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O PARTO MASCULINO: AS RELAÇÕES ENTRE O SAGRADO E O FEMININO E A CRIAÇÃO DE EVA NA TRADIÇÃO JUDAICA E CRISTÃ THE MALE CHILD-BIRTH: THE RELATIONS BETWEEN THE SACRED AND THE FEMININE AND THE CREATION OF EVA IN JEWISH AND CHRISTIAN TRADITION. Rodolpho Alexandre Santos Melo Bastos1 Universidade Federal de Santa Catarina Resumo: O presente trabalho pretende analisar as relações de poder, na esfera do simbólico e religioso, entre as divindades representadas pela Grande Deusa e o Deus Pai Javé. O Deus (e mito) Judaico e Cristão se destaca por destituir a Grande Deusa de suas posições de poder e criação no cosmos, em que o homem - numa inversão de sentido meta-biológico - se torna o progenitor da Mulher. Com isso, é o Homem quem gera a vida, pois por meio de Adão e de sua costela extraída por Deus, “pariu” Eva (Mulher). Assim, optouse por um recorte temporal alargado e suas permanências, em virtude de uma abordagem histórica, mitológica e religiosa da cultura Judaica e Cristã. Subsidiado pelos estudos das representações sociais e do imaginário social para compreender a construção do imaginário feminino, perpassa-se 1 Abstract: The present work intends to analyze the relations of power, in the sphere of the symbolic and religious, between the deities represented by the Great Goddess and the God Father Yahweh. The Jewish and Christian God (and myth) excels for deposing the Great Goddess from her positions of power and creation in the cosmos, in which man - in a reversal of metabiological meaning - becomes the progenitor of Woman. With this, it is Man who generates life, because through Adam and his rib extracted by God, gave birth to Eve (Woman). Thus, a broad temporal cut and its permanences were chosen, due to a historical, mythological and religious approach of the Judaic and Christian culture. Subsidized by the studies of social representations and the social imaginary to understand the construction of the feminine imaginary, it is also Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Medievais (Meridianum-UFSC) e Bolsista CAPES. E-mail: rodoxbastos@gmail.com Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 também, metodologicamente, às abordagens de gênero como categoria de análise. methodologically pervaded by gender approaches as a category of analysis. Palavras-chave: Grande Deus Pai, Feminino. Keywords: Great Father, Female. Deusa, Goddess, God Introdução Esse trabalho aborda as construções do imaginário social feminino e as representações em torno da Grande Deusa e do Deus masculino, quando a Deusa possuía em antigas sociedades poderes para gerar a vida e criadora do mundo, perdendo seu lugar e espaço para Javé. Para isso, é preciso compreender essa ruptura em relação aos poderes de geração e criação cosmogônicos referente ao imaginário sagrado que informa o feminino através das representações simbólicas e relações de poder dessas divindades. A Grande Deusa, Deusa Mãe ou Mãe Terra é essa divindade feminina, presente em inúmeras civilizações da antiguidade, tendo seu relato mais antigo referente ao antigo Oriente fértil, na Mesopotâmia, através da figura da Deusa Inanna, em que existem registros de seus cultos entre os anos de 2334-2154 antes de Cristo. Podemos perceber, segundo Helena Barbas (2006), que outras divindades e/ou figuras femininas, como Isis, Ishtar ou até mesmo Maria Madalena, seriam um desdobramento desse arquétipo de Grande Deusa a partir de Inanna. Inserido no contexto das relações de poder e de gênero entre as divindades representadas pela Grande Deusa e o Deus Pai, o Deus abraâmico, através de Adão, fornece ao primeiro homem a condição exclusivamente feminina de gerar vida, no momento em que Eva é extraída de sua costela. Ou seja, Adão que é homem no sentido biológico/fisiológico e desprovido de um útero (bem como todo o sistema reprodutor feminino), foi quem deu a luz à mulher e não o inverso, usurpando assim da qualidade e condição inerente do feminino de conceber a vida. É neste palco de disputa de poder entre as divindades e seus representantes no mundo terreno (homens e mulheres) que nosso recorte temporal encontra-se alargado, pois tem como objeto de reflexão o mito fundador da tradição Judaica e Cristã e o desenvolvimento de suas relações de poder e gênero através do texto do 195 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 Gênesis do Velho Testamento. Por isso, recorremos aos estudos do imaginário e representações sociais para compreender a construção das imagens e discursos em torno do feminino em detrimento do masculino, sendo necessário perpassar também pelas construções das relações e hierarquias dos papéis sociais de gênero, como categoria de análise histórica. Com isso, o modo de pensar e interpretar “a mulher” em determinada sociedade repercute nas formas como os papéis de gênero são apresentados, traduzido em um imaginário social feminino. De acordo com Louise Tilly (1994), as mulheres, mesmo que definidas pelo sexo ultrapassam a categoria biológica, pois existem socialmente e compreendem todas as pessoas do sexo feminino, que estão moldadas por regras sociais e costumes, conforme crenças e opiniões