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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DE COIMBRA FICHEIRO EPIGRÁFICO (Suplemento de «Conimbriga») 141 INSCRIÇÕES 578-580 INSTITUTO DE ARQUEOLOGIA | SECÇÃO DE ARQUEOLOGIA DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, ESTUDOS EUROPEUS, ARQUEOLOGIA E ARTES 2016 ISSN 0870-2004 FICHEIRO EPIGRÁFICO é um suplemento da revista CONIMBRIGA, destinado a divulgar inscrições romanas inéditas de toda a Península Ibérica, que começou a publicar-se em 1982. Dos fascículos 1 a 66, inclusive, fez-se um CD-ROM, no âmbito do Projecto de Culture 2000 intitulado VBI ERAT LVPA, com a colaboração da Universidade de Alcalá de Henares. A partir do fascículo 65, os volumes estão disponíveis no endereço http://www.uc.pt/luc/iarq/documentos_index/icheiro. Publica-se em fascículos de 16 páginas, cuja periodicidade depende da frequência com que forem recebidos os textos. As inscrições são numeradas de forma contínua, de modo a facilitar a preparação de índices, que são publicados no termo de cada série de dez fascículos. Cada «icha» deverá conter indicação, o mais pormenorizada possível, das condições do achado e do actual paradeiro da peça. Far-se-á uma descrição completa do monumento, a leitura interpretada da inscrição e o respectivo comentário paleográico. Será bem-vindo um comentário de integração histórico-onomástica, ainda que breve. Toda a colaboração deve ser dirigida a: Instituto de Arqueologia Secção de Arqueologia | Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra Palácio de Sub-Ripas P-3000-395 COIMBRA A publicação deste fascículo só foi possível graças ao patrocínio de: Composto em ADOBE in Design CS4, Versão 6.0.6 | José Luís Madeira | IA | DHEEAA | FLUC | UC | 2016 580 UMA EPÍGRAFE PALEOCRISTÃ DE PORTIMÃO A estação arqueológica Torre 4 (Código Nacional de Sítio n.º 16 929) situa-se no concelho de Portimão, distrito de Faro, na vertente meridional, próxima do topo duma elevação sobranceira à Ribeira da Torre e ocupa uma plataforma cuja altitude decresce ligeiramente em relação a sul. O meio envolvente apresenta uma localização excelente quer ao nível da defensabilidade quer do domínio da paisagem e da transitabilidade entre a Serra de Monchique e a costa, permitindo o acesso aos recursos naturais terrestres e aquáticos, inserindo-se numa região onde existem vestígios antrópicos dos mais variados períodos históricos, encontrandose inventariados 112 sítios arqueológicos só na freguesia de Portimão. Foi identiicada em 2001, durante os trabalhos realizados para a elaboração do Estudo de Impacte Ambiental do IC4, Sublanço Lagoa/Lagos, prolongamento da auto-estrada A22. Na fase de obra, durante a desmatação e a remoção mecânica da terra vegetal, sofreu alguma destruição, tendo-se procedido entre 2001 e 2002 a trabalhos de minimização, nomeadamente execução de sondagens de diagnóstico e escavação integral da área afectada pela construção da via. Os trabalhos arqueológicos então desenvolvidos permitiram identiicar estruturas correspondentes a duas diferentes fases de ocupação, que correspondem a momentos Ficheiro Epigráico, 141 [2016] culturais distintos, embora com continuidade natural: um grande habitat romano alto-imperial, intervencionado numa ínfima parte, a que sucede um assentamento alto-medieval, com uma clara sobreposição e reorganização funcional dos espaços. Para além destes importantes testemunhos do habitat romano existem vestígios enquadráveis cronologicamente na Alta Idade Média, tendo-se exumado elementos da cultura material desta cronologia, constituindo um conjunto maioritariamente cerâmico com pouca diversidade formal, predominando as peças de peril fechado. Denota-se claramente uma alteração tecnológica em direcção a um fabrico manual mais arcaico ou, pelo menos, a torno lento e com cozeduras irregulares, característica das produções alto-medievais, com uma cronologia que será próxima dos séculos VI-VII. Não foi possível estabelecer de forma evidente a diacronia desta estação arqueológica a partir dos dados artefactuais, muito embora ocorram objectos que marcam bem as duas fases mencionadas. Se foram identificados conjuntos cronologicamente enquadráveis entre os séculos I e III e um segundo momento correspondendo aos séculos VI-VII, desconhecem-se em absoluto as realidades de permeio, sendo discutível se ocorreu uma continuidade