante para que os atores (educadores proissionais, alunos, pais, ativistas comunitários e outros cidadãos do contexto social imediato) tenham, como ressalta Hora (2007, p. 5), (i) 204 “o direito de estarem bem informados” e o de (ii) “terem uma participação crítica na criação e na execução das políticas e dos programas escolares”, sendo estes os dois elementos fundamentais para a concretude da democratização da escola: a participação de todos os componentes da comunidade escolar nos processos decisórios e a existência de um amplo processo de informação em que todos tenham conhecimento do que acontece no interior da instituição e suas relações externas (HORA, 2007, p. 5). Neste sentido, o maior objetivo da educação passa a ser, na visão de Dowbor (2007), o de dar aos jovens estudantes e à comunidade um embasamento concreto à própria teoria, ou seja, dar transparência social, permitindo que os jovens tenham acesso aos dados básicos do contexto que regerá as suas vidas. Isto, segundo o autor, os faria compreender, por exemplo, o que acontece com o dinheiro público, quais são os indicadores de mortalidade infantil, quem são os maiores poluidores da sua região e quais são os maiores potenciais de desenvolvimento. Em termos práticos, para Dowbor (2007), um Conselho Municipal de Educação organizaria suas atividades em quatro linhas: • Montar um núcleo de apoio e desenvolvimento da iniciativa de inserção da realidade local nas atividades escolares; • Organizar parcerias com os diversos atores locais passíveis de contribuir com o processo; • Organizar ou desenvolver o conhecimento da realidade local, aproveitando a contribuição dos atores sociais do local e da região; • Organizar a inserção desse conhecimento no currículo e nas diversas atividades da escola e da comunidade (DOWBOR, 2007, p. 88-89). Os Conselhos trabalhariam com uma rede permanente de atores locais, com apoio de faculdades, universidades locais ou regionais, de empresas, de repartições regionais do IBGE - Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística ou de instituições como Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, Emater – Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural e ONGs - Organizações não Governamentais. Assim, as informações produzidas por estes atores poderiam ser organizadas e disponibilizadas como fonte de estudo e aprendizagem para o município ou para a região. A escola seria, na percepção de Dowbor (2007), menos lecionadora e mais articuladora dos espaços do conhecimento, o que, segundo ele, educaria os alunos de forma a familiarizá-los e inseri-los na sua realidade. Assim, é possível compreender o Conselho Municipal de Educação como uma das formas inovadoras de participação 205 democrática, em que se possam formar homens e mulheres, tanto numa dimensão pessoal como proissional, ou seja, tendo a função de formar um cidadão. Conclusão A Carta Magna de 1988 modiicou o sistema federativo, redistribuindo as competências entre os entes federativos, dando ênfase à municipalização, de forma que os municípios passam a adquirir autonomia política e administrativa. Deu-se, então, com isso, a descentralização. Juntamente com as mudanças, veio também a ideia de gestão democrática (ou participativa) no âmbito das políticas públicas nas mais diversas áreas. Entretanto, tal processo de participação está longe de ser uma discussão unânime. O motivo é que são diversas e com enfoques diferenciados as teorias sobre o lugar da participação num processo democrático. Por um lado, defende-se que a participação deve ser exigida apenas de uma minoria de cidadãos, tendo em vista que a apatia e o desinteresse da maioria cumprem um importante papel na manutenção da estabilidade do sistema como um todo. Fundamenta-se, ainda, que o aumento da participação do homem comum representa um perigo, pois apresenta o menor índice de atividade política, consequentemente maior frequência das personalidades autoritárias e com riscos de adoção do totalitarismo. Não obstante, outros defendem a importância da participação individual de cada cidadão no processo de tomada de decisões, pois isto provocaria um efeito psicológico sobre os que participam e, consequentemente, uma maior participação na política. Assim, para estes, a participação teria uma função educativa, devendo o indivíduo ser preparado localmente, adquirindo experiências empíricas e senso da política para poder participar no governo nacional, visto que, no âmbito local, ele aprenderia a se autogovernar. No âmbito local, a Lei Complementar 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) consolidou a participação da sociedade na elaboração e implementação do Plano Diretor dos municípios, possibilitando a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas na formulação, execução e acompanhamento de políticas públicas. Além disso, a própria Lei Orgânica dos municípios passou a dispor sobre a participação das associações representativas no planejamento municipal (inc. XII, art. 29 da Carta Magna). Da mesma forma, a Constituição de 1988, em seus arts. 82, 114, 204, dentre outros, prescreve uma gestão democrática na formulação, execução ou mesmo no acompanhamento de políticas públicas, com a participação da sociedade civil, da população ou de organizações representativas. No que tange à gestão democrática na escola pública brasileira, a Constituição Federal de 1988, bem como normas infraconstitucionais, como a Lei Complementar 9.394/96 (LDB), e o Plano Nacional de Educação (PNE), tomaram como 206 princípio a gestão democrática. Por um lado, estava o PNE determinando a aprovação de leis especíicas, no âmbito dos entes federados, para que estes disciplinem a gestão democrática da educação pública nos respectivos âmbitos de atuação. De outro, a LDB, estabelecendo parâmetros para que os sistemas de ensino deinissem normas de gestão democrática com base nos seguintes princípios: (i) da participação dos proissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; e (ii) da participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes. O art. 206, inc. VI da CF/1988, por sua vez, elevou a gestão democrática do ensino público ao patamar de princípio, devendo, assim, ser obrigatória a sua instituição por todos os entes federados. A LC 9.394/96 (LDB), por sua vez, estabeleceu que os sistemas de ensino deiniriam normas de gestão democrática com a participação de diversos atores, tais como proissionais da educação, comunidade escolar, comunidade local. A partir de então, entram no centro da discussão os mecanismos de participação democrática, tais como: Conselho Escolar, Conselho de Classe, Associação de Pais e Mestres, Grêmio Estudantil e Conselho Municipal de Educação. Cada mecanismo carrega, em suas peculiaridades, vantagens e complementaridades, com destaque, dentre eles, para o Conselho Municipal de Educação. Como explica Dowbor (2007), os Conselhos Municipais de Educação são polos de análises e estudos de políticas educacionais do seu sistema de ensino, tão importantes para enfrentar o monopólio das informações e na conscientização da população quanto ao seu papel político na gestão escolar. Os Conselhos passam a irradiar, portanto, conforme abordagem de Hora (2007), os elementos fundamentais para a concretude da democratização da escola, notadamente a participação e a publicização. Assim, concluímos, em consonância com a visão de Dowbor (2007), que se estaria, por meio dos Conselhos Municipais de Educação, objetivando para a educação não apenas o papel de propagador do conhecimento em si, mas também o da transparência social e do acesso aos dados básicos do contexto que regerá a vida do estudante e de sua comunidade. A escola seria, portanto, não apenas lecionadora mas também exerceria seu papel inovador de inserção da participação democrática na gestão escolar pública. Referências BRASIL. Lei nº 9.394/1996 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 25 set. 2016. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 25 set. 2016. BRASIL. Lei 10.257/2001. Estatuto da Cidade: estabelece diretrizes gerais 207 da política urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 17 jan. 2017. BRASIL. Lei 13.005/2014 - Plano Nacional de Educação. Brasília, INEP, 2014. Disponível em: <http://www.observatoriodopne.org.br/uploads/reference/ ile/439/documento-referencia.pdf>. 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A ATUAÇÃO DOS CONSELHOS NA GESTÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DE TERESINA Marcelo de Moura Carvalho Maria D’Alva Macedo Ferreira Introdução A participação da sociedade civil na deinição de uma agenda para as políticas públicas setoriais tornou-se institucionalizada a partir da Constituição Federal de 1988 e no caso especíico, das políticas públicas voltadas para o setor saúde, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) traz em seu arcabouço legal, o principio da participação na deliberação e controle desta importante política. As instâncias de participação da sociedade civil na deliberação e controle das ações do setor saúde são os Conselhos Gestores e Conferências de Saúde nas três esferas da administração pública (união, estados e municípios). No entanto, existem outras formas de participação como as audiências públicas promovidas pelo poder legislativo, o ministério público e tribunal de contas, como também, através de fóruns, seminários e passeatas, dentre outras possibilidades. Apesar da criação de espaços públicos de participação da sociedade civil na deinição dos rumos deste novo sistema de saúde, esperava-se com a instalação dos conselhos gestores, a construção de uma nova relação entre a sociedade civil e o Estado, no intuito de superar as relações autoritárias, clientelistas e burocráticas que predominavam até então, fortalecendo a própria democracia (FALEIROS, 2000). Passados quase 30 anos da criação do Sistema Único de Saúde, o que se constata na atualidade é uma grande incógnita sobre o futuro desta importante Política Pública, haja vista, a redução drástica de recursos inanceiros para o setor, mediante a crise econômica vivenciada pelo país, com a consequente redução do escopo de ações e serviços ofertados pela união, distrito federal, estados e municípios. A qualidade dos serviços de saúde ou mesmo a não prestação desses serviços, pode ser caracterizada como uma “questão social” que necessita ser enfrentada pelos danos que podem provocar na população de um país. Para Ianni (1992), a questão social pode se expressar das mais variadas formas, tendo aspectos econômicos, sociais e culturais, como por exemplo, desemprego, pobreza, fome, analfabetismo, marginalidade e precário sistema de saúde, dentre outros. Contudo, não só os precários sistemas de saúde nos chamam a atenção quando descrevemos o processo saúde-doença, pois o próprio conceito de saúde 209 adotado pelo Ministério da Saúde de nosso país é bem mais abrangente quando descreve: [...] em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde (BRASIL, 1986, p.168). Diante de uma conjuntura de ajuste iscal, onde os recursos do Estado para a área da seguridade social estão sendo reduzidos, surge com mais imperativo a necessidade de participação da sociedade civil na defesa de políticas, como a da saúde e o próprio futuro do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda está em processo de formação, constituindo-se uma Política Pública ainda inacabada. Este artigo tem como objetivo analisar a atuação dos conselhos de saúde na gestão das políticas públicas de saúde no município de Teresina, desde a sua criação até a contemporaneidade. Para melhor compreensão, este texto será dividido em quatro tópicos, a saber: (1) A criação do Conselho Municipal de Saúde; (2) Implantação dos Conselhos Locais de Saúde; (3) A reforma administrativa do setor saúde; e (4) A obrigatoriedade dos Conselhos Locais de Saúde. Desenvolvimento O município de Teresina possui, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), uma população de aproximadamente 814.230 habitantes, localizado na região norte do Piauí, numa área conhecida por Meio-Norte do país, é considerado uma referência para o setor saúde para todo o estado do Piauí e estados vizinhos, tanto pela sua rede privada, como pela rede pública. A rede de atenção primária de saúde do município de Teresina é formada por 89 Unidades Básicas de Saúde, com um total de 258 equipes de saúde da família, sendo 13 na zona rural e 245 na zona urbana. Segundo dados fornecidos pela Fundação Municipal de Saúde (FMS), no ano de 2013, em conformidade com o próprio Ministério da Saúde, apontam que a cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) no referido município é, atualmente, a melhor do país entre as capitais, tendo 95,2% da população do município atendida pelas equipes de saúde da família, que caracteriza a atenção primária em saúde. No entanto, apenas a porcentagem de cobertura da população de um município, por si só, não garante a qualidade destes serviços, sendo importante a participação da sociedade civil na deinição desta política pública que sofre com a redução de recursos. 210 A atenção secundária à saúde possui dez hospitais de bairro, sendo quatro maternidades, distribuídos por todas as zonas administrativas da cidade, um ambulatório central que é o Centro Integrado Lineu Araújo (CISLA) com várias especialidades médicas, sete centros de apoio psicossocial (CAPS), além do próprio serviço de atendimento móvel de urgência (SAMU) que atende a toda cidade. A atenção terciária em saúde no município tem como único serviço de referencia o Hospital de Urgência de Teresina Dr. Zenon Rocha (HUT), sendo responsabilidade do estado do Piauí as demais referências terciárias que estão instaladas nesta cidade. A criação do Conselho Municipal de Saúde da cidade de Teresina A cidade de Teresina, fundada no ano de 1952, passa a organizar de forma sistemática sua política de saúde com a criação da Fundação Municipal de Saúde (FMS), por meio da Lei Municipal Nº 1542, de 20 de junho de 1977. Inicialmente era vinculada à antiga Secretaria de Saúde e Bem-estar Social, mas hoje é considerado um órgão da administração indireta, possuindo autonomia administrativa e inanceira. A participação da sociedade civil nas questões relativas à saúde tornou-se mais ativa em Teresina, a partir da década de 1980, fato que se veriicou em outras cidades pelo país, como na periferia da cidade de são Paulo, muito em virtude das condições precárias do sistema público de saúde, mesmo se tratando do período do regime militar que diicultava a manifestação popular. Conforme nos airma Braga (2005), a participação da sociedade civil na política de saúde no Piauí, especiicamente em Teresina, pode ser dividida em três fases, a saber. A primeira fase, descrita por Braga (2005), foi denominada de “Articulação Estadual de Saúde” marcada pela crescente mobilização através de encontros e reuniões entre entidades da sociedade civil para debater assuntos relativos a melhorias no setor saúde. Essa fase vai de ins da década de 1970 até o ano de 1987. Essa articulação entre movimentos sociais em Teresina ocorre ao mesmo tempo em que ganha forma o movimento das Diretas Já pelo im do regime militar e por um Estado democrático de direito. No setor da saúde, ganha força o Movimento de Reforma Sanitária, que tem inluência direta nos movimentos reivindicatórios de qualidade e abrangência dos serviços de saúde ofertados pelo município. Neste momento histórico vivido pelo país ocorrem vários acontecimento com relexos n setor saúde como: o im do regime militar e as eleições indiretas para presidente da república, a 8ª Conferencia Nacional de Saúde em 1986, marco da participação social no setor e a Assembleia Nacional Consti211 tuinte em 1987, que deiniria o futuro sistema de saúde, utilizando-se das propostas apresentadas na 8ª Conferencia. Segundo Macedo (2010), a “Articulação Estadual de Saúde” contava com a presença de várias categorias proissionais da área da saúde, além dos próprios movimentos sociais que se articulavam, principalmente em Teresina, mas já possuíam muitos simpatizantes nas principais cidades do interior do estado, onde debatiam temas similares aos abordados pelo Movimento de Reforma Sanitária em nível nacional. Na segunda fase, descrita por Braga (2005), denominada de “Comissão Pró-Saúde“, a articulação da sociedade civil e proissional da saúde passa a ser denominada de Movimento Popular de Saúde (MOPS), que se vincula ao MOPS nacional, tornando-se uma mobilização ainda mais organizada, que passou a debater a participação da sociedade civil na deliberação do novo sistema de saúde. Essa fase vai de 1989 a 1992. De acordo com Macêdo (2010), o Movimento Popular de Saúde do Piauí conseguiu agregar outras entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, tendo como diferencial dos tempos atuais, o contato permanente com suas bases e a vocalização das demandas de saúde destes, e por conta desta mobilização possuía muito prestigio perante a sociedade e ao próprio poder público municipal. É importante salientar que nesta fase ocorre a promulgação da Constituição Federal de 1988, e com ela a normatização jurídica da seguridade social que conta com a política pública de saúde e a criação Sistema Único de Saúde (SUS). A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem como característica marcante na sua criação, a participação de várias entidades da sociedade civil, que lutaram pela defesa da universalização da saúde e da democratização do próprio Estado, não sendo, desta forma, iniciativa de um governo especíico ou de partidos políticos (PAIM, 2016). Essa característica apontada por Paim (2016) é importante para a atualidade, quando se debate a participação da sociedade civil nos rumos do Sistema Único de Saúde, uma vez que o tensionamento entre forças conservadoras e progressistas dentro da Assembléia Constituinte na deinição deste sistema sofreu inluência por este movimento da época, pois o país saía de um regime autoritário para um regime democrático, mas ainda conservava vários atributos do regime anterior. Essas forças atuam, ainda hoje, sobre esta política de saúde. A Constituição de 1988 deiniu a participação da sociedade civil como uma das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como objetivo a elaboração, acompanhamento e iscalização desta política pública por meio de instâncias especíicas, institucionalizadas dentro do Estado (MATEOS, 2011). 212 Um marco importante que marca esta fase, em Teresina, é a criação, no ano de 1991, do Conselho Municipal de Saúde, por meio da Lei Municipal Nº 2.046, de 1991, como pré-requisito necessário para adequação deste município à Norma Operacional Básica 01 de 1991(NOB 01/91), que condicionava o repasse de recursos fundo a fundo do Ministério da Saúde para a Fundação Municipal de Saúde. As instâncias de participação da sociedade civil foram os Conselhos e as Conferências de Saúde nas três esferas da administração pública, sendo considerados espaços privilegiados de controle das ações do setor saúde, devidamente regulamentado pela Lei nº 8142, de 1990 (MARTINS; et al; 2013). Desta forma, apesar da atuação Movimento Popular de Saúde (MOPS) do Piauí, a criação do Conselho Municipal de Saúde de Teresina se dá por intermédio de uma exigência do Ministério da Saúde para repasse de recursos inanceiros, exigência essa feita a todos os municípios do país. Esta exigência contribuiu na criação abrupta de conselhos, os quais passaram a debater temas que, na maioria das vezes, não eram de domínio dos representantes da sociedade civil. Outro fator importante para a expansão dos conselhos gestores na saúde foi a implantação da Norma Operacional Básica 91, editada pelo Ministério da Saúde, que obrigou a criação dos Conselhos Municipais de Saúde (CMS) em todos os municípios como pré-requisito para os repasses de recursos inanceiros fundo-a-fundo para os municípios brasileiros, o que promoveu um crescimento exponencial destes espaços públicos num intervalo curto de tempo. Para Nogueira (2004), a formação dos conselhos no setor saúde tem como objetivo consolidar uma gestão democrática, pois as demandas emanadas da sociedade civil ao serem vocalizadas, poderiam ser atendidas pelo Estado, modiicando desta forma, a sua relação com a sociedade civil, já que esta passava a deliberar sobre as Políticas Públicas deste setor, promovendo também, uma aproximação da comunidade aos assuntos governamentais, facilitando a construção de modalidades inovadoras na abertura do Estado à sociedade civil. E por im, a terceira fase, descrita por Braga (2005), denominada de “Comissão Pró-SUS”, iniciada no ano de 1992, tendo como destaque a consolidação da participação da sociedade civil nos espaços institucionalizados e a deinição da agenda das políticas públicas de saúde. Uma vez garantido o espaço de participação institucionalizado para a deinição de agenda na política publica de saúde, era necessário avançar na implementação do Sistema Único de Saúde, sendo que este objetivo estava presente, não só em Teresina, mas na maioria dos municípios do país. No entanto, logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, no início da década de 1990, observou-se que o projeto de Reforma Sanitária foi atravessado pelas crises inanceira, iscal e política do Estado brasileiro, 213 alicerçado pela ideologia neoliberal, com sua cartilha de redução de gastos, tendo em vista o ajuste iscal que provocou uma redução do escopo de ação do sistema de saúde. A participação da sociedade civil na deliberação das políticas de saúde, assim como nas demais políticas sociais, sofreu com a redução de recursos voltados para a política de saúde na década de 1990, não só no Brasil, como também, nos países latino-americanos, onde o próprio papel do Estado foi modiicado em nome de um ajuste iscal que promoveria uma redução da participação do Estado na oferta dessas políticas. Em Teresina, assim com em muitas cidades do país, sentiu este “enfraquecimento da participação da sociedade civil” dentro dos espaços criados para deliberação do sistema de saúde, por diversos motivos, que na sua maioria, não diferem das outras cidades. Apesar desta cartilha neoliberal adotada por alguns governos, ora aplicada com mais e ora com menos intensidade, o Sistema Único de Saúde (SUS) conigura-se como uma política social contra-hegemônica que resiste a essas permanentes ações aplicadas pelos que preferem o tratamento da doença como mercadoria, assim como, a redução do papel do Estado na oferta das políticas sociais (BRASIL, 2008). No caso especíico do Conselho Municipal de Saúde de Teresina, um fator agravante para o enfraquecimento do MOPS foi à mudança do foco, que passou da mobilização da sociedade civil sobre temas relativos à saúde para a ocupação de espaços institucionalizados e o incidente ocorrido na ocasião da composição do conselho em janeiro de 1995, onde este movimento e outros como a CUT perdem o seu assento nele (MACÊDO, 2010). Para Macêdo (2010), o próprio Conselho Municipal de Saúde de Teresina se enfraqueceu a partir do momento em que seus representantes, notadamente, o segmento dos usuários, perderam seu poder de mobilização das bases e, com isso, a própria capacidade de vocalização dessas demandas. Por outro lado, o segmento dos representantes dos serviços privados desta cidade atua de forma articulado, principalmente, para a aprovação do credenciamento destes serviços junto ao Sistema Único de Saúde Local. Conforme Miranda (2012) no ano de 2010 foi aprovada a lei municipal de número 4.027/10 na câmara municipal de Teresina que modiica a Lei 2.046/91 que normatizava o Conselho Municipal de Saúde, tendo como uma de suas novidades, a eleição direta para presidente do conselho, pois de acordo com a lei anterior, somente o presidente da Fundação Municipal de Saúde (FMS) poderia ocupar a presidência. Implantação dos Conselhos Locais de Saúde A criação dos conselhos de saúde, como instância de participação social, 214 signiicou uma conquista da sociedade civil em busca da efetivação de uma perspectiva mais democrática na saúde. Dessa forma, esperava-se que estes espaços de participação social fossem motivadores de novas formas de interação entre o Estado e a sociedade civil (SHIMIZU et al, 2013). Dentre os Conselhos de Saúde formados pelo princípio da representatividade paritária, onde usuários, trabalhadores da saúde e representantes da gestão são representados, o Conselho Local de Saúde (CLS), diretamente subordinado ao Conselho Municipal de Saúde (CMS), é o Conselho de Saúde que está próximo da realidade local da comunidade, pois está vinculado a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) onde atua as equipes de saúde da família (CRUZ; et al, 2012). Passado pouco tempo, após a criação do conselho municipal de saúde de Teresina, foi constatado que a participação da sociedade civil neste espaço institucionalizado não acompanhou as expectativas iniciais, fato ocorrido na grande maioria dos municípios brasileiros, levando a necessidade de novas experiências participativas que pudessem dar maior maturidade à nossa democracia. Uma das criticas feitas aos conselheiros de saúde dos Conselhos Municipais de saúde, principalmente, do segmento dos usuários, é que estes perderam o contato com suas bases representativas, pois o que é discutido dentro dos conselhos não chega às entidades que esses conselheiros representam. Esperava-se com a instalação dos conselhos gestores, o fortalecimento da sociedade civil e a construção de uma nova relação entre ela e o Estado, no intuito de superar as relações autoritárias, clientelistas e burocráticas que predominavam até então (FALEIROS, 2000). Para Pedrosa e Pereira (2007), existe uma heterogeneidade de conselhos municipais de saúde (CMS) em todo o país, podendo ser classiicados em três tipos, a saber: o primeiro tipo de CMS são os que são meramente legitimadores das decisões da gestão municipal; um segundo tipo, seriam os que centralizam suas ações apenas na iscalização de recursos públicos, e por im, um terceiro tipo, seriam os CMS que possuem uma dinâmica inovadora de participação da sociedade civil, na deliberação de ações pertinentes ao setor, fortalecendo a formação de cidadãos ativos. Tendo em vista uma nova experiência participativa, foram criados Conselhos Locais de Saúde (CLS), diretamente subordinados ao Conselho Municipal de Saúde (CMS), respeitando o principio da paridade entre usuários, trabalhadores da saúde e representantes da gestão, em serviços de saúde como as Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde atuam as equipes de saúde da família, tendo como diferencial do Conselho Municipal, a proximidade da realidade local da comunidade e a desburocratização da institucionalização, uma vez que este tipo de conselho não é obrigatório para o funcionamento do serviço (CRUZ; et al, 2012). 215 Para Pedrosa e Pereira (2007), a prática de uma gestão participativa em uma Unidade Básica de Saúde é capaz de desencadear novas práticas de controle social, menos burocratizada e mais ainada com a realidade da população que a demanda, atendendo as reais necessidades desta população e incentivando-a ao protagonismo político na deliberação da formulação destes serviços. Neste contexto de gestão participativa, destaca-se a formação nas Unidades Básicas de Saúde de Conselhos Locais de Saúde (CLS), espaços estes desburocratizados que podem dar uma nova possibilidade de fortalecimento da participação da sociedade civil nas ações do Estado. O Conselho Local de Saúde como instância de gestão local é um espaço privilegiado para atender as necessidades do cotidiano da comunidade, pois é possível identiicar as demandas dessa população adscrita, que podem contribuir com a melhoria da assistência prestada pelos serviços ofertados pela Unidade Básica de Saúde, inclusive na melhoria do processo de trabalho das equipes de saúde da família (MARTINS; SANTOS, 2012). No caso especíico de Teresina, a criação dos conselhos locais de saúde em alguns serviços de saúde deu um caráter de vanguarda de experiência participativa a este município, pois poucas eram desta modalidade de conselhos no Brasil. A atuação dos Conselhos Locais de Saúde coloca-se como uma das formas de se reivindicar e contribuir para uma assistência de qualidade para a população adscrita às Unidades Básicas de Saúde, pois nesses espaços de participação social torna-se mais fácil a identiicação das reais necessidades desta população. Torna-se imprescindível, dessa forma, a adequação a estas necessidades para melhorar a satisfação dos usuários, como também, a qualidade dos serviços prestados nestas Unidades Básicas de Saúde (BISPO JÚNIOR, 2013). Os Conselhos Locais de Saúde do município de Teresina possuem como atribuições, dentre outras, em conformidade com seu regimento interno aprovado desde 1993: [...] I - Diagnosticar a realidade de saúde do bairro; II – Planejar as ações individuais e coletivas, apartir dos problemas de saúde do bairro, dentro das diretrizes básicas e prioritárias do SUS, que venham em auxílio da implantação da municipalização; IV – Avaliar a qualidade do atendimento prestado pela Unidade de Saúde, contratada ou conveniada ao SUS na área de abrangência da Unidade de Saúde; VII – Possibilitar à população amplo conhecimento do SUS local, de dados e estatísticas relacionados com a saúde, em geral, e com o funcionamento da UBS, em particular; IX – Participar em conjunto com outros conselhos locais do acompanhamento e avaliação do sistema de saúde no distrito ou município, encaminhando quando necessárias propostas e pareceres ao distrito de saúde, Conselho Municipal ou outras instancias; XV – 216 Assegurar que as deliberações do Conselho Local sejam postas em prática; e XVI Coordenar e iscalizar o processo eleitoral para diretor da Unidade de Saúde (TERESINA, 1993, p.2). Em conformidade com a Lei 8142/90, no quesito da representatividade dos conselheiros, os Conselhos Locais de Saúde também possuem a paridade entre os representantes do segmento dos usuários, trabalhadores da saúde e os representantes da gestão, sendo desta forma, um órgão colegiado, de caráter permanente, onde ocorre a participação social na deinição da atuação das Unidades Básicas de Saúde, em conformidade com a legislação especíica do Ministério da Saúde (SILVA; SILVA; SOUZA, 2013). Para Paiva; Stralen e Costa (2014) é importantes a compreensão da representatividade paritária e a simetria das relações de poder dentro dos Conselhos Locais de Saúde, pois apenas a criação destes espaços não garantem a representação dos interesses coletivos, já que o fato de se ter tais espaços participativos pode, não necessariamente, formalizar os interesses daqueles que estão de alguma forma sendo representados. A formação dos Conselhos Locais de Saúde tem se constituído como desaiadora, pois em cada realidade coexistem diferentes interesses, concepções e utilidades neste espaço de participação social, uma vez que os conselheiros atuam com distintas perspectivas metodológicas e políticas (CRUZ; et al., 2012). Para alcançar os objetivos propostos, os Conselhos Locais de Saúde possuem como papel dentro das Unidades Básicas de Saúde: (1) Melhoria da situação da comunidade, principalmente pela redução dos riscos sociais e epidemiológicos; (2) Deinição de prioridades das intervenções (oferta de serviços) de promoção, prevenção, tratamento e recuperação da saúde da coletividade; (3) Participação da formulação de diretrizes e estratégias para o processo de planejamento, compromissos de metas, orçamento e execução orçamentária; e (4) Monitoramento e avaliação dos processos de execução dos planos, orçamentos e cumprimento de metas (PAIVA; STRALEN; COSTA, 2014). Em pesquisa realizada no município de Teresina por Miranda (2012) com os conselhos locais de saúde, tanto na área hospitalar, como nas unidades básicas de saúde, encontraram-se conselhos que se diferem entre si, pelo grau de organização e participação dos atores envolvidos. No entanto, conforme descrito por Miranda (2012), a criação dos conselhos locais de saúde de Teresina, incentivado pelo então presidente da Fundação Municipal de Saúde, ocorreu de forma brusca e sem prévia discussão com a população, no ano de 2011, em todos os serviços de saúde municipal, tendo como propósito oicial uma maior participação da população local, mas que não avançou de forma homogênea. Em estudo realizado por Rocha (2011) sobre a experiência do projeto Centro de Encontro e Integração de Ações (CEIA), iniciativa que partia da 217 organização da população do município mineiro de Betim, em núcleos por quarteirões, no sentido de mobilizá-la para discutir questões referentes aos serviços públicos. No entanto, o projeto era organizado diretamente pelo gabinete do Prefeito, implicando em uma forte centralização das decisões no chefe do poder executivo municipal. Constata-se desta forma, que mesmo que o gestor se declare simpático à participação da sociedade civil na deliberação dos serviços públicos ofertados pelo município, isso deve ser devidamente separado dos interesses particulares, principalmente, relacionados ao processo eleitoral, para que não seja apenas uma forma de conquistar êxito nas eleições. Os Conselhos Locais de Saúde têm como potencial o aprimoramento da democracia através da participação social, tendo em vista a melhoria do desempenho de políticas, programas e projetos da área da saúde, o que pode ser comprovado por vários estudos internacionais, que apontam que a participação da comunidade tem sido decisiva para garantir a cooperação entre os setores e atores governamentais e não governamentais no enfrentamento de problemas de saúde como dengue, imunização e saneamento que demandam uma interação setorial (ANDRADE; VAITSMAN, 2013). As Unidades Básicas de Saúde onde atuam as equipes de saúde de família (ESF) são, em muitas comunidades, o único equipamento social existente, tornando-se de fundamental importância para uma parcela signiicativa da população assistida por esses serviços (PEDROSA; PEREIRA, 2007). A reforma administrativa do setor saúde em Teresina O município de Teresina consolidou-se como uma referência de serviços de saúde para todo o estado do Piauí e demais estados vizinhos, principalmente o Maranhão, mas vê o serviço privado fortalecer-se em número de leitos e equipamentos disponibilizados, em detrimento aos serviços públicos, que apesar do crescimento em menor escala, passam atualmente, a reduzir as ofertas de alguns serviços à população. O atual gestor do município de Teresina apresentou várias experiências ditas participativas, como organização do Orçamento Participativo (OP), a própria criação dos Conselhos Locais de Saúde (CLS) e mais recentemente, o Participa Teresina. A forma de gestão das Unidades Básicas de Saúde do Município de Teresina, desde sua implantação no ano de 1997, segue uma experiência administrativa muito debatida na época do Movimento Popular de Saúde (MOPS) do Piauí, que é a direção colegiada. Esse sistema de gestão possuía os proissionais de saúde de nível superior como representantes da administração local e deliberavam sobre os serviços prestados à população com o aval da Fundação Muni218 cipal de Saúde (FMS), desde que respeitassem a legislação vigente do SUS. A forma como forem criados os conselhos locais de saúde em ano anterior a eleições municipais, sem um amplo debate com a população local sobre a melhor forma de participação destes, trás por si só, muitos questionamentos sobre o objetivo da criação desses espaços, apesar da existência de alguns conselhos locais que conseguiram de destacar na realização da discussão de temas ligados à saúde. Quando o presidente da Fundação Municipal de Teresina foi eleito prefeito deste município, promoveu em 2013, uma reforma administrativa da gestão das Unidades Básicas de Saúde, que foi em direção contrária a um projeto de gestão democrática destes serviços implantados outrora, extinguindo a própria direção colegiada e fragilizando ainda mais os Conselhos Locais de Saúde. Com o im da direção colegiada, a deliberação do andamento dos serviços de saúde nas unidades básicas de saúde passou a ser desempenhada pelos coordenadores dos referidos serviços, tendo inclusive previsão de aumento salarial para os ocupantes destes cargos, em conformidade com a quantidade de equipes de saúde da família nestes serviços. Todavia, por serem cargos concessionários são, na grande maioria, indicações de políticos alinhados ao governo local. Atualmente, o município de Teresina possui oitenta e nove (89) Unidades Básicas de Saúde, e pouco mais de dez (10) contam com Conselhos Locais de Saúde (CLS), evidenciando a fragilidade desta participação e a própria mudança de prioridade da gestão municipal em relação à participação da sociedade civil nos rumos das políticas públicas deste município. No mês de janeiro do corrente ano é enviado para a Câmara de Vereadores, novo projeto de reforma administrativa para o setor saúde, fechando os serviços das diretorias regionais de saúde, que tinham como papel descentralizar a administração da própria Fundação Municipal de Saúde, tendo como conseqüência a centralização administrativa desta autarquia, num caminho inverso ao que é praticado nas grandes cidades brasileiras que primam pela descentralização de seus serviços. Essas mudanças administrativas no setor da saúde pouco foram debatidas no conselho municipal de saúde, o que caracteriza o enfraquecimento deste órgão frente à gestão deste importante setor da administração pública, ao mesmo tempo, que nos impulsiona para repensarmos que novas práticas participativas poderiam adequar a relação entre Estado e sociedade civil. Faz-se necessário pensar qual modelo de gestão está sendo utilizado pela atual gestão do Sistema Único de Saúde Municipal, tendo em vista, ao atendimento das necessidades da população assistida por estes serviços, uma vez que uma gestão participativa deste sistema, pode superar a mera produção de consultas, exames e procedimentos, mas avançar na formação de sujeitos autônomos, relexivos e compromissados com o interesse público. 