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ENELIN 2017 textos completos/ VII Encontro de Estudos da Linguagem/ VI Encontro Internacional de Estudos da Linguagem: linguagem, instituições e práticas sociais. Pouso Alegre, 4 a 6 de outubro de 2017 / organização de Eni Puccinelli Orlandi ... [et al.]. – Pouso Alegre: Univás, 2018. 1512p. Vários autores Bibliografia ISBN: 978-85-67647-44-9 1. Ciências da linguagem. 2. Artigos – Coletânea. 3. Análise de discurso. 4. Enelin. 5. Nupel. 6. Ceddem. I. Orlandi, Eni Puccinelli (Org.). II. Massmann, Débora Raquel Hetter (Coord.). III. Nogueira, Luciana (Coord.). IV. Chiareti, Paula (Coord.). V. Título. CDD – 410.1 Realização _______________________________________________________________________________ Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da UNIVÁS Coordenação Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi Núcleo de Pesquisas em Linguagem - NUPEL Coordenação Paula Chiaretti Universidade do Vale do Sapucaí –Univás Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí Reitor Prof. Carlos de Barros Laraia Conselho Diretor Interino Vice-Reitor Prof. Benedito Afonso Pinto Junho Presidente Andrea Silva Adão Reis Pró-Reitora de Graduação Profa. Rosa Maria do Nascimento Vice-Presidente Félix Ocariz Bazzano Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Andrea Silva Domingues Conselheiro Cássio Antonio Fernandes Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários Prof. Antônio Homero Rocha de Toledo Secretária da Presidência Celina Ap. Siqueira da Costa Diretor da Faculdade de C. da Saúde Dr. José Antônio Garcia Coutinho Prof. Antônio Carlos Aguiar Brandão Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Prof. Benedito Afonso Pinto Secretária Geral Janua Coeli Faria de Souza Universidade do Vale do Sapucaí Avenida Prefeito Tuany Toledo, 470 CEP 37.550-000 - Pouso Alegre, MG www.cienciasdalinguagem.net Comissão Organizadora – ENELIN, 2017 Eni Puccinelli Orlandi – Presidente de Honra Débora Raquel Hettwer Massmann – Coordenadora Geral Luciana Nogueira – Coordenadora Geral Paula Chiaretti – Coordenadora do Nupel Andrea Silva Domingues Atilio Catosso Salles Aureci de Fátima Costa Carolina Padilha Fedatto Eduardo Alves Rodrigues Greciely Cristina da Costa Joelma Pereira de Faria Juciele Pereira Dias Juliana Santana Cavallari Lidia Noronha Pereira Maria Onice Payer Newton Guilherme Vale Carrozza Renata Chrystina Bianchi de Barros Telma Domingues da Silva Comitê Científico Eni Puccinelli Orlandi (Univás) Amanda Scherer (UFSM) Ana Sílvia Couto de Abreu (UFSCar) Andrea Silva Domingues (Univás) Carolina de Paula Machado (UFSCar) Débora Raquel Hettwer Massmann (Univás) Eduardo Alves Rodrigues (Univás) Eliana Ferreira (UFJF) Freda Indursky (UFRGS) Greciely Cristina da Costa (Univás) Helson Flávio da Silva Sobrinho (UFAL) Joelma Pereira de Faria (Univás) José Horta Nunes (Labeurb/Unicamp) Juciele Pereira Dias (Univás) Juliana Santana Cavallari (Univás) Leandro Diniz (UFMG) Luciana Nogueira (Univás) Luiz Francisco Dias (UFMG) Maria Bernadete Marques Abaurre (Unicamp) Maria Cristina Leandro Ferreira (UFRGS) Maria Onice Payer (Univás) Maria Teresa Celada (USP) Marie-Anne Paveau (Université Paris XIII) Maristela Cury Sarian (Unemat) Mariza Vieira da Silva (UCB) Newton Guilherme Vale Carrozza (Univás) Paula Chiaretti (Univás) Renata Chrystina Bianchi de Barros (Univás) Romain Descendre (ENS/Lyon) Sylvain Auroux (CNRS) Telma Domingues da Silva (Univás) Comissão Organizadora dos Anais Atilio Catosso Salles Débora Raquel Hettwer Massmann Luciana Nogueira Renata Chrystina Bianchi de Barros Diagramação Atilio Catosso Salles Maria Gorete Ferreira Renata Chrystina Bianchi de Barros Capa Diego Pereira Equipe de revisão Joelma Pereira de Faria Luiza Castello Branco Maria Onice Payer Telma Domingues da Silva Monitores Aline Heloisa Silva Villela Allan Strottmann Kern Ana Julia Andare Morais Atilio Catosso Salles Augusto Ferreira Bárbara Pascoal Oliveira Brena Brandão Cleyton Antônio da Costa Darlene Rodrigues Freitas Diego Henrique Pereira Douglas Machado Edileia Barroco Suhet da Silva Edmara Barra dos Santos Edran Blayner Januário de Souza Fabiane Jesus Fernanda Sperle Fernando Henrique Oliveira Bastos Flávia Azevedo da Silva Francieli Vieira da Silva Costa Gabriel Alves Nogueira Gabriel Pereira Rangel Gabriel Soares Rosa Gisela Nathalia Bueno Nunes Helena Almeida Nogueira Hellen Narciso Aguiar Cordeiro Henrique Moreira Vale de Oliveira Jaciara Ribeiro Jasmine Lemos Melo Jefferson Souza Santos Julia Flores dos Santos Karen Félix da Rocha Leonardo José Rocha Silveira Luciano Alves da Silva Junior Luis Fernando Nogueira dos Santos Luiz Roberto Silva Luiza Santos Pina da Silva Macila Rocha Maria de Lourdes Mendes Pereira Maria Gorete Ferreira Maria Nicolau Mauro Freitas Nathalia Lais Nogueira Pamela Cristina S. de Almeida Patrícia Mayra Almeida Vianna Rafael Raimundo da Silva Rafaela Alcoba Rafaela de Matos Reis Raiane Gabriela dos Santos Pereira Raissa Rodrigues de Carvalho Raphael Araujo Ribeiro Rariele Cristina Rodolfo Mendes Raul Sérgio Murilo Lucas Tamyres Cecília da Silva Thais Siqueira de Meireles Thamara de Oliveira Wanessa Junqueira Megale Wesley Openheiner de Carvalho Sumário Apresentação .........................................................................................................................19 UMA ANÁLISE ENUNCIATIVA DA PALAVRA “POESIA” EM UM LIVRO DIDÁTICO ....................21 ADILSON VENTURA .................................................................................................... 21 RELAÇÃO ENTRE LÍNGUAS: OS CENTROS DE ESTUDOS DE LÍNGUAS (CEL-SP) E A CONFIGURAÇÃO DE UM ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO ...............................................................28 ADRIANA DA SILVA..................................................................................................... 28 OPERAÇÕES DE DETERMINAÇÃO E A ORGANIZAÇÃO DE DOMÍNIOS NOCIONAIS: O FUNCIONAMENTO DE FALSO .................................................................................................36 ALBANO DALLA PRIA .................................................................................................. 36 POTENCIALIDADES PARA O ENSINO: ANÁLISE E REFLEXÕES SOBRE O DISCURSO PUBLICITÁRIO EM TRAILERS FÍLMICOS NA PERSPECTIVA MULTIMODAL ...............................46 ALINE GABRIELLE CORREIA DA COSTA, JINNY KELLY CENTENO RAMOS ......................... 46 UM ENSAIO REFLEXIVO SOBRE O LIVRE ARBITRIO EXPOSTO NA OBRA DE SÓFOCLES: TRILOIGA TEBANA ..................................................................................................................57 ALLAN J M SILVA ........................................................................................................ 57 SEMÂNTICA E ENSINO: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DO ENSINO DA SEMÂNTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA.................................................................................................................64 ALLAN J M SILVA, BARBARA T S SILVA, BIANCA D GOES, BRENA R HOMEM, PAULA C F FERREIRA ................................................................................................................... 64 SUJEITO E SENTIDOS E(M) REDE: CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO ..................73 ATILIO CATOSSO SALLES ............................................................................................. 73 CORPO E(M) PERFORMANCE .................................................................................................79 ATILIO CATOSSO SALLES ............................................................................................. 79 OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE A PRÁTICA DISCURSIVA DOS HACKERS ..................................88 ALLAN STROTTMANN KERN ........................................................................................ 88 CINISMO: UM ESTUDO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA NO DISCURSO ..............97 AMANDA BARBOSA XAVIER COTRIM .......................................................................... 97 OS MECANISMOS DE PRODUÇÃO DE SENTIDO E O PROCESSO DE LEITURA DO TEXTO PUBLICITÁRIO: UM ESTUDO À LUZ DA TEORIA SEMÂNTICA.................................................105 AMANDA CARVALHO SOUZA; ÉRIKA DOURADO AMORELLI ....................................... 105 REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO-ALUNO ACERCA DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA .............................................................................................................115 AMANDA MARIA BICUDO DE SOUZA ........................................................................ 115 OS COMPLEMENTOS VERBAIS NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA ...................122 ANDERSON VITOR DOS SANTOS MENDES ................................................................. 122 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CADETE DA ACADEMIA MILITAR DAS AGULHAS NEGRAS 6 SOB A PERSPECTIVA DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS INSTITUCIONAIS. ....................................131 ANDRÉA LEMOS MALDONADO CRUZ ........................................................................ 