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Mulheres e literatura brasileira

editora da UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ UNIFAP E d i t o r a UNIFAP E d i t o r a Mulheres e a Literatura Brasileira Natali Fabiana Costa e Silva Lua Gill da Cruz Janaína Tatim Marcos Paulo Torres Pereira (Organizadores) Mulheres e a Literatura Brasileira Macapá-AP UNIFAP – 2017 Copyright © 2017, Autores Reitora: Prof.ª Dr.ª Eliane Superti Vice-Reitora: Prof.ª Dr.ª Adelma das Neves Nunes Barros Mendes Pró-Reitora de Administração: Wilma Gomes Silva Monteiro Pró-Reitor de Planejamento: Prof. Msc. Allan Jasper Rocha Mendes Pró-Reitora de Gestão de Pessoas: Emanuelle Silva Barbosa Pró-Reitora de Ensino de Graduação: Prof.ª Drª. Margareth Guerra dos Santos Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof.ª Dr.ª Helena Cristina G. Queiroz Simões Pró-Reitor de Extensão e Ações Comunitárias: Prof. Dr. Rafael Pontes Lima Pró-Reitor de Cooperação e Relações Interinstitucionais: Prof. Dr. Paulo Gustavo Pellegrino Correa Diretor da Editora da Universidade Federal do Amapá Tiago Luedy Silva Editor-chefe da Editora da Universidade Federal do Amapá Fernando Castro Amoras Conselho Editorial Luis Henrique Rambo Ana Paula Cinta Artemis Socorro do N. Rodrigues Marcus André de Souza Cardoso da Silva César Augusto Mathias de Alencas Maria de Fátima Garcia dos Santos Cláudia Maria do Socorro C. F. Chelala Patrícia Helena Turola Takamatsu Daize Fernanda Wagner Silva Patrícia Rocha Chaves Elinaldo da Conceição dos Santos Robson Antonio Tavares Costa Elizabeth Machado Barbosa Rosilene de Oliveira Furtado Elza Caroline Alves Muller Simone de Almeida Delphim Leal Jacks de Mello Andrade Junior Tiago Luedy Silva José Walter Cárdenas Sotil Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M954m Mulheres e a Literatura Brasileira / Natali Fabiana Costa e Silva, Lua Gill da Cruz, Janaína Tatim, Marcos Paulo Torres Pereira (organizadores) – Macapá: UNIFAP, 2017. 572 p. ISBN: 978-85-62359-76-7 1. Literatura Brasileira. 2. Gênero. 3. Mulheres. I. Natali Fabiana da Costa e Silva. II. Lua Gill da Cruz. III. Janaina Tatim. IV. Marcos Paulo Torres Pereira. V. Universidade Federal do Amapá. VI. Título. CDD: 869 Editoração e Projeto gráfico: Marcos Paulo T. Pereira Imagem de Capa e no corpo da obra: s/ título, desenho de Tano Sumário À guisa de prefácio A outra voz: apontamentos sobre a tradução de poesia realizada por mulheres no século XIX Marcus Rogério Salgado ....8 ....13 Identidade feminina e sufragismo no teatro brasileiro do século XIX Isamabéli Barbosa Candido ....35 O desejo erótico de Sofia e a inscrição da subjetividade nos moldes do indivíduo – ou do que (não) se deixa predicar como posse Janaína Tatim ....61 As mulheres machadianas e a materialização audiovisual ....89 da ambígua sedução feminina em Capitu Evelin Gomes da Silva Paulo Custódio de Oliveira A contextual approach to Mariza Lira’s Chiquinha ....120 Gonzaga, O Abre Alas Paula Gândara O sequestro das mulheres na história da literatura: o rastreio da poeta Francisca Julia Virgínea Novack Santos da Rocha ....141 Flores Incultas e a Academia Brasileira de Letrasescritoras piauienses no contexto do feminismo no final do século XIX e primeiras décadas do século XX Olívia Candeia Lima Rocha ....167 Parque industrial- acontecimento e descontinuidade Glauce Souza Santos ....198 Mulher e luta operária em Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir Alinnie Oliveira Andrade Santos Marlí Tereza Furtado ....214 Personagens femininas de Rachel de Queiroz: exclusão ou inclusão na ordem patriarcal? Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come Suzi Frankl Sperber ....241 Mulheres em contos e seus (des)encontros - uma leitura ....265 de “A caolha”, “Tangerine Girl” e “A moralista” Suely Leite Hilda Hilst e o erotismo sagrado Leandro Soares da Silva Vitalina Araújo Rosa ....285 A sedução de Caetana: o feminino e o selvagem na Morte sertaneja Marcos Paulo Torres Pereira ....305 A tragédia de Clarice - mulher, punição e silêncio Alana Regina Sousa de Menezes ....326 Na recolha dos vestígios do devir-trapeiro da literatura ....357 brasileira Raffaella Fernandez As representações de leitoras na série um Castelo no ....378 Pampa, de Luiz Antonio de Assis Brasil - a personagem Beatriz Francieli Borges As narrativas de Marina Colasanti, Maria Amélia Mello ....401 e Márcia Denser: o erotismo como combate à repressão social feminina Enedir Silva Santos Kelcilene Grácia-Rodrigues Conceição Evaristo e o processo de descolonialidade de gênero no conto “Isaltina Campo Belo” Joana d’Arc Batista Herkenhoff ....426 As netas da Ema - bovarismo na personagem feminina do século XXI Rosana Arruda de Souza ....444 Porque é preciso romper as gaiolas: autoria feminina e contextos familiares na ficção de Augusta Faro Nívea de Souza Moreira Menegassi Luciana Borges ....464 Reflexos e refrações da identidade e do feminismo em ....492 Essência, de Luci Collin Deivis Jhones Garlet Laís Ismael Freitas Os silêncios na literatura pós-ditadura: a resistência das mulheres guerrilheiras Lua Gill da Cruz ....510 Do corpo ao discurso: performances da homocultura na literatura escrita por mulheres Ana Luiza Nunes Almeida ....546 À guisa de prefácio A proposta de organizar um livro que versasse sobre a temática de “Mulheres e a literatura brasileira” surgiu de uma percepção que nos inquietou e continua inquietando: nós, como professoras e estudantes de pós-graduação, percebemos que na área de estudos da literatura brasileira há uma contradição fundamentalmente calcada na questão de gênero, perceptível quando se contrasta quem estuda e quem ensina literatura brasileira com sobre quem se estuda e sobre quem se ensina relativamente ao mesmo campo... Uma contradição entre o fato de haver tantas mulheres estudando e ensinando literatura brasileira e o fato de haver tão pouco sobre literatura brasileira produzida por mulheres, ou o fato de, em nossa área, haver tão poucas mulheres prestigiadas por seu trabalho intelectual. Como afirmamos em nossa chamada, as mudanças relativas às problemáticas feministas ou das mulheres assumiu, nos últimos anos, uma importância e visibilidade cada vez maiores, e nossa inquietação é fruto desse movimento. Mesmo havendo uma série de iniciativas que privilegiam e debatem o assunto e mesmo com um aumento relativo na preocupação com tal temática na produção de artigos científicos, ainda assim é pouco. Percebemos entre nossos colegas, homens e mulheres, uma maioria que se dedica a autores, críticos e teóricos homens, bem como percebemos, naquilo que lemos e naquilo que aprendemos a prezar, como o cânone da Literatura Brasileira, ou ainda os cânones mundiais, uma autoria de maioria masculina. Além disso, a produção de discursos e representações sobre mulheres, sobretudo na literatura brasileira, ainda parece majoritariamente advir da perspectiva de homens – e o fato de salientarmos isso aqui não significa que desprezamos ou desconsideramos o impacto e a importância histórica desses discursos e representações. Por isso, nosso objetivo inicial era a busca de colaborações que estivessem perpassadas pela atenção consciente a esses fatos inquietantes. Contribuições atentas sobretudo à produção de mulheres, mas também à produção de homens sobre mulheres, suas formas de representação, de modo a refletir a literatura como produto cultural, considerado em suas especificidades históricas e sociais, seja do ponto de vista de sua autoria, de sua circulação e de sua recepção, ou do conteúdo que (re)produz. E quanto a isso fomos venturosamente surpreendidos. Nos orgulhamos da quantidade de material que recebemos advindos das diversas regiões do Brasil, com temáticas verdadeiramente diversas e com maciça colaboração de pesquisadoras. Dos vinte e três textos que aqui vão a público, dezoito deles têm mulheres como autoras ou coautoras. Dado o enfoque inicial e a indicação da chamada, recebemos contribuições que dão conta de um amplo espectro da Literatura Brasileira, seja em uma perspectiva de revisão da crítica já estabelecida, ou ainda com temáticas inéditas. O resultado é um livro que consegue perpassar uma série de questões há muito tempo e sempre necessárias no campo da crítica literária e do ensino. Majoritariamente, recebemos artigos que abordam diretamente a produção literária de autoras de literatura brasileira, muitas delas excluídas do cânone e que encontram, nesse espaço, uma relevância significativa para repensarmos a história e o ensino da nossa Literatura. Há, ainda, textos que tratam de aspectos da teoria literária, relativos à tradução ou/e à historicização, por exemplo, mas que o fazem colocando no centro a questão de gênero. De outra parte, há ainda textos que abordam a representação da mulher por escritores homens, problematizando as formas como as mulheres foram inseridas e representadas na produção literária ou mostrando como se podem traçar histórias sobre as mulheres no Brasil a partir de uma abordagem crítica dessas produções. Ainda que, em função de várias limitações editoriais, não tenhamos podido selecionar mais trabalhos dentre a enorme quantidade de contribuições que nos foram encaminhadas. Lemos esse resultado como um sintoma gritante da crítica literária no Brasil: faltam espaços dedicados à escuta da produção de/e sobre mulheres. Assim, encorajamos as nossas colegas a organizem revistas, eventos e livros atravessados fundamentalmente por tal problema, bem como fazemos um apelo a que nos dediquemos a ensinar e incluir em nossas práticas pedagógicas, seja em Universidades, em Escolas da rede pública ou privada ou na Educação de Jovens e Adultos, a leitura de textos literários que tratem a perspectiva de gênero de modo frontal. A questão das mulheres e de sua produção é ainda apagada, mesmo nos contextos de ensino, nos materiais didáticos, nas listas de vestibular. Este livro é também uma tentativa de colaboração e inserção no debate educacional, pois é através desse valioso espaço que podemos existir e é a ele que direcionamos nossas formações, é a partir do espaço da educação que atuamos e que podemos propor tal questionamento e mesmo nos dar conta das inquietações que destacamos. Cabe a nós, mulheres, e a nossos colegas, elaborar e exigir a necessidade de ocupação dos espaços de produção e reprodução de conhecimento (físicos e virtuais). De outra parte, no momento histórico em que vivemos, de desmonte da Universidade Pública e das possibilidades de recursos para a educação, se torna ainda mais vital que nos unamos. Esperamos que este livro e sua leitura sejam entradas possíveis. Os organizadores Mulheres e a Literatura Brasileira A outra voz: apontamentos sobre a tradução de poesia realizada por mulheres no século XIX Marcus Rogério Salgado1 A despeito dos importantes avanços críticos verificados nos últimos cinquenta anos, sobre a literatura brasileira de autoria feminina ainda persiste uma espécie de tabu historiográfico, pelo qual sua existência é sempre dimensionada de forma aquém do que se observa empiricamente mediante investigações rigorosas e sistemáticas sobre o tema. Nem mesmo os esforços empreendidos pela revisão de cânone conseguiram assegurar para autoras como Maria Firmina dos Reis, Maria Benedita Borman (Délia) ou Júlia Lopes de Almeida, lugar privilegiado nos compêndios historiográficos, nos manuais didáticos e no estudo institucionalizado da literatura. Esses ocultamentos e sequestros são tanto mais dramáticos por sua ocorrência em um país que conhece tão mal sua própria literatura – como já advertia Alexandre Eulálio, ao ressaltar a importância das revisões críticas e da historiografia antiquária no âmbito da literatura brasileira. A partir dessa constatação é que se desdobra este artigo, cujo objetivo é a partilha de resultados parciais obtidos em pesquisa sobre a tradução de poesia no Brasil do século XIX. Se o próprio trabalho autoral (fosse ele ficcional ou ensaístico) de autores e autoras do oitocentos brasileiro ainda está longe de 1 Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atua nas áreas de Letras e de Artes, com ênfase na investigação sobre a construção crítica da modernidade e os imaginários culturais. 13 Mulheres e a Literatura Brasileira ter sido sistematizado, tanto historiográfica como criticamente, o que dizer de produtos aparentemente colaterais das atividades intelectuais e poéticas, como é o caso das traduções de poesia? Desde sempre paira sobre esses objetos uma espécie de manto de invisibilidade, que os condenou ao esquecimento mesmo em um dos projetos mais importantes no sentido de uma revisão de cânone a partir da perspectiva de inclusão das autoras brasileiras até então negligenciadas, como foi Escritoras Brasileiras do século XIX. Nessa alentada obra em dois volumes organizada pela saudosa Zahidé Lupinacci Muzart, não encontramos transcrita qualquer das traduções de poesia realizadas pelas autoras brasileiras do período estudado. Se a tradução já implica questões diretamente ligadas à experiência da alteridade, as traduções de poesia realizadas por autoras brasileiras acabam por constituir-se em uma espécie de fenômeno de dupla alteridade, à maneira de um corpo estranho a provocar um silenciamento insólito não apenas nos domínios dos estudos de poesia focados nas práticas de tradução do passado histórico, como também no próprio âmbito da revisão historiográfica proporcionada por ativos pesquisadores ligados a grupos de trabalho ocupados no mapeamento das tangências entre a literatura e o debate sobre gendramento. De qualquer forma, a prospecção do material traduzido pelas sucessivas gerações que aderiram (em maior ou menor grau) aos programas estéticos vigentes ao longo do século XIX revelou surpresas. E talvez a mais impactante de todas fosse justamente a presença – minoritária mas afirmativa – de tradutoras (entre as quais se destacam Narcisa Amália e Francisca Júlia da Silva) e de traduções de poemas de autoria de mulheres, incluindo um nome importante da literatura francesa, como Marceline Desbordes-Valmore. 14 Mulheres e a Literatura Brasileira O século XIX foi pródigo em traduções de poesia, particularmente dos românticos. Traduções de Lamartine, Byron e Victor Hugo abundam não apenas nos livros de poesia que o período legou, como também nos jornais e revistas, literários ou não. Disso faz prova Hugonianas, reunião de poemas de Victor Hugo traduzidos por poetas brasileiros, enfeixados em volume organizado por Múcio Teixeira. No rol dos tradutores de Hugo encontramos Amália Figueiroa e Narcisa Amália. Amália dos Passos Figueiroa (1845-1878) foi uma poeta sul rio-grandense que em vida publicou um livro apenas, Crepúsculos, datado de 1872, prefaciado por Apolinário PortoAlegre, um dos fundadores da Sociedade Parthenon Literário, na qual Amália militou, publicando em sua Revista Mensal. Muito elogiada por Guilhermino César, que encontrava em sua obra “a mais pura ressonância poética” (César, 1956, p. 240), Amália Figueiroa está presente no volume das Hugonianas com sua tradução do poema “Canção”: Quando tu cantas à tarde Nos meus braços embalada, Entendes meu pensamento Que te responde, adorada? Quando tu cantas, da infância Eu me recordo chorando!... Canta, meu anjo! Vive – cantando! Quando te ris, nos teus lábios Se lê – amor e poesia; E essa sombria tristeza Muda-se em doce alegria, Como se apagam fantasmas Quando a aurora vem surgindo!... 15 Mulheres e a Literatura Brasileira Sorri, meu anjo! Vive – sorrindo!... Quando tu dormes, tranquila, E eu velo junto ao teu leito, – Palavras harmoniosas Desprendem-se de teu peito: E de teus lábios, tão lindos, Vão, como rosas, se abrindo... Dorme, meu anjo! Vive – dormindo!... Quando tu dizes: ´Eu te amo´ Oh! que eu me julgo feliz! E creio que o céu inteiro Toma mais lindo matiz E ao teu olhar amoroso Respondo alegre, cantando: Ama, meu anjo! Ah ! vive – amando!... Meu Deus! em quatro palavras Reproduzes meu sonhar... Tudo em que penso, em silêncio, Nestas noites de luar!... Tudo o que julgo na vida Que se pode bem gozar: – Cantar e – rir... – Dormir e – amar! (apud: TEIXEIRA, 2003, p. 124-125) Se a colaboração de Amália Figueiroa é mais discreta, Narcisa Amália participa nas Hugonianas com um longo poema, “Os dois troféus”. Trata-se de um poema da última fase de Victor Hugo, no qual o poeta glosa os acontecimentos à época da Comuna de Paris. Chama atenção, sem dúvida, que 16 Mulheres e a Literatura Brasileira Narcisa Amália tenha optado por um poema de explícito comentário social, posicionando sua escolha em campo distante, por exemplo, daquele fincado, na mesma coletânea, pelo Barão de Paranapiacaba, tradutor bastante próximo a Pedro II, que escolheu um poema breve e ameno, marcado pela ternura humana de suas imagens, “Les enfants”. O poema escolhido por Narcisa Amália, “Les deux trophees”, não apresenta originalmente a disposição proposta pela tradutora. Em Hugo, os alexandrinos estão agrupados em estrofes assimétricas quanto ao número de versos, seguindo em rimas emparelhadas do começo ao fim. A tradutora brasileira organizou suas redondilhas maiores em trinta e quatro estrofes oitavadas, com o esquema rímico afastando-se do original, com rimas fixas – como as incidentes nos segundos, terceiros, sextos e sétimos versos de todas as estrofes – e outras ocasionais, em que os quartos e oitavos versos coincidem, como se percebe nessas três estrofes aqui reproduzidas, com as quais inicia “Os dois troféus”: Tem visto, ó povo, esta época Teus trabalhos sobre-humanos, Viu-te altivo ante os tiranos Calcar a Europa assombrada; Criando tronos hercúleos, Despedaçando áureos cetros, Das coroas – vis espectros – Mostraste o potente nada! Em cada passo titânico Semeavas mil ideias; Marchavas: iam-se as peias Que o torvo orbe prendiam; Tuas falanges incólumes Eram vagas do progresso: 17 Mulheres e a Literatura Brasileira Transbordadas de arremesso De cimo a cimo s'erguiam! Vias a deusa da gloria Cingir-te a fronte de louros; Derramavam-se tesouros De luz, por onde passavas! E a Revolução flamívora Arremessava à Alemanha Danton; a quem, sobre a Espanha Com Voltaire triunfavas! (apud: TEIXEIRA, 2003, p. 154) Sem dúvida, muito mais que o fato de a tradutora organizar a voragem caótica do poema de Hugo, chama atenção a escolha da redondilha maior como padrão métrico. Sendo esta preferida pela poesia popular, Narcisa Amália, ao optar por esse padrão métrica, explicita, em alguma medida, os critérios norteadores de seu partido tradutório e da escolha que fizera dentro do amplo repertório disponível do poeta francês – afinal, não se pode deixar de vista o fato de que a poeta “era uma republicana, uma abolicionista, colocando sua arte a serviço do seu ideário de libertação” (PAIXÃO, 2000, p. 536). Nesta tradução – que se aproxima do original sem subserviência, desde o princípio marcada pela recusa à figura da tradutora-serva –, o que está em jogo é uma mensagem de cunho político, cuja transmissão deve ser feita à mais ampla audiência possível, resultando desse esforço por comunicação a escolha pela redondilha maior (com seu apelo desde sempre reconhecido pela poesia popular), pela normalização da massa gráfica do poema e pelo esquema rímico e estrófico em busca de efeitos de atenção concentrada testada pela rima e pelo martelar das redondilhas. De toda forma, o resultado é um belo poema, em que até momentos de virtuosismo com a rima 18 Mulheres e a Literatura Brasileira e com o metro podem irromper, como nas três estrofes a seguir, cuja tradução corre sempre o risco de quedar empanada pela afluência de nomes estrangeiros a testar a ductilidade do metro e da própria língua: Sim! foi por ela que inânime De Ham o nome caíra; Ante a Reischoffen expira De Wagran o grito ovante! Riscado Marengo ínclito, Waterloo apenas resta... E sob a folha funesta Rasga-se a lenda brilhante!... Uma bandeira teutônica Enluta nosso horizonte: Sedan enegrece a fronte Que a Austerlitz deu renome! Vergonha! A rajada frêmita É Mac-Mahon que vibra; Forbach a Iena equilibra, E o fogo as glórias consome! Onde os Bicetres, ó Gália? Os Charentons denodados? Dormem os grandes soldados Em teu leito de Procustos. De Coburgo, de Brunópolis, Onde estão os vencedores Com seus sabres vingadores, Correndo areais adustos?!... (apud: TEIXEIRA, 2003, p. 185-186) A “pena delicada e fina de D. Narcisa Amália” (ASSIS, 1879, p. 406) também podia transformar-se em uma arma de 19 Mulheres e a Literatura Brasileira guerrilha ideológica – sem, contudo, perder o característico refinamento na tramagem versificatória. Já Machado notara que, no prefácio escrito por Narcisa às Flores do Campo, de Ezequiel Freire, “a simpatia da escritora vai de preferências às composições que mais lhe quadram à própria índole” (ASSIS, 1879, p. 406), citando, na sequência, seu (dela) elogio ao poema “Escravos no eito”, de temática francamente abolicionista. Essa índole combativa retorna duplamente na tradução de Hugo: o desafio de traduzir um poema de fôlego, um poema a tratar de convulsões sociais e políticas. Narcisa Amália não traduziu apenas poesia, sendo responsável pelo texto em português de O Romance da mulher que amou, de Arsène Houssaye, publicado em 1877, pelo editor B. L. Garnier, na coleção “Biblioteca Universal”. Há um anúncio dessa publicação no jornal O Fígaro, de 22 de setembro do mesmo ano, no qual a tradução de Narcisa é elogiada, sobretudo pela forma como trabalhou os poemas que integram o romance do escritor francês. Entre as outras tradutoras atuantes ao longo do século XIX, Francisca Júlia é das que merece maior atenção, porquanto em Mármores produza versões de Heine e Goethe. O primeiro, foi um autor bastante prestigiado entre os poetas brasileiros do período. Ao que tudo indica, a primeira tradução que dele se fez entre nós pode ser atribuída a Francisco Adolpho Varnhagen. De origem alemã e tendo vivido no país de seus ancestrais, conhecia o idioma o suficiente para a leitura no original da poesia produzida na língua. Em 1894, a revista A Semana publica uma série de traduções dos poemas que compõem o Intermezzo, de Heine. Assinam as versões, entre outros: Machado de Assis, Fontoura Xavier, Gonçalves Crespo, Artur Azevedo, Luiz Delfino, Lúcio de Mendonça, Raul Pompéia, Francisca Júlia da Silva etc. Uma nota publicada em A Semana leva o leitor a crer que 20 Mulheres e a Literatura Brasileira as versões foram feitas a partir do original alemão – já que, segundo tal nota, não se fez uso da versão francesa de Gérard de Nerval, e sim “a edição definitiva e completa do Intermezzo, que contém o prólogo e vários números que não se acham na edição francesa” (A Semana, Ano V, Tomo V, Número 37, 14/04/1894, p. 295). A presença de germanófilos como João Ribeiro (que no mesmo ano já traduzira Uhland e Geibel para A Semana) e Francisca Júlia da Silva (que traduziu Lieder de Goethe para A Semana, uma em abril e outra em agosto de 1894) parece reforçar a impressão insinuada na nota editorial. No entanto, há diversos tradutores que não eram familiarizados com a língua alemã, como Artur Azevedo. Além disso, se familiaridade pressupõe intimidade, há, por esse lado, os problemas suscitados por traduções como as de Machado2. 2 Os trabalhos percucientes de Jean Michel Massa (especialmente Machado de Assis tradutor) têm lançado novas luzes sobre a escrita tradutória em Machado, incluindo, aí, tentativas de aferir o grau de conhecimento de outros idiomas por parte de Machado. Para aferir tais aspectos concernentes à escrita tradutória machadiana, é necessário entender seus hábitos de estudo e leitura, implicando, aí, em uma passagem por sua biblioteca – o que já foi feito com grande competência pelo mesmo Massa e por estudiosos como Glória Vianna. Em que pesem esses levantamentos sistemáticos e rigorosos de dados relativos à escrita tradutória, à formação do leitor e intelectual e à biblioteca de Machado de Assis, algumas lacunas ainda se percebem. Se é certo que antes de 1883 Machado não sabia alemão (como se infere de nota aposta por ele mesmo à tradução de um poema de Schiller), não é possível, contudo, afirmar que após essa data tenha atingido o nível da intimidade (pressuposto no termo "familiaridade") com a língua alemã, sendo mesmo difícil determinar se o conhecimento do idioma ia além de um contato incipiente e da posse de um número reduzido de volumes (apenas 4,04% dos volumes sobreviventes) em sua biblioteca. Como indaga 21 Mulheres e a Literatura Brasileira As traduções do Intermezzo foram publicadas em A Semana entre 31 de março e 28 de abril de 1894, enfeixadas, depois, em volume, publicado no mesmo ano. João Ribeiro, no prefácio a Mármores, de Francisca Júlia, nos informa que, ainda em 1894, o crítico alemão Emílio Strauss teria publicado nos folhetins do Tagblatt de São Paulo uma “extensa apreciação sobre a tradução brasileira” (apud: SILVA, 1895, p. XXVII). O crítico sergipano aproveita para reafirmar a capacidade de Francisca Júlia em trabalhar com material original e dele apreender o significado literal, ainda que, como prática corrente na época, opte por um partido tradutório mais livre, mediante o qual o gesto de tradução se constitui, por si, um ato criativo. Em Mármores reuniu uma série de Lieder de Goethe. A primeira delas é “Calma do mar”, cuja tradução é elogiada por João Ribeiro, e aqui segue transcrita: Tranquilo, o mar não canta nem ondeia. O nauta, imerso noutro mar de mágoas, Os olhos tristes e úmidos passeia Pela tranquila quietação das águas. A onda, que dorme quieta, não espuma; O astro, que sonha plácido, não canta; E em todo o vasto mar, em parte alguma A mais pequena vaga se levanta. (SILVA, 1895, p. 40) o próprio Massa, “teria ele atingido conhecimento suficiente de alemão para ler Sacher-Masoch e Jean-Paul no original? O caráter olímpico que alguns gostam de querer encontrar na obra de Machado de Assis seria influência da leitura de Goethe? Eis aí outras tantas novas interrogações” (MASSA, 2001, p. 32). 22 Mulheres e a Literatura Brasileira O poema original de Goethe (“Meeres Stille”) contém oito versos – quantidade que foi respeitada por Francisca Júlia em sua tradução. O esquema rímico do original é configurado em rimas alternadas, observado rigorosamente pela tradutora. A única liberdade tomada por Francisca Júlia em sua tradução seria a escolha em prol dos decassílabos heroicos como padrão rítmico. A segunda é o Lied “Sicilien”, com estrutura versificatória e soluções de tradução análogas às de “Calma do mar”: Olhos! que ateais os corações e a guerra, Olhos, quando piscais, olhos de brasas, Muralhas abalroam, caem casas, E enormes paredões rolam por terra! Assim, a um golpe rápido de vista, Esta débil e trêmula muralha, Dentro da qual meu coração trabalha, Como quereis, dizei-me, que resista? (SILVA, 1895, p. 42) A terceira Lied traduzida é “A puritana”: Deliciosa manhã de primavera doura Os campos. Ainda dorme o sol. Mas a pastora, Descuidosa, passeia, enfeitadinha já. Quem a vê, a maciez das faces lhe namora. E ela cantando vai pelos campos em fora: Tra-lá-lá! Tra-lá-lá! Por um beijo um pastor oferta-lhe uma ovelha, Duas, quantas quiser... E ela fica vermelha De raiva, bate o pé... Tão formosa e tão má! Encara-o com desprezo; e depois, apressando Os passos, segue adiante, alígera, cantando: Tra-lá-lá! Tra-lá-lá! 23 Mulheres e a Literatura Brasileira Um pastor lhe oferece o coração a ela; Fitas outro pastor lhe oferta; mas a bela Pastorinha gentil, enfastiada já, Ri de ambos, como riu das ovelhinhas brancas Do primeiro. E prossegue, entre risadas francas, Tra-lá-lá! Tra-lá-lá! (SILVA, 1895, p. 43-44). Como em um jogo de mascaramentos – o que convém à mimese poética –, a voz da tradutora amalgama-se ao corpo do poema traduzido e, em uma torção semiótica de causar desconcerto, tomba a máscara do outro actante, desvelando seus artifícios de construção gnômica da mulher-pastora, ligeira e leviana, em seus atos sem consequências e a moverse em um universo pleno de diminutivos (“enfeitadinha”, “ovelhinha”). Apesar dos elogios de João Ribeiro, o fato de os títulos estarem em francês nos leva a crer que a tradução de Francisca Júlia não tenha sido feita diretamente do original ou que, pelo menos, uma tradução francesa tenha servido de apoio. É muito provável que a tradução mediadora tenha sido a do Barão Henri Blaze de Bury, que também traduziu o Fausto e que em 1843 fez publicar suas versões para a poesia de Goethe, por Charpentier. Sob a pena do barão, as Lieder de Goethe são reduzidas a textos em prosa, nos quais é oferecida a camada de significação literal dos poemas, sendo a tradução encarada pelo francês não como evento de criação artística, e sim como problema estritamente filológico. Nisso reside o mérito de Francisca Júlia, que, ainda que tenha utilizado a versão literal de Henri Blaze de Bury (ou qualquer outra) como lastro para a estabilização do campo semântico dos textos, a ela não se ateve, ultrapassando a concepção estritamente filológica do ato tradutório, já que seu objetivo é a criação de um outro poema, gesto criativo que se apresenta em relação de cerrada 24 Mulheres e a Literatura Brasileira analogia com um objeto estético previamente existente (o original). É assim que as traduções de Francisca Júlia são fieis, mas não encenam a figura do tradutor-servo. Para si, o objetivo último do ato tradutório é a deflagração de um gesto criativo. No caso das traduções para Heine, a concepção subjacente aos trabalhos realizados com os Lieder de Goethe se tornam mais complexas. As traduções de Heine propostas por Francisca Júlia são extraídas do Intermezzo. Composto por um prólogo, a que se seguem sessenta e cinco breves poemas, Lyrisches Intermezzo é uma das obras mais conhecidas do poeta alemão, tendo sido musicados alguns desses poemas por Schumann. Seus primeiros tradutores para o francês, Gérard de Nerval e René Taillandier, consideravam-no o trabalho mais original de Heine e, certamente, para além das ricas e delicadas imagens que compõem a camada fanopaica do mesmo, a musicalidade e a elaboração rítmica do pensamento poético desempenham papel preponderante nesse veredito. No entanto, em que pese o respeito demonstrado pelos tradutores franceses, os mesmos não hesitaram em apresentar em prosa os versos do Intermezzo. O mesmo não ocorre com Francisca Júlia: para os quatro poemas pinçados do Intermezzo, ela propõe traduções em versos, criando objetos poéticos em condições de analogia com o original de Heine. Para o primeiro deles, a tradutora alterna hexassílabos e decassílabos (que, por serem heroicos, carregam também a cesura na sexta sílaba), criando um padrão rítmico que procura mimetizar, nas condições de versificação que a língua e o repertório poético com ela criado permitem, efeitos rítmicos verificados no original, sobretudo aqueles ligados a um certo torneado de frase, a certa modelagem artística da língua: 25 Mulheres e a Literatura Brasileira Já te esqueceste, pois, inteiramente, De que em melhores épocas da vida, Teu coração, querida, Me palpitou no coração ardente? Teu coração de leve mariposa, Esvoaçante e terrena, Tão pequeno e tão falso que outra cousa Não pode haver mais falsa e mais pequena? E, de certo também já te esqueceste Do pesar e do amor Com que tu me prendeste O coração num círculo de dor. Pesar e amor! ambos me fazem doente; Ambos me são do pranto Incentivos fatais; E não sei, entretanto, Se aquele pode ser maior do que este, Pois sei apenas que ambos, igualmente, Já são grandes demais. (SILVA, 1895, p. 47-48) O jogo de alternâncias é repetido no segundo poema: Meus cantos, cujo treno Minh´alma escuta amargurada e triste, São repassados de letal veneno: De outra forma não pode ser, querida, Porque tu espargiste Sobre a modesta flor da minha vida O orvalho do veneno. Meus cantos, cujo treno Qualquer sorriso em lágrimas transforma, São repassados de letal veneno; Não pode ser, entanto, de outra forma, 26 Mulheres e a Literatura Brasileira Porque, em meio das coisas mais singelas Que tenho n´alma, agitam-se, frementes, Implacáveis serpentes... E tu, formosa amante, és uma delas! (JÚLIA, 1895, p. 49-50) Os outros dois poemas apresentam semelhante jogo de alternâncias, só que agora entre alexandrinos e hexassílabos. A noite é muda e triste. O espaço é triste e mudo. E caminhando eu vou pela floresta espessa, Rompendo a cerração. As ramagens abalo, as árvores sacudo: E elas movem de leve a rórida cabeça, Num ar de compaixão. (SILVA, 1895, p. 52) Floresta afora, além, no encontro das estradas, Suicidas, sem descanso, Agitam-se no horror das covas profanadas. Perto uma flor azul desabrocha de manso: Dão-lhe o nome de flor das almas condenadas. Certa vez eu lá fui. A noite estava fria; O espaço mudo estava. À beira de uma cova a flor azul tremia; E entre nuvens de crepe a lua, que passava, Derramava-lhe em torno a sua luz sombria. (SILVA, 1895, p. 54-55) Além das traduções propriamente ditas, Francisca Júlia também realizou paráfrases e imitações – procedimentos correntes ao longo do século XIX e cuja distinção das traduções stricto sensu não seria tão fácil de ser deslindada. É o que ocorre com os poemas “A uma criança” e “O sino que 27 Mulheres e a Literatura Brasileira anda”, identificados como imitações de Victor Hugo e Goethe, respectivamente. Neste diapasão, Francisca Júlia executou pelo menos duas paráfrases: a primeira, de “O mergulhador”, de Henri Murger, sobre a qual escreveria João Ribeiro, enaltecendo a qualidade das traduções da poeta, sem, no entanto, deixar de apontar o que chama de “os perigos e desvantagens da paráfrase” (SILVA, 1895, p. xxx); a segunda, novamente de Goethe, em “Alma e destino”, desenvolvimento perifrástico e criativo dos versos do poeta alemão assinalados na epígrafes. Em Esfinges, Francisca Júlia ainda reuniria as traduções que fez do Conde de Marcellus (helenista francês) e de Chrysostomo Medjid (identificado como poeta turco contemporâneo), autores sobre os quais restam esparsas referências. Dentre os periódicos do século XIX, A Família foi aquele que talvez mais tenha investido em traduções de textos discutindo questões concernentes à emancipação feminina, abordando o tema a partir de perspectivas tanto sociológicas como jurídicas. Quase sempre as traduções eram assinadas por Josephina Álvares de Azevedo, editora desse importante jornal atuante no último quartel do século XIX. Em que pesem os esforços de divulgação de artigos escritos em línguas estrangeiras, A Família concedeu pouca atenção à tradução de poesia. A bem da verdade, no acervo depositado na Seção de Periódicos da Biblioteca Nacional encontramos apenas, ao longo de toda a coleção, apenas duas ocorrências de tradução de poesia. A primeira, de um poema traduzido do espanhol, sem indicações de autoria do original e da tradução. Tal procedimento era habitual na época, marcada por ampla liberdade do tradutor e dos editores em relação aos materiais traduzidos, chegando, como se vê, às raias do insólito. Embora não haja indicações de autoria, tendo em vista as indicações 28 Mulheres e a Literatura Brasileira biobibliográficas deixadas por Valéria Andrade Souto-Maior (cf: SOUTO-MAIOR, 2000, p. 489), é possível atribuir a tradução do poema em espanhol a Josephina Álvares de Azevedo. A segunda ocorrência é de um poema de Henri Murger, “O primeiro pecado de Margarida”, traduzido por Adelina Amélia Lopes Vieira, irmã da escritora Júlia Lopes de Almeida e autora de três livros de poesia, Margaritas, e de dois volumes de contos, um deles escrito em parceria com a irmã. A tradução da balada de Murger foi publicada em outros periódicos da época e, antes de A Família, já saíra na Revista Brasileira. Vale lembrar que Adelina deixou outras traduções poéticas, entre as quais poemas do francês Louis Ratisbonne (“Os ingratos”, “Chuva e sol” e “Nada se perde à mesa”). Adelina foi uma das juradas do torneio de traduções de um soneto de Victor Hugo lançado pelo jornal A Semana em 1885, ao lado de Machado de Assis e Lúcio de Mendonça. Quem também traduziu Murger foi Carmen Freire, a Baronesa de Mamanguape. No livro póstumo em que se reuniu sua poesia, Visões e sombras (1897, prefaciado por Guimarães Passos e Olavo Bilac), encontramos a tradução de “A uma estrangeira”: Nasceste no país, do qual Mignon, se diz Tem saudades, e tu como ela também choras Sob um céu estrangeiro, o céu do teu país. E passas tristemente intermináveis horas Vendo também morrer, de saudades transida, A planta tropical, um sol, sem luz, sem vida, No exílio nunca mais ela se abriu em flores... Morre, sucumbe, muda às mais profundas dores. Tu sorrisos não tens, ela não tem perfumes. 29 Mulheres e a Literatura Brasileira Para que a flor de novo entre festões floresça Para que ao teu olhar voltemos vivos lumes E o teu rosto de novo alegre resplandeça; Ambas necessitais do sol desse país Que Mignon não esquece e chora tristemente; E ao sol dessa região, encantador e quente, Vendo a flor renascer, tu viverás feliz. (FREIRE, 1897, p. 31-32) Embora fosse mais conhecido por sua obra como prosador, Henri Murger acabou recebendo alguma atenção como poeta no Brasil do século XIX, como fazem prova as traduções de Adelina Lopes Vieira e Carmen Freire, que podem juntar-se às que da poesia do francês fizeram Castro Alves, Lúcio de Mendonça e Regueira Costa – este último, dos mais constantes e empenhados tradutores de poesia do período. Cumpre ressaltar que Carmen Freire não traduziu apenas Murger. Encontramos, ainda, entre seus trabalhos na área da tradução de poesia, a tradução de um poema do romântico alemão Uhland, apresentado sem título no volume Visões e sombras: Assim como do sino o monótono canto Vibra ainda depois de abandonar a torre; Assim como quem desce alto monte correndo, Chegando ao plano ainda um bocadinho corre; Assim como a fogueira abandonada ao canto Muito tempo depois fulge morre-não-morre; Assim como uma flor já quase fenecendo, Aberto o cálix, cheira e o orvalho dela escorre; Assim como perdura o agreste sentimento 30 Mulheres e a Literatura Brasileira Da flauta pastoril no campo, onde o rebanho Traz o calmo pastor de venturas repleto; Assim dentro de mim, eterno, experimento Do soneto o desejo inefável e estranho, Que me obriga a fazer este último soneto. (FREIRE, 1897, p. 37-38) Se Byron foi muito traduzido no Brasil durante o século XIX, ao que tudo indica o poeta inglês teve poucas tradutoras entre nós. Uma delas foi Carolina von Koseritz, que, segundo informações da pesquisadora Onédia Célia de Carvalho Barbosa (responsável por acurada historiografia das traduções de Byron no Brasil), teria traduzido os poemas Manfredo, Mazeppa e Oscar d´Alva (cf: BARBOSA, 1974, p. 240). O Dicionário Bibliográfico Brasileiro informa que Carolina era “versada em várias línguas e dedicada às letras” (BLAKE, 1893, p. 94), tendo traduzido, além dos poemas de Byron, outras obras literárias: Hermann e Dorothea (de Goethe), O grilo da lareira (Charles Dickens) e Requiém (do poeta suíço residente no Brasil, Ferdinand von Schmid, que assinava com o pseudônimo de Dranmor), além de um conto e um poema de Turgueniev. Outra tradutora de Byron foi Francisca Izidora Gonçalves da Rocha. Segundo Sacramento Blake, D. Francisca seria “uma das mais distintas poetisas do Brasil” (BLAKE, 1893, p. 370), responsável, ainda, pela tradução do Manfredo, de Byron. Segundo Luzilá Gonçalves Ferreira, que tem se empenhado na revisão da obra da autora pernambucana, “tradutora exímia, Francisca Izidora traduziu poemas de Ossian, La chaumière indienne, de B. de Saint-Pierre, poemas de Byron, inclusive o Manfredo, e de Campoamor, entre outros” (FERREIRA, 2000, p. 758). Isso para ficarmos no campo das tradutoras e dos textos éditos. Sacramento Blake, em seu Dicionário, informa, por 31 Mulheres e a Literatura Brasileira exemplo, que Maria Luíza de Oliveira Arruda, versada em várias línguas, teria deixado “traduções inéditas e também composições musicais” (BLAKE, 1893, p. 236). Tais referências formam, à maneira de um mosaico onde encaixam-se fragmentos extraviados da historiografia oficial da literatura, a imagem de vigor intelectual e criatividade que emana da produção literária de autoria feminina ao longo do século XIX. Até aqui foram tratados apenas os casos de traduções de poesia estrangeira realizadas por poetas e escritoras brasileiras. Nesta parte final do artigo, cumpre consignar a existência, ainda, de um reduzido número de traduções de poesia estrangeira escrita por mulheres e traduzida por poetas brasileiros. Marceline Desbordes-Valmore, poeta francesa muito elogiada por Verlaine e Mallarmé, foi traduzida por Manoel Benício Fontenelle, que verteu para o português “O sino da tarde”, “A jovem castelã”, “À Poesia” e “A noiva do marinheiro” – este último, também traduzido por Lúcio de Mendonça, em cuja obra Canções do Outono a poesia de Marceline já comparece desde o pórtico. Vale registrar, ainda, as traduções de poemas escritos por autoras francesas hoje soterradas pela poeira do tempo, mas que mereceram a atenção dos românticos brasileiros. É o caso de Clara Mollart e Délphine de Girardin. A primeira teve “Os dous amores” traduzido por A. G. Teixeira e Souza e a última teve “Cleópatra – canto de um escravo” traduzido por ninguém menos que Machado de Assis. Mme. De Girardin – hoje esquecida, mas por cujo salão passaram Victor Hugo, Théophile Gautier, Lamartine, Alexandre Dumas Pai e Marceline Desbordes-Valmore – também foi traduzida por Corina Coaracy, que assinou o texto para a comédia A alegria causa medo. 32 Mulheres e a Literatura Brasileira Como se percebe, o campo das traduções poéticas no Brasil oitocentista se constitui em um amplo manancial ainda pouco investigado, carecendo de pesquisas capazes de rastrear um corpus mais ou menos estável, em consonância com os padrões vigentes de crítica textual e de estudos historiográficos. O que ora se apresentou foram os resultados parciais de investigação que objetiva o rastreamento e o mapeamento de traduções de poetas estrangeiros realizadas por poetas brasileiras e de traduções de poetas estrangeiras realizadas por poetas brasileiros ao longo do século XIX. A prospecção desse material, além de revelar a riqueza e a multiplicidade nas práticas sociais do período histórico focado, colabora, em alguma medida, para que o trabalho de reavaliação crítica das autoras atuantes no campo literário brasileiro do oitocentos absorva as relevantes (e por vezes desconcertantes) informações provindas desse trabalho arqueológico: para que os resíduos e vestígios mantenham não apenas sua existência no presente, como ainda aumentem, nele, sua força de ressonância e de resistência. Referências ASSIS, J. M. Machado de. “A nova geração”. In: Revista Brasileira. Ano I. Tomo II, Rio de Janeiro, 1879, pp. 373-413. BLAKE, Augusto Vitorino Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Volume II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. CÉSAR, Guilhermino. História da literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1956. FERREIRA, Luzilá Gonçalves. “Francisca Izidora Gonçalves da Rocha”. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras 33 Mulheres e a Literatura Brasileira Brasileiras do século XX. Volume 1. Florianópolis: Mulheres: Edunisc, 2000, pp. 758-760. FREIRE, Carmen. Visões e sombras. Rio de Janeiro: Casa Mont´Alverne, 1897. MASSA, Jean-Michel. “A biblioteca de Machado de Assis”. In: JOBIM, José Luís (org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001, pp. 21-33. PAIXÃO, Sylvia. “Narcisa Amália”. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras Brasileiras do século XX. Volume 1. Florianópolis: Mulheres: Edunisc, 2000, pp. 534-552. SILVA, Francisca Júlia da. Mármores. São Paulo: Horácio Belfort Sabino, 1895. SOUTO-MAIOR, Valéria Andrade. “Josefina Álvares de Azevedo”. In: MUZART, Zahidé Lupinacci (Org.). Escritoras Brasileiras do século XX. Volume 1. Florianópolis: Mulheres: Edunisc, 2000, pp. 484-499. TEIXEIRA, Múcio. Hugonianas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2003. 34 Mulheres e a Literatura Brasileira Identidade feminina e sufragismo no teatro brasileiro do século XIX Isamabéli Barbosa Candido1 Um pouco da história A literatura dramática de autoria feminina ganha os palcos apenas na segunda metade do século XX, o que não significa afirmar que as mulheres durante esse período não escrevessem. Foi durante o século XIX que os periódicos, tanto dirigidos por homens como por mulheres contaram com a presença maior dessa literatura. De forma que se torna quase impossível estudar a literatura produzida pelas mulheres no século XIX sem se fazer um levantamento do que havia sido lançado durante aquela época. De acordo com Souto-Maior (2001), além da produção em jornais, as mulheres publicaram livros e peças. O movimento pela conquista dos direitos políticos das mulheres ensaia seus primeiros passos na segunda metade do século XIX, marcada pelo início do processo de formação de uma nova consciência acerca das relações sociais entre os sexos. Uma forte voz sobre a questão da conquista dos direitos femininos nesse período foi Josefina Álvares de Azevedo, Zefa, pseudônimo que utilizava para assinar alguns de seus escritos no jornal A Família. Sua única peça, O Voto Feminino, símbolo do pioneirismo da luta sufragista, mesmo que ainda lhe seja negada tamanha importância, marca a insatisfação de Josefina 1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Doutoranda em Estudos da Linguagem pelo Programa de PósGraduação em Estudos da Linguagem (PPGEL). E-mail: isamabelibc@gmail.com 35 Mulheres e a Literatura Brasileira diante de uma sociedade opressora. Pouco se sabe sobre seu perfil biográfico, todos os registros de sua vida ficam a cargo de sua trajetória como escritora e intelectual. Mesmo pouco reconhecida, ao lado de Nísia Floresta (1810-1885), lhe cabe a história do pioneirismo do feminismo brasileiro 2. Conforme Souto-Maior (2001, p. 17), durante muito tempo, as mulheres não podiam participar de ocupações artísticas. Em Atenas, quando grandes nomes femininos tinham que ser representados no teatro, os homens assumiam o papel, pois tal direito era negado às mulheres. Na Idade Média, a exclusividade era masculina “na representação dos mistérios cristãos”, nesse caso, eram os padres que assumiam os papeis. As mulheres só entraram em cena na segunda metade do século XVI, com o advento da Commedia dell’arte que representava a realidade cotidiana, em contradição com um teatro acostumado com o conflito baseado na mitologia heroica da Antiguidade. A partir do século XVII, as mulheres passam a fazer parte das atuações teatrais na Inglaterra e França, todavia, estas atividades ainda as confundiam com prostitutas. A grande problemática, com base nas pesquisas de SoutoMaior (2001), era em relação à mulher que assumisse um personagem teatral, pois estaria usando o corpo em discordância com o discurso oficial, que tinha como base a constituição familiar. Tais mulheres, ao interpretarem algum personagem, poderiam assumir diversas personalidades e até mesmo viverem diversas formas de convivência conjugal, o que poderia provocar possibilidades infinitas de uma nova percepção de mundo e de hábito. 2 Tendo em vista a exiguidade de fontes sobre Josefina Álvares de Azevedo, para reconstruirmos seu percurso, vamos nos valer da pesquisa apresentada por Valéria Andrade, em O Florete e a Máscara. 36 Mulheres e a Literatura Brasileira Durante o período entre 1855 e 1865, de acordo com Faria (1993, p. 123-127), muitas atrizes passaram pelos palcos brasileiros, em especial na cena do Ginásio, entre elas Gabriela Cunha, a moça “ingênua”, ou seja, que interpretava personagens delicados; e Adelaide Amaral, elogiada por suas interpretações em papeis cômicos, ou nos secundários da comédia realista francesa que vinham ao Rio de Janeiro. O velho discurso da Igreja deve ter afrontado muitas dessas mulheres, mas mesmo sendo apontadas como “mulheres de mal proceder”, entre elas, as prostitutas, não deixaram passar a chance de ganhar algum “extra”; já às outras, consideradas de família, as do “bem proceder”, cujo trabalho não interessava, ou não era permitido, deixaram o caminho aberto às que se permitiam atuar. Segundo SoutoMaior (2001), às mulheres também era negado o direito de assistir as peças, uma vez que “mulher decente” não frequentava teatro, principalmente pela presença feminina nos palcos, o que poderia colocar em risco sua reputação. De outro lado, surge a voz feminina na imprensa, na segunda metade do século XIX, em periódicos que divulgaram a fala e o movimento feminista que ganhava lugar. É nesse espaço que encontramos Josefina Álvares de Azevedo. Uma das discussões é o direito do voto feminino, culmina na publicação de sua peça O Voto Feminino. Devemos considerar que a partir da chegada da Família Real, em 1808, no Brasil, o teatro começa a ganhar espaço, porém as pessoas o frequentavam mais para serem vistas, do que para assistirem aos espetáculos, uma vez que tal hábito se tornou um importante costume social. O comportamento das brasileiras se altera, e, já na segunda metade do século, os primeiros periódicos dedicados ao público feminino aparecem. É inegável a luta que as mulheres traçam, neste momento, pela ampliação do exercício de sua cidadania, que ao longo dos 37 Mulheres e a Literatura Brasileira tempos foi motivo de discussões em diversos ramos do conhecimento. Um deles é o teatro, que a partir da segunda metade do século XIX passa por muitas mudanças, provocadas basicamente pela explosão do Realismo e do Naturalismo, que se confundiram, constituindo momentos quase simultâneos. O Rio de Janeiro, especificamente em 1860, sentia o peso de uma miséria cultural, indicada na falta de público para manter as peças em cartaz. O interesse pelos espetáculos só começava a aumentar depois de umas doze apresentações, mas, nem todas as peças eram aceitas, diante disso, as companhias buscavam sempre se diferenciar nos espetáculos, fator fundamental, pois foi dessa forma que o público começou a se interessar e frequentar o Ginásio, a partir daí, os espetáculos realistas franceses começaram a fazer parte do repertório. Faria (1993, p. 107) revela que subiram no palco do Ginásio as pequenas comédias, no entanto, sua preocupação maior era a comédia realista e o drama “moderno”, não o romântico. Os autores brasileiros também foram responsáveis por uma produção que se manteve em cartaz no Ginásio. Faria (1993) afirma que, de algumas peças que foram encenadas, poucas merecem destaque e estas são: Túnica de Nessus, de Sizenando Barreto Nabuco de Araújo; Gabriela e Cancros Sociais, de Maria Angélica Ribeiro; Punição, de Pinheiro Guimarães; Os Miseráveis, de Agrário de Meneses; e O cativeiro Moral, de Aquiles Varejão. Maria Angélica Ribeiro foi a única mulher que fez parte desse quadro de artistas que tinham suas peças encenadas e bem aceitas na época, mesmo com sucesso desde o século XIX, sua dramaturgia, com Cancros Sociais, só é publicada em livro para leitor contemporâneo em 2006, na Antologia do teatro realista. 38 Mulheres e a Literatura Brasileira Segundo Faria (2006, p. 12), o realismo no teatro é um tanto prejudicado pela visão maniqueísta que assume, ou seja, os heróis são sempre pais e mães de família, bem comportados, o amor não é o ardente como o do romantismo, mas sim, o conjugal, e os vilões são sempre os personagens marginalizados da sociedade: a prostituta, um agiota, entendidos como ameaças à instituição familiar. Por isso, o teórico expõe que as peças assumem esse caráter moralizador, e para que o público não vá para casa sem saber distinguir a lição do espetáculo há um porta voz do autor o raisonneur, responsável por enfatizar ainda mais o que o autor da peça tem a dizer. A produção cultural brasileira do século XIX muito dependia dos modelos europeus, principalmente dos franceses, que trouxeram para os palcos brasileiros o retrato de uma sociedade moderna, civilizada, moralizada, conduzida pela burguesia que defendia o casamento, a família, a honra e a inteligência, uma espécie de tribuna voltada para o debate das questões sociais. É nesse espaço importante que encontramos O Voto Feminino. A mulher e o século XIX Josefina Álvares de Azevedo 3 fora instigada, sobretudo, pela negativa do governo em incluir a lei do voto feminino no Projeto da Constituição que se elaborava. Contrariando a concepção a respeito das mulheres como seres frágeis, subordinadas aos homens, passivas, procriadoras, nessa 3 Vamos nos valer das pesquisas apresentadas por Valéria Andrade Souto-Maior como fonte sobre Josefina Álvares de Azevedo, bem como sobre a literatura dramática de autoria feminina. 39 Mulheres e a Literatura Brasileira mesma época, uma voz tentava ser abafada, nesse caso uma mulher, Josefina Álvares de Azevedo, e mesmo sem saber que demoraria muito para que seu pedido de direito ao voto fosse aceito, o que só aconteceu em 1932, quando o governo brasileiro decreta um novo código eleitoral, incluindo as mulheres no exercício de sua cidadania, criticava e lutava contra a esmagadora sociedade patriarcal. Um meio encontrado por elas para exporem suas ideias, foram os jornais, e, para isso, Josefina Álvares fundou o jornal A Família, de acordo com Souto-Maior (2001). Sempre preocupada em escrever em suas páginas, principalmente dirigidas às mulheres, a respeito de uma educação mais consistente, enfatizava a instrução, entendida como instrumento de libertação efetiva das mulheres, uma porta que se abria para fora do lar. Consequentemente, isso traria benefícios, como o exercício de novas funções em esferas diversas como na economia, na política e na cultura. Essa corrente que se cria, através dos jornais e escritoras espalhadas pelo país, começa a despertar nas mulheres o sentimento de igualdade em relação aos homens, de forma que crescia a divulgação de exemplos de sucesso feminino conquistados, não só no Brasil, como também em vários outros países, em diversas áreas profissionais, tais como a advocacia, medicina, artes plásticas, teatro, além das letras e do magistério. Souto-Maior (2001) em seus estudos revela que as mulheres cariocas do século XIX assumiram um novo papel na esfera social, o de dama de salão, o que lhes permitia a transitoriedade entre a casa e a rua. Os salões, além de oferecer às mulheres maior desenvoltura de ação nos domínios domésticos, davam-lhes essa possibilidade de transitar com mais liberdade entre o público e o privado, participando das atividades culturais como os recitais poéticos, de música de 40 Mulheres e a Literatura Brasileira câmara, de canto e representação de trechos de peça teatral; possibilitava conhecer uma diversidade de pessoas, mesmo que isso não contribuísse para articulações em torno da independência. Toda essa movimentação gerava, nas mulheres, a vontade de deixarem o papel de meras espectadoras, para assumirem o papel de atuantes na sociedade. De acordo com Souto-Maior (2001), nessa mesma época, os salões concorriam com os teatros, que começavam a ser invadidos pela presença feminina, assumindo um caráter político, palcos de articulações para a luta por seus direitos. Como se percebe, há uma distância entre a esfera pública e privada entendida para Scholz (1996, p. 18) como a estrutura básica da relação de valor, sendo a primeira ocupada por homens, já que estes são os responsáveis pelo Estado, política, trabalho, ciência e arte, e a segunda ficando a cargo das mulheres: a família, a sexualidade, a fraqueza, o que consiste em uma diferenciação “histórica do patriarcado”. Afirma-se que o termo patriarcado refere-se ao domínio arbitrário dos homens sobre as mulheres, porém, tal ideia, assume mais um valor propagandístico, tendo em vista que sempre contrapõem o homem à mulher, sujeitando ambos de modo equivalente. Assim, os homens não comandam um regimento patriarcal, eles são responsáveis por executar a relação fetichista de poder que é pressuposta. As divergências que decorrem da esfera feminina, o contexto de vida delas e o domínio de atividades impostas a elas, como a administração do lar, educação dos filhos, convívio social, são elementos integrantes da socialização pelo valor, porém, são também, exteriores a elas. Como afirma Scott (2005, p.6), quando diz que nunca foi aceitável pensar nas mulheres abandonando seus pios cuidados de suas casas, os berços de seus filhos, para virem a espaços públicos, discursarem nas galerias, nos foros do Senado. 41 Mulheres e a Literatura Brasileira De acordo com Souto-Maior (2001, p. 16), as mulheres sempre foram vítimas de opressão, em se tratando do meio artístico, nos séculos XVII e XVIII, as mulheres que pintavam e que, já desde o século XVI, tentavam reconhecimento, ficaram restritas à pintura floral, à natureza morta e ao retrato, gêneros considerados de menor valor artístico. Na música, também tiveram que enfrentar alguns obstáculos, pois eram proibidas de cantar nos coros da igreja desde a Idade Média. Só no final do século XIX, garantiram o direito de produzir composições, e o acesso ao treinamento musical, que só era possível aos rapazes. Com relação à escrita, as mulheres sempre foram barradas, pois se a elas não era garantido o direito à educação em escolas, era retirado também o direito da escrita literária. Do mesmo modo aconteceu com o teatro durante o século XIX: as mulheres foram impedidas de atuar. Fruto dessa marginalização do teatro, a dramaturgia escrita por mulheres ainda é praticamente desconhecida. O único papel de destaque que elas recebiam eram nas produções teatrais elaboradas por homens. Gomes (2008, p. 397) apresenta em sequência cronológica: Antígona e Medeia, das tragédias homônimas, respectivamente, de Sófocles e Eurípedes; Lady Macbeth, da tragédia Macbeth de Shakespeare; Nora, de Casa de Bonecas, de Ibsen. Entre as personagens femininas do teatro brasileiro, as mais lembradas são Leonor de Mendonça, da peça homônima de Gonçalves Dias; Carolina, de As asas de um anjo, de José de Alencar; Berenice, da peça homônima de Roberto Gomes; Alaíde e Zulmira, respectivamente de Vestido de Noiva e A Falecida, de Nelson Rodrigues, entre outras. O cenário pobre do teatro brasileiro começa a ser mudado: agora, o público passava a lotar os teatros. As mulheres, por imitação do exemplo europeu oferecido pelas princesas começavam a se tornar espectadoras, mesmo que, em seus 42 Mulheres e a Literatura Brasileira camarotes, houvesse uma reprodução temporária da casa de família, visto a maneira como os pais e maridos “zelosos” tinham de “protegê-las”. Agora era permitido que as mulheres de “bem proceder” frequentassem outro lugar além da igreja, de modo que, por consequência, conheciam outras mulheres e homens, aprendiam novas músicas, deixando seu meio social mais amplo, respirando outros ares além do restrito convívio doméstico. O teatro brasileiro recebe fortes influências do teatro europeu que muito alterara a imagem do ator e da atriz, o que contribuiu para aumentar o número de pessoas, sobretudo das mulheres interessadas em se tornarem profissionais do palco, de elemento vulgar e marginal, o teatro transforma-se em propagador da civilização. Porém, ainda era negado às mulheres criar os próprios personagens e seus enredos, pois, a primeira metade do século XIX, um dos maiores problemas enfrentados por elas foi o analfabetismo: até 1827, as meninas não tinham direito ao ensino primário no Brasil, de acordo com Souto-Maior (2001, p. 17). O cenário habitual do teatro, já na segunda metade do século XIX, começava a ser alterado com a chegada da comédia realista, ameaçando o teatro romântico. O novo gênero chega ao Brasil por volta de 1855 e seu primeiro palco foi o Ginásio Dramático, sendo bem recebido por boa parte do público e pelos jovens intelectuais do Rio de Janeiro, conforme também apresenta Faria (2006, p. 12-13). Vale salientar que as mulheres não ficaram de fora do movimento de reorganização do teatro brasileiro, mesmo que suas contribuições mais ativas fossem nas representações, um número, mesmo que pequeno, teve participação ativa, como tradutoras e até autoras de peças teatrais. A partir de então, a carreira artística de atriz já passava a ser apontada por 43 Mulheres e a Literatura Brasileira jornalistas brasileiras como uma das possibilidades profissionais para as mulheres. A arte dramática estava ganhando espaço, e nesse período começa a ensaiar o importante papel que irá influenciar, algumas décadas mais tarde, no que concerne à batalha das mulheres em torno da conquista por seus direitos na sociedade. Gabriela pode ser pensada como uma das primeiras manifestações cênica em defesa da mulher, bem como Cancros Sociais e Um dia de opulência, como também em A Ressurreição do Primo Basílio, Maria Angélica Ribeiro não deixará de se posicionar, ainda que seja pelas entrelinhas, como uma dramaturga empenhada em retratar, discutir e protestar contra os equívocos referentes à situação opressiva vivida socialmente pelas mulheres de sua época. De acordo com Magaldi (2004, p. 15), as peças desse período no Brasil advogaram a fusão das raças, a Independência, o Abolicionismo, a República, e estigmatizaram os diversos erros da sociedade. Sempre ampararam os oprimidos, combatendo qualquer forma de tirania. É desta forma que a “nova geração” começa a despertar e recusa o teatro como simples entretenimento, proclamando o seu elevado alcance social. Se o nome feminino mais conhecido na literatura dramática é o de Maria Angélica Ribeiro, que possui uma vasta obra teatral com mais de vinte peças, quase todas inéditas, ou perdidas, outro nome é de Josefina Álvares de Azevedo, pouco conhecida no país, cuja única peça, O Voto Feminino, serve como um significativo grito para que as mulheres naquele momento despertassem do aprisionamento em que viviam superando a visão de que elas eram inferiores. Devemos compreender que se propagava uma imagem do feminino que “sofre o mundo” ao invés de agir sobre ele. Essa ideia ganha mais força no século XIX, quando o modelo do ideal feminino 44 Mulheres e a Literatura Brasileira será ampliado pela valorização da maternidade, o que sofre grandes influências da igreja que sustentava o ideal de mulher associados à figura mariana. É no confinamento da casa, que a mulher fundamentará sua autoridade sobre a família, sobre o homem. Simbólica e praticamente lhes é dado tanto mais poder quanto mais elas abandonassem quaisquer pretensões políticas e/ou sociais externas ao âmbito doméstico, limitando-se ao papel de educadoras de seus filhos, quando assim o marido o desejasse, pois nem todos lhes garantiam tal capacidade. Como afirma Beauvoir (1949, p. 165), “o destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento. Em sua maioria, ainda hoje, as mulheres são casadas, ou o foram, ou se preparam para sê-lo, ou sofrem por não ser”. Scholz (1996, p. 18) acredita que ao caracterizar o patriarcado, as diferenças sociais entre homens e mulheres tornam-se produtos de uma cultura, portanto, deixam de ser resultante de dados biológicos. Isso não significa dizer que as diferenças biológicas entre os sexos não tenham importância. Assim, com base em Scott (2005, p. 21), ao legitimarem a exclusão das mulheres, tomando como fundamento as diferenças biológicas entre elas e os homens, “a diferença sexual” foi estabelecida não apenas como um fator natural, mas também como uma base ontológica para diferenciá-los nas esferas políticas e sociais. Os movimento feministas, que começaram a aparecer no século XIX, surgem para tentar derrubar os conceitos que consideram a mulher como apenas “procriadoras”, e lutam para que a mulher seja vista também como um ser humano que possui suas particularidades, assim como todos os outros. O feminismo enfatizou, como uma questão política e social, o tema da forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. 45 Mulheres e a Literatura Brasileira A busca da identidade feminina é uma questão amplamente discutida e que ainda não gerou soluções. Poucas foram as mulheres que conseguiram destaque, ainda assim sofreram com os preconceitos impostos. A força do movimento feminista teve também sua importância no que Stuart Hall (2005, p. 45) chamou de “crise de identidade”, que faz parte de um processo amplo de mudanças, deslocando as estruturas e processos centrais de sociedades modernas, transformando aquilo que os indivíduos tinham como referência estável no mundo, no caso, as concepções machistas acerca das mulheres, os velhos preconceitos. Assim, “a identidade surge não tanto pela plenitude da identidade que já está dentro de nós, mas de uma falta que é preenchida a partir do nosso exterior, pelas formas nas quais imaginamos ser vistos pelos outros” (HALL, 2005, p. 39). A reflexão sobre a identidade feminina no século XIX e as formas pelas quais ela se exprime, revela esse entrecruzamento, ou seja, uma busca pela identidade de um lado, e, de outro, um procedimento histórico, entendido como um percurso no interior do qual o indivíduo desenvolve a sua identidade, mas, pelo contrário, como a pedra a qual assenta a cada vez mais precária constituição de sua procura. Isso significa dizer que a história não é sentida, predominantemente, como o fluir do exterior do tempo, ao qual o indivíduo seria necessariamente alheio, mesmo se constituindo como ser atuante. Nesse caso, Buescu (2001, p. 85) afirma que a identidade seria, pelo contrário, constituída através da história e é esta história que permite a autoconsciência e a auto-expressão do sujeito enquanto tal: Não basta reconhecer alguém (ou algo) como sujeito: tornase necessário compreender de forma precisa como é que tal reconhecimento é mantido, ou mesmo preservado, através 46 Mulheres e a Literatura Brasileira do tempo, especialmente no caso em que surjam diferentes figurações, que poderiam diminuir a capacidade de compreensão de como, sendo diferentes, apesar de tudo manifestam uma mesma identidade e de alguma forma constituem sobretudo “modalidades” dela. Isto significa também que a identidade pode (mesmo se paradoxalmente) diferir de si própria, manifestando-se sob a forma de desidentificações aparentes (BUESCU, 2001, p. 87). Para a referida autora, um dos problemas fundamentais para o pensamento romântico foi a constituição da identidade individual, por ter relação não apenas com a tentativa de “equacionação do que “eu” sou”, mas, reciprocamente, de como este “eu” se diferencia de outros. De forma que o sujeito formula sua identidade através ainda de uma outra atividade comparativa, com relação à temporalidade humana, ou seja, como uma forma de memória pessoal que é, acima de tudo, a memória da história familiar. É através da reflexão voltada para o conceito e imagem da família, cujo sentido para uma visão burguesa do mundo é evidentemente essencial, que o construto histórico da noção de sujeito enquanto identidade se formula e desenvolve. A família pode ser interpretada como o primeiro lugar em que os indivíduos constroem sua identidade, e, no século XIX, a educação das mulheres ainda acontecia no seio familiar, sendo geralmente exercida por mulheres. Resultado: as mulheres acabavam respirando a atmosfera de um mundo totalmente feminino, em que lhes era ensinado que o casamento e os filhos são, de fato, indispensáveis para sua condição social, algo que faz parte do destino de todas, tornando-as cada vez mais subordinadas aos homens. Ou seja, o patriarcado do valor foi obrigado a criar para si um refúgio onde pudesse resguardar-se de si próprio a privacidade abstrata da família, considerada como a esfera de ação preferida da mulher. 47 Mulheres e a Literatura Brasileira A mulher pode ser considerada por muitos como um ser inteiro, mas, mesmo com as mudanças que vinham ocorrendo desde a época de Josefina Álvares de Azevedo, elas ainda são afastadas e bloqueadas pela sociedade, vivendo em uma dicotomia: por um lado, buscam sua individualidade e direitos como ser humano, por outro, ainda são responsáveis por obrigações que dizem ser de caráter apenas feminino, ligadas às estruturas familiares que permanecem praticamente inalteradas. Todavia, não estão mais ancoradas na total dominação masculina, e nem caracterizadas pela total indiferença. Identidade e sufragismo O Voto Feminino foi uma peça utilizada como instrumento de propaganda na luta pelos direitos políticos das mulheres, por isso, assume um caráter simbólico da origem do sufragismo brasileiro. Pensada para revelar a necessidade de abolir a desigualdade social entre homens e mulheres, a partir da garantia dos seus direitos. O conflito da peça está centrado na aprovação do sufrágio feminino defendido ora por um grupo de personagens, ora por outro, envolvendo sempre os casais Anastácio e Inês (que representa a voz de Josefina na peça), Rafael e Esmeralda, Joaquina e Antonio e o Dr. Florêncio, único homem a favor do sufragismo. Mesmo que o resultado primeiro da peça seja a negação do ministro, a esperança ainda tem força e ganha continuidade com Constituinte. Em suas iniciativas na luta pela garantia dos direito da mulher, a ativista afirma que a diferença sexual não é sinal de diferença na capacidade da mulher em dividir com os homens tanto a direção da família como a do Estado, pois era às mulheres que cabia o papel principal, e não aos homens: 48 Mulheres e a Literatura Brasileira Até hoje têm os homens mantido o falso e funesto princípio de nossa inferioridade. Mas nós não somos a eles inferiores porque somos suas semelhantes, embora de sexo diverso. [...] Portanto, em tudo devemos competir com os homens – no governo da família, como na direção do Estado. [...] As sociedades assentam suas bases sobre dois princípios cardeais: o princípio da força e o princípio da ordem. O princípio da força é o homem, o princípio da ordem a mulher. Assim pensado, até me parece que compete-as de preferência a direção das sociedades. Porque o homem é e foi sempre a negação da ordem, sem a qual não há sociedade possível. E em abono desta opinião eu vos trarei um exemplo muito vulgar – o governo de uma casa. É raro o homem que sabe dirigi-la: pois bem, ele que não é capaz de governar uma casa, que se compõe de algumas pessoas, poderá governar um estado, que se compõe de muitas centenas de casas? Entretanto não é nosso o domínio dos povos e das nações (AZEVEDO apud SOUTO-MAIOR, 2001, p. 51-52). Ainda, de acordo com Souto-Maior (2001, p. 53-54), nomes como Narcisa Amália (1852-1924), Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e Ignez Sabino (1853-?), escritoras e poetisas de renome, outras como Anália Franco (1859-1919) e a belga Marie Renotte (séc. XIX), que ganhavam destaque como educadoras, todas da mesma época que Josefina, foram mulheres que contribuíram com seus escritos, para as possibilidades de modificação da visão que se propagava sobre elas na sociedade, ao se mostrarem capazes de nivelamento social com os homens. Porém, desde os inícios das atividades à frente do seu jornal, Josefina sentiu uma grande dificuldade em relação à indiferença com que algumas mulheres tratavam as leituras desses periódicos. 49 Mulheres e a Literatura Brasileira A existência de outros periódicos dirigidos por homens, dedicados às mulheres nessa época, fez com que a concorrência aumentasse, todavia, esses jornais não tinham nenhuma intenção de alterar a ordem social instituída. Isso fez com que os jornais feministas assumissem outra roupagem, sendo obrigados a incluir entre seus artigos, alguns com intenção pró-emancipação feminina, como também assuntos sobre figurino de moda, receitas de beleza e culinária, notícia de teatro e de leituras consideradas amenas. Josefina não se deixou abater, tampouco, se sentiu obrigada por tal imposição, mesmo provando os efeitos de tal decisão. É o que revela em um de seus primeiros artigos sobre a educação da mulher, publicado em janeiro de 1890. O fato de redigir uma folha exclusivamente para mulheres aparecia-lhe como prova da capacidade feminina de construir sua autonomia. Nessa mesma época, A Família, traz duras críticas não só às leitoras e suas leituras, mas também ao outro único jornal do Rio de Janeiro, dedicado à causa da emancipação feminina, dirigido por Francisca Senhorinha da Motta Diniz, que em novembro de 1873, na cidade de Campanha de Princesa - MG, editou pela primeira vez, o jornal literário chamado O Sexo Feminino, tendo como propostas principais, “difundir à educação pelas mulheres e de servir de veículo para a instrução e ilustração feminina” (MARQUES, 2009, p. 442). A partir da edição de 15 de dezembro de 1889, no Rio de Janeiro, Senhorinha mudou o nome do jornal para O 15 de Novembro do Sexo Feminino, de forma que marca expressivamente o tom da mensagem, que passou a incluir a defesa do voto feminino. Os estudos de Souto-Maior (2001) revelam que temas políticos não faziam parte dos assuntos abordados em O Sexo Feminino, pois Senhorinha revelava ceticismo quanto aos efeitos positivos da mudança de regime sobre a condição 50 Mulheres e a Literatura Brasileira feminina. O fato de Senhorinha publicar em seu periódico entretenimentos demais para as mulheres, fez com que Josefina não considerasse seu jornal como sendo da mesma natureza que o seu, pois só este era dedicado, de fato, às questões femininas/feministas, e talvez, por isso, não tenha despertado tanto interesse nas leitoras. A primeira condição essencial da emancipação das pessoas é a instrução. Instruída a mulher, todos os direitos se lhe antolham com o da posse razoável de todos os seres da espécie. A lei restritiva não lhes parece senão como um despotismo tirânico da força contra o direito, do homem sobre a mulher. E a mulher será instruída e emancipada, com todos os direitos inerentes às personalidades humanas, ou não será instruída e, por conseguinte, tornada inferior pelo egoísmo dos seus semelhantes, o que é uma monstruosidade. Repito: - A emancipação da mulher é um direito concernente à sua instrução. Mulher instruída é mulher emancipada. Instruída, porém conservá-la atada a todas as penas da ignorância, da superstição e da inferioridade social é absurdo preconceito que não pode senão produzir males sociais (AZEVEDO apud MARQUES, 2009, p. 446). Os artigos escritos por Josefina Álvares de Azevedo indicam que ela participou da articulação mais ampla que levou à queda do regime monárquico, já considerando a possibilidade de ver alterada a situação do estatuto feminino no novo regime: O direito de voto das mulheres é uma necessidade latente, de que há muito ressente se não o nosso, como muitos outros países. Alguma nação deverá ser a primeira a iniciar-se nesse grande melhoramento, por que não será o Brasil? O Dr. Lopes Trovão propõe-se a pugnar pelo direito eleitoral da mulher. É seu programa combater para que possamos ter 51 Mulheres e a Literatura Brasileira parte direta nos destinos do país. Por que não envidarmos todos os esforços para que possa esse cavalheiro realizar uma tão justa quão útil aspiração de dar-nos o verdadeiro lugar que nos cabe na sociedade? (AZEVEDO apud MARQUES, 2009, p. 446). A referência a Lopes Trovão indica o alinhamento de Josefina Álvares de Azevedo a tais propostas, tornando-se uma das formas de participação política mais decisiva dentre as praticadas no campo político carioca. Em um de seus artigos, conforme apresenta Souto-Maior (2001, p.64) publicado no dia 30 de novembro, revela sua certeza de que sem o exercício do direito eleitoral, a igualdade prometida pelo novo regime não passava de utopia: O país, vai, sob a nova fase de existência inaugurada a 15 do corrente, consultar os espíritos emancipados sobre as leis sociais que hão de preparar o advento de todas as grandezas pátrias. É necessário que a mulher, também como ser pensante, como parte importantíssima da grande alma nacional, como uma individualidade emancipada, seja admitida ao pleito, em que vão ser postos em jogo os destinos da pátria. A liberdade e a igualdade são sempre uma. À mulher, como ao homem, deve competir a faculdade de preponderar na representação da sua pátria. Queremos o direito de intervir nas eleições, de eleger e ser eleitas, como os homens, em igualdade de condições. Ou estaremos fora do regime das leis criadas pelos homens, ou teremos também o direito de legislar para todas. Fora disso, a igualdade é uma utopia, senão um sarcasmo atirado a todas nós. (AZEVEDO apud MARQUES, 2009, p. 446). Posteriormente, como apresenta Souto-Maior (2001, p. 64), a autora inicia uma série de novos artigos sob o título de 52 Mulheres e a Literatura Brasileira “O direito de voto”, defendendo ainda o direito eleitoral da mulher. Assumindo-se contrária à posição que era defendida por alguns legisladores referente à incapacidade sobrevinda do sexo, a exemplo da menoridade, demência, o que revelaria a ação de votar como um perigo social. A ativista discorda e assume a posição de que a emancipação das mulheres as tornará licenciadas ao exercício do direito do voto. Tal posição é exposta de forma clara em seu último artigo dessa série: Em geral, os casos de incapacidade política são estesmenoridade, demência, inabilitações, restrições de liberdade por pena cominada, etc., etc. A esses aduzem os legisladores a “diferença do sexo”. Mas em que essa diferença pode constituir razão de incapacidade eleitoral? A mulher educada, instruída, em perfeito uso de suas faculdades mentais, exercendo com critérios as suas funções na sociedade, é uma personalidade equilibrada, apta para discernir e competente para escolher entre duas idéias aquela que melhor convém. Não pode por conseguinte estar em pé de igualdade com os dementes, com os menores, com os imbecis. Assim sendo, é absurdo o princípio de sua incapacidade eletiva. Opõem os homens que a diferença de sexo estabelece incapacidade para as funções públicas! Está provado, com a moderna faculdade do exercício de algumas dessas funções, que a tal incapacidade não existe em absoluto. [...] O direito de voto é um direito de escolha; e todos que possuem o necessário critério de escolha devem possuir o direito do voto. [...] [...] (AZEVEDO apud SOUTOMAIOR, 2001, p. 64-65). Ainda como base em Souto-Maior (2001, p. 66), o jornal A Família assume um caráter agitador em favor da propaganda sufragista, mas a preocupação de Josefina era nunca perder seu 53 Mulheres e a Literatura Brasileira foco pela luta da educação das mulheres, empregando fortes críticas àqueles que se opuseram à causa defendida por ela. Um desses foi o Ministro dos Correios e Instrução, Benjamim Constant, que proibiu a entrada das mulheres nas escolas de nível superior. Dessa forma, a autora já antecipava o retrocesso que tal decreto significaria para toda a sua luta, e atacou severamente tanto o Ministro, como as ideias positivistas defendidas por ele. O decreto do ministro dos correios e instrução fechou às senhoras brasileiras as portas das academias, desses verdadeiros templos da ciência, em que a religião do progresso faz a crença de todos os espíritos ávidos de saber. Esse fato equivale a condenar-nos à mais completa ignorância, a retrogradarmos muito além dos templos históricos, pois que já na antiguidade as Hipatias floresciam no Egito, as Safos e as Corinas na Grécia. [...] Triste contingência a da mulher neste país, a permanecer de pé e intacta a legislação reformada pelo positivismo do governo!... (AZEVEDO apud SOUTO-MAIOR, 2001, p. 66). Daí por diante, Josefina, não mais satisfeita com a luta pela imprensa periódica, começa a procurar outros meios para o seu engajamento sufragista. No início de 1890, imprime em sua tipografia um folhetim chamado Retalhos, em que reproduz vários de seus artigos já publicados em seu jornal: os da série “O direito de voto”, concernentes à educação da mulher, reunidos sob o título “A mulher moderna, conforme Souto-Maior (2001, p. 67- 68). Mesmo que tenha incluído outros textos que não fossem relacionados à temática principal da coletânea, a jornalista, de acordo com Souto-Maior (2001) mostra suas primeiras intenções, que era fortalecer a propaganda sobre o voto e fixá54 Mulheres e a Literatura Brasileira la em páginas menos transitórias que as de um jornal. Bastante elogiada pela imprensa em geral, a publicação teve sua magnitude destacada pelo redator da Gazeta de Notícias, que mesmo sendo minoria na ala masculina, defendia publicamente os direitos das mulheres, de acordo com SoutoMaior (2001, p. 68-69). Em abril de 1890, Josefina decide levar ao palco o debate aberto pela imprensa sobre a questão do voto usando o espaço cênico como palco de discussões, o que já havia acontecido no Brasil entre 1855 a 1865, sob a inspiração do teatro realista francês, discutindo nos palcos diversos problemas sociais enfrentados pela emergente burguesia brasileira. No início de fevereiro de 1890, a sociedade se movimentava para a convocação de eleições e a instalação de uma assembléia constituinte, o ministro do Interior, Cesário Alvim, havia decretado a qualificação do eleitorado e os procedimentos administrativos para promover o alistamento eleitoral4. Tal decreto revelava que seriam leitores “todos” os brasileiros natos, no gozo dos seus direitos políticos e alfabetizados, sem excluir, claramente, as mulheres como eleitoras. Mesmo assim, de acordo com Marques (2009, p. 449), a gaúcha Isabel de Souza Mattos, de São José do Norte, teve sua solicitação de alistamento eleitoral, no distrito de Engenho Velho, indeferida pelo ministro, gerando, uma “jurisprudência” sobre pedidos de alistamentos feitos por 4 Lembrou Jorge Fernandes (1997) que um decreto de 21 de dezembro de 1889 já havia a convocação de eleições para uma Assembléia Constituinte. Por sua vez, o decreto doa alistamento foi o 200ª, de 8 de fevereiro de 1890, assinado pelo inimigo político de Aristides Lobo, o mineiro Cesário Alvim. O chamado Regulamento Alvim, de fevereiro, foi reeditado com alterações que não comprometem a nossa linha de análise, a 23 de julho de 1890. [Decreto n. 511] apud MARQUES, 2009. p. 448. 55 Mulheres e a Literatura Brasileira mulheres. Sua qualificação de diplomada com nível superior, como dentista, não foi suficiente para convencer Cesário Alvim. Impulsionada pela recusa do Ministro datada, em 9 de abril de 1890, Josefina publica um comentário dias antes: O direito de voto A velha questão já vivenciada do direito do voto às pessoas do meu sexo, teve, ao que me consta, uma solução provisória pelo governo, a mais incompatível com o regime de igualdade, como é republicano que agora possuímos. O governo, resolvendo a questão apresentada, “não considera nem oportuna, nem convincente qualquer inovação na legislação vigente no intuito de admitir as mulheres sui juris ao alistamento e ao exercício da função eleitoral”. A solução supra pode ser considerada como não tendo razão de ser uma vez que se nos admitimos a votar, em virtude da lei vigente, nada se inova, nem se concede fora da lei. A grande questão está em saber se a mulher está ou não na letra da lei para ser admitida à qualificação, e ninguém poderá negar que a respeito não há nem uma só disposição que a impeça de poder obter o título de eleitora (AZEVEDO apud MARQUES, 2009, p. 449). Foi essa desilusão que fez a jornalista se aventurar como autora de um dos gêneros considerados como mais difícil por ela. No período de duas semanas, sua comédia foi criada, recebendo o título de O Voto Feminino, indo à cena, no dia 26 de maio de 1890, no Teatro Recreio Dramático, um dos mais populares do Rio de Janeiro da época. Neste, Josefina teve como intuito denunciar o ridículo da resistência masculina em aceitar a participação feminina nas questões políticas das nações. De toda forma, enfatizou também a confiança que as mulheres deveriam depositar nos 56 Mulheres e a Literatura Brasileira congressistas, que estavam para elaborar a nova constituição em Assembléia. À comemoração dos homens sobre a exclusão das mulheres do universo de eleitores, uma de suas personagens femininas na peça revela: “Não se entusiasmem tanto. Ainda temos um recurso. Aguardemos a Constituinte!” (AZEVEDO apud SOUTO-MAIOR, 2001, p. 74). Mesmo que tenha sido bastante aplaudida, O Voto Feminino, retrato da vida fluminense, só sobe aos palcos uma vez, e, por isso, a jornalista procura outros meios para levar sua ideia adiante. O Voto Feminino é uma comédia em um ato, caracterizado como um texto resumido, único e protestador, ganha significado no século XIX quando as mulheres começam a lutar pelas conquistas dos seus direitos sociais e políticos no Brasil. Retrato da vida doméstica fluminense, se passa na casa de um conselheiro, num curtíssimo espaço de tempo antes do jantar, três casais, nesse caso, os donos da casa, a filha e o marido, e a empregada e seu noivo discutem e aguardam a resposta do Ministro, tão esperada pelas mulheres, mesmo que por motivos diferentes, a respeito da garantia do direito ao sufrágio feminino. Com base em Souto-Maior (2001, p. 74), em 1890 a peça reaparece publicamente outras vezes no jornal A Família, de agosto a novembro, em forma de livro, além de fazer parte da coletânea, intitulada A mulher moderna: trabalhos de propaganda, a segunda organizada por Josefina, editada no ano posterior, ano em que a Constituinte ainda se encontrava reunida, sempre com o intuito de fortalecer sua propaganda voltada para o direito do voto feminino, em especial junto aos parlamentares, ela apresenta seu livro: Posso dizer com orgulho que ninguém com mais entusiasmo e amor tem tratado do meu assunto no Brasil - A emancipação 57 Mulheres e a Literatura Brasileira da mulher. Vai nisso, sei bem, o maior merecimento do meu trabalho. O assunto por natureza é grande. Penas mais vigorosas, mais adestradas, tê-lo-iam explanado com maior vantagem para a causa em si. Não o fariam com mais dedicação. [...] A emancipação da mulher é um ideal. A ele foram consagradas todas essas páginas que se seguem. Boas ou más, elas são sem dúvida uma revelação – a de que eu creio num futuro melhor para a mulher brasileira e de regeneração para a humanidade (AZEVEDO, 2004, p. 78). Um dos últimos escritos deixados por Josefina é a publicação, em 1897, de sua terceira coletânea, Galeria ilustre: mulheres célebres, diferente dos outros já publicados, nessa galeria de celebridades femininas a autora sinaliza de forma clara os novos papeis sociais imaginados por ela para as brasileiras, de forma que expõe retratos de famosas, entre elas rainhas e figuras políticas. Ainda em 1889, publica na revista A mensageira o artigo “Solidariedade feminina” traduzido do francês por ela mesma, depois nenhuma referência é feita a seu respeito. A questão referente à mulher é tudo menos uma exclusividade delas, é urgente a luta de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objetivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é, ao mesmo tempo, a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da divergência patriarcal. Nesse caso, o objetivo seria buscar um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres fossem capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, construindo suas próprias identidades, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais. 58 Mulheres e a Literatura Brasileira O interesse em trazer à tona algumas dimensões da trajetória e das ideias de Josefina Álvares de Azevedo deriva de uma preocupação em desvendar universos femininos relegados ao esquecimento. Josefina Álvares aproveita a ideia de um teatro moralizador e civilizador que começava a se difundir durante o século XIX entre os jovens intelectuais brasileiros, e se apoia em tal pensamento para escrever uma peça de um caráter ora cômico, ora sério, para contestar a respeito da emancipação feminina, e dessa forma revela a nova identidade feminina nesse período, a de uma mulher que não aceita passivamente o que o social lhe impõe. Ao contrário de alguns, penso que existem experiências humanas dignas, que merecem ser transmitidas, como as vividas por Josefina Álvares de Azevedo que lutou e desafiou os limites da cultura de seu próprio tempo, resistindo até a sua morte pelo acesso das brasileiras à cidadania social, política e econômica. É preciso ressaltar que mesmo sob o poder das leis e dos costumes patriarcais, algumas mulheres, enquanto sujeitos históricos ampliaram os espaços de liberdade de ação modificando os rumos da história da mulher, responsáveis por construir uma nova identidade, a que busca o reconhecimento de si. Referências AZEVEDO, Josefina Álvares de. O voto feminino: comédia em um ato. In: Acervo Histórico. São Paulo, n. 2, jul. – dez. 2004, p. 74-82. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949. BUESCU, Helena Carvalhão. Grande Angular: Comparatismo e práticas de Comparação. Edição: Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2001. 59 Mulheres e a Literatura Brasileira FARIA, João Roberto. O Teatro Realista no Brasil. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1993. FARIA, João Roberto. Antologia do teatro realista. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GOMES, André Luis. 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O modo de representar a sexualidade e o comportamento da mulher emergem como catalisadores de um debate público que, a princípio, se queria de cunho estético-literário. Machado de Assis dizia abominar “a obscenidade sistemática do Realismo”, a ênfase dada, em obras literárias orientadas por essa escola, a elementos, em suas palavras, “escusos e torpes”. Ao longo de sua argumentação “o escuso e o torpe” ganham concretude em outros termos: “vocação sensual”, “concupiscência”, erotismo “onissexual e onímodo”, “espetáculo dos ardores”, “exigências e perversões físicas”, “ideias e sensações lascivas”, “fatos viciosos”, o gosto por abordar a “sensação física”, o “sensualismo”, os “ímpetos sexuais” e aspectos grotescos e fisiológicos do corpo. Contudo, a resistência de Machado não dizia respeito tão somente a um vexame pudibundo frente ao que se referisse ao 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária da Unicamp, com bolsa FAPESP, e mestrado sanduíche na Yale University. 61 Mulheres e a Literatura Brasileira corpo e à sexualidade. Machado resiste a algo mais específico: a um modo de abordagem ancorado em certa visão de mundo embasada na crescente autoridade científico-naturalista, que difundia uma compreensão do humano pelo viés da animalidade, por meio de noções como raça e espécie, instintos e seleção natural. O Primo Basílio estaria impregnado por essa visão, sobretudo na abordagem e concepção das personagens, como no exemplo pontuado por Machado: “De uma carvoeira, à porta da loja, diz ele [Eça] que apresentava a ‘gravidez bestial’. Bestial por quê? Naturalmente, porque o adjetivo avolume o substantivo e o autor não vê ali o sinal da maternidade humana; vê um fenômeno animal, nada mais” (ASSIS, 2008a, p. 1237). Tal excerto de O primo Basílio destacado por Machado chama a atenção por sua irrelevância para o enredo ou para o conflito, pois sendo verdadeiramente um detalhe, poderia passar despercebido. Ele nos fornece, no entanto, a medida do incômodo de Machado com a mirada de Eça, um jeito de olhar para o humano e enxergar a alimária. O comentário reflete as polaridades da disputa em torno dos sentidos que o corpo da mulher grávida evidencia: o sentido biológico, compartilhado com os animais, da reprodução da espécie e do corpo que expõe sua pertença a essa ordem ao “deformar-se”, ou o sentido da maternidade como um fenômeno unicamente humano, porque fruto da consciência humana que produz sentido sobre sua condição no mundo, portanto, cultural e moral. No limiar desse detalhe, aninha-se ainda um viés de classe simbolicamente violento, uma vez que o pólo da animalidade é reservado para caracteriza uma carvoeira, mulher trabalhadora braçal, possivelmente pauperizada e à margem das normas higienistas. O fato de essa visão estar coadunada em um romance era, então, para Machado, um agravante, pois, ele levava em conta uma noção de decoro literário segundo a qual a literatura 62 Mulheres e a Literatura Brasileira deveria por em primeiro plano a condição moral e humana da personagem2. Esse escudo decoroso, porém, não significava apresentar apenas personagens imaculadas do ponto de vista moral. Machado não recusava a representação do espectro sombrio ou moralmente condenável das “paixões humanas”, desde que Eça tivesse feito com que isso fosse o móvel da personagem. Nesse sentido, Luísa, a protagonista de O primo Basílio, teria sido concebida “sem vontade, sem repulsa, sem consciência”, e mesmo ao viver o adultério com o primo, “não acha ali a saciedade das grandes paixões criminosas: rebolcase simplesmente”. À época, esse recato, embora não deixasse de ser um moralismo, era parte de um argumento estético mais complexo que a simples censura à sexualidade. Machado exigia uma verossimilhança interna baseada na lógica das ações caucionadas pela condição moral da personagem. Nessa visão, a composição literária deveria oferecer ao leitor o resultado das ações de pessoas agitadas por motivações morais, ou movidas por sua personalidade, por isso deveriam ser psicologicamente profundas, de modo a produzir um arranjo conflitivo com a realidade à sua volta. A protagonista de Eça, tal como construída, seria, ao contrário, um títere para demonstrar uma verdade advinda de uma visão de mundo externa à composição literária, porque não arranjada estruturalmente em uma lógica interna, em que sua condição moral e conflitos por ela motivados fossem capazes de sustentar a trama. Por essa concepção, um volátil impulso erótico de personagens sem profundidade psicológica e conflitos morais não seria suficiente para sustentar o romance porque se esgotaria em si, minando o desdobramento e a coerência do conflito. 2 Sobre esse tema, conferir PASSOS, 2014. 63 Mulheres e a Literatura Brasileira Estava em debate o modo de abordagem da sexualidade pela literatura. Para Machado, certos conteúdos, da maneira como expostos por Eça, feriam o decoro da linguagem literária – uma noção bastante antiquada atualmente, o que confere uma aura de ousadia e avanço ao Primo Basílio. Porém, no debate, todas as posições abordavam a sexualidade, sobretudo na mulher, por meio de um conjunto de estigmas, fossem pautados pela moralidade tradicional religiosa, fossem pautados pela visão moderna da ciência. Mesmo os partidários da ultrapassagem da lei do decoro, que traria para a literatura aspectos interditados, conservavam uma perspectiva moralista, calcada pela norma higiênica3 do saudável como aquilo que se conforma (pela repressão ou disciplina) às funções socialmente aceitas para a sexualidade: gerar descendência, garantindo a reprodução da família – ou a reprodução da espécie. Nesse quadro, a sexualidade deveria se expressar apenas nos limitados dos papéis aceitáveis do parentesco, nas posições de pai, mãe e filho, sendo os desvios a essa norma considerados patológicos. Em carta também de 1878, Eça de Queiroz esclarece a Teófilo Braga sua intenção de espelhar a sociedade lisboeta com O primo Basílio, deixando explícito o moralismo presente em sua perspectiva: eu não ataco a família - ataco a família lisboeta - a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, [...] centro de bambochata. No Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa; - a senhora sentimental, maleducada, nem espiritual (porque cristianismo já o não tem; 3 A noção de norma higiênica que utilizo nesse ensaio se baseia em COSTA, 1999. 64 Mulheres e a Literatura Brasileira sanção moral da justiça, não sabe o que isso é), arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. - enfim a burguesinha da Baixa. (QUEIROZ, 1997, p. 413) Primeiro, Eça se explica ao amigo dizendo que não visava atacar a família, em suas palavras “instituição eterna”, mas sim a família lisboeta burguesa. À ousadia das cenas eróticas do romance subjazia o peso de uma compreensão da sexualidade dos sujeitos conformada à noção tradicional de família. Depois, apresenta os defeitos capitais de Luísa dentre os quais não ter valores cristãos nem senso moral. Embora O primo Basílio exponha conteúdos eróticos, eles são práticas do pólo atacado no romance, e arregimentados por uma perspectiva que coadunava cristianismo com preceitos higienistas, com o que o desejo sexual na mulher aparecia como luxúria, sobre-excitação e nervosismo. Luísa reúne características insuportáveis para tal visão de mundo, a qual necessita purgá-la pela doença e puni-la com a morte. Eça de Queiroz escolheu retratar um tipo social pelo qual francamente sentia no mínimo desprezo – quem sabe alguma misoginia. Menos que um tipo, Luisa é sobretudo um corpo erotizado e indisciplinado. Em função dessa perspectiva, torna-se mesmo difícil esperar que Eça a compusesse como uma personagem humanamente complexa e capaz de gerar uma “empatia humana e universal” no leitor, como queria Machado de Assis. O escritor brasileiro questiona também a intenção da escola Realista em reproduzir a realidade, como se a literatura pudesse ser um espelho ou ainda como se não existissem mediações entre ela e a criação literária. Tal questionamento vem em forma de provocação: “o realismo dos Srs. Zola e Eça 65 Mulheres e a Literatura Brasileira de Queiroz, apesar de tudo, ainda não esgotou todos os aspectos da realidade. Há atos íntimos e ínfimos, vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa exposição de todas as coisas. Se são naturais para que escondêlos?”. Embora não comente com mais vagar o que seriam esses aspectos preteridos, fica indicada a falta de atenção do Realismo às formas de subjetivação, como ordem relevante da realidade a ser levada em conta pela literatura. A realidade não entrava na literatura machadiana como coisa a ser descrita, mas como produto de uma percepção aguda sobre o modo como as relações interpessoais e a reprodução de formas de vida se dão em meio a uma sociedade. A realidade entra em sua literatura pela observação de como as relações interpessoais são estabelecidas por sistemas simbólicos e de práticas intersubjetivamente compartilhados. A realidade entra na sua literatura pela observação do que funda os vínculos entre os sujeitos e o que determina suas percepções sobre si mesmo, sobre o outro e suas ações. A meu ver, o que Machado figurou aqui como lacuna será um ponto de investida em seus romances pós-1878, sobretudo na primeira versão do Quincas Borba, em que todas essas questões da crítica, segundo minha hipótese de interpretação, ressurgirão enquanto matéria literária 4. Já nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, Machado traz sua primeira abordagem do adultério (em romance) livre de purgações e punições, inclusive para a personagem mulher. No romance subsequente, o Quincas Borba, o tema do adultério é revisitado de modo capcioso e matreiro. 4 Estou desenvolvendo, no Programa de Pós-graduação de Teoria e História Literária da Unicamp uma pesquisa de mestrado com apoio da FAPESP que versa justamente sobre essa questão. 66 Mulheres e a Literatura Brasileira Para abordar o problema, neste ensaio, utilizo-me majoritariamente da versão do romance que primeiro veio a público de modo seriado na revista feminina A estação, num processo de escrita e publicação que durou quase seis anos – de 1886 a 1891. Isso porque nessa versão, os momentos decisivos em que a representação de Sofia esteve em foco são mais alentados e aprofundados do que na versão definitiva em livro. Do mesmo modo, nela, Machado se permitiu dar mais visibilidade a expressões da sexualidade de seus personagens, o que colabora com minha hipótese sobre a reverberação do debate em torno do Primo Basílio, especialmente nessa versão. Os pressupostos estéticos que fundamentaram a crítica de Machado ao romance de Eça são pistas para desembaraçar isso que parece uma charada machadiana: como, a princípio, uma perspectiva moralmente mais conservadora em relação à sexualidade resguardou a representação da mulher para o campo do humano, arredando dessa representação uma série de preconceitos naturalizados ou legitimados à época. A personagem deveria ser antes de tudo construída como uma pessoa humana e moral, e não um sujeito de segunda ordem ou mesmo um animal. A partir de tal base, Machado pôde estabelecer um recuo crítico frente ao modo como o discurso literário representava a mulher, inclusive enquanto ser dotado de sexualidade. Por meio da construção da personagem Sofia, par amoroso disfuncional de Rubião, protagonista do Quincas Borba, Machado se permitiu ultrapassar seus próprios limites, abordando a sexualidade da mulher como jamais fizera. Sofia condensa o desafio de exprimir a condição humana num corpo feminino, por sua vez, no interior de estruturas sociais que atualizam nos sujeitos normas e práticas. Desse modo, analisarei a constituição da personagem pelo ângulo de seu próprio desejo, do matrimônio e do adultério. O exercício de construção dessa personagem teria levado o 67 Mulheres e a Literatura Brasileira escritor a restabelecer o conceito de pessoa moral e humana nas tensões da subjetivação sob a forma de indivíduo. Isto é, por um modelo de inscrição dos sujeitos que os define, nas palavras de Vladimir Safatle: a partir de sua predicabilidade [...] a partir de relações de possessão, um pouco como indivíduos essencialmente definidos como “quem tem uma propriedade em sua própria pessoa”. Um predicado é algo que possuo, que é expressão do que faz parte das condições que estabelecem o campo da minha propriedade. Por isso, ao definir a predicação como modo privilegiado de reconhecimento, eleva-se a possessão a um modo naturalizado de relação, [...] [em que os sujeitos se definem pela] determinação por predicação, ou ainda, da determinação por possessão de predicados, por aquilo que indivíduos podem possuir. (SAFATLE, 2016, p. 28-31) Trata-se, como se vê, da categoria de individuo articulada no interior do pensamento liberal moderno, sobretudo de John Locke e Thomas Hobbes. Na leitura de Safatle, a partir do enunciado político-filosófico do Leviatã, o indivíduo defensor de sua privacidade e integridade também aparece como: horizonte, ao mesmo tempo último e fundador, dos vínculos sociais [...]. “Integridade” significa aqui também a soma dos predicados que possuo e que determinam minha individualidade, os predicados dos quais sou proprietário. [...] em sociedades cujo modelo de inscrição se dá a partir da determinação de sujeitos sob a forma de indivíduo [a liberdade] é paga pela definição do outro como uma espécie de “invasor potencial”, como alguém com quem me relaciono preferencialmente através de contratos que definem obrigações e limitações mútuas sob os olhares de um terceiro. Perspectiva contratualista que eleva a pessoa à 68 Mulheres e a Literatura Brasileira figura fundamental da individualidade social. (SAFATLE, 2016. 19-20) Para Maria Sylvia Carvalho Franco (1993) é justamente essa categoria do indivíduo como proprietário que fará com que o liberalismo, no Brasil, possa se acomodar em bases escravistas. Carvalho Franco identifica a propriedade como noção que funda uma antropologia em Locke, pois designa aquilo que é específico, que é próprio do homem. O homem teria em si encerrado um poder, o de tornar as coisas sua propriedade, o qual, ao ser mobilizado o constitui enquanto homem. Assim, a propriedade é posta como o nexo entre homem e mundo e aquilo que define a natureza humana. Trata-se de uma categoria assenta em uma noção de natureza, pois os indivíduos fazem parte de uma mesma espécie por possuir uma mesma qualidade, a qualidade daqueles que exercem o atributo de apropriar-se, de produzir propriedades suas. Só aquele que se apropria participa da natureza racional e justa dessa espécie, só o proprietário participa da comunidade dos humanos. Portanto, liberdade e igualdade só se aplicam a homens proprietários. Os que “se deixam ficar” inativos, que não se tornam proprietários, caem na ordem dos inferiores, dos criminosos, justificando-se assim seu jugo e exploração por outros indivíduos. Com isso, Carvalho Franco entende que o liberalismo centrado na noção de propriedade como atributo definidor do humano pode produzir uma concepção de indivíduo – e de sua ética – afinada com nossa base social escravista do XIX. No Quincas Borba, a linguagem que articula as formas de subjetivação hegemônicas, pelas quais os sujeitos se relacionam, corresponde a metáforas ligadas à produção e reprodução de capital no Brasil do XIX, exatamente em seu transe entre o escravismo e a monetarização da sociedade. O 69 Mulheres e a Literatura Brasileira desejo dos sujeitos é agenciado pela lógica do cálculo racional para capitalizar as relações, sendo expresso por meio das noções de dominação, posse e propriedade privada, e pela instrumentalização do corpo e do erotismo. “Não a façamos mais santa do que é, nem menos” nenhuma metáfora é “mera” ilustração. Ela é uma forma de relacionar sistemas de referências distintos que devem, porém, ser conjuntamente articulados para que um fenômeno determinado possa ser apreendido. (Vladmir Safatle, O circuito dos afetos, p. 23.) Com um recuo no enredo de pouco menos de 20 anos em relação ao presente de sua publicação (1886-1891), o romance Quincas Borba nos apresenta Sofia nos idos de 1867, na condição de bela esposa de 28 anos do Cristiano Palha, “zangão da praça”, especulador de negócios comerciais e transações financeiras. Sofia, “filha de um velho funcionário público”, provém de uma família de classe mediana e urbanizada. Tal como Eça de Queiroz buscara o tipo da “burguesinha da baixa”, Sofia poderia ser tomada, a princípio, como a versão de Machado de Assis de um tipo social. Em Ordem Médica e Norma Familiar, Jurandir Freire Costa descreve esse tipo 5 pelas condições sociais que o possibilitaram e em contraste com a 5 Jurandir Freire Costa deixa claro o recorte de seu estudo sobre a conversão do universo familiar à norma urbana por meio da ideologia médica-higiênica do XIX. Embora teça comentários sobre os escravos e os brancos livres e pobres, como as normas higiênicas se dirigiam à família branca de posses, quando utiliza o termo mulher ou família em seu estudo, subentende-se esse recorte racial e de classe. 70 Mulheres e a Literatura Brasileira “mulher colonial”, antigo paradigma da mulher branca e remediada no Brasil: A mulher colonial tornou-se, com a urbanização, uma anacronia. A penetração do capitalismo industrial europeu no Brasil dinamizou a vida social, [...] e a vida privada. As “enclausuradas nas alcovas” tornaram-se “antifuncionais”. A corte requeria a “mulher de salão”, a “mulher da rua” [...] [que] deveria saber receber as visitas do marido, estar presente à mesa e às conversações [...], abandonando seus antigos hábitos e europeizando seu corpo, seus vestidos e seus modos. [...] As mulheres tinham que expor-se ao mundo em teatros, recepções oficiais e restaurantes públicos [...]. A semelhança física e de costumes com os europeus [...] era indispensável ao reconhecimento social e ao sucesso econômico da família. (COSTA, 1999, p. 119-20) Assim como na descrição de Jurandir Freire Costa sobre o novo escopo de atuação desse tipo social, Sofia, enquanto sua encarnação6, será indispensável na construção do reconhecimento social e do sucesso econômico familiar. Como assinalado por John Gledson (1986), Quincas Borba abrange esse período histórico de dinamização da vida urbana e mobilidade social, aspecto implicado em seu enredo como em nenhum outro romance de Machado. Por meio da aliança matrimonial, Sofia será uma agente de mobilidade. A personagem é um exemplar extremo de mulher educada para desempenhar essas novas funções junto ao marido, ou nos termos do romance, instruída nas “prendas de sociedade”. Sofia dança desde os nove anos – aos doze, pela primeira vez 6 A noção de encarnação aqui significa o modo pelo qual um conjunto de normas políticas, condutas e vontades necessitam se encarnar em um corpo para se reproduzir. 71 Mulheres e a Literatura Brasileira com um moço –; sabe ler e escrever, inclusive em língua estrangeira – embora seu francês fosse estritamente adequado às “cousas do vestido, da sala e do galanteio”; sabe tocar piano e costurar – todos esses saberes porém não eram mobilizados como força de trabalho, mas como habilidades pessoais para garantir o desempenho de seu papel social. Suas práticas e ingerências, embora não sejam públicas do mesmo modo como eram para os homens, também não se restringem à clausura doméstica. Por exemplo, Sofia arquiteta e preside uma Comissão de mulheres que atua social e publicamente, com um declarado fim filantrópico que, ao mesmo tempo, impulsiona o casal à alta roda da Corte – abrindo para o marido contatos com capitalistas, políticos e banqueiros. Com uma vocação tão desenvolta para os negócios da Matrimônio S/A, Sofia chega ao final do romance com trinta anos, um palacete em Botafogo e nenhum filho, suplantando mesmo o destino ainda primeiro e naturalizado das mulheres para a maternidade. Embora ainda submetida a uma hierarquia demarcada pela desigualdade de gênero, Sofia experimenta uma redistribuição do poder no interior de seu casamento, uma relação de poder diversa daquela fundada na soberania e onipotência do homem na família patriarcal. Palha depende das funções que ela pode/deve exercer em benefício de sua (auto)imagem e do casal enquanto uma célula social. Qualquer resenha do romance destaca essa empresa de ascensão social na qual o casal se empenha e que se realiza por meio da fortuna de Rubião – o que fundamenta a transferência de capital da herança de Rubião para os negócios de Cristiano Palha sem sombra de dúvidas é a paixão que ele sente pela esposa do sócio. Com isso, acompanhamos um intrincado jogo de (auto)instrumentalização de Palha e Sofia para manipular os sentimentos e expectativas de Rubião. 72 Mulheres e a Literatura Brasileira O episódio do “caso do jardim”, em que o sócio rompe a contenção que até ali represava seu desejo amoroso por Sofia, desvela os caminhos e descaminhos desse jogo. A ofensiva de Rubião se embasa em “uns modos, uns olhos, uns requebros sem explicação”, “palavrinhas doces”, “atenções particulares” de Sofia para com ele. Na ocasião de um jantar na residência do casal, ambos observam a lua a convite dela, quando Rubião arbitra entornar em seus ouvidos uma declaração amorosa de palavras mimosas, mas “devorando a moça com olhos de fogo” e retendo-lhe com força: “Sofia ficou pasmada. De súbito endireitou o corpo que até ali viera pesando no braço de Rubião. Estava tão acostumada à timidez do homem [...] Trouxera ao colo um pombinho, manso e quieto, e sai-lhe um gavião, – um gavião adunco e faminto” (ASSIS, 1976, p. 39). A surpresa de Sofia com a declaração mostra que, até esse episódio, os jogos de sedução transcorriam em águas pelas quais ela presumia ter pleno domínio. No encontro com o desejo do outro, porém, emerge algo que lhe sai do controle, algo que não se acomoda aos contratos e acordos racionais mediadores das relações entre indivíduos – algo que não se deixa predicar como atributo da pessoa individualizada. Ao final daquela noite, na intimidade do casal, Sofia relata ao cônjuge o ocorrido, transformando em objeto de gerenciamento do matrimônio algo que fora endereçado a ela enquanto sujeito. Nesse âmbito, explicitam-se os meios pelos quais o casal empreendia a manipulação dos afetos de Rubião em seu benefício. Quando Palha acusa a mulher de ser a culpada pelo atrevimento do outro, ela o lembra de que ele mesmo tinha recomendado que o tratasse “com atenções particulares”. Apesar de cúmplices na empresa, quando a instrumentalização do corpo e dos afetos escapa ao controle, a culpa deve ser da mulher. Embora Palha se sinta molestado por terem “lhe namorado a mulher”, algo mais urgente o 73 Mulheres e a Literatura Brasileira empenha em mitigar a gravidade do episódio. Contudo, Sofia insiste em que o casal se desvencilhe de Rubião. O diálogo beira o cômico à medida que dois sistemas de referências distintos entram em contradição: a afetividade e o corpo da mulher enquanto submetidos ao código moral do casamento, isto é, como propriedade privada do marido, e as ambições de (re)produção de capital. O impasse se arrasta até o arroubo patético do homem que “ficou sombrio, soltou a mão da mulher, com um gesto de desespero. Depois, agarrando-a pela cintura, disse em voz mais alta do que até então: – Mas, meu amor, eu devo-lhe muito dinheiro. [...] Sabes que confio em ti...” (ASSIS, 1976, p. 39). Assim, finalmente, Sofia precisa submeter a “honra” do contrato matrimonial à aposta econômica, ficando a seu cargo zelar pela continuidade das relações da célula familiar com Rubião, fonte de capital dos negócios do marido. A cena mostra com meticulosidade o modo como Palha não pode impor seus interesses simplesmente exercendo sua vontade pelo arbítrio, pelo mando, pelo mesmo despotismo da força que o patriarca encontrava no interior das relações familistas coloniais. Ele precisa recorrer, primeiro, à racionalidade através do embate argumentativo com a mulher, para finalmente lançar mão do apelo emocional à supremacia de suas prerrogativas de homem e marido, reduzindo a vontade de Sofia à sua. Jurandir Freire Costa argumenta que o machismo foi incentivado pela medicina higiênica como compensação face à perda que a figura do homem, no interior da família burguesa, teve em relação ao antigo poder patriarcal do mando. A mulher torna-se o bem por excelência do machista a quem é arrogado o direito de concentrar sobre ela toda a carga de dominação sob o senso de proprietário, garantido pelo contrato matrimonial: 74 Mulheres e a Literatura Brasileira cada homem se dava ao direito de abordar a mulher do outro ao mesmo tempo em que afirmava a intocabilidade de sua própria mulher. À primeira vista, o jogo era desigual. Mas [...] Considerado em conjunto, o ritual “machista” era perfeitamente equilibrado, pelo fato de que toda mulher abordável era, em princípio, propriedade de um outro homem, provavelmente também “machista” (COSTA, 1999 p.254). Palha atua como ninguém por meio dessa aparente contradição do código machista. Perversamente, o sustentáculo da contradição vem a ser a própria mulher, sob quem reside a dupla função de ser “abordável” e ao mesmo tempo não ceder à abordagem, mantendo a honra e a dignidade do código. Assim, fiados nessas prerrogativas, Palha e Sofia podem se instrumentalizar. Machado vai explorar com meticulosidade esses jogos de determinações entre o casal. Palha tinha um gosto particular em objetificar Sofia, por exemplo, decotando “a mulher sempre que podia, e até quando não podia, para mostrar aos outros as suas venturas particulares. [...]” (ASSIS, 1976, p. 37). Sofia por sua vez aprende a gozar essa posição não apenas “gostando de ser vista, muito vista”, como aprende a dominar o sendo de propriedade, manipulando a subjetividade possessiva do marido – assim também suas especulações em torno do adultério podem ser aventadas sem sobressaltos. Nesse intrincado expediente de sobredeterminações, Machado vai dissecar a economia afetiva do casal em triangulações fundadas nas representações do desejo de Sofia. De um lado, a potência erótica da mulher será instrumentalizada para a ascensão do casal, expondo os moldes das relações geridas pela lógica contratual do matrimônio; de outro lado, essa potência erótica vai se desbragar em relação aos esquemas previstos e aceitos no 75 Mulheres e a Literatura Brasileira interior do matrimônio e do código machista, expondo as fissuras abertas pela indeterminação do desejo nas estruturas de determinação do indivíduo como forma de subjetivação. A segunda triangulação vai se estabelecer completamente apartada de qualquer ingerência do marido e pegará Sofia no contrapé da dominação de si e do outro. Ela será cortejada por Carlos Maria, nas palavras do Palha, “a primeira figura do salão”. Ao contrário da demonstração de dignidade e de submissão ao acordo monogâmico afrontado pela investida de Rubião, o galanteio de Carlos Maria será devidamente escondido pela dama. Sem ao menos desconfiar da paixão que Sofia chega a ter, Palha se “orgulh[a] de ver que [Carlos Maria] se ocupara tanto tempo com ela [...] mirando-se no colo da mulher, e circulando depois os olhos pela sala, com uma expressão de posse e domínio” (ASSIS, 1976, p. 54, grifo meu). Tal o arranjo: enquanto Sofia alimenta a vaidade do marido, experimenta as paixões que ela desperta e que nela são despertadas por outros. A declaração de amor de Carlos Maria, contudo, não passava de uma troça ladina de quem se regozija em ver a confusão vaidosa do outro em se saber amado. Sem maiores consequências para ele além de uma descarnada má consciência, em Sofia, contudo, o galanteio reverberará profundamente, deslocando seu desejo erótico para mares nunca dantes navegados. As velas de seu desejo são insufladas para cearas inutilizáveis e até perigosas para as ordens contratuais do matrimônio, em que sua potência erótica se comprimia a funções determinadas e utilitárias. Inesperadamente, esse despertar vai mexer com a estabilidade do domínio que ela acreditava ter sobre seus sentimentos em relação ao próprio Rubião. Da repulsa que sentia pela simples ideação de contato corporal com ele, Sofia, na ausência da possibilidade de concretizar o adultério com Carlos Maria – 76 Mulheres e a Literatura Brasileira que jamais voltará a cortejá-la e ainda vai se casar com sua prima da roça –, passa a produzir devaneios e fantasias a partir das fantasias amorosas do próprio Rubião. Essa virada se articula também em função da dupla personalidade audaciosa que Rubião começa a apresentar, alienando de si a personalidade de inseguro e tímido matuto e assumindo a personalidade de Imperador Napoleão III. A partir dela, Rubião vai produzir fantasias luxuosas e aristocráticas de sua louca paixão por Sofia que “Crendo-se autora do mal, perdoava-lho; a ideia de ter sido amada até à loucura, sagravalhe o homem” (ASSIS, 1976, p. 200). As formas do imaginário são fundamentais na corrosão que Machado vai infundir na ilusão de validade das figuras do contrato de trocas recíprocas e possessivas do matrimônio. Ou em suas palavras de 1878, pela prospecção em atos íntimos e ocultos, acessamos o modo como os sujeitos transgridem a gramática de sua própria dominação. Diante do convite de Rubião para que dessem um passeio a cavalo, Sofia desliza para o interior de uma fantasia erótica e adúltera: oh! se tinha vontade de ir na manhã seguinte, com Rubião, estrada acima, bem posta no cavalo, não cismando à toa, nem poética, mas valente, fogo na cara, toda deste mundo, galopando, trotando, parando. Lá no alto, desmontaria algum tempo; tudo só, a cidade ao longe e o céu por cima. Encostada ao cavalo, penteando-lhe as crinas com os dedos, ouviria Rubião louvar-lhe a afoiteza e o garbo... Chegou a sentir um beijo na nuca... Estremeceu; tinha as faces encarnadas. [...] a imaginação de Sofia era agora um corcel brioso e petulante, capaz de galgar morros e desbravar matos. [O corcel] Traz a ideia do ímpeto, do sangue, da disparada, ao mesmo tempo que a da serenidade com que torna ao caminho reto [...] o corcel tornara fatigado da carreira, e deixou-se estar sonolento na cavalariça. Sofia era 77 Mulheres e a Literatura Brasileira já outra; passara a vertigem da corrida, o ardor sonhado, o imaginado gesto de galgar com ele a estrada da Tijuca (ASSIS, 1976, p. 72-3). Assim chegamos a essa surpreendente vontade que começa a pulsar na personagem por meio de fantasias e devaneios. Sofia passa a viver oscilações em relação ao que sente por Rubião, em relação, mais precisamente, ao que ele representa enquanto possibilidade de realização de um desejo gorado – o que fica evidente em uma alucinação. Ao observar duas rosas de seu jardim, Sofia as escuta travando um vivo debate – projetava nas rosas o debate mental que ia travando consigo mesma, em sua mente, chegando à seguinte hipótese: “[Rubião] diz alguma cousa, e di-la desde muito, sem desaprendê-la, nem trocá-la; é firme, esquece a dor, crê na esperança. [...] Se hás de amar a alguém, fora do matrimônio, ama-o a ele, que te ama e é discreto” (ASSIS, 1976, p. 74). A vontade pelo adultério fica assim reconhecida em todas as letras, porém não concretizada. A noção de dominação articula praticamente todas as relações interpessoais no romance. Trata-se de uma dominação no interior da ordem burguesa em que a violência e a coerção pela força estão sublimadas. Nela, o domínio se exerce por alguém que se afigura como detentor do controle sobre as variáveis em jogo em uma dada situação, sendo que esse lugar de variável pode ser ocupado pelo próprio sujeito ou por um outro. Logo, esse tipo de relação envolve a projeção dessas variáveis como previsíveis e estáveis – já o que escapa a esse campo de determinações desestabiliza ou rompe o domínio. A relação de domínio complementa ainda a noção de posse, pois também aquele que possui julga dominar algo ou alguém. 