219 A obrigatoriedade dos Conselhos Locais de Saúde na cidade de Teresina Uma estratégia do Ministério da Saúde para o fortalecimento da Atenção Primária em Saúde através das equipes de saúde da família foi à criação, em 2012, do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ), com o intuito de garantir o acesso e qualidade dos serviços prestados por estas equipes nas unidades básicas de saúde a toda a população. Na prática, os proissionais de saúde que atuam nas equipes de saúde da família que cumpriam uma carga horária de 20 horas semanais em um único turno, passam a atuar 40 horas semanais nos dois turnos, e se comprometem com algumas ações pactuadas previamente com o Ministério da Saúde e caso tenham um desempenho satisfatório, recebem um bônus inanceiro, tanto para os proissionais envolvidos, como para a própria Fundação Municipal de Saúde, pelo desempenho, o que caracteriza um contrato de compromisso. Conforme Brasil (2012), cada equipe poderá ter diferentes faixas de população adscrita, devendo ter relação com as faixas de carga horária dos proissionais, icando a cargo do gestor local a deinição da população sob a responsabilidade de cada equipe e, a partir dessa deinição, ela deverá cadastrar sua população e passar a alimentar, de maneira regular e consistente, no sistema de informação destas equipes, o conjunto de dados necessários para o monitoramento de suas ações. A Fundação Municipal de Saúde implantou dez (10) equipes de saúde da família nos moldes do PMAQ em 8 unidades básicas de saúde, distribuídas pelas três regiões que se dividem as ações de saúde, a saber: (a) região leste-sudeste, com 3 equipes e duas unidades básicas de saúde , (b) região centro-norte , com 3 equipes e duas unidades básicas de saúde e (c) região sul, com 4 equipes e duas unidades básicas de saúde. O PMAQ tem como um de seus princípios norteadores, o estimulo do foco das equipes de saúde da família no usuário, promovendo a transparência dos processos de gestão, a participação e controle social e a responsabilidade sanitária dos proissionais e gestores de saúde com a melhoria das condições de saúde e satisfação dos usuários (BRASIL, 2012). Esse principio norteador do programa exige que nas unidades básicas de saúde com equipes de saúde da família, na modalidade PMAQ, existam conselhos locais de saúde que atuem na perspectiva da gestão participativa. Dessa forma, os conselhos locais de saúde de Teresina voltam a ter visibilidade mas como uma exigência Ministerial e não como incentivo da própria Fundação Municipal de Saúde, por meio da igura de seu presidente, mas com uma característica similar ao do Conselho Municipal de Saúde que é a burocratização ou obrigatoriedade para repasse inanceiro. Assim, fazem-se necessários novos estudos para avaliar a atuação deste novo espaço de participação da sociedade civil nos serviços de saúde ofertados 220 no município de Teresina, a im de avaliar o real papel desses espaços na nova conjuntura. Para Bravo (2008), o desaio posto na atual conjuntura deve ter por objetivo superar as profundas desigualdades sociais existentes em nosso país, através de um amplo movimento de massas, com a participação da sociedade civil, trabalhadores da área da saúde e gestores do sistema de saúde, que retomem as propostas de superação do status quo e avancem em propostas concretas. Diante de uma conjuntura de ajuste iscal onde os recursos do Estado para a área da seguridade social estão sendo reduzidos, surge com mais imperativo a necessidade de participação de todos em defesa de políticas como a da saúde e o próprio futuro do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda está em processo de formação, constituindo-se em uma Política Pública ainda inacabada. Conclusão Conclui-se com o estudo realizado, que a mobilização da sociedade civil no município de Teresina aconteceu desde o inal da década de 1970, inserido num movimento maior que era a própria democratização do Estado brasileiro. A mobilização tinha como foco inicial a discussão de temas relacionados à saúde com vários segmentos da sociedade civil, num processo muito parecido ao que ocorria no restante do país. Porém, ao mudar o foco de atuação, já num contexto de regulamentação de espaços institucionalizados de participação e controle social, perde a essência da mobilização de suas bases e acaba enfraquecida. A criação de novas possibilidades de participação social por meio, principalmente, dos conselhos locais de saúde instalados em alguns serviços de saúde deste município, teve sua gênese maculada por interesses particulares, em detrimento ao bem comum, mas apresenta algumas experiências que podem servir como exemplo para novas possibilidades. Desta forma, é fundamental a realização de novos estudos sobre a qualidade da participação dos diversos segmentos da sociedade civil nestes espaços institucionalizados pelo Município de Teresina, para o fortalecimento de uma gestão participativa que possa realmente contribuir para a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), pois se entende que esse processo em construção resultará no fortalecimento da própria democracia. Referências ANDRADE, G. R. B; VAITSMAN, J. A participação da sociedade civil nos conselhos de saúde e de políticas sociais no município de Piraí, RJ (2006). Ciênc. saúde coletiva [online]. 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A chamada parceria entre o poder público e as organizações da sociedade civil foi considerada na década de 1990 uma saída para os problemas das políticas públicas estatais, pois as organizações civis estariam livres da burocracia pública e seriam mais próximas da população atendida. Tais ideias foram defendidas por Bresser Pereira, do Ministério da Administração e Reforma do Estado, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Nesse sentido, o Ministério formulou diretrizes para a transferência de serviços não-exclusivos do Estado, como escolas e hospitais, para o setor público não-estatal. Tais diretrizes estimularam o surgimento das Organizações Sociais no Governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2002), iniciando em São Paulo. Grande parte das OS atua na área da saúde. No Piauí, a proposta de repasse da gestão de hospitais regionais para as OSs foi inclusive apoiada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado (CRMPI). A entidade considerava que o trabalho das OSs seria uma boa opção para melhorar a gestão dos serviços públicos. A questão virou uma polêmica que foi parar nos tribunais. A realização de serviços públicos de saúde por meio de Organização Social no estado do Piauí foi proibida em meados de 2015. O Ministério Público do Trabalho (MPT) alegou que o Estado estaria promovendo “terceirização ilícita camulada de atividades inalísticas” por meio da contratação de Organizações Sociais. O Estado recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho que manteve a proibição. A celeuma chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a constitucionalidade dessas contratações, com o argumento de que objetivam maior eiciência na prestação de serviços públicos (BRASIL, 2016). Em suma, de um lado, argumentos como o do CRM-PI defendem a atuação das Organizações Sociais por promoverem mais eiciência na gestão pública, reduzindo os gastos e melhorando os atendimentos. De outro, o Ministério Público do Trabalho questiona a constitucionalidade da prestação de serviços públicos por 224 organizações privadas. O objetivo central do presente trabalho é problematizar a lógica que embasa o trabalho das OSs na saúde atentando para o discurso mercadológico que sustenta a transferência da gestão de equipamentos públicos para as Organizações Sociais. Primeiramente foi feito um levantamento acerca da presença das Organizações Sociais no Brasil na área da saúde. Esses dados foram coletados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE) em 2014. Posteriormente, foram consultados documentos que fazem um diagnóstico da presença, ganhos e problemas das OSs no Brasil. A partir dessas informações, o texto problematiza o trabalho das OSs demonstrando o quanto sua atuação é oposta ao que se espera de políticas públicas de saúde, conforme preceitua o Sistema Único de Saúde (SUS): universalidade, integralidade e equidade. Tais considerações apontam a lógica mercadológica que rege as OSs. Trata-se, portanto, de um texto relexivo e descritivo acerca da gestão pública na área da saúde feita por Organizações Sociais. Distinguindo as organizações O termo “terceiro setor” é utilizado com frequência no campo da administração e no cotidiano das empresas privadas. Terceiro setor é um conceito originado de uma separação das instituições em estatais, privadas e não governamentais: denomina-se primeiro setor as organizações públicas que atuam para o bem comum, ou seja, as organizações estatais; segundo setor são as empresas privadas que visam ao lucro; e terceiro setor são as organizações de origem privada, mas que atuam também em prol do bem comum. Logo, tais organizações não fazem parte do primeiro setor - por serem privadas, nem do segundo setor - já que não tem o lucro como objetivo inal (FERNANDES, 1994). Já o termo Organizações Não Governamentais (ONGs) é mais presente nas falas dos militantes e nos escritos vinculados ao campo da militância, remetendo a um tipo de organização que reivindica e auxilia a concretização e ampliação de direitos. No entanto, juridicamente não são reconhecidos os termos terceiro setor ou ONGs. O Código Civil brasileiro reconhece as fundações privadas (compostas por capital privado e iscalizadas pelo Ministério Público) e as associações (formada pela reunião de pessoas). As OSs são associações ou fundações que estabelecem contratos de gestão com o poder público para gerenciar, por exemplo, hospitais municipais. O governo, tanto na esfera federal, estadual ou municipal, chama as organizações que queiram irmar esses contratos de gestão e escolhe aquelas que se encaixam nos padrões. Cabe ao governo inanciar, normatizar e iscalizar o trabalho das organizações responsáveis por gerenciar equipamentos públicos. Além do gerenciamentos, as associações ou fundações podem executar políticas estatais. Para tanto devem se qualiicar como Organizações Civis de Interesse 225 Público (OSCIPs) e assim se torna possível estabelecer parceria com o poder público. Nessas parcerias, o poder público normatiza como dever ser o atendimento e inancia parte das atividades das organizações. A outra parte pode ser inanciada por doações individuais, empresariais ou de outras organizações. Pode-se identiicar nos escritos sobre a ação coletiva no Brasil uma esperança nas organizações civis. Durante o período militar, a aposta recaia nos novos movimentos sociais. O adjetivo “novo” separava os movimentos que atuavam no período militar da atuação da sociedade civil anterior ao período mencionado. Os movimentos sociais anteriores à ditadura objetivavam em sua maioria a aquisição de serviços básicos para a população, enquanto os novos movimentos sociais almejavam mais do que atenção de necessidades básicas: lutavam também pelo direito à participação na política (SADER, 1980). Já os trabalhos brasileiros confeccionados durante o pico do crescimento das associações no Brasil, na década de 1990, destacavam as contribuições das organizações - especialmente das Organizações Não Governamentais (ONGs) - para a democracia (FERNANDES, 1994; CARDOSO, 1997). Segundo tais intepretações, as ONGs proporcionariam a democratização das relações sociais na medida em que os cidadãos poderiam participar na formulação e execução das políticas públicas. Ademais, a assunção de serviços públicos pelas ONGs também seria a forma mais eficiente e eficaz de aplicar os recursos públicos, considerando que as atividades das organizações não passariam pela burocracia estatal, além do fato de que elas conheceriam melhor as necessidades e remédios para os problemas sociais. Posteriormente, trabalhos importantes passaram a problematizar a atividade das ONGs (SADER, 2002; MONTAÑO, 2002). Em geral as críticas às ONGs se centram justamente no fato de que ao assumirem serviços públicos tais organizações diminuem a responsabilidade estatal (SADER, 2002, MONTAÑO, 2002). Nesse sentido, Montaño (2002) explica que as ONGs atuam de forma localizada, ao contrário da universalização dos direitos; de forma temporária, em vez da permanência das ações; e baseadas no voluntariado, no lugar da concretização dos direitos por parte do Estado. Além disso, a mobilização das ONGs resultaria em ações emergenciais e focalizadas que não resolveriam os problemas sociais, mas apenas tratariam das suas consequências. Já os estudos mais recentes apontam a inter-relação entre Estado e sociedade civil, demonstrando por exemplo que ambos não estão separados em nenhum período histórico no Brasil, mas sim que são diversas as combinações e rotas de interdependência entre Estado e sociedade civil. As interações entre interesses sociais organizados e Estado deinem o próprio âmago da construção da ordem política em si (ABERS; BULOW, 2011; LAVALLE; SWAKO, 2015). A relação entre Estado e associações no Brasil O trabalho das organizações civis é antigo e central na realidade brasi226 leira. As primeiras iniciativas de mobilização de instituições que não pertenciam ao Estado, e nem ao setor privado, remontam à Igreja Católica ainda no Brasil Colônia. Na história mais recente, destaca-se a atuação dos movimentos sociais que durante o regime militar lutavam cobrando do Estado direitos sociais e participação política. Posteriormente, em tempos democráticos, novas formas de relação entre Estado e organizações civis foram apresentadas e consolidadas, especialmente com a multiplicação e institucionalização da participação da sociedade civil organizada nos programas do governo. A forma de atuação das organizações civis no Brasil se alterou substancialmente a partir da década de 1990. Nesse período aumentou o número de organizações civis e as mesmas passaram a atuar junto ao Estado, tanto na formulação quanto na execução de políticas públicas. As chamadas Organizações Não Governamentais (ONGs) tornaram-se parceiras do Estado na formulação e execução de projetos e serviços em diversas áreas, tais como: saúde, educação e meio ambiente, cabendo ao Estado normatizar e inanciar os serviços que são executados pelas organizações. Segundo a literatura, essa mudança ocorreu porque o governo brasileiro adotou medidas de cunho neoliberal (SADER, 2002; MONTAÑO, 2002). Tais medidas levaram à multiplicação de organizações civis responsáveis por executar e até gerenciar políticas públicas junto ao Estado na medida em que o poder público passou parte do trato com a questão social para as organizações privadas e sem ins lucrativos, ainda que sob a responsabilidade estatal. De fato, Bresser Pereira, do ex-Ministério da Administração e Reforma do Estado, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), propôs a publicização, ou seja, a transferência de serviços não exclusivos do Estado, como escolas e hospitais, para o setor público não estatal, especiicamente para as Organizações Sociais. Bresser Pereira e Grau (1999) ressaltam a dupla dimensão do setor público não estatal: como controle social sobre as atividades públicas, facilitando a democratização do Estado e da própria sociedade; e no sentido econômico, como produtor de bens e serviços coletivos, fortalecendo os direitos sociais e a auto-organização social. Os autores defendem que os programas sociais não sejam totalmente controlados e executados pelo Estado, nem que o Estado renuncie o controle sobre tais serviços, mas que organizações civis e Estado trabalhem juntos no sentido de oferecer serviços aos cidadãos em diversas áreas, tais como saúde e assistência social. A prestação de serviços por essas organizações seria uma resposta para a crise econômica da década de 80, cuja principal causa é apontada pelo autor como a crise do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos e a crise do Estado desenvolvimentista nos países em desenvolvimento (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999). Não por acaso há um aumento substancial de transferência de recursos federais para as fundações e associações sem ins lucrativos na presidência de Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2003). Em 1999 o governo federal trans227 feriu 2.224 milhões às associações. Houve crescimento da transferência desses recursos até 2001 (IPEA, 2011). Mas essa não foi uma prática somente do governo FHC. Durante a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2011), o inanciamento federal para as associações e fundações sem ins lucrativos voltou a crescer e permaneceu estável até 2007, quando decaiu. Em 2009 o repasse de verbas federais para as associações e fundações sem ins lucrativos cresceu novamente. Os dados de 2010 apontam um total de 4.106 milhões destinados pelo governo federal às associações e fundações sem ins lucrativos (IPEA, 2011). A ampliação do inanciamento das associações pelo Estado tem ligação com a transferência de atividades estatais para as associações, e também com a redução da ajuda internacional às associações do Brasil. Nas últimas décadas houve redução das fontes de inanciamento internacional para as associações sem ins lucrativos brasileiras, em parte devido às diiculdades econômicas nos países inanciadores e também pelo fato de que o Estado brasileiro, ao aumentar a renda nacional e reduzir a desigualdade social, deixou de igurar entre os destinos prioritários do inanciamento internacional direcionado às associações (LOPEZ; BUENO, 2012). A presença das Organizações Sociais na Saúde O objetivo deste trabalho é tecer uma relexão sobre o trabalho das Organizações Sociais na Saúde. Por isso buscou-se dados a respeito da presença das OSs na saúde. Esses dados foram coletados pela Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) de 2014. A pesquisa efetua, periodicamente, um levantamento pormenorizado de informações sobre a estrutura, a dinâmica e o funcionamento das instituições públicas municipais. São diversos os tipos de organizações que administram equipamentos municipais na área da Saúde. Para se ter uma ideia dessa realidade, o gráico 1 mostra o tipo e número de organizações que administram equipamentos municipais, dentre aqueles municípios que declararam não ser o administrador principal dos equipamentos na área da saúde. Gráico 1 – Organizações que administram estabelecimentos de saúde municipais Fonte: A autora com base na pesquisa Munic (IBGE, 2014). 228 Os dados apresentados no gráico 1 mostram que, de um total de 2.316 estabelecimentos administrados por terceiros nos municípios brasileiros, cerca de 43% eram administrados por Organizações Sociais (OS); 28,4%, por empresas privadas; 18,2%, por consórcios públicos; 5,7%, por Organizações de Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP); 3,2%, por cooperativas; e 1,3%, por consórcios de sociedade. É importante ressaltar que as OSCIPs trazem a mesma lógica das OSs pois são organizações contratadas para prestar serviços públicos. Portanto, o que chama atenção nesses dados é o alto número de equipamentos e serviços municipais que não são administrados pelo município, mas sim por terceiros, além da forte presença das OSs. Enquanto nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste os percentuais de municípios que possuem estabelecimentos sob gestão municipal e que são administrados por terceiros eram, respectivamente, 2,4%, 5,1% e 5,9%, nas Regiões Sudeste e Sul essas proporções alcançavam, respectivamente, 18,6% e 12,9%. Em relação à presença especiicamente das OSs é possível vislumbrar sua distribuição do território brasileiros conforme dados da pesquisa Munic (IBGE, 2014) organizados no gráico 2. Gráico 2 – Estabelecimentos administrados OSs nas regiões brasileiras Fonte: a autora com base na pesquisa Munic (IBGE, 2014). Conforme os dados do gráico 2, a região que mais possui equipamentos de saúde administrados por OSs é a Sudeste com 67% de equipamentos. Nas Regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste, as participações das Organizações Sociais eram mais baixas – respectivamente, 5,1%, 8,7%, 19,0% e 12,5%. No entanto esses dados têm relação com o número de habitantes de cada região. O peso das Organizações Sociais no total de estabelecimentos administrados por terceiros é diretamente proporcional ao tamanho da população: em 41,0% dos municípios com mais de 500 000 habitantes, cerca de 88,0% dos estabelecimentos eram administrados por OSs (IBGE, 2014). Ou seja, as regiões mais populosas são as que mais possuem equipamentos e, consequentemente, mais contratos de gestão com OSs. 229 Princípios e problemas no atendimento à saúde A partir da promulgação da Constituição, em 1988, a saúde ganhou rumos diferentes com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Os princípios que regem o SUS são: universalidade, integralidade e equidade. O princípio da universalidade estabeleceu a saúde como um direito de todos e dever do poder público a provisão de serviços e de ações que lhe garanta. O princípio da integralidade prevê que atenção à saúde deve levar em consideração as necessidades especíicas de pessoas ou grupos, e vai desde a prevenção até o atendimento de alta complexidade. A equidade indica a necessidade de se reduzir as disparidades sociais e regionais existentes em nosso país, logo, deve-se investir onde há mais necessidade. Os princípios organizativos são: a regionalização, a descentralização e a participação social. Quanto ao inanciamento: 45% dos recursos deve vir da esfera federal, 55% dos Estados e municípios. Trata-se um grande avanço: o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que conta com saúde inanciada pelo Estado e de modo universal. O sistema de saúde brasileiro foi formulado para garantir acesso universal e igualitário para toda a população brasileira. No entanto, seu desenho institucional misto, em que a saúde suplementar constitui uma parcela signiicativa da assistência à saúde, não garante a igualdade no acesso e na utilização de serviços de saúde. A organização descentralizada dos serviços do SUS, dada pela participação compartilhada de cada esfera do governo (União, estados e municípios) na oferta e no inanciamento de serviços de saúde também contribui para uma oferta desigual, pois as localidades mais pobres enfrentam maiores diiculdades em cumprir com sua responsabilidade no inanciamento e na oferta de serviços de saúde (ANDRADE; MAIA, 2009). A desigualdade na distribuição de renda regional também representa uma diiculdade adicional para a população residente em áreas mais pobres, que conta com uma insuiciente oferta do SUS, e não pode pagar por planos e seguros de saúde suplementar. Desse modo, a desigualdade na distribuição de renda regional funciona como uma barreira para a aquisição de cuidados de saúde pela população mais pobre (ANDRADE; MAIA, 2009). Em suma, pessoas com melhor condição econômica e moradoras de regiões mais desenvolvidas possuem maiores chances de acesso a serviços de saúde do que pessoas que vivem em regiões menos desenvolvidas e com baixa condição socioeconômica (ALMEIDA et al., 2000). A dimensão geográica deve ser entendida junto com a análise da renda. A pesquisa de Szwarcwald et al. (1999) aponta a associação entre concentração residencial de pobreza e maiores níveis de mortalidade infantil, menor expectativa de vida e maior taxa de homicídios. Além da renda e residência, clivagens sociais como gênero, cor-raça-etnia 230 e escolaridade e posição do chefe da família no mercado de trabalho inluenciam as chances de utilização dos serviços de saúde (TRAVASSOS; OLIVEIRA; VIACAVA, 2006; BARATA, 2009). Grupos marcados por tais clivagens tendem a apresentar maiores diiculdades de acesso ao sistema de saúde. Relexões sobre a lógica e problemas das OSs As Organizações Sociais são defendidas pois seriam mais eicientes do que a gestão pública. Conforme Bresser Pereira e Grau (1999), o setor público não estatal funcionaria como controle social sobre as atividades públicas e como produtor de bens e serviços coletivos. Teoricamente as OSs estariam livres da burocracia estatal. Elas poderiam negociar preços e salários sem os engessamentos típicos do setor público, tornando-se mais econômicas. Suas compras e serviços não teriam que passar pelo processo licitatório, tornando sua gestão mais dinâmica. As OSs seriam, portanto, menos burocráticos e mais eicientes (POLÍTICA & SAÚDE, 2017). No entanto, essa suposta economia deve ser questionada. Conforme o relatório disponível na publicação Política & Saúde (2017, p. 2): “(...) a economicidade e desburocratização, quando detalhadas as informações inanceiras das despesas icam constatadas como serviços abusivamente mais caros, falta de controle dos recursos diante dos milhões de reais em saques, alguns não identiicados”. Por exemplo, o mesmo documento detalha uma avaliação feita pelo Tribunal de Contas do Estado da Paraíba comparando os valores envolvidos em uma administração municipal direta e outra via OS. Na gestão de um hospital com 148 leitos feita por uma Organização Social foi pago R$ 118.128.199,76. Já na administração direta de um hospital de 220 leitos foram pagos R$ 33.843.878,65, ou seja, foi gasto 70% a mais na OS. Logo, a gestão pela Organização Social não é sinônimo de redução de gastos. A negatividade envolvendo a burocracia e as normas que regem a gestão pública são retomadas para a defesa do trabalho das Organizações Sociais. O próprio termo “burocracia” soa como algo ruim relacionado ao excesso de normas desnecessárias. Esse não é o sentido weberiano do termo - associado à racionalização própria do sistema capitalista moderno. Tampouco a burocracia na prática torna todos os processos lentos e desnecessários. Regras e normas são essenciais para a garantia do controle dos gastos e gestão dos serviços públicos. Pelo fato das OSs não seguirem essa lógica suas ações estão mais suscetíveis de erros. A aproximação com a lógica do setor privado é justamente uma das fontes de problemas das OSs. Segundo a publicação Política & Saúde (2017, p. 30) os seguintes problemas foram identiicados na gestão de serviços pelas Organizações Sociais: a) Falta de licitação; b) Falta de concurso público; c) Falta de controle social; d) Falta de controle total: é uma empresa privada, acesso restrito. Terceiros acessam somente com Mandado Judicial; 231 e) Diferente da Secretaria de Saúde onde é possível solicitar documentos; f) A conta corrente é privada. Permite saque em dinheiro. Pode emitir cheque permitindo saques de milhões em recursos repassados às Organizações Sociais; g) Contratações não são públicas; são obscuras, não estão no Diário Oicial; h) Existem somente planilhas preenchidas pelo Ministério da Saúde e um Relatório de Gestão Anual do Conselho de Saúde. Essas características expressam a assunção pelas OSs da lógica da empresa privada e o distanciamento das práticas que regem o serviço público. A compra via licitação e a contratação de funcionários por meio de concursos públicos permite justamente a lisura do processo sem o privilégio de ninguém. Quando faltam essas normatizações, aumentam as possibilidades de fraudes. Aliás, a falta de transparência é uma das caraterísticas da gestão das OSs (POLÍTICA & SAÚDE, 2017). Para contornar esse problema, a burocracia estatal e as regras estatais proporcionarem mais controle e menos possibilidades de fraudes. Os escritos sobre os novos movimentos sociais que atuavam durante o período militar apostavam na sociedade civil como campo de construção de uma nova forma de fazer política: horizontal e permeada pela luta de direitos (SADER, 1988). Perpassava essa defesa a ideia de que o Estado – fechado para a participação de fato na época – não seria o locus da transformação social, e sim a sociedade civil. Por sua vez, os trabalhos da década de 1990 defendiam as virtuosidades das Organizações Não Governamentais (ONGs) no trato com as questões sociais (FERNANDES, 1994; CARDOSO, 1997). Em comum, esses dois conjuntos de estudos valorizavam o campo associativo. Na defesa das OSs existe a valorização do campo privado para a resolução dos problemas públicos. A aposta não está mais na sociedade civil, tampouco no Estado. A esperança está no mercado privado e sua suposta eicácia, superior a todos os outros tipos de organizações. E são essas organizações privadas que vem assumindo a gestão pública por meio das OSs. Conforme a publicação Política & Saúde (2017, p. 2): “(...) o que temos no Brasil é a disseminação de grupos empresariais igurando como Organizações Sociais, de grupos que atuam de forma cada vez mais ampla assumindo gradativamente a função da Secretaria de Saúde”. As OSs se beneiciam da descrença do que envolve o setor público, apresentando uma outra forma de gestão, próxima do setor privado. Nesse sentido, o setor privado é apresentado como o locus da eiciência e economia de gastos. O setor privado faria mais com menos. A própria noção de gestão estaria associada ao mercado. Quando os termos típicos do setor privado adentram na fala dos gestores públicos, já é sinônimo de algo 232 positivo. Essa lógica considera positivo o que vem do mercado, em detrimento do que vem do Estado, negativo. É como se as empresas privadas estivessem livres de corrupção, má gestão administrativa ou serviços mal executados. Todas essas características estariam no campo do setor público. No entanto, há corrupção, nepotismo, deiciências na gestão e serviços mal prestados pelo setor privado. Esses problemas se reproduzem na gestão da saúde pelas OSs. A publicação Política & Saúde (2017) lista os seguintes problemas envolvidos na gestão de Organizações Sociais: entidades sem qualquer experiência na área; ausência de demonstração de capacidade para desempenhar os serviços; irregularidades graves na gestão. Isso porque o mercado não está separado de contradições presentes em outras organizações, sejam elas pertencentes à sociedade civil ou ao poder público. Ambas as organizações estão permeadas pelo imaginário e práticas sociais construídas por uma determinada comunidade. Apartar o setor privado dessas lógicas é uma visão estreita que, em última instância, beneicia o mercado - já que ele se torna a grande esperança para a gestão pública. Logo, o discurso crítico em relação a todas práticas da gestão pública acaba por sustentar o abandono dessas práticas e a entrada da lógica privada. A lógica das empresas privadas não obedece e nem foi feita para seguir as diretrizes da gestão pública. O caráter universal dos atendimentos não existe no âmbito privado. Neste, atende-se quem tem mais recursos, ou seja, quem trará maiores dividendos. Por sua vez, a lógica da atenção pública, incluindo o SUS, preza pela universalidade e integralidade, incluindo atendimentos mais simples e mais complexos. Como há pouco controle sobre o trabalho das OSs, as mesmas podem selecionar seus atendimentos, reproduzindo assim a lógica privada destinando os atendimentos mais simples aos mais pobres e os mais complexo aos mais ricos. Inclusive, são esses últimos que tem condições de entrar na justiça e exigir procedimentos e remédios de alto custo. Outro pilar do atendimento público na saúde é a equidade. A ideia da equidade pressupõe redistribuição de bens e rendas com vistas à igualdade. É compensar as desigualdades para que se atinja a justiça social. Na prática, signiicar destinar mais recursos às regiões mais carentes. A lógica das OSs fere esses princípios na medida em que as organizações mais preparadas estão ligadas a hospitais de ponta na região Sudeste. Regiões mais carentes desse atendimento acabam reproduzindo essa lógica com Organizações Sociais menos preparadas. Dessa forma a desigualdade geográica é reproduzida e produzida via gestão de serviços públicos pelas Organizações Sociais. Não se escapa da desigualdade promovida pelo SUS na medida em que pessoas 233 com melhor condição econômica e moradoras de regiões mais desenvolvidas possuem maiores chances de acesso a serviços de saúde (ALMEIDA et al., 2000). O principal questionamento ao trabalho das Organizações Sociais diz respeito à sua inalidade. Em uma empresa privada o objetivo é o lucro. Um equipamento público tem como objetivo o bem dos cidadãos. As inalidades são distintas. Por isso não cabe à gestão pública adotar procedimentos de empresas que visam ao lucro. Seu destino é outro. Pode-se argumentar que as OSs fazem parte do que se chama, na administração pública, de terceiro setor e por isso não teriam o lucro como objetivo inal, embora tivessem constituição privada (FERNANDES, 1994). No entanto, as OSs são ligadas a organizações privadas (POLÍTICA & SAÚDE, 2017), o que leva a pensar: qual o propósito de uma organização privada que cria uma OS para gerenciar equipamentos de saúde? Se ela é uma organização privada, o objetivo é o lucro. Ainal: Não é possível exigir o mesmo parâmetro de atuação entre uma entidade privada que se move pela rentabilidade e uma entidade pública, que é presidida pelo interesse geral e pela universalidade, por isso [...] que nem sempre se pode exigir apenas o Princípio da Eiciência no trato dessas questões, com relação ao menor custo. (MARTORELL apud POLÍTICA & SAÚDE, 2017, p. 4). E aí se situa uma das lógicas mais controversas das Organizações Sociais: elas lucram em cima dos tributos pagos pelos cidadãos para ter acesso ao sistema público de saúde. Ou seja, os cidadãos pagam seus tributos para usufruírem de equipamentos públicos e esse dinheiro é repassado ao setor privado. O argumento da eiciência da gestão privada em detrimento da suposta ineiciência do poder público é utilizado para sustentar esse arranjo. Daí a necessidade de questionar o discurso que desconsidera as práticas estatais. Se uma sociedade deseja melhores serviços públicos, deve-se pautar pela defesa de mais Estado. Se quer menos serviços públicos, pode continuar valorizando a eiciência da gestão privada sem ajustes ou problematizações. Conclusão A gestão pública em especial na área da saúde vem sendo executada por Organizações Sociais. As Organizações Sociais são fundações ou associações que formam contratos de gestão com o setor público. Elas são consideradas mais eicientes e menos burocráticas. Nesse sentido elas apresentam-se como uma forma de resolver os graves problemas sociais presentes no Estado brasileiro. O Sistema Único de Saúde é pautado pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade. No entanto, não se conseguiu reverter desi234 gualdades regionais, econômicas, relacionadas à gênero, classe, etnia-cor-raça (TRAVASSOS; OLIVEIRA; VIACAVA, 2006; BARATA, 2009). A partir dos anos 1990 há um forte investimento estatal no sentido de estabelecer parcerias e contratos com organizações civis. Inclusive escritores brasileiros (CARDOSO, 1997 BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999) reairmam as qualidades da execução de políticas púbicas pelas organizações da sociedade civil. Hoje as Organizações Sociais estão presentes em todas as regiões do Brasil. O presente texto trouxe dados e relexões sobra a gestão dos serviços de saúde realizados pelas Organizações Sociais. Argumentou-se que o trabalho das organizações é possibilitado e reforçado por um discurso que desvaloriza a burocracia e uma pretensa ineiciência estatal em prol das virtudes da gestão privada. No entanto, o setor privado é pautado pelo lucro, o que distancia suas práticas dos princípios do SUS. Ademais, a administração pública repassa dinheiro pago pelos cidadãos em forma de tributos para as Organizações Sociais – que certamente não trabalham sem vantagens. A consequência da entrada da lógica privada e das OSs na gestão da Saúde é o desmonte dos serviços públicos e o seu repasse para o setor privado. Indo mais além, quando uma secretaria repassa os serviços de saúde para as OSs ela terá diiculdade de retomá-los, o que pode e por vezes leva a falta de atendimento para a população. Por isso a necessidade de reletir sobre a entrada da lógica privada com seus objetivos e problemas nos serviços públicos. Nem sempre o que vem do mercado é melhor, ou o que vem do Estado, pior. Referências ABERS, R.; BULOW, M. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre estado e sociedade? Sociologias, Porto Alegre, v. 13, n. 28, p. 52-84, dez. 2011. ALMEIDA, C. et al. Health sector reform in Brazil: A case study of inequity. International Journal of Health Services (Oline), v. 30, n. 1, p. 129162, jan. 2000. ANDRADE, M.; MAIA, A. Diferenciais de utilização do cuidado de saúde no sistema suplementar brasileiro. 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GRANDES PROJETOS URBANÍSTICOS E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: ANÁLISE DO PROGRAMA LAGOAS DO NORTE, EM TERESINA-PI Edmundo Ximenes Rodrigues Neto Antônia Jesuíta de Lima Introdução No Brasil, a partir da década de 1990, num cenário marcado pelo acúmulo de problemas ambientais e urbanos, pela ascensão da agenda ambiental urbana no plano internacional e pela escassez de recursos, muitos governos municipais, imbuídos de novas competências, buscaram captar recursos externos, com o intuito de intervir em áreas degradadas ou de alta vulnerabilidade social. Nesse contexto, ganham centralidade os grandes projetos urbanísticos lastreados no discurso institucional de planejamento estratégico e requaliicação urbana. Por sua capacidade de promover alterações substantivas nas formas de produção e apropriação social do espaço urbano, essas intervenções, segundo Vainer Oliveira e Lima Júnior (2015), geram divergências entre seus proponentes e críticos. Destarte, enquanto os projetos urbanísticos de grande impacto socioespacial e econômico, cada vez mais presentes nos grandes centros urbanos, são exaltados pelos agentes inanciadores (BIRD, 2006, 2009) como alternativas democráticas e criativas para enfrentar a problemática urbana e desenvolver economicamente a cidade, estudiosos (CARDOSO, 2013; DINIZ, 2013) mostram que muitas dessas intervenções servem mais como instrumento para o capital buscar novos espaços para sua reprodução, se sobrepondo aos interesses das populações locais. Por outro lado, estudos, como o de Gagliardi (2011), partem da ideia de que não há um modelo pré-ixado ou predeterminado de grandes projetos urbanos, pois se constituem num produto da ação social em contextos temporais e espaciais diversos. Argumenta, assim, ser relevante a análise de experiências em que se identiicam sinais de resistência e/ou padrões diferenciados de gestão que impliquem inclusão socioespacial. Teresina, capital do Piauí, vem sendo alvo desse tipo de intervenção urbanística desde 2008, a qual vem promovendo alterações socioespaciais substantivas numa extensa área da zona norte. Trata-se do Programa Lagoas do Norte (PLN), uma intervenção do governo municipal com o suporte inan- 238 ceiro e técnico do Banco Mundial (BIRD). Seus resultados parciais, além de estarem alterando a estrutura físicoespacial da área e a vida das pessoas, vêm suscitando conlitos em torno da ocupação do solo urbano. Em 2015, a Prefeitura Municipal de Teresina (PMT) realizou um cadastramento das casas com o propósito de remover 2.180 famílias, o que gerou mobilização de moradores que passaram a questionar os motivos e os procedimentos adotados e a reivindicar a permanência no local. O presente artigo visa reletir sobre o padrão de governança que ordena essa intervenção focalizando o conlito gerado em torno do anunciado processo de remoção, as estratégias e articulações adotadas pelos distintos atores, seja para implementar a remoção, como prevista no projeto, seja para alterar o desenho e garantir a permanência dos moradores. Para tanto, toma-se como fontes de dados os documentos produzidos pela PMT sobre o PLN, e pelo movimento social local. O texto está organizado em três partes. A primeira coloca em evidência o debate sobre a participação política no âmbito do planejamento e gestão urbana no Brasil recente. O segundo, por sua vez, caracteriza o desenho do PLN, enquanto o terceiro focaliza os impasses na implementação da etapa II do Programa gerados pelo conlito entre a prefeitura e famílias residentes da área. Planejamento e gestão urbana no Brasil recente e os sentidos da participação política A participação política entendida como processo que abrange várias modalidades de ser, tomar e fazer parte de algo (TEIXEIRA, 2002), como a cidade, é objeto de intensas disputas. Analisá-la, portanto, signiica entender as distintas concepções, tipologias, funções e situações, o próprio alcance e sentido desta no plano, na gestão e nos resultados da intervenção, como inclusive discutem vários autores, como Nogueira (2005), Souza (2013) e Dagnino, Olvera e Panichi (2006). Nesse sentido, o planejamento e a gestão, ao serem reconhecidos como “[...] questões acima de tudo políticas, em sentido amplo e nobre, e não como questões, sobretudo, ‘técnicas e cientiicas’” (SOUZA, 2013, p. 96) são aqui consideradas a partir da perspectiva de uma rede de relações em que a existência de conlitos de interesses e de ganhadores e perdedores, dominantes e dominados é um elemento presente. Partindo do argumento de Bobbio (1992) de que os direitos não são uma conquista autoaplicável, pois resultam de um constante embate para efetivá-los e atualizá-los, veriicam-se, ao longo da história das lutas pelo direito à cidade no Brasil, contradições, avanços e retrocessos, reletidos nas cons239 tantes alterações na legislação urbana. A Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) se constituíram uma inlexão importante dessas lutas, pois consagraram conquistas populares, assegurando, no plano normativo, demandas históricas da sociedade. O Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), além de airmar a centralidade do planejamento participativo, deine instrumentos para a construção de cidades sustentáveis, entendidas como aquelas que garantem “[...] o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Entretanto, Maricato (2001), referindo-se a esse instrumento legal, chama atenção para o desaio da adoção do planejamento participativo, airmando que sua concretização não é automática, visto que enfrentará fortes resistências numa sociedade fundada nas relações de privilégios e arbitrariedades. A histórica e reiterada prática de ausência da aplicação de lei e/ou de sua adoção circunstancial e seletiva evidencia o grau dessa diiculdade. Para Villaça (2012), apenas as lutas coletivas associadas ao questionamento dos pressupostos, conteúdos e métodos adotados no planejamento urbano, podem transformá-lo em realidade, deixando de ser mera peça de icção ou de reprodução das desigualdades urbanas e impactando positivamente o destino da cidade. O caráter plural dessas lutas não é, segundo Melucci (2001), simples resposta a uma crise do sistema capitalista e de suas contradições ou mera disfunção social, pois, na verdade, trata-se da manifestação de um conlito, em que atores sociais diversos se relacionam para o controle e a destinação de recursos decisivos para soluções de questões coletivas. Ressalta-se ainda que, no âmbito do planejamento e gestão urbana, a mera transferência de responsabilidades do Estado para a sociedade civil, sem recursos suicientes para a efetivação de uma determinada política, ou o acesso da população a informações relevantes, sendo consultada sobre a intervenção, mas sem garantia de que suas propostas sejam incorporadas, caracterizaria, segundo Souza (2013), uma pseudoparticipação. A despeito do conteúdo participativo que contém a legislação e de experiências de inovação democráticas, subordinando e/ou aliando a dimensão técnica à política, as abordagens predominantes ainda são tecnocráticas (SOUZA, 2013). São fundamentadas no que Chauí (2011) deine como ideologia da competência, isto é, a exaltação da autoridade especializada e cientíica legitimando o técnico como aquele que tem o direito à prerrogativa inal de decidir e gerir determinada ação política, restando aos cidadãos obedecer aos procedimentos, reconhecendo a própria incompetência. Estudo de Rolnik (2015) identiica a presença dessas abordagens em práticas de remoção involuntária de famílias realizadas para efetivação de 240 projetos de renovação ou requaliicação urbana, tendo-se como exemplos as intervenções associadas aos megaeventos internacionais (Copa e Olimpíadas) que, com discursos e justiicativas de progresso social (legado urbano) e econômico (ingresso de capitais internacionais na economia) transformaram áreas urbanas, mercantilizando a cidade, reproduzindo as desigualdades sociais). Segundo ainda a autora, os procedimentos adotados durante as remoções de diversas famílias no Rio de Janeiro não se deram de forma participativa e transparente. Além disso, tal processo não garantiu a função social da propriedade, não contribuiu com a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização advindos dessas intervenções. Cumpre ressaltar que o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) e a legislação internacional (ONU, 2004) preveem que nos casos reassentamento involuntário as populações participem das decisões sobre seus destinos e não apenas consultadas. Na iminência de uma remoção, a comunidade tem o direito de conhecer o projeto, de discuti-lo e de apresentar alternativas. As famílias também têm o direito de contar com apoio técnico e jurídico, para acompanhar o processo e ajudar a formular propostas e resoluções possíveis para evitar a remoção, ou, em caso de sua inevitabilidade, tomar conhecimento das propostas de reassentamentos, dos valores de indenizações, e propor locais alternativos para se reinstalarem (ONU, 2004). O direito à informação, à transparência e à participação direta dos atingidos pelas intervenções deveria se constituir numa dimensão política que os incluíssem como sujeitos nos mecanismos decisórios, de fato. Isso possibilitaria, consoante Dagnino, Olvera e Panichi (2006), a construção de espaço público através do exercício democrático da deliberação ampliando a esfera política, abrindo oportunidades de inovação e permitindo um tipo de relação entre Estado e sociedade civil pouco praticado. No contexto de uma crise capitalista permanente, o discurso da participação na perspectiva neoliberal se transforma no envolvimento e colaboração consensual dos citadinos na venda da cidade. Lugares até então degradados, mas constituídos de uma identidade cultural, passíveis de serem renovados ou requaliicados se transformam em empreendedorismo urbano, marcas de um pensamento que se pretende único no mundo (ARANTES, 2002). Entretanto, tais intervenções urbanísticas não se constituem sem um discurso que as legitimem e, assim como a participação, outras noções também passam a ser objeto de novos usos e questionamentos. É o que relete Gonçalves (2013) sobre o uso dos discursos dos riscos ambientais pelos gestores no Rio de Janeiro, para justiicar grandes projetos urbanos e remoções involuntárias. Para o autor, o processo de urbanização desigual produziu a vulnerabilidade ambiental de populações residentes em encostas, margens de rios, lagos ou mares, entre outros espaços inadequados. Entretanto, à medida que essas áreas ocupadas irregular241 mente passam a ser valorizadas, devido à atratividade paisagística, a noção de risco ambiental é adotada pelos gestores como uma justiicativa estritamente técnica, exigindo o deslocamento de famílias, desconsiderando, assim, a dimensão político-social que reveste a problemática. Na verdade, como asseveram Zanirato et al. (2008), a gestão do risco exige a apreensão de suas múltiplas faces e não pode se restringir aos aspectos técnicos que mensuram ou apontam o grau do acontecimento. É preciso analisar as dimensões culturais, sociais e econômicas das pessoas que estão no território, o qual relete a desigualdade socioespacial, bem como as intervenções e/ou omissões históricas das autoridades públicas que coniguram e reconiguram o desenho da cidade. Com efeito, em cidades com rico cenário paisagístico, a exemplo do Rio de Janeiro, palco de dois megaeventos (Copa do Mundo e Olímpiadas), a exaltação do discurso ambiental associado à defesa da vida, no sentido de proteção contra riscos ambientais, está despolitizando e desqualiicando as lutas sociais referentes à questão urbana e silenciando os riscos sociais. A remoção de moradores de favelas, antes integradas ao centro, para áreas afastadas, revela como o processo de saneamento ambiental e embelezamento paisagístico está sendo conjugado com a segregação socioespacial (GONÇALVES, 2013). Ao subjugar, na prática, a discussão política à dimensão técnico-cientíica, as autoridades públicas, descaracterizam a própria dimensão política enquanto espaço comum de conlito, negociação, divergência, construção de dissensos e consensos, excluindo parte considerável da população, sobretudo os mais pobres, dos benefícios diretos da urbanização. Entretanto, como airma, Nicolau Sevcenko (2003), esse modelo de intervenção urbana não se dá sem resistência, conlitos e o desenvolvimento de táticas, por parte da população para lidar com as ações político-administrativa do Estado. O Programa Lagoas do Norte: concepção e gestão Em Teresina, como parte das médias e grandes cidades do país, o processo de urbanização acelerada, registrado na capital, a partir da década de 1950, não veio acompanhado por políticas urbanas efetivas que incluíssem social e espacialmente o contingente populacional que emigrava do meio rural, transformando a cidade, sobretudo na segunda metade da década de 1980, num cenário de segregação socioespacial, de conlitos pelo uso e ocupação do solo (LIMA; RODRIGUES NETO, 2006). Neste período, a cidade cresceu de forma não planejada, adensando a população, especialmente a mais pobre em regiões periféricas, geralmente carentes de infraestrutura e serviços públicos adequados. Com a extinção do Banco Nacional de Habitação (BNH), em 1986, e a 242 queda substancial do inanciamento federal para o enfrentamento da questão da moradia na cidade, o quadro urbano se agrava na década de 1990. É nesse contexto que a ideia do Lagoas do Norte surge pela primeira vez no discurso institucional, especiicamente no Plano de Governo do prefeito Firmino Filho (1997-2000), compondo o eixo “Ações Integradas, Planejamento e Coordenação Geral”, com as quais se pretendia promover mudanças signiicativas na estrutura socioeconômica e urbanística do município (TERESINA, 1997). Não se concretizando na primeira gestão, a proposta do Lagoas do Norte se manteve como meta no segundo mandato de Firmino Filho (20002004), de forma que, em 2003, Teresina e mais sete outros municípios brasileiros receberam autorização do governo federal, para contrair inanciamento junto ao Banco Mundial (BIRD, 2008). Com base na aprovação das salvaguardas exigidas pela agência, ocorreu a liberação do empréstimo em 2008, ganhando formato deinitivo, com a aprovação de um documento intitulado Manual Operacional, considerado “[...] marco referencial para a implementação do programa” (TERESINA, 2008, p. 6). O PLN se apresentou como uma estratégia para enfrentar vários problemas relativos à degradação sanitária e ambiental de áreas próximas à conluência dos rios Parnaíba e Poti, no entorno de 12 lagoas existentes na região norte, onde se localiza grande número de habitações em situações de risco. O discurso centra-se no enfrentamento do risco social e ambiental associado à transformação da área em lócus de sustentabilidade, potencialidade turística e econômica. No âmbito da gestão, a execução é da Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação - SEMPLAN, que instituiu, em conformidade com o BIRD, através do Decreto nº 6.028, ainda em 2004, uma Unidade de Gerenciamento do Programa – UGP, com a tarefa de planejar e coordenar a execução, o controle e o acompanhamento das intervenções. Com efeito, a estrutura de gerenciamento do PLN foi organizada em três níveis: • De decisão e de gerenciamento estratégico a cargo do prefeito municipal de Teresina e do Secretário da SEMPLAN; • De coordenação e de gerenciamento operacional – a cargo do Coordenador da UGP; e • De execução a cargo do Secretário da SEMPLAN, com o suporte dos responsáveis pelos órgãos coexecutores discriminados na matriz de órgãos envolvidos. (TERESINA, 2008, p. 22). Articuladas com os três níveis de gerenciamento, foram previstos instâncias de participação e controle social, como o Fórum Comunitário e as 243 Consultas Públicas. O Fórum Comunitário, programado para cada área de intervenção, composto por representantes do governo e das comunidades, visa segundo o marco operacional,“[...] facilitar a co-responsabilidade dos partícipes necessária ao êxito do Programa e permitirá o efetivo controle social sobre a atuação da administração local”. No âmbito do Fórum foram antevistos “[...] eventos de monitoria participativa” para subsidiar a elaboração do Plano Operativo Anual – POA (TERESINA, 2008, p. 22). Quanto às consultas públicas, são reuniões com público alvo (lideranças comunitárias, representantes do poder público, técnicos, entre outros) direta ou indiretamente envolvido e/ou afetado pelo PLN que, segundo o governo municipal (TERESINA, 2007), visa divulgar e dar visibilidade ao conjunto de obras e ações já planejadas. Servem ainda essas instâncias como resposta a normas internacionais da política de avaliação ambiental exigidas pelo próprio BIRD (2008) que tem como uma de suas preocupações a dimensão da governança. Para essa agência, governança é entendida como a capacidade estatal de atingir seus objetivos com eicácia a partir de esforços para coordenar ações comuns com os agentes não-estatais, envolvendo-os de forma cooperativa (BIRD, 2015). Daí a dimensão da comunicação conquistar centralidade na agenda como uma das estratégias para incentivar os indivíduos a contribuírem com as ações, evitando e/ou limitando comportamentos que inviabilizem ou prejudiquem o desempenho do programa. Das ações executadas entre 2008 e 2014, que produziram alterações socioespaciais signiicativas na região, destaca-se as obras nas áreas de lagoas da Piçarreira, Cabrinha e Lourival, localizadas, ao longo do canal da Vila Padre Eduardo (TERESINA, 2014a). Antes degradadas, poluídas, e ocupadas irregularmente, foram saneadas, urbanizadas e transformadas no Parque Linear, área de lazer conhecida como Parque Lagoas do Norte. Para esse projeto de urbanização se materializar, parte das famílias ali residentes, foi reassentada em outra área da mesma região. Embora a intervenção venha sendo desenvolvida com base num discurso de valorização do controle social e de participação como “[...] alicerces e princípios básicos do PLN” (TERESINA, 2008, p. 8), desde o início, sua implementação vem gerando conlitos entre famílias atingidas e o governo municipal, colocando em discussão o modo sob o qual as decisões foram e estão sendo tomadas, a condução das ações desenvolvidas, sobretudo quanto à inclusão da população nesse processo. Em 2008, diante das expectativas quanto ao início das obras e incertezas sobre seus prováveis impactos, um grupo de lideranças comunitárias da região se articulou e organizou o Comitê Lagoas do Norte (2011), com o objetivo de mobilizar os moradores das áreas afetadas para exigir participação durante a implementação do Programa. Dentre as várias reivindicações apresentadas pelo Comitê, estava a 244 criação do Fórum Lagoas do Norte que, embora previsto no escopo do programa, só foi criado em 2011, após denúncia das lideranças comunitárias apresentadas aos consultores do BIRD, (TERESINA, 2011). Em 2015 ganha visibilidade o conlito entre a prefeitura e parcela das famílias que se, sentindo ameaçadas, em função do cadastramento realizado, com o propósito de remover 2.180 famílias, para implementação da segunda fase do PLN (TERESINA, 2014b), passam a questionar os motivos e procedimentos adotados, resistir à desapropriação e a exigir a abertura de canais de diálogo com a prefeitura para discutir e alterar o desenho do programa. Impasses na implementação da etapa II do PLN: a dimensão da remoção involuntária Baseado em estudos preliminares para a implantação da etapa 2 do PLN, a prefeitura estimou a remoção de 1.730 imóveis, correspondendo a 2.180 famílias. Quanto aos motivos de afetação, 133 imóveis, correspondendo apenas a 7,7% do total, tem como justiicativa direta o risco de inundação (TERESINA, 2014b), exigindo um esforço institucional maior, por parte da PMT, para dialogar e convencer as famílias da necessidade das remoções que não estão, necessariamente, relacionadas a tal risco. Dos imóveis a serem desapropriados, 1.501 (87%) estão localizados na área de intervenção, denominada Lagoa dos Oleiros, São Joaquim. A mais afetada é da avenida Boa Esperança, com 210 imóveis, representando 12,13% do total. O motivo para desapropriação desses imóveis é registrado no Marco de Reassentamento (TERESINA, 2014b) apenas como sistema viário, isto é, a duplicação da via. Apesar de o discurso governamental, como foi visto, prever a participação da comunidade em todo o processo (antes, durante e depois de possíveis reassentamentos), dando centralidade à comunicação na implantação do programa, a iniciativa de realizar um cadastro imobiliário das casas da Avenida Boa Esperança, causou insatisfações na comunidade. Alegando violação de direitos, falta transparência e diálogo na condução da atividade, parte das famílias passou a se organizar e questionar o anúncio das remoções. Manifestações organizadas pelas lideranças locais autodeinidas como os “Atingidos pelo Programa Lagos do Norte” (2015a) se multiplicaram na região. Numa tentativa de correção de estratégia a prefeitura responde que “[...] o cadastro e, consequentemente, o selo, não signiicam que a família será reassentada. Comprovam apenas que o imóvel está localizado naquele endereço e a quantidade de pessoas e famílias que nele residem” (TERESINA, 2015a, p. 5). Já o Marco de Reassentamento elaborado pela prefeitura (TERESINA, 245 2014b, p. 59), registra na etapa notiicação e selagem dos imóveis que, “[...] após o cadastro ou concomitante a ele todas as famílias deverão ser notiicadas do objetivo do programa”. Com efeito, a forma como foi conduzida o cadastramento pela prefeitura, se constituiu objeto de conlito e contradições, evidenciando informações que não convenceram as famílias de seu objetivo manifesto. Outras respostas também foram dadas pela prefeitura a qual airmou ter disponibilizado no site da SEMPLAM, no dia 24 de outubro de 2014, o Relatório de Avaliação Ambiental e Social e o Marco de Reassentamento Involuntário da etapa 2. Diz ter promovido no dia 4 de novembro de 2014, consulta pública no Teatro do Boi para “[...] dar ciência à população a respeito das características gerais das ações previstas para a segunda fase, da avaliação ambiental e social e dos projetos de reassentamento” (TERESINA, 2015b, p. 2). A metodologia da consulta seguiu o mesmo formato da que ocorreu na 1ª etapa da intervenção, com a diferença de que, nesta, além do que se pretende fazer e de que forma, se apresentou o que já foi feito. A participação da comunidade se deu principalmente através de manifestações escritas seguidas de considerações dos técnicos e gestores da prefeitura e do BIRD. Análise das respostas dos gestores, técnicos e consultores registradas na ata da Consulta Pública (TERESINA, 2014c) revelam a preocupação destes em apresentar soluções já prescritas, oportunizando pouco espaço para divergências, demandas e proposições. Não corresponderia, portanto, a um planejamento urbano, que segundo Souza (2013), teria a função de coletar e integrar dados de conteúdo variado que se transforme em agente de promoção de justiça social. Nesse processo, a dimensão técnica foi eleita pelos gestores como critério para deinição do que prioritariamente seria feito e, por onde começaria, sendo predominante, a participação de natureza cooperativa ou colaborativa. No item participação comunitária, o Marco de Reassentamento Involuntário (TERESINA, 2014b, p. 50) reforça esse sentido adotado pelo governo, quando airma que “[...] o acompanhamento social tem como meta facilitar o relacionamento com a comunidade para garantir a aceitação do projeto [...]”, otimizar as intervenções e qualiicar o tratamento a ser concedido às famílias afetadas por remoções/desapropriações. Os estudos já realizados e outros previstos no Marco de Reassentamento (TERESINA, 2014b), como o peril social das famílias e o cadastro imobiliário de suas residências, apesar de aproximarem os técnicos da comunidade, se apresentam como levantamento de insumos para subsidiar as decisões dos gestores e consultores. As obras do sistema viário e de urbanismo de embelezamento para ins turísticos, entre outras ações, que também exigem remoções, como visto, são apenas objeto de divulgação na fase deinida como de “preparação”, ocorrendo principalmente nas consultas públicas e nas reuniões especiicas entre equipe técnica da UPS e os atingidos e/ou beneiciários. Após o cadastramento das famílias e dos imóveis, a prefeitura “[..] irá 246 entrar em contrato com cada domicílio afetado pelas obras e apresentará as alternativas disponíveis quanto ao reassentamento; incluindo mudança para outro imóvel ou indenização” (TERESINA, 2015a, p 2). Nesse processo, o espaço para negociar é individual e o destino dos possivelmente removidos restringe-se ao levantamento de dados e alternativas apresentadas pela prefeitura no Marco de Reassentamento (TERESINA, 2014b), carecendo de canais abertos para a população apresentar e decidir sobre mudanças nas obras impactantes, se desejam sair, e para onde desejam ir, caso seja inevitável. Não obstante, a política do BIRD sobre remoção involuntária, airmar que este “[...] deve ser evitado sempre que possível, ou então minimizado, explorando-se todas as alternativas viáveis para o design do projeto” (BIRD, 2001, p. 1), há pouco espaço de interação que possibilite discussão para possível mudança. Em Teresina, um aspecto decisivo no processo de interpelação e interlocução de famílias com os poderes públicos, em especial com o governo municipal, como já ocorrido em diversos conlitos urbanos (LIMA, 2003; RODRIGUES NETO, 2005), geralmente, é o fato dos que lutam e conquistam para permanecer na área, contarem ou não com uma forte base organizativa, de apoio jurídico e político. Sem esse suporte político-jurídico, as demandas pouco são incorporadas pelo governo municipal. No que se refere às famílias, no caso aqui analisado, estão sendo representadas pelo Centro de Defesa Ferreira de Sousa e recebendo apoio e orientação política e jurídica de diferentes entidades e lideranças. Assim, o Centro de Referência em Direitos Humanos - CRDH “Dom Hélder Câmara” (Cáritas), auxilia principalmente no aspecto jurídico e na intermediação do diálogo entre os representantes das famílias com os gestores municipais e representantes do BIRD. Professores, pesquisadores e estudantes de universidades discutem com a comunidade sobre direito à cidade, auxiliam na compreensão das dimensões técnicas do programa, subsidiando as lideranças com dados e proposições. Representantes de coletivos, organizações sociais e ativistas auxiliam na organização de atividades, protestos, produzindo material de comunicação popular e veiculando informações nas redes sociais e imprensa local. Destaque para o Corpo de Assessoria Jurídica e Estudantil da Universidade Estadual do Piauí – CORAJE. Esta última organização é coordenada pela professora Drª Lucineide Barros que, na década de 1990, presidiu a Federação de Moradores e Conselho Comunitário do Piauí - FAMCC em lutas como a da Vila Irmã Dulce. Como efeito desse apoio, vários estão sendo os espaços de discussão construídos, ações e mecanismos utilizados pelo movimento dos atingidos para pressionar o governo municipal a não remover as famílias, que tanto remontam a antigas práticas adotadas pelos movimentos sociais, quanto incluem elementos que apontam para sua renovação. 247 Dentre essas iniciativas, destacam-se manifestações públicas e protestos, a convocação do Ministério Público, para intermediar as negociações entre a prefeitura e os moradores da área possivelmente afetada, a solicitação de documentos à prefeitura que justiiquem e comprovem a real necessidade da remoção, de parecer do IPHAN sobre a história da comunidade que vive no entorno da avenida, com suas tradições como prova para justiicar a necessidade de sua permanência no local. A realização de oicinas sobre o direito à cidade e grandes projetos urbanísticos, nas comunidades, as reuniões de planejamento e assembleias, estão servindo para organizar as famílias para permanecerem na área (ATINGIDOS..., 2015a) mas, também, constituindo espaços de discussão de problemáticas e soluções relativas à própria situação de vulnerabilidade social e ambiental em que se encontram. Inclusive, como visto, que o próprio PLN pretende resolver. Além disso, as famílias têm realizado parcerias com pesquisadores e estudantes de arquitetura e urbanismo para elaboração de uma proposta alternativa à remoção e realocação das famílias em terrenos na mesma área de abrangência do PLN (PIAUÍ, 2016). Desenha-se, assim, a abertura a canais de diálogo entre as famílias e os gestores, com possibilidade de ressigniicação do padrão de governança técnico-gerencial até então adotado pelo governo municipal. A dimensão política, cultural e societária conquista centralidade na discussão do movimento, inclusive, quando trata da dimensão ambiental, tão valorizada no desenho do PLN e no discurso dos representantes institucionais. Como resultado das manifestações, das interpelações das famílias feitas a promotoria de justiça e da audiência pública realizada no dia 23 de fevereiro de 2015, o ministério público consegue a suspensão do cadastramento das famílias até que a prefeitura esclarecesse e comprovasse os motivos da remoção ou apresentasse uma alternativa de controle dos riscos socioambientais (PIAUÍ, 2015). Em nota de esclarecimento divulgada em audiência do dia 17 de março, a prefeitura advoga que os moradores residem em zona de preservação permanente, sendo a Avenida Boa Esperança construída como um dique de proteção contra as enchentes. A remoção involuntária para os gestores signiica “[...] garantir a segurança e o bem-estar das famílias, que hoje se encontram em área de risco” (TERESINA, 2015a, p. 4). Estudos de mapeamento de risco do governo federal apresentados apontariam nessa direção. No que se refere ao reassentamento, segundo ainda os gestores, este, só será realizado depois que a nova moradia estiver pronta e em condições de habitação aceita pelo morador (TERESINA, 2015a). A atual proposta de reassentamento que abrigaria a maioria das famílias, apesar de ser na mesma região norte, está fora da área de abrangência do PLN, sendo o local, mais distante de áreas de serviços e comércio. 248 Em face das denúncias e manifestações das famílias que diziam estarem sendo ameaçadas de ser “trocadas por carros” para beneiciar turistas e empresários do ramo (ATINGIDOS..., 2015b), o discurso oicial que justiica as remoções passou a ser centrado na proteção das famílias e não, simplesmente, na duplicação da avenida, como registrado no próprio Marco de Reassentamento (TERESINA, 2014b). Com o objetivo de mobilizar a opinião pública de modo favorável, o movimento acusa o governo municipal de querer expulsar as famílias da avenida e de “[...] violação contra a vida e a saúde de idosos, crianças e modos de vida tradicional [...]” (ATINGIDOS..., 2015c, p. 1). Nesse sentido, enquanto a prefeitura busca através de estudos geológicos e de engenharia comprovar que a área é de risco para moradia, o movimento argumenta, reforçado pelo ministério público, que o que deve ser eliminado é o risco, preservando-se os modos de vida e história dos moradores, mantendo-os em suas residências. Entre as ações do movimento que buscam justiicar e fundamentar tal defesa estão: a solicitação de um parecer técnico do IPHAN sobre a ocupação histórico-cultural da área (BRASIL, 2015) e a colaboração de pesquisadores que investigam a implementação do PLN, especialmente, os impactos destas intervenções, sob o ponto de vista cultural e antropológico. Destarte, as pesquisas vêm sendo utilizadas pelo movimento como fundamento técnico para comprovar tanto o impacto negativo do PLN nos modos de vida das famílias, como o de apontar alternativas de intervenções físicas para permanecerem na área. Tal conlito e impasse entre governo e movimento, lembra Lefebvre (1999) quando airma que não obstante as estratégias do Estado de empenhar-se em restringir o signiicado de espaço urbano às dimensões técnicas (planiicação, mapas) e físicas (infraestrutura, arquitetura) do urbanismo, a principal característica do urbano é a diversidade e a contradição, manifestas na vivência da moradia, a qual resiste à uniformização dos planos e projetos urbanísticos. Outra estratégia adotada pelo movimento foi a organização de um Dossiê pelo Centro de Defesa Ferreira de Sousa (2015) encaminhado aos representantes do BIRD, no inal de 2015. Nele se denuncia tanto os procedimentos adotados pelo governo municipal como ações que impactaram negativamente as comunidades, inclusive, de famílias já removidas. Tal documento reforça o desejo de famílias de não serem removidas, alegando terem o direito de se beneiciarem das ações do PLN. Vale ressaltar que as manifestações, protestos e denúncias expostas pelo movimento contra a possibilidade de remoção e o que consideram práticas autoritárias do governo municipal reforçam e são reforçadas também pela atuação do Ministério Público. Tal partilha entre famílias e promotoria remete a Vasconcellos (2013), quando enfatiza que a eicácia do protagonismo desse 249 órgão na responsabilização de autoridades por atos que violam direitos dos citadinos, comum nas questões que envolvem mobilidade urbana, depende muito da ação da sociedade e dos que se sentem prejudicados. As duas partes, em lados opostos agem, se manifestam, buscam conquistar a opinião pública, disputando não apenas sentidos da participação, mas a forma como que se deve conduzir o processo de transformação dessa área reconhecida por ambos como região de elevado potencial paisagístico, histórico, cultural e econômico. De um lado, o discurso oicial da proteção ambiental e social de famílias, do outro, o discurso do movimento, que reclama direitos sociais e proteção cultural. Ambos justiicam seus argumentos e ainda não se vislumbram indicativos de consensos. Entretanto, se, de um lado, o dissenso e o conlito atrasam o cronograma de andamento do PLN, de outro, colocam em evidência a necessidade do debate, da interlocução e da participação de distintos sujeitos no processo decisório. Conclusão A guisa de conclusão, foi possível constatar que enquanto o governo municipal defende uma participação da comunidade de forma colaborativa e controlada pela dimensão e o discurso técnico urbanístico, o movimento força canais de diálogo sob sua direção exigindo, através de meios jurídicos, técnicos sociais e, principalmente manifestações coletivas, a dimensão política de alterar o PLN com o objetivo de permanecerem na área. Com efeito, a implementação do PLN se orienta por um padrão de governança caracterizado pela concentração das decisões estruturantes na autoridade política e técnica do governo, restrita aos consultores e aos técnicos do BIRD, sendo a participação da população concebida como produtora de insumo e legitimadora de processos tecnocráticos. Tal caráter de participação compromete a incorporação de demandas e necessidades locais produzindo impasses no curso da intervenção. Referências ARANTES, O. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C. B.; MARICATO, E. (Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. p. 75-103. ATINGIDOS PELO PROGRAMA LAGOAS DO NORTE. Grupo público criado em 2015a. [S.I.: s.n.], Facebook @ 2016. Disponível em: <https://www.facebook.com/groups/8397071627553075/>. Acesso: 12 jun. 2016. 250 ______. Panleto: Prefeitura quer expulsar as famílias da Av. Boa esperança! 2015b. ______. 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Aline Teixeira Mascarenhas de Andrade Maria do Rosário de Fátima e Silva Introdução O presente texto aborda os principais aspectos da pesquisa sobre os processos democráticos existentes no Programa Lagoas do Norte em Teresina-PI, buscando reletir sobre como tem ocorrido a participação da comunidade na implementação do referido Programa. Para este estudo os esforços debruçaram-se sobre a exploração bibliográica e análise documental. Realizou-se uma breve revisão de literatura acerca das categorias importantes, para subsidiar as discussões de que trata este artigo. No intuito de organizar melhor a disposição do conteúdo abordado, este texto está estruturado em três itens. No primeiro, inicia-se a discussão elencando a categoria central do estudo, a democracia, e se dialoga com diferentes autores apontando suas principais contribuições. Sobre a relação entre o Estado e a sociedade, tendo a democracia como aspecto central, destacam-se as contribuições de Rousseau (1978), airmando que a base dessa relação é um contrato social a partir do qual os cidadãos coniam seus direitos em nome de uma autoridade que os resguardará. A democracia também é abordada sob a perspectiva de Schumpeter (1983), que a considera como um aparato institucional de tomada de decisões políticas, um método de escolhas dos governantes, com eleições competitivas, colocando em discussão a dicotomia entre o que seria a “vontade geral” e as “vontades individuais” na materialização da democracia. O segundo item é dedicado a algumas relexões sobre a democratização no Brasil, contextualizando-a historicamente, com abordagem no período em que predominou o regime autoritário, e, na sequência, o processo de redemocratização, bem como os avanços advindos da Constituição Federal de 1988. Interessante destacar que esse percurso possui consequências relevantes para modelos de intervenção na conjuntura atual. Na perspectiva de construir uma discussão mais local acerca da materialização dos processos democráticos, o terceiro item apresenta o Programa Lagoas do Norte, escolhido como base material de análise, através do qual busca-se compreender como tem ocorrido a interação entre o referido Programa, enquanto estratégia de política pública, e as famílias afetadas, relação 255 assentada sobretudo, mas não somente, nas instâncias legalizadas de participação comunitárias, a saber: o Comitê e o Fórum Lagoas do Norte. As conclusões apontam que na relação entre Estado e sociedade, tendo por base os processos democráticos, a participação institucionalizada tem sido garantida conforme preconiza a Carta Magna de 1988. Contudo, especialmente no caso do Programa Lagoas do Norte, a sociedade tem buscado participar utilizando outros caminhos, os quais também materializam a democracia, possibilitando a construção de novos espaços de discussão ampliada, inclusive com a presença de outros atores sociais. Democracia: dialogando com algumas perspectivas No intuito de evitar equívocos quanto ao entendimento dessa categoria, faz-se necessário discutir conceitualmente sobre a forma como se apreende o termo democracia, uma vez que existem divergentes concepções. Contudo, é relevante compreender que se trata da relação estabelecida entre o Estado e a sociedade, sobre esta relação, os estudos absorvem relexões clássicas e produções mais recentes. Portanto, neste item faremos uma relexão da concepção clássica bem como das visões contemporâneas acerca da democracia A discussão inaugural ocorre com os autores contratualistas, que airmam que a democracia nasce a partir da extinção de um estado natural, onde não existem essas instâncias separadamente. Especialmente para Rousseau, o contrato social se estabelece quando os cidadãos abdicam de seus direitos em nome de uma autoridade coniável, a qual os resguardará. Segundo Rousseau (1978, p. 32): Encontra uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece. Para o autor, o Estado seria responsável pela segurança dos direitos de todos, garantindo as liberdades de cada um. Esse tipo de convivência beneiciaria a todos, uma vez que o Estado estaria a serviço da vontade coletiva, do bem comum. Apesar de entender que o homem no estado de natureza possuía bondade, o autor airma a necessidade do Estado para controlar as paixões e garantir a paz. Ainda para ele, a democracia é a forma ideal de governo, por respeitar o princípio da vontade geral. Desta forma, o Estado é a instituição que organiza o campo político, possui legitimidade e legalidade na elaboração das leis, devendo aplicá-las para suprimir possíveis conlitos, mas, sobretudo, para garantir direitos pre256 existentes como: liberdade e soberania popular. Airma Rousseau (1978, p. 74-76) que o Estado: É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política. Os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto é, governantes, e o corpo em seu todo recebe o nome de príncipe [...] chamo, pois, de Governo ou administração suprema o exercício legítimo do poder executivo, e de príncipe ou magistrado o homem ou o corpo encarregado dessa administração. Resgata-se das contribuições do referido clássico a importância da vontade geral como eixo essencial de atuação na relação entre Estado e sociedade. Contudo, é pertinente avançar desta concepção para entender como a democracia tem sido debatida no cenário contemporâneo, e com esse propósito apresentamos a apreensão de Schumpeter (1983). O autor faz relevante relexão acerca da democracia, partindo da clássica concepção de Rousseau, mas como diferencial aponta a inexistência real de um bem comum e de uma vontade geral. Sua obra inaugura uma maneira de pensar a democracia, reletindo sobre a democracia para além do que geralmente se concebe, ou seja como “vontade do povo” que conduz os processos políticos, pois considera esta como resultante de processos diversos que envolvem diferentes interesses. Schumpeter (1983, p. 301) diz que: Não há, para começar, um bem comum inequivocamente determinado que o povo aceite ou que possa aceitar por força de argumentação racional. Não se deve isso primariamente ao fato de que as pessoas podem desejar outras coisas que não o bem comum, mas pela razão muito mais fundamental de que, para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum provavelmente signiicará coisas muito diversas. Interessante perceber que ele faz referência ao caráter diverso das vontades individuais, bem como da complexidade de se garantir individualidades dentro de uma categorização generalista. Na visão schumpeteriana, a democracia nas sociedades modernas se fundamenta como um aparato institucional de tomada de decisões políticas, um método de escolhas dos governantes, com eleições competitivas, que, se forem periódicas, se constituirá como democracia. Neste caso, Schumpeter (1983, p. 321) airma que: 257 O papel do povo é formar um governo, ou corpo intermediário, que, por seu turno, formará o executivo nacional, o governo. Nossa deinição passa então a ter o seguinte fraseado: o método democrático é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor. Ressalta ainda que o voto do eleitor é decidido conforme seus interesses, bem como da relação que estabelece com o corpo governamental. Isso devido ao fato de que a política não consiste numa questão central na vida do cidadão, que na maioria das vezes é incapaz de perceber como as consequências de suas decisões políticas se materializam em suas vidas. Essa maneira de pensar a democracia é compartilhada por Dahl (1987), que a considera como um sistema político capaz de ser responsivo com todos os seus cidadãos. O autor aponta as condições e garantias necessárias para que exista uma democracia plena, mas conclui que nos modelos atuais ela não existe. Airma que no mundo real nenhum grande sistema é plenamente democratizado e denomina de poliarquia o regime em que essas dimensões ocorrem com maior frequência, ou seja, em que o direito de participar em eleições e cargos públicos, e ainda poder contestar o governo, são mais amplos (DAHL, 1987). A partir dos autores supracitados, é possível repensar os sistemas políticos contemporâneos ditos democráticos, e perceber que este título pode ser utilizado estrategicamente para que a sociedade se sinta contemplada, mistiicando o jogo manipulador que possa existir. Compreendemos então que o Estado deine as linhas mestras de participação e contestação, e quanto mais um sistema se aproxima da democracia, mais ele permitirá que ocorram formas de participação e controle da sociedade sobre ele. O jogo de interesses que envolve o Estado e a sociedade é permeado por uma tensa relação que conforma demandas diferenciadas e posições de poder diversiicadas. Para melhor entender como tem ocorrido esta relação na realidade brasileira, o item a seguir versa brevemente sobre como tem ocorrido a democratização no Brasil, ressaltando os processos participativos como um dos caminhos para a materialização da democracia. A democratização e os processos participativos no Brasil A democracia no Brasil é um tema instigante que nos remete a relexões acerca de como ocorreu esse processo, bem como cabe destacar aspectos antecedentes que marcam profundamente a realidade atual. Indubitavelmente, a Constituição Federal de 1988 é o grande marco da democracia brasileira, entretanto, iniciaremos a discussão percorrendo a história que antecedeu sua 258 promulgação. Considera-se relevante a obra de Ianni (1986) no tocante às análises da realidade brasileira no período compreendido entre os anos 1930 e o golpe militar de 1964. Destaca que boa parte da política econômica governamental reletia os interesses de grupos especíicos, no intuito de reformular a dependência estrutural que marcava a situação do país à época. Para o autor, as condições em que se deram a revolução de 1930, com a derrota dos grupos oligárquicos para as novas classes sociais urbanas, marcam um novo tipo de relação entre o Estado e a sociedade, situação que culmina no desenvolvimento do que ele denominou de Estado burguês, ou seja, houve uma aproximação simbiótica do Estado com a classe capitalista em ascensão no Brasil. Contudo, as consequências de tal aproximação levaram atores sociais a se organizarem e travarem intensas lutas políticas no pós Revolução de 30, contexto em que, segundo Ianni (1986), o grupo de Getúlio Vargas efetua um golpe de Estado e instaura a ditadura, sob a denominação de Estado Novo. Esse momento marca deinitivamente a supressão das poucas e frágeis instituições democráticas, ou que se aproximavam disso, existentes naquele período. Destaca-se ainda que o governo se baseava em um liberalismo urbano e supericial, de conotação ideológica e, sobretudo, voltado para as relações externas do país (IANNI, 1986). Sobre a implantação de regimes autoritários no Brasil, assim como na América Latina, O’Donnell (1986) aponta que o interior desses sistemas de dominação e exclusão dos setores sociais é marcado por tensões, consequentes por suprimir a cidadania e proibir o povo de invocar conteúdos de exigências de justiça individual. Interessante notar as relexões do autor sobre as consequências desses regimes. Para O’Donnell (1986, p. 23): [...] o substrato de tudo isso é a derrota do setor popular e de seus aliados, a reação ante a ameaça que sua ativação política implica para a continuidade de parâmetros básicos da sociedade enquanto capitalista e [...] a imposição de uma ‘ordem’ em particular baseada na exclusão política e econômica do setor popular. Percebe-se que historicamente o Brasil é marcado por fortes condutas autoritárias, com tradição de condutas não participativas, e não aceitação de questionamentos ou contestações. O que implica consequências graves nos períodos posteriores, que mesmo legalmente democráticos possuem corpos operacionais e atores políticos imbricados na herança de poder concentrado. Para Silva (1997), após a segunda metade da década de 70, as organizações populares proliferam no Brasil e consolidam um novo sujeito social na cena pública do país, que constrói e reconstrói novos valores políticos tais como a participação popular, a cidadania, a solidariedade, buscando construir uma nova 259 forma de gestão do interesse público. Este novo sujeito social persiste nos anos 80 e conquista o reconhecimento popular e governamental, de maneira que, a partir de então, passa a compor o cenário das decisões políticas. É neste panorama que a democratização no Brasil se desenha, com a sociedade buscando participação ativa nos processos políticos, de tal maneira que o período que antecedeu a promulgação da Constituição Federal de 1988 foi marcado por inúmeras manifestações sociais. Muito embora o processo de redemocratização no Brasil possua a Constituição Federal de 1988 como marco principal, cabe destacar a contribuição dos movimentos sociais e populares nesse processo. Fator que evidencia a tentativa de superar o passado escravista, elitista e autoritário da formação social brasileira. A partir de então, a consolidação dos direitos civis, políticos e sociais se estabelece através de sistemas de proteção social. Entretanto, não se pode perder de vista que o sistema capitalista permanece no cerne da sociedade brasileira, e que, portanto, muitos aspectos garantidos pela nova Constituição contrapõem-se à lógica do capital. Desta forma, o desaio emergente é materializar essa “era dos direitos” (BOBBIO, 1992) em tempos de restruturação capitalista. Para este desaio, a resposta continua sendo buscada através de processos em que a população participa da vida política do país, sendo que o foco passa a ser não somente a conquista de direitos, mas a sua efetivação, através das políticas públicas com as quais se respondem às demandas sociais. A partir de então, a população passou a procurar, de formas diferentes, interferir cada vez mais na administração pública, lutando pela viabilização de espaços de exercício da democracia, articulada com uma concepção de cidadania que permite sua participação efetiva no sistema político. Ao procurarem ampliar o espaço político de interferência dos cidadãos, os movimentos organizados assumem a condição de porta-voz de suas próprias reivindicações. Como sujeitos coletivos, consideram-se capazes de dialogar diretamente com o poder governamental (SILVA, 1997, p. 67). Ressalta-se que no caminho da democratização brasileira, a Constituição Federal de 1988 não deve ser entendida como ponto de chegada, mas sim como ponto de partida, de onde se começa uma história escrita e marcada pela diversidade de seus protagonistas. Possibilitar aos cidadãos brasileiros o direito de participar, questionar, sugerir, criticar e deliberar, demonstra um inquestionável avanço. Entretanto, devemos avaliar densamente se isso signiica efetividade democrática, uma vez que possibilitar não signiica necessariamente tornar real. Portanto, na compreensão da referida Constituição como marco de referência para a democracia brasileira, no sentido de (dentre outros aspectos) instituir a participação, surge na agenda de discussões a indagação de como 260 se concretiza essa participação da sociedade na esfera pública, e qual sua interferência nos processos de deinição ou redeinição das políticas públicas. Segundo Silva (1997, p. 65-84), no im dos anos 80 e início da década posterior, as primeiras experiências de “gestão administrativa democrático-popular”, inauguram possibilidades para a participação popular na gestão pública. Situação também favorecida pela nova perspectiva dos movimentos sociais, propondo alternativas e parcerias com o poder governamental. Para a autora, os organismos populares despertam para uma vontade política de participar da gestão pública, como forma de inluenciar o enfretamento das questões que lhes afetam cotidianamente. É necessário reletir que a busca incessante pela participação como possibilidade de efetivação de políticas foi germinada pelos diferentes problemas sociais decorrentes das transformações ocorridas (não somente, mas sobretudo) na esfera econômica, das quais destacam-se os processos de globalização, as mudanças ocorridas no âmbito do trabalho e a pauperização exacerbada. Para Carvalho (2014), as políticas públicas são a ação do Estado e funcionam como formas de redistribuição da proteção social, redução das desigualdades, enfrentamento da pobreza, bem como oportunizam a efetivação da inclusão social de grande parte da população. A referida autora argumenta que as mudanças ocorridas no mundo demandam que também ocorram mudanças nas políticas sociais e na gestão pública, airma que diante das transformações sociais o modelo tradicional de gestão tornou-se obsoleto e as tradicionais políticas públicas (com padrão de gestão centralizado e setorial) já não são suicientes para responder às demandas sociais satisfatoriamente. No que se refere à discussão sobre a perspectiva da participação social nas últimas décadas do século XX, Nogueira (2004) considera que sua consolidação ocorreu tanto entre técnicos e estudiosos da gestão pública, quanto entre formuladores e dirigentes dos programas de reforma do Estado, de maneira que os processos participativos passaram a ser incorporados como recurso estratégico do desenvolvimento sustentável e da formulação de políticas públicas. Na atualidade, a participação já não é mais considerada como simples mecanismo de pressão da população sobre as instâncias governamentais, pois expressa práticas sociais com real interesse de promover a solução de diferentes problemas comunitários. A gestão pública tornou-se um campo que simultaneamente coloca a participação como demanda social e como resposta governamental (NOGUEIRA, 2004). A participação na gestão pública tem se tornado cada vez mais real no Brasil, mas ainda existem muitos desaios postos para que ela ocorra plenamente. Silva (1997) destaca que para a reconstrução do sentido de participação popular e da gestão pública, muitas diiculdades serão enfrentadas, até que de fato se estabeleça uma nova relação entre o Estado e a sociedade. A autora ressalta que, no Brasil, uma nova gestão pública está sendo construída, 261 e airma que: Esta nova gestão publiciza espaços e decisões, anteriormente privativos dos governantes, da sua burocracia técnica e dos parlamentares que exercem tráico de inluências políticas, igurando os cidadãos como mero legitimadores pela via da democracia representativa (SILVA, 1997, p. 80). Carvalho (2014) também considera que é importante reconhecer que o Brasil iniciou um processo de descentralização e de municipalização, características democráticas e participativas, mas ressalta que ainda não se trata de um processo consolidado. Desta forma, entende-se que o processo de democratização no Brasil ainda está em curso, e que a participação social é um importante fundamento para sua concretização. E não obstante as conquistas consolidadas, ainda é forçoso reconhecer as lacunas ou diiculdades a serem enfrentadas para sua consolidação. O próximo item propõe reletir de maneira mais especíica sobre como esta relação entre Estado e sociedade tem ocorrido em Teresina, especiicamente na gestão do Programa Lagoas do Norte. O qual constitui-se como uma intervenção do poder público municipal em respostas às demandas da sociedade local, e que airma ser construído sob as perspectivas democráticas, possuindo espaços institucionalizados de participação comunitária. As instâncias de participação no Programa Lagoas do Norte em Teresina-PI Teresina, capital do Piauí, é uma cidade com características marcantes, dentre elas a de ser banhada por dois rios, tendo sido originalmente planejada para ocupar territorialmente a margem direita do rio Parnaíba e a margem esquerda do rio Poti. Entretanto, em 1960, foi reconigurada a partir da expansão de sua área urbana no sentido Leste. O encontro dos dois rios que margeiam a cidade ocorre na zona norte, região que se caracteriza pela presença de várias lagoas, as quais foram ao longo do tempo sendo invadidas e aterradas pela presença do homem. Anualmente, no período chuvoso, as famílias eram acometidas pelas águas destinadas às lagoas, sendo constantes as enchentes nessa região. Nesta região da cidade, a ocupação mais intensa ocorreu a partir do inal da década de 60, pelas classes mais empobrecidas da população, sem alternativas habitacionais em virtude da valorização de outras regiões. O intenso luxo migratório do interior para a capital e a distribuição de títulos de aforamento pela Prefeitura de Teresina são fatos que contribuíram para a ocupação desordenada do local, que em pouco tempo tornou-se bastante populoso. Lima (2003) destaca que a capital em alusão, como outras capitais nordestinas, 262 sofreu impacto do amplo processo de urbanização das décadas de 1960 e 1970, provocado, sobretudo, pelo movimento migratório campo-cidade, não apenas do interior do Piauí, mas também de unidades vizinhas, como Maranhão e Ceará. Tendo a primeira década citada inaugurado uma fase decisiva no desenvolvimento do espaço urbano, possuindo como fatores catalisadores o intenso luxo migratório e as grandes inversões governamentais em infraestrutura. Na década posterior, essa tendência de crescimento foi aprofundada, fato que gerou, de forma acentuada, maiores problemas sociais, que desaguarão na década de 1980 (LIMA, 2003). Referindo-se acerca das práticas de ocupação de terra em Teresina, a autora destaca que foram gestadas em meados da década de 80, quando terrenos vazios foram ocupados. Em Teresina, o itinerário provável do migrante é a favela, por ser local onde se pode morar gratuitamente, a salvo de impostos e taxas de água e luz, necessitando do mínimo possível para se sobreviver até a chegada da urbanização (LIMA, 2003). Segundo informações da Prefeitura Municipal de Teresina, o Programa Lagoas do Norte é uma resposta às demandas levantadas pelas próprias comunidades locais, sobre a problemática dos alagamentos constantes na região, por ocasião do processo de construção da Agenda 2015 de Teresina. O Programa prevê o fortalecimento da sociedade para a participação qualiicada no Programa, por meio da construção de arranjos que permitam o efetivo envolvimento da comunidade local no processo de busca de soluções e a participação na implementação das ações para a problemática da região de Lagoas do Norte (TERESINA, 2008). As reivindicações iniciais para intervenções públicas naquele cenário ocorreram através de participações comunitárias nas reuniões do Orçamento Popular de Teresina, de consultas públicas, ou mesmo contatos diretos com autoridades públicas. Mas nesta ocasião os pleitos reivindicavam o aterramento das lagoas, urbanização da área e canalização de águas por meio de galerias. Entretanto, embora estas propostas pudessem ter solução mais rápida e baixo custo, as repercussões ambientais agravariam o ecossistema da cidade. Desta forma, a Prefeitura buscou intervir de forma a resolver a problemática inicial, mas preservando a perspectiva ambiental local (CARMO; COELHO, 2014). A constituição do Programa Lagoas do Norte considerou as informações diagnosticadas através do Estudo Urbanístico e Paisagístico para a região das Lagoas do Norte, o qual destaca que: Os principais problemas identiicados são o aterramento indiscriminado das margens das lagoas e a consequente ocupação de moradias abaixo da cota de inundação, a devastação total de matas ciliares, o avanço sobre as áreas de recuo frontal dos lotes, a falta de saneamento básico, o lançamento de resíduos e esgotos ‘in natura’ diretamente nos cursos d’água, a infraestrutura de drenagem inadequada, a exploração 263 desordenada e irregular de jazidas minerais para construção civil, dentre outros. Portanto, o aspecto ambiental constitui o principal condicionante a ser considerado na formulação de qualquer intervenção proposta para a região, considerando-se também as condições socioeconômicas da população local (TERESINA, 2005, p. 32). O Programa Lagoas do Norte é caracterizado pela prefeitura como uma intervenção urbana de requaliicação que agrega ações urbanísticas, ambientais, sociais e econômicas, integradas num território especíico, com objetivo de promover benefícios individuais e coletivos, ao tempo em que altera substancialmente a paisagem urbana e a vida das pessoas. A área de intervenção do referido Programa está delimitada em treze bairros (Acarape, Aeroporto, Alto Alegre, Alvorada, Itaperu, Mafrense, Matadouro, Mocambinho, Nova Brasília, Olarias, Poti Velho, São Francisco e São Joaquim) da zona norte da cidade, que ocupam aproximadamente 1.300ha, com distância média de 6km do centro da cidade. Desta forma, a concepção do Programa Lagoas do Norte visa ao desenvolvimento sustentável dessa região da cidade, constituindo-se num conjunto de ações integradas de intervenção do Estado na realidade local para provocar mudanças qualitativas nas condições de vida da população com os seguintes objetivos: a) Desenvolver ações estratégicas visando a dotar a Prefeitura de estudos, projetos e programas nas áreas de saneamento, desenvolvimento urbano e meio ambiente de forma a possibilitar aos dirigentes o planejamento de intervenções e a identiicação de fontes de recursos que poderão viabilizar a implantação de obras e desenvolvimento de ações estruturantes ao longo do tempo; b) Atuar, a partir de ações integradas, de abrangência multi-setorial, em 13 bairros que compõem a região de Lagoas do Norte, buscando inserir uma população de baixa renda nas oportunidades de desenvolvimento urbano, econômico e social da cidade. Neste contexto o Programa visa a implantar ações de ordenamento de uso e ocupação do solo e de saneamento ambiental da região, visando a conter o forte processo de degradação ambiental veriicado na área local, além de implementar outras ações paralelas que visam à inserção social da população (TERESINA, 2007, p. 9). São três os componentes do Programa em alusão: Modernização da Gestão Municipal, Requaliicação Urbana e Ambiental e Desenvolvimento Econômico e Social. O primeiro componente trata da formulação de estudos, planos diretores e de ações de desenvolvimento institucional da Prefeitura de Teresina. O segundo liga-se diretamente à urbanização da região, compre- 264 endendo as seguintes ações: reestruturação do sistema viário; reurbanização dos bairros da região; implantação de loteamentos para reassentamento de famílias; construção e melhoria de unidades habitacionais e implantação de parques urbanos; a melhoria da infraestrutura de saneamento ambiental; a melhoria do sistema de abastecimento de água; a implantação do sistema de esgotamento sanitário; a melhoria do sistema de macro drenagem das lagoas e a recuperação de áreas degradadas. O terceiro componente enfatiza a educação sanitária e ambiental; instalação e melhoria de equipamentos sociais e comunitários; potencialização da capacidade de geração de emprego e renda; estruturação do comércio local; revitalização de núcleos de produção e comercialização; e fortalecimento do capital social (TERESINA, 2014). O Programa Lagoas do Norte está vinculado à Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação (SEMPLAN), gerido através da Unidade de Gerenciamento do Programa Lagoas do Norte, responsável pela coordenação geral do Programa, funcionando na sede da secretaria. O acompanhamento social às famílias é realizado pela Unidade de Projeto Socioambental (UPS), com sede próxima à área de intervenção do Programa, com equipe composta por técnicos de diferentes áreas: serviço social, psicologia, biologia, educação ambiental e recursos humanos. Segundo relatório da SEMPLAN (TERESINA, 2012) para implementação do Programa, as negociações entre a Prefeitura e o Banco Mundial se iniciaram em 2003.Em meados de março de 2004 foi aprovado o Documento Conceitual do Programa. Em março de 2008 foi aprovado o acordo de empréstimo, e em julho do mesmo ano foi assinado o contrato. O Banco Mundial é o principal agente inanciador, entretanto, a execução do Programa também conta com recursos do governo federal e da própria prefeitura. Anterior às ações do Programa, a sociedade civil local organizou-se espontaneamente para acompanhar as intervenções e iscalizar a implementação das obras, assim surgiu o Comitê Lagoas do Norte em 2008, composto por representantes das organizações populares dos treze bairros contemplados pelo Programa. O Comitê representa os interesses dos moradores do local e atua no planejamento, monitoramento e iscalização das intervenções, tendo participação direta junto aos operadores, gestores e agentes inanciadores do Programa. O Comitê Lagoas do Norte possui um regimento, o qual airma que seus membros devem observar o andamento das ações do Programa, veriicando se estão sendo realizadas correta e eicientemente, dentro do tempo previsto. Ainda neste documento, consta o dever dos seus membros em observar e registrar as reinvindicações populares acerca do referido programa. Além de combater qualquer tentativa de violação aos direitos das famílias atingidas pelas intervenções do programa. A diretoria do Comitê Lagoas do Norte é composta através de eleição, ocorrida de dois em dois anos (COMITÊ LAGOAS DO NORTE, 2008). Sobre a relação do Comitê Lagoas do Norte com a Prefeitura, identi265 icou-se que na perspectiva do primeiro, sua existência pode ser considerada um empecilho para a gestão, pelos questionamentos que faz, mas destacam que existe respeito e que suas reivindicações são consideradas. Na relação estabelecida com a coordenação do Programa, é possível perceber a tensão e os desaios apontados pelos estudiosos (que constam no item anterior). Conforme os estudos de Carmo e Coelho (2014), nas visitas realizadas à sede da Secretaria e nas reuniões que participaram, os membros do Comitê tomaram conhecimento de que por recomendação do Banco Mundial deveria existir um Fórum comunitário, onde deveriam ser negociadas entre o poder público e comunidade, as deinições sobre as intervenções do Programa. A partir disso, o Comitê passou a pressionar a Prefeitura para a criação deste Fórum, entendendo-o como importante espaço de discussão e deliberação conforme os interesses das famílias. O Fórum Lagoas do Norte, criado através do Decreto 11.300 de 9 de julho de 2011, alterado em 23 de janeiro de 2014 pelo Decreto Municipal 13.840, é composto pelo Secretário Municipal de Planejamento ou correspondente, 01 (um) representante da Unidade de Gerenciamento do Programa (UGP) e até 10 (dez) integrantes do Comitê Lagoas do Norte. Diante do exposto, ressalta-se quão imprescindível é a participação das famílias nos processos que as envolvem, bem como a importância das próprias famílias deinirem seus problemas, necessidades, anseios, diante dos limites e dos recursos de que dispõem. No referido Programa, a participação comunitária tem acontecido essencialmente a partir das instâncias supracitadas, mas as manifestações de quaisquer famílias ou grupos podem ocorrer independente delas. Entretanto, Carmo e Coelho (2014) concluem que o Comitê é uma entidade de luta pela garantia dos direitos da comunidade residente na área de intervenção do Programa. Para as autoras, “por meio dele a participação da população vem se ampliando passando a ser considerada nos processos decisórios e nas ações interventivas do programa, instigando, assim, a população a propor e indicar o que é de seu interesse” (CARMO; COELHO, 2014, p. 72). O momento atual do Programa Lagoas do Norte marca a inalização da primeira etapa e o início da segunda, em que, já na fase de cadastramento (em 2015) para identiicação de famílias passíveis de remoção, surge um diferencial: um conlito social protagonizado por famílias resistentes à remoção da Avenida Boa Esperança. Esse grupo de famílias organizou-se e criou a Associação Centro de Defesa dos Direitos Sociais Ferreira de Sousa, com objetivos de dialogar com o poder público municipal acerca das intervenções de remoção de famílias na região, em especial na Avenida Boa Esperança, localizada no bairro São Joaquim, em Teresina. A referida organização também tem buscado se articular com outros atores sociais, tais como o Ministério Público Estadual, a Defen266 soria Pública, entidades religiosas, instituições acadêmicas, entre outras, para os diálogos com os gestores do Programa Lagoas do Norte. Do contexto supracitado, pode-se compreender que não obstante os desaios postos na relação entre a prefeitura e o Comitê, e as discussões ocorridas através do Fórum - ou seja, dos processos participativos através das instância institucionalizadas -, é preciso construir também um diálogo com este novo organismo que emergiu. Conclusão As relexões ora sistematizadas buscaram compreender o signiicado da democracia na atualidade, procurando elencar os aspectos conceituais desse processo, reletindo as concepções clássicas bem como as visões contemporâneas. Diante disso, revela-se que no Brasil a história demonstra por muito tempo um longo distanciamento da democracia, sendo mesmo marcada por intervenções autoritárias em que a participação ou contestação social eram impensáveis. Entretanto, após a contextualização histórica, considera-se inegável o avanço legal conquistado a partir da Constituição Federal de 1988ainda que não se deva julgar o processo de democratização brasileira como indado. Ao contrário, pelo seu caráter recente, muito ainda precisa ser conquistado e efetivado. Concentrando-se no período posterior à década de 1960, é possível perceber um amadurecimento dos processos de democratização no Brasil. As duas décadas posteriores foram marcadas pelo surgimento e efervescência dos movimentos sociais pela rearticulação da sociedade civil, tendo como pauta coletiva a participação da sociedade nos processos decisórios. No que se refere ao Programa Lagoas do Norte, destaca-se que a presença do diálogo com a comunidade a partir das instâncias de participação existentes - o Comitê e o Fórum Lagoas do Norte - signiica que na relação estabelecida entre Estado e sociedade tem-se tentado constituir uma materialidade no que se concebe como processo democrático e participativo, apesar das limitações inerentes ao processo. Entretanto a presença dos diferentes atores coletivos necessita ser considerada como aspecto relevante no processo de gestão das ações que incidem sobre os problemas que caracterizam a realidade local, na perspectiva do seu encaminhamento. Portanto, além da participação nas instâncias institucionalizadas, faz-se necessário o diálogo e a interferência dos movimentos sociais, mais especiicamente do Centro de Defesa dos Direitos Sociais Ferreira de Sousa, o qual apresenta estratégias de negociação diferentes das utilizadas pelo Comitê Lagoas do Norte. 