131 O IMAGINÁRIO COMO VIA DE TRANSGRESSÃO DO REAL .....................................................137 ANDRÉA PORTOLOMEOS .......................................................................................... 137 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO CAIPIRA NA TELENOVELA ÊTA MUNDO BOM! DE WALCYR CARRASCO ............................................................................................................................141 ANÍSIO BATISTA PEREIRA .......................................................................................... 141 MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA OS DISCURSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PROFESSOR .............................................................................................................................................151 ANTONIO JOSÉ DA SILVA........................................................................................... 151 OS DESAFIOS DA MULHER ASSURINÍ PERANTE A VIOLENCIA DOMESTICA NA ALDEIA INDÍGENA TROCARÁ, MUNICÍPIO DE TUCURUÍ/PA ..............................................................160 BÁRBARA DE NAZARÉ PANTOJA RIBEIRO; BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO ...... 160 A SIGNIFICAÇÃO DA MULHER AGREDIDA: ANÁLISE DE MANCHETES DO G1 DE MG ............167 BÁRBARA DE OLIVEIRA SILVA ................................................................................... 167 MEMÓRIA E EDUCAÇÃO: SABERES, ENSINAMENTOS E APRENDIZAGENS ENTRE CRIANÇAS INDÍGENAS DA REGIÃO DO TOCANTINS, NO PARÁ ..............................................................174 BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO, MARIA DE FÁTIMA RODRIGUES NUNES......... 174 AS BASES FILOSÓFICAS DO DISCURSO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE ..............................184 BENEDITO FERNANDO PEREIRA ................................................................................ 184 MULTIFUNCIONALIDADE DO CONECTOR MAS EM TIRINHAS: ASPECTOS TEXTUAIS, INTERATIVOS E MULTIMODAIS ............................................................................................191 BOUGLEUX BONJARDIM DA SILVA CARMO ............................................................... 191 CONFIGURAÇÕES MULTIMODAIS NA LITERATURA ADAPTADA A QUADRINHOS: A TEXTUALIDADE DO CONTO MACHADIANO ..........................................................................201 BOUGLEUX BONJARDIM DA SILVA CARMO ............................................................... 201 A ARTE COMO DENUNCIADORA DAS TENSÕES DO SOCIAL EM FELIZES PARA SEMPRE? .....211 BRUNO ARNOLD PESCH, RENATA MARCELLE LARA .................................................... 211 ANÁLISE DO DISCURSO E PORTAL VERMELHO – IDENTIFICAÇÃO, SUJEITOS E DISCURSO FUNDADOR ..........................................................................................................................220 BRUNO DE AZEVEDO SANTANA GUIMARÃES ............................................................ 220 LETRAMENTO DIGITAL E ACADÊMICO NO PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO .....................226 BRUNO VIEGAS DOS SANTOS, ELLEN MAIRA DE ALCANTARA LAUDADRES, PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS ..................................................................................... 226 EFEITOS DE SENTIDO A PARTIR DE CHARGES SOBRE O PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO ....232 CARLA CASSIANO DE ALMEIDA, NÁDIA DOLORES FERNANDES BIAVATI...................... 232 LINGUÍSTICA FORENSE, NARRATIVA E DISCURSO: PROPOSTA DE ANÁLISE DAS ALEGAÇÕES DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA EM UM PROCESSO CRIMINAL.................................................240 CARLA LEILA OLIVEIRA CAMPOS ............................................................................... 240 7 O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRIATIVA VI O ENSINO DE ESCRITA CRIATIVA NAS AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA .........................................................................................250 CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO ................................................................... 250 THE MEANING MAKING OF DIGITAL MULTIMODAL TEXTS BY UNDERGRADUATE STUDENTS .............................................................................................................................................258 CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO ................................................................... 258 PSICANÁLISE E ANÁLISE DE DISCURSO: A HOMOLOGIA DOS DISPOSITIVOS DE INTERPRETAÇÃO ..................................................................................................................265 CAROLINA COSTA CARVALHO BIONDI ....................................................................... 265 CONCEPÇÕES DE FAMÍLIA CONSTRUÍDAS A PARTIR DA LEI E DA LITERATURA.....................273 CAROLINA DO PRADO FRANCO ................................................................................. 273 O SILENCIAMENTO DA CULTURA NEGRA E INDÍGENA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA .............................................................................................................................................280 CÁSSIO S. CASTANHEIRA ........................................................................................... 280 LEITURA E PRODUÇÃO DE INFERÊNCIAS EM PROCESSOS SELETIVOS DE AVALIAÇÃO SERIADA .............................................................................................................................................291 CLAUDIA ALVES PEREIRA BRAGA, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ...................... 291 DA LEITURA AO RECONTO: A LINGUAGEM INFANTIL COMO UM PROCESSO DE INTERAÇÃO VERBAL .................................................................................................................................300 CLÁUDIA ROQUINI NASCIMENTO, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ........................ 300 A LINGUAGEM LITERÁRIA NA FORMAÇÃO DO SUJEITO CRÍTICO .........................................306 CLÉLIO BRAZ DE SOUZA, SOPHIA ASSIS RODRIGUES................................................... 306 A ORALIDADE COMO PARTE DO ENSINO DE LITERATURA....................................................314 DAIANNA B. A. POMPEU........................................................................................... 314 O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM EM CONTEXTOS DIGITAIS NAS AULAS DOS PROFESSORES DE LÍNGUAS ..................................................................................................324 DANIELLE CRISTINE SILVA ......................................................................................... 324 CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM E MEMÓRIA NA DOENÇA DE ALZHEIMER: CENÁRIO DAS PESQUISAS SOBRE A TEMÁTICA ................................................333 DANIELY MARTINS DOS SANTOS FERRAZ, NIRVANA FERRAZ SANTOS SAMPAIO ......... 333 A REPRESENTAÇÃO DO CORPO FEMININO EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS NA TV: A DITADURA DA BELEZA PRESENTE NOS COMERCIAIS DE LINGERIE .......................................339 DARLENE RODRIGUES DE FREITAS ............................................................................. 339 O “ET DE VARGINHA”: UMA COMPREENSÃO DISCURSIVA SOBRE O “CASO” .......................346 DIEGO HENRIQUE PEREIRA ....................................................................................... 346 LEITURA DE CHARGES E DISCURSOS JUVENIS: UMA ABORDAGEM SOBRE CIDADANIA NO FACEBOOK ............................................................................................................................366 EDILAINE GONÇALVES FERREIRA DE TOLEDO ............................................................. 366 EFEITOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NAS FUNÇÕES EXERCIDAS POR EDUCADORES E 8 EDUCANDOS.........................................................................................................................376 EDMARA BARRA DOS SANTOS .................................................................................. 376 QUEM É CRIMINOSO? ..........................................................................................................383 EDUARDO SANTOS DE OLIVEIRA ............................................................................... 383 “REDONDO É SAIR DO SEU QUADRADO”: UMA ANÁLISE DAS FORMAS DO SILÊNCIO NO VÍDEO “VIVA A DIFERENÇA”, DA SKOL .................................................................................391 ELAINE CANISELA FERREIRA ...................................................................................... 391 O DISCURSO ROMÂNTICO BRASILEIRO E O APAGAMENTO DO POLÍTICO: O MODO DE INDIVIDUAÇÃO DO SUJEITO BRASILEIRO E O PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO NA RELAÇÃO COM O ESTADO ....................................................................................................................397 ÉLCIO ALOISIO FRAGOSO .......................................................................................... 397 DISCURSO NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO: ORGANISMOS INTERNACIONAIS, GERÊNCIA DE CRISES E INCLUSÃO ..........................................................................................................................406 ELIANA LÚCIA FERREIRA, SANDRO VIEIRA TEÓFILO .................................................... 