78 Mulheres e a Literatura Brasileira Há uma metáfora através da qual esse sentido se inscreve no Quincas Borba: a partir de seu significante central – cavalo –a dominação ganha matizes e se associa a outros sentidos. Em um nível, há os sentidos que envolvem ações: de domar, de conduzir, de ter as rédeas sobre o animal, fixadas pala figura do cavaleiro, caracterizado pela virilidade, pelo destemor e disciplina corporal. Em outro nível, o significante é tomado como metáfora da ordem da natureza, pura e aculturada, e por extensão dos próprios impulsos e desejos, daquilo que não se origina ou que não parte de um enquadramento moral, todavia domesticável em alguma medida. No romance muitas vezes as relações senhoriais e de propriedade também se expressam por essa metáfora, que finalmente tece uma corrente de sentidos em associação entre as diversas formas de poder circulantes na sociedade brasileira daquele período. Assim, o significante é o elemento que faz os sentidos desses sistemas de referências das formas de poder se sobredeterminarem. Pelo significante cavalo e por sua extensão metafórica, Machado também exprime o momento mais atroz do romance, o da cena explícita do enforcamento público de um escravo – desafiando o próprio limite do decoro literário diante da dor extrema – talvez uma daquelas “secreções sociais” que os apreciadores do naturalismo preferiam olvidar. Nela, o carrasco, autorizado pelo Estado, performa a execução como um cavaleiro. Trata-se de uma memória esquecida, contudo intensa, que invade a consciência de Rubião a ponto de produzir uma indistinção entre presente e passado – no trecho a baixo, as palavras dos cocheiros no presente da narrativa, pelo significante cavalo, atravessam a memória passada, funcionando como nexo de uma sobreposição associativa surpreendente: 79 Mulheres e a Literatura Brasileira Eis o réu que sobe à forca. Passou pela turba um frêmito. [...] Foi aqui que o pé direito de Rubião descreveu uma curva na direção exterior, obedecendo a um sentimento de regresso; mas o esquerdo, tomado de sentimento contrário, deixou-se estar; lutaram alguns instantes... Olhe o meu cavalo! - Veja, é um rico animal! - Não seja mau! - Não seja medroso! [...]. Todos os olhos fixaram-se no mesmo ponto, como os dele. Rubião não podia entender que bicho era que lhe mordia as entranhas, nem que mãos de ferro lhe pegavam da alma e a retinham ali. O instante fatal foi realmente um instante; o réu esperneou, contraiu-se, o algoz cavalgou-o de um modo airoso e destro; passou pela multidão um rumor grande, Rubião deu um grito, e não viu mais nada (ASSIS, 1975, p.159, grifo meu). Se o matrimônio é a relação contratual em que por excelência o exercício da violência sublimada é direito do marido, o código das Leis é a contraparte contratual de uma sociedade que assegura ao Estado o exercício da violência não sublimada. E a metáfora do cavalo associa esses sistemas de poder em circulação na sociedade brasileira do XIX. O excerto anterior – da fantasia de Sofia sobre o passeio a cavalo – exemplifica como a metáfora dá vida não apenas à expressão do desejo em si, mas também do próprio modo como o desejo é dominado. No romance, não se trata simplesmente de uma figura de linguagem utilizada de modo pontual e em uma frase. O significante estrutura episódios inteiros, constrói sentidos sofisticados e altamente simbólicos, como toda a sequência que envolve o próprio passeio a cavalo, a princípio adiado, mas que ocorre em seguida 7. 7 A sequência é longa e envolve mais de uma cena, na publicação da revista, ela se estende por dois números, e por isso não a reproduzirei por inteiro aqui. 80 Mulheres e a Literatura Brasileira Alguns motivos da sequência são dados quando do convite de Rubião, e o decorrente devaneio de Sofia, mas, de fato, ela começa em alguns capítulos adiante, pois a mulher recusa irem a sós ao passeio, que só ocorre quando Palha pode acompanhá-los. Temos o ápice da representação da personagem como figura dominadora: “ficava-lhe bem o vestido de cavaleira, mormente o corpinho, tentador de justeza – o chapéu alto e másculo, e o chicote” (ASSIS, 1976, p. 176). Na ocasião, Palha exacerba sua mania exibicionista incitando ao olhar do terceiro uma apreciação erotizada da mulher: “Pois digo-lhe que vai ver como se domina um cavalo. [...] Monta muito bem, assentiu o Palha. E depois veja aquela linha do corpo; repare no movimento gracioso com que vai jogando” (ASSIS, 1976, p. 176). Esse compartilhamento simbólico, pela palavra, do desejo de domínio e posse se desloca para o significante do cavalo novamente: “Rubião ainda uma vez admirou o garbo da figura, rija, ereta, dominadora e bem falante. Um cavalo! um cavalo! meu reino por um cavalo!” (ASSIS, 1976, p. 178). No clímax da sequência, contudo, Sofia sofre uma queda. A perda de controle sobre o cavalo é simbólica nessa altura do romance, pois antecipa a condição limite em que se encontrava o domínio de Sofia sobre seu desejo. Finalmente, em seu desfecho, em função da queda, já na intimidado do casal, Palha pede para ver se Sofia se machucara e com as saias da mulher levantadas até o joelho, fica a lhe cobiçar as pernas, impedindo que ela as cobrisse, como queria seu pudor. A cena que hoje parece banal, é composta com deleite e ainda que não chegue às ousadias do Primo Basílio no paraíso, é talvez a página machadiana mais ousada do ponto de vista erótico. A cena, de modo coerente com o que vimos em sua crítica ao realismo de Eça, não se restringe à exposição do corpo ou da sexualidade, mas explora aquilo que deles Machado considerava relegado 81 Mulheres e a Literatura Brasileira pela exposição naturalista – os sentimentos morais a estruturar o erotismo, sobretudo a relação de posse quase patológica no interior do matrimônio. Depois do episódio, Palha se compraz com o pudor expressado por Sofia diante da preocupação de que Rubião a tivesse visto descomposta: Mostrava que ela era sua, totalmente sua; mas, por isso mesmo que ele a possuía, considerava que era de grande senhor não se afligir com a vista casual e instantânea de um pedaço oculto do seu reino. E sentia que o casual tivesse parado na ponta da bota. Era apenas a fronteira; as primeiras vilas do território, antes da cidade machucada pela queda, dariam ideia de uma civilização sublime e perfeita. [...] Palha imaginava o pasmo e a inveja da única testemunha do desastre, que seriam profundos, se este fosse menos incompleto. (ASSIS, 1976, p. 180, grifos meus) As palavras de Machado são precisas na trama das metáforas que exploram a relação de matrimônio em torno da noção de posse, do senhoril e do domínio. Diante da mulher que o despoja do poder absoluto e simbólico do homemmarido-patriarca no interior da família, Palha compensa o despojo se fiando na certeza de possuí-la totalmente. O corpo de Sofia é figurado pelo marido como sua propriedade privada, com cercas invioláveis e bem esticadas. Mas a imaginação de Sofia conta outra história. Através dessa penetração no imaginário, Machado vai erodir as (auto) ilusões dos contratos de sustentação das relações de indivíduos. E a partir daqui o adultério se torna uma ideia fixa que intercepta Sofia recorrentemente. No episódio em que Rubião, completamente tomado pela personalidade de Imperador, “sequestra” Sofia para dentro de seu próprio coupé – e para dentro de seu delírio amoroso também – a mulher é encurralada entre a eminência da 82 Mulheres e a Literatura Brasileira realização da fantasia do adultério e o escândalo público representado pelo desrespeito ao contrato matrimonial. Especialmente na versão da revista, a cena oscila entre o asco que Sofia sente na situação e a fantasia de ser beijada por Rubião, a qual, insistentemente, lhe brota na imaginação. A aventura termina sem beijos ou escândalos, porém “passado o susto e o espanto, [Sofia] mergulhou no devaneio; todas as referências e histórias mentirosas de Rubião como que lhe davam saudades, – saudades de quê? – ‘saudades do céu’ [...]. Nomes diversos relampejavam pelo azul daquela possibilidade” (ASSIS, 1976, p. 193). A possibilidade é o próprio adultério, ora encarnado pelas palavras de Rubião, ora ecoado na lembrança das palavras de Carlos Maria – e agora também como murmúrio constante, efeito das vozes de tantos outros que a cortejaram antes de ambos. Multidão de palavras capturadas para a história de um desejo sem fundo, de uma “disposição latente, – nativa ou adquirida, – [que] era agora vontade imperiosa. [...] um desejo sem eleição, uma curiosidade sem designada pessoa. Queria amar, amar, amar” (ASSIS, 1976, p. 204). A construção do erotismo da personagem apresenta estágios, e se desdobra de modo persistente e vivo, sedimentando-se ao longo do romance em uma trama que o transcende. O mais importante de se notar talvez seja a ausência do determinismo biológico como explicação dessa voracidade amorosa, ou mesmo de julgamentos como nervosismos, histeria, depravação sexual – Machado faz questão de tecer os devaneios amorosos de Sofia com os fios de ouro das palavras mais sublimes, mas é claro que em se tratando de Machado de Assis, haveria de ter uma franja de algodão na ponta desta manta de veludo. Os objetos aos quais se dirige o desejo, Carlos Maria, Rubião, outros galanteadores anônimos, são veículos temporários de uma instabilidade que provém do mistério de seu ser – mistério que 83 Mulheres e a Literatura Brasileira é o desejo como a forma informe de instabilidade interna dos sujeitos frente a normatividades próprias ao ordenamento social. Embora aparado em significantes intermitentes – os nomes dos amantes –, o desejo continua rolando até a impropriedade da nomeação e o puro informe, não por acaso figurado em um sonho: Estava diante da mesma parede de cerração daquele dia, mas no mar, à proa de uma lancha, deitada de bruços, escrevendo com o dedo na água um nome - Carlos Maria. E as letras ficavam gravadas, e para maior nitidez, tinham os sulcos de espuma. Até aqui nada havia que espantasse, a não ser o mistério; mas é sabido que os mistérios dos sonhos parecem fatos naturais. Eis que a parede da cerração se rasga, e nada menos que o próprio dono do nome aparece aos olhos de Sofia. Caminha para ela, entra na lancha, toma-a nos braços e diz-lhe muitas palavras de ternura, análogas às que ela, pouco tempo antes, ouvira ao Rubião. [...] Já não era lancha, mas carruagem, onde ela se ia com o primo, mãos presas, namorada de uma linguagem de ouro e sândalo. Também aqui não há que aterre. O terror veio quando a carruagem parou, muitos vultos mascarados a cercaram; um deles matou o cocheiro, dous arrancaram as portinholas, apunhalaram Carlos Maria e deitaram o cadáver ao chão. Depois, um deles, que parecia ser o cabo de todos, tomou o lugar do defunto, tirou a máscara e disse a Sofia que se não assustasse, que ele a amava cem mil vezes mais que o outro. Logo em seguida, pegou-lhe nos pulsos e deu-lhe um beijo, mas um beijo úmido de sangue, cheio de sangue, inteiramente sangue. Sofia soltou um grito de horror e acordou. Tinha ao pé do leito o marido (ASSIS, 1976, p. 205). Aqui, em seu estágio mais avançado, vemos os móveis da fantasia erótica de Sofia. Fragmentos de sua história – como elementos das fantasias de Rubião, o nome de Carlos Maria, 84 Mulheres e a Literatura Brasileira os devaneios do dia anterior – são deslocados e costurados em tecido onírico. Por meio do sonho, chegamos ao limiar do desejo não-simbolizável, sem objeto, sem nome, sem face. Trata-se de algo à margem do cálculo, das lógicas contratuais, da própria ordem da racionalização e talvez por isso só encontre sua expressão última pelo grotesco aterrador. Mas o abismo está acercado pelo matrimônio e Sofia recorre ao marido para restituir-se à ordem do domínio. Palha pergunta lhe o que houve e ela responde: “Sonhei que estavam matando você”, capitalizando, assim, os restos da energia do sonho para a manutenção do ego machista do marido. Este sonho, e a fuga de Rubião para a morte, encerram o ciclo das fantasias adúlteras de Sofia. Depois disso, pouco sabemos da dama para além de seu sucesso na escalada social, em boa medida às expensas da repressão de seu desejo erótico, que, em função dos interditos da individualidade proprietária e contratualista, só poderia se realizar enquanto adultério – ou delírio. Ainda assim, a fatura do romance não apresenta qualquer condenação do desejo sexual desviante das funções prerrogativas do matrimônio, da família e do machismo. Sofia não precisou purgar sua vontade adúltera ou morrer exemplarmente ao final, como Luísa ou Ema Bovary, para remir-se diante de uma moralidade posta. A reflexão sobre o adultério enquanto problema moral fica a cargo do leitor. Através de Sofia, Machado apresenta mesmo as rachaduras da análise moral possível de se fazer, pois, no fim das contas, a história da personagem flerta com o relativismo – “Há sempre um refúgio moral na isenção exterior, que é, por outros termos mais explicativos, o corpo sem mácula” (ASSIS, 1976, p. 206). A isenção exterior como o refúgio moral é um dos simulacros que os indivíduos constroem para pacificar sua consciência individual e convencer os outros indivíduos de sua 85 Mulheres e a Literatura Brasileira conformidade e respeito às normas. O romance não se faz instrumento pedagógico ou que julga e pune ações condenáveis no âmbito moral. Cabe ressaltar que à época, para sujeitos assimilados à ordem burguesa, o adultério, sobretudo para a mulher, representava uma poderosa transgressão, não apenas do ponto de vista social e moral, mas mesmo do ponto de vista legal – o adultério praticado pela mulher, sob qualquer condição, era um crime “Contra a segurança do Estado Civil e Doméstico”8. Já o marido só poderia responder por crime de adultério caso tivesse “concubina teuda e manteuda”. Como apontado na interpretação de Adréa Borelli (2004), a letra da lei assegurava a norma machista, aquiescendo com a infidelidade do marido, desde que ele não sangrasse a riqueza que deveria manter a família legitimada pelo matrimônio, deixando antever, ao mesmo tempo, a função legitimada para o homem de mantenedor da família. O adultério em Quincas Borba é ainda uma questão que pode ser posta em perspectiva, como resposta à problemática apresentada na crítica a Eça de Queiroz sobre as formas de representação do desejo erótico. Machado o faz sem perpetrar efetivamente qualquer relação adúltera entre seus personagens, como para atestar a prerrogativa de que seria possível dizer muito mais sobre essa questão, em literatura, sem mostrar quase nada. Assim, Quincas Borba é a primeira experimentação de Machado do romance de adultério sem adultério, como será a obra máxima Dom Casmurro. Sofia é também a personagem machadiana mais sensual no sentido eçiano e parece uma resposta do escritor sobre como apresentar o domínio erótico numa mulher, sem incorrer numa perspectiva misógina ou amparada por preconceitos 8 Conforme o Art 50 do Código criminal do Império do Brasil de 1830. O novo Código Penal de 1890 manteve a mesma diretriz. 86 Mulheres e a Literatura Brasileira naturalistas. A sexualidade de Sofia não se explica ou se esgota pelo instinto, pela patologia ou apenas por hábitos de classe. O viés de apresentação da sexualidade nesse romance evidencia o interesse de Machado pela perspectiva das relações humanas, ou seja, pelas consequências da sexualidade no interior da ordem humana, por isso, o desejo de Sofia não é chapado, não se esgota em uma única faixa de sentido, ele é obtemperado por uma rede de aspectos sociais intrincados e por um caractere complexo, matizado, egocêntrico, dominador, astuto, e até que desafia a naturalidade dos predicados de gênero quando apresenta signos de virilidade em uma mulher. O Quincas Borba produz uma crítica aguda sobre a instrumentalização do desejo e do corpo e sobre as (auto)ilusões da subjetivação pelas formas do indivíduo – sobretudo aquela que imagina ser possível que um indivíduo possua outro indivíduo, que o tenha por sua propriedade. O desejo erótico, a sensualidade, o amor são “paixões” humanas que dizem respeito a todos os personagens, homens ou mulheres, em seu estatuto de pessoas morais. O romance os aborda na tensão das normas sociais e modos de subjetivação que, entretanto, recaem de forma desigual sobre homens e mulheres. Machado de Assis testou seus limites estéticos e ousou mostrar, por meio de uma mulher, o desejo erótico, com seus caminhos e descaminhos, sem produzir uma imagem imaculada da mulher, mas também sem torná-la uma besta comandada por instintos ou pelo útero histérico – talvez um corcel brioso e petulante encilhado pelas rédeas de sua autorreificação na ordem da modernidade capitalista. 87 Mulheres e a Literatura Brasileira Referências ASSIS, Machado de. Literatura Realista (O primo Basílio, romance do sr. Eça de Queirós, Porto, 1878). In: Obra completa em quatro volumes: volume 3. Org. Aluizio Leite Neto, Ana Lima Cecilio, Heloisa Jahn. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. _______. Quincas Borba: apêndice. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. _______. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. BORELLI, Andrea. Adultério e a mulher: considerações sobre a condição feminina no direito de família. In: Caderno Espaço Feminino, v. 11, n. 14, Jan./Jul., 2004. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1999. FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. "All the world was America." John Locke, liberalismo e propriedade como conceito antropológico. In: Revista USP, São Paulo, nº 17, p. 30-35, 1993. GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1986. PASSOS, José Luiz. Romance com pessoas: a imaginação em Machado de Assis. 2.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. QUEIROZ, Eça de. O primo Basílio. Rio de Janeiro, RJ; São Paulo, SP: Ediouro: Publifolha, 1997. SAFATLE, Vladmir. O circuito dos afetos. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 88 Mulheres e a Literatura Brasileira As mulheres machadianas e a materialização audiovisual da ambígua sedução feminina em Capitu Evelin Gomes da Silva1 Paulo Custódio de Oliveira2 Introdução3 O constructo narrativo e visual da adaptação de um clássico literário para a televisão, como a obra Dom Casmurro4 (1899), passa por aquilo que Julia Kristeva chamou de “mosaico de citações” (KRISTEVA, 2005, p.68). São comparações textuais e referências artísticas que integram tanto a familiarização do público e da crítica quanto a 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras (PPGL), na Faculdade de Comunicação, Artes e Letras (FACALE), da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), na área de Literatura e Práticas Culturais. E-mail: evyartes@gmail.com. 2 Doutor em Letras (Teoria da Literatura) e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Pesquisa a relação da Literatura com outros sistemas semióticos. Líder do grupo de pesquisa Estudos em Arte e Literatura Contemporânea. É coordenador do grupo de estudo InterArtes. E-mail: paulocustodio@ufgd.edu.br. 3 Agradecimento ao Programa de Pós-graduação Mestrado em Letras (PPGL) e ao Grupo de Estudo InterArtes, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), bem ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/CNPq) 4 O livro Dom Casmurro foi escrito por Machado de Assis no ano de 1899 e publicado pela Livraria Garnier, em 1900, mas com data do ano anterior. 89 Mulheres e a Literatura Brasileira interpretação criativa da produção audiovisual. Para Linda Hutcheon (2013), a familiaridade com o texto adaptado faz com que os leitores façam correlações entre a história escrita pelo autor e aquela que é mostrada pelo meio audiovisual, seja no cinema ou na TV. Por esse motivo, sempre será um desafio adaptar um autor aclamado pela crítica literária e amplamente estudado pelo meio acadêmico. Mas Machado de Assis apresenta um desafio ainda maior. Este, por seus atributos narrativos excepcionais, é considerado um romancista “enigmático e bifronte [...] escondendo um mundo estranho e original sob a neutralidade aparente das suas histórias” (CANDIDO, 1977, p.17). Tal “neutralidade” recai, principalmente, nas discussões sobre as mulheres machadianas presentes nos meandros das diversas correntes críticas dos séculos XX e XXI. O presente artigo busca elucidar alguns traços da ambígua sedução feminina, a partir do estudo das descrições feitas pelos narradores de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), do conto “Missa do Galo”, publicado em Páginas Recolhidas (1899) e de Dom Casmurro (1899). A ideia é estabelecer uma correspondência entre as pistas narrativas e a ressignificação do conceito, que ao longo do tempo contribuíram não só para o diálogo intertextual, como também para a materialização televisiva do empoderamento feminino ao colocar a mulher em destaque, nos dias atuais, na adaptação audiovisual Capitu (2008). Para tanto, esta investigação traz posicionamentos de alguns críticos nacionais e internacionais de Machado de Assis, bem como se volta ao entendimento do enigma e da sedução dos olhos de Capitu na TV. 90 Mulheres e a Literatura Brasileira Machado de Assis e a crítica As obras artísticas de Machado de Assis compreendem vários estilos, como: poesia, crônica, conto, teatro e romance. Além disso, costuma-se admitir que suas contribuições literárias estão divididas em duas fases: a romântica e a realista. Após sua morte, em 1908, o escritor despertou interesse e curiosidade dos críticos literários. Lúcia Miguel Pereira e Alfredo Pujol deram início aos estudos que correlacionavam aspectos pessoais com suas obras, estabelecendo, assim, um caráter autobiográfico em vários de seus livros, sendo, então, “impossível estudar a obra de Machado sem estudar-lhe a vida, sem procurar entender-lhe o caráter. [...] nele, o homem e o artista estão estreitamente ligados” (PEREIRA, 1955, p.22-23). Pujol (1917) encontrou nos livros uma justificativa plausível para se aproximar do autor: “Insisto nestes contornos da personalidade moral de Machado de Assis, porque eles de certo modo explicam e esclarecem a sua evolução artística” (PUJOL, 1917, p.57 apud BUNGART NETO, 2012, p.69). De acordo com o levantamento biográfico organizado pelo Prof. Dr. Paulo Bungart Neto (2012), da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), sobre a fortuna crítica de Machado de Assis, os autores Alfredo Pujol e Mário Matos atribuíam a transformação de sua escrita (do estilo romântico para o realista) ao agravamento de sua doença, a epilepsia. Esta revelou no escritor brasileiro uma profunda mudança de atitude, sendo até mesmo um reflexo “do seu temperamento e do seu modo de observar os homens e as coisas” (Idem, 2012, p.74). Mário Matos acrescenta que o “recalque que gerou em Machado o enjoo do homem foi a sua doença incurável, foi a revolta nascida do sofrimento sem remédio” (MATOS, 1939, p.115 apud BUNGART NETO, 2012, p.74). 91 Mulheres e a Literatura Brasileira Estes apontamentos enalteceram a ideia dos primeiros estudos de literatura comparada, em que a validade de determinada obra dependia da existência de um contato comprovado, de um estudo de fontes e influências, de uma perspectiva histórica e, ainda, das relações de causa e efeito entre as outras obras e seus autores. Mas essa vertente não se solidificou entre críticos como José Veríssimo, Alcides Maya e Augusto Meyer, para quem “o exercício da ficção [...] postula uma dissociação literária, isto é, a dissociação entre o autor e o mundo da sua fantasia criadora” (MEYER, 1956, p.31 apud BUNGART NETO, 2012, p.46). Tal posicionamento teve como mérito a introdução de um novo elemento nos estudos machadianos, a adoção de uma perspectiva “psicológica”, ligada a subjetividade da escrita, tendo como foco não o autor, mas, sim, algumas peculiaridades que Machado de Assis poderia materializar na caracterização de seus personagens. Afrânio Coutinho (2004) destaca esta como a descoberta da verdadeira vocação do escritor brasileiro: abordar a essência do ser humano em sua precariedade existencial. As personagens não apresentariam uma estrutura moral unificada, mas seriam seres divididos consigo mesmos, em um estado de dúvida “em que a cisão interna entra no declive dos compromissos e da instabilidade de caráter” (COUTINHO, 2004, p.159). Além disso, fariam parte de um jogo da vida e comando estaria a cargo de forças desconhecidas, cujo “livre arbítrio está limitado não só pelos obstáculos que a natureza indiferente oferece, mas pelas contradições e perplexidades internas” (Idem, 2004, p.159). Essa duplicidade da consciência moral do ser humano é um elemento que contribui para o entendimento da principal característica da narrativa machadiana: a ambiguidade. Presente em vários romances e contos, a identificação desse elemento não é tarefa fácil. Os parágrafos seguintes buscam 92 Mulheres e a Literatura Brasileira elucidar, de forma breve, alguns traços de ambiguidade na escrita descritiva e interpretativa dos narradores perante as personagens femininas, cujas obras precedem Dom Casmurro (1899), são elas: Marcela, Virgília e Dona Plácida, de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), e Conceição, do conto “Missa do Galo”, publicado no livro Páginas Recolhidas (1899). Neste sucinto estudo comparativo percebeu-se a atribuição de características restritivas a cada uma das mulheres, que, necessariamente, estão ligadas ao tempo das narrativas, como: ascensão social pelo matrimônio, o adultério, a corrupção e o charme sedutor, como formas negativas de manipulação essencialmente femininas. Vale ressaltar que a escolha, apesar de ilustrativa, tem o propósito de apresentar algumas correspondências entre os narradores (Brás Cubas, Nogueira e Casmurro), já que os três rememoram acontecimentos do passado e utilizam para isso uma linguagem objetiva, repleta de metáforas, digressões e ironias, sendo que tais recursos auxiliam a implantação da dúvida. Tendo como referências os estudos de tipologia narrativa de Salvatore D’Onofrio (2006) e Norman Friedman (2002), estes podem ser considerados narradores-oniscientes intrusos. Eles apresentam como prerrogativa o conhecimento absoluto e infinito sobre o ambiente, as personagens, suas ações e percepções, bem como a autoridade de tecer comentários sobre as situações narradas. São ainda narradores autodiegéticos, ou seja, figuras ficcionais que além de relatarem suas experiências pessoais, tendo como focalização o seu ponto de vista, eles protagonizam sua própria história. Portanto, a ideia é estabelecer a seguir um paralelo entre as pistas narrativas ambíguas, deixadas ao longo do tempo pelos narradores na construção das referidas personagens e a ressignificação do conceito de sedução. Além de demonstrar, 93 Mulheres e a Literatura Brasileira ao final, a possível influência do posicionamento dos primeiros críticos literários do século XX, que estudaram a personagem Capitu de Dom Casmurro (1899). As mulheres e a ambiguidade Diante do exposto, iniciaremos com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Na obra o acesso à história e aos personagens é feito pelo ponto de vista de um indivíduo que se autodefine “defunto-autor”, ou seja, uma pessoa que após a morte decide escrever suas memórias. Ao mesmo tempo em que age como um narrador-observador, ele é protagonista da trama e, ainda, transcende as críticas e os julgamentos de qualquer pessoa viva. Ao apresentar uma narrativa com várias digressões, a faz da forma que acha conveniente, evidenciando elementos que corroboram com a sua visão, sem se atentar a qualquer sequência cronológica. Com uma linguagem erudita, repleta de humor, ironias e metáforas, o ritmo do livro é ditado pelas constantes interrupções do narrador e pela fragmentação da história. A multiplicação de pequenos capítulos estabelece cortes no raciocínio e proporciona pausas interpretativas das construções metafóricas do protagonista. Sob o ponto de vista deste homem é que temos acesso à personagem Marcela, conhecida como a “dama espanhola” (ASSIS, 1998, p.40). Apesar de ser boa moça, era também “[...] lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo [...]; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes” (Idem, 1998, p.40). Percebe-se que a palavra “espanhola” dá ênfase ao substantivo “dama”, dando-lhe atributos de adjetivo, uma qualidade intrínseca ao sujeito da frase, que carrega todos os referenciais culturais da Espanha, cuja sensualidade está na 94 Mulheres e a Literatura Brasileira arte, tradições, literatura, língua, dialetos, dança, música e, ainda mais, na idealização da mulher. Já Virgília, a amante de Brás Cubas, traz uma sensualidade impetuosamente natural. Era a mais “atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. [...] cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. [...] faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos” (Ibidem, 1998, p.59). Neste trecho é possível destacar a palavra “feitiço”, que traz o referencial imposto por outras significações, como: magia, encanto, produto de feitiçaria ou bruxaria. O poder de sedução de Virgília seria, então, uma qualidade sobrenatural, uma espécie de maldição da qual somente a mulher conseguiria eternizar ao buscar os tais “fins secretos da criação”. A literatura ousada e, muitas vezes, ácida de Machado de Assis traz sob uma escrita “expressa de um modo elegante e comedido” (CANDIDO, 1977, p.19), uma crítica à moral social. Como é o caso da apresentação do comportamento corrupto de Dona Plácida. Sob o ponto de vista do narrador, ela era uma viúva pobre e honesta, que abrigaria ele e sua amante, Virgília, durante seus encontros furtivos. A princípio, a senhora não aceita a ideia, mas em pouco tempo a benevolência, a confiança e a segurança do futuro do casal são “compradas” com a doação generosa da quantia de cinco contos, feita por Brás Cubas. O narrador encerra o incidente comunicando: “Foi assim que lhe acabou o nojo” (ASSIS, 1998, p.102). Para Antonio Candido (1977), a ironia da narrativa, o emprego da linguagem objetiva de descrição dos fatos, os aspectos de normalidade que envolvem todas as relações entre os personagens, a moralidade e até mesmo o senso de conveniências constituiriam “apenas o disfarce de um 95 Mulheres e a Literatura Brasileira universo mais complicado e por vezes turvo” (CANDIDO, 1977, p.20) da narrativa literária machadiana. Seria ainda uma forma clara de “efetuar os seus saltos temporais e brincar com o leitor. [...] sobretudo o seu modo próprio de deixar as coisas meio no ar, inclusive criando certas perplexidades não resolvidas” (Idem, 1977, p.22). A ideia de implantar interpretações nas entrelinhas pode ser observada no conto “Missa do Galo”, cuja dúvida é apresentada no início: “nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu 17, ela 30” (ASSIS, 2011, p.11). A narração em primeira pessoa é identificada pelo sujeito oculto “eu”, devido ao verbo “pude”, no pretérito perfeito. O termo “há muitos anos” traz a impressão de que seja alguém mais velho. Trata-se do narrador-protagonista Nogueira, que relembra um episódio de sua adolescência, quando foi hóspede na casa de Dona Conceição, esposa do escrivão Meneses. O conto tem uma linguagem coloquial. Retrata o encontro casual entre um adolescente e uma mulher, que conversam sobre temas triviais, livros, missa, falta de sono, gravuras nas paredes, anedotas e lembranças de infância. Aparentemente, nada acontece. Mas o narrador-protagonista, a partir de uma linguagem objetiva, começa a sugestionar uma interpretação, inserindo pequenos elementos que vão tornando a história ambígua. Como quando menciona o adultério do marido de Conceição, que uma vez por semana dizia ir ao teatro, mas na realidade saía para se encontrar com sua amante. E, de forma afirmativa, o narrador diz: “Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro” (ASSIS, 2011, p.12). Ao deixar no ar o fato ilícito, ele relembra que ficou sozinho lendo um romance quando durante a madrugada Conceição apareceu na sala. 96 Mulheres e a Literatura Brasileira Outras breves pistas narrativas trazem conotações dúbias, quando contrastadas com a descrição do comportamento e das características da personagem. Para o narrador, ela seria uma mulher boa, santa, passiva, simpática e de beleza mediana. Já a roupa que usa no dia do casual encontro teria um encanto particular: “um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica [...]” (Idem, 2011, p.13). O fato de estar “mal apanhado na cintura” seria uma menção ambígua: o roupão pode ter sido escolhido ao acaso ou, como sugere o narrador, poderia fazer parte de algum plano de conquista. A segunda suposição é complementada pelo detalhamento feito pelo protagonista das mangas do roupão não abotoadas, que “caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim [...] naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande” (Ibidem, 2011, p.15). No conto nada acontece de fato, não há traição, muito menos alguma relação extraconjugal entre os personagens. O que existe é a implantação da dúvida e a ressignificação da sedução feminina, sugestionada como algo ilícito. A breve investigação dos textos citados – Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Missa do Galo (2011) – auxilia a compreensão da visão do narrador e como são recriadas determinadas particularidades das figuras femininas: a beleza, a sedução, a manipulação e a corrupção. De certa forma, corrobora com os primeiros estudos críticos do narradorpersonagem de Dom Casmurro (1899). Ao conduzir sua narrativa, ele direciona a leitura sobre a figura da mulher, introduz a ambiguidade e provoca a dissimulação interpretativa por estar envolvido diretamente com aquilo que é narrado. 97 Mulheres e a Literatura Brasileira Além do mais, Casmurro é um narrador-protagonista. Desta maneira, “o eu que narra se identifica com o eu da personagem principal que vive os fatos” (D'ONOFRIO, 1995, p.62). Ele acumula, então, o papel de dois sujeitos: o da enunciação e do enunciado, sendo o responsável por apresentar os elementos indispensáveis da narrativa, como os fatos, as demais figuras da trama, os motivos e as categorias do tempo e do espaço. A compreensão do livro está diretamente ligada ao discurso adotado por ele, que também é caracterizado como um narrador onisciente intruso. A qualidade ou condição de “onisciência” se refere a um ponto de vista totalmente ilimitado da história e dá ao narrador um saber absoluto e pleno. Sob esta perspectiva, se coloca acima dos envolvidos na narrativa e está “livre não apenas para informar-nos as ideias e emoções das mentes de seus personagens como também as de sua própria mente” (FRIEDMAN, 2002, p.173). Sob olhos casmurros e críticos No romance, o narrador está, realmente, numa perspectiva superior a todas as personagens, não por sua característica de conhecimento infinito, mas pelo simples fato de ter o domínio de sua autobiografia. E foi sob esta perspectiva de unilateralidade interpretativa que as primeiras críticas ao livro Dom Casmurro (1899) foram formuladas. As análises acompanharam o olhar de Casmurro, um solitário advogado, sexagenário e ex-seminarista, que conduz a descrição dos locais, das características, do caráter dos sujeitos envolvidos na trama e que narra todos os acontecimentos, sobretudo as situações e suas percepções. Sua memória é a referência basilar e os fragmentos de lembranças remodelados 98 Mulheres e a Literatura Brasileira constituem o substrato da construção narrativa de sua história romântica com Capitu. Quando resolve escrever, já se passaram muitos anos do fim do seu casamento. Ele já não é mais o ingênuo e romântico menino Bentinho. Muito menos o jovem advogado Bento de Albuquerque Santiago e apaixonado marido de Capitu. Seus entes queridos já faleceram. Encontra-se rodeado apenas por “inquietas sombras” (D.C., ASSIS, 1994, p.03), em sua casa no Engenho Novo. Após anos sozinho, resolve colocar no papel as reminiscências de sua história, tentando com isso “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência” (Idem, 1994, p.02). Solitário, amargurado e revivendo o sentimento da dúvida e do ciúme, resolve relembrar suas desconfianças, tanto de uma possível traição de Capitu, quanto da fidelidade da amizade de Escobar e até da paternidade de Ezequiel. A partir da rememoração dos acontecimentos, ele deixa transparecer algumas características articuladoras, pois os leitores só têm acesso à Capitu pelas palavras de Casmurro. Na visão dele se tratava de uma criatura morena, “alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. [...] de olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e queixo largo” (Ibidem, 1994, p.20-21). A enumeração de seus atributos físicos aliada a certos adjetivos pejorativos, constitui a composição literária e visual da mulher. Ao mesmo tempo que enaltece a personagem Capitu, o narrador insere elementos ambíguos. Como quando menciona as palavras “chita” e “meio desbotado” traz sua visão depreciativa, uma possível referência à origem humilde da jovem. Além disso, nesta descrição, Casmurro evidencia a marca da sensualidade e ao ser “forte e cheia”, ela não teria receio de, mesmo assim, usar um vestido delineando seu corpo ou que a deixaria 99 Mulheres e a Literatura Brasileira “apertada”. Não sendo esta, na opinião dele, uma vestimenta adequada a uma dama da sociedade. Na narrativa literária é impossível saber o que Capitu pensa ou sente, já que a ela não é dada a voz. A nostalgia melancólica apresentada pelo narrador, na opinião de Hélio de Seixas Guimarães (2001), apela à empatia e procura convencer a todos da sua versão do ocorrido, ao mesmo tempo em que deixa “pelo caminho falsas pistas que possibilitam explicações divergentes das suas, constituindo-se em iscas para enredar o leitor no campo ficcional” (GUIMARÃES, 2001, p.167). Tanto é que os primeiros leitores e críticos de Dom Casmurro (1899) interpretaram a obra tendo como base as abordagens ideológicas dos romances consagrados pelas pesquisas acadêmicas, culturais e sociais da era de transição entre o período Romântico e o Realismo. Mas não só isso, utilizaramse de análises cujos referenciais estavam na própria obra machadiana e suas personagens femininas. Desta forma, elaboraram uma crítica a partir de uma afinidade à história apresentada pelo narrador, enquadrando sua complexidade nos modelos sociais que dispunham. Em sua pesquisa sobre os leitores de Machado de Assis, Guimarães (2001) apresenta a visão do escritor e crítico da Literatura José Veríssimo Dias. No texto, “Novo livro do Sr. Machado de Assis: Dom Casmurro”, publicado no Jornal do Commércio, em 1900, o crítico brasileiro defende o narrador. Veríssimo (1900) descreve Bentinho como ingênuo, simples, cândido e confiante. Era o filho amado, o namorado ingênuo, o amigo devotado e o marido crédulo. Embora reconheça a existência do ciúme deformador em Casmurro, o estudioso credita à mulher o poder ardiloso da manipulação e da transformação de Bentinho. “Não sei se acerto atribuindo malícia no pobre Bento Santiago [...] foi Capitu, a deliciosa Capitu, [...] quem o desamou, e, encantadora Eva, quem 100 Mulheres e a Literatura Brasileira ensinou a malícia a este novo Adão” (VERÍSSIMO, 1900 apud GUIMARÃES, 2001, p.362). Alfredo Pujol (1917) seguiu a mesma linha de raciocínio de Veríssimo (1900). Em sua leitura, categoriza Dom Casmurro (1899) como um livro cruel, pois conta a história de um homem, cuja alma cândida, terna e feita para o sacrifício do sacerdócio, é enganado por sua amada. Pujol descreve Capitu como uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis, mas diz que “ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente. [...] A traição da mulher torna-o cético e quase mau” (PUJOL, 1917 apud SCHWARZ, 2006, p.11). Sob o ponto de vista dos primeiros críticos (VERÍSSIMO, 1900; PUJOL, 1917), Capitu foi capaz de desorganizar e desestruturar a vida daquele homem. Seria uma mulher lasciva, que utilizaria da manipulação, da mentira e da sedução para alcançar com o casamento uma ascensão social. Teria traído seu marido com o melhor amigo dele, Escobar. E, pior, Bento teria sido “obrigado” a criar um filho bastardo, Ezequiel. Para estes críticos, os atos de Capitu promoveram a destruição da honra do advogado Bento Santiago e do amor entre o casal. A traição fria e calculista seria o elemento que desencadeou a transformação do narrador, passando do terno e cândido Bentinho, para o ciumento e dissimulado Casmurro. Lúcia Miguel Pereira (1955) reitera a visão desses críticos, elencando o amor e o ciúme como temáticas centrais do romance. Ela ainda submete a postura metamórfica do narrador à síntese sobre o questionamento da índole da figura feminina e diz que Dom Casmurro “vai mais uma vez, [...] abordar a questão da responsabilidade. Capitu, se traiu o marido, foi culpada – ou obedeceu a impulsos e hereditariedades ingovernáveis? É a pergunta que resume o 101 Mulheres e a Literatura Brasileira livro” (PEREIRA, 1955, p.237). A crítica ainda aponta a existência de uma sedução pecaminosa na personagem, colocando-a como “felina, ondulante, cheia de manhas e recursos, já se revelava, desde então, mulher até a ponta dos dedos” (Idem, 1955, p.240). Para a pesquisadora, as cenas sobre o caráter e o temperamento da menina teriam sido suficientes para entender que ao se casarem Capitu dominaria a relação conjugal. Entretanto, as articulações finais sobre o livro, sugerem a existência de uma arte da dúvida, cujas gradações imperceptíveis criariam uma situação ambígua, pois “antes de nascer o espírito de Bentinho, a dúvida nasce no leitor, sem que o autor diga nada. E, aliás, ele passa o livro todo sem dizer nada” (Ibidem, 1955, p.240). Sob este aspecto, muitos estudos foram elaborados, tendo como foco o narrador Dom Casmurro. A mudança de paradigma No século XX muitos críticos buscaram revisitar tanto as obras quanto as interpretações feitas por outros teóricos sobre os clássicos literários brasileiros. O livro Dom Casmurro (1899) recebeu, junto com outras obras de peso, uma nova interpretação. Uma delas diz respeito à suposição da postura ambígua do narrador, mencionada de forma breve por Lúcia Miguel Pereira (1955) e que foi amplamente discutida pela professora e crítica norte-americana, Helen Caldwell, em seu The Brazilian Othello of Machado de Assis (1960), traduzido para o português somente em 2002. A precursora do movimento feminista nos Estados Unidos proporcionou uma mudança de paradigma interpretativo da crítica, ao defender a tese de que Capitu não havia cometido o polêmico adultério. Posteriormente, 102 Mulheres e a Literatura Brasileira introduz a ideia de que o narrador não era confiável, por conta de sua memória fragmentada, seu poder de retórica e de persuasão narrativa aguçados, devido à formação em Direito. Apesar de interpretar a obra também de forma unilateral e inocentar Capitu, a autora não se limitou à questão do adultério, como ocorreu com os primeiros críticos. Em seu livro, ela buscou respostas para a sua dúvida: “por que o romance é escrito de tal forma a deixar a questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?” (CALDWELL, 2008, p.13). Na opinião da pesquisadora, essa indagação sequer foi formulada pelos estudiosos de Machado de Assis, apesar de sua resposta ser “uma parte essencial, [...] senão sua própria chave” (Idem, 2008, p.14) para a compreensão da obra. Em seu livro, Caldwell (2008) tece comentários sobre a complexa e irônica escritura do narrador. Apresenta para a crítica literária um novo olhar interpretativo, ao colocar o velho Bento Santiago no banco dos réus e reabrir o que chama de “O Caso de Capitu”. Ela pesa cuidadosamente as palavras do narrador, especialmente quando orienta no primeiro capítulo a interpretação que o leitor deverá dar ao termo “Casmurro”, pedindo para que ninguém consulte o dicionário em busca da definição. Caldwell, então, subverte esta exposição, analisando todas as afirmações posteriores sob o ponto de vista da ironia, ou seja, da ideia de dizer uma coisa que na realidade traz outro significado. Exatamente o que acontece quando o narrador interpela o leitor e traz a explicação para tal apelido, dandolhe significações positivas e engrandecedoras, ao dizer que: “Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo” (D.C., ASSIS, 1994, p.01). A crítica sugere que pesquisar o sentido da palavra Casmurro poderia mudar a interpretação do leitor e, quem sabe, pudesse “achar que a definição padrão 103 Mulheres e a Literatura Brasileira antiga se aplica melhor a Santiago do que aquele que ele oferece” (CALDWELL, 2008, p.21, grifo da autora). Na opinião da pesquisadora, Bento Santiago seria inseguro e suspeitaria até dos pensamentos de Capitu. Esta desconfiança o fez duvidar do amor e da fidelidade da esposa, bem como da amizade de Escobar e até questionar a paternidade de Ezequiel. Tendo como base apenas algumas lembranças, racionalizações e digressões metafóricas é que o narrador reúne em sua autobiografia as suas provas contra a ré. Para a Caldwell, tais provas seriam baseadas apenas em interpretações de situações cotidianas e narradas por um indivíduo ciumento e manipulador. Alguém cuja memória, teoricamente fraca pela idade avançada, só conseguiria se lembrar de fragmentos de “fatos”. O próprio protagonista compara sua memória à de um viajante, alguém que tenha “vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias” (D.C., 1994, p.89). Assim, a narrativa interna de Casmurro estaria fundamentada naquilo que parece ser real, aparenta ser verdadeiro, ou seja, verossímil. Não há fatos concretos, apenas situações no âmbito do possível, do acreditável, do presumível ou do imaginável pelo narrador. Tais lembranças estariam repletas de suposições e dissimulações. Para Caldwell (2008), estas breves citações seriam pistas argumentativas. Deixadas entre os parágrafos, tais menções promoveriam um sentimento de desconfiança sob as palavras daquele que narra, sendo possível, até mesmo, transportar esta inquietação para a interpretação e a compreensão de toda a narrativa, pois é feita a partir da história rememorada por Casmurro. É com base nessa prerrogativa que a pesquisadora estadunidense coloca em discussão o teor da escritura do livro e das palavras do narrador. 104 Mulheres e a Literatura Brasileira Ademais, como a culpa ou a inocência de Capitu dependem inteiramente das lembranças e do testemunho do velho Bento Santiago, cujo ciúme pode ter sido capaz de deformar suas interpretações, só esta afirmação já tornaria o depoimento suspeito e impreciso. Portanto, toda a argumentação do narrador e a construção de sua obra na visão de Caldwell (2008) não passariam de uma longa defesa em causa própria, já que é por meio de seus intermináveis sofrimentos que ele mesmo estabelece: o próprio caráter, o seu amor, sua dedicação e sua ingenuidade. Casmurro é ainda o único capaz de determinar a sua inocência e incutir ideias sobre a imaginável culpabilidade de sua esposa. A imprecisão lançada sobre a confiabilidade das palavras deste indivíduo, feita pela crítica estadunidense, contribuiu para novos questionamentos e interpretações acerca do narrador machadiano. Como é o caso de John Gledson (2006), para quem Casmurro seria um narrador notoriamente não confiável, devido a sua consciência sofisticada, a tendência para digressões de relevância duvidosa para o enredo e o relativismo abrangente. O crítico pondera que se a aparência da verdade é, na maioria das vezes, tudo o que é possível obter da verdade em si, a realidade apresentada deveria, então, aparecer entre aspas todas as vezes que fosse mencionada. “[...] O narrador que nos diz que a verdade é inacessível, é ele mesmo notoriamente enganoso e tem suas próprias razões para crer que a aparência da verdade é tudo da verdade que se pode obter” (GLEDSON, 2006, p. 281). Na falta de provas, tudo o que se tem é a aparência, ou seja, a verossimilhança, e isso deve bastar. Desta maneira, a riqueza de Dom Casmurro (1899) está, justamente, na onipresença da dúvida, na narrativa aberta, “sem conclusão necessária ou permitindo uma dupla leitura” (CANDIDO, 1977, p.22). A ambiguidade é essência mantenedora da 105 Mulheres e a Literatura Brasileira fertilidade artística da obra. Diante disso, as características de Capitu também passam pela reinterpretação dos diálogos intertextuais e artísticos que constituem a figura da mulher. A ressignificação da mulher cigana A abordagem adotada pelos primeiros críticos de Dom Casmurro (1899) e pela pesquisadora norte-americana demonstram que os estudiosos não interpretaram diretamente Capitu. Eles “construíram uma mulher” sob a versão daquele que conduz a história, tendo como base as tensões ideológicas do período da narrativa e as reinterpretações de outras obras literárias. Portanto, a elaboração da personagem feminina traz uma correspondência simbólica de feminilidade presente não só na obra de Machado de Assis, mas em todas as releituras críticas e convenções artísticas, ressignificadas ao longo dos tempos. Um exemplo interessante se refere à consagrada definição de Capitu: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (D.C., 1994, p.38). Esta particularidade traz em seu cerne um referencial que perpetua uma ideia já instaurada no imaginário coletivo, a de uma mulher que é ao mesmo tempo enigmática e traiçoeira, mentirosa e sedutora. As leituras que se seguem dão conta do desenvolvimento deste estereótipo conflitante sob duas vertentes. Primeiramente, serão apresentadas as discussões propostas por Linda Hutcheon (2013), sobre a importância das adaptações ao arquétipo da figura feminina de Carmen (1845), a cigana de Prosper Mérimée. Posteriormente, será demonstrada de que forma alguns princípios ressignificados da mulher cigana foram incorporados pela microssérie Capitu (2008) na criação da personagem machadiana. 106 Mulheres e a Literatura Brasileira De acordo com a crítica, o livro Carmen (1845) retrata o amor ilegítimo entre uma cigana vidente e um soldado espanhol-basco, tendo como pano de fundo a Espanha. Ela era uma mulher fascinante e desonesta, que se envolveu com um bandido ciumento. A narrativa tem uma estrutura “erudita, controlada e vem acompanhada de notas de rodapé, como se o mundo estrangeiro aqui fosse uma ameaça a ser contida. E como se Carmen fosse parte dessa ameaça” (HUTCHEON, 2013, p. 208). No romance, dois narradores apresentam a figura feminina. O primeiro não é nomeado, sabe-se apenas que é um arqueólogo francês. Em suas viagens pela Espanha, conhece o segundo narrador, Dom José Navarro, um ex-soldado que se tornou um assassino e ladrão. É ele quem, após ser preso, conta sua história de amor e ódio pela cigana. O arqueólogo ao encontrar Carmen fica fascinado com a figura de pele lisa, cor de cobre, lábios grossos e dentes brancos, de uma “beleza estranha e selvagem [...]. Sobretudo, seus olhos tinham uma expressão, ao mesmo tempo voluptuosa e feroz [...]. ‘Olho de cigano, olho de lobo’ é um ditado espanhol que confirma bem o que acabo de dizer” (MÉRIMÉE, 1999, p.26). Para ele, ela seria uma feiticeira ou uma escrava do demônio, sendo capaz de falar sobre o futuro das pessoas apenas vendo as cartas de um baralho. Em sua narração, José Navarro a descreve como sedutora: “Vi aquela Carmen que o senhor conheceu [...]. Repuxava a mantilha a fim de mostrar os ombros [...]. Trazia, ainda, uma flor de cássia no canto da boca e caminhada balançando os quadris, como uma égua nova [...]” (Idem, 1999, p.35-36). Seria ainda uma ladra e manipuladora, capaz de envolver os homens com suas histórias. “Ela estava mentindo, senhor. Mentiu sempre. Não sei se em uma vida essa moça falou alguma palavra verdadeira. Mas quando falava eu acreditava no que dizia. Era algo mais forte do que eu” (Ibidem, 1999, p.41). Para 107 Mulheres e a Literatura Brasileira Hutcheon (2013), a narrativa provoca a inquietação do eterno jogo entre o profano e o divino, além da identificação de Carmen como uma criatura maléfica, desonesta e enganadora. Tanto é que os personagens masculinos atribuem a ela características semelhantes: “[...] o narrador a considera uma feiticeira, o amante a chama de diabólica. É culpa dela o ciúme que sente; é culpa dela que ele deve assassiná-la” (HUTCHEON, 2013, p.208). Ao longo do tempo, a visão da maléfica Carmen apresentada por Mérimée foi sendo recriada e reinterpretada por outros autores, que enalteceram outras particularidades. Uma delas é a ideia de liberdade. Hutcheon (2003) afirma que a figura dramática seria dona de seu próprio destino, características incomuns para uma mulher da época retratada na narrativa. Curiosamente, foi esta independência feminina e, não sua ilegalidade, o maior atrativo dos públicos e dos adaptadores. Esses elementos alteraram profundamente as reinterpretações da personagem de Mérimée (1845). Como é o caso da adaptação da história para uma opéra comique (1875), feita pelos libretistas de Bizet, Henri Meilhac e pelo judeu Ludovic Halévy, que “consistia em alternância de diálogos falados e música: os personagens cantavam em momentos de excesso emocional” (Idem, 2013, p. 209). Na recriação, a Carmem operística é uma mulher decidida e independente. Não é uma ladra, embora seja apresentada como uma contrabandista. O diferencial dessa produção passa pela característica performática da ópera. Todos atuam, cantam e dialogam entre si. É possível ver e ouvir a figura feminina, sem a interferência da condução dos personagens masculinos. A adaptação trouxe uma nova visão sobre Carmen que, apesar de não ser mais vista como a vilã, ou seja, uma figura maléfica e desonesta, conforme a versão de 108 Mulheres e a Literatura Brasileira Mérimée, agora se utiliza de outro artifício para alcançar seus objetivos, a sedução. O desafio de reinterpretação demonstra como a visualidade alterou as questões primárias sobre a protagonista de Mérimée. Carmen se tornou uma espécie de discurso universal, “um desenvolvimento multiautoral de fragmentos” (LEICESTER, 1994 apud HUTCHEON, 2013, p.207). Tais fragmentos mesclam contos populares, narrativas literárias e as várias adaptações, cada qual integrando ou reforçando conceitos próprios das tensões culturais e ideológicas de seu tempo, trazendo até os dias atuais um empoderamento feminino. Deste modo, as releituras que constituem a “mulher cigana” e a “cigana Carmen” podem ser encontradas em várias figuras dramáticas femininas, como é possível perceber na descrição literária das mulheres machadianas deste estudo. No livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), o narrador traz de forma irônica a ganância e a corrupção de Dona Plácida, ao mesmo tempo que descreve Marcela como a “dama espanhola, [...] amiga de dinheiro e de rapazes” (ASSIS, 1998, p.40). Já Virgília, a amante de Brás Cubas, é atrevida, voluntariosa, encantadora e conduzida por “ímpetos misteriosos” (Idem, 1998, p.59). No conto “Missa do Galo”, publicado em Páginas Recolhidas (1899), o narrador Nogueira sugestiona um ato ilícito de Dona Conceição ao encontrar com ele sozinha no meio da noite. A ambiguidade da narrativa constrói a sedução da mulher a partir da descrição detalhada da vestimenta usada pela dona da casa e seu comportamento. Ele relembra que “Conceição ouvia‑me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio‑cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê‑los” (ASSIS, 2011, p.14). 109 Mulheres e a Literatura Brasileira A sedução dos olhos femininos é enaltecida com a personagem Capitu, de Dom Casmurro (1899). Sendo uma das características mais enigmáticas da Literatura Brasileira, o olhar da jovem traz em si as releituras dos conceitos que constituem a essência de Carmen. Tais elementos estão presentes não apenas na obra literária, como ganham destaque imagético na adaptação para a televisão, na microssérie Capitu (2008). O olhar sedutor de Capitu É importante destacar que na Literatura Brasileira a mudança de foco interpretativo proposta por Caldwell, na década de 1960, abriu a possibilidade para que os críticos literários revisitassem a obra de Machado de Assis, como também para que outros escritores, roteiristas e até diretores de cinema que tivessem interesse, desenvolvessem novos materiais tendo como referência as ricas ambiguidades redimensionadas pela pesquisadora. Porém, no que concerne às primeiras produções audiovisuais inspiradas na obra Dom Casmurro (1899) – como os filmes Capitu (1968), com direção de Paulo César Saraceni e Dom (2003), roteiro e direção de Moacyr Góes –, a reinterpretação apresentada por Caldwell não surtiu muito efeito. As abordagens temáticas das narrativas fílmicas giraram em torno do ciúme, da instituição “casamento”, do adultério feminino e da desconfiança da paternidade, apenas atualizando os posicionamentos críticos de 1900 a 1959. Entretanto, diferentemente das referidas adaptações, a microssérie Capitu (2008) buscou enfrentar o desafio de materializar na TV a principal característica de Machado de Assis: a ambiguidade. Na opinião do pesquisador Renato Luiz Pucci Júnior (2012), a solução mais lógica e até mesmo fácil 110 Mulheres e a Literatura Brasileira seria eliminá-la, utilizando para isso “uma trama linear, sem as interpolações da narração” (PUCCI JR., 2012, p.216). Mas a equipe do Projeto Quadrante, da Rede Globo de Televisão, resolveu seguir na contramão da facilidade e manteve as premissas do texto machadiano com o enredo dramático, os personagens e a fragmentação narrativa, representada pelos microcapítulos. A opção adotada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho foi a criação de uma linguagem própria, valendo-se de convenções, recursos de composição audiovisual e modos narrativos, para tentar fazer com imagens o que a literatura faz com palavras. Um dos artifícios foi manter o narrador, com um ator (Michel Melamed) que o interpreta na tela. De tal modo que Casmurro, antes envolto pela ficcionalidade literária, agora é um personagem audiovisual. Na microssérie, apesar de Casmurro conduzir toda a narrativa, a personagem feminina ganha destaque ao nomear a produção televisiva. Desta forma, Capitu (2008) instiga a curiosidade e o questionamento do público contemporâneo, em especial, dos que conhecem a narrativa literária, alcançando o status de protagonista da história. Ao promover o deslocamento do foco narrativo, a obra contempla tanto as primeiras ponderações quanto as reinterpretações críticas feitas por Helen Caldwell (1960), como visa instigar as discussões atuais sobre o papel e a posição que a mulher ocupa em nossa sociedade. A utilização desse recurso atende ainda às premissas do processo de adaptação descrito por Linda Hutcheon (2013), que envolve tanto uma (re)interpretação quanto uma (re)criação. De acordo com a pesquisadora, o que atrai o público é a combinação dos conceitos de repetição e novidade, ligados ao sentimento de prazer de se descobrir a intertextualidade entre as obras e as relações que elas mantêm. Este é um elemento 111 Mulheres e a Literatura Brasileira enriquecedor e que pode ser entendido não só pela compreensão da interação entre as obras, mas na busca pelos “possíveis significados de um texto ao diálogo intertextual” (HUTCHEON, 2013, p.161). Além disso, Capitu (2008) traz para a televisão a atualização dos referenciais que constituem a feminilidade ligada à enigmática mulher. Na adaptação, a correspondência artística entre Carmen e Capitu está ligada, exatamente, à sedução. A essência simbólica da cigana está, principalmente, nas cores do figurino. Quando jovem, Capitolina (interpretada pela atriz Letícia Persiles) se veste com vestidos esvoaçantes em tons claros. A anágua, uma espécie de saia que as mulheres usavam sob o vestido, foi feita com “várias camadas de tecidos luminosos e transparentes, [...] com colagens de folhas, flores e coisas que encontra no chão” (GLOBO, 2008, p.04). Na fase adulta (Maria Fernanda Cândido), a protagonista é tomada por cores em tons quentes, como o amarelo, o laranja, o vermelho e o vinho. Suas roupas marcam o busto e a cintura, enaltecendo as curvas da mulher. Toques de sedução são evidenciados com o uso de véus. Além do mais, o conceito oblíquo é transposto para as vestimentas cujas criações assimétricas proporcionariam uma percepção visual em que “para cada ângulo que o telespectador olhar, terá uma visão diferente” (D.C., 2008, p.04). O principal diálogo intertextual está ligado à definição dada aos olhos da jovem, que se tornou um dos registros mais fortes da Literatura Brasileira. Sobre eles, dois momentos na narrativa literária merecem destaque. O primeiro, refere-se à menção negativa que o agregado José Dias apresentou a Bentinho durante uma conversa: “a gente Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o Diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e 112 Mulheres e a Literatura Brasileira dissimulada” (Idem, 1994, p.38). A referência à Carmen de Mérimée (1845) está na definição diabólica dos olhos e também na caracterização libertina histórica e culturalmente ligada à palavra “cigana”. O segundo recria uma sensação positiva de sedução, que é complementada pelo sentimento de uma paixão nostálgica, presente na rememoração do narrador sobre o encontro de Bentinho com Capitu. Na cena descrita no livro, o menino está em estado contemplativo e envolto em seus pensamentos. Ao fixar os olhos na menina, o jovem começa a divagar, tenta entender o que José Dias quis dizer e repete “[...] ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim” (Ibidem, 1994, p.50-51). O Bentinho literário se deixa levar pelo sentimento da paixão. Ao se deparar com a menina à sua frente encara a situação sob uma nova ótica, sendo seduzido pelo olhar que imagina ser o de Capitu para ele. Vivencia, então, uma nova experiência. Ao ir para a televisão, a microssérie Capitu (2008) materializa na tela essa confluência de sentimentos e conceitos abstratos, ou seja, a ideia de algo surreal, sedutor e inebriante experimentada pelo rapaz. Tem ainda a pretensão de apresentar na TV a essência da sedução ligada às personagens Carmen e Capitu. Para isso, a cena do segundo capítulo, cujo trecho é intitulado “OLHOS DE RESSACA”, inicia aos CP210'23''5 e utiliza de forma enfática o plano subjetivo e o close, bem como técnicas de luz e sombra. A partir dos CP2-11'33'' um movimento em câmera lenta prepara o observador para a 5 Para facilitar a identificação das cenas analisadas será utilizado o seguinte padrão: CP2-10'23''. No exemplo, as letras CP referenciam a palavra “capítulo”, seguido do número do capítulo (2), dos minutos (') e dos segundos (''). 113 Mulheres e a Literatura Brasileira imagem que virá a seguir: a materialização do olhar sedutor (da cigana/menina/mulher/Capitu), bem como a percepção sensorial e imaginativa de Bentinho (interpretado por César Cardadeiro). É então que aos CP2-11'36'', dois pontos de luz fazem com que a experiência visual tome a proporção de sedução e grandiosidade. O primeiro se refere à luz que emana da parte superior ao fundo da tela, evidenciando os cabelos encaracolados e o rosto da personagem. O segundo está na cor branca que envolve o elemento circular em tom marrom esverdeado e o pequeno ponto brilhante localizado na cor avermelhada, no centro da imagem. Estes fazem com que a atenção seja voltada, respectivamente, para os olhos e para boca, convencionalmente ligados à sedução. O rosto, os olhos, os cabelos e os lábios tomam conta de toda a cena da TV. A câmera está fixa e enquadra a imagem em primeiro plano (close). A personagem está posicionada em frente à câmera e olha diretamente para a tela. É como se Capitu “quisesse seduzir” aquele que a vê. Ela observa e deixa-se ser observada, não só por Bentinho, como também por Casmurro e por todos os telespectadores, que inebriados e atônitos vivenciam a sensação de sedução. Já a materialização da grandiosidade do olhar oblíquo e dissimulado se dá a partir dos CP2-11'42'', quando há na tela uma sobreposição de elementos, uma fusão de tons, cores, formas e imagens de Capitu. Os olhos cerrados da jovem piscam em câmera lenta, enquanto cabelos esvoaçantes se misturam a lábios entreabertos. Um olhar baixo e um meio sorriso representam a timidez sedutora da figura feminina. Em movimento circular várias partes do rosto da menina se misturam e se fundem na TV. Neste instante o telespectador vivencia a mesma sensação de Bentinho, que é apresentada de 114 Mulheres e a Literatura Brasileira forma surreal, sendo também envolvido, seduzido e tragado para um mundo particular. Aliás, esse emaranhado de imagens em câmera lenta compõe uma sequência que segue até os CP2-12'07'', ou seja, durante 25 segundos todos os envolvidos na cena, tanto Bentinho e Casmurro, quanto àqueles que a assistem (os telespectadores), são hipnotizados pelo caleidoscópio imagético que é a representação do olhar dessa mulher. O fato dos olhos terem tomado a tela em close é que dá dimensão grandiosa e sedutora a tal expressão. A câmera demonstra a importância descomunal do narrador ao olhar da menina, fazendo com que todo o cenário simplesmente desapareça. A cena de Capitu (2008) busca recriar na TV a sensação abstrata vivenciada pelo Bentinho literário ao mirar mais atentamente os olhos da amada. A microssérie se utiliza, então, de técnicas próprias do seu meio audiovisual cujas influências vem do cinema, das artes plásticas, da pintura e do teatro, para reinterpretar a expressão machadiana. De tal forma que o público contemporâneo, que estivesse tendo contato (pela primeira vez ou não) com o romance, pudesse experimentar visualmente o que só era possível imaginar e sugestionar a partir da leitura do romance. Considerações finais O presente estudo buscou demonstrar como a escritura e condução ambígua dos narradores (Brás Cubas, Nogueira e Dom Casmurro) contribuiu de forma significativa para o entendimento da principal característica das personagens femininas de Machado de Assis: a sedução. Cada uma das mulheres analisadas neste estudo (Marcela, Virgília, Dona Plácida, Conceição e Capitu) compõe tanto o referencial teórico machadiano quando o imaginário coletivo e crítico 115 Mulheres e a Literatura Brasileira que, necessariamente, está ligado às (re)interpretações ideológicas, artísticas e culturais do tempo das narrativas, sendo possível, nos dias atuais, apresentar na televisão brasileira uma adaptação do livro Dom Casmurro (1899) intitulada Capitu (2008). Vale ressaltar que, apesar de Dom Casmurro conduzir toda a microssérie, é a personagem feminina quem ganha destaque. Capitu (2008) estimula a curiosidade e o questionamento do público contemporâneo, em especial, dos que conhecem a narrativa literária, alcançando o status de protagonista da história. Como foi demonstrado, a adaptação da Rede Globo é repleta de referências intertextuais, artísticas, visuais e estéticas específicas. Trata-se de uma criação televisiva que se valeu de recursos de composição e modos narrativos audiovisuais, para tentar fazer com as imagens o que a literatura faz com as palavras e, assim, adaptar para a TV a essência da obra machadiana: a ambiguidade. Em suma, a produção traz para a televisão a atualização dos referenciais que constituem a feminilidade ligada à enigmática mulher cigana ao materializar a essência simbólica dos olhos oblíquos e dissimulados da jovem Capitu. A adaptação materializa na tela uma visão artística dos conceitos literários abstratos, ou seja, traz a ideia de algo surreal, sedutor e inebriante experimentada por Casmurro e Bentinho, a partir da utilização de técnicas com influências do teatro, do cinema e da pintura. Assim, reinterpreta e recria a enigmática particularidade de Capitu na TV, de tal forma que o telespectador é levado pela sedução e vivencia, ao menos visualmente, aquilo que só era possível imaginar ao ler Dom Casmurro (1899). 116 Mulheres e a Literatura Brasileira Referências ASSIS, M. Dom Casmurro. São Paulo: Objetivo/CERED, 1994, 192p. ________. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Ática, Série Bom Livro, 1998, Pp. 39-41; 59-60; 102. ________. Missa do galo e outros contos. São Paulo: Editora Unesp / Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 2011, Pp.11-19. BUNGART NETO, P. A flor amarela solitária e mórbida da introspecção: A obra crítica de Augusto Meyer sobre Machado e Assis. Campo Grande: Editora UFMS, 2012, 287p. CANDIDO, A. Esquema Machado de Assis. In.:_____. Vários Escritos. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1977, Pp.13-32. CALDWELL, H. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro. Cotia/São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. CAPITU. 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São Paulo: Cia das Letras, 2ª ed., 2006, Pp.09-45. 119 Mulheres e a Literatura Brasileira A Contextual Approach to Mariza Lira’s Chiquinha Gonzaga, O Abre Alas Paula Gândara1 Chiquinha Gonzaga was arguably one of the most important figures to the creation of the so-called Brazilian popular music that begins flourishing by the end of the 1800s. Born in Rio on the 17th of October of 1847, dead on the 28th of February of 1935 her life spanned almost a century in which Brazil went from a monarchy to a republic, slavery was abolished and women gained the right to vote. She was unquestionably connected to the development of these sociopolitical movements and was the object of three biographies to date. This article will reflect particularly on the first biography and its two editions as a direct consequence of the political and social moments in which they were produced. We will consider the female image of the times, either the perfect housewife or the single, alluring mullata as well as the barely present press image of Chiquinha Gonzaga herself in direct contrast with the life of the composer as Lira describes. Mariza Lira, a well-known journalist at the time writes Chiquinha Gonzaga O Abre Alas in 1939. Lira wrote a series of Brazilian folklore and music articles, such as “Brasil Sonoro” (1938), “Cânticos Militares” (1943), “Migalhas Folclóricas” (1951), “História do Hino Nacional Brasileiro” (1954) and in 1966 she would be invited to join the newly created Museu da 1 Doutorado em Letras pela University of Massachusetts at Amherst (2003). Atualmente é Associate Professor da Miami University – Ohio, no Departamento de Estudos de Espanhol e Português, Estudos Lusófonos. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Hispanic Literatures. 120 Mulheres e a Literatura Brasileira Imagem e Som, Museum of Image and Sound and its Superior Council of Brazilian Popular Music that selected the names of the musicians and composers who were to join history. For sake of a corpus limitation and variety of perspective we chose three newspapers. The Jornal das Moças ran from 1914 to 1961 all over the country and was dedicated to a feminine audience; A Folha ran from 1921 to 1960 from S. Paulo and A Noite ran from 1911 to 1964 off Rio de Janeiro, Chiquinha’s hometown and the hub of the Brazilian artistic-musical world. A Noite (1911-1957) counts as arguably the first newspaper directed to everyday issues, born as a voice of opposition against the government it went through several phases throughout the years. From the decade of the twenties to the thirties the newspaper changed directions drastically. Due to a strong period of governmental repression against dissident voices in 1925 the paper goes from actively reactionary to progovernmental. In 1930 it suffers severe damages as those same dissident voices win power and destroy the printing equipment. In 1931 it is bought by a foreign group and initiates its period of recovery and development with the creation of a radio station and two more magazines now adopting a more neutral political position. A Folha da Noite was created in 1921 to become the second most read newspaper in the country. Created in a strong liberal tradition it supported the women’s vote and voiced strong opposition to Vargas’s Estado Novo dictatorial regime. In 1925 it was added a morning edition entitled A Folha da Manhã and 24 years later one would see the creation of an afternoon edition A Folha da Tarde. These three papers will become one under the name A Folha de S. Paulo, a leader amidst Brazilian national press. The Jornal das Moças (1914-1965) was, in contrast, directed to a conservative uppermiddle class even though it avoided direct socio-political 121 Mulheres e a Literatura Brasileira statements having as its primary mission to entertain and educate through daily, domestic and mundane subjects. Chiquinha Gonzaga O Abre Alas, together with two other following biographies were the object of a critical reading by Adriano Luiz Paraizo. In his article, “As Biografias de Chiquinha Gonzaga, uma Leitura Crítica” (2013) he conveys the three biographies of Chiquinha Gonzaga are in tune with the positivist approach to the history of women. He also detains on how these biographies depict Chiquinha invariably as a victim or heroine. Another article of interest within the same thematic is authored by Maristela Rocha “Chiquinha Gonzaga, Transgressão, Sucesso e Memória: a Relação Entre a Compositora e a Teoria Social do Escândalo” (2012) in which the author considers that scandal propelled the composer’s achievements all the way into our times. Maristela Rocha makes use of the second biography of Chiquinha Gonzaga by Edinha Diniz and Media Scandals: Morality and Desire in the Popular Culture Marketplace as her theoretical framework. The biography O Abre Alas was first published in 1939 making obvious references to one of Gonzaga’s most famous songs by the same title. The biography was clearly in need but having been commissioned by João Baptista and having him as the only informative source created the first set of problems. João Baptista, Chiquinha’s companion during the last thirty years of her life, was then working for the wellknown record company Casa Edison. He approached Lira to recount the story of his “mom”: in order not to affront society it was never mentioned she and himself shared a difference of forty years in age or that they actually lived together as husband and wife. It was not mentioned either that her mother was African. The biography aims at promoting her as a key figure in the creation of Brazilian identity, her abilities 122 Mulheres e a Literatura Brasileira as music teacher and the fact that she was undoubtedly a pioneer of Brazilian feminism. The biography was dedicated to João Baptista Lages “an admirable example of a son’s dedication” 2, it counts 156 pages and it is divided into 24 chapters. The titles of these chapters themselves indicate the focus of the work, “Preludes of Feminism”, “Harmonious Profile”, “The National Rhythm”, “Patriotic Modulations”, “The Singing Soul of Brazil” and “Sacred Hymn” are some of them. On page 14 one can read ‘to write the life of Chiquinha Gonzaga is at the same time to pay homage to her and to Brazil’ (1978). If one were to describe Chiquinha based on these titles one would say she is the embodiment of a “sacred” country infused with the patriotism her music induces. Plus, her feminism is enveloped in harmony, the same national harmony that her rhythms produce. In the depicted Chiquinha runs Portuguese and Italian blood; the author presents a picture of her father, the Army Marshal José Baliseu Neves Gonzaga, and her godfather the Duke of Caxias. She insists on the genealogy of the heroine Chiquinha – one should note that the name Caxias is celebrated in Brazil on the 25th of August as the Day of the Army. “The Iron Duke”, as her godfather was known lived a glorious military career and served as prime minister in 1856 and 1861 under the rule of the Emperor D. Pedro II. His name serves even today as an adjective to refer to anything and anybody who excessively fulfills laws and regulations. The introduction thus serves to envelop Chiquinha in a strong nationalistic lineage associated with order, rules and conservatism and European roots. 2 All translations are responsibility of the author. 123 Mulheres e a Literatura Brasileira The scenario is set so that the reader will come to forgive Chiquinha for abandoning all societies’ rules. Her life is in itself a clear affront to all norms that would never allow a “decent” woman to work, to play and much less to compose a new type of music entirely detached from the classical tradition. Thus, Lira’s work constructs a Chiquinha in the typical Brazilian “relational society” classification mold as described by the anthropologist Roberto da Matta in Carnivals, Rogues, and Heroes: An Interpretation of the Brazilian Dilemma (1991). Da Matta expounds that Brazilians tend to identify with society’s hegemonic expectations as a whole while allowing for an individual’s particular space that may be in apparent contrast or rebellion within those same norms. Thus, the titles of the chapters invoke a clear cut contextual reality which the majority of Brazilians would recognize as virtuous and acceptable. Then, Lira proceeds to pinpoint the feelings that same reality gave rise to in Chiquinha’s personal case: Chiquinha is the fatal object of the severity of the Brazilian customs of the times and of her father who had designed her “absurd marriage” (1978, p.28). Chiquinha is the victim of an unloving husband as well, and as the author moves to explain her second love affair, she is the foolish prey of a young engineer of manly charms. Lira continues to explain how Chiquinha was the perfect Brazilian mother, “In need to feed her little ones” (1978, p.31.) Chiquinha in “a dedication typical of Brazilian mothers” (1978, p.45) was then forced to look for a job, thus becoming a piano teacher. It was not mentioned that her family had cut all contact with her and that her children – with the exception of one – had been taken from her. The account proceeds explaining that in order “to understand the anxieties and longings of the popular soul” (p.32) she had to mingle within the nightlife of her epoch. 124 Mulheres e a Literatura Brasileira Thus what would be nothing but a scandalous life is explained as a need to respond and adjust to the socio-cultural norms that everyone respects but that were clearly imposed in excess upon the singularity of Chiquinha’s personality. She should also be excused for what might be deemed as a “bohemian” lifestyle since without it she would have never been able to truly apprehend the people’s soul. Physically, Lira describes Chiquinha as pretty, embodying the “Brazilian type” brunette, small, with slightly curled dark hair (p.41). Marisa Lira stresses the severity and modesty of her dressing as well as her Catholicism: “she had a small altar in her house with all the saints of her devotion” (p.42). On this same page however she also accentuates that Chiquinha was a beautiful woman with barely the means to attend to “the natural vanities of her sex”. Da Matta’s logic referred above continues to apply to this mode of description; Chiquinha is only as beautiful as she should be. If she were merely beautiful that might give rise to excessive admiration, attraction or vanity, but she is as beautiful as any proper, catholic, typical Brazilian woman should be – and we will return to this idea further ahead. Within the logic of a national beauty, Chiquinha’s Brazilian rhythms, the Maxixe or the Brazilian tango, and the Choro are but a logical consequence of her obvious and inherent patriotism. According to Lira, her musical activities also run side by side with “her ideals of greatness and freedom inherited” (p.58) from her father and her godfather, the Duke of Caxias. These ideals would have led her into patriotic activities such as the fight for the freedom of enslaved artists, or to request the mortal remains of the composer of the Brazilian national anthem would be honored. The biography structure can easily be understood according to Da Matta’s Brazilian triangular descriptive 125 Mulheres e a Literatura Brasileira mode; Chiquinha’s life that society might seemingly condemn is glorified by her particular ability to seemingly adjust to those same societal rules while circumventing them. The society that set the ideal of marriage was the same society that set her in an “absurd marriage”. Chiquinha had no saying in her marriage the same way she had no saying in following her civic impetus for a patriotic musical career in detriment of her husband and children. But beyond integrating Chiquinha in the world that had shun her and that continued to ignore her Marisa Lira is also coherent with her own contextual reality in which women fighting for the right to education and the right to vote had still to invoke motherhood as the chief reason: how would an ignorant mother be a good guide to her children? How would a woman be a good wife if unable to cooperate with her husband in all matters? The full right to vote by women in Brazil was won in 1932, only seven years before the publication of this biography and the context in which it was won still obliged to the needs of men. 1936, one year after the death of Chiquinha Gonzaga, marks the entrance of the first woman in the Brazilian parliament, Bertha Lutz. Her acceptance speech in the Diário Legislativo da República denotes the same kind of relational mode as that of Marisa Lira’s portrait of Chiquinha Gonzaga. Bertha Lutz begins by saying that her presence in political life is almost unnecessary and that she would trust men entirely with the mission of defending women’s rights, however women are, in her own words “the least favored half of the population. Her work in the home is incessant and anonymous, her professional labor is poorly paid, and most of the times her talent is frustrated as there are no opportunities to develop it” (29/7/1936). By the end of her speech she states: “home is the basis of society, and the woman will always be integrated in it. But home is not only the space of four walls, 126 Mulheres e a Literatura Brasileira home is also the school, the factory, the office. Home is especially the parliament, where the laws that regulate the family and our society are elaborated” (29/7/1936). It is this same set of ideas that propel Lira’s necessity to insist on Chiquinha’s motherly qualities and on the fact that she had three children (notice there’s a fourth child from her second relationship that is never mentioned in order to avoid scandal). According to Lira it had been the fight to feed those children – and we must remember that in reality she only lived with one child - that led her into work. She was “fighting with great difficulties to balance domestic expenses [and] little was left to attend to the vanity of a beautiful and celebrated woman” (1978, p.42). This phrase in itself is not innocent: Chiquinha’s severe attire might imply the risk of her being labelled as a modern woman; and in both Lira and Chiquinha’s world “modern” was not necessarily a positive attribute. Thus Lira insists that Chiquinha wasn’t insensitive to vanities but she simply could not attend to them for lack of money and while presenting her as a feminist, she clarifies she was the pretty “Brazilian type” whose only sin, if any, had been to fall under the illusions of love - not adultery. Moreover, Lira is aware that the right to vote had been acquired with the support of the Bishop of Niteroi against the desire of many a catholic – Chiquinha, however, was such a good catholic she even had an altar in her own home, not to mention the fact that while in Lisbon from 1906 to 1910 she played organ for two religious ceremonious in Benfica (1978, p.74) per week without fail. The newspaper Folha da Noite mentions Gonzaga four times, one on 18/03/1924 (p.7) and three more times in 1928, specifically 08/09/1928 (p.4), 26/07/1928 (p.7) and 23/07/1928 (p.5). All entries in 1928 simply refer to the maestro performances in the section entitled “Diversões.” However, 127 Mulheres e a Literatura Brasileira the entry from 1924 differs. It is entitled “Nós, Lá Fora – o Elogio da Música Brasileira Por Um dos Grandes Directores da Música Moderna de França” and it mentions how Brazilian music is highly praised by one of the greatest world authorities in contemporary music, Jean Wiener – whom the unknown author compares to Stravinsky. Jean Wiener, a French piano player and popular jazz composer known mostly by his compositions produced for film stated that Brazilian music stood as a major source of inspiration due to its original rhythms and melodies, specifically mentioning Ernesto Nazareth, Francisca Gonzaga and Villa Lobos as examples of the Brazilian character. Ernesto Nazareth and Villa Lobos are contemporary to Gonzaga. They are both well-known by their Choro compositions owing way more to classical music than Gonzaga herself, but that interests us little in the present context as we simply look for the newspaper approach to Maestro Gonzaga. Given the lack of other news one can only conclude the newspaper opted to ignore the personality and the life of the composer giving notice of her performances and none other. Even for a liberal newspaper details of her life would be too much to deal with, as one can understand through the reading of a piece entitled “Mania de Independência,” Independence Craze, in the section “Femininas”. On the 7th of January of 1926 the newspaper reads: “the apparent feminism, futile and illogical counts numerous adepts […]. Those adepts wear a cane; dress in a masculine manner and bad mouth men. They have a great defect […]: the craze for independence” (p.2). On February 17th 1928 the same newspaper reads a column with no title a propos a certain feminist lady who favors celibacy and remains unnamed “she won’t marry because she’s a ‘cannon’ ugly as can be, one of those faces of piston smashed in a fight […]. Not all men are willing to tie to an ugly sod with a 128 Mulheres e a Literatura Brasileira bearded double chin […]. One of those women, with all the feminist furor of independence would give birth to a generation with the looks of a wild pig interbred with an Angolan chicken” (p.2). If a liberal paper invokes feminism in such vivid criteria it is easy to assume Gonzaga’s posture as a financially independent working woman, moreover in the musical night world, would be infamously judged. In fact, in light of such epithets it is rather astounding she would be mentioned at all. Those seemingly innocuous mentions of her performances speak loudly than it would seem to an innocent reader. The edition of 1/3/1930 of the same newspaper, in a piece entitled “Ecos”, states “To be a man! Here is the ambitioned ideal that inflames the empty heads of black or blond braids. Home is no longer the sweet refuge […] drunk as women are for the arid frivolity of a semi-masculine life that enchants them as if bewitched” (p.5). The silence offered around the life of Gonzaga denotes the popularity and appreciation for her music standing way above her private life circumstances. A Noite mentions Chiquinha Gonzaga five times during the decade of the 20s, specifically the editions of 23/2/1921, 2/4/1928, 23/4/1928, 8/5/1928 and 18/6/1929. Once again, the announcements strictly refer to musical entertainment with the exception of the last one in which allegedly Chiquinha had ironically comment on how natural it is the theaters are empty since the public prefers the “shows” of politicians. During the 30s there are eight other occurrences of her name 3 – referring, again, to nothing but her musical productions. Finally, the plural signification of the silence comes to an apex on the 1st of March of 1935 when an article entitled “Chiquinha 3 24/4/1935, 8/2/1936, 11/12/1936, 12/12/1936, 14/12/1936, 16/12/1936, 18/12/1936, 19/12/1936. 129 Mulheres e a Literatura Brasileira Gonzaga, o Desaparecimento de uma Figura de Relevo da Música Brasileira” (p.3) gives notice of her death on the 28 th of February as the disappearance of an important figure for Brazilian music. The piece, on the contrary of Mariza Lira, emphasizes not her Portuguese ascendency but her inherently nationalist, rebellious and poetic one, as she is seemingly a descendant of Tomás António Gonzaga, the poet of the “Inconfidência” – a major political uprising in Minas Gerais, 1789, against the Portuguese crown. She is also described as a “figure of incomparable projection in the history of music and national theater as in the national life in the last fifty years.” The statement is interesting in the measure that intends to situate Chiquinha Gonzaga in a nationalistic lineage that the newspaper itself had never before intended to create or promote. If one knew nothing about the personal life of the composer how could one understand that such an important figure had been nothing but a small print in the section of “Espéctaculos”, mentioned but five times in the span of ten years? Be it so, it is clear there exists a faction of Brazilian readers ready to accept her in history as part of the political opposition to the government, be it the Portuguese crown or the Brazilian republic, as the entry of 18/6/1929 had already insinuated. The innuendo gave credit to the paper’s stand as a loud reactionary voice and the article of 1935, for how neutral the paper present stance, refers her independence and courage in a time of prejudice against women, but above all it mentions her body of work, “genuine Brazilian who produced uncountable compositions of specifically popular interest” (p.3). The composer belongs to the “best Brazilian families” that – according to the newspaper - are clearly against the mainstream and in deep brotherhood with the “people” (by opposition to governmental powerful figures). She is also deeply respected not just amongst Brazilians but the 130 Mulheres e a Literatura Brasileira Portuguese and even the French as she had received an honorable distinction for the composition of a march in glory of the French army. The article develops a connection of Chiquinha to an idea of popular revolution deeply embedded in the Brazilian spirit as she was being buried in the same cemetery where the author of the Brazilian national anthem laid and her funeral procession left home from the Sociedade Nacional de Autores Brasileiros, the National Society of Brazilian Authors. It also refers that “the entire Brazilian press” would have celebrated her during the anniversary of the fifty years of her composition “A Corte na Roça”, 1855. We researched the Correio da Manhã, one of the most important periodicals during the period of 1900-1909 and found no matches of her name, the same being true for the Gazeta de Noticias – an abolitionist and anti-monarchical newspaper that also made space for literary news – during the same period. Thus, whomever the author of that piece was he/she certainly incurred some “freedoms” as to the extent of the popularity of Chiquinha Gonzaga in the printed media however one should doubt the inaccuracy of the author’s words in view of a veil of silence that was in itself more telling of her popularity than words would dare. In 1939 Getúlio Vargas was in power (1937-45), the “Father of the Poor” – such was his nickname - had a strong agenda for Brazilian nationalism and populism, among others. During his regime, The Estado Novo, “samba exaltação” consolidated as the Brazilian musical style by excellence. The samba’s lyrics exalted the natural beauties of Brazil’s landscape, the saintly character of women and the hard-working man – a scenario that was far from the reality of the lower classes. For these, samba was represented in the lyrics of the famous Noel Rosa; a misogynistic speech in which women were either “Amelia”, the perfect wife who did 131 Mulheres e a Literatura Brasileira not care to starve by an enthusiastic samba composer husband, or the materialistic, deceiving and cheating over sexualized mullata. In this world, violence against women is a joke, and a need, if you are to keep your women under control. The song by Ary Barroso, ‘Dá nela’, Hit Her won the Carnival contest of 1930 in Rio and was a major hit: “This woman has been provoking me for awhile/ hit her, hit her, she is dangerous, she talks too much and now she says what she thinks, hit her, hit her, she’s intelligent and filled with poison destined to kill us, hit her, hit her.” The upper middle class could, on the other hand, read the famous Jornal das Moças, a weekly newspaper (1914-65) of “readings, civility and feminine education” directed to women, written and edited by men. Published in Rio it was distributed all over Brazil, with an average of 60-70 pages per issue. In 1935 it counted 120 thousand copies every Thursday and usually sold out in the same day. In 1945 it was the 8 th most read publication in the country; from the other seven only one was directed to women A Cigarra, which was an entertainment guide. In Jornal das Moças one finds idealized images of women, mainly in the upper and the middle class. The later is shown as capable of moving onto an upper class and both are advised to stay at home in order to fulfill their homely mission, and the mission of Vargas. The sections entitled “Evangelho das Mães”, Gospel of the Mothers, “O Cantinho das Crianças”, the Corner of the Children and a third one “Cartilha Social”, Social Teachings, present selfdescriptive titles. Afro-Brazilians are almost non-present in the context of beauty propaganda that emphasizes Hollywoods’ way, “men love straight blond hair better” even though there exists what might be deemed as an ultra conservative view that depicts feminine beauty alike independently of its outward manifestations. The article 132 Mulheres e a Literatura Brasileira entitled “Corda Bamba” reads “all women are children of God be them tall, fat, low, light, dark, blond, tan, blue or black eyes, brown or green, blond or black hair, coarse or flat hair, curly or frizzy, none of that matters. The main thing is that women give us lessons of virtue and teach us about rivers of endearment and kindness” (4/10/1926). The author warns us that such views would belong to a minority he agrees with. Ten years later the paper Folha da Manhã speaks differently to racial harmony through advertising. In the ad coffee is depicted as a black woman who the white man, sugar, is espousing. Page 9 illustration portrays him putting a ring on her finger and reads “The Union that Satisfies Everybody” (11/3/1936). Independently of race the perfect state is marriage. The ideal woman is virtuous, endearing and married. The section “Voz” Voice of Jornal das Moças, that presented poems and chronicles from the readers was censored at the time of Vargas by his newly created Department of Press and National Propaganda. The modern though not so modern women that the magazine was directed to were not entitled to creative displays. An ad from 1937 reads “the medicine that your grandmother took is no longer good for you, today life is another” (04/07/1937). Modern women are supposedly divorced from their grandmother ways but their modernity does not seem to surpass anything but their financial power to follow the newspaper beauty advertising. “O Evangelho das Mães” and “Cartilha Social” sections alike presented a woman completely divorced of “modernity”. “Modern” women do not take their grandmothers medicine but are as sick as their grandmothers ever were! Their “intimate” diseases – as then described – were responsible for the lack of attention of their husbands, emotional disturbances and the dissolution of the home. A section 133 Mulheres e a Literatura Brasileira dedicated to marriage dated 15/08/1935 reads: You conquered him, will you be able to keep him? Your beauty has won, you’ll be married in a couple of hours and the sweet illusions will turn into reality. An intelligent woman as you are you know your hardest task will be to keep your husband. And there are so many single women who are a danger to your marital peace! But you won’t fall into the pit of neglecting yourself. Your main purpose in life is marriage and to keep yourself beautiful so your husband won’t be lured by younger, single women, a threat to the sanctity of the home. After all, the magazine presents but a slightly different version of Noel Rosa’s women and “a real” Chiquinha Gonzaga divorced from Lira’s harmonic biographical interlude. The single, hard working, independent Chiquinha would have been categorized under “danger”, out of the home, a sexual predator, and moreover not that interested in the ideals of beauty of her times. The biography of Chiquinha as Lira concocted did fit the Vargas political agenda and thus suffered no censorship. The biography capitalized on a sense of Brazilian pride that accentuated Chiquinhas’ European background – the same strategy the A Noite had resorted to albeit a different, more rebellious genealogy. Both publications use and manipulate her background to uphold her national glorification and European prestige. It would be easy to venture that if Mariza Lira or the newspaper mentioned the African background of the artist Gonzaga would have been shamed but reading voices such as the above makes us believe that were not the cruces of the problem. Her African ancestry per se would matter only so much as it could be related to the idea of an autonomous, liberated and industrious woman. Were it not 134 Mulheres e a Literatura Brasileira for these attributes she could easily fit the saintly Vargas’ mullata - coffee is advertised as a black woman nevertheless entirely proper, about to be married to a white man. Chiquinha was not married. In the same ad the black woman carries a bow in her head, reminding us of the same bow a poor Chiquinha dared to use when respectable women would not leave the house without a hat. It is not the possible mentioning of her African blood that might have jeopardized her reputation but putting together both those issues – her African ancestry together with her independence would certainly do it. Her bow would not have been the obvious sign of a woman in financial distress but the indicator of a poor, immoral mullata to whom no man would offer the possibility of dignity through marriage. Europeanized however, the bow gave note of a woman who was striving to make ends meet. Lira’s biography tailored Chiquinha perfectly in an industrialized, esthetically whitened Brazil that will only see famous women composers in the 1950s, women such as Dolores Duran – herself of clear African background. However, it was 1955 already and Dolores Duran was getting married, not divorced, unlike Chiquinha Gonzaga. In spite of Lira’s efforts and a typical Brazilian dialectic as prescribed by Da Matta her biography fell into oblivion until 1978, the date of its 2 nd edition. Brazil was again under dictatorship, this time a military one (1964-84). This edition is titled differently from the first, Chiquinha Gonzaga, Grande Compositora Brasileira, Great Brazilian Composer. The omissions of 1939 were not corrected and the preface, signed by Ary Vasconcelos – a famous journalist and musicologist is clear: Unfortunately, until now, we have not made justice to her legacy. Chiquinha’s theater hasn’t been revived, her 135 Mulheres e a Literatura Brasileira compositions have been almost forgotten. If it weren’t for ‘O Abre Alas’, the Brazilian tango ‘Corta-Jaca’, the song ‘Casa de Caboclo’ and the modinha ‘Lua Branca’ that sometimes are remembered on tv it would be worthwhile asking, for the future, if all her work was for nothing (1978, p.8). Lira’s concern in justifying, glorifying and victimizing Chiquinha Gonzaga thirty years before had indeed not produced many fruits. In 18/7/1938 the newspaper A Noite does commend Lira’s Brasil Sonoro as a model of the Estado Novo and the Department of National Propaganda – but we found no mention of Chiquinha’s biography. The Jornal das Moças mentions none and neither does A Folha da Noite. Ernesto Geisel, whose name figures in the opening pages of the 2nd edition of Lira’s biography as “the president” (together with the names of the ministry of culture and the president of Funarte, the National Foundation for the Arts), was in power from 1974-78. His time as president saw the ending of the infamous AI-5 – that had suspended all constitutional rights in 1968 – and inaugurates a period of political opening in Brazilian military dictatorship. The president’s interest in the arts sees to the development of Embrafilme - Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima - for more than propaganda of the regime. Its creation in 1969 was attached to an intention to develop Brazilian cinema in all its cultural, artistic and scientific aspects. To the press the president also allowed some criticism of the government and it was formed the Brazilian Committee for the Amnesty of Political Prisoners. More important to our case is the creation of the Pixinguinha Project in 1977 aimed at recovering and spreading Brazilian Popular music (it lasted for thirty years) one of the previous main targets of the military as Brazilian popular music artists 136 Mulheres e a Literatura Brasileira had been imprisoned and exiled for criticism of the dictatorship. Ernesto Geisel’s government also created the DAC, Departmento de Assuntos Culturais, which initiated a process of cooperation allowing artists to self-direct. In 1975 national politics finally determined the respect of artistic creation freedom and the support of Brazilian cultural development. On the 16th of December of the same year Funarte, the National Foundation for the Arts, was created. Its first major project was the development and spreading of Brazilian music. It is in this context that the second edition of Chiquinha’s biography is published under the auspices of the president. The environment was receptive to her actions as an artist, but as a woman societal pressures remained basically the same. Let us examine the popular music scenario: the song “Moça”, Young Lady, from Wando, one of the major hits of 1975 reads “young lady I know you’re no longer pure/ your past is so strong it might even hurt you/ young woman fold the sleeves of time/ place your feelings in my hands/ I want to swirl around your hair/ hug your entire body/ die of love/ from love loose myself/ I want to/ I want to.” The woman, who is no longer pure, can yet be saved if she forgets her past and delves into his love. He, on the other hand is ready to lovingly accept her even though it might cause him to die of love. “Outra vez”, Again the 1978 hit by Roberto Carlos presents something close to this scenario and still scarily reminds us of the stereotype created by Noel Rosa at the time of Chiquinha’s biography first edition in the 1930s: “Ah, you were the evil that only made me feel good/you were the best of my plans/and the greatest deceit/from the memories I carry in life/ you are the longing I like to enjoy.” The inescapable attraction for evil and deceiving women is still present; it makes sense Lira would not have changed a word from her first edition. 137 Mulheres e a Literatura Brasileira Finally, one should refer briefly the other two biographies of Chiquinha Gonzaga dated 1984 and 1999. In 1984, the famous novel of Lya Luft The Island of the Dead depicts the tragedy of a woman pianist forced to abandon her passion for music to become a housewife and a mother. In the context of this novel and its times, Chiquinha Gonzaga would not be much farther from being the same alien she was a century before. Lya Luft presents this subject openly through Renata, a woman from a middle-upper class family, who does not abandon her husband or her children to pursue her musical career. Contrarily to Chiquinha, she abandons her musical career for the sake of her family, but Lya Luft explores clearly the misery, prejudice and the terrible familial consequences of such a choice. Renata feels responsible for lack of motherly qualities, for her divorce and the death of her children. At the same time all of this is associated to her musical talent to such an extent that she herself resolves to never again play the piano. If we are to compare this 1984 character with the real Chiquinha it is strikingly obvious that the partial anonymity problem of the later resided exclusively on gender issues. Having lived more than a century before Luft’s Renata she had chosen her music in detriment of all; it could never have been any different. However, 1984 also marks the end of the dictatorship, a period also known as “The Opening.” The first Brazilian raps brought to light by an Afro-Brazilian middle class that had access to the US world, hit the radio. 1984 saw a series of rap recordings, in particular two major collections by Racionais MC, one of the most famous groups of Brazilian rap. The style talked openly about the inequalities of Brazilian suburbs and racial injustice. It was time for some corrections. Chiquinha Gonzaga, uma História de Vida, a Story of Life by Edinha Diniz, a history 138 Mulheres e a Literatura Brasileira Professor in the Federal University of Bahia, finally mentions the African origins of her mother and the fact that Chiquinha had been born before her parents were married. The writer also mentions that João Baptista was not her son, based off the love letters she had access to. The book has ninety pictures, and offers not only a basic chronology of the times but a chronology of Chiquinha’s compositions. She is now the mulatta heroine 1984 demanded. Nevertheless, if one is to read about the biography, the Folha de S. Paulo in May 30th 1984 mentions Chiquinha was an abolitionist, republican woman, musician by profession and choice who made use of her personal freedom at a time women didn’t have one. Yet again no mentioning of either her African background or her relationship of more than thirty years with a man who was her youngest by forty years. A third biography of 506 pages written in 1999 from a very romantic posture, was “dedicated to all Brazilian women, all Chiquinhas of this world who dare to think by themselves and re-write Brazilian history” (Lazaroni, 1999, p.8). The author is Dalva Lazaroni, a Portuguese teacher, lawyer and writer who says she does not know if she is writing “a biography in the style of a novel or a novel of existence itself” (1999, p.13). She admits she will make use of her imagination to write this piece, a situation that makes it hard for the reader to know whether for instance the numerous love affairs the author talks about were indeed part of Chiquinha’s life or Dalva’s romantic inspiration directed at creating a sense of freedom for women of her times. It was this version of Chiquinha’s life that made it to the tv – the biography was adapted onto a mini-series and finally put Chiquinha Gonzaga in the scenario. The first episode of the twenty-eight has already been subtitled in English. Chiquinha Gonzaga is played by Regina Duarte and her daughter Gabriela Duarte. The 139 Mulheres e a Literatura Brasileira African background of Chiquinha Gonzaga is clearly acknowledged through Solange Couto, who plays her African mother. The existence of João Baptista as her love life companion is also plainly acknowledged on the screen. The mini-series did popularize her name. Also, the creation of the website “Acervo Digital Chiquinha Gonzaga” in 2011 - second place in an international database contest, Heritage Trust Project 2013 - speaks to the effort of Alexandre Dias and Wandrei Braga to actually give credit to her work. The musicians and researchers brought to public more than 300 compositions by the author when throughout the years no more than a dozen were actually part of common knowledge. The database offers the original music sheets and lyrics, a collection of the existing and growing bibliography on Chiquinha, as well as her theater plays. The site has known more than 140 thousand downloads. It might still be hard to truly know who Chiquinha was through any of her biographies yet this site is certainly essential to anyone who wishes to write a fourth biography where the lyrics of Chiquinha’s songs and the actions of her theater characters will offer some insight into her personal beliefs beyond social prejudices and political agendas. References LAZARONI, Dalva. Chiquinha Gonzaga, Sofri e Chorei, Tive Muito Amor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. LIRA, Mariza. Chiquinha Gonzaga, Grande Compositora Popular Brasileira. Rio de Janeiro, Funarte, 1978. 140 Mulheres e a Literatura Brasileira O sequestro das mulheres na história da literatura: o rastreio da poeta Francisca Julia1 Virgínea Novack Santos da Rocha2 Introdução Em 2012, Regina Dalcastagnè lança o livro Literatura brasileira: Um território contestado, no qual apresenta sua pesquisa que teve como objetivo analisar tanto o espaço editorial quanto as estruturas narrativas nos romances brasileiros contemporâneos. Os dados foram colhidos a partir de 258 romances das três maiores editoras do país (Record – 123 romances, Companhia das Letras – 76 romances, e Rocco – 59 romances), publicados entre 1990 e 2004. Tal pesquisa gerou, principalmente, no meio acadêmico, controversas reações: para aqueles que veem a literatura como um direito assegurado a poucos, a pesquisa pareceu inútil; no entanto, para os que entendem a literatura como um direito de todos, os dados obtidos pela pesquisadora são estarrecedores, pois denunciam o sistemático esquema de exclusão, subalternização e apagamento de diversos grupos na literatura brasileira contemporânea. Dentre os dados apontados pela autora, “chama a atenção o fato de que os homens são quase três quartos dos autores publicados: 120 em 165, isto é, 72,2%” (Dalcastagnè, 2012, p. 158). O presente texto foi desenvolvido na disciplina de “Historiografia da literatura brasileira”, do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-RS, ministrada pela professora Maria Eunice Moreira, durante o primeiro semestre letivo do ano de 2016. 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande de Sul, na área de Teoria da literatura. 1 141 Mulheres e a Literatura Brasileira Além disso, a autora apresenta ainda como exemplo desse sistema prêmios literários, como o Portugal Telecom de Literatura brasileira de 2004, que dentre 130 romances brasileiros indicados apenas 31 títulos eram de escritoras mulheres (cerca de 23,8% do total). Por fim, se ainda restarem dúvidas sobre a exclusão sistemática de mulheres na literatura, Dalcastagnè aponta outra pesquisa3 desenvolvida entre 1965-1979, a partir dos romances publicados pelas editoras Civilização Brasileira e José Olympio, as principais editoras da época, para a qual apenas 17,4% dos autores eram mulheres. Podemos citar ainda que, desde a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, dos 300 membros eleitos para ocupar uma das cadeiras ao longo dos anos, apenas 8 são mulheres, sendo, Raquel de Queiroz, a primeira mulher eleita, apenas em 1977, ou seja, 80 anos após sua fundação. A Flip (Festa Literária de Paraty) no ano de 2016 define Ana Cristina Cesar como escritora homenageada. A poeta é a segunda mulher em 14 edições do evento a ser homenageada. No palco principal esse ano 17 autoras foram convidadas, seis a mais do que em 2015 e quase o dobro de 2014, em que apenas 9 mulheres foram convidadas 4. Ano [2014] em que aproximadamente 80% da programação dominada por homens5. 3 Todos esses dados estão contidos no seu livro de 2012, Literatura brasileira: um território contestado, mais precisamente no capítulo 6: “Um mapa das ausências”. 4 Programação de 2016 disponível no site do evento: http://flip.org.br/edicoes/flip-2016/programacao. De 2015: <http://flip.org.br/edicoes/flip-2015/programacao>. 5 Fonte: <http://g1.globo.com/pop-arte/flip/2014/noticia/2014/08 /na-flip-lahiri-diz-que-ainda-e-dificil-para-mulheres-serem-escrito ras.html>. Último acesso em 03 jul. 2016. 