267 As relexões ora sistematizadas reforçam a compreensão de que assim como os grupos que representam as famílias apresentam diferentes estratégias, o poder público municipal também as responde de maneira diferenciada. Os achados desta pesquisa conluem para a conclusão de que nas relações tecidas entre o Estado e a sociedade, a democracia deve ser eixo central. Especialmente no Programa Lagoas do Norte, destaca-se o fortalecimento das instâncias e espaços de interlocução entre os movimentos organizados e o poder público municipal de forma a instrumentalizar o processo de planejamento e implementação de políticas públicas que levem em consideração as demandas advindas da população. Referências BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 19. ed. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Reimpressão, Elservier, 1992. CARMO, Francisca Daniele Soares; COELHO, Sâmia Suyane Cunha. Programa Lagoas do Norte de Teresina-Piauí: uma análise do processo de remoção e reassentamento de famílias. 2014. 151f. Monograia (Graduação em Serviço Social) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2014. CARVALHO, Maria do Carmo Brant. Gestão social e trabalho social: desaios e percursos metodológicos. São Paulo; Cortez, 2014. COMITÊ LAGOAS NO NORTE. Regimento interno do Comitê Lagoas do Norte. Teresina: Prefeitura Municipal de Teresina, 2008. DAHL, Robert A. 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DEBATES EM TORNO DA AVALIAÇÃO NO ÂMBITO DAS POLÍTICAS SOCIAIS: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-CRÍTICAS PARA PENSAR A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA AVALIATIVA NO BRASIL Sofia Laurentino Barbosa Pereira Simone de Jesus Guimarães Introdução Este artigo, elaborado a partir de relexões propiciadas pela disciplina “Avaliação de Programas e Políticas Sociais”, do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí, objetiva realizar uma análise teórico-crítica acerca da avaliação no âmbito de políticas sociais, de forma a contribuir com o debate em questão, à luz da literatura especializada no tema, dando ênfase a necessidade de criação de uma cultura avaliativa no cenário brasileiro. A metodologia adotada para a realização das análises, aqui apontadas, é de caráter qualitativo, consistindo em revisão bibliográica e relexiva sobre o tema, por meio do qual se procurou avaliar posições de diversos autores acerca da temática, dentre os quais: Arretche (2009), Barreira (2000), Carvalho (2009), Gomes (2001), Silva (2008), dentre outros. O artigo se desenvolve em três tópicos centrais: inicialmente, é realizada uma abordagem conceitual acerca da política social, contextualizando-a no cenário brasileiro, a partir da perspectiva teórico-metodológica dialética de Marx; em um segundo momento o debate se volta para compreender e conceituar avaliação, trazendo um breve histórico e questionamentos acerca da metodologia avaliativa tradicional; em seguida a discussão aponta os diferentes enfoques avaliativos, especiicamente voltados a perspectiva da efetividade, eicácia e eiciência; e, por im, o texto volta-se à reletir sobre a necessidade de construção de uma cultura avaliativa no Brasil, que conceba a avaliação como um instrumento democrático, visando a participação social e a politização da sociedade. Conceituando e contextualizando política social Estabelecer um conceito ou deinição sobre o que de fato é política social não é uma tarefa simples, na medida em que, segundo Pereira (2011), há uma imprecisão conceitual acerca deste termo, nem sempre se entendendo com clareza o que signiica ou quais são suas características e particularidades. Isso faz com que, muitas vezes, a mesma seja interpretada de forma equivocada, confun271 dida com ações pragmáticas, voluntaristas e clientelistas, ou mesmo, adotada uma concepção simplista, vista como mera provisão ou alocação de decisões tomadas pelo Estado e aplicadas verticalmente na sociedade. Nesta direção, adotar uma concepção de política social supõe sempre assumir uma postura teórico-metodológica, o que implica em posicionamentos políticos e visões de mundo. Assim, por trás de cada deinição de política social há ideologias, valores e perspectivas teóricas competitivas. Signiica, portanto, admitir que não há política neutra, conforme defendem Pereira (2011) e Behring e Boschetti (2011). Deste modo, a perspectiva de política social adotada neste trabalho baseia-se no método crítico-dialético, entendido como processo e resultado de relações complexas e contraditórias estabelecidas entre Estado e sociedade, no âmbito dos conlitos e lutas de classes que envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo (BEHRING; BOSCHETTI, 2011). Essa concepção tem como premissa a indissociabilidade entre as dimensões econômica, política e social do capitalismo e a presença das lutas de classes como constituinte e constitutivas delas (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011). A partir desta perspectiva teórico-metodológica defende-se que a política social é, em si mesma, complexa e dialeticamente contraditória, e por conta disso pode assumir diversos papeis, beneiciando interesses distintos de acordo com a correlação de forças prevalecentes em cada sociedade (PEREIRA, 2011). Nessa direção, a política social é aqui compreendida como produto da relação dialeticamente contraditória entre Estado e sociedade, e capital e trabalho. Silva (2008) corrobora com essa concepção, airmando que a política social é uma forma de regulação ou intervenção na sociedade, que articula diferentes sujeitos com interesses e expectativas diversas, representando um conjunto de ações ou omissões do Estado, decorrentes de decisões e não decisões, constituída por jogos de interesses, e é limitada e condicionada pelos processos econômicos, políticos, sociais e culturais de uma sociedade historicamente determinada. Refere-se, conforme defende Pereira (2011), a uma política de ação, que visa, mediante esforço organizado e pactuado, atender às necessidades sociais e cuja resolução ultrapassa a iniciativa privada, individual e espontânea, requerendo, portanto, uma deliberada decisão coletiva, regida por princípios de justiça social que devem ser amparados por leis impessoais e objetivas, garantidoras de direitos. Pereira (2009) apresenta as principais características das políticas sociais: 1) constituem um marco ou linha de orientação para ação pública, sob a responsabilidade de uma autoridade pública e sob o controle da sociedade; 2) visam concretizar direitos sociais conquistados pela sociedade e incorpo272 rados nas leis; 3) guiam-se pelo princípio do bem comum e não por interesses particulares; 4) têm como inalidade a satisfação das necessidades sociais. Entretanto, a política social vai assumir características particulares a depender dos interesses conlitantes em cada sociedade e das decisões que visam administrar esses conlitos. Elas mudam no tempo e no espaço, não tendo um só peril e uma única destinação. No Brasil, historicamente, as políticas sociais adquirem especiicidades que podem ser explicadas pelo próprio contexto sócio histórico e político do país. Marcado por um capitalismo tardio e desenvolvidas em um cenário autoritário, nos quadros de um modelo concentrador e socialmente excludente de desenvolvimento econômico, as políticas sociais brasileiras, segundo Draibe (1993), acabam por reproduzir o sistema de desigualdades predominante na sociedade, sendo marcadas por um caráter clientelista, corporativista, meritocrático e assistencialista. De caráter compensatório, utilizadas como instrumento de legitimação do poder e como mecanismo de controle para conter a insatisfação da população em relação aos perversos efeitos do padrão de desenvolvimento excludente do país, historicamente, as políticas sociais brasileiras se mostraram incapazes de incorporar os interesses da população que, no geral, estava ausente do processo de tomada de decisão pública (GOMES, 2001). No processo de redemocratização da sociedade brasileira, em um cenário de efervescência dos movimentos sociais, assiste-se a uma luta pela alteração do padrão de políticas sociais estruturadas no país, enquanto direito de cidadania. “Essas reinvindicações partem das críticas presente na América Latina, após o encerramento das ditaduras militares, sobre o mal-uso do dinheiro público e a inoperância do gasto social” (GOMES, 2001, p. 24). Tais reivindicações foram parcialmente atendidas através da Constituição Federal de 1988, sendo popularmente conhecida como “Constituição Cidadã” por apresentar traços inovadores, ofertando políticas sociais universais, pautadas na lógica do direito social, com o Estado assumindo a responsabilidade pela proteção social. Nessa perspectiva, Rosa et al (2009, p. 5) demarcam que: A Constituição de 1988 apresenta, com efeito, uma nova coniguração da gestão das políticas públicas, instituindo novos mecanismos nos processos de tomada de decisões, o que faz emergir um regime de ação pública descentralizada, no qual são criadas formas inovadoras de interação entre governo e sociedade, através de canais e estratégias de participação social. A intensiicação da ação e da participação social nas políticas sociais, intensiicadas após a Carta Magna de 1988, objetiva diminuir o grau de passividade da população e de dinamizar os direitos sociais no país. Conforme 273 assinala Draibe (19993), a participação social assume um papel novo: como forma de gestão da coisa pública. Isso faz com que as questões relativas a gestão e ao controle democrático de decisões governamentais adquiram uma centralidade jamais veriicada antes no país. Cabe demarcar que até então, no país, a gestão pública era essencialmente centralizadora e verticalizada, e as decisões tomadas pelo Estado pouco eram dialogadas com a sociedade. Compreendendo isso, acredita-se que o simples fato de a participação ser colocada como diretriz nas políticas sociais não signiica que vá ocorrer, automaticamente, a adesão da sociedade a mesma. Para tal há necessidade de uma transformação sociocultural, tanto no âmbito do Estado quanto da sociedade – o que será discutido mais a frente neste texto, sobre o viés do processo avaliativo das políticas sociais. A partir dessa breve contextualização, o próximo tópico objetiva reletir sobre o papel da avaliação nas políticas sociais, traçando seu histórico e evolução, e apontando a necessidade de se ir além da metodologia avaliativa tradicional. Debates em torno da avaliação de políticas sociais: para além da metodologia avaliativa tradicional Em que pese, a política social, ser entendida como estratégia de ação pública governamental, deve ser pensada, planejada, avaliada e guiada por uma racionalidade coletiva, na qual tanto o Estado como a sociedade desempenham papeis ativos (PEREIRA, 2009). É partindo dessa concepção que esse tópico objetiva reletir sobre a trajetória e importância da avaliação no âmbito das políticas sociais, trazendo para o debate as diferentes concepções acerca do tema. Tradicionalmente, a avaliação no campo social ocorreu em programas de políticas de saúde e educação, reletindo, principalmente um paradigma experimental quantitativo de correlação estatística e de aferição de produtos e resultados, rigor lógico e metodológico dos estudos realizados na área das ciências exatas e biológicas. Nesse cenário, segundo Barreira (2000), a avaliação era realizada visando comprovar o grau em que os objetivos previamente estabelecidos foram alcançados. Para Silva (2008), a expansão da investigação avaliativa de políticas e programas sociais se deu a partir da década de 1960 nos Estados Unidos que, naquele momento, tinham como preocupação central a construção de modelo que permitissem dimensionar o grau de sucesso ou fracasso das instituições públicas na área social. Dessa forma, esse esforço inicial foi marcado por um caráter quantitativista e neutralista da avaliação. Johnson e Silva (2014) reairmam que a incorporação da avaliação no âmbito da gestão e do processo de elaboração de políticas sociais encontra274 -se no cerne da crescente racionalização e modernização da administração pública. Essa concepção de avaliação, baseada no caráter estritamente econômico e técnico, é fundada no modelo funcionalista ou racionalista clássico, e emerge devido à preocupação excessiva com os instrumentos técnicos e metodológicos avaliativos, entretanto, desconsiderando os aspectos políticos da intervenção na realidade (GOMES, 2001). Nesta direção: A pesquisa avaliativa nessa época relete forte inluência das ciências econômicas, matemáticas e biológicas. Vivia-se o apogeu da corrente positivista na produção de conhecimentos. Assim o rigor lógico e metodológico que informava os estudos nas áreas das ciências exatas e biológicas era transferido para o campo da avaliação de políticas e programas sociais. (BARREIRA, 2000, p. 21). Assim, em sua emergência, a avaliação de políticas sociais, abalizada na concepção teórico-metodológica positivista, preocupava-se com a aplicação de rigorosa metodologia cientíicos para resolução de problemas sociais, fazendo com que o processo avaliativo fosse associado a ideia de controle. Silva (2008) airma que esse tipo de avaliação de políticas sociais criou uma “indústria” da pesquisa avaliativa, registrando-se grande desenvolvimento de cursos e treinamentos de graduação e pós-graduação em análise de políticas e pesquisas de avaliação em diversas universidades norte-americanas, diversas publicações e associações proissionais para congregar os avaliadores de políticas e programas sociais. Essa inluência do viés quantitativista, neutralista e tecnológico da avaliação passa a ser questionado a partir de 1980, na medida em que: Há um entendimento de que faltava considerar a inluência dos consumidores dos resultados da pesquisa avaliativa: decisores, planejadores e administradores. Passa-se a considerar que a pesquisa avaliativa é mais que a aplicação de métodos, sendo também uma atividade política e de gestão. Nesse sentido, precisa ser concebida como parte do processo da política pública e da administração pública, sendo considerada importante por todos aqueles envolvidos. (SILVA, 2008, p. 107). Compreendendo isto, essa concepção de avaliação, tecnicista, meramente quantitativista e burocrática, tem sofridos fortes críticas: pelo seu caráter externo; pelas debilidades metodológicas apresentadas; pela sua preocupação demasiada com a eiciência e incapacidade de apropriar-se do conjunto de fatores e variáveis contextuais e processuais; pelo baixo grau de relevância e utilidade dos produtos avaliados, que não correspondem às necessi275 dades de informações dos agentes socais envolvidos no programa. Isto, pois, a imagem da avaliação no campo social acaba por associar-se a avaliação de auditoria, controle externo de um dado programa ou a uma prática mais tecno-burocrática das instituições, no sentido de prestação de contas dos resultados dos programas à cheia, muito mais do que à comunidade ou aos usuários do programa (CARVALHO, 2009). A avaliação tradicional, segundo Sulbrandt (1993), é sustentada por uma concepção normativa-formal das políticas sociais, que presume que, através de condutas prescritas de antemão em um plano de execução, levando em consideração um conjunto de ações precisas, permitiriam alcançar os ins propostos. Entretanto, não levam em consideração as incertezas e complexidades que compõe o campo social, e as restrições que surgem dentro do ambiente dinâmico e turbulento de interação das forças políticas e sociais, com interesses e valores diferentes, inseridas em um meio organizacional complexo, múltiplo, fragmentado. E isso precisa ser levado em consideração no processo avaliativo. Nessa direção, Gomes (2001) airma que a avaliação nos moldes positivistas se revela inadequada para analisar as políticas sociais, por sua perspectiva meramente quantitativista, de caráter externo, com preocupação excessiva com a eiciência, eicácia e efetividade dos programas sociais, e sua incapacidade de apropriar-se do conjunto de fatores e variáveis contextuais e processuais. Corroborando com essa perspectiva, Barreira (2000) airma que essa concepção de avaliação, faz com que a mesma adquira um caráter burocrático, não sendo capaz de captar as dimensões sociopolíticas e culturais fundamentais para a compreensão do contexto social, assim como não capta as relações entre os sujeitos envolvidos. Logo, cada vez mais, vem sendo demandado aos pesquisadores na atualidade, por “rastrear” e inovar conceitos/metodologias avaliativas, pautando-se na rejeição crescente aos modelos tradicionais. Isto posto, busca-se uma concepção totalizante da avaliação, que apreenda a ação desde a sua formulação, implementação, execução, resultados e impactos, buscando não apenas mensurar quantitativamente a política, mas qualiicar suas decisões, processos, resultados e impactos (BARREIRA, 2000; CARVALHO, 2009). Assim, torna-se um desaio a avaliação das políticas para além dos modelos tradicionais, de forma a apreender a totalidade dos luxos e nexos entre a tomada de decisões, sua implementação, execução, resultados e impactos produzidos. A crítica às modalidades tradicionais de avaliação é variada. Carvalho (2009), por exemplo, airma que essas modalidades não levam em consideração as complexidades e especiicações próprias das políticas sociais, quais sejam: os resultados de uma ação social podem ser múltiplos e derivados de múltiplas causas; um programa social possui em geral mais de um objetivo; 276 pressupõe um conjunto articulado de iniciativas de várias políticas sociais; as decisões e implementação do campo social estão permeadas de opiniões, valores, pautas culturais, pressões sociais que estão em constante embate e negociação. Tudo isso deve ser levado em consideração na investigação avaliativa, de forma a captar a multidimensionalidade sinalizada pelas especiicidades do campo social. Compreendendo isto, defende-se, a partir da análise de Silva (2008), que a avaliação de políticas sociais deve ser percebida na relação dialética de duas dimensões a ela inerentes, que são as dimensões técnica e política. Dessa forma, não estar-se-á negando a perspectiva técnica da avaliação ou sua importância, mas apenas não se pode concebê-la isolada da dimensão política, que aponta que o processo avaliativo, além de ser realizado a partir de um conjunto de instrumentos técnico-cientíicos, é orientada por intencionalidades, na medida em que faz parte de um movimento das políticas sociais, que articula diferentes sujeitos, que apresentam interesses e expectativas diversas. Para Gomes (2001), resgatar os aspectos políticos da avaliação implica em concebê-la para além de um processo burocrático, na medida em que permite pensar as políticas sociais enquanto resultantes de um compromisso político presente desde a decisão até sua execução. Assim, não se pode negar que a avaliação de políticas sociais está fortemente ancorada em um conjunto de valores e noções sobre a realidade social, não se constituindo em um exercício formal “desinteressado” ou neutro (MELO, 2009). Seguindo essa direção, Baptista (2013, p. 114) airma que: A avaliação, via de regra, tem por base um ponto de partida peculiar, que determina o modo de perceber e de explicar as coisas e o mundo da pessoa que avalia. É este ponto de vista que fornece o referencial e os critérios sobre os quais se apoiam esses juízos. Isso signiica que avaliar é tomar partido em relação a realidade analisada (BAPTISTA, 2013, p. 114). Tal concepção é reairmada por Arretche (2009), que defende que a avaliação envolve, necessariamente, um julgamento, uma atribuição de um valor, uma medida de aprovação ou desaprovação de uma política ou programa social particular. Para a autora, não existe possibilidade de qualquer modalidade de avaliação de políticas sociais que seja apenas instrumental, técnica ou neutra. Johnson e Silva (2014) reairmam a importância de se considerar o aspecto eminentemente político da avaliação de políticas sociais, na medida em que elas são entendidas como decorrentes de um processo intencional do ser humano, desde a sua formulação a sua execução no cotidiano, tornando evidente seu caráter político, decorrente de complexas disputas de interesses. Nessa direção, Gomes (2001) recusa a visão da avaliação como uma 277 simples medida de desvio entre o esperado e o realizado no campo das políticas sociais, tal como foi concebida pelo paradigma positivista/funcionalista clássico. Ao mesmo tempo, não nega os aspectos técnicos metodológicos envolvidos na questão avaliativa, os apreendendo como importantes e imprescindíveis recursos a avaliação, mas que devem ser subordinados a perspectiva política. Assim, a autora defende que, na avaliação, para além da dimensão técnica, existe uma dimensão política e esta deve ser tomada em função dos interesses públicos. Pois, assim como a política social não é neutra, nem a avaliação pode ser. Logo, conceber a avaliação de políticas sociais como algo neutro e isento de questionamentos é um mito, sendo essencial desvelar seu caráter político-ideológico para direcioná-la para o exercício do direito democrático de controle sobre as ações de interesse público. A avaliação em diferentes enfoques: efetividade, eicácia e eiciência Atualmente, existe um renovado interesse pela avaliação de políticas sociais que, segundo Sulbrandt (1993), pode ser explicado por três grandes motivos: 1) a aguda crise social vivenciada por uma grande parte da população, caracterizada pelo crescimento da desigualdade social e da pobreza; 2) dada a essa realidade, uma parte signiicativa da população demanda ao Estado por sua proteção social, que satisfaça suas necessidades básicas, o que tem levado ao governo a desenvolver programas compensatórios a população mais necessitada; 3) o Estado é pressionado a ampliar a prestação de serviços sociais, mas airma estar com menos recursos, portanto, está interessando na eiciência e impacto do gasto social. Assim, para o autor, a avaliação adquire um enorme signiicado, pois supõe que os recursos sejam empregados com o máximo de eiciência possível, assegurando um salto de efetividade e eicácia. Ao mesmo tempo, pode ser um importante instrumento para melhorar o desempenho das políticas, permitindo o seu redesenho e aperfeiçoamento. A literatura especializada contemporânea, que estuda a avaliação de políticas sociais, tradicionalmente, a caracteriza em termos de sua efetividade, eicácia e eiciência. Esta distinção, fundamentalmente, é um recurso analítico proposto para separar aspectos distintos dos objetivos, abordagens, métodos e técnicas de avaliação. A avaliação de efetividade visa examinar a relação entre a implementação de um dado programa ou política social e seus impactos e/ou resultados, em termos de uma mudança efetiva nas condições de vida das populações atingidas pelo programa avaliado (ARRETCHE, 2009). Barreira (2000) assinala que na avaliação ocorre o confronto da política como o universal total da realidade objeto da intervenção, estabelecendo o 278 impacto objetivo e substantivo da ação na população-alvo. A efetividade objetiva é o critério de aferição da mudança quantitativa entre o antes e o depois da execução da política e/ou programa. Já a efetividade subjetiva veriica as mudanças qualitativas signiicativas e duradouras nas condições sociais de vida dos beneiciários da política. Entretanto, Arretche (2009) airma que os estudos avaliativos sobre a efetividade dos programas são complexos e mesmo raros, devido à diiculdade de demonstrar que os resultados encontrados estão causalmente relacionados aos resultados oferecidos do programa avaliado. E isso por várias razoes, desde a obtenção de informações sobre os programas e sobre as populações analisadas, até a impossibilidade de isolar a interferência das variáveis que intervêm em qualquer sistema aberto próprio da analise social. A avaliação de eicácia diz respeito a relação entre os objetivos de um determinado programa e seus resultados efetivos (ARRETCHE, 2009). A eicácia é analisada a partir do estudo da adequação da ação para o alcance dos objetivos e das metas previstas no programa e do grau em que as mesmas foram alcançadas (BAPTISTA, 2013). Para Arretche (2009) avaliação de eicácia é a mais aplicada nas avaliações correntes de políticas públicas pois é a mais factível e menos custosa de ser realizada, entretanto apresenta diiculdades na obtenção e coniabilidade das informações obtidas. Já a avaliação de eiciência se refere a relação entre o esforço empregado na implementação de uma dada política e os resultados alcançados (ARRETCHE, 2009). Segundo Baptista (2013), esta forma de avaliação incide diretamente sobre a ação desenvolvida, com objetivo de reestruturar a ação, com objetivo de obter, ao menor custo e menor esforço, melhores resultados. Arretche (2009) defende que a avaliação de eiciência é a mais necessária e urgente a ser desenvolvida, devido: 1) a exigência de racionalização do gasto público, em um cenário de crise iscal e escassez de recurso; 2) os “universos” populacionais a serem cobertos pelos programas sociais no Brasil serem de enormes proporções, e a ineiciência do gasto implica na impossibilidade ou na diminuição da oferta e do acesso de pessoas aos benefícios oferecidos; 3) ao dispor de recursos públicos e ao implementar políticas públicas e sociais, o governo está gastando dinheiro público, assim, a eiciência é um objetivo democrático, na medida em que o desperdício de recursos, a corrupção ou a incapacidade governamental são entraves a utilização de recursos publicamente geridos para inalidade efetivamente públicas. Assim, a investigação avaliativa tem como objetivo o exame crítico do grau de eiciência, eicácia e efetividade das políticas sociais, mas traz consigo também a possibilidade de se reletir sobre a tomada de decisões e formatação das mesmas, podendo ser um importante instrumento democrático, na medida em que, conforme aponta Arretche (2009), permitem o exercício de um importante 279 direito democrático, que é o controle social sobre as ações do governo. Nesta direção, Carvalho (2009) destaca que a missão da avaliação no campo social é realimentar ações buscando aferir resultados e impactos na alteração da qualidade de vida da população beneiciária, permitindo repensar as opções políticas e programáticas. A cultura da avaliação deve ser incentivada nas políticas sociais, de forma a democratizar informações, decisões, facilitando a participação cidadã na formulação, implementação e desenvolvimento de políticas e projetos. A construção de uma cultura avaliativa no cenário brasileiro No Brasil, a avaliação de políticas sociais não se constituiu em uma tradição sistemática, sendo muito mais motivada pelo caráter iscalizatório, polialesco, formal e burocrático. A administração pública no país, assim como de outros da América Latina, não desenvolveu uma cultura de avaliação do gasto público, especialmente no que tange as políticas e programas sociais. Ao contrário, as autoridades públicas demonstram explicito constrangimento e resistência a avaliação, entendida como uma atividade de caráter meramente iscalizatório (SILVA, 2008; LOBO, 2009). Segundo Gomes (2001) a avaliação nos moldes positivista teve forte inluência nos meios acadêmicos brasileiros, deixando suas marcas tanto na literatura especializada na área quanto em experiências práticas realizadas no país. Essa perspectiva avaliativa, ao desconsiderar os aspectos políticos implícitos, contribui para reforçar os problemas de exclusão reproduzidos nas políticas sociais brasileiras, na medida em que nega as contradições inerentes das políticas, que expressam, necessariamente, interesses distintos. Isto, pois, conforme destacado anteriormente, no Brasil, historicamente, as políticas sociais foram formatadas a partir de um contexto autoritário no interior de um modelo de crescimento econômico concentrador de renda e socialmente excludente, que trouxeram um caráter paternalista, clientelista, excludente da participação social, evidenciando a privatização do Estado por setores das classes dominantes, restringindo os direitos de cidadania (GOMES, 2001). No cenário brasileiro, conforme o autor citado, a avaliação ganha força, principalmente, no processo de redemocratização e transição política havidos no país a partir da década de 1980. Com o avanço dos movimentos sociais e a luta pela cidadania, as questões relativas a gestão e ao controle democrático de decisões governamentais adquirem centralidade. Entretanto, esse também foi um cenário de agravamento da questão social e escassez de recursos, o que gerou a necessidade de avaliação de políticas sociais, devido à urgência de tornar os agentes do Estado plenamente responsáveis de suas ações, contribuindo no debate democrático. 280 Esse cenário, de crise econômica e, ao mesmo tempo, redemocratização do país, impõe perspectivas diferenciadas para a avaliação de políticas sociais: 1) de um lado tem-se o imperativo econômico, devido a ser esse um contexto de restrição dos recursos econômicos e inanceiro, que demanda a redução de recursos para despesas sociais, na qual a avaliação é vista como essencial para aumentar a rentabilidade na aplicação dos recursos; 2) de outro, a avaliação na perspectiva de contribuição com o processo de democratização, em termos de uma melhor distribuição de riquezas e poder, contribuindo para reinvenção das bases de um novo compromisso social em torno da ideia de uma política social onde a economia é apenas um fator de restrição (GOMES, 2001). Nessa mesma época, segundo Silva (2001), aprofunda-se a crítica ao padrão de políticas sociais desenvolvidas nos países latino-americanos e, especiicamente, no Brasil, em relação ao mal-uso do dinheiro público e à desfocalização dos programas sociais em relação à população mais necessitada. Nesse contexto, os organismos internacionais, como Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, demandavam a reforma dos programas sociais, pautados na lógica da focalização, descentralização e privatização, colocando a avaliação como uma das exigências para o inanciamento das políticas, vista como condição para racionalidade do gasto público e rendimento dos recursos aplicados. Com a crise iscal, reforma do Estado e avanço do neoliberalismo, que se intensiicam no país a partir da década de 1990, a avaliação e o planejamento de políticas sociais se voltam, cada vez mais, para a lógica do mercado, pautados na busca exacerbada pela competitividade e não na incorporação dos cidadãos. Nesse panorama, a proposta da avaliação de políticas sociais retoma preocupação excessiva com a rentabilidade econômica em detrimento de sua rentabilidade social (GOMES, 2001). Dessa forma: No Brasil, a prática da avaliação de políticas e programas sociais ainda é muito restrita e desenvolvida mais como mero controle de gastos do que para realimentar os programas em desenvolvimento, servindo muitas vezes para punir e desenvolver uma cultura do medo. (SILVA, 2001, p. 46). Assim, a avaliação passa a ser utilizada, sobretudo, como instrumento de controle social das políticas sociais pelo Estado, na busca da eiciência dos gastos públicos e da eicácia dos programas sociais, com focalização nos grupos mais pobres e vulneráveis. Visa, portanto, meramente superar as restrições inanceiras do Estado, com redução e controle sobre os gastos, não se constituindo propriamente como um instrumento democrático e cidadão para se repensar e melhorar as políticas sociais do país. 281 Para Silva (2008), as determinações decorrentes da reforma do Estado e das exigências dos organismos internacionais geram consequências em relação a avaliação de políticas sociais em três grandes níveis: 1) criação de um mercado de instituições e proissionais concorrendo pelo fundo público, com grande incremento da avaliação desenvolvida por proissionais externos as políticas e/ou programas sociais; 2) conversão da avaliação em mera medição de resultados dos programas sociais; 3) redução da avaliação em sua dimensão técnica. Nesse sentido, Gomes (2001) aponta a necessidade de recuperar o sentido da avaliação como contribuição para garantir a efetivação e universalização dos direitos de cidadania, na medida em que seus resultados devem servir para instrumentalizar a população nessa luta por cidadania. Mas, os objetivos da avaliação não podem se restringir apenas a oferecer subsídios à atuação do Estado, na medida em que se entende que as políticas sociais, via de regra, devem envolver a participação da sociedade, sendo este um dos setores mais interessados nos resultados dessas políticas e programas sociais. Se pensada desta forma, a avaliação aparece como um momento político privilegiado e estratégia de construção da esfera pública, em uma perspectiva de crescente democratização da sociedade. Corroborando com esse pensamento, Silva (2008) aponta que, se considerada em uma perspectiva de cidadania, a avaliação pode se constituir como um mecanismo eicaz de controle social das políticas sociais por parte da sociedade. Historicamente não houve a construção de uma cultura avaliativa no país, que tradicionalmente se constituiu em um contexto de deiciência/ausência de participação social nas decisões públicas, falta de transparência nos gastos públicos e políticas sociais pautadas na lógica compensatória, clientelista, coronelista e assistencialista. A avaliação em uma perspectiva democrática objetiva ultrapassar sua concepção meramente técnico-burocrática, de forma a democratizar informações, decisões, incentivando a participação cidadã na formulação, implementação e desenvolvimento das políticas sociais. Conclusão Objetivou-se contribuir para se pensar sobre as diversas concepções de avaliação de políticas sociais, trazendo seus tradicionais enfoques de busca pela eiciência, eicácia e efetividade e, ao mesmo tempo, reletir sobre a necessidade de ultrapassar a concepção técnico-burocrático do processo avaliativo, como um mero requisito de controle de gastos, que não apreende a complexidade que compõe a realidade social nas quais as políticas sociais fazem parte. Tal perspectiva, que leva a avaliação a assumir uma postura polialesca, tradicionalmente se desenvolveu no cenário brasileiro, o que reforça a submissão das políticas sociais à lógica econômica. 282 Assim, reairma-se a necessidade de se reconhecer o caráter eminentemente político da avaliação, de forma que esta seja capaz de criar uma nova postura diante das políticas sociais, o que contribui, portanto, para construção coletiva da cidadania e para politização dos sujeitos envolvidos. Ainda nos dias atuais, o Estado e a sociedade brasileira não conseguiram ediicar as bases de fortalecimento pleno dessa perspectiva. Isso demonstra a urgência de apropriação dessa nova concepção de avaliação no cenário brasileiro, de forma a instrumentalizá-la para construção de uma cultura política pautada em valores democráticos. Referências ARRETCHE, Marta T. S. Tendências no estudo sobre avaliação In: RICO, Elizabeth M. (Org.) Avaliação de políticas sociais: uma questão em debate. São Paulo: Cortez: Institutos de Estudos Especiais, 2009. p. 29-40. BAPTISTA, Myrian Veras. Planejamento social: intencionalidade e instrumentação. 