406 A DEPRESSÃO HOJE: OS TRANSTORNOS COMO LINHAS TÊNUES DE FRONTEIRA ENTRE O NORMAL E O PATOLÓGICO ..................................................................................................413 ELISA MARA DO NASCIMENTO.................................................................................. 413 O FEEDBACK FORMATIVO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE INGLÊS EM UM CURSO ONLINE DE MESTRADO ......................................................................................420 ELISA MATTOS DE SÁ ................................................................................................ 420 NETSPEAK E EMOJIS NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE INGLÊS: UMA INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA ONLINE...................................................................................430 ELISA MATTOS DE SÁ ................................................................................................ 430 DISCURSO LITERÁRIO E EDIÇÃO: PARA/PERITEXTOS LEGITIMADORES.................................439 ELISSON FERREIRA MORATO..................................................................................... 439 O RECONTO ORAL DE NARRATIVA LITERÁRIA E SUAS POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A TRADIÇÃO CULTURAL E PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO ..................................................447 ELLEN MAIRA DE ALCANTARA LAUDADRES, PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS .... 447 CORPO(S) DO FEMINI-N/SM-O EM PROTESTO: IMAGEM, MEMÓRIA, IDEOLOGIA E DISCURSO .............................................................................................................................................450 EMANUEL ANGELO NASCIMENTO ............................................................................. 450 LINGUAGEM E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: O ATO DE ESCUTAR EM INTERFACE COM A LEITURA.............................................................................................................................459 EMANUELA FRANCISCA FERREIRA SILVA ................................................................... 459 OS SENTIDOS DE CONECTIVIDADE EM DISCURSOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS .......................468 ERIKA KRESS............................................................................................................. 468 RELATOS DE VIAGEM: OS BOROROS EM UMA LEITURA DISCURSIVA ...................................476 FÁTIMA GRAZIELE DE SOUZA, WEVERTON ORTIZ FERNANDES ................................... 476 PONTOS DE CULTURA: DAS AMARRAS DO SUJEITO AO ESPAÇO NACIONAL ........................484 9 FELIPE AUGUSTO SANTANA DO NASCIMENTO........................................................... 484 O DISCURSO E O PODER NA ESTRATÉGIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO FINANCEIRA ..............492 FERNANDO BATISTA PEREIRA, HÉLCIUS BATISTA PEREIRA ......................................... 492 O PORTA-VOZ E O POVO: HOMOGENEIZAÇÕES E SUAS IMPLICAÇÕES EM GETÚLIO VARGAS .............................................................................................................................................502 FLAVIO DA ROCHA BENAYON, RENATA ORTIZ BRANDÃO ........................................... 502 UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE A CAMPANHA PUBLICITÁRIA DA FACECA 2015 .................511 FLÁVIO MARCELO DE CARVALHO SILVA .................................................................... 511 OS MULTILETRAMENTOS EM CONTEXTO ESCOLAR: UMA ANÁLISE DE MATERIAIS DIDÁTICOS UTILIZADOS EM AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA ...............................................................523 FRANCIELI APARECIDA DIAS ...................................................................................... 523 AS MÃOS COMO METÁFORA NA ANÁLISE DE DISCURSO .....................................................533 FRANCISCO ANTONIO ROMANELLI ............................................................................ 533 O ANÚNCIO PUBLICITÁRIO: TRANSFORMAÇÃO DE LINGUAGENS E DE SUJEITOS ................545 GABRIELLA MARQUES SIQUARA SILVA, ALINE GABRIELLE CORREIA DA COSTA, ISABELA VIEIRA LIMA ............................................................................................................. 545 A ORGANIZAÇÃO DA HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA E DOS PONTOS DE VISTAS EM CHARGES DA MAFALDA........................................................................................................555 GABRIELA PACHECO AMARAL, JAQUELINE DOS SANTOS BATISTA SOARES ................. 555 AS VOZES QUE SILENCIAM: UMA ANÁLISE SOBRE O SILÊNCIO EM VIDAS SECAS .................564 GABRIELA PACHECO AMARAL ................................................................................... 564 DISCURSO PATRIARCAL E VIOLÊNCIA: BOURDIEU E A DOMINAÇÃO APRENDIDA ................574 GABRIELA SOARES BALESTERO ................................................................................. 574 LITERATURA E DIREITO: ANALISANDO “METAMORFOSE” DE FRANZ KAFKA ........................584 GABRIELA SOARES BALESTERO ................................................................................. 584 O LUGAR SOCIAL DO LOCUTOR NO ACONTECIMENTO DA ESCRAVIDÃO .............................593 GEORGES SOSTHENE KOMAN ................................................................................... 593 O DESABROCHAR POÉTICO DA LEITURA: EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS NA SALA DE LEITURA CLARICE LISPECTOR ..............................................................................................................599 GILMA GUIMARÃES LISBOA, GILCILENE DIAS DA COSTA ............................................ 599 ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NAS INICIATIVAS FEDERAIS PARA A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL ..............608 GIOVANNA RODRIGUES CABRAL, POLLYANNA MARIA RESENDE ................................ 608 VILÃO OU VÍTIMA: UMA ANÁLISE DOS ENQUADRAMENTOS DOS PAÍSES NOS CONFLITOS DO GOLFO PÉRSICO PELAS MANCHETES BRASILEIRAS ...............................................................617 GISELA CARDOSO TEIXEIRA ....................................................................................... 617 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS UTILIZADAS NO DEBATE POLÍTICO TELEVISIVO AO GOVERNO DO ESTADO DO AMAPÁ .............................................................................................................627 10 GUASIARA DA SILVA MELO, MIRIAM MAIA DE ARAÚJO PEREIRA ............................... 627 “COM JEITINHO...” UMA ANÁLISE RETÓRICA DO DISCURSO DO PAPA FRANCISCO .............639 GUILHERME BERALDO DE ANDRADE ......................................................................... 639 CONSUMO, IMAGEM, CORPO ..............................................................................................646 GUILHERME CARROZZA, GABRIEL PAIVA ROSA GASPAR ............................................ 646 EFEITOS DE SENTIDO NOS TÍTULOS DA PLAYLIST “BEE COMENTA” DO VLOG CANAL DAS BEE .............................................................................................................................................658 HAÍSA WILSON LIMA CRUZ ....................................................................................... 658 A METÁFORA COMO RECURSO ARGUMENTATIVO EM TEXTOS DO SÉCULO XIX NO JORNAL “GAZETA DE NOTÍCIAS”: UM ESTUDO DE CASO ...................................................................668 HEBERTH PAULO DE SOUZA ...................................................................................... 668 MULTILETRAMENTOS: POTENCIALIDADES DO ESTUDO DO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NA SALA DE AULA ...............................................................................................................................677 HELENA MARIA FERREIRA, LAÍS GONÇALVES SILVA, HELOYDECARLO BATISTA MARQUES DA COSTA ................................................................................................................ 677 CAPACIDADES DE LINGUAGEM: SINALIZAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR PROFICIENTE .............................................................................................................................................684 HELENA MARIA FERREIRA, NATÁLIA RODRIGUES SILVA DO NASCIMENTO, LAÍS GONÇALVES SILVA .................................................................................................... 684 A REPRESENTAÇÃO DE LEITURA NAS TIRINHAS DE LANCAST MOTA ....................................691 HELEONARA GABRIELA SOUZA DE PAULA, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ............ 691 O GÊNERO CONTO MARAVILHOSO EM SALA DE AULA: POTENCIALIDADES PARA A AMPLIAÇÃO DE HABILIDADES DE LEITURA E NA ESCRITA ....................................................700 HELOYDECARLO BATISTA MARQUES DA COSTA, LARA TRANALI MENDONÇA OLIVEIRA ................................................................................................................................ 