decorrentes de estruturas de poder. Para Tânia Navarro Swain (1994), no imaginário marcado pelas relações entre os sexos e a formação de seus papéis sociais e suas representações, há a construção das relações de poder, em que nas sociedades ocidentais existe a predominância da dominação masculina, forjada como natural. Isso contribui para que esse imaginário social feminino se naturalize e adquira valor de verdade, atuando como justificativa e legitimação para todo tipo de ordenamento de controle político e jurídico. Robert Muchembled (2001) denominou o imaginário como um fenômeno coletivo que se constrói sobre a realidade e é produzido pelos múltiplos canais culturais que irrigam uma sociedade, não se configurando em um tipo de véu metafísico divino. O imaginário seria uma espécie de maquinaria escondida sob a superfície das coisas, poderosamente ativa, por que cria sistemas de explicação e motiva igualmente ações individuais e coletivas. Bronislaw Baczko (1985) relata que o imaginário social atua como uma das forças que regulam a vida coletiva, pois define através das referências simbólicas, de forma mais ou menos precisa, as divisões internas e as instituições sociais. O imaginário é um dispositivo eficaz do controle da vida coletiva, do exercício da autoridade e do poder. Para Sandra Jatahy Pesavento (1995, p. 15), “o imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da realidade”. 196 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 Por sua vez, entendemos como representações sociais aquilo que, segundo Denise Jodelet (2002, p. 17), sociais circulam nos discursos e são carregadas pelas palavras, veiculadas nas mensagens e imagens midiáticas, cristalizadas nas condutas e agenciamentos materiais ou espaciais. Com isso, o espaço religioso e mítico opera como palco de disputa de poder, entre as divindades femininas e masculinas, produzindo ressonâncias diretamente no ordenamento político e social, sobretudo, no Ocidente. Pois, em suma, as sociedades tendem a reproduzir as cosmogonias e os mitos fundadores da tradição religiosa em que estão inseridas, como seus discursos, as hierarquias, os status, os papéis sociais e relações de poder e gênero. Nesse sentido, a tradição Judaica e Cristã instituiu seu próprio panteão de referenciais femininos em detrimento da suposta superioridade masculina, que vão desde associações diabólicas e desprezíveis, tendo Lilith 2 e Eva como representantes, até referenciais de redenção, mas também de submissão, como a virgem Maria e Maria Madalena. Esse panorama revela um mosaico de arquétipos femininos 3 enquadradas numa concepção misógina e depreciativa, em que a Mulher foi (e ainda é) entendida como inferior e, por isso, construiu mecanismos de controle, normas e conduta para as mulheres, em que o Homem, através de Adão de Jeová, foi capaz até mesmo de usurpar dessa qualidade das atribuições ao divino feminino antigo, como dar a luz e gerar a vida. A usurpação do poder da Grande Deusa: as relações entre o sagrado-feminino e o Deus Pai Javé As deusas mães, que passaram por diversas formas de marginalização no processo de construção do imaginário Javinista, entre os Hebreus, descendem da figura divina de Inanna (2334-2154 a.C), situada no Crescente Fértil do antigo oriente próximo, referente a antiga Mesopotâmia. Dentre as características de Inanna, encontramos atributos de guerreira, sexualidade, fertilidade, virgindade, força e autonomia. Para Barbas, 2 É importante destacar que a versão hebraica dos (poucos) relatos de Lilith é o resultado de interpretações míticas que remontam a tradição mesopotâmica, em que foi uma figura feminina relacionada a ventos e tempestades. Retomaremos essas questões do decorrer do trabalho. 3 Pensamos em arquétipos femininos no sentido que essas expressões sobre figuras femininas adquirem força como modelo feminino construído, divulgado e interpretado na sociedade e por ela, através de determinados grupos e seus interesses, como a Igreja Cristã. 197 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 Inanna, a Grande Senhora de An – o céu – ou a «Senhora dos mil ofícios», é a principal divindade do panteão sumério. O epíteto refere o facto de ser a patrona e protectora de uma multitude de funções e poderes: estrela da manhã e/ou da tarde, deusa da agronomia, do fogo e do raio, da alegria e do terror. Terá a sua contraparte na acádica Ishtar, na Ísis egípcia, e restante miríade de divindades e figuras femininas que com elas se associam (inclusive Maria Madalena) (2006, p. 2). Nesse sentido, nas associações ou sociedades onde a figura da Deusa foi preponderante se desenvolveram diversas realizações humanas, em que a figura feminina desempenhou papel decisivo, como posições de poder, liderança e religiosas, além da domesticação de plantas, a aquisição de campos cultivados e que lhe conferiam status social. Para Emílio Willems (1977, p. 215) O matriarcalismo ou matriarcado caracteriza-se como “tipo de organização social [...] não somente pela autoridade doméstica da mãe, ou pela matrilinearidade, matrilocalidade, mas também pela autoridade política das matronas”. Com isso, a figura da Grande Deusa era central tendo, geralmente, participação