142 Mulheres e a Literatura Brasileira Percebendo esse cenário, a sociedade começa a reagir. Mulheres começam a perceber que, talvez estejam ainda na mesma situação de quando Virginia Woolf escreve Um teto todo seu (1929), isto é, temos uma série de questões materiais que impossibilitam as mulheres de se inserirem no meio literário. Nesse sentido, o projeto #Leiamulheres 6, iniciado em 2014, trata de reunir periodicamente, em diversas capitais, leitoras e leitores (se é que existem) interessados na escrita de mulheres, ou seja, uma escrita que parte de um local de enunciação próprio da mulher, uma vez que, aparentemente, nas narrativas escritas por homens “mais significativa é a predominância das personagens do sexo masculino. Entre as personagens estudadas, 773 (62,1%) são do sexo masculino, contra apenas 471 (37,8%) do sexo feminino” (Dalcastagnè, 2012, p. 164). Além disso, “as personagens femininas tendem a ocupar menos a posição de protagonistas e narradoras” (idem, p. 165). Portanto, Além de serem minorias nos romances, as mulheres têm menos acesso a voz – isto é, à posição de narradoras – e ocupam menos as posições de maior importância. Ao mesmo tempo, os dados demonstram que a possibilidade de criação de uma personagem feminina está estreitamente ligada ao sexo do autor. Quando são isoladas as obras escritas por mulheres, 52% das personagens são do sexo feminino, bem como 64,1% dos protagonistas e 76,6% dos narradores. Para os autores homens, os números não passam de 32,1% de personagens femininas, com 13,8% protagonistas e 16,2% narradores. Fica evidente que a menor presença das mulheres enquanto produtores se reflete na menor 6 #Leiamulheres é um projeto que ainda existe. Maiores informações podem ser encontradas no site: www.leiamulheres.com.br 143 Mulheres e a Literatura Brasileira visibilidade do sexo feminino nas obras produzidas (idem, ibdem). Nesse sentido, o cenário denunciado por Simone De Beauvoir, em 1949, podemos dizer, mantém-se o mesmo, ou seja, “a mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem, e não este em relação a ela; e fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (De Beauvoir, 2009, p. 16-17). Assim, a falta de publicações feitas por e sobre mulheres evidencia mais uma vez um sistema de subalternização visto que a mulher não se constitui como uma identidade em si, mas sim, enquanto uma identidade por oposição. Ou seja, a mulher estaria representada pela simples oposição aos personagens e autores homens. Portanto, a partir de todas os dados aqui apresentadas, minha pesquisa se justifica, pois, embora já não seja novidade o domínio masculino do campo literário, é sempre necessário rastrear, analisar e discutir os apagamentos, que a mulher sofreu ao longo da história. Dessa forma, meu objetivo tem o compromisso historiográfico de 1) Perceber, de forma quantitativa, a partir seis Histórias da Literatura o apagamento de escritoras (poetas e prosadoras) mulheres e 2) De forma qualitativa, rastrear a poeta Francisca Julia, uma das raras presenças em algumas dessas Histórias, para ilustrar mais uma vez o processo sistemático de exclusão do feminino tanto do sistema editorial/literário quanto da consolidação de um cânone. As Histórias da literatura e a mulher A escrita da história nunca se dá de modo arbitrário e, sobretudo, nunca é neutro, uma vez que “toda memória, toda 144 Mulheres e a Literatura Brasileira recuperação da memória ou toda a comemoração implica uma valorização do passado” (Achugar, 2003, p. 42), sendo assim, o “esquecimento – consensual ou não – e memória – eleita ou não – supõe o tema do poder” (idem, ibidem). Essa “valorização” apontada por Hugo Achugar situa mais uma vez tanto o fazer historiográfico quanto a própria noção de memória como processos permeados por determinadas ideologias, ou seja, a consolidação dessa história da literatura nacional foi “um projeto patriarcal e elitista que exclui [...] não só a mulher, como também índios, negros, escravos, analfabetos e, em muitos casos, aqueles que não tinham propriedade” (idem, p. 49-50). Assim, para Michel Foucault, “em toda a sociedade a produção de um discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes” (Foucault, 2012, p. 8-9), o que evidencia ainda mais as relações de poder desempenhados por sujeitos imbricados nesse “projeto nacional”. Tais sujeitos por sua vez, assumem um perfil de sujeito enunciador (uma voz autorizada de acordo com as instâncias de poder), que contribui “para a construção do perfil de um sujeito da nação (o cidadão) que se identificou com os discursos de certos nacionalismos” (Achugar, 2003, p. 50). No entanto, a partir de reflexão de Julio Ramos, Achugar afirma que o projeto literário do século XIX procurava definir as normas necessárias para a consolidação dessa “cidadania”, o que nos leva a concluir que “essa invenção da cidadania significou, muitas vezes, a exclusão de alguns homens e quase a totalidade das mulheres que não se ajustaram ao projeto patriarcal e elitista do setor do poder” (idem, p. 58). A partir do exposto, principalmente por Achugar iniciamos nossa reflexão no passado, mas a situamos no presente. Buscamos desde o final do século XIX até esse 145 Mulheres e a Literatura Brasileira começo de século XXI uma possibilidade de consolidação de uma história das mulheres na literatura, a partir de determinadas Histórias da literatura (juntamente a suas respectivas datas de publicação), como evidencia a tabela a seguir: Tabela 1: Histórias da literatura selecionadas para pesquisa de acordo com o período em que foram publicadas Século XIX 1888: História da literatura brasileira – Silvio Romero Século XX Século XXI 1938: História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos – N.W. Sodré 2007: Uma história da poesia brasileira – Alexei Bueno 1959: Formação da literatura brasileira – Antonio Candido 1970: História concisa da literatura brasileira – Alfredo Bosi 1985: História da literatura brasileira – Massaud Moises Foram essas e não outras as Histórias da literatura selecionadas para essa reflexão devido ao ano de suas publicações que as fazem formar um panorama temporal com três momentos, como se cada um representasse um 146 Mulheres e a Literatura Brasileira determinado período. Além disso, levou-se em consideração também a notável divulgação e reconhecimento dado a esses textos na área das Letras. Assim, a História da literatura brasileira de Silvio Romero é sem dúvida uma das mais conhecidas de seu tempo, tendo sido, inclusive adotada pelo colégio Pedro II7, na disciplina que hoje entendemos como literatura, a partir de 1982. Silvio Romero nasceu em Sergipe em 1851. Cursou Direito na Faculdade do Recife. Foi poeta, filosofo e crítico literário além de grande polemista. Em sua História... o autor introduz seu pensamento, essencialmente, positivista, o que permite encontrar em sua obra duas características principais: a primeira diz respeito a ideia de evolução, isto é, uma cultura como algo em constante evolução/melhoria; e, a segunda diz respeito a cultura como um reflexo da relação meio-raçamomento. Para o autor, antes de mais nada, o compromisso político era imprescindível, o que fica mais evidente quando, no “Prólogo da 1ª edição”, afirma que “todo o homem que empunha uma caneta no Brasil, deve ter uma vista assentada sobre tais assuntos [cenário político e econômico da época] se ele não quer faltar aos seus deveres, se não quer embair o povo” (Romero, 1953, p. 36). Outra grande prova disso é que o primeiro tomo (dos cinco que formarão sua história) ilustra basicamente sua visão filosófica em relação ao seu compromisso com a consolidação da nação, dividindo-se em “I – Fatores da literatura brasileira”, em que ele apresenta os trabalhos sobre a literatura brasileira até o momento e sua divisão, teorias da história, filosofia da 7 Essa informação pode ser encontrada no texto de Roberto Acízelo de Souza “Introdução à historiografia da literatura brasileira, especificamente nas páginas 20, 24-25. 147 Mulheres e a Literatura Brasileira história, a nação como um grupo etnográfico, as relações econômicas etc; “II – Novas contribuições para o estudo do folclore brasileiro”; “III – O Brasil social e os elementos que os plasmaram, em que ele fala essencialmente das raças que formam o Brasil (índio, negro, branco); “IV – Conclusões Gerais”, em que ele apresenta a relação do capítulo anterior com o meio e as influências estrangeiras e ao fim ainda do primeiro tomo apresenta “V – Da crítica e sua exata definição”, o que, por meio da escolha lexical [exata definição], revela a intenção de precisão no que diz respeito a formulação de uma história da literatura, ou seja, mais uma vez uma visão positivista, cartesiana e fechada do que seria a história. Sendo assim, podemos afirmar o que Finazze-Agró evidencia sobre o autor: Silvio Romero, como se vê, não consegue – nem, na verdade, podia conseguir naquela época – desvencilhar-se do paradigma histórico dominante, apontando apenas à margem, e lamentando, aliás, a execução representada pela história “espiritual” do Brasil, a qual, não sendo pautada pela “seriação”, pela linearidade do “tempo do relógio”, era destinada fatalmente a se identificar numa “lacuna”, numa “falta” impreenchível (Finazzi-Agrò, 2013, p. 28). Já a História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos, de Nélson Werneck Sodré, publicado originalmente em 1938, embora não tenha tido a mesma repercussão da de Romero, foi aqui escolhida pois define para si um recorte específico: o econômico e sobretudo marxista para compreender a história da literatura. Sendo assim, o autor “elegia princípios marxistas como referencial teórico, afastando-se assim de esquemas explicativos determinísticos herdados do século XIX” (De Souza, 2007, p. 126). 148 Mulheres e a Literatura Brasileira Para Sodré, a relação entre o contexto em que a literatura está inserida é imprescindível para se pensar sua própria produção e mesmo definição como tal. É por isso que o autor elogia Silvio Romero, pois este teria, de fato, sido capaz de relacionar essas duas coisas. Nesse sentido o autor afirma “omitir a existência de um quadro social, apreciar figuras, gêneros e correntes como tendo vida autônoma porque divorciados das condições de meio e de tempo, na apresentação do desenvolvimento literário de um povo, é mais do que uma falha, porque erro fundamental” (Sodré, 1964, p. 2). Sendo assim, a historiografia dele é toda voltada a pensar o social, por vezes, até mais do que a manifestação literária, como no capítulo 6, em que se dedica entre outros assuntos a discutir a situação da mulher no século XX, mas desse aspecto trataremos na segunda parte dessa discussão. Antonio Candido, sociólogo por formação, por sua vez, embora siga uma vertente também mais sociológica de abordagem da literatura, é uma das histórias da literatura mais presente nos cursos de Letras, mas não apenas isso. Formação da literatura brasileira, de 1959, é considerado um marco na escrita da história, pois, segundo Finazzi-Agró, será a partir do conceito de “formação” que irá se liquidar definitivamente o modelo historiográfico oitocentista. Para o autor, “Antonio Candido tem sublinhado, com efeito, a “tendência genealógica” que está inscrita na origem da literatura brasileira – ou melhor, “na história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura” – e que ele considera “típica da nossa civilização” (Finazzi-Agró, 2013, p. 69). Assim sendo, em sua História da Literatura, Candido não abre mão de sua formação básica, a sociologia, uma vez que introduz ao leitor um modelo para pensar a literatura enquanto um sistema, que deve ser assegurado por três pilares: a tríade autor-leitor-público. 149 Mulheres e a Literatura Brasileira Até agora, é importante lembrar, os três historiadores procuram manter a literatura sempre em relação com o contexto social. O primeiro, grande representante de seu tempo, Silvio Romero deixa completamente evidente que sua tese se baseia em uma filosofia positivista (embora, por vezes, ele mesmo negue). Sodré, por sua vez, enfatiza que a literatura sem contexto não pode ser literatura, pois depende do meio em que está inserida. O autor, diferentemente de Romero, não tem mais o compromisso de “consolidar a nação” por meio de uma narrativa; não busca, porque muitos já buscaram, uma história completa, sem lacunas. Ele muito mais se preocupa em perceber de que forma a economia afeta a vida em sociedade e essa afeita a literatura. Sua grande preocupação ao escrever a sua história da literatura será como o próprio título indica “seus fundamentos econômicos”. Candido, seguindo uma mesma perspectiva mais social, como já comentado, rompe com a ideia de origem e totalidade tão presente na prática historiográfica até o momento. Ele elege um recorte, segundo ele, “os momentos decisivos (17501880)” e, dentro desse espaço, constrói sua narrativa sobre o passado da literatura. Sobre isso, Finazzi-Agrò comenta: Paradoxo interessante este de construir uma história a partir de uma lacuna, de um vazio histórico, mas paradoxo que acaba por fazer sentido no momento em que consideramos a possibilidade [...] de instituir um discurso e de seguir um percurso não na direção da homogeneidade e da unidade, mas no da heterogeneidade e da diferença” (idem, ibdem). Agora, por outro lado, partimos para três histórias da literatura que se afastam dessa perspectiva sociológica. São elas: História da literatura brasileira, volume II: Simbolismo e Realismo, de Massaud Moises, História concisa da literatura 150 Mulheres e a Literatura Brasileira brasileira, de Alfredo Bosi, e Uma história da poesia brasileira, de Alexei Bueno. Massaud Moises, nascido em 1928 foi professor titular, de 1973 a 1995, da USP. É reconhecido crítico literário, sendo, alguns de seus livros consagrados à teoria da literatura e às literaturas em vernáculo. Sua história da literatura, por outro lado, não é dos textos do autor que tenha gerado maior repercussão. No entanto, dado sua peculiar forma de organização, este também fará parte do corpus em análise aqui. A partir de sua prosa rebuscadíssima, o que já pode revelar o caráter de seu livro, o professor busca contar a sua história da literatura. No entanto, o que em certa medida o afasta das outras histórias é, justamente, um (suposto?) rompimento com as narrativas lineares. Além de uma delimitação temporal não tão estática, mas mais fluida, o que permite com que os períodos não sejam totalmente fechados. Para fins dessa análise, estamos nos baseando apenas no segundo volume de sua história literária, sendo assim, a divisão dessa narrativa se dá mais por meio do gênero e menos por meio da periodização. Dessa forma, a parte sobre o realismo é dividida entre: I – Preliminares; II – Prosa; III – Poesia; IV – Ensaio e V – Teatro, ou seja, apesar de o movimento estético estar em bastante evidência, bem como as datas (1881-1902), o autor rompe com a cronologia linear, uma vez que apresenta primeiro a produção em um gênero e depois em outro, o que evidencia um processo de ida e volta no tempo ao longo de seu texto. Alfredo Bosi, nascido em 1936, tem uma formação bastante clássica. É, atualmente, professor da USP e crítico literário. Bosi ocupa, desde 2003, uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Sua História concisa da literatura brasileira ao lado de Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, é, sem dúvida, um dos textos mais representativos 151 Mulheres e a Literatura Brasileira dos estudos históricos da literatura. A exemplo da recepção tão positiva, podemos evidenciar que em 2006 o livro já estava em sua 43ª edição, o que de forma nenhuma seria considerado pouco, no entanto, dada à especificidade do assunto é quase alarmante o número de edições até o momento. É curioso nessa história da literatura que não haja uma introdução, ou mesmo prefácio, que possa orientar o leitor acerca tanto do assunto tratado quanto do posicionamento do próprio autor. No entanto, ao colocarmos ela em contexto com os eventos que circulam o ano de sua publicação, 1970, fica evidente que se tratam dos primeiros anos após o Ato institucional número 5 (AI-5). Esse fato histórico, como é de conhecimento, gera reações divergentes: enquanto alguns intelectuais e escritores se posicionavam contra o regime, outros voltavam-se para a forma da literatura, por vezes, ignorando (pelo menos aparentemente) o conteúdo. Imaginase aqui que a opção de Bosi tenha sido pelo silêncio, uma vez que, mesmo com a atualização, anos depois, o período da ditadura civil-militar brasileira na literatura ganha um espaço ínfimo em seu livro. Sendo assim, embora sem texto introdutório, fica evidente logo na organização apresentada no sumário do livro que o autor se baseia nos movimentos literários muito mais do que em datas, quase sempre, como comentado, ignorando os aspectos sociais de cada época. Dessa forma, o livro se divide da seguinte forma: I – A condição colonial, II – Ecos do barroco, III – Arcadia e ilustração, IV – O romantismo, V – O realismo, VI – O simbolismo, VII – Pré-modernismo e modernismo e VIII – Tendências contemporâneas, o que, por sua vez, evidencia também que, em oito tópicos, o autor pretende dar conta da história de três ou quatro séculos. Após dois professores (além de Antonio Candido, que é sociólogo) de formação uspiana em Letras, Alexei Bueno, que, 152 Mulheres e a Literatura Brasileira apesar de seu evidente elitismo literário, não é professor, mas sim poeta, editor e ensaísta, escreve a sua história da literatura. O pronome “sua” é evidenciado, principalmente, a partir do título da história: Uma história da poesia brasileira. Apenas a partir do título podemos perceber, devido ao uso do artigo indefinido, que há um certo rompimento com a premissa de totalidade da história. Essa é uma dentre várias outras. Sendo assim, essa história também rompe, pelo menos aparentemente, com a ideia de totalidade, uma vez que o autor deixa claro no prefácio o exercício de seleção que irá fazer para organizá-la, como, por exemplo, quando ele afirma que “questão sempre melindrosa é a da escolha dos poetas a serem nele [nessa história da poesia] tratados” (Bueno, 2007, p. 13) e sobre os contemporâneos afirma “buscamos, portanto, no geral, nos limitarmos a um mapeamento genético e estilístico dessa imensa galeria de contemporâneos, a parte do livro que, infelizmente, mas por motivos claros, mais conterá omissões” (idem, ibdem). No entanto, embora assuma uma postura menos totalizante em alguns momentos, em outros afirma que “o que buscamos nesse livro é justamente traçar uma linha histórica da poesia brasileira com o mínimo de idiossincrasias, e com uma visão aguda de cada autor dentro de sua própria visão de mundo, sua época e estilo” (idem, p.11), projeto que, evidentemente, não é pouco e que se não pressupõe uma totalidade, espera-se alcançar uma quase totalidade. Além disso, o historiador-poeta elege como critério bastante claro seu asco à ligação entre literatura e sociedade, afirmando até mesmo que “pode haver ciência literária, sobretudo no sentido etimológico da palavra, para analises sociais da gênese de fenômenos literários, para a fixação de textos, para a ecdótica e a filologia. Para a apreensão estética da poesia, como obra de arte, que é o que ela é, não” (idem, p. 153 Mulheres e a Literatura Brasileira 10), o que evidencia que para o autor a literatura é “essa arte requintada da palavra” (idem, p. 9). Por fim, podemos notar nesses últimos três historiadores em oposição aos três primeiros um compromisso supostamente em essência estético, enquanto que para os outros o compromisso é de cunho social. Todos buscam contar as suas próprias histórias da literatura, uns mais conscientes de seu papel e função enquanto historiadores e outros menos. No entanto, o curioso é que – mesmo que com a ressalva em relação as diferentes épocas – parecem não existir justificativas para a exclusão de inúmeras mulheres, dentre elas Francisca Julia, da maioria das histórias da literatura. As poetas e escritoras mulheres sempre existiram e sempre escreveram, no entanto, não figuram nessas histórias: são apagadas. Tal realidade nos faz entender que efetivamente a única questão que exclui e apaga as mulheres da história não são as questões sociais, econômicas e/ou estéticas, mas sim, essencialmente o fato de elas serem mulheres. Francisca Julia A partir desse corpus composto de seis Histórias da Literatura, desenvolvi uma metodologia de rastreio para escolha de alguma prosadora/poeta mulher. Tal metodologia contou com os seguintes passos: 1) Definir, a partir de Paul Ricoeur (1997), o conceito de “rastro”; 2) Buscar nos índices onomásticos dos arquivos (as Histórias da literatura) o número de mulheres, em relação ao número total de pessoas, apresentadas nesses índices; 3) Tabelar esses dados e cruzá-los entre si com a finalidade de encontrar as mulheres que seriam mais apresentadas nessas histórias; 4) Desenvolver algumas conclusões sobre a relação entre História da Literatura e mulheres. 154 Mulheres e a Literatura Brasileira Sendo assim, Jacques Le Goff, em História e memória, partindo da concepção de que o homem, ao utilizar da memória para constituição de algo, realiza uma “releitura dos vestígios” que serão reordenados e apresentados como “história”, aponta para o conceito que Paul Ricoeur chamará de Rastro, o qual “é visível aqui e agora, como um vestígio, como marca” (Ricoeur, 1997, p. 200), pois ele é encontrado no presente, mas tem uma ligação, por vezes bastante apagada, com o passado. Dessa forma, o rastro convida a segui-lo, a voltar, por meio dele, se possível, até o homem ou até o animal que passaram por ali; o rastro pode ser perdido; pode ele mesmo perder-se, levar a lugar nenhum; pode também apagar-se, pois o rastro é frágil e exige ser conservado intacto, senão a passagem realmente ocorreu, mas simplesmente ficou no passado (idem, p.201). Para o autor de Tempo e narrativa, o rastro é entendido como requisito para a prática historiadora, uma vez que “se os arquivos podem ser ditos instituídos, e os documentos, coletados e conservados, é com o pressuposto de que o passado deixou um rastro (idem, p. 200). Portanto, será a partir dessa conceituação, que perseguiremos o passado (um dos passados possíveis, pelo menos), sendo que para isso, será necessário fazer uma busca de documentos, um mergulho nos arquivos. Mas não sejamos ingênuos a ponto de confiar no papel (ou na memória em sua concepção mais subjetiva), pois a reflexão sobre seleção e conservação dos documentos em arquivos se tornará fundamental na busca de (re)construção desse tempo passado. Assim, vale lembrar que o rastro por si não configura a história, mas sim a interpretação do documento que é arquivado, ou seja, “tornou-se banal ressaltar que qualquer rastro deixado pelo passado se torna um documento do 155 Mulheres e a Literatura Brasileira historiador, desde que ele saiba interrogar seus vestígios e questioná-los” (idem, p. 198). Dessa forma, o que fica evidente é que o processo de seleção desses documentos não pressupõe a parcialidade, melhor dizendo, expressam-se diversos projetos ideológicos. Dessa forma, ao perseguirmos os rastros deixados por mulheres nessas Histórias da Literatura (esses documentos), partindo de seus índices onomásticos, nos deparamos com os seguintes dados: Tabela 2: Relação entre o número de pessoas do sexo masculina e pessoas do sexo feminino citados no índice onomástico de cada História da Literatura8 Ano de publicação 1888 1938 Título Autor Total de pessoas citadas / mulheres História da literatura brasileira História da literatura brasileira: seus Silvio Romero 1752/ 30 N.W. Sodré 1295/27 8 É importante evidenciar que esses valores necessitam de uma revisão mais cuidadosa visando a precisão, pois mesmo com grande dedicação algumas falhas são inevitáveis. Além disso, em relação a alguns nomes não são apresentadas informações suficiente para definirmos se mulher ou homem. Tais nomes, para fins de somatórios, não foram considerados femininos. Sendo assim, no pior dos cenários consideramos que os erros que possam constar nessa pesquisa não ultrapassam os 30% (para mais ou para menos), o que, ainda assim, não tornaria consideravelmente maior o número de mulheres apresentadas nessas Histórias em relação ao número de homens. 156 Mulheres e a Literatura Brasileira 1959 1970 1985 2007 fundamentos econômicos Formação da literatura brasileira História Concisa da literatura brasileira História da literatura brasileira Uma história da poesia brasileira Antonio Candido 1098/78 Alfredo Bosi 1440/94 Massaud Moises Alexei Bueno 625/19 1111/68 Como se pode ver na tabela, a presença feminina em relação ao número total de pessoas é mínima nessas seis Histórias da Literatura. Assim, cada uma delas apresenta um quadro, que varia entre 600 e 1800, pessoas citadas, aproximadamente, sendo que, de forma relacional, o número de mulheres presentes nessas Histórias da Literatura, do século XIX ao século XXI, varia entre 5-10% do número total. A partir desse número mínimo buscamos encontrar as mulheres escritoras que tenham sido citadas mais comumente nessas histórias, o que mais uma vez foi difícil de encontrar, uma vez que grande parte dessas mulheres é apresentada como esposa ou parente de algum dos homens apresentados como em Bueno (2007): “Carolina [esposa de Machado de Assis]”, “Idalina [amante de Castro Alves], ou ainda “Maria Belisário Brito Rangel [prima e esposa de Fagundes Varela]”. Algumas das mulheres apresentadas, que também são escritoras, como em Romero (1888), Candido (1959) e Bosi (1970), “Mme. Staël”, não são brasileiras. No entanto, alguns poucos nomes de brasileiras escritoras podem ser encontrados em comum em mais de uma História da literatura. Julia Lopes de Almeida, por exemplo, pode ser encontrada em Sodré (1938) e Moises (1985) e Gilka Machado 157 Mulheres e a Literatura Brasileira em Bosi (1959), Moises (1985) e Bueno (2007). No entanto, Francisca Julia9 foi o nome com maior número de ocorrências, aparecendo em quatro das seis Histórias da literatura selecionadas para essa pesquisa. Como é possível ver na tabela abaixo: Tabela 3: Mapeamento das ausências e presenças de Francisca Julia Ano 1888 1938 1959 1970 1985 2007 Título História da literatura brasileira História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos Formação da literatura brasileira História Concisa da literatura brasileira História da literatura brasileira Uma história da poesia brasileira Autor Silvio Romero N.W. Sodré Antonio Candido Alfredo Bosi Massaud Moises Alexei Bueno Presença Ausência X X X X X X É importante notar nesse mapeamento de ausências e presenças que, embora sobre implicações sociais e culturais, de seus próprios tempos, todas elas compreendem o período em que a poeta viveu e produziu. Além disso, apesar de uns terem tendências mais sociológicas do que outros, o período que 9 É importante deixar claro que houve no ato de seleção certo tendência a escolha de Histórias da literatura em que a poeta realmente estivesse presente, pois, se nos detivéssemos a histórias da literatura aleatoriamente, certamente, não seria possível sequer rastrear uma poeta. 158 Mulheres e a Literatura Brasileira compreendendo o Realismo/Parnasianismo e Simbolismo é demoradamente apresentado em todas as histórias da literatura. Outro aspecto pertinente à discussão é a presença de Olavo Bilac em todas essas histórias, sendo considerado o maior expoente representativo do momento, embora, em pesquisas mais recentes, chegue a se comentar que, na verdade, seria Francisca Julia, dentre todos os poetas da época, que melhor teria capitado e apropriado a sua poesia o “espírito da época”10. Sendo assim, a partir de um mapa de ausências e presenças, será agora, nas presenças que nos focaremos. No quadro abaixo apresentamos, de forma panorâmica, quais espaços dessas Histórias da literatura são reservados à poeta. Tabela 4: Mapeamento das presenças de Francisca Julia nas Histórias da Literatura Ano Título Autor 1938 História da literatura brasileira: seus N.W. Sodré 10 Localização (páginas e capítulos) Capítulo 12 – Os problemas da forma Páginas 459 e 467 Existem escritos atualmente pelo menos três artigos publicados e uma dissertação sobre a poeta, sendo o título dos artigos: “Deciframe ou devoro-te: o pensamento sobre a poesia em poemas de Francisca Julia”, de Mariana Knihs, “Francisca Julia: Entre o pincel e a pena” de Daniel Lôbo e “Do mármore ao jardim: sobre a obra de Francisca Julia (1871-1920), de Carlos Augusto de Melo e Dayana Alejandra Hernandez Mundaca e a dissertação: “Oscilações líricas de uma musa impassível: Itinerário poético de Francisca Julia no sistema literário brasileiro”. Além dos trabalhos e pesquisas de Péricles Eugênio da Silva Ramos, maior crítico da poeta. 159 Mulheres e a Literatura Brasileira fundamentos econômicos 1970 História Concisa da literatura brasileira Alfredo Bosi 1985 História da literatura brasileira Massaud Moises 2007 Uma história da poesia brasileira Alexei Bueno Capítulo V. Realismo Páginas 233 e 244 Capítulo VI. Simbolismo11 Página 303 Capítulo VII: Prémodernismo e modernismo Página 359 Capítulo Realismo (18811902) Epígonos (dentro de “Poesia”) – Pagina 192 Francisca Julia – Página 202 e 203 Capítulo: À sombra do parnaso Página:210 Capítulo: Dissoluções e derivações do modernismo12 Página:272 No “capítulo 12 – Problemas da forma”, que trata basicamente do Parnasianismo e do Simbolismo, sempre, por uma perspectiva marxista, como se pode notar a partir das observações do autor às exigências formais da poesia da época em relação ao consolidação e crescimento da classe média. Para ele, tal movimentação se dá no sentido de segregar 11 Há apenas uma referência ao nome da poeta com a finalidade de identificar seu irmão. 12 Há apenas uma referência ao nome da poeta, em que se compara a escrita de outrem com a da poeta pela qualidade e precisão formal. 160 Mulheres e a Literatura Brasileira aqueles que não teriam tanto acesso ao estudo formal. Assim, “há um traço, nessa imitação, que tem importância muito grande: o desejo de distinguir-se daqueles que oferecem o trabalho no mercado, e distinguir-se particularmente pelo trabalho intelectual” (Sodré, 1964, p. 452-453). Nesse sentido, como se pode ver, nesse capítulo, de acordo com a tabela 4, a poeta aparece duas vezes, embora sem nenhuma relação direta com os aspectos econômicos enfatizados anteriormente. No entanto, a ela não é dada muita importância, sendo ela considerada “seguidora secundária” (idem, p. 459) da escola. No entanto, a nota que a ela é destinada apresenta um fato interessante e até mesmo contraditório em relação ao lugar destinado a poeta na história de Sodré “teve uma estreia de grande ressonância nos meios literários, com Mármores (1895), em que realizava o ideal parnasiano no máximo rigor” (idem, p. 467). Essa afirmativa nos leva a perceber que a poeta alcançou reconhecimento ainda em vida, mas no lugar de manter-se presente nas Histórias, levando-se em consideração sua importância para a época, ela é apagada. Embora a participação de Francisca Julia seja quase mínima nessa história, o que a torna tão interessante a essa pesquisa é o “Capítulo 6 – Senhores territoriais no poder”, particularmente a parte sobre “Papel da mulher”. Esse capítulo é interessante por dois motivos. O primeiro deles é a preocupação do autor com as mulheres na sociedade, as quais eram vistas como “escravas sociais” (idem, p. 173). Além disso, o autor evidencia também as modificações na educação das mulheres da época: “Muito menos devoção religiosa de antigamente. Menos confessionário. Menos conversa com as mucamas. Menos história da carochinha contada pela negra velha. E mais romance” (p. 174), o que, por sua vez, deixa 161 Mulheres e a Literatura Brasileira transparecer uma certa aproximação da mulher com o meio literário, isso, por volta do começo do século XIX. Já na História da literatura de Alfredo Bosi, a poeta é mencionada em três capítulos: Realismo (V), Simbolismo (VI) e pré-modernismo e modernismo (VII). No entanto, diferentemente da classificação de Sodré sobre a poeta, Bosi, no subcapítulo dedicado ao “Parnasianismo”, a elege “mestres seguros [dos poetas parnasianos]” (p. 233), sendo que nesse momento ela é colocada lado a lado com Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac. Porém, nos subcapítulos que seguem, cada um dedicado a um poeta dos mencionados anteriormente, Francisca Julia volta a ocupar a posição de “outros poetas”, dividindo espaço agora com Artur Azevedo, “um nome à parte” (idem, p. 245), e Vicente de Carvalho “renovando com brio a poética realista a cavaleiro do novo século”, o que evidencia que ambos se afastam dos ideais estéticos parnasianos. Sobre Francisca Julia é apresentada a seguinte descrição “vinda após a consagração dos mestres”, o que pode estar caracterizando apenas uma questão temporal, mas que por outro lado enfatiza-a como seguidora da famosa tríade do parnasiano. Nesse sentido, Bosi afirma “no entender do seu melhor crítico moderno, Péricles Eugênio da Silva Ramos, talvez só ela tenha atingido sistematicamente as condições de impassibilidade que o Parnasianismo, em tese, reclamava” (idem, p. 244). No entanto, o que não teria a assegurado um lugar nesse “quarteto fantástico” teria sido suas tendências mais religiosas, o que a aproximava da estética simbolista. No capítulo seguinte, “O simbolismo”, a poeta é apenas mencionada como irmã de Julio Cesar da Silva, enquanto que no último, “Pré-modernismo e modernismo”, a poeta é lembrada pelos modernistas como “mestre do passado” para a 162 Mulheres e a Literatura Brasileira qual (dentre outros parnasianos) é dedicado um canto fúnebre como premissa aos acontecimentos de 1922. Massaud Moises (1985), por sua vez, situa Francisca Julia mais distante do parnasianismo e próxima do simbolismo, ou seja, um lugar “Epígono”, como o subtítulo do capítulo revela. Aqui, juntamente com Luis Delfino, B. Lopes e José Albano, Francisca Julia é vista como alguém que “carregou aguas de outras nascentes para o moinho da esteticidade em voga” (Moises, 2001, p. 192). Nessa história da literatura, Moises evidencia algo que para os outros historiadores passou, aparentemente desapercebido “frustrando todos os cálculos, é nas mãos de uma poetisa que a lira parnasiana alcançou acentos mais genuínos” (idem, p. 202, grifos meus). Questiono: a quais cálculos o historiador estaria se referindo? Seria essa simplesmente uma metáfora para o sistema paternalista que exclui e subjuga sistematicamente as mulheres? Essa é sem dúvida uma inferência possível, uma vez que vem enfatizada pela palavra poeta no feminino, denunciando o gênero responsável por romper com os cálculos já estabelecidos em relação ao papel da mulher na sociedade. No entanto, “apesar de ser mulher” o historiador é bastante elogioso em relação à poeta, enfatizando sempre seu domínio sobre tanto a forma quanto ao conteúdo, o que a assegura uma maior aproximação com o parnasianismo francês. Assim cito o comentário de Péricles Eugênio da Silva Ramos sobre apresentado pelo historiador sobre a poeta Que se adapta a todas as condições do Parnasianismo francês: com efeito, é plástica e sonora; a poetisa professor a arte pela arte, conheceu o moi juste, desejou a austeridade formal e sobretudo timbrou em ser impassível, coisa de que os parnasianos brasileiros não fizeram questão (Ramos apud Moises, 2010, p. 204). 163 Mulheres e a Literatura Brasileira Por fim, seguindo a ordem de lançamento das histórias da literatura a de Alexei Bueno é a última em que, dentro desse corpus, Francisca Julia é apresentada. Assim, embora a poeta seja, na visão do historiador, a articuladora de um “programa da mais perfeita ortodoxia dentro da escola, uma correção escultural e fria, plena de temas mitológicos e históricos.” (Bueno, 2007, p.210) No entanto, em certa medida, o poeta-historiador parece atribuir a fama gerada à poeta devido aos prefácios de seus livros escritos por João Ribeiro, quem, segundo Bueno, era “o crítico de poesia mais liberto de idiossincrasias estéticas do Brasil de sua época” (idem, p. 211), o que “veio confirmar-lhe [à Francisca Julia] prestígio” (idem, ibdem). Ainda sobre o crítico, Bueno afirma “[...] estreou com Mármores, com prefácio de João Ribeiro, em 1895. Era a consagração da grande figura feminina da poesia parnasiana brasileira” (idem, p.210). Apesar de não haver alguma conjunção de causalidade que ligue as duas frases, apenas o fato de estar uma após a outra, gera, em certa medida, essa suposta relação, ainda mais quando, pouco depois, Bueno atribuirá ao crítico tantas qualidades. Considerações finais Dessa forma, a partir do exposto, podemos concluir que, embora a situação das mulheres, tenha em muito, se modificado no decorrer dos séculos, os autores (homens) das Histórias da Literatura continuam não considerando as mulheres “suficientemente relevantes” (social e esteticamente) para inclui-las em suas Histórias da literatura. Sendo assim, acredito que, esse trabalho cumpra um papel bastante importante, como a pesquisa da professora Dalcastagnè, no sentido de não sermos acusadas de 164 Mulheres e a Literatura Brasileira generalistas quando falamos dos apagamentos que as mulheres vêm sofrendo na história da literatura. Afinal de contas, existir uma representatividade de menos de 10% de mulheres nas histórias da literatura por si só é um fato alarmante, mas talvez mais alarmante é perceber que, de acordo com os dados aqui apresentados, essa é a mesma porcentagem desde o final do século XIX. Portanto, o cenário da História da literatura não em muito pouco se modificou nos últimos séculos no que diz respeito a representatividade. Nesse cenário, o nome de Francisca Julia, grande poeta reconhecida, inclusive, em seu tempo, é um dos poucos nomes que resiste. Talvez pela impassibilidade, por escrever “como um homem”, sem se preocupar com os temas menores, os “temas femininos”, fato que até João Ribeiro evidencia ao escrever o prefácio de seu livro. Sendo assim, foi quase impossível estabelecer algum rastreio de poeta mulher. Não fosse esse esforço maior de buscar em dezenas de arquivos, uns e outros que contivessem quaisquer informações sobre a “musa impassível”. Hoje, em pleno século XXI, parece que nossa saída será, como sugeriu Finzzai-Agrò (2013), a de criar históriaS da literatura a partir de lacunas, de vazios, de fragmentos. Organizar a história das mulheres à margem da história dos homens, da História falocêntrica. No entanto, a questão que persiste é: Até quando, mesmo sendo maioria nos bancos universitários, teremos de nos restringir às margens? Referências ACHUGAR, Hugo. A escritura da história ou a propósito da fundação das nações. In MOREIRA, Maria Eunice (Org.). 165 Mulheres e a Literatura Brasileira Histórias da literatura: teorias, temas e autores. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003, p.35-60. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. 47. ed. São Paulo: Cultrix. 2006. BUENO, Alexei. Uma História da Poesia Brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2007. CANDIDO, Antonio, Formação da literatura brasileira: momentos fundadores, Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009. DALCASTAGNE, Regina. 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As temáticas escolhidas perpassam a subjetividade de interesse e afinidade do pesquisador, que carrega consigo uma maneira de olhar e interpretar que certamente influenciam a elaboração da narrativa, visto que os seres humanos vivem imersos em uma época específica e em uma determinada forma de racionalidade. É dessa forma, que o domínio masculino sobre a produção escrita, o apagamento das mulheres na história e a veiculação de perspectivas negativas sobre a mulher, são questões intrinsecamente relacionadas. A Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí. Professora do curso de História da UFPI, no Campus Senador Helvídio Nunes de Barros na cidade de Picos - PI. 1 167 Mulheres e a Literatura Brasileira produção de conhecimento e discursos balizada pela perspectiva masculina elegeu como temas importantes a atuação masculina no espaço público, na política, na guerra e na produção cultural, como observa Riot-Sarcey: A formação das categorias de pensamento, principalmente a força do paradigma filosófico, retira toda possibilidade de expressão aos indivíduos considerados incapazes de existir socialmente. Ao mesmo tempo, pilares dos sistemas políticos, de todos os sistemas: clássicos, teológicos, modernos, democráticos, as mulheres não acedem jamais, nos discursos que as citam, ao status de sujeito2. E quando esses discursos retratavam a mulher, o faziam sob uma lógica binária, de diferença, oposição, o outro negativo em relação ao discurso masculino. O homem associado à força e a racionalidade, e a mulher à fragilidade, fraqueza, emotividade e irracionalidade. O que se constituiu numa forma de construir uma identidade masculina que se afirmava positivamente pela negação da mulher. Segundo Woodward (2000), as identidades são construídas pela marcação da diferença por meio de sistemas simbólicos de representação e por formas de exclusão social. Assim, a mulher não era percebida como protagonista da história e da produção discursiva, mas posicionada como objeto dos discursos masculinos, dos filósofos, dos teólogos, dos médicos, dos poetas, etc. RIOT-SARCEY, Michele. As Mulheres de Platão a Derrida ou o sujeito impossível da história. Labrys: estudos feministas, Brasília, Montreal, Paris, n. 5, jan/jul., 2004. Disponível em: http://www. labrys.net.br/labrys5/textoscondensados/riotbr.htm>. Acesso em: 19 jul. 2016 2 168 Mulheres e a Literatura Brasileira Consideradas essas questões, ressalta-se que também não foi sem intencionalidade que o movimento feminista começou a questionar a historiografia e o cânone literário produzidos estritamente sobre uma perspectiva masculina em uma crítica que envereda pela academia brasileira a partir da década de 1970, contemplando as mulheres como sujeito histórico e produtor de discursos. Essa abordagem perpassa o questionamento de paradigmas teóricos e metodológicos que passou a se posicionar como uma vertente de conhecimento, para além do discurso feminista militante, justificando a formulação de uma história das mulheres e das discussões de gênero. Assim, descerra-se o véu que recobria a pretensa neutralidade da produção historiográfica, do cânone literário e da produção do conhecimento. O cânone literário trata-se de um arranjo produzido a partir do enquadramento de escolas e movimentos literários, que seleciona dentre o universo de escritores de um período, um grupo restrito de representantes que devem ser lidos e lembrados pelas gerações posteriores. Embora a maior parte da população brasileira tenha estado por longo período, excluída do acesso à cultura letrada e da produção desta, devido ao estrato socioeconômico, etnia ou sexo, deve-se ressaltar que o processo de fabricação da memória oficial ainda resiste à inclusão da produção de autores do sexo feminino e/ou de etnia negra. Nessa perspectiva, propõe-se abordar a apropriação das mulheres piauienses sobre a escrita e a relação que se estabeleceu entre esse processo e a ampliação do lugar social que lhes era atribuído no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, em decorrência da conquista de espaços para expressão de seus anseios, inquietações e da produção de novas configurações para a atuação social feminina. Mas também, considerar as resistências que essas mulheres tiveram que enfrentar. Destacaram-se, nesse 169 Mulheres e a Literatura Brasileira sentido, as escritoras Luiza Amélia de Queiroz; Lili Castelo Branco e Amélia de Freitas Bevilaqua. Dentre as fontes utilizadas mencionam-se textos publicados em periódicos e as obras: Flores Incultas de Luiza Amélia de Queiroz; A Academia Brasileira de Letras e Amélia de Freitas Bevilaqua de autoria de Amélia Bevilaqua; e Fases do meu passado, produção memorialista de Lili Castelo Branco. Essas publicações foram analisadas considerando as tensões envolvidas no processo de deslocamento das fronteiras de gênero, sobretudo, no que diz respeito à apropriação do lugar de autoria pelas mulheres. 1 Luiza Amélia de Queiroz e autoria feminina no século XIX Os espaços literários são lugares desejados e disputados, pois segundo Foucault (1996, p. 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”. Conquistar espaços de saber e expressão discursiva significava para as mulheres afirmar-se intelectualmente, angariar reconhecimento social, considerando-se que no final do século XIX e início do século XX, a cultura letrada ganhava contornos de atividade prestigiada, como ressalta Sevcenko (1999, p. 226): Não há dúvida, pois de que a literatura, graças em grande parte ao carisma prodigioso herdado do romantismo do século XIX, gozava de um prestígio ímpar neste período, soando mesmo como um sinônimo da palavra cultura. Políticos, militares, médicos, advogados, engenheiros, jornalistas ou simples funcionários públicos, todos buscavam na criação poética ou ficcional o prestígio definitivo que só a literatura poderia lhes dar. A Belle Époque foi sem dúvida a época de ouro da instituição literária tanto 170 Mulheres e a Literatura Brasileira no Brasil como na Europa e em todo o mundo marcado pela influência cultural europeia [grifo do autor]. Essa influência cultural europeia difundia-se pelo Brasil como modelo de civilização e modernidade. Destaca-se que os documentos escritos se constituem lugares de memória, tendo em vista que os autores ou autoras podem se apropriar do recurso literário para criticar circunstâncias da época e contexto social nos quais estão inseridos, atuando como protagonistas e, ao mesmo tempo, como testemunhas, críticos e analistas em relação ao que vivenciam e observam na sociedade. Essa produção compreende também projeções discursivas que visavam intervir na realidade e transformá-la. É o que deixa antever o trabalho de Sevcenko (1999), ao discorrer que a história pode ser escrita também a partir dos projetos frustrados de uma sociedade em um determinado período. Ao analisar textos de autoria feminina busca-se a expressão de anseios e de questionamentos, que lugares sociais desejavam ocupar, como queriam ser vistas, que realizações essas mulheres estavam almejando. Essas ações podem ser compreendidas em sua relação com o feminismo, que: [...] poderia ser compreendido em um sentido amplo, como todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de grupo. Somente, então, será possível valorizar os momentos iniciais desta luta – contra os preconceitos mais primários e arraigados – e considerar aquelas mulheres, que se expuseram à incompreensão e à crítica, nossas primeiras e legítimas feministas (DUARTE, 2003, p. 152). Duarte (2003) também destaca o século XIX como o período de surgimento das primeiras manifestações 171 Mulheres e a Literatura Brasileira feministas na sociedade brasileira, com escritoras como Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto (1810-1885). A autora nasceu no Rio Grande do Norte, em Parapari, cidade que teve o nome mudado para Nísia Floresta, em homenagem à escritora. Nísia Floresta é considerada a primeira escritora feminista do Brasil, ao defender a instrução feminina através de seus textos e iniciativas como educadora. No decorrer do século XIX surgem escritoras em diversos estados do país, como também uma variedade de jornais produzidos por mulheres e que contribuíram para conferir uma maior visibilidade a essa produção de autoria feminina e que, muitas vezes, assumia um caráter feminista ao questionar os lugares conferidos às mulheres na sociedade da época. Nesse período, destaca-se a reivindicação de investimentos sociais na educação feminina, mas também se questionava a indissolubilidade do casamento, bem como a exclusão feminina da política. As autoras também se reportavam a temas como escravidão e proclamação da República. A socialização cultural e os diferentes papéis de gênero atribuídos ao feminino e ao masculino evidenciavam que era necessário transgredir normas e contrapor-se aos discursos e representações que eram formulados sobre as mulheres. Os principais papéis femininos eram os desempenhados junto à família, como filha, esposa e mãe, obedientes, discretas e solícitas. Se para um pai, um filho literato era algo que o envaidecia, isto poderia não ocorrer em relação às filhas. As mulheres do século XIX, geralmente, não contavam com o apoio do pai ou do marido para dedicar-se à atividade literária. Entretanto, Tellles (2000) destaca que esse foi um período de transformação do papel da mulher na sociedade que passou a ser vista como colaboradora, ajudando na educação dos filhos, numa elaboração que opunha a mulher virtuosa às mulheres 172 Mulheres e a Literatura Brasileira “decaídas”. Essa reformulação do papel feminino na sociedade propiciou a emergência de discursos favoráveis à educação feminina, como forma de prepará-las melhor para desempenhar as funções que eram destinadas ao sexo feminino. No final do século XIX e início do século XX, a declamação, os bailes e a leitura passaram a fazer parte da sociabilidade e do lazer de famílias abastadas nos centros urbanos da época. Entretanto, a educação feminina pautava-se principalmente no aprendizado de prendas domésticas. Dessa forma, mesmo entre as famílias de elevado poder aquisitivo, era significativo o número de mulheres que não dominavam os códigos de leitura e escrita (BROCA, 1979; FALCI, 2000). A principal perspectiva para a vida feminina era o casamento. As mulheres aprendiam noções de leitura e escrita, mas não era esperado que elas desempenhassem atividades no mundo público. Elas deveriam se projetar socialmente pela beleza e pelo desempenho dos papéis de esposa e mãe dedicada. Assim, as que ousavam transpor as prescrições estabelecidas para seu sexo, enfrentavam a censura da sociedade da época e, muitas vezes, da própria família: Mesmo assim, foi a partir dessa época que um grande número de mulheres começou a escrever e publicar, tanto na Europa quanto nas Américas. Tiveram primeiro de aceder à palavra escrita, difícil em uma época em que se valorizava a erudição, mas lhes era negada educação superior, ou mesmo qualquer educação a não ser a das prendas domésticas; tiveram de ler o que sobre elas se escreveu, tanto nos romances quanto nos livros de moral, etiqueta ou catecismo. A seguir, de um modo ou de outro, tiveram de rever o que se dizia e rever a própria socialização. Tudo isso tornava difícil a formulação do eu, necessária e anterior à expressão ficcional (TELLES, 2000, p. 403). 173 Mulheres e a Literatura Brasileira A autora destaca que as mulheres precisavam enfrentar o desafio de libertar-se das visões estereotipadas sobre o sexo feminino. Tratava-se de produzir novas subjetividades que permitissem às escritoras perceberem sua capacidade intelectual. Dessa forma, poderiam questionar as restrições impostas ao sexo feminino e apropriar-se dos lugares de autoria. No século XIX, as transformações sociais e culturais davam-se de forma gradual. A educação pública era incipiente, portanto, o investimento na instrução dos filhos era um empreendimento familiar. As famílias de melhor poder aquisitivo, recorriam a mestres-escolas, professores particulares contratados pelos pais, por um período determinado e que exerciam seu ofício de forma ambulante, deslocando-se entre fazendas (COSTA FILHO, 2006). Essa era uma forma de ministrar as primeiras letras aos filhos e filhas de famílias que viviam em fazendas no sertão nordestino, como ocorreu, por exemplo, com a escritora piauiense Luiza Amélia de Queiroz, que segundo Chaves (1994), teve acesso a uma instrução rudimentar e aperfeiçoou seus conhecimentos por esforço próprio. Luiza Amélia de Queiroz nasceu em 26 de dezembro de 1938, no município de Piracuruca - PI, filha de Manuel Eduardo de Queiroz e Vitalina Luiza de Queiroz. Luiza Amélia publicou Flores Incultas (1875) e Georgina ou os efeitos do amor (1898). Faleceu em 12 de dezembro de 1898. Ao publicar as obras mencionadas, a escritora assumiu uma posição transgressora em uma sociedade que considerava a prática literária inadequada à atuação feminina, como ela retrata no poema “A Mulher”: A mulher que toma a pena Para Lira a transformar, É, para os falsos sectários, Um crime que os faz pasmar! 174 Mulheres e a Literatura Brasileira Transgride as leis da virtude A mulher deve ser rude Ignara por condição! Não deve aspirar à glória!... Nem um dia na história Fulgurar com distinção! Mas eu que sinto no peito, Dilatar-me o coração, Bebendo as auras da vida, Na sublime inspiração: Eu que tenho uma alma grande, Uma alma audaz que s’expande No espaço a voejar. Não posso curvar a fronte Nesse estreito horizonte E na inércia ficar! (NUNES, 1875, p.71 - 75). A poesia significava para Luiza Amélia de Queiroz uma forma de escrita de si. A autora abordava em suas poesias acontecimentos e sentimentos vivenciados em seu cotidiano. Além disso, apontava o registro de datas, dedicatórias e comentários, o que faz com que Flores Incultas também possa ser compreendido como um diário poético. A data mais antiga registrada no livro Flores Incultas é 1862, cerca de três anos após o casamento da autora com seu primeiro marido, Pedro José Nunes. A autora vivia na cidade de Parnaíba-PI, na época uma cidade com vida econômica e cultural significativa, devido à localização geográfica litorânea e o comércio com países europeus. O que permitia a aquisição de bens culturais como livros e partituras. Entretanto, a participação feminina na vida pública era muito reduzida. Contudo, a situação financeira favorável contribuiu para que Luiza Amélia de Queiroz tivesse acesso à instrução, a aquisição e leitura de clássicos da 175 Mulheres e a Literatura Brasileira literatura, sobretudo, do romantismo e condições de arcar com os custos de publicação de seus livros. O número de mulheres instruídas era reduzido em uma sociedade com um grande contingente de analfabetos e na qual a voz feminina tinha poucas possibilidades de expressão. De forma que a escritora insere-se no contexto de surgimento das primeiras vozes femininas no cenário literário brasileiro. Destaca-se que Luiza Amélia de Queiroz apresenta nas primeiras páginas de Flores Incultas a poesia “Não sou poeta”. Fica evidente a dificuldade de que a mulher ascendesse ao lugar de autoria, ao mesmo tempo em que não deixa de ser uma ironia, que a autora demonstre por meio da construção literária o contrário do que o texto afirma. A expressão poeta constituía-se uma referência ao gênero masculino e o texto permite supor que a autora procurava atenuar as possíveis críticas, afirmando que não pretendia ocupar um espaço social que era reservado aos homens. Ao publicar seus poemas, Luiza Amélia questiona o lugar social reservado às mulheres na época e coloca em evidência a competência feminina. O título Flores Incultas é sugestivo do restrito acesso feminino à instrução, a partir da utilização de uma das imagens construídas sobre as mulheres no período, que poderiam ser vistas, como flores, belas e incultas. Ao fazer essa crítica, a autora demonstrava que se as mulheres tivessem as mesmas oportunidades que os homens, seriam igualmente capazes de desempenhar papéis atribuídos a eles no espaço público. Assim, as mulheres poderiam alcançar prestígio social e escrever seus nomes na História. A escrita de Luiza Amélia de Queiroz insere-se no contexto de apropriação da palavra escrita pelas mulheres para questionar seu lugar social enquanto construíam novas possibilidades de atuação para o sexo feminino e questionavam as representações que eram feitas sobre elas. 176 Mulheres e a Literatura Brasileira 2. Mulheres, imprensa e feminismo nas primeiras décadas do século XX em Teresina-Pi Teresina vivenciava nas primeiras décadas do século XX, seus eflúvios de “Belle Epoque”, marcada pela urbanização da cidade, pelo estreitamento com a cultura letrada, pela importação de bens culturais, pela realização de bailes literomusicais e pela difusão de novas formas de comportamento e lazer em que a literatura se tornava espaço para discutir e redefinir as práticas e os papéis sociais. Esse foi um período de ampliação da presença feminina no espaço público, em atividades relacionadas à educação, ao lazer, a cultura e ao trabalho (QUEIROZ, 1998; CASTELO BRANCO, 1998). No que se refere à produção dos literatos piauienses no final do século XIX e início do século XX, percebe-se: Uma profícua produção discursiva sobre as identidades de Gênero. As mudanças advindas do regime republicano apontavam para novos padrões de comportamento social, nos quais os valores vinculados ao mundo tradicional e rural eram questionados e novas formas de sociabilidades criadas pela racionalidade burguesa e veiculadas por uma cultura escrita procuravam se impor como norma à sociedade. As novas práticas acabavam por criar certa confusão entre as identidades masculinas e femininas, dessa forma, era preciso que as identidades masculinas e femininas fossem significadas dentro de outros parâmetros, que as fronteiras entre o masculino e o feminino fossem definidas (CASTELO BRANCO, 2005, p. 85). Desenvolviam-se disputas pelo estabelecimento das configurações dessas identidades de gênero, perpassando o ideal de uma cultura urbana letrada, que pretendia homens e mulheres talhados para a cultura de salão. A ampliação da 177 Mulheres e a Literatura Brasileira atuação feminina em atividades desvinculadas dos cuidados domésticos e com a família eram percebidas como uma ameaça a um modelo de ordenamento social, que era questionado pelos discursos feministas. Em relação aos periódicos de redação feminina, destacase em Teresina, capital do Piauí, o jornal Borboleta, que circulou entre 1904 e 1906, tendo como redatoras Alaíde Burlamaqui, Helena Burlamaqui e Maria Amélia Rubim. Essa publicação consistiu em um espaço, no qual as mulheres teriam maior possibilidade de expressar sentidos questionadores de uma ordem social que estabelecia para o sexo feminino os papéis de mãe e esposa. A atuação literária era percebida como uma forma de reconhecimento intelectual: A mulher, como todos sabem, deve ser instruída, não só porque a instrução lhe dá mais realce como também porque a habilita para todos os misteres da vida, para o bom desempenho dos deveres que lhes são inerentes. Muitos pensam que a mulher deve esmerar-se mais na educação doméstica, eu, porém, não penso assim, acho que ela não deve conquistar títulos que não estejam ao seu alcance, mas deve estudar e trabalhar muito com o fim de ter certos conhecimentos, seguindo, assim, o exemplo de Maria Amália Vaz de Carvalho, Júlia Lopes de Almeida, Ignez de Sabino e tantas outras que têm sabido se impor pela sua vasta ilustração. A instrução é a base da vida, a mulher instruída tem entrada franca em toda parte e, finalmente, a instrução é um tesouro que todos devem buscar (A.B., 1905, p. 1). “AB” pode indicar que a autoria do texto seja de Alaíde Burlamaqui, uma das redatoras do jornal. A assinatura de textos com iniciais era uma prática comum no período, tanto para homens como para mulheres. Serviam para resguardar a 178 Mulheres e a Literatura Brasileira identidade dos autores. Nesse sentido, destaca-se que “AB” também podem reportar a Amélia Bevilaqua, que utilizou essa abreviatura para publicar seus primeiros textos no Jornal do Brasil, em 1898. Percebe-se que a autora do texto em questão relacionava a instrução feminina aos deveres considerados inerentes ao sexo feminino, que seriam os papéis de esposa, dona de casa e mãe. Segundo Moreira (2003), essa atitude pode ser compreendida como uma estratégia feminina para apresentar propostas que contribuiriam para a emancipação feminina. As escritoras apropriavam-se desses enunciados para justificar suas reivindicações, utilizando-os para minar as bases de uma formação discursiva que as delimitava ao espaço privado, excluindo-as das atividades de reconhecimento intelectual no espaço público. Mas, além disso, a autora menciona diversas escritoras que poderiam servir de exemplo e inspiração para as mulheres piauienses. A educação passava a ser valorizada como fator de distinção social e instrumento para a conquista de novas posições pelas mulheres na sociedade. No final do século XIX e início do século XX, a maior parte da população piauiense vivia no espaço rural, a valorização da educação formal ocorria de forma paulatina, como meio de reprodução do nível social, político e econômico-familiar. Os filhos do sexo masculino poderiam ascender ao ensino superior, o que lhes propiciava acesso a carreiras, como a medicina e a advocacia. O que os habilitava, também, para a carreira política, pois, as profissões e carreiras relacionadas ao espaço público eram culturalmente atribuídas ao sexo masculino. Entretanto, nesse período, ocorreu um aumento da participação feminina no espaço público, em atividades relacionadas à educação, ao trabalho e ao lazer. As primeiras décadas caracterizaram-se como um período de investimento na instrução feminina, com a criação de instituições como o 179 Mulheres e a Literatura Brasileira Colégio Sagrado Coração de Jesus, em 1906 e a Escola Normal, em 1913, ambas na cidade de Teresina-PI. A primeira de caráter confessional visava ministrar uma educação básica, com conhecimentos fundamentais de leitura, escrita, aritmética, costura e etc. A segunda instituição era de caráter estatal e visava privilegiar a formação de professoras, pois se atribuía à mulher, maior aptidão para o ensino infantil, devido a atributos como meiguice e paciência, que seriam naturais do sexo feminino (LOURO, 2000; CASTELO BRANCO, 2005). Deve-se enfatizar que com a ampliação da circulação feminina no espaço público e a dinamização da vida cultural no início do século XX, foi propiciado às mulheres instruídas mais oportunidades de acesso a periódicos voltados para o público feminino, como as revistas Fon-Fon (1907 - 1945) e Revista Feminina (1914 - 1936), publicações que traziam propagandas de diversos produtos, dentre eles cosméticos e contribuíam para difundir imagens de modernidade, progresso e novos comportamentos e papéis femininos na sociedade. Na década de 1920, destacam-se movimentos feministas nas vertentes liberais e anarquistas, questionando os temas relacionados à cultura patriarcal e aos direitos das mulheres. As autoras anarquistas defendiam a educação feminina, denunciavam a exploração das operárias e estendiam seu questionamento à moral sexual que, por ser distinta para homens e mulheres, funcionava como um fator de opressão feminina. As mulheres de uma vertente liberal organizavamse em torno do movimento sufragista, liderado por nomes, como Bertha Lurtz, o qual reivindicava o voto e a elegibilidade para as mulheres (DUARTE, 2003). As discussões do período repercutem na sociedade teresinense da época, percebendo-se a presença de textos assinados com nomes próprios femininos e de flores como “Acácia”, “Berenice”, “Bonina”, “Dolores”, “Eglantine”, “Esmeralda”, “Magnólia”, “Sonia” e “Violeta”. 180 Mulheres e a Literatura Brasileira A identificação por meio de nomes que remetem ao feminino e os temas debatidos são sugestivos de uma autoria feminina. Segundo Morais (2002) e Magalhães (1998), os pseudônimos serviam para proteger as mulheres e suas famílias de críticas. O uso desse recurso possibilitava às autoras questionar modelos historicamente construídos como naturais: Com a nossa emancipação social ganharemos, também, o que, até hoje, se nos tem negado. [...] Alonguemos a vista, e, lá, ao longe, se verá a estrada florida que nos há de conduzir ao lugar que nos cabe. [...] Cogitemos de nós, já que os homens nos abandonam ao papel doméstico que querem que desempenhemos eternamente (DOLORES, 1922). Defendia-se a instrução feminina como atividade capaz de ampliar a participação da mulher na sociedade do período, sendo necessário que as mulheres buscassem conquistar novos papéis para além do espaço doméstico. Dentre os questionamentos que eram realizados estava o feminismo: [...] o verdadeiro e nobilitante feminismo que eu entendo, não é disputar ao homem, os empregos, as posições políticas, as atribuições sociais; não é adaptar-lhe os trajes, o corte dos cabelos, nem copiar-lhe as maneiras, os hábitos, como se nestas exterioridades residisse a sua proeminência. [...] Cultive a mulher o seu espírito, aprimore seus dons naturais, habilite-se por uma sólida e bem cuidada instrução, para lutar pela vida, e ter-se-a tornado não livre, mas independente (VIOLETA, 1926). Verifica-se que a maioria das cronistas que publicava nos jornais Correio do Piauí e O Piauí durante a década de 1920, considerava que o feminismo ideal era o que defendia a educação, rejeitando a disputa entre homens e mulheres no 181 Mulheres e a Literatura Brasileira mercado de trabalho, na política e a adoção de atitudes e comportamentos que representassem uma “masculinização” da mulher. Essas mulheres estavam preocupadas em se definir diante da variedade de discursos feministas e sobre a atuação das mulheres na sociedade da época. Eram mulheres instruídas provavelmente de classe média que possuíam o hábito de leitura estimulado pela formação escolar, tinham acesso a jornais e revistas que traziam notícias sobre o movimento feminista e a ampliação da participação feminina na sociedade, o que contribuía para que passassem a vislumbrar perspectivas de realização que ultrapassavam as fronteiras do espaço doméstico. O uso de pseudônimos dificulta a identificação da autoria, mas dentre as possíveis autoras dos textos relacionados aos debates sobre o feminismo na década de 1920 na imprensa local, poderiam estar presentes as redatoras do jornal Borboleta, Alaíde Burlamaqui, Helena Burlamaqui e Maria Amélia Rubim. Além disso, a década de 1920, conta com a participação de alunas e professoras da Escola Normal na imprensa local, mencionando-se a criação do jornal A Normalista em 1927, tendo como redatoras Rosa Cunha e Zilda Santos. Destaca-se ainda nesse período a criação do Cenáculo Piauiense de Letras (1927-1932), que contava entre seus integrantes com a participação de Júlia Gomes Ferreira, Otilia Carvalho e Silva, Helena Silvia, Zenobia Ribeiro da Silva e Maria Iara Borges de Melo. Algumas dessas mulheres possuíam relações de parentesco com intelectuais da época. Maria Iara Borges de Melo, por exemplo, era filha do literato Abdias Neves 3. Outra 3 Abdias Neves (1876-1928). Foi Senador na República Velha. Publicou obras, como A Guerra de Fidié (história das lutas de independência no Piauí); Imunidades Parlamentares (estudos de 182 Mulheres e a Literatura Brasileira possibilidade a considerar seria Corina Cunha, esposa do intelectual Higino Cunha4 e que era representante da Revista Feminina na cidade de Teresina, em meados da década de 1920. Não sendo possível precisar a autoria dos textos, percebe-se que as mulheres que utilizavam pseudônimos para discutir sobre o feminismo estavam cientes das transformações que a sociedade brasileira vivenciava no período. Mas, relutavam em assinar seus textos para evitar críticas que poderiam atingir a elas e a seus familiares. Nesse sentido, ressalta-se uma advertência de D. Cândida à Emília Leite Castelo Branco: Soube que vive estudando e isso já não é mais para você. Escreveu um artigo elogiando muito Celso Pinheiro 5 e isso tem dado o que falar. Minha filha, tenha cuidado, aqui de tudo se comenta. Que é que você quer escrevendo sobre homens ou mesmo mulheres, isso deixe para os poetas. Hoje é só no que se fala, nesse artigo. Você tem o nome de seu marido a zelar. Sei que não fez com má intenção, mas foi um ato reprovável. Deixe esses estudos, cuide de seus enteados e filhos, mais nada. Heitor é porque acha tudo bem, mas, francamente, fica muito mal a uma senhora de família andar Direito Constitucional); Um Manicaca (romance); O Piauí na confederação do Equador, dentre outras. 4 Higino Cunha (1848-1943). Advogado, jornalista político, literato e professor. Participou da fundação da Academia Piauiense de Letras, da qual também foi presidente. Publicou obras, como O Idealismo Filosófico e O Ideal Artístico (1913); História das Religiões no Piauí (1924), O Ensino Normal no Piauí (1926), A Revolução de 30 no Piauí (1939). 5 Celso Pinheiro (1887-1950). Foi um dos fundadores da Academia Piauiense de Letras. Poeta, cronista e jornalista. Publicou obras, como Almas Irmãs (1907), em co-autoria com Antônio Chaves e Zito Baptista e Flor Incógnita (1912). 183 Mulheres e a Literatura Brasileira fazendo artigos de jornal, uma vergonha (BRANCO, 1983, p. 89-90). A sogra advertiu Emília, que como mulher casada, ela deveria afastar-se das leituras e da publicação de textos nos jornais, ocupando-se dos afazeres domésticos e do cuidado com os enteados e filhos. Exigia-se que ela tivesse uma conduta mais discreta, com o objetivo de evitar falatórios maldosos que prejudicassem a reputação familiar e a carreira política do marido. A projeção no espaço público era reservada aos homens. A crítica literária elogiosa a um literato feita por outro intelectual não geraria críticas na sociedade. Evidenciando que o espaço de criação e de análise literária ainda era compreendido como espaço masculino. Emília tornou-se mais conhecida como Lili Castelo Branco: Romancista, cronista, contista e memorialista, nascida em Portugal, na cidade de Fafe e falecida em Teresina (18961993). Filha do comerciante José Gonçalves Leite e Ermelinda de Barros Oliveira. Veio para o Brasil acompanhando seus pais, com apenas dois meses de idade. No Brasil, fixou residência em Belém do Pará, onde recebeu educação primária e secundária. Lili, ainda bem jovem, com apenas doze anos, já mostrava seus pendores literários quando foi premiada em concurso pelo jornal Folha do Norte. (MENDES, 2009, p. 178). A autora casou-se aos dezesseis anos com Heitor Castelo Branco (1898-1952), que era advogado e exerceu cargos, como delegado e Chefe de Polícia, em Teresina, Diretor da Escola Normal, além de mandatos, como deputado estadual e deputado federal. Heitor era filho de Mariano Gil Castelo Branco (1848-1935) e de Cândida Burlamaque Castelo Branco. Mariano Gil Castelo Branco foi deputado provincial (1884184 Mulheres e a Literatura Brasileira 1885) e Vice-Governador do Piauí, em 1892; recebeu nos meses finais do período imperial o título de Barão de Castelo Branco, menção que a autora realiza algumas vezes na obra Fases do meu passado (1983), ao referir-se ao sogro como “Barão”, mesmo vigorando o período republicano. O que indica o quanto a família e a autora eram ciosas de suas insígnias de distinção social. A família Castelo Branco é de origem portuguesa, tendo seus primeiros ascendentes chegados ao Estado do Piauí ainda no período colonial, constituindo-se em uma genealogia antiga, de proprietários de terras e com representantes na elite política, econômica e cultural do estado no decurso do tempo (BRANDÃO, 1995). Emília Castelo Branco enfatiza ter sido uma esposa obediente, de maneira que as decisões do marido prevaleciam sobre seus desejos, pois este não aceitava, por exemplo, que ela desenvolvesse trabalhos liberais fora de casa, devendo o sustento familiar ser provido exclusivamente por ele. Emília Leite Castelo Branco viveu com o marido no Rio de Janeiro, durante o período em que este exercera mandato de deputado federal na legislatura, de 19151918; posteriormente, acompanhou o marido, vindo morar com ele em Teresina. Presume-se que nos centros urbanos de menor densidade populacional, o controle sobre o comportamento feminino poderia ser vivenciado de maneira mais intensa, por meio da vigilância social que repercutia através dos boatos. Essas observações destacam as motivações que levavam algumas mulheres a ocultar suas identidades por meio de pseudônimos para discorrer sobre feminismo. Embora houvesse os que consideravam que tornar-se escritora não era adequado ao sexo feminino, as mulheres desejavam obter prestígio e reconhecimento social, como se percebe na expectativa de D. Ermelinda sobre as filhas: 185 Mulheres e a Literatura Brasileira Certa ocasião em que fizemos parte de um concerto no nosso colégio mamãe me disse: - Foste medíocre, uma pena, quem tocou melhor foi Tivica, ela, sim, será uma grande pianista... - É o que a senhora mais gosta, não, mamãe? - falei triste, eu que tudo fazia para agradá-la. – Sim, quando menina fugia da casa do meu pai para ouvir as canções que teu avô, pai de teu pai, tocava no violino. Ficava sempre toda emocionada... - Que pensa, expressei-me, eu sempre procuro satisfazê-la. No entanto, só dou mesmo para escrever e isso a senhora não aprecia, não é? Puxou-me a si, abraçou-me e falou francamente: -Há minha Lili, se chegares a ser uma escritora, se algum dia fizeres um romance, assim, como esses que gostamos de ler e nos distraem, superarás tudo... Mas essa profissão é, sem dúvida, a mais difícil de todas. No entanto, quem sabe, és inteligente. E rindo a coçar-me a cabeça: - Minha filha romancista, que orgulho, que beleza, estejas onde estiveres ou esteja eu morta, baterei palmas lá de entre as nuvens, aplaudindo-te Querida... (BRANCO, 1983, p. 22-23) Para a mãe de Emília Leite seria um orgulho se a filha se tornasse uma escritora, demonstrando sua capacidade intelectual ao se dedicar à atividade literária, uma profissão difícil que requeria inteligência e habilidade criativa. A conversa entre mãe e filha, relatada pela autora, indica que novas perspectivas de realização social estavam sendo desejadas e gestadas socialmente nas décadas iniciais do século XX. Foi na condição de viúva que a autora passou a publicar livros, dentre esses, menciona-se Ermelinda (1959), na qual se refere à sua genitora; Os amores de Tomaz (1968); Os mistérios do castelo (1979); Qual será afinal nosso fim? (1981); A misteriosa passageira (1989) e; Feliz Arrependimento (1992). Destacando-se também que isso ocorreu na segunda metade do século XX, um momento em que o deslocamento das fronteiras de gênero 186 Mulheres e a Literatura Brasileira tornava-se mais significativo com o aumento da atuação feminina no espaço público. 3. Amélia de Freitas Bevilaqua e a Academia Brasileira de Letras As primeiras décadas do século XX constituíram-se na sociedade brasileira como um período no qual as mulheres buscavam a ocupação de novos lugares sociais no espaço público. Entretanto, essa mudança sofria resistência, como se verifica, por exemplo, na candidatura da escritora piauiense Amélia de Freitas Bevilaqua para a Academia Brasileira de Letras, em 1930. Segundo Mendes: Amélia Carolina de Freitas Bevilaqua nasceu na fazenda Formosa, em Jerumenha, no Piauí, no dia 7 de agosto de 1860, filha do Desembargador José Manuel de Freitas e de D. Teresa Carolina da Silva Freitas. Amélia teve nove irmãos. Deixou a terra natal ainda criança, indo morar em São Luís (MA), onde o pai era juiz de direito e posteriormente presidente da província. [...] Amélia Bevilaqua iniciou cedo sua vida literária, quando estudante em São Luís. Colaborou com o jornal do colégio, publicando contos e poesias. Em 1889, publicou trabalhos em jornais de Recife e na Revista do Brasil de São Paulo. Atuou, também, como redatora oficial da revista Lyrio, de Recife, em 1902. Foi ocupante da cadeira 23 da Academia Piauiense de Letras e patrona da cadeira 48 da Ala Feminina da Casa Juvenal Galeno-Ceará. De sua obra, constam crônicas, contos, poesias e romances – todos eles publicados em diversos jornais e revistas do país (2006, p. 151). 187 Mulheres e a Literatura Brasileira A Academia Brasileira de Letras - ABL foi instituída em 28 de janeiro em 1897, tendo como modelo a Academia Francesa, sendo composta por: Araripe Júnior, Artur Azevedo, Graça Aranha, Guimarães Passos, Inglês de Sousa, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Pedro Rabelo, Rodrigo Otávio, Silva Ramos, Teixeira de Melo, Visconde de Taunay, Coelho Neto, Filinto de Almeida, José do Patrocínio, Luís Murat, Valentim Magalhães, Afonso Celso Júnior, Alberto de Oliveira, Alcindo Guanabara, Carlos de Laet, Garcia Redondo, Pereira da Silva, Rui Barbosa, Sílvio Romero e Urbano Duarte. Para completar o quadro de quarenta nomes, foram eleitos: Aluísio Azevedo, Barão de Loreto, Clóvis Beviláqua, Domício da Gama, Eduardo Prado, Luís Guimarães Júnior, Magalhães de Azeredo, Oliveira Lima, Raimundo Correia e Salvador de Mendonça. Amélia de Freitas Bevilaqua foi a primeira mulher a se candidatar à Academia Brasileira de Letras, entretanto, sua candidatura foi rejeitada sob a alegação de que o termo brasileiros só fazia jus ao sexo masculino. Amélia Bevilaqua contava com 70 anos de idade e possuía uma carreira literária respaldada pela crítica favorável de autores como Araripe Júnior e Sílvio Romero. Além de diversos contos, a autora publicou os romances: Através da Vida (1906); Silhouetes (1906); Vesta (1908); Angústia (1913); Açucena (1921); Jeannete (1933) e Contra a Sorte (1913), entre outras obras. A candidatura de Amélia Bevilaqua à Academia Brasileira de Letras foi alvo de controvérsias entre os acadêmicos. No intuito de manter a Academia Brasileira de Letras como um nicho masculino, recorreu-se a artimanhas como acrescentar restrições ao regimento, como destaca Laudelino Freire: 188 Mulheres e a Literatura Brasileira Ora, se a palavra brasileiros abrange escritores de ambos os sexos, a resolução da Mesa, segundo aviso circular enviado aos Acadêmicos, mandando acrescentar ao artigo 30 do Regimento a seguinte restrição – A expressão brasileiros só se aplica a escritores do sexo masculino – saiu dos justos limites, reformando irregular e violentamente os Estatutos e o regimento [...] Tudo, como, se vê, está aqui a indicar que o assunto, pela sua importância e pela forma irregular porque foi resolvido, deve ser novamente considerado. Indico, portanto, que a mesa envie a cada um dos Senhores Acadêmicos, sem exceção, a seguinte consulta, pedindo-lhes resposta por escrito, dentro do prazo de sessenta dias: -Na palavra brasileiros do art. 2 dos estatutos estão ou não incluídas as escritoras brasileiras (apud. BEVILAQUA, 1930, p. 122-124). [grifo da autora]. O pedido de inscrição de Amélia Bevilaqua provocou um debate sobre o regimento da Academia, especificamente sobre a classificação de brasileiros. O primeiro aspecto a considerar é que o uso do plural no masculino para se referir a uma coletividade de indivíduos resulta no apagamento do gênero feminino. E o segundo aspecto é que isso oculta uma relação de poder, alicerçada no domínio masculino na família e nas diversas instituições da sociedade. O que resultou na definição do plural no gênero masculino como convenção para se referir ao coletivo social. Havia um arranjo que estabelecia papéis e espaços distintos para homens e mulheres na sociedade. De forma que o avanço feminino sobre atividades da vida pública era percebido como uma ameaça ao domínio masculino. Após pronunciamentos favoráveis e contrários ao ingresso feminino na Academia Brasileira de Letras, a inscrição de Amélia Bevilaqua foi negada pelos acadêmicos em uma sessão realizada no dia 29 de maio de 1930. A rejeição da candidatura da autora se ateve à interpretação de gênero da palavra, 189 Mulheres e a Literatura Brasileira brasileiros, como compreendendo apenas os indivíduos do sexo masculino. A interpretação estratégica serviu para resguardar o monopólio masculino sobre o espaço da Academia Brasileira de Letras. A candidatura de Amélia Bevilaqua à Academia Brasileira de Letras recebeu, por exemplo, menção favorável do presidente da Academia Brasileira de Letras, Laudelino Freire e do acadêmico Félix Pacheco: Honro-me bastante de ser membro da Academia Piauiense de Letras, a que também pertence à distinta escritora. Os Cenáculos estaduais, modelados pelo nosso, andam nesse ponto, muito adiante da Academia. [...] Se o mal é de nascença, razão maior de corrigimos, não é triste que, na primeira turma de quarenta, deixassem de figurar Júlia Lopes de Almeida e Francisca Júlia? Para que ampliarmos, eternizarmos essa tristeza, insistindo na negativa? (apud BEVILAQUA, 1930, p. 63-64). Félix Pacheco foi jornalista, político, poeta e tradutor, tendo sido o primeiro piauiense a ingressar na Academia Brasileira de Letras, em 1913. Ele destacou as escritoras Francisca Júlia que nasceu em Eldorado – SP, em 1873 e publicou obras como Mármores (1895), Livro da Infância (1899) e Esfinges (1903); e Júlia Lopes de Almeida, esposa do acadêmico Felinto Lopes de Almeida, que nasceu no Rio de Janeiro, em 1862 e faleceu nessa mesma cidade, em 1934 e publicou contos, novelas, romances, peças teatrais e ensaios; dentre suas obras, mencionam-se: A Família Medeiros (1892); A Viúva Simões (1895); Livro das Noivas (1896); A Falência (1901) e; A Intrusa (1905). Ele considerava que essas autoras mereciam ter ingressado na ABL na fundação desta, sendo lamentável que se insistisse em manter essa agremiação literária como um espaço exclusivamente masculino. Algumas das academias 190 Mulheres e a Literatura Brasileira estaduais de letras já contavam com a participação feminina em seus quadros, como observa Amélia Bevilaqua: [...] se volvermos a vista para nossos Estados, encontramos, em Pernambuco, Edwirges Sá Pereira, primosa poetisa e escritora elegante, vice-presidente da Academia de Letras. No Ceará, também é sócia da Academia a romancista Alba Valdez. Eu mesma, desconhecida, vivendo afastada de tudo, pertenço à Academia Piauiense de Letras (BEVILAQUA, 1930, p. 26-27). Além desses exemplos que indicam a participação feminina em Academias de Letras em Estados da região Nordeste, Amélia Bevilaqua ressalta que havia precedentes também em outros países, pois “não teria a Academia Brasileira de Letras a primazia de glorificar as escritoras. Antes dela, já a Academia de Ciências de Lisboa consagrava Maria Amália Vaz de Carvalho e Carolina Michaelis, que tanto honraram as letras do seu país” (BEVILAQUA, 1930, p. 31). As notícias de que mulheres se destacam em atividades do espaço público serviam de motivação para que outras seguissem seus exemplos. A prática literária feminina era algo aceitável nas primeiras décadas do século XX, para algumas famílias, tendo em vista que poderia ser conciliada com os papéis femininos na família. Nesse sentido, destaca-se um ideal familiar no qual a educação ministrada às meninas das classes média e alta, incluía habilidades relacionadas à arte da declamação e a execução de músicas em instrumentos como o piano. Amélia Bevilaqua ingressou na Academia Piauiense de Letras, em 1921, por meio de decreto especial. A Academia Piauiense de Letras foi fundada em 1917, dentre os fundadores dessa entidade menciona-se Clodoaldo Freitas e Lucídio Freitas, respectivamente, tio e primo da autora. A aprovação do nome de Amélia Bevilaqua nessa instituição deveu-se ao 191 Mulheres e a Literatura Brasileira apoio dos familiares da autora, mas também ao reconhecimento de sua produção literária pela crítica local e nacional. A escritora era esposa de Clóvis Bevilaqua, um renomado jurisconsulto de sua época, responsável pela elaboração do Código Civil Brasileiro de 1916 e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. Ressaltando-se que o casal Amélia e Clóvis Bevilaqua favorecia a inclusão de escritores piauienses na roda literária carioca, propiciando contatos com escritores, jornalistas e editores por meio de reuniões realizadas em sua residência (MAGALHÃES, 1998). Amélia Bevilaqua não conseguiu o direito de concorrer à Academia Brasileira de Letras, mas aproveitou a polêmica para reunir artigos e declarações de apoio que resultaram na publicação de um livro com caráter de documento histórico. A autora inscreveu, assim, seu nome na história das lutas femininas por ampliação de direitos e espaços de atuação para as mulheres no Brasil. Em relação à sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, Amélia Bevilaqua afirmava, “não me arrependo do meu gesto; parece que algum sentimento me insinua que estou mais perto de me sentir orgulhosa do que humilhada”. (BEVILAQUA, 1930, p. 117). Amélia Bevilaqua representa assim uma geração de mulheres que ousou assumir o lugar de autoria e questionar os lugares sociais estabelecidos para o sexo feminino na época. A instrução e a admissão da capacidade intelectual das mulheres eram vistos como fatores capazes de atuar na desconstrução de preconceitos que recaíam sobre as mulheres na época, favorecendo a ampliação da participação feminina no espaço público, o que incluía as diversas carreiras profissionais e atividades públicas. 192 Mulheres e a Literatura Brasileira Considerações finais Luiza Amélia de Queiroz, Amélia de Freitas Bevilaqua e Emília Leite Castelo Branco foram mulheres pertencentes a um estrato social privilegiado, nos aspectos econômico, político e cultural. Mas, são também escritoras representativas de um período de transição marcado pelo processo de apropriação feminina do lugar de autoria no decurso dos séculos XIX e XX. Verificando-se o deslocamento entre a interdição da escrita pública às mulheres, a resistência em dividir com elas os mesmos espaços de prestígio literário até o reconhecimento da capacidade intelectual feminina. A trajetória das autoras demonstra que a variável familiar em relação à escrita pública feminina se posicionava de maneira diversa, mesmo sendo as autoras do mesmo estrato social. Enquanto Emília Leite Castelo Branco, esposa de um advogado e político, era admoestada pela sogra que publicar textos era coisa para poetas, não para mulheres, sobretudo, se casadas; Amélia Bevilaqua, casada com um advogado e intelectual, ousava, publicando livros e candidatando-se à Academia Brasileira de Letras. Amélia Bevilaqua provinha de uma família de literatos, que com certeza possuía uma visão positiva em relação à literatura. Havia a preocupação de que Lili Castelo Branco fosse alvo de mexericos e boatos, que desabonassem sua conduta e prejudicassem a reputação familiar e a carreira política de seu marido. O que poderia vir a acontecer, considerando-se a cultura patriarcal e machista, que estabelecia critérios morais distintos para o sexo feminino e para o sexo masculino, sendo os mesmos mais rígidos para as mulheres. Outro fator a ser considerado é que a prática literária permitia às mulheres conciliar as atividades relacionadas à família e ao espaço doméstico. É nessa perspectiva que se insere Amélia de Freitas Bevilaqua, num 193 Mulheres e a Literatura Brasileira ideal de família letrada na qual as habilidades culturais adquiridas pelas mulheres, como tocar um instrumento, poderiam ser demonstradas em público, pois se constituía critério de distinção social. Contudo, não deviam ser exercidas como carreiras profissionais que retirassem as mulheres de seus afazeres domésticos e dos cuidados com a família. Infere-se que o cânone literário ainda se encontra resistente à incorporação da autoria feminina. As camadas de silêncio que recobrem essa produção escamoteiam as relações de poder, envolvidas na fabricação de memórias e de esquecimentos, vêm sendo retiradas por pesquisas que buscam identificar os contornos que perpassam a prática literária de mulheres escritoras na sociedade brasileira nos séculos XIX e XX. A circulação de ideias feministas, as transformações no espaço urbano, as possibilidades de educação e trabalho para as mulheres, as impulsionavam a sonhar com outras formas de reconhecimento para além das fronteiras domésticas. As transformações sociais que se processaram no decorrer do século XX permitiram às mulheres derrubar preconceitos que interditavam ou dificultavam o acesso feminino aos lugares de autoria e prestígio intelectual com que muitas vinham sonhando desde pelo menos o século XIX. Escrever sobre a história das mulheres, suas ações e empreendimentos literários significa abrir novas sendas historiográficas, evidenciando o protagonismo feminino e oportunizando perspectivas para novos estudos também em relação à história literária e intelectual da sociedade brasileira. Fontes A.B. O Adorno da Mulher. Borboleta, Teresina, p. 1, 29 dez. 1905. 194 Mulheres e a Literatura Brasileira BEVILAQUA, Amélia de Freitas. A Academia Brasileira de Letras e Amélia Bevilaqua: documento histórico – literário. Rio de Janeiro: Bernard Fréres, 1930. BRANCO, Emília Castelo. Fases do meu passado. Teresina: [s.n], 1983. DOLORES. Correio Elegante. Correio do Piauí, Teresina, p. 4, 10 mar. 1922. NUNES, Luiza Amélia de Queiroz. Flores incultas. Parnaíba, PI: [S.N.], 1875. VIOLETA. O Feminismo. O Piauí, Teresina, 06 abr. 1926. Vida Social, p. 4. Referências BRANDÃO, Tânya Maria Pires. A elite colonial piauiense: família e poder. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. 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Minha mãe é Maria Ninguém (Rita Lee e Zélia Duncan) Introdução Neste artigo analisamos como a obra Parque Industrial (1933) da escritora Patrícia Galvão (Pagu), pode ser considerada um acontecimento, levando em consideração as noções apresentadas por Jacques Derrida (1995) e por Michel Foucault (1975). Além disso, não deixamos de fora da nossa reflexão o fato da obra contribuir com uma descontinuidade histórica frente ao modelo de romance brasileiro existente na década de 30. Para isso, dialogamos com o texto introdutório da obra A arqueologia do saber de Michel Foucault (1997) e consideramos as noções de poder apresentadas por ele na Aula de 7 de janeiro e 14 de janeiro de 1976. Também, usamos a reflexão de Gilles Deleuze em Post scriptum à sociedade do controle (1992) para pensar a representação da sociedade da disciplina por meio do mundo industrializado e a correlação de forças presentes nesse universo. As temáticas oriundas do pensamento feminista e marxista da autora, presentes na obra, 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura - PPGLITCULT do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Email: glaucesouzasantos@yahoo.com.br 198 Mulheres e a Literatura Brasileira são discutidas em diálogo com as reflexões de Adriana Barbosa em Pagu: Antropogafia e pós-feminismo (2011). O estudo de Parque Industrial, livro de estreia de Patrícia Galvão (Pagu), publicado em 1933 sob o pseudônimo de Mara Lobo, é um gesto que contribui com a visibilidade da escritora, permitindo questionamentos, comparações e identificações a respeito da sua escrita ousada e de denúncia da vida dos humilhados e ofendidos da sociedade paulistana. Nessa narrativa, há cenas sexuais explícitas, como também, linguagem das ruas e a exaltação da condição feminina. Sua concentração é nas mulheres operárias e militantes. Por isso, nessa obra, Pagu detém-se no comportamento do proletariado urbano feminino e critica veementemente, a sociedade burguesa, de um ângulo socialista, denunciando a exploração da mulher operária e apontando os privilégios e hipocrisias da classe burguesa de São Paulo. Musa do modernismo, militante do ideal, operária, vanguardista, incansável defensora de ideias novas, primeira mulher a ser presa por questões políticas, dona de vários nomes e de uma escrita agressiva, Patrícia Galvão (Pagu) merece qualquer gesto que a destaque no cenário literário, justificando todos esses termos dados a ela e enfatizando as suas contribuições inegáveis para o movimento modernista. Operando nesse sentido de contribuição para os estudos desse retrato multifacetado que é Pagu, Augusto de Campos na obra Pagu vida-obra publicada em 1982 e relançada em 2014, denuncia a ausência de Pagu na história literária e a sombra que oculta a vida dessa mulher. Assim, questiona: quem resgatará pagu? patrícia galvão (1910-1962) que quase não consta das histórias literárias e das pomposas enciclopédias provincianas 199 Mulheres e a Literatura Brasileira uma sombra cai sobre a vida dessa grande mulher talvez a primeira mulher nova do brasil da safra deste século na linhagem de artistas revolucionárias como anita malfatti e tarsila mas mais revolucionária como mulher [...] (CAMPOS, 2014, p. 30) Parque Industrial: acontecimento e descontinuidade Enquanto algumas obras publicadas na década de 30 davam ao romance brasileiro o título de romance social ou “regionalista” – a partir do sertanismo romântico – o cenário projetado na narrativa de Pagu, como uma ruptura, privilegia outro espaço e outro Brasil, em que a industrialização assinala o ingresso do país na modernidade e acentua os abismos sociais. Esse gesto harmoniza-se com a noção de acontecimento, discutida por Jacques Derrida em A Estrutura, o signo e o jogo (1995) e com o pensamento de Michel Foucault em Arqueologia do Saber (1997), a respeito das rupturas e das descontinuidades presentes na história. Derrida nos ajuda a entender o acontecimento como ruptura e redobramento de determinada estrutura. Para Foucault: “[...] a história do pensamento, dos conhecimentos, da filosofia, da literatura, parece multiplicar as rupturas e buscar todas as perturbações da continuidade [...]” (FOUCAULT, 1997, p. 6). Se essa noção de descontinuidade apresentada por Foucault “[...] toma um lugar importante nas disciplinas históricas.” (FOUCAULT, 1997, p. 9), com a Literatura não haveria de ser diferente. São textos como o de Pagu que faz se apagar o tema e a possibilidade de uma história global e nascer um desenho diferente da história geral na Literatura. Para que surja um 200 Mulheres e a Literatura Brasileira acontecimento na história, é necessário se absorver de toda a aparência e romper com a essência. Lúcia Helena da Silva Jovino em seu artigo intitulado Pagú antropófaga: Literatura e história em deslocamento (2012) aponta que: A postura estética, ética e política de Pagú envolta pela antropofagia cultural conferiram, ao seu romance proletário no momento de sua elaboração e circulação, diferenças tanto em relação ao realismo burguês já configurado, quanto ao realismo socialista e o romance nordestino brasileiro em vias de consolidação. (JOVINO 2012, p. 7) Segundo Flávio Loureiro Chaves, na apresentação que faz da terceira edição da obra Parque Insdustrial, Pagu integra a mesma família intelectual de Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Alcântara Machado, acrescentando uma nova dimensão às contribuições desses escritores. O que Pagu insere em sua narrativa é uma forte conotação política canalizada para a defesa do proletariado industrial e para a denúncia de uma ordem social que distancia o centro da periferia. São essas diferenças que faz da obra de Pagu um acontecimento e um instrumento de descontinuidade na história literária. A fábrica como prisão O que nos chama atenção nessa obra em análise é a representação do trabalho subalterno das mulheres nas fábricas do Brás. Rosiska Darcy de Oliveira em Elogio da diferença (1993) pontua que o acesso ao mundo do trabalho assalariado não foi, para as mulheres, uma escolha espontânea, nem significou bem-estar e independência para elas. O que levou as mulheres às fábricas, segundo Rosiska, foi a miséria. 201 Mulheres e a Literatura Brasileira Nesse espaço, se viram obrigadas a desempenhar os trabalhos mais penosos e pior remunerados. Mas a primeira ruptura no paradigma da diferença entre masculino e feminino se deu com a separação da casa do lugar de trabalho. De fato, ao dar origem a uma mão-de-obra feminina, a Revolução Industrial introduz uma primeira ruptura no paradigma da diferenciação de mundos, na medida em que separa a casa do lugar de trabalho e confronta homens e mulheres às mesmas máquinas, ritmos e exigências da produção fabril. (OLIVEIRA, 1993 p. 43) Com o acesso ao trabalho nas fábricas, a mulher passou a ser explorada de diversas maneiras: falta de respeito, carga horária de trabalho exacerbada e ainda pela exploração sexual dos que ocupavam posições superiores. Em sua narrativa, Pagu mostra que as mulheres passaram a ocupar o mesmo espaço ocupado pelos homens diante das mesmas máquinas, ritmos e exigências que ornamentam o universo fabril. Na fábrica homem e mulher estão lado a lado, operando as mesmas máquinas: “ – Bruna! Você se machuca. Olha as tranças! É o seu companheiro de perto.” (GALVÃO, 1994, p. 19). Ao se referir ao ritmo das máquinas, o universo fabril é metaforicamente denominado como penitenciária social: “Na grande penitenciária social os teares se elevam e marcham esgoelando. (GALVÃO, 1994, p. 18). A partir da leitura foucaultiana, podemos afirmar que a fábrica é uma instituição que reinsere as relações de poder por meio do poder político, mediante uma espécie de guerra silenciosa. Essas relações também estão inseridas nas desigualdades econômicas, na linguagem e nos corpos das pessoas. 202 Mulheres e a Literatura Brasileira [...] as relações de poder, tais como funcionam numa sociedade como a nossa, tem essencialmente como ponto de ancoragem uma certa relação de força estabelecida em dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra. E, se é verdade que o poder político para a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da guerra. (FOUCAULT, 2002, p. 22 e 23) Por isso, segundo Foucault (2002), é preciso, em todo caso, olhar mais de perto “[...] a hipótese de que os mecanismos de poder seriam essencialmente mecanismos de repressão, e a outra hipótese de que, sob o poder político, o que paira e o que funciona é essencialmente e acima de tudo uma relação belicosa.” (FOUCAULT, 2002, p. 25). Foucault ao analisar o poder fora da questão econômica, nos ajuda a entender seu exercício e sua mecânica. Assim, a partir da noção de que o poder é uma relação de força e que veicula e aplica relações e que não são relações de soberania, mas relações de dominação, pontua que além de "uma" dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, há múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade. Em Parque Industrial, além das fábricas do Brás, a Escola Normal do Brás, As casas de parir – como denomina a maternidade – e a prisão onde vai parar Corina, acusada de ter matado o filho, são as instituições marcadas pela disciplina, nas quais podemos identificar relações como opressor-oprimido, mandante-mandatário, subordinador-subordinado. Segundo Foucault (2002), o poder não se dá, nem se troca, nem se retorna, mas se exerce e só existe em ação. A partir do cenário descrito na narrativa de Pagu, podemos observar as múltiplas sujeições presentes no interior do corpo social. 203 Mulheres e a Literatura Brasileira [...] O chefe da oficina se aproxima, vagaroso, carrancudo. — Eu já falei que não quero prosa aqui! — Ela podia se machucar... — Malandros! É por isso que o trabalho não rende! Sua vagabunda! (GALVÃO, 1994, p.19) Nessa cena descrita observamos uma relação de dominação pautada não na posição central do “rei”, mas de seus “súditos” em suas relações recíprocas como aponta Foucault (2002). Segundo ele, além das regras de direito que organizam o poder “[...] investe-se em instituições, consolidase nas técnicas e fornece instrumentos de intervenção materiais, eventualmente até violentos.” (FOUCAULT, 2002, p. 32). Nesse sentido, vale ressaltar que é bastante útil a proposta foucaultiana de estudar o poder querendo saber como as coisas acontecem nos “[...] processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos.” (FOUCAULT, 2002, p. 33). Se considerarmos que o poder necessita ser analisado como uma coisa que só funciona em cadeia, a cena do chefe da oficina merece atenção por expressar essa rede em que o poder é exercido. Não só os operários, mas o chefe da oficina também se encontra submetido a um poder, pois ele é exercido em rede. Segundo Foucault, “[...] nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas mesmo sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo [...] O poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles.” (FOUCAULT, 2002, p. 35). Deleuze em Post scriptum à sociedade do controle (1992) relembra as sociedades disciplinares situadas por Foucault nos séculos XVIII e XIX e pontua que elas atingiram o seu apogeu no século XX. Ele considera a análise de Foucault a respeito do projeto ideal dos meios de confinamento, visível 204 Mulheres e a Literatura Brasileira especialmente na fábrica. O projeto deve: concentrar, distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaçotempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. A sociedade descrita na narrativa de Pagu pode ser considerada disciplinar, pois, segundo Deleuze, nessa sociedade, a fábrica buscava um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo para os salários. Nesse sentido, Pagu procurou mobilizar cenas nas quais as condições de exploração capitalista estão manifestas: [...] — Minha mãe está morrendo! Ganho cinquenta mil-réis por mês. O senhorio me tirou tudo na saída da oficina. Não tenho dinheiro para remédio. Nem para comer. [...] As operárias trabalham cinco anos para ganhar o preço de um vestido burguês. Precisam trabalhar a vida toda para comprar um berço. (GALVÃO, 1994, p, 31) [...] — Dá licença de ir lá fora? — Outra vez? — Estou de purgante. [...] Nas latrinas sujas as meninas passam o minuto de alegria roubada ao trabalho escravo. — O chefe disse que agora só pode vir de duas em duas! (GALVÃO, 1994, p, 19 e 20) Saem para o almoço das onze e meia. Desembrulham depressa os embrulhos. Pão com carne e banana. Algumas esfarelam na boca um ovo duro. (GALVÃO, 1994, p, 20) Especialmente as duas últimas cenas apresentadas exemplificam o projeto que compõe os espaços de confinamento. Concentração, distribuição no espaço, 205 Mulheres e a Literatura Brasileira ordenação no tempo, todos esses gestos estão voltados para um único objetivo: a produção. Sobre estilo e temáticas Seguindo o princípio da não linearidade da narrativa tradicional, em Parque Industrial, são suprimidas descrições do tipo princípio-meio-fim. O que encontramos são narrativas em pedaços possibilitando uma leitura como a de um mosaico estilhaçado sendo necessário que o leitor faça a junção entre eles, obtendo a visão do conjunto. A pontuação frenética, os parágrafos curtos, as sucessões súbitas de cenários se associam ao ritmo das fábricas e à dinâmica do dia a dia de um bairro proletário que em meio a exploração corre atrás a cada dia da sobrevivência. A descrição do bordel, onde vai parar muitas mulheres que não encontram outras alternativas de sobrevivência, por exemplo, sugere uma associação da produção em série das fábricas à produção da miséria humana: “Nas vinte e cinco casas iguais, nas vinte e cinco portas iguais, estão vinte e cinco desgraçadas iguais.” (GALVÃO, 1994, p. 49). Enquanto as fábricas produzem sem parar seus produtos, à custa do trabalho escravo das mulheres, as misérias humanas também são reproduzidas. É essa mesma dinâmica que podemos observar na narrativa cinematográfica Cidade do silêncio (2006), dirigida por Gregory Nava. Esse filme retrata o dia a dia de fábricas do mundo inteiro instaladas no México, na fronteira com os Estados Unidos. Essas fábricas contratam mulheres para expedientes longos, com mão-de-obra barata, condições péssimas de trabalho e isenção de impostos. Assim, fabricam produtos a baixo custo, que são vendidos nos Estados Unidos, enquanto muitas mulheres são estupradas a caminho de casa, 206 Mulheres e a Literatura Brasileira tarde da noite ou no início das manhãs e nada é feito para sanar o problema. Vale também ressaltar outra característica da obra de Pagu que demarca uma ruptura com a narrativa tradicional e nos faz pensar a respeito do jogo presente na estrutura, possível a partir da movência do centro. Na narrativa Parque Industrial, não há propriamente ênfase em personagens isoladamente, talvez para privilegiar uma tipologia urbana caracterizada pela rapidez da produção em série das próprias fábricas descritas. Embora não haja centralidade no que se refere aos personagens, a vida do Brás é narrada por personagens predominantemente femininas, tornando como centrais na obra, temas como erotismo e sexismo. Assim, o corpo feminino é visto de diversas formas: como força de trabalho nas fábricas, mercadoria de troca, ascenção social, prazer e instrumento de luta. As representações da militante, da proletária, da prostituta, da virgem e da mulher livre, respectivamente, atendem a cada um desses símbolos. No “romance proletário” − título que Pagu fez questão de colocar na primeira edição da obra − , a vida nas fábricas e nos cortiços do bairro paulistano é narrada, revelando a interação e diferença entre personagens da classe operária (humilhados e ofendidos) e de outros da classe média alta. Dessa forma, temas como opressão, preconceito e injustiça - seja pelo aparato do Estado, da família, da Igreja, ou até mesmo, do feminismo da época – compõem a obra. A fala pontual e crítica de algumas personagens revela certa consciência da diferença presente entre ricos e pobres, patrões e empregados: Bruna está com sono. Estivera num baile até tarde. Pára e aperta com raiva os olhos ardentes. Abre a boca cariada, boceja. Os cabelos toscos estão polvilhados de seda. 207 Mulheres e a Literatura Brasileira - Puxa! Que este domingo não durou... Os ricos podem dormir à vontade. (GALVÃO, 1994, p. 19) As seis costureirinhas têm olhos diferentes. Corina, com dentes que nunca viram dentista, sorri lindo, satisfeita. É a mulata do ateliê. Pensa no amor da baratinha que vai passar para encontrá-la de novo à hora da saída. Otávia trabalha como um autômato. Georgina cobiça uma vida melhor. Uma delas, numa crispação de dedos picados de agulha que amarrotam a fazenda. – Depois dizem que não somos escravas. (GALVÃO, 1994, p. 25) Na relação entre ricos e pobres, patrões e empregados, a desigualdade inata no sistema capitalista e os dramas centralizados no amor, no sexo e no dinheiro são explicitados. Na narrativa, dentre outras configurações, encontramos moças pobres seduzidas e iludidas por conquistadores ricos que fazem promessas casamenteiras, como a trajetória de Corina que seguiu rumo à prostituição depois de ser abandonada pelo homem que a engravidou. O assédio sexual no ambiente de trabalho é outro tema abordado no romance. Matilde, operária do Brás é despedida da fábrica por se recusar a ir ao quarto do chefe. Ela sabe que sua despedida da fábrica está diretamente relacionada ao fato de ter consciência da sua condição de operária. Assim, diante desse episódio, revolta e felicidade são sentimentos que a envolve ao mesmo tempo. Urbana, proletária e feminista Em Pagu vida-obra de Augusto de Campos encontramos a apreciação de Kenneth sobre Parque Industrial. É ele que aponta o romance de Patrícia Galvão como o primeiro a abordar o tema da industrialização de São Paulo, o que o torna singular 208 Mulheres e a Literatura Brasileira em relação aos romances sociais dos anos 30, devido a sua perspectiva urbana, proletária e feminista. Adriana Maria de Abreu Barbosa (2011) em seu texto Pagu: Antropogafia e pósfeminismo, ressalta que a força da análise de Kenneth é apontar e deter-se na perspectiva feminista da obra, característica singular ao texto de Pagu. Por outro lado, por Patrícia Galvão fazer parte da família intelectual de Oswald de Andrade, tem sido um gesto recorrente da crítica, buscar no texto de Pagu as influências oswaldianas. Ao discutir sobre isso, Barbosa (2011) faz questão de pontuar um movimento contrário, proposto pelo crítico Antonio Risério: mostrar a influência de Pagu sobre o pensamento oswaldiano como, por exemplo, a adoção de uma postura de extrema esquerda. No texto de Pagu podemos perceber uma forte consciência a respeito da luta de classes, dos mecanismos da exploração capitalista e da revolucionária ideologia do partido comunista. A explicação dada pela personagem Rosinha Lituana, militante do partido Comunista, a respeito desses mecanismos, exemplifica essa percepção: – O dono da fábrica rouba de cada operário o maior pedaço do dia de trabalho. É assim que enriquece às nossas custas! – Quem foi que te disse isso? – Você não enxerga? Não vê os automóveis dos que não trabalham e a nossa miséria? – Você quer que eu arrebente o automóvel dele? – Se você fizer isso sozinho, irá para a cadeia, e o patrão continuará passeando noutro automóvel. Mas, felizmente, existe um partido dos trabalhadores, que é quem dirige a luta para fazer a revolução social. – Os tenentes? – Não! Os tenentes são fascistas. – Então o quê? 209 Mulheres e a Literatura Brasileira – O Partido Comunista... (GALVÃO, 1994, p. 21) No entanto, acreditar como Barbosa (2011), que todas as influências oswaldianas modernistas e antropofágicas vão ganhar uma manifestação própria, somadas à existência de mulher proletária e revolucionária, parece bastante coerente quando observamos o mundo ficcional de Parque Industrial. Para ela, a presença feminina na escrita de Pagu nos permite rever e reler o cenário brasileiro da década de 30 sob uma perspectiva feminino-feminista. O cenário industrial do Brás na obra é descrito por um olhar feminista, operário e marxista que permite no texto a presença potencializada da erotização do texto. A linguagem do romance está afastada de toda eloquência romântica. "O tema sexo é tratado com extrema franqueza, beirando o escracho." (ABREU, 2011, p. 52) Assim, não só a exploração, mas a liberdade, a sensualidade, a libido e o sexo são palavras que ornamentam o cotidiano das mulheres na narrativa do Brás. Na obra, a melhor representação da mulher livre é a personagem Otávia que escolhera se comprometer com a luta de classe e ia se entregar ao “macho” que sua natureza elegera. Não posso ir, Pepe. Você parece um burguês satisfeito. A sua falta de compreensão trai a nossa classe. Eu é que não posso me desviar da luta para brincar no Carnaval. (GALVÃO, 1994, p. 42) – O padre Meireles nunca me casará! Serei do homem que o meu corpo reclamar. Sem a tapeação da Igreja e do juiz... [...] Otávia desaparece na porta escura. Rosinha Lituana, lá dentro, mimeografa manifestos. Otávia começa a dobrar. (GALVÃO, 1994, p. 43) 210 Mulheres e a Literatura Brasileira Mais tarde, Otávia se relaciona com o “macho” que sua natureza elegera, mas, pela sua fidelidade partidária, é capaz de denunciá-lo e abandoná-lo por ter traído o partido: “– Todos os camaradas sabem que ele é o meu companheiro. Mas se é um traidor, eu o deixarei. E proponho a sua expulsão do nosso meio”. (GALVÃO, 1994, p. 97) Rosiska Darcy de Oliveira (1993), afirma que “Dos ‘ismos’ do nosso tempo, o feminismo é, talvez, o mais utópico, o mais perturbador, o mais alegre e o mais triste dos projetos de futuro.” (OLIVIEIRA, 1999, p. 53). Pagu parece conscientizar-se da utopia feminista e vislumbrar o movimento de mulheres dos anos 80, pois, com a representação que nos oferece, do cenário do Brás, nos faz perceber que a inclusão de mulheres no mundo fabril abriu às mulheres possibilidades existenciais até então bloqueadas, radicalizando a interrogação sobre a relação entre os sexos, mas não dando conta da busca da identidade feminina. Segundo Rosika Darcy de Oliveira (1999): A entrada maciça de mulheres instruídas no mercado de trabalho e a desvalorização da vida no lar contribuirão fortemente para apagar a fronteira entre o privado e o público, entre o feminino e o masculino, e para quebrar a antiga identidade feminina, centrada na ideia da mulher que se realiza nos afazeres e saberes da casa. (OLIVEIRA, 1993, p, 46) Barbosa (2011) direciona à Pagu o título de Pós-feminista relacionando seu posicionamento ao projeto da diferença, sobre o qual Rosiska Darcy de Oliveira (1993) reflete. Segundo Oliveira (1993) o projeto da diferença é pós-feminista, não porque nega o projeto da igualdade, mas porque corrige suas distorções, faz a crítica enquanto experiência incompleta que demanda ser radicalizada. Nesse sentido, Pagu é Pós211 Mulheres e a Literatura Brasileira feminista por criticar as distorções do movimento feminista que seriam discutidas anos depois. A ordem da sociedade dada às mulheres “seja homem e seja mulher!” fez com que elas passassem da fronteira do mundo dos homens e se conscientizassem a respeito do tropeço da igualdade, pois a igualdade compreendida como integração unilateral no mundo dos homens, não é liberdade. Considerações finais: sobre radicalidade Nesse artigo, analisamos a obra Parque Industrial como uma ruptura que contribui com a descontinuidade histórica, a saber, o modelo do romance da década de 30. Além disso, buscamos refletir a respeito dos mecanismos de poder e de dominação presentes na fábrica. Não pretendíamos com esse estudo apresentar verdades a respeito da obra literária discutida, mas contribuir para que ela obtenha a visibilidade que merece. A partir das temáticas referentes ao universo feminino, presentes na obra, apontamos caminhos de reflexões do mundo do trabalho e das demandas identitárias da mulher. Assim, a radicalidade presente tanto no estilo quanto nas temáticas de Parque Industrial é um convite para outros estudos que tenham como objetivo mostrar um desenho diferente da história geral da nossa literatura. Referências BARBOSA, Adriana Maria de Abreu. Pagu: Antropogafia e pós-feminismo. Ficções do feminino. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2011. 212 Mulheres e a Literatura Brasileira CAMPOS, Augusto de. Pagu: vida e obra. Seleção de textos, notas e roteiro biográfico — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2014. DELEUZE, Gilles. Post scriptum à sociedade do controle. In: Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226. DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In: A escritura e a diferença. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 227-249. FOUCAULT, Michel. Aula de 7 de janeiro de 1976. In: Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.3-26. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. In: Nietzsche, Freud e Marx Theatrum Philosoficum, 1975. Trad. Jorge Lima Barreto. Publicações Anagrama. FOUCAULT, Michel. Introdução. In: A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. – 5. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997 GALVÃO, Patrícia. Parque Industrial. São Paulo: Editora Alternativa, 1983. JOVINO, Lúcia Helena da Silva. Pagú antropófaga: literatura e história em deslocamento. In: Caderno de resumos & Anais do 6º. Seminário Brasileiro de História da Historiografia – O girolinguístico e a historiografia: balanço e perspectivas. Marcelo de Mello Rangel; Mateus Henrique Faria Pereira; Valdei Lopes de Araujo (orgs). Ouro Preto: EdUFOP, 2012. OLIVEIRA. Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: O feminino emergente. São Paulo. Editora brasiliense, 1999. 