700 RECURSOS TECNOLÓGICOS E NARRATIVAS DIGITAIS: QUE HISTÓRIAS ESTAMOS CONTANDO? .............................................................................................................................................706 ISABEL CRISTINA DORNELAS DA COSTA, MARIANA MELO COSTA, ANA ELYSA BASTOS DE CASTRO.................................................................................................................... 706 TUTORIAL: UMA ALTERNATIVA PRÁTICA DE ENSINO ...........................................................714 ISABELA VIEIRA LIMA, GABRIELLA MARQUES SIQUARA SILVA .................................... 714 A OBRA DE ARTE ENQUANTO EXPRESSÃO DA TRANSFORMAÇÃO SIMBÓLICA ....................722 MARIANA REZENDE DINI .......................................................................................... 722 A VIOLÊNCIA DISCURSIVA EM REDES SOCIAIS CONTRA REFUGIADOS ..................................728 JAQUELINE APARECIDA NOGUEIRA, LUCAS GUEDES VILAS BOAS ............................... 728 DIALOGISMO E CONSTRUÇÃO DO ACONTECIMENTO NAS MÍDIAS JORNALÍSTICAS: UM ESTUDO COMPARATIVO À LUZ DA ANÁLISE DO DISCURSO .................................................738 JAQUELINE DOS SANTOS BATISTA SOARES ................................................................ 738 A PRESENÇA DOS ADVÉRBIOS MODALIZADORES COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA NO GÊNERO CHARGE .................................................................................................................746 11 JENIFFER APARECIDA PEREIRA DA SILVA, IRENE LEIDE ALMEIDA MIGUEZ, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ............................................................................................ 746 LETRAMENTO MULTIMODAL: A MULTIMODALIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES EM DIFERENTES CONTEXTOS ..........................................................................................................................754 JENIFFER APARECIDA PEREIRA DA SILVA, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ........... 754 LÍNGUA INGLESA, TRANSCULTURALIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE: PERCURSOS E REPRESENTAÇÕES DOCENTES NO ENSINO FUNDAMENTAL I ...............................................764 JOANA DE SÃO PEDRO .............................................................................................. 764 O FALAR DA COMUNIDADE QUILOMBOLA CAMPINA DE PEDRA NO MUNICÍPIO DE POCONÉMT ........................................................................................................................................769 JOCINEIDE MACEDO KARIM ...................................................................................... 769 GOLPE E IMPEACHMENT: A NOÇÃO DE SLOGAN NAS FORMULAÇÕES E CIRCULAÇÕES DE SENTIDOS NOS TEXTOS MIDIÁTICOS ....................................................................................779 JOSÉ BRAULIO DA SILVA JUNIOR, ALINE SADDI CHAVES ............................................. 779 A PRELAZIA DE CAMETÁ E A EDUCAÇÃO POPULAR NO BAIXO TOCANTINS, NO PARÁ .........788 JOSÉ RIVALDO ARNAUD LISBOA, BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO.................... 788 PRÁTICAS DE LEITURA, TECNOLOGIA E ESCOLA ...................................................................797 JUCIELE PEREIRA DIAS, LUCIANA NOGUEIRA ............................................................. 797 LINGUAGEM DA CRIANÇA: A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS A PARTIR DA RELEITURA DE IMAGENS ..............................................................................................................................806 JULIANA PAULA DE OLIVEIRA, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART .............................. 806 A LITERATURA COMO MEIO DE ESTÍMULO AO PENSAMENTO CRÍTICO ...............................815 JULIANA PEREIRA ANDRADE ..................................................................................... 815 O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA GRADUAÇÃO: UMA PRÁTICA POR MEIO DO GÊNERO RESENHA CRÍTICA .................................................................................................................825 JÚLIO CÉSAR PAULA NEVES, JAQUELINE APARECIDA NOGUEIRA ................................ 825 A CONSTRUÇÃO DA OPINIÃO EM REDES SOCIAIS: AS VINCULAÇÕES POLÍTICO-IDEOLÓGICAS NO DISCURSO .......................................................................................................................831 JUSSATY LUCIANO CORDEIRO JUNIOR ....................................................................... 831 O MAPEAMENTO DAS CAPACIDADES DE AÇÃO EM PROPOSTAS DE LEITURA DE TIRAS DE HUMOR: UMA ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS ....................................................................842 LARA TRANALI MENDONÇA OLIVEIRA ....................................................................... 842 A QUESTÃO DO APAGAMENTO DO SUJEITO DENTRO DO GÊNERO FANTÁSTICO ................849 LARISSA SENA ROCHA DO NASCIMENTO ................................................................... 849 O DISCURSO DAS FINANÇAS PESSOAIS VOLTADO ÀS MULHERES: RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS E ESTEREÓTIPOS ...................................................................................853 LARYSSA CALIXTO MILITÃO, LEONARDO BIAZOLI, CARLA LEILA OLIVEIRA CAMPOS, JOÃO PAULO DE BRITO NASCIMENTO ................................................................................ 853 ANÁLISES DE DEFINIÇÕES GRAMATICAIS EM LIVROS DIDÁTICOS À LUZ DE PERINI E OUTROS TEÓRICOS .............................................................................................................................864 12 LETÍCIA DA SILVA ZARBIETTI COÊLHO , LILIAN PACHECO MONTEIRO DA COSTA , LUCIANO MAGNO ROCHA, ANNA CAROLINA FERREIRA CARRARA RODRIGUES , LIDIA MARIA NAZARÉ ALVES ............................................................................................. 864 ANÁLISE DIACRÔNICA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA DIAFÁSICA: CARTA E EMAIL ..................873 LETICIA DA SILVA ZARBIETTI COÊLHO, MAIDA DE FREITAS ALVES, LUCIANO MAGNO ROCHA, LIDIA MARIA NAZARÉ ALVES ........................................................................ 873 LEITURA DE FÉRIAS: O QUE OS USUÁRIOS DO TWITTER ESTÃO LENDO? .............................883 LETÍCIA DA SILVA ZARBIETTI COÊLHO, LILIAN PACHECO MONTEIRO DA COSTA, LUCIANO MAGNO ROCHA, LIDIA MARIA NAZARÉ ALVES .......................................................... 883 IDEOLOGIA, CORPO E MEMÓRIA: A INDIVIDUAÇÃO DO SUJEITO TRAVESTI PELO DISCURSO MARGINAL ...........................................................................................................................889 LIDIA NORONHA PEREIRA ......................................................................................... 889 HOMEM VERSUS MULHER: GESTOS POLÍTICOS NA/PELA FOLHA DE S. PAULO EM ENTREVISTA COM LAERTE COUTINHO .................................................................................896 LIDIA NORONHA PEREIRA ......................................................................................... 896 INCLUSÃO ESCOLAR DO ALUNO SURDO: ALGUNS SENTIDOS POSSÍVEIS .............................904 LISIANE FLORES DE OLIVEIRA STRUMIELLO ................................................................ 904 POLÍTICAS DE LÍNGUA(S) E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO .............................911 LOURDES SERAFIM DA SILVA .................................................................................... 911 PSICOTERAPIA DE GRUPO NUMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL.............919 LUANA DE CÁSSIA FARIA .......................................................................................... 919 SÃO BENEDITO, “O NEGRO”: CONFLITOS E RESISTÊNCIAS EM PIRANGUINHO/MG NO INÍCIO DO SÉCULO XX ......................................................................................................................928 LUCAS INÁCIO RODRIGUES ....................................................................................... 928 A FESTA MAIS DOCE DO BRASIL: PIRANGUINHO E A FESTA DO MAIOR PÉ DE MOLEQUE DO MUNDO ................................................................................................................................938 LUCAS INÁCIO RODRIGUES ....................................................................................... 938 EDUCAÇÃO E TRABALHO NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC): LINGUAGEM, INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS SOCIAIS ......................................................................................948 LUCIANA NOGUEIRA, JUCIELE PEREIRA DIAS ............................................................. 948 MEMÓRIAS E SIMBOLOGIAS: A LINGUAGEM IDENTITÁRIA DOS SINOS DA CIDADE DE SÃO JOÃO DEL- REI ......................................................................................................................959 LUCIANE ANDREA DE OLIVEIRA, MARIA GORETTI LIMA GUIMARÃES, PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS, RAFAEL JOSÉ DE SOUSA .............................................................. 959 FOTOGRAFIA COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA ...............................................................964 LUDMILA MAGALHÃES NAVES, DALVA DE SOUZA LOBO ............................................ 