3 ed. São Paulo: Veras Editora, 2013. BARREIRA, Maria Cecília R. Nobre. Avaliação participativa de programas sociais. São Paulo: Veras Editora; Lisboa: CPITHS, 2000. BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política social: fundamentos e história. 9ed. São Paulo: Cortez, 2011. (Biblioteca Básica de Serviço Social, 2). CARVALHO, Maria do Carmo B. 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O incremento dos objetivos estatais gera a necessidade de melhor uso dos recursos públicos para melhores resultados, de forma que sistemas de monitoramento e avaliação de políticas públicas se fazem necessários como instrumentos de gestão garantidores de eiciência, eicácia e efetividade das ações do Estado; esses sistemas de monitoramento e avaliação também satisfazem às demandas pelo aumento da qualidade da democracia, que inclui mais transparência e responsabilização na gestão pública. O Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEGM) é um desses instrumentos. A avaliação das políticas públicas, realizada a partir do exame sistemático e rigoroso de uma política ou programa social governamental, em relação a metas a que se propõe e aos efeitos nos grupos sociais beneiciários (SULBRANDT, 1993) é considerada ferramenta indissociável do sucesso de gestão, podendo ser realizada em dois momentos: anterior e posteriormente à execução do programa social. A primeira (ex-ante) foi, historicamente, mais estimulada e induzida por organismos multilaterais de inanciamento, a partir de análises de viabilidade política, econômico-inanceira e institucional dos programas a serem executados. A avaliação posterior (ex-post), que não se confunde com o acompanhamento do programa , cuida dos impactos que a política social alcançou, icando muitas vezes comprometida em razão da inexistência ou ineicácia da avaliação ex-ante (LOBO, 1998). De acordo com Sulbrandt (1993), três são as formas clássicas de avaliação. A avaliação de metas tem como objetivo medir os efeitos de um programa em relação às metas a que foi proposto, contribuindo para uma subsequente tomada de decisões. A correta identiicação das metas, que por vezes são múltiplas, e as mudanças da mesma no decorrer do programa são os maiores entraves neste tipo de avaliação. A avaliação de impacto preocupa-se com os efeitos produzidos na população atingida por uma determinada política social. A avaliação de processos, por sua vez, 285 é aquela realizada conjuntamente com o desenvolvimento do programa, possibilitando reconhecer, concomitantemente, as estratégias e os mecanismos que obtiveram êxito e aqueles que fracassaram. Os sistemas de avaliação contribuem, pois, para o planejamento e para a formulação das ações do Estado, especialmente quando tem relevância as preocupações com a eiciência do gasto público, da qualidade da gestão e do controle sobre a efetividade das ações. A importância da avaliação nos diversos momentos do processo de políticas públicas, desde a elaboração e planejamento à implantação, possibilita, assim, a correção dos rumos indesejados, devendo ser, portanto, ferramenta de gestão incorporada, a partir do fornecimento de informações relevantes, ao processo de tomada de decisões (SILVA, 2014). Considera-se que a análise de políticas públicas (policy analysis) teria sido aplicada originalmente na Europa, em razão da preocupação pela satisfação das necessidades básicas da população, a partir da conciliação do conhecimento cientíico com a atividade prática dos governos. Nos Estados Unidos, a avaliação foi aplicada, nos anos 60, direcionada a políticas de combate à pobreza, caracterizada por excessiva preocupação com instrumentais técnicos e metodológicos. Na América Latina, a institucionalização dos sistemas avaliativos dependeu da ação e racionalidade de agentes externos, mais do que dos governos nacionais propriamente (JOHNSON; SILVA, 2014). No Brasil, o sistema de avaliação de políticas e programas públicos é anterior ao movimento de modernização de gestão pública, com a criação, em 1964, do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais Aplicadas (IPEA). Privilegiou-se, em um primeiro momento, a avaliação quantitativa, como uma atividade meramente iscalizatória, a exemplo do Sistema de Administração Financeira (SIAFI), do Ministério da Fazenda, que não permite a inserção de dados sobre resultado e eicácia dos programas, monitorando, fundamentalmente, insumos inanceiros (LOBO, 1998). A adoção deste modelo funcionalista clássico, privilegiando basicamente a análise e mensuração dos objetivos previstos, ao tempo que se ignora o aspecto político do programa, qual seja, a política pública como uma intervenção na realidade, envolvendo sujeitos e condicionada a interesses, vem sofrendo críticas por sua perspectiva quantitativista, assim como pela inadequação quando se trata de analisar os políticas sociais que, por sua natureza, presumem a interação de diversos fatores que não podem ser controlados pelas ações previstas nos planos (GOMES, 2001). Nos anos 90, após a elevação do princípio participativo como elemento fundamental na formulação de políticas, trazido pela Constituição Federal de 1988, Paula (2005) constata a crescente participação de diversos setores sociais na gestão pública, aliada às tentativas de reforma estatal, buscando-se um Estado mais ágil, eiciente, proissional e menor . De toda maneira, mesmo sendo algo que faz parte da história das políticas sociais, sem dúvida alguma, nessa nova conjuntura se colocam 286 grandes desaios. Esses desaios se apoiam em fatos, em planos diversos. O primeiro se observa no plano econômico, relativo à restrição dos recursos econômicos e inanceiros. Está na ordem do dia a redução de recursos para as despesas sociais, e a avaliação nesse sentido teria como inalidade contribuir na procura de soluções que permitam aumentar a rentabilidade na aplicação dos recursos. O segundo nível estaria relacionado à necessidade de contribuir no processo de democratização que busca hoje ganhar consenso na sociedade brasileira, em termos de melhor distribuição de riquezas e de poder. (...) É nesse contexto que a avaliação de políticas sociais se legitima, embora sua expansão no Brasil esteja relacionada em grande parte às exigências dos inanciamentos provenientes de organismos internacionais. (GOMES, 2001, p. 18, 24). Apresentar os resultados da aplicação dos recursos públicos é, hoje, dever do Estado, não só por sua obrigação constitucional, mas também para atender ao princípio da moralidade no qual deve se pautar a gestão pública, conquistando, dessa forma, a legitimidade de suas ações para o bem comum da sociedade. Ademais, o funcionamento do Estado pressupõe a existência de uma atividade inanceira responsável pela obtenção, gestão e aplicação dos recursos públicos nos serviços públicos de saúde, previdência e assistência social, educação e cultura, segurança, entre outros. Desta forma, pela tributação, o Estado arrecada os recursos e, por meio dos gastos públicos, devolve-os à coletividade. A referida atividade estatal deve pautar-se no princípio da justiça inanceira ou orçamentária, perseguindo a equidade na gestão inanceira pública, vista sob a ótica integrada das duas frentes do agir iscal do poder público, quais sejam, a arrecadação e o gasto. Vinculando-se, pois, tanto à receita quanto à despesa pública, o referido princípio guarda estreita relação com o direito fundamental à boa administração e governança públicas, podendo airmar-se, então, que a justiça inanceira reúne as ideias de justiça social e iscal, calcada no princípio da isonomia, a partir da atribuição de uma dimensão inanceira ao valor justiça (FERREIRA JR., 2015). Notadamente em relação ao gasto público, a mera prestação dos serviços por parte do Estado, entretanto, não é suiciente para que se dê como cumprida a previsão constitucional. Faz-se necessária a sua prestação com qualidade, de maneira eiciente, eicaz e efetiva . Relatório do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2014, p. 4) destaca esses aspectos: A atividade de iscalização dos governos, na atualidade, exige dos órgãos de controle bem mais que a aferição da conformidade com as normas de execução orçamentária e de regularidade das despesas. O cidadão hoje reivindica – com legitimidade – o acesso a elementos de informação que lhe permitem avaliar os resultados das ações dos gestores públicos e a sua adequação aos compromissos assumidos com a sociedade. É a participação democrática que decorre do exercício do voto e implica a prerrogativa de se exigir a correspondente prestação de contas. 287 A boa governança representa, pois, desde a capacidade que um governo tem para elaborar e executar suas políticas públicas, até os mecanismos democráticos de avaliação desse processo político-decisório, visando o atendimento com melhor qualidade das demandas dos cidadãos. Em outras palavras, traduz a capacidade que os governos têm de avaliar, direcionar e monitorar a gestão de suas políticas ou serviços para atender às demandas da população, utilizando-se de um conjunto de instrumentos e ferramentas adequadas para executar as ações planejadas, divulgando todas essas etapas à sociedade (NARDES; ALTOUNIAM; VIEIRA, 2014). No Brasil, a preocupação com a governança icou evidente notadamente a partir da reforma da administração pública, ocorrida nos anos 1990, realizada em um contexto de crise do Estado e escassez de recursos públicos. A reforma preconizava a necessidade da gestão pública voltada a aumentar a eiciência governamental, tornando necessária maior agilidade e lexibilidade do aparato governamental, tanto em sua dinâmica interna, como em sua capacidade de adaptação às mudanças externas (GUEDES, 2008). Diante dessa realidade, estudos acadêmicos e institucionais estão, constantemente, em busca de identiicar as diretrizes para a boa governança no setor público. Relatório do Tribunal de Contas da União (BRASIL, 2014, p. 10) assevera que “para que as funções de governança (avaliar, direcionar e monitorar) sejam executadas de forma satisfatória, alguns mecanismos devem ser adotados, em especial liderança, estratégia e controle” , destacando os dez passos para a boa governança: 1) escolha líderes competentes e avalie seus desempenhos, 2) lidere com ética e combata os desvios, 3) estabeleça sistema de governança com poderes de decisão balanceados e funções críticas segregadas, 4) estabeleça modelo de gestão da estratégia que assegure seu monitoramento e avaliação, 5) estabeleça a estratégia considerando as necessidades das partes interessadas, 6) estabeleça metas e delegue poder e recursos para alcançá-las, 7) estabeleça mecanismos de coordenação de ações com outras organizações, 8) gerencie riscos e institua os mecanismos de controle interno necessários, 9) estabeleça função de auditoria interna independente que adicione valor à organização, e 10) estabeleça diretrizes de transparência e sistema de prestação de contas e responsabilização. Assim, com vistas à concretização dos objetivos programados e ao aperfeiçoamento do desempenho governamental, em nome da eicácia, eiciência e efetividade das decisões políticas, como prática de boa governança, devem as políticas públicas ser constantemente objeto de monitoramento e avaliação. Sensível a essa realidade, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, em 2014, considerando que novas tecnologias de controle externo podem ser utilizadas para um novo modelo de iscalização, com foco nos princípios da economia, eiciência, eicácia e efetividade, criou o IEGM/TCESP – Índice de Efetividade da Gestão Municipal, modelo adotado pelo Tribunal de Contas do 288 estado do Piauí em 2016. O presente estudo, realizado a partir da análise dos primeiros resultados obtidos pelo IEGM/TCEPI, busca identiicar como os municípios piauienses estão adaptados a este novo modelo gerencial, a partir da análise das respostas aos questionários enviados pelo órgão de controle. Parâmetros da avaliação e do monitoramento pelo IEGM/TCEPI O IEGM (Índice de Efetividade da Gestão Municipal) adotado pelo Tribunal de Contas do Estado do Piauí em junho de 2016, no primeiro momento voltado apenas ao âmbito municipal, objetiva ser um indicador perene, apresentado anualmente, que proporcione uma visão da gestão pública dos municípios do Piauí em sete dimensões da execução do orçamento público: educação; saúde; planejamento; gestão iscal; meio ambiente; cidades protegidas e governança em tecnologia da informação. O TCEPI pretende, a partir deste indicador, mensurar na gestão pública municipal a relação entre os meios utilizados e os resultados obtidos, bem como o alcance dos objetivos e metas planejados; para avaliar não apenas a pertinência dos meios utilizados, como a celeridade na prestação do serviço e a adequação do preço. O TCEPI desdobrou o IEGM em sete dimensões, correspondendo a sete aspectos relevantes do orçamento e da gestão de políticas públicas: i-Educ (Educação), i-Saúde, i-Planejamento, i-Fiscal (Gestão Fiscal), i-Amb (Meio Ambiente); i-Cidade (Cidades Protegidas) e i-Gov TI (Governança de Tecnologia de Informação). O i-Educ mede o resultado das ações da gestão pública municipal na área da educação por meio de informações sobre avaliação escolar, planejamento de vagas, atuação do Conselho Municipal de Educação, problemas de infraestrutura, merenda escolar, situação e qualiicação de professores, quantitativo de vagas, material e uniforme escolares. O i-Saúde mede o resultado das ações da gestão pública municipal na área da saúde, com ênfase nos processos realizados pelas prefeituras relacionados à atenção básica, cobertura e ação do Programa Saúde da Família, atuação do Conselho Municipal da Saúde, assiduidade dos médicos, atendimento à população para tratamento de doenças como a tuberculose e prevenção de doenças como a dengue, controle de estoque de insumos, cobertura das campanhas de vacinação e de orientação à população. O i-Planejamento veriica a consistência entre o que foi planejado e o efetivamente executado. O i-Fiscal mede o resultado da gestão iscal por meio da análise da execução inanceira e orçamentária, das decisões em relação à aplicação de recursos vinculados, da transparência da administração municipal e da obediência aos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O i-Amb mede o resultado das ações da gestão pública municipal na área do meio ambiente, contém informações sobre resíduos sólidos, saneamento básico, 289 educação ambiental, estrutura ambiental e conselho ambiental. O i-Cidade (Cidades Protegidas) mede o grau de envolvimento do planejamento municipal na proteção dos cidadãos frente a possíveis eventos de sinistros e desastres. Por im, o i-Gov TI mede o conhecimento e o uso dos recursos de Tecnologia da Informação em favor da sociedade, com informações sobre políticas de uso de informática, segurança da informação, capacitação do quadro de pessoal e transparência. O IEGM representa, então, o índice inal que reunirá os resultados apurados nas sete dimensões apresentadas, de acordo com o seguinte peso: Gráico 1: As sete dimensões que compõe o IEGM. Extraído de: Tribunal de Contas do Estado do Piauí A partir das notas obtidas nos sete índices setoriais, o município poderá enquadrar-se nas seguintes faixas: Tabela 01: Descrição das faixas em que podem ser enquadrados os municípios Nota Faixa Critério A Altamente efetiva IEGM com pelo menos 90% da nota máxima e, no mínimo, 5 índices componentes com nota A B+ Muito efetiva IEGM entre 75,0% e 89,9% da nota máxima B Efetiva IEGM entre 60,0% e 74,9% da nota máxima C+ Em fase de adequação IEGM entre 50,0% e 59,9% da nota máxima C Baixo nível de adequação IEGM menor que 50% Extraído de: Tribunal de Contas do Estado do Piauí 290 Assim, além de o cidadão, os órgãos de controle e o próprio gestor municipal poderem monitorar a economicidade, a eiciência e a efetividade dos gastos públicos, é possível, a partir do IEGM, comparar desempenhos entre municípios semelhantes, possibilitando identiicar as melhores práticas e, consequentemente, contribuir para um melhor desempenho da gestão. Os resultados da avaliação do TCEPI e de tribunais de contas de outros estados são consolidados pelo Instituto Rui Barbosa. O IEGM nos municípios piauienses Em 2016, pela primeira vez, os 224 municípios do Piauí foram convidados a responder aos questionários elaborados pelo Tribunal de Contas estadual, relativamente à gestão do exercício inanceiro de 2015, tendo recebido resposta de 143 municípios, representando, portanto, a adesão de 63,84%. Constata-se, a partir dos gráicos elaborados pelo Instituto Rui Barbosa, inserido no Anuário Brasil IEGM 2015, a concentração dos municípios piauienses na faixa C+ (ou seja, não efetiva), bem como a ausência de municípios situados nas faixas A (Altamente efetiva) e B+ (Muito efetiva), o que, na prática, signiica que os serviços públicos, em nenhum dos municípios piauienses, estão sendo prestados de maneira eiciente e eicaz. Gráico 2: Municípios piauienses por faixa do IEGM. Extraído de: Tribunal de Contas do Estado do Piauí 291 Estes dados chamam ainda mais atenção quando se observa que não houve a validação, pelo TCEPI, das informações prestadas pelos municípios, quer dizer, as informações foram prestadas espontaneamente pelos gestores municipais sem que o Tribunal de Contas pudesse confrontar com a realidade vivenciada. Levando-se em consideração o resultado obtido em cada um dos índices, o gráico representativo das notas alcançadas pelos municípios do Piauí foi o seguinte: Gráico 3: Municípios piauienses considerando o resultado obtido em cada índice. Extraído de: Tribunal de Contas do Estado do Piauí Analisando tais dados, observa-se que, no i-Educ, há um maior número de municípios na faixa B (Efetiva), o que representa 40% do total de municípios que participaram do levantamento. Frise-se que apenas um município, qual seja, Colônia de Gurguéia, alcançou o patamar A (Altamente efetiva) nesta dimensão. Já na dimensão Saúde, a concentração se deu nas faixas B+ (Muito efetiva), 33% e B (Efetiva), 51%, merecendo destaque, também, que apenas o município de Regeneração alcançou o patamar A (Altamente efetiva). No i-Fiscal, prevaleceu a faixa B (Efetiva), com 46% dos municípios nesta situação. Contata-se, ainda, a partir do gráico, grande concentração de municípios na faixa C (Baixo nível de adequação) nos itens i-Planejamento (85%), i-Amb (55%), i-Cidade (80%) e i-Gov TI (80%), o que representa diminuto interesse dos gestores em políticas públicas voltadas ao planejamento, meio ambiente, sinistros e desastres e uso de Tecnologia da Informação em favor da sociedade. Esses dados, ainda que não tenham sido validados pelo TCEPI, repita-se, demonstram que os municípios piauienses obtiveram maior índice nos questionários referentes a dimensões historicamente mais iscalizadas pelos órgãos de 292 controle, quais sejam, educação, saúde e iscal. No que tange à saúde e educação, a legislação brasileira obriga a administração pública das esferas federal, estadual e municipal a gastar valores mínimos, o que, para os municípios, representa 15% para a saúde e 25% para a educação da receita do município com impostos e transferências. Ademais, por receber verbas federais, os municípios são também iscalizados pelo Tribunal de Contas da União e demais órgãos de controle federais, resultando numa maior atenção dos gestores à correta aplicação dessas verbas. Quanto ao i-Fiscal, medido a partir da análise da execução inanceira e orçamentária do município, bem como da obediência aos limites estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, tem-se que referidos limites de gastos, por expressamente constarem na legislação brasileira, são historicamente mais monitorados, possibilitando, em caso de descumprimento, a aplicação de sanções aos gestores infratores. As dimensões que os municípios obtiveram menores índices (Planejamento, Meio Ambiente, Cidades Protegidas e Governança de Tecnologia de Informação) representam preocupações recentes da administração pública brasileira, principalmente a partir da retromencionada reforma administrativa vivenciada nos anos 90, do que se conclui que, decorridas três décadas, os municípios piauienses ainda não se adaptaram ao modelo de gestão pública preocupada com a boa governança e com a eiciência e efetividade das políticas públicas, mas tão-somente à conformidade dos limites de gastos previstos na legislação. Analisando ainda os dados, a partir do porte de cada município que respondeu ao questionário, tem-se que, relativamente ao exercício de 2015, o único município de grande porte do estado (Teresina), obteve um patamar B (Efetiva). Dentre os municípios de médio , pequeno e muito pequeno porte, as notas alcançadas poderiam ser distribuídas de acordo com o gráico a seguir: Gráico 4: Municípios piauienses de médio, pequeno e muito pequeno porte, considerando o resultado obtido em cada faixa. Extraído de: Tribunal de Contas do Estado do Piauí 293 Constata-se, pois, a partir deste último gráico, que, independentemente do porte do município, há prevalência na faixa C+ (Em fase de adequação), veriicando-se, pois, uma necessidade de melhor gestão dos recursos públicos por parte dos municípios piauienses, uma vez que os serviços não estão sendo prestados de maneira eiciente e eicaz. Analisando os referidos dados, o Instituto Rui Barbosa publicou no Anuário IEGM Brasil um gráico de dispersão, comparando as notas obtidas pelos municípios piauienses no IEGM e no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), composto por indicadores de saúde, educação e renda, e criado, em 1990, para o Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Gráico 5: Comparação das notas obtidas pelos municípios piauienses no IEGM e no IDHM. Extraído de: Tribunal de Contas do Estado do Piauí A partir deste gráico, observa-se que a linha de tendência evidencia relação direta entre as notas obtidas no IEGM e no IDHM, assim, quanto maior a nota obtida no IDHM, mais bem colocado os municípios piauienses apareceram no ranking do IEGM. Ainda em 2016, o TCEPI, através da Resolução nº 27/2016, instituiu o Sistema de Aferição da Gestão Municipal (SAGM), destinado ao registro eletrônico do IEGM. A partir de então, tornou-se obrigatório o envio das informações, por meio eletrônico, ao Tribunal de Contas, pelos prefeitos. A obrigatoriedade do prefeito pode ser delegada, sem prejuízo 294 da responsabilidade solidária do delegante, conforme o caso, até o dia 30 do mês de abril de cada exercício inanceiro. A resposta aos questionários tornou-se, então, obrigatória a partir de 2017, relativamente ao exercício inanceiro de 2016, de forma que o não envio ou o envio fora do prazo das informações sujeita o gestor à aplicação de multa, bloqueio de contas, além de outras sanções legais. O que se observou, inicialmente, foi o baixo índice de adesão por parte dos gestores, mesmo sendo obrigatório, de forma que, no dia 26 de abril de 2017, há quatro dias para indar o prazo, apenas onze municípios piauienses haviam apresentado as informações. O TCEPI prorrogou, por essa razão, o envio dos dados para o dia 31 de maio de 2017. Ocorre que, mesmo com a prorrogação do prazo, a adesão dos municípios continuou insatisfatória e, no dia 22 de maio de 2016, apenas 102 municípios haviam respondido aos questionários. O Tribunal de Contas, então, passou ostensivamente a publicar matérias, principalmente em seu site, alertando os gestores da importância do IEGM e que as contas dos municípios seriam bloqueadas, em caso de não envio das informações. Em levantamento realizado no último dia do prazo, constatou-se que 216 dos 224 municípios piauienses responderam aos questionários do IEGM referente ao exercício inanceiro de 2016, representando uma adesão de 96,42%. Conclusão Em relação ao IEGM dos municípios do Piauí, relativo ao exercício de 2015, divulgado recentemente, observa-se, preliminarmente, que apenas 63,84% dos 224 municípios responderam ao questionário. Relativamente ao exercício de 2016, após tornar-se obrigatório e ante a iminência de os gestores terem as contas dos municípios bloqueadas, a adesão foi de 96,42%. Algumas aferições podem ser feitas a partir desses dados. Inicialmente, que até o presente momento não foi realizada a validação das informações repassadas pelos municípios. Em outras palavras, há possibilidade de os gestores terem preenchido os questionários com informações inverídicas apenas para cumprir os prazos estipulados. Pode-se aferir, também, ante a postergação do envio das informações solicitadas, que a preocupação da maior parte dos gestores municipais não é com a eiciência e efetividade das políticas públicas, a partir da avaliação e do monitoramento a que se propõe o IEGM. Muitos gestores, ao contrário, apenas responderam aos questionários após a advertência constante de que as contas poderiam ser bloqueadas. Ademais, pôde-se perceber que os municípios piauienses obtiveram maior índice nos questionários referentes a dimensões historicamente mais 295 iscalizadas pelos órgãos de controle e que encontram limites mínimos de gastos expressamente previstos na legislação brasileira, despreocupando-se, assim, com o modelo de gestão pública que deve ser adotada por toda a administração pública, voltada à boa governança e à eiciência e efetividade das políticas públicas. Referências BRASIL. Tribunal de Contas da União. Dez passos para a boa governança / Tribunal de Contas da União. – Brasília: TCU, Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão, 2014. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: MARE, Cadernos MARE, n. 1, 1997. Disponível em: <www.bresserpereira.org.br/papers/1998/A_ reforma_do_Estado_dos_anos_90.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2017. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. rev., ampl. e atual. 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Disponível em: < http://www.tce.pi.gov.br/iscalizado/iegm/>. Acesso em: 07 jan. 2017. 297 CAPÍTULO XIX. DIREITOS DOS IDOSOS E AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM DEBATE Juciara de Lima Linhares Cunha Maria do Rosário de Fátima e Silva Introdução O processo de envelhecimento, enquanto um processo natural da vida do ser humano é fenômeno global e expressa uma conquista da humanidade. Ele ocasiona uma série de transformações físicas, funcionais, psicológicas e sociais para a vida da pessoa que envelhece, transformações essas que estão diretamente relacionadas às condições de vida às quais está submetida em dada sociedade. As desigualdades sociais vivenciadas pelo idoso na sociedade capitalista coniguram uma expressão da questão social que é a base das lutas e reivindicações dos idosos e dos movimentos ligados a esse segmento, exigindo do Estado e da sociedade um maior compromisso com a cidadania dos idosos, através principalmente da formulação de políticas públicas sociais eicientes, universais e de qualidade voltadas para a defesa dos seus direitos. É nesse contexto que são criadas especialmente na década de 1980, com a Constituição Federal de 1988, políticas públicas especíicas para atender aos idosos (BRASIL, 2010). Essas políticas representaram um avanço, pois garantem, a esse segmento, direitos à saúde, previdência e assistência social, habitação, transporte, lazer, educação, cultura, esporte, dentre outros. Cabe destacar algumas legislações importantes: Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) - Lei nº. 8.742 de 1993 (BRASIL, 2011); a Política Nacional do Idoso (PNI) - Lei nº. 8.842 de 1994 (BRASIL, 2007a) e o Estatuto do Idoso - Lei nº. 10.642 de 2003 (BRASIL, 2007b). As diretrizes estabelecidas na LOAS materializam-se, em 2004, com a regulamentação da Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2005), resolução nº 145 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Nessa perspectiva, faz-se também necessário investir na avaliação dessas políticas públicas, haja vista que o ato de avaliar permite ao (s) gestor (es) aperfeiçoar suas ações no sentido de otimizar os recursos, ofertar serviços de maior qualidade e na contrapartida permite aos cidadãos o controle sobre tais ações do Estado, à medida que possibilita a participação desses na formulação, implementação e execução de programas e projetos sociais. A metodologia utilizada tomou como base a pesquisa bibliográica, que possibilitou um maior entendimento sobre as principais categorias trabalhadas, a partir das abordagens de autores como Netto (1992) Iamamoto (2010), Teixeira (2008), Paiva (2014), Arretche (2001), Silva (2014), entre outros. Para 298 tanto, parte-se de três questões centrais, a saber: por que o envelhecimento pode se tornar uma problemática social na vida dos indivíduos? Como e por que o Estado busca responder a essa problemática social? Por que faz necessário avaliar as políticas públicas antes, durante e/ou depois de sua execução? Tais questionamentos serão respondidos a luz do referencial teórico, a partir de uma análise crítica que possibilita uma maior compreensão do tema. Para tanto, o texto se desdobra em torno dos eixos temáticos: Envelhecimento, direitos dos idosos e avaliação de políticas públicas, abordando aspectos conceituais e análise da realidade social. Além disso, destaca alguns dos direitos previstos no sistema de proteção social brasileiro destinado aos idosos e ressalta a avaliação de políticas públicas como instrumento de aperfeiçoamento da gestão estatal e enquanto mecanismo de controle social da população sobre as ações governamentais. Por im, procura-se tecer considerações sobre a temática em debate, no sentido de apontar elementos importantes que venham a contribuir para construção de estratégias coletivas capazes de redirecionar a operacionalização dos gestores na condução de programas, projetos e serviços sociais, de modo a viabilizar alternativas que vão de encontro àquelas propostas pela ordem neoliberal. As relexões ora apresentadas são resultados parciais obtidos através da pesquisa de mestrado sobre os direitos dos idosos na proteção social básica e especial em Teresina-PI no período de 2010 – 2016 que se encontra em desenvolvimento no Programa de Pós-graduação em Políticas públicas na Universidade federal do Piauí. Envelhecimento, direitos dos idosos e avaliação de políticas públicas: avanços e desaios De acordo com Paschoal (1996, p. 27) o envelhecimento pode ser deinido biologicamente, socialmente, intelectualmente, economicamente, funcionalmente e cronologicamente. Este autor explica que “[...] as desigualdades dessas condições levam a desigualdades no processo de envelhecer”. Assim, Boutique e Santos (1996, p. 82) esclarecem: [...] é importante então considerar que não existe um só envelhecer, mas processos de envelhecimento – de gênero, de etnia, de classe social, de cultura – determinados socialmente. As desigualdades do processo de envelhecimento se devem basicamente, às condições desiguais de vida e de trabalho a que estiveram submetidas as pessoas idosas. Para efeitos de estudos populacionais e de formulação de políticas públicas, a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial da Saúde (OMS), deinem como idoso nos países desenvolvidos ou centrais, aquele com 65 anos ou mais e nos países emergentes e periféricos, a pessoa 299 com 60 anos ou mais (TORRES; TORRES, 2006). Para os sociólogos e psicólogos, entretanto, o processo de envelhecimento está associado a alterações biológicas, sociais e psicológicas, que podem evidenciar diiculdades de integração e adaptação social da pessoa que envelhece. Mendes (2005, p. 422) explica que o envelhecimento pode ser deinido com “[...] um processo natural que caracteriza uma etapa da vida do homem e se dá por mudanças físicas, psicológicas e sociais que acometem de forma particular cada indivíduo com sobrevida prolongada”. A noção de envelhecimento abrange a noção de velhice, uma vez que, esta se relaciona aos “[...] aspectos sociais, comportamentais e biológicos no processo de envelhecimento” (TEIXEIRA, 2008, p. 40). O aumento da expectativa de vida dos indivíduos, evidenciado por dados da Pesquisa de Amostra por Domicílio (PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), conirmam o signiicativo crescimento da população idosa no Brasil. O envelhecimento conigura um fenômeno global e uma conquista para a humanidade, que de um modo geral se deu em decorrência da redução nos níveis de natalidade e do progresso da ciência, contribuindo diretamente para avanços nas áreas da medicina curativa e preventiva e que proporcionou a melhoria nas condições de acesso da população aos serviços. O envelhecimento decorre também das conquistas alcançadas com as políticas públicas na área social e de saúde. No Brasil, estudiosos da temática, como Papaléo Netto e Ponte (1996), associam o aumento do contingente de idosos aos processos de urbanização e migração, em que os jovens que migraram há aproximadamente 40 anos, transformaram-se, nos anos 2000, numa parcela signiicativa de idosos das cidades do país. O envelhecimento, no entanto, não é vivenciado da mesma maneira por todos os idosos. Ele é um fenômeno complexo, pois a pessoa que envelhece está inserida num dado contexto social, político, econômico e cultural e é inluenciada por ele. Dessa maneira, para entender o processo de envelhecimento, é necessário considerar as condições de vida às quais a pessoa idosa está submetida, bem como as sociabilidades construídas a partir desse contexto. Assim, Góis (2010) airma que na sociedade capitalista os indivíduos são valorizados conforme a sua capacidade de produzir, de gerar lucro e de contribuir para a acumulação do capital. Assim, o idoso, por conta das vulnerabilidades orgânicas e sociais próprias da idade, em geral é afastado do mundo do trabalho, passando a ser tratado como alguém descartável, improdutivo e sem utilidade para o capital. É importante destacar que a velhice não está associada apenas ao fator biológico, como já foi dito, anteriormente, mas a determinantes econômicos, sociais, culturais e políticos que perpassam a vida dos indivíduos à medida que envelhecem. Ela pode assumir variadas 300 dimensões, uma vez que os indivíduos não envelhecem de forma homogênea. Tem-se que levar em consideração, portanto, o contexto social, político, econômico e cultural em que a pessoa que envelhece está inserida. Todos esses fatores contribuem diretamente para o processo de envelhecimento de um determinado indivíduo numa dada sociedade. Assim, Teixeira afirma: [...] considerando-se que o homem envelhece sob determinadas condições de vida, fruto do lugar que ocupa nas relações de produção e reprodução social, não se pode universalizar suas características no processo de construção das bases materiais da existência, porque os homens não vivem e não se reproduzem como iguais, antes, são distintos nas relações que estabelecem na produção da sociabilidade fundada pelo capital, em que desigualdades, pobrezas, e exclusões sociais lhe são imanentes, reproduzidas e ampliadas no envelhecimento [...]