213 Mulheres e a Literatura Brasileira Mulher e Luta Operária em Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir Alinnie Oliveira Andrade Santos1 Marlí Tereza Furtado2 Introdução O escritor paraense Dalcídio Jurandir (1909-1979) escreveu os dez romances que compõem o chamado Ciclo do Extremo Norte – Chove nos Campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três Casas e um Rio (1958), Belém do Grão Pará (1960), Passagem dos Inocentes (1963), Primeira Manhã (1967), Ponte do Galo (1971), Os Habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978), os quais tematizam sobre a vida e o cotidiano na Amazônia paraense. No entanto, sua trajetória literária não se limitou a esse conjunto de obras. Dalcídio escreveu textos para diversos jornais e revistas, tanto no Pará, como também no Rio de Janeiro, dentre os quais podemos destacar: O Imparcial, O Estado do Pará e Crítica; revista Escola, Novidade, Terra Imatura e A Semana, O Radical, Diretrizes, Diário de Notícias, Voz operária, Correio da Manhã, Tribuna Popular, O Jornal, Imprensa Popular, revista Literatura, revista O Cruzeiro, A Classe Operária, Para Todos, Problemas e Vamos Ler. Apesar de possuir uma vasta produção como romancista, Dalcídio Jurandir é um escritor desconhecido do grande 1 Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará. Bolsista CAPES. Email: alinnie.oliveira@gmail.com. 2 Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora ASSOCIADO III da Universidade Federal do Pará. Email: marlitf@ufpa.br. 214 Mulheres e a Literatura Brasileira público. Mesmo assim, é inegável o valor de suas obras, bem como sua importância para a Literatura que representa a Amazônia. Em trabalho anterior, afirmamos que o escritor paraense é um divisor de águas nesse sistema literário, pois rompe com a tradição literária dessa região, em que os personagens eram marcados “pelo embate com uma Natureza grandiosa, mítica, na maioria das vezes invencível”, pois nas obras dalcidianas “os personagens eram, em grande parte, pobres e decaídos, produzidos e cerceados pela própria sociedade burguesa em que se inserem (...) corroídos, num ambiente também corroído” (FURTADO, 2010). Dessa forma, o escritor produziu uma literatura empenhada nas questões sociais, tal qual a produzida na primeira metade do século XX, em outros lugares do Brasil, e não voltada somente para o cotidiano da região amazônica. Tais narrativas não são independentes entre si, mas, conforme assinala Benedito Nunes, integram num único ciclo romanesco, quer pelos personagens, quer pelas situações que os entrelaçam e pela linguagem que os constitui, num percurso de Cachoeira na mesma ilha [do Marajó] – cidade de sua infância e de sua juventude – a Belém, onde o autor viveu antes de transferirse para o Rio de Janeiro. (NUNES, 2009, p. 309). Willie Bolle, por sua vez, considera o Ciclo do Extremo Norte como uma enciclopédia da Amazônia, ambientada tanto no contexto rural, como o urbano, mas com uma forte marca dos hábitos e costumes da periferia: O cenário da ação dos romances do Ciclo é a região do delta do rio Amazonas. Os três primeiros (Chove nos Campos de Cachoeira, Marajó, Três Casas e um rio), passam-lhe na ilha do Marajó, nas vilas de Cachoeira e Ponta de Pedras e em 215 Mulheres e a Literatura Brasileira seu entorno. O quarto romance (Belém do Grão-Pará) localiza-se na capital Belém, nos bairros centrais. Os cinco romances seguintes (Passagem dos Inocentes, Primeira Manhã, Ponte do Galo, Os habitantes e Chão dos Lobos) passam-se nos subúrbios de Belém. O trânsito de personagens, nesses livros, entre a grande cidade e a ilha do Marajó sublinha o caráter híbrido da cultura da periferia, onde se misturam as formas de vida urbana e ribeirinha. O local do último romance do Ciclo Ribanceira (1978) é a vila de Gurupá, situada num ponto estratégico de acesso ao interior da Amazônia. O tempo da ação dos romances é a década de 1920 a 1930, que foi uma época de crise. A região amazônica sofreu, então, de forma traumática o fim do boom da borracha (1912), entrando numa longa fase de declínio e de estagnação da economia. (BOLLE, 2012, p. 16) Como podemos perceber, Dalcídio dedicou grande parte de sua vida à escritura dos romances do Ciclo. No entanto, como já mencionamos o escritor era um fiel membro do Partido Comunista Brasileiro 3 e na década de 1950 aceitou a incumbência de escrever um romance aos moldes do Realismo 3 Fundado em março de 1922 por, na sua maioria, operários ativistas do movimento sindical, o PCB objetivava ser a organização política do proletariado. Há de se salientar que desde a sua origem até o inicio dos anos 1960, o partido chamava-se Partido Comunista do Brasil (PCB). Como em 1962, um novo partido político foi criado com a designação anterior do PCB, optamos neste trabalho, por fazer uso do seu atual nome, Partido Comunista Brasileiro. (SEGATTO, José Antônio. Breve História do PCB. São Paulo: LECH, 1981). 216 Mulheres e a Literatura Brasileira Socialista4. Linha do Parque (1959), então, foi o único romance proletário escrito pelo autor paraense. Linha do Parque: O Romance Proletário de Dalcídio Jurandir Para a construção de Linha do Parque, o romancista paraense viajou até a cidade de Rio Grande (RS), no início da década de 1950, para a realização de pesquisas sobre a atuação do movimento operário no início do século XX na cidade gaúcha. O romance proletário 5 de Dalcídio Jurandir, no entanto, curiosamente, não agradou os dirigentes do Partido, os quais rejeitaram editar a obra que haviam encomendado. A obra 4 O Realismo Socialista foi a estética representou o estilo artístico oficial da URSS no período de 1930 a 1960, aproximadamente. Na prática foi uma política de Estado para a arte em todos os campos de aplicação, incluindo todas as manifestações artísticas e culturais soviéticas, que se estendeu também a outros países por meio dos seus partidos comunistas. (Cf. ANDRADE, Homero Freitas de. O realismo socialista e suas (in)definições. In: Literatura e Sociedade. N. 14. São Paulo: EDUSP, 2010. Disponível em:http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.fflch.usp.br/files/Literatur a%20e%20Sociedade%2013%20vers%C3%A3o%20final.pdf Acesso em 21 de Maio de 2014.) 5 É importante ressaltar que a estética do Realismo Socialista se difundiu no Brasil por volta do ano de 1945, passando a vigorar oficialmente em 1948. Obras como: a trilogia Os Subterrâneos da Liberdade (1954), de Jorge Amado, A Hora Próxima (1955) e Sol do Meio Dia (1960), de Alina Paim são exemplos de outros romances proletários brasileiros que trouxeram para suas narrativas um herói que, obstinadamente, aderia ao comunismo ou lutava por melhores condições de trabalho nas fábricas e, incentivava a outros a agir da mesma forma. 217 Mulheres e a Literatura Brasileira somente foi publicada alguns anos mais tarde, no final da década de 1950, por empreendimento do próprio escritor: Mesmo os romances de encomenda tropeçaram na censura partidária e custaram a ser editados. Alina Paim e Dalcídio Jurandir tiveram que mudar os seus, várias vezes, por “inconveniências”. [...] Linha do Parque adormeceu anos nas gavetas dos dirigentes e permaneceu inédito até 1959, o que permitiu a Dalcídio elaborar a versão final sem os rigores do início da década (MORAES, 1994, p. 162). É no mínimo curiosa essa recusa do PCB em publicar um livro que ele próprio havia encomendado. É possível que os dirigentes não tenham de fato apreciado o que leram nas páginas da narrativa de Dalcídio, considerando-as inconciliáveis com a estética do Realismo Socialista. Esse romance não apresenta apenas o cotidiano de trabalho de seus personagens, mas também evidencia os seus dramas pessoais, como problemas familiares, amores não correspondidos, doenças e até mesmo o conflito psicológico de alguns que pensaram em desistir de participar do movimento operário. Porém, muito mais do que um elogio ao governo socialista – que era, grosso modo, o que pretendia o estilo artístico soviético –, e de apresentar os operários como heróis idealizados, Dalcídio, nesses escritos, adapta o Realismo Socialista à realidade brasileira, denunciando as mazelas sociais e as condições precárias de trabalho e de vida desses trabalhadores, mostrando todo o sofrimento pelo qual eles passavam para poder sobreviver, sem dar um “final feliz” para seus personagens. Nessa obra, o autor paraense mostra uma realidade triste, cruel e sofrida, vivida pelo operariado gaúcho, evidenciando a pobreza desses homens e mulheres. O escritor não deu aspectos folhetinescos aos seus personagens, tampouco 218 Mulheres e a Literatura Brasileira idealizou os operários, nem engrandeceu em todo o momento as suas virtudes, como era de se esperar em um romance proletário baseado na estética do Realismo Socialista. Dessa forma, por não encontrar na obra de Dalcídio um texto que seguisse à risca os postulados do estilo artístico soviético, o Partido não aceitou publicá-lo. Em 1959, então, Linha do Parque finalmente veio a público por uma editora comunista. Nesse período, os dirigentes do PCB não adotavam mais uma postura sectária em função do seu descontentamento com as ideias stalinistas. Além disso, o Partido havia passado por uma reorganização e agora estava mais aberto ao diálogo com os seus membros, o que fez com que a obra de Dalcídio fosse publicada, inclusive sendo traduzida e editada também na União Soviética, no ano de 1961. Essa obra, obviamente, não faz parte do Ciclo do Extremo Norte e destoa do restante de sua produção literária, primeiramente por não ser ambientada na capital paraense ou na Ilha do Marajó – espaços recorrentes nos seus demais livros – como também pelo fato do escritor abrir mão, em seu romance proletário, do seu estilo, da sua técnica narrativa e da densidade que atravessa os outros dez romances de sua autoria. Dessa forma, é como se o autor de Linha do Parque fosse outro escritor que não Dalcídio Jurandir, como foi percebido por Benedito Nunes: Linha do Parque, está fora do ciclo, é uma outra escrita. Dalcídio não podia afinar com o realismo socialista, prescrito pelo Partido, sem trair seu sonho da juventude. E para não traí-lo ou trair-se fez-se outro escrevendo Linha do Parque. Sem pseudônimo. Outrou-se, como diria Fernando Pessoa, na criação de uma escrita romanesca diferente (...). O autor é aí uma outra personalidade literária, diferente. Um heterônimo. (NUNES, 2009, p. 324). 219 Mulheres e a Literatura Brasileira Sendo assim, esse romance não só pela temática, como também pela forma em que foi escrito, diferencia-se da face mais conhecida do romancista paraense. Dalcídio pretendeu conciliar o sonho de produção do seu projeto literário com a fidelidade ao que lhe era ordenado pelos dirigentes comunistas. Essa conciliação somente foi possível com a escritura de um romance deslocado de suas demais obras. A Luta Operária rio-grandense nas páginas de um romance: o trabalho das mulheres O romance Linha do Parque começa com a chegada do anarquista Iglezias ao porto de Rio Grande, a fim de divulgar o anarquismo junto aos operários. Anos mais tarde, os operários aderem ao Comunismo de forma mais organizada e sistemática. Sendo assim, as personagens femininas do romance podem ser divididas em duas gerações: a primeira, anarquista e a segunda, comunista. Logo após a descrição da chegada de Iglezias e de seu contato com a União Operária, as mulheres são mencionadas no romance. Julieta e Madalena, tecelãs da União Fabril, iriam fazer uma visita à sede da União, pois estavam interessadas em conhecer mais sobre o funcionamento da associação, como também de relatar aos companheiros as péssimas condições de trabalho em que se encontravam. Em todos os momentos em que aparecem as mulheres da primeira geração, elas estão lutando contra algo que as prejudica. O primeiro enfrentamento dessas personagens é contra o preconceito dos próprios operários membros da União: Depois da sessão, alguém pediu que esperassem a visita de duas operárias da União Fabril. Tinham ido primeiro à ladaínha e passariam, depois pela sede. 220 Mulheres e a Literatura Brasileira O espanhol mordeu os lábios, ergueu-se para assoar-se e bater o cachimbo na janela. Mark, o alemão, olhou para Iglezias, sorrindo, um padeiro discordou da espera. Estava com muito sono. Precisava acordar cedo para fazer a massa. E interrogou: - Mas mulher? Onde já se viu mulher nisto? (JURANDIR, 1959, p.44-45). Os homens não consideravam as operárias capazes de lidar com os ideais e assuntos recorrentes em uma associação de trabalhadores, mas mesmo assim, permitem que o grupo feminino participe de uma reunião. As operárias tentam acompanhar a discussão, mas não conseguem compreender como o anarquismo poderia ajudá-las a obter uma situação mais confortável em suas atividades nas fábricas. Madalena queria soluções rápidas e resultados imediatos para os problemas das mulheres trabalhadoras da fábrica de tecelagem. Essa era a sua única motivação para continuar frequentando a União Operária. Por meio dela e de Julieta, o narrador nos apresenta as precárias condições de trabalho, como também o sofrimento das tecelãs durante as longas horas que passavam na fábrica: Madalena (...) quando ia à União era com o fim de reclamar um pano para a mesa da secretaria feita por Mark e contar o que se passava na fábrica. – Contado parece história. Mas ninguém olha para aquilo. Um dia eu chamo minhas colegas e faço um entrevero. (...). A fábrica, dizia Julieta, tinha uma máquina do diabo. O fogo da caldeira esquentava as paredes de tal modo que aquecia a garrafa de café. As jovens chinas que chegavam frescas e orvalhadas da campanha, logo amarelavam na fiação, pés descalços na umidade, as pernas inchando. Seus rostos se enchiam de nódoas, o peito doía. Era a caldeira 221 Mulheres e a Literatura Brasileira fumegando, o soalho cheio d’água e a boca da fornalha soprando sobre as fiandeiras. (JURANDIR, 1959, p.58). Mesmo sem terem o conhecimento teórico sobre o anarquismo que o espanhol Iglezias possuía, nem se envolverem nas discussões conduzidas pelos homens na União Operária, o primeiro motim narrado na obra é realizado na União Fabril, local em que elas trabalhavam, liderado e executado exclusivamente por mulheres: – Pois é um motim, disse Julieta, baixo, por trás da oradora, catucando-a. – É um motim, repetiu alto Madalena. As outras mulheres olhavam para Madalena com estupefação. Outras seguiam-lhe as palavras, enchendo-se de um ânimo, de uma indignação e de uma energia como nunca haviam experimentado. Algumas estavam curiosas por perguntar entre si o que significava motim. E Julieta, de todas a mais tranquila, silenciosa e ríspida naquela determinação mantinha-se atrás de Madalena, tocando com o cotovelo nas banhas da companheira para que continuasse a falar. Com um lenço ao nariz, assoando-se, o gerente gaguejava uma ordem para os fiscais, tentando fazer calar a tecelã e evacuar o escritório. (JURANDIR, 1959, p. 62). Como podemos perceber, Julieta é a mentora da paralização, logo é quem tem a ideia de realizar um motim para proteger a amiga. No entanto quem executa o protesto e se impõe diante do fiscal é Madalena. Apesar de não saber como de fato funciona uma greve, ou quais são os ideais e teorias anarquistas, as duas tecelãs decidem iniciar esse motim, apenas para livrar uma amiga, Estela, da suspensão. Depois dessa manifestação, as operárias exigem que os membros anarquistas da União Operária, como Iglezias, 222 Mulheres e a Literatura Brasileira Pizarro e Luís Pinheiro, lhes informem como devem proceder para executar outras greves, mas ficam impacientes com as discussões que eles promovem e, então, decidem agir por conta própria: Uma tarde, Julieta, ao lado de Madalena, levantou-se da cadeira que lhe deram num casebre, convencida de que se houvesse algum movimento na fábrica, seria sem a iniciativa dos espanhóis. Peres tinha um olhar suspeito. Pizarro trovejava. Iglezias queria surgir à porta da fábrica, com a carroça do Pinheiro cheio de boletins em que convidava as tecelãs a derrubar o Estado a dinamite. Luís Pinheiro, abanando a cabeça, punha a sua disposição o “seu pessoal”, isto é, mula, a carroça e a força imensa (JURANDIR, 1959, p.69). Ainda outra manifestação é liderada por Julieta e Madalena e executada por grande parte das tecelãs da União Fabril. Diferente da primeira, feita por impulso, essa greve é planejada durante muitos meses, tendo um alcance muito maior, pois até mesmo a polícia é acionada para reprimi-las, mas sem sucesso. Durante a descrição desse ato, o narrador exalta a atitude das tecelãs, sobretudo de Julieta, destacando-a como uma verdadeira líder do movimento operário: Quando saíram em passeata, rumo à União, de roupa velha e escura, os rostos velhos e encardidos, com um soturno bater de tamancos, num alarido, rompendo o cerco dos soldados que não se atreveram a atacá-las, parecia que iam incendiar a cidade. Ante os soldados indecisos, escoava-se a Fabril. E olhando naquelas mulheres uma revolta informe que marcava para sempre a história da cidade, Iglezias, já perto, ao lado de Luís Pinheiro, sorria para o olhar severo de Julieta, que avançava entre um grupo de operárias. Pinheiro, então, tirou o chapéu, saudando-as. Dois soldados olharam 223 Mulheres e a Literatura Brasileira para ele e o carreteiro mirou-os, da cabeça aos pés, de braços cruzados, cuspiu, logo fazendo adeus a Estela, levando Iglezias pelo braço, indagando alto: – Não é a greve? “É a greve”, era o que o aceso olhar de Iglezias lhe respondia. (JURANDIR, 1959, p.76-77). Podemos perceber que, mais uma vez, apenas as mulheres estão participando da manifestação grevista. Enquanto os homens se demoram em discutir se deviam seguir o anarquismo ou socialismo, que começava a despontar na época, além de planejar estratégias para divulgar suas ideias na cidade, são as mulheres que entram em ação para lutar por aumento de salário e redução das horas de trabalho. Em outras palavras, os homens anarquistas se mantêm no plano das ideias e da teorização, e as operárias são as que colocam em prática o pensamento debatido nas reuniões dos trabalhadores. A tecelã Madalena desaparece no decorrer da narrativa, pois para de frequentar a União Operária e desiste de liderar motins e greves na fábrica, como podemos ver na resposta que ela dá ao companheiro Euclides: “Estou ressabiada, Euclides; estou cada vez mais gorda e cheia de varizes, vou seguir a minha religião.” Aí insisti. Mas nada. D. Madalena abandonou mesmo o caminho revolucionário.” (JURANDIR, 1959, p. 198). Julieta, por sua vez, adoece gravemente de um câncer que a faz definhar. Mesmo assim, abrigava em sua casa alguns dos companheiros, tais como, Iglezias, Rivera e Estela, para que discutissem sobre o conflito entre anarquismo e socialismo. Sofrendo com muitas dores, a operária limitava-se a escutar o que os amigos falavam. Após a sua morte e até o final da narrativa, apesar da ascensão do comunismo, é sempre lembrada como um exemplo de luta e dedicação à causa 224 Mulheres e a Literatura Brasileira operária, modelo este que deveria ser seguido por todos os membros da União. Assim sendo, as mulheres da primeira geração são continuamente apontadas como modelos para os jovens operários, sobretudo para as trabalhadoras, que começavam a conhecer e seguir o comunismo. O grupo feminino é posto no mesmo patamar que o espanhol Iglezias, o primeiro a movimentar os trabalhadores a se manifestarem contra a opressão nas fábricas, pois essas mulheres foram extremamente importantes para a ampliação e execução do movimento operário na cidade. Como já mencionamos, algum tempo depois, o comunismo passa a ser aceito por grande parte dos membros da União Operária. Nesse momento, muitos outros personagens são apresentados na obra e dentre eles, outras mulheres aparecem para ajudar o movimento, tais como: Suzana, Ângela, Linda, Conceição e Lourdes. Essas mulheres, de modo geral, possuem maior consciência do que é o movimento operário. Diferente das mulheres da primeira geração, o novo grupo participa das discussões teóricas com os homens, emitindo a sua opinião e sendo ouvidas e respeitadas por eles. Não há mais preconceito, porque as primeiras operárias já tinham conseguido vencê-lo. Suzana, uma das tecelãs da União Fabril, mulher do operário Euclides, o qual se torna foragido ao atirar em um comandante da polícia, durante uma assembleia na sede da União Operária, é uma das personagens que também sofre com a perseguição policial a seu marido: – E seu marido? Onde está? O sangue fugia-lhe, mas ali no portão tinha que aguentar, ninguém lhe visse a cor do rosto, nem os batimentos do peito. 225 Mulheres e a Literatura Brasileira (...) Via a casa invadida, o quintal revirado, o taquaral mexido, como acontecera nas moradias vizinhas. Vergada, olhar em lágrimas, a mãe de Euclides só dizia, bem baixo: “pobre, pobre do meu filho!”, cuidando dos guris e Suzana a dizerlhe também baixo: “Cale a boca! Queimou tudo?” e deu um gemido de alívio quando os viu longe (...).(JURANDIR, 1959, p. 236). Além disso, os policiais faziam uso da violência para conseguir obter informações de Suzana. Ela, contudo, mesmo agredida, não revelou a localização de seu marido à polícia, mostrando com essa atitude, toda a sua coragem para proteger Euclides e o Partido. Suzana suporta o sofrimento não somente por amor ao marido, como também por acreditar que esse esforço valeria a pena quando os operários conseguissem atingir seus objetivos. Depois do conflito da Linha do Parque, em 1° de Maio de 1950, que deixa Euclides inválido, sua esposa continua demonstrando submissão a ele e à causa operária, já que o acompanha tanto no hospital, em Porto Alegre, como nas atividades do Partido nas quais ainda conseguia se envolver, como as manifestações e discursos na Praça Tamandaré, na cidade de Rio Grande. Ângela, Linda e Conceição, esposas de Jerônimo, Miguel e Esteves, respectivamente, participam do movimento operário de forma mais ativa do que as mulheres da geração anarquista, pois além de se envolverem nas manifestações dos trabalhadores, também possuem conhecimento sobre os ideais que defendem e, assim, participam das discussões que são promovidas na União Operária. Dessa forma, elas possuem maior consciência do que é e como funciona o movimento operário, assim como diferenciam as classes sociais e suas ideologias: 226 Mulheres e a Literatura Brasileira – Olha, Miguel, minha mãe, tu sabes, foi anarquista, vinda da Espanha. Saiu da Fabril por isso começou a cozinhar para fora, no que lucrou. Conheço isso do anarquismo. É um pira difícil de arrancar. E só o anarquismo? E os beatos do Partido, cheios de revolução como os frades com suas cordas, seus terços, barbaridade! Miguel não disse esta nem aquela, evitando a discussão. – Tu mesmo, Miguel, tu mesmo achas em mim que sou um pouco anarquista. Em muitos pensamentos sou. Agora que tu fazes muitas vezes cocegazinhas nos burgueses, lá isso fazes. (JURANDIR, 1959, p. 398). A narrativa nos indica que essas personagens trabalhavam em fábricas da cidade, e após o casamento deixaram de trabalhar para cuidar de suas casas e dos filhos, mas, apesar disso, ainda tentavam acompanhar e participar do desenvolvimento dos trabalhos na União Operária e no Partido Comunista, dando sempre a sua opinião sobre o andamento dessas atividades. Na maioria das cenas em que são retratadas, as comunistas aparecem executando atividades domésticas, ou cuidando dos filhos e, simultaneamente, dedicam-se a discutir e refletir sobre o comunismo, prática que não era comum entre as operárias da primeira geração: A conversa se travou sobre este e aquele desânimo das companheiras. Conceição, por exemplo, achava em Linda certo pessimismo, desconfiava da luta. Só via defeitos nos companheiros, só via derrotas, o comunismo longe. Ora, para mudar tudo aquilo, havia de custar, sim. Não se arrancava uma coisa tão antiga, tão empedrada, com um simples arranco. Na Rússia, em 1917, quem havia de pensar? E agora na China, quem havia de crer? (...) 227 Mulheres e a Literatura Brasileira Estendendo umas roupas na corda que cruzava a sala, disse Alda, com toda a familiaridade: – Por mim, eu vou vivendo. Enquanto esta viver, vive o comunismo, ora esta. Enquanto vivo, confio. Em que a gente vai confiar mais? Eu e as minhas gurias são o comunismo já. (...). Também esta nossa luta não é apenas para esperar o comunismo, mas é a única maneira de se ter honra, companheiras, de se ter vergonha na cara. Por que o resto que anda por aí por cima, hum, barbaridade. (JURANDIR, 1959, p. 495). Essas mulheres tinham certo prestígio entre as demais companheiras e exerciam uma grande influência não só entre os comunistas, mas entre todos os trabalhadores da cidade, tanto que algumas pessoas se filiam ao Partido por se inspirar nelas, querendo seguir seu exemplo. Para essas personagens, as ideias comunistas já faziam parte do seu cotidiano, na mesma intensidade que as suas atividades domésticas. Consideravam normal o envolvimento de toda a família nos trabalhos da União Operária, do Partido Comunista e nas manifestações e greves das fábricas pela cidade, pois, na sua concepção, somente assim conseguiriam impor o comunismo como uma alternativa melhor do que as mazelas oriundas do capitalismo, obtendo com isso melhores condições de vida para elas, seus familiares e os demais companheiros operários. Lourdes, por sua vez, é um exemplo de como uma mulher solteira trabalhava para o Partido. Neta do anarquista Luís Pinheiro, entrou na União Operária por causa do avô e aprendeu com ele a participar das ações em prol da causa operária. Um dos primeiros momentos que aparece na obra é distribuindo boletins contrários à inauguração da Standard e da Shell, fábricas estrangeiras na cidade: 228 Mulheres e a Literatura Brasileira Cheia de boletins, Lourdes voltava a gritar, protegida por uma brigada de choque. Mas os tiras atacaram-na. (...). Os policiais queriam que Lourdes levasse para a delegacia os maços de boletins. A moça: não! (...). E irromperam protestos da massa que se ajuntou, enquanto a pouca distância se inaugurava, com o discurso do governador, o tanque da Standard. Os gritos cruzavam-se, abafavam o discurso e cerimônia: – Uma menina! Bater numa menina! Numa moça! E era também admiração e ternura em meio da raiva popular que aquela “menina” provocava. Muitos não sabiam se gritavam por tratar-se apenas de uma “menina” ou porque era também uma beleza. E da unha dos brutos foi a moça, pela mão de muitos, libertada e levada para a cidade. (JURANDIR, 1959, p.436-437). Nem mesmo a violência usada pela polícia é capaz de impedir Lourdes a continuar o trabalho para o qual foi incumbida. Ela usa a seu favor o fato de ser uma mulher ainda de pouca idade para comover os transeuntes e assim se desvencilhar dos policiais e ser posta em liberdade. Diferente das demais personagens femininas do romance, das quais não é mencionado o seu nível de escolaridade, nos é informado que Lourdes frequentou escola, já que o juiz que visita para resolver alguns problemas sobre o movimento grevista, é seu ex-professor. É-nos dito também que, diferente das demais operárias, a neta do anarquista Luís Pinheiro tem conhecimentos sobre História, Arte e Literatura e participa de discussões a respeito dessas temáticas, além de ter ampla informação acerca do movimento revolucionário ao redor do mundo. Por estar envolvida com os comunistas a jovem projeta nesses assuntos algumas das questões da causa operária: 229 Mulheres e a Literatura Brasileira – Em certo sentido, acertaram, que diabo, dizia Lourdes, a ajeitar o espartilho da Julieta, é ou não é uma peça política? O amor e as ideias novas não são perseguidos pela tirania? Quem persegue Romeu e Julieta? Um velho poder feudal, contra a consciência e o amor, um velho poder político... (JURANDIR, 1959, p. 507). De forma geral, por meio das mulheres comunistas da obra, são revelados em tom de denúncia as estruturas precárias das fábricas e as péssimas condições de trabalho que as mulheres têm que enfrentar, as quais iam além da sua força física e comprometiam a sua saúde, como, por exemplo, nas fábricas de conserva e no frigorífico Swift: Quando os fritadores traziam o peixe, conduzido à mesa e depois enlatado, as latas eram lavadas a vapor, que fazia uma cerração sobre as mulheres. Estas suavam, com os pés gelando no chão alagado. E que escuro o trabalho de ariar com pó de tijolo as latas de peixe para que aparecessem brilhantes! E quando Manuela trabalhava grávida? Moça, menina, mulher grávida, todas trabalhavam no mesmo horário duro, na mesma dura condição. (...). Porque o patrão não dava ferramenta, Manuela trazia a sua machadinha e faca, trabalhando descalças, a meia de luva de aço protegendo-lhe metade da mão esquerda. Depois de escalado o peixe, as mulheres tinham de carregá-lo na cabeça, em sacos de trinta quilos para a mesa da salga. (JURANDIR, 1959, p. 441). Além desses problemas, por meio dos diálogos das personagens femininas, é denunciada também a falta de direitos trabalhistas nas fábricas, como, por exemplo, para amparar as mulheres grávidas, as quais não eram aceitas para trabalhar nesses estabelecimentos como uma funcionária regular: 230 Mulheres e a Literatura Brasileira Chegava uma mulher grávida, a Corina, que não queria ir à maloca do vizinho por causa do cachorro brabo. (...). Mas a mulher soltou a queixa mais amarga: o marido perdera de uma vez a chacrinha da campanha. – E eu com esta barriga... Senão continuava na conserva. Mas com a barriga esta não posso escorregar? Cair? Na Fabril, fui na inspeção. Não deixaram. O regulamento da casa não paga barriga. Na Swift, só diarista. Mas tu não estás vendo como já estou? Pra quando? Perguntou Alda. Corina levantou um dedo: faltava um mês. (JURANDIR, 1959, p. 437). Em virtude desses problemas que as operárias suportavam nas fábricas, participam ativamente das manifestações da greve geral que se espalhou por todos os setores, envolvendo os trabalhadores das fábricas e do porto da cidade, no final da década de 1940, retratada na sexta parte do romance. As greves nesse momento da obra não são mais resultado de um impulso ou por solidariedade a alguma operária que havia sido prejudicada por um fiscal, mas são frutos da elaboração de um programa de atuação feito por todos os membros da União Operária. Isso aponta para o desenvolvimento que a causa dos trabalhadores já havia alcançado, pois os líderes operários conseguiam se articular e agir em uma frente única, composta por representantes de todos os setores de trabalho da cidade. As mulheres estavam cientes desse planejamento grevista e se faziam presentes em todas as manifestações não somente dentro das fábricas, como também pelas ruas da cidade: 231 Mulheres e a Literatura Brasileira Já os cartazes de Adamastor começavam a florescer por sobre as cabeças. Alda (...) viu bem a mão do pintor, conhecia bem aqueles traços, aquelas tintas, e um súbito orgulho dominou-a, ao mesmo tempo despeitada com a surpresa do marido. Manuela, de saia encarnada, a blusa branca e um pano azul na cabeça, o cabelo mal arrumado, já trazia na carreta o cartaz das reinvindicações da fábrica de conserva. Foi quando viu Elisa, a tecelã que mal podia andar. Tinha sido despedida da Fabril, sem que tomasse em consideração os anos de trabalho. (...). Anônima, no meio da marcha, a mulher chorava. A carreta parou e desceram as filhas de Alda, para que a tecelã subisse, enxugando os olhos no lenço que Lourdes, próxima à carreta e ajuntando as filhas de Alda, lhe havia dado. (JURANDIR, 1959, p. 480). Assim, as mulheres da segunda geração já estão completamente envolvidas nas atividades da União Operária e posteriormente do Partido Comunista. Mesmo tendo que se afastar das fábricas, devido ao casamento ou à gravidez, ainda tentam participar de alguma maneira dos trabalhos e discussões com os companheiros comunistas. Essa participação consistia em assessorar seus maridos, dando-lhes todo o apoio em casa, para que pudessem se dedicar mais livremente às atividades do movimento operário. A presença das mulheres operárias é tão marcante no decorrer da obra que a última cena do livro retrata Saldanha, em um tom saudosista, relembrando o passado, condensando na figura de Lourdes, a imagem das antigas companheiras da União: Marcela, Julieta, Estela e, principalmente Joana: Saldanha, apoiado na bengala, a cabeça baixa, quase cego com o seu glaucoma, escutava. (...). A Tamandaré! (...). Aqui tombou Joana aqui roda a cadeira de Euclides agora um carro de combate ah Iglezias da Escuna “Elisa” ah Luiz Pinheiro do cais irmãos meus. Paz! Paz! Oiço da ruiva tecelã 232 Mulheres e a Literatura Brasileira envolta na bandeira no próprio sangue o sangue alto (...). Sinto mais do que vejo, que não me doa este glaucoma agora aí está a Tamandaré erguendo os punhos diante do coreto as bandeiras e dá uma luz nos rostos e vejo a Lourdes um lírio alto deu ao Euclides e lhe beija as mãos e tão séria ao pé do velho companheiro como se dissesse aqui estou por Marcela, Julieta, Estela, Joana... – Joana, Joana, Saldanha murmurou. (JURANDIR, 1959, p. 548-549). Dessa forma, na visão de Saldanha, as mulheres comunistas seguiam e representavam o legado de luta do proletariado por melhores condições de trabalho que fora deixado por suas antigas companheiras. Assim como as anarquistas, as operárias da segunda geração também se envolviam nesses trabalhos. Dessa forma, durante toda a extensão do romance, vemos o operariado feminino comprometido em participar de manifestações trabalhistas na cidade de Rio Grande. As mulheres das duas gerações de trabalhadoras têm em comum a dedicação e o comprometimento com a causa operária. Ambas participavam ativamente das manifestações grevistas realizadas pela cidade, acreditando que isso era necessário para melhorar a situação de trabalho nas fábricas e obter melhores condições de vida. No decorrer do romance, podemos vê-las, independente da ideologia que defendiam, se envolvendo nas reuniões da União Operária, comemorando as vitórias desse movimento e se preocupando com a vida e a família dos demais companheiros. No entanto, também possuem algumas diferenças. As da primeira geração agem nas greves e motins instintivamente, sem de fato possuir consciência política e ideológica anarquista. Essas operárias não se dizem anarquistas, ou seja, não sentem que as suas atividades estão filiadas a esse 233 Mulheres e a Literatura Brasileira movimento. Já as da segunda geração têm maior consciência ideológica que as primeiras trabalhadoras. Assim, atuam no movimento proletário, por ter conhecimento acerca das teorias que embasam suas ideias e não somente para conseguir melhorias para os operários nas fábricas. Logo, abertamente se declaram comunistas. As mulheres da segunda geração identificam-se com o comunismo, pois conhecem exatamente sobre o que trata essa ideologia. Além disso, incentivam outras pessoas, principalmente outras companheiras, não só a participar do movimento operário, como também a aderir às ideias socialistas. Essas personagens, tanto da geração anarquista, quanto da comunista, demonstram o interesse do escritor Dalcídio Jurandir de, ao retratar a história do movimento operário na primeira metade do século XX na cidade de Rio Grande, evidenciar a presença de mulheres nesse movimento, apresentando-as como participantes ativas nessa luta de classes, em pé de igualdade e importância com os homens. Um dos momentos finais do romance é a passeata do dia 1º de Maio de 1950, conhecido como o Conflito da Linha do Parque6, que culmina em uma perseguição policial. Ganha 6 Esse confronto com a polícia de fato ocorreu e foi registrado nos jornais da época. Luiz Henrique Torres (2009) menciona que, assim como aconteceu no romance de Dalcídio Jurandir, os trabalhadores rio-grandenses estavam comemorando esse dia na Linha do Parque, que era um local arborizado próximo aos trilhos do bonde, quando decidiram fazer uma passeata rumo a União Operária, que estava fechada pela polícia em função da suspeita de ser uma organização comunista. Próximo ao cemitério católico, os manifestantes entraram em confronto com a polícia, que resultou, segundo o historiador, em quatro mortos e diversos feridos. Entre os feridos, estava o vereador Antonio Recchia, que ficou paraplégico. Possivelmente o personagem Euclides, que também é gravemente 234 Mulheres e a Literatura Brasileira destaque a personagem Maria 7, uma jovem operária que foi brutalmente morta pelos policiais: No momento de sua morte, provocada por um tiro na cabeça, disparado por um dos policiais durante o confronto, a personagem é descrita novamente com grandiosidade e em cenas rápidas e cheias de imagens comoventes, as quais apresentam o maior tom dramático da obra: Maria gritava: “Paz! Paz!” com a bandeira em punho, os brigadianos a empurrar os trabalhadores de costas para o muro do campo de futebol e do cemitério. Maria: Paz! Gritava. (...). Envolta na bandeira que empunhava, Maria caiu de costas, o sangue alto. Um oficial brigadiano tentou arrancar-lhe o pano ensanguentado mas uns “braçais” acudiram (...). naquele berreiro de fuga e pânico, socorro e cólera o combate se apertava ao pé dos muros e mal se ouvia um “Viva à classe...” sufocado no tiroteio (...). Em meio das sombras e das últimas correrias e tiros ao acaso, Alice e Ângela acudiram a Maria, enquanto Euclides, pela mão de algumas mulheres e homens era arrastado, ferido ferido na obra foi inspirado nesse senhor. Em Linha do Parque, foram seis manifestantes que faleceram nesse embate. Os jornais da época noticiaram o fato, colocando a culpa do início do confronto nos manifestantes. O jornal Rio Grande do dia seguinte diz que os operários desacataram os policiais. (TORRES, Luiz Henrique . O Perigo Vermelho: Manifestações populares em Rio Grande (1952). Biblos (Rio Grande), v. 23, p. 261-278, 2009). 7 Maria foi inspirada na tecelã Angelina Gonçalves. Como afirma Carlos Peres (2006, p. 135), ela nasceu em Rio Grande em 7 de março de 1912 e foi admitida na Fábrica Rheingantz em 13 de agosto de 1943 e faleceu aos 37 anos causada por uma “fratura de base do crânio, com desorganização de substância nervosa, produzida por projétil de arma de fogo (bala)”, segundo o que está apresentado em sua certidão de óbito. 235 Mulheres e a Literatura Brasileira para um portão. Ângela curvou-se sobre Maria, recompôslhe o vestido no leito da bandeira ensopada e sentou no chão e tentou trazê-la ao colo no inútil esforço de impedir que perdesse tanto sangue. Maria arquejava e sua cabeça, com os seus ruivos cabelos em desalinho, deslizou no braço da companheira. E nesse tempo tão breve e com uma noite tão de repente caindo, Ângela deixou-a no chão coberta pela bandeira e correu já ensanguentada, a fim de acudir os vivos, cuidar dos filhos, das moças, das crianças, ver os feridos que podiam ainda ter salvação. (JURANDIR, 1959, p. 528-529). Nesse trecho, temos uma cena permeada de imagens contrastantes: a delicadeza de Maria, clamando por paz, contra a brutalidade dos brigadianos que empurravam os trabalhadores; os gritos de “viva à classe” dos manifestantes operários, que refletia a esperança que depositavam na causa dos trabalhadores, sendo abafados pelos tiros repressores da polícia; como também o vermelho do sangue da tecelã, manchando o verde e amarelo da bandeira nacional. É interessante destacar que tanto na greve geral, como no conflito da Linha do Parque – dois momentos importantes do romance, pois retratam o movimento operário em ação – Maria participa das manifestações, segurando bem alto a bandeira do País, dando a entender que está empenhada na luta operária, não só por si mesma, mas representando todos os trabalhadores brasileiros. Maria é uma personagem que almeja e luta por melhores condições de trabalho nas fábricas. Ela tem uma consciência partidária, pois reconhece o seu papel que lhes foi destinado para desenvolver na luta comunista. Assim, as personagens femininas desse romance, sobretudo a tecelã Maria, desempenham papel fundamental para que a narrativa pudesse atingir o público leitor, uma vez que pelo fato de serem mulheres, desempenhando atividades que eram 236 Mulheres e a Literatura Brasileira comumente realizadas somente por homens, lutando por melhores condições de trabalho, aliado ao enredo em que estavam envolvidas, poderiam fazer com que o leitor se sentisse comovido com suas histórias, sendo levado a simpatizar com elas e, consequentemente com os ideais que defendiam, e assim, pudessem aceitar e entender o que era o socialismo e acreditar que tal doutrina poderia trazer melhorias para a sociedade, caso fosse implantado no Brasil. Sendo assim, uma obra como o romance Linha do Parque não se configura somente como um texto artístico, mas como propaganda do movimento socialista, e as personagens femininas desse livro tornam-se peças fundamentais para o estabelecimento desse caráter panfletário. Considerações Finais Linha do Parque apresenta variados perfis femininos: a mulher casada, a viúva, a jovem estudante, a moça que trabalha fora de casa para poder ajudar no sustento da sua família, a mãe e dona de casa, a solteira e a idosa que mora sozinha e trabalha para se manter, e mostra como todos esses tipos podiam apoiar a causa operária e lutar em favor do comunismo. As mulheres do primeiro momento da obra, a geração anarquista, não conseguem se identificar completamente com a ideologia defendida pelos homens. Mesmo com o seu desconhecimento sobre o significado do anarquismo, essas trabalhadoras juntam-se à União Operária e são as primeiras a realizar um motim dentro de uma fábrica. Por sua vez, as mulheres da segunda geração, a comunista, possuem de fato consciência político-ideológica. Ou seja, participam do movimento operário, não apenas por instinto, buscando melhores salários e uma situação mais 237 Mulheres e a Literatura Brasileira confortável nas fábricas, – como faziam as mulheres da primeira geração – mas por compreenderem o que é o socialismo e como essa ideologia poderia ajudá-las e aos seus maridos a conseguir viver em uma sociedade mais justa e igualitária. As personagens de ambas as gerações foram construídas por Dalcídio Jurandir com o intuito de, ao narrar a história do movimento operário na primeira metade do século XX, dar destaque à presença de mulheres nesse movimento, apresentando-as como participantes ativas nessa luta de classes, em pé de igualdade e importância com os homens. Além disso, a descrição da atuação dessas personagens possibilitava ao autor atingir seus objetivos de apresentar aos leitores o cotidiano e as lutas do movimento operário. As personagens femininas são apresentadas na obra agindo dentro dos limites de possibilidade que uma mulher na primeira metade do século XX possuía para se envolver na luta do proletariado, pois nessa época as mulheres tinham uma posição social restrita em sua comunidade, que não lhe permitia agir de maneira mais ousada. Apesar disso, tanto as operárias, como as mães e donas de casa, esforçam-se para participar de todas as ações da União Operária e do Partido. Dalcídio Jurandir fez uso dessas personagens como ferramentas de divulgação das ideias e do movimento socialista. Desse modo, Julieta, Madalena, Suzana, Lourdes, Maria, dentre outras desempenham papel fundamental para que a narrativa pudesse atingir o público leitor, fazendo com que este pudesse aceitar e entender o comunismo e os possíveis benefícios que a doutrina poderia trazer para a sociedade brasileira. É interessante ressaltar a escolha feita pelo autor da narrativa: trazer as questões práticas da luta operária por meio da ação das mulheres e não dos homens. 238 Mulheres e a Literatura Brasileira Ler Linha do Parque no século XXI e verificar a descrição da luta, sobretudo do operariado feminino, é relembrar um período de forte orientação ideológica na literatura brasileira, como também observar como um autor se comportou diante da imposição do Realismo Socialista em sua arte, além de ter acesso a um retrato da luta operária no Brasil da primeira metade do século XX. Referências ANDRADE, Homero Freitas de. O realismo socialista e suas (in)definições. In: Literatura e Sociedade. N. 14. São Paulo: EDUSP, 2010. Disponível em: http://dtllc.fflch.usp.br/sites/dtllc.fflch.usp.br/files/Literat ura%20e%20Sociedade%2013%20vers%C3%A3o%20final.pdf Acesso em 21 de Maio de 2014. BOLLE, Wille. Uma Enciclopédia mágica da Amazônia? O Ciclo romanesco de Dalcídio Jurandir. In: LEÃO, Allison (org.). Amazônia: Literatura e cultura. Manaus: UEA edições, 2012. FURTADO, Marlí Tereza. Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir. Campinas: Mercado de Letras, 2010 JURANDIR, Dalcídio. Linha do Parque. Rio de Janeiro: Vitória, 1959. MORAES, Dênis de. O Imaginário Vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-1953). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. NUNES, Benedito. Conterrâneos. In: _______. A Clave do Poético. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PERES, Carlos Roberto Cardoso. Linha do Parque, de Dalcídio Jurandir: romance histórico, social e proletário (a gênese do movimento operário no Extremo Sul do Brasil). 161 fls. Dissertação (Mestrado em História da Literatura) Fundação 239 Mulheres e a Literatura Brasileira Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande do Sul, 2006. SEGATTO, José Antônio. Breve História do PCB. São Paulo: LECH, 1981 TORRES, Luiz Henrique. O Perigo Vermelho: Manifestações populares em Rio Grande (1952). Biblos (Rio Grande), v. 23, p. 261-278, 2009. 240 Mulheres e a Literatura Brasileira Personagens femininas de Rachel de Queiroz: exclusão ou inclusão na ordem patriarcal? Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Suzi Frankl Sperber1 Rachel de Queiroz foi precoce em pelo menos dois sentidos: O Quinze foi publicado em 1930, quando a autora tinha apenas 20 anos. E foi a primeira obra ficcional a tratar do tema da seca. Vidas Secas, de Graciliano Ramos, seria publicada em 1938. A fluidez da narrativa, a acuidade em reproduzir aspectos da seca de 1915 logo chamaram a atenção da crítica. O Quinze tem força histórica e trata com simpatia dos excluídos. Creio que não há outra menção, na literatura, a campos de concentração de retirantes. Como os demais romances de Rachel de Queiroz, O Quinze lê-se, apesar das misérias descritas, prazerosamente. Já começa com imagens fortes com as quais nos identificamos, ou que pelo menos nos introduzem diretamente no contexto da ação. Tem muitos diálogos, o que confere vivacidade à narrativa. Os elementos épicos são regidos pela referência ao momento histórico, ao drama da seca que expulsa da terra a praticamente todos, mas Doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo – USP e Livre-docência em Letras pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professora titular e professora colaboradora da Universidade Estadual de Campinas. Credenciada como docente e orientadora no Instituto de Estudos da Linguagem (Departamento de Teoria Literária) e no Instituto de Artes (Departamento de Artes Cênicas) - UNICAMP. Bolsista de produtividade do CNPq, nas seguintes linhas de pesquisa: oralidade e a função de dramaturgista. Coordenadora do GT Literatura e Sagrado. 1 241 Mulheres e a Literatura Brasileira que é especialmente cruel com os despossuídos. O papel do discurso direto nos romances de Rachel de Queiroz nos leva a pensar em Georg Lukács, que propõe que os romances apresentam dois métodos fundamentais de representação: narrar ou descrever. Rachel se coloca, pelo menos em O Quinze, em um lugar intermediário entre estes dois métodos de representação: ela descreve as cenas, fazendo as personagens narrar, exprimindo o que vivem. Misturam-se experiência e vivência. Este lugar intermediário se presta para mesclar aspectos históricos com os de vida, mais no sentido do aproveitamento da imagem criada por Graciliano Ramos, em entrevista concedida em 1948: Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. Rachel não escreve para brilhar como ouro falso. Escreve para entender melhor o seu tempo e espaço. Os seres humanos na sua ação. E especialmente a situação da mulher. Em todos os romances de Rachel de Queiroz a figura feminina tem destaque. Em O Quinze é sobretudo Conceição, entendida em sua relação com outras mulheres, como sua avó, 242 Mulheres e a Literatura Brasileira Dona Inácia, ou Mãe Nácia, Cordulina, Idalina, Chiquinha, Mocinha, a velha Eugênia. Mãe Nácia tem o papel duplo de avó e de mãe, o que é marcado por sua preocupação com Conceição, que espelha as ações de Dona Inácia, dentro de suas características particulares, visto que Conceição estudou e é professora. Sua opção profissional indicia que a personagem prefere coisas opostas ao meio em que a encontramos inicialmente, Logradouro, a velha fazenda da família, localizada perto de Quixadá (QUEIROZ, 1957, p. 7). Conceição gosta da cidade, de livros. É diferente, o que a avó qualifica como ‘ter umas idéias’: “[...] de fato, Conceição talvez tivesse umas idéias: escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da biblioteca da avó” (QUEIROZ, 1957, p. 7). Lembremos que Max Nordau escreveu o livro As mentiras convencionais da sociedade, em 1883, livro que atacava o irracionalismo, o egotismo e o niilismo, e Ernest Renan, a partir do livro Vida de Jesus (1835-6), escreveu diversos livros interpretando a história do Cristianismo sob a ótica do positivismo – e, considera-se, abrindo caminho para o espiritismo. Por outro lado, ela bem que gostaria de se casar e de ter filhos, como corresponde à mulher e porque sua referência é Mãe Nácia, típica dona de casa, mãe-de-família, protótipo da mulher do sistema patriarcal. Mãe Nácia tem sabedoria, paciência, obstinação, até, possui os livros citados em sua biblioteca, mas irá cumprir o seu papel no sistema patriarcal e familiar até o fim, sempre dócil, resignada, doméstica e domesticada. O que vemos, no romance, é um conflito, uma referência dupla, digamos, da casa e da família, por um lado, e da profissão e do desejo de conhecimento, por outro, conflito que não se resolverá. Conceição não é casada nem se casará. Mas tem instinto materno, que independe de uma maternidade pessoal. A própria personagem reconhecerá, 243 Mulheres e a Literatura Brasileira no fim do romance, nas palavras do narrador, esta sua característica: “E sentia no seu coração o vácuo da maternidade impreenchida...” (QUEIROZ, 1957, p. 120). Enquanto não se dá conta disto, Conceição cuida da avó, dos pobres, dos refugiados da seca, mas é incapaz de ser direta em relação a Vicente, que ela ama, em verdade. Ou pelo menos por quem sentira afeição e atração. O amor ou atração é modulado pelo reconhecimento d’ “a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida” (QUEIROZ, 1957, p. 63). No jogo de contrários, a incorporação dos valores patriarcais e burgueses por parte de Conceição chega à discriminação racial: “- Tolice, não senhora! Então Mãe Nácia acha uma tolice um moço branco andar se sujando com negras!” (QUEIROZ, 1957, p. 48) Como a reação decorre de ciúmes, Mãe Nácia relativiza o execrado pretume da cor da pele, mas para que não fiquem dúvidas ao leitor, Rachel de Queiroz, diversas páginas adiante, informa: Mergulhou os olhos no livro; as letras negras clamavam: ‘E a eterna escrava vive insulada no seu próprio ambiente, sentindo sempre que carece de qualquer coisa superior e nova...’ (QUEIROZ, 1957, p. 101) O maior problema tematizado não é a discriminação racial, mas a situação da mulher, tanto mais difícil quando não se adapta perfeitamente ao perfil previsto pela sociedade patriarcal. O impasse criado inclusive pelo contraponto entre sociedade religiosa, cristã, e um pensamento racional, talvez positivista, leva Conceição a duvidar do amor: “Essa história de amor, absoluto e incoerente, é muito difícil de achar... [...] o que vejo por aí, é um instinto de aproximação muito obscuro e tímido, a que a gente obedece conforme às conveniências...” 244 Mulheres e a Literatura Brasileira (QUEIROZ, 1957, p. 119). Fruto de movimentos internos contrários, Conceição não ousa dizer que existe uma discrepância entre o que vê e o que pensa. A narrativa comunica apenas o que ela sente. As personagens de um romance revelam um comportamento humano que o autor descreve na esperança de dar uma resposta significativa a uma situação social, política, psíquica, filosófica determinada, e tende, através deste recurso, a criar um equilíbrio entre o sujeito da ação e o meio em que vive. Mas este equilíbrio é dinâmico, corresponde a uma desestruturação constante, seguida de uma reestruturação de novas totalidades aptas a criar equilíbrios que possam satisfazer as novas exigências dos grupos sociais que os elaboram. Portanto, o jogo de equilíbrio e desequilíbrio poderia ser considerado o fenômeno de O Quinze. Mas o jogo de equilíbrios está além da aptidão da personagem Conceição. A contradição entre aspectos de si mesma, leva a personagem a não ser capaz de se adaptar ao seu meio, a sentir-se culpada (a pequena discussão com Mãe Nácia indicia isto), a ser incapaz de expor abertamente seu pensamento por medo de ser mal-entendida, ou até punida. Isto corresponde, pelo menos em parte, à teoria do duplo vínculo (double bind), postulada por Gregory Bateson e outros estudiosos da pragmática da comunicação humana, na década de 50. O duplo vínculo trata de relações e das consequências que advêm de relações básicas importantes repetidamente invalidadas por comunicações paradoxais. Descreve uma situação na qual o indivíduo é submetido a uma dupla injunção contraditória de maneira que, se ele obedecer a uma, ele automaticamente transgride a outra. Em brasileiro, poderíamos dizer “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come!” O celibato de Conceição parece uma autopunição, por não ter aderido aos valores da 245 Mulheres e a Literatura Brasileira sociedade patriarcal, representada por Mãe Nácia, Vicente e mesmo a fazenda Lavoura, símbolo do latifúndio. Em O Quinze o drama vivido é o desencontro, o vazio nas relações humanas, assimétricas, quer paternalistas, quer de aceitação ou de rejeição das normas da sociedade patriarcal e do sistema econômico. Como a rejeição a este mundo é difícil de ser enunciada, o mundo vai se apresentar injusto, mas de uma injustiça que parece provir estrita e diretamente do destino. Injusta será a seca cruel. A morte, ponto sem volta da tragédia, é adiada pela fuga sempre que possível, mas é irrevogável em alguns casos, quando acontece na ação visível. Como ela é esperada, por inevitável, e não pode ser comentada, é apresentada com, digamos, objetividade. Nós, leitores, não chegamos a ficar realmente tocados. Os conflitos íntimos diante das mortes, da crueldade da situação, se resolvem no exercício da caridade – e na incompletude da vida – especialmente a feminina. Em outros romances de Rachel de Queiroz as mulheres passam por conflitos, exprimem anseios diferentes, podem ser de classes sociais diferentes, mas em última instância a mulher não se realiza fora do encaixe na sociedade patriarcal, simplesmente porque não se apresenta outro espaço e porque mesmo que exista enunciação, pela via dos romances, há palavras que não conseguem ser ditas. Claro que Rachel não trata apenas da situação da mulher. A do homem, as leis do mundo, são tematizadas também, porque, enfim, o que é questionado é o estar no mundo. O próprio machismo é questionado, machismo que funda o patriarcalismo, no romance João Miguel, publicado em 1932, cuja personagem principal é a do título: Para mim, a qualidade de gente de sorte mais desgraçada que tem no mundo é mulher... 246 Mulheres e a Literatura Brasileira João Miguel rememorou a própria amargura, e discordou: — Olhe que a gente também sofre muito, seu Zé... E, as mais das vezes, por causa delas... — Qual o quê, seu João! — contestou o milagreiro, com calor, alteando a voz. – Tem lá termo de comparação! O mais que elas fazem com a gente é alguma má-criação ou, vá lá que seja, uma falsidade... Mas isso, o homem tem logo dez, pra consolar... É só o freguês ter algum vintém no bolso... Não diz que mulher é como pau de porteira: vai-se um, logo vem outro? — Lá isso... — Agora, a pobre de uma mulher, pra cada lado que se vire, só encontra desgraça... Se casa, vem logo a família e as necessidades. Não vê esta coitada que não tiro da mente? Juro que está assim só de passar precisão... E há de ter sido boa, séria, mas para quê? Pode haver sorte pior? Se se desmastreia, vai pra ponta da rua, fica logo mais rasa do que qualquer cachorro sem dono. E morre por aí de quanta doença ruim, se não dá com os ossos na cadeia feito a Filó... Agora, se fica moça porque não achou casamento – você sabe que o homem casa quando quer, mas a mulher só quando Deus é servido... – se não acha casamento e tem medo de se perder, é como essa moça do Coronel Nonato, tão sequinha, coitada, se acabando de rezar, sem ter tido nunca um gosto na vida... (QUEIROZ, 1957, p. 202) Cada personagem, ao questionar-se, repõe questões de ética e moral, de normas e justiça. João Miguel fala na necessidade de que os desvalidos tenham sua auto-estima fortalecida, porque isto permitiria a sua inserção útil, produtiva e feliz na sociedade. Como os valores ainda são outros, ele reage: – Então, se é assim, a senhora não venha me dizer que o homem é diferente dos bichos. Para poder viver direito, 247 Mulheres e a Literatura Brasileira carece ser tratado como quem trata cachorro. Se faz um malfeito – apanha, diabo, pra não tornar a fazer! (QUEIROZ, 1957, p. 215) Em outro romance, Caminho de Pedra, sob a égide do tema do engajamento e da luta política, aparece o preconceito que naquela época existia contra a mulher, que, tendo outro amor, imediatamente era considerada prostituta. Talvez isto soe excessivo aos nossos ouvidos. Pior é saber que naquele tempo (o romance é de 1937), a mulher discriminada perdia o emprego e não conseguia mais outro. Existe saída para a mulher? Em Caminho de Pedra, não. Isto é, ou ela aceita a ordem instituída e o seu papel nesta ordem, ou ela passará por punições da comunidade, de si própria e, em certa medida, do destino. O narrador não fala abertamente da relação entre Roberto e Noemi durante boa parte da narrativa. Finalmente, quando não há mais alternativa, quando a relação chega ao ponto da dilaceração de outras relações, especialmente com o marido, aí o leitor obtém mais informações. O problema da comunicação advém do conflito de impulsos. Para ser boa mãe e boa esposa, Noemi não poderia ter um amante. Ela chega a perder seu filho, Guri, devido a uma febre repentina e não explicada. Pareceria que a autora imprimiu uma escrita punitiva para a mulher que se apaixona por outro homem, pior, tendo um marido bom, carinhoso, participante, que, para facilitar as coisas, a abandona, a fim de deixá-la livre com o amante. Mas por que não existe saída? Uma eventual explicação seria de novo o duplo vínculo. Noemi tem dois lados: é operária ideologizada, engajada e também esposa e mãe. São aspectos que naquele momento não dialogavam entre si, e impediam a comunicação entre as personagens. Ainda que Caminho de Pedra também seja um dos romances neorrealistas 248 Mulheres e a Literatura Brasileira da década de 30, ainda que haja aspectos que retratam comportamentos da época, aspectos da situação histórica da época, pareceria que o paradoxo apontado, até por ser um falso paradoxo, por apresentar como incompatível o que não o é, mostra um conflito da própria autora. Caminho de Pedras, romance da fase comunista de Rachel de Queiroz, denuncia as ingenuidades, os ciúmes, rancores, competitividades entre os membros do partido. Aquilo tinha um tom de ritual que parecia satisfazer a todos, desempenhar mesmo um papel indispensável na reunião, mas constrangia e decepcionava Roberto. Solenidade que o desorientava – a ele que sonhara uma conversa fraternal com os operários, uma troca viva de argumentos que já preparara, da primeira à ultima palavra. (QUEIROZ, 1957, p. 245) A substituição da conversa fraternal pelo ritual repõe, no âmbito do proletariado, valores burgueses – e uma hierarquia que ecoa o patriarcalismo. São outros os contrapontos em jogo, agora: comunismo, burguesia, ritualização, que levam ao confronto entre proletariado e intelectual. Em sua luta política, as personagens da narrativa correspondem em certa medida ao conceito de herói problemático, conceito marxista usado por Lukács e Lucien Goldmann. O herói problemático é aquele cujos valores qualitativos se confrontam com uma sociedade produtiva para o mercado, em que os valores de uso desaparecem em proveito dos valores de troca. Na medida em que o conflito existente na sociedade produtiva para o mercado é narrado do lado de baixo da relação, decorre que as personagens em geral estão descontentes e são lançadas a impasses. Afinal, neste meio, nem o homem, nem a mulher terão possibilidade de plenitude. Conforme prossegue a produção de Rachel de Queiroz, ela introduz novos desafios e problemas na construção de suas 249 Mulheres e a Literatura Brasileira personagens. Para que os conflitos possam ser claramente expostos, Rachel prefere sempre uma estrutura narrativa cronológica, marcada pela causalidade. O recurso de nuançamento está no contraponto de cenas, que se intercalam de modo a introduzir espaços de tensão. Os enigmas propostos pela vida das personagens são movidos pelo medo: medo do ambiente, das pessoas, de si, num mundo que discrimina, ameaça, não se abre verdadeiramente para a experiência existencial. É o que aparece em As Três Marias (1939). O medo – da mulher – decorre de sua experiência que vai sendo marcada por interditos: espaços, regras de conduta, normas morais. A figura simbólica é a Virgem Maria de louça, bonita e triste, e que, contudo, “tinha mais ar de vida e humanidade que aquelas outras mulheres de carne” (QUEIROZ, 1992, p. 7). É uma humanidade simbólica, de louça, porque na realidade o mundo é diferente, caracterizável como a Irmã que acolhe Maria Augusta no colégio de freiras, “de olhar morto, fala incolor e surda” (p. 7), “feita de papel pálido, ou de linho engomado”, parecendo “uma boneca de cera, uma figura, uma santa, só não parecia gente”. (QUEIROZ, 1992, p. 7) Guta vive insatisfeita com a existência dificultada por um sistema de reclusão multifacetado: Estava ali o mundo, o povo, a vida de fora, tudo o que era interdito à minha vida de reclusa. Sentia medo e alegria, juntos numa emoção violenta, como quem rouba e se apossa de qualquer coisa sonhada e proibida. O sonhado e proibido é a liberdade, a vida plena, com relações verdadeiras com os outros e com o mundo. No lugar disto: Parece que a vida só chega para cada um tratar de si mesmo e vagamente circular os olhos pelas caras mais próximas. 250 Mulheres e a Literatura Brasileira Outro bairro, uma rua distante, e é já outro mundo. E ninguém tem tempo para explicações por terras longínquas. (QUEIROZ, 1992, p. 144) Os encontros são fugazes. As relações, insuficientes, marcando dimensões da vida no que lhe falta, o que leva Mário de Andrade, autor da orelha do livro, a dizer que em As Três Marias “a vida é maior que as verdades do momento”. O impulso de Mário de Andrade leitor é o de sair do livro “piedoso, com vontade de agir, de modificar, de surpreender as realidades que estão acima das contingências da hora.” Em verdade Mário experimenta o que é comentado pela narradora em primeira pessoa: “um fato, para ter verdadeiramente realidade, precisa acontecer subjetivamente dentro de nós, depois de ter acontecido objetivamente, no mundo real”. A narrativa leva a esta empatia porque se desdobra em relato do evento e percepção das reverberações na personagem. Maria Augusta, Guta, como outras personagens femininas de As três Marias, de Rachel de Queiroz, vive conflitos feitos de preconceitos próprios e dos outros, convergidos, em certa medida, na relação com os pais enquanto a mãe era viva, e na cisão, depois da morte da mãe. Ela, Maria Augusta, se fez à imagem do pai ou da mãe? A mãe foi alegre, amorosa, plena. Por isto é considerada o seu tanto louca. Guta toma para si a falta da mãe, a ausência do bom e tem medo da plenitude. Cria, em si, uma incompletude que vai se estender por sua vida. Tanto mais que o pai, que seria a sua referência, passou a ter valor comprometido, ou diretamente passou a ser desvalor: Papai é severo, é outro, trabalha muito, está gordo, gordo como a família toda. Onde estão os seus livros? Ele agora só lê jornal. 251 Mulheres e a Literatura Brasileira Onde estão as poesias que você me ensinava de noite, no alpendre, eu deitada com você na rede de corda, nós dois repetindo os versos – os versos do naufrágio – não se lembra, papai? – da hélice do navio “que pulsava como um enorme coração”? Os sapos gritavam longe, o cheiro dos aguapés chegava com o vento fresco da noite, você me afagava os cabelos, e o meu pequeno coração pulsava, pulsava tão comovido, papai, pulsava junto do seu, e eu era tão feliz, tão triste, a noite era tão ampla e suave, os versos me comoviam tanto, embora eu não os entendesse direito, que muitas vezes me calava, deixava você só dizendo as palavras, porque a emoção me fechava a garganta e aquela hélice da história, enorme e vagarosa, eu a sentia me bater dentro do peito. (QUEIROZ, 1992, p. 41) Felicidade e tristeza, atração pelo total, seja a morte, seja a luxúria, compõem uma mulher ao mesmo tempo incapaz de escapar às malhas da família patriarcal, simbolizada pela volta de Guta para o sertão, e infeliz e incompleta por isto. Apesar de apresentar o limite imposto à mulher, portanto de ter consciência de um mecanismo social, ela não escapa ao seu poder. A demasia, o excesso, a hybris da mulher é desejar a plenitude e a liberdade. O castigo, parece, é a morte, a perda, a queda. Curioso é que Rachel de Queiroz simbolize de novo a punição da mulher pela morte de uma criança. Em As Três Marias, Guta fica grávida fora de casamento e aborta. Não fica claro se o aborto foi natural ou não. É evento suficiente para expulsar Guta de um meio, empurrá-la de volta às origens – que são patriarcais. As paixões constituem a chave e o eixo das obras de Rachel de Queiroz. Ainda que ela aborde temas da época, desnude aspectos da história, sem as paixões não haveria as narrativas: “Mas um grande grito de paixão humana, de dor 252 Mulheres e a Literatura Brasileira ou de amor, choca, escandaliza, mostra coisas que a gente não quer ver, nudezes que nos parecem obscenas” (QUEIROZ, 1992, p. 25). Por isto mesmo as mulheres têm papel fundamental nas narrativas de Rachel, porque vivem paixões – frustradas. O romance em que este aspecto está mais claramente desenvolvido é Memorial de Maria Moura. Ainda que o eixo da narrativa gire em torno das paixões e a pertença da mulher, há um dado novo neste romance de velhice de Rachel de Queiroz, coisa extraordinária na literatura, porque em geral os escritores não escrevem quando já tão velhos (Rachel tinha 82 anos). Memorial de Maria Moura principia assim: Ouvindo o tiro, eu me apeei do cavalo. [...] Outro tiro. Não devia ser comigo – quer dizer, apontando contra mim. Talvez estivessem fazendo exercício de pontaria. Distante, escutei o latido de um cachorro. (QUEIROZ, 2004, p. 11) Ao ler este trecho, ressoou em mim o início de Grande Sertão: Veredas, romance de Guimarães Rosa: Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não. Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. [...] Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente [...](ROSA, 1963, p. 9) O início de uma narrativa é de fundamental importância, porque funda um horizonte de expectativa. Os tiros do início dos dois romances ecoam um exercício de pontaria da escrita de Rachel de Queiroz: consciente ou inconscientemente, ela abre um diálogo com o romance roseano. Para quê? Em Grande 253 Mulheres e a Literatura Brasileira Sertão: Veredas Riobaldo velho narra a vida do jovem Riobaldo, jagunço que se apaixona secretamente por outro jagunço, sem saber que este é uma mulher. A narrativa está em primeira pessoa e o fluxo é o da memória do narrador, que caminha entre as duas linhas de temporalidade da memória: o tempo que se volta para trás, tempo da ação, ou da narrativa, diegese, e o tempo que se encontra no presente do narrador, o tempo do narrador, ou da narração. O movimento entre as duas temporalidades básicas tempera tanto os problemas da memória do narrador, como sua culpa. Em Memorial de Maria Moura a memória que reúne o padre e a pecadora – Maria Moura –, aparentes dissimetrias, encontra dois pecadores. O padre já não é padre e matou – sem querer, mas matou. E teve o seu caso de amor, com filho no ventre da amada que é trucidada pelo marido. “– Tirar a vida dos outros é um crime muito maior que o pecado da carne, [...]” (QUEIROZ, 2004, p. 12). A memória, que poderia ser acionada, o é só por momentos, porque a narrativa obedece, preferencialmente, à cronologia e à causalidade. Luxúria e assassinato aparecem combinados nos crimes praticados pelo Padre e por Maria Moura e também ocorrem, especialmente em um caso, em Grande Sertão: Veredas: o caso de Maria Mutema. Trata-se de um aproveitamento da forma conto de fadas, começando com um quase “era uma vez” e terminando com uma purificação; é, portanto, retrato de um processo de iniciação pela via do pecado e da culpa. Como em outro caso do mesmo romance, o conto termina bem para a protagonista, apesar de seus crimes, porque é um conto – de fadas – enquanto que a vida é mais complicada – e isto também é matéria de relato ficcional. Prevalece a esperança na transformação, na redenção. Em Memorial de Maria Moura o segredo de confessionário não mata o padre, como no caso de Maria Mutema. Mas há um encapsulamento: o padre detém o 254 Mulheres e a Literatura Brasileira segredo de Maria Moura e vice-versa. Com nuanças curiosas: o padre sabe que Maria Moura mandou matar Liberato, seu padrasto – e ninguém mais o sabe, ainda que haja hipóteses a respeito. Maria Moura sabe do crime do padre, mas não é segredo, ainda que ela diga “- O seu segredo pelo meu?” (QUEIROZ, 2004, p. 16). O “segredo’ do Padre José Maria não é segredo, porque ele vem sendo procurado com promessa de prêmio para quem o encontrar e denunciar e o por isto ele vem fugindo. Ele matou sem querer, defendendo-se do ataque brutal do marido traído. Mas ao falar no assunto, o Padre diz “Também fiz uma morte” (QUEIROZ, 2004, p. 16). Assim, a assimetria é modificada, criando uma simetria que se presta melhor para o pedido de asilo e proteção que o Padre formula para Maria Moura, proprietária da Casa Forte, espécie de cofre dos desvalidos dispostos a pagar algum preço. O Padre José Maria, que se converterá no Beato Romano, quando pensa em seus crimes, pensa na luxúria e dela se arrepende. No caso de Maria Mutema, de Guimarães Rosa, consta O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação — com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. (ROSA, 2004, p. 211) Padre Ponte não vê como pecado a sua relação com a Maria do Padre, já que “todo o mundo achava trivial”. Ele não mata ninguém. Ele é morto pelo desgosto diante do falso 255 Mulheres e a Literatura Brasileira testemunho que lhe conta em confessionário, dia após dia, Maria Mutema, de que ela, Maria Mutema teria assassinado o marido em vista de seu amor por ele, Padre Ponte. Ao nomear o padre de Padre Ponte, Guimarães Rosa, já pela aliteração, sublinha o valor simbólico do nome. Ao ser Ponte, servirá de mediação para a iniciação, conversão, purificação de Maria Mutema, mesmo depois de morto. Rachel de Queiroz aproveita a estratégia aliterativa no nome de Maria Moura. Ela mantém as consoantes, varia as vogais e mantém o mesmo número de letras de Maria. Opõe o nome Maria, simbólico para a Virgem Maria, a mediadora cristã por excelência – a Moura, com o sentido oposto, sendo moura a “pessoa que, não tendo recebido o batismo, era considerada gentia, pelos cristãos”, isto é, não cristã; “pagã, infiel”. Em nenhum momento Maria Moura procura purificar-se. Isto é, em apenas um momento Maria Moura procura algo como uma purificação: quando se confessa para o Padre José Maria (vejam só: José e Maria, nomes dos pais de Jesus). Ela diz que se confessou para ter coragem de mandar matar o padrasto, pecado maior. Seja como for, houve a confissão prévia de um crime ainda a ser feito, paralela à confissão de Maria Mutema sobre um crime já cometido, a um padre que não conseguirá servir de ponte para a purificação de Maria Moura, mas que será incorporado na Casa Forte como beato (portanto ele é que estaria em processo de purificação). Beato Romano servirá de mediador para os homens de Maria Moura: Dona Moura, eu me considero uma espécie de capelão da sua tropa. E o capelão não questiona o que o comandante vai fazer. Digamos que eu me proponho a acudir os feridos e os moribundos, se houver algum. De um lado e do outro. (QUEIROZ, 2004, p. 492) 256 Mulheres e a Literatura Brasileira As situações estão invertidas nas duas narrativas. Maria Mutema mata marido e padre e se regenera, no romance Grande Sertão: Veredas. Em Memorial de Maria Moura é o Padre que mata – sem querer – o marido da amante – e se regenera na medida em que não quererá mais saber de mulher, nem de relações sexuais. Esta inversão explica porque o romance de Rachel de Queiroz começa com o relato do Padre e quase termina com fala do Beato Romano. Mas, claro, a última palavra será de Maria Moura, com uma informação que representa um programa de vida: Maria Moura sai na frente e “Só mais adiante, segurei as rédeas, diminui o passo do cavalo, para os homens poderem me acompanhar.” (QUEIROZ, 2004, p. 493) Maria Moura é o baluarte da força, da coragem, da audácia; sustenta a palavra dada, sobretudo a de proteção a quem lhe pede ajuda – sempre mediante pagamento, em pecúnia ou serviços prestados. A justificativa de seus atos os mais violentos será “ou ele ou eu”. O que mais se aproxima à cena da Maria Mutema é o segredo de confessionário, ou o segredo relativo a qualquer assassinato. O segredo pedido de quem compartilha do segredo é a respeito da identidade do mandante do assassínio. Na medida em que são segredos a serem guardados de outras personagens, mas não do leitor, que sabe de tudo (não como em Grande Sertão: Veredas, em que só sabemos do crime de Maria Mutema no fim do seu relato), não há hermetismo. É procedimento que nega que a nomeação está sendo feita, correspondente a ocultar-se atrás da Casa Forte. A vida não será vida, mas será protegida e forte. Para romper com esta prisão defendida, Maria Moura sai com seus homens em assalto arriscado: “– Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais”. (QUEIROZ, 2004, p. 493) 257 Mulheres e a Literatura Brasileira O segredo a ser guardado é tática de ação discursiva. Pareceria não corresponder às dimensões da alma de Maria Moura. Mas existe uma astúcia: é a do não-dito. O que não é dito tão claramente, é que a dimensão forte das personagens de Rachel de Queiroz são as paixões. Falarei antes das paixões do Beato Romano. Padre José Maria, quando lembra de sua missão sacerdotal, incorpora observações sobre pecado, punição, dor, confissão, que lembram situações de Grande Sertão: Veredas. Diz: O penitente é passível de terminar viciado no açoite, adotálo como substituto do comércio carnal. E termina sentindo um prazer perverso em se flagelar. Alguns até gozam, enquanto se açoitam. É esse um desvio que pode nos levar a pecados muito mais nocivos que as simples fantasias de adolescentes, por mais pecaminosas que elas lhe pareçam – e aliás, o são. (QUEIROZ, 2004, p. 102) Esta fala lembra o caso de Pedro Pindó, contado por Riobaldo logo no início da narrativa roseana. No mesmo capítulo do Memorial, o Beato fala do confessionário. Além de relatar o comportamento de mulheres e o de Maria Moura, já referido uma vez, e recordado outra, explicando que as confissões esperam cumplicidade, ou absolvição antecipada. Depois conta um caso, em especial, de tentação, dor, sofrimento e pecado, por fim. As situações são mesmo muito próximas ao caso de Maria Mutema: Outra deu de vir se confessar com tal freqüência que acabei me assustando. (QUEIROZ, 2004, p. 104) O coração me batia, o suor me porejava na testa, ao perceber que ela se ajoelhava, se benzia, começando: ‘Padre, perdoaime porque eu pequei...’ Mas o ritual da confissão ficava nisso. Ela só vinha para me tentar, para descrever as tentações de que padecia, dia e 258 Mulheres e a Literatura Brasileira noite, e não a deixavam mais comer nem dormir: “Padre, eu amo e desejo um homem que não é meu marido, um homem que é pecado mortal eu amar... Ele nem olha para mim, se esconde atrás dessas grades... (QUEIROZ, 2004, p. 105) Uma série de ações do Beato Romano lembram situações quer de Grande Sertão: Veredas, quer de “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Ele questiona as noções de bem e mal com relação aos jagunços, como Riobaldo: Aqui, o senhor bispo diria que eu vivo num covil de bandidos. Será? Cada qual mais perdido, dependendo todos da rapinagem; eu bem sei, eles nem escondem! Consideram que o seu é um meio de vida apenas um pouco aventureiro, que depende principalmente da coragem e da sorte -–ou do acaso. Mas eles têm lá o seu código. Roubar, de furto, eles dizem que não fazem. Não são ladrões! Têm muito orgulho nisso, alegam sempre: “A gente pode ‘levar’ mas não é ladrão.” Eles apenas ‘tomam’. E dizem que ‘tomam’ de quem tem, principalmente de quem tem mais. (QUEIROZ, 2004, p. 430) A emoção diante da morte de Cirino emula a emoção de Riobaldo, quando da morte de Diadorim. Ambos guardam luto ficando doentes. Em outro momento, anterior, Beato Romano sai em viagem, montando a cavalo e soltando as rédeas, para que o Senhor o guie, pelas patas do animal. E há o caso de Maria Mutema. Qual o uso deste diálogo entre ficções? O caso de Maria Mutema apresenta o crime e a possibilidade de contrição e mesmo de purificação. Termina com a iniciação completada, como nos contos de fadas. No Memorial há algumas referências a contos de fadas: 259 Mulheres e a Literatura Brasileira Passei aqueles dias como se estivesse encantada. A Bela Adormecida, a Princesa Magalona, sei lá, uma coisa assim. (QUEIROZ, 2004, p. 138) Ah, isso tudo é imaginação de mulher. Tenho que deixar para mais tarde esses pensamentos. E, além do mais, onde é que eu posso encontrar este homem? Afinal, não sou nem a Princesa Magalona, que o rei seu pai mandava chamar os homens do mundo inteiro para escolher o noivo dela. Nem pai tenho. No que toca à minha vida – minha vida particular – só me resta ser eu mesma o meu pai e a minha mãe. E quem sabe o meu marido. (QUEIROZ, 2004, p. 232) O nome da personagem principal, título do livro, a Maria Moura, é um compósito, como já vimos. Moura não só rima com Maria, como Mutema, como é parte de nome de personagem-título de conto de fadas, título usado por Rachel de Queiroz em livro de crônicas de 1948: A donzela e a Moura Torta. A trama da Moura Torta é de usurpação. A Moura tem a aparência de uma cigana, cuja imagem escura corresponde à deusa da Terra. Maria Moura seria a usurpadora. Do que? De quem? A viagem poderia ser iniciática e a Casa Forte seria o núcleo de proteção. Poderia representar uma mandala, como representa ou anuncia uma mandala o caso de Maria Mutema, em Grande Sertão: Veredas. Sendo uma mandala, a viagem seria a iniciação para o amor. Sabemos que a aprendizagem é frustrada e o objeto maior do desejo é o ouro: “[...] coisa bonita é ouro!” (QUEIROZ, 2004, p. 348) A mandala como mansão sagrada corresponderia ao que diz o Beato Romano: “E, nesta casa do crime, construí uma espécie de clausura e, nesta clausura, da maneira mais tosca e rudimentar, exerço o meu sacerdócio... Ou não é? (QUEIROZ, 2004, p. 431) 260 Mulheres e a Literatura Brasileira A clausura funciona até o assassinato de Cirino. A mandala também poderia ser um palácio, como nos contos de fadas. Aliás, um palácio com uma rainha: Você é a rainha desta terra aqui, tem Casa Forte e senhoria, tem riqueza e tem mais força do que todos esses beiradeiros que pensam que são ricos, léguas e léguas em redor. Maior do que a Casa Forte de Maria Moura, só a Casa da Torre – e essa mesma o povo diz que já se acabou, na Bahia. (QUEIROZ, 2004, p. 428) Os contos de fadas se referem quase sempre a uma casa e a um palácio, que representam tanto o eu, a psique humana, como o refúgio da iniciação. Por isto é um espaço com valor especial, sagrado. Os contos se constróem por uma sucessão de ações que se fecham com uma temporalidade cíclica. Rachel de Queiroz aproveita a referência para usar a estratégia da circularidade, ou da quase circularidade, fazendo a narrativa começar num ponto da temporalidade mais adiantado, perto do fim dos acontecimentos, quando o Padre, que será convertido em Beato Romano, pede asilo a Maria Moura. A construção da narrativa usa também a astúcia da superposição. Cada capítulo (que não se quer capítulo, mas apenas a voz de uma personagem e seu ponto de vista em momentos diferentes, mapeia a temporalidade e as ações de cada personagem e voz, numa dança cujos movimentos descrevem um mesmo percurso: o relato parte de uma busca comum. Tanto o Padre, como Maria Moura, como Marialva buscam refúgio. Suas andanças têm fundamentalmente este objetivo. Todos os três estão sendo perseguidos, ou têm medo de estar sendo perseguidos. O Padre tem medo daqueles que querem ganhar a recompensa da família do Anacleto (marido e assassino da amante do Padre), mediante sua prisão; Maria Moura teme a perseguição de Irineu; Marialva teme os irmãos, 261 Mulheres e a Literatura Brasileira e depois, tem medo de servir de máscara para o alvo do marido. Só parece haver sossego na Casa Forte. O sossego será relativo e precário, porque assim como o Padre, Marialva, seu marido Valentim e seu filho despencam na Casa Forte, como Duarte também. E vão se acirrando as contradições em Maria Moura, entre a paixão pelo ouro e poder e a paixão propriamente dita; entre o modelo feminino e o masculino, o que acaba envolvendo cada um dos que haviam pedido asilo a Maria Moura. Perto do fim, quando Maria Moura sai em expedição para resgatar Cirino da prisão, resgate cujo fim é o de assassiná-lo, descreve cuidadosamente as roupas que veste para a ocasião – roupas masculinas. Antes, em diferentes momentos, ela sublinha seus aspectos femininos. Com as contradições em brasa, uma explosão é esperada. Para a perdição ou para a salvação? Como em todos os processos iniciáticos, a esperança de redenção depende da morte ritual, representada de muitas formas nos contos de fadas: também através do coração de uma pessoa – ou animal – que será arrancado. Maria Moura, à beira de decidir se afirmará seu aspecto masculino ou feminino, se mandará matar o objeto de sua paixão ou não, diz: “Meto mesmo a mão no peito, arranco o coração e pronto” (QUEIROZ, 2004, p. 428). Maria Moura não consegue resolver seu conflito entre sua identificação com o papel feminino, que lhe asseguraria sua exclusão, sua marginalidade em relação à ordem patriarcal, ou com seu papel masculino, que sustentaria a ordem patriarcal, que, no entanto, exclui e marginaliza a mulher. Quando opta pelo papel masculino, lembra o padrasto, que matou sua mãe. Mas como ela arranca seu próprio coração do peito, lembra a mãe, que foi vista como suicida – morta em certa medida por questões de posse, valor maior para Maria Moura. A narrativa propõe que mulher só é poderosa se adquire as marcas do 262 Mulheres e a Literatura Brasileira patriarca. Esta é uma atitude de escorpião, que se pica com seu próprio veneno e se mata. No seio do palácio, da mandala, região protegida, lugar da sacralização do poder e da acumulação de riquezas, a paixão amorosa não terá vez, porque Maria Moura assume, final e completamente, todos os valores masculinos da sociedade patriarcal. O amor – ou a paixão, seria sinal de fraqueza, desvalor diante do valor da riqueza, da palavra dada. Para o Beato Romano a paixão também se tornou impossível, por ser pecado. Mas o Beato Romano tem um estatuto especial, por ser padre. É diferente a sua inserção social. A solução final, o seu papel de capelão, corresponde também a uma adesão às normas de uma sociedade onde manda o forte, poderoso, com mão de ferro e controle sobre todos. E, sobretudo, não haverá mais ausência de conflito. Quem não tinha conflito e culpa, como Valentim, passa a tê-la. A redenção se revela impossível, só vislumbrada pela saída da Casa Forte, porque saindo, a morte é mais provável: “– Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro muito mais” (QUEIROZ, 2004, p. 493). A solução fica para uma outra vida – de qualquer forma para uma vida em suspenso, para além do romance. Maria Moura usurpa as possibilidades de sua redenção, de mera existência, do papel da mulher, confundindo o papel do homem. No processo de inclusão e de sobreposição, papéis, normas, valores se confundem, num romance que conta do séc. XIX, mas o faz no limiar do séc. XXI. Referências Câmara Cascudo, Luís da (s/d). Contos Tradicionais do Brasil. (Folclore). Rio: Grupo Ediouro, Editora Technoprint. Queiroz, Rachel de (1976). As menininhas e outras crônicas. Rio de Janeiro: José Olympio. Queiroz, Rachel de (1992). As três Marias. São Paulo: Siciliano. 263 Mulheres e a Literatura Brasileira Queiroz, Rachel de (2004). Memorial de Maria Moura. 15ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio. Queiroz, Rachel de. Obra Reunida (1989). Vol. 5: Mapinguari (crônicas selecionadas). Lampião. A beata Maria do Egito (Teatro). Artigos de Sérgio Milliet e Paulo Rónai. Rio de Janeiro: José Olympio. Queiroz, Rachel de (1957). Romances: O Quinze. João Miguel. Caminho de Pedras. Rio de Janeiro: José Olympio. Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963. Rosa, João Guimarães. “A hora e a vez de Augusto Matraga”, in Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. 264 Mulheres e a Literatura Brasileira Mulheres em contos e seus (des)encontros: uma leitura de “A caolha”, “Tangerine girl” e “A moralista” Suely Leite1 Este texto tem como objetivo fazer uma análise dos contos “A caolha”, de Júlia Lopes de Almeida, “Tangerine girl”, de Rachel de Queiroz e “A moralista”, de Dinah Silveira de Queiroz, com a finalidade de verificar a representação da mulher nessas narrativas. Os três textos selecionados foram escritos na primeira metade do século XX e, de certa forma, ecoam o discurso patriarcal acerca do papel e do comportamento da mulher naquela sociedade. A análise terá como pressuposto teórico os estudos de gênero e a crítica feminista que traz para a discussão do papel da mulher na literatura em determinadas funções: a de narrar, a de criar, a de compor o perfil feminino por meio de personagens que problematizem a questão de gênero. A imagem feminina tem servido de mote para poetas e prosadores, sendo explorada em diversos flancos, fomentando a poética e a ficção. Neles, a figura da mulher transita entre dois mundos, o profano e o sagrado, a santidade e a Professora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina e docente do Programa de Pós Graduação em Letras da UEL, com doutorado na área de Letras e pesquisas em literatura feminina e análise do discurso. Atua nas disciplinas de Literatura Brasileira,Teoria da Literatura e Vozes femininas na literatura de autoria feminina. É coordenadora do projeto de pesquisa “Relações de gênero e representações literárias na literatura de autoria feminina” e líder do projeto de pesquisa cadastrado no CNPq, intitulado “Legado intelectual e produção literária de autoria feminina na América Latina”. 1 265 Mulheres e a Literatura Brasileira prostituição, a maternidade e a passionalidade, ora assumindo o papel feminino tradicional, ora tentando questionar essa identidade construída pelo discurso patriarcal, ou avaliando as posições discursivas disponíveis; em outros momentos, incluindo e excluindo posições ideológicas acerca desse sujeito. Nesse sentido, a literatura produzida por mulheres configura-se em um conjunto de circunstâncias históricas com influências culturais, com traços que identificam o papel da mulher na sociedade, enfim, um conjunto de textos que é caracterizado como de produção feminina. Para este trabalho, escolhemos três contos escritos na primeira metade do século XX: “A caolha”, de Júlia Lopes de Almeida, publicado pela primeira vez em 1903, depois em 1962, no livro Obras-primas do conto brasileiro, organizado por Almiro R. Barbosa e Edgard Cavalheiro e publicado pela Editora Martins; “Tangerinegirl”, de Rachel de Queiroz, publicado originalmente em 1948 e, depois, em 1999, na obra A casa do Morro Branco, pela Editora Siciliano e “A moralista”, de Dinah Silveira de Queiroz, escrito em 1948 e, que além de várias outras publicações, consta na seleção de Gasparino Damata intitulada Histórias do Amor Maldito, pela Gráfica Record Editora, em 1967 e na seleção Os cem melhores contos brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi em 2001. A escolha dos textos para compor o corpus resulta em enunciados que, na sua formulação, representam o discurso feminino caracterizado por um traço essencial, pois assume a reduplicação do discurso circulante na sociedade sobre o papel da mulher e os valores que devem envolver a imagem feminina. As escritoras dos contos aqui analisados configuram-se como sujeitos discursivos, produzem estratégias que recuperam ícones tradicionais do universo 266 Mulheres e a Literatura Brasileira feminino e trazem à cena discursiva os temas da maternidade, da sexualidade e da moralidade. O conto é um fragmento da realidade que visa ir além de suas limitadas páginas, apresentando a ideia de impacto, condensação de espaço e tempo; conteúdo aparentemente banal, mas que se torna excepcional devido a sua intensidade e tensão interna. Segundo Alfredo Bosi (1994, p. 9), em seus estudos sobre a situação e formas do conto brasileiro contemporâneo, “o contista é um pescador de momentos singulares cheios de significação”. A unidade de efeito que deve estar presente no conto foi uma característica trabalhada por Edgar Allan Poe, a qual, segundo a teórica Nádia Gotlib (1999), preconizava que o autor deveria manter o domínio total sobre os seus materiais narrativos e, consequentemente, dominando o leitor e provocando nele o chamado efeito único ou impressão total. Já para outros escritores, como Julio Cortázar, a definição de conto passa por conceitos como intensidade, tensão, equilíbrio, extensão, brevidade, condensação de recursos, tensão, entre outros. Entre eles, os que interessam a esse estudo, quais sejam: a fragmentação presente no conto psicológico, texto que mantém as técnicas tradicionais próprias do gênero, porém apresentando um flagrante do encontro ou desencontro da personagem diante do mundo e de si mesma, geralmente perpassado por um vago tom de melancolia; o que dá a muitas narrativas um tom poético. É a individualidade em choque com as relações sociais, a tônica existencialista que conduz as personagens em suas contradições e incertezas e que as leva à fragmentação. Nos contos de Clarice Lispector, por exemplo, não há um fato a ser contado, não há nada acontecendo, o essencial está no ar, na atmosfera, na forma de narrar, no estilo. 267 Mulheres e a Literatura Brasileira A fragmentação, geralmente relacionada com os limites de extensão do gênero, é também uma forma intencional de se lidar com os fragmentos da vida, de tal maneira que os resultados não seriam os mesmos dentro de uma narrativa baseada em sequência e/ou integralidade. O próprio ato de recortar é uma escolha carregada de significação. O conto pode ser visto como uma história que não tem fim; é o recorte que não revela, mas sugere, surpreende com o flagrante da alma humana, por isso comove, ensina, pois temos um gênero em que podemos encontrar, de forma reveladora ou sugestiva, as travessias femininas e literárias de Júlia Lopes de Almeida, Rachel de Queiroz e Dinah Silveira de Queiroz. A leitura desses três contos pode nos proporcionar a compreensão sobre o que era ser mulher na primeira metade do século XX. O texto de Júlia Lopes de Almeida é uma inovação para o início do século. Narrado em terceira pessoa, o conto “A caolha” traz à cena a história de uma mãe que teve o olho perfurado pelo filho quando este era ainda pequeno. Seu defeito físico passa a ser o estigma que a levará a mais uma forma de exclusão social e ao distanciamento do filho que, ao crescer, passa a ver no olho da mãe um obstáculo para casarse, já que a futura esposa não aceita ser a nora da caolha. Diante do argumento do filho de que sairá de casa para morar no local de trabalho, porque seu ofício assim o exige, ela o enfrenta e o desmascara. Este sai em busca da ajuda da madrinha para que essa possa controlar a raiva da mãe e o que obtém como resposta é a existência de um segredo que já deveria ter sido revelado há muito tempo: ele era o responsável pelo acidente que fez com que a mãe perdesse o olho esquerdo. O discurso presente no conto acerca da maternidade é representado por uma mãe que transforma suas frustrações de uma vida pobre, sem sonhos ou perspectivas, em amor incondicional ao filho. O conto problematiza essa relação filial 268 Mulheres e a Literatura Brasileira em um universo de exclusão, apresentando relações que condicionam a personagem a anulação de sua identidade enquanto ser autônomo e ao cumprimento do seu papel de mãe identificado no texto como o papel de submissão ao filho. O texto tem início com a apresentação da personagemtítulo: um adjetivo feminino que pressupõe cegueira, perda de um olho, aspectos que estão relacionados à representação feminina no conto: uma mãe pobre que está longe dos padrões de beleza femininos, que insiste em não ver a realidade do desprezo do filho e que só se realiza em uma única função: a de ser mãe. O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos. A mãe, com sua fístula porejante, é a representação da sujeira, da desordem e o corpo incompleto reflete a desvalorização por ele causada e o estigma que espelha as relações de desigualdade e poder. O filho, no papel masculino que lhe é atribuído culturalmente, sente a diminuição social promovida pelo contato com a mãe estigmatizada e é preciso anular, apagar essa relação. Ser o “filho da caolha” será a marca de sua identidade, contra a qual ele lutará para que possa traçar uma trajetória na sociedade sem este constrangimento. A narrativa tem como espaço um lugar pobre da cidade do Rio de Janeiro e como protagonista uma mulher que vive em situação de pobreza, desempenhando o papel de mãe e de mantenedora de si e do filho, personagem essencial da estrutura familiar, pois no conto não há registro da figura paterna. Percebe-se outro discurso acerca da concepção de família enquanto aquela formada tradicionalmente, composta por um pai, por uma mãe e por filhos. Insere-se outro pressuposto: a presença de mulheres chefes de família, outra prática social em que a mulher já não é aquela figura em parte submissa e subordinada ao pater familias, de um marido no caso, mas sim alguém que independe de outro para sustentar 269 Mulheres e a Literatura Brasileira seus filhos enquanto estes são pequenos. E assim era a caolha, representação da mulher marginalizada por não ter sido capaz de manter a família nuclear e que teve de sustentar, criar, educar o filho, sozinha, até o momento em que este tivesse condições de manter a casa e a família. Há uma quebra da clássica divisão de papéis em que se delega ao homem a função de provedor e à mulher a de cumpridora das funções domésticas. O que se tem é uma nova configuração, constituindo-se em um novo discurso sobre a situação social da família: aquela formada apenas por uma mãe e um filho, o que caracteriza uma quebra do discurso já-dito. Um dos aspectos femininos mais cristalizados na sociedade é o papel de mãe e a visão de que a maternidade é o ápice da vida da mulher, um estado de graça. Segundo Stevens (2007), a maternidade apresenta conotações complexas e é cercada por concepções religiosas, mitológicas e socioculturais, e a imagem da mãe sofredora, culpada, foi construída por uma cultura patriarcal, que confere a esse papel feminino um status até mesmo de função sagrada, construindo arquétipos da maternidade e de seu papel sacrifical. O discurso sobre a maternidade internaliza aspectos como felicidade, realização e apaga outros sentidos, como frustração, falta de reconhecimento. E é nesse jogo de silenciamento que o conto “A caolha” resgata a relação mãe x filho, resignação x revolta, levantando questões sobre a validade do sacrifício materno, do sacerdócio imposto pelo discurso dominante. Ao perceber o crescimento do filho, que vem acompanhado de seu distanciamento, a personagem se resigna, mas incorpora o papel de uma mãe idealizada, altruísta, dedicada, verdadeira criadeira, porém dependente do afeto filial, da manutenção e reconhecimento de sua função materna. O título do conto nomeia a protagonista e, nessa nomeação, há o pressuposto da falta de um olho, da cegueira. 270 Mulheres e a Literatura Brasileira A personagem representada no texto é aquela marcada pela falta, pela ausência: estigmatizada pelo defeito físico e pela pobreza, a mãe tenta, por meio de seu amor, dar ao filho a dignidade que a sociedade muitas vezes lhe nega; porém, é impedida por seu defeito físico, pois será esta característica que marcará a vida do filho de forma negativa. A caolha sofre pela ausência do olho esquerdo, ausência do marido, ausência do pai de seu filho, ausência de cidadania, de dignidade. A estória da caolha não se situa nos meandros das miudezas da vida familiar burguesa, ao contrário, atesta fatos da realidade brasileira, como a expulsão dos pobres das zonas mais centrais da cidade do Rio de Janeiro. O papel da mulher é o de chefe de família que precisa gerir recursos que lhe garantam a sobrevivência sua e de seu filho e não tem acesso à cultura de bens materiais, intelectuais e afetivos. Seu papel de mantenedora da família perdura até que o filho se torne produtivo e, a partir de então, ela passa a ser assujeitada às visões, pensamentos e interesses dele. Aqui, a mulher, desacompanhada da figura paterna, representa uma pessoa fracassada por não ter conseguido manter uma família, porém o seu papel de mãe corresponde ao modelo sacralizado pela sociedade patriarcal, pois, diante de tantas dificuldades e condições desfavoráveis, mantém o filho como um ser amado e desejado e busca, nessa condição, sentir-se realizada. Não era de se esperar que, no início do século XX, uma mulher problematizasse os mitos que envolvem a maternidade; porém, por meio deste conto, Júlia Lopes de Almeida consegue fazer um levantamento sensível acerca das diferenças e discriminações sociais e da relação mãe e filho. Na narrativa, desenha-se um diagnóstico de comportamento feminino que se pauta na resignação de uma mulher ao assumir o papel que lhe é destinado pela sociedade, 271 Mulheres e a Literatura Brasileira apropriando-se do discurso corrente sobre o ser mãe e dos sentimentos considerados inerentes à maternidade. O conto de Júlia Lopes de Almeida ousa porque retrata uma condição da mulher que destoa das personagens femininas comumente representadas, pois representa uma mulher desempenhando a função de chefe de família e pertencente aos segmentos mais pobres da população. Dos três contos escolhidos, esse é o que apresenta a mulher em uma situação bem diferenciada das demais: é pobre, excluída socialmente, rejeitada pelo filho por um problema físico e, embora trabalhe, não obtém o reconhecimento social por sua produtividade. O segundo texto deste artigo é a narrativa “Tangerinegirl”, publicada em 1948. Temos um narrador em terceira pessoa que constrói o perfil de uma menina sonhadora, que vive no espaço doméstico, na casa dos pais, seu referencial de ordem e de mundo, lugar de onde partirá para a primeira incursão no território da sexualidade, do amor já erotizado. A garota, denominada Tangerine-girl, encarna os preceitos morais aplicados a uma adolescente da metade do século XX que incorpora o ideal romântico do encontro com um príncipe encantado, tendendo sempre a seguir o modelo compatível com as normas sociais, incorporando a imagem da mulher virgem, representante da candura e da pureza, uma alusão ao perfil romântico típico da mulher nessa época. Quanto aos rapazes, o papel que lhes é atribuído corresponde àquele que se atribui aos homens de modo geral, como sendo o que conquista. No mundo cristão, o valor da virgindade é um dogma. Na virada do século XX, o matrimônio constituía-se como objetivo primeiro ou, talvez, única saída na vida da mulher brasileira. A menina do conto não ameaça a ordem, ela é comedida, reservada, modelo de honra e pureza, sempre na 272 Mulheres e a Literatura Brasileira companhia da família, que aparece sorrateiramente representada pela figura dos irmãos, os quais passam “zombando” dela enquanto seus sonhos se desenvolvem. Nesse contexto, a família é considerada termômetro da honra, guardiã da pureza; assim, a mulher solteira tinha poucas possibilidades de movimento, deveria ter uma conduta recatada; do contrário, sofreria sanções de ordem social. O casamento era o espaço institucionalmente concebido como legitimador de uma certa sexualidade, dando à mulher o direito de ter relações sexuais apenas como sinônimo de procriação; e, para as jovens solteiras, era considerada a única saída para a vida, também como um meio de controlar a sexualidade. O adestramento sexual pressupõe o respeito pelo pai, irmãos e, depois, ao marido, além de uma educação dirigida aos afazeres domésticos. A virgindade se reveste de um valor real para a sociedade, pois, para casar, era preciso, teoricamente, ser virgem. Por isso, faz-se necessário que a menina seja alvo de vigilância familiar, pois há o consenso de que sozinha não é capaz de afastar os perigos morais. A maneira de ser feminina que transparece no conto é criação cultural, pois sugere um padrão de comportamento que incorpore a meiguice, a submissão, a sensibilidade e a passividade. Esses atributos são trazidos à tona pelo narrador ao apresentar a figura da personagem central do conto: a menina do laranjal que assimila os valores predominantes no meio social e incorpora a valorização da vida matrimonial. A imagem feminina, retratada pelo conto, é de uma mulher idealizada que, adolescente, compreende o seu papel social, almeja por um príncipe que a levará para lugares que ela não conhece, um marinheiro apaixonado que lhe conduzirá ao casamento, um herói alado que, apaixonado por sua pureza e distância, sinônimo da virgindade guardada pela família como um tesouro, deverá vir até ela e levá-la para uma nova vida, 273 Mulheres e a Literatura Brasileira ainda segura, ainda vigiada e protegida pela masculinidade do marido. É parte do discurso patriarcal, imbuído na moral de seu tempo, a ideia de que a menina deve ser educada na reclusão social e que deve ser propriedade privada da família. No conto de Rachel de Queiroz, a sexualidade latente de uma adolescente e a representação do Outro enquanto sociedade sugerem uma sanção social a essa manifestação do corpo. O conto de Rachel de Queiroz corrobora com a ideia de identidade feminina como construção discursiva que transcende as particularidades dos indivíduos e dos grupos restritos, para inseri-los em um projeto globalizante e totalizador, em consonância com os anseios da sociedade. O rapaz do dirigível, que presenteou a protagonista com uma caneca, é apresentado como: marinheiro, frade em seu convento, soldado, navegante, tripulante. Porém, a partir do momento em que ele é percebido pela menina, passa a ser denominado de “gavião, fero soldado” o que atrela a sua imagem à representação do homem como ser que age, que caça, que sai em busca da presa. Ela, durante o tempo em que não tinha consciência da presença do rapaz, é nomeada como menina, pequena, mocinha; após a caneca ser lançada pelo tripulante, passa a ser a “gazela, pequena medrosa, de olhos fascinados”. Depois de descoberto que o seu marinheiro apaixonado era, na verdade, vários moços brincalhões, ela passa a ser “a namorada coletiva, instituição da base, uma dessas pequenas”, termos que a levariam a um outro nível de inserção na sociedade, aquela que é de todos, que não tem valor por já ter sido de vários e não de apenas um homem. Todos esses atributos, tanto para o masculino quanto para o feminino, são estereótipos que correspondem aos papéis sociais que homem e mulher desempenham na sociedade, os quais foram construídos culturalmente. 274 Mulheres e a Literatura Brasileira À menina cabe voltar reclusa para sua vida vigiada e aos rapazes, que não entenderam a atitude da garota, cabe continuar o curso de suas vidas, despreocupados com o desfecho do episódio. Se a menina se vê atingida pela possibilidade de ter sido mal julgada (isto por trazer interiorizadas normas tão rígidas de comportamento), os rapazes, alheios às normas (talvez por terem papel e função privilegiados garantidos na ordem das representações), seguem suas vidas sem conflito. A protagonista do conto representa a figura da menina educada para os papéis preestabelecidos pela sociedade, já denunciada por Beauvoir (1991), e que sonha com uma vida que sabe ser diferente daquela que leva, cujo teor ela ainda não sabe exatamente qual é. Talvez pudessem ser apontadas fases, no conto, que correspondem àquelas pelas quais passam todas as mulheres no início da adolescência: a percepção de um objeto de desejo. Note-se a referência ao mundo infantil das histórias de Aladim e dos perfis dos carros de brinquedos. A menina vive na contemplação. Depois, a ainda menina transforma-se em objeto de desejo, transforma-se na “mocinha de cabelo ruivo”, que era certamente bonita, porque o marinheiro também tinha suas idealizações. Esse contato, inicialmente sem intenção, por parte da garota, só continua por dois motivos: primeiro, porque os rapazes estão sozinhos e, segundo, porque a moça pensa ser apenas um rapaz. Se o século XX trouxe modificações quanto ao conceito do “bom casamento”, o prazer sexual era ainda altamente controlado para as mulheres e a sociedade seguia uma dupla moral, pois ao homem era permitida toda a sorte de aventuras amorosas, enquanto da mulher esperava-se pureza e recato: uma vez que o objetivo máximo na vida da mulher da época era o casamento, esta deveria se manter virgem e casta, dócil e meiga, caso não quisesse ficar solteira ou ser incluída na 275 Mulheres e a Literatura Brasileira classe das mulheres consideradas ‘fáceis’, feitas não para o casamento mas sim para as brincadeiras, as farras e a satisfação sexual de seus companheiros do sexo masculino. (Rocha Coutinho, 1994, p. 108) Não há sentimento de culpa nos rapazes, e não se pode afirmar que haja maldade nas suas ações; apenas dão vazão ao que é próprio à sua idade: fase de brincadeiras e conquistas sem responsabilidade. Entretanto, é justamente esse discurso da moralidade feminina, internalizado pela protagonista, que faz ela sentir vergonha de seu comportamento, de suas inquietações sensuais, de sua atração pelo “príncipe” revelado como um bando de rapazes, os quais, ao que parece, apenas queriam conhecê-la, sem perceberem que representavam a destruição dos sonhos românticos da menina. Traída por seus sonhos, a menina foge e deixa os rapazes sem compreender o que havia acontecido. Ao identificá-la como o símbolo da garota dos soldados norte-americanos, o enunciador traz à cena o choque cultural. Não era assim que uma moça de família poderia se ver e ser vista aos olhos dos outros. No discurso patriarcal, as jovens devem ser socializadas nos moldes da cultura predominante. Era necessário preservar-se de qualquer tentação mundana, atender aos padrões da feminilidade hegemônica da época. Tangerine-girl, diante da consciência de que havia sido considerada pelos rapazes como uma garota qualquer, a qual não corresponde aos padrões sociais que lhe são impostos, chora as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos. Percebemos no texto um conjunto de enunciados que remetem a um discurso acerca da condição feminina. O referencial do enunciado “Tangerine-girl” gira em torno da representação da mulher adolescente que incorpora papéis e comportamentos femininos institucionalizados socialmente. 276 Mulheres e a Literatura Brasileira Publicada em 1948, a narrativa “A moralista”, de Dinah Silveira de Queiroz, constitui-se no registro da filha acerca do comportamento feminino da mãe que atende aos padrões de comportamento social permitidos à mulher naquele contexto. Como prisioneira das representações tradicionais femininas, a mãe, protagonista do texto, vive um jogo de aparências em que o seu atributo de “a moralista” é o que rege não apenas sua vida, mas a de todos os habitantes da pequena cidade de Laterra. O discurso da filha narradora revela a célula familiar centralizada na figura de uma mulher, esposa e mãe, que assume a condição de ser representante do papel que a sociedade espera que ela cumpra, e sua trajetória é registrada pelos olhos de sua jovem filha, que começa a construir a figura materna a partir da esfera familiar. Em casa, no espaço reservado à família, a mãe dava risadas, arrumava-se para o jantar, perfumava-se, trajava vestidos alegres, decotados, porém não se pintava, não escondia sua face, não usava máscara. A mãe ocupava o posto de rainha do lar e era assim pelo marido tratada. A narradora afirma que o pai adulava a mãe como se dela dependesse, tratando-se apenas de uma forma de agradar sua eterna menina, assim chamada pelo marido. Depois de conversar com uma espírita, a mãe passa a aconselhar as pessoas da pequena cidade em tudo o que iriam fazer. Seus conselhos nunca falham, e ela passa a entender de política, negócios, casamentos tornando-se, assim, a figura central daquela pequena cidade. Seu prestígio (advindo de sua sensatez) faz com que o marido tenha orgulho de desfrutar da companhia de alguém com tanta sabedoria e ele, então, acaba se beneficiando em seus negócios por meio do reconhecimento social da esposa. 277 Mulheres e a Literatura Brasileira O prestígio moral da mulher atinge os domínios da igreja quando passa a fazer as novenas e a rezar os terços, em função da ausência de um padre na cidade, chegando a ser conhecida como padra. Para tanto, veste-se de forma que sua imagem se associe a uma figura sagrada, passando a ser vista pelos habitantes da pequena cidade como uma santa. Ao olhar da jovem filha, uma constatação: santa não poderia ser, pois, no refúgio do lar, a mãe se divertia, e uma santa, no discurso cristalizado e absorvido pela narradora, jamais daria as risadas como as que ela ouvia sair da boca da mãe. A mãe incorporara seus atributos de conselheira e atribuía a si o adjetivo de pessoa equilibrada, caridosa, líder de uma cidade. Funda, assim, o Círculo dos Pais de Laterra e, a cada dia que passa, sua credibilidade cresce. Porém, aos olhos da filha, o discurso da mãe nada mais significava que uma representação social. O equilíbrio aparente da família e da imagem da moralista perante a cidade é quebrado com a chegada de um rapaz descrito por todos como um sujeito de gestos afeminados. A mulher pede ao marido que lhe dê um emprego, para que este possa estar próximo de uma família, pois acredita que, com seus conselhos, repreensões e exemplos, conseguirá o seu propósito: curar o moço da ausência de masculinidade. O pai é advertido de que o rapaz não é o tipo de gente que deva morar em casa de respeito, mas a mãe sabe o que faz, portanto, o hóspede passa a frequentar a casa diariamente. O comportamento afeminado do rapaz é censurado pela mulher que, ao mesmo tempo em que lhe repreendia, falavalhe palavras de ternura e otimismo, o que fez com que o rapaz se aproximasse mais daquela família e, em pouco tempo, deixasse de ser um estranho. Sua convivência com as práticas religiosas da família o tornara assíduo aos terços, sua timidez diminuiu, seus gestos afeminados foram ficando para trás e 278 Mulheres e a Literatura Brasileira suas atitudes deixaram de ser ridículas aos olhos dos outros. E toda essa transformação devido à companhia e ensinamento daquela que era considerada o esteio moral da pequena Laterra. Entretanto, os discursos da mulher dirigidos àquela comunidade perdem a força e os olhares da comunidade dirigidos ao rapaz, quando em companhia de sua protetora, são maliciosos. A filha capta essa malícia e frustra toda a expectativa sobre a façanha que a mãe alcançara ao fazer do moço um rapaz de comportamento masculino. O pai, embora cônscio da seriedade da esposa, se entristece por ter de conviver com aquela situação: ter em sua casa aquele que era alvo dos comentários de adultério da esposa. A narradora faz emergirem suspeitas sobre a conduta da mãe e essas suspeitas são reveladoras dos códigos que regiam a vivência entre as pessoas daquela comunidade. O entrelaçamento dessas suspeitas indica quão tênue era a linha que separava as alianças e os conflitos em torno da moralista. A moralista foi a última a perceber a paixão que havia despertado no rapaz. Diante da insistência do marido, a mulher argumenta que é preciso mais tempo para fazer do moço um homem de bem e ele aceita. O rapaz, já muito à vontade, conta histórias que levam a moralista aos risos, deixa-a à vontade e em um desses momentos vislumbra o pescoço descoberto da mulher e a encara com os olhos vibrantes. Após adoecer, a moralista o visita e o moço lhe confessa algo. Diante de tal revelação, a mulher fica furiosa e, desencantada, pede ao marido que mande o rapaz embora. O moço volta para a reza e ela lhe ordena que saia daquele local. A renúncia pública da mulher à companhia do rapaz traz o alívio a todos da cidade e as pessoas voltam a acompanhar a moralista em seu terço, desta vez com vozes mais firmes que outrora. A expulsão do rapaz comprova a ideia geral de restauração de valores autoritários que perduram. Passados 279 Mulheres e a Literatura Brasileira alguns dias, um fazendeiro o encontra enforcado junto a uma mangueira e aquela cena trágica era a prova de que a cidade precisava: sua senhora não transigira, sua moralista não falhara. A cidade respira aliviada. A moralista retoma sua vida, segue a risca os padrões sociais de seriedade: já não sorri, usa vestidos pretos, cerrados no pescoço, volta ao equilíbrio inicial, porém, seus conselhos já não são tão convictos como antes. O discurso presente no conto “A moralista” propõe, de forma sutil, um novo modelo de atuação da mulher em direção ao social, embora essa incursão em direção ao Outro tenha deixado marcas na conduta da protagonista. A representação masculina também supera as delimitações tradicionais da época; superação esta encarnada nas duas personagens masculinas da trama narrativa em questão: uma, o marido da protagonista, lida melhor com as tensões do mundo, mostrase de forma conciliadora, desvencilha-se das pressões sociais em busca da harmonia familiar, sua convivência no lar é marcada por admiração e demonstrações de carinho. Tem-se, no conto, um discurso que registra a mudança no modelo do pai na família em meados do século XX, mudança reiterada por Rocha Coutinho (1994, p. 91), quando o pai deixava de ser simplesmente o provedor econômico da família para ser aquele que devia zelar pela felicidade e bem-estar de sua esposa e filhos. “Nesta nova função de pai – o pai amoroso e atento aos seus –, o homem deveria encontrar sua mais alta realização humana”. O segundo, o hóspede da casa da protagonista, fugindo ao padrão de masculinidade, apresentase inseguro e fragilizado, incapaz de enfrentar as dificuldades da vida com firmeza e apresenta traços de homossexualidade. A imagem masculina imposta pela ordem patriarcal começa a ser desconstruída neste conto, na retratação desses dois personagens. 280 Mulheres e a Literatura Brasileira Sabemos que, na maioria das sociedades, os homens detiveram alguma autoridade sobre as mulheres. Entretanto, muitas das vezes, e não de forma reconhecida, certamente as mulheres influenciaram a vida social dos grupos a que pertenceram. No conto de Dinah Silveira de Queiroz, a autoridade masculina é minimizada pelo fato de a protagonista ter encontrado uma maneira de exercer a sua autoridade. Segundo Rocha Coutinho (1994, p. 20), “poder e autoridade são conceitos que caracterizam, entre outras coisas, as formas de sujeição e os meios através dos quais as decisões são tomadas e executadas”. Assim, pode-se dizer que em “A moralista” o poder e autoridade são exercidos por uma mulher que, através de estratégias de controle, leva uma comunidade a pensar, sentir ou agir de um modo diferente. A família retratada na narrativa apresenta mudanças, avanços em termos das relações afetivas dos papéis desempenhados por seus membros constitutivos. A mulher é aquela que detém a autoridade sobre sua casa, filhos e família e que, indo além, exerce uma influência no espaço público, tem consciência de seu papel político. O papel social que passa a exercer é forte o suficiente para que ela possa influenciar na imagem e nos negócios do marido, que fica encantado com o prestígio de ser o marido da moralista, apresentando claramente uma inversão dos papéis sociais. No conto, ainda é possível perceber um discurso acerca do estranhamento que ocorre na sociedade quando alguém foge aos papéis sociais binários definidos: ser homem ou ser mulher. O culto às diferenças de hábitos e comportamentos enquadrados nos perfis masculino ou feminino é um discurso presente na sociedade e a homossexualidade, no contexto de produção do conto, é ainda apresentada como uma doença, um desvio de comportamento ou até perversão. 281 Mulheres e a Literatura Brasileira Pode-se afirmar que a representação dos papéis sociais de homens e mulheres em “A moralista” é construída e pautada pelo contexto socio-histórico de produção do texto. Nesse sentido, o conto de Dinah Silveira de Queiroz, escrito em 1957, representa um avanço em relação ao conto “A caolha”, de Júlia Lopes de Almeida, escrito em 1903. Em quatro décadas, o discurso ideológico sobre o papel da mulher na sociedade sofreu alterações que podem ser percebidas pelas trajetórias das protagonistas dos dois contos. Em “A caolha” já é possível perceber uma emancipação dos modelos historicamente instituídos, uma vez que a protagonista, por ser pobre e sem marido, aparece como provedora da família, na infância do filho, ainda que seu universo de atuação seja apenas o espaço doméstico endossando o seu papel incondicional de mãe. Já no conto “A moralista”, a mulher faz uma incursão pelo espaço público, porém percebe que sua atuação deve estar atrelada a um agente de controle social: a moralidade. Júlia Lopes de Almeida inova, pois traz para a narrativa a mãe como protagonista, em uma situação que foge ao estereótipo de “rainha do lar”, em um embate de vozes conflituosas acerca da maternidade, da simbolização da figura materna, e coloca em questão o altruísmo e a relação mãe x filho, além de dar representação à mulher pobre e marginalizada. Em “A caolha” a representação materna é marcada por parâmetros tradicionais de maternidade que implicam obrigatoriedade, culpa e abnegação; porém, essas idealizações são problematizadas. A mãe tenta encontrar no filho a plenitude de sua vida, privada de sentido, mas suas expectativas não são correspondidas. O discurso do enunciador coloca-se em sentido contrário à narrativa dominante sobre a maternidade, pois esta não é retratada como um estado de graça para a mulher, embora o conto reafirme o amor incondicional da mãe diante de sua prole. 