na criação do universo e/ou do mundo humano. De acordo segundo Mircea Eliade (1978, p. 61), “durante milênios a terra mãe dava luz sozinha por partogênese4”. Esse papel feminino privilegiado permitiu a criação de instituições de caráter matriarcal, matrilocal ou matrilinear, nos quais é o marido quem habita a casa da esposa. Para o mesmo autor, A fertilidade da terra é solidária com a fecundidade feminina, conseqüentemente, as mulheres tornam-se responsáveis pela abundância das colheitas pois são elas que conhecem o “mistério” da criação. Trata-se de um mistério religioso por que governa a origem da vida, o alimento e a morte. Mais tarde, após a descoberta do arado, o trabalho agrário é assimilado ao ato sexual (ELIADE, 1978, p. 60-61). De acordo com a Swain (1994), o culto a Grande Deusa nas sociedades matriarcais ultrapassa suas tradicionais atribuições de fecundidade e maternidade, pois também estão associadas a outras realizações, como a medicina, a linguagem, a legislação, a escrita, além da domesticação. Contudo, observamos que a Grande Deusa e o meio social em que estavam inseridas perdem seu espaço de atuação. Para Joseph Campbell (1990), com as invasões dos semitas e dos indoeuropeus, orientados por mitologias e religiões masculinas, em torno de quatro mil anos antes de Cristo, a cultura da Grande Deusa foi perdendo seu poder para a 4 Refere-se à criação, crescimento ou desenvolvimento de uma vida sem fertilização, ou seja, são fêmeas/mulheres/Deusas que (pro)criam sem precisar da colaboração de um macho/homem/Deus. 198 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 cultura dos invasores, como o Deus Pai, Zeus, Javé ou Jeová. Com isso, tem-se a instalação de uma sociedade com tradição e cultura patriarcal e que se mantém até hoje. Willems (1977, p. 233-234) salienta que o patriarcado ou patriarcalismo é um “tipo de organização social caracterizado [...] não somente pela autoridade doméstica do pai, pela patrilinearidade e patrilocalidade, mas também pelo status de superioridade política dos homens em geral e a conseqüente exclusão da mulher da vida pública”. Por sua vez, no plano da representação sagrada, segundo Adosavio (2009, p. 257) a deusa foi rebaixada em divindades menores, dominadas por outras divindades masculinas, como Zeus, enquanto no ordenamento social “[...] os homens assumiram as rédeas da economia, política, religião e do poder social nas comunidades urbanas emergentes”. Rose Marie Muraro (1997) destaca uma transição da etapa matricêntrica (referente a matriarcado) da humanidade para a fase patriarcal, passando por quatro etapas que se sucedem de forma cronológica. Na primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa mãe sem auxílio de ninguém. Na segunda, ele é criado por um deus andrógino ou um casal criador. Na terceira, um deus macho toma o poder da deusa e cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na quarta etapa, esse deus macho cria o mundo sozinho. Ainda de acordo com a autora, a primeira etapa se relaciona com o mito grego em que a Grande Deusa cria o universo sozinha. A criadora primária é Géia, a Mãe Terra; dela nasceram todos os protodeuses, entre eles Réia, a mãe de Zeus, o futuro dominador do Olimpo. O segundo caso é referente a um deus andrógino que gera todos os deuses no hinduísmo e que, na mitologia chinesa, masculino e feminino governam juntos: “o yin e o yang”. O terceiro refere-se mitologia sumeriana que, em um primeiro momento, a deusa Siduri reinava em um jardim de delícias onde o seu poder foi usurpado por um deus solar. Na quarta situação não existe mais uma deusa mulher como a criadora da terra (ou universo), pois é substituída por um deus macho que cria o mundo sozinho, como é o caso do mito Judaico e Cristão. Silvia Tubert (1996) pontua que não existem lutas primordiais entre divindades masculinas e femininas no Gênesis, pois Deus é único e cria o mundo do nada, sem necessitar de uma matéria prévia para construir sua obra. Pois, “No princípio, Deus 199 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 criou os céus e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga e as trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfície das águas” (BÍBLIA, Gênesis, 1;1-2) Ainda conforme Tubert, nas religiões monoteístas, o feminino e suas representações simbólicas desaparecem totalmente, pois tudo é masculino: seus nomes, os adjetivos que o qualifica e os pronomes que se referem a ele pertencem ao gênero masculino. Deus é o rei, o pai e o senhor das batalhas. Os dez mandamentos são dirigidos ao homem e o pacto entre Javé com o povo de Israel refere-se também aos homens. “É necessária a adoração de um deus masculino vitorioso na cultura patriarcal, uma vez que ela legitima a ordem sociopolítica do ponto de vista religioso” (TUBERT, 1996, p. 94). A mulher que outrora encontrava na Grande Deusa ou Mãe Terra, atributos de permissiva, amorosa, mas também de sábia e criadora, esbarra no referencial feminino proposto pela tradição Judaica e Cristã que são ancorados na figura de Eva, criada da costela do homem. Ela foi interpretada como fraca, desobediente e que compactuou com o mal (a serpente) para macular a relação entre o Homem e Deus. [...]. Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves dos céus, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que se rastejam sobre a terra” [...]. Iahweh Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou uma auxiliar que lhe corresponda.” [...]. Tomou uma de suas costelas e fez crescer carne em seu lugar. Depois, da costela que tirara do homem, Iahweh Deus modelou uma mulher e a trouxe ao homem. [...]. (BÍBLIA, Gênesis, 1:26; 2:18-21-22) É nesse momento que se têm as associações do demônio à mulher por parte da Igreja Cristã, principalmente durante o período medieval e que na época moderna vai culminar com a caça às bruxas. É possível perceber várias formações discursivas e discursos concorrentes na Europa Medieval, como os discursos misóginos construídos e divulgados, sobretudo, por uma elite clerical. Vânia Nara Pereira Vasconcelos (2005) informa que foi entre os séculos III e XIII, que os homens da Igreja investiram em escritos religiosos que sedimentaram as representações femininas, logo eles que deveriam viver completamente afastados delas. Desse modo, esses discursos clericais medievais, mas também de homens ligados a Igreja apresentam um enorme mosaico de referências negativas em relação às mulheres. 200 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 Eliane Ventorim (2005) relata que, durante esse período, “a mulher” era considerada um ser mais próximo da carne e dos sentidos, sendo uma pecadora em potencial, pois descendia de Eva, a culpada pela expulsão do casal do paraíso. Com isso, as representações sociais em torno das mulheres tendem a relacioná-las a entidade demônio, embora exista uma oportunidade de redenção, mas remetendo a Mulher a posições de inferioridade e submissão em relação ao Homem. Surgiram assim, modelos de feminilidades para as mulheres que se ancoravam em figuras míticas da Bíblia, numa dicotomia entre a “mulher boa” e a “mulher má”, protagonizados por Eva e Maria, embora existam outros modelos de feminilidades que tendem a reforçar essa mesma dualidade. As mulheres de Adão e de Cristo: do diabólico ao divino A cultura Judaica e Cristã está assentada numa tradição e organização patriarcal que tem, como consequência, a perda de espaço, autonomia e liberdade do feminino em relação ao masculino. A Grande Deusa, através das mulheres, é desvalorizada e descredenciada de qualquer protagonismo ou status de poder (institucional ou sagrado) e liderança, diante da ordem do Pai e dos homens. Para Tubert, Nas Escrituras, Eva aparece como uma simples mulher. Philips assinala que tal fato é devido a que sua história é também a história da substituição da deusamãe pelo deus masculino, Jeová. Sendo uma criadora destituída, converte-se no criado. O deus criador ocupa o lugar de deusa procriadora que controlava os ciclos do nascimento, da morte e das estações. É possível inferir que os autores desses textos acreditavam que a civilização não podia começar nem sustentar-se sem a dominação e domesticação do feminino como poder religioso dominante (1996, p. 92-93). Eva foi criada a partir de uma costela de Adão, nascida do homem, fato que pode ser interpretado, segundo Séverine Fargette (2006, p. 62), como origem da maldade feminina, pois “é esse osso que correspondia exatamente ao espírito pérfido da mulher”. Ou seja, foi esse osso tortuoso da costela capaz produzir e atribuir um caráter igualmente torto, deformado e sem retidão as mulheres, o que permite interpretações que atribuem sua inferioridade, somada ao fato de ter nascida depois do homem e do homem, não sendo criada diretamente por Deus. No entanto, existem outras interpretações sobre o episódio da criação de Eva, em que Adão teria sido um hermafrodita, contendo em si o masculino e feminino, ou 201 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 o hierós-gámos, um símbolo de união entre o cosmo, o que representa um tipo de bi-unidade e androginia referente as antigas divindades, como veremos a seguir. Todavia, se levarmos o mito de Lilith em consideração, outros estereótipos de depreciação irão surgir, como devoradora de crianças, mãe de demônios e vampiros, entre outros. Segundo Roberto Sicuteri (1985, p. 12), ela pertence à tradição dos testemunhos orais reunidos “nos textos da sabedoria rabínica definida na versão jeovística, que se coloca lado a lado, precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes”, bem como a tradição judaica medieval. É preciso estar atento que esses relatos ligados a tradição hebraica é uma variação mais antiga sobre o mito de Lilith. Para Roque de Laraia Barros (1997) seu mito remonta as interpretações e reconstruções feitas por pastores nômades, identificados como Hebreus e que pertenciam ou tinha como área em comum a mesma área cultural de tradição babilônica e suméria que tem a sua origem nas versões mais antigas dos povos da Mesopotâmia. Lilith é usualmente derivado da palavra Babilônica/Assíria Lilitu `um demônio feminino ou um espírito do vento' - parte de uma tríade mencionada nas invocações mágicas babilônicas. Mas aparece mais cedo como Lilake em uma inscrição Sumeriana do ano 2000 a.C. que contém a lenda `Gilgamesh e o Salgueiro'. É uma demônia vivendo em um tronco de salgueiro vigiado pela deusa Inanna (Anath) em uma margem do Eufrates. A etmologia do hebreu popular parece derivar Lilith de layl, noite, e ela freqüentemente aparece como um monstro noturno peludo no folclore Árabe. (GRAVES; PATAI apud BARROS, 1983, p. 68). De volta as versões hebraicas, Sicuteri relata que Lilith protesta contra as imposições do homem e questiona porque teria de deitar-se por baixo de Adão. “Assim perguntava a Adão: ‘– Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que abrirme sob teu corpo?’ [...] Mas Lilith insiste: ‘- Por que ser dominada por você? Contudo eu também fui feita do pó e por isto sou tua igual’” (SICUTER, 1985, p. 24). Com isso, Lilith que não estava mais disposta a cumprir as vontades de Adão, pronuncia o nome mágico de Deus e eleva-se no ar, abandonando-o. Ela entra em conflitos com Adão, pois não aceita a inferioridade e a submissão ao homem. Clama, portanto, por igualdade, liberdade para escolher, agir e decidir. Lilith não se submeteu aos caprichos do homem (Adão) e sentindo que seu companheiro não atenderia suas reivindicações ela se rebela partindo e o deixando só, caindo sobre ela todos os estereótipos demoníacos possíveis. 202 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 A partir deste episódio é que acontece a criação de Eva a partir da costela de Adão, ou seja, a Mulher nasce do Homem, ou melhor, o Homem á a luz a Mulher, como veremos a seguir. Mesmo assim, isso não foi capaz de assegurar que Javé não se decepcionasse mais uma vez com a figura feminina porque Eva não resiste à tentação e é corrompida pela serpente, sendo culpada por corromper o homem. Com isso, o homem e a mulher são expulsos do paraíso, momento em que caem em desgosto com o criador. As duas mulheres de Adão foram relacionadas ao mal, tendo na sexualidade delas a marca da decadência humana, sendo, por isso, condenadas. Segundo Swain (1994), Lilith é a mãe dos demônios, atormentadora dos mortais. Eva é a inconsciente, a pecadora, a causadora da queda e do pecado. Os discursos clericais misóginos no período medieval sedimentaram, durante da Idade Moderna, o evento conhecido como caça às bruxas5, representando a cristalização desse imaginário sobre as mulheres, criando um princípio feminino de inferioridade “natural” e social, marcados biologicamente e aliada a imagem de seres obscuros, malignos e místicos. Todavia, a imagem de uma mulher nascida do homem é muito mais atraente para a Igreja Cristã, pois remete a um certo tipo inferioridade referente ao feminino. Enquanto Lilith foi depreciada por ter sido criada diretamente por Deus e que se rebelou diante da imposição masculina, reivindicando liberdade, igualdade e os mesmos direitos que o homem, características que a Igreja Cristã repudiava. Eva foi demonizada e inferiorizada, por ter sido fraca e se deixado corromper pela serpente, fato que é associado às condições de seu nascimento. Lilith é censurada e removida da tradição e, ou seja, não está em concordância com o ideal para as mulheres. Para Roberto Sicuteri (1985), Eva exprime a aceitação e é mais agradável ao Pai e à Lei, sendo mais adequada como “Mulher”, pois não demonstrou o combate por igualdade. Todavia, assim como Lilith, Eva também será inexoravelmente fonte de pecado, perversão e relacionada ao Diabo. Jacques Dalarun (1990) resgata, em seu texto “Olhares de Clérigos”, esses discursos misóginos, por homens ligados a Igreja Cristã, em que menciona Odão de Clunny, que (942 d.C.), retomando a advertência de João Crisóstomo (407 d.C.) alegava que “[...] se os homens vissem o que está debaixo da pele, a vista das 5 É importante ressaltar que embora o evento conhecido como caça as bruxas tenha tido seu ápice na Idade Moderna, mas seu início ocorreu em fins da Idade Média. 203 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 mulheres dar-lhes-ia náuseas... Então, quando nem mesmo com a ponta dos dedos suportamos tocar um escarro ou um excremento, como podemos desejar abraçar esse saco de excremento?” (CLUNNY apud DALARUN, 1990, p. 35). O autor, na mesma página do seu texto, ainda recorre a Tertuliano (223 d.C.), que, dirigindo-se a todas as mulheres, exclama: “Não sabes tu que és Eva, ti também? Tu és o Diabo, tu consentiste na sua árvore, foste a primeira a desertar da lei divina”. Jean Delumeau (1990) destaca que Petrarca, no século XIV, identifica a mulher como o próprio diabo, inimiga da paz e fonte de impaciência, uma ocasião de disputas das quais o homem deve manter-se afastado se quer gozar a tranquilidade. Por sua vez, Pedro Custódio (2010) comenta que o corpo feminino e suas especificidades fisiológicas, durante o medievo, era motivo de repulsa. Pois, na obra Etimologia, de Isidoro de Sevilha (560-636), é posto “o poder destrutivo, maléfico e monstruoso do mênstruo”. O mesmo autor ainda menciona que o Papa Inocêncio III (1161-1216), no livro De miseria condicionis humanae, afirmou que esse poder provocaria doenças no homem, morte das plantas, loucura nos cães e ferrugem. Dessa forma, a tradição Judaica e Cristã se utiliza do imaginário de Eva para a construção ideológica da inferioridade da mulher, colocando-a como fonte de todo mal. Foi com