. (TEIXEIRA, 2008, p. 30). Nessa perspectiva, na sociedade capitalista, onde impera a lógica inanceira da acumulação, a exigência pelo aumento nos níveis de produtividade, a redução pelos custos e a ampliação das taxas de lucratividade, isso tudo, aliado às políticas de ajuste neoliberal, protagonizadas pelos governantes, afetam diretamente as condições de vida da grande maioria da população, uma vez que geram o aprofundamento das diversas formas de antagonismos, desigualdades e injustiças sociais. Essa realidade atinge os indivíduos nas suas diferentes faixas etárias, provocando-lhes um clima de incertezas e desesperanças, principalmente, para gerontes, considerados improdutivos e inúteis para o capitalismo, sendo descartados da esfera de produção. Nesse quadro, Birman explica: “[...] a velhice passa a ocupar um lugar marginalizado. Na medida em que a individualidade já teria realizado seus potenciais evolutivos, perderia então seu valor para o social” (BIRMAN apud ALMEIDA, 2003, p. 40). À medida que as desigualdades sociais provenientes das contradições e determinações da sociedade capitalista aumentam, no caso do Brasil, as condições materiais de existência dos idosos são, por conseguinte, diretamente afetadas, uma vez que estes vivenciam a precariedade das condições de vida e de cidadania que assolam o país, em especial as condições de vida da população pobre. Como a população que envelhece está crescendo em ritmo acelerado e as precárias condições de vida da maioria das pessoas vêm se aprofundando, a pessoa idosa convive com uma gama de problemas e necessidades produzidas pelas desigualdades e contradições da sociedade capitalista em seus aspectos gerais e no tocante as singularidades do ser idoso. Assim, Paiva (2014, p. 230) ressalta: Nessa sociedade, o ser idoso, no global, é considerado improdutivo como força de trabalho necessária aos processos principais de reprodução do 301 capital: um ser julgado descartável como força de trabalho propulsora de lucros, embora seja fundamental como comprador de serviços e consumidor de mercadorias. Essa mesma sociedade obriga ao idoso, muitas vezes, a permanecer no circuito do mercado de trabalho para sobreviver. Nessa perspectiva, a velhice transforma-se numa das expressões da questão social, sendo esta deinida, segundo Iamamoto (2008, p. 160), como o conjunto das “[...] desigualdades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por disparidades nas relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa amplos segmentos da sociedade civil no acesso aos bens da civilização”. Dessa maneira, as diversas formas de desigualdades sociais produzidas na sociedade capitalista atingem a população como um todo e o idoso, que por sua vez convive com as vulnerabilidades orgânicas e sociais próprias da idade. Como dizem as autoras Teixeira (2008) e Figuerêdo (2009), transforma-se, portanto, num problema social, fruto das desigualdades econômicas e políticas produzidas pelo capitalismo. Contudo, à medida que o idoso luta, reivindica e pressiona o Estado por melhores condições de saúde, educação, transporte, alimentação, lazer e renda ele ganha maior visibilidade e desperta a atenção do Estado no sentido de criar políticas públicas capazes de atender as necessidades e demandas desse segmento. Nesse contexto, na década de 1980, os grupos de idosos tiveram um papel muito importante, pois representavam um segmento populacional forte e que propunha ações e/ou sugestões que pudessem trazer melhorias consubstanciadas no texto constitucional de 1988. Assim, Pires (1994 apud PRADO, 2012, p. 84)) airma que [...] a interlocução política do idoso – principalmente pela via da organização dos aposentados e pensionistas – na década de 80 foi protagonista de um embate político sem precedentes: formou o segundo maior lobby da Assembleia Nacional Constituinte, perdendo apenas para o grupo ruralista. Em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, inaugurou-se no país um novo sistema de proteção social pautado na concepção de Seguridade Social, que segundo o art. 194 compreende um conjunto integrado de ações, de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Essas ações são competência do poder público que deverão ser organizadas com base em alguns objetivos, tais como: a universalidade da cobertura e do atendimento, a irredutibilidade do valor dos benefícios, a diversidade da base de inanciamento, entre outros. Ela expressa a consolidação da democracia, depois de 302 um longo período de autoritarismo vivido com a Ditadura Militar. A seção II, do texto constitucional, que trata das ações da Saúde, traz em seu artigo 196 a concepção de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Na área da saúde, além da Lei Orgânica de saúde (Lei nº. 8.080 de 19 de setembro de 1990) que dispõe sobre as condições de promoção e recuperação da saúde e sobre a organização e inanciamento dos serviços correspondentes, foram também instituídas a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, o Pacto pela Vida (BRASIL, 2006), dentre outras ações. Na seção III, que dá providências sobre as ações da Previdência Social, o artigo 201 coloca que os planos de previdência social, mediante contribuição, atenderão, nos termos da lei, a: cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, idade avançada; salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; proteção à maternidade, especialmente à gestante; proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes. Na área da previdência social, são concedidos aos idosos os benefícios da aposentadoria e pensão do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que para a sua concessão serão observados “[...] os critérios de cálculo que preservem o valor real dos salários que o aposentado recebia enquanto trabalhava”, sendo que tal valor é alterado conforme o reajuste no salário mínimo vigente (ZYLBERSZTAJN et al., 2005, p. 16). Na seção IV, que dispõe sobre ações da assistência social, no seu art. 203, consta que tais ações serão destinadas a quem dela necessitar, sendo que não é necessário contribuir para a seguridade social. Dessa forma, tem como alguns dos seus objetivos a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice. Como resultado da pressão política e social por parte da população, a CF/88 estabelece e legitima direitos à pessoa idosa, como pode-se observar no texto constitucional. Ela expressa uma mudança de paradigma de direitos da pessoa humana, ao passo que reconhece “[...] a liberdade, a igualdade, a solidariedade, o respeito e dignidade como valores construídos democraticamente, por meio da participação da sociedade pelo voto, pela transparência e pela crítica” (FALEIROS, 2012, p. 52). Tem-se, pois a garantia da proteção social, da participação por meio dos espaços democráticos de direitos, como os fóruns, conselhos e conferências e, também a provisão de viver esta fase de vida de modo mais digno. No que diz respeito aos avanços ocorridos pós Constituição de 1988, na área dos direitos sociais, é importante destacar a Lei nº. 8.742/93, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS); a Lei nº. 8.842/94 que institui a Política 303 Nacional do Idoso (PNI) e o Estatuto do Idoso (Lei nº brasil/2003). No que diz respeito a LOAS, esta lei regulamenta os direitos relativos à assistência social, garantidos na CF/88. Ela garante 1 (um) salário mínimo de benefício mensal denominado Benefício de Prestação Continuada (BPC), à pessoa com deiciência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Esta Lei garante ainda que poderão ser estabelecidos outros benefícios eventuais para atender necessidades advindas de situações de vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso, a pessoa portadora de deiciência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública. Contudo, Netto (2010 apud PAIVA, 2014, p. 226) diz que na contemporaneidade, a face da barbárie se evidencia na “[...] articulação da repressão aos pobres com a minimização dos programas de combate à pobreza [...]” – ela menciona o BPC. Segundo ela este benefício “destinado ao velho (a) pobre”, constitui “[...] um autêntico exemplo da proteção ao capital pela via do incentivo ao consumo em detrimento da proteção ao trabalho que se realizaria pela via da emancipação humana”. O coroamento dessa Lei relete-se na regulamentação da Política de Assistência Social (PNAS/2004), que se encontra organizada em dois níveis de proteção, a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. A Proteção Social Básica (PSB) “[...] destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação e, ou, fragilização de vínculos afetivos - relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deiciências, dentre outras)” (BRASIL, 2005, p. 33). Enquanto que na Proteção Social Especial (PSE), tem-se um [...] atendimento destinado a famílias e indivíduos que se encontram em situações de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos, psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas sócio-educativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras. (BRASIL, 2005, p. 37). Tanto na PSB, quanto na PSE os idosos constituem público usuário preferencial. Os serviços de proteção social básica serão executados de forma direta nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e os serviços de proteção social especial são direcionados para os Centros de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), conforme o parágrafo 3º do art. 6º da LOAS estes centros (CRAS e CREAS) constituem “[...] unidades públicas estatais instituídas no âmbito do SUAS, que possuem interface com as demais políticas públicas e articulam, coordenam e ofertam os serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social” (BRASIL, 2011, p. 7). Ainda com relação a esta lei, as instalações dessas instituições devem assegurar a oferta de serviços compatíveis com o público atendido e garantir a 304 acessibilidade às pessoas idosas e com deiciência. Em 1994, tem-se a legitimação da Política Nacional do Idoso (PNI), que conforme airma Torres e Torres (2006) resultou das reivindicações do Fórum Nacional do Idoso e de outros movimentos sociais da sociedade civil, das organizações não-governamentais, de grupos de idosos e de políticos que impulsionaram a luta em defesa dos diretos dos idosos. Esta política foi instituída visando assegurar os direitos sociais da pessoa idosa, criando condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade. Em 2003, outra grande conquista garantida ao segmento populacional da pessoa idosa foi o Estatuto do Idoso (Lei nº. 10.642 de 2003) que constitui um marco legal fundamental para a população idosa no país, pois estabelece normas de proteção integral ao idoso, assegurando-lhes tal como prevê no seu art.2º: “[...] todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (BRASIL, 2007b). Dessa forma o Estatuto do Idoso constitui um mecanismo legal, que assegura através de ações, patrocinadas, sobretudo pelo Estado, os direitos civis, políticos e sociais dos idosos, permitindo-lhes vivenciar essa fase de sua vida com dignidade. Contudo, é importante ressaltar que tanto a PNI, quanto o Estatuto do Idoso reforçam características de uma política que institui direitos, mas não expressa de fato ações efetivas de proteção, ao passo que o Estado divide responsabilidades sociais com a família e a comunidade. Nessa lógica, Teixeira (2008, p. 289) ressalta que: Essa “tradição” de fazer política social, em inteira consonância com as propostas de redução do Estado, dos gastos públicos, se contrapõe às tendências “universalistas” da política; promove pulverizações das ações, superposição de programas, projetos setorializados, fragmentados e limitados à resolução de problemas especíicos, locais, movidos pelos sentimentos humanitários de solidariedade e voluntariado, que diicultam a identiicação do problema de um ponto de vista global e estrutural, e de responsabilidade pública. Diante do conjunto de direitos destinados a pessoa idosa apresentados no texto, pode-se dizer que os avanços são inegáveis, após a promulgação da CF/88, contudo, é importante frisar que o Estado intervém conforme as necessidades do capitalismo. Dependendo de seu estágio de desenvolvimento a intervenção estatal se apresenta de modo mais atuante, forte, a partir da execução de políticas públicas, como também pode ser mais conveniente para o capital colocar-se como “mínimo” para o social. Na atual conjuntura imposta pelo ideário neoliberal tem-se uma regressão das funções do Estado, pois este, na grande maioria das vezes, atua sobre as manifestações da questão social de forma fragmentada e parciali305 zada. Nessa perspectiva, Yasbek (2001), Teixeira (2008) e Iamamoto (2010) enfatizam como se dá a intervenção estatal na contemporaneidade, tendo em vista a forte inluência do neoliberalismo e os rebatimentos para as políticas sociais, que se tornam cada vez mais focalizadas, descentralizadas, privatizadas e consequentemente mais precarizadas. Na contrapartida, tais ações do Estado interferem diretamente no cotidiano dos idosos, especialmente aqueles que não detêm as condições (econômicas, sociais, políticas e culturais) favoráveis à sua reprodução. Nesse aspecto, Yasbek (2001, p. 37) explica que: [...] o modelo é um Estado que reduz suas intervenções no campo do social e que apela à solidariedade social, optando por programas focalistas e seletivos caracterizados por ações tímidas, erráticas e incapazes de alterar a imensa fratura entre necessidades e possibilidades efetivas de acesso aos bens, serviços e recursos sociais [...]. O Estado mínimo, defendido pelo discurso do neoliberalismo, está diretamente associado à ideia de “cidadania coninada”, que é a “limitação das titularidades a mínimos biológicos de sobrevivência, a um grupo, a um tempo determinado ou a condições de atividade ou trabalho” (FALEIROS, 2012, p. 50). Dessa maneira, tem-se um contexto de precarização e redução dos direitos dos cidadãos, pois leva-se em consideração os ditames da ordem capitalista, que impõe a redução do papel do Estado e transferi as responsabilidades deste para o mercado e família, coninando a cidadania a mínimos biológicos ou a demandas restritas. Contudo, é importante ressaltar que “[...] não há dúvidas de que as políticas sociais decorrem fundamentalmente da capacidade de mobilização e organização da classe operária e do conjunto dos trabalhadores, a que o Estado, por vezes, responde com antecipações estratégicas” (NETTO, 1992, p. 29). As lutas e reivindicações constituem formas de resistência à ordem capitalista e à lógica neoliberal, de modo pressionar por melhores condições de vida para o conjunto da população, em suas mais diversas dimensões, defendendo assim a condição de cidadãos que a Carta Magna de 1988 garante a todos os indivíduos em todas as suas faixas etárias. Desse modo, o conjunto de atribuições e responsabilidades do Estado, via políticas públicas, o monitoramento, acompanhamento e avaliação das ações coniguram uma tarefa imprescindível nesse processo de implementação e execução das mesmas, no sentido de ver a materialização dos direitos dos idosos ou ao contrário a inoperância das ações no sentido de sua efetivação. Haja vista que a avaliação de políticas públicas, segundo Arretche (2001) se constitui como é um processo sistemático de análise que apresenta métodos e técnicas de pesquisa capazes de estabelecer a relação de causalidade entre aquilo que foi planejado e os resultados obtidos. Deste modo, a avaliação permite veriicar o grau de eiciência, eicácia e efetividade das 306 ações implantadas. Para Belloni et al. (2001) a avaliação é deinida como um processo analítico de produtos ou resultados de uma determinada atividade, fatos ou coisas, tendo em vista o seu aprimoramento. Assim, a autora entende a avaliação como: “[...] um processo sistemático de análises de uma atividade, fatos ou coisas que permite compreender, de forma contextualizada, todas as suas dimensões e implicações, com vistas a estimular seu aperfeiçoamento” (BELLONI et al., 2001, p. 15). Nesse sentido, Arretche (2001, p. 45) esclarece que “[...] avaliar segundo critérios alheios aos estabelecidos pelos formuladores implica necessariamente uma avaliação negativa, pois não é plausível esperar que um programa realize o que não estava em seu próprio horizonte de implementação”. Outra conclusão negativa, segundo a autora, é supor que um programa será implementado inteiramente conforme as deinições de seu desenho original. Existe uma enorme distância entre os objetivos deinidos no escopo inicial e as intervenções que se materializam, pois deve-se levar em consideração as possibilidades reais de implementação das ações previstas, ou seja, o contexto econômico, político e institucional em que se operam. Nessa perspectiva, deve-se avaliar levando-se em consideração os aspectos identiicados pelos formuladores na fase de elaboração de um programa ou projeto. O desenho original elaborado constitui uma ferramenta importante, pois representa o retrato de uma situação que se quer transformar, contudo, é necessário também está atento as ações no momento de sua implementação, haja vista que podem surgir situações em que sejam favoráveis a um redesenho e/ou reorganização dos objetivos para que se possam atender as demandas exigidas. Caso esses imprevistos sejam desconsiderados na sua fase de implementação, a efetividade do programa ou projeto ica comprometida, pois as particularidades que surgem ao longo do ciclo de vida devem ser analisadas com apreço para que seus implementadores e público alvo das ações não sejam penalizados e não se alcance as metas esperadas, provocando assim, prejuízos inanceiros as instituições/empresas/técnicos envolvidos e, principalmente, consequências negativas para a população. Nas ações voltadas a atender a pessoa idosa, a elaboração e implementação de programas e/ou projetos exige-se a inclusão de questões relacionadas ao processo de envelhecimento e deve-se considerar a especiicidade desse segmento populacional. Dessa forma, Borges (2012, p. 121) esclarece que: Muitas iniciativas exitosas estão implementadas por todos os recantos do País, de acordo com as especiicidades territoriais e culturais de cada estado ou município e, para a deinição desse atendimento, é fundamental considerar que o processo de envelhecimento é único e heterogêneo. Trata dos compromissos a serem cumpridos pelos gestores 307 em todos os níveis, para que os serviços prestados no âmbito do SUAS produzam seguranças sociais previstas aos seus usuários, conforme suas necessidades e a situação de vulnerabilidade e risco em que se encontram. Neste caso, a implementação representa também uma cadeia de relações entre formuladores e implementadores, que envolve um processo de negociações e jogo de interesses, contudo é importante priorizar uma maior sintonia, interação e diálogo entre estes atores, pois isto sim pode contribuir de modo satisfatório para o conjunto das ações em todas as fases de vida de um programa, tendo-se que considerar as especiicações das propostas ao plano local. Arretche (2001, p. 51) diz que “[...] a diversidade de contextos de implementação pode fazer com que uma mesma regulamentação produza impactos inteiramente diversos em diferentes unidades da federação”. Nesse sentido, faz-se necessário incorporar a implementação à avaliação, tendo em vista que as ações previstas em programas públicos são desenvolvidas em ambiente em constante mutação, “[...] mutação esta que é inteiramente alheia à vontade dos implementadores” (ARRETCHE, 2001, p. 51). Os implementadores, na condição de executores das ações, em determinados momentos, têm que fazer adaptações ao desenho original do programa para que este possa, de fato, alcançar o fim esperado. Todos os argumentos, destacados pela autora, conduzem para reforçar sua tese principal de que a “implementação modifica as políticas públicas”. Silva (2014, p. 23) por sua vez, defende a ideia que ocorre um desvio de base, ou seja, procura-se “[...] estruturar um sistema de monitoramento e avaliação amplo, sem preparar as organizações e os gestores dos programas ou famílias de programas para utilizar essa ferramenta como uma continuação necessária de sua atividade de planejamento estratégico”. Dessa maneira, o autor aponta para a importância de um sistema de monitoramento de políticas em que gestores e público alvo atendido estabeleçam um diálogo permanente para que venha a contribuir de modo positivo para execução das ações planejadas e direcionar ações futuras. Nessa perspectiva, pode-se dizer que o processo de avaliação de políticas públicas constitui uma ferramenta imprescindível ao aperfeiçoamento da gestão, bem como um mecanismo de controle social, onde a população pode oferecer sugestões e críticas que possam proporcionar melhorias para o desenvolvimento do conjunto das ações. Temse, pois, que observar os objetivos propostos e, a partir daí propor as estratégias capazes de concretizar tais objetivos. Dessa maneira, Barreira (2000, p. 30) afirma que: É um desvio conceitual considerar a avaliação apenas como um elemento de controle. O controle implica em uma fiscalização 308 exercida sobre as pessoas ou órgãos responsáveis pela execução de um programa, tendo por objetivo o cumprimento das normas estabelecidas. Em contrapartida, a avaliação se destina ao julgamento dos procedimentos e dos resultados obtidos tendo em vista indicar as mudanças necessárias nos planos e na execução. Torna-se fundamental uma avalição do processo de execução das políticas públicas, pois esta possibilita uma análise ampla e completa de determinado programa, sendo possível assim perceber entraves ainda durante o seu desenvolvimento, e ter de antemão que realizar redesenhos e novos direcionamentos para que as ações propostas sejam mais eicazes. Para Costa e Castanhar (2003) por meio da avaliação de processo se detecta possíveis defeitos na elaboração dos procedimentos, identiica-se barreiras e obstáculos dos procedimentos à sua implementação e gera dados importantes para sua reprogramação, através do registro de eventos e de atividades. De acordo com Draibe (2001) a avaliação possibilita revelar fatores que, ao longo da implementação, facilitam ou impedem que um dado programa atinja seus resultados da melhor maneira possível. Dessa forma, é preciso superar o entendimento de que registrar percentuais de cumprimentos de metas significa avaliar, o processo avaliativo é complexo e precisa levar em consideração os objetivos e a conjuntura em que o programa se encontra inserido. A partir dessas relexões, pode-se dizer que a avaliação de políticas públicas representa um campo fértil e de modo particular, só tem a contribuir com os estudos sobre a realidade dos idosos na cidade de Teresina, uma vez que oferece os instrumentos necessários para o aperfeiçoamento de determinadas instituições e/ou política pública. Tal processo avaliativo colabora para a legitimação e ampliação da democratização do acesso aos direitos socioeducativos, socioassistenciais, dentre outros garantidos a pessoa idosa. Conclusão Pode-se dizer que os avanços alcançados por e pelos idosos, ao longo das últimas décadas, garante-lhes em nível legal direitos à saúde, previdência social, assistência social, habitação, transporte, lazer, educação, cultura, esporte, dentre outros. Todavia não se pode esquecer de que mesmo diante das leis e garantias sociais, hoje existentes, o cotidiano dos idosos é permeado por muita pobreza e desigualdades sociais. As políticas públicas destinadas aos idosos procuram proporcionar-lhes melhores condições de acesso aos bens e serviços para que possam vivenciar a velhice de forma satisfatória, contudo, as mesmas nem sempre atendem a todos que delas necessitam e nem sempre com a qualidade necessária. 309 Há violações dos direitos dos idosos em toda a parte, seja proveniente da esfera pública governamental, seja proveniente da sociedade civil, seja resultante de acontecimentos que provém da esfera privada ou, até mesmo, do espaço familiar. Em síntese, muitos avanços foram conquistados pelos idosos com a regulamentação das políticas públicas voltadas para eles. No entanto, há que se admitir que, entre a teoria e a realidade tem-se uma enorme distância, pois as ações realizadas ainda estão muito aquém do esperado, tendo em vista o contexto de maior longevidade do atual cenário. Nesse aspecto as avaliações de políticas, programas e projetos voltados aos idosos são extremamente importantes, pois contribuem signiicativamente para o aperfeiçoamento da gestão do Estado, no sentido de redirecionar o desenvolvimento de suas ações de modo atender as demandas desse segmento populacional, levando-se em consideração suas particularidades locais, econômicas, sociais e culturais. Esse processo avaliativo permite acompanhar o passo a passo da implementação dos objetivos de determinado política, programa ou projeto, tornando-se mais fácil detectar possíveis falhas e a partir de então reorganizar as estratégias previstas de modo a garantir a efetividade das ações estabelecidas e, principalmente contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos idosos, com vistas a garantir seus direitos. Este momento de avaliação do processo de implementação das ações possibilita também a ampliação da interação e cooperação entre os agentes envolvidos (formuladores, implementadores e beneficiários), pois constitui um espaço propício ao diálogo entre esses agentes durante a execução de todas as etapas, de formulação e implementação, o que permite aprimorar a gestão e aumentar o leque de iniciativas exitosas no campo social e nas ações destinadas a pessoa idosa, que possam romper com visões conservadoras e expandir a possibilidade de efetivação dos direitos dos idosos. Nessa perspectiva, a avaliação oferece uma troca de experiências e saberes, amplia a participação de seus protagonistas e, colabora para o controle das ações previstas, vindo a proporcionar resultados positivos para os sujeitos envolvidos. Dessa maneira, ela também constitui instrumento de controle democrático, em que a população pode participar do seu processo de construção, proferindo sugestões e/ou criticas, no sentido de transformar sua realidade e, na contramão, procura-se apontar alternativas diferentes daquelas propostas pelo ideário neoliberal, no sentido de construir uma sociedade mais justa, igualitário e que ofereça melhores condições de vida para o conjunto da população, de modo especial, para os idosos. Por isso, diz-se que a luta e a pressão por parte desse segmento populacional e dos grupos sociais que lhes apoiam, deve ser um exercício permanente, pois a força desse conjunto de atores corrobora para a concretização dos direitos já conquistados ou daqueles a conquistar. 310 Referências ALMEIDA, Vera Lúcia Valsecchi de. Modernidade e velhice. In: Velhice e Envelhecimento. Revista Serviço Social e Sociedade, v. XXIV, n. 75. São Paulo: Cortez, 2003. p. 35-54 ARRETCHE, Maria Teresa da Silva. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In: BARREIRA, Maria Cecília Roxo Nobre; CARVALHO, Maria do Carmo Brant (Org.). Tendências e Perspectivas na Avaliação de Políticas e Programas Sociais. São Paulo: IEE/PUC-SP, 2001. p. 43-56. BARREIRA, Maria Cecília Roxo Nobre. Os debates teóricos e metodológico no campo da avaliação. In.: BARREIRA, Cecília R. N. Avaliação Participativa de Programas Sociais. São Paulo: Veras Editora; Lisboa: CPIHTS, 2000. p. 29-56. BELLONI, Isaura et al. 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A REALIDADE DAS FAMÍLIAS DO ENTORNO DO PARQUE LAGOAS DO NORTE APÓS A IMPLANTAÇÃO DAS AÇÕES DE RECUPERAÇÃO DA REGIÃO Jovina Moreira Sérvulo Rodrigues Introdução O contexto socioeconômico do Brasil se encontra cada vez mais comprometido com a problemática da pobreza e da desigualdade que, notadamente, tem se acentuado a partir do advento da globalização, consoante a ausência do Estado em face da realidade. Esse sistema tem se apresentado como uma resposta aos ajustes neoliberais cujos principais vetores convergem para a lógica de “[...] um Estado mínimo para o trabalho e máximo para o capital” (NETTO; BRAZ, 2006, p. 227). A realidade social permeada por altos níveis de diferenças e associada aos problemas referentes ao processo da metropolização e da urbanização aceleradas dos grandes centros e da grande maioria dos municípios brasileiros vem recrudescendo. Em face disso, a situação de precarização das formas de sobrevivência prevalece diante do contexto de desigualdade que repercute, sobretudo, nos moldes de moradia, de acesso à renda, de alimentação, de educação e de mobilidade, resultando no agravamento da problemática da saúde. Conquanto, entre as providências tomadas, de forma ampla e efetiva, pelos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU), ressalte-se a Declaração do Milênio, cujas Metas voltadas para o desenvolvimento sustentável, pactuadas no ano 2000 pela referida Organização, estão com prazo expirado desde 2015, período para o qual suas metas foram estabelecidas. Contudo, as ações pactuadas nesse documento ainda não vigoraram na sua integralidade. Nesse contexto, o desenvolvimento sustentável, que surge na perspectiva de atingir o crescimento econômico, minimizando as desigualdades e garantindo a preservação ambiental, por meio da formulação e da implementação de políticas públicas destinadas a dar respostas às demandas apresentadas na atualidade, integrou o compromisso irmado pelos 170 países reunidos na Conferência dos Líderes Mundiais, reconhecida como a Cúpula da Terra, que fez parte da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Rio 92, sediada no Rio de Janeiro. Esse compromisso integrou a Agenda 21 Global, que consiste em um 315 plano de ação estratégico destinado ao alcance do desenvolvimento sustentável das cidades cuja elaboração deve envolver a sociedade local, abrangendo os aspectos econômicos, ambientais e sociais da sustentabilidade. Teresina, capital do Piauí, vem projetando seu programa de cidade sustentável, por meio da Agenda 2015, que representa a materialização da Agenda 21 em nível local, sendo implementada com base nas diretrizes desse plano global e envolvendo em sua execução as dimensões: ambiental, política, econômica, cultural e urbanística. Esse município, assim como o estado do Piauí, de um modo geral vem sofrendo com a problemática da desigualdade, resultante das profundas transformações que perpassam o cotidiano histórico, político e econômico da sociedade e cujos relexos têm maior rebatimento na vida dos menos favorecidos. Com base nessa relexão, insere-se o estudo acerca da realidade das famílias pobres que residem no citado município, notadamente, sobre os aspectos relacionados à saúde dessas pessoas a partir da implementação do Programa Lagoas do Norte, cuja proposta de melhoria nas condições de vida e de saúde dessa população é prioritária. Nesse contexto, o presente artigo sistematiza os estudos que fundamentaram o projeto de pesquisa “O processo de implementação das ações do Programa Lagoas do Norte em Teresina e sua inluência nas condições de saúde da população que vive em seu entorno”, apresentado ao Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), em nível de mestrado, abordando o conceito de saúde, os seus desdobramentos na contemporaneidade, a implementação do Programa Lagoas do Norte (PLN), no qual está inserida a construção do Parque Ambiental Lagoas do Norte (PALN) em Teresina-PI, e as condições de saúde da população a partir da nova realidade trazida pelas ações desse programa. O conceito de saúde na contemporaneidade A saúde, antes do advento da Constituição Federal de 1988, era predominantemente concebida como a ausência de doenças físicas e mentais, razão pela qual os serviços voltados a esse âmbito priorizavam a atenção e a organização nos moldes curativos, privilegiando, dessa forma, a lógica biologicista do cuidado centralizada na prática da medicina curativa. A partir do contexto, historicamente, marcado pelo Movimento da Reforma Sanitária no Brasil, ocorrido entre as décadas de 1970 e de 1980, a saúde passou a ser vista sob uma nova ótica, com base na concepção ampliada do seu conceito, não somente como ausência de doença. Inspirada no novo conceito elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) cujo enfoque nos aspectos biopsicossociais foi o aspecto de destaque, ao deinir que “[...] saúde é o completo bem-estar físico, mental e social e não a simples ausência de doença [...]”, a concepção ampliada proporcionou um quadro de 316 mudanças, também, para o âmbito interventivo. Isso determinou, inclusive, a requisição de outros proissionais para atuar nessa área, levando a superação da prática exclusivamente médica e apontando para a necessidade do enfoque interdisciplinar e intersetorial (SCLIAR, 2007, p.36). De acordo com Cohn e Elias (2001), a saúde como direito de todos e dever do Estado, com acesso universal e igualitário à promoção, à proteção e à recuperação, foi instituída pelo texto constitucional e sua evolução resultou na Lei Orgânica da Saúde (LOS), a partir da qual passou a ser vista sob uma perspectiva ampla, que se materializou por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS, como sistema que regulamenta e materializa uma política de Estado, interage com as relexões e os movimentos da sociedade na busca por promover a melhoria da qualidade de vida e assegurar o direito à vida e à saúde dos seus cidadãos. Como estratégia de promoção da saúde, o SUS aponta como fatores condicionantes e determinantes: a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o esporte, o lazer e o acesso aos bens e aos serviços essenciais (BRASIL, 1990). A partir de então, estudiosos e pesquisadores passaram a defender práticas baseadas no alcance das dimensões históricas, políticas e sociais no âmbito das vivências individuais e coletivas, tendo em vista que a relação existente entre as mazelas sociais produzidas pela pobreza, pela desigualdade e pela exclusão social torna as pessoas vulneráveis às doenças, ou seja, conduz ao adoecimento (ALVES, 2012). Portanto, ressalta-se o reconhecimento dos determinantes sociais da saúde como um expressivo avanço dessa área por legitimar a comprovação de que a saúde não signiica apenas a ausência de doenças, mas o comprometimento com a ação de mobilização e de participação social, bem como da adoção de políticas intersetoriais que venham a favorecer o acesso da população que demanda bens e serviços. O Programa Lagoas do Norte em Teresina e as condições de saúde da população A cidade de Teresina, capital do Piauí, localizada na região Nordeste do Brasil, na conluência dos rios Poti e Parnaíba, compreende a única capital de estado nordestino situada fora da faixa litorânea, razão pela qual se desenvolveu de forma mais expressiva no âmbito do comércio, passando a exercer forte inluência sobre os estados do Maranhão, do Ceará, do Tocantins e do Pará, tanto nessa área comercial quanto nos campos da educação e da saúde. Esse município se caracteriza pelos seguintes aspectos: uma população de 814.230 habitantes (15º do Brasil); distribuída em 1.392 km2 de área; PIB de R$ 10,5 bilhões (47,8% do PI) e PIB per capita de R$ 12.941,00; índice de mortalidade infantil de 16,1 (PI: 23,1 e BR: 16,7) – 3º do Nordeste; rede de abastecimento de 317 água – rede geral – que abrange 96,5% dos domicílios e rede de esgotos que cobre apenas 17,0% dos domicílios; e, na área da habitação, 42,6% dos domicílios classiicados entre semiadequados e inadequados (IBGE, 2010). A zona norte da cidade, que compreende o espaço de atuação do Programa Lagoas do Norte, é reconhecida como uma área formada por um conglomerado de 34 lagoas, naturais e artiiciais, que compõem um sistema natural de acumulação de água da região. Nesse espaço, há um conjunto de nove lagoas interligadas, localizadas entre os rios Poti e Parnaíba, que abriga no seu entorno um grande número de famílias de baixa renda instaladas na região por meio de ocupações desordenadas e irregulares que representam risco à saúde e à segurança dessa população, respectivamente, pelas suas condições precárias e insalubres e pelas grandes escavações decorrentes do trabalho das olarias (FORTES, 2013). Devido a essas características, a região se tornou um ponto nevrálgico para a capital, pois, ao longo dos anos, acumulou sérios problemas de ordens social e ambiental ao mesmo tempo, sobretudo, nos períodos de chuvas em que ocorre a inundação das lagoas e das áreas baixas. Registra-se, também, a existência de poluição contínua das lagoas e das orlas, dos rios e dos canais, por se tratar de áreas utilizadas como depósito de lixo e desembocadura de esgotos lançados pelos moradores. Os registros fotográicos abaixo revelam a situação da região antes da implementação do PLN, principalmente, no período referente à estação chuvosa: Fotograia 1 – Pontes improvisadas Fonte: SEMPLAN (2014). Fotograia 2 – Regiões Peridomiciliares Fonte: SEMPLAN (2014). 