282 Mulheres e a Literatura Brasileira No conto “Tangerine-girl” não se tem o perfil da mulher santa, porém a personagem resume em si o dilema feminino: escolher entre seguir a conduta social que lhe é destinada ou transgredir. A menina encontra-se em plena transição, por isso é uma ameaça à ordem e deve ser controlada, vigiada. O possível namoro com o marinheiro americano poderia marcar o seu rito de iniciação, a sua escolha em sacrificar a sexualidade, suas primeiras inquietações de mulher, e então ela será recompensada com o reconhecimento social. Basta manter-se fiel aos scripts da feminilidade que ela receberá por mérito o marido ideal. O discurso moralizante leva a menina a se socializar nos moldes da cultura masculina predominante, a se perceber enquanto objeto do desejo masculino. A culpa pela condição feminina não recai, em nenhum momento, sobre o sexo masculino, e sim sobre a sociedade, que cria expectativas e comportamentos diferentes e valorativos para homens e mulheres. Neste conto, os sentimentos de culpa e de pecado são catalisados pela menina que incorpora os modelos cristalizados. A narrativa de Dinah Silveira de Queiroz, “A moralista”, retrata a visão que a filha tem do universo feminino, representado pelo episódio vivido pela mãe. Nesse olhar, a menina registra, no jogo das lembranças, as concepções, pontos de vistas próprios daquele espaço social e dos questionamentos de seu tempo, que sugeriam à mulher exercer certa vigilância sobre si mesma e sobre sua imagem perante a sociedade. Ainda nesse texto aparece o olhar da filha para a mãe, como a filtrar o comportamento de uma mulher naquele contexto socio-histórico. As filhas dessa geração representam a indagação sobre sua condição feminina. Endossarão ou conseguirão desvencilhar-se das amarras de uma ordem que as oprime? 283 Mulheres e a Literatura Brasileira Temos três escritoras da primeira metade do século XX, cada qual com o seu universo literário e sua visão de mundo que lhes permite representar as suas iguais. As mulheres desses contos encontram-se nos papéis de mães, filhas e adolescentes. Algumas reproduzem o discurso patriarcal, outras o questionam, enfim, de alguma maneira elas se encontram nos seus destinos de mulheres e se desencontram em suas subjetividades, mulheres no plural, com seus encantos, desencantos, encontros e desencontros. Referências ALMEIDA, Júlia Lopes de. Ânsia eterna: contos. Florianópolis: Editora Mulheres, 2013 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1972. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do conto. 9. ed. São Paulo: Ática, 1999. QUEIRÓZ, Raquel de. Tangerine-Girl. In: O melhor da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997. QUEIRÓS, Dinah Silveira de. A moralista. In: MORICONI, Ítalo. (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 180-185. ROCHA COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. STEVENS, Cristina. Maternidade e feminismo: diálogos na Literatura Contemporânea. In: ______. Maternidade e feminismo: diálogos interdisciplinares. Florianópolis: Mulheres / Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2007. 284 Mulheres e a Literatura Brasileira Hilda Hilst e o erotismo sagrado Leandro Soares da Silva1 Vitalina Araújo Rosa2 O feminino em Hilda Hilst O objetivo deste artigo foca-se no erotismo sagrado como uma prática libertadora do corpo – a transcendência - realizada a partir do estudo do texto “Rútilo Nada”, de Hilda Hilst, o qual será de vital importância para viabilizar uma compreensão em torno de uma temática peculiar nos demais escritos da autora: o sagrado, assim como seu elemento diametralmente oposto, o profano. Nesta leitura, utilizar-se-á das vias que a narrativa proporciona para evidenciar o exercício da sexualidade, como também da necessidade de compreensão do corpo como um portal para o divino. A persecução do elemento erótico como via de acesso ao sagrado revela-se uma forma de transgressão que nos leva a problematizar em torno do erotismo, ponte essencial para as estâncias sagradas, dentro da narrativa hilstiana. Como constará à frente, sua noção de erotismo sagrado propõe questionamentos importantes que permeiam as noções de sexualidade e identidade convencionais. No que se refere ao erotismo e ao sagrado, nos valeremos teoricamente, e m especial, de George Bataille, Leo Spitzer e de Michel Leiris. 1 Professor da Universidade do Estado da Bahia. Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Mestra em Linguagens e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz. 285 Mulheres e a Literatura Brasileira O texto “Rútilo Nada” se encontra revestido de uma linguagem que apresenta ressignificações da noção dualista de corpo versus espírito; seu questionamento é filosófico no sentido de unir sagrado e profano por meio do êxtase poético. “Rútilo nada” está incluído na edição da Globo no volume Rútilos (2001), publicado ainda em vida da autora, ao lado de uma coleção de outros contos intitulada “Pequenos discursos. E um grande”, que havia sido publicada em 1977. Originalmente, “Rútilo nada” foi lançado em 1993, sendo posterior a Cartas de um sedutor (1991), volume que integra a famigerada “trilogia pornográfica”. Esses livros são marcos na produção literária de Hilst pela abordagem erótica. O caderno rosa de Lori Lamby (1990), por exemplo, recontava as aventuras sexuais de uma menina de oito anos, numa linguagem despojada de eufemismos e apostando no uso de palavras de baixo calão, mas modulado na forma de falar de uma criança. Os livros ditos pornográficos, na verdade, são eivados de uma crítica irônica tanto à própria noção de pornografia quanto a de literatura. Além disso, o erotismo nunca esteve de fato ausente da produção hilstiana anterior, ainda que seu erotismo sempre tenha sido se equiparado à experiência mística. Assim, o surgimento de “Rútilo nada” pode ser considerado um retorno da autora às formas de tratamento do assunto que já se faziam presentes antes da “trilogia pornográfica” (que, de fato, é uma tetratologia: as prosas de Lori Lamby, Cartas de um sedutor e Contos d’escárnio. Textos Grotescos (1990), mais o pequeno volume ilustrado de poemas chamado Bufólicas, de 1992). O caso de “Rútilo nada” traz a novidade temática de abordar uma paixão entre dois homens. Enquanto os poemas de Hilst têm uma voz feminina muito clara e autodeclarada, o mesmo não se pode dizer de seus textos em prosa. Entre seus inúmeros narradores (contando com aqueles que surgem apenas em contos) só 286 Mulheres e a Literatura Brasileira cinco deles tem uma voz feminina. Cabe salientar que essas cinco vozes de mulheres que soam de suas páginas como narradoras pertencem a quatro dos melhores livros da autora: Hillé, personagem-título de Obscena senhora D; Maria Matamouros, da novela “Matamouros”, presente no livro Tu não te moves de ti; as duas narrativas com nome de “Agda”, em Kadosh; e Lori Lamby. Essas cinco vozes nem sempre apresentam pontos em comum, sendo o que mais lhes aproxima (à exceção de Lori) a angústia metafísica. Ao mesmo tempo, em todas elas existe uma forte pulsão sexual, que em Lori Lamby se compraz no sexo mais óbvio, enquanto que nas outras tem uma dimensão mais voltada para o sagrado. Essas vozes fazem um alto contraste com as vozes masculinas que somam a maior parte da narrativa de Hilda Hilst. Seus narradores são, em geral, homens maduros que se veem às voltas com uma epifania que lhes tira todo o sentido do comum e do banal. Eles estão sempre remoendo suas angústias, passadas ou presentes, e vivendo em profundidade o efeito dessas epifanias, que se mostram devastadoras. Em entrevista aos Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles dedicados a ela, Hilst fez uma afirmação no mínimo provocadora para nos fazer pensar na pouca presença de narradoras mulheres em sua prosa: A senhora D [Hillé], aliás, foi a única mulher com quem eu tentei conviver – quer dizer, tentei conviver comigo mesma, não é? As mulheres não são assim tão impressionantes, essa coisa de uma busca ininterrupta de Deus, como eu tive. Eu tenho uma certa diferença com as mulheres, porque sinto que elas não são profundas. Eu tenho um preconceito mesmo em relação à mulher. Nunca conheci mulheres muito excepcionais como, por exemplo, Edith Stein. Ela era uma 287 Mulheres e a Literatura Brasileira mulher deslumbrante e uma santa também. (INSTITUTO, 1999, p. 30). Dessas palavras poder-se tirar, num primeiro momento, uma conclusão desfavorável. Por outro lado, isso pode indicar uma recusa de Hilst em assumir um papel estereotipado dedicado exclusivamente às escritoras, na sua época: o de “autoras femininas”, como somente lhes fosse possível escrever a respeito da vivência das mulheres. Seu posicionamento quanto à ausência de profundidade nas mulheres só pode ser entendido sob a perspectiva de uma mulher que em nenhum momento de sua vida se colocou nos papéis tradicionalmente impostos ao seu gênero. Hilda Hilst nunca quis ter filhos, só se casou para satisfazer a última vontade da mãe, teve vários amantes e levou uma vida que, na sua época, era controversa para uma mulher. Já idosa, escreveu quatro livros que tratavam o sexo com uma naturalidade que lhe causou problemas e uma injustificada fama de libertina. Foi sempre uma inconformada diante da condição humana e da realidade política do Brasil. Suas narradoras representam apenas uma das faces do problema humano, e suas personagens femininas estão presas na condição social que lhes foi atribuída, mas paira sobre elas o tempo todo um critério crítico de horror ao convencional e à ignorância. Sua provocação em relação às mulheres só deve ser aceita tendo em mente que a própria Hilst pagou um preço pela sua liberdade pessoal como mulher e escritora ao desafiar as convenções de gênero em sua vida e revelar, em sua obra, uma ambição profunda de discutir o humano. Em A obscena senhora D, Hillé se refugia no vão da escada após a morte do marido e se vê perdida em elucubrações metafísicas, em luta contra Deus e a loucura, ao mesmo tempo em que infringe convenções com seu auto-isolamento radical. 288 Mulheres e a Literatura Brasileira Hillé é uma das personagens mais marcantes e perturbadoras da literatura brasileira. É uma de suas realizações mais bem construídas, pela capacidade de articular equilibradamente motivos e estilos que fazem parte de sua obra, tendo como resultado uma narrativa forte e incisiva: Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar o nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu? (HILST, 2001b, p.17). “Matamouros”, por sua vez, é a história de Maria Matamouros, mulher que convive com a mãe no campo e tem sua vida transformada após a aparição repentina de um estranho. Em matéria de estilo, é uma das maiores obras de Hilst. Numa prosa neobarroca, e por vezes clássica, de enorme lirismo e beleza, Matamouros nos conta suas perturbações psicológicas e (mais uma vez) metafísicas, além da relação conturbada com a mãe, a quem ama e odeia na mesma medida, e com o homem com quem se envolve: Então abracei-a nuns soluços altos, Haiága Haiága mãe, vou morrer de pura e de cansante mágoa, nesta terra não há felicidade, sei que não fui boa quando ainda menina, nem depois e nem o sou agora mas tenho no de dentro tanto amor por esse homem bendito que chegou à casa, se o tomam de mim anoiteço como a noite de sempre no comprido poço, hei de ser eternamente meia-noite, buraco no fim de uma pedra 289 Mulheres e a Literatura Brasileira num confim de abismo, e deslizei colada ao seu corpo, corpo de mãe querido. (HILST, 2004, p. 105). As duas Agda, presentes no volume intitulado Kadosh, são e não são espelho uma da outra. Ao mesmo tempo em que podem ser duas versões de uma mesma personagem, conta m histórias muito diferentes no conteúdo e na linguagem. Enquanto a primeira Agda faz um solilóquio metafísico, a segunda é cobiçada e morta por três homens, logo após ter como consorte um anjo que lhe surge e de quem tem um filho: [..] o que ele dizia no quarto de Agda, dizia: assim como tu és, eu quero assim, não é nada com o corpo, que me importa o teu corpo? É o clarão que tens, o sortilégio, o ímpeto, nada em ti é penumbra, Viva Iluminada, existo porque a cada instante refazes o que não é triste em mim. [Agda 1] (HILST, 2002, p. 28-29). Se o teu osso de ponta é que desaparece, Kalau, e se transforma em pássaro ou cordeiro, este corpo de Agda vai sair da casa, vai atravessar o campo e aparecer defronte do cavalo-três, e então, Kalau, deves fazer o teu gesto-raiz, ponta mais aguçada do que a faca é a ponta do teu punhal, esse enfiado na tua cinta de couro, esse que guardaste para mim. [Agda 2] (HILST, 2002, p. 115). A última das narradoras hilstianas é, talvez, a mais radical de todas: Lori Lamby, uma menina de oito anos que escreve num caderno rosa suas aventuras sexuais como prostituta e libertina. Trata-se de um dos livros controversos da autora, pelos quais ganhou a distinção de escritora pornográfica. Embora O caderno... se configure, para qualquer um que o leia até o fim, como exercício de exímia realização em prosa, seu conceito foi à época prejudicado em nome do 290 Mulheres e a Literatura Brasileira pudor e da hipocrisia. Embora não se possa negar a existência nesses livros de conteúdo expresso de autêntica pornografia, também não se pode descartar o tratamento dado a ele, do mesmo tipo que se encontra nos demais trabalhos da autora: Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que eu sei porque mamãe e papai me falaram para eu contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história. Agora eu quero falar do moço que veio aqui e que mami me disse agora que não é tão moço, e então eu me deitei na minha caminha que é muito bonitinha, toda cor de rosa. E mami só pôde comprar essa caminha depois que eu comecei a fazer isso que eu vou contar. Eu deitei com a minha boneca e o homem que não é tão moço pediu pra eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu pra eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei. Então ele começou a passar a mão na minha coxa que é muito fofinha e gorda, e pediu que abrisse as minhas perninhas. Eu gosto muito quando passam a mão na minha coxinha. (HILST, 2005, p. 13-14). Lori, nas suas fantasias eróticas, acusa a sexualidade feminina ainda reprimida e oculta, mas mesmo assim dá vazão aos seus instintos com a ampla liberdade que só a um homem seria concedida (embora inconcebível numa criança). Maria Matamouros descobre as complexidades inerentes nas relações sociais entre as mulheres, enquanto que as duas Agda se movem num terreno onde o masculino representa aquilo que é perigoso; só o divino lhes toca sem lhes absorver a condição humana, antes amplificando-a. Hillé, em seu delírio transcendente, sofre na pele o significado de abdicar de uma vida convencional. Todas essas personagens-narradoras tratam de assuntos que, embora também digam respeito à condição feminina, são de interesse comum a todas as pessoas. Hilda Hilst também escreveu sobre a homossexualidade 291 Mulheres e a Literatura Brasileira masculina, comprovando o provérbio latino repetido ao longo de toda sua obra: “nada que é humano me é estranho”. A prevalência de narradores masculinos gerou apenas alusões à homossexualidade, com a exceção de trechos de Cartas de um sedutor, “Rútilo Nada” e “Lucas, Naim”. A edição da Globo traz estes dois últimos no mesmo volume. Em “Lucas, Naim”, o tema do amor difícil e do sentimento desestruturante entre homens aparece como presságio da história de Lucius e Lucas, de “Rútilo Nada”. Ao tomar este último texto como objeto deste artigo queremos destacar, a partir dele, que a prosa de Hilst supera a divisão binária de gêneros ao encenar a paixão como uma voragem eróticosagrada que tem como protagonista o corpo humano. “O amor é duro e inflexível como o inferno” A partir da epígrafe acima, de Tereza Cepeda y Ahumada, a narrativa conta a história de Lucius Kod e sua paixão pelo jovem Lucas, namorado de sua filha. O tom é dado desde a primeira frase do texto: “Os sentimentos vastos não têm nome”. Essa citação pode ser lida ambiguamente. Sabendo se tratar de uma paixão homossexual, “sem nome” reverbera no antigo dito wildeano do “amor que não ousa dizer seu nome”, mas também como sentimento inominável, e nesse sentido mais forte que as palavras. Logo no início da história, a sentença é reescrita: “Os sentimentos vastos não têm boca” (HILST, 2001a, p.85), já nos sugerindo não se tratar apenas da força amorosa, idealizada, mas também de uma pulsão erótica. A epígrafe de Santa Teresa d’Ávila anuncia uma comparação frequente, como veremos, presente na história, a respeito da dureza e do inflexível como contrastes da leveza inefável do sentimento, ou, em outros termos, de 292 Mulheres e a Literatura Brasileira como a materialidade do corpo é necessária para aceder ao êxtase. A paixão de Lucius Kod desestabiliza não somente suas certezas pessoais como também desafia seus mais próximos, especialmente seu pai. Contudo, não é uma história sobre o amor enquanto tragédia; os dois amantes mantêm uma relação na qual corpo e sentimento, instintos baixos e altos, por assim dizer, são cruciais para a paixão. “Rútilo nada” conta, na verdade, o pranto de louvor a Lucas que, sabemos desde o início, está morto. Também por esse motivo, carne e espírito se tornam a mesma substância. Como é comum na prosa hilstiana, o tempo narrativo é desestabilizado em favor de várias vozes narradoras que se sucedem no texto sem a ordem convencional. Essas vozes seguem em fluxo contínuo de delírio, sendo discerníveis sobretudo a voz de Lucius e de seu pai e, no final do livro, a voz de Lucas expondo os eventos que culminaram na sua morte e na série de poemas escritos por ele. Ao descrever seu envolvimento com Lucas, Lucius usa um vocabulário cuja força erótica é contundente: Porque já era noite para mim e aquele era o meu instante de maturação e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se um tigre me lanhasse o peito. O salto. O pânico. Translúcida como se marfim do jade se fizesse, translúcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres de uma certa escada na eloquência da tarde (HISLT, 2001a, p. 87-88). À poderosa imagem do peito açoitado pela garra do tigre, une-se o ideal clássico do corpo jovem comparado ao marfim. Translúcido, como uma imagem suspensa no ar, atravessada pela luz, o corpo do amado é ao mesmo tempo ideal e voragem, fazendo sangrar a carne do amante. O ideal de beleza é citado de maneira clara. Aquilo que desloca Lucius de seu lugar como 293 Mulheres e a Literatura Brasileira professor universitário é a força do belo encarnado em Lucas. Essas imagens de concretude e inefabilidade se unem de novo: Eu, um homem, suguei teu sexo viscoso e cintilante, deboche de clarão e ternura, revi como os afogados a rua do meu passo a via/ teu adorado corpo luzente, a boca espessa, Lucas Lucas, a madrasta não roerá teus dentes... (HILST, 2001a, p. 90) A narrativa usa, com frequência, o contraste entre a materialidade dos minérios e o sublime das paixões. Assim, na cena do enterro do amante, Lucius recorre a essa retórica para expressar sua agonia: Mas indigno e desesperado me atiro sobre o vidro que recobre sua cara, e várias mãos (...) quem sabe as mãos de teus jovens amigos repuxam meu imundo blusão e eu colo a minha boca na direção da tua boca e um molhado de espuma embaça aquele cintilância que foi a tua cara. Grito. Gritos finos de marfim de uma cadela abandonada tentando enfiar a cabeça na axila de Deus. (...) estou caindo e ao meu redor as caras pétreas, quem são? Amigos? Minha filha adolescente? Meu pai? Teus jovens amigos? Caras graníticas, ódio mudo e vergonha (...). (HILST, 2001a, p. 8586). O tópico do mineral e suas associações possíveis – a impenetrabilidade, a separação, a solidez – retornam nos poemas de Lucas, que têm como tema os muros: Muros intensos E outros vazios, como furos. Muros enfermos E outros de luto Como todo de mim 294 Mulheres e a Literatura Brasileira Na tarde encarcerada Repensando muros. A alma separada de ti Vai conquistar a chaga de saltar. (HILST, 2001a, p. 101). A voz narrativa de Lucas conta a história de sua própria morte. Dois homens, contratados pelo pai de Lucius, o surram e o estupram. O sadismo da cena é de uma crueldade quase surrealista: “um deles me espancava com a fivela do cinto até que o outro ejaculasse” (p. 98). Ou: “Bateram-me na boca também e beijaram minha boca esfacelada” (p. 98). Deixado nesse estado, Lucas recebe a visita do pai de seu amante, que lhe pede para se afastar do filho. No final, ele revela: Eu estava de bruços e suspendi a cabeça para ver. A boca do teu pai tremia. Ele beijou minha boca ensanguentada. Eu sorri. De pena da volúpia. (HILST, 2001a, p. 99). Após isso, Lucas se mata. A pena da volúpia O erotismo de “Rútilo nada” lida com contrastes. Ao mesmo tempo que é carnal, é êxtase divino; marfim e éter, lágrima e orgasmo, ele não se apresenta como contraditório, mas como se essas duas dimensões fizessem parte da mesma qualidade da experiência. Não é só o amor entre Lucius e Lucas que se manifesta dessa forma, mas também a tortura do rapaz (conduzida como jogo sexual) e o desejo reprimido do pai, que páginas antes havia dito impropérios homofóbicos a Lucius. A prosa de Hilda Hilst lida muito bem com essa não separação entre corpo e espírito ou entre suas experiências definidoras. O erotismo não tem a função de deleitar apenas o 295 Mulheres e a Literatura Brasileira corpo, ou de só ser experienciado como prazer; corpo e espírito são uma entidade sagrada, de onde o primeiro exerce o papel de portal para o divino. A relação sexual, o corpo que sangra ou o desejo que não se reprime são rituais de transgressão por meio dos quais é possível uma espécie de ascese espiritual. Essa dimensão sacralizadora do corpo é exacerbada pelo amor homossexual da história, fonte da repressão e do tabu que ela encena, mas não é particular a qualquer orientação sexual. Nesse caso, contudo, o corpo é objeto exposto ao sacrifício e ao olhar extasiado do outro. Os textos hilstianos revelam uma concepção divina que contempla uma profunda humanização de Deus mais uma divinização do humano. O erotismo sagrado passa a ser problematizado a partir da ideia da liberação de um “eu” que se insurge com o contato com o sexo ou a morte. Iluminado por via do prazer e da dor, o corpo é tocado pela presença de Deus. Essa é a transgressão essencial encontrada na prosa de Hilst. Tudo que pode ser lido como erótico, pornográfico e carnal simboliza simultaneamente o sagrado, o divino e o espiritual, sem transição ou linearidade. A relação de Lucius e Lucas não é transgressora porque se trata do desejo correspondido ente dois homens, mas porque a materialidade da paixão em nenhum momento perde o enlevo sagrado. Por fim, o corpo do jovem amado se transforma em corpo sacrificial: martirizado e erotizado, Lucas se torna o objeto supremo da paixão. A mesma retórica apontada antes pode ser vista na citação a seguir, sobre o sexo dos amantes: Escorpiões de seda. Pulsando silencioso ali entre as frinchas. Ou eras o outro no quase escuro do quarto Úmido. De seda. Tua macia rouquidão. Igualzinha a macia rouquidão de uma mulher, eras o meu eu pensando em muitos homens e em muitas mulhers, um ilógico de carne e seda, um conflito esculpido em harmonia, luz dorida sobre as ancas estreitias, 296 Mulheres e a Literatura Brasileira o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a superficíe esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submissão de uma fêmea enfim subjugada, e aos poucos um macho novamente, altivo e austero, enfiando o sexo na minha boca (HILST, 2001a, p. 96). Ameaça (escorpião) e conforto (seda), polos opostos da matéria e do inefável vão sendo continuadamente reiterados pela trama, até culminar na morte de Lucas. A relação corpo/espírito possui uma larga representatividade na obra de Hilda Hilst, que busca abordá-la num sentido amplo, exaltando corpo e espírito por meio do êxtase sagrado. O percurso rumo ao invisível e à transcedência exige que se livre do peso das vivências da matéria e se eleve a mente ao encontro do divino. É preciso transpor a matéria, casa do sofrimento humano, para atingir o estado de êxtase: “Antes do derradeiro, antes da sombra, pensando naqueles muros que vi, no úmido deslizante sobre a pedra, na solidão dessa matéria feita por Deus, na minha própria solidão. Mulheres, homens, a mãe que me acariciava extasiada” (HILST, 2001a, p. 97). Nem o ato sexual foge a esse tipo de contraste: “Viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. Pela primeira vez, em toda a minha vida, eu Lucius Kod, 35 anos, suguei o sexo de um homem.” (HILST, 2001a, p. 96). Essa aproximação do erotismo com o sagrado é lida como transgressão também ao denunciar a perspectiva dualista, seja religiosa, filosófica ou artística. Transgredir significa, nesse contexto, descrever a potência do corpo. Georges Bataille afirma que a expressão “erotismo sagrado”, contudo, é dúbia, na medida em que todo erotismo é sagrado, mas encontramos os corpos e os corações sem entrar na esfera do sagrado propriamente dito. Ao passo que a procura 297 Mulheres e a Literatura Brasileira sistemática de uma continuidade do ser para além do mundo imediato requer um esforço essencialmente religioso; em sua forma familiar no Ocidente, o erotismo sagrado se confunde com a busca, exatamente com o amor de Deus [...]. (BATAILLE, 2004, p. 26-7). No clássico Espelho da tauromaquia, Michel Leiris analisa as touradas espanholas sob a ótica do erotismo sagrado, e escreve: O que diferencia essencialmente o erotismo de outras atividades nas quais o corpo humano (seminu e como que simbolicamente despojado) ocupa o centro – como as ações ligadas aos esportes ditos “atléticos” – é a presença daquele elemento torto cuja junção com o reto faz irromper – ardência do derradeiro transe – o sentimento do sagrado (isto é: de algo posto à parte, como tabu, em posição de ápice vertiginoso por estar simultaneamente acima e ao revés do comum, sem-igual e fora-da-lei, prestigioso e rejeitado), centelha a marcar subitamente a união estridente de duas naturezas – torta e reta – no momento em que estamos separados da tangência por um hiato infinitesimal. (LEIRIS, 2001, p. 55-6). O erotismo nas narrativas hilstianas possui exatamente essa carga de sagrado não só porque representa um corpo em direção ao divino, mas sobretudo porque entende o espírito como algo indissociável do corpo: mesmo no que poderia ser tomado por “baixo” ou “aviltante”, Hilst canaliza uma brecha para alcançar o mais alto. A força dessa erótica pode soar repulsiva ou blasfema, mas é um topos da arte e da literatura místicas. Assim como em San Juan de la Cruz, John Donne, ou no já citado Georges Bataille, misticismo e erotismo se complementam; contudo, é ainda mais importante o fato de que eles se fundem nesse tipo de discurso. Um exemplo 298 Mulheres e a Literatura Brasileira famoso é o êxtase místico de Santa Teresa d’Ávila, uma descrição bastante acurada do orgasmo que também é descrição de encontro com o divino: Quis o Senhor que eu tivesse algumas vezes esta visão: eu via um anjo perto de mim, do lado esquerdo, em forma corporal [..]. Vi que trazia nas mãos um comprido dardo de ouro, em cuja ponta de ferro julguei que havia um pouco de fogo. Eu tinha a impressão de que ele me perfurava o coração com o dardo algumas vezes, atingindo-me as entranhas. Quando tirava, parecia-me que as entranhas eram retiradas, e eu ficava toda abrasada num imenso amor de Deus. A dor era tão grande que eu soltava gemidos, e era tão excessiva a suavidade produzida por essa dor imensa que a alma não desejava que tivesse fim nem se contentava senão com a presença de Deus. Não se trata de dor corporal; é espiritual, se bem que o corpo também participe, às vezes muito. [...] Quando começa esta dor de que falo agora, parece que o Senhor arrebata a alma e a leva ao êxtase, não havendo como ter mágoa ou padecer, porque o deleite logo vem. (D’ÁVILA, 2001, p. 194-5). A retórica de imagens do trecho acima é parecida com a apontada antes, nas metáforas de carne e mineral de “Rútilo nada”. Dardo, ferro e fogo penetram o corpo, embora a dor seja, principalmente, sentida como espiritual. Bataille compara o sacrifício na antiguidade com a relação erótica, violência não mais controlada pela razão, mas que anima os órgãos, levando-os a anulação de si mesmos: “O que o ato do amor e o sacrifício revelam é a carne. O sacrifício substitui a vida ordenada do animal pela convulsão cega dos órgãos”. (BATAILLE, 2004, p. 143). Em “Rútilo Nada”, Lucius, segundo sua própria definição, se via como “conceito redondo. liso” com uma 299 Mulheres e a Literatura Brasileira “casca tão consistente” (HILST, 2001a, p. 87). Tinha o corpo fechado protegendo-o do mundo, mas o momento em que conheceu Lucas principiou a ruptura da ordem social, deixando-o vulnerável e aberto às possibilidades concretas do amor: “Posso deduzir que escapei da casca consistente, (...) que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e num instante abriu-se. Abriu-se por quê? Por que já era noite para mim e aquele era o meu instante de maturação e rompimento.” (HILST, 2001a, p.87-88). Esse corpo sublimado pelo contato com a experiência erótica, que beira a noção do puro e do impuro, se dá ao orgasmo numa linguagem profundamente lírica: “mas foi também um sol se adentrando na boca e na luz azulada desse sol havia uma friez de água de fonte” (HILST, 2001a, p.99). Já o corpo de Lucas, ideal do belo, paga com dor e morte seu papel de desejado, mas com isso consegue também separar-se desse mundo, atingindo pelo sofrimento e pelo gozo um êxtase definitivo. Todas as formas pelas quais o erotismo sagrado é definido por Bataille são encontradas no texto de Hilda Hilst: a busca da transcendência através do corpo, a transgressão e a interdição, a morte e a violência. Que ela tenha preferido situar a discussão dentro de um viés homoerótico pode fazer supor que seu livro trata de homofobia ou da experiência homossexual. Ao escrever com tintas homoeróticas, a autora radicalizou as discussões sobre normatividade e repressão sexual. Apenas a tragédia de amor entre dois homens sugere uma outra transgressão, dessa vez nos padrões morais que regem a sociedade. Mas a homossexualidade, tal qual se encontra em “Rútilo Nada”, funciona sobretudo como metáfora do interdito, assim como a sexualidade feminina tem sido explorada com o mesmo sentido por outros escritores. 300 Mulheres e a Literatura Brasileira Em A obscena senhora D., texto onde a narradora encara a decrepitude do corpo como desafio à chama viva do desejo, o interdito é a aproximação blasfema com Deus: Convém lavarmo-nos, pêlos e sombras, solidão e desgraça, também lavei Ehud no fim algumas vezes, sovacos, coxas, o escuro buraco, sexo, bolotas, Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado [...], impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás [...]. Ó buraco, estas aí também no teu senhor? [...] E dizem os doutos que Tua Presença ali é a mais perfeita, que ali é que está o sumo, o samadhi, o grande presunto, o prato. (HILST, 2001b, p. 45). O interdito é questionar se Deus está também no ânus, no sexo; mas a procura da genitália num suposto corpo de Deus revela mais que a aproximação do humano com o divino, mas um imbricamento e uma vontade de entrega característicos da personalidade mística. É exaltação e mistério. Num belo ensaio sobre a autora, Eliane Robert Moraes escreve o seguinte sobre essa intimidade blasfema: Rebaixado ao nível dos atos mais abjetos, o Deus-porco de Hilda Hilst já não é mais a medida inatingível que repousava no horizonte da humanidade. O confronto entre o alto e o baixo, além de subverter a hierarquia entre os dois planos, tem portanto, como consequência última, a destituição da figura divina como modelo ideal do homem. Disso decorre uma desalentada consciência do desamparo humano, na qual é possível reconhecer os princípios de um pensamento trágico, fundado na interrogação de Deus diante de suas alteridades, que aproxima a ficção de Hilda Hilst à de Georges Bataille. (MORAES, 1999, p. 119). 301 Mulheres e a Literatura Brasileira Tomar o erótico como experiência sagrada também é derrubar a barreira entre o profano e o sagrado. O trato hilstiano do assunto não apenas quer glorificar o corpo, como uma experiência sensorial radical, mas também chamar a atenção para sua fragilidade de mortal. O elemento divino entra nessa equação porque, em última análise, humanizar o divino é fazer com que ele adentre nos mistérios do corpo e se torne compreensível. Isto é um mistério da paixão: talvez a palavra mais exata, se pudéssemos classificar a obra da autora com um único vocábulo. A paixão transborda do texto de Hilda Hilst numa radicalidade ubíqua. Contudo, há que se ressaltar a angústia implícita nessas atitudes: esse desejo não encontra repouso na comunhão cósmica que ele anuncia, sobretudo porque tal comunhão não acontece de fato. Daí as súplicas perenes, a blasfêmia cômica, a aproximação entre os opostos que revelam o paradoxo do que é inatingível. Como em A mais forte, de Strindberg, Deus permanece calado durante todo o monólogo que lhe é dirigido e por isso é motivo de revolta e escárnio. No final, ficamos em dúvida sobre quem, de fato, haveria de ser o mais forte. Fazendo uma breve comparação com as artes plásticas, encontraremos nos corpos retorcidos e nas cenas lúgubres de Francis Bacon (1909-1992), carregadas em tons de vermelho e preto, a mesma paixão desenfreada e ambígua em relação à vida, e um posicionamento cruel que revela não somente um “mundo sem Deus”: a fragilidade da carne, exposta em seus quadros (como o terrível e fascinante tríptico Crucificação de 1965), demonstra, com suas deformações abstratas, a impossibilidade, talvez, de qualquer redenção a não ser ao estatuto da própria mortalidade. O horror das cenas de Francis Bacon catalisa, graças à força da imagem, o horror diante do vazio que a literatura de Hilst tenta evitar. 302 Mulheres e a Literatura Brasileira Em “Rútilo nada”, a morte sacrificial de Lucas é a fronteira que o êxtase divino de Lucius não consegue cruzar, pois a experiência desnorteadora da paixão é censurada pelo aniquilamento do corpo do amado, suspensa por meio da violência como resultado de sua transgressão. Os muros que Lucas toma por poemas se revestem de sentidos além dos convencionais, não são apenas barreira e matéria, mas condicionantes da própria experiência: derrubar os muros, ou ultrapassá-los, é imagem da própria interdição. O corpo e o espírito em êxtase sagrado: com essa imagem, Hilda Hilst alimenta nossa imaginação acerca do desejo profundo de suas personagens, perdidas na deriva sensual da carne e esperançosas de um encontro transcendental. Com isso, une o alto e o baixo, o espírito e a carne – numa cobiça de que o êxtase e a vida sejam mais completos e transgressores. Erotismo e mística se misturam com homogeneidade e beleza, e é por isso que a ficção “pornográfica” escrita por ela no começo da década de 90 só assustou aos que desconheciam sua obra. A poética hilstiana lida com o cárcere da carne tentando se libertar de si mesma e alcançar deus: mas não quer, em momento algum, escolher entre essas opções. E mesmo essa libertação não significa uma ascese negativa, uma renúncia: significa uma expansão dos limites do próprio desejo, até Deus. Referências BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Claúdia Fares. São Paulo: Arx, 2004. HILST, Hilda. Rútilos. São Paulo: Globo, 2001a. HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Globo, 2001b. HILST, Hilda. Kadosh. São Paulo: Globo, 2002. 303 Mulheres e a Literatura Brasileira HILST, Hilda. O caderno rosa de Lori Lambi. São Paulo: Globo, 2005. HILST, Hilda. Tu não te moves de ti. São Paulo: Globo, 2004. INSTITUTO MOREIRA SALLES. Hilda Hilst. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 8, out. 1999. MORAES, Eliane Robert. Da medida estilhaçada. In: INSTITUTO MOREIRA SALLES. Hilda Hilst. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 8, out. 1999, p. 114-126. LEIRIS, Michel. Espelho da tauromaquia. Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. SPITZER, Léo. Três Poemas sobre o êxtase. Tradução Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 304 Mulheres e a Literatura Brasileira A sedução de Caetana: o feminino e o selvagem na Morte sertaneja Marcos Paulo Torres Pereira1 A consciência da morte e, com ela, a consideração do sofrimento e da miséria da vida é o que dá o mais forte impulso à reflexão filosófica e às interpretações metafísicas do mundo. (Arthur Schopenhauer) Não há melhor meio para se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina. (Sade) Meu olhar vagabundo de cachorro vadio Olhava a pintada e ela estava no cio. (Alceu Valença) No curto ensaio intitulado “Sexo e morte”2, Ariano Suassuna explica sua visão acerca do sexo, exaltando-o como o “êxtase, a crispação do Amor, do carinho e da entonação amorosa” (2008, p. 225), o momento de epifania e de contato entre o divino e o humano. 1 Doutorando em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Professor Assistente de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Professor pesquisador nas áreas de Literatura Brasileira e Portuguesa, no Núcleo de Pesquisas em Estudos Literários (NUPEL), da Universidade Federal do Amapá. 2 O ensaio, publicado originalmente em 1980, foi reimpresso na coletânea de textos de Ariano Suassuna organizada por Carlos Newton Júnior na obra Almanaque Armorial, de 2008. 305 Mulheres e a Literatura Brasileira A fim de dar peso à sua definição, recorre ao aspecto erótico ulterior à Caetana, a morte sertaneja, para interrelacionar simbolicamente a morte e a excitação sexual em repositório simbólico de transformação. Suassuna (2008, p. 225) descreve a Caetana como “fêmea e amante para os homens, macho e amante para as mulheres, materna, paterna e terrível para todos”, contudo no Romance d’A Pedra do Reino e na História do Rei Degolado nas Caatingas do Sertão ela se manifesta somente no seu caráter feminino, corporificando-se em Moça Caetana, com sua cobra-coral e seus gaviões, a jovem e cruel divindade negro-vermelha ao mesmo tempo terrificante e acolhedora em sua natureza. Divindade mitificada, a Caetana é personificada em moça e em onça; em profano que costuma sangrar seus assinalados com suas unhas longas e afiadas como garras (SUASSUNA, 2014, p. 305); e em sagrado que se faz conhecer aos profetas e a suas vítimas como mulher cujo corpo desperta a lascívia daqueles que receberão seu abraço. A Morte, imbuída de símbolos que evocam o divino, o erotismo e a sedução, o perigo e a expressão de um devir de fatalidade, de finitude, torna-se ícone do poder feminino de sedução. Torna-se, ainda, mediante a materialidade do corpo e do desejo erótico, a condutora de suas vítimas à transcendência, à manifestação do “Sagrado e da Beleza, a fronteira de Deus” (SUASSUNA, 2008, p. 225) no gozo do ato sexual, por isso impossível de ser suportada pelo humano de maneira incólume. A definição do ato sexual empregada por Ariano dialoga com o conceito de “pequena morte”, defendido por Georges Bataille (2004): a prostração consecutiva após o sexo que se assemelha a morte no esvair de energias, de animus, que abandonam os corpos após o orgasmo. Entretanto, não é apenas no esvair-se de energias que se ancoram as referências 306 Mulheres e a Literatura Brasileira simbólicas que unem os conceitos de “sexo” e “morte”, mas na acepção do sexo como reprodução (que em si mesma traz a essência da continuidade), tornando-se elemento rompedor da descontinuidade3 dos seres pela necessidade imperiosa de permanecer, de derrotar o esquecimento pela memória e pela natureza daqueles que serão gerados, numa nostalgia da continuidade perdida4; e naquela que vai além da mera reprodução, no sexo que se assoma de erotismo, quando este “se define pela independência do gozo erótico e da reprodução como fim” (BATAILLE, 2004, p. 21), no constructo psicológico, simbólico e imagético do desejo e dos prazeres, no qual se realiza “a substituição do isolamento do ser, a substituição de sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” (BATAILLE, 2004, p. 26) adquirido pela relação com o outro. Para Bataille, há uma distinção primeva entre as concepções de reprodução e erótico, a humanização do sexo, pois animais e humanos fazem a atividade sexual de reprodução, porém somente os humanos assomam ao ato tal constructo do desejo e dos prazeres imanentes ao erotismo. Os conceitos de ”continuidade” e “descontinuidade” foram empregados por Bataille, respectivamente, para se referir à necessidade de sobrevivência, de aversão à morte (mesmo a ela se relacionando, visto que somente com a ciência da finitude que o ser busca evita-la), e ao aspecto de isolamento entre os indivíduos (nascemos sós e morremos sós): “entre um ser e um outro há um abismo, uma descontinuidade. (...) Tentamos nos comunicar, mas nenhuma comunicação entre nós poderá suprimir uma diferença primeira. Se vocês morrerem, não eu quem morro. Somos, vocês e eu, seres descontínuos” (BATAILLE, 2004, p. 22). 4 “Ao mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duração deste perecível, temos a obsessão por uma continuidade primeira, que nos religa geralmente ao ser”. (BATAILLE, 2004, p.26) 3 307 Mulheres e a Literatura Brasileira Autor que fora influenciado pelos escritos de Bataille, Michel Foucault (1979) explica que imbricado à sexualidade encontram-se relações de poder (sociais, históricas, políticas, religiosas etc.) que se projetam sobre o corpo, sobre o prazer e suas manifestações, fazendo com que o poder que se exerceu sobre o sexo definisse a sexualidade, não no que tange a suas proibições, mas sim no que se refere às suas concepções de “verdade”. Busca examinar a existência e o papel do discurso de proibição sobre o sexo, que se via atrelado a um regime de saberes que articulava as relações, mecanismos, efeitos e dispositivos de poder ao prazer, num quase dístico, “podersaber-prazer”, responsável por sustentar um discurso cuja presença se fazia sentir em níveis diferentes da sociedade, em espaços íntimos e individuais, em extensões variadas e específicas, questionando quem fala e a partir de que lugares e instituições se pode falar sobre o tema. Em “Não ao sexo rei”, Foucault critica e ressalta o caráter paradoxal do discurso que desenvolve a concepção de sexo, porque, na mesma proporção que ativa o interdito, incita e é incitado a revivifica-lo como a “verdade” do sujeito nas sociedades modernas. Esta “verdade”, originada no ocidente a partir do cristianismo, erigiu-se na máxima “para saber quem és, conheças teu sexo” tornando-se expressão axiomática de instauração de poder, à proporção que sua prática se viu transformada em tabu, em proibição, pois o “sexo foi aquilo que, nas sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em discurso” (FOUCAULT, 1979, p. 230), inter-relacionado o princípio da salvação ao domínio de suas práticas, ao calar de seu relato 5, à obscuridade de suas imagens, entretanto transformando-o em discurso, que a “Poder falar da sexualidade se podia muito bem e muito, mas somente para proibi−la”. (FOUCAULT, 1979, p. 230). 5 308 Mulheres e a Literatura Brasileira sociedade “produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detêm por esse motivo poderes específicos” (FOUCAULT, 1979, p. 231). Quando inquerido por Bernard Henri-Lévi acerca do poder como aquilo que censura e aprisiona, respondeu: De modo geral, eu diria que o interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais de poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo, produtivas. (FOUCAULT, 1979, p. 236) Agamben (2010) retoma uma dessas “verdades” sobre o sexo ao analisar uma das formas de poder que se manifesta no ocidente através do discurso do cristianismo, a representação simbólica que a nudez adquire nesse imaginário. O autor aponta que a nudez neste discurso aparece nos primórdios da humanidade somente em dois momentos: o primeiro, logo após o pecado do fruto proibido, quando despidos da graça os patriarcas da humanidade confeccionam tangas com folhas de figueira; e, uma segunda vez, quando se despem dessas para vestirem túnicas de pele confeccionados por Deus. E até mesmo nestes instantes fugidios, a nudez só aparece por assim dizer negativamente, como privação da veste de graça e como presságio da esplendorosa veste de glória que os beatos receberão no paraíso. Uma plena nudez dar-se-á, talvez, somente no Inferno, no corpo dos condenados irremissivelmente oferecido aos tormentos eternos da justiça divina. Não existe, neste sentido, no cristianismo uma teologia da nudez, mas tão-só uma teologia da veste. (AGAMBEN, 2010, p. 74) 309 Mulheres e a Literatura Brasileira “O problema da nudez é, então, o problema da natureza humana na sua relação com a graça”, afirmou Agamben (2010, p. 77), evocando a percepção de que o caráter proibitivo deste discurso emana não tão-somente de um dispositivo teológico das vestes, porém numa apreensão de que o pecado é que despira a humanidade da graça divina. Em outros termos, mesmo que antes do pecado a humanidade não possuísse vestes, a nudez não lhe era conhecida porque a graça divina cobria-lhe a percepção dos corpos nus. O discurso que apregoa que a nudez é a perda da graça divina é o mesmo que apregoa que o desnudamento é desumanização do indivíduo, seja por ordem religiosa, seja por ordem social (na compreensão das vestes como empecilho à visão de outrem às partes pudicas daqueles que se encontrassem desnudos) e/ou cultural (por esse gerar uma perda de conexão do desnudo com a cultura, pois as vestes separariam o humano do animalesco e a nudez o aproximaria do natural). Sempre que Quaderna faz referência em seus relatos ao sexo, a figura da mulher é reduzida, objetificada, como se coubesse a ela somente o papel de instrumento ao prazer e ao desejo erótico do homem, que a domina, a cala e a cobre. Os poderes exercidos no sertão produzem uma “verdade” que se matiza em recurso redutor, “coisificante”, no qual o feminino é inferior ao masculino. No Folheto XXXIX, “O Cordão Azul e o Cordão Encarnado”, temos um exemplo desse discurso: Quaderna emprega boa parte do capítulo explicando as divergências entre seus companheiros, Clemente e Samuel, afirmando que em tudo discordavam e que o espírito combativo destes fazia com que se posicionassem em desacordo em tudo que lhes fosse tema, literatura, história, filosofia... E, quando o assunto era o sexo, assim estabeleciam: 310 Mulheres e a Literatura Brasileira Do ponto de vista social, o sexo masculino, mais forte, dominador e explorador do outro, era da Direita, e o sexo feminino, explorado, fraco, ressentido e revoltado, da Esquerda. Mas, do ponto de vista do gosto, o sexo masculino, sóbrio e despojado, era da Esquerda, enquanto o feminino, com o amor pelos tecidos e pelas joias, era da Direita6. (SUASSUNA, 2014, p. 255) Mesmo sob perspectivas distintas, a concordância sobre o papel feminino era clara no discurso: estereotipar sua representação. O apagamento da condição humana do feminino, de sua potência de escolha e de vontade mediante o discurso – proferido pelo masculino – reducionista em presa, em explorado, fraco7, constitui discurso de poder, pois a transfiguração da imagem em estereótipo é, por natureza, ação política de instauração, preservação e manutenção do poder, ao impedir que o Outro possa exercer a chancela de atuação social. O discurso da virilidade masculina elegeu quais representações simbólicas determinariam o feminino, quais os traços ou características que, além de o identificarem, gerariam um artefato, um repositório, do que seria para o homem a mulher, numa afirmação de si e exclusão do outro. 6 Apesar de Quaderna, neste enxerto, fazer alusão aos posicionamentos de Clemente e Samuel, fica evidente sua anuência ao estabelecido, não somente por não contestar a visão de seus companheiros, e sim por considerar axiomática a asserção. 7 A transfiguração da imagem em estereótipo no jogo de poder é uma via de mão dupla, visto que na mesma medida que reduz a representação simbólica do feminino à condição de fraca, de presa, eleva o masculino na representação de virilidade, de força, de predador. 311 Mulheres e a Literatura Brasileira A identidade potencializa o indivíduo: inserido no grupo, ele recebe uma chancela para atuar nas práticas sociais que, em essência, constituem-se como representações solidárias, um poder de agir que concentra componentes da ação comunal, matizados por esferas de representações nas quais o grupo se insere. Em outras palavras, quando práticas sociais requerem que se fundem, estabeleçam ou se concretizem vínculos sociais, as representações (nas modalidades de identidade que as caracterizem) atuam como mediações simbólicas, influenciando as escolhas conscientes e/ou inconscientes que originarão tais práticas. Nos grupos sociais convergem referenciais que justificam o discurso de poder, o qual “autoriza” ações autoritárias e arbitrárias sob o epíteto de capacidade social. Esse poder é legitimado pela ideia de justiça social, pois os liames que o caracterizam são balizados por aquilo que o grupo elegeu como necessário, como certo à manutenção de seu status. À manutenção social, pelo olhar de dominância viril do macho, o poder de decidir e de agir feminino seria uma ameaça ao poder que detinham, daí a necessidade de manutenção de uma simbologia discriminatória, geradora de uma imagem alienada que nega a alteridade, pois a mulher seria sempre o diferente, o inferior, que nunca poderia ser reconhecida como igual por aquele que a domina... O sentimento de posse gerado por esse discurso de dominação impede que o dominante se iguale ao dominado, impede que se instaurem identidades. Sobre o tema, escreveu Foucault: Durante muito tempo se tentou fixar as mulheres à sua sexualidade. “Vocês são apenas o seu sexo”, dizia−se a elas há séculos. E este sexo, acrescentaram os médicos, é frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doença. “Vocês são a doença do homem”. E este movimento muito antigo se acelerou no século XVIII, chegando à patologização da 312 Mulheres e a Literatura Brasileira mulher: o corpo da mulher torna−se objeto médico por excelência. (...) os movimentos feministas aceitaram o desafio. Somos sexo por natureza? Muito bem, sejamos sexo mas em sua singularidade e especificidade irredutíveis. Tiremos disto as consequências e reinventemos nosso próprio tipo de existência, política, econômica, cultural... Sempre o mesmo movimento: partir desta sexualidade na qual se procura colonizá−las e atravessá−la para ir em direção a outras afirmações. (FOUCAULT, 1979, p. 234) E em História da sexualidade, complementou: Tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual, este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional), e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação): a Mãe, com sua imagem em negativo que é a “mulher nervosa”, constitui a forma mais visível desta histerização. (FOUCAULT, 2007, p. 115) Michel Bozon (2004, p. 14), na busca da compreensão de uma análise sociológica de representação do ato sexual, afirma que “a sexualidade é uma esfera específica – mas não autônoma – do comportamento humano, que compreende atos, relacionamentos e significados”, num posicionamento crítico que facilmente se inter-relaciona com aquele instituído por Foucault, tanto que Bozon é enfático: “é o não-sexual que confere significado ao sexual”. 313 Mulheres e a Literatura Brasileira Bozon (2004, p. 19) também desenvolve esse tema, ao analisar as fronteiras entre a sexualidade e a ordem do mundo. Explica que “a ordem da procriação faz parte dos princípios fundamentais da organização social”, citando como exemplo hábitos sexuais das sociedades ditas anômicas narrados em mitos colhidos tanto entre os baruais na Nova Guiné, pelo antropólogo Maurice Godelier, quanto o de Cabília, relatado por Pierre Bourdieu, que em comum apresentavam sociedades em que as mulheres assumiam protagonismo sexual e social. Bozon afirma que de uma situação inicial gera-se uma mudança violenta e simbólica de “regulamentação” do sexo e da sociedade, representada, no segundo mito, pela mudança de posições sexuais e, por conseguinte, de hábito sexual: Os atos sexuais originais aconteciam na fonte – lugar público feminino – e a mulher, esperta e ativa, ensinava ao homem o que fazer, tomava a iniciativa e se colocava sobre ele durante o amor. Na sexualidade regulamentada, pelo contrário, tudo se passava dentro de casa: o homem dava as ordens e cavalgava a mulher. A inversão pela qual os homens passaram para cima das mulheres permitiu conter e domesticar estas últimas. O fato de os homens ocuparem uma posição superior durante o ato sexual justifica o fato de “deverem governar”. Imaginar um mundo em que as mulheres cavalgassem os homens seria tão absurdo quanto imaginar um mundo social em que as mulheres governassem. A boa ordem é aquela que põe, social e sexualmente, as mulheres em seu verdadeiro lugar. (BOZON, 2004, p. 20) Noutra passagem do Romance d’A Pedra do Reino Quaderna alude ao espírito cavaleiresco cristalizado no sertão, ressaltando a virilidade que lhe era imanente, afirmando que 314 Mulheres e a Literatura Brasileira “vida era aquela, a vida dos Cangaceiros medievais”8, que não faziam nada além de “combater, beber e fuder”. Para o narrador, há uma estreita relação entre o domínio do inimigo e o domínio do feminino, o prazer e a violência caminhavam juntos, pois eram heróis que venciam mil batalhas e que estavam sempre aptos a possuir mil mulheres. O macho dominava, combatia.... Para a mulher, todavia, recaia a pecha do dominado e da resignação: Estas, mesmo quando não gostavam disso no começo, terminavam gostando no fim: primeiro, por causa da fama deles; depois porque, como me dizia uma recém-casada sertaneja em meu “Consultório Sentimental e Astrológico”, “esse negócio de fuder no começo é um pouco incomodatício, mas depois até entrete”. (SUASSUNA, 2014, p. 542) A mesma imagem é encontrada na narrativa de Quaderna quanto à fundação do Terceiro Império de sua família no sertão da Paraíba, alicerçado pelo relato mítico do catolicismo sertanejo, que toma como matéria de efabulação a persona de Dom Sebastião e as novelas de cavalaria: Acontece que meu bisavô, o Infante Dom João FerreiraQuaderna, tinha seduzido e raptado, de uma vez só, suas Quaderna explica que a referência aos “Cangaceiros medievais” lhe adveio da literatura de cordel, o que serve para explicitar o imaginário sertanejo do Brasil. Os “cabras” poderiam até ser europeus medievais, mas o imaginário foi burilado, trabalhado e cristalizado no sertão nordestino brasileiro numa reconstrução imagética própria. Escrevi artigo que trata do tema, “A cristalização do imaginário medieval na literatura de cordel”, publicado na Revista Nau Literária, e disponível em http://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/issue/view/2403. 8 315 Mulheres e a Literatura Brasileira duas primas, a Infanta Josefa e a Princesa Isabel, irmãs do Rei Dom João I, que abdicara. Meu bisavô era meio tarado, bastando dizer que, depois, quando já tinha sido coroado Rei, instituiu, na Pedra do Reino, um ritual Católico-sertanejo, segundo o qual ele, Rei, era quem primeiro possuía as noivas, no dia do casamento, o que fazia, segundo explicava, “para inoculá-las com o Espírito Santo”. Parece que ele só conseguia ser macho praticando, ao mesmo tempo, um sacrilégio e uma crueldade — mas, então, depois de assim despertada pelo sangue e pela maldade, não havia quem contivesse mais sua potência. Pois bem: como o Catolicismo-sertanejo da Pedra do Reino permitia a poligamia, Dom João Ferreira-Quaderna, O Execrável, chegou a ter o número sagrado de sete mulheres, entre as quais as importantes, mesmo, eram as duas Princesas irmãs, Josefa e Isabel, por serem de sangue real. (SUASSUNA, 2014, p. 74) Seguindo essa linha, tomo de empréstimo a análise feita por Bozon acerca da diferença de representação social entre os sexos, em linguagem binária e hierarquizada, para analisar a efabulação trófica tecida por Suassuna de subversão da ordem social a partir da quebra da representação do feminino como fraco, como presa a ser dominada pelo masculino no universo mitificado do Romance d’A Pedra do Reino. Na ação de uma simbólica que transfigura o imaginário herdado do medievo em discurso perspectivista, Suassuna engendra no mito cariri9 efabulado no romance a retirada de poder do masculino ao feminino pela ação da Caetana, na O termo “Cariri” refere-se à região no nordeste brasileiro onde se ambienta o romance. Empreguei a expressão “mito cariri” na minha tese de doutorado como referência à mitificação simbólica empregada por Ariano Suassuna na construção do universo imagético da Pedra do Reino. 9 316 Mulheres e a Literatura Brasileira íntima relação entre o sexo e a morte, através de uma mudança de ponto de vista que cala o discurso de dominância viril do cavaleiresco europeu pelo discurso que busca gerar nova compreensão das relações entre o masculino e o feminino, balizado em um ponto de vista que resgata a humanidade do feminino10, tornando-o protagonista da relação sexual e não mais somente instrumento de prazer. Bozon (2004, p. 23) analisa o ato sexual no binômio simbólico dos verbos “dar” e “comer” instituídos na sociedade brasileira como referenciais de poder e de domínio do masculino sobre o feminino numa cadeia de consumo, de exploração e valorização, pois o verbo “comer” liga-se à significação de predação, “na metáfora da absorção, apropriação e consumo do parceiro passivo (a mulher ou um sujeito simbolicamente feminilizado) pelo sujeito ativo”, enquanto o verbo “dar” liga-se à significação da passividade, na metáfora do subjugado, do doador, fraco para resistir a seu predador. “Quaderna, O Decifrador, é deformado, entre outras coisas, pela visão torcida e doentiamente exacerbada do Sexo”, afirmou Suassuna (2008, p. 225), contudo essa visão não seria única somente a Quaderna, mas ao meio na qual está inserido. Por isso o poder feminino, na insígnia da Caetana, representa 10 Paradoxal, a olhos leigos, seria a acepção do resgate do humano através de caracteres animalescos. Todavia, na teoria do Perspectivismo de Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima, novas potencialidades de compreensão se abrem à proporção que se permitem análises através de novos pontos de vista. “Quando eu digo que o ponto de vista humano é sempre o ponto de vista de referência quero dizer que todo animal, toda espécie, todo sujeito que estiver ocupando o ponto de vista de referência se verá a si mesmo como humano – inclusive nós” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 38) 317 Mulheres e a Literatura Brasileira a subversão da ordem social: o poder de predação deixa de ser do macho viril para ser exercido pela Moça, que também é Onça, que é divina e é desejo. O emprego dessa simbólica para a Morte é uma ameaça natural à cultura da virilidade masculina por uma natureza que evoca aquilo que há de mais primitivo, de mais natural, pois enquanto o domínio masculino na sociedade seria aquilo que era “regulado” (o humano), a efabulação do animalesco traria o símbolo e a imagética do não-humano, da oncidade, do erótico e do desejo num discurso cuja singularidade humana seria calada pelo discurso da fera – que, perspectivamente, é humana: “as onças são gente porque, ao mesmo tempo, a oncidade é uma potencialidade das gentes, e em particular da gente humana” (VIVEIROS DE CASTRO, 2008, p. 38). A relação da Caetana com suas vítimas é descrita quase como uma exegese divina que, ao invés de palavras, comunicava-se com o corpo e com sua nudez, revelando o selvagem e o animalesco como expositores de sedução e erotismo, e o sexo como epifania, como caminho através do qual “o homem-mortal às vezes experimenta ainda neste mundo escuro, o toque da Divindade imortal” (SUASSUNA, 2008, p. 227): E aí, quando eu fui me chegando pra perto da boca da Furna, comecei a sentir aquela catinga de Onça que todo caçador conhece e que não engana ninguém! E que diabo de catinga danada era aquela, que eu fui sentindo, e sentindo, e fui ficando meio doido, meio afogueado, vendo maretas, e aí comecei a ver umas faíscas de fogo faiscando pra todo lado, e na mesma hora eu comecei a ouvir a zoada do Mar e uma musga velha e cega, que parecia tocada por viola, pife e rabeca e cantada por mulher com boca fechada! E aí eu olhei pra dentro do escuro da furna, e vi foi dois olhos de fogo olhando pra mim, e a musga ia tocando, e ia me chamando, 318 Mulheres e a Literatura Brasileira e eu sabia que, se entrasse lá, aquela Onça ia deixar eu fuder ela, e a trepada minha ia ser tão danada de cachorro da molesta que eu ia morrer e ressuscitar três vezes, não mais como eu era, mas sim igual à Onça, ajuntado com ela numa fudida só pelo resto da vida, na trepada mais comprida e gozosa do mundo, uma trepada que não se acabava mais nunca e que durava enquanto o Sol e o sol da Onça durassem! (SUASSUNA, 2014, p. 430) A Moça era o anjo divino do Último Dia, cuja nudez semirrevelada conspurcava a concepção de poder do macho no ato sexual. Não era o homem que “comia”; era ele que era devorado pela Caetana, sangrado por suas garras, enquanto era envenenado pela Vermera, a cobra coral que adornava o seio da Morte. O masculino, nos braços da Caetana, era transfigurado em presa da fera, porém também em oferenda ritual à divindade, pois o homem “é frequentemente comido seguindo regras religiosas. Aquele que consome essa carne não ignora a interdição que incide sobre o ato de consumi-la. Mas viola religiosamente essa interdição” (BATAILLE, 2004, p. 109). Perspectivamente, insisto, a metafísica do ato canibal de devora do masculino pela moça era insígnia de alteridade, de reconhecimento identitário entre o feminino e o masculino: A “coisa” comida não podia, justamente, ser uma “coisa”, sem deixar porém de ser, e isso é essencial, um corpo. Esse corpo, não obstante, era um signo, um valor puramente posicional; o que se comia era a relação do inimigo com seu devorador, por outras palavras, sua condição de inimigo. O que se assimilava da vítima eram os signos de sua alteridade, e o que se visava era essa alteridade como ponto de vista sobre o Eu. O canibalismo e o tipo de guerra indígena a ele associado implicavam um movimento paradoxal de autodeterminação recíproca pelo ponto de vista do inimigo. (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 159-160) 319 Mulheres e a Literatura Brasileira Bataille (2004) faz uma distinção muita clara entre beleza e desejo, tendo como parâmetro o natural: a beleza seria a manifestação daquilo que se afasta da similitude com o animalesco, porquanto a beleza residiria naquilo que o homem elegeria como racional na apreciação das formas. Entretanto, o desejo caminha em sentido contrário, pois se vê despertado naquilo que afasta o indivíduo de sua essência que a cultura estabeleceu como humana, para a essência animal, arrebatadora e violenta, de dominância trófica do predador sobre a presa. A imagem da mulher desejável, que se nos oferece como tal, seria insípida — ela não provocaria o desejo — se ela não anunciasse, ou não revelasse, ao mesmo tempo, um aspecto animal secreto, de uma enorme sugestão. A beleza da mulher desejável anuncia suas partes pudendas: justamente suas partes pilosas, suas partes animais. O instinto inscreve em nós o desejo dessas partes. Mas, para além do instinto sexual, o desejo erótico responde a outros componentes. A beleza negadora da animalidade, que desperta o desejo, vai dar na exasperação do desejo, na exaltação das partes animais. (BATAILLE, 2004, p. 225) No Folheto XLIV do Romance d’A Pedra do Reino, “A Visagem da Moça Caetana”, a aparição de Caetana para Quaderna é uma comprovação às palavras de Bataille, pois a Moça seduz o narrador naquilo que lhe era mais feroz, mais perigoso, mais animalesco, tal qual esfinge sertaneja, figurada como mulher, onça, serpente e ave de rapina. A Morte Caetana, relacionada à materialidade sensível do corpo, torna Quaderna siderado pelo desejo do corpo feminino. A Moça Caetana lhe aparece de vestido vermelho aberto nas costas 320 Mulheres e a Literatura Brasileira num amplo decote que mostrava um dorso felino, de Onça, e descobria a falda exterior dos seios, por baixo dos braços. Os pelos de seus maravilhosos sovacos não ficavam só neles: num tufo estreito e reto, subiam a doce e branca falda dos peitos, dando-lhes uma marca estranha e selvagem. Em cada um dos seus ombros, pousava um gavião, um negro, outro vermelho, e uma Cobra-coral servia-lhe de colar. (SUASSUNA, 2014, p. 305) Observe-se que a cor vermelha do vestido faz referência direta ao erótico, ao sangue e ao poder, elementos que facilmente são percebidos nesta entidade. A fenda do vestido revela tratar-se de onça, a Onça-Caetana, ligada à terra e ao divino. Nos ombros, as rapinas: os gaviões. O dualismo dos seres remete a um maniqueísmo quase niilista, à proporção que, mesmo de cores distintas – vermelho e negro –, portanto figurativamente dual, ambos trazem para si a ideia de força, de morte, por serem animais caçadores e carnívoros. A cobra em seu pescoço, a Cobra-Coral, é um animal de colorido vivo e de poderoso veneno que, em poucas horas, pode matar um adulto. Beleza e morte se misturam figurativamente na constituição do ser. O sangue da virilidade masculina era tolhido pela ação de empoderamento feminino, gerando nova acepção, nova compreensão das relações entre gêneros na mitificação do discurso, “a ‘interioridade’ do corpo social é integralmente constituída pela captura de recursos simbólicos – nomes e almas, pessoas e troféus, palavras e memórias – do exterior” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 161). A mesma constituição perspectivista imanente da moça/onça se faz percebida na equivalente mortal, para Quaderna, da Caetana: Maria Safira. Safira, casada com Pedro Beato, era amante de Quaderna e com ele vivia maritalmente. Quando jovem, ela fora seduzida e abandonada e, para que não 321 Mulheres e a Literatura Brasileira caísse em desgraça na sociedade, o beato casa com ela “para lhe dar respeito”. Entretanto, Pedro já era velho quando do matrimônio e nunca tocara o corpo da mulher, por lhe faltar a “homência” necessária. Safira é descrita por seu amante como “uma mulher de precipício, uma mulher de abismos”, cujos olhos eram tão verdes que, segundo as más línguas da cidade, só poderiam ser sinal de que um demônio a possuía. O devir morte e finitude da Caetana era ressignificado nos abismos de Safira, nas potências de interdito... A negação da humanidade pela animalidade da onça era ressignificada na possessão demoníaca... Contudo, não era Quaderna que lhe atribuía o estigma do demoníaco, mas o discurso do masculino que estereotipava a sexualidade de Maria Safira, buscando reduzir aquela que lhes era inalcançável. Pedro Beato, o único homem impoluto do romance, é quem explica a Quaderna o porquê de não ter rancor ou remorso pela mulher viver com o amante: Seria muito difícil ela resistir, com todo mundo desejando o corpo dela, aí pela rua! Aqui dentro da Vila, qual foi o homem que não possuiu “a endemoninhada”, pelo menos uma vez e em pensamento? Está também no Evangelho, “todo aquele que olhar para uma mulher cobiçando-a, já, no seu coração, adulterou com ela”. Assim, você serviu de grande ajuda, para ela, depois do meu casamento. Eu não tenho nada que perdoar a Maria Safira: ela é quem deve me perdoar por ter casado com ela tendo feito voto de castidade e pobreza e tendo me tornado incapaz, há tanto tempo, de desrespeitar meu voto! (SUASSUNA, 2014, p. 315) Quaderna entregava-se a Safira da mesma forma que aqueles que se encontravam com a divindade Caetana se entregavam à Moça, pelo reconhecimento do poder que ela exercia sobre ele, como potência de erotismo e desejo, de 322 Mulheres e a Literatura Brasileira interdito e finitude, de epifania divina e de devir pecado, de negação do humano pela oncidade: Maria Safira, mulher de verdes olhos insondáveis, mulher de abismos, tinha o condão, para mim precioso, de incendiar minha virilidade, quase inteiramente apagada outrora pelo chá de “cardina” que me vi obrigado a tomar “para abrir a cabeça e ter sucesso nos estudos do Seminário”. Daí o império que tinha sobre mim, naquele tempo inteiramente subjugado por ela. (SUASSUNA, 2014, p. 173-174) Se a cultura da virilidade do macho se cristalizara no sertão nordestino, gerando discursos que coisificavam e reduziam a mulher a instrumento tão-somente dos prazeres masculinos, o mito cariri perspectivamente apresentava outro ponto de vista na efabulação do imaginário na Pedra do Reino: a humanização do feminino através de sua oncidade, empoderado pelos caracteres de animal de presa e de divindade fêmea e amante, materna e terrível. Ah, Pedro, como é bom esse contato da gente com mulher! Como é bom a gente dizer certas coisas e ouvir outras, naquele tom em que, de repente, tudo se torna possível! Como isso é diferente destes nossos ásperos entendimentos masculinos, em que somos olhados com hostil imparcialidade e julgados a cada instante! Com as mulheres, é o contrário. Se gostam de nós, elas não nos julgam e são ainda mais carinhosas quando a gente se revela fraco e cheio de defeitos. De vez em quando, a gente sente, não com a cabeça, mas com o sangue, que pode repousar a cabeça naquele colo, naqueles seios, que pode chorar sem ser desprezado, beijar sem ser repelido, sentindo o perfume que se desprende da pele e dos cabelos que nos envolvem numa grande paz e no mais ardente desejo! (SUASSUNA, 2014, p. 318) 323 Mulheres e a Literatura Brasileira O macho, em seu olhar “vagabundo de cachorro vadio” – tomando de empréstimo a metáfora empregada por Alceu Valença – “olhava a pintada e ela estava no cio”, percebendo na mulher sua oncidade na mesma toada que reconhecia sua humanidade, no prazer do sexo e no poder da morte, alegoricamente identificando predador e presa, numa metafísica que revela um contexto pragmático perspectivista de alteridade que permite ao cão vagabundo e à onça pintada se empossarem do ponto de vista um do outro, amando-se “na praça como os animais”, enquanto negam o discurso regulador do sexo, que evoca uma representação machista de cultura, por um primitivismo que assoma uma simbólica de identificação e igualdade. Referências AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2010. BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004. BOZON, Michel. Sociologia da Sexualidade. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. _______. História da sexualidade: a vontade de saber. 19. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007. v. 1. PEREIRA, Marcos Paulo T. A cristalização do imaginário medieval na literatura de cordel. In.: Revista Nau Literária. Disponível em:http://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/ issue/view/2403. Acesso em 02/10/2016. 324 Mulheres e a Literatura Brasileira SUASSUNA, Ariano. Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. 14.ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2014. VALENÇA, Alceu. Como dois animais. In. Álbum Cavalo de Pau. Rio de Janeiro: Ariola, 1982. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Encontros. Organização Renato Sztutman. São Paulo: Beco do Azougue Editorial, 2008. _______. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015 325 Mulheres e a Literatura Brasileira A tragédia de Clarice: mulher, punição e silêncio Alana Regina Sousa de Menezes1 1. Introdução A peça teatral A pecadora queimada e os anjos harmoniosos (2005) foi publicada em 1964, na segunda parte do livro A legião estrangeira, intitulada “Fundo de Gaveta”; a tragédia de um só ato foi escrita no período de 1946 a 1948, quando Clarice reside em Berna, Suíça, lugar profundamente marcante para a escritora. Na dramaturgia, toda a diegese é desenvolvida em torno de uma mulher que cometeu adultério e, num contexto de Idade Média, será queimada como ritual religioso, para purificação. Este artigo pretende, por meio do descortinar do teatro de Clarice, dar enfoque à configuração da personagem feminina no texto em questão. Integrando o projeto ficcional (já bastante pontuado pela crítica) de Clarice, no que diz respeito a colocar personagens femininas no centro do debate sobre as relações entre gênero e sociedade, a Pecadora (protagonista do texto) carrega consigo uma teia de significações advindas do silêncio e das vozes que por ela falam. 1 Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Campus de Três Lagoas). Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela Faculdade São Luís de França (Aracaju/SE). Autora de Maria Rejeitadinha e Outros Poemas (2011) e de Sob Encomenda: contos (2015). Ministrante de palestras e minicursos. Site: www.alanaregina.com.br. 326 Mulheres e a Literatura Brasileira Problematizando a representação feminina, as construções identitárias, as esferas de poder e discriminação, este trabalho parte da verossimilhança e da coerência interna da dramaturgia de Lispector para expor como o texto é um forte instrumento provocador de reflexão sobre a realidade da protagonista e, por conseguinte, sobre a realidade do feminino em geral. 2. Olhares de Clarice: a escrita da sensibilidade Hermética, subjetiva, introspectiva, sensível, questionadora, crítica. Leitora, mãe, escritora. Jornalista, tradutora, bacharel em Direito, contista, romancista, cronista, dramaturga. Um superficial levantamento dos estudos acerca da escrita e da mítica personalidade de Clarice Lispector pode apontar os adjetivos e substantivos citados como os mais registrados até hoje. Ora se leram em suas linhas palavras despreocupadas com as questões sociais que a permeavam; ora nas entrelinhas se descobriu uma escritora absolutamente inquieta com a violência, com a opressão em todos os seus níveis, com o lugar do feminino na sociedade. A mesma Clarice Lispector que deu vida a inúmeras personagens mulheres que fizeram saltar suas individualidades femininas aos olhos de uma sociedade flagrantemente machista questionou o direito de punir de um Estado, ao procurar em si mesma o porquê da dor da morte de um criminoso dos anos 60 e por que era mais importante contar os treze tiros da polícia que o mataram do que os crimes de Mineirinho. Nascia a 10 de dezembro de 1920, em Tchetchélnik, Ucrânia, com o nome Haia Pinkusovna Lispektor. Chega ao Brasil como imigrante, a bordo de um navio a vapor junto aos pais e às irmãs; instaura-se em Maceió, onde tem seu nome 327 Mulheres e a Literatura Brasileira modificado para Clarice Lispector. E é como a brasileira Clarice Lispector – como gostava de ser chamada – que virá a inquietar leitores de diversas partes do mundo e se tornar uma das escritoras mais aclamadas pela crítica. Com todo esse ar misterioso que permeia, não só a existência de Clarice Lispector, mas também sua obra, há um extenso estudo de seu trabalho dentro e fora do Brasil, para fins de revelação de sua tessitura. Por muito tempo, entretanto, mesmo ainda viva, ela foi criticada por ser subjetiva e alienada da sociedade e até mesmo alheia aos problemas sociais. Em algumas situações, Clarice até opta por se defender: “Pois se em vida é um calado, por que havia de escrever falando? Os calados só dizem o que precisam; e isso impede os outros de ouvirem? Trata-se de pessoa silenciosa; daí o ar hermético” (LISPECTOR, 1980, p. 24). E questiona ainda mais, em “Hermética?” – texto originalmente publicado em 24 de fevereiro de 1968: Ganhei o troféu da criança-1967, com meu livro infantil O mistério do coelho pensante. Fiquei contente, é claro. Mas muito mais contente ainda ao me ocorrer que me chamam de escritora hermética. Como é? Quando escrevo para crianças, sou compreendida, mas quando escrevo para adultos fico difícil? Deveria eu escrever para os adultos com as palavras e os sentimentos adequados a uma criança? Não posso falar de igual para igual? Mas, oh Deus, como tudo isso tem pouca importância. (LISPECTOR, 2004, p. 177) Não demora para que surja a linha de estudo que busca desvendar em Clarice a função social de sua literatura, não menos subliminar que todos os outros aspectos de sua escrita. Nessa perspectiva, é importante salientar que “Clarice Lispector, autora brasileira, é uma das escritoras da literatura universal que questiona de uma forma peculiar, a condição do 328 Mulheres e a Literatura Brasileira ser e a sociedade à sua volta” (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2007, p. 240), muito embora a própria Clarice tenha escrito uma crônica intitulada “Literatura e justiça” (1980) em que parece vir a público para dizer que se perdoa por não se aproximar da “coisa social” por meio da literatura. Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era ‘fazer’ alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O que não consigo é usar escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. [...] Mas, por tolerância hoje para comigo, não estou me envergonhando totalmente de não contribuir para nada humano e social por meio do escrever. É que não se trata de querer, é questão de não poder. (LISPECTOR, 1980, pp. 53-54) Conforme elucida D’agord (2006), refletindo acerca da perspectiva freudiana, quem muito nega está, na verdade, afirmando. Basta um conhecimento razoável da tessitura de Lispector para nos darmos conta de que ela obviamente fez alguma coisa pela sociedade e que deveras contribuiu para algo humano e social. Dessa forma, contradizendo o que há muito foi afirmado sobre Clarice Lispector a respeito de sua alienação diante dos problemas sociais ao seu redor, está toda sua herança literária. No fim das contas, o que Clarice fez foi trazer à tona uma forte crítica à sociedade patriarcal e machista em que estava inserida (e que perdura até os dias atuais), além de revelar uma de suas maiores inquietações: a condição da mulher nessa sociedade. Forte característica da escrita de Clarice é a construção da figura feminina como elemento fundamental do texto. A 329 Mulheres e a Literatura Brasileira reflexão sobre os grilhões que prendem a mulher em sociedades machistas e patriarcais é traço marcante da sua arquitetura literária, que vai desde romances, contos, estendendo-se, inclusive, à sua tímida dramaturgia. Diz-se tímida a dramaturgia de Clarice por haver registro de um único texto em gênero dramático por ela escrito. Tratase de A pecadora queimada e os anjos harmoniosos (2005). Publicada em 1964, na segunda parte do livro A legião estrangeira, intitulada “Fundo de Gaveta”, a tragédia de um só ato foi escrita no período de 1946 a 1949, quando Clarice reside em Berna, Suíça, lugar marcado pelo profundo silêncio na vida da autora. Em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos: A tensão dramática está centralizada na mulher pecadora, que, por meio do silêncio, acaba por aceitar (ou desafiar) o tratamento de desigualdade entre homens e mulheres. Assim ‘a pecadora’, como é considerada no texto teatral, é uma mulher que prefere morrer a ser submissa às leis que circundam seu meio social. (ENEDINO, 2015, p. 190) Isso porque toda a diegese é desenvolvida em torno de uma mulher que cometeu adultério e, num contexto de Idade Média, será queimada, como ritual religioso, para “purificação”. Em cena, há sacerdote, amante, esposo, soldados, povo, todos convergindo para o espetáculo da carne queimada da Pecadora. Esta, por sua vez, permanece calada durante todo o texto. Nenhuma fala, nenhuma indicação cênica, nada que dê voz à protagonista. Raros são os estudos acerca da literatura de Clarice que elevam A pecadora queimada e os anjos harmoniosos a ponto central da discussão. Mesmo os extensos panoramas da condição feminina tão abordada pela autora; mesmo os estudos biográficos que, de forma ampla, citam os momentos de produção de cada texto da escritora; mesmo as inúmeras 330 Mulheres e a Literatura Brasileira dissertações e teses que utilizaram a obra de Clarice como objeto central. Quase nunca se é mencionado o fato de que, além de romancista, contista e cronista, Clarice foi dramaturga. Este artigo quer destrinchar os elementos que configuraram a protagonista da peça de Lispector. Para tanto, faz-se necessário um recorte biográfico que situe o período em que ela escreve a peça teatral, pois tanto o espaço quanto o tempo em que a autora produz o texto são basilares para o alcance dos objetivos deste estudo. Afinal: [...] no caso específico de Clarice, desconsiderar a inserção da vida da escritora na construção de sua obra é não tomar o seu próprio objeto literário naquilo que ele tem de mais significativo. Como a cópia que torna o modelo mais bonito e mais verdadeiro, a ficção torna a vida mais representativa, dando a ela um estatuto de autenticidade, de real. Cabe ao crítico perceber que o material escasso da vida funciona como suplemento ao ficcional, e é nessa relação de suplementaridade que se situa o valor crítico do trabalho efetuado. [...] Cumpre ao crítico, então, sair do texto enquanto espaço restrito, estabelecendo um diálogo com o escritor também através de seus textos outros, como as cartas, notas, anotações, fragmentos, retratos e comentários, deixados ao longo de sua vida intelectual. (NOLASCO, 2004, p. 82) Cumpre papel esclarecedor um breve panorama do período em que a autora residiu em Berna, uma vez que a influência do status quo nesse locus enunciador fica marcada na vida de Lispector pelo silêncio perturbador, pela casa situada à Rua da Justiça, por encontrar-se sitiada, pelo estigma de estrangeira e pela sensação de morar na Idade Média. 331 Mulheres e a Literatura Brasileira Fundada no final do século XII, Berna fazia parte do Sacro Império Romano, tornando-se em 1848 a capital da Suíça. O que se faz relevante, do ponto de vista histórico e cultural, citar de Berna neste trabalho é seu centro histórico. A chamada “Cidade Antiga” (considerada, desde 1983, Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO) é famosa exatamente por sua arquitetura medieval. Esse traço arquitetônico não passa despercebido ao olhar da autora, que registra na crônica “Lembrança de uma fonte de uma cidade”: “E a rua ainda medieval: eu morava na parte antiga da cidade. O que me salvou da monotonia de Berna foi viver na Idade Média” (LISPECTOR apud GOTLIB, 2013, p. 233). É inevitável perceber a intersecção estabelecida entre a característica marcante do espaço em que a autora se encontra e o espaço onde estão situadas as personagens de A pecadora queimada e os anjos harmoniosos: a Idade Média. Vale lembrar que é a própria autora quem irá dar a diretriz do ambiente no qual está situado o texto, em carta de 1946, enviada ao amigo Fernando Sabino: [...] comecei a fazer uma ‘cena’ (não sei dar o nome verdadeiro ou técnico); uma cena antiga, tipo tragédia Idade Média com coro, sacerdote, povo, esposo, amante... Em verdade vos digo, é uma coisa horrível. Mas tive tanta vontade de fazer que fiz contra mim mesma. Não está pronto e está tão ruim que até fico encabulada. (LISPECTOR, 2002, p.108) Até aqui temos: (1) Clarice situa o único ato de sua tragédia em um cenário que retoma o medieval; (2) O texto, em síntese, trata da condenação à pena de morte de uma mulher por ter cometido adultério e, por conseguinte, ferido as leis morais e cristãs que regem a instituição “casamento”. 332 Mulheres e a Literatura Brasileira Cabe, então, trazer para este momento algumas reflexões sobre os moldes nos quais estava encaixado o matrimônio e sobre o tratamento dado à mulher, no contexto da Idade Média, rememorado por Lispector em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. 3. Bastidores da dramaturgia Pontue-se, desde já, para efeitos de contextualização, que o período medieval considerou mais a religião do que a civilização; isto é, as leis religiosas sobrepunham-se às leis civis, podendo-se dizer que, em termos gerais, a religião era a própria lei civil. O eclesiástico, dentre outros objetivos, prezava pela inibição da sexualidade, dos “prazeres da carne”, lendária razão pela qual o homem foi expulso do paraíso, momento no qual surgiu o seu mal. Isso está materializado no texto dramático de Clarice, em diversas passagens, por meio das falas das personagens. Por exemplo, na voz da Mulher do Povo: “Ei-la, a que errou, a que para pecar de dois homens e de um sacerdote e de um povo precisou” (LISPECTOR, 2005, p. 59). Note-se que na fala da personagem, o adultério é visto como um erro exclusivo da Pecadora, personagem protagonista. Os dois homens (Esposo e Amante) foram apenas instrumento de concretização da culpa que é completamente delegada à mulher; note-se, ainda, que na fala da Mulher do Povo, encontram-se os responsáveis pela condenação à pena de morte da protagonista: para concretizar seu crime, estão um sacerdote e um povo. Nesse momento, materializa-se a sobreposição das leis morais religiosas que regeram uma época. Assim: 333 Mulheres e a Literatura Brasileira SACERDOTE: [...] E esta simples mulher por tão pouco se perdeu, e perdeu a sua natureza, e ei-la a nada mais possuir e, agora pura, o que lhe resta ainda queimarão. Os estranhos caminhos. Ela consumiu sua fatalidade num só pecado em que se deu toda, e ei-la no limiar de ser salva [...]. (LISPECTOR, 2005, p. 57-58) É notório que Clarice utiliza o contexto medieval para ironizar o comportamento do homem tido como moderno, civilizado, racional. Uma simples lembrança da legislação brasileira vai nos mostrar que até o ano de 2005, no Brasil, o adultério era considerado crime, previsto no Código Penal brasileiro. Sem falar na cultura misógina que se estende à contemporaneidade e que ainda atribui à mulher o lugar da culpa, do objeto da opressão e da submissão em diversos níveis sociais, ainda que implicitamente. O casamento, pois, seria uma das formas de “castração” humana, falando em termos rasos. Ou ainda, o casamento funcionaria como um negócio, como um ritual: [...] ceder as moças, negociar da melhor maneira possível seu poder de procriação e as vantagens que elas podem legar à sua prole; [...] ajudar os rapazes a encontrar esposa. A tomála alhures, numa outra casa, a introduzi-la nessa casa onde ela deixará de depender de seu pai, de seus irmãos, de seus tios, para ser submetida a seu marido, ainda que condenada a ser para sempre uma estrangeira, um pouco suspeita de traição furtiva nesse leito em que ela penetrou, onde ela vai preencher sua função primordial: dar filhos ao grupo de homens que a acolhe, que a domina e que a vigia. (DUBY, 2011, p. 15) No entanto, os critérios de inibição da sexualidade humana não eram os mesmos para maridos e esposas. O 334 Mulheres e a Literatura Brasileira homem não desenvolve suas “relações carnais” somente dentro do quadro conjugal. A moral aceita aponta para o concubinato e para a valorização da virilidade. Enquanto isso, à esposa cabe fidelidade. Mais uma vez, tais comportamentos também têm sua representação textual em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. Duas marcas fortes dessa representação no texto são duas falas, do Esposo e do Amante, em que ambos questionam os privilégios que lhe são dados pelo simples fato de serem homens. ESPOSO: Ei-la, a que será queimada pela minha cólera. Quem falou através de mim que me deu fatal poder? Fui eu aquele que incitou a palavra do sacerdote e juntou a tropa deste povo e despertou a lança dos guardas, e deu a este pátio tal ar de glória que abate os seus muros. Ah, esposa ainda amada, desta invasão eu queria estar livre. Sonhava estar só contigo e recordar-te nossa alegria passada. (LISPECTOR, 2005, p. 60 – grifos meus) O Esposo questiona quem lhe deu um poder tão fatal e, inclusive, apresenta-se como aquele responsável por (na condição de “vítima”, de marido traído) ter denunciado ao Sacerdote o crime de sua esposa. É interessante observar esta primeira fala do Esposo. Nela estão revelados os meios de punição de uma civilização, bem como quem são as pessoas responsáveis por aplicar penas e de quem elas ganharam essa capacidade. O Esposo diz ter incitado a palavra do Sacerdote e juntado a tropa do povo; isto é, os juízes à época, delegados por uma crença arbitrária em desígnio divino e nada mais. Por sua vez, o Amante declara: “Ai de mim que não sou queimado. Estou sob o signo do mesmo fado, mas minha tragédia não arderá jamais” (LISPECTOR, 2005, p. 67). As falas dadas às personagens masculinas em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, até então, são instrumentos de 335 Mulheres e a Literatura Brasileira contestação, de questionamento, de provocação com relação à posição privilegiada que parecem ocupar. Observadas essas informações em linhas gerais, pode-se pensar que a escolha por parte da dramaturga da Idade Média como espaço para o desenrolar de sua tragédia não foi dada ao acaso. O cenário da peça coloca-se como objeto da memória de uma autora que diz estar vivendo no período medieval, bem como rememora um amargo período para a condição do feminino perante a sociedade, sobretudo, enclausurado no matrimônio. AMANTE: Pensei que vivera, mas era ela quem me vivia. Fui vivido. ESPOSO: Como te reconhecer, se sorris toda santificada? Estes braços castos não são os braços que enganosos me abraçavam. E estes cabelos serão os mesmos que eu desatava? Interrompei-vos, quem vos diz é o mesmo que vos incitou. Pois vejo um erro e vejo um crime, uma confusão monstruosa: ei-la que pecou com um corpo, e incendeiam outro. SACERDOTE: Mas ‘Senhor, sois sempre o mesmo’. 1º GUARDA: Todos lamentam o que já é tarde para lamentar, e discordam por discordar, quando bem sabem que aqui vieram para matar (LISPECTOR, 2005, p. 65 – grifo meu). Curiosa e coincidentemente, é exatamente por conta de seu matrimônio que Clarice encontra-se residindo em Berna enquanto escreve A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. A motivação da residência de Clarice na Suíça está no fato de seu marido à época, Maury Gurgel Valente, servir à diplomacia brasileira, causa de grande chateação na escritora que, extremamente entediada, em muitas oportunidades reclama da condição em que se encontra. Em variadas situações, 336 Mulheres e a Literatura Brasileira reclama de angústia, declara sentir ódio de Berna e demonstra irritabilidade diante da situação. A biógrafa Olga Borelli explica com legitimidade o sentimento de Clarice: Até meados da década de 50, Clarice viajou muito, por dever de ofício: era mulher de diplomata. A primeira vez que saiu do Rio, em 1944, foi para Belém do Pará, depois para a África do Norte, a caminho da Itália. Morou também nos Estados Unidos e na Suíça. Em 1973, fizemos juntas um passeio de trinta dias à Europa: Londres, Zurique, Lausanne, Berna, Paris e Roma. Em 1976, chegamos a ir a Paris – outro passeio de um mês –, mas, aflita, tomada de angústia, ela regressou uma semana depois. (BORELLI, 1981, p. 103) Em meio às viagens e às inúmeras transições que precisou fazer para acompanhar Gurgel, Clarice consegue captar com olhar literário os espaços pelos quais transita. Alguns pesquisadores já chegaram a, inclusive, encontrar nas correspondências e crônicas de Clarice uma literatura de viagem, realizada exatamente neste período em que precisou se ausentar do Brasil. Ao aborrecimento misturam-se as evidências que preceituam as semelhanças entre o clima medievalesco de Berna e os elementos que compõem A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. A Idade Média que Clarice parece ainda enxergar em Berna de fato lá está, uma vez que toda a arquitetura da cidade fora preservada para dialogar com a chamada Dark Ages, conhecida pelo tempo das catedrais, do gótico, do antitético belo-sombrio. Berna parece lembrar à escritora que o lado europeu do globo abriga a formação e a finalidade da cultura medieval historicamente opressora. Clarice pode ver de perto que a Idade Média não é um mito ocidental e que o período ocupa na memória da coletividade um lugar crucial: o Ocidente olha 337 Mulheres e a Literatura Brasileira para o período medieval e lá enxerga a raiz de sua civilização; inclusive, podemos afirmar que alguns dos comportamentos do homem contemporâneo parecem ser metáforas do medievo. Embora tenha vivido na Suíça já no século XX, Clarice Lispector consegue detectar nas ruas de Berna os traços que a fazem ter a sensação de viver na Idade Média. O deserto, o regresso, o forte silêncio e a solidão são marcados em diversas cartas remetidas às irmãs, durante a passagem da autora por Berna, cidade que pelo fogo se reconstruiu; após um incêndio quase fatal para a cidade, em 1405, Berna foi reconstruída com pedras da região, o que a fez ser dotada de uma cor padronizada, daí a sensação cromática de tédio, monotonia, deserção. Como afirmamos outrora, o cenário escolhido para situar a tragédia A pecadora queimada e os anjos harmoniosos está diretamente ligado à situação geográfica onde o texto foi produzido e, especialmente, ao efeito de sentido estético que esse espaço traz ao texto. Sabemos que a mutabilidade da civilização greco-latina, em linhas gerais, é estudada e esmiuçada a partir de um olhar projetado à sombra da Idade Média. Se pensarmos em termos de literatura, o que se tem a recordar do período medieval? Prontamente, nos chegam à memória as poesias líricas, os romances de cavalaria e, também, os textos dramáticos. Contista e romancista por excelência, Clarice Lispector opta pela modalidade teatral, por uma tragédia, para compor o texto aqui estudado, o que de antemão já atribui significado pontual à obra, pois: A tragédia não deve ser um espetáculo edificante. Não deve mostrar, de maneira enganosa, um mundo purificado do Mal e submetido à pura virtude. Ela pode, e deve, mostrar ações 338 Mulheres e a Literatura Brasileira próprias a provocar medo ou piedade, isto é, um mundo preso do eterno conflito do Bem e do Mal, um mundo no qual este nem sempre tem a última palavra. O ‘malvado’ não é de modo algum excluído da cena trágica. Mas sua representação também pode ser idealizada. (RYNGAERT, 1995, p. 25) À tensão conflitiva entre o Bem e o Mal a qual Ryngaert aborda no excerto acima está intimamente ligada às doutrinas cristãs. De acordo com o pensamento inscrito no discurso religioso bíblico, desde que Adão e Eva cometeram o “pecado original” e o homem fora expulso do chamado “paraíso”, este está à mercê do Bem e do Mal. Ao escolher uma tragédia como veículo de sua literatura, Clarice lança mão da escolha mais pertinente se o que se quer é representar uma condenação à morte, devido a um adultério de uma personagem sem nome, conhecida apenas como Pecadora. Observamos que, nos espetáculos em homenagem a Dionísio, insere-se a tragédia: um crime cometido só poderia ser expurgado por intermédio da morte, um costume moral e religioso [...]. A mulher pecadora cometeu adultério, de modo que sua purificação ou a expurgação de seus pecados só seria possível mediante a ‘morte’, instaurando a tragédia, de que resultaria a satisfação catártica do povo. Em outras palavras, a ‘morte’ é observada como elemento necessário para a finalização do conflito. (ENEDINO, 2015, p. 187) Inspirações não faltavam em Berna para concretizar em texto o ambiente trágico que dá o tom de A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. A catedral de Berna, maior construção religiosa e mais importante monumento medieval da Suíça (localizada a apenas uma rua de distância de onde morava Clarice), abriga um vitral com a representação do Juízo Final em sua porta principal. Saliente-se que, na Europa, a arte das 339 Mulheres e a Literatura Brasileira catedrais significa o despertar das cidades. A catedral europeia é uma igreja urbana, representa a casa do povo citadino. Os vitrais constituem parte importantíssima da construção de uma catedral, neles estão os princípios a partir dos quais a cidade irá prosperar. Berna foi, também, para Clarice uma iconografia pedagógica. Para uma mulher do século XX, o impacto da religião sobre a vida pública e privada das pessoas é um fator desconfortável. Um texto em gênero dramático é um bom veículo de expressão literária para dar voz a esse incômodo de uma mulher que vive em um tempo de mais racionalidade. 4. Vozes de uma reivindicadora de direitos “Meu endereço é: Gerechtigkeitsgasse, 48. Defronte de casa está a fonte da Justiça com estátua respectiva, rodeada de gerânios”, diz Clarice em carta a Lúcio Cardoso, datada de 23 de junho de 1947. Não somente morando em uma cidade cuja arquitetura rememora a Idade Média, Clarice Lispector encontra-se residindo à chamada Rua da Justiça (Gerechtigkeitsgasse, em alemão). De sua janela, Clarice pode vislumbrar a estátua de Têmis, a deusa da Justiça: É uma divindade grega por meio da qual a justiça é definida, no sentido moral, como o sentimento da verdade, da equidade e da humanidade, colocado acima das paixões humanas. Por este motivo, sendo personificada pela deusa Têmis, é representada de olhos vendados e com uma balança na mão. Ela é a deusa da justiça, da lei e da ordem, protetora dos oprimidos (STF, 2015). O fato de Clarice ter morado à Rua da Justiça (de onde podia visualizar a estátua da deusa da Justiça, com seus olhos vendados, segurando em uma mão a balança, em outra, a 340 Mulheres e a Literatura Brasileira espada) estabelece outra abordagem seminal diante da tensão dramática da peça (um julgamento, seguido da condenação à pena de morte de uma mulher adúltera). Dessa forma, como aponta Candido (2000), toma-se o externo (social) não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da estrutura da obra, em que se articula o interno a fim de que a interpretação estética assimile a dimensão social como fator de arte, avaliando o vínculo entre obra e ambiente. Ao olhar atento da escritora, o silêncio, o tempo remetido à Idade Média, a solidão, a prisão e a segregação não escaparam. Bem como não passou despercebida do olhar de Clarice a visão da estátua de Têmis, em frente à sua janela; o que não é de se estranhar, afinal, Clarice havia recentemente terminado sua graduação em Direito. Em sua crônica “Literatura e justiça” (1980), Clarice afirma que “o problema da justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele” e ainda acrescenta: “o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos”: a autora entra para a Faculdade de Direito, no ano de 1939, na então Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Mas por que estuda advocacia? Segundo Clarice, ‘quando eu era pequena, eu era muito reivindicadora de direitos [...]. Então, me diziam: ela vai ser advogada. Então isso me ficou na cabeça. E como não tinha orientação de espécie nenhuma sobre o que estudar, eu fui estudar advocacia’. E entrou, otimamente classificada, ‘traduzindo latim’. Só que no terceiro ano faz uma constatação: ‘eu reparei que eu nunca me daria com papéis e que... porque minha ideia – veja o absurdo da adolescência! – era estudar advocacia para reformar as penitenciárias’. (GOTLIB, 2013, p. 162) 341 Mulheres e a Literatura Brasileira De fato, o crime e a punição sempre chamaram a atenção de Clarice Lispector. As injustiças sociais, o problema da desigualdade, as disparidades de gênero, a morte de Mineirinho – todas essas questões estão presentes no projeto estético da escritora. Compassadamente, a cada novo escrito, Clarice desvenda o olhar atento ao fato social. Mesmo A pecadora queimada e os anjos harmoniosos que se diferencia das demais obras por ser a única escrita em gênero dramático, não contraria o plano ficcional da escritora: o de desenhar o esboço da humanidade, abstendo-se de maquiar suas imperfeições. É durante a faculdade de Direito que Clarice escreve “Observações sobre o direito de punir” (2005) e “Deve a mulher trabalhar?” (2005), publicados em agosto de 1941, na revista A Época, periódico organizado pelos próprios alunos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. No primeiro texto, Clarice examina o direito de punir do Estado, bem como a base da punição que, para ela, é extremamente relativa, transparecendo o olhar questionador diante das penalidades impostas àqueles que cometem supostos crimes. Diz a autora: Não há direito de punir. Há apenas o poder de punir. O homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele, a guerra, grande crime, não é punida porque se acima dum homem há os homens acima dos homens nada mais há. E não há direito de punir porque a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo: como julgar que posso punir baseada apenas em que o meu critério de julgamento para tonalizar tal ato como criminoso ou não, é superior a todos os outros critérios? (LISPECTOR, 2005, p. 45). A peça teatral A pecadora queimada e os anjos harmoniosos apresenta um universo ficcional que exprime o pensamento de 342 Mulheres e a Literatura Brasileira Clarice acima transcrito. A todo o momento, o texto apresenta-se como um espaço de indagações com relação ao direito de julgamento e punição que as personagens têm frente ao “crime” da protagonista. A Pecadora é julgada não porque as demais personagens (ou instituições) representadas têm o direito de puni-la, mas porque a elas foi dado tal poder fatal, como salienta o Esposo no texto dramático. Sabemos que a personagem no teatro penetra no ridículo dos homens, como observa Magaldi (1998, p. 21). As personagens criadas no universo ficcional da peça de Clarice, na medida da configuração do drama, exercem função representativa de corporificação de questões profundamente relacionadas aos formatos das instituições sociais, que acabam sempre sobrepondo o interesse do historicamente mais forte. Com efeito, se “o teatro é uma prática social” (RYNGAERT, 1995, p. 25), Clarice coloca em cena uma problemática que especialmente a preocupa – as teias de poder e opressão, como no excerto abaixo: ESPOSO: Ouve-me ainda uma vez, mulher... (Como é estranho, talvez ela ouvisse, mas sou eu que não encontro mais as antigas palavras. Dúvida que já não tem fronteiras: quando é que fui eu e quando é que não o fui? Era eu quem a amava, mas quem é este a ser vingado? Aquele que em mim até agora falava, calou-se logo que atingiu os seus desígnios. Que sucede que não reconheço a antiga face de meu amor? Talvez ela me ouvisse, mas falar para mim terminou.). (LISPECTOR, 2005, p. 65) A Pecadora, cujo crime está sendo amplamente denunciado pelas demais personagens (em sua maioria, masculinas), tem seu pecado construído no decorrer do texto: o crime de não ser de um homem só. O adultério feminino é, insistentemente, visto como o mais grave de todos os crimes, 343 Mulheres e a Literatura Brasileira definição que é lançada por Clarice na figura antropomorfizada da Pecadora, que tem, a partir das falas emitidas por outras personagens, montada a imagem de sua transgressão: AMANTE: Nem a sua morte ele compreende, aquele que partilhou comigo aquela que não foi de ninguém. [...] SACERDOTE: Ei-la, a que se tornará cinza e pó. Ah, ‘sois verdadeiramente um Deus oculto.’ 1º GUARDA: Eu vos digo, arde mais depressa que um pagão. SACERDOTE: ‘O mundo passa e sua concupiscência com ele’. [...] POVO: Pois amém, amém, e amém. SACERDOTE: ‘Ela fez suas delícias da escravidão dos sentidos’. ESPOSO: Não passava de uma mulher vulgar, vulgar, vulgar. (LISPECTOR, 2005, p. 68) O papel da experiência na peça teatral estudada é basilar. Colocar em cena, em um cenário medieval, a condenação à pena de morte de uma mulher adúltera, indubitavelmente integra um projeto literário que Clarice propôs e levou até o fim, independentemente de qual fosse o gênero de escrita ou a tipologia textual. Não surpreende, portanto, a qualidade com que Clarice Lispector traz à baila a discussão sobre o papel da mulher nas instituições sociais, pois toda a sua obra é permeada por personagens que colocam o leitor em situação de reflexão sobre a as questões de gênero, de identidade e de poder. 344 Mulheres e a Literatura Brasileira 5. Presa e calada: a cultura da mulher oprimida Em sua dramaturgia, Clarice coloca em xeque o lugar da tradição judaico-cristã e põe em discussão a relação poder x lugar x tradição. Trata-se, especialmente, de – mesmo escrevendo um texto posterior ao medievo – desarquivar o âmago da discussão a respeito do que ainda herdamos de uma cultura desigual. A bandeira ideológica da autora em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos é representar a figura feminina como portadora do silenciamento social oriundo do patriarcado. Mesmo envolta em repleto silêncio, a Pecadora, materializa a situação daqueles que sempre têm algo a nos dizer, ou seja, trata-se de uma “voz” enraizada no silêncio social: a dramaturgia acaba por ser um registro não somente de um período de silenciamentos e opressões; ela é, também, o registro de um comportamento social que afasta do centro das discussões a figura feminina. Pode-se interpretar, por isso, que a peça teatral apresenta um universo ficcional que atua como um espaço de indagações com relação ao direito de julgamento e punição que as personagens têm frente ao “crime” da protagonista. A Pecadora é julgada não porque as demais personagens (ou instituições) representadas têm o direito de puni-la, mas porque a elas foi dado tal poder fatal, como salienta o Esposo no texto dramático, o que demonstra como a protagonista fala “de um lugar subalterno específico dentro do contexto da cultura da sociedade hegemônica” (NOLASCO, 2009, p. 12). SACERDOTE: É aquela a quem nos dias santos dei inutilmente palavras de Virtude que poderiam sua nudez cobrir com mil mantos. [...] 345 Mulheres e a Literatura Brasileira SACERDOTE: Não interrompais com vossa fome, antes sossegai, pois vosso será o Reino dos Céus. [...] SACERDOTE: Que veio fazer este povo? E a quem vieram o esposo, o amante, os guardas? Pois sozinha comigo, e esta mulher já seria incendiada. (LISPECTOR, 2005, p. 63) A tragédia, então, problematiza todas aquelas máscaras ali fixadas. De cada personagem, independentemente do grau de protagonismo que assumam, podem ser extraídos – por meio de suas falas e de seus próprios nomes – os resquícios de uma postura colonizadora em relação à figura feminina: 1º GUARDA: Somos os guardas de nossa pátria. Sufocamos em abafada paz, e da última guerra já esquecemos até os clarins. Nosso amado rei nos espalha em postos de extrema confiança, mas na vigília inútil nossa virilidade quase adormecemos. Feitos para gloriosamente morrer, eis que envergonhadamente vivemos. 2º GUARDA: Somos um guarda de um Senhor, cujo domínio nos parece bem confuso: ora se estende até onde vão as fronteiras marcadas por costume e uso, e nossas lanças então se erguem ao grito da fanfarra. Ora tal domínio penetra em terras onde existe lei bem anterior. [...] Pois que estamos nós fantasticamente a velar? Senão o destino de um coração. (LISPECTOR, 2005, p. 59 – grifos meus) Objetificada, a Pecadora é o foco das falas de todas as personagens. Todas têm o direito de falar em nome dela. A hegemonia do povo reunido para o espetáculo da punição sugere uma relação um tanto colonizadora, permeada pela crença da salvação pela dominação do “selvagem” (ou mesmo pela sua completa extinção). Afinal, a selvageria consiste, na tragédia, em não guardar obediência a uma moralidade prédeterminada pela tradição religiosa, evocada no texto em tom jesuítico: 346 Mulheres e a Literatura Brasileira SACERDOTE: [...] Pois foi de minha palavra irada que Te serviste para que eu cumprisse, mais do que o pecado, o pecado de castigar o pecado. Para que tão baixo eu desça de minha perigosa paz que a escuridão total – onde não existem candelabros nem púrpura papal e nem mesmo o símbolo da Cruz – a escuridão total sejas Tu. ‘As trevas não te cegarão’, foi dito nos Salmos. (LISPECTOR, 2005, p. 58) Essa construção ideológica de gênero que mantém a dominação masculina, de fato, reafirma o ocultamento da mulher enquanto sujeito de direitos. Todas as personagens da dramaturgia clariciana estão orquestradas para apontar essa nuvem criada para apagar a identidade feminina – nuvem, inclusive, materializada pela fumaça oriunda da fogueira que tira a vida da protagonista: “2º GUARDA: Eu vos digo, é tanta fumaça que mal vejo o corpo” (LISPECTOR, 2005, p. 68). As identidades que Lispector delineia em suas personagens transcendem a arquitetura textual e assumem um contexto que evidencia muitas chagas de uma sociedade machista. Não se trata de simples “pessoas imaginadas”. Trata-se, sobretudo, da representação de máscaras que estão em colisão no jogo de poder social, pautado no interesse pela desigualdade econômica, pela exploração do mais fraco, pela manutenção da figura mítica da “mulher tradicional”, virgem e imaculada, subserviente e disponível. Muitas vezes se relacionou a importância do amor na vida das mulheres a um destino social marcado pela dependência, pelo encerramento doméstico, pela impossibilidade de se superar em projetos superiores: já que nenhum fim social exaltante se oferece a elas, as mulheres constroem seus sonhos em torno das questões do coração. (LIPOVETSKY, 2000, p. 45) 347 Mulheres e a Literatura Brasileira Com A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, Clarice Lispector entrega ao público um texto que pode se fazer útil para a reflexão sobre como as classes de poder inadvertidamente ditam a vida do indivíduo; especialmente, se ele pertencer “ao lado fraco” da organização social – excluído pela etnia, pelo gênero, pela orientação sexual, pelo poder aquisitivo. A Pecadora, pode-se dizer, funciona como uma imagemmodelo do gênero feminino. Fato é que ela representa um gênero que sempre esteve moldado dentro da cultura patriarcal. Afinal: [...] em se considerando os ‘estudos da mulher’, esta não deveria ser pensada como uma essência biológica prédeterminada, anterior à História, mas como uma identidade construída social e culturalmente no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes. [...]Há uma construção cultural da identidade feminina, da subjetividade feminina, da cultura feminina, que está evidenciada no momento em que as mulheres entram em massa no mercado, em que ocupam profissões masculinas e em que a cultura e a linguagem se feminizam. (RAGO, 2012, p. 36) Ao se pensar no corpo e na sexualidade feminina, observa-se como as expectativas a eles relacionadas baseiamse nos ecos do patriarcado. Isso se materializa em uma das falas do Amante: “Ah ela era tão doce e vulgar. Eras tão minha e vulgar” (LISPECTOR, 2005, p. 68). O possessivo de primeira pessoa é repetido diversas vezes durante a peça. Isso para demonstrar como a cultura machista infiltrou de alguma maneira a ideia de que a mulher foi feita para pertencer. Moldada para o amor romântico e crucificada quando do exercício das paixões sensuais: 348 Mulheres e a Literatura Brasileira Nas sociedades modernas, o amor se impôs como um pólo constitutivo da identidade feminina. Assimilada a uma criatura caótica e irracional, a mulher é supostamente predisposta, por natureza, às paixões do coração. [...] Celebrando o poder do sentimento sobre a mulher, definindo-a pelo amor, os modernos legitimaram seu confinamento na esfera privada: a ideologia do amor contribuiu para reproduzir a representação social da mulher naturalmente dependente do homem, incapaz de chegar à plena soberania de si. (LIPOVETSKY, 2000, p. 23-24) O molde de um objeto, entre cobranças e submissões, presa à subalternidade fastidiosa de uma cultura misógina, a Pecadora, por meio do seu silêncio, questiona “até que ponto a mulher está sujeita a um sistema moral de que ela participa de forma passiva, na medida em que não detém a palavra, mas, ao contrário, é falada” (BRANDÃO, 2004, p. 44). Com efeito, se os dogmas sempre incentivaram a repressão sexual feminina e a chefia da família era exclusivamente masculina, Lispector coloca em cena uma mulher adúltera, sorrindo diante da sua própria morte, chamando a atenção de toda uma organização social, levando as pessoas a falar sobre ela, a debater seu “crime” e colocando em dúvida a origem de tanta moralidade e de tanta santidade fingidas. A pecadora queimada e os anjos harmoniosos oportuniza a aproximação da compreensão do passado, por meio de uma perspectiva que leva em conta as classes subalternas como protagonistas do movimento histórico: Não se trata apenas de uma posição militante feminista ou de uma urgência da mulher para se reabilitar a si própria. Trata-se em último termo de avançar para uma história que seja capaz de perceber a complexidade dos processos sociais 349 Mulheres e a Literatura Brasileira desde uma ótica que tenha em conta a diversidade de sujeitos que participem deles. É evidente que o esquecimento, abandono, dissimulação, ou como queiramos dizer, da mulher como sujeito ativo em tão grande parte da historiografia não contribuiu de nenhuma maneira a proporcionar uma escrita histórica satisfatória, senão que ao contrário contribuiu a assentar a história como discurso ideológico das classes dominantes. (RAGO, 2012, p. 15) A tragédia traz para a ribalta textual as inúmeras formas de normatização sob a identidade feminina, uma vez que corpo feminino é bombardeado por diversas construções estigmatizadoras e misóginas. Na contramão do culto à herança cultural europeia deixada ao Ocidente, Clarice, enquanto escritora latinoamericana, entrega um texto escrito em terras europeias, com ares medievais que remetem ao continente, ao público brasileiro, na tentativa, talvez, de descortinar a importância de se refletir acerca das arestas culturais que nos (de)formam. A resistência física pacífica da protagonista incomoda e é desconfortável para o leitor/expectador. O texto provoca uma necessidade de contestação; é por isso que em A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, os contextos de poder são diversos: a sociedade, o homem, a religião, todos com direitos soberanos sobre o corpo da mulher. Como se pode perceber nas seguintes falas: AMANTE: [...] Quem é esta estrangeira, quem é esta solitária a quem não bastou um coração. ESPOSO: É aquela para quem das viagens eu trazia brocado e preciosa pedraria, e por quem todo o meu comércio de valor se tornara um comércio de amor. [...] 350 Mulheres e a Literatura Brasileira AMANTE: Ah, desdita, pois se também junto a mim ela sonhava. O que então mais desejava? Quem é esta estrangeira? (LISPECTOR, 2005, p. 62) Na dramaturgia clariciana, a ironia faz que a protagonista seja a representação sarcástica da mulher idealizada pelo imaginário social: petrificada, calada, obediente, passiva. Em nenhum momento, a Pecadora questiona sua condenação, nem mesmo quando outras personagens insistem para que ela fale: POVO: Que fale a que vai morrer. SACERDOTE: Deixai-a. Temo dessa mulher que é nossa uma palavra que seja dela. POVO: Que fale a que vai morrer. AMANTE: Deixai-a. Não vedes que está tão sozinha. POVO: Que fale, que fale e que fale. [...] SACERDOTE: Tomai-lhe a morte como palavra. (LISPECTOR, 2005, p. 66) Esse estigma que persegue o feminino, que é o fato de não possuir voz dentro de seu círculo social, coloca a protagonista como a imagem de um objeto ausente: “AMANTE: Deixai-a. Não vedes que está tão sozinha” (LISPECTOR, 2005, p. 66). Ela é situada à margem das relações, remetendo a discursos estereotípicos – racistas, sexistas, periféricos, metropolitanos – típicos da cultura do dominador. A Pecadora é arquitetada para que entre em cena como a própria incorporação da marginalização feminina. A perspectiva de que a heroína de uma tragédia possa passar toda a encenação sem proferir nenhuma fala é, por si só, transgressora: POVO: Está sorrindo, está sorrindo e está sorrindo. 351 Mulheres e a Literatura Brasileira ESPOSO: E seus olhos brilham úmidos como numa glória... MULHER DO POVO: Afinal que sucede que esta mulher a ser queimada já se torna a sua própria história? POVO: A que sorri esta mulher? SACERDOTE: Talvez pense que, sozinha, e já seria incendiada. POVO: A que sorri esta mulher? 