de ocupação indiscernível no registo arqueológico ou se, pelo contrário, após séculos de abandono, o povoamento do local foi reactivado. A juntar a este espólio, recolheu-se uma telha fragmentada que ostenta pequeno texto cristão bastante mutilado. Embora tivesse sido exumada na estação durante os trabalhos arqueológicos, encontrar-se-ia em deposição secundária, desconhecendo-se a área exacta de onde é proveniente, sendo muito provável que tenha a sua origem num ambiente funerário contíguo ao habitat, mas que não foi identificado. Esta extraordinária peça, destacando-se da restante colecção cerâmica – actualmente em depósito no Museu de Portimão – corresponde a um fragmento de telha de barro vermelho que apresenta inscrição graitada. Trata-se de um imbrex, cujas extremidades distal e proximal desapareceram, com a epígrafe gravada por incisão sobre a pasta ainda fresca. Ficheiro Epigráico, 141 [2016] Dimensões: 15,8 cm de comprimento por 10,6 cm de largura. O campo epigráico está bastante mutilado e restringe-se somente à parte central da telha. […]ỤS DEI GRATIA Ạ?[…]./ [INCLIN]A AUṚEM TUAM ET [EXAUDI ME][…] / ṚE […] UM […] a graça de Deus […]. Inclinai, Senhor, vossos ouvidos e atendei-me […]. A graia parece ser uma variante da escrita uncial, mas de tendência cursiva e com alongamento dos caracteres. A primeira linha tem uma extensão máxima de 12,7 cm, com uma variação da dimensão dos caracteres entre 1,3 cm e 0,8 cm. A segunda linha, devido ao facto de se conservar um comprimento maior do fragmento, apresenta 14,7 cm de extensão e os caracteres variam entre os 1,1 cm e 1 cm. A última e terceira linha mede 10,1 cm, não chegando a parte inal da epígrafe ao limite conservado do fragmento; os caracteres, apesar de alguns estarem truncados na parte inferior, apresentam pouca variação de tamanho, oscilando entre os 1,2 cm e os 1,1 cm. Uma primeira leitura permitiu perceber de imediato que se estava perante um texto de teor religioso, extraído do Livro dos Salmos, concretamente a oração de David: Inclina, Domine, aurem tuam et exaudi me, quoniam inops et pauper sum ego (Salmo 85,1). «Inclina, Senhor, os Teus ouvidos e ouve-me, porque sou miserável e pobre». São conhecidas outras inscrições paleocristãs em suporte de cerâmica de construção, destacando-se, por exemplo, no Sudoeste peninsular, o registo em tegula proveniente da Villaviciosa de Córdoba de uma epígrafe fragmentada, datável possivelmente do século VI, vertendo o salmo 95, 11 (CIL II2/7, 700; ICERV 415): Laetentur caeli et exsultet terra: commoveatur mare et plenitudo eius. Ficheiro Epigráico, 141 [2016] De acordo com o CIPTP, de 2006, no distrito de Faro ocorrem somente doze inscrições funerárias cristãs, abrangendo um amplo período que medeia entre os cristãos primitivos até ao início do século VIII, conhecendo-se ainda a designada inscrição funerária de Castor (CIPTP, p. 289, 4), graito numa telha, possivelmente tardio. Assim a peça aqui apresentada, além de se aigurar como o mais pungente testemunho da ocupação efectiva do sítio Torre 4 durante a Alta Idade Média, constitui um importante documento histórico para a análise da expansão e consolidação do Cristianismo no Sul de Portugal, dada a raridade de epígrafes conhecidas para este período, na área geográica em apreço. Bibliograia CIL II2/7 = StYlOw, Armin U.; GOnzálEz rOMán, Cristóbal; alFöldY, Géza, eds. (1995) – Inscriptionum Hispaniae Latinae: Conventus Cordubensis. (Berolini; Novi Eboraci: Corpus Inscriptionum Latinarum II2/7). CIPTP = dias, Maria Manuela Alves; gasPar, Catarina Isabel Sousa (2006) – Catálogo das Inscrições Paleocristãs do Território Português. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). ICERV = ViVEs, José (1969) – Inscripciones Cristianas de la España Romana y Visigoda. Barcelona: Consejo Superior de Investigaciones Cientíicas. Instituto Jerónimo Zurita (Comisión de Barcelona). MaciEl, Manuel Justino Pinheiro (1996) – Antiguidade Tardia e Paleocristianismo em Portugal. Lisboa: edição do autor. MarcOs, Juan-José (2014) – Fuentes para Paleografía Latina. Plasencia: Juan-José Marcos, 4.ª ed. MarquEs, João; rOcha, Artur; lOPEs, Gonçalo; libEratO, Marco, (2008) –«Torre 4, Portimão: um conjunto cerâmico alto-medieval», Xelb, 8.2, p. 117-130. JOãO MarquEs gOnçalO lOPEs MarcO libEratO Ficheiro Epigráico, 141 [2016] Des.: Gonçalo Lopes 1 2 580 Ficheiro Epigráico, 141 [2016]