964 FOTOGRAFIA COMO ARTE LITERÁRIA NA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS ..................................974 LUDMILA MAGALHÃES NAVES, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ............................. 974 A RELAÇÃO ALUNO-ESCRITA: QUESTÕES RELATIVAS À DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO ............................................................................................981 13 LUZIA ALVES ............................................................................................................. 981 LINGUAGEM POÉTICA COMO ESTRATÉGIA PARA AQUISIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA LEITURA .............................................................................................................................................992 MARAISA DOS SANTOS, DALVA DE SOUZA LOBO ....................................................... 992 DIREITO E LINGUAGEM: HERMENÊUTICA E DESVELAMENTO DO SER ...............................1000 MARCELA ANDRADE DUARTE, RAFAEL LAZZAROTTO SIMIONI ................................. 1000 UM OLHAR BAKHTINIANO PARA O FILME “A CHEGADA” ...................................................1009 MARCELA ARANTES MEIRELLES, TÂNIA MARA SILVEIRA DIAS .................................. 1009 ASPECTOS LINGUÍSTICO-EDUCACIONAIS DA TEORIA CULIOLIANA .....................................1016 MARCOS LUIZ CUMPRI ........................................................................................... 1016 A ESCRITA DO GÊNERO ACADÊMICO ENSAIO: UMA REFLEXÃO SOBRE ARGUMENTATIVIDADE E AUTORIA ..........................................................................................................................1024 MARIA DA PENHA BRANDIM DE LIMA, MARIA CRISTINA RUAS DE ABREU MAIA ...... 1024 SOBRE A LINGUAGEM DE MOBILIZAÇÃO E RESISTÊNCIA POLÍTICA NO ESPAÇO DA INTERNET, ATRAVÉS DE TEXTOS “MANIFESTOS” .................................................................................1034 MARIA DO CARMO DE OLIVEIRA MOREIRA DOS SANTOS......................................... 1034 O POLÍTICO NA LINGUAGEM: UMA ANÁLISE DE DICIONÁRIOS ESPECIALIZADOS SOBRE A ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL ........................................................................................1044 MARIA FERNANDA FACCIPIERI SILVA ...................................................................... 1044 O DINAMISMO DA LINGUAGEM NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ........................................1056 MARIA GORETE FERREIRA....................................................................................... 1056 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E A MIDIATIZAÇÃO DO TRABALHO E DO TRABALHADOR: O LUGAR DA REALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL ...................................................1063 MARIA ISABEL BRAGA SOUZA ................................................................................. 1063 ANÁLISE DO DISCURSO VIA “OS POEMAS” DE MÁRIO QUINTANA .....................................1071 MARIA NICOLAU .................................................................................................... 1071 GRAFOS NA LEITURA DE AD ...............................................................................................1082 MARIANA GARCIA DE CASTRO ALVES ...................................................................... 1082 A BÍBLIA COMO TEXTO LITERÁRIO EM MOTION GRAPHICS: O QUE PENSAM OS LEITORES INTERNAUTAS ....................................................................................................................1089 MARIANA JUNIA GOUVEA DOS SANTOS, CYNTHIA AGRA DE BRITO NEVES ............... 1089 A PERSPECTIVA TEOLÓGICA FEMINISTA E A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO EQUIVALENTE DO FEMININO.....................................................................................................................1099 MARIANA REZENDE DINI ........................................................................................ 1099 ARGUMENTAÇÃO E MULTIMODALIDADE: UMA ANÁLISE DOS MECANISMOS ENUNCIATIVOS PRESENTES EM GÊNEROS MULTIMODAIS ..........................................................................1108 MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA, CLAUDIA ALVES PEREIRA BRAGA .................... 1108 A CRIAÇÃO IMAGINÁRIA E RELEITURA DE IMAGENS: UM ESTUDO SOBRE A LINGUAGEM DA CRIANÇA .............................................................................................................................1118 14 MELINA CARVALHO BOTELHO, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ........................... 1118 NAS NOTAS DE ALENCAR: REFLEXÕES ACERCA DO FEMININO ...........................................1127 MILENA PALHA, VANISE MEDEIROS ........................................................................ 1127 A EDUCAÇÃO E O ALUNO EM PROPAGANDAS GOVERNAMENTAIS, UM OLHAR PARA AS REPETIÇÕES ........................................................................................................................1133 MILENE MACIEL CARLOS LEITE ................................................................................ 1133 A APRENDIZAGEM DA ESCRITA E SUAS IMPLICACÕES NA VIDA DO SUJEITO SURDO .........1139 MIRIAM MAIA DE ARAÚJO PEREIRA ........................................................................ 1139 ENQUADRANDO O CONCEITO “CORRUPÇÃO: UMA ANÁLISE COGNITIVA E DISCURSIVA DAS METÁFORAS SOBRE CORRUPÇÃO ......................................................................................1149 NATÁLIA ELVIRA SPERANDIO .................................................................................. 1149 A PRODUÇÃO DAS BIBLIOTECAS DIGITAIS E A QUESTÃO DOS DIREITOS AUTORAIS NO GESTO DE COMPARTILHAR ............................................................................................................1157 NATÁLIA RODRIGUES SILVA ..................................................................................... 1157 EDUCAÇÃO PARA O PENSAR: UMA EXPERIÊNCIA EM PIRANGUINHO-MG .........................1165 NATANAEL DOS SANTOS SILVA, ELIZABETH DA SILVA .............................................. 1165 O COBRADOR, DE RUBEM FONSECA: O RECURSO DA VIOLÊNCIA ATRAVÉS DOS PALAVRÕES ...........................................................................................................................................1172 NATANAEL LUIZ ZOTELLI FILHO ............................................................................... 1172 O NOME PRÓPRIO DE ESCRAVO NAS CARTAS DO CONDE DO PINHAL ...............................1183 NAYARA FERNANDA DORNAS, SOELI MARIA SCHREIBER DA SILVA .......................... 1183 REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A LEITURA DE TEXTOS FÍLMICOS NA PERSPECTVA DA ANÁLISE DE DISCURSO: OUTROS SENTIDOS POSSÍVEIS ....................................................................1193 NEURES BATISTA DE PAULA SOARES, EDINETH FRANÇA SOUSA SILVA ALVES ........... 1193 UMA VOZ DA MANTIQUEIRA NA INTERNET: A PORTEIRA DO MATO .................................1199 NILO SERGIO S. GOMES, IRIS AGATHA DE OLIVEIRA ................................................. 1199 MOVIMENTOS ARGUMENTATIVOS DA ESCRAVIDÃO E DA ANTIESCRAVIDÃO NO JORNAL O ABOLICIONISTA ..................................................................................................................1205 NIRCE APARECIDA FERREIRA SILVÉRIO .................................................................... 1205 SEMIÓTICA: A PERCEPÇÃO DOS TERMOS JURÍDICOS .........................................................1214 PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS, BRUNO VIEGAS DOS SANTOS ....................... 1214 CORPO E SUBJETIVIDADE EM I WANT A FAMOUS FACE .....................................................1224 PAULA CHIARETTI ................................................................................................... 1224 A PUBLICIDADE EM DIFERENTES CONTEXTOS: IMPACTOS DAS TECNOLOGIAS NA (RE)CONFIGURAÇÃO DO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO .............................................................1229 PAULA SILVA ABREU, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ...................................... 1229 CONTORNOS DE UMA VIDA A PARTIR DE UM DISCURSO DE POSSE ..................................1239 POLLYANNA JÚNIA FERNANDES MAIA REIS ............................................................. 1239 15 OS JOGOS DE (DES)CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA EM UMA NARRATIVA DE VIDA ..................1247 POLLYANNA JÚNIA FERNANDES MAIA REIS ............................................................. 1247 ANALFABETISMO E LETRAMENTO SOCIAL: AS DIVERSAS FORMAS DE APRENDER .............1257 POLLYANNA MARIA RESENDE, CAROLINNE MACHADO BARRA, DÉBORAH OLIVEIRA SILVA ..................................................................................................................... 1257 DISPUTAS SIMBÓLICAS NO CAMPO ESCOLAR ....................................................................1263 RAFAEL XAVIER TOLENTINO .................................................................................... 