1º E 2º GUARDAS: Ao pecado. ANJOS INVISÍVEIS: À harmonia, harmonia, harmonia que não tarda. (LISPECTOR, 2005, p. 64) Como o silêncio, por vezes, é “muito mais eloquente do que frases inteiras” (MAGALDI, 1998, p. 9), a ausência de fala da protagonista vem desmascarar o comportamento social que, literalmente, não deixa que o gênero feminino tenha voz. Como explica a pesquisadora Ruth Brandão: “[...] da palavra cassada as personagens femininas têm a vida cassada, de tal forma elas interiorizam uma linguagem que não é a sua própria, mas uma linguagem autoritária que as reduz inconscientemente ao silêncio” (BRANDÃO, 2004, p. 48). Em Clarice, essa preocupação com o feminino já é considerada pelos estudiosos de sua obra como marcante, pois: Desde os seus primeiros contos, escritos em 1940, quando Clarice Lispector tinha seus vinte anos incompletos, nota-se uma preocupação fundamental desempenhada na trama dessas narrativas: a personagem-mulher, inserida no meio familiar, passa por conflitos cujas razões não sabe bem explicar, experimentando situações que instigam a problematização de aspectos diretamente ligados a sua identidade, nos seus diferentes e complexos papéis sociais. (GOTLIB, 1994, p. 94) O projeto ficcional de Clarice Lispector, proporcionou, pois, um espaço que, por meio da arte literária, deu voz à 352 Mulheres e a Literatura Brasileira representação da mulher. Por meio de sua ficção, a escritora brasileira atribuiu a suas personagens femininas o papel de retratar e denunciar a postura conservadora que ainda coloca a mulher à margem dos interesses sociais. A literatura, consequentemente, fixa-se para muito além da construção social em termos de estética e contribui para as discussões acerca de um projeto feminista, trata-se de “ser protagonista de sua própria história” e “reivindicar mais do que sua voz, mas o direito de viver, ocupar o seu espaço, seu local-lugar nessa aldeia global humana” (NOLASCO, 2009, p. 15). Em sua dramaturgia, Clarice consegue pontuar a função social do teatro. Assegura o poder de fala àquele que detém o poder de fala. Alimenta a mediocridade das personagens com palavras que associam tendências sociais típicas ao discurso das personagens postas em cena. A dramaturga faz das falas das personagens masculinas, em especial, um meio documental de se revelar fundamentos de base sociológica que explicam o vínculo entre discurso citado e sociedade; o discurso das personagens não é apenas obviamente machista, ele é uma construção absorvida e apreendida que, por sua vez, causam influências outras. Sob o viés do abandono familiar, social, religioso e do sistema patriarcal denunciado, A pecadora queimada e os anjos harmoniosos ratifica a existência de uma preocupação com os aspectos sociais na ficção de Clarice Lispector, especialmente, ao buscar na linguagem teatral traços de comportamento e trajetória social que retratam o que há de mais singular na escrita clariciana: o silenciamento e a marginalização do feminino. 353 Mulheres e a Literatura Brasileira 6. Considerações finais Neste trabalho, foi alcançado o objetivo de, por meio de pesquisa bibliográfica, estudar a obra A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, de Clarice Lispector, sob o viés da representação da mulher na dramaturgia em foco. Ao fim da escrita destas páginas, restou superado o olhar meramente estético da literatura, para que se abrisse espaço para uma leitura necessária em termos de compreensão da arte como instrumento de mudanças e reivindicações sociais. A principal conclusão a que se chega é a de que, ao teatralizar a história da mulher do passado, A pecadora queimada e os anjos harmoniosos aponta para mais lúcida visão do presente e, com isso, torna possível a ambição de passos cada vez mais largos para um futuro de liberdade e protagonismo das mulheres. Referências BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. BRANDÃO, Ruth Silviano; BRANCO, Lucia Castello. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Camparina Editora, 2004. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paula: T. A. Queiroz, 2000. D’AGORD, Marta. A negação lógica e a lógica do sujeito. Ágora (Rio de Janeiro), v. 9, n. 2, p. 241-258, 2006. DUBY, Georges. Idade média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ENEDIDO, Wagner Corsino. Por uma dramaturgia de Lispector: silêncio e gênero na coxia textual de A pecadora queimada e os anjos harmoniosos. In: DOS SANTOS, 354 Mulheres e a Literatura Brasileira Fernando Brandão (org.). Estudos clássicos e seus desdobramentos: artigos em homenagem à professora Maria Celeste Consolin Dezotti. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015. GOTLIB, Nádia Batella. Clarice: uma vida que se conta. 7. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. _______. Os difíceis laços de família. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 91, p. 93-99, nov. 1994. LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004 _______. Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. _______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. _______. Para não esquecer. São Paulo: Círculo do Livro, 1980. MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. 7. ed. 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Acesso em: 17 de março de 2015. 356 Mulheres e a Literatura Brasileira Na recolha dos vestígios do devir-trapeiro da literatura brasileria Raffaella Fernandez1 Souvent à la clarté rouge d'un réverbère Dont le vent bat la flamme et tourmente le verre, Au coeur d'un vieux faubourg, labyrinthe fangeux Où l'humanité grouille en ferments orageux, On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête, Butant, et se cognant aux murs comme un poète, Et, sans prendre souci des mouchards, ses sujets, Epanche tout son coeur en glorieux projets. Il prête des serments, dicte des lois sublimes, Terrasse les méchants, relève les victimes, Et sous le firmament comme un dais suspendu S'enivre des splendeurs de sa propre vertu. Oui, ces gens harcelés de chagrins de ménage Moulus par le travail et tourmentés par l'âge Ereintés et pliant sous un tas de débris, Vomissement confus de l'énorme Paris, Reviennent, parfumés d'une odeur de futailles, Suivis de compagnons, blanchis dans les batailles, Dont la moustache pend comme les vieux drapeaux. Les bannières, les fleurs et les arcs triomphaux 1 Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ (PNPD/Capes) e do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) e doutora em Teoria e história literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). Email: raffaellafernandez@yahoo.com.br. 357 Mulheres e a Literatura Brasileira Se dressent devant eux, solennelle magie! Et dans l'étourdissante et lumineuse orgie Des clairons, du soleil, des cris et du tambour, Ils apportent la gloire au peuple ivre d'amour! C'est ainsi qu'à travers l'Humanité frivole Le vin roule de l'or, éblouissant Pactole; Par le gosier de l'homme il chante ses exploits Et règne par ses dons ainsi que les vrais rois. Pour noyer la rancoeur et bercer l'indolence De tous ces vieux maudits qui meurent en silence, Dieu, touché de remords, avait fait le sommeil; L'Homme ajouta le Vin, fils sacré du Soleil! (Charles Baudelaire, Le Vin de chiffonniers) Era horroroso viver. Eu estava trabalhando, ganhando trinta mil-réis por mês. Eu já estava cansada daquela vida de andarilha. Eu tinha a impressão de ser uma moeda circulando. Que vergonha eu sentia por não termo suma casa (Carolina Maria de Jesus). Ao analisar a obra de Baudelaire, Walter Benjamin (1989) observa a existência do poeta trapeiro, o chiffonnier, incorporado e visto sob a ótica do poeta. Os descreve como homens dispersos pelas ruas de Paris do segundo império, a observarem a multidão e a recolherem, para suas sobrevivências, os restolhos, os farrapos de uma sociedade em pleno processo de modernização. Nesta análise estamos pensando a poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus (191?-1977) com um traçado semelhante ao palmilhar desse trapeiro observado pelo poeta francês Charles Baudelaire. De igual maneira, a catadora encontra nos restolhos das ruas e das 358 Mulheres e a Literatura Brasileira tradições literárias passadistas o motivo propulsor ou a “experiência da pobreza” que sustenta sua literatura. Desse modo, este texto procura demonstrar o modo de articulação do devir trapeiro da escritora na observação de parte de seu processo criativo. A condição dessa escrita trapeira palmilhada numa cidade desumanizada, em meio às promessas de progresso na vida dos homens, verte na junção de pequenas frações de língua e literatura, reunidas com o mesmo fim, ou seja, no engendramento da poética de resíduos 2, e pode ser notada na tentativa de separação dos gêneros e na organização dos textos escritos por Carolina de Jesus. Os passos de Carolina de Jesus, mostram-se a partir de sua cidade natal, Sacramento, interior de Minas Gerais onde nasceu no início do século XX com data incerta. Em 2014 celebramos o centenário de Carolina Maria de Jesus, entretanto, em seus manuscritos a escritora questiona a data de seu nascimento, segundo ela talvez 1914/15/16, pois a mesma afirma não ter sido registrada em cartório, uma prática reservada aos negros nascidos na antiga cidade escravocrata. Sai de sua cidade após episódio de racismo contra ela e sua mãe até chegar na cidade de São Paulo no final de 1930, onde irá iniciar intensa atividade de escrita. O que de fato sabemos é que a autora faleceu pobre e esquecida em 1977, mesmo ano em que partia Clarice Lispector com quem teve breve contato nos 2 Cf. FERNANDEZ, Raffaella A. "Processo criativo nos manuscritos do espólio literário de Carolina Maria de Jesus". Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, 2015. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=00 0959623 Acesso em Abril de 2016. 359 Mulheres e a Literatura Brasileira anos de sua visibilidade. Chegou na cidade de São Paulo por volta de 1933 e na favela o Canindé em 1948 3. Em 1958, apareceu a primeira reportagem de Audálio Dantas sobre os diários de Carolina de Jesus no jornal Folha da Noite. No ano seguinte, foi a vez da revista O Cruzeiro divulgar o retrato da favela feito pela escritora 4. O megassucesso colocou-a em várias manchetes nacionais e internacionais, como na revista Paris Match, Elle e Realité5, em programas de rádio e TV, como o de João Silvestre, o de Hebe Camargo e no seriado da rede Globo “Caso verdade”, apresentado nos anos 1980. O sucesso possibilitou aproximações com algumas personalidades da cultura brasileira, como Adoniran Barbosa – com sua personagem “Charutinho” 6, que a inspirava na escrita de suas novelas para o rádio 7 –, Ruth de Souza, Solano 3 Cf. JESUS, Carolina Maria de. Onde estaes Felicidade? Fernandez, R. e Dinha (Orgs.). São Paulo: Me Parió Revolução, 2014, p.39. 4 Conferir as reportagens: DANTAS, A. O drama da favela escrito por uma favelada: Carolina Maria de Jesus faz um retrato sem retoque do mundo sórdido em que vive. Folha da Noite. São Paulo, ano XXXVII, n. 10.885, 9 mai. 1958. / DANTAS, A. Retrato da favela no diário de Carolina. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, n. 36, p. 9298, 20 jun. 1959. / DANTAS, A. Da favela para o mundo das letras. O Cruzeiro, São Paulo, n. 48, p.148-152, 10 set. 1960. 5 Segundo as jornalistas francesas, com uma reportagem fotográfica de Edouard Boubat (LAPOUGE, 1977, p.165). 6 Criação de Oswaldo Moles, a personagem “Charutinho” foi vivida/interpretada por mais de uma década por Adoniran Barbosa na Rádio Record, durante a atração História das Malocas, que ia ao ar toda sexta-feira, às 21h. 7 MUNGNAINI JR., Ayrton. Adoniran, dá licença de contar. São Paulo: Editora 34, 2002. O compositor chegou a escrever a canção “Carolina” que ressalta o percurso do lixo ao luxo e o retorno ao lixo, lançada em 1967, pelo grupo “Samba quatro”. Disponível em: <www//https:soundcloud.bigmug1984-1/sambaquatro-carolina360 Mulheres e a Literatura Brasileira Trindade, Adhemar de Barros, Jorge Amado e Clarice Lispector. Contudo, a fama não trouxe somente alegrias para a escritora. Em 1965, durante uma noite de autógrafos de Maçã no escuro, de Clarice Lispector, a “poeta do lixo” foi colocada diante de um mundo que a repelia, fato que ilustra as contradições de uma sociedade que aceitou seu best-seller – enquanto representação exótica da favela, mas recusou a protagonista dessa obra como escritora; talvez, por considerála um ser social ambíguo. (...) Dia 19 eu fui na festa da escritora Clariçe Lespector que ganhou o premio de melhor escritora do ano com o seu romance “maçã no escuro” A recepção foi na residência de Dona Carmem Dolores Barbosa. Tive a impressão que a dona Carmem não apreciou a minha presença. E eu fiquei sem ação. Sentei numa poltrona e fiquei. As madames da alta sociedade iam chegando. E me comprimentavam. A Ruthe de Souza quando chegou não me comprimentou. Coisa que foi notado por todos. (JESUS, 1996, p.201) Como podemos ver, Carolina de Jesus sofreu discriminação até mesmo por parte daqueles que tiveram uma relação mais pessoal com sua obra, como foi o caso da atriz Ruth de Souza8, que tantas vezes interpretou a protagonista de Quarto de despejo (1960) em diversas apresentações televisivas e teatrais. O êxito comercial das vendas de seu primeiro livro permitiu-lhe comprar a tão sonhada “casa de alvenaria” em adoniran> 8 Durante o apogeu de Quarto de despejo, Edy Lima montou uma adaptação para o teatro, que estreou em 1961, com direção de Amir Haddad, e com a atriz Ruth de Souza representando a protagonista da obra. 361 Mulheres e a Literatura Brasileira Santana, onde passou a morar com os filhos até 1964. Santana era um bairro de classe média baixa, onde ela e seus filhos sofreram uma série de preconceitos por serem negros e por carregarem o estigma da pobreza, de serem oriundos da favela. Não suportando as discriminações, Carolina de Jesus mudouse para um sítio em Parelheiros, onde morou numa pequena casa com os filhos, sobrevivendo das colheitas de algum plantio e da criação de galinhas e porcos – além da venda de víveres na beira da estrada, o que não deu certo por causa dos fiados –, e da “catação” de ferro, segundo ela conta na parte de seu diário “No sítio” (JESUS, 1996, p.201-284). Na esteira do sucesso de Quarto de despejo, com o dinheiro também publicou sem muito êxito outros livros: Casa de Alvenaria (1961), que pode ser considerada a escrita mais fiel à realidade das escrituras de Carolina de Jesus, visto que ela mesma afirmou que era chegado o “tempo de escrever desilusões”; Provérbios (1963); e o romance Pedaços da Fome (1963). Consta que o livro de máximas tenha sido publicado por uma gráfica, sendo a editora inventada. Essas obras não tiveram a mesma aceitação de Quarto de despejo devido a que se considera ser uma “insuficiência” literária por parte da escritora; entretanto, sabemos que o desinteresse também está ligado à sua saída da favela, fato que desvinculou sua figura de escritora favelada do símbolo de “a voz do povo” que faltava. A suposta “insuficiência” literária, reafirmada até mesmo por Audálio Dantas no prefácio de Casa de Alvenaria, foi desmistificada com a publicação póstuma, no Brasil, de Diário de Bitita (1986), espaço discursivo em que a própria escritora reitera seu destino marcado pelo ofício da escrita. A escritora foi aceita somente enquanto elemento exótico de representação da mulher de baixa renda brasileira; daí o fato de sua fama não ter sido capaz de fazer com que seu valor recaísse sobre o trabalho intelectual que desempenhou. A 362 Mulheres e a Literatura Brasileira ascensão social e publicação dos demais gêneros por ela experimentados representaram uma mácula na produção de seu “testemunho” da pobreza. Seu valor foi sendo reduzido conforme sua fama ia aumentando, diferente, por exemplo, de Lima Barreto, que foi muito estudado justamente por não ter recebido fama em vida. Ao tentar viabilizar seu reconhecimento como escritora de literatura, Carolina de Jesus escapa da perpetuação do local da mulher negra que se insere dentro da tradição literária brasileira masculina e eurocentrada desde o século XIX, descritas em obras como O cortiço, de Aluísio de Azevedo, assim como os contrastes entre A escrava Isaura, quase branca, ou as donzelas brancas casadouras de Jose de Alencar e suas negras escravizadas. Tais estereótipos, que estigmatizam as mulheres negras, ainda hoje tentam mantê-las nessa segmentação. Para ser escritora de sucesso, Carolina de Jesus precisaria estar condenada ao não prestígio e à vida material na favela, i.e., ao não pertencimento daquela seara por onde circulam os grandes escritores – estes, voltados a uma atividade escolarizada e de prestígio, inatingível para uma “escritora vira-lata”. O trinômio negra, mulher e favelada não poderia estar unido ao termo “escritora” porque seu corpo é um corpo de uso que tem a humanidade negada, o mesmo que foi feito com a mulher negra ao longo da História do Brasil. Carolina de Jesus faleceu no sítio de Parelheiros, pobre e esquecida, na madrugada de 13 de fevereiro de 1977, vítima de uma insuficiência respiratória. No entanto, voltou à história de nossas letras em 1996, a partir das publicações póstumas de extratos inéditos de três diários, em um livro que recebeu o título de Meu estranho diário, e de uma coletânea de seus poemas intitulada Antologia pessoal, com revisão do poeta Armando Freitas Filho e prefácio de Marisa Lajolo, ambos organizados por José Carlos Sebe Bom Meihy. 363 Mulheres e a Literatura Brasileira Em meio a uma realidade de parcos recursos materiais, Carolina de Jesus ficou inviabilizada uma possível organicidade cartesiana dos gêneros, ao passo que sua condição “trapeira” colabora para a produção de uma mescla dos gêneros e da pluralidade discursiva que marcam seus escritos, de modo a possibilitar que o estilo fragmentado e fraturado de seus textos apareça como reflexo cognitivo de ruídos, em uma condição de vida em meio a ruínas, mas também como recurso de resistência criativa, como já apontado por Bosi e Pêcheux. Nessa visada, vale citar a originalidade conceitual como propriedade estética dos ensaios de Benjamin 9. Ginzburg (2012) lembra que os modos de operação da linguagem benjaminiana unem fragmentação e conhecimento na formulação de sua crítica literária10. Ele considera que as notas de Benjamin expressam sempre uma reflexão em andamento e se vale da incorporação daquilo que estuda para a forma de seu texto combinando formação literária com formação teórica. Observa ainda que “a tendência de Benjamin parece ser pensar em aforismos, em casos como Parque central, e trabalhar como um colecionar, operando uma montagem de ideias e citações” (p.138). Este vínculo entre material estudado e material produzido, bem como a “utilização das metáforas como conceito” estão de igual maneira sustentados nos textos de Carolina de Jesus, que vai catando e acumulando suas experiências para compor seus exercícios de escrita: Cf. BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência” in Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. 10 Cf. BENJAMIN, Walter.Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232. 9 364 Mulheres e a Literatura Brasileira (...) A profecia de Nietzsche já estão vigorando. No ano de 1870, o filósofo alemão disse: ‘Daqui a noventa anos vai haver uma transformação caótica no mundo. Porque o comércio vai acrescentando centavos nos seus produtos. No ano de 1970, o pão estará custando cem mil-réis cada um. No ano de 1990, pobre do homem deste ano!’(...) Ninguém queria ler as obras de Nietzsche, dizendo que ele era débil mental. A imprensa dizia que o escritor alemão estava imitando o doutor Miguel Nostradamus, o profeta francês, nascido em 1503. Mas Frederico Nietzsche dizia: ‘Alguém o ano de 1980 há de felicitar-me e reabilitar a minha memória. Eu disse isto com a intenção de advertir os infaustos desta época’. (JESUS, 1982, p. 55-56) As tais junções inesperadas entre Nietzsche e Nostradamus ou Hitler e Vietnã em um mesmo excerto, por exemplo, são peças de mosaico ou trapos amarrados como numa colcha de retalhos, repleta de referências unidas que produzem algo além de um choque entre culturas ou duas sociedades, ou seja, recria sensações que nos aproximam de sua forma trapeira de captar recursos literários, mas dificultam que a analisem, pois assim como nos textos benjaminianos: Os elos de pertinência entre as afirmações muitas vezes têm de ser procurados por meio de uma hermenêutica delicada que examine pormenores. Os exemplos dessa natureza, que poderiam ser vários – e são facilmente encontráveis –, atormentam o leitor desprevenido e impaciente, acostumado ao desdobramento dedutivo e esquemático dos textos argumentativos convencionais. (GINZBURG, 2012, p.138) Ao seguir tais pistas, supõe-se que Carolina de Jesus também demonstra essa falta de sistema, enquanto Benjamin procura nomeadamente, põe à disposição da comunidade uma 365 Mulheres e a Literatura Brasileira escrita que provoque, levando a uma função reflexiva, moral e política: Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1994, p. 222) No entanto, Carolina de Jesus o faz de um modo orgânico ao perfazer a partir de uma desestabilização, que molda seu espólio literário e emerge de uma condição marginal – trapeira de tino literário ao veicular no popular algum tipo de erudição. No caso de Benjamin, ele via a crítica literária como um posicionamento político e de domínio da forma. Entretanto toma certas proporções, ambos são a expressão de um mundo da negação ou do negado, que se rebela por meio da linguagem, e vêem seus trabalhos como construção artística reflexiva e de busca da liberdade. Com efeito, ambos são a expressão do conhecimento em sua dimensão humana, parcial e fragmentária que não sustenta uma “posição falsa e autoritária do poder total”. Mas, 366 Mulheres e a Literatura Brasileira vale ressaltar que Carolina de Jesus não escolher ser e instituise como uma escritora vanguardista, muito embora sua produção exiba procedimentos precursores do que a vanguarda da autonomeada “literatura marginal periférica” opere hoje. Sua “poética de resíduos” é apenas ocasional ou orgânica e resultado de sua existência à margem, não tem intenção deliberada de construir um discurso fragmentado. Quanto à materialidade dos cadernos, percebe-se que também apresentam fragmentações na disposição dos textos, muitas vezes recomeçam ou continuam noutros cadernos, nutrindo a dispersão e a movência que, supõem-se, após longa observação, pertencerem ao período em que Carolina de Jesus, ainda na condição de catadora favelada, não dispunha de recursos para adquirir cadernos novos; por isso, reciclava papéis para escrever e, escrevendo, sobreviver. Assim, pode-se avaliar de que modo suas dificuldades interferiam, de maneira decisiva, no processo criativo de suas narrativas, já que não havia uma estabilidade no suporte. Na página seguinte, no fac-símile do manuscrito da peça teatral “A senhora perdeu o direito”, é possível observar um exemplo do que se aponta na análise, tanto na disposição de sua escrita como no modo como faz o aproveitamento das páginas: 367 Mulheres e a Literatura Brasileira Figura 1: FBN:MS-565 (5): Caderno 10- “A senhora perdeu o direito”, FTG s/n. 368 Mulheres e a Literatura Brasileira Esses cadernos mostram, em sua diversidade de gêneros, um reaproveitamento quase que integral dos espaços das folhas que restavam dos cadernos reutilizados, resgatados do lixo. Escritos numa caligrafia compacta, em folhas degradadas e sujas, alguns com manchas do próprio lixo, haja vista o contexto material em que ela armazenava seus cadernos e livros, isso é, dentro do barraco juntamente com os materiais recicláveis para tentar protegê-los da chuva, para depois vendê-los durante a semana de acordo com sua necessidade mais imediata, otimizando o tempo do trabalho de catação e o da escrita. Em seguida, quando de sua descoberta, passando a dispor de recursos materiais, Carolina de Jesus vai modificando sua forma de escrever após vários rumos. A partir de então, sua letra é firme e volumosa, a ortografia aproxima-se da gramática padrão, e ela chega mesmo a oscilar na escolha entre um sinônimo e outro, apresentando na margem do manuscrito o significado da palavra que foi buscado do dicionário. Nos cadernos, agora comprados, a escritora se permite, a seu bel-prazer, deixar linhas em branco – linhas que antes eram aproveitadas com tanto cuidado –, e podendo até eleger cadernos distintos para gêneros variados na incansável reescritura de seus textos, procurando alcançar um tom estético de elegância, por meio da correta grafia de sua expressividade. Também, nos novos cadernos já aparece a numeração de páginas, como no exemplo a seguir, o que nos leva a entender que tais cadernos não são mais “restos reciclados” e, sim, objetos comprados para um determinado fim, ou seja, cadernos para escrever seus textos. Cadernos para a posteridade. O texto da página em fac-símile, apresentado a seguir, em que Carolina de Jesus homenageia seu avô, que foi reescrito em diversos cadernos, sendo depois datilografado, aparece esta 369 Mulheres e a Literatura Brasileira imagem como sendo a última versão manuscrita do mesmo texto, datado dos anos de 1970. Figura 2: IMS:CLIT PI 0002: Meu Brasil -“O Sócrates Africano”, F. 76. 370 Mulheres e a Literatura Brasileira Essas diferenças no suporte, somadas às dispersões do espólio literário de Carolina Maria de Jesus, dificultam a pesquisa do acervo, colocando o pesquisador diante dos originais na condição próxima à de um arqueólogo que busca encontrar uma justaposição de relação entre as partes e o todo, o que certamente vai interferir no olhar sobre a obra, ao mesmo tempo em que essa condição direciona o rumo da pesquisa. Neste espólio, muito em particular, não é possível inferir uma ordem original ou mesmo uma ordem sugerida pela escritora, pois, neste arquivo fragmentado, as circunstâncias de distribuição e doação do acervo permitiram a reunião das obras, assim como pelas adversidades pontuais do contexto da vida insalubre de Carolina de Jesus não foi viável gerar um critério de arquivamento. Como vimos, o conteúdo dos textos de Carolina de Jesus também segue linhas de errância e incertezas; por exemplo, nos três “diários” da escritora, a temática da cidade e do campo aparecem sugestionados por ela de um modo ambíguo, ora a cidade é eleita como símbolo de desenvolvimento humano, chegando a ser, inclusive, um ambiente propício para pôr em funcionamento sua máquina de auto escrita como ela diz na versão 1 de “Prólogo”, ora a cidade é condenada como ambiente promíscuo e degradante, como no romance “A felizarda” ou no conto “Onde estaes felicidade?”. O campo, às vezes, é presentificado pela exaltação da natureza ou pela crença de que o país seria salvo por uma reforma agrária; o campo de Carolina de Jesus nos parece ser lócus que corresponderia a uma vida digna, como lemos versão 2 de “Prólogo”. A escritora nunca parou de tecer linhas de errância no incessante cumprimento de seu devir-aranha e, alinhavando o inadaptável e impronunciável para além da linguagem realista de uma realidade inóspita, teceu sua interioridade através do 371 Mulheres e a Literatura Brasileira registro oral ancestral desvendado nas minúcias, como afirma Elena Pajaro (2015)11, ao decodificar a presença da referência ao “astro rei” no discurso de Carolina de Jesus como resquícios de um costume de saudação e veneração ao Sol, da cultura banto, reproduzida por seu avô e por ela cultivada. Vestígio que costuma ser lido como uma aparente e enfadonha repetição ou como laivos de poesia na descrição de sua escrita diarística. No entanto, sua escrita começa pelo meio, estilhaça o sujeito ao expor limites entre memória e ficção, e parece sempre buscar a coisa que o signo já não é, como no cultismo da linguagem passadista dos poetas românticos, lidos e reencarnados nas pegadas de seu devir-chiffonnier ou devirtrapeira ou nessa ancestralidade quase imperceptível, em cuja linguagem vai recolhendo e tecendo seus textos com retalhos de linguagens alheias, mas que fazem parte de si mesma. Às vezes o devir-trapeira dessa literatura revela-se no encontro com outros trapeiros, andarilhos ou mendigos, conforme se pode ler no texto em destaque onde ela diz ter encontrado uma indigente. Será que se valeu desse motivo para fazer sua crítica reflexiva ou autocrítica? Estaria ela fazendo eco ao poema de Manuel Bandeira 12 lido em algum livro achado no lixo? PAJARO, Elena. Entrevista concedida ao programa “Pesquisa Brasil” da rádio USP. Disponível em <http://bit.ly/5JPBr> 12 “O bicho” / Vi ontem um bicho/ na imundície do pátio/ catando comida entre os detritos. // Quando achava alguma coisa,/ não examinava nem cheirava:/ engolia com voracidade. // O bicho não era um cão,/ não era um gato,/ não era um rato. // O bicho, meu Deus, era um homem. (Manuel Bandeira). Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/manuelbandeira03.html>. Acessado em 15/jun/2015. 11 372 Mulheres e a Literatura Brasileira Fiquei horrorizada ouvindo/ uma indigente dizer que/ haviam roubado a sua/ trouxa, que continha apenas/ trapos para ela forrar/ as calçadas para dormir/ O tipo que rouboua deve ser um tipo mutilado mental// que quando ganha esmola toma apenas um copo de/ lêite. Queixou-se que não/ aprecia a juventude/ atual, que não tem/ consideração com os velhos/ Que são imorais com ela/ e não deixa dormir/ em paz. Mas ela sabe que/ vai dormir em paz, é/ na sepultura./ Que os homens ficaram/ impiedosos e egoístas/ e não existe mais o/ assilo para a velhiçe/ chorou. Dizendo que é a/ única coisa que o pobre do Brasil sabe fazer./ Murmurou tristonha./ Meu Deus! Meus Deus!/ O mundo virou um/ Chiqueiro! (FBN: MS-565 (4), Caderno 7 “Pensamentos”, FTG. s/n) Isto que apreendemos na escritura de Carolina de Jesus vem corroborar a ideia de que a repetição do gesto é como marca da condição humana, “esquecer para lembrar”, mas refazendo e renovando sentidos para si e para os outros, pois mesmo as tradições caminham na via “repetiçãoesquecimento-renovação”, como a re-veneração do “astro rei’ em sua obra. A ligação entre recordação e deciframento, que Gagnebin (2006) remonta ao discutir Ricoeur, afirmando que o contemporâneo é sempre como um estado potencial do passado. A análise da obra de Carolina de Jesus segue na esteira de Benjamin (1989) quando ele insiste na apreensão de um tempo histórico que não tem sua marca na cronologia e, sim, na intensidade dos acontecimentos que pululam dos arquivos da memória. Como foi dito, a teoria da linguagem de Benjamin (1989) contribui para se pensar na conquista da emancipação humana através da palavra. Nesse caso, a poetisa-trapeira no sentido baudelairiano, que, contrariando as estatísticas, escrevia enquanto a classe média brasileira dormia, e, desse 373 Mulheres e a Literatura Brasileira modo, relegada à condição de total abandono à margem do mundo e da dignidade, transformava sua experiência de tempo e espaço. Valendo-se dos rejeitos daqueles que a excluíam, a escritora foi reconstruindo, reciclando, deslocando, ressignificando, mobilizando e criando outra forma que transpunha em positividade e assimetria seu não-lugar, até então enjeitado, órfão: Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais. Não mais se vê is coros voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos. (JESUS, 1960, p.55) Em sua obra, Carolina de Jesus perfaz uma apropriação de elementos diversos: de posse de refugos, sucatas, barracos, fiapos de discursos, e de linguagens catadas e reaproveitadas, ela exerce um desvio de ideias e comportamentos. Há aí uma inversão valorativa, pois a apropriação de elementos diversos lançados pela sociedade é usada de forma diferente daquelas que foram pré-determinadas, como no excerto acima, onde ela se vale da imagem de sua vida miserável na favela para realizar uma linguagem metafórica como expressão de seu tempo espaço outro, deslocando sua vivência marginal para o centro da narrativa. Também, nesse sentido, o conjunto dos manuscritos remetem às assemblages de Bispo do Rosário, ao justapor de forma inusitada objetos e palavras na composição de sua arte plástica. Seus textos estão inseridos numa zona de indeterminação entre escrita e oralidade, refletindo a pertença de grupo em constante mobilidade, em mutação, de um devirtrapeira factual para um devir-escritora desejado. Nesse sentido, seu devir-trapeira da linguagem também se associa ao Eu da multidão, ao poeta-trapeiro de Benjamin 374 Mulheres e a Literatura Brasileira (1989). Aquele solto e deslocado, mas que, ao contrário do badaud, que para e se vislumbra, ao observar o espetáculo na rua sendo apenas mais um na multidão, nela, o trapeiro está desterritorializado em meio às intensidades que o olhar da artista consegue apreender e captar por entre as multiplicidades de si, recriando assim, através de sua individualidade perpassada pelo outro, uma identidade narrativa, essa experiência do Eu que se transfigura no Ele de Ricoeur (1984) configurando “zonas de indiscernibilidade”, na qual já não há mais limites entre Carolina de Jesus e a mendiga que ela abordou ou entre o ofício da escrita e o da catação, pois os atravessamentos emergem dessas trocas mútuas. A multidão anula o sujeito, neste caso o sujeito autobiografado que, além disso, já rarefeito pela escrita, porque esta desfaz a integridade do relato de vida no processo mesmo de sua escrita. Nos manuscritos, as contaminações, a impessoalidade, os descentramentos ficam mais evidentes quando acompanhamos os atravessamentos, uma vez que em sua escrita, ao se aproximar de algum gênero literário, Carolina de Jesus se inspirava na forma culta, mas tropeçava no semianalfabetismo de sua escrita eriçada, desmaculada, mal-ajambrada, ainda que sempre preocupada com a ortografia e a significação das palavras, pois, ainda que não soubesse escrever – por falta de escolaridade – ela sabia pensar. E pensava os sentidos, e os expressava na ostentação da forma polida da escrita parnasiana, adaptando-se, ou buscando adequar-se a uma escrita tradicionalmente tida como pertencente ao nível culto. Como os barracos adaptados ao local da invasão, a narrativa caroliniana engendra sua escritura favelada. Escrita retalhada, emparelhada, amontoada, invasora de zonas de perigo desconhecidas e inseguras, desencadeando seu devirescrita trapeira por entre as bordas, rompendo fronteiras. Cria 375 Mulheres e a Literatura Brasileira tipos de narrativa-escombros, que apesar da fragilidade sustentam-se e sobrevivem, dada sua capacidade de inovar e redimensionar o antigo. Revela os resíduos da memória do cânone literário, anuncia um corte da memória popular do ponto de vista do marginalizado, o “exército industrial de reserva”. Os textos de Carolina de Jesus, assim como seu corpo um dia também o foi, são nutridos pela deambulação de ideias e de recolhimento do lixo, do excesso do outro que virou sobra, do floreio das frases e o embelezamento de uma história almejada, através de um discurso rebelde que agita as fímbrias no movimento de aproximação e impossibilidade de completude da língua almejada, fatalmente despedaçando rituais de linguagem. Referências BENJAMIN, Walter. “Para uma crítica da violência” in Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2011. BENJAMIN, Walter. Fragmentos de Paris do Segundo Império. Obras escolhidas III. (Tradução de Jeanne M. Gagnebin; José C. Martins Barbosa; Sérgio P. Rouanet; Rubens Torres F.º). São Paulo: Brasiliense, 1989, p.78-79. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232. Fundação Biblioteca Nacional. Coleção Carolina Maria de Jesus. Cadernos microfilmados: 11 Rolos (1958-1963): MS565 (110). Rio de Janeiro, 1996, P/b, 35mm. 376 Mulheres e a Literatura Brasileira GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: FAPESP: Edusp, 2012. Instituto Moreira Salles. 2 cadernos autógrafos: BR IMS CLIT CMJ P1 0001 e 0002. Rio de Janeiro, 2006. JESUS, Carolina Maria de. Antologia pessoal. MEIHY e LEVINE (Orgs.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. JESUS, Carolina Maria de. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Paulo de Azevedo, 1961. JESUS, Carolina Maria de. Diario de Bitita. Madrid: Alfaguara, 1984. JESUS, Carolina Maria de. Meu estranho diário. MEIHY e LEVINE (Orgs.). São Paulo: Xamã, 1996. JESUS, Carolina Maria de. Onde estaes Felicidade? Fernandez, R. e Dinha (Orgs.). São Paulo: Me Parió Revolução, 2014. JESUS, Carolina Maria de. Pedaços da Fome. São Paulo: Áquila, 1963. JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: Edição da Autora, 1965. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960. RICOEUR, Paul. Temps et récit II: la confugation dans le récit de fiction. Paris: Seuil, 1984. 377 Mulheres e a Literatura Brasileira As representações de leitoras na série Um Castelo no Pampa, de Luiz Antonio de Assis Brasil: a personagem Beatriz Francieli Borges1 A leitura tem uma história. (Robert Darton) Uma das tarefas fundamentais de todo trabalho intelectual consiste, ao que me parece, em fazer justiça, através de uma leitura atenta, às obras que ajudam a aperfeiçoar os parâmetros intelecutais necessários para compreender de outra maneira as velhas questões. (Roger Chartier) As representações das leitoras são, na narrativa de Um Castelo no Pampa, de Luiz Antonio de Assis Brasil, algo como um quebra-cabeças – para juntar tais peças, são feitas análises sobre uma personagem específica dos textos analisados, Beatriz. Tendo em mente que emerge a importância, para os educadores, os quais se configuram entre os principais incentivadores da leitura, de compreender a forma como essa personagem é representada – mesmo para questionar certos juízos –, é importante evidenciar que “para entender como algumas obras literárias configuram as representações 1 Graduada em Letras e Mestra em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), graduanda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: francielidborges@gmail.com 378 Mulheres e a Literatura Brasileira coletivas do passado, pode-se fazer o uso do conceito de ‘energia social’ que desempenha um papel essencial na perspectiva analítica do New Historicism” (Chartier, 2011, p. 96). O entendimento de “energia social” atua como uma noção-chave tanto para o processo de criação estética quanto para a capacidade das obras de transformar as percepções e experiências de seus leitores. Portanto, a escrita literária apreende a poderosa energia das linguagens, das práticas do mundo social, dos ritos, tal como acontece nas três obras analisadas. A série Um Castelo no Pampa, que evidencia a saga de uma família que se confunde com a história do próprio Rio Grande do Sul, foi escrita por Luiz Antonio de Assis Brasil em um vaivém – em Porto Alegre, em Berlim, na estância Camboatá em Pedras Altas –, assim como o estilo narrativo desses romances. Em alguns momentos aqueles que falam são as personagens principais, em outros, o narrador onisciente, ora no passado, ora no presente. Quanto às personagens, todas estão irrevogavelmente encadeadas à tradição local. O autor evidencia, nas últimas páginas de Pedra da Memória, que os romances podem ser lidos separadamente, e por esse motivo ele não considera os três livros, Perversas Famílias (1994a), Pedra da Memória (1994b) e Os Senhores do Século (1994c), como uma trilogia, e sim como um romance em sequência. Em Perversas Famílias, primeiro livro publicado, o centro da atenção parece ser a construção de um Castelo medieval em pleno pampa gaúcho. Convém mencionar que nas três obras estudadas a palavra Castelo aparece com a letra inicial maiúscula e tal substantivo próprio atua, por vezes, como personagem – não em um âmbito central e com protagonismo (como acontece em O Cortiço, de Aluísio Azevedo, por exemplo), mas ao direcionar o pensamento das demais, por possuir um vínculo afetivo (além de cultural) e funcionar com 379 Mulheres e a Literatura Brasileira um tipo de referência que se costuma ter com a ideia de terra natal, e, ainda, para redimensionar os problemas históricos das principais personagens. No livro sobredito são exploradas as situações conflituosas das famílias abastadas do Rio Grande do Sul, afora as cavilações políticas que se desenrolaram no tempo narrativo situado nos séculos XIX e XX. O Castelo abriga, nas três obras, em seu plano aristocrático, a propaganda republicana, saraus literários e musicais – acontecem leituras em voz alta, portanto –, afora casamentos, episódios de loucura, embriaguez, estupro, adultério, importantes reuniões políticas, velórios. Na primeira obra são tematizadas, também, a elite pelotense, a belle-époque carioca, a Exposição Universal de Paris de 1889. Em Pedra da Memória, livro que dá continuidade à série, é desenvolvida a trama anteriormente iniciada. Esse segundo livro dá a impressão de ser mais atento às questões políticas. Por exemplo, Doutor Olímpio, uma das personagens principais, dá materialidade à ideia do Castelo e tem seu percurso vertiginoso em foco desde a proclamação da República até o final da Revolução de 1923. Nesse volume são assistidas, também, as manifestações homossexuais altamente reprimidas, que culminam com o suicídio de Proteu, filho de Olímpio; as aventuras de Astor, irmão de Olímpio por parte de mãe, fadado pela natureza das circunstâncias sociais e históricas ao anonimato; o crescimento e tentativa de desvelar a própria história envolta de profundo mistério de Páris, neto de Olímpio. São narradas, também, em espaços de poucas páginas, as personagens serviçais em seu cotidiano e na totalidade de suas vidas. Os cenários desse segundo volume são Lisboa, Viena, Buenos Aires, Pelotas, Porto Alegre – e as batalhas gaúchas são alternadas com momentos pungentes e episódios burlescos. 380 Mulheres e a Literatura Brasileira Já em Os Senhores do Século, a trajetória de Olímpio, em um misto de patriarca e político, é mais detidamente acompanhada. Os inúmeros conflitos pessoais dos quais se manteve distante toda a vida agora o bombardeiam por todos os lados e sua personalidade contraditória – inclusive em política – é brutalmente atingida. A salvação para o desgosto e desencanto com a vida e os seus projetos passados vêm na forma de uma biografia escrita pelo amigo Câncio Barbosa. São narradas, ainda, as descobertas acerca da própria vida, história e amores do neto Páris, juntamente com o tio Astor e a tia Beatriz. A Páris, único integrante da nova geração, restará o legado familiar e do Castelo. Para e nesses cenários sobreditos são contadas inúmeras histórias que em vários momentos confundem ficção e grandes fatos da historiografia oficial. Muitas são as recorrências, nas três obras, tanto de personalidades que hoje dão nomes às ruas gaúchas, como referência às situações políticas, a periódicos que circularam no período supracitado e assim por diante – o autor, desta feita, enfatiza que são apenas semelhanças e que assim devemos considerá-las. O implícito dessa afirmação é que a literatura não tem nenhum compromisso com a realidade e que o intuito não era fazer um relato documental; contudo, também não se pode crer que estas sejam apenas semelhanças ao acaso. Elas estão ali por algum motivo bem delimitado, seja com a finalidade de confirmar o discurso historiográfico, em certo sentido, ou para subvertê-lo, ao assumir determinadas posições. Observamos a passagem a seguir: Getúlio Vargas, como se sabe, morreu picado por um enxame de abelhas que cultivava nos jardins do Plácio do Catete, no exato momento em que, provido de um véu de gaze, ia retirar-lhes o mel. Ensinamento: governantes 381 Mulheres e a Literatura Brasileira brasileiros não devem dedicar-se à apicultura. (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 183) Getúlio Vargas, que figura em inúmeras reuniões políticas ao lado do destacado personagem Doutor Olímpio, tem a história de sua morte contada de outra maneira. É sabido que o ex-presidente brasileiro não morreu pela picadura de abelhas, mas ao dar um tiro no próprio peito, em 24 de agosto de 1954. Contudo, esse excerto talvez possa fazer referência, de maneira irônica, às circunstâncias de isolamento e descrédito político através das quais sua morte se deu. Outra interpretação pode caminhar no sentido que ao invés de dizer que o político tenha dado fim à vida por motivos pessoais, a passagem sobredita dá a entender que, na verdade, por ter “colocado a mão em vespeiro”, tal decisão foi tomada porque Getúlio ficou sem saída – é possível que essa seja uma tentativa de defesa ou um tipo de justificativa da personagem histórica. É dessa maneira que transcorre boa parte das passagens da série, com similitudes muito evidentes em relação à história. Para Chartier (2011, p. 12), no compilado A força das representações: história e ficção, “enquanto as hipóteses devem ser empiricamente confirmadas, a fim de serem validadas, ficções são formas de articulação de ideias que dispensam ulterior confirmação”. Em tal contexto, destacamos a estratégia da “história contrafactual”, cuja operação supõe a incorporação do “como se”, definidor da ficcionalidade, ao trabalho de reconstrução do passado. Partimos do pressuposto que a história é constituída a partir de representações do tempo transcorrido. Para a História Cultural, corrente de estudos que recebe grande atenção no momento atual, uma quantidade enorme de textos podem pensar a escrita, leitura e linguagem da história. Assim, 382 Mulheres e a Literatura Brasileira esta linha de abordagem estuda, inserida em um determinado recorte contextual, os mecanismos de produção dos objetos culturais entendidas amplamente – e aí se encaixa a literatura. Se a História Cultural contempla esses mecanismos de produção, a saber, sua intencionalidade, a questão intertextual, a dimensão estética e sua recepção como uma forma de elaboração de sentidos, se encaixa perfeitamente nesse estudo que procura observar quem fala e de qual lugar, para quem fala e como acontece a recepção do leitor. A literatura, dessa maneira, atua como intermediária entre o produtor e o receptor, articuladora como chave das representações e, portanto, como um tipo de documento para análise. Le Goff (1996) vai adiante nesse pensamento ao afirmar que é necessário refletir sobre as condições sócio-históricas dessa produção e o lugar social onde ela foi construída, com atenção às relações de poder que a cercam e a atravessam. Dessa maneira, embora a intenção não seja deixar as questões estéticas em segundo plano e nem fazer a análise a partir da biografia de Luiz Antonio de Assis Brasil, contextualizar o texto escrito é importante para elucidar seu estilo, sua linguagem e a sociedade que embasa o escritor, seu texto e possivelmente seu leitor ideal: que leva em consideração sobretudo três níveis de leitura, o entendimento da obra, a relação com o seu contexto e as suas contradições. Para Chartier (2001, p. 20), o leitor, ainda, é aquele sob o qual autores e editores têm sempre inúmeras representações. Estas versam como as competências que supõem que o leitor tenha, são os pensamentos e condutas que desejam nesse leitor e que fundam seus esforços e efeitos de persuasão. Chartier parece avançar nesse sentido, em relação à Estética da Recepção, que preconiza acerca do leitor ideal, porque também elabora qual seria o leitor “real” – por exemplo, alguns leitores não conhecem os dados históricos que perpassam a narrativa, mas 383 Mulheres e a Literatura Brasileira conseguem relacioná-los com o contexto; outros compreendem a história, mas não entendem como ela se relaciona com o texto; há ainda aqueles que evidenciam uma contradição, embora não consigam precisar de onde ela vem. Para dar continuidade aos questionamentos sobre a relação entre as representações e as narrativas, é imprescindível atentar, primeiramente, à maneira como aparecem e o poder dos papeis das personagens nas obras. Isso quer dizer que de acordo com a compreensão dessa pesquisa acerca das ficções referenciadas a partir do conceito de representações, de Chartier (2011), estas não funcionam como meras descrições, tipologias neutras, retratos ou reflexos – mas inúmeras vezes servem para reforçar e mesmo impor representações da “boa leitura”, para desqualificar certos hábitos e sugerir modelos de conduta. Essas representações atuam como personagens autorizadas da experiência comum dos leitores. Contudo, se é possível afirmar que as representações evidenciam algo do social, e que também por esse motivo ela foi escolhida como fonte de investigação, não se pode pretender que ela dê conta, fielmente, desse social. Ou seja, “o autor já traz em si certos implícitos da representação, certos ‘representados’ da representação” (FRAISSE, POUPOUGNAC & POULAIN, 1989, p. 60). A obra é também um espaço de criação do artista. Quanto à essa afirmativa, Assis Brasil, no texto “Escrever, todos escrevem”, presente na obra organizada por Clara Pechansky, cujo título é A face escondida da criação, evidencia que a personagem é um produto da minha sensibilidade e possível inteligência, e é o resultado de um processo: parto do princípio que as personagens têm função instrumental, dentro de uma narrativa: não sou dos escritores que gostam 384 Mulheres e a Literatura Brasileira de escrever histórias das personagens; prefiro contar histórias em que as personagens são adequadas à história. (...) É a maneira também dessas personagens viverem por mim as experiências que meu pudor não me permitem viver; é o momento, também, de viverem por mim o momento de épocas pregressas – que não vivi. (ASSIS BRASIL, 2005, p. 66/68/71) O escritor, afinal, se dirige a um público cambiante e esse fator condiciona, em parte, as representações, já que toda constituição de um repertório traz consigo o caráter arbitrário da seleção. Afora isso, com as diversas publicações muda a difusão, o próprio suporte tem modificações e tudo diferencia – quando não opõe – os públicos leitores potenciais. No âmbito dos estudos literários, as representações atuam como modelações estéticas capazes de dialogar com a compreensão corrente do que seja a realidade, materializando as ficções através da língua. Embora, preferencialmente, o conceito de representações se explique, para tratar de literatura, parece que ele caminha melhor ao lado de outro termo bastante caro: verossimilhança. Verossimilhança seria uma possibilidade da verdade, algo, talvez, como uma mentira não-grosseira, que não escandaliza uma verdade provável. Tal conceito é essencial no fazer literário porque abre espaço para todas as possibilidades simbólicas no tocante à história, à sociedade, aos seres humanos. Algo que se pretende verossímil está inevitavelmente atrelado ao entendimento das referências que norteiam a sua constituição. Segundo Luiz Costa Lima: verossimilhança (...) sempre resulta de um cálculo sobre a possibilidade real contida no texto e sua afirmação depende menos da obra do que do juízo exercido pelo destinatário. A obra por si não se descobre verossímil ou não. Este caráter 385 Mulheres e a Literatura Brasileira lhe é concedido de acordo com o grau de redundância que contém (COSTA LIMA, 1973, p. 33). Portanto, a verossimilhança teria a necessidade de ser coesa e ter unidade entre as partes narrativas, mas não necessidade possuir “verdade histórica”. Contudo, para que ela seja eficaz, é necessário que coexistam a verossimilhança interna e a externa. Essa primeira emerge da própria estrutura da obra para que não pareça um corpo estranho na narrativa e é concebida como objeto de representação simbólica e linguística – ela se apoia intrinsecamente na necessidade morfológica da organização narrativa. Já a segunda forma de verossimilhança, de fácil verificação, se ocupa dos discursos cultural e socialmente disponíveis onde a obra terá seu modo de recepção através da publicação, incluindo as condições desse mercado. Isso quer dizer que quaisquer critérios de verossimilhança estabelecidos são relativos na medida em que dependem dos discursos que os cercam e que o autorizam a ser um princípio de referencialidade e de realidade. Essa forma de proceder quando ao verossímil utiliza o conhecimento já sedimentado nos receptores da obra – o que auxiliará na aceitação e na leitura do texto. O conceito sobredito parece auxiliar na compreensão representacional, historicamente – sem que redunde. Pelo contrário, parece se adequar à situação que lhe cabe e, por esse motivo, é pilar na compreensão da personagem aqui analisada. Procuramos deter o trabalho atentando aos acontecimentos e hábitos perpassados por Beatriz. Em um primeiro momento, porque diante da totalidade das personagens, esta é uma das narradas mais demoradamente pelo autor, a saber: suas características físicas e de personalidade, afora leituras e modos de ler e a visão de mundo suscitada através, também, da atividade leitora. Beatriz é configurada como leitora 386 Mulheres e a Literatura Brasileira assídua, que possui inclusive pequena biblioteca própria; contudo, ela aparece de forma secundária, no início somente como a tia e mais tarde como desejo amoroso da personagem Páris. Beatriz, a certificação das personagens homens A personagem Beatriz, assim como Páris, tem sua história superficialmente contada em fragmentos e o quebracabeças se encaixa aos poucos. Inicialmente suas aparições mais simbólicas são aquelas nas quais ela dialoga intensamente com Páris ainda criança, presenteando-o com livros nas visitas que o faz no internato. Carregada de um toque bastante maternal, lamenta que a vida lhe seja tão dura desde cedo. Ali ela dedica horas de diálogo para saber dos passos do menino, entender seu cotidiano, sua compreensão acerca do que estuda e dos livros que lê. Mais tarde o leitor e leitora da série questionarão, movidos por uma provável empatia pela personagem, os motivos de Beatriz ter entrado na família do senhor do século justamente ao se envolver com Arquelau – este é filho de Olímpio e uma personagem que representa um brutamontes: é machista, grosseiro, egocêntrico, violento, racista – a representação, enfim, de alguém que não acompanhou o progresso dos anos e é orgulhoso disso. Ele é narrado lidando com as empregadas do Castelo, por exemplo, como se estas fossem suas escravas, inclusive sexuais. Mais tarde, Beatriz dá a entender que no momento em que o conheceu, movida pela condição das mulheres de seu tempo, aceita a negociação de casamento sem que praticamente nada soubesse dele. Nos anos que seguem, ambos mantêm o relacionamento por conveniência social. 387 Mulheres e a Literatura Brasileira Na série, Beatriz contracena com o sobrinho praticamente todo o tempo. É descrita como alguém de aparência bela – como se isso já lhe garantisse uma certa aura – culta, agradável, uma excelente companhia. Sobre seus hábitos de leitura literária, eles são melhor desenvolvidos em alguns momentos, como na passagem em que é evidenciado, através de Páris, que a personagem possui “uma estante de livros muito lidos: romances de Hemingway, D. H. Lawrence – Filhos e amantes –, Eça de Queirós, contos de Machado de Assis, Erico Verissimo – O resto é silêncio –, Cyro Martins – Porteira fechada – entre outros” (ASSIS BRASIL, 1994b, p. 261). O convívio dos dois evolui e mais tarde se tornam também amigos e confidentes, ultrapassando a relação adulto/criança. Esse avanço em suas relações é marcado, na linguagem, pela exclusão do substantivo feminino “tia”: Beatriz lamentou minhas melancolias e passou a falar-me de suas insônias, só conseguia dormir depois de noite alta, ficava rolando na cama, como uma condenada. Costumava ler, nessas ocasiões, e isso servia apenas para aumentar a cultura, mas a vida, o que verdadeiramente importa, onde ficava? (ASSIS BRASIL, 1994b, p. 306) Aqui é representado outro consenso sobre os leitores: procurar explicação, entendimento ou conforto, através da leitura, para os próprios dilemas. No caso específico da personagem sobredita, atentamos que a leitura simbolizava, para as mulheres desse período histórico, também a descoberta dos modelos que lhes possibilitavam organizar a narrativa de suas existências – fosse de maneira libertadora, fosse para a manutenção de antigos valores. Outra evidência que desperta interesse, através das representações das personagens, sobre como se constituem os hábitos dos leitores, é que Páris, ao conviver com a tia, que 388 Mulheres e a Literatura Brasileira inúmeras vezes está entregue aos livros, às pesquisas ou aos jogos que envolvem conhecimento, começa a constituir uma rotina para a atividade leitora, como é frisado na passagem em que ele relata que “tia Beatriz fazia as palavras cruzadas da Revista do Globo, e eu lia um livro de contos, recolhido à estante de meu quarto – creio que aí começava meu desgraçado gosto pela literatura” (ASSIS BRASIL, 1994b, p. 304). Ora, tal como acontece com a memória que associa as reminiscências afetivas da atividade de leitura – sem, contudo, apresentar detalhes da obra a que o leitor se dedicava no momento da recordação –, aqui é possível notar que a personagem lembra detalhes do ambiente em que estava, a ocupação da tia e a sensação do início do gosto pela leitura literária. É importante frisar, no entanto, tendo em mente o significado que a influência pode ter, que de acordo com Fraisse, Poupougnac & Poulain (1989, p. 44), “por se situarem tão claramente na sequência de uma tradição familiar, as práticas de leitura da criança não são menos pessoais”. Esse descobrir-se como leitor tampouco significa sujeição quanto aos valores e práticas culturais herdadas, mas o provável surgimento de um atrevimento nas escolhas literárias, por assim dizer. Beatriz atua, antes de tudo, como certificação de Páris, ou seja, ela foi o pilar, juntamente com outros fatores externos, mas menores, para que ele construísse suas estratégias para se orientar na pluralidade de gêneros literários. O processo de emancipação que o levou à condição de leitor autônomo parece ter se efetuado com a ajuda da tia, sobretudo quando ele, ainda jovem, é narrado, em Os Senhores do Século, como um apaixonado: Não pense que alguém chega a ser leitor compulsivo apenas porque teve boa educação e bons exemplos: o meio mais fácil para obter esse fim é, para qualquer homem, o conforto de 389 Mulheres e a Literatura Brasileira um amor letrado; e eu estava fremente pelo amor de Beatriz, que, como se sabe, possuía alguns livros em sua estância e iniciara-me nos romances e novelas. Em pouco tempo eu falava como um professor de literatura, daqueles que gostam de ler. (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 27) Beatriz é o seu par, mas não no sentido corriqueiro das relações, e sim em um percurso mais complexo da sua vida de leitor. Para Fraisse, Poupougnac & Poulain (1989), o “par” atua como um tipo de facilitador da liberdade leitora, sem o qual os sujeitos dificilmente saem do universo cultural restrito de iniciação. Para esses autores, a intervenção de um par seria necessária para introduzir uma nova relação com o livro e para certificar outras modalidades de leitura. O papel do par não é apenas levar a descobrir ou dar novos textos para ler. Testemunho das novas leituras, ele ajuda a consegui-las e a certificar o novo leitor que tem sua trajetória cultural colocada em perspectiva. Beatriz é a parceira mais letrada e agente na oportunidade de confrontar as práticas leitoras de Páris. Outra das interpretações possíveis para justificar a paixão de Páris por Beatriz, é o próprio “deslumbre de leitor”, outro consenso na sociedade. É sabido, por meio de inúmeros registros, sobretudo os que se referem ao movimento daqueles que leem romances ou poesias, que a leitura literária atua como instrumento de construção de uma nova linguagem, talvez mais romântica – dessa vez no sentido habitual da palavra –, em que o sentimento e o transbordamento vêm a ter lugar central que congrega a comunhão de ideias e compartilhamento de sensações comuns: Foram leituras caóticas aquelas em que misturamos estilos e épocas; não era raro eu falar da Lisboa de Eça de Queirós, enquanto Beatriz elogiava as histórias de Candide. [...] E nesse entrevero internacional e estético, e antes que 390 Mulheres e a Literatura Brasileira acabássemos como os loucos mais eruditos do Rio Grande, e assim como as pessoas reúnem-se para assembleias de sindicato ou para sessões de sexo grupal, decidimos tomar algumas medidas: a primeira era que iríamos por partes, isto é, debulharíamos autor por autor; a segunda era de que nossas leituras seriam objeto de troca de impressões, agora possíveis, dada a homogeneidade autoral. Era lícito riscar e anotar nas bordas das páginas as passagens mais importantes, ou as mais frívolas, ou onde o escritor caísse em erros elementares de narrativa, enfim: o que não se faz para distrair uma paixão! Decidimos começar por Goethe, não por ser o fundador do romance moderno [...] e queríamos deixar à sorte o início da nossa investida romanesca. Preparamo-nos como mandava o estilo daquele acontecimento: eu, envergando um terno escuro do meu avô, Beatriz, um vestido de seda da Condessa, o mesmo que ela usava num retrato sobre o balcão (tudo com alguns acertos de alfinete e alguma tesoura) [...] e assim a Biblioteca foi invadida por tangos e boleros abrasadores, aliás bem a propósito do meu amor. E enquanto Gregório Barrios e Carlos Gardel clamavam de pulmões cheios as tragédias da vida, eu lia as desgraças do jovem de fraque azul e colete amarelo, e minha amada sentava-se provocadora à minha frente. Bela: nunca pensei que eu pudesse desejar tanto alguém. [...] Assim cruzamos vários serões, eu me embrenhando na literatura dos afetos incompreendidos, tentando entender por qual razão todos os amores têm o seu lado funesto e, ao mesmo tempo, começando a embaralhar minhas vidas. Apesar dessa melancolia criadora, Beatriz mantinha-se arredia, tanto que, quando eu deixava de ler e chegava-me mais perto, ela se afastava, cheia de recatos. (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 27/28/29/30) Contudo, diante do sutil afastamento de Beatriz, no que dizia respeito aos sonhos amorosos de Páris, para não dizer total negação, o apaixonado em questão propõe outro critério 391 Mulheres e a Literatura Brasileira para estabelecer algum enleio, o exclusivamente literário. No total desespero por ver que suas investidas não obtêm sucesso, Páris evidencia a situação na qual se encontra com o demônio – há o início, ali, da narrativa que visa extrapolar os limites da verossimilhança. Diante do senhor das trevas, a personagem solicita que lhe seja concedida uma aparência mais velha, para que Beatriz, quiçá, lhe dirija algum interesse além do maternal. Contudo, no fim do diálogo, o jovem compreende que “tudo não passara de mais um tormento de meu espírito demente de tantos livros” (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 32). Ainda assim, ele vê, em seguida, metamorfoseado: “logo atribuíam à muita leitura os ombros algo encurvados e os cabelos cinzentos; ou então isso devia ser algum teatro” (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 34). Aqui é importante retomar a questão sobre as representações dos leitores enquanto seu aspecto: comumente são narrados como tipos taciturnos, distantes, solitários, com as costas curvas e óculos com grossas armações. Até nos dias atuais, entre os epítetos associados ao intelectual distraído, ao leitor míope de aspecto cansado estão “preguiçoso, débil, pretensioso, pedante, elitista (...) rato de biblioteca” (MANGUEL, 1997, p. 330). Em medida mais amena, mas ainda assim nessa direção, caminha tal representação de Páris. Beatriz, diante das investidas do sobrinho, se torna mais distante e o empreendimento familiar de leitura na Biblioteca tem o destino incerto: Nossas sessões de leitura tornaram-se mais cautelosas, e minha atenção voltava-se toda hora para minha tia, que, era certo, não se empolgava muito com Romeu e Julieta. [...] Eu? Eu estava apenas triste. Era preciso que algo sucedesse, e logo. Só não esperava que os acontecimentos futuros fossem tão transcendentais. Vejam só: mais uma vez estou falando como um parnasiano. (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 125) 392 Mulheres e a Literatura Brasileira Aqui é proposta a análise da representação sob a ótica de alguém que sofre por amar. Uma das evidências que justificam tal afirmativa é a citação do livro que ambos leem e que discutirão, Romeu e Julieta. A escolha da trágica peça de Shakespeare acerca dos caminhos tortuosos de uma paixão certamente foi das mais constrangedoras. Imaginemos a situação em que, encabuladas, duas personagens se encontram falando de acontecimentos literários que remetem, a todo momento, à situação tremendamente desagradável em que se veem. Essa experiência, em certo sentido traumática, sobretudo para Beatriz, faz os rompimentos nessas atividades leitoras ocorrerem gradativamente: Chegou um momento em que eu abandonava Goethe e me embalava com a tragédia de Flaubert. Beatriz, talvez lembrada dos estragos anteriores, abandonara nosso propósito de estudarmos as obras de autores importantes, e mergulhava em leituras românticas que mal davam para o gasto da sensibilidade. (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 73) O curioso é que mesmo o mal-estar sendo vivenciado sobretudo por Beatriz, a voz narrativa que o evidencia é a de Páris. Além disso, o sobrinho constantemente se sente apto a julgar as leituras da tia – os romances que “mal davam para o gasto da sensibilidade”. Se por um lado, é possível a compreensão que tal personagem é a que fala porque ela é a narradora dos capítulos em que se dão essas passagens; por outro, não se pode deixar de notar que há um tipo de silenciamento da personagem mulher – em geral, uma grande tônica da literatura brasileira –, organizada sob uma série de pressupostos de gênero já dados e pouco subvertidos. É de se supor que as mulheres do final do século XIX e começo do século XX viviam com suas próprias formas de percepção, seus próprios códigos. Às leitoras do século XIX, 393 Mulheres e a Literatura Brasileira principalmente, conforme se observa na história e em suas representações literárias – podemos citar Machado de Assis ou José de Alencar, nesse caso, para ficarmos no terreno do cânone –, era recomendado, de acordo com Morais (2002, p. 51), “a prática de leituras amenas e delicadas, cujas temáticas girassem em torno de amores românticos e bem-sucedidos. São os códigos de moral da época, com o intuito de preservar a pureza das incautas jovens”. Assim é configurada o plano geral de leitura das personagens. Beatriz, contudo, em um segundo momento, aparece como uma leitora de obras questionadoras, de cunho social, que poderiam suscitar algum engajamento até mesmo em atividades políticas, mas ainda assim permace com a sua atuação subordinada, ofuscada pelas personagens homens. Uma das únicas evidências um pouco mais progressistas conferidas à personagem, é quando, no último livro da série, ela surge separada do marido, algo incomum à época. Curioso é que tal fato, praticamente anacrônico em relação aos fatos históricos, passe praticamente despercebido em um conjunto maior de ações da narrativa. Beatriz é a responsável, ainda, por auxiliar Páris a compreender algumas questões do passado acerca da mãe, Selene. Sem jamais ser explícita, a tia dá algumas pistas sobre o que aconteceu com tal personagem: Num dos serões, vi que Beatriz procurava algo nas estantes. Veio sentar-se trazendo um enorme livro, que olhei por cima de seu ombro: um atlas de Astronomia, aberto num grande mapa da lua. Estranho, não? Mulheres são práticas demais para evadirem-se nos céus. Seu dedo passava pelas paisagens lunares como uma espécie de fantasia, e, num certo momento, chamou-me a atenção para um ponto do mapa, denominado Mare Crisium, Mar das Crises. ‘Quantos já se perderam nesse mar...’, ela me disse. E foi só; 394 Mulheres e a Literatura Brasileira logo deixava o atlas e retomava, silenciosa, o seu livro. (ASSIS BRASIL, 1994c, p. 125) O nome Selene, na mitologia grega, se refere à deusa da lua – aquela que dirige a carruagem lunar pelos céus. Em uma engenhosa referência à obscura origem de Páris, Beatriz sugere o cruel destino da cunhada, condenada ao trancafiamento, externamente em um hospital psiquiátrico, e internamente à própria melancolia. Beatriz, como o narrador testemunha, tem suas representações evidenciadas nos volumes da série sempre como se as leituras lhe tivessem efeitos muito intensos de sentimento de absorção. Quer a leitura seja efetiva, quer o narrador tenha feito uma pausa, é sempre uma relação bastante próxima de si que a mulher mantém com o escrito. Como a reforçar essa relação solitária e íntima, ainda que em tais situações ela esteja envolta por outras pessoas, a ênfase nas leituras da personagem estão em alguns dos seus comentários precisos que evocam quase sempre uma reflexão devaneadora, tal como na citação anterior. A preocupação parece ser a de evidenciar que para as mulheres a leitura atua muito estreitamente ao sossego, no mais das vezes, que mais leva à meditação do que à ação ou à mudança. Isso pode soar como a estereotipia das personagens leitoras, sempre sugestionáveis, ao menos aos olhos dos homens que as julgam. Reconstruir esse passado de décadas em textos, principalmente os literários, significa recriar espaços, tempos e ausências, conforme as próprias percepções do autor empírico que depois poderão ser outras, as do narrador, que mais tarde necessariamente serão mais outras, as do leitor. Tudo isso fica materializado na urdida da análise. Significa, também, sobretudo nessa etapa, analisar as trajetórias das mulheres diante da forma como foram evidenciadas a partir 395 Mulheres e a Literatura Brasileira da maneira pela qual os indivíduos compreendem o mundo social, afrontando ou aliando, por meio das dependências e razões que os unem ou os torna contrários. Tentamos compreender o motivo de elas terem se configurado com determinadas representações, necessariamente atuantes como secundárias nos livros. Ao pensar na “análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo e de um espaço” (CHARTIER, 1990, p. 27), admitimos, na questão aqui proposta, baseada – além de nas pesquisas teóricas e intensas orientações – na compreensão da pesquisadora que a tece dentro de um processo de construção de significações, que as representações das mulheres nos textos analisados levantaram inúmeros desconfortos – talvez movidos por uma ânsia contemporânea e uma presentificação da obra estética. Sobretudo, porque as sujeitas são representadas evocando imagens dos modos de leitura, suas apropriações, afora as suas relações com o mundo, como se quase nada tivessem progredido ou se atualizado na passagem de praticamente um século, ainda que lessem romances que não eram necessariamente modelos de vida para os códigos de moral da época em que se inserem, caso da personagem Beatriz. Há um tipo de negação à afirmativa que “oferecendo-se uma leitura plural, o texto torna-se uma arma perigosa nas mãos das incautas leitoras. (...) Torna-se, portanto, um jogo de poder” (MORAIS, 2002, p. 51). Se nossa interpretação foi coerente, essas representações atuam como um tipo de contrassenso, uma vez que se pretendem fidedignas, já que negam, em certo sentido, que a leitura pode modificar a percepção e libertar quem dela se vale de certas prisões sociais. Quer dizer, se Beatriz é representada como uma leitora 396 Mulheres e a Literatura Brasileira reflexiva, atenta, sensível, como poderá ser essencialmente passiva, ao mesmo tempo? Quanto à possibilidade de interpretação que o narrador buscou se manter fiel aos traços históricos da subordinação das mulheres, sobretudo naquele período, ora, há inúmeros registros de mulheres atuantes na concretude da linguagem sob o signo de leitoras críticas, escritoras contundentes, vozes questionadoras em inúmeras dimensões participativas da sociedade brasileira na época evidenciada no tempo narrativo, sobretudo com a modernização urbana – citações não faltariam. O que falta, às vezes, é um olhar mais acurado para as possibilidades dessa representatividade. Muito teria a se dizer acerca das tensões que as mulheres enfrentavam em suas formações como leitoras no cenário brasileiro recém tornado republicano, por exemplo, como é o caso da inserção de Beatriz na obra. Ainda, é interessante questionar por que na representação dos anos 1990, década de publicação de Um Castelo no Pampa, a afirmação de juízos de valor das personagens homens não são historicamente datadas, mas formuladas como ainda autorizadas. As personagens mulheres da série também são marcadas pela exterioridade ou interioridade dos espaços em que leem. Para Fraisse, Poupougnac & Poulain (1989, p. 70), as situações de convívio em casa sempre reúnem mulheres. Sabemos que a leitura é, de modo geral, mais comumente representada no espaço privado do lar e “esta continua associada ao universo feminino e a um certo número de atividades femininas”. São imagens, afinal, bastante tradicionais da leitura. Na série, algumas vezes, tais representações ocorrem nos espaços para além de seus lares, mas muito fortuitamente – mais raramente ainda elas praticam uma leitura tida como funcional, por exemplo. É interessante evidenciar que Beatriz frequentemente lê livros, dificilmente jornais. Como outras 397 Mulheres e a Literatura Brasileira representações das mulheres de Um Castelo no Pampa, se existe a leitura de um periódico, será uma revista ilustrada mais ou menos frívola, e não um diário informativo, como no caso dos homens representados. Ainda para os autores sobreditos, “o jornal, mais do que o livro, é, por excelência, a leitura masculina” (1989, p. 69). Morais (2002, p. 59), em seu estudo, mostra que a existência da mulher que vivia nesse período histórico “quase sempre transcorria na casa paterna e, por extensão, na casa do marido”, tal como acontece com Beatriz. No entanto, a personagem leitora também percorre inúmeras localizações geográficas pelo mundo, na maturidade, sem o marido, o que poderia fornecer vasto material, representacionalmente, acerca da influência das viagens em suas leituras e na mudança da perspectiva cultural dessa personagem diante da inevitável agudização do seu refinamento estético diante dessas situações. Permaneceria a lição que novas compreensões sociais trazem novas maneiras de abordar a própria inserção no mundo. Essa realização não acontece nas obras. É válida a observação que, tudo isso, temos levado em conta as representações a partir da afirmativa que “os usos da leitura, portanto, são muitas vezes insondáveis e estão longe de serem passíveis de controle” (Chartier, 2011, p. 89). O efeito principal desse sistema de representações como formas de exibição de identidade social é reconhecer como era o cotidiano dessa personagem de forma coesa, além de compreender que ela não deixa de ter um significado dentro de uma gama de símbolos sociais compartilhados. Beatriz coloca a questão da compreensão possível das práticas de representação a partir da própria elaboração como personagem, na medida em que simultaneamente se revela. 398 Mulheres e a Literatura Brasileira Referências ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. “Escrever, todos escrevem”. In: PECHANSKY, Clara (Org.). 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Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 400 Mulheres e a Literatura Brasileira As narrativas de Marina Colasanti, Maria Amélia Mello e Márcia Denser: o erotismo como combate à repressão social feminina Enedir Silva Santos1 Kelcilene Grácia-Rodrigues2 Repensar as décadas de 1960, 1970 e 1980 do século XX é uma ação que traz para cada brasileiro, ou deveria trazer, certo tom de pesar e abominação, visto que durante essas décadas o país foi testemunha das mais variadas atrocidades cometidas pelo poder governamental contra os cidadãos brasileiros de uma forma geral. A ditadura militar atingiu de formas diferentes cada esfera social desse país, em vista de muitos critérios como a localização espacial, o gênero, o envolvimento político, a formação cultural ou ideológica, além do lugar social ocupado pelo brasileiro durante os mais de vinte anos de instauração do Regime militar. É preciso destacar que muitos foram os motes para a instauração do Regime e estes abrangiam desde o panorama econômico, a manipulação ideológica de repulsa ao avanço do comunismo no mundo até a aliança entre a direita, a igreja católica e os conservadores; fatores que culminaram, em 1964, 1 Mestre em Letras e Doutoranda em Letras na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três Lagoas. (enedirss@hotmail.com) 2 Doutora em Estudos Literários pela UNESP/Câmpus de Araraquara (2006) e professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Campus de Três Lagoas desde 1999, onde atua na graduação e na pós-graduação. Dedica-se principalmente a pesquisas sobre poesia brasileira moderna e contemporânea. (kelcilenegracia@gmail.com) 401 Mulheres e a Literatura Brasileira no golpe e na instituição da ditadura militar, tendo como marco inicial a Marcha da família com Deus e pela liberdade 3. Nesse ponto, chama-nos a atenção pensar que um evento de cunho conservador-religioso foi um grande impulso para a mudança no cenário político nacional, ainda mais quando observamos o lugar social ocupado pelas mulheres na década de 1960 do século XX. A realização de uma marcha em prol das famílias, vitrines da organização patriarcal originária de todas as outras organizações sociais brasileiras, visto que o homem era o mantenedor e chefe, enquanto a mulher deveria ser a submissa dona de casa, já evidenciava que esse modelo estava fadado ao fracasso. Interessante perceber como um exemplo dessa queda foi narrado, com certo tom de ironia e menosprezo, mais tarde pelo narrador de 1968, O ano que não terminou: A moda – ou a vida que “pregava” essa geração de jovens mulheres entre 20 e 30 anos - consistia em questionar os valores institucionais que davam sustentação ao que chamavam com desdém de “casamento burguês”: a monogamia, a fidelidade, o ciúme, a virgindade. Na prática, isso significava para elas deixar a confortável condição de apêndice econômico, a segurança psicológica de um lar e partir para a arriscada aventura da experimentação existencial, que se podia traduzir na busca de uma profissão, em novas e descomprometidas relações, ou, às vezes, em um mergulho na solidão. (VENTURA, 1988, p. 29) 3 A Marcha da Família com Deus pela liberdade surgiu como uma forma de repúdio ao discurso comunista de João Goulart. Organizada por setores do clero e por entidades femininas, mas com claro apoio da direita governista; ocorreu primeiramente em São Paulo e depois em outras capitais brasileiras. 402 Mulheres e a Literatura Brasileira Esse lugar social galgado pelas mulheres era a continuação do engatinhar, iniciado no século XIX com o advento do feminismo, rumo às mudanças sociais que já se operavam no mundo e influenciariam por décadas o comportamento feminino, haja vista o movimento hippie, as pílulas anticoncepcionais e o avanço das ideias feministas. De forma mais comprometida com os avanços femininos até a contemporaneidade, mas sem ignorar a longa trajetória das brasileiras, Margareth Rago afirma: O Brasil se tornou conhecido, dentre outras dimensões, por possuir um dos movimentos feministas mais importantes da atualidade. Desde os anos 1970, em meio à violenta ditadura militar que se estabeleceu no país entre 1964 e 1985, muitas mulheres se uniram e passaram progressivamente a criar novos modos de existir, ocupando os espaços públicos, desenvolvendo novas formas de sociabilidade, reivindicando direitos e transformando a vida social, política e cultural. Passados mais de 40 anos, é possível perceber essas profundas mutações em múltiplas direções, da política à subjetividade, da ciência à religião, desde os mais longínquos espaços geográficos do país até o centro do poder político, na conquista do posto da Presidência da República e de alguns ministérios. (RAGO, 2013, p. 24) Diante dessa diferença postural de apontamento dos avanços femininos, atentemo-nos para o panorama social contemporâneo que a mulher brasileira habita: os desafios permanecem e se revestem todos os dias. Aliás, se transvestem, diante das mais diversas situações que a mulher brasileira enfrenta cotidianamente, que vão desde a violência em suas formas múltiplas até a discriminação. A cena literária brasileira é mais um terreno em que a mulher pisa cautelosamente, pois dos mais variados ângulos 403 Mulheres e a Literatura Brasileira pelos quais se pode analisar a presença feminina nesse território, talvez de nenhum deles possamos nos eximir do patriarcalismo que regeu e, pasmem, ainda rege, a presença e a representação de cada uma das mulheres brasileiras na sociedade e na literatura. Cláudia Castanheira (2010), em artigo intitulado “Escritoras brasileiras: percursos e percalços de uma árdua trajetória”, evidencia que a partir das décadas de 1970 e 1980, o número de escritoras cresceu consideravelmente e a literatura produzida manifestava a emergência de reconstruir a própria história, buscar uma identidade. Entretanto, diante da centralizadora ideologia patriarcalista, a mulher tenta ultrapassar os limites da sua marginalidade, mas não sem culpa por fazê-lo. O aparecimento de uma gama maior de escritoras no cenário literário brasileiro de meados de 1960 também revela uma multiplicidade de textos de autoria feminina, como as narrativas de Lygia Fagundes Telles, Lya Luft e Helena Parente Cunha, os artigos publicados em revistas femininas por Marina Colasanti, as poesias panfletárias de Ana Cristina César, entre outras obras que corroboram para que se faça ouvir a voz feminina, termo utilizado por Luiza Lobo para designar “um texto com uma representação consciente e originalmente contra-ideológica” (LOBO, 1993, p. 48). Segundo as pesquisas da professora Regina Dalcastagnè (2012), o campo literário é um campo de disputa que muitas mulheres, além de outros escritores à margem, tentaram adentrar, entretanto, ainda hoje, ele permanece muito homogêneo: formado pelo gênero masculino, branco, cosmopolita e residente nas metrópoles das regiões sul e sudeste. O trilhar das mulheres nesse terreno exigiu que elas se posicionassem socialmente para que chegássemos ao ponto em que estamos, haja vista as escritoras do século XIX, como Júlia Lopes de Almeida, que abriram caminhos e colocaram 404 Mulheres e a Literatura Brasileira em xeque a posição da mulher diante dessa sociedade. No dizer de Castanheira (2010), antes da mulher definir-se como escritora foi preciso redefinir o seu papel cultural; desfazendose do olhar masculino que socialmente incidia sobre a mulher e que não raro era assumido pelas próprias escritoras, excluindo-as devido ao discurso subjacente do homem. Se no panorama literário nacional ainda se percebe a homogeneidade excludente apontada por Dalcastagnè, a ditadura militar, momento histórico de revolução para os cidadãos devido às questões políticas, para as mulheres configurou-se como momento de irromper contra as vozes discordantes de seu novo posicionamento social, dirigido sempre por valores patriarcais, preconceituosos e depreciativos, desse modo posicionando-se também ideologicamente no contexto político do país. O espaço galgado pela escrita de autoria feminina, embora tenha encontrado e encontre inúmeras barreiras e adversidades, é um meio de legitimar a existência e a representação das mulheres por outro olhar; uma visão que as considere e que considere suas questões, como aponta Dalcastagnè (s/d., p. 3) [...] uma primeira observação que se pode fazer é que as mulheres constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores homens e problematizam questões que costumam estar mais marcadas por estereótipos de gênero 4 O artigo “A construção do feminino no romance brasileiro contemporâneo” de Regina Dalcastagnè também foi publicado em 2015 na página do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea e encontra-se disponível em < 4 405 Mulheres e a Literatura Brasileira Dirigir olhares diversificados para as mulheres foi uma tarefa encarada, de múltiplas formas, pelas escritoras Marina Colasanti, Maria Amélia Mello e Márcia Denser, as quais utilizaram uma temática comum: o erotismo. Entretanto, cada uma a seu modo, guardando as particularidades do estilo individual e das abordagens. O que se pretende neste texto é analisar como a temática uniu escritoras e escritas tão diferentes em torno de um só objetivo, já enunciado, de legitimar a existência feminina nos anos finais da ditadura militar analisando como a representação feminina se empodera por meio do erotismo para combater a repressão social. Três mulheres, três visões e um elo No capítulo intitulado “Uma imagem ampliada”, Bourdier (2002) alerta-nos de que nossa forma de pensar já é um efeito da dominação masculina que pesa socialmente sobre cada um de nós e é reforçada por outras esferas, às quais interessa que a mulher continue sob o jugo masculino e dominador, o que reforça as ideias contidas nas considerações de Bataille (1987) sobre o erotismo, em que a mulher aparece como o elemento passivo da relação, principalmente evidenciando o caráter de dissolução para que se alcance o ideal de continuidade, haja vista que, segundo Bataille, é a busca dos seres descontínuos pela continuidade que justifica o erotismo dos corpos e corações. Nesse contexto, amplamente influenciada pela educação patriarcalista e dominadora, a sociedade brasileira ainda vive imersa numa penumbra de preconceito e mesmo no século http://gelbcunb.blogspot.com.br/2015/07/a-construcao-do-femini no-no-romance.html > 406 Mulheres e a Literatura Brasileira XXI em que vemos uma luta social das minorias marginalizadas por respeito e reconhecimento, esse panorama misogênico ainda insiste em pontuar discursos que rotulam mulheres como impuras ou libertinas. Durante a ditadura militar não foi diferente. Embora tenhamos a atuação das mulheres nos mais diversos campos, a presença feminina não foi grandemente notada ou valorizada. Margareth Rago desenvolve um trabalho com mulheres reais que foram militantes em diferentes áreas, sobre elas a estudiosa afirma: Com suas práticas concretas e com seus modos de pensar feministas, produziram importantes rupturas e sucessivos deslocamentos no imaginário social, especialmente no que tange às questões da moral, da sexualidade e dos modelos de feminilidade e corporeidade que lhes deveriam ter servido de referência. Criticaram e desconstruíram os modos tradicionais de produção da subjetividade e propuseram outros. (RAGO, 2013, p. 35) Estudar a presença das mulheres nesse emblemático momento histórico torna-se essencial para a formação de cada mulher desse país, uma vez que a luta não foi apenas contra o regime político, mas contra a visão social destinada ao sexo feminino, aliás, que precisa ser combatida todos os dias em uma nação em que milhares de mulheres morrem por ano vítimas de violência doméstica. Desse modo, entende-se que nos mais de vinte anos em que se esteve debaixo do jugo masculino e militar, o aparecimento de escritoras, intelectuais e militantes foi uma reação contrária ao controle social, evidenciando o descontentamento com a sociedade que as cercava. As armas empunhadas para expor a discordância foram também as mais variadas. Aqui exporemos talvez uma das mais utilizadas: o erotismo, que além de ser uma afronta 407 Mulheres e a Literatura Brasileira aos padrões comportamentais da época, é o elo que une nossas três autoras: Marina Colasanti, Maria Amélia Mello e Márcia Denser. As publicações do mercado editorial brasileiro foram intensas entre 1964 e 1986, inclusive porque a ficção poderia tratar subjetivamente os desmandos governamentais, enquanto outras publicações eram mais reprimidas e censuradas. Em contrapartida, nem os livros, nem os escritores permaneceram ilesos, como afirma Reimão: “Pelos temas dos livros censurados percebe-se que o DCDP fazia a expressão “textos que versem sobre sexo, moralidade pública e bons costumes” ter uma abrangência bastante ampla e atingir praticamente tudo que não fosse do interesse do poder divulgar” (REIMÃO, 2011, p. 36). A percepção estava correta, visto que durante a ditadura o erotismo configurou-se como uma afronta aos preceitos dos bons costumes empunhados pela direita conservadora, vindo das mãos e da boca de homens e mulheres, tornou-se um opróbrio social combatido pela voz do presidente João Baptista de Figueiredo, em 1982: Não sei se há, entre nós, filosofias — ainda que filosofias do nada — que concorram para a onda de dissolução de costumes, a que se assiste. Sei, porém — porque se exibem às escancaras, com espantoso atrevimento—, que a obscenidade e a pornografia se infiltraram por toda a parte. A escalada do obsceno e do pornográfico assume proporções tais que, ao falar ao povo brasileiro [...] não posso calar ante a vaga de desregramento moral que campeia, perante os nossos olhos, de modo desenfreado. Afirmarão os pornógrafos, parafraseando palavra famosa, que os males da pornografia e da obscenidade se curam com mais obscenidade e pornografia. É, em suma, ao coração sensível e generoso, assim da própria mocidade, como dos homens e 408 Mulheres e a Literatura Brasileira mulheres deste País, que me dirijo para encarecer a imprescindibilidade e a urgência de um largo movimento popular pela preservação dos dogmas morais e espirituais em que repousa a identidade da civilização que estamos construindo. (FIGUEIREDO, 2012) É certo que muitas obras da época foram consideradas como eróticas e/ou pornográficas porque assim classificadas serviriam aos interesses castradores do governo e excluiriam da cena editorial vários opositores. Todavia, o erotismo, como explicitado por Maingueneau, “é um modo de representação da sexualidade compatível, dentro de certos limites, com os valores reivindicados pela sociedade, dado que ele constitui uma espécie de solução de compromisso entre a repressão das pulsões imposta pelo vínculo social e sua livre expressão”. (MAINGUENEAU, 2010, p. 32). Dessa forma, o erotismo torna-se mais aceitável que a pornografia, mas não deixa de ser uma tensão social, visto que ele transita no limite: é a arte de sugerir e incitar a sexualidade mais profunda. Não se atém aos atos em si, mas exalta subjetivamente os desejos pelo íntimo do outro. Diferente da pornografia que é mais selvagem e prosaica se liga ao indireto e ao poético, talvez por isso mais feminino. Para Edilberto Coutinho, [...] o erotismo transborda sobre o universo metafísico. Consciente ou inconsciente, é algo além da satisfação carnal. Constitui-se, mesmo, em um apelo ao espírito através dos corpos e não, simplesmente, um apelo do corpo ao corpo, com o aviltamento de espírito. Abrange terreno bem vasto e tão variado quanto a própria natureza humana. (COUTINHO, 1978, p. 9) 409 Mulheres e a Literatura Brasileira Utilizar esse erotismo que evoca a sensualidade, mas cujo objetivo principal não parece ser atingir apenas a sexualidade pode promover no território literário um duelo de forças, visto que na escrita feminina a voz é conferida a personagens que ora exaltam a poeticidade erótica para transgredir sutilmente e ganhar novas formas, ora aproximam-se de cenas pornográficas cujo pano de fundo é o vazio existencial, por isso a linguagem é o veículo utilizado para se contrapor aos ditames sociais e governamentais, como evidenciado por Ruth Brandão: “É no leito mesmo onde se tecem as palavras – o texto ficcional – que elas revelam sua potencialidade criadora de novos caminhos, imprevistas soluções, inesperadas veredas” (BRANDÃO, 1989, p. 20). Na literatura de Marina Colasanti, especificamente na obra Contos de amor rasgados (1986), mas não só nela, o erotismo poderia ser comparado a uma cortina de voile5, pois se exalta o sentido velado da sexualidade, geralmente entre homem e mulher, em um olhar mais atento desvela os meandros dessas relações. O erotismo empregado por Colasanti é “o erotismo dos corações”6, classificação de Bataille (1987), em que o casal busca a continuidade no corpo do outro, mas essa busca é perpassada pela paixão que “pode 5 O voile é um tecido leve, muito fino e transparente que na obra de Marina é metáfora do vela/desvela erótico. O desejo está velado pela ambientação e pelas relações, todavia se desvela no encontro dos corpos, ou seja, a nudez é a abertura para o outro. 6 Em O erotismo, Bataille expõe três formas de erotismo: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado. O erotismo dos corpos refere-se apenas ao desejo carnal; o erotismo dos corações é aquele em que o desejo pode surgir ou ser intensificado pela paixão; o erotismo sagrado é a busca incessante da completude e da continuidade entre seres descontínuos. 410 Mulheres e a Literatura Brasileira ter um sentido mais violento que o desejo dos corpos” (BATAILLE, 1987, p. 15), pois em prol da plenitude, o amado procura incessantemente a completude de si próprio na companheira, esta por sua vez permanece como receptáculo das vontades dele, o que os encaminha para a morte metafórica indicada pelo autor. Nas narrativas colasantianas a sensualidade das mulheres é marcada por uma dose de poeticidade, geralmente deflagrada por um narrador heterodiegético, termo utilizado por Genette (1972, p. 251), para classificar o narrador que relata uma história, mas não se integra ao universo diegético. É esse narrador que orienta o olhar do leitor para as imagens presentes no tecido textual elaborado pela autora: uma mucosa palpitante que origina uma pérola que é pescada por dedos em pinça, como no conto “De fato, uma mulher preciosa”; o amor envolto por véus e cortinados, que ambienta o sexo em “Apoiando-se no espaço vazio” ou ainda a amada construída que se molda diante dos desejos e do movimento do outro em “Verdadeira estória de um amor ardente”. A construção das narrativas envolve um cuidado delicado de alinhavar imagens e linguagem, formando um todo em que o voile textual esconde o ato sexual, mas revela a violência das relações entre os casais, na verdade, entre as vontades dos amantes. Os minicontos de Contos de amor rasgados tratam indiretamente da sexualidade, sempre sugerida pela linguagem erótica que compõe as imagens, mas cujo alvo é evidenciar o quanto a mulher é tolhida nos relacionamentos conjugais ou como ela pode sobreviver sem a obrigatoriedade da presença masculina, um exemplo da primeira afirmação encontra-se no conto “Até que a palavra fosse possível”: 411 Mulheres e a Literatura Brasileira Brigavam, se digladiavam, sofriam. E ainda assim se queriam. Razão pela qual decidiram viver em separação de corpos. Da estrutura aparentemente compacta de carne, ossos, músculos trancados na elasticidade da pele, separaram um a um os sentimentos, embora alguns, entretecidos nas fibras como invisíveis ligaduras daquele palpitar, parecessem indispensáveis para a sustentação do todo. Mesmo esses, com firmeza de bisturi foram retirados, amputando-se também aquelas partes do sentir mais entranhadas, cujos limites já não mais se distinguiam, afogados em sangue. Por fim, livres de tudo o que lhes provocava atrito e desencontro, deitaram-se lavados sobre a cama, brancos corpos possuindo-se sem nenhuma pergunta. E sem qualquer perigo de resposta. (COLASANTI, 1986, p. 67) A relação em crise é percebida pelo leitor a partir da ênfase dada pelo narrador ao clima de desavença, os verbos que descrevem os conflitos vividos pelo casal são repletos de uma carga conflituosa, dessa forma, separar os sentimentos que devem ter originado a relação do desejo carnal, a princípio, parece ser a única solução para viver pacificamente. Nessa narrativa encontramos a desconstrução da família apregoada por valores patriarcais: um ambiente harmonioso em que a sexualidade entre o casal heterossexual serviria apenas para a reprodução. Contrária a essa ideia, o texto trata de um casal sem gêneros demarcados, logo descontrói-se a ordem de importância que o marido possivelmente teria sobre a mulher, além disso, torna-se público o que viveria escondido na intimidade do lar: os conflitos, assim que se opta por viver a sexualidade “livres de tudo o que lhes provocava atrito e desencontro” (COLASANTI, 1986, p. 67). Ao centrar-se nas tensões que culminam no ato sexual em si, percebe-se o que Bataille aponta como a dissolução das 412 Mulheres e a Literatura Brasileira formas constituídas evidenciada pelo erotismo, em que colocando em questão a continuidade, busca incessante dos seres humanos em sua descontinuidade, promove o encontro entre os seres que tentam recuperar o que não está em si, no corpo do outro. Desse modo, exaltando a busca da metade que o complementaria no corpo do outro, observamos no corpo textual o emprego dos adjetivos “brancos” e “lavados” para caracterizar os corpos, além do verbo possuir no último parágrafo, a libertação dos padrões sociais estabelecidos não acontece apenas corporalmente, mas também se desfaz na ideia de que o sexo seja algo impuro: no texto de Colasanti, a entrega ao ato descomprometido da relação conjugal denuncia a transgressão como meio para satisfazer os desejos do corpo (MAINGUENEAU, 2010). O segundo texto analisado é “De floração”. Nele, a planta na qual brota uma orquídea é o corpo da mulher. Aliás, nesse conto, a crítica da autora contra o posicionamento do marido como o podador é diluída numa sequência de imagens que explora as zonas erógenas femininas. A mulher acordou com os seios inchados, doloridos. Tocou de leve, comentou com o marido. Na manhã seguinte os mamilos estavam duros, brilhantes. [...] Compressas, pomadas, água morna. Delicado trato. Rachase nas extremidades a pele agora fina, quase transparente. E leve cacho de carne protubera entre os lábios da fenda, projeta-se desenovelando lento e seguro a primeira pétala lilás. Sépalas tensas, trêmulos babados. E o rijo clitóris do labelo. Nos seios da mulher duas orquídeas explodem em silêncio. (COLASANTI, 1986, p. 97) O erotismo se revela pela profusão de imagens que remetem ao órgão genital feminino. Diferente do conto 413 Mulheres e a Literatura Brasileira anterior, “De floração” é bastante descritivo e apresenta na metáfora da brotação da flor o desejo sexual masculino pela vagina e pelo prazer que a mulher pode oferecer, aliás, o marido aparece no primeiro momento como um cuidadoso jardineiro “Reverente, o marido a transporta frente à janela, abre cortinas, despe blusa, que se derreta a luz no colo em primavera. Nem descuida da água, em jarras e corpos, que ela bebe seguida” (COLASANTI, 1986, p. 97). Na metáfora da orquídea, o narrador nos denuncia a fragilidade da flor, cuja durabilidade é mínima e cujo perfume é inigualável, a fragilidade da mulher diante do homem que na narrativa encarna o castrador. A relação entre ambos evoca as várias fases da vida burguesa feminina: o sentimento de submissão diante do marido cuidadoso, visto que não há voz, “duas orquídeas explodem em silêncio”; o corpo em transformação diante da gravidez, observemos a modificação dos seios para a floração e, finalmente, após tal floração, a repressão masculina que repercute por toda a extensão da vida feminina haja vista o silenciamento diante de tal violência. A denúncia de Colasanti nessa narrativa ecoa de maneira muito mais ampla na forma de encarar a feminilidade na esfera social, visto que, “À medida que os modos de se compreender a feminilidade são questionados, transformamse também as concepções tradicionais do que seja o masculino”, além do modo como sua dominação pode ser analisada. (BIDARRA, 2006, p. 104). Nesse conto colasantiano, o masculino manifesta a violência da poda que será realizada no corpo da mulher, ou seja, a fonte de prazer deve rebrotar, tornando-se inesgotável, essa violação do ser do outro representa o egoísmo cínico evocado por Bataille (1987). No artigo “Amor, cuidado e intimidade: a invenção moderna do feminino”, Danielly Passos (2006) aponta que amor e feminilidade estiveram sempre unidos no imaginário 414 Mulheres e a Literatura Brasileira cultural e destaca que na moderna família burguesa a busca pela satisfação conjugal passava pela averiguação dos comportamentos masculino e feminino: A preocupação com a saúde da descendência servia de justificativa para a realização de um complexo inventário do uso dos corpos dos esposos, onde eram prescritos os atos adequados, e condenados todos os que poderiam contribuir para os enlaces anormais, tais como: as relações sexuais fora do casamento e o sexo desvencilhado da reprodução. (PASSOS, 2006, p. 139, itálico no original) A preocupação com a descendência é mais um controle comportamental do que a preocupação com os filhos originários do casamento burguês, principalmente porque o adultério sempre foi um comportamento condenado nas mulheres, mas permitido aos homens. Na amante, o homem busca a realização sexual, na esposa, a constituição da família e continuidade do modelo patriarcal. É nesse contexto que se insere o conto “Quarto de hotel”, de Maria Amélia Mello. Narrado, também, por um narrador heterodiegético, há uma suavização das impressões sobre a sexualidade, mas enfatiza um distanciamento entre o casal. Aliás, a linguagem econômica semeia um erotismo forjado no cotidiano daqueles para quem o amor é uma singela desculpa para o embate carnal: Se amavam como dois estranhos. Não se sorriam. As palavras, trocos. Saldos, liquidação do que não verão. A proximidade era a noite fria, cinzentriz cortante. [...] O dia libertava-os da noite. Vasculhavam a cidade, as ruas, as lojas. Longe, um do outro, garantidos pela claridade. De noite, seguiam as pegadas como escravos e se serviam submissos, sem interrogação. Se amavam. Rostos sem 415 Mulheres e a Literatura Brasileira nome. Confinância e sabotagem, silêncio de cárcere. (MELLO, 1984, p. 44) O quarto de hotel se contrapõe ao ambiente doméstico, espaço primeiro de submissão da mulher e se configura como espaço de encontros sexuais, ou seja, uma maneira de remeter a ação do casal à clandestinidade da relação. Aliás, basta lembrar a personagem Marcela, de Memórias póstumas de Brás Cubas, ou ainda, Luísa, de O primo Basílio, ambas tinham, de acordo com a ótica masculina, um caráter duvidoso, evidenciado pela ótica inclinado aos prazeres carnais, mais do que à moral e se rendiam a eles em quartos de hotéis. Por isso, esse local que propicia encontros é visto como lugar de passagem, evidenciando a transitoriedade da relação, algo condenável para a mulher “de respeito”, para quem a experiência sexual deveria estar atrelada ao matrimônio. O paradoxo formado pela presença de sentimento e prazer e o distanciamento do casal gera uma relação de opostos que se unem para afrontar os padrões de relacionamento impostos às mulheres. Entretanto, há um peso no ar que é disseminado pela linguagem, observados no uso dos verbos libertar e servir que atribuídos ao dia e à relação refletem a incômoda das personagens, além das expressões que ao invés de aproximá-los do prazer, os separa por uma possível culpa, como a noite que fria não acolhia os amantes e sabotagem, silêncio de cárcere, todas referências de proibição. Ao utilizar como pano de fundo a relação clandestina, mesmo que diante do julgamento social, a personagem feminina contraria a expectativa do relacionamento burguês, entretanto não consegue se eximir da culpa por fazê-lo, pois como Funck (2011, p. 67) enuncia, “Muito provisoriamente, uma mulher é um indivíduo cuja subjetivação ocorre dentro de normas e comportamentos socialmente definidos como 416 Mulheres e a Literatura Brasileira femininos pelo contexto cultural em que se insere, seja aceitando-os ou rebelando-se contra eles”. O parágrafo final ratifica todo o peso da posição feminina na sociedade, explorando os múltiplos sentidos da palavra liberdade, haja vista que diante do contexto histórico, ela ecoa como um protesto, “Liberdade, ainda que tarde, nos prometia”. (MELLO, 1984, p. 45). A liberdade é retomada, desta vez numa atmosfera que remete à infância, todavia é mais um artifício de Mello para retomar sob as mordaças as questões do feminino e suas relações. Na verdade, observa-se que o erotismo que perpassa os textos de Maria Amélia Mello ecoa como vozes que rompem as grades impostas pela ditadura militar, visto que, em praticamente todos os contos, há referência à violência, propagada por objetivos, personagens ou eventos históricos sociais que cercearam a liberdade. A liberdade é sempre um cristal prestes a se quebrar, essa tensão apresenta-se e transveste-se nas narrativas de Às oito, em ponto, no conto “E então?” em que uma fotografia sobre a mesa sartiriza a dor da protagonista, em “A farsa”, um enterro num apartamento suscita a curiosidade da menina além da vidraça, “Clichês, ágios e adágios” em que um homem escravo do trabalho e de seu contexto social tem como única solução o suicídio ou como na narrativa “Farsa inquisição” a qual analisaremos, em que num diálogo que aparentemente acontece entre duas crianças, as palavras trocadas assumem ambiguidades que remetem à sexualidade, mas também ao peso de um interrogatório. [Brincavam juntos todas as tardes. Inventavam e recriavam, adaptações livres de velhos jogos. Se divertiam muito. Deixavam o medo da matemática e as arrumações da cartilha sempre para depois do jantar.] ─ ‘cê sabe o que é isto aqui? 417 Mulheres e a Literatura Brasileira ─ Um brinquedo. ─ E sabe pra que é qui serve? ─ Vi num livro que... ─ Não era igual. Esse serve pra perguntar e responder. ─ O quê? ─ O que você quiser saber, ora. [...] ─ Pega aqui. ─ Pra quê? ─ Você num quer saber? ─ E agora? ─ Mexe nele. [...] ─ Tá sentindo? ─ O quê? ─ Um barulhinho. ─ Ainda não. ─ Mexe mais. ─ Mas tá ficando esquisito. ─ É assim mesmo. Depois ele diz uma porção de coisa. [...] ─ Não é só perguntar. Tem que ter jeitinho com ele. ─ Ai, minha mão já tá doendo e num aconteceu nada. [...] [A tarde parecia ainda mais clara. As descobertas da inquisição eram sempre um bom pretexto para reencontros. Chato era ter que tomar banho todo dia, recitar poesia ou tocar sem olhar A marcha dos soldadinhos]. (MELLO, 1984, p. 41, itálico no original). A violência do interrogatório durante o regime ditatorial é amenizada pelo tom de brincadeira em que as falas se sucedem para suscitar sinestesicamente o erotismo, ou seja, ele é apalpado, ouvido e descoberto. Nessa narrativa, o eufemismo do diálogo infantil, na verdade traz na sua essência a denúncia da violência daquele que em prol da repressão ousa manipular discursos para conduzir à punição, aliás, tantas vezes a afetação psicológica causada pela pressão do 418 Mulheres e a Literatura Brasileira depoimento e agravada pela violação sexual conduziu mulheres à morte e à humilhação. A obrigatoriedade da rotina que chateia é a imposição de um comportamento, que cerceia a liberdade e ao contrário do diálogo inquisidor que literalmente condenava à fogueira, o diálogo da narrativa é “um bom pretexto para reencontros”. Talvez o reencontro pautado no querer de ambos, daquele que manipula e daquela que manuseia, visto que a linguagem utilizada é a do toque, classificado pelo narrador como “ritual das quatro e trinta” (MELLO, 1984, p. 41). No texto de Maria Amélia Mello, o interrogatório policial foi suavizado numa brincadeira infantil tonificada pela descoberta erótica. Já nos textos de Márcia Denser, toda a abordagem erótica é tonificada pela acidez de personagens que buscam, em vão, preencher os vazios existenciais intensificados pelo ambiente urbano. Em geral, os contos de Denser exploram os elementos da metrópole – a solidão, a velocidade das relações, a inadaptação, o livre exercício da sexualidade nas mais variadas formas, o vazio – para compor um panorama repleto de agressividade e transgressão. As mulheres retratadas aproximam-se das amazonas gregas, utilizam o corpo masculino apenas para prazer, aliás, as primeiras intuíam a procriação, as personagens denserianas sequer cogitam essa hipótese e ao distanciar-se dela, as personagens já se mostram transgressoras. Assumindo o papel de ativas, elas vivem a descontinuidade individual na busca do prazer no corpo masculino, em que a violação alcançada pela nudez e pela exploração sexual também limitam a ilusão de continuidade alcançada pelo erotismo dos corpos. No conto aqui analisado “O animal dos motéis” há um naturalismo à la Azevedo que vai se configurando a cada parágrafo numa linguagem descritiva e insinuante, inclusive 419 Mulheres e a Literatura Brasileira evidenciada já pelo título, em que a palavra animal denota a ausência de sentimentalidade ou romantismo, desmistificando o perfil das mulheres da metade do século XX para quem o casamento era obrigatório para transformar mocinhas em senhoras respeitáveis. O corpo da narrativa se constrói a princípio num jogo intertextual com trechos da música “Desabafo”, de Roberto Carlos. Dessa forma, evidencia-se que além de consentido, o ato sexual é instinto, realização dos desejos tanto para os homens, quanto para as mulheres. Em Denser o sexo é o sexo, um envolvimento de corpos inundados de desejo e que transbordam no gozo. Em “O animal dos motéis” a narração se alterna - ora é a protagonista, ora um narrador heterodiegético – demonstrando que independente de quem é a voz, o que vale é a realização do desejo “Deitamos ouvindo Roberto Carlos, a voz dos motéis, por que me arrasto a teus pés? Porque sexo é isso mesmo. Essa gana de rastejar com Roberto, no coito dos motéis” (DENSER, 2003, p. 67, itálico no original). Ao equiparar os dois agentes sexuais, a personagem protagonista reveste-se do poder daquele que aponta, daquele para quem o corpo do outro é apenas uma fonte de prazer. Esse poder conferido socialmente ao homem pelo fato de pertencer ao sexo masculino é rompido porque tanto a personagem feminina, quanto a masculina estão no mesmo patamar: uma intimidade transitória e superficial materializada no espaço do motel, visto que “todos os motéis é sempre o mesmo motel, o animal mitológico, a quimera que se arrasta interminavelmente na madrugada ao som de Roberto Carlos” (DENSER, 2003, p. 68). O sexo é o elemento em comum entre homem e mulher, mas não os une. Aliás, o erotismo é quem une os corpos, mas afasta qualquer possibilidade verdadeira de envolvimento 420 Mulheres e a Literatura Brasileira sentimental. Esse distanciamento feminino do ideal de amor e família burgueses é intensificado na narrativa denseriana pela aproximação do erótico e do obsceno que transparece na descrição das cenas entre os parceiros sexuais. A utilização da obscenidade é a transgressão manifesta do comportamento feminino no contexto ditatorial, haja vista que ao aproximar literatura e erotismo, a autora afronta as classificações do governo e as imposições comportamentais da sociedade. Ao formularmos com os lábios o rolo doce da língua e da saliva, saltamos à frente do tempo e imediatamente nos sentimos abandonados por esse pássaro fugidio que se debate, te amo, te amo, ato irrefletido do cuspir, separar as coxas e tomar a primeira estocada, recuar, avançar, senti-lo rígido como um cilindro de aço vivo e então captura-lo de leve, uns cinco centímetros, não mais, e suga-lo para dentro, frente a frente, de cócoras, como crianças agachadas brincando com bolinhas de gude [...] o entrechoque das bolinhas líquidas, nova fisgada, novo recuo de quadris, bocas navegando nas bocas, no rio das bocas, no mar das bocas, nas cavernas dos dentes e da língua, na correnteza das bocas, gargantas, ventres molhados e lá embaixo o borbulhar estourando as margens que recuam, cedem, enquanto ele bombeia, macho e terno, e bate e bate, martela o limite viscoso, implorando para nascer de novo, e combate e se estimula e a maltrata porque ela uiva, sussurra obscenidades – as primeiras palavras que um homem escuta e as últimas. (DENSER, 2003, p. 73) Em Denser, ambas as personagens procuram no sexo o preenchimento do vazio existencial. Qualquer que seja a tentativa além desses atos, o que sobra é a superficialidade das mãos e do toque que procura no corpo do outro a esperança de significar algo mais. Tentativa frustrada porque a racionalidade se sobressai. 421 Mulheres e a Literatura Brasileira ─ As mulheres não mudam... ─ Nem os homens. É bobagem. Penso: sinto-os pulsar aqui dentro, cegos, surdos, solitariamente, me tocando até a loucura, me penetrando até a loucura. Certo, o prazer também é meu, mas duplamente solitário, tão alheamente como um violino que se tocasse a si próprio num dormitório de quartel, tarefa da qual só poderia, só deveria, nascer amor e música, no entanto... (DENSER, 2003, p. 71) A anonimicidade masculina evidencia a desimportância desse parceiro, afinal poderia ser qualquer outro, porque assim como os motéis que mesmo muitos são sempre o mesmo, o parceiro pouco importa, desde que seja fonte de prazer e, nesse ponto, a animalidade se configura: “Ao saírem, nos espelhos, Roberto Carlos. Esperando. Prometendo. Rastejando” (DENSER, 2003, p. 74). Considerações finais As narrativas de Colasanti, Mello e Denser publicadas nos anos finais do regime militar evidenciam a bagagem acumulada desde o início dessa situação histórica e social que cerceou a liberdade e os sonhos de brasileiros por mais de duas décadas. A subjetividade erótica das narrativas não manifesta apenas o descontentamento com a situação política; na verdade, combate a repressão ao gênero feminino em várias frentes: social, histórica, comportamental. O erotismo se apresenta nos meandros textuais como um meio de contrariar o posicionamento feminino na sociedade burguesa e, em cada autora, ratifica as ideias de Bataille sobre a busca da continuidade de seres descontínuos, além da violação que resulta na exposição dos desejos. 422 Mulheres e a Literatura Brasileira Os narradores heterodiegéticos presentes nos textos de Marina Colasanti e Maria Amélia evidenciam que, mesmo inseridas num processo de empoderamento feminino, as personagens criadas pelas autoras ainda não possuem uma voz que se distancie da convivência com o universo masculino. A escrita de Marina Colasanti utilizou desde artigos em revistas femininas, poesias, crônicas e contos para denunciar que ser mulher nessa sociedade envolve racionalizar sem perder a beleza das relações humanas que em Contos de amor rasgados são evidenciadas pelas mais diferentes metáforas que trazem desde o imaginário infantil até o fantástico. Os textos de Maria Amélia Mello têm uma escrita que denuncia ora a partir do silêncio, ora pela exploração do cotidiano e da violência ou da violência do cotidiano, os horrores a que foram submetidos os cidadãos brasileiros durante a ditadura. Em Denser, a agressividade e a obscenidade tonificam as relações transitórias e superficiais que caracterizam a mulher da metade do século XX: um ser em constante atrito com as regras que lhe foram impostas e que visa transgredi-las para poder encontrar-se. Enfim, autoras diferentes com estilos diversos tiveram suas narrativas interligadas pela temática erótica que já é em si um ponto de transgressão. Diante do contexto político brasileiro da época: mulheres falando de prazer, ruptura de paradigmas e ocupação de outros lugares sociais já se configuram como seres em processo de mudança. Não foram as pioneiras, nem são as últimas, mas certamente com sua literatura contribuíram e contribuem para novos olhares sobre a situação da mulher, haja vista que mesmo com dezesseis anos transcorridos de século XXI, a violência doméstica e social ainda vitimize milhares de mulheres nesse país. 423 Mulheres e a Literatura Brasileira Referências BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. BIDARRA, Clemara. Erotismo: múltiplas faces. São Paulo: LCTE, 2006. BOURDIER, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. BRANDÃO, Ruth Salviano. Passageiras da voz alheia. In: BRANCO, Lúcia Castello.; BRANDÃO, Ruth Salviano. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Casa Maria Editorial; LTC, 1989. CASTANHEIRA, Cláudia. Escritoras brasileiras: percursos e percalços de uma árdua ytrajetória. Cadernos da Fael, vol. 3, n. 8. 2010. 