318 Os espaços que compõem a região do Lagoas do Norte reúnem carências múltiplas, principalmente nos âmbitos da habitação, do saneamento ambiental, da geração de renda e da acessibilidade – no que se refere à mobilidade urbana de um modo geral. Além disso, a área de preservação ambiental existente se encontra inteiramente afetada tanto pela ação das ocupações irregulares quanto pela ausência de um sistema de tratamento especíico de esgotos e pela utilização desse espaço como local de despejo de resíduos e de drenagem urbana (TERESINA, 2014). A situação exposta compreende a realidade do recorte populacional estudado referente à região do entorno do Parque Lagoas do Norte que, por décadas, comprometeu a saúde dos moradores pelo risco de adoecimento devido à ausência de providências concretas que viessem a dar respostas satisfatórias aos diversos problemas da região. No entanto, a abrangência do Programa Lagoas do Norte está para além do recorte populacional mencionado, pois visa atender a um quantitativo de 110 mil pessoas dos 13 bairros que formam o conjunto das lagoas – Acarape, Aeroporto, Alto Alegre, Alvorada, Itaperu, Mafrense, Matadouro, Mocambinho, Nova Brasília, Olarias, Poty Velho, São Francisco e São Joaquim –, tendo como objetivos promover a integração da região às demais áreas da capital e implementar infraestrutura de saneamento e de drenagem, além de utilizar medidas interventivas voltadas para a requaliicação urbana e ambiental, por meio das ações do governo municipal (TERESINA, 2014). Na concepção de Bronzo (2009), as famílias pobres e vulneráveis, além da multiplicidade de privações de ordem subjetiva, manifestam também aspectos psicossociais que representam um entrave no enfrentamento ou na superação da pobreza, tais como: apatia, baixa autoestima, baixo nível de protagonismo e de autonomia, desesperança etc. Assim sendo, o acompanhamento social pode representar uma importante ferramenta capaz de estimular a mobilização de potencialidades a partir de ações sistemáticas na vida das pessoas no âmbito das relações intrafamiliares, sociais e comunitárias. Nesse sentido, foi deinida pela gestão do Programa Lagoas do Norte, como medida integrante da política de atendimento, a criação de grupos de apoio técnico, assim como a criação da Unidade de Gerenciamento do Programa (UGP) e da Unidade de Projeto Social (UPS), constituídos de grupos multidisciplinares – advogados, arquitetos, assistentes sociais, economistas, educadores ambientais, engenheiros, psicólogos etc. – destinados ao acompanhamento e ao suporte socioambiental, econômico, psicológico e jurídico às famílias beneiciárias do PLN durante o reassentamento – antes, durante e após a realocação das famílias, por um período de, no mínimo, seis meses. O acompanhamento socioambiental às famílias, um dos elementos do arranjo operacional do PLN, foi essencial no processo de intervenção junto a elas. E essas contribuições, incluindo as citadas ações de acompanhamento, foram registradas e deram origem ao Projeto Socioambiental (PSA), documento que 319 retrata o compromisso da Prefeitura Municipal de Teresina com o trabalho socioambiental e a descrição de todas as atividades que permeiam a ação de reassentamento e a sua interface com a comunidade. As intervenções referentes ao acompanhamento socioambiental de suporte às famílias compreenderam: mobilização, sensibilização da população, divulgação de informações das ações do programa; acompanhamento e controle da execução das obras; informações e esclarecimentos à população sobre a importância do Programa e os seus potenciais impactos; atenção diária à população beneiciária com a inalidade de atender reivindicações e reclamações; indicação dos grupos de remoção por áreas geográicas; negociação individual com as famílias; acompanhamento do reassentamento propriamente dito e atividades de apoio à reinserção da população no novo espaço. O Parque Ambiental Lagoas do Norte (PALN) e as ações focalizadas no entorno das lagoas A criação do Parque Lagoas do Norte, cuja inauguração ocorreu em 2012, na área do PLN, corresponde à primeira etapa do referido Programa. Possuindo, em sua área de inluência, outros quatro Parques, o PALN se constitui em um empreendimento de interesse urbano relevante (TERESINA, 2014). O espaço envolve em sua extensão físico-geográica a Lagoa do Cabrinha e a Lagoa do Lourival, cujas extensões compreendem, respectivamente, 260 metros de comprimento por 152 de largura e 400 metros de comprimento por 150 de largura. Sua composição engloba um conjunto de espaços formados por áreas de convivência, com quiosques, ciclovia, brinquedos, pista de patins e de skate, aparelhos de ginástica, quadras esportivas e vestiários (TERESINA, 2014). A implantação desse tipo de parque linear, segundo Fortes (2013), representa uma nova concepção de intervenção urbanística adotada pelo poder público em grandes capitais do país, como São Paulo, Curitiba e Cuiabá. Como parte integrante das obras do PLN, a construção do referido Parque teve importante signiicado nos processos de recuperação e de saneamento das lagoas, assim como de tratamento de suas margens. Na perspectiva de alcançar o desenvolvimento da Zona Norte da capital, por meio do Programa Lagoas do Norte, o PALN se encontra inserido na proposta de melhorar as condições de vida e o desenvolvimento socioeconômico e ambiental da população em geral, por meio da urbanização das áreas que margeiam as lagoas e da inclusão produtiva e representa o processo de redeinição e de reordenamento desse espaço urbano, que tem demandado a ação do poder público, pelo fato de ter sido, por muitas décadas, utilizado como depósito de lixo e de esgotos domésticos e populares de toda a região (SANTOS; LIMA, 2015). A requaliicação e a urbanização do parque abrangem a recuperação de vales e de grotões que se encontram degradados, ambiental e socialmente; a pro320 gramação e a implantação do ajardinamento e a arborização das áreas marginais; a construção de vias para passeios; a instalação de equipamentos esportivos; e a disponibilização de áreas verdes voltadas para o lazer e a contemplação do público em geral (FORTES, 2012). A proposta de solucionar, ou pelo menos de minimizar, os históricos problemas socioambientais presentes há mais de quatro décadas na Zona Norte remete a resultados de projeções grandiosas, não somente para a região das lagoas, como também para todos os bairros da localidade. Isso porque, em decorrência dos problemas instalados, as alterações provocadas na natureza trouxeram prejuízos de proporções elevadas à população daquela área (TERESINA, 2014). A iniciativa da construção de parques como o PALN, na concepção de Moura (2006), relete a importância de se encontrar saídas para a redução das agressões sobre a natureza, a im de que se alcancem condições ambientais favoráveis para a qualidade de vida das pessoas, bem como se busquem alternativas de harmonizar e de integrar o homem com a natureza e se corrobore com o papel da sustentabilidade do município e, consequentemente, com a saúde, uma vez que todos os mecanismos que envolvem condições sociais e ambientais acarretam em iniquidades quanto à qualidade de vida das pessoas. Por isso, estudos apontam que os determinantes sociais inluenciam em todas as dimensões da saúde das populações, tanto do ponto de vista do indivíduo quanto do da coletividade na qual ele está inserido. Com base nas observações realizadas in loco com a população, por meio das visitas domiciliares e institucionais, e após se promover uma comparação entre a situação antes instalada e a atual, reformada e saneada – vide iguras 1, 2 e 3 –, identiicou-se o êxito alcançado pela população e pela equipe técnica do Programa. Isso porque a implantação do Parque, com seus objetivos e suas metas, tem contribuído de modo signiicativo, tanto para a redução dos impactos negativos causados pela degradação ao meio ambiente quanto para a elevação da autoestima dos moradores. Com base no exposto, buscou-se examinar as intervenções implementadas, por se tratar de um contexto socioeconômico e político no qual as ações políticas são centralizadas, pouco transparentes e, muitas vezes, tratadas como paliativas. Portanto, é fundamental que se compreenda a formulação das políticas públicas, para que se possa entender que existe planejamento no setor público brasileiro. Em sintonia com o objetivo da implantação desses espaços construídos em várias partes da capital, tais como o Parque Ambiental Encontro dos Rios, o Parque Ambiental de Teresina, o Parque Ambiental do Acarape e o Parque da cidade (João Mendes Olímpio de Melo), o processo de arborização implementado pelo PLN no PALN apresenta como um dos seus principais objetivos a preservação da lora nativa da região. Essa estratégia faz parte da política ambiental que vem sendo praticada nos parques, nas praças e nos principais canteiros das regiões centrais de Teresina (TERESINA, 2014). 321 A trajetória da referida ação apresentou resultados positivos, na medida em que demonstrou ganhos signiicativos para o município, sob o ponto de vista ambiental, estético e cultural. Integram a proposta de arborização as seguintes espécies plantadas no Parque: angico branco, oiti, jenipapeiro, os vários tipos de ipê, carnaúbas, vários tipos de palmeiras (leque, mulambo e americana), garoba, ingarana, mamorana (ou manguba), madressilva, oiticica, sibipiruna, acácia azul, angico preto, pau d’água, ipê de jardim, jasmim, helicônia, bico de arara, espada de São Jorge e agave. Todas as mudas do Parque são cultivadas nos viveiros da Prefeitura de Teresina, e o trabalho realizado neles tem demonstrado grande eiciência na metodologia utilizada para a realização dos transplantes das citadas plantas nativas (TERESINA, 2014). O Parque possui também uma fauna relativamente diversiicada, que apesar de ser urbana, em sua maioria, apresenta algumas espécies de fauna aquática nativa, reconhecida por sua resistência na ausência de saneamento. Contudo, os animais mais visíveis nos entornos do local são as iguanas, os cágados, os jacarés e as garças. No contexto das ações em questão, há a previsão de ações de resgate da fauna local no decorrer das atividades referentes à limpeza das lagoas. E, atendendo a uma regra geral, o programa priorizou as espécies com maiores diiculdades de locomoção ou com outros impedimentos. Com relação a essa característica supramencionada, o cágado se tornou uma das espécies bastante conhecidas, por fazer parte da alimentação de algumas famílias da região. Isso porque, não obstante terem conhecimento de que as espécies das lagoas são impróprias para o consumo, os moradores se utilizavam da pesca de peixe e desses animais para consumo próprio. No entanto, ao elencar os resultados das ações de preservação da fauna implantadas pelo PLN, na redução dos históricos problemas socioambientais, por meio de entrevista, um dos técnicos do empreendimento assegurou que, a partir das ações de educação ambiental executadas como parte das dimensões do citado programa, os moradores apresentaram mudanças quanto a esse hábito de utilizar as espécies das lagoas para consumo alimentar. Inclusive, depoimentos revelaram a mudança no nível de conscientização das pessoas quanto ao consumo do cágado como uma das ações que tem repercutido positivamente, ou seja, tem resultado na diminuição da pesca e do consumo dessa espécie. As ações implementadas no entorno das lagoas estão relacionadas com a inalidade econômica do programa, que abrange as ações de geração de emprego e de renda, compreendendo os pequenos empreendimentos mercantis que estão sendo instalados em locais especíicos do Parque, na forma de pequenos comércios de artesanato e de quiosques de comidas típicas. O espaço tem aproveitamento deinido também no âmbito do turismo, constituindo-se, inclusive, em um dos pontos turísticos mais visitados do município, e no desenvolvimento de atividades culturais na região, uma vez que integra 322 o projeto o Teatro do Boi, um importante centro de manifestações artísticas em que funciona uma biblioteca e são oferecidos cursos de capacitação proissional, como de cabeleireiro e de informática e outros nas áreas de arte e de cultura, como música, balé e outras danças. A partir do processo de ambientação que deu origem ao Parque, vislumbrou-se a valorização imobiliária da região e, paralelamente, as alterações no cotidiano dos moradores daquela área, com a respectiva melhoria da qualidade de vida, pois o local, atualmente, representa um importante espaço de prática de atividades físicas. As vantagens trazidas pelo Parque Ambiental Lagoas do Norte para a capital e, sobretudo, para o cotidiano de seus moradores se traduzem nas oportunidades elencadas pela própria comunidade, por meio de suas manifestações, sejam elas de forma individual ou coletiva, por intermédio das lideranças comunitárias e do comitê local, constituído por membros da comunidade para acompanhar as ações do Programa, bem como dos proissionais que atuam na região, principalmente aqueles que fazem parte da área da saúde, quando questionados sobre a repercussão das ações do PLN na melhoria da qualidade de vida das famílias que residem no local. Fotograias 3, 4, 5 e 6 – Lagoas do Norte depois da implementação do parque Fonte: SEMPLAN (2014). 323 O registro fotográico acima permite observar que, a partir da implementação do Parque Ambiental Lagoas do Norte, a população que reside no entorno das lagoas passou a usufruir de uma rotina diferenciada, com qualidade de vida. Isso porque esse empreendimento permitiu às pessoas uma área de passeio, com condições de mobilidade seguras e acessíveis, evoluindo de um espaço cuja locomoção era limitada ou impossibilitada para uma área recuperada, livre de sujeira, que atende aos padrões arquitetônicos modernos e dotada de requisitos voltados para a acessibilidade. E, para atender a essa perspectiva da melhoria da qualidade de vida, foram instalados, também, um parque infantil e uma academia popular, a im de proporcionar à comunidade novas condições de vivência por meio de atividades físicas e de lazer. O Parque Lagoas do Norte se traduz no resultado de um projeto implantado pelo poder público municipal como resposta às demandas por intervenções sociais, econômicas, habitacionais, de infraestrutura e de requaliicação do meio ambiente que têm como objetivo melhorar as condições de vida e o desenvolvimento socioeconômico e ambiental da população em geral, por meio da urbanização das áreas que margeiam as lagoas. O empreendimento propiciou expressivas mudanças na vida da população do seu entorno, mediante a melhoria habitacional (pela reforma e pela construção de domicílios), a inclusão produtiva e o incentivo ao contexto socioeconômico, tendo ações com ênfase na educação sanitária e ambiental. Portanto, considerando-se que as políticas e os programas sociais representam instrumentos capazes de dar respostas às demandas apresentadas por diferentes contextos de vulnerabilidades e de riscos que perpassam o cotidiano dessas famílias, o Programa Lagoas do Norte se revela em um importante mecanismo de política pública destinado a solucionar as problemáticas da habitação e da saúde instaladas naquela região, pela sua proposta de requaliicação ambiental, de recuperação das lagoas e de realocação das famílias a partir da reconstrução e da reforma de moradias de modo a torná-las mais adequadas, promovendo, assim, a reconstrução da qualidade de vida da população do entorno do Parque. Segundo a percepção de Alves (2012), os diferentes formatos de convívio e de relacionamento das pessoas em sociedade reletem, de modo signiicativo, nas condições de saúde. Sendo assim, a saúde, se concebida como relacionada às necessidades básicas dos seres humanos, como um meio de se conviver de forma digna, equivale ao entendimento de que o processo que perpassa o estado de saúde para o de doença está vinculado à determinação social sob a égide da cidadania. Consoante a esse entendimento, essa autora menciona que a própria OMS tem fundamentado seus estudos e suas concepções no entendimento de que a análise da saúde deve perpassar pelos determinantes biológicos, tais como idade, isiopatologia, fatores genéticos etc. 324 Com efeito, foi com base nessa concepção ampliada que a Constituição Federal de 1988 legitimou a saúde como um direito de todos, sendo que a materialidade dessa conquista ocorreu por meio da Lei Orgânica da Saúde (LOS) nº 8080, de 1990, período a partir do qual essa categoria ganhou status de política pública, propiciando, porém, a descontinuidade das lutas pela reforma da saúde, o que, segundo Ferreira (2001, p. 167), torna fértil a noção de que “[...] com a lei são resolvidas as expressões da questão social concorre para que a maioria dos direitos se torne inexequível”. Pautados nessa concepção, autores como Buss e Pellegrini Filho (2007) e Alves (2012) chamam a atenção para o fato de que a análise do processo saúde-doença não reside somente nos determinantes biológicos, pois os fatores sociais, que se apresentam em diferentes aspectos como renda, níveis de educação, condições de vida e de trabalho e situação de pobreza, são fatores signiicativos que remetem à natureza social do adoecimento. A situação de vulnerabilidade e de risco na qual se encontram as famílias do entorno do Lagoas do Norte se deve ao fato de elas terem ixado moradia em local impróprio, não somente por esse local compreender uma área de preservação ambiental, mas, também, por ser um espaço insalubre, cujas ocupações foram construídas de forma desordenada e em espaço sujeito a inundações, por essas moradias se localizarem às margens das lagoas, nas proximidades dos espaços nos quais são lançados esgotos e lixo, e, ainda, pela utilização de água contaminada pelos moradores. Isso resulta em um local cujo potencial de contaminação é bastante elevado devido ao fato de toda a área ter se transformado em local de grandes focos de doenças para a população (MOURA; LOPES, 2006). Com base na realidade acima exposta, percebe-se que o PLN converge, em suas várias dimensões, para respostas que venham minimizar os riscos de adoecimento e proporcionar a melhoria na saúde das famílias que residem no entorno do Parque, considerando que, por meio de suas ações, visa solucionar os problemas sociais, ambientais e urbanísticos que afetam a saúde de toda a coletividade, provocam a degradação do meio ambiente, comprometem a qualidade de vida da população, impedem o desenvolvimento sustentável na região das lagoas e produzem resultados negativos para toda a capital. A convergência das ações do PLN com a promoção da saúde se relaciona não somente com as atividades concretas e efetivas materializadas pelo processo de realocação de famílias, de reconstrução e de reforma de moradias, ações que tiveram como proposta crucial promover a melhoria da qualidade de vida e da saúde da referida população. Mas também ocorre por meio de um viés mais abstrato e subjetivo, como o despertar da consciência ambiental, por exemplo, que compreende uma ação de caráter educativo cujo resultado é capaz de promover um amplo alcance sobre os fatores biológicos do adoecimento. 325 Na realidade, os problemas oriundos da desigualdade reletem em todos os aspectos da vida dos cidadãos. Contudo, aqueles referentes à urbanização, tais como moradia e ocupações impróprias, que resultam em prejuízos para o meio ambiente e, consequentemente, para a saúde, são os mais preocupantes na atualidade. Isso porque estudos têm comprovado que a miséria urbana se constitui em um dos principais fatores de risco ambiental de saúde, sobretudo, quando associada à ausência de bens materiais e de serviços sociais básicos (ALVES, 2012). Nesse ínterim, em face dessas preocupações, há, também, de se destacar que a efetivação da saúde pública nessa conjuntura de restrição do papel do Estado e de fortalecimento do mercado constitui um dos principais desaios da atualidade. Portanto, ao avaliar o processo de mudança implementado na Zona Norte de Teresina por meio do PLN, identiica-se que essas mudanças ocorreram de forma dinâmica e efetiva, em vários aspectos da vida dos cidadãos. Todavia, houve maior repercussão no âmbito da saúde, visto que os impactos referentes à degradação socioambiental haviam promovido prejuízos elevados aos moradores daquela área, desde as doenças de veiculação hídrica, passando pelas de infestação por mosquitos, até aquelas adquiridas pela presença do lixo nas circunvizinhanças das moradias. Além disso, havia os aspectos referentes à violência decorrente do tráico de drogas, que era outro fator preocupante, uma vez que a topograia da região facilitava o manuseio e a ocultação de objetos resultantes de ações criminosas. Conclusão Com base nas relexões expostas, a pesquisa de que trata o presente artigo teve como propósito analisar as condições de saúde das famílias que residem no entorno do PALN após a implementação do Programa Lagoas do Norte, no sentido de entender que mudanças esse projeto trouxe para essas famílias e se essas transformações foram qualitativas para esses beneiciários. Isso porque se trata aqui de pessoas que viviam em situação precária, devido às condições de pobreza socioeconômica, cultural e ambiental, visto que eram desprovidas de moradia digna, sobretudo, pelas condições de saneamento insatisfatórias. Por isso, encontravam-se, naturalmente, mais vulneráveis às várias formas de adoecimento. Contudo, é importante assinalar que os problemas de saúde aqui mencionados tratam, necessariamente, da saúde, no sentido do risco de adoecimento causado por fatores relacionados à pobreza cuja descrição da situação deverá ser registrada com base na realidade de um recorte populacional de moradores da região das lagoas. A iniciativa da gestão municipal, por meio do PLN, no atendimento às demandas da população da região e a conigu326 ração da situação na qual se encontram as famílias envolvidas foram fatores que motivaram esta pesquisa, no sentido de buscar entender que benefícios, do ponto de vista do saneamento, da requaliicação ambiental e dos serviços ofertados à população, o PLN trouxe que possam ter promovido mudanças na saúde desses grupos. Por meio da trajetória do PLN, oriundo de ações de políticas públicas destinadas a proporcionar serviços que possibilitassem melhorias nas condições de saúde das famílias, buscou-se conhecer os efeitos dessas ações para que, ao inal da referida pesquisa, fosse possível veriicar se esses resultados se apresentaram de forma positiva e se as mudanças ocorridas se estabeleceram no sentido de trazer as melhorias almejadas na perspectiva de evidenciar se o programa trouxe benefícios quanto ao saneamento, aos serviços e à saúde. Identiicou-se, principalmente, que as ações voltadas para o saneamento e a revitalização foram as mais esperadas. Além disso, embora a primeira etapa do PLN não tenha sido realizada na sua integralidade, visto que faltou a concretização do saneamento, os componentes realizados representaram ações de grande impacto para os moradores da região, uma vez que promoveram a redução dos problemas socioambientais, principalmente as enchentes e as inundações, cujos prejuízos para a saúde se davam em larga escala. Não obstante algumas críticas apresentadas, sobretudo pelo fato de que um dos seus elementos fundantes do projeto, que é o saneamento, ainda não tenha sido concretizado, a avaliação teve resultados positivos por parte de todos os proissionais e dos moradores envolvidos no levantamento de dados empíricos. A área do PLN referente ao entorno do Parque Ambiental Lagoas do Norte passou de um ambiente degradado e sujo para um espaço capaz de proporcionar moradia saudável e digna, em que a relação entre a população e a natureza passou a ocorrer de forma harmônica. Isso porque se está promovendo àquela comunidade uma rotina com atividades de lazer, contemplação da paisagem e convivência em um ambiente recuperado, limpo e, consequentemente, menos insalubre, apesar da necessidade de implementação de ações de educação ambiental continuada. Nesse sentido, os resultados do trabalho mostram que as vulnerabilidades e os riscos que perpassam o cotidiano das famílias em estudo apresentaram demandas, sobretudo em relação a políticas de habitação e de saúde. Isso revela que as condições de promoção de qualidade de vida não são alcançadas isoladamente, mas na ação pública integrada aos diversos setores de vivência dos indivíduos. Pode-se concluir, a partir disso, que o processo de implementação das ações do Programa Lagoas do Norte em Teresina-PI inluenciou de forma positiva nas condições de saúde da população que vive no entorno do Parque. 327 Referências ALVES, H. Avanços e desaios do programa bolsa família na perspectiva da determinação social em saúde. In: Acta scientiae médica, Rio de Janeiro, 2012, v. 2, n. 5, p. 53-64, 2012. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília: Senado, 1988. ______. Presidência da República. Lei Orgânica da Saúde n. 8080, de 19 de setembro de 1990. Brasília: Senado Federal, 1990. BRONZO, Carla. Vulnerabilidade, empoderamento e metodologias centradas na família: conexões e uma experiência para relexão. In: Concepção e Gestão da Proteção Social Não Contributiva no Brasil. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, UNESCO, 2009. p. 171-201. BUSS, Paulo Marchiori; PELLEGRINI FILHO, Alberto. A saúde e seus determinantes sociais. 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Brasília – DF de 23 a 26 de maio de 2006. 328 NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006. (Biblioteca básica de Serviço Social; v. 1). OMS. Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde: Declaração de Alma-Ata, 1978. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004. SANTOS, L. A. dos.; LIMA, I. M. de M. F. Parque ambiental Lagoas do Norte: saneamento e conservação do ambiente entre os bairros Matadouro e São Joaquim Teresina, Piauí, Brasil. Caminhos de geograia - revista online. Uberlândia v. 16, n. 54, p. 224-238, jun. 2015. Disponível em: <http://www. seer.ufu.br/index.php/caminhosdegeograia/>. Acesso em: 16 dez. 2016. TERESINA. AGENDA 2015. Plano estratégico de desenvolvimento sustentável a cidade que queremos: Habitação, 2002. ______. Prefeitura Municipal. RMI. Marco de Reassentamento Involuntário das Famílias e Imóveis Afetados pela Implantação da 2ª Fase do PLN. PMT, Secretaria Municipal de Planejamento, Unidade de Gerenciamento do programa. Teresina, julho de 2014. ______. Prefeitura Municipal. RAAS. Relatório de Avaliação Ambiental e Social. PMT, Secretaria Municipal de Planejamento, Unidade de Gerenciamento do programa. Teresina, julho de 2014. 329 MINICURRÍCULO DOS AUTORES Adriana de Moura Elias Silva - Possui Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (2000). Graduada em Psicologia pela Faculdade Santo Agostinho (2008). Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (2015-2017). Atua na área de pesquisa com os temas: serviço social, desigualdade social, pobreza e assistência social. E-mail: adrianamourena@gmail.com Aline Teixeira Mascarenhas de Andrade – Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí. Especialista em Saúde Pública. Técnica Social da Unidade de Projeto Socioambiental do Programa Lagoas do Norte vinculado à Prefeitura Municipal de Teresina, Docente da Faculdade do Piauí - FAPI em Teresina-PI e da Faculdade Maranhense São José dos Cocais - FMSJC em Timon-Ma. E-mail: aline.tma@hotmail.com Ana Valéria Matias Cardoso – Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Especialização em Família e Políticas Públicas pela Faculdade Santo Agostinho (FSA). Graduação em Serviço Social pela Faculdade Santo Agostinho (FSA). E-mail: anavaleriamatcard@gmail.com Antônia Jesuíta de Lima - Doutora em Ciências Sociais pela PUC/SP. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Estudos em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. E-mail: a.je.l@uol.com.br Davi Magalhães Carvalho – Psicólogo, aluno do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (nível Mestrado) e bolsista CAPES. E-mail: davimc15@hotmail.com Edmundo Ximenes Rodrigues Neto – Possui graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Piauí (2000) e mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (2005). Atualmente é professor titular da Universidade Estadual do Piauí. Pós-graduando (Doutorado) em Políticas Públicas na UFPI. Francisco da Silva Paiva – Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Maranhão (2005), Especialista em Filosoia da História. Atualmente é Técnico em Assuntos Educacionais - IFMA - CAMPUS - CODÓ, Coordenador da Supervisão Pedagógica do IFMA - CAMPUS - CODÓ - Coordenador do Núcleo de Pesquisas Afro-brasileiro e Indiodescendentes do IFMA-CAMPUS-CODÓ e Coordenador Adjunto do Programa Nacional de Acesso ao 330 Ensino Técnico e Emprego - PRONATEC - IFMA - CAMPUS - CODÓ. Aluno do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. Francisco de Oliveira Barros Júnior - Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Gilson Soares de Araújo - Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado do Piauí, advogado e professor. Mestrando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: gilson.araujo@tce.pi.gov.br Inez Sampaio Nery - Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Escola de Enfermagem Ana Nery (2000). Atualmente é professora associada da Universidade Federal do Piauí. Tem experiência na área de Enfermagem, com ênfase em Enfermagem em Saúde da Mulher, atuando principalmente nos seguintes temas: enfermagem, saúde da mulher, saúde da mulher, câncer de mama; e em políticas públicas, com os temas violência, política de saúde, gênero dentre outros. Email: inezsampaionery11@gmail.com Jaíra Maria Alcobaça Gomes - Professora Adjunta do Departamento de Ciências Econômicas/UFPI, Pesquisadora do Núcleo de Referência em Ciências Ambientais do Trópico Ecotonal do Nordeste (TROPEN/UFPI) e Doutora em Economia Aplicada (ESALQ/USP). Professora Programa de Pós-Graduação em Politicas Publicas-CCHL/ UFPI. E-mail: jairamag@uol.com.br João Paulo Sales Macedo – Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFPI e Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas/ UFPI. Graduado em Psicologia pela Faculdade Santo Agostinho (2004), Mestre (2007) e Doutor (2011) em Psicologia pela UFRN. Atua na área da Saúde Coletiva e Saúde Mental, com foco na formação e prática do psicólogo nas políticas públicas e aspectos relacionados à interiorização da proissão e atuação em contextos rurais. Email: jpmacedo@ufpi.edu.br Jovina Moreira Sérvulo Rodrigues - Assistente Social graduada pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), especialista em Saúde Pública pela Universidade de Ribeirão Preto-SP e mestra em Políticas Públicas pela UFPI. Teresina-PI/Brasil. E-mail: jovinamsr@gmail.com Juciara de Lima Linhares Cunha – Assistente Social, graduada pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Especialista em Gestão Social e políticas 331 Públicas pela Faculdade Adelmar Rosado(FAR). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Leandro Gomes Reis Lopes – Doutorando do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. E-mail: leandrogrlopes@gmail.com Luciana Evangelista Fernandes Franco - Assistente Social. Especialista no Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes – USP. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí – UFPI. E-mail: franco-lu@hotmail.com Marcelo de Moura Carvalho - Discente do Programa de Doutorado em Políticas Públicas da UFPI. Enfermeiro da Estratégia de Saúde da Família de Teresina. Professor do curso de bacharelado em Enfermagem da UFPI. E-mail: marcelo.mcarvalho@yahoo.com.br Maria D’Alva Macedo Ferreira - Graduação em Serviço Social. Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Mestre e Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Docente do programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPI. Atua nos temas: Gestão Pública, Controle social. Políticas de Assistência Social, Crianças, adolescentes e juventude, direitos sociais, Democracia e participação.E-mail: mdalvaferreira@uol.com.br. Maria do Rosário de Fátima e Silva - Possui Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (1981). Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991). Doutora em Serviço Social e Política Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Atualmente, é Professora Associada da Universidade Federal do Piauí, do Departamento de Serviço Social e do programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. Atua nos temas: Política social, Planejamento, Gestão e Avaliação de Políticas Públicas, direitos sociais, pessoa idosa, cidadania, Serviço social e envelhecimento. E-mail: rosafat@uol.com.br Mayra Soares Veloso - Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (2004). Especialista em Saúde Pública e Educação. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: maysvel@hotmail.com Nayra Sousa Araujo – Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal 332 do Piauí (UFPI). Especialista em Família e Políticas Públicas pela Faculdade Santo Agostinho (FSA). Mestranda do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), na linha de pesquisa “Estado, Políticas Públicas e Movimentos Sociais”. E-mail: nayrasa3@gmail.com Nelson Juliano Cardoso Matos - Doutor em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí (da Graduação em Direito, do Mestrado em Ciência Política e Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas). E-mail: nelsonmatos@ufpi.edu.br Olívia Cristina Perez – Doutora em Ciência Política pela Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP). Professora Adjunta da Universidade Federal do Piauí (UFPI), vinculada aos cursos de bacharelado e mestrado em Ciência Política e ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. Poliana de Oliveira Carvalho - Mestre em Políticas Públicas/UFPI, professora da Faculdade CHRISFAPI, Assistente Social do município de Piripiri. Graduada em Serviço Social pela UFPI. E-mail: polianacarvalho@hotmail.com Renildo Barbosa Estevão - Graduação em Direito. Mestre em Políticas Públicas. Doutorando em Políticas Públicas. Universidade Federal do Piauí UFPI. E-mail: renildoe@yahoo.com.br Simone de Jesus Guimarães - Professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Piauí. Pós-doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutora e Mestre em Serviço Social pela PUC/São Paulo. Atua nos temas: Serviço Social, Questão Social, Políticas Públicas, Planejamento Social, Envelhecimento, Democracia e Direitos Sociais E-mail: simone@uol.com.br Soia Laurentino Barbosa Pereira - Professora da Faculdade Santo Agostinho. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da UFPI. Mestre em Políticas Públicas e graduada em Serviço Social. E-mail: soia_ibp@hotmail.com Solange Maria Teixeira - Professora da Universidade Federal do Piauí, Presidente do Conselho Regional de Serviço Social do Piauí, Coordenadora do Programa Terceira Idade em Ação da UFPI e Bolsista de Produtividade. Atua na graduação em Serviço Social e na Pós-graduação em Políticas Públicas. Pós333 -Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Doutorado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: solangemteixeira@hotmail.com Talila Arrais Amorim – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas – Universidade Federal do Piauí. Assistente Social graduada pela Universidade Federal do Piauí. Teresina/PI- Brasil. E-mail: talila.arrais@ gmail.com Vitor Sampaio Kozlowski Ferreira - Ativista LGBT. Bacharel em Serviço Social pela Faculdade Adelmar Rosado. Mestrando em Políticas Públicas na Universidade Federal do Piauí. E-mail: viktorkozlowski@yahoo.com.br 334 335