1263 IMAGINÁRIOS DA SEXUALIDADE: PROBLEMAS DE GÊNERO ..............................................1271 RAÍSSA RODRIGUES DE CARVALHO ......................................................................... 1271 EFEITOS DE SENTIDO, INTERDISCURSO E MEMÓRIA: UM EXAME DOS MEMES “NEGO ISSO, NEGO AQUILO” ..................................................................................................................1280 RAQUEL COSTA GUIMARÃES NASCIMENTO, ERISLANE RODRIGUES RIBEIRO ............ 1280 A CONSTRUÇÃO DOS SUJEITOS BRASILEIROS NA ENUNCIAÇÃO PRESIDENCIAL DE GETÚLIO VARGAS: UMA ANÁLISE SEMÂNTICA DA PROCLAMAÇÃO DE 1937 ....................................1288 RENATA ORTIZ BRANDÃO ....................................................................................... 1288 DISPOSITIVO E DISCURSO NO DESIGN DA PRIMEIRA PÁGINA DO JORNAL IMPRESSO .......1298 RICARDO AUGUSTO ORLANDO ............................................................................... 1298 INTERAÇÃO E ORALIDADE NOS BLOGS DE VIAGEM: uma análise do blog Esse Mundo é Nosso ...........................................................................................................................................1309 ROBERTA VIEIRA FÁVARO GÜNTHER ....................................................................... 1309 A COMPLEXIDADE DO FORMALISMO DA LINGUAGEM JURÍDICA FRENTE À PRECARIEDADE DA COMPREENSÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA ......................................................................1318 RODRIGO RIOS FARIA DE OLIVEIRA ......................................................................... 1318 “O MUNDO TEM UMA NOVA EMBALAGEM”: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA CAMPANHA PUBLICITÁRIA DA VALE FÉRTIL ...........................................................................................1326 ROSANA CRISTINA GIMAEL ..................................................................................... 1326 LINGUAGEM ORAL, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA: A FORÇA DO CANDOMBLÉ E DA “DANÇA DE SANTO” ..............................................................................................................................1336 SANDRA CORDEIRO MOLINA .................................................................................. 1336 A PROJEÇÃO IMAGINÁRIA DA/PARA ESCOLA DO CAMPO ..................................................1343 SANDRA REGINA SILVA, ANA LUIZA ARTIAGA RODRIGUES DA MOTTA ..................... 1343 A MATERIALIDADE VERBAL E A NÃO VERBAL: UM OLHAR DISCURSIVO PARA A OBRA DE CLARICE FREIRE ..................................................................................................................1351 SARA JONAS DE ASSIS, STELLA MARIS RODRIGUES SIMÕES ..................................... 1351 ESTRATÉGIAS DE CATEGORIZAÇÃO/REFERENCIAÇÃO NA FALA DE UMA ESTUDANTE SECUNDARISTA ..................................................................................................................1358 SÉRGIO CASIMIRO .................................................................................................. 1358 A LEITURA LITERÁRIA NA AFIRMAÇÃO DA SUBJETIVIDADE ................................................1367 SIMONE APARECIDA BOTEGA, ANDRÉA PORTOLOMEOS ......................................... 1367 16 SENTIDOS QUE EMANAM DO MATERIAL DE DIVULGAÇÃO DE CAMPANHAS DA DENGUE NO MUNICÍPIO DE VARGINHA ..................................................................................................1374 SIMONE CATARINA SILVA ARCHANJO ..................................................................... 1374 ARGUMENTAÇÃO, ARGUMENTATIVIDADE E PERSPECTIVAÇÃO NA CARTA DO ESCRAVO FELÍCIO E NA LEI NA ATUALIDADE ......................................................................................1382 SOELI MARIA SCHREIBER DA SILVA ......................................................................... 1382 A PROPOSTA DE REDAÇÃO DO ENEM: MEMÓRIA DISCURSIVA EM BLOCO .......................1389 STELLA MARIS RODRIGUES SIMÕES ........................................................................ 1389 O DISCURSO DO RISCO EM HIV/AIDS E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES .......................1398 STÉPHANIE LYANIE DE MELO E COSTA ..................................................................... 1398 O DISCURSO SOBRE O ENSINO MÉDIO NOS PROJETOS VOLTADOS À PROFISSIONALIZAÇÃO ...........................................................................................................................................1410 TAMYRES CECÍLIA DA SILVA .................................................................................... 1410 POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ENSINO MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE: RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM E TRABALHO ..................................................................................................1419 TAMYRES CECÍLIA DA SILVA .................................................................................... 1419 DIZENDO DO CORPO COM O CORPO: ANÁLISE DE UMA PERFORMANCE EMBLEMÁTICA DO FEMINISMO ........................................................................................................................1428 TELMA DOMINGUES DA SILVA ................................................................................ 1428 A ESPACIALIZAÇÃO DA LEITURA NO JORNAL, DA CIDADE AO DIGITAL ...............................1435 TELMA DOMINGUES DA SILVA ................................................................................ 1435 ANÁLISE ARGUMENTATIVA DAS NARRATIVAS FEMININAS SOBRE O ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS ....................................................................................................................1441 TATIANA AFFONSO FERREIRA PAIVA ....................................................................... 1441 BELA, RECATADA E DO LAR: UM OLHAR SOBRE A IMAGEM DA MULHER BRASILEIRA .......1452 TATIANA BARBOSA DE SOUSA ................................................................................ 1452 DISCURSO E MÍDIA: MARCELO CRIVELLA NAS ELEIÇÕES DO RIO DE JANEIRO ....................1462 TATIANE DOS SANTOS ALVES, EDVANIA GOMES DA SILVA....................................... 1462 A FORÇA DAS PALAVRAS: OS SENTIDOS DO SUCESSO ........................................................1467 THIAGO SOARES ..................................................................................................... 1467 “A MARCHA DA FAMÍILIA COM DEUS PELA LIBERDADE” (1964 E 2014): CONSTRUÇÃO DO ACONTECIMENTO E PAPEL ATRIBUÍDO À MULHER PELO JORNAL “O GLOBO” ..................1476 TÚLIO SOUSA VIEIRA, WILLIAM AUGUSTO MENEZES ............................................... 1476 DISCURSO E TURISMO: A FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM SILVIANÓPOLIS – MINAS GERAIS ....................................................................................................................1487 VANESSA JUNQUEIRA MEGALE, ANDREA SILVA DOMINGUES .................................. 1487 JUVENTUDE, REDES E TRANSTORNOS ALIMENTARES:UMA ESCUTA DISCURSIVA DOS SUJEITOS DA ANOREXIA E DA BULIMA ...............................................................................1496 WEDENCLEY ALVES SANTANA, NATHÁLIA VILLANE RIPPEL ....................................... 1496 17 A MÍDIA IMPRESSA NEOPENTECOSTAL SOBRE O GÊNERO E A SEXUALIDADE....................1506 WELLTON DA SILVA DE FATIMA .............................................................................. 1506 18 Apresentação O VII Encontro de Estudos da Linguagem e VI Encontro Internacional de Estudos da Linguagem – Enelin 2017 – foi promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Universidade do Vale do Sapucaí (Univás), através de seu Núcleo de Pesquisas em Linguagem (Nupel). Com o tema “Linguagem, Instituições e Práticas Sociais”, o evento foi realizado na Univás, em Pouso Alegre, de 04 a 06 de outubro de 2017. Participaram como convidados para Conferências e Mesas-Redondas pesquisadores do Uruguai, da Itália e de diversas regiões do Brasil. Essas relações de intercâmbio têm contribuído para o avanço das pesquisas em ciências da linguagem. Durante os três dias de atividades, os participantes prestigiaram e contribuíram com as Sessões Coordenadas, sessões de Comunicações Individuais, sessões de Pôsteres, além de uma apresentação musical regional e lançamento de livros. Todas essas atividades proporcionaram um produtivo intercâmbio de pesquisas nos diferentes domínios dos estudos da linguagem e um debate com áreas afins. Isso contribuiu para fazer circular a produção de conhecimento acadêmico que se vem desenvolvendo na universidade e, ao mesmo tempo, fortalecer o espaço de reflexão com os trabalhos produzidos por pesquisadores de outras instituições brasileiras e do exterior. Esta sétima edição do evento teve ampla divulgação e contou com a presença de diversos docentes, discentes e interessados em geral não só da região sul-mineira, mas de todo o país, ampliando significativamente o número de participantes no evento. Neste ano, participaram do evento com inscrição e apresentação de trabalho 110 professores pesquisadores, 167 alunos de pósgraduação, 101 alunos de graduação, 38 professores da Rede Básica de Ensino, sendo que o encontro recebeu inscrições de todas as regiões do Brasil e também do exterior. Vale destacar que a crescente participação de graduandos e pósgraduandos de diferentes IES de todo o Brasil demonstra a contínua inserção social do PPGCL em Pouso Alegre, na região sul de Minas, e em todo o país, no trabalho de difusão científica. Ao lado disso, o Enelin vem contribuindo para a circulação de trabalhos de discentes e docentes do PPGCL, bem como de outros alunos e discentes de outras IES, por meio das apresentações de trabalhos no evento, e também por meio da publicação dos trabalhos apresentados. Como forma de divulgar e fazer circular esses trabalhos é que publicamos os Anais do Enelin 2017. A comissão organizadora do evento agradece à Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí, à Universidade do Vale do Sapucaí, às agências de fomento, CAPES e FAPEMIG, e a todos os colaboradores (professores, monitores, funcionários e técnicos) que ajudaram a promover a organização e o sucesso do Enelin 2017, que resultou na presente publicação. 