o advento da exaltação do culto a Virgem Maria no Cristianismo, como novo modelo de feminilidade, que as filhas Eva encontram alguma redenção, principalmente através de certas regras de conduta, como, submissão e recato. Nesse sentido, Dalarun (1990), em obra já citada, menciona a São Jerônimo (347-420 d.C.), que propunha: “Morte por Eva, vida por Maria”. Do mesmo modo, o medievalista ainda resgata Santo Agostinho, que alegava: “Pela mulher a morte, pela mulher a vida”. Foi com o advento da exaltação do culto a Virgem Maria, como novo modelo de feminilidade, que as filhas de Eva encontraram alguma redenção. O século XII, segundo José Rivair Macedo (2002, p. 70) é a época do impulso mariano, o tempo pleno de Nossa Senhora, que surgiu como redentora para as mulheres, libertando-as da maldição da queda. Esse é o momento em que “celebram o regozijo do sexo feminino com a ‘nova Eva’, a mulher símbolo da pureza, da grandeza e da santidade”. De acordo com Jacques Dalarun (1990, p. 42), “a boa Maria deu a luz a Cristo, e em Cristo deu a luz aos Cristãos. É por isso que a mãe de Cristo é a mãe dos Cristãos e manifesta-se que Cristo e os Cristãos são irmãos”. 204 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 A virgindade da Mãe de Cristo nega a sexualidade de Eva, sempre latente, e por isso condenada pela Igreja. Raquel Lima e Igor Teixeira (2008), dizem que Maria acreditou na anunciação do Anjo e obedeceu aos desígnios divinos. Concebendo sem pecado, tornou-se o protótipo idealizado do feminino e destaca-se pela pureza sexual e pela maternidade. Por intermédio dela, a Igreja conseguiu oferecer uma espécie de saída e redenção as mulheres, descendentes de Eva. Se a mulher não seguisse o ideal da virgindade e castidade, era preferível, então, que se casasse para ser esposa (servir ao homem) e, principalmente, ser mãe. Por sua vez, Eliane Ventorim (2005) chama atenção para o fato de Maria ser um ideal inatingível pelas mulheres comuns, surgindo assim, durante a Idade Média, especialmente no século XI, certo investimento na veneração e culto da figura de Maria Madalena. Ela é a pecadora arrependida, que demonstra que a salvação é possível para todos que abandonam uma vida cheia de pecados. De acordo com Dalarun (1990), Madalena era mais necessária para as mulheres, para quem as vias de salvação eram tão difíceis. Entre a porta da morte e a da vida, Madalena é um caminho para a redenção, ao preço da confissão, do arrependimento e da penitência. O seu pecado é o da carne, da prostituição e foi por meio de acusar a si própria pelos pecados (confissão) que ela foi salva e, dessa maneira, transforma-se num agente de redenção. Madalena se apresenta como um referencial mais acessível às mulheres, pois, embora pecadoras como Eva e não mais ‘virgens’ como Maria (tendo em vista que não seja possível biologicamente dar à luz mantendo-se virgem), permite esperanças de salvação ao se arrependerem de seus pecados. Mesmo assim, seu culto e seus atributos como modelo de feminilidade tiveram de se ancorar no modelo mariano de submissão (ao homem e a Deus) e recato (reprimir sua sexualidade) para conseguir alguma credibilidade. Nesse sentido, Maria é o modelo de feminilidade seguido pela própria Madalena para se legitimar como outro referencial feminino. Em suma, Maria, de certa forma, consegue redimir e libertar as mulheres, principalmente do imaginário que culpabiliza Eva (referente ao pecado original). Porém, não consegue livrá-las do estigma da inferioridade usado para submetê-las a autoridade masculina, restringindo-as ao espaço da família (maternidade) e do lar (ambiente doméstico), reafirmando a necessidade dos atributos de subserviência. 205 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 Quando nos referimos a Eva, as mulheres são reprimidas, enquanto em Maria as mulheres são controladas. Ou seja, as mulheres ainda continuam afastadas de suas posições e status de poder, liderança e criação cosmogônica de outrora, como eram nas sociedades matriarcais. “O parto” do Homem, a usurpação do poder masculino e a esterilidade Feminina Quando os relatos referentes à criação de Lilith como primeira mulher e companheira de Adão desaparecem e Eva é criada, de acordo com o texto da Gênesis, é possível compreender as motivações que retiram do feminino qualquer singularidade divina ou relação direta com o Criador. Pois, Lilith foi criada diretamente por Deus, mesmo que em alguns relatos aludem que ela foi criada de imundícies e não de barro puro, como relata Tubert (1996, p. 96): “Deus criou Lilith, a primeira mulher, assim como havia criado Adão, porém, ao invés de barro puro, usou imundícies e areia”. Eva ao ser “retirada”, criada ou produzida da costela de Adão, sugere que a mulher nasce do homem, um subproduto da obra divina e que ainda pode ser interpretado como a origem da inferioridade e submissão feminina nessa tradição religiosa. Todavia, esse episódio da criação de Adão também pode ser compreendido, segundo Eliade, como indicador [...] da androginia do Homem primordial. Concepções similares são atestadas em outras tradições, inclusive as transmitidas por alguns midrashin. O mito do andrógino ilustra uma crença bastante