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Conceição Evaristo (2011) A imagem do “cortinho”, no fragmento em epígrafe, iconizado pelo rasgo duplo das aspas foi o punctum que me fisgou no conto da escritora afro-brasileira Conceição Evaristo do livro Insubmissas lágrimas de mulher, de 20112. No fragmento revela-se a força de uma menina negra de seis anos que, acometida pela dor em uma crise aguda de apendicite, diante da eminência do corte cirúrgico, intimamente sorria feliz, por 1 Doutoranda em Letras na Universidade Federal do Espírito Santo, onde desenvolve a pesquisa “A literatura nos Anos Finais do Ensino Fundamental: concepções, práticas e acervos”, com apoio da FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo). É Professora de Língua Portuguesa da Secretaria Municipal de Educação, Serra (ES) e a literatura em sua relação com questões étnico-raciais e de gênero configura-se um interesse indissociável de sua atuação como pesquisadora e professora. 2 A partir desta nota, todas as referências à obra serão feitas por indicação de página (p.). 426 Mulheres e a Literatura Brasileira vislumbrar a possiblidade do “cortinho” revelar sua identidade secreta. O punctum, categoria criada por Roland Barthes em A câmara clara (1986), para a apreciação de fotografias, mostra-se operacional nesta análise, considerando que a abordagem do corpus imagético realizada pelo semiólogo em muito se aproxima da leitura de um texto stricto sensu. Em seu livro, Barthes discorre sobre os dois elementos identificados por ele na análise de fotografias: o studium e o punctum. No studium, a interpretação da foto é agenciada pelo conhecimento prévio do espectador. Já o punctum, como escreve Barthes, "não sou eu que vou buscá-lo (como invisto com minha consciência soberana o campo do studium), é ele que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar" (BARTHES, 1984, p.46). Esses dois elementos possibilitam leituras diferentes, o studium permite uma interpretação mais racional, já o punctum cria uma relação de proximidade e envolvimento maiores com o objeto apreciado. Enquanto o studium está para o geral, o punctum está para o detalhe, para o particular, ele “[...] é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge [...]" (1984, p.46). O desconforto provocado pelo corte/punctum, impulsionador da escrita inicial deste ensaio, se intensificou com a circulação nas redes sociais de grotescas montagens feitas com a imagem do rosto da presidenta Dilma Rousseff, acoplado ao corpo de uma mulher de pernas abertas. Essas montagens foram produzidas para serem adesivadas na entrada no tanque de gasolina dos carros, dando a ideia de que a bomba de gasolina penetrava a genitália da presidenta. Tal aberração, que banalizava a violência contra a mulher, incitando a cultura do estupro, sob o pretexto de insurgir-se contra o aumento da gasolina, ocorria ao mesmo tempo em 427 Mulheres e a Literatura Brasileira que se mobilizava uma cruzada para “tirar” dos Planos Municipais de Educação, em construção, a “ideologia de gênero” que ameaçaria a tradicional família brasileira 3. Esses acontecimentos, sintomas dos retrocessos em curso no país que expõem o recrudescimento da intolerância e ameaçam as políticas públicas em defesa da igualdade de gênero, evidenciam que esse tempo não passará sem perdas incalculáveis para nós mulheres se não mantivermos em pauta as reflexões sobre gênero. O conto de Conceição Evaristo, eleito para análise, impacta por seu “conteúdo de verdade” (ADORNO, 2008), o que para o filósofo da Escola de Frankfurt é o que constitui as obras de arte como tal. Para ele, entretanto, o conteúdo de verdade de uma obra de arte não se deixa identificar imediatamente, exige mediação e esforço analítico, resultando da resolução do "enigma de cada uma delas. E, ao exigir a solução, o enigma remete para o conteúdo de verdade, que só se pode obter pela reflexão filosófica. E isto, e nada mais, é o que justifica a estética”. (ADORNO, 2008, p.197). Conquanto não proponha uma reflexão filosófica, o exercício de análise aqui empreendido parte da inquietação e da indagação residual do impacto da primeira leitura, colada à trama, para tentar fazer fulgurar ao menos uma ponta do enigma que instaura a dimensão estética dessa obra em sua contundente denúncia. O corte será o mote da reflexão, por estar latente (presente-ausente) e se disseminar de forma metafórica e metonímica por toda a narrativa, como signo do feminino, do 3 Cf. http://www.revistaforum.com.br/questaodegenero/2015/07 /01/adesivos-misoginos-sao-nova-moda-contra-dilma/ e http://w ww1.folha.uol.com.br/educacao/2015/06/1647528-por-pressao-plan os-de-educacao-de-8-estados-excluem-ideologia-de-genero.shtml 428 Mulheres e a Literatura Brasileira ser mulher, da violência sexual, da ruptura, das margens e das costuras, mas, sobretudo como signo de resistência do subalterno, que revela, na sua fragilidade, a força. Assim, essa leitura breve do conto “Isaltina Campo Belo” propõe uma reflexão sobre o processo de autoentendimento vivido pela personagem, evidenciando a complexidade desse processo pela interseccionalidade entre questões de gênero e etnia, manifesta nas situações de violência contra a mulher. O conto permite refletir sobre o modo como, em contextos póscoloniais, a colonialidade se reproduz nas relações dos sujeitos, configurada em modos de se perceber e estar no mundo, manifestando-se em construções discursivas e crenças a respeito de si e dos outros. A inspiração teórica em estudos de gênero e feminismo desenvolvidos por autoras latino-americanas (Rita Laura Segato, Rocío Medina Martín e Betty Ruth Lozano Lerna) deu-se pela afinidade desse viés crítico com a temática em questão, mas também como atitude de enfrentamento à invisibilidade da crítica feminista exercida por sujeitos outros, indígenas e afro-latino-americanos, o que para Cláudia Lima Costa, já se tornou busisness as usual nas publicações universitárias das Américas (LIMA, 2012, p. 45). Esses feminismos outros se estabelecem como diferença em relação ao pensamento feminista eurocêntrico, operando dentro de uma referência epistemológica distinta do modelo que estrutura as relações entre centro e periferia, tradição e modernidade, em busca de contemplar vozes e práticas excluídas de sujeitos subalternos femininos, pós-coloniais latino-americanos, operando com a interseccionalidade entre as categorias de raça, gênero, sexualidade e classe social (LUGONES, 2008), aspecto que se destaca na obra de Conceição Evaristo. 429 Mulheres e a Literatura Brasileira Insubmissas lágrimas de mulher, de 2011, é o primeiro livro de contos da autora, que iniciou sua trajetória como escritora nos Cadernos Negros, na década de 1990, e notabilizou-se com a publicação do romance Ponciá Vivêncio (2003). Conceição Evaristo é conhecida por seu método de escrita, a “escrevivência”, escrita encarnada de uma mulher negra, brasileira, mineira, comprometida com essa condição. Por isso “escreve com”, em vez de apenas “sobre”, assumindo a negritude como tema, autoria e como ponto de vista em um projeto intencional de escrita que institui um público leitor afro-brasileiro. Sua linguagem também é marcada por escolhas formais (de vocabulário, ritmo e de valorização da oralidade, por exemplo) que configurariam uma discursividade que valoriza a identidade afro-brasileira, preservando “práticas linguísticas oriundas de África e inseridas no processo transculturador em curso no Brasil” segundo Eduardo Assis Duarte (2008, p. 12). A articulação dos elementos acima elencados, segundo o autor, propicia o pertencimento à Literatura Afro-brasileira, denominação adequada para a produção literária de Evaristo, caracterizada por um processo de escrita fronteiriça que se dá no “entrelugar” (SANTIAGO, 2000), entre o acontecimento e a narração do fato, entre o real e a ficção. Esse tensionamento dos limites entre real e ficção está presente nos treze contos de Insubmissas lágrimas de mulher, nos quais são apresentadas histórias de violências física e/ou simbólica sofridas pelas treze mulheres que dão nome aos contos. Essas mulheres rompem o silêncio e contam suas histórias à narradora que se identifica como sua semelhante e colhe seus testemunhos, lançando-os à página para serem colhidos, acolhidos por quem os ler (do latim, legere: colher, recolher) e passar adiante, como faço agora: difícil será calarse após a leitura/escuta de tais histórias. Em “Isaltina Campo 430 Mulheres e a Literatura Brasileira Belo”, em vez da adoção imediata da primeira pessoa, a narradora em breve e caloroso prólogo apresenta a personagem Campo Belo “como ela gostava de ser chamada” (p. 49) ao leitor e, ambas ou ambos (narradora/autora e leitora/leitor) colocam-se à escuta da voz da mulher que passa a contar sua história. A manutenção da situação de oralidade na feitura dos contos é um recurso que permite a identificação das personagens como mulheres negras em situação de recolha de testemunhos, o que se coaduna com a história de vida de Conceição, que teve uma infância marcada por histórias e causos, vivência recuperada em sua escrita, como traço da cultura africana no Brasil. A apropriação do testemunho feminino como fórmula narrativa vem ao encontro da necessidade de revalorização desse gênero que, segundo Cláudia Costa Lima (2012), não por acaso, exatamente quando passa a ser habitado por sujeitos subalternos femininos póscoloniais, tem perdido sua aura, revelando um “curioso desencanto, por parte dos intelectuais latino-americanos e latino-americanistas, com as promessas do testemunho como gênero literário excêntrico dos anos de lutas pela democracia na América Latina” (LIMA, 2012, p. 51). Ao escolher um gênero subalterno que desabilita o binarismo verdade e ficção, a autora assume o que Nilma Lino (2010) considera um dos desafios do intelectual negro que é o de romper com estruturas opressoras, de construir novas categorias analíticas e literárias através da criação. Isso o impele a não somente incorporar a língua e as categorias colonizadoras ou hegemônicas, mas problematizá-las e apontar os seus limites. Com essa atitude, o intelectual assume as sua própria voz, a sua fala, a sua cultura e a do seu grupo racial. (LINO, 2010, p. 505.) 431 Mulheres e a Literatura Brasileira Em seu testemunho, Campo Belo começa por dizer que, tendo nascido após um menino e uma menina, desde criança se sentia diferente. Nascer menina, após outra menina, talvez tenha sido o primeiro desafio encontrado pela protagonista na constituição de sua identidade: em uma cultura que pensa por pares binários, provavelmente, os pais esperavam, após uma menina, outro menino. Daí talvez o sentimento de diferença: para construir sua identidade, nega a irmã, sua igual, em busca de outra referência para se constituir. A despeito do processo conflituoso de constituição da sua identidade de gênero, afirma a protagonista que teve uma infância feliz, que ela e os de sua família “eram muito conhecidos e bem aceitos” no lugar onde viviam (p. 50). Em suas palavras, a sua dignidade de criança negra era alimentada por histórias familiares de conquista e resistência. O uso da expressão, “aceitos”, entretanto, revela uma conivência social cordata, nos moldes da democracia racial, em que há a tolerância, em vez do reconhecimento e respeito à diferença. Para Isaltina, porém, na infância, a sua identidade étnicoracial não estava em questão, considerando sua afirmação de que “só” uma dúvida a perseguia: “Eu me sentia menino e me angustiava com o fato de ninguém perceber.” (p. 50). A menina se espanta com o fato de que a mãe, como enfermeira, não note que ela era menino e, assim, convencida de que a mãe sabia da sua diferença, tem com ela uma relação de amor e ódio, considerando-a seu algoz. A menina Isaltina cresceu com o sentimento de que havia um menino dentro de si, nutrindo a crença, no episódio da cirurgia de apendicite a que foi submetida aos seis anos de idade, de que a solução para esse conflito poderia dar-se pela via científica, por meio da intervenção cirúrgica. Seria uma solução simples para um problema considerado simples (simples, do latim simplex, com uma só dobra, ou sem dobra): 432 Mulheres e a Literatura Brasileira a incisão cirúrgica desvelaria o que os outros não viam. Essa visão pode ser atribuída à persistência de um modo de pensar tributário do pensamento eurocêntrico positivista, arraigado em culturas marcadas pela subalternidade, com sua crença na ciência como forma de redenção e ex-plicação (preservando a herança etimológica, com a acepção tirar as dobras, desdobrar, tirar para fora). Como esclarece Anibal Quijano, citado por Martín, “el eurocentrismo no es la perspectiva cognitiva de los europeos exclusivamente o de los dominantes en el capitalismo mundial, sino del conjunto de los educados bajo su hegemonía.” (2011, p. 60) É tocante a confiança que a menina tinha de que uma intervenção externa pudesse revelar aos outros a sua identidade secreta: “Então, o menino que eu carregava e que ninguém via, poderia soltar as suas asas e voar feliz. (p. 49). A imagem do menino liberto a soltar suas asas e voar feliz remete ao processo de transformação dos super-heróis. Nessa visão infantil percebe-se a lógica binária dentro-fora, aparência-essência, a ideia da identidade como algo que está por debaixo (da pele) e de que o corte, cuja dor se mostra secundária, seria útil para revelar a verdade que é interior, escondida, já que ninguém a vê. Após a intervenção cirúrgica, entretanto, persiste o engano, frustrando assim as expetativas de desvelamento, alimentadas pela menina, mostrando que há mais elementos em jogo no intrincado processo identitário, especialmente para uma menina que se mostra “mais corajosa que muitos meninos” (p. 51). No episódio da “chegada do sangue da irmã”, destacado pela protagonista no início e no final da sua narrativa, o corte (que pela segunda vez aparece no texto, como ícone, no talho das aspas na palavra “mocinha”) se revela metonimicamente pelo seu efeito: o sangue que escorre e causa pavor na menina Isaltina: 433 Mulheres e a Literatura Brasileira assim se deu: estávamos ela e eu numa entontecida brincadeira de sobe e desce das árvores, fugindo de meu irmão, que já havia completado os treze anos, quando percebi um filete de sangue escorrendo pela perna abaixo da minha irmã. Apavorada, gritei, pensando que ela tivesse se machucado no entrepernas. (p. 53) Arriscando ler além do que está no texto, nas entrelinhas e entreditos, o discurso de Campo Belo pode se compreendido como um discurso pudico e o uso do termo “entrepernas”, como indício de uma fala (castrada?) reprimida, resultado de uma criação marcada por valores machistas: a mãe não gostava que as meninas subissem em árvores. A expressão “subir em árvores” deixa latente expressão equivalente, de uso mais coloquial, com conteúdo sexual: “trepar”, ação cuja interdição às meninas é passível da punição simbólica, representada pelo sangue vertido pela irmã. Não será gratuita a retomada desse episódio por Campo Belo, no momento em que faz uma síntese de sua história ao final de sua narrativa. Na adolescência, a chegada da sua menstruação e o “caminho diferente” de seus “desejos e afagos” (p. 54) acentuam “a perene certeza” de que era diferente e a sensação de estar “fora de lugar”, sentida pela protagonista desde a infância. Sentindo-se “estranha no ninho” (p 54), na juventude, Isaltina parte do seu mundo conhecido em busca de outro espaço onde sua diferença se diluísse ou onde pudesse encontrar semelhantes, como ocorre ao patinho feio da fábula de Andersen que se descobre cisne. A saída de casa é um movimento feito pelos heróis das narrativas, desde as populares até as canônicas (ou seria mais acertado dizer desde as populares, até se tornarem canônicas? Não era a história de Ulisses cantada pelos rapsodos e conhecida pelo povo até cair nas páginas do livro e receberem a chancela autoral de 434 Mulheres e a Literatura Brasileira Homero e tomarem o destino do cânone?). Esse movimento, seja por meio de viagens ou fuga, pode ser compreendido como busca interior, representando ritos de passagem para a vida adulta, importantes para o processo de construção da identidade. A saída de casa da protagonista no conto em análise, entretanto, configura-se como uma fuga trágica: tal qual Édipo, foge do seu destino e o acaba encontrando. Tentando escapar do enfrentamento do seu desejo enviesado em relação ao padrão do seu grupo familiar e social, ela acaba exatamente por encontrar de forma mais contundente essa diferença. Até a saída de casa, na proteção do “clã” (p. 51), a protagonista vive a experiência comunitária que remete a ideia de mundo-aldeia, desenvolvida por Segato, “la aldea, con su orden de estatus y sus solidaridad familista”. Nesse tempo-lugar da felicidade idílica da infância, pensava que seu “único” problema era se sentir menino. Quando adentra na cidade, na vivência em sociedade, seu problema, até então simples, revela-se complexo (palavra do mesmo radical de simples que significa: com dobras múltiplas), interseccionando-se à questão étnica e a outra não mencionada, a social, relacionada à profissão, considerando certa representação eivada de preconceito que paira sobre as enfermeiras. O namorado que a vitima, provavelmente não terá sido imune a esse duplo preconceito, o que se nota na fala de Campo Belo: “tinha certeza do meu fogo, afinal eu era uma mulher negra” (p. 55). O estupro, estratégia histórica de colonização de corpos negros em contextos coloniais, ocorre na trama como expediente perverso para conformação ao padrão heteronormativo. A ocorrência de violência como essa relatada no conto, os estupros coletivos (recordemos a hiperexposição e as reações cruéis ao episódio da menina no Rio de Janeiro, estuprada por mais de trinta homens) têm se 435 Mulheres e a Literatura Brasileira agravando na atualidade, a despeito de, ou como reação às lutas e conquistas nesse campo. Segundo Segato (2010), a humanidade testemunha “un momento de tenebrosas innovaciones en las formas de ensañarse con los cuerpos femeninos y feminizados, un ensañamiento que se difunde y se expande sin contención”. A autora apresenta números contundentes da violência contra as mulheres em nosso continente e em outros lugares e adverte que La rapiña que se desata sobre lo femenino se manifiesta tanto en formas de destrucción corporal sin precedentes como en las formas de tráfico y comercialización de lo que estos cuerpos puedan ofrecer, hasta el último límite. La ocupación depredadora de los cuerpos femeninos o feminizados se practica como nunca antes y, en esta etapa apocalíptica de la humanidad, es expoliadora hasta dejar solo restos. (SEGATO, 2010, p. 19) “Cinco homens deflorando a inexperiência e a solidão do meu corpo. [...] Os mais humilhantes detalhes morreram na minha garganta, mas nunca nas minhas lembranças”. (p. 56). O ato violento só é nomeado uma vez no final da narrativa, quando Campo Belo supera a internalização da violência sofrida como “castigo merecido” (p. 56) por não se sentir seduzida por homens. Tentativa de costura, sem pretensão de sutura E foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam. (p.57) Este breve estudo buscou dialogar com o conto, a partir da perspectiva dos estudos pós-coloniais lato sensu, considerando que 436 Mulheres e a Literatura Brasileira A crítica pós-colonial, em suas variações, realiza uma revisão epistemológica das narrativas modernas que foram erigidas mediante o silenciamento das histórias de indivíduos e coletividades que, fora dos centros de poder, passavam por inexistentes; ou, o que é tão nocivo quanto, eram avaliadas do ponto de vista moral como inferiores e/ou inacabadas em comparação às narrativas (locais) europeias, tomadas como parâmetro, o que legitimou/legitima a prática (ilegítima) da colonização e as persistências do neocolonialismo.” (MIGLIEVICH- RIBEIRO, 2011, p. 134) Segundo Cláudia de Lima Costa (2012), o conceito de colonialidade de gênero, desenvolvido pela estudiosa argentina Maria Lugones, origina-se do conceito de colonialidade do poder cunhado pelo peruano Anibal Quijano, como padrão de poder derivado do colonialismo imperial do século XVI, que se sustenta na classificação social baseada na ideia de raça a que se soma um importante ingrediente, o de gênero. Os feminismos outros latino-americanos, entretanto, estabelecem a centralidade da categoria de gênero na questão colonial e pós-colonial, por compreender essa categoria “como um mecanismo fundamental pelo qual o capitalismo colonial global estruturou as assimetrias de poder no mundo contemporâneo” (LIMA, 2012 p. 47). No artigo “Género y colonialidad: en busca de claves de lectura y de un vocabulario estratégico descolonial”, Rita Laura Segato, a partir de sua inserção e participação na luta das comunidades indígenas, defende que as relações de gênero são modificadas historicamente pelo colonialismo e pela epistemologia da modernidade colonialidade e que a violência contra a mulher, cujo extremo é o feminicídio crescente, são decorrentes dessa mentalidade colonial persistente. A autora reivindica um status central para a problemática da colonialidade de gênero nas reflexões decoloniais pelo seu 437 Mulheres e a Literatura Brasileira poder de desestabilizar arranjos familiares e sociais das culturas subalternizadas com a sobreposição de suas relações de poder, aviltando homens e mulheres. Adverte que não basta introducir el género como uno entre los temas de la crítica descolonial o como uno de los aspectos de la dominación en el patrón de la colonialidad, sino de darle un real estatuto teórico y epistémico al examinarlo como categoría central capaz de iluminar todos los otros aspectos de la transformación impuesta a la vida de las comunidades al ser captadas por el nuevo orden colonial moderno. (SEGATO, 2010) Embora a autora no artigo aborde uma questão específica que são as infiltrações das relações de gênero da ordem colonial moderna nas relações de gênero do “mundo-aldeia”, enfocando os povos indígenas, as suas reflexões sobre binarismo e dualidade mostram-se especialmente importantes pra compreender o processo de entendimento de si no conto em análise, pois El dualismo, como el caso del dualismo de género en el mundo indígena, es una de las variantes de lo múltiplo o, también, el dos resume, epitomiza una multiplicidad. El binarismo, propio de la colonial modernidad, resulta de la episteme del expurgo y la exterioridad construida, del mundo del Uno. (CEGATO, 2010) A história de Isaltina Campo Belo, do seu processo de entendimento de si e a consequente assunção do desejo por uma “semelhante” pode ser compreendido como um processo de descolonialialidade, considerando que “Descolonizarse significa un desprendimiento epistémico del conocimiento europeo, pensar la propia historia, pensar la propia liberación 438 Mulheres e a Literatura Brasileira pero con categorías propias, desde nuestras propias realidades y experiencias” (LERNA, 2010, p. 11). Em contextos pós-coloniais, a colonialidade se faz presente nas relações pessoais e sociais, evidenciando-se em construções discursivas e crenças a respeito de si e dos outros. O conto analisado evidencia de forma contundente a interseccionalidade entre questões de gênero e etnia (CRENSHAW, 2002) nas situações de violência contra a mulher, um grave problema da atualidade, mostrando que, ainda hoje, “Ha que partir reconociendo que además de la colonización de los saberes y del ser, hay una colonización de los cuerpos; que aunque tiene que ver com la colonización del ser, es necesario dejar explicitada (LERNA, 2010, p. 11)”. A análise da onomástica no conto confirma a habilidade da ficcionista na cuidadosa seleção vocabular que potencializa os sentidos agenciados pelo conto. Três são os nomes das mulheres que aparecem na trama: Isaltina Campo Belo, Miríades e Walquíria. Entre o nome Isaltin[a], nome recebido dos pais, ligado ao tempo da infância, possivelmente resultante da corruptela do verbo “exaltar” e o sobrenome Camp[o] Bel[o], a protagonista afirma preferir ser chamada Campo Belo. Além do jogo com as representações de feminino e masculino aí presente, o nome Campo Belo pode ser relacionado à cidade mineira homônima cuja história se liga às lutas e resistência do histórico Quilombo de Ambrósio. Walquíria (referência velada à branquitude do seu possível genitor?), nome da filha que trouxe o “vento da bonança” para a vida de luta de Campo Belo, é nome da mitologia nórdica, simbolizando o poder feminino. A menina Isaltina acredita que o médico, por meio do corte cirúrgico, “des-cobriria” (p.51) o que estava oculto. Entretanto, Campo Belo não usa esse mesmo verbo para se referir ao processo que a leva a perceber que não há um menino 439 Mulheres e a Literatura Brasileira dentro de si, que não se tratava de descobrir algo (palavra com forte carga simbólica em contextos marcados pela experiência colonial e pela colonialidade), mas sim de empreender um processo interno de autoentendimento que implicaria em abandonar crenças e certezas internalizadas em relação ao par binário homem-mulher para adentar na perspectiva que contempla o dual, o plural e o diverso: “Sim, eu podia me encantar por alguém e esse alguém podia ser uma mulher. Eu podia desejar a minha semelhante, tanto quanto outras semelhantes minhas desejavam o homem” (p.57). A escolha do nome Miríades para a companheira de Campo Belo contribui para essa leitura. Por não trazer marcas de gênero masculino ou feminino e sim a marca gramatical do plural, carrega em si a conotação de pluralidade, diversidade, já que significa grande número, quantidade indeterminada, sendo muito usado para nomear constelações: miríades de estrelas. A trajetória de autoentendimento vivida pela personagem, compreendida como processo de descolonialidade, configura-se numa bela história de insubmissão a uma história de dor, que transforma cortes em fendas, abrindo possibilidades de escapulir da armadura conformada pelo paradigma binário para uma visão plural da vida, pois “vivir de forma descolonial es intentar abrir brechas en un territorio totalizado por el esquema binario, que es posiblemente el instrumento más eficiente del poder. (SEGATO, 2010) O conto de Conceição Evaristo se manifesta também como insurgência aos gêneros literários canônicos e seus temas habituais, desestabilizando binarismos como verdade e ficção, homem e mulher, interior, exterior. Sem o alarde do panfleto, o conto traz a história silenciosa e silenciada de um, dentre tantos outros sujeitos cuja identidade sexual/de gênero 440 Mulheres e a Literatura Brasileira se constitui em meio a atos de violências simbólicas, psicológicas e físicas. Como texto de fruição, no sentido barthesiano, “põe em estado de perda, [...] desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gestos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem.” (BARTHES , 1987, p. 21-22). Um texto como esse pede respostas, mas não se esgota nelas, instando por mais comentários que façam reverberar a sua humanidade pulsante que projeta luz e sombra, na medida exata, sobre o drama da existência de Campo Belo, em sua subalternidade de mulher negra, lésbica, recuperando, sem pedantismo e com forte apelo poético, essa condição: “Hoje, Miríades brinca de esconde-esconde-esconde em alguma galáxia.” (p. 57). Quiçá encontre por lá Macunaíma que também foi para o céu virar constelação. Referências ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987. _______. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. COSTA, Claudia de Lima. Feminismo e tradução cultural: sobre a Colonialidade do gênero e a Descolonização do saber. P: Portuguese Cultural Studies, Netherlands, v. 4, p.41-65, 2012. Anual. 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A primeira obra de Jules de Gaultier sobre o bovarismo data de 1892, intitulada Le bovarysme: la psychologie dans l’oeuvre de Flaubert. O termo bovarismo deriva do sobrenome de casada da protagonista do romance Madame Bovary, famoso e muito utilizado ainda nos dias de hoje nos cursos acadêmicos, sobretudo os de Letras. Como é protagonizado por uma mulher, no contexto histórico francês do século XIX, sua história entra em discussões sobre o feminino/feminismo e em áreas interdisciplinares. Jules de Gaultier parte da obra flaubertiana para falar do fenômeno que chamou de bovarismo, mas, posteriormente, passa a remeter-se ao conceito de maneira mais ampla, chegando a falar de um bovarismo, de um desejo de ser outro, como faculdade 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá. Bolsita CAPES. 444 Mulheres e a Literatura Brasileira essencial do ser humano, não limitado à obra literária e muito menos à figura feminina. Daí em diante, outras áreas de conhecimento foram se apropriando do termo, como a Psicologia e, recentemente, a Cibercultura. Como será visto adiante, as ampliações do conceito de bovarismo, nas diferentes áreas, se modificam por um ou outro detalhe, mas se assemelham quanto ao ódio à realidade, sendo o desejo de ser outro proveniente desse sentimento. Além de Madame Bovary, outros romances tratam da temática do sujeito que busca ser outro, insatisfeito com quem/o que é, ou dela se aproximam. Em 2005, no Brasil, a escritora paulista Eugenia Zerbini publicou As netas da Ema. Como o título indica, o livro é inspirado em Madame Bovary. Porém, o contexto sócio-histórico é outro – há em As netas da Ema não a mulher do século XIX — insatisfeita com sua condição feminina pela falta de liberdade e impossibilidade de ascender socialmente, como é retratado em Madame Bovary — mas a mulher do século XXI, independente, que pôde estudar, trabalhar, viajar muito e usufruir de plena liberdade na vida para consecução de seus objetos profissionais e econômicos. Embora de tempos e condições diferentes, as protagonistas desses romances têm algo em comum. A narradorapersonagem de As netas da Ema é, apesar da ascensão profissional e econômica, infeliz como Emma Bovary, protagonista de Madame Bovary. A infelicidade da que se chamou ‘neta da Ema’ provém da ausência de marido e filhos na vida, resultando em uma inveja da Emma flaubertiana, que se casou e teve uma filha. É levando em conta esses diferentes contextos que se fará, aqui, um breve diálogo entre essas obras, a fim de se perceber que, embora ambas tratem da história de mulheres infelizes, insatisfeitas pela não realização de seus desejos ao longo da vida, e ambas expressem o desejo de ser outro, o outro em cada 445 Mulheres e a Literatura Brasileira obra não é o mesmo. A narradora-personagem de As netas da Ema deseja usufruir dos papéis de mãe e esposa de Emma Bovary, e esta tem o desejo de ser a aristocrata e a amante dos romances românticos, e também quer ser livre tal como ela pensava que os homens eram; as duas desejam ser felizes. Para alcance de tal objetivo, procedeu-se, primeiramente, à leitura de Madame Bovary, As netas da Ema e Le bovarysme: la psychologie dans l’oeuvre de Flaubert, para posterior identificação, nos romances, daquilo que se pudesse relacionar ao que Gaultier chamou de bovarismo. Foram realizadas também leituras de autores contemporâneos que se dedicaram ao estudo do assunto, como Andrea Saad Hossne (2000), autora de Bovarismo e romance; Camila David Dalvi (2008), e seu trabalho O bovarismo de Jules de Gaultier na ficção e na vida e Maria Elvira Malaquias de Carvalho (2014), com Bovarismo, epifania, bêtise. Então, foi possível apreender uma visão atualizada do bovarismo e de consequentes enxertos conceituais sofridos por esse fenômeno. Esse conjunto de informações facilitou o estabelecimento de relações entre As netas da Ema (2005) e Madame Bovary (1857), além da discussão de suas diferenças e semelhanças no que se refere ao bovarismo. O bovarismo Embora certos autores atribuam a Jules de Gaultier a criação do termo bovarismo, não foi ele seu criador, nem o foi Gustave Flaubert, autor da obra da qual derivou o nome. Flaubert cita em seu romance apenas Bovary, sobrenome de casada de Emma. Teriam se referido ao termo, primeiramente, críticos da obra de Flaubert, como Gustave Merlet (1828-1891) e Barbey d’Aurevilly (1808-1889): 446 Mulheres e a Literatura Brasileira O primeiro, Gustave Merlet, a utilizou em 1861, ao fazer uma crítica sobre Flaubert, dizendo dos dois tipos de realismo que, segundo ele, existiam: um bom e um mau. O mau realismo seria o bovarismo, com sentido depreciativo, como um realismo que sacrifica o homem e se fixa no gosto pelas coisas depravadas e extremamente ilusórias – referência essa um tanto quanto preconceituosa e sinalizadora do que se pensava de Flaubert e de Emma a épocas mais próximas da publicação. O próprio Flaubert utilizara a palavra ‘bovarista’ para nomear os de opinião favorável a Madame Bovary, o romance, quando estava sendo julgado pelo tribunal e pelas pessoas. Em 1865, Barbey d’Aurevilly emprega o termo com sentido similar de degradação que se viu em Merlet. (DALVI, 2008, p. 26) A confusão estabelecida entre a identificação do criador do termo e de onde a palavra teria sido extraída permanece. Nos dicionários de diferentes áreas, em que o conceito tomou espaço, pode-se perceber isso. No Dicionário de Filosofia, por exemplo, atribui-se a Jules de Gaultier a criação da palavra: bovarismo (fr. bovarisme). Termo derivado do nome da famosa heroína de Flaubert (Madame Bovary, 1857), para indicar a atitude de quem cria para si mesmo uma personalidade fictícia e procura viver em conformidade com ela, chocando-se contra a sua natureza e contra os fatos. O termo foi criado por Jules de Gaultier. (Le bovarisme, 1902) (ABBAGNANO, 2000, p. 111) A Gaultier se deve a criação do conceito, não da palavra. Já em um dicionário de psicologia, diz-se que a palavra foi criada por Flaubert, dado errôneo como já foi dito: Bovarismo – ausência de autocrítica que se caracteriza pela atitude do indivíduo que se imagina diferente do que é na 447 Mulheres e a Literatura Brasileira realidade, idealizando sua personalidade. É, mais especificamente, uma pessoa ambiciosa, imaginativa, sugestionável e vaidosa, mas sofrendo uma existência vulgar e inconformada. O termo foi tirado do romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. (CALDERELLI, 1972, p. 92) No dicionário de termos literários, de Massaud Moisés (2004), encontra-se uma distinção mais ampla de bovarismo. O autor parte da definição clássica do termo, por meio de sua formação etimológica, e promove também uma pequena descrição da obra Madame Bovary, buscando relacioná-la ao conceito e apontando na personagem traços da condição de um ‘bovárico’: [...] Ema Bovary procurou libertar-se do mundo opressivo à sua volta atirando-se nos braços de dois amantes e desleixando-se das ocupações domésticas num desregramento frenético que culmina em suicídio. Histeria, ninfomania, consciência culposa, fuga da realidade, busca sem freio duma imagem que facultasse a um só tempo consumar o sonho romântico e dele evadir-se, ilusão da liberdade do ‘eu’ no encalço duma utopia sem fundamento no mundo real: tudo isso e não pouco mais tem sido lembrado pelos intérpretes dessa figura emblemática de mulher romântica, ansiosa de ser o que não é, como preconizava o introdutor do vocábulo que lhe sintetiza a ‘via crucis’. (MOISÉS, 2004, p. 58) Moisés reconhece que o conceito filosófico se estende à psicologia. Nesse sentido, o ‘bovárico’ é quem coloca a imaginação frente à experiência e “age como se fosse possível escapar a uma contingência superior à vontade” (MOISÉS, 2004, p. 58). Na psicologia, a condição de Emma Bovary é vista como um mal-estar relacionado às atitudes de “colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo” 448 Mulheres e a Literatura Brasileira (FREUD, 1929, p. 50). Emma não mediu esforços para atender seus desejos; foi punida em meio às promissórias que não conseguiu pagar. Assim, nessa perspectiva freudiana, Emma “sofre de uma tara original. A patologia de Emma se transforma em uma doença autônoma, tão mais independente do texto de Flaubert quanto o romance se torna inapto a oferecer uma explicação para seu mal” (JAYOT, 2008 apud CARVALHO, 2014, p. 33). Emma Bovary agia pelo entusiasmo, não pela experiência, uma vez que lhe faltava o campo favorável para desenvolvimento de experiências pessoais e mesmo para a escuta do outro. Muito embora certos leitores a considerem como feminista precursora, sabe-se que a personagem era uma mulher sozinha e solitária. Além disso, haveria um anacronismo, visto que feminismo, enquanto movimento histórico, remonta à segunda metade do século XX. Assim, o feminismo faz parte daquele grupo de ‘novos movimentos sociais’, que emergiram durante os anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia), juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do ‘Terceiro Mundo’, os movimentos pela paz e tudo aquilo que está associado com ‘1968’. (HALL, 2005, p. 44) Porém, a motivação desses movimentos permite que suas ramificações não se restrinjam a uma época, de maneira que há o feminismo situado historicamente, mas também há o feminismo característico de atitudes questionadoras de situações em que o sujeito é colocado em status de inferioridade pela diferença de gênero, ou, como o próprio Stuart Hall esclarece, “aquilo que começou como um 449 Mulheres e a Literatura Brasileira movimento dirigido à contestação da posição social das mulheres se expandiu para incluir a formação das identidades sexuais e de gênero” (HALL, 2005, p. 45-46). Pode-se considerar como feminismo toda ação que visa à equiparação de direitos, não das mulheres em relação aos homens, mas entre sujeitos de maneira geral. Emma não estava inserida em um grupo de mulheres ou em um movimento militante. Se havia uma luta pela liberdade, esta luta era solitária e em causa própria, em nome do prazer imediato. Seus desejos também não eram os que se costuma ver contemplados nos movimentos feministas – Emma queria ser feliz, queria não apenas saber o que significava a palavra felicidade, mas conhecer sua prática. Entretanto, a busca dessa felicidade rompeu com padrões patriarcais impostos à mulher à época, e isso está relacionado com a formação da identidade de gênero, como explica Hall sobre o feminismo. Ademais, não se pode esquecer a sobrevida da personagem, o seu impacto na discussão do papel social da mulher. Sim, Emma não era uma feminista, mas não se pode negligenciar sua importância na discussão do feminismo. A cibercultura, por sua vez, remonta ao mal sofrido por Emma Bovary, mencionando um bovarismo virtual. Sob o olhar da cibercultura, o bovarismo é algo que, por natureza, está “fora do alcance dos pobres, pois a consecução de reproduções do universo idealizado no espaço real exige mais recursos financeiros do que normalmente se dispõe (ninguém idealiza para si uma condição pior do que já tem)” (BECKER, 2002, p. 11). Há, neste caso, uma noção de bovarismo dependente do dinheiro. Nessa perspectiva, a causa do suicídio de Emma teria sido a falta dos subsídios financeiros que sustentavam a ilusão de felicidade trazida pelos amantes e roupas caras com os quais se esbaldou. Becker amplia a discussão atribuindo bovarismo às mocinhas das periferias das 450 Mulheres e a Literatura Brasileira grandes cidades, espectadoras de “Malhação”, por exemplo, que “se concebem ‘pat’, suicidando-se um pouquinho a cada dia diante da impossibilidade de ter roupas e tênis de marca, ser fashion, frequentar os points e ‘baladas’ do momento e ‘ficar’ com o garoto mais ‘popular’” (BECKER, 2002, p. 11). No caso de Emma, há o contexto da ascensão da alta burguesia que passou a ocupar, por meio da compra de títulos, a posição de nobre. Emma sonhava com a nobreza, muito embora ainda estivesse no posto de pequena burguesa. Em proveito do ensejo, eis um breve resumo da história. O romance conta as ilusões e desilusões de Emma Rouault, provinciana, leitora assídua de romances românticos; morava com o pai no sítio e sua mãe havia falecido há algum tempo. Sua vida era bastante tediosa e permeada pelo desejo de encontrar o príncipe das histórias que lia. Aparece, no sítio, o médico Charles Bovary e conquista o apreço de Emma, que via nele a abertura de um campo de expectativas, de mudança, de liberdade da vida monótona e da descoberta do amor. Os dois se casam; porém, em pouco tempo, a agora Emma Bovary percebe que a vida conjugal não correspondia às suas ilusões. Desencanta-se novamente: Antes de se casar, ela [Emma] achava ter amor; mas não tendo chegado à felicidade que deveria resultar desse amor, era preciso que ela tivesse se enganado, pensava. E Emma buscava saber o que exatamente se entendia na vida pelas palavras felicidade, paixão e embriaguez, que lhe tinham parecido tão belas nos romances. (FLAUBERT, 2011, p. 114) Após o casamento, o tédio permaneceu. Seu marido nada percebia e “achava que ela estava feliz; e ela tinha raiva dele por essa calma tão bem assentada, por essa gravidade serena, em razão mesmo da felicidade que ela lhe dava” (FLAUBERT, 2011, p. 122). A maternidade também não lhe trouxe felicidade; 451 Mulheres e a Literatura Brasileira sonhava em ter um menino para não sofrer as mesmas privações que sofrera por ser mulher; decepcionou-se quando nasceu uma menina. Entregou-se à vida extraconjugal; teve dois amantes ao longo da história, acreditou por momentos que fosse feliz, mas “encontrava no adultério todas as platitudes do casamento” (FLAUBERT, 2011, p. 410). A personagem sofre mudanças bruscas de humor; ora quer ser a dona do lar, a mãe dedicada, ora é a amante apaixonada e sente repulsa pela filha — “como essa criança é feia” (FLAUBERT, 2011, p. 209) — e pelo marido; e “não estava feliz, nunca tinha estado. De onde vinha então essa insuficiência da vida, essa podridão instantânea das coisas em que ela se apoiava?” (FLAUBERT, 2011, p. 403). Ao ver-se sem dinheiro para quitar as dívidas contraídas com roupas caras para si e presentes para os amantes, suicida-se com arsênico. Quanto à motivação do estado contínuo de insatisfação de Emma, Gaultier alega serem as condições externas, as quais teriam tido início no convento, para onde foi enviada, aos treze anos. Ali, tivera contato com os romances, às escondidas, e também com a educação que, pouco tempo antes, era destinada às meninas da aristocracia. Assim, a educação da camponesa no convento das Ursulinas de Rouen, entre as jovens meninas chamadas pelo nascimento ou pela fortuna das elegâncias de uma vida aristocrática, é a primeira e a mais importante das circunstâncias exteriores que favorecem a eclosão da sua tendência a transpor sua personalidade; [...] não está ela em direito de esquecer que é uma camponesa quando a ensinam tudo o que é de natureza para brilhar a mulher na decoração de um salão? (GAULTIER, 1892, p. 29, tradução nossa) Porém, o filósofo também reconhece o bovarismo como condição interna, espécie de doença: 452 Mulheres e a Literatura Brasileira [...]. Pela cegueira obstinada com a qual ela realiza sua incessante evolução, pelo seu fim trágico, ela personificou em si esta doença original da alma humana à qual seu nome pode servir de etiqueta, se nós entendemos por ‘Bovarismo’ a capacidade alienada ao homem de se conceber de outra forma diferente da sua sem levar em consideração as mobilidades diversas e as circunstâncias exteriores que determinam em cada indivíduo esta íntima transformação (GAULTIER, 1892, p. 26, tradução nossa). Há quem critique Gaultier por essa indefinição dos fatores que levariam ao bovarismo, e também pelo fato de o filósofo, em seus primeiros estudos, estabelecer esse comportamento como algo próprio da personagem e, depois, conceituá-lo como algo comum ao ser humano, a mola que permite o progresso da humanidade. Para Carvalho (2014, p. 26), é importante destacar a contradição flagrante do texto de Gaultier, já que o bovarismo é considerado um tipo de manifestação que ocorre preferencialmente na modernidade e norteia um atributo do sujeito e da ficção moderna, não obstante seja uma faculdade essencial da humanidade e esteja presente em todos os tempos. Não necessariamente se deve considerar essa contradição como ponto negativo nos estudos de Gaultier, tampouco como displicência sua. Partindo do pressuposto de que o bovarismo deriva do livro de Flaubert, são compreensíveis as ampliações conceituais – Emma Bovary é personagem também de temperamento difícil, de humor variável. Em um momento, acredita-se que isso se deve à sua condição de mulher reprimida do século XIX; em outro, acredita-se que ela sofre de uma doença dos nervos; seu marido, Charles, busca a 453 Mulheres e a Literatura Brasileira opinião de um amigo de mesma profissão: “levou-a [Emma] a Rouen para ver o seu antigo mestre. Era doença nervosa: ela devia mudar de ares” (FLAUBERT, 2011, p. 151). Uma relação de As netas da Ema com Madame Bovary O livro As netas da Ema, de Eugenia Zerbini, venceu o Prêmio SESC de Literatura 2004 e foi publicado pela editora Record, em 2005, no Rio de Janeiro. A narradora-personagem conta sua história em primeira pessoa, desde sua adolescência, em que seus pais foram presos pela ditadura militar, até a vida adulta, aos cerca de cinquenta anos de idade, em que é empresária de sucesso, prestes a ganhar um prêmio de melhor empresária do ano. Como quem conta a própria história não é nomeada no livro, ela será chamada, daqui em diante, de “narradora-personagem”. É importante vislumbrar o cenário de produção no qual o romance se instala, em referência ao papel ainda marginal da mulher na literatura. Regina Dalcastagnè (2005) fez uma pesquisa motivada pelo desconforto causado pela constatação da ausência dos pobres e dos negros na literatura. A partir destas ausências, foram constatadas outras, como das crianças, dos velhos, dos homossexuais, dos deficientes físicos e, por fim, das mulheres. O corpus da pesquisa compunha-se de 258 obras. Estas foram publicadas pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco, entre 1990 e 2004, e preenchiam os seguintes critérios: (1) foi escrito originalmente em português, por autor brasileiro nato ou naturalizado; (2) foi publicado pela Companhia das Letras, Record ou Rocco; (3) teve sua primeira edição entre 1990 e 2004; (4) não estava rotulado como romance policial, ficção científica, literatura de 454 Mulheres e a Literatura Brasileira autoajuda ou infanto-juvenil (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 24). Entre outras informações, a pesquisa constatou que a maioria desses romances era escrita por homens: chama a atenção o fato de que os homens são quase três quartos dos autores publicados: 120 em 165, isto é, 72,7%. Cerca de 70 anos após Virginia Woolf publicar sua célebre análise das dificuldades que uma mulher enfrenta para escrever, a condição feminina evoluiu de muitas maneiras, mas a literatura – ou, ao menos, o romance – continua a ser uma atividade predominantemente masculina (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 31). No caso das personagens, a maioria também são homens: “entre as personagens estudadas, 773 (62,1%) são do sexo masculino, contra apenas 471 (37,8%) do sexo feminino – um único caso foi alocado na categoria ‘sexo: outro’” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 35). No caso das personagens mulheres, estas geralmente ocupam papéis ligados ao espaço doméstico: “o espaço das mulheres representadas no romance brasileiro contemporâneo é, sobretudo, o espaço doméstico” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 39). As netas da Ema foi publicado pela editora Record, em 2005; assim, o romance certamente não entrou na pesquisa que abrangeu obras entre 1990 e 2004. De qualquer forma, o romance insere-se na minoria de publicações cuja autora é uma mulher, a protagonista também é uma mulher e seu papel não é de uma ‘do lar’, mas de empresária. Além disso, a história da protagonista se mistura à história da autora e mostra uma ascensão feminina no que se refere à superação de obstáculos e à ocupação de espaço profissional. Alguns dados da narrativa podem ser verificados extratextualmente, na vida real de 455 Mulheres e a Literatura Brasileira Eugenia Zerbini, como a prisão dos pais por ocasião da ditadura militar. Não serão detalhadas essas questões, mas destaca-se a reflexão proporcionada pelo romance sobre a mulher na sociedade, sobretudo quando contraposto à Madame Bovary. Isso não significa negar a possibilidade de reflexão proporcionada por este último, porém é preciso ter em mente que foi escrito por um homem: “Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus problemas e solidários, nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 16). De início, em As netas da Ema, a narradora-personagem é assaltada e isso a faz refletir sobre o que sentiria não ter feito, caso o dia do assalto fosse seu último de vida: “se eu tivesse morrido ontem, o que sentiria não ter feito durante a vida? [...]. Sofreria por não ter escrito um livro” (ZERBINI, 2005, p. 26). Daí em diante, movimenta a narrativa a busca pelo tema do livro pretendido pela narradora-personagem. Ela se encontra com as amigas e estas lhe fornecem sugestões. Por fim, cada sugestão acaba se desenrolando em discussões sobre feminismo e feminilidade. No segundo capítulo de As netas da Ema, a narradorapersonagem fala sobre o fato de ela e suas amigas terem vivido na segunda metade do século XX, participando dos movimentos feministas, lutando contra as imposições machistas e adquirindo o direito ao voto, ao uso de anticoncepcionais e à liberdade sexual. Lembra-se do romance que lera na adolescência, Madame Bovary, e reflete: sempre tive pena da Madame Bovary. Será que ela não via que seu marido, Charles, era-lhe extremamente devotado? Ela podia administrar o dinheiro e a casa, decidir se bordava, tocava piano ou lia poesia. Para agradá-la, haviam mudado 456 Mulheres e a Literatura Brasileira de Yonville para Toste, onde nascera a filha, Berthe, nome escolhido por ela. Mesmo antes dos gastos extravagantes com seus figurinos, Madame Bovary deveria ter tido uma bela estampa, caso contrário, não seduziria Leon, mais jovem que ela. Charles permitia até que se divertisse, não se opondo a que dançasse com outro no baile, que andasse a cavalo com Rodolfo, seu primeiro amante, e que fosse regularmente a Rouen. Por que penar e se imolar, afinal, se tinha tudo para ser feliz? (ZERBINI, 2005, p. 42) No quinto capítulo, a narradora-personagem confessa à amiga que não se sente feliz, pois lhe faltam duas coisas que Emma Bovary teve: marido e filho. Para ela, a realização pessoal de uma mulher só se dá por meio desses dois acontecimentos, o casamento e a maternidade. Sua amiga contesta: e quem disse que as mulheres só se realizam no casamento? Sua avó, por exemplo, parece que começou a viver depois que enviuvou. Seu avô não gostava que ela fosse a festas, tocasse piano e frequentasse concertos. Você não diz sempre que ela comprou o piano com o dinheiro que recebeu do seguro de vida que lhe deixou? E filhos? Conheço mães que, no fundo, devem olhar para suas crianças e perguntar o que fizeram de suas juventudes, de suas vidas. No meu caso, a maternidade foi um grande acontecimento, uma revelação, mas sei que com cada um acontece de um jeito. [...] Eu me realizei, é verdade, mas tem gente que só se realiza trabalhando, outras servindo aos outros, outras sendo artistas, outras escrevendo um livro. (ZERBINI, 2005, p. 158) Ao longo da história, a narradora-personagem acaba tecendo uma discussão sobre feminilidade, feminismo, satisfação da mulher. Quando relaciona sua vida à de Emma Bovary, coloca em contraponto o que se entende por satisfação 457 Mulheres e a Literatura Brasileira feminina hoje, para a mulher do século XXI, e outrora, para a mulher do tempo de Emma. No excerto abaixo, quando a narradora-personagem declara que “somos todas netas da Ema”, percebe-se que, a despeito da evolução temporal e das conquistas da mulher no âmbito social, político e profissional, as necessidades pessoais perduram: somos todas netas de Ema Bovary. [...]. Entendemos o que é previdência privada e dívida pública, entretanto temos devaneios e fantasmas de mocinhas, que colocaram em nossas peles de bebê ao nascermos. Temos tudo para sermos felizes. Mas essas fantasias nos impedem de realizar essa felicidade (ZERBINI, 2005, p.160). No excerto acima, pode-se observar o quanto a narradorapersonagem se coloca em um lócus de limitação feminina, muito embora componha um momento sócio-histórico de evolução profissional da mulher. A narradora-personagem afirma que, apesar de as mulheres entenderem de questões às quais Emma provavelmente não teria acesso devido ao seu contexto limitante em relação à educação e ao trabalho, por exemplo, todas são netas da Emma Bovary. Dessa maneira, é controverso o senso de liberdade feminina na presente sociedade – por um lado, podem trabalhar, estudar, ter acesso a conhecimentos diversos, mas restam as fantasias de mocinhas “que colocaram em nossas peles de bebê ao nascermos”. A mulher atual ainda é educada para o casamento e maternidade e tais elementos também constituem o estereótipo de feminilidade. Emma queria ter dinheiro para poder desfazer-se da vida monótona; recorda-se das colegas do convento e imagina que elas estariam felizes, desfrutando de vida farta, frequentando bailes e teatros luxuosos. Pode-se depreender daí que o outro que Emma queria ser é o que a narradora-personagem é: 458 Mulheres e a Literatura Brasileira mulher com condições financeiras suficientes para sustentar os luxos sonhados pela protagonista flaubertiana. Entretanto, como foi visto, se Emma não se satisfazia com nada – o casamento, a maternidade, a vida extraconjugal –, é possível deduzir que, se suas conquistas tivessem sido as mesmas da narradora-personagem, se tivesse vivido no presente século, ainda assim, não teria sido feliz. No caso da narradora-personagem, é possível apreender sentido semelhante. A princípio, quando ela sente a ausência de casamento e maternidade na vida e argumenta que Emma “tinha tudo para ser feliz”, não se deve de imediato concluir que ela queria ser o outro, a Emma, mas que, dentro dos ideais femininos da atual sociedade, não é suficiente ser a ‘mulher independente’. Essa questão remete às discussões sobre identidade feminina, no tocante à não unidade das necessidades da mulher, tampouco da categoria feminina. Cada mulher tem seus anseios, embora a sociedade, de certa maneira, exerça a cobrança do que seria um papel feminino ou quais papéis devem ser ocupados pela mulher, em uma visão binária: de um lado, há a cobrança pelo ser esposa, mãe, do lar; do outro, há cobrança pela mulher independente, com profissão que ultrapasse as paredes do lar. Há um binarismo excludente, como se a mulher independente não pudesse ser também a mãe e dona de casa. Há também quem pregue a independência feminina, o direito à escolha da mulher, não aceitando, no entanto, aquela que opta apenas pelo outro papel, o de não ser independente financeiramente. Judith Butler abre caminho para essa discussão, ao falar do gênero feminino como algo construído discursivamente; assim, “a controvérsia sobre o significado de construção parece basear-se na polaridade filosófica convencional entre livre-arbítrio e determinismo” (BUTLER, 2013, p. 27). 459 Mulheres e a Literatura Brasileira Butler tece vários questionamentos sobre identidade e um deles se refere à unidade de uma categoria de mulheres que lutariam por desejos semelhantes; entretanto, mesmo nesta categoria, podem-se encontrar desejos divergentes, que acabam velados pela necessidade de unidade. Nesse sentido, não seriam os desejos de Emma e da narradora-personagem relevantes em uma sociedade apenas por se tratarem de desejos subjetivos, pessoais? Não haverá aprofundamento nesse assunto para não haver fuga da temática proposta neste artigo. Apenas se ressalta como o bovarismo acaba perpassando outras áreas de conhecimento, além da filosófica, mostrandose um tema bastante atual. Trata-se de um conceito filosófico e, possivelmente, por isso, permita diálogo com outros assuntos e outras personagens, além de Emma Bovary e além das obras literárias. Considerações finais O diálogo, aqui empreendido, entre os romances Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, e As netas da Ema (2005), de Eugenia Zerbini, permitiu a identificação do bovarismo presente na personagem feminina do século XXI. O bovarismo definido por Jules de Gaultier, após a criação flaubertiana, aparece representado em sua essência na mulher insatisfeita com quem é. Tal insatisfação provém da polaridade determinismo/livre arbítrio, em que a liberdade de essa mulher ser quem é se choca sempre com o outro que a olha, a quem ela olha e com o qual se compara. A narradorapersonagem identifica felicidade e completude justamente naquilo em que Emma se sentia insatisfeita, ou seja, é leitora de Madame Bovary e acredita que a mocinha do século XIX, que podia “bordar, tocar piano e ler poesia” limitada às paredes da casa, tinha tudo para ser feliz. 460 Mulheres e a Literatura Brasileira O ápice da polaridade determinismo/livre arbítrio verificado em As netas da Ema está na condição de escritora da narradora-personagem; esta quer escrever um livro, desejo realizado pela autora na realidade factual, levando-se em conta os indícios autobiográficos da obra. A possibilidade de escrita de si não aparece em Madame Bovary e parece ser o auge de sua vida solitária. Emma Bovary até compra o material para escrita: um mata-borrão, uma papeleira, um tinteiro e envelopes (FLAUBERT, 2011), mas não tem a quem enviar suas cartas, nem mesmo uma amiga. Em As netas da Ema, não é o papel de empresária de sucesso que incomoda a narradora-personagem, mas a ausência do casamento e da maternidade de modo a atender os ‘padrões’ femininos da sociedade em que vive. Há uma incompletude em sua identidade advinda do questionamento do que compõe a realização da mulher na sociedade – não basta ser inteligente, estudiosa, profissional de sucesso; falta ser mãe e esposa; daí a inveja que sente pela personagem do livro lido na adolescência. Diante dessa discussão, resta saber da necessidade da completude. É imprescindível esta completude? A mulher precisa, de fato, assumir e representar todos estes papéis para que sua posição seja ‘legitimada’ socialmente? No caso de Emma Bovary, seu desejo de viver diferentes papéis em busca da felicidade, que nunca chegava, provinha, dentre outros fatores, das leituras dos romances românticos com final feliz, em que figurava a mocinha delicada ao lado do grande amor; assim, sua insatisfação era instigada por uma imagem préconcebida e fixada pelos romances do que deveria ser uma mulher feliz. Fato semelhante ocorre no contexto da ‘neta da Ema’ – a narradora-personagem é leitora de Madame Bovary, romance realista que marca justamente a ruína do sujeito romântico, no caso, Emma. Porém, se a mulher não ler livros 461 Mulheres e a Literatura Brasileira românticos, isso não a isenta de ser submetida a imagens de padrões de feminilidade e, mesmo, padrões de realização pessoal. Referências: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BECKER, Maria Lúcia. Bovarismo virtual e heteronomia: considerações sobre a identidade na cibercultura. 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Disponível em: <http://www.bdtd. ufes.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquiv o=903>. Acesso em: 20 fev. 2013. 462 Mulheres e a Literatura Brasileira FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary: costumes de província. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Penguin Classics; Compahia das Letras, 2011. FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. [1929]. In: ______. Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XXI. Disponível em: http://conexoesclinicas.com.br/wpcontent/ uploads/2015/01/FREUD-Sigmund.-Obras-CompletasImago-Vol.-21-1927-1931.pdf> . Acesso em: 21 fev. 2016. GAULTIER, Jules de. Le Bovarysme: La psychologie dans l’oeuvre de Flaubert. Paris: Librairie Léopold Cerf, 1892. _______. Le bovarysme: mémoire de la critique. [1902]. Paris: Presses de l’Université Paris-Sorbonne, 2006. GERHARDT, Tatiana Engel; SILVEIRA, Denise Tolfo (Org.). Métodos de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009. HALL, Stuart. A identidade cultual da pós-modernidade. 10. ed. 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Autoria e condição feminina na literatura: reconfigurações de um lugar Invisibilidade, silenciamento, marginalidade: sempre que se abordam os aspectos inerentes à produção da literatura de autoria feminina no ocidente, a presença desses termos se faz uma constante, uma vez que, tendo permanecido às margens do cânone e da teoria literária até boa parte do século XX, apenas recentemente pode ser verificada uma maior inserção das mulheres nos ambientes intelectuais e letrados, a diminuição da desconfiança e preconceito em relação às produções de autoria feminina e a consolidação de uma campo de escritura que não preestabelece o lugar “menor” para as produções artísticas e literárias realizadas por mulheres. Não obstante a atividade de escrita feminina ter sido registrada em séculos anteriores, tanto no Brasil como em outros países, é 1 Mestranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão, bolsista CAPES. 2 Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão; Doutora em Estudos Literários pela UFG. 464 Mulheres e a Literatura Brasileira apenas com a brisa da chegada da democracia 3, envolvendo todos os setores sociais, e graças aos ventos da mudança produzidos pelas conquistas feministas iniciadas em décadas anteriores, que começa a se reconfigurar a abordagem acadêmica e crítica sobre a condição feminina no âmbito da literatura. Amarras, correntes, gaiolas: assim, como na citação de Rosa Luxemburgo em epígrafe, é a partir do momento em que há uma movimentação no sentido de tornar evidentes as restrições impostas às mulheres ao longo dos séculos, que foi possível perceber essas mesmas restrições e começar a desconstruí-las nos diversos campos, como o da atuação política (reivindicações de voto), da vida pública (o direito ao trabalho e à profissionalização), da vida privada (direitos reprodutivos) e da vida literária e cultural (inserção escolar, produção literária e artística). No Brasil, foram criados grupos de estudos sobre a mulher no ambiente das universidades brasileiras a fim de resgatarem a escrita de autoria feminina como, por exemplo, o grupo de trabalho intitulado A mulher na Literatura, filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), conforme Nádia Batella Gotlib (2003). Ao mesmo tempo, foram criadas revistas acadêmicas, disciplinas e projetos de pesquisa que propiciaram a inserção de autoras nas bibliografias das disciplinas ministradas nos cursos de letras, forçando, de certa forma, a discussão sobre a prevalência de critérios androcêntricos e misóginos na 3 Referimo-nos, neste ponto, no caso do Brasil, aos anos em que o país viveu em estado de exceção, ocasionado pela implementação de uma Ditadura Militar (1964-1985), regime que impôs censura às produções artísticas e culturais e cerceamento ideológico à toda sociedade brasileira. 465 Mulheres e a Literatura Brasileira composição do cânone literário e na valoração crítica de escritores e escritoras. Contudo, de acordo com entrevista da professora e escritora Rita Terezinha Schmidt concedida à revista eletrônica Veredas, em 05 de novembro de 2015, até o momento são encontrados grandes obstáculos para dar visibilidade às mulheres escritoras e garantir seu espaço no cânone literário. Schmidt (2015) realiza um trabalho de recuperação da escritura de mulheres, que foram excluídas da história literária brasileira, e relata que seu interesse por este tema foi despertado quando cursava pós-graduação no exterior, pois, enquanto estudava no Brasil, não conseguia perceber o porquê de todos os seus professores de literatura serem do sexo masculino. Seus olhos estavam vendados para a situação de preconceito de gênero, nem ela nem nenhuma de suas colegas percebiam que o território da Teoria Literária e Crítica Literária, naquela época, era completamente dominado pelos homens. No exterior, em contato com os textos de Simone de Beauvoir, começou a se questionar sobre onde estariam as escritoras brasileiras. Ela diz que ainda na atualidade, apesar dos avanços, a academia permanece conservadora em relação à inserção das escritoras no cânone brasileiro: Todas nós, nas nossas instituições, sentimos na pele a discriminação por “ousarmos” levantar a questão do preconceito e discriminação contra as escritoras nos nossos departamentos de literatura. Como nos “atrevíamos” desafiar o estabelecimento crítico e nos colocarmos como objetos e sujeitos de pesquisa? Nós, sendo mulheres, não teríamos legitimação para investigar a literatura escrita por mulheres. (SCHMIDT, 2015, s/p., grifos da autora). 466 Mulheres e a Literatura Brasileira Neste mesmo viés, a escritora Elvira Vigna, ao ser entrevistada por Tanay Gonçalves Notargiacomo, apresenta também uma experiência que viveu em Recife, quando foi convidada para participar de uma mesa-redonda. Ela diz que, quando chegou ao local, foi colocada para esperar junto com seus colegas “escritores masculinos” e, logo após, a comissão organizadora do evento separou o grupo em duas mesas distintas: Uma, dos “verdadeiros escritores”, que falavam alto, riam e onde estavam os organizadores. A outra mesa era de mulheres, na sua maioria poetas locais que eu não conhecia e para onde me encaminharam. Acho que esse episódio, engraçado, foi uma ocasião em que ficou clara a questão de gênero em um ambiente literário. [...] naquela ocasião me presentearam com uma antologia de contos que havia sido recém-publicada. Sem sequer uma mulher no índice. (NOTARGIACOMO, 2013, p. 256, grifos da autora.) Constata-se que o preconceito de gênero ainda existe na contemporaneidade. O fato alarmante é que ele ainda circule dentro de comunidades formadas por pessoas ditas esclarecidas como, por exemplo, nas academias. De certa forma, infere-se que a escola pode ser responsabilizada pela perpetuação desta desvalorização da escrita feminina, conforme indica a pesquisa desenvolvida por Cíntia Schwantes. De acordo com ela (2006, p. 12), a revista Veja, sem especificar os dados da edição, solicitou a professores de literatura de várias universidades do país que listassem dez autores mais importantes dentro da literatura brasileira a fim de elaborar um “ranking dos 10 autores imprescindíveis na nossa literatura”. A regra de classificação o nome do(a) autor(a) figurar mais de uma vez nas listas. Como resultado, 467 Mulheres e a Literatura Brasileira apenas a escritora Clarice Lispector foi selecionada, o que leva a pesquisadora a externar sua indignação: Apenas uma mulher foi incluída – e a lista incluía poesia e prosa. Clarice Lispector foi a única incluída, o que deixa de fora ao menos uma autora importante, que é Cecília Meireles. É verdade que poesia é um gênero meio fora de moda, mas Cecília Meireles faz parte da formação literária de todos nós - não há um livro didático que não traga ao menos um poema de sua autoria - e não recebeu votos em número suficiente para se “eleger”. (SCHWANTES, 2006, p. 13). De modo análogo, Schmidt (2010) ratifica que a obliteração da escrita feminina acontece devido às raízes históricas de nossa sociedade machista e patriarcal, em que os homens foram vinculados ao intelecto, à mente, e as mulheres ao corpo, à reprodução. É assustador perceber que esta memória misógina vai atravessando os tempos e em 2016, diante de um episódio político que culminou no afastamento da Presidente Dilma Rousseff, observa-se que estes discursos sexistas são repetidos e reforçados. Mais do que em qualquer outra época, o feminismo e os estudos de gênero são de suma importância para que se quebre esse tabu sobre a naturalização da dominação masculina e sobre o lugar social da mulher. Nesta forma, a crítica feminista ainda encontra alguns obstáculos dentro da academia, pois assim como o feminismo, visa a desconstruir todas as formas preestabelecidas, problematizar as relações de cultura e gênero e resgatar a autoria feminina. É enriquecedor, para a sociedade em geral, conhecer como as mulheres enxergam o mundo, uma vez que sua visão não é a mesma de um homem, em virtude de suas diferentes experiências de vida. 468 Mulheres e a Literatura Brasileira As obras de autoria feminina foram, comumente, rejeitadas e criticadas pelos escritores “homens”, que não desejavam perder sua posição de poder, uma vez que por meio da literatura pode-se manipular a sociedade e todo o imaginário social. Assim, para se manterem no domínio acadêmico, os autores utilizavam meios variados, nem sempre explícitos, para descartarem suas concorrentes. Por isso, apesar de os livros serem bem estruturados e denunciarem as mazelas de que as mulheres eram vítimas, os textos permaneciam silenciados e esquecidos devido à sua autoria: As mulheres foram as que realmente conseguiram captar todo o drama da nacionalidade, da formação da nação, da modernização. Nunca enfeitaram os textos, pelo menos os que nós temos recuperado em termos de literatura brasileira. São os textos mais sombrios, que deixam à mostra, por exemplo, a miserabilidade da escravidão. Deixam evidente o que acontecia nas casas dos senhores: casos de incesto, a violência sexual contra escravas, que eram forçadas a abortar, ou vendiam os filhos das escravas, porque eram abusadas pelo patrão. Além de mulheres indígenas que muitas vezes eram raptadas e trazidas das tribos para trabalharem como domésticas e sofriam abusos. Nossas escritoras colocaram o dedo nas feridas que nenhum dos nossos escritores homens colocou. (SCHMIDT, 2015, s/p) Não seria de bom tom escrever sobre a moral dos coronéis, dos senhores de engenho e seus atos de covardia, jamais a violência ocorrida dentro de casa poderia alcançar o espaço público. Melhor seria entregar a formação do cânone aos seus “comparsas” masculinos, deixá-los falar das belezas do país, suas “lindas palmeiras onde canta o sabiá”, como o poeta dos escravos declamava. Zahidé Lupinacci Muzart (2003), pesquisadora responsável pela consolidação de um 469 Mulheres e a Literatura Brasileira campo de pesquisa que privilegiou o resgate das obras de escritoras “esquecidas” do século XIX 4, traz uma valiosa colocação sobre o poder que emana das representações veiculadas pela literatura e o quanto esta ciência está relacionada ao próprio exercício do poder: A própria noção de literatura é inextricavelmente ligada ao exercício do poder, de modo tal que “nossa história literária contenha poucas criações que deem voz, de modo exemplar e sem preconceitos e paternalismo, a outros setores da sociedade que não seja o hegemônico”. Assim, as mulheres não tiveram guarida no cânone por critérios outros, que passam por questões de gênero. (MUZART, 2003, p.138-139) Comprova-se uma vez mais que a escrita feminina possui valor literário e somente não foi incluída no cânone por preconceito de gênero. Diante da percepção de que o controle da palavra empodera o sujeito que a manipula, teceremos algumas considerações a respeito da literatura. Há inúmeras definições para esse termo que, como sabemos, é um vocábulo relativamente novo, criado no início do séc. XIX. Contudo, observa-se que desde os primórdios da humanidade já existiam estudos sobre esta arte tal o seu valor diante da sociedade. Ao acompanhar as transformações sociais, depreende-se que a literatura é acima de tudo nacional, de acordo com Compagnon (2010), ao registrar a vida de um povo, seus valores, seus costumes. 4 Cf. Por exemplo, as três antologias de escritoras organizadas por Zahidé Muzart, ao longo de décadas de pesquisa: Escritoras Brasileiras do Século XIX (vol. I, II e III), todas publicadas pela Editora Mulheres, fundada também pela pesquisadora, em Florianópolis. 470 Mulheres e a Literatura Brasileira Salienta-se que é por meio dela que a identidade nacional é formada, ao ser poderoso instrumento de veiculação do ideário, daí seu caráter político e social. Infere-se que a literatura exerce o papel de memória nacional ao lado da história, vez que esta narra os fatos e as datas em que aconteceram de modo objetivo, e aquela registra os eventos acompanhados de sentimentos, ou seja, de modo conotativo para melhor alcançar o leitor e transmitir a mensagem em sua totalidade. Ainda sobre a função reminiscente da literatura, Derrida (2014) questionado por seu interesse pela literatura e da forma que este se relacionava com seus textos filosóficos explicou que, quando era adolescente desejava guardar tudo o que acontecia na memória, e ainda adulto necessitava preservar suas lembranças. Portanto, além da literatura suprir estas necessidades, proporcionava-lhe a sensação de liberdade, conforme as palavras do autor: escrever de modo a pôr em jogo ou a manter a singularidade da data (o que não retorna, o que não se repete, experiência prometida da memória como promessa, experiência da ruína ou da cinza)[...] a “potência” de que a linguagem é capaz, a potência que há, como linguagem ou como escritura, é a de que uma marca singular seja também repetível, iterável, como marca. (DERRIDA, 2014, p. 61) Atualmente, com a nova corrente epistemológica que deslocou o significado de literatura – antes relacionado ao artístico – para a “produção estético-escritural”, de acordo com Schmidt (2010), voltada para a produção de cultura, houve maior abertura para o resgate das escritoras silenciadas pelo cânone e também para a inserção de novas obras. Assim, o resgate das obras de autoria feminina excluídas do cânone é primordial para conhecermos a história sob um novo prisma. 471 Mulheres e a Literatura Brasileira Entretanto, não se pode deixar de mencionar que, apesar da abertura para a escritura de autoria feminina a partir de 1980, especificamente nos anos 1990, as autoras ainda encontram muitos desafios, pois suas obras são consideradas, em muitos casos, como subliteratura ou literatura de segunda categoria. Outro entrave apontado por Luciana Borges (2013) para que as escritoras alcancem visibilidade e sejam reconhecidas como tal, está na dificuldade em encontrar editoras de grande porte interessadas em sua produção. Borges (2013) pondera que, apesar de as escritoras terem alcançado liberdade para escrever, são poucas as que têm acesso às grandes editoras. A circulação de seus livros ocorre de forma ineficiente, e seus escritos permanecem longe do grande público. As autoras “desconhecidas”, em sua grande maioria, vinculam-se a pequenas editoras que realizam, usualmente, uma edição de mil exemplares de suas obras. Consequentemente, torna-se quase impossível divulgar seus trabalhos para além de seus círculos locais, especialmente quando não pertencem ao eixo Rio-São Paulo. Nesse ponto, partimos para a abordagem da escritora cuja obra motiva a escrita deste estudo, ressaltando a experiência da escritora goiana Augusta Faro Fleury de Melo, conhecida como Augusta Faro, uma vez que, mesmo sendo parte de um grupo privilegiado intelectualmente em contexto goiano, com grande atuação nas letras e atividade acadêmica notável, sua obra alcança apenas parcialmente uma “nacionalidade” de circulação, uma vez que, tendo sido incluída em uma antologia de escritoras contemporâneas, sua obra alcançou leitores para além do contexto regional de Goiás. A inserção em antologias tem se configurado como mecanismo pelo qual autores e autoras galgam alguns degraus em direção ao reconhecimento em âmbito nacional. No caso de Augusta Faro, a publicação do conto “Gertrudes e seu homem” em 25 Mulheres que estão 472 Mulheres e a Literatura Brasileira fazendo a Nova Literatura Brasileira (2004), organizada por Luiz Rufatto, pode revelar, por conseguinte, a qualidade e especificidade de seu universo ficcional em que, predominantemente, configura-se a construção de personagens femininas complexas, representativas dos parâmetros de sociabilidade de gênero e da feminilidade em contexto patriarcal, para as quais se apresentam as possibilidades de manutenção ou ruptura da ordem masculina das relações sociais e dos afetos. Augusta Faro e contexto da autoria feminina: rompendo as amarras regionais A carreira literária de Augusta Faro iniciou-se em 1982, com a publicação do livro de poemas Mora em mim uma canção menina, logo depois Lua pelo corpo, em 1984, e prosseguiu com suas poesias lançando O Estado de graça, em 1988. Em 1990, ocorreu um fato inédito na literatura goiana: ela lançou O azul é do céu5?, o primeiro livro de poesias destinado ao público infantil. No ano seguinte, publicou O dia tem cara de folia, e continuou inovando ao publicar o conto infantil “O usar a cuca é melhor do que a pança”, em 1992, além da novela, também destinada ao público infanto-juvenil A dor dividida, um caso de Aids, em 1994. Foi premiada pela União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro pelo livro Avesso do Espelho, em 1995, e pelo livro de contos A friagem, em 1995. Além destes títulos, Faro escreveu Alice no país de Cora Coralina (1993), Por quem chora Potira? (1996), A Menina que Viajou para o Sol (1997), 5 De acordo com informação do sítio da União dos Escritores Brasileiros- UBE- Seção Goiás, disponível em http://www.ube br.com.br/post/atuais/augusta-faro-fleury-de-melo-> . Acesso em 15 dez. 2015. 473 Mulheres e a Literatura Brasileira Boca Benta de Paixão (2007) e foi colaboradora do jornal goianiense O Popular, na seção Almanaque, reservada ao público infanto-juvenil, desde a criação até a extinção do referido caderno. Apesar da vasta produção literária, a referida autora somente se tornou conhecida nacionalmente em 1999 após a publicação do artigo-ensaio do crítico e escritor Roberto Pompeu de Toledo, articulista da revista VEJA, sobre os contos “A Friagem” (1998) e “As Formigas” (1998), sendo que este último se tornou enredo para o curta-metragem “Dolores” (2004), dirigido por Fábio Meira, e foi o vencedor na categoria melhor ficção no Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), em 2006, segundo Rubro (2012). Outro conto de Faro adaptado para o cinema é “Gertrudes e seu homem” (2011), sob a direção de Adriana Rodrigues. Importante destacar que a escritura de Faro extrapolou não só as fronteiras nacionais, mas também as internacionais pois seu conto “A Gaiola” foi traduzido para a língua inglesa, conforme fonte acima mencionada. Augusta Faro obteve reconhecimento literário também ao ser uma das escritoras selecionadas pelo crítico e escritor Luiz Ruffato para compor o livro 25 Mulheres que estão fazendo a Nova Literatura Brasileira (2004), conforme já mencionado. Clóvis Carvalho Britto e José Humberto R. dos Anjos, no prefácio da obra Augusta Faro: contemplações críticas (2014, p. 09), conseguiram expressar com propriedade o valor literário da contística de Faro: “Augusta Faro ousou em sua narrativa curta e conseguiu ir além. Construiu um projeto sui generis: ao mesmo tempo lírica e transgressora, absurda e engajada, feminina e comprometida com os meandros da palavra. Ao optar pelo insólito e por protagonizar o feminino abriu um profícuo veio literário.” Em termos de crítica literária a respeito dos contos de Augusta, o crítico Carlos Augusto da 474 Mulheres e a Literatura Brasileira Silva, o escritor e historiador Ademir Luiz e o pós-doutor em Literatura Brasileira Ewerton Freitas ao organizarem o livro Uma Antologia do Conto Goiano Contemporâneo (2013) a incluíram. De acordo com comentário deste seleto grupo publicado no site do Jornal Opção (2012) antes do lançamento oficial do livro, Faro consegue estabelecer diálogos entre o fantástico e a realidade e o leitor, o que cativa tanto os críticos quanto o público leigo. Entretanto, talvez devido ao fato de que Augusta Faro ter se tornado conhecida nacionalmente há pouco tempo, apesar de ter iniciado sua carreira aos 14 (quatorze) anos escrevendo para jornais locais, segundo informação do sítio da União Brasileira dos Escritores- Seção Goiás, publicada em junho/2009, sua fortuna crítica não é extensa, ainda conforme apontam Clóvis Carvalho Britto e José Humberto R. dos Anjos. Esses escritores realizaram um belíssimo trabalho ao organizar o livro Augusta Faro: contemplações críticas (2014), primeira coletânea que reúne todas as publicações a respeito da contística augustina. Eles elencaram artigos publicados em periódicos e anais de eventos, sítios, jornais, trabalhos de iniciação científica, estudos e referências em livros sobre a obra de Augusta. Constataram a existência de 12 (doze) monografias, 01(uma) dissertação e 01(uma) tese. As monografias, em geral, tratam de temáticas como a condição feminina e o fantástico. A dissertação aborda os processos de inferências de leitores a partir do conto “A Gaiola”, e a tese de doutorado apresenta o fantástico na obra das autoras Ligya Fagundes Telles, Júlia Lopes de Almeida e Augusta Faro. Percebe-se, então, a necessidade que as escritoras contemporâneas possuem de divulgarem suas publicações para além de sua região. Não fosse a publicidade gratuita alcançada por meio da publicação do ensaísta- articulista da revista VEJA, Roberto Pompeu de Toledo, e a participação na 475 Mulheres e a Literatura Brasileira coletânea 25 Mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (2004), os livros da goianiense poderiam nunca ter feito parte de exames vestibulares de universidades federais. Como referido anteriormente, as duas obras de contos publicadas por Augusta Faro sofreram com as circunstâncias que usualmente atingem a produção de escritoras: foram produzidos em tiragens pequenas e pouco acessíveis. A friagem teve uma reedição que possibilitou sua indicação ao processo seletivo da Universidade Federal de Goiás em 2000 e 2001, segundo publicado no sítio da UBE – Seção Goiás, no entanto, Boca benta de paixão encontra-se esgotado. Assim, realizar um estudo sobre a autoria feminina por vezes não é tarefa fácil, a começar pela dificuldade em encontrar os livros como aconteceu no processo dessa pesquisa. Para a proposta que ora se apresenta, a intenção é mostrar, por meio dos contos “Os pecados de Rosário” e “A Gaiola”, de Augusta Faro, como a predominância de determinados temas pode demarcar uma preocupação em representar personagens femininas no contexto ficcional, partindo dessa ambiência em que as mulheres se encontram, repetidas vezes, presas nas forças de submissão que regem a sociedade. Por outro lado, o simples fato de eleger como tema da ficção a condição feminina e suas agruras, indica uma tomada de voz que repercute a necessidade de reconfigurar o lugar das mulheres, dando-lhes agência. Ao eleger como personagens mulheres presas em sistemas de opressão, a ficção de Augusta Faro pode também apontar para as necessárias modificações das investiduras de gênero que regem as relações entre homens e mulheres. Particularmente, enfocaremos o modo como são representadas as relações familiares nos contos selecionados. De acordo com Elódia Xavier, em Tudo no Feminino: a presença da mulher na narrativa brasileira contemporânea (1991), existem características comuns presentes na escritura das 476 Mulheres e a Literatura Brasileira autoras brasileiras, especificamente a partir do ano de 1960. No entanto, isso não diminuiu a qualidade dos textos e muito menos constitui uma espécie de plágio, trata-se de uma perspectiva diferente de apresentar o mundo, nas palavras da autora: A condição da mulher, vivida e transfigurada esteticamente, é um elemento estruturante nesses textos; não se trata de um simples tema literário, mas da substância mesma de que se nutre a narrativa. A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina, portanto, de uma perspectiva diferente (para não dizer marginal), com relação aos textos de autoria masculina. (XAVIER, 1991, p. 11) Assim, pode-se dizer que as mulheres escrevem a partir de suas vivências, talvez seja devido a isto que o tema “família” é contumaz na literatura de autoria feminina e que essa instituição se configura como “um produto do sistema social, ela reflete o estado de cultura desse sistema”, segundo Xavier (1998). Ainda na esteira da autora mencionada, o vocábulo família foi usado inicialmente na Roma Antiga para designar os escravos pertencentes a um homem. Com o passar do tempo, o significado da palavra foi alterado para designar o conjunto formado por um casal, seus filhos e os escravos. Hoje este conceito encontra-se em fase de transição devido às mudanças que a sociedade vivencia. Na maioria dos contos de Augusta Faro, a família é apresentada conforme o modelo patriarcal europeu vigente deste o descobrimento do Brasil, ou seja, os membros da família são submissos ao patriarca por dependerem financeiramente dele. E por isso, aceitam insultos, abusos, humilhações. No conto “Os pecados de Rosário” observa-se a problemática em torno de dois círculos familiares, os quais são família da mãe de Rosário e a sua própria. O seu avô, o senhor 477 Mulheres e a Literatura Brasileira Finório, morava nas terras do Coronel Genivaldo como agregado, e não pensou duas vezes para vender a filha ao homem mais rico da região por “meia bacia de grandes moedas douradas” (FARO, 2007, p. 52). Observa-se o uso do dispositivo da aliança, pois o pai utilizou o corpo da filha para se beneficiar, uma vez que sendo genro do coronel poderia usufruir de algum prestígio social, como bem exemplifica por Foucault (2015, p. 115): “Pode-se admitir, sem dúvida, que as relações de sexo tenham dado lugar, em toda sociedade, a um dispositivo de aliança: sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento de parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens”. A mãe de Rosário aceitou sua condição de objeto nos sentidos físico e emocional. Ela teve dez filhos, mas apenas três nasceram com vida. Na sua rotina, fabricava doces por encomenda para toda a região, mas entregava todo o lucro para o marido. Tinha permissão para sair de casa exclusivamente para rezar no convento das freiras, logo abaixo de sua casa. A única exceção era na Semana Santa, quando acompanhava o cortejo junto ao marido, sendo exibida à sociedade como uma beldade. O maior divertimento dessa senhora era a Semana Santa, quando acompanhava a procissão do enterro, de braços dados com o Coronel, maridão vistoso [...]. De toda maneira, ainda guardava em si uma beleza chamejante, que encantava a cidade [...]. A mãe, na procissão, parecia estar no céu. Sorria levemente, percorrendo todo o trajeto junto da banda de música, conduzida pelos braços do seu dono. (FARO, 2007, p. 49) O corpo da mãe de Rosário foi violentado pelo dispositivo de poder dos homens que fizeram parte de sua vida: Finório, seu pai, o grande amor Lindalvo e o Coronel Genivaldo. Tal 478 Mulheres e a Literatura Brasileira foi a opressão que ela sucumbiu diante deles, permanecendo submissa e se fazendo de invisível, como na classificação de corpos elaborada por Xavier (2007). O único momento em que a mãe de Rosário reagiu foi quando seu pai, o senhor Finório, estava à beira da morte e lhe contou que Lindalvo, seu primeiro noivo, havia morrido logo após seu casamento com o Coronel. Ele não reagiu lutando por ela, porém, sofreu resignadamente até o fim de seus dias a perda de sua amada. Depois saber que seu antigo amor havia sofrido sua perda até a morte, a mãe de Rosário começou a enxergar violetas em todos os lugares, tendo alucinações com a flor que o ex-noivo havia lhe presenteado. Em razão da moléstia, não pode mais trabalhar. Seu marido procurou médicos e benzedores para curá-la, mas ninguém conseguiu ajudá-la a se libertar do trauma. Nesse caso, pode ser estabelecido um novo diálogo com a obra de Foucault (2015), uma vez que ele apresenta a histerização do corpo da mulher no dispositivo da sexualidade. Nas palavras de Faro (2007, p. 51, grifos da autora), “Quitéria, já velhinha, dava banho na mãe de Rosário, vestia e penteava. Dizia: ‘Nunca vi tanta flor roxa no brilho dos olhos. Isso é mau agouro, gente! Isso é paixão, gente!’”. O dispositivo da confissão aparece juntamente com o restabelecimento da saúde da mãe de Rosário, quando se desvencilhou do ódio que durante muito tempo nutriu por Finório e Lindalvo. “Numa manhã chuvosa, a mãe levantouse de repente e disse: ‘Chega! Sarei! Nunca mais verei violetas, nem o rosto de meu pai, nem o de Lindalvo, Amém!’” (FARO, 2007, p. 51, grifos da autora). Percebe-se que o Coronel obteve o controle sobre sua esposa e filhos por meio do dispositivo da família. Seu discurso para com a mulher era baseado na ideologia propagada pela Igreja Católica, haja vista que as diversões da 479 Mulheres e a Literatura Brasileira esposa eram participar da missa e da procissão da Semana Santa. Em relação à filha Rosário, utilizou o mesmo discurso, mas não obteve o sucesso completo, em virtude do grau de instrução da moça, que havia morado na capital para estudar e teve a oportunidade de conviver com outras pessoas fora do círculo familiar. Foucault (2015, p. 108, grifos do autor) afirma que “as relações de poder-saber não são dadas de repartição, são ‘matrizes de transformações’”. Contudo, Rosário não escapou ilesa, porquanto julgava não ser correto entregar-se ao amor carnal, sendo a função primordial do sexo a reprodução. Uma sombra pesava-lhe dia e noite. Ascendino traria um amor tranquilo, metódico, regulado, no qual o equilíbrio geraria filhos sem rancores, puras pérolas saudáveis. Mas, para possuir tal descanso, teria de perder de vista ‘até a sombra de Antenor’. Este que, desde sempre, luzia relâmpagos em seu pudor, até molhar seus olhos, sua boca, suas partes. Sua alma em flor se encharcava. (FARO, 2007, p. 46) Quanto aos filhos, o pai os incentivava a participar de festas, orgias e prostituição, sem jamais firmarem compromisso com nenhuma moça de família ou pública. O pensamento deles era voltado para usufruir dos corpos femininos sem jamais estabelecer laços afetivos. Os meninos não deram para nada. Só estampa e macheza. Solteirões. Gostavam da folia e farra na casa das moças públicas. Lá passavam boa parte do dia. Ambos tinham suas cativas. Quando começavam a se apegar, a criar musgo, desapareciam. Antes, deixavam-nas cobertas de agrados e presentes baratos. (FARO, 2007, p. 52) 480 Mulheres e a Literatura Brasileira Nota-se que o caráter do pai foi reproduzido nos filhos do sexo masculino. Houve a absorção do arquivo de que as mulheres são meros objetos de prazer do homem, indignas de receberem amor e tampouco dinheiro. O discurso do Coronel Genivaldo é elaborado de acordo com as circunstâncias e as pessoas para as quais é dirigido. O discurso, impregnado de poder, modifica-se em conformidade com as estratégias para atingir seu objetivo. Não existe um discurso de poder de um lado e, em face dele, um outro contraposto. Os discursos são elementos ou blocos táticos no campo das correlações de forças; podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios dentro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário, circular sem mudar de forma entre estratégias opostas. (FOUCAULT, 2015, p. 111) O conto “A Gaiola” retrata bem esta condição, especialmente a da mulher, condenada a viver somente para cuidar do marido e dos filhos, sem nenhuma esperança de vida própria. Apesar de estar presa à casa, a protagonista tem consciência de sua situação, ao ponto de comparar-se a um pássaro, preso em uma gaiola. A beleza das mulheres, os olhos claros, a pele bem cuidada, o comprimento de seus cabelos, são marcas de feminilidade que chamam a atenção dos homens e que, muitas vezes, desencadeiam sua ruína. Foi o que aconteceu no conto, “o senhor”, como é chamado no texto, sentiu desejo pelo corpo da personagem e a atraiu para a gaiola, ou seja, para o casamento. Ela, sem malícia, caiu na esparrela: Porque minhas tranças estavam macias e lustrosas, a pele de meu rosto sadia, a fruta veludosa, fresca e furta-cor, deiteime naquele dia sob a telha de vidro da gaiola, na longa rede 481 Mulheres e a Literatura Brasileira cheirosa de sabão preto feito em casa mesmo. (FARO, 2001, p. 21). O marido impôs a violência simbólica 6 sobre ela logo após o matrimônio, tratando-a como uma escrava destinada a servilo, a dar-lhe filhos, satisfazer suas necessidades sexuais imediatas, e, ao que parece, sem manifestar nenhum apreço ou gentileza no cotidiano, uma vez que ele “[...] levantava a voz como se nascesse rei e o bando de filhos seus primeiros súditos.” (FARO, 2001, p. 22). Soihet (2002, p. 271), no recorte temporal do início do século XX, afirma que o homem, que não exercia cargo de comando ou não possuía nenhuma alternativa de manifestar sua autoridade, era o tipo que expressava a violência física contra a esposa. Nos moldes patriarcais, ele sentia a necessidade de assegurar seu comando, nem que seja apenas sobre a família. Como não se sabe a marcação temporal da estória, presume-se que este pode ter sido ambientado nesta época, já que a protagonista ainda não tinha acesso à pílula anticoncepcional. É notória a constatação da inexpressividade da narradora, que sabia ter sua voz silenciada e não tinha forças para reagir diante da opressão. Com o passar do tempo, a violência familiar agravou-se e seu corpo, apesar de jovem, entrou em processo de degradação: “meus olhos acharam por bem esburacarem-se parecendo por fim a dois lagos meio verdes meio azuis” (FARO, 2001, p. 21). Portanto, nota-se que estes Para Pierre Bourdieu (2005, p. 7-8) violência simbólica é “violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento 6 482 Mulheres e a Literatura Brasileira olhos retratam cansaço, noites maldormidas cuidando dos filhos, esgotamento físico, tristeza. O corpo similarmente indicou o descontentamento por meio da secagem do leite, tendo a narradora que recorrer às cabras para alimentar seu filho. Percebe-se que ela e as demais mulheres de sua família acreditavam no mito dos humores do corpo feminino e a sua consequente interferência na lactação: [...] porque desde cedo me secaram as tetas e o jeito era recorrer ao leite das cabras do quintalão de pedras e, também, porque minha bisavó, que ainda falava e orava com um fio de voz e se cobria num canto do quarto escuro, como uma mancha no ermo, dizia e repetia que crianças de dentes fortes e olhos vivos devem beber leite de cabra já que as mães se secam muito cedo, por dentro e por fora de tanto arrancarem pedacinhos de carne e sustança do suco de ossos e sangue para sovar o dia do marido que e-vem chegando [...] (FARO, 2001, p. 22). Agnès File (2003), ao explanar sobre a prática do aleitamento materno entre as mulheres dos séculos XIX e XX, relata que as teorias dos filósofos gregos influenciaram o pensamento médico e contribuíam para o estabelecimento das crenças em torno do corpo feminino. Segundo File (2003, p. 6566), Aristóteles disseminou a lenda de que o leite materno nada mais é que o sangue menstrual que “sobe aos seios, onde sofre uma elaboração que o cozinha e embranquece.” Assim, ao ser compreendido como sangue alterado – e desta forma parte do corpo- o leite era visto como um organismo vivo, que não poderia ser “contrariado” sob a pena de causar a morte da criança. As maneiras de ocasionar a mudança na qualidade do leite, transformando-o em veneno ou imprestável ao consumo, e de até mesmo levar a suspensão da produção seriam de ordem física ou psicológica, conforme 483 Mulheres e a Literatura Brasileira File (2003, p. 62): “De um lado, as comoções ao mesmo tempo físicas e morais: demasiado cansaço, calor e frio; emoções fortes: medo, ódio, desgosto, relações sexuais demasiado fogosas.” Outra perspectiva que acarretava a interrupção do aleitamento era a mulher engravidar ou menstruar. Permanecendo na esteira de File (2003, p. 62) e, ainda segundo a sabedoria popular transmitida de mãe para filha, as mulheres utilizavam como tática contraceptiva a amamentação, já que não tinham acesso à pílula anticoncepcional. Assim, a situação de uma mulher casada era resumida em “leiteira ou grávida”. Como no conto a personagem não conseguia amamentar, estava sempre grávida. Além de suportar as mazelas de sua vida, tinha que carregar o fardo de ser desrespeitada dentro de sua casa, como se pode perceber no fragmento do conto de Faro (2001, p. 22): “E alisava o bigode e a traseira das ajudantes da mãe de olhos afundados e sempre prenhe e murchada no silêncio, e mesmo que se desse corda nos relógios, eles pouco diziam.” Percebe-se que a narradora dependia economicamente de seu marido e, como estava sempre grávida, suspeita-se que tinha grande número de filhos. Com a saúde abalada, precisava do auxílio de empregadas para conseguir administrar a casa e cumprir suas obrigações domésticas: E o homem de botas chegava pronto para o almoço e queria as travessas areadas na mesa de forro branco, e que não demorasse o vinho e que não fizessem barulho para não o atrapalhar a ouvir o próprio mastigar e que não interrompessem seus pensamentos sérios, porque só ele quem pensava na casa e o resto era gente feita de barro duro e mole, mas que de alguma forma servia-lhe para ajeitar a cama, a mesa, o banho e as necessidades mais urgentes, porque as derradeiras podia arrumar nalguma esquina, de 484 Mulheres e a Literatura Brasileira preferência naquelas casas onde as moças não eram tristes e nem eram alegres[...] (FARO, 2001, p. 22-23) Verifica-se que o “senhor” não admitia atrasos no horário das refeições, tudo deveria estar perfeito quando ele chegasse. Observa-se que a violência simbólica se manifestava em todos os momentos em que ele se fazia presente, até mesmo à mesa, uma vez que impunha completa submissão a esposa e aos filhos, que deveriam permanecer em absoluto silêncio. O diálogo encontrava-se interditado naquela família, que não conversava amenidades e nem expressava opinião. Aliás, nota-se que o tirano se julgava o dono da razão, talvez por isso estivesse constantemente fechado em seu mundo. De acordo com a classificação de corpos elaborada por Elódia Xavier, o corpo da narradora pode ser enquadrado na categoria invisível, ou seja, aquele corpo que só se materializa pelas obras que realiza. Observa-se que, apesar de contar sua própria história, ela não possuía voz dentro da estrutura familiar, especialmente perante o esposo. Reconhecia sua posição subalterna ao admitir que somente seu trabalho era valorizado – “servia-lhe para ajeitar a cama, a mesa, o banho e as necessidades mais urgentes”- ou seja, a personagem tinha consciência de que não era vista como uma pessoa e que seu corpo não era suficientemente bom para ser procurado em primeiro lugar. Depois de suportar tantas adversidades, a protagonista adoeceu gravemente, tendo que se recolher em um quarto escuro tal qual sua bisavó. Embora isolada, a bisavó não concordava com tudo e reagia expondo suas opiniões, já ela não conseguia dizer nada: “E minha voz, que já pouco falava, foi emudecendo de fora para dentro e no que mais emudeci, perdi o jogo da cintura e o gosto da língua.”, segundo o fragmento do conto de Faro (2001, p. 23). 485 Mulheres e a Literatura Brasileira Deduz-se que a violência instaurou-se de modo avassalador ao ponto de modificar a forma como seu corpo era encarado por ela e pelos ‘outros’, passando do estágio invisível para imobilizado, segundo Xavier (2007). Agora todos a enxergavam, contudo não a viam como uma pessoa carente de afeto, mas sim como um estorvo a quem a família se dirigia para cumprir uma obrigação: “De vez em quando, alguém entrava no quarto e bem eu ouvia ‘precisa de alguma coisa?’ , mas o que eu precisava ninguém me dera nunca, desde que vagi primeiro.”, conforme o fragmento do conto de Faro (2001, p. 24). No final do conto, ela dá o seu testemunho e ressalta como as coisas mudaram nas gerações seguintes, como suas filhas e suas netas possuem uma vida diferente da sua, destacando mais uma das características da literatura de autoria feminina, que é a genealogia. A genealogia ocorre basicamente de dois modos, sendo o primeiro onde são apresentadas histórias que tratam da vida de mulheres que mantêm relacionamento seja por laços familiares ou não, como, por exemplo, amigas que se influenciaram no mesmo plano cronológico. A segunda forma de genealogia ocorre quando são mostradas duas gerações – com ou sem parentesco- em espaços temporais diferenciados a fim de se estabelecer uma relação de identificação como em uma linhagem. Assim, nas palavras de Lélia Almeida esta literatura genealógica seria: aquela literatura de autoria feminina, geralmente narrada em primeira pessoa, em que a protagonista, num procedimento memorialístico, resgata ou estabelece uma relação especular com outra, ou com outras mulheres, relação esta, fundamental para um afirmativo e importante desenvolvimento identitário para todas elas. Esta relação especular, que se dá numa tensão permanente de identificação e separação, é vital para o desenvolvimento da 486 Mulheres e a Literatura Brasileira identidade das personagens envolvidas. (ALMEIDA, 2009, p. 12) Em se tratando de características próprias da autoria feminina, Lúcia Castello Branco propõe uma discussão interessante na obra O que é escrita feminina (1991). Inicialmente, ela questiona se a escrita possui ou não sexo a fim de ser rotulada feminina ou masculina. Seria devido aos autores possuírem determinada genitália e, por conseguinte, sua produção ser assim classificada? Ela confunde as ideias dos leitores ao afirmar a existência de textos de autores do sexo masculino cuja escritura poderia ser categorizada como feminina e cita, por exemplo, o célebre Guimarães Rosa. Segundo Castello Branco (1991), o que cria a diferença no quesito autoria é a forma do texto ser elaborado. De acordo com Castello Branco (1991), o texto escrito por mulheres não objetiva transmitir uma mensagem, mas sim brincar com o ritmo das palavras, daí a grande dificuldade na interpretação de textos, uma vez que seu foco é proporcionar ao destinatário uma sensação de que a escrita possui vida própria, independente de seu autor: O que pretendo sugerir é que a escrita feminina vai colocar em jogo uma língua outra, uma língua mátria, que não busca o preenchimento (o Grande Sentido, conforme já foi dito), a certeza, a resolução do conflito, a comunicação da mensagem, mas a carícia que o som, o ritmo, a modulação de voz e a respiração possam produzir na orelha do leitor (como um leve sopro na orelha do bebê). (CASTELLO BRANCO, 1991, p. 49-50, grifos da autora) Na esteira da autora acima referida, o tema é outro aspecto que indica uma diferenciação entre os escritores. Para ela, as mulheres optam pelo gênero memorialístico, também 487 Mulheres e a Literatura Brasileira denominado genealógico porque existe um diálogo entre o feminino e a memória, talvez esse seja o motivo de haver tantos diários e autobiografias de autoria feminina. Ela menciona dois expoentes da literatura feminista, os quais são Simone de Beauvoir e Virgínia Wolf, que utilizaram o gênero memorialístico em suas produções, cada uma a seu modo. Simone de Beauvoir ao escrever seus diários, recorreu à técnica da memória tradicional ou oficial para que o leitor tivesse a impressão de realidade, ou seja, o fato havia acontecido verdadeiramente e era fiel a sua descrição. Já Virgínia Wolf optou pela desmemória, sendo a narrativa repleta de incertezas, pontuada de elementos ficcionais e reais, pois seu foco era provocar a curiosidade do leitor, fazê-lo refletir sobre o cotidiano. A escrita feminina visa trazer para o centro questões relegadas para o segundo plano, como as naturalizações da dominação masculina, o porquê de as mulheres não terem direito sobre o seu corpo. Segundo Castello Branco (1991): “[...] a escrita feminina consiste exatamente nesse discurso construído a partir da perda (como todo discurso, aliás), mas que não nega a perda, antes a exibe, fazendo dela seu objeto, sua matéria”. Percebe-se que Castello Branco estabelece características de uma escritura denominada feminina que se caracteriza por sua temática, que trata de assuntos relacionados à perda, tais como a morte, ou de algo vazio que necessita ser preenchido e sobre a loucura, além de matérias relacionadas ao dia a dia, além de mencionar que outro aspecto da produção feminina é a valorização do significante em detrimento do significado. Assim, esta pode ser uma proposta teórica para a compreensão da questão da autoria feminina. Nos contos de Augusta Faro, nota-se a presença de alguns destes elementos como, por exemplo, em relação à temática que versa sobre dilemas do 488 Mulheres e a Literatura Brasileira casamento, problemas enfrentados por uma mãe de família em seu cotidiano, as narrativas memorialísticas e as incertezas do amor. Contudo, no tocante a esta discussão, Elódia Xavier (1991) entende simplesmente que literatura de autoria feminina “significa, apenas, que [o livro, o texto] foi escrito por uma mulher”. Na verdade, o que realmente importa é dar lugar à literatura de autoria feminina no cânone, que sua produção não seja considerada como subliteratura ou literatura de segunda classe. Referências ALMEIDA, Lélia. Linhagens e ancestralidade na literatura de autoria feminina. Ângulo, Lorena, nº 117/8, 2009. Disponível em: <http://www.fatea.br/seer/index.php/angulo/article/ viewFile/248/205>. Acesso em: 27 maio 2016. BORGES, Luciana. 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Nesse contexto, a questão da identidade tem sido bastante discutida, seja no plano teórico ou prático, seja na criação da representação literária. De fato, antigos paradigmas da identidade tornam-se anacrônicos, ao mesmo tempo em que os padrões da cultura patriarcal (androcêntrica) são questionados e revisados, sobretudo pelos escritos de autoria feminina (mas, não somente), como é o caso da narrativa curta Essência, da paranaense Luci Collin, parte integrante da coletânea intitulada Inescritos, publicada em 2004. Nosso propósito consiste em realizar um estudo literário do conto Essência, sob uma perspectiva do feminismo socialista, por meio da operação de reflexo e de refração do meio ideológico efetuada na criação literária, conceitos inerentes à teoria bakhtiniana. Mais do que constatar a presença de um libelo feminista no interior da narrativa, em 1 Doutor em Letras, Estudos Literários; Mestre em Letras, Estudos Literários; Especialista em Pensamento Político Brasileiro; Graduado em História, todos pela UFSM. E-mail: deivisjh@hotmail.com 2 Graduanda em Psicologia, FISMA. E-mail: laisfreitaspsicologia@hotmail.com 492 Mulheres e a Literatura Brasileira uma simplória relação de causa e efeito quanto ao extraestético, almejamos perceber que função(ões) esses elementos cumprem no plano narrativo e sua relação com a realidade concreta. De uma maneira generalizante, o meio ideológico no qual se inscreve a produção do conto da escritora paranaense pode ser localizado no fenômeno da pós-modernidade, em sincronia com a globalização do final do século XX. Com o advento da Terceira Revolução Industrial, sobretudo no que tange às inovações tecnológicas no campo dos transportes, da comunicação e da informação, da eletrônica, da robótica, da biotecnologia e da informática, a velocidade e a simultaneidade tornaram-se realidades empíricas, bem como a consequente flexibilização das fronteiras territoriais e o imperativo de livre circulação de capitais e de mercadorias, como podemos ler em Santos (2003). Evidentemente, há que se considerar que os resultados do desenvolvimento tecnológico atingem os indivíduos e os Estados das mais diferentes geografias de modo bastante desigual. Apesar disso, parece-nos que há um consenso quanto à velocidade das inovações tecnológicas que conduz à busca pelo novo em todos os campos, resultando na consolidação de uma cultura consumista em escala global. A necessidade de rápida atualização de tecnologias em novos produtos de consumo constitui-se como motor para o consumismo inconsciente, com reflexos na arte, impulsionada “à inovação estética e ao experimentalismo” (JAMESON, 1991, p. 30), nem sempre fecundos. Nesse cenário, a infraestrutura capitalista deslocou-se de sua anterior localidade espacial para um espaço-tempo mundializado, seguindo sua lógica de desenvolvimento histórico. O capital assumiu uma nova forma, necessária ante seu movimento de reprodução interno, fundamentalmente 493 Mulheres e a Literatura Brasileira voltada para a exteriorização em uma globalização capitalista, segundo Mészáros (2007). Um dos efeitos nefastos dessa globalização reside na influência da lógica mercadológica em áreas superestruturais políticas e culturais, além do impacto na subjetividade dos indivíduos. Na superestrutura jurídicopolítica, o Estado nacional perde força diante do poder das grandes transnacionais, as quais dominam o capital e a informação, selecionando aquilo que é de seu interesse e encobrindo ou distorcendo o que não lhes é conveniente. Com efeito, a política é destituída do poder decisório, com consequências negativas para os cidadãos, “já que a condução do processo político passa a ser atributo das grandes empresas” (SANTOS, 2003, p. 60). A construção e a imposição de uma ética cujo centro reside no individualismo exacerbado e na cultura consumista do capital, aliado ao controle que o mercado exerce sobre as informações, conformando a opinião pública pelas diferentes mídias, contribuem decisivamente para a alienação e para efetivação de comportamentos insatisfatoriamente pautados por uma ética de valores humanitários, considerando-se o paradigma de uma dominante do capital. Contrário senso, o Estado não foi inexoravelmente substituído pelo mercado, pois de sua ação depende, em última instância, o tipo de relação que estabelece, em sua localidade, com o global. O Estado, como salienta Santos (2003), atualmente se ausenta naquilo que diz respeito ao atendimento das demandas sociais, a exemplo da educação, da saúde e da segurança, em acordo com premissas de cunho liberal privatizante, mas é atuante na abertura de suas fronteiras aos fluxos do capital, também em acordo com o neoliberalismo econômico. O resultado dessa posição assumida pela maioria dos Estados no mundo pós-moderno conflui para seu 494 Mulheres e a Literatura Brasileira enfraquecimento e descrédito perante a sociedade, a qual não possui mais uma base de sustentação de suas necessidades sociais básicas – como ocorria, em parte, no Welfare State. Dessa maneira, o medo e a insegurança tornam-se recrudescentemente intensos e, com isso, assistimos ao aumento de atitudes individualistas, pouco sensíveis aos apelos de valores humanitários, como a solidariedade e a conduta ética, e a concretização de uma “insensibilidade moral” radical (BAUMAN; DONSKIS, 2014, p. 20). O Estado já não detém o poder político, agora orientado segundo os interesses marcantis de grandes transnacionais, as quais impõem valores ligados ao capital, sobremaneira na formação de normas de conduta essencialmente individualistas: O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da ‘globalização negativa’. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. (BAUMAN, 2007, p. 30) Naturalmente, a lógica de dominação do capital na pósmodernidade engendra reflexos e refrações da infraestrutura que pretendem orientar a ação do indivíduo na condição de consumista, no plano econômico, e de conformista, no plano político. No campo da subjetividade, podemos, au passant, afirmar que o impacto das modernas tecnologias nas sociedades contemporâneas inscreve como marca a aceleração do tempo histórico, devido a mudanças econômicas, sociais e políticas a cada dia mais céleres. Assim, a tônica da pósmodernidade traduz-se na incerteza, na insegurança e na instabilidade do indivíduo, sacudido por uma maré 495 Mulheres e a Literatura Brasileira ininterrupta de novidades, as quais vão desde o empregodesemprego, crise da família tradicional e de valores, crises econômicas, intempéries climáticas, ondas migratórias, contato com diferentes culturas, até a crise da identidade do sujeito. De acordo com Hall (2011), o sujeito da Ilustração, centrado, racional e pleno por natureza, em síntese, o sujeito essencial, já não encontra ressonância na atualidade. Da mesma forma, o sujeito sociológico, ou seja, formado na interação com a sociedade, mas que ainda é localizado em um self essencial, torna-se obsoleto. Instala-se, então, uma nova concepção do sujeito, com um matiz de permanente mudança, com identidades diversas e fluidas, multifacetadas. Conforme Hall: O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. (HALL, 2011, p. 12) É, pois, nesse contexto, cuja marca indelével é a mudança, o descentramento do sujeito, a crise da identidade, a insegurança e a incerteza que se situa a narrativa Essência. Enfatizamos, no entanto, a estreita relação desse novo status quo com a transformação do capitalismo, sobretudo com o advento da globalização neoliberal. Também presente nesse meio ideológico, o feminismo (com suas diferentes vertentes) atua em prol da ressignificação das relações de poder entre os gêneros, conforme Saffioti (2001). O movimento feminista cria uma ideologia de confrontamento com o discurso dominante masculino, tendencioso a uma naturalização de práticas, teorias e moralidade depreciadoras do universo feminino. É 496 Mulheres e a Literatura Brasileira preciso perceber a ideológica imposição da identidade de gênero, pois essa é antes uma construção social, pensamento este em consonância com a premissa de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAVOIR, 1967, p. 9). Nessa mesma linha de atribuição da identidade de gênero como uma construção social, efetuada com interesses masculinos, salienta-se que: A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada. (BOURDIEU, 1999, p. 33, grifo do autor) Contra essa naturalização de um constructo social de dominação e exploração de gênero insurge-se o feminismo, sob diversos nuances, desde, pelo menos, os anos 1960. Na atual conjuntura da estrutura econômica, o feminismo encontra-se em posição ambivalente: de um lado, parte das reivindicações da segunda onda feminista foi absorvida e ressignificada em acordo com os interesses do capital, conforme Fraser (2009); de outro, continua sendo um significativo movimento social em causa da emancipação da mulher, com variantes essencialistas (a cultural, a social e a liberal, por exemplo), e interseccionistas (a marxista, a título de exemplificação), segundo Souza (2015). Neste trabalho, cujo objeto de investigação é um objeto estético, concedemos maior relevância à vertente feminista socialista (ou marxista), em razão de sua crítica ao patriarcado aliada à crítica ao capitalismo e, especialmente, por entendermos que a obra literária solicita tal teoria. Acreditamos que a narrativa Essência dialoga de maneira bastante prolífica com o meio ideológico descrito, sobremodo 497 Mulheres e a Literatura Brasileira no que tange à crise de identidade, ao capitalismo e ao feminismo, inter-relacionados. Por meio das operações de reflexo e de refração, os elementos extraliterários são estetizados, expressando um sentimento da autora em relação ao mundo. O ato estético, então, constrói um objeto-signo portador de uma ideologia, posto que a literatura é uma área de criação ideológica, e entendendo-se ideologia como “as ideias, os valores e os sentimentos por meio dos quais os homens vivem e concebem a sociedade em diversas épocas”, conforme Eagleton (2011, p. 10). O meio ideológico pode ser compreendido como uma realidade concreta que circunda o homem, formada por objetos-signo materiais, produtos da ação humana em cada área de criação ideológica como a política, a religião, a moral, as leis e a arte e a cultura, aqui delimitada à literatura. Como esse meio é apreendido a partir de um dado contexto material, envolvendo as relações da infraestrutura e das superestruturas, é importante que frisemos a pluralidade de ideologias, uma vez que as relações sociais são atravessadas por antagonismos em um constante devir dialético. Conforme Medviédev: O meio ideológico é sempre dado no seu vir a ser dialético vivo; nele, sempre existem contradições que, uma vez superadas, reaparecem. Mas para cada coletividade, em dada época do seu desenvolvimento histórico, esse meio se manifesta em uma totalidade concreta, singular e única, reunindo em uma síntese viva e imediata a ciência, a arte, a moral e outras ideologias. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 57) Assim, o meio ideológico constitui uma totalidade determinada, à qual corresponde uma base econômica e superestruturas específicas, nas quais são criados objetossigno portadores de carga ideológica. São objetos formalizados em um material, e não abstrações metafísicas. Por isso, a 498 Mulheres e a Literatura Brasileira referência ao contexto material, concreto e a possibilidade de estudarmos os objetos-signo que formam o meio ideológico, como o conto de Luci Collin. Podemos ponderar, então, que o meio ideológico é formado por consciências sociais múltiplas, complementares ou conflitantes, apreensíveis em objetos-signo formalizados nas áreas de criação ideológica estáveis, ou seja, nas superestruturas de um dado momento histórico. A produção artística de Luci Collin, nesse plano conjectural, é entendida como uma consciência social expressa pela palavra e estabilizada pela superestrutura artística, sobre a totalidade na qual a escritora estava inserida. A obra faz parte do meio ideológico, é influenciada por ele e, por sua vez, também age sobre o mesmo. Assim, podemos definir de modo apropriado o meio ideológico como: O homem social está rodeado de fenômenos ideológicos, de ‘objetos-signo’ dos mais diversos tipos e categorias: de palavras realizadas nas suas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e outras; de afirmações científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim por diante. Tudo isso em seu conjunto constitui o meio ideológico que envolve o homem por todos os lados em um círculo denso. Precisamente nesse meio vive e se desenvolve sua consciência. A consciência humana não toca a existência diretamente, mas através do mundo ideológico que a rodeia. (MEDVIÉDEV, 2012, p. 56) A literatura trabalha com esse meio ideológico, com as consciências sociais, com as ideologias criadas pelas demais superestruturas ideológicas. Ela está presente, corporificada nesse ambiente que circunda o homem de forma relativamente independente e materializa-se através de obras verbais construídas de modo específico, em diálogo com os 499 Mulheres e a Literatura Brasileira demais objetos-signos frutos de outras superestruturas. Ao trabalhar com o meio ideológico, a literatura labora com os reflexos e refrações das outras áreas de criação de ideologias, ou seja, a política, o direito, a moral, a religião, entre outras, as quais compõem o meio ideológico de uma determinada época. Porém, a literatura não é um simples reflexo de um mundo ideológico, de elementos extraestéticos incorporados mecanicamente ao texto literário. Ela reflete e refrata de forma peculiar, de forma estética esses elementos, ou seja, ela reordena em um outro plano axiológico os demais reflexos e refrações ideológicos materializadas nos objetos-signo do meio circundante. Na teoria bakhtiniana, compreende-se a obra literária para além de seu dado físico, factual. Bakhtin (2010) entende a obra como um objeto estético, o qual envolve a ação criadora – o ato estético ou ato artístico –, a organização dos conteúdos segundo um princípio estrutural e axiológico e a escolha de uma forma e de um material que melhor permitam a síntese entre o conteúdo e a forma. Assim, temos a organização arquitetônica da obra, a qual envolve as formas dos conteúdos no texto e a forma composicional, realizados com um material. A obra é entendida, então, como objeto estético, que reúne conteúdo, como atividade estética, no interior da obra; uma forma apropriada para realização desse conteúdo (e que, pari passu, também constitui posição axiológica) e um material que torna toda essa construção exteriorizada, materializada como um obejto-signo. Assim, de acordo com o mesmo Bakhtin (2010, p.37), “o conteúdo e a forma se interpenetram”. A concepção da obra literária como objeto estético permite que afirmemos a existência de um conteúdo axiológico presente, extraestético, mas reorganizado esteticamente, e a forma atuando com a finalidade de permitir a realização desse conteúdo, o qual, por fim, é concretizado com o material. 500 Mulheres e a Literatura Brasileira Desse modo, a realidade da vivência material dos homens, a qual é constituída por objetos-signo, é transposta para outra realidade, a da obra literária. Essa transposição é efetuada pelo autor-criador situado axiologicamente segundo um recorte do autor-pessoa. Logo, a obra literária, tanto nas questões formais, quanto nas de conteúdo constitui um todo significativo, interagente no meio ideológico. O reflexo e a refração efetuados no ato estético podem ser compreendidos como a reorganização dos valores, dos acontecimentos, das ideias, dos homens em suas relações sociais cotidianas no plano estético. Ao refratar, o ato estético cria outra imagem de uma imagem já refratada no meio ideológico, tornando-se representação literária. Os elementos extraestéticos são, podemos afirmar, estetizados, segundo Medviédev (2012). Dessa maneira, entendemos o reflexo e a refração, operados no ato estético, como a reorganização dos reflexos e refrações contidos nos objetos-signo do meio ideológico, segundo uma posição axiológica do artista em relação a esse meio. Importa frisar que, ao refletir e refratar esses objetossigno extraestéticos, o ato estético cria novos objetos-signo, agora estéticos, ou seja, as obras literárias. O universo ficcional da escritora paranaense, em nossa avaliação, pode ser explicado nesses parâmetros. Ele é construído em um específico meio ideológico, reflete e refrata essa realidade concreta pela ação estética da autora, posicionada axiologicamente, e, conforme Bakhtin (2010, p. 33), “Transfere essa realidade conhecida e avaliada para um outro plano axiológico, submete-a a uma nova unidade, ordena-a de modo novo”, criando a realidade estética da obra, aqui, no caso, delimitada ao conto Essência – o objeto de investigação. O conto Essência apresenta uma narradora autodiegética que observa seus vestidos para escolher qual deles usará em 501 Mulheres e a Literatura Brasileira uma festa. Para cada cor diferente dos vestidos, investe-se de uma específica identidade, imaginando cenários e diálogos representativos da identidade momentaneamente assumida: Que vestido afinal? Com o verde me chamarei “Gisela Eloah”, serei uma mulher decidida, com três filhos, de pais diferentes, claro. Serei escultora, ou melhor, administro os bens de papai. “Papai” é ótimo... ninguém mais fala “papai”: filhas, será? Ainda mais três! Ah, muito cansativo... Não, o verde me obrigaria a ser decidida demais... O rosa! Direi que meu nome é “Margareth”, com acento na primeira sílaba. “Não, querida, jamais tive apelidos”: “Sou um encanto! Todas me invejam”. Pela voz suave saberão que sou viúva de um eminente professor de História Antiga. Jovem e viúva! Tem algo mais pungente? “Será que dá suas... escapadas?” O promotor, maldoso, perguntará. “Não! A loira magérrima assegura, é castíssima!” Ah, não, castíssima nunca! Não serei viúva! Sou casada com um político brilhante, envolvido num desses escândalos da moda. Não, para ser esposa do político corrupto deverei usar o azul cobalto e mudar de nome. Como “Margareth” terei a maneira de sentar delicadamente ensaiada. (COLLIN, 2004, p.133) Em uma primeira percepção de leitura, podemos notar a construção de uma identidade relacionada à cor do vestido e àquilo que ela, a narradora, acredita que os outros (a sociedade) lhe creditarão. É um processo de atribuição identitária que passa pelo confrontamento com a alteridade, seja em relação à cor, seja quanto aos estereótipos sociais. Esse modelo aquiesce com o pensamento de Landowski (2002, p. 4 – grifo do autor), o qual afirma que “a emergência do sentimento de uma ‘identidade’ parece passar necessariamente pela intermediação de uma ‘alteridade’ a ser construída”. Precisamente, a identidade para cada cor de vestido passa por 502 Mulheres e a Literatura Brasileira um processo relacional de diferença, ou seja, diferentes cores correspondem a diferentes identidades, além da relação com o que ela julga que a sociedade lhe imputará. Consequentemente, é viável inferir que a narrativa trabalha com a identidade fragmentada, típica do cenário pós-moderno, de maneira estética – a exemplo do recurso aos vestidos (suas cores) e ao imaginário da narradora, os quais cumprem a função de instalar um sentimento de dúvida, de incerteza quanto à essência feminina. Naturalmente, ao cotejar o paratexto titular com a narrativa, nota-se a inexistência de uma essência imutável da identidade feminina, posto que em contínua construção, aproximando-se do devir dialético, isto é, no momento em que o ser é, já o deixa de ser, para que o não-ser enseje o ser, e assim em perpetuum mobile. O sentimento de uma identidade fluida, não centrada, incerta perpassa toda a narrativa e se relaciona com o meio ideológico do mundo pós-moderno, mormente no que diz respeito à crise de identidade. Segundo Teixeira (2008, p. 340), “Na narrativa, há a construção de um sujeito à procura de uma identidade perdida”, de modo que a própria linguagem e a estrutura textual sustentam a intensificação da sensação de indecisão. Por exemplo, ao observar o vestido verde, a narradora imagina prospectivamente, atente-se para o verbo no futuro do presente, a condição de uma mulher decidida, com três filhos. Em seguida, reflete acerca do trabalho que os filhos iriam causar e conclui que o verde lhe obrigaria a ser decidida demais. Há uma ironia produzida pelo alto contraste entre o discurso e a prática, ou seja, a discrepância entre a afirmação de que seria uma mulher decidida e a sua rápida mudança de opinião, o que revela uma mulher indecisa. De modo semelhante, ao conjecturar sobre o que seria com o vestido rosa, novamente produz uma contradição que reforça a sensação de indefinição. Afirma que será jovem, 503 Mulheres e a Literatura Brasileira viúva e casta, mas, na sequência da narrativa, recusa a viuvez e a castidade, para se aproximar de uma identidade ligada a um político corrupto, o que, no entanto, somente poderia o fazer com a troca da cor do vestido para azul cobalto e do nome próprio. De fato, esta primeira percepção de leitura nos induz ao reconhecimento da fragmentação identitária da mulher, conforme podemos ler em Moura (2012). Em um segundo momento, não hierarquizado e tampouco desvinculado do anterior, o conto solicita a análise por um viés feminista. Efetivamente, as múltiplas identidades assumidas pela narradora a cada cor de vestido informam sobre diferentes “mulheres” que ela poderia ser. Assim, com o vestido verde, tem-se uma mulher decidida, com três filhos de pais diferentes, em um enunciado que sinaliza para o desejo de liberdade sexual da protagonista, em franca antítese aos valores da cultural patriarcal, os quais constroem uma narrativa em que o papel sexual das mulheres deve se pautar pela monogamia. Com o vestido rosa, ela exclama que jamais seria castíssima, reforçando o ideal de liberação sexual feminino, em um diálogo tenso com a realidade androcêntrica do meio ideológico da pós-modernidade. Tais expressões, certamente, confluem para a valorização axiológica de um ideal de emancipação sexual da mulher em posição antagônica às ideologias conservadoras patriarcais, as quais (ainda) proclamam a necessidade da privação sexual da mulher, com o aprisionamento, o enclausuramento da sexualidade feminina. A conservação da dominação masculina, por meio de uma família tradicional, nos moldes da religiosidade judaico-cristã, com um matrimônio indissolúvel e com um papel de submissão ao feminino é, então, questionada pela voz da narradora, pois evidencia uma mulher com um desejo de liberdade sexual. Não se trata, todavia, de um mero reflexo da realidade concreta no texto literário. A posição axiológica em 504 Mulheres e a Literatura Brasileira causa da liberdade feminina é refratada esteticamente, isto é, por meio da subjetividade da narradora, diferentes identidades femininas vão surgindo como possíveis, desde as significativamente contrastantes do universo patriarcal, até aquelas mais acomodadas a uma imagem da mulher segundo os parâmetros do mesmo patriarcalismo repressor – veja-se o caso, por exemplo, do contraste entre a identidade que assumiria com o vestido verde e a que teria com o vestido lilás: Direi que toco harpa divinamente e ninguém poderá comprovar porque nunca há uma harpa dando sopa num cantinho [...] Conhecerei licores em profundidade mas beberei apenas soda. A anfitriã sofrerá por não ter soda nenhuma naquele recinto. Meu sorriso, enigmático. (COLLIN, 2004, p. 134) A harmonia com certos modelos de conduta feminina, impostos pelo patriarcado, como saber tocar um instrumento musical e o conhecimento de bebidas alcoólicas finas, sem, no entanto, bebê-las, encontra acolhida na identidade do vestido lilás. Porém, a um só tempo, contraria a dominação masculina ao sugerir que não sabe tocar instrumento algum, tampouco conhece bebidas. Logo, sua refinada posição intelectual e parcimônia em relação às bebidas – exigida pela cultura androcêntrica – é obliterada pela contradição interposta pelo fato não saber tocar nenhum instrumento, o que revela uma ação de não aceitação tácita da cultura masculina impositiva. De modo similar, ela confundirá as pessoas ao não aceitar nenhuma bebida que não seja soda, possivelmente em uma festa, restando seu sorriso: enigmático. De fato, os perfis traçados a cada cor de vestido não satisfazem exclusivamente a este ou aquele estereótipo, seja ele do patriarcado, seja do feminismo. Importante destacar que a narrativa não se encerra hermeticamente, mas se abre para 505 Mulheres e a Literatura Brasileira outras possibilidades semânticas. Em nosso entendimento, ela cria uma ideologia do feminino em tensão com a ideologia masculina, a qual veicula uma imagem da mulher em termos bipolares: ou má, pecadora, demoníaca, ou boa, casta, santa. Para além desse reducionismo, a narrativa busca aproximar-se de uma essência feminina, nem santa, nem demônio, mas em busca de sua identidade. Ao fim, conclui-se da narrativa que não há, permanentemente, a essência feminina definitiva e acabada, mas sim em construção constante no diálogo com ela mesma e com a sociedade. Afinal, ao ler todo o conto, o leitor ainda fica em dúvida sobre qual é a identidade da narradora, pois sabemos apenas daquilo que ela poderia ser. Desse modo, identidade e feminismo são componentes vitais na construção do sentimento de incerteza e de emancipação contidos na narrativa. O último segmento discursivo aponta para a continuidade da dúvida, da incerteza, das múltiplas identidades possíveis e em constante transformação, especialmente pelo uso do vocábulo “talvez”. Depois de iniciar o conto pelo vestido verde, no desfecho a protagonista retorna ao mesmo “É..., pensando bem, talvez o verde mesmo. Agora só falta escolher o perfume” (COLLIN, 2004, p. 137). O retorno ao vestido verde pode não ser fortuito, afinal, se considerarmos a tradicional simbologia das cores, não será necessário maior rigor de pesquisa para se recordar que o verde simboliza a esperança: a esperança de uma mulher decidida, não submissa aos dogmas androcêntricos. Apesar de aquiescermos com a maior parte da crítica literária acerca da presença da fragmentação identitária e do feminismo na obra de Luci Collin, queremos enfatizar a necessidade de se ultrapassar uma posição crítica que limita a riqueza polissêmica do conto Essência aos elementos de um feminismo cultural porventura excessivamente monolítico. Parece-nos que a narrativa revela algo mais que a simples 506 Mulheres e a Literatura Brasileira questão do descentramento do sujeito e da subversão de valores do patriarcado, solicitando que olhemos criticamente para um extrato mais profundo, em direção ao elemento de base estrutural que subjaz na narrativa. A narradora, considerando-se a sua expressão discursiva subjetiva e a quantidade de vestidos que possui, pode ser incluída em uma condição de classe social privilegiada, com um razoável poder aquisitivo. Em outras palavras, ela não está entre as mulheres consideradas pobres ou miseráveis, fato que auxilia a explicar a ausência de qualquer reflexão mais aprofundada em relação às desigualdades de gênero. As projeções prospectivas de sua imaginação, atribuindo-se identidades diferentes para cada cor de vestido, não questionam o fato de que atribui o ser ao ter, aspecto sintomático do capitalismo. Assim, se, por um lado, as imagens identitárias projetadas pela narradora questionam certos valores da cultura patriarcal, de outro lado, ela não se indaga sobre sua vinculação passiva ao ideário consumista. Poderíamos afirmar, sem a pretensão de uma verdade derradeira, que a crítica social presente na narrativa passa pela questão da fragmentação da identidade e da emancipação feminina, mas não se circunscreve aos fatores culturais. O que parece estar em pauta, em uma espécie de crítica social de segunda ordem, mais entranhada no conto, é a limitação da consciência social da narradora, o que a impede de chegar a uma essência feminina – essência no sentido de autoconhecimento e transformação em devir dialético. A sua condição de classe, economicamente viável, funciona como um óbice à percepção de uma dominação primeira, do capital, que constrói a submissão segunda, da mulher enquanto gênero. Desse modo, considerando-se acertada a hipótese de que a condição de classe “rica” oblitera a autoconsciência da narradora, impedindo-a de perceber a sua submissão ao 507 Mulheres e a Literatura Brasileira consumismo, podemos sugerir que a posição axiológica mais profunda contida na narrativa se desvela ao relacionarmos a consciência da narradora com o mundo concreto, extraliterário. Com esse procedimento, percebe-se a insuficiência da consciência social da narradora, subjugada aos valores do capital, e, dialeticamente, o conto erige uma crítica ao feminismo que desconecta a luta contra a exploração personalizada do combate ao capitalismo, ou seja, que separa os aspectos interpessoais (sociais) dos estruturais. Portanto, cremos que a submissão da narradora ao modelo capitalista de identidade, ou seja, que liga o ser ao ter, deve ser o critério sine qua non para a análise do conto Essência, sob pena de perda da potência axiológica – em prol da legítima emancipação feminina – para posições hermenêuticas essencialistas (feminismo cultural, por exemplo). A narrativa nos autoriza a dialogar com o feminismo marxista e asseverar que a verdadeira igualdade entre os gêneros somente pode ser construída com uma crítica ao sistema do capital aliada ao combate às formas de dominação e exploração derivadas da base estrutural. Então, o conto propicia uma crítica de segunda ordem, ou seja, que, embora a narradora projete imagens insubordinadas a alguns valores patriarcais, sua consciência crítica é limitada, pois moldada em acordo com a cultura do capital. Assim, explica-se a ambivalência de algumas identidades assumidas, misturando-se aspectos coniventes ao patriarcado e vice-versa. Conforme Fraser (2009, p. 25) “O capitalismo desorganizado vende gato por lebre ao elaborar uma nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero”, sendo que a narrativa de Luci Collin permite um vislumbre desse embuste do capital, como um objeto-signo do meio ideológico atual recortado e isolado pela autora; transformado esteticamente pelas operações de reflexo e de 508 Mulheres e a Literatura Brasileira refração; desvelando uma posição axiológica de valoração de um feminismo interseccionista. Referências BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética (A Teoria do Romance). Tradução de Aurora Bernardini et al. 6.ed. 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(A guerra não tem rosto de mulher - Svetlana Aleksiévitch) Na obra Paisagens da memória (2005), Ruth Klüger, sobrevivente de campos de concentração nazistas, narra a sua infância na Áustria, já depois da anexação, o sofrimento de casos dolorosos de antissemitismo, a passagem posterior por campos de concentração e a sua ida para os Estados Unidos, após o fim da guerra. A narrativa perpassa um tempo diverso de escrita après-coup, quando retorna a Alemanha, décadas depois, e ao sofrer um acidente decide relatar as suas experiências traumáticas passadas. Agora, já sem muito tempo, não pode mais furtar-se do dizer, do testemunhar, mesmo diante do atraso, reflexo da dificuldade da escrita do trauma. Narra, então, a partir do fragmentário, do “passado encravado” ou recalcado, que escapa agora pela tangente. Uma das questões centrais na obra de Klüger é a perspectiva de gênero no testemunho: a sobrevivente sente 1 Doutoranda do Programa de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: luagillc@gmail.com. 511 Mulheres e a Literatura Brasileira que o relato de suas experiências traumáticas e da guerra não cabe na gramática das mulheres. Também tenho o que contar, quer dizer, tenho histórias a contar caso alguém pergunte, mas só poucos o fazem. As guerras pertencem aos homens, e assim também as lembranças de guerra. Ainda mais o fascismo, mesmo que se tenha sido contra ou a favor: puro assunto para homens. Além disso: mulheres não têm passado. Ou não têm que ter algum. É indelicado, quase indecente. (KLÜGER, 2005, p.13) Seja na Alemanha pós-guerra, a partir do relato de Klüger, sejam as mulheres do Exército russo – como na obra de Svetlana Aleksiévitch, A guerra não tem rosto de mulher (2016), também citada na epígrafe –, ou ainda no contexto latinoamericano, pós-ditadura, as autobiografias, os relatos, os testemunhos, em suma, as possibilidades de narração, divisão e inscrição da experiência traumática, por parte das mulheres, são extremamente limitadas. Me deterei aqui, especialmente, no contexto da ditadura civil-militar brasileira, a partir de duas obras da literatura contemporânea, pós-ditadura, K. – relato de uma busca (2011), de Bernardo Kucinski, e Volto semana que vem (2015), de Maria Pilla, que, assim como a de Ruth Klüger, demoraram mais de quarenta anos para serem escritas. A partir do distanciamento temporal de décadas, os textos procuram agora ressignificar o passado, apoiados em outros lugares e tempos de enunciação. A definição de pós-ditadura se dá não porque se considera superado o tempo histórico, ou tendo em vista que se encontra no passado, mas porque, ao contrário, ao habitar o presente, ainda habita a catástrofe e todas as consequências desse passado do qual não consegue se desvencilhar. As obras interessam para pensar, nesse contexto específico, como a literatura contemporânea inscreve, a partir do testemunho, a 512 Mulheres e a Literatura Brasileira resistência de personagens e narradoras mulheres que, para além da oposição à repressão, tiveram também de opor-se a outra violência, a de gênero, que se incorpora àquilo que não consegue ser dito ou dividido: o trauma. Na sua definição mais geral e em direto diálogo com o conceito cunhado por Freud (2010), a contemporânea Cathy Caruth define o trauma como “a resposta a um evento ou eventos violentos inesperados ou arrebatadores, que não são inteiramente compreendidos quando acontecem, mas retornam mais tarde em flashbacks, pesadelos e outros fenômenos repetitivos” (2000, p.111). O evento permanece: Não disponível para a consciência, mas intromete-se sempre na visão – [a repetição] sugere, portanto, uma relação maior com o evento, que se estende para além do que pode ser visto ou conhecido e que está intrinsecamente ligado ao atraso e à incompreensão que permanece no centro desta forma repetitiva de visão. (CARUTH, 1996, p.92) A experiência traumática traz consigo um paradoxo, de acordo com a autora, ao mesmo tempo em que possui uma visão direta do evento, a qual pode fazer com que o traumatizado não consiga compreendê-lo, de outro, essa mesma imediatez pode gerar um atraso. O trauma é, para Caruth (1996), muito mais do que uma patologia ou uma ferida, mas um machucado que quer contar a sua história, que grita, mas que não consegue, pois se trata de uma verdade não disponível, seja para quem a viveu, seja diante da (im)possibilidade de descrição através da linguagem, essa tão restrita e resistente frente ao irrepresentável. As obras, nas suas estruturas fragmentárias e lacunares do indizível, tentam lidar com processos de reelaboração da matéria histórica e traumática para a forma literária. Constroem-se exatamente sobre o vazio, o irreparável, o 513 Mulheres e a Literatura Brasileira irrestituível. A escrita, ou a elaboração simbólica, possibilita um contar(se) ou recontar(se), ou seja, uma posição diante do traumático imposto pela violência e uma garantia de modos de transmissão, a partir dos rastros. De acordo com SeligmannSilva, “a imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração”. A literatura seria, dessa forma, chamada “diante do trauma para prestar-lhe serviço” (2008, p.70). Nesse sentido, trabalho com o conceito de “teor testemunhal”, cunhado por Seligmann-Silva (2000), o qual se constitui a partir do entendimento – fundado nas proposições de Walter Benjamin – de que devemos ler a “história como trauma”, ou seja, ao contrário do paradigma positivista e da noção de progresso evolutivo, o autor defende a catástrofe e o choque como responsáveis pelo “corte da história no século XX” e como parte da própria estrutura dos processos sociais. Diante de tais processos violentos, a própria maneira de experienciar a realidade perpassa o conceito psicanalítico do trauma. O testemunho é compreendido nesse sentido não como um gênero específico, mas como “uma face da literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e faz com que a história da literatura [...] seja revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o ‘real’” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.373. O real aqui não diz respeito à realidade, mas “deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p.373). Isto não quer dizer que o sobrevivente se furte do testemunho, mas o ato de contar só pode existir a partir da falta, dos vazios, do silêncio, das zonas de não-ditos. A literatura serve, dessa forma, como uma outra forma de história, como uma espécie 514 Mulheres e a Literatura Brasileira de retradução, onde o “não formulado” pode se revelar, não como verdade, mas como versão. No caso de K. – relato de uma busca (2011), o real traumático da perda da irmã é reconstruído no testemunho e na literatura. Bernardo Kucinski teve a irmã desaparecida no período da ditadura civil-militar e procurou, por meio da ficção literária, contar a sua tragédia familiar. O livro narra a história do pai K., um velho judeu, na busca incansável (não é por acaso que o título remete ao labirinto kafkiano) por sua filha A., desaparecida em 1974, junto de seu marido. Da parte do irmão, há o caráter moral e ético, como sobrevivente, em contar essa história silenciada, através da narração. A matéria historiográfica se torna origem para o relato e o cuidado formal e estético faz com que se constitua matéria literária. Não se opõem, mas ao contrário, se complementam. Diante da necessidade de contar tal história, o autor procura estabelecer, na forma literária, a dificuldade de “dizer o indizível”, ou seja, de construir e elaborar a cena traumática, a partir do fragmentário da narração. Diante dos limites e das insuficiências da linguagem em dar conta do vivido, há ainda outra forma de simbolização do trauma, que remete ao irrepresentável, mas que implica outra maneira de “dizer” quem sabe ainda mais forte: o silêncio, o apagamento, a ausência. Dori Laub (1995) afirma que o imperativo do contar habita a impossibilidade e, portanto, o silêncio acaba prevalecendo. De acordo com o psicanalista, durante o processo de constituição do Fortunoff Video Archive – arquivo com entrevistas com sobreviventes da Shoah2 - os 2 É importante dizer aqui que quando se debate a questão do trauma e do testemunho, a Shoah e as reflexões que advêm desse momento histórico, pela sua dimensão e magnitude, são incontornáveis. 515 Mulheres e a Literatura Brasileira entrevistadores perceberam haver entre os sobreviventes aqueles que nada falaram, ou aqueles que muito falaram, mas mesmo quarenta anos depois do ocorrido, todos concordam ter dito muito pouco durante o hiato entre o acontecido e o testemunho. Michael Pollak também debate a questão do silêncio, no caso da Shoah, e afirma que, na condição das vítimas, as razões de silenciamento são muito complexas e normalmente têm a ver com a própria estrutura do testemunho, ou seja, para poder contar, é necessário que haja uma escuta, muitas vezes negada Para Pollak, há ainda outras razões políticas e familiares que fazem com que o silêncio seja rompido, mas “no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento” (1989, p.7). Entretanto, “as fronteiras desses silêncios [...] não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento” (POLLAK, 1989, p.8). Bernardo Kucinski também discorre sobre a dificuldade de escrever sobre o tema, que quando se deu, assumiu uma espécie de catarse 3. Ainda que tenha quebrado o silêncio de mais de quarenta anos, de alguma forma, as zonas de nãoditos, ou de suspensão, permanecem. A narração fragmentária e lacunar se configura na própria forma literária. Na obra de Kucinski, os silêncios estão muito relacionados com o contexto de desaparecimento, com a culpa e com o luto, e particularmente, com uma perspectiva de gênero. Uma ausência extremamente presente na narrativa é A., Muitos dos trabalhos e teorias que serão levantados aqui partem desse evento sem precedentes para pensar e refletir o contexto brasileiro da ditadura civil-militar. 3 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/dw/2013/10/1353 340-bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram.shtml. Acesso em: junho de 2016. 516 Mulheres e a Literatura Brasileira personagem central, e sobre a qual constam pouquíssimas descrições. O leitor não tem acesso a uma construção complexa da personagem, sua descrição psíquica ou física, ou a sua voz narrativa – como outros personagens – (aparece apenas em uma carta ficcional enviada para uma amiga). Ainda que seja uma das personagens principais, a ausência “real”, ou seja, o desaparecimento se transporta para a narrativa, de maneira que a ausência se configura também na obra literária. Em um contexto de presença da ausência, bem como ausência da presença, a personagem é construída. O próprio Kucinski, em entrevista ao Estadão4, afirmou que entende a necessidade de um livro sobre o perfil da irmã, uma pessoa de personalidade muito forte, a qual até o momento ignorava. No livro mais recente, Os visitantes (2016)5, um amigo também aponta para o fato de que a irmã, em K., é pouco descrita, e quando o é, é pela voz da mãe, chamando-a de feia. O diálogo entre os dois remete ao silêncio e ao exercício de metaficção: O pior é que você revela tão pouco da personalidade dela e ainda vai dizer que era feia! Ponderei que o capítulo da carta a uma amiga revela bastante. De novo, ele contestou: Revela muito pouco. Não que seja um defeito, veja bem, é 4 Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura, bernardo-kucinski-reflete-sobre-k-a-ditadura-a-culpa-o-luto-e-suairma-desaparecida,10000062690. Acesso em: 16 de julho de 2016. 5 Recorro a esta obra porque acredito que ilumina uma série de questões sobre o processo de escrita de K. - relato de uma busca (2011). Neste livro, ao contrário do anterior, Kucinski não se apaga, mas ao contrário, é personagem principal, o que torna mais clara a sua relação com a matéria testemunhal narrada na obra primeira. O livro trata da recepção de K., bem como tenta esclarecer questões pendentes. 517 Mulheres e a Literatura Brasileira interessante a forma como você elide a presença dela, embora tudo seja sobre ela e por causa dela; é como se a sua ausência na narrativa correspondesse à sua supressão na vida real. (KUCINSKI, 2016, p.26) O apagamento da sua personalidade parece se dar, para além da construção do irmão escritor, para o próprio pai que, na narrativa desconhecia a filha. A cena de busca de documentos e fotos é uma das únicas em que o narrador permite um certo conhecimento, por parte do leitor, da personagem. A construção de sua personalidade e das suas escolhas perpassa, depois de desaparecida e morta, pela descoberta de uma caixa de lembranças, documentos e fotos guardadas. K. naquele momento redescobre uma filha que é, ao seu ver, frágil. Enquanto observa as fotos 6, percebe o quanto desconhecia de sua vida e de suas escolhas. As fotografias estabelecem, nesse sentido, uma relação direta com a experiência da morte, ou seja, dizem respeito ao inacessível, àquilo que foi, em determinado momento, mas que agora se configura como um vestígio de um passado que escapa, nos termos de Barthes (1989) e de Sontag (2003). A definição de A. perpassa o filtro do presente e o olhar distanciado com, inclusive, outra régua de avaliação e dotado pelas informações do presente histórico, ou seja, são identidades construídas no futuro do pretérito. A definição das identidades dos desaparecidos ou das vítimas, como discursos, é completamente modificada pelo olhar da perda e da condição de sobrevivente, ou seja, à medida que a narração avança, os mortos e/ou desaparecidos também são 6 Ao apresentar as fotos dialoga também com a exposição de Gustavo Germano, A’sências, sobre a qual tratei anteriormente. O narrador afirma que as fotos que encontra são de uma viagem a Paraty, foto essa utilizada pelo fotógrafo argentino. 518 Mulheres e a Literatura Brasileira construídos, seja a partir de uma re-montagem de suas identidades, baseada na rememoração incansável de quem foram, ou ainda de uma tentativa de reconstrução do que poderiam ter sido ou ter feito, caso ainda estivessem vivos. A rememoração dos mortos perpassa esses dois movimentos, portanto, a lembrança e a reconstrução das identidades perdidas, no “futuro do pretérito”. As identidades construídas no futuro do pretérito dizem respeito a uma impossibilidade, por parte dos sobreviventes, de lidar com a perda abrupta com o fim de vidas que não deveriam ter sido interrompidas e que, portanto, como forma de repetição da perda traumática, simbolizam a ausência que permanece e que marca a impossibilidade do devir. Bernardo Kucinski, em seu capítulo inicial, assinado pelo autor, discorre sobre cartas de bancos que continuam a chegar para sua irmã na sua casa, no tempo da escrita, mais de quarenta anos depois de seu desaparecimento. A carta mais recente continha um cartão internacional e Kucinski afirma que tais recebimentos marcam “tudo o que ela hoje mereceria, se sua vida não tivesse sido interrompida” (KUCINSKI, 2014, p.9). Ao final, é a possibilidade de ser alguém que nunca foi e que nunca será. Não conheceu a casa do irmão, “nunca subiu os degraus íngremes do jardim da frente. Nunca conheceu meus filhos. Nunca pôde ser a tia de seus sobrinhos” (KUCINSKI, 2014, p.11). Em um exercício de escrita ficcional, o narrador imagina como teriam sido os últimos minutos antes de serem pegos pelos militares e mortos. O questionamento do papel como guerrilheira e a construção do capítulo perpassa a tentativa (ou vontade) de um irmão de imaginar tudo o que poderiam ter feito para salvar-se. A resposta à pergunta “o que fazer” diante da impossibilidade de permanecer no esconderijo é apresentada, no futuro do pretérito, pelo narrador: “teria bastado aceitar a 519 Mulheres e a Literatura Brasileira derrota e suspender a luta. Recolher tudo” (KUCINSKI, 2014, p.25). Se fossem rápidos, podiam ainda “salvar a metade normal de suas vidas, ou seja, a própria vida” (KUCINSKI, 2014, p.26). Os guerrilheiros poderiam abandonar tudo, refugiar-se, procurar ajuda na igreja, na família, desde que assumissem a derrota. O narrador afirma que ainda que décadas depois os grupos de luta armada tenham admitido que a derrota estava posta, era necessário que o casal também fizesse tal leitura, naquele momento. A resposta, entretanto, apresentada pela narração, é que “ambos perseveram. Não agem com lucidez. Não os guia a lógica da luta política, e sim outras lógicas, quem sabe a da culpa, a da solidariedade, ou do desespero” (KUCINSKI, 2014, p.26). O narrador imputa ao casal o seu projeto de militância e emite o seu juízo de valor baseando-se no tempo presente e nos desdobramentos a que os personagens nunca teriam tido acesso, em um distanciamento bastante anacrônico. O personagem K. realiza o mesmo exercício ao descobrir do desaparecimento da filha e logo depois do seu matrimônio, pois percebe que a perda não é apenas do casal, mas de um futuro ao lado da filha e do genro, e, inclusive, de “netos que poderia ter, mas não terá” (KUCINSKI, 2014, p.42). Durante toda a narrativa, questiona-se sobre quem teria sido a filha e o que teria acontecido com ela. As questões perpassam, em primeiro lugar, os porquês: por que não havia contado sobre o matrimônio, por que não havia sido mais clara sobre a sua posição e/ou por que havia conhecido a família do marido, enquanto o pai não havia tido essa a chance. Em segundo lugar, questionava-se qual era o seu grau de envolvimento na luta armada, se teria sido o marido o responsável pela sua atuação, ou havia ele tentado preservá-la. K. percebe a inutilidade na tentativa de responder o porquê. 520 Mulheres e a Literatura Brasileira Tanto por parte do personagem do pai, na narrativa, quanto por parte de Kucinski, que, reforço, foi irmão de Ana Rosa, se constrói a personagem A. a partir de um estereótipo da “filhinha” ou da “irmã mais nova” frágil do qual a narração não consegue se distanciar. A todo o momento é colocada em questão a sua posição e escolha como mulher guerrilheira. Em primeiro plano, os personagens se questionam se a alternativa estaria relacionada ao marido; em segundo, a partir de sua própria voz na carta – ficcionalizada pelo irmão –, a personagem A. se questiona sobre a importância do projeto revolucionário, de forma que a narração imputa à personagem a possibilidade (e vontade) de salvar-se, a partir da deserção do projeto revolucionário. Em “Carta a uma amiga”, A. inicia contando que havia assistido no cinema o filme Anjo exterminador, de Buñuel, depois de muito tempo presa em casa, exatamente com medo da repressão. O tom da carta é de questionamento sobre a continuação da guerrilha, as possibilidades de atuação, ou até mesmo o porquê do seu comprometimento. A. questiona-se: “às vezes eu me pergunto: por que tudo isso? Não sei se é paranoia, mas sinto um perigo me rondando. Todo dia prendem alguém no campus” (KUCINSKI, 2014, p.47) ou, ainda, sobre a possibilidade de saída: Como sair disso? Não sei como sair, só sei que, se antes havia algum sentido no que fazíamos, agora não há mais; aí que entra no filme do Buñuel, aquelas pessoas todas podendo sair e ao mesmo tempo não podendo, uma explicação racional. Ficam ali, numa prisão imaginária e vão se degradando. (KUCINSKI, 2014, p.47-48) A personagem conta que esse “caminhar em uma direção em saída e não ter forças para mudar” é o que acontece consigo. Kucinski imputa também à voz de A. o que acredita 521 Mulheres e a Literatura Brasileira ser, naquele momento, a única resposta para a perspectiva guerrilheira: a deserção frente a incapacidade de mudança. A carta continua: Tem alguma coisa muita errada e feia acontecendo, mas não consigo definir o que é. Sabe, uma coisa é a gente sonhar e correr riscos, mas ter esperanças, outra coisa muito diferente é o que está acontecendo. Uma situação sem saída e sem explicação, direitinho como no filme do Buñuel. Uma tensão insuportável e sem nenhuma perspectiva de nada. Já nem sei onde está a verdade e onde está a mentira. (KUCINSKI, 2014, p.48) A verdade é que estar “sem perspectiva de nada” é, de fato, uma visão do presente que entende que naquele momento a derrota já estava dada. Eram centenas de militantes presos e desaparecidos, milhares de torturados e os grupos se isolavam ainda mais na tentativa de sobrevivência. Gorender afirma que ao final do ano de 1969, a ALN (Aliança Nacional Libertadora, grupo a que pertencia a Ana Rosa) e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) concluíram que o comprometimento com a luta armada era uma medida acertada frente ao endurecimento completo da ditadura civilmilitar com o AI-5. Naquele momento, “nas trevas da clandestinidade, não havia resposta possível que não a do combate pelas armas” (1998, p.153). Coube a ALN o sustento da guerrilha urbana até o final. A. não sabia disso e desconhecia os destinos das guerrilhas e de seus militantes, mas a construção de sua personagem só existe a partir do conhecimento posterior dos dados históricos e das avaliações da derrota, feita a partir do olhar de Kucinski. O papel como guerrilheira, na construção narrativa, é negado e parece não ser o lugar próprio de A., na visão dos personagens, mas também e principalmente, na construção do autor. A culpa da 522 Mulheres e a Literatura Brasileira morte poderia ser de outro homem, com poder de decisão e com escolha, um “verdadeiro revolucionário”, como é descrito o marido da irmã, por exemplo. Diante da impossibilidade de salvá-la e sem nenhuma informação precisa sobre o que teria acontecido com A. e seu marido, Bernardo Kucinski decide também ficcionalizar um tipo de morte “protetora” para sua irmã. No mesmo capítulo, disserta que: [...] A última tarefa de ambos é a inserção da pequena cápsula de cianureto num vão entre dentes. Há tempos firmaram a jura de não se deixarem pegar vivos, para não entregar companheiros sob tortura. As cápsulas de cianureto não estão no manual de conduta. (KUCINSKI, 2014, p.28) Kucinski decide por uma morte menos violenta 7 que aquela conhecida por muitos militantes presos nos porões da ditadura: a tortura até a morte. A última palavra de elaboração da personagem da irmã e de sua morte é o irmão quem dá. A partir da última escolha sobre o destino final de A., o irmão protege a irmã, ao menos na narração, da violência suprema. Detalhe interessante é que essa forma de “proteção da morte”, em relação a familiares, também está presente na narrativa de Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes (2004), na qual o autor relata o encontro com a família de Alberto, um amigo e companheiro dos campos de concentração nazistas. Ao vê-los depois de salvar-se, a mãe conta a Levi que o filho, e só ele, havia se safado da metralhadora da SS e encontrava-se nas mãos dos russos. Na sua narrativa, Alberto havia se escondido na floresta e passava bem, apesar de não ter conseguido dar notícias. Os familiares criam outras possibilidades de contar a morte porque enfrentar o real, ou o eterno desconhecimento do desaparecimento, é ainda mais dolorido. 7 523 Mulheres e a Literatura Brasileira O autor retoma a questão da morte, bem como o silêncio e a impossibilidade de narrar no último capítulo da obra Os visitantes. Durante a narração deste capítulo, Kucinski havia sido avisado de uma entrevista que seria transmitida na televisão, com um agente da repressão que podia fornecer informações. O âncora do programa havia sido incisivo sobre a necessidade de o autor assistir. Diante da matéria, afirma que “o que ouvimos [ele e a mulher] nos abateu. Fui tomado por um sentimento indizível, algo parecido a uma mágoa profunda, mas mais do que isso. Não me senti capaz de escrever com minhas próprias mãos o que ouvi. Recorri a uma transcrição da entrevista, que aí está na íntegra” (KUCINSKI, 2016, p.77). Quando posto em contato com o que havia acontecido de fato com a irmã, ou seja, com a brutalidade de sua morte, e diante do horror da narração do agente - o qual também era de alguma forma responsável pelo desaparecimento de Ana Rosa -, Kucinski percebe na língua uma insuficiência: não pôde colocar em palavras o que ouviu e não encontrou uma forma de dizer. O que pode dizer um irmão sobre a tortura, morte e desaparição de sua própria irmã? Ou ainda: como pode dizer? É possível que diga? O recurso narrativo de transcrever a entrevista na íntegra quem sabe tenha sido a única forma de (não)contar, exatamente porque palavras não parecem dar conta do que sentiu ao reviver a experiência traumática, já muitos anos depois do acontecido. De fato, durante todo o capítulo, o escritor não consegue emitir exatamente nenhum comentário sobre o que foi dito ou sobre as circunstâncias da morte. É no próprio silêncio que reside a sua narração e porque nele se lê, quem sabe, ainda mais. Ao fim do capítulo, depois de transcrita a entrevista inteira, o autor afirma: “Neste ponto a entrevista terminou e a tela foi percorrida por uma lista de nomes. Contei treze. Eu e minha ex ficamos em silêncio. 524 Mulheres e a Literatura Brasileira Nossas mãos haviam se encontrado no instante em que o agente falara do forno, e permaneciam unidas” (KUCINSKI, 2016, p.83). O silêncio era a única forma possível. Mulheres guerrilheiras: sujeitos históricos e oposição ao silêncio Quem é, então, a mulher guerrilheira? A “participante e testemunha que ninguém notou”, nos termos de Svetlana? Como foi e é representada a mulher, sujeito histórico e participante das guerrilhas de resistência na ditadura civilmilitar brasileira? Para além da impossibilidade de uma representação e do silêncio a que são impostas, quais são as possibilidades de inscrição de tal experiência histórica a partir de outra e de uma própria perspectiva? Como as mulheres têm pensado a sua própria atuação neste contexto? Durante o Estado repressor, qualquer atuação de oposição ou resistência colocava os indivíduos sob a nomeação de “subversivos”. De acordo com o projeto Brasil: nunca mais (1985), organizado pela Arquidiocese de São Paulo e baseado nos processos que tramitaram na Justiça Militar entre 1964 e 1979, a definição era construída de forma completamente abusiva e arbitrária, “como se ele [o conceito] tivesse um conteúdo absoluto, invariável”. Dessa forma, o raciocínio partia da premissa de que “subverter é tentar transformar o que hoje existe; como o regime atual representa a vontade da Nação, tentar mudá-lo é, pois, delito. E todo delito merece punição” (1985, p.159). As representações, como construções dos interesses dos grupos que as engendram, partiam da necessidade de nomear esse outro como “subversivo” para retirá-lo de uma esfera do humano, ou seja, criavam-se personagens, aos olhos da população, criminosos, que deveriam ser detidos, pelo bem da nação (sic). 525 Mulheres e a Literatura Brasileira Também de acordo com Brasil: nunca mais, ao contrário do que poderia inicialmente parecer, na guerrilha urbana, as mulheres correspondiam de 15% a 20% do total dos resistentes. Apesar da maioria masculina, o percentual é alto, dado o fato de que as mulheres não tinham, naquele momento, um papel ativo na política e a onda dos debates do feminismo estava ainda no seu início, principalmente no contexto brasileiro, como aponta Ridenti (2010). No caso das mulheres há uma dupla transgressão (TEGA, 2015). Para além da resistência à própria repressão, a condição da mulher nos anos de 1960 remetia a uma criação para a “virgindade, o casamento monogâmico indissolúvel, a maternidade e os cuidados com a família e para a passividade e o silêncio” e que, ao adentrar o campo da esquerda e da luta armada, se recusa ao que era anteriormente imposto a ela, opondo-se ao conservadorismo moral e ao patriarcado. A participação das mulheres nas esquerdas armadas criou uma ruptura enorme para o que era esperado delas, restritas, inicialmente e em grande parte, ao espaço privado e doméstico. Havia, ainda, uma dimensão da própria estrutura do aparato repressor, sobre o qual recaia a justificativa, inclusive, de defender os valores familiares e morais, como se apresentou, por exemplo, nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No contexto da literatura contemporânea, a que me detenho aqui, parece central o silêncio em relação à inscrição das perspectivas e das experiências de mulheres guerrilheiras na produção literária. São pouquíssimas as obras escritas por mulheres ex-guerrilheiras, sejam elas autobiografias, testemunhos, romances, poesias, entre outros, como corroboram Rago (2013) e Moraes (2013). Muitos dos personagens militantes representados nas obras contemporâneas - majoritariamente escritas por homens - são 526 Mulheres e a Literatura Brasileira mulheres, como em K., por exemplo, mas ao longo das narrativas a relação entre resistência e gênero é pouco problematizada. Ao contrário, muitas vezes são representadas como se não tivessem um papel relevante nas organizações, como guerrilheiras, ou seja, como se o espaço de atuação não lhes fosse próprio, seja do ponto de vista dos militares, seja das próprias organizações revolucionárias. Stuart Hall, em seu texto Quem precisa de identidade? (2000, p.108) afirma que a identidade é construída “ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos” e como discursos, as identidades dizem respeito à representação. Não se trata, afirma o autor, de perguntar “quem somos” ou “da onde viemos”, mas sim, “como somos representados” e como tal representação interfere também nas duas primeiras questões. Regina Dalcastagnè (2002) também discute a questão da representação e da necessidade dos estudos literários se preocuparem com os problemas de acesso à voz de grupos minoritários, bem como o debate acerca do lugar de fala, ou seja, quem fala e em nome de quem, mas não só: a legitimidade e autoridade daquele que fala. Não se trata de debater, entretanto, se a literatura diz respeito a uma realidade, mas discutir que “as representações não são representativas do conjunto de perspectivas sociais” (DALCASTAGNE, 2002, p.34). Há, entretanto, iniciativas que se detém a ouvir e inscrever essas outras perspectivas e experiências no universo das artes. Um dos exemplos interessantes, nesse sentido, de inscrição da perspectiva de mulheres guerrilheiras sobreviventes se deu, de forma bastante contundente, na obra de Lúcia Murat, Que bom te ver viva (1989). O filme se constrói através de depoimentos de oito ex-prisioneiras, de fotografias, excertos de jornais, documentos, e também da participação de Irene Ravache, que ao alternar entre os depoimentos reais e a 527 Mulheres e a Literatura Brasileira sua interpretação de prisioneira, se dirige ao espectador com as questões que parecem dominar os seus pensamentos e de suas companheiras, quase duas décadas depois de suas prisões. A perspectiva e o olhar das mulheres avançam no questionamento do silenciamento imposto às suas experiências também porque partem da vontade de uma mulher guerrilheira. Lúcia Murat também foi presa e procura, a partir do documentário, inserir no contexto do debate coletivo as experiências individuais das mulheres. Inicialmente, o documentário apresenta uma foto de cada uma das oito participantes, com uma descrição, em primeiro lugar, da sua atuação como guerrilheira, dos grupos em que atuaram, da sua prisão ou tortura, etc., para depois, em segundo plano, inserir os aspectos da vida presente. O filme perpassa questões gerais do testemunho acerca da repressão ditatorial, mas, principalmente, aborda aspectos relacionados à perspectiva de gênero: a maternidade, as especificidades da tortura ao corpo feminino, a menstruação, a sexualidade feminina, bem como o matrimônio e a culpa. O silêncio é também central nos depoimentos das mulheres: muitas delas explicitam a dificuldade de encontrar interlocutores que estejam dispostos à escuta. Filhos, maridos, amigos, ex-companheiros de militância, “ninguém quer ouvir” 8, afirma uma das depoentes. 8 Um exemplo nesse sentido são as narrativas de Levi (1998, 2004), nas quais o medo de não ter com quem dividir a sua experiência traumática é também central, nos trechos em que remete ao sonho bastante conhecido pelos sobreviventes de campos de concentração nas noites de confinamento. A recorrência era de “terem voltado para casa e contado com paixão e alívio seus sofrimentos passados, dirigindo-se a uma pessoa querida, e de não terem crédito ou mesmo nem serem escutados. Na forma mais típica (e mais cruel), o interlocutor se virava e ia embora silenciosamente” (LEVI, 2004, p.9-10). 528 Mulheres e a Literatura Brasileira A solidão na possibilidade da inscrição e divisão da experiência une essas mulheres que tentam, a partir do depoimento no filme, contar o que lhes aconteceu, ou “como sobreviveram”, como se refere a personagem Irene Ravache. Como a proposta do filme, a ideia aqui é de debater outra obra que caminha na mesma direção, o livro de literatura contemporânea brasileira, escrito por Maria Pilla, também militante no período da ditadura, Volto semana que vem (2015). A obra se organiza em tom autobiográfico e testemunhal, a partir de pequenos excertos fragmentários, e insere, como paratexto, fotos da infância e adolescência da autora, bem como uma breve descrição final, em primeira pessoa, sobre o relato de vida. Assim como Bernardo Kucinski, Maria Pilla, em entrevista9, aponta para a necessidade de ler a sua obra como literatura, pois “não sente que há um compromisso absoluto com a realidade”, ainda que com forte teor testemunhal. O testemunho, assim como para Kucinski, diz respeito a “fragmentos, lampejos de vida, de lembranças, de fatos” que foram montados como em “um filme”, defende a autora. O quebra-cabeça, ou a montagem, fica a cargo do leitor que deve “juntar as peças” da novela autobiográfica 10. Assim como o escritor de K., a autora trabalha como jornalista e decide escrever com o distanciamento temporal de mais de cinquenta anos do golpe militar, bem como mantém a necessidade de opor-se ao silêncio e exigir reparação, tantos anos depois. 9 Entrevista disponível em: http://culturafm.cmais.com.br/devolta-pra-casa/sem-cronologia-e-com-foco-na-memoria-a-jornalist a-maria-pilla-lanca-a-publicacao-volto-semana-que-vem. Acesso em: dezembro de 2015. 10 Todos os trechos aqui se referem às respostas da entrevista concedida pela autora. 529 Mulheres e a Literatura Brasileira Para além das proximidades possíveis entre as duas obras, há uma diferença essencial: aqui se trata da experiência de uma mulher narrada por essa mulher, ou seja, o lugar de fala remete, assim como no filme de Murat, para uma representação que difere daquela de Kucinski, pois se constitui como um “relatar a si mesmo”. Nesse contexto, a exigência de “escovar a história a contrapelo”, a que se refere Walter Benjamin (1994), se mantém, ou seja, tem como perspectiva escrever uma história que se oponha ao ponto de vista dos vencedores, e tem como objetivo a inscrição, no imaginário coletivo e público, da história dos vencidos, especificamente das minorias, aqui das mulheres, questionando o espaço que lhes é, até hoje, constantemente negado. Na leitura a contrapelo, exige-se que a história seja revista, reanalisada e que os seus apagamentos sejam redescobertos. Não se trata, entretanto, como afirma Rago (2013), de recuperar os grandes feitos das mulheres, inserindo-as nos “espaços em branco” de uma narrativa histórica branca, masculina e heterossexual, mas de rever a história como um todo e observar outras perspectivas. Opondo-se a um testemunho falocêntrico – não por acaso se aponta para o fato de que a origem da palavra latina para testemunho, testis, também se refere a testículos (DERRIDA, 2005) –, as mulheres procuram agora pensar a escrita como inscrição pública de uma história até então desconhecida. Se os sujeitos não eram nem ao menos considerados como participantes dos processos históricos, como pode a sua história ser contada? Isso não quer dizer, evidentemente, que se possa pensar uma “história das mulheres guerrilheiras”, como algo unívoco, homogêneo, também porque cada mulher carrega consigo uma experiência, uma prática - o próprio conceito de feminismos, no plural, já aponta para essa diferenciação -, mas o panorama aqui diz respeito a uma tentativa de inserir as práticas individuais, subjetivas, micro 530 Mulheres e a Literatura Brasileira sociais, em uma perspectiva coletiva e macrossocial, ou seja, partindo do testemunho individual – também porque é a única possibilidade -, para pensar também o coletivo. Ao invés de se perguntar o que os homens têm dito sobre as mulheres e suas experiências, a perspectiva perpassa a vontade de reconstruir e escrever a si mesmo, na história e na literatura - na produção do imaginário social e cultural, em suma - ou seja, apontar a importância de elaborar outro discurso histórico que olhe para o que era anteriormente ignorado, de forma que se possa também dar sentido para o presente. É nesse sentido também que caminha a obra de Maria Pilla: na tentativa de reconstruir-se, reescrever-se e reinscrever-se na história da resistência às ditaduras, não apenas brasileira, mas do Cone Sul, bem como dialogar com a história de outras mulheres com as quais lutou. Tal processo se dá, entretanto, como já apontei, com um distanciamento temporal que se traduz para a própria forma literária: narra a partir do tempo presente e a narração oscila entre os três tempos, voltando-se para quem foi, quem é e quem será, ao final do relato. Como afirma Judith Butler (2015), o sujeito “relata a si mesmo”, em um modo tardio da própria história que se constitui em media res, ou seja, que revê e faz possível que essa história seja contada, agora, em linguagem. Nessa construção narrativa, esse ‘eu’ narrativo, diz a autora, se sobrepõe ao ‘eu’ da vida passada que se conta, e tal ‘eu’ narrativo contribui efetivamente com a história toda vez que tenta falar, de forma que o relato seja sempre “parcial, assombrado por algo para o qual não posso conceber uma história definitiva”. A reconstrução narrativa exige uma revisão, de “algo em mim e de mim do qual não posso dar um relato” (BUTLER, 2015, p.55). Arfuch (2009; 2010), ao pensar o conceito de “espaço biográfico”, como mais dilatado que um gênero específico, como a autobiografia, ou como o testemunho 531 Mulheres e a Literatura Brasileira – incluídos no conceito inicial de teor testemunhal -, afirma que a própria ética da narrativa se combina entre o testemunho de si mesmo “que supõe a marca gramatical do eu – e ainda, desses ‘outros eu’, ou ‘eu como outros’ que atravessam o mesmo firmamento” (2009, p.118). A narrativa não pertence por inteiro, mas ao contrário: Outros guardam rastros que compartilhamos ou que nos são invisíveis, facetas de nós mesmos que nos escapam, palavras que já esquecemos, gestos, emoções. Outra maneira de dizer que o mito é só possível frente a um você, e então não como essência, mas sim como relação e que esse você mostra – para além do próprio inconsciente – a real impossibilidade da presença: aquilo que somos e que nos escapa. (ARFUCH, 2009, p.120) É exatamente sobre o fragmentário, o “parcial”, que se constrói a narrativa de Pilla. Em uma tentativa de reconstrução da história individual, subjetiva, que perpassa a história coletiva, nacional e internacional dos militantes do período, o leitor deve apreender esse “eu/outro” que se constrói na medida em que narra. A narração se organiza em pequenos excertos recortados, como fotografias, enquadramentos de tempo e espaço bem definidos, cuja descrição é exata, cortante e pouco adjetivada, e cuja percepção não consegue exceder muito o que está ali descrito. Cada fragmento inicia, no título, com a data a que se refere e uma referência ou ao local, ou a personagem a que se deterá. Em uma estrutura cronológica não linear, o leitor deve montar o quebra-cabeça da autobiografia da narradora-personagem – a partir de uma narração em primeira pessoa –, bem como da história das ditaduras do Cone-Sul. A grande maioria dos trechos dizem respeito aos anos de 1970, momento no qual a guerrilheira foi presa, torturada e exilada na França, mas a 532 Mulheres e a Literatura Brasileira temporalidade perpassa os anos de 1950 até 2011. Os espaços são diversos: a infância em Porto Alegre, a adolescência nos Estados Unidos, as excursões pelo Movimento Estudantil em São Paulo, a passagem pelo Chile e por Buenos Aires, onde é presa e torturada, bem como o exílio na França. A experiência autobiográfica não se centra, portanto, apenas no contexto brasileiro, mas também, e principalmente, na relação com as ditaduras do Cone Sul. Há grandes diferenças entre as próprias estruturas dos aparelhos repressores na América Latina, mas aspectos as unem, de forma bastante significativa, principalmente temporal. Maria Pilla envolveu-se com a militância na Universidade, no movimento estudantil, como grande parte das pessoas que viriam a ser guerrilheiras no contexto brasileiro. Apresentada a um grupo do Partidão à militância trotskista, durante uma reunião de 1967 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por um menino pelo qual nutria interessante, Maria Pilla iniciou a sua participação na Dissidência do Rio Grande do Sul. Naquele espaço de questionamento, “um punhado de jovens militantes contestava frontalmente a autoridade e as posições políticas de um partido tradicional povoado de figuras míticas” (2015, p.31). Os sonhos – utópicos e por vezes inclusive ingênuos - de toda uma geração que imaginava um mundo diferente se colocavam defronte da jovem Maria Pilla, que agora se desloca ao tempo presente da narração: Seguíamos em frente passando por cima de tudo: não queríamos uma vida como a deles, nossos pais. Queríamos tudo, e tudo em excesso. A vida, o amor a política, a aventura, o mundo. Um mundo que fosse bem melhor do que aquele. É claro que não sabíamos exatamente como era o sonho. O sonho e seus rebeldes se fizeram naqueles anos 533 Mulheres e a Literatura Brasileira do extraordinário que havia virado cotidiano. Modelos não nos faltavam. (PILLA, 2015, p.31-32) De outra parte, existia a perspectiva de gênero. Em um excerto de 1976, a obra aponta que para o fato de que a transgressão não perpassa apenas a militância política, em uma perspectiva comunista revolucionária, mas uma militância pela mudança dos valores comportamentais, a partir de uma recusa dos valores morais e conservadores. Afirma que: “indo pelos anos 60 eu já militava, e os ideais femininos da época passavam longe de minhas preferências” (2015, p.50). Os namorados pelos quais se interessava eram militantes, recusavam a ideia do amor romântico e importavam, da Europa, a ideia do “amor livre”. Já em 1970, decide partir de Porto Alegre em direção a São Paulo para um Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes). Havia pouco tempo de AI-511 e os jovens tentavam realizar um congresso clandestino da União em Ibiúna. O pai lhe 11 A ditadura civil-militar brasileira iniciou-se em 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas por parte da sociedade civil, perpetraram o golpe contra o governo eleito do presidente João Goulart. O Regime Militar chegou ao seu ápice em 1968, quando entrou em vigência o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5, que intensificou o poder dado aos governantes para punir arbitrariamente toda e qualquer pessoa que fosse considerada “inimiga do regime”. Nesse momento, o estado de exceção passou a controlar efetivamente não só as instituições, como também as pessoas, em seus cotidianos privados e em suas relações sociais e públicas. Manifestações artísticas foram controladas por meio de censura, assim como qualquer tipo de expressão contrária ao regime. Além disso, a ditadura garantiu que grande parte dos pensadores, escritores, artistas em geral fossem calados à medida que se posicionavam: muitos deles acabaram exilados, torturados e/ou mortos. 534 Mulheres e a Literatura Brasileira pergunta, naquele momento, “ué, guria, para onde tu vai?” (PILLA, 2015, p.19). A resposta, de que voltaria “semana que vem”, é interpelada pela narradora do presente que responde que “mais de dez anos se passaram até eu voltar àquela cozinha” (PILLA, 2015, p.19). Depois de São Paulo, não pôde rever o pai, o qual morre enquanto está no exílio. Em 1970, também se dirige ao Chile, onde havia tido uma vitória importante o governo socialista de Salvador Allende, para partir para Paris. A decisão de ir embora do Brasil, país no qual não se sentia mais segura, veio depois que a Oban 12 invadiu a casa Heloisa, sua amiga, e deteve os moradores. A escolha pelo exílio perpassa o sentimento de perda da utopia. Em meio à suspensão, “com o coração aos saltos”, a personagem deslocase em direção ao futuro, ou ao menos, à possibilidade de futuro negada, caso permanecesse. A sensação de ameaça, “mesmo no meio do oceano, horas mais tarde, ela não ia embora. E demorou a passar. Foram mais de vinte anos de exílio e oito de divã” (PILLA, 2015, p.52). A experiência do exílio se configura exatamente nesse “hiato temporal e espacial”, entre passado e futuro, aqui e lá, como define Rollemberg (1999), que obrigou o afastamento de gerações inteiras de todo o cenário político nacional, bem como de suas referências. O próprio slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o” é significativo nesse sentido. De acordo com a autora, a provisoriedade do exílio se soma a um caráter descontínuo no tempo, porque “é mais suportável imaginar um exílio num tempo passageiro, acreditar que o retorno será breve. Será a 12 A Oban (Operação Bandeirantes) era um centro de investigações montado em São Paulo pelo Exército Brasileiro, a qual tinha como objetivo o combate às organizações armadas de esquerda durante o regime militar. 535 Mulheres e a Literatura Brasileira ‘vida entre parênteses’, fora da ‘verdadeira vida’” (ROLLEMBERG, 1999, p.29). O exílio não queria dizer, entretanto, uma suspensão da perspectiva revolucionária, pelo contrário, se configurava como um lugar de resistência e de continuidade da luta. A personagem ainda participava de coletivos, de discussões, de momentos importantes da história do comunismo internacional. No ano de 1970, durante o exílio, a personagem e seus companheiros organizaram um ato no Parc de Princes, em Paris, no dia do jogo da Seleção Brasileira na Copa do Mundo. Ao mesmo tempo que descreve o ato, a narração se desloca para o Brasil e aponta que “em São Paulo, os edifícios da rua Consolação exibiam bandeirinhas auriverdes. Bandeiras e gritos”. Nos dias de jogo “o som da televisão tomava o lugar das pessoas na rua. O ar era irrespirável no país do futebol” (PILLA, 2015, p.62), enquanto todos obedeciam, mesmo diante da descoberta da guerrilha do Araguaia, da tortura, dos mortos que só aumentavam e da necessidade de fuga para o exílio. Logo após, retorna ao tempo e espaço da narração, em Paris, para dizer que decidiram, como militantes, ir ao jogo e “desfraldar uma enorme bandeira anunciando que o Brasil – campeão do mundo de futebol – era campeão do mundo da tortura” (PILLA, 2015, p.63). Em 1973, a personagem volta à América Latina, sem que deixe claro porque retornou quando as ditaduras ainda estavam organizadas e em 1975, é torturada e presa. É diante da experiência extrema de tortura, bem como de prisão, que as circunstâncias e especificidades do gênero são sentidas de forma mais contundente: também porque dizem respeito à corporeidade. A obra relata o encontro com outras mulheres na prisão: “olhávamos umas para as outras em silêncio. Vínhamos da sede da Polícia Federal de Buenos Aires, algumas com hematomas no rosto, o olhar amedrontado fixo 536 Mulheres e a Literatura Brasileira no chão, o som ainda vivo dos gritos dos torturadores” (PILLA, 2015, p.79). Durante o período no cárcere, Pilla relaciona-se com uma série de mulheres e percebe no contato com elas a construção de uma extrema solidariedade. Tal aspecto fica evidente nos relatos sobre a divisão da comida, a organização de eventos, o trabalho diário, a busca por renda extra, a resistência ao uso de uniformes, a preocupação entre elas, e ainda a possibilidade de compartilhamento da experiência. Nesse sentido, há a inserção da história de diversas mulheres que resistiram às ditaduras do Cone Sul. Em diversos trechos, a autora insere – para além da história de figuras extremamente conhecidas como Myriam Muniz, Oriana Fallaci, ou Carlos Marighella e Rodolfo Walsh (Kucinski também recorre à inserção em sua obra de figuras importantes) –, a história de atos cotidianos de resistência de mulheres, sejam elas companheiras de guerrilheiros, guerrilheiras elas mesmas, ou ainda mães, na tentativa de proteção de seus filhos e filhas. Aqui as mulheres não são questionadas ou têm suas experiências relativizadas, mas ao contrário, inserem-se num grande contexto de inscrição de uma história silenciada, apesar de toda a força e luta que carregam. Um exemplo interessante diz respeito ao trecho “1975. Olmos. Cachita”, no qual a autora opõe a repressão ditatorial à resistência de uma só mulher, com a qual dividiu o cárcere. A história de Cachita é narrada com uma Comissão ao fundo, com “uma mesa comprida” com “militares graduados: uniformes e condecorações, [...] hombres de los servicios, de roupa preta e óculos escuros”, na qual a personagem deve dar o seu testemunho sobre o filho, mas “ela, Cachita, não denunciara. Dois segredos guardou com unhas e dentes: a idade e o endereço do filho” (PILLA, 2015, p.12). Apesar de todo o aparato, de todo o medo, inclusive de um momento no 537 Mulheres e a Literatura Brasileira qual encenaram seu fuzilamento, a mãe decidiu por proteger o filho, e pagou com a liberdade na prisão e depois no exílio. Sobre a experiência de prisão e do tempo no cárcere, a questão da tortura é central no relato autobiográfico, ainda que a partir do seu silêncio, ou do seu retorno “tímido” em menções, ou no fragmento relativo ao ano de 2003, no qual, especificamente, a experiência traumática retorna, nos termos de Freud, a partir dos sonhos. De acordo com Viñar e Viñar (1993), na tortura, a assimilação completa do vivido é impossível e as zonas de silêncio são, de fato, necessárias. Os psicanalistas, ainda que se referindo à situação terapêutica, afirmam que “frente à experiência limite da tortura, a palavra é acompanhada de um sentimento de profanação, de uma vivência de traição da experiência original que pretende evocar”13 (p.107). A tortura remete a uma ruptura da identidade definitiva, a qual opera como núcleo significante, seja pelo silêncio sintomático ou pelas manifestações patológicas posteriores. Os psicanalistas questionam-se, ainda: “como se transmite a marca do horror? Quem é o destinatário ou o depositário privilegiado da angústia e do intolerável? A noção da marca permite incluir tanto a sequela como a simbolização criativa das alternativas de elaboração” 14 (VIÑAR; VIÑAR, 1993, p.110). Mais de trinta anos depois da Original: “ante la experiencia límite de la tortura, la palabra se acompaña de un sentimiento de profanación, de una vivencia de traición a la experiencia original que pretende evocar”. Tradução da autora. 14 Original: “¿Cómo se transmite la marca del horror? ¿Quién es el destinatario o el depositario privilegiado de la angustia y de lo intolerable? La noción de marca permite incluir tanto la secuela como la simbolización creativa de las alternativas de elaboración”. Tradução da autora. 13 538 Mulheres e a Literatura Brasileira experiência de tortura, a lembrança traumática retorna a partir da elaboração onírica. Maria Pilla narra que: Enfiaram um capuz na minha cabeça e me levaram. Dios mio, que macana, pensei para disfarçar o terror. Estava com medo de que a identidade falsa fosse descoberta? Não, nada disso. O Capuz. Ele anunciava alguma coisa terrível, que eu não conseguia nem imaginar, mas que tornava irrisório todo o resto. (PILLA, 2015, p.45) Enquanto isso, o telefone toca. A personagem perguntase se alguém teria avisado do desaparecimento, se poderia ser resgatada. Logo, Pilla reconhece que estava diante de um sonho. Aterrorizada pelo silêncio e pelo capuz, não me mexi, continuei quieta no meu canto. Trim trim trim! Insistia o telefone. Virei-me debaixo do edredom e lá estavam os olhos arregalados da gatinha – como sempre fazia – esperando a minha reação. [...] Quis abraçar o corpo quente e macio do animalzinho. Era só um pesadelo, repetia, contente da vida. Senti uma fisgada aguda no pé e levantei o edredom, agora muito sujo e com cheiro de urina. Debaixo dele, em vez da gatinha, vi meus pés manchados de sangue e estrangulados pela corda. (PILLA, 2015, p.46) O trecho me parece essencial porque explica a recorrência dos sonhos e da compulsão à repetição na trajetória da personagem. Como sempre acontecia, ela percebe a gata a observa, esperando a sua reação. Ao notar que era um sonho, alivia-se, mas ao mesmo tempo, ao levantar o edredom, reconhece e rememora o momento da tortura: os pés manchados de sangue e acorrentados. Todo o ambiente, o “cheiro inesquecível” e a dor retornam agora. 539 Mulheres e a Literatura Brasileira Paulo Endo (2016) trata sobre a elaboração onírica em Freud, afastando-se do que era considerado anteriormente o reflexo do desejo frustrado. Nos sonhos traumáticos, “ao que parece, é a literalização da experiência vivida e traumática que se compacta e se repete entre um corpo em dor e um psiquismo que, de certo modo, ignora esse sofrimento” (p.9). Dessa forma, a experiência catastrófica: [...] reencontraria então um acesso privilegiado à experiência psíquica, revelando a mesma força e o mesmo impacto presentes no instante de gênese do traumático, na ocasião da experiência traumática. Tudo se passa como se uma das características do traumático consistissem na restituição psíquica da experiência catastrófica, não mais presente, porém refeita e presentificada como trauma, no sonho traumático que a repete e insiste na repetição do insuportável. (ENDO, 2016, p.9) As feridas são inscritas corporalmente e o corpo torna-se arquivo do trauma. O retorno do evento traumático também aparece em outro trecho referente ao ano de 2010, no qual Pilla narra a volta ao Centro Clandestino de Detenção Atlético, na Argentina, por parte de sobreviventes ou de familiares de desaparecidos e mortos. O lugar, desolado, era como “uma escavação do tipo arqueológico, toda ela cercada, a terra cinzaescura revirada para mostrar as celas, os banheiros, as salas de tortura” (p.12), de grupos em busca pela verdade. Aqui, a referência a outra mulher é importante. A personagem Julia havia perdido os três irmãos, que ainda estavam desaparecidos, e os quais haviam estado naquele lugar. A referência à prática das silhuetas, na Argentina, também é mencionada. A marcação de quem esteve no lugar garante que o espaço seja ressignificado, que inscreva a presença daqueles que lá estiveram e também por lá ficaram. Os olhos de Julia 540 Mulheres e a Literatura Brasileira ficaram úmidos e a sua dor “tão íntima e tão pública” só podia ser dividida entre aqueles que entendiam o seu sofrimento. A importância de espaços como este, décadas depois das ditaduras do Cone Sul, inserem o debate, em ambas as obras, da exigência de reparação. No caso da obra de Maria Pilla, quando se distancia no tempo e no espaço para o presente da escrita, fica evidente a diferença no tratamento na Argentina e no Brasil. No caso do país vizinho, as campanhas pela verdade e a necessidade de levar à justiça aqueles que à prisão pertencem são postas em prática, enquanto, no Brasil, os sobreviventes continuam exigindo respostas. A recuperação da memória dos fatos, na Argentina, afirma Pilla, ajudou a “tecer a memória dos argentinos e a levar para o banco de réus mandantes e executores” (PILLA, 2015, p.39), enquanto no Brasil a política da amnésia, ou o “mal de Alzheimer nacional”, como se refere o narrador de Kucinski, marca o desconhecimento por parte da população das torturas, assassinatos e desaparecimentos durante o período da ditadura civil-militar e da vontade que permaneça assim. O nome marcado de A. simboliza a “permanência do seu nome no rol dos vivos e será, paradoxalmente, produto do esquecimento coletivo do rol dos mortos” (KUCINSKI, 2014, p.12). Pilla também discorre sobre a falta de reparação no caso do Brasil, ao falar sobre uma mãe – a qual continua sem respostas, como K. - que vai receber o corpo do filho morto pela ditadura: “os cabelos da senhora ficaram brancos, seu corpo foi perdendo o prumo, e a partir daquele dia dona Iracema foi uma mãe brasileira na busca da justiça que tarda. Nunca entendeu como é possível um jovem de vinte e três anos ser morto por causa de seus ideais” (PILLA, 2015, p.22). Quatro décadas depois, ainda durante a escrita de K., no “Post scriptum” - capítulo também assinado pelo autor, como o primeiro, que “emolduram” o livro -, Kucinski relata um 541 Mulheres e a Literatura Brasileira telefonema que recebeu em que davam informações de que sua irmã estava no Canadá. Lembrou-se de todo o processo de busca, das falsas informações e das tentativas de desmoralizar os familiares, de forma que entende este telefonema como uma reação à mensagem organizada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), na qual uma artista interpreta a irmã. Para o autor, “o telefone da suposta turista brasileira veio do sistema repressivo, ainda articulado” (KUCINSKI, 2014, 181182). Já em Volto semana que vem (2015), no trecho final da obra “Sobre a autora”, depois de vinte e dois anos de exílio, ela afirma ter voltado “bem a tempo de assistir à deposição de um presidente em praça pública” (2015, p.94). Nos dois livros a permanência do silêncio da ditadura brasileira é questionada, bem como a fragilidade de nossa democracia, agora – no ano de 2017 - ainda mais exposta. A escrita e a inscrição de tais histórias permanecem como a única possibilidade de resistir, ainda nesse momento. Referências ALKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. Tradução de Cecília Rosas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Editora Vozes, 1985, 10 edição. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: _________. 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Sobre o argumento defendido pela crítica, de modo geral, discute-se que pensar desta forma é compartilhar de uma perspectiva patriarcal, que explora o relacionamento entre mulheres, levando em consideração, principalmente, a sexualidade, através de um olhar vouyer e fetichista. Pensando sobre as incomodações que a temática ainda suscita nos espaços literário e social, a proposta desta discussão é refletir sobre a expressão da homoafetividade feminina na 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, da UFRGS, na área de Estudos de Literatura, com ênfase na linha de Teoria, Crítica e Comparatismo, sob orientação da Profª Dra. Rita Terezinha Schmidt. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. 546 Mulheres e a Literatura Brasileira literatura brasileira ao longo dos anos, explorando os seus espaços de abordagem – pensando espaço social, simbólico e campo literário – e questões de autoria, uma vez que serão estudadas somente narrativas escritas por mulheres, principalmente, porque na literatura, na maioria das vezes, o gênero feminino está sujeito ao olhar masculino e traz consigo, de forma consciente ou não, a influência do patriarcado; além de que se pretende afastar a análise desse “olhar do outro”, ou seja, da abordagem que é questionada e que se pauta no vouyerismo. Percebe-se a dificuldade de expressão lésbica na medida em que se nota um número precário de estudos sobre a lesbianidade ao longo da história e isso é derivado da descrença social que se perpetuou durante muitos anos em aceitar o relacionamento entre mulheres como algo além da sexualidade. Um dos poucos estudiosos sobre o assunto, Luiz Mott, escreveu um livro O lesbianismo no Brasil, em 1987, em que salienta essa alienação referente ao estudo sobre as lésbicas. Ele diz: Se para os gays masculinos houve um verdadeiro complô de silêncio dos donos do poder, destruindo-se evidências comprobatórias do amor unissexual entre membros do sexo forte, no caso do lesbianismo a falta de documentação se deve mais a cegueira, indiferença e preconceito dos homens face à sexualidade feminina, considerada assunto de menor importância e indigno da atenção do sexo forte. Portanto, a história do lesbianismo até pouco tempo era página totalmente em branco, que somente nos últimos anos tem merecido atenção de alguns estudiosos. E devido aos milênios de alienação e inferioridade da mulher em nosso mundo geralmente têm sido os intelectuais do sexo masculino que iniciam tais estudos e pesquisas. (MOTT, 1987, p. 8) 547 Mulheres e a Literatura Brasileira Não é só em estudos históricos e historiográficos que a homoafetividade feminina era analisada prioritariamente por homens. Na literatura, foi sob o olhar masculino que o tema começou a ser representado, na sua maioria. Num estudo coordenado pela Profª Regina Dalcastagné (2005) se pode perceber que dentre as maiores editoras brasileiras, no período de 1990 e 2004, os homens são quase ¾ dos autores publicados – já há uma abertura maior para a expressão feminina e mesmo assim a pesquisa revela que não se tem grande expressividade de escritoras publicando. A própria pesquisadora reflete: O silêncio dos grupos marginalizados – entendidos em sentido amplo, como todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas relações de produção, condição física ou outro critério – é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que buscam falar em nome desses grupos, mas também, embora raramente, pode ser quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes. (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 15) A amplitude do espaço literário dá a ilusão da possibilidade de uma multiplicidade discursiva. Todavia, a literatura brasileira contemporânea é definida como um espaço excludente, onde se privilegia discursos circunscritos na cultura heteropatriarcal, em detrimento de outros que são postos à margem tanto do fazer literário quanto da prática discursiva no âmbito diegético. Esse outro, de modo geral, é representado de acordo com uma perspectiva hegemônica que adquire um caráter de autoridade, uma vez que se põe como norma, com valor inquestionável – aqui, esclareço que a noção de representação se dá a partir da possiblidade de falar no lugar do outro, imposta como um controle que silencia os grupos 548 Mulheres e a Literatura Brasileira marginalizados. É possível perceber um silenciamento do feminino e quase apagamento da homossexualidade – mais ainda da lésbica – em obras publicadas na literatura brasileira contemporânea. A Profª. Regina Dalcastagnè coordenou uma pesquisa que procurou identificar como se configura o romance brasileiro contemporâneo e notou a supremacia masculina e heterossexual de escritores e personagens neste cenário e, mesmo que de forma inconsciente, há uma censura a discursos que favorecem o protagonismo de mulheres e lésbicas, alegando que “os silêncios da narrativa brasileira contemporânea, quando nós conseguimos percebê-los, são reveladores do que há de mais injusto e opressivo em nossa estrutura social” (DALCASTAGNÈ, 2005, p. 67). Ainda que não se pense na literatura como reflexo da sociedade, é inegável que os julgamentos de valores são construções sociais e, portanto, o silêncio dos grupos segregados no meio social é refletido através do controle discursivo que a literatura impõe. Nota-se, então, que a mulher enquanto produtora discursiva e protagonista de sua história é preterida em favorecimento de uma perspectiva falocêntrica que assume a sua voz e constrói uma identidade que muitas vezes não condiz com a subjetividade feminina. Na pesquisa sobre a sexualidade das personagens, mais uma vez se percebe o predomínio de construções narrativas pautadas na heteronormatividade, visto que 81% das personagens são heterossexuais e, dentre a escassa performance de personagens homossexuais, 79,2% são gays. Assim sendo, o que ocorre é um apagamento da mulher e, principalmente, da lésbica no espaço literário e, por consequência, a naturalização de um discurso orientado por uma concepção vouyer e fetichizada, pois é construído por vozes que pertencem a um estrato influente, com reconhecimento social e valoração discursiva. 549 Mulheres e a Literatura Brasileira Levando em consideração os dados apontados na pesquisa da Profª. Regina Dalcastagnè se tem a necessidade de indagar os motivos que impõem à lésbica o seu quase apagamento nas construções narrativas. Nota-se, portanto, que essa questão é oriunda de uma dupla marginalização que a homossexualidade feminina sofre que, conforme Beatriz Gimeno (2007), tem a ver com o gênero e a orientação sexual. Nós mulheres sempre somos o apêndice de um discurso geral. É o pensamento androcêntrico que situa o homem no centro da história, no centro do discurso e que também funciona, claro, quando dizemos homossexual como um todo. Nesse caso, gay é o geral e a lésbica é sempre o particular. Portanto deveríamos começar desmontando os falsos neutros. Não há um sujeito que corresponda a gays e lésbicas: há dois sujeitos que ocupam diferentes espaços, e sempre em função de que o um é o homem e as outras são as mulheres. No caso das lésbicas, a discriminação tem a ver com gênero e com orientação sexual. (GIMENO, 2007, p. 20, tradução minha) Indo ao encontro dessa perspectiva e afim de problematizar a questão do silenciamento da mulher e quase anulação de performance lésbica na literatura brasileira contemporânea, é relevante refletir sobre a visibilidade da homossexualidade feminina e, neste estudo específico, sobre a visibilidade da homoafetividade feminina, uma vez que se percebe um menosprezo maior à questão do afeto entre mulheres, já que a sexualidade ganhou notoriedade na sociedade capitalista que encontrou formas de lucrar com a temática, denegrindo-a em muitos casos e publicando informações de cunho sensacionalista que prejudicavam a eficiência do movimento lésbico. Sob essa perspectiva, o lesbianismo foi relacionado ao fetichismo, vinculando-se à 550 Mulheres e a Literatura Brasileira vontade heterossexista de consumo, pois a veiculação da imagem das lésbicas estava associada ao voyeurismo masculino. O apelo lésbico foi embutido em algumas publicidades comerciais e, principalmente, na indústria pornográfica, provocando danos à imagem das lésbicas. O que se vê atualmente é que a homossexualidade feminina ainda está atrelada a esse julgamento machista e a sua visibilidade só é evidente valorizando tal conceituação. Os movimentos que buscam a igualdade sexual das lésbicas não têm espaços que lhes permitam a expressão e continuam pleiteando as suas especificidades ao transformarem-se em agentes de suas histórias e proporem uma definição mais política e menos sexista da lesbianidade, e, por conseguinte, reverter a situação precária a partir da qual a sua história se configura. Claro que se tem a primeira referência do amor entre mulheres, através dos versos da poetisa Safo às suas discípulas e também, a partir daí se propagou uma representação desse amor entre mulheres derivada da rejeição do homem em relação à mulher e à lesbianidade seria um desvio ou uma doença ocasionada pelo desprezo e consequente ódio pelo sexo masculino. [a]tribui-se geralmente a Safo a invenção do amor da mulher pela mulher, aborrecendo e desprezando as relações naturais com o homem. Apaixonada louca e incestuosamente por seu irmão Charax, viu este fugir de seus braços, conquistado pelos encantos da cortesã egípcia Rodopis, e então, no despeito da derrota, no ódio pelo homem, procurou aliviar as exigências de sua carne e os ardores de seu sangue nos braços de outras mulheres. Não ocultou seu vício, cantou-o e celebrou-o em suas odes, ensinou-o e propagou-o pelas mulheres de Lesbos, que gostaram da invenção e a ela se entregaram desenfreadamente. É por isto que as tríbades são também 551 Mulheres e a Literatura Brasileira geralmente conhecidas por sáficas ou lésbias. (CASTRO apud MOTT, 1987, pp. 20-21) Algumas publicações que datam do período do quinhentismo apresentam narrativas que aludem a relacionamentos homossexuais femininos em que descreviam histórias entre amazonas e “mulheres-macho” – notem que aqui usa-se a palavra homossexual porque nessas histórias, até pela conceituação de “mulher-macho”, eram manifestadas intolerâncias em relação à afetividade entre as personagens. Alguns escritores (homens), em períodos posteriores, também escreveram sobre esse tema desta mesma forma que reduz a relação lésbica somente à sexualidade e eram narrativas em que, necessariamente, uma das personagens assumia características masculinas. A performance masculinizada de personagens que desenvolvem relacionamentos lésbicos é recorrente até na literatura contemporânea, mas se tornou definidora na caracterização de personagens lésbicas porque era esse o entendimento social sobre como se configurava o safismo – Gregório de Matos escreveu um poema intitulado “A uma dama que macheava outras mulheres”, que escreve sobre Nise, uma bela senhora que tinha o “defeito” de gostar de outras mulheres. De acordo com Luiz Mott: [a] maioria dos heterossexuais imagina que os (as) amantes do mesmo sexo devam necessariamente seguir o seu mesmo esquema relacional, definindo-se um sexo forte e outro frágil. Muito embora algumas homossexuais copiem o modelo hétero da bipolaridade macho-fêmea, ativa-passiva, ela não é absoluta, nem tampouco a aparência delicada de uma lésbica implica que ela há de ser passiva, ou que uma das parceiras tenha de ser varonil e ativar a relação. A formosa Nise escandalizava o Boca do Inferno exatamente 552 Mulheres e a Literatura Brasileira por ser muito feminina e não obstante “macheou” outras filhas de Eva. (MOTT, 1987, pp. 68-69) Diferente dessa necessidade de “machear” as personagens, mas ainda as construindo sob o binário ativo/passivo, Aluízio de Azevedo, em O Cortiço, apresentou a relação entre Leónie e Pombinha. A narrativa criada por Aluízio Azevedo é marcada por uma perspectiva voyeurística, característica do machismo intrínseco, a qual supervaloriza a erotização da relação entre mulheres de forma fetichizada. Parece interessar no envolvimento entre as personagens somente a narração do ato sexual, uma vez que, ao expor o sentimento entre elas, o autor reforça a heteronormatividade, alegando que o amor entre mulheres é torpe e a jovem dama, ao recobrar a sensatez, arrependera-se dos atos sórdidos que praticara com a prostituta. O livro, mesmo tendo uma conclusão ancorada nos preceitos ditados pela cultura hegemônica, recebeu crítica ferrenha por incentivar o lesbianismo. Outros escritores se aventuraram nesta temática, mas sempre a abordando sob um discurso regido pelo patriarcado. A censura sobre a afetividade entre mulheres estava enraizada no meio social e transposta na literatura, que são poucos os textos literários que dão conta de transgredir esse preconceito. É provável que nem seja proposital tal repetição discursiva sobre a homoafetividade feminina porque por muitos anos o tema foi tão reprimido que pouco se refletia sobre as consequências de perpetuar tal abordagem reducionista do lesbianismo. De acordo com Bourdieu: A censura alcança seu mais alto grau de perfeição e invisibilidade quando cada agente não tem mais nada a dizer além daquilo que está objetivamente autorizado a dizer: sequer precisa ser, neste caso, seu próprio censor, pois já se 553 Mulheres e a Literatura Brasileira encontra de uma vez por todas censurado, através de formas de percepção e de expressão por ele interiorizadas, e que impõem sua forma a todas as suas expressões. (BOURDIEU apud DALCASTAGNÈ, 2005, p. 17) Então, não é objetivo deste estudo apontar que o preconceito e a abordagem reducionista do lesbianismo na literatura seja somente oriunda de narrativas escritas por homens, mas é mais evidente que, quando escrita por mulheres, a narrativa se reveste de uma sensibilidade que não limita a relação às questões de sexualidade, alargando a sua construção narrativa à novas perspectivas; e até se preocupando em abranger os problemas de identificação que se tornam constantes, principalmente na contemporaneidade. A percepção é de que sob autoria feminina, a temática se desenvolve a partir de uma sensibilidade que não é necessariamente nem uma reprodução dos arquétipos femininos tradicionais e tampouco uma imagem especular da que caracteriza a abordagem masculina. Abordando textos literários escritos por mulheres que introduzem a temática em suas narrativas, percebe-se que até a década de 1970, as obras ainda reproduziam o discurso dominante e caracterizavam a lésbica como doente ou naquela mesma perspectiva de Safo (rejeitada por um homem). Lygia Fagundes Telles fez referência ao homoerotismo feminino em Ciranda de pedra (1954) e As meninas (1973). No primeiro livro, a personagem Letícia desperta o sentimento homoafetivo por outra, Virgínia; e, no segundo, há menções às relações sexuais entre as freiras de um convento. Detendo um pouco na análise do primeiro romance mencionado – a personagem Letícia se mostra interessada pela narradora Virgínia depois de sofrer uma decepção amorosa e acaba vendo em Virgínia uma forma de refazer sua vida, fugindo do trauma provocado pela relação 554 Mulheres e a Literatura Brasileira heterossexual anteriormente. É uma forma legitimada socialmente de abordar a temática, principalmente nos anos 1950 em que a voz feminina era quase nula. Poderia se pensar que há uma contradição em dizer que há uma sensibilidade aflorada em tratar o assunto, uma vez que o discurso construído por Lygia reproduz os padrões vigentes; mas se pensarmos que é uma mulher escrevendo sobre um tema abominado socialmente, em uma sociedade machista e que ainda coíbe a manifestação literária feminina, também podese refletir que escrever um relacionamento homoafetivo feminino entre duas personagens relevantes na narrativa é um ato político. Embora o discurso de Lygia traga resquícios da norma vigente, ele também o supera porque caracteriza Letícia como uma personagem independente e segura de si, que busca conquistar o seu espaço na sociedade reproduzida na trama, sendo coerente com a sua identificação sexual – ela não é uma construção estereotipada de lésbica e tampouco de mulher. Pensar no espaço da mulher na diegese e da mulher escritora são fatores importantes, uma vez que dentro do campo literário, Lygia publicou incialmente as suas obras pela Editora Rocco e ter a possibilidade de abordar esse tema para um público mais abrangente faz com que ela precise moldar o seu discurso para que ele seja aceito – não se trata somente da possibilidade de falar, mas falar com autoridade, através de meios que legitimam o discurso. A partir da década de 70, com a organização dos movimentos feministas, estudos sobre igualdade de gênero, etc, houve uma abertura maior para a mulher no campo literário e também a possibilidade de escrever sobre a homoafetividade feminina de forma mais aberta. Isso ocorre a partir da superação da possibilidade de falar sobre si que a mulher reivindicou na literatura e uma nova fase, de falar da sua intimidade, do seu desejo, anseios e vontades se instaurou. 555 Mulheres e a Literatura Brasileira Claro que “se pagou um preço” por isso. Cassandra Rios pode ser considerada uma das escritoras mais representativas que desenvolvem a homoafetividade feminina em seus textos literários, e, devido à recorrente abordagem à temática, foi comumente execrada e segregada à condição de subliteratura – ou literatura marginal – pela crítica da época. Devido à recorrência da lesbianidade em suas narrativas, muitos questionamentos sobre a sua sexualidade foram levantados, mas a escritora sempre esquivava-se do interrogatório, sendo categórica ao afirmar que o real e a literatura não se envolviam (no seu caso particular), ainda que, em diversas situações, alegasse que a ficção imita a realidade, uma vez que muitas personagens com caracterizações homossexuais eram representadas a partir de um olhar culposo sobre si, refletindo, então, o sentimento que acometia muitas mulheres por considerarem tal manifestação sexual pecaminosa. Além dela, Adelaide Carraro também disponibiliza um espaço significativo às relações lésbicas em sua bibliografia. São duas escritoras muito significativas no estudo da representação da homoafetividade feminina na literatura brasileira porque têm um vasto número de obras publicadas sobre a temática, mas são pouco conhecidas pelo grande público – talvez porque falavam às claras sobre aquilo que era íntimo às mulheres. Para refletir sobre a abrangência do seu público, no período ditatorial, época em que mais produziram, ambas tiveram obras censuradas e mesmo assim quebravam recordes de vendas de suas edições publicadas. E por que, mesmo assim, pouco se sabe sobre elas? Talvez pelo simples fato de serem mulheres transgressoras da norma. Porque ousaram em abordar temas que se escondiam no inconsciente feminino e que poucas mulheres ousavam externar, fazendo-o com a mesma naturalidade trataram o amor lésbico que antes não se ousava publicar. Enquanto Adelaide Carraro construía 556 Mulheres e a Literatura Brasileira narrativas de cunho mais político, levando em consideração o meio social como construtor da identidade das personagens – era uma forma de denunciar a sociedade da época e um modelo narrativo comum naquele período; Cassandra ia além: usava uma abordagem denunciativa, mas se preocupava também com questões interiores às personagens – os conflitos internos eram evidentes principalmente quando criava personagens lésbicas porque aqueles padrões estereotipados que conceituavam uma lésbica na sociedade eram entendidos como redutores das personagens e não condiziam com as suas performances. No livro Eu sou uma lésbica, de Cassandra Rios, publicado em 1980, a protagonista Flávia percorre a narrativa – da infância ao início da fase adulta – tentando entender a sua condição social e se encaixar nos padrões vigentes, mesmo se inserindo em definições marginalizadas, e entende que nem dentro desses conceitos ela se identifica porque um indivíduo tem a possibilidade de desenvolver múltiplas performances de acordo com os espaços que transita. O último parágrafo do livro é muito significativo porque traz essa questão e é possível perceber que a partir de então essa nova noção de identificação lésbica é discutida no texto literário. Ele diz: Eu sou lésbica, deve a sociedade rejeitar-me? [...] Em que situação uma homossexual deve ser rejeitada, compreendida ou aceita? Quando engana o homem com as suas dissimulações ou quando enfrenta a sociedade abertamente, sem esconder o que é? (RIOS, 2006, p. 144) Escritos, em sua maioria, durante a vigência do regime militar, os textos de Cassandra e Adelaide despertaram um interesse através da subversão. Mas esta, porém, sempre se apresentou diluída pelo moralismo que conduzia boa parte das histórias. A denúncia social e as questões políticas, quase 557 Mulheres e a Literatura Brasileira sempre associadas ao ingrediente erótico e ao sentimentalismo, hoje nos parecem ingênuas, mas marcaram o início de uma nova forma de abordar o tema na literatura escrita por mulheres. A lesbofobia, se analisada de acordo com a perspectiva que este trabalho propõe, é uma violência sistemática e potencial que legitima o silenciamento da lésbica no âmbito literário. Em virtude disso, se pretende estudar a sexualidade a partir do lugar de fala, através da performance discursiva, pensando como a mulher enquanto grupo dominado elabora narrativas que são protagonizadas por lésbicas ou por mulheres que têm inclinações homoafetivas – aqui ressalvo que o entendimento de que a mulher/lésbica como narradora de si é legítimo e valoriza as performances alternativas às visões dominantes e estereotipadas. Em consonância com essa noção, é preciso pensar a mulher na sua multiplicidade, ou, como pontua Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal, na apresentação do livro Espaço e gênero na literatura brasileira contemporânea (2015): “Mulheres” entendidas, é claro, como um grupo heterogêneo e complexo, formado por identidades múltiplas e contraditórias, que não se esgotam no sexo biológico ou no gênero, mas que, em grande medida, partilham pressões e expectativas impostas por uma sociedade que continua marcada pela dominação masculina. (DALCASTAGNÈ; LEAL, 2015, p. 9) Com o surgimento de periódicos que focavam o público homossexual, as produções literárias com a temática homoerótica ampliaram o seu volume e algumas coletâneas – geralmente publicadas por editoras especializadas – foram lançadas, dando notoriedade a autores pouco conhecidos e possibilitando a sua ascensão. Entretanto, a expressão da 558 Mulheres e a Literatura Brasileira homossexualidade feminina ainda esbarra no preconceito existente e os textos literários são, em sua maioria, escritos por homens. Assim, ainda que a contemporaneidade permita uma maior expressão sobre o lesbianismo, ela permanece sendo exposta pela perspectiva do sexo dominante. Luiz Mott fala que: O complô do silêncio contra a homossexualidade feminina parece ser ainda mais castrador do que a censura ao homoerotismo masculino: certamente há menos escritoras e editoras lésbicas assumidas, e os programadores das revistas eróticas provavelmente encontram maior clientela entre o público masculino, seja gay, seja straight. Daí o justo desabafo dos movimentos de expressão lésbica: “Falar do lesbianismo implica falar da dupla marginalização: se a mulher como mulher sofre opressão em todos os níveis sociais e anulação de sua própria identidade, como lésbica é vítima de outra opressão muito mais violenta: é totalmente ignorada, porque à mulher foi negada uma sexualidade própria e a livre disposição de seu corpo. Portanto, a problemática da lesbiana é consequência do tratamento recebido pela mulher através da história, da qual esteve ausente enquanto protagonista: sua história é uma história subterrânea”. Da mesma forma, a mesma crítica vale para a literatura. (MOTT, 1987, pp. 129-130) São diversos títulos publicados em editoras especializadas que são direcionados à homoafetividade feminina e é impossível fazer uma generalização da forma que o tema é abordado em todas as obras, mas tem-se a noção de que os questionamentos inseridos nas palavras finais de Eu sou uma lésbica são recorrentes nas tramas e o problema central está focado na identificação no conceito de lésbica. A cultura da heterossexualidade é vista como uma instituição política que retira o poder das mulheres e seus corpos são pensados como 559 Mulheres e a Literatura Brasileira uma superfície politicamente regulada. Nesse sentido, há a possibilidade de transgredir esses conceitos fixos que validam a supremacia do heteropatriarcado, rejeitando a sua compulsoriedade e rompendo com o silenciamento condicionado à existência lésbica. Adrienne Rich (2010) idealiza um continuum lésbico, não como a identificação de todas as mulheres com essa condição sexual, mas como uma forma de sororidade e resistência ao patriarcado. Portanto, as suas ideias convergem com o objetivo desta tese, uma vez que se pretende romper com o tabu do discurso lésbico e representação do feminino, ao estudar os romances a partir de um olhar que se desvincula da cultura machista. No ensaio sobre a heterossexualidade compulsória e existência lésbica, a teórica discorre sobre a objetificação da lésbica no espaço heterocentrado: A chamada pornografia lésbica, criada para o olhar vouyerístico masculino, é igualmente vazia de conteúdo emocional e personalidade individual. A mensagem mais perniciosa transmitida pela pornografia é a de que as mulheres são presas naturais congruentes e que, para as mulheres, o sexo é essencialmente masoquista, uma humilhação prazerosa, um abuso físico erotizado. [...] A pornografia não cria simplesmente uma atmosfera na qual sexo e violência seriam intercambiáveis. Ela amplia o conjunto de comportamento considerado aceitável para os homens em seus intercursos heterossexuais – comportamento que retira das mulheres reiteradamente de sua autonomia, de sua dignidade e de seu potencial sexual, inclusive potencial de amar e ser amada por mulheres com maturidade e integridade. (RICH, 2010, pp. 26-27) Em um primeiro momento, a tentativa de distanciar os discursos analisados de uma perspectiva vouyer parece 560 Mulheres e a Literatura Brasileira oportuna porque efetiva o protagonismo da mulher e da lésbica no espaço literário e refuta a cultura dominante. Em consonância com esse objetivo, a proposta é também problematizar a inclusão da lésbica no discurso literário, distanciando a sua identidade de um apêndice da homossexualidade masculina, visto que que o pensamento que norteia esta proposta entende que o apagamento e estigmatização da lésbica nesse meio subentende o silenciamento feminino duplamente. Na mesma perspectiva que Rich, Monique Wittig (apud COSTA, 2012) busca entender como são pensadas as categorias de visibilidade e de resistência do corpo da lésbica na contemporaneidade, evidenciando que são corpos que contradizem a ordem androcêntrica e sexista da cultura dominante. Como representar uma lésbica na sociedade contemporânea? Mas, neste estudo vale questionar também qual é o espaço permitido para tal representação? E aqui é preciso pensar no espaço como constituinte de identidade – pensar o espaço de acordo com a perspectiva de Doreen Massey (2008) que entende que o espaço pode ser visto como um produto das inter-relações, como uma esfera da multiplicidade, como algo em constante construção; e, a partir dessa concepção, entender a relação conflitiva entre identidades de gênero e sexuais, uma vez os padrões estereotipados e arbitrários de identidade não dão mais conta das novas configurações de identificações possíveis nas construções de personagens. Entendendo também que se trata de uma veiculação de menor expressão – se comparada às grandes editoras –, é preciso trazer à tona a noção de campo literário de Bourdieu que pensa o campo literário como um espaço de legitimação e reconhecimento entre diversos agentes; e o fato dessas narrativas ocuparem um espaço que não tem um reconhecimento institucionalizado de 561 Mulheres e a Literatura Brasileira destaque é relevante para identificar o espaço da temática no campo literário. Em um estudo sobre o discurso do lesbianismo na literatura, Angie Simonis (2007) percebe que um dos problemas da invisibilidade da lésbica está na nomeação, isto é, em estabelecer um padrão de nomeação, um conceito, uma definição. Assim, quando representada sob a interpretação de uma voz que não respeite a sua subjetividade, ela é sujeitada a um discurso que privilegia os estereótipos que limitam e enfraquecem a expressão da diversidade de subjetividades, próprias de uma cultura diferenciada e diferente. A performance da homossexualidade feminina geralmente está associada à percepção da lésbica masculina, que imita um comportamento culturalmente atribuído aos homens ou, então, da lésbica assexuada, que está na fase da adolescência e descoberta sexual ou sofreu alguma decepção com o homem, além da lésbica altamente sexualizada, produto da pornografia. Enfim, são estereotipações que reforçam os binarismos e impõem definições que, em grande parte dos casos, não dão conta das identificações subjetivas. No caso das obras escolhidas para análise, se nota a preocupação das autoras na transformação desses significantes e na reivindicação de espaços de fala que busquem novas linguagens nos discursos sobre o tema, em que evidenciam a incomodação que as dualidades conceituais provocam. Embora se tenha a consciência da dificuldade que a subversão discursiva enfrenta, é preciso um esforço de, ao menos, questionar o discurso hegemônico. Mesmo sendo significativo o volume de publicações que abordam a homoafetividade feminina em editoras especializadas, o número de obras que tratem da temática em grandes editoras é ínfimo. Há parcas referências até os anos 1990 e a partir dos anos 2000 se tem mais possiblidade de averiguar o tema no 562 Mulheres e a Literatura Brasileira catálogo de editaras de maior destaque. São os autores mais jovens que dão espaço, em suas narrativas, para personagens homossexuais e as suas abordagens seguem uma perspectiva comum aos romances de formação – são histórias que expõem, nas suas minúcias e angústias, o processo de desenvolvimento, em todas as suas vertentes, das suas personagens. Como exemplo é viável citar três obras publicadas em duas grandes editoras: Duas iguais, de 1998, de Cíntia Moscovich (publicado pela Record), Calcinha no varal, de 2005, de Sabina Anzuategui e Todos nós adorávamos caubóis, de 2013, da Carol Bensimon (ambos publicados pela Companhia das Letras). Esses três exemplos são trazidos porque são obras narradas em primeira pessoa, por personagens-narradoras que têm um sentimento homoafetivo ao longo das tramas. São três histórias que percorrem a vida das personagens, seja de forma linear ou através de rememoração, para acompanhar os acontecimentos que as construíram não como lésbicas, mas como homoafetivamente inclinadas, já todas têm incomodações com a redução do conceito. Sem poder desenvolver uma análise mais específica de cada obra, dá para perceber um padrão na publicação da temática em editoras de maior expressividade: são narrativas desenvolvidas a partir da busca da identidade, em que as personagens são construídas com o anseio de encontrarem uma identificação possível. A homoafetividade é fator importante nesse processo formativo, uma vez que cerceia as suas expressões nos espaços intra e extra diegéticos. Não há um discurso transgressor como o de Cassandra Rios e Adelaide Carraro, mas o tema está latente, sendo abordado com as sutilezas que o discurso dominante impõe. O que se percebe é que narrativas contemporâneas, como Coisas que os homens não entendem, de 2002, de Elvira Vigna e Toda terça, de 2007, de Carola Saavedra, são desenvolvidas com discursos que superam a norma 563 Mulheres e a Literatura Brasileira heteropatriarcal ao assumirem uma postura que naturaliza a pluralidade de identidades e se desvinculam, também, dos estereótipos que normalmente são utilizados em construções narrativas que mencionam a homoafetividade feminina. As identificações de sexo, de gênero e de sexualidade não se restringem aos binarismos que a cultura hegemônica determina e tampouco a uma unidade identitária imutável. As personagens com inclinações homoafetivas são construídas com identificações transitivas e se transformam de acordo com as suas intenções, os contextos que estão inseridas e os seus deslocamentos nas diegeses. Nesse sentido, os atos de fala são interpretados a partir de um viés performativo, não entendendo que tais identificações sejam submetidas a um significante, mas que seus significados são efeitos de uma cadeia de significantes. Novos discursos estão sendo criados para pensar sobre a homoafetividade feminina, redirecionando o conceito a partir da subversão à matriz heterossexual, a fim de englobar quaisquer indivíduos sob os novos paradigmas da sociedade contemporânea, a qual, ainda que estabeleça padrões normativos, assimila a inserção de identidades subjetivas. As identidades sexuais são moldadas por discursos reguladores e, portanto, “gênero e sexualidade guardam a inconstância de tudo o que é histórico e cultural” (LOURO, 2013, p. 17). Ainda citando o argumento de Guacira Louro, é possível questionar essas relações de poder: Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões. É uma referência a ela que se fazem não apenas os corpos que se conformam às regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que as subvertem. (LOURO, 2013, p. 17) 564 Mulheres e a Literatura Brasileira Se nota a preocupação das autoras contemporâneas na transformação desses significantes e na reivindicação de espaços de fala que busquem novas linguagens nos discursos sobre o tema, em que evidenciam a incomodação que as dualidades conceituais provocam. Essa perspectiva não é inocente em se desligar dos sistemas culturais e as suas padronizações, mas possibilita que os sujeitos transitem entre identidades possíveis, com as quais se identificam, mesmo que transitoriamente, entendendo, assim, os seus processos de fragmentação. Butler (2013) aponta que através da desnaturalização dos conceitos binários que subescrevem a definição de identidade é possível problematizar a heterossexualidade – e a dominação masculina – que é sustentada pelos conceitos fundantes que atuam sobre os corpos sexuados. Desse modo, a filósofa aponta para a incoerência que a heteronormatização implica na construção de identidade: A “unidade” do gênero é o efeito de uma prática reguladora que busca uniformizar a identidade do gênero por via da heterossexualidade compulsória. A força dessa prática e, mediante um aparelho de produção excludente, restringir os significados relativos de “heterossexualidade” e “bissexualidade”, bem como os lugares subversivos de sua convergência e ressignificação. O fato de os regimes de poder do heterossexismo e do falocentrismo buscarem incrementar-se pela repetição constante de sua lógica, sua metafísica e suas ontologias naturalizadas não implica que a própria repetição deva ser interrompida – como se isso fosse possível. E se a repetição está fadada a persistir como mecanismo da reprodução cultural das identidades, daí emerge a questão crucial: que tipo de repetição subversiva poderia questionar a própria prática reguladora da identidade? (BUTLER, 2013, p. 57) 565 Mulheres e a Literatura Brasileira Os romances superam das figurações estereotipadas pensando, principalmente, a questão da afetividade como núcleo representado, onde a objetificação da sexualidade e o erotismo são substituídos pela representação das experiências pessoais com o cotidiano, das reflexões de si mesmas ou das vivências individuais. A subversão de um pensamento normativo permite o avanço, também, na problemática da nomeação. Ao entender que a própria subversão é condicionada e restringida pelo discurso, pode-se questionar se há efetivamente uma subversão. Wittig (apud BUTLER, 1991) entende a lésbica distante das definições de sexo e de gênero, interpetando-a como “um fenômeno cultural múltiplo, um gênero sem nenhuma essência unívoca”. (BUTLER, 1991, p. 149) Não há intenção de limitar as identificações das personagens à identidades fixas, mas, não havendo um discurso outro para construir esta tese, se entende que ao interpretar o substantivo a partir de significados variados e contraditórios, é possível um produto de análise que ressignifique a padronização conceitual que lhe é imposta. A partir da quebra com o contrato heteronormativo, se busca legitimar os discursos alternativos de representação do corpo lésbico. O que se percebe nesses romances é que não há uma negação das normas, uma vez que não há forma alternativa de colocar em discurso que não seja através da heteronormatividade; mas a possibilidade de naturalizar os conceitos tidos como execráveis. As escritoras se afastam da dureza das dualidades e buscam estratégias narrativas que permitam os deslocamentos dos corpos e identificações plurais às suas protagonistas. O que motiva esses sujeitos é o desejo de superar os obstáculos postos em seu caminho e, ainda mais, o desejo de conhecer a si mesmo. O desejo é trazido à reflexão como um esforço contínuo de superar diferenças externas que 566 Mulheres e a Literatura Brasileira acabam se tornando formadoras do próprio sujeito. No estudo sobre o desejo, Butler o percebe ligado ao processo de autoconhecimento, de desconstrução da identidade fixa e valorização da subjetividade, sendo “um modo de ser dubidativo, um questionamento corporal da identidade e do lugar” (apud SALIH, 2012, p. 38). Os novos discursos se valem da subjetividade nas construções das personagens homoafetivamente inclinadas, não usando conceitos e definições como definidores de suas identidades. Elas transitam nas identificações que lhes convêm, nos contextos e espaços em que estão inseridas. Os significados prévios ainda são importantes nas constituições das identidades, mas os termos são ressignificados. A homossexualidade é ressignificada, sendo que mesmo construída em um discurso da proibição, se vale do desejo como forma de preservação, pois, como apontado por Butler, “o desejo nunca é renunciado, mas se conserva e se reafirma na própria estrutura da renúncia” (apud SALIH, 2012, p. 155). O percurso feito sobre a expressão da homoafetividade feminina no espaço literário é útil para confirmar a hipótese defendida neste estudo. O que se percebe é que sempre vai haver uma luta entre gênero e espaço porque a mulher subverte ao se tornar enunciadora de si e também quando representa personagens que não se adequam ao sistema heteropatriarcal e, portanto, não satisfazem o público consumidor dominante. Então, defende-se a assertiva de que as lésbicas sofrem dupla segregação porque são sempre vistas como um apêndice do geral e que a discriminação que sofrem tem a ver com o gênero e com a condição sexual. A homoafetividade feminina é abafada pelo heterossexismo e pelo patriarcado, e, por ter sido “duplamente silenciada, é ainda mais difícil de ser resgatada, uma vez que sobre elas atuam tanto os mecanismos de exclusão heteronormativos 567 Mulheres e a Literatura Brasileira quanto os mecanismos patriarcais” (ALÓS, 2010, p. 851), e, portanto, a sua manifestação é inibida, impondo-lhe a invisibilidade em dobro. Referências ALMEIDA, Ana Luiza N. 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