19 TEXTOS COMPLETOS 20 UMA ANÁLISE ENUNCIATIVA DA PALAVRA “POESIA” EM UM LIVRO DIDÁTICO ADILSON VENTURA Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Departamento de Estudos Linguísticos e Literários Programa de Pós Graduação em Linguística – PPGLIN Endereço: Estrada do Bem Querer, km 4, Caixa Postal 95 Vitória da Conquista – BA CEP: 45083-900 adilson.ventura@gmail.com Resumo. O objetivo desse trabalho é analisar os sentidos da palavra “poesia” no livro didático “Português: Linguagens, 8º ano” de Cereja e Magalhães. Para tanto, nos posicionaremos na Semântica do Acontecimento, considerando que os estudos do sentido devem se localizar na enunciação, no acontecimento do dizer. Como procedimentos de análise, utilizaremos a reescritura e articulação, podendo, assim, estabelecer o Domínio Semântico de Enunciação (DSD) dessa palavra neste texto. Palavras-chave. Enunciação, Poesia, Semântica do Acontecimento, Sentidos, DSD. Abstract. The aim of this paper is to analyze the meanings of the word "poetry" in the textbook "Portuguese: Linguagens, 8º ano" by Cereja and Magalhães. To do so, we will focus on Semantics of the Event, considering that the studies of meaning must be located in enunciation, in the event of saying. We will use the rewriting and articulation as analysis methods, being able to establish the Semantic Domain of Determination (DSD) of this word in this text. Keywords: Enunciation, Poetry, Semantics of the Event, Senses, DSD. 1. Introdução Esse trabalho faz parte de um projeto de pesquisa que desenvolvemos na UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) que tem por objetivo entender os sentidos do que seja interpretação em livros didáticos. Pensamos que entender como o livro didático apresenta a interpretação é de fundamental importância, na medida em que este material é muito usado nas escolas e, por isso, atua de forma decisiva na formação dos alunos, indicando-lhes como devem interpretar textos, conceitos, imagens, etc. Assim, dentre esses conceitos, observamos a construção dos sentidos de poesia na Unidade I do livro didático “Português: Linguagens, 8º ano” de Cereja e Magalhães (2009). Com isso podemos ver o que o livro traz como o que é poesia, e, ao mesmo tempo, observamos como se constrói a interpretação de poesias no livro didático. Além disso, pensamos que a construção de sentidos é uma questão ética, na medida em que, ao se atribuir determinados sentidos a um conceito específico, a nossa relação com o mundo é dirigida de um determinado modo. Pensamos, como exemplo, se consideramos determinado sentido para família, acreditamos que família seja somente uma coisa, excluindo outras possibilidades (outros sentidos) para o que seja família, o que, de determinado 21 modo, pode construir um preconceito social. 2. Semântica do Acontecimento Para essa análise, como já dissemos, nos colocaremos na perspectiva teórica da Semântica do Acontecimento, que considera que “o estudo do sentido da linguagem deve localizar-se na enunciação, no acontecimento do dizer.”(Guimarães, 2002, p.7). Sendo assim, colocando-se numa posição enunciativa dos estudos do sentido, considera-se que a enunciação é uma relação do locutor com a língua. Para descrever esta relação, há os procedimentos metodológicos de análise, que são a reescrituração e a articulação, os quais são observados num acontecimento enunciativo específico para que assim possamos ter quais são os sentidos de uma determinada forma em um texto. A reescrituração é o mecanismo no qual um elemento linguístico faz-se presente em vários momentos do texto, ou seja, ele é reescriturado de diversas formas ao longo do texto, e isso acaba por predicar algo ao elemento reescriturado, isto é, constrói seus sentidos nesse texto específico. A articulação diz respeito às relações contíguas, ou seja, as relações semânticas de uma forma linguística com outras que não são a sua reescritura (Guimarães, 2009). Lembrando aqui que a Semântica do Acontecimento, diferentemente da Linguística Textual, considera que o texto é uma dispersão de sentidos. Ao trazer o Acontecimento, entramos na questão da temporalidade. Assim, não se considera o tempo linearmente, como uma sequência natural. Em cada acontecimento, há um embate de tempos funcionando, no qual o acontecimento recorta enunciações passadas e projeta uma futuridade de significações. Nas palavras de Guimarães (2002, p.12) De um lado ela se configura por um presente que abre em si uma latência de futuro (uma futuridade), sem a qual não há acontecimento de linguagem, sem a qual nada é significado, pois sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de interpretável. O acontecimento tem como seu um depois incontornável, e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem significa porque projeta em si mesmo um futuro. Por outro lado este presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um passado que os faz significar. Ou seja, esta latência de futuro, que, no acontecimento projeta sentido, significa porque o acontecimento recorta um passado como memorável. E esta temporalidade acontece sempre em espaços de enunciação determinados, ou seja, em espaços nos quais ocorrem a relação entre línguas e falantes. Porém, esta relação não é pensada enquanto uma relação empírica, e sim enquanto “um espaço regulado e de disputas pela palavra e pelas línguas” (Guimarães, 2002, p.18). Sendo, portanto, um espaço político, aqui pensado como um conflito entre uma divisão normativa do real e disputas pela palavra, pelos sentidos, ou seja, estabelece-se uma divisão do real, porém esta divisão é sempre redividida, por conta dos conflitos entre falantes e línguas, conflitos que estabelecem sentidos e, ao mesmo tempo, abrem a possibilidade para novos sentidos. Para este trabalho em específico, iremos mobilizar estes conceitos apresentados logo acima. Passamos agora para as análises do corpus. 3. Análise do corpus 22 Como já dissemos, nesse trabalho iremos analisar a construção dos sentidos de poesia na Unidade I do livro didático “Português: Linguagens, 8º ano” de Cereja e Magalhães (2009). A análise será no livro do professor e isso nos interessa na medida em que, quando a palavra está em um exercício, temos acesso às respostas que o livro propõe. E essas respostas podem nos indicar o modo como a interpretação é entendida nesse livro. Na Unidade I temos 6 poesias usadas como motivadores para exercícios, os quais trazem questões de algum ponto gramatical e também questões de interpretação. Desses seis exercícios, trouxemos para este trabalho a metade, ou seja, três exercícios. O primeiro dos exercícios está na página 29: Imagem 1: Poema Honoris Causa in Cereja e Magalhães (2009, p.29) Imagem 2: Exercício sobre o Poema Honoris in Causa Cereja e Magalhães (2009, p.30) Neste exercício temos a palavra “poema” sendo uma reescritura de poesia e esta palavra articulada a título e a verso. Sendo assim, temos o seguinte DSD: DSD 1: DSD da palavra poema no primeiro exercício Neste primeiro DSD temos então a palavra “poema” sendo determinada por “título” e por “verso”, ou seja, poema é um tipo de texto que possui um título e também é escrito em versos. No segundo exercício temos: 23 Imagem 3: Poema Pois é in Cereja e Magalhães (2009, p.31) Nesse exercício temos uma reescrituração de poesia por poema e também uma reescrituração de poesia por canção, construindo uma relação de sinonímia. Além disso, temos uma articulação de poema com “como você sabe”, com “eu lírico” que, por sua vez, se articula com “voz que fala nos versos”; também temos uma articulação de poema com estrofe, caracterizando assim o DSD desse exercício: DSD 2: DSD da palavra poema no primeiro exercício. Neste segundo DSD, temos que “poema” está numa relação de sinonímia com “canção”, sendo que estes dois termos são determinados por “como já se sabe”, por “estrofe” e por “eu-lírico”, que é determinado por “voz que fala nos versos”. Esta construção nos permite ver que os sentidos de “poema” são construídos dessa forma como descrevemos, o que já aponta para um sentido de que todos já sabem o que seja poesia. No terceiro e último exercício, temos: Imagem 4: Poema Quiproquó in Cereja e Magalhães (2009, p.41) 24 Imagem 5: Exercício sobre o Poema Quiproquó in Cereja e Magalhães (2009, p.41 e 42) Nestes exercícios observamos novamente a reescritura de poesia por poema, sendo que este