difundida: a perfeição humana, identificada no antepassado mítico, encerra uma unidade que é, simultaneamente, uma totalidade. [...] Convém frisar que a andrógina humana tem por modelo a bissexualidade divina, concepção compartilhada por muitas culturas (1978, p.196). Podemos perceber nessa passagem, que o homem adquire a condição andrógina e reúne para si qualidades do feminino e masculino, alcançando a perfeição humana, diante de sua unidade e totalidade. Essa união dos princípios do masculino e do feminino é denominada como hierós-gámos, um símbolo de encontro entre o cosmo; a união entre o céu e a terra. O homem, graças a Adão, reúne propriedades divinas, pois destituiu da mulher qualquer indicador direto da 206 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 presença do Criador. Hilário Franco Júnior também compartilha dessa concepção da androginia de Adão quando afirma, A mesma interpretação que via em Adão um andrógino depois dividido apareceria também no Zohar, texto tardio que reunia, contudo, tradições bem anteriores. Enfim, era uma idéia muito difundida no mundo judaico a de que a ‘criação da mulher, a partir do homem, foi possível porque originalmente Adão tinha duas faces, que fora separadas para o nascimento de Eva’ (1996, p. 190). Adão acumula assim essas qualidades do masculino e do feminino que, por intermédio dessa bi-unidade, possui uma totalidade que remonta a concepção andrógina das divindades. Para Eliade (1978), esses atributos coincidem em diversas divindades na qual manifestam os dois sexos. Com isso, a androginia referente ao divino se apresenta como uma fórmula arcaica da bi-unidade divina, pois mesmo antes de o pensamento mítico e religioso começar a exprimir este conceito em termos metafísicos ou teológicos, ele já era expresso em termos biológicos, como a bissexualidade. Interpretamos essa androginia de Adão como ponto institucional da formalização da supremacia masculina no relato da criação no livro do G ênesis, porque é nesse momento, em que da costela extraída do homem que se tem a criação da mulher: Eva. Isso significa que é do homem que nasce a mulher. O homem usurpa a condição e qualidade (sagrada, referente as divindades e biológica, referente ao sistema reprodutor das mulheres) feminina de progenitora, detentora do útero e da fertilidade para, nesse momento, dar à luz. O homem é o progenitor da mulher, sua “mãe” por excelência, pois detém as qualidades de feminino e masculino, portador da centelha divina e obra prima do criador. Tubert relata que é Adão, o primeiro homem, quem nomeia Eva, formalizando o domínio masculino, “[...] uma inversão do curso normal dos acontecimentos. Chama-a ishah (mulher) porque saiu de ish (homem). Ela nasceu dele e não o inverso” (1996, p. 98). Muraro (1993) parece compartilhar dessa ideia quando diz, através do relato da criação contido no livro do Gênesis, que o homem supera um complexo inconsciente, ou seja, a mulher é tirada da costela do homem, em que Adão se convence de que pariu a primeira mulher. A extração da costela de Adão, por parte de Deus, para a geração de Eva simboliza o parto masculino. O homem rouba, de uma vez por todas, qualquer 207 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 resquício de herança divina e sagrada que a Grande Deusa poderia ter deixado para as mulheres, como a fertilidade. Tudo que outrora pertencia as mulheres, através da Grande Deusa, como o poder de dar à luz, um dos motivos que é relacionada com a criação, é tomado pelo homem. O Deus Pai Javé não admite concorrência, não quer governar ao lado de nenhuma outra divindade, sobretudo, feminina. Na cosmogonia da tradição Judaica e Cristã não há espaço para a matrilocação, pois com a instituição do parto masculino, Adão é entendido com a releitura masculina da Grande Deusa. Desse modo, encontramos em Adão sua condição andrógina que o remete a status de divindade, o que lhe permite desfrutar da sua habilidade de gerar vida através da extração de sua costela para dar a luz a Eva, sua companheira. Mesmo que Eva gere seus filhos Caim e Abel, foi Adão quem foi o primeiro ser humano a “dar a luz” a outro ser humano. Adão é o homem primordial em sua totalidade. O mito Judaico e Cristão, através da condição meta-biológica de Adão em “parir”, representa a usurpação dos poderes que, outrora, pertenciam as divindades femininas (como a Grande Deusa) e as sociedades matriarcais, por parte do Deus Pai Jeová. Se, em um primeiro momento, em sociedades antigas e arcaicas se faziam orações, rituais e sacrifícios a divindades, pois representavam entidades sagradas relacionadas a fecundidade da terra, uma vez que possuíam a condição de gerar vida. Com a tradição Judaica e Cristã, as orações são direcionadas ao deus masculino, único e portador de todos os poderes, roubando da Grande Deusa, - como Inanna, como já foi mencionado e outras divindades como Isis (por volta de 2.500 a.C) no tocante ao Egito antigo ou Gaia (por volta de 1.400 a.C) referente a Grécia antiga - e seus poderes de especialista no plantio, cultivo, proteção, combate e colheita dos alimentos, bem como de todas as imagens canônicas que normalmente pertenciam as mulheres e as divindades femininas nas sociedades de matrizes matriarcais. O masculino, por meio de Adão, adquire assim a condição de progenitor e se torna a fonte da vida e da criação que, num primeiro momento, pertencia a Grande Deusa, em que ela era a Mãe e progenitora e dela que nasciam os bebês, e o primeiro contato que eles faziam era justamente com ela. A mãe dá à luz, da mesma forma que da terra nasce as plantas, em que a magia da mãe e da terra são a mesma coisa. “A personificação da energia que dá origem às formas e as alimenta é essencialmente feminina” (CAMPBELL, 1990, p. 177). O Homem, através de Adão, 208 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 nesse sentido, também contempla o feminino, carregando consigo o poder de dar a luz, ou seja, se transforma na “mãe” da mulher, por intermédio de Eva. Considerações Finais O mito Judaico e Cristão, assim como várias mitologias e tradições religiosas, apresenta uma série de representações em torno das relações sociais de gênero e poder, seja em função das suas divindades e seus relatos na criação do mundo, ou como referenciais para o desenvolvimento e organização da sociedade que estão inseridos. Adão adquire os poderes da Grande Deusa, ao se tornar o progenitor da mulher, pois deu a luz à Eva. Nem com a instituição do culto e exaltação a virgem Maria, “espécie” de (re)siginificação da Grande Deusa no imaginário Cristão, foi possível recuperar para as mulheres alguma posição de liderança ou autonomia feminina. Na verdade, a mãe de Cristo está mais próxima de uma porta-voz das ordens do Pai, com a intenção de legitimar a autoridade do homem por meio da mulher. Nesse sentido, para Swain (1998, p. 51), o cristianismo “reintroduz no imaginário a figura da deusa – afastada do poder da criação – através do culto a Maria que reúne, paradoxalmente, os ideais construídos para a mulher na ordem do pai: Virgem e Mãe”. Em suma, Adão pode ser identificado como o homem primordial, bissexuado, andrógino, portador da bi-unidade e totalidade: a perfeição humana. Essa suposta superioridade do homem sobre a mulher e sua legitimação teológica, por intermédio do episódio da criação no texto do Gênesis, ainda corrobora para acentuar a proliferação de estereótipos depreciativos em relação às mulheres, o que permanece até os dias atuais nas sociedades ocidentais, sobretudo no tocante a associação do feminino com a sexualidade, sexo e o corpo como fonte de pecado e depravação. Segundo Le Goff (1994), nas sociedades greco-latinas a sexualidade e o prazer carnal eram valores positivos que reinou uma grande liberdade sexual, em que o principal agente desta inversão foi o Cristianismo, na qual instalou a geral condenação da sexualidade e a estrita regulamentação do seu exercício. Nesta esteira, Franco Júnior (1996) afirma que na mentalidade arcaica, o sexo estava mais na área de atuação do sagrado do que no profano. Todavia, o cristianismo, desde os primeiros séculos, combateu o caráter sagrado da sexualidade (ainda que sem 209 Veredas da História, [online], v. 10, n. 1, p. 194-212, julho, 2017, ISSN 1982-4238 conseguir destruir aquelas estruturas mentais muito antigas), pois o julgava como prática pagã. Nesse encalço que se tem o embate e combate contra a sexualidade relacionado a Eva, como fonte de pecado em detrimento da mulher assexuada em função de Maria, que se permaneceu virgem. Bloch (1995) afirma que a “fascinação” em relação à virgindade de Maria era uma preocupação constante na teologia sacramental medieval. Com isso, é possível perceber que tanto nos primórdios do cristianismo como da Idade Média, houve investimento em relação à constituição dos dogmas marianos, como a maternidade divina de Maria que foi reconhecida no concílio da Calcedônia, em 451, e o dogma da Virgindade Perpétua de Maria que foi reconhecido pouco mais de um século depois, no concílio Constantinopolitano II, no ano de 553. Tubert (1996) destaca que o significado etimológico da palavra virgem não se traduz como ausência de relações sexuais e que foi através de Maria que se modificou essa noção antiga. Para a autora, a palavra está relacionada com as antigas lendas das mulheres guerreiras, como as amazonas, em que “a palavra tem uma conotação de força e autossuficiência. As virgens não tinham um homem, embora tivessem uma grande quantidade de divindades masculinas como parceiros” (TUBERT, 1996, p. 101). Desse modo, a parthenos (virgindade) grega se referia à mulher independente e que não pertenciam a nenhum homem, e não a mulher sem atividade sexual. Por fim, a tradição Judaica e, mais tarde, o Cristianismo conseguiu usurpar não só os poderes da Grande Deusa, mas, no sentido meta-biológico, subverteu as condições do nascimento humano quando é o Homem quem possui o poder de dar a luza, inclusive sendo o progenitor do feminino, como foi retratado no episódio bíblico em que Eva foi extraída da costela de Adão. Referências bibliográficas ADOSAVIO, J.M. et. Alii. Sexo Invisível. São Paulo: Record, 2009. BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985. BARBAS, Helena. A Saga de Inanna (antologia de poemas). Trad. Helena Barbas. Lisboa, 2004. Bíblia de Jerusalém. 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