aparece articulado com estrofes, versos, título e eu-lírico. A partir dessas reescrituras e articulações, temos um outro DSD: DSD 3: DSD da palavra poema no terceiro exercício Neste outro DSD podemos observar que, conforme no segundo, a palavra “poema” é determinada por “estrofes” e por “eu-lírico”. Porém, temos agora duas determinações que apareceram no primeiro DSD, que são por “título” e por “versos”. Assim constituído este DSD, temos que o “poema” possui uma forma específica, na qual é escrita em versos e em estrofes, por um eu-lírico que dá um título a este texto específico, ou seja, o poema. E com esse conjunto de análises, chegamos ao seguinte DSD: DSD 4: DSD da palavra poema na Unidade I Com este DSD temos certos sentidos de “poesia” que, conforme já dissemos, coloca a poesia num sentido estável, de que já se sabe o que é por conta de ser um texto escrito em versos e estrofes. Assim, ao estabelecer este sentido, temos instaurado um conflito (político), pois, assim configurada, a poesia já tem um lugar específico, não trazendo outras possibilidades de textos poéticos nesse Espaço de Enunciação. Com isso, nesse espaço constroem-se leitores nos quais somente será poesia o que estiver escrito em versos e estrofes. Além da análise de “poesia”, uma outra questão nos chamou a atenção nas análises feitas até o momento. No que concerne aos exercícios, pela análise ser no livro do professor, temos acesso às respostas propostas, as quais, geralmente, são 25 tratadas como as respostas corretas, tanto por professores quanto por alunos. Temos, nos três exercícios, o seguinte: Exercício 1 2 questões gramaticais 1 questão sobre interpretação – Resposta Pessoal mas, no livro do professor, tem uma sugestão da resposta correta Exercício 2 3 questões sobre interpretação, sendo que uma possui a resposta correta, a outra é uma resposta pessoal, mas tem uma sugestão. A terceira é de copiar no texto. Exercício 3 Possui 6 questões sendo que duas são sobre gramática e 4 de interpretação. • Dessas questões sobre interpretação, as de número 3, 4 e parte a e b da 5 são de respostas unívocas, ou seja, são certas ou erradas. A letra c da número 5 é com resposta aberta, mas possui sugestão. A questão número 6 é de interpretação, porém é objetiva. Tabela 1 – Exercícios e respostas Assim, nas relações que observamos nessas respostas, podemos dizer que a interpretação, quando ocorre nos exercícios, coloca a resposta ou em uma relação biunívoca, isto, de resposta correta ou errada, na medida em que o livro já traz qual é essa resposta. Em outras possibilidades, temos que o livro deixa a resposta como pessoal, mas, ao mesmo tempo, o livro traz uma sugestão, o que, neste espaço de enunciação, coloca que há uma resposta correta, a apontada pelo livro. Ainda temos uma outra possibilidade, já que há uma relação com copiar no texto. Dessa forma, mesmo tendo uma poesia para motivar a fazer os exercícios, não há questões que contemplem a poesia em si, isto é, há questões de interpretação, mas nada que traga uma especificidade para este tipo de texto, ou seja, qualquer texto poderia estar neste lugar. Um outro ponto interessante a se pensar é que, como dissemos na introdução, estabelece-se um sentido para interpretação de texto no qual todos podem interpretar, mas que somente o livro didático possui a resposta correta. Isto traz um memorável no acontecimento de que, na escola, sempre tem que se buscar a resposta correta, o que, em certa medida, faz com que não exista a interpretação, e sim a busca por esta resposta ou senão simplesmente fazer uma cópia do texto motivador. 4. Considerações finais Com estas análises feitas na Unidade I do livro didático “Português: Linguagens, 8º ano” de Cereja e Magalhães (2009), podemos observar uma 26 construção de sentidos para poesia na qual esta é identificada pelo formato, pelas relações entre versos e estrofes. Por outro lado, a interpretação de texto fica no lugar do logicamente estabilizado, isto é, interpretar é descobrir a resposta correta. Como dissemos no início, ao se colocar, no momento de aprendizagem, os sentidos de um conceito de determinado modo, temos funcionando uma questão ética, ou seja, instaura-se uma futuridade na qual poesia será sempre escrita em versos e estrofes, e interpretação é a de acertar a resposta correta ou copiar partes do texto. Essa futuridade traz, de certo modo, uma possibilidade de que os futuros alunos não percebem a poeticidade de certos textos e também uma incapacidade de interpretar textos. Pensamos que a importância de se analisar o livro didático está em poder observar os sentidos desses e de outros conceitos, para assim poder propor alternativas para se pensar a constituição de sentidos e, de certa maneira, construir uma outra divisão no espaço de enunciação das escolas no Brasil. 5. Referências CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Linguagens, 8º ano. São Paulo: Editora Saraiva, 2009 Cochar. Português: GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes, 2002. GUIMARÃES, Eduardo. A Enumeração: Funcionamento Enunciativo e Sentido. In: Cadernos de Estudos Linguísticos 51 (1). Campinas: Editora da Unicamp, 2009. 27 RELAÇÃO ENTRE LÍNGUAS: OS CENTROS DE ESTUDOS DE LÍNGUAS (CEL-SP) E A CONFIGURAÇÃO DE UM ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO ADRIANA DA SILVA Universidade Federal de São Carlos- (UFSCar) Programa de Pós Graduação em Linguística – Prédio CECH (Centro Educação e Ciências Humanas)-UFSCar Rodovia Washington Luís, Km 235 – São Carlos-SPCEP-13565-905 silvadri2015@gmail.com Resumo. Fundamentado no quadro teórico da Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002), este estudo tem como objeto o espaço de enunciação regulado pelo Centro de Estudo de Línguas (CELSP), um órgão criado pelo governo do Estado de São Paulo em decorrência da necessidade da implantação da língua espanhola nas escolas públicas, no contexto da política de integração do Brasil na Comunidade Latino-americana, no final da década de 80. Atualmente, a língua espanhola também divide espaço com outras línguas estrangeiras, oferecidas pelo Centro. Além de estabelecer uma proximidade linguística com outros países, o CEL também objetiva ampliar as habilidades do falante para a inserção no mercado de trabalho. Esse projeto contempla somente a rede pública. Assim, só os alunos que estão matriculados a partir do 7º ano do Ensino Fundamental do ensino regular, ensino médio, e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que podem ingressar nos cursos de línguas. Nosso corpus é composto pelo decreto de criação do CEL e resoluções que estabeleceram as normas de seu funcionamento, as quais nos permitiram dar visibilidade ao espaço de enunciação regulado pelo Centro, em que o falante da língua portuguesa é subjetivado em uma relação com o Estado e, dessa forma, é identificado como usuário de uma língua estrangeira. E, para nossas análises, fizemos uso do aporte metodológico da textualidade, o que nos auxiliou na investigação e na análise dos dados já coletados. Palavras-chave. Enunciação; língua portuguesa; Cel. Resumen. En el marco teórico de la Semántica del Acontecimiento (GUIMARÃES, 2002), este estudio tiene como objeto el espacio de enunciación regulado por el Centro de Estudio de Lenguas (CEL-SP), un órgano creado por el gobierno del Estado de São Paulo como consecuencia de la necesidad de la implantación de la lengua española en las escuelas públicas, en el contexto de la política de integración de Brasil en la Comunidad Latinoamericana, a finales de la década de los 80. Actualmente, la lengua española también divide espacio con otras lenguas extranjeras ofrecidas por el Centro. Además de establecer una proximidad lingüística con otros países, el CEL también objetiva ampliar las habilidades del hablante para la inserción en el mercado de trabajo. Este proyecto contempla solamente la red pública. Así, sólo los alumnos que están matriculados a partir del 7º año de la enseñanza primaria de la enseñanza regular, la enseñanza media, y la educación de jóvenes y adultos (EJA) que pueden ingresar en los cursos de idiomas. Nuestro 28 corpus está compuesto por el decreto de creación del CEL y resoluciones que establecieron las normas de su funcionamiento, las cuales nos permitieron dar visibilidad al espacio de enunciación regulado por el Centro, en el que el hablante de la lengua portuguesa es subjetivado en una relación con el Estado y, de esta forma, se identifica como usuario de una lengua extranjera. E, para nossas análises, fizemos uso do aporte metodológico da textualidade, o que nos auxiliou na investigação e na análise dos dados já coletados. Palabras clave. la enunciación; lengua portuguesa; CEL. Este trabalho tem como objeto o espaço de enunciação regulado pelo Centro de Estudo de Línguas (CEL-SP), um órgão criado pelo governo do Estado de São Paulo em decorrência da necessidade da implantação da língua espanhola nas escolas públicas, no contexto da política de integração do Brasil na Comunidade Latino-americana, no final da década de 80. Nosso corpus é composto pelo decreto de criação do CEL e resoluções que estabeleceram as normas de seu funcionamento, as quais nos permitiram dar visibilidade ao nosso objetivo de pesquisa, ao estudarmos o Centro como órgão regulador na relação entre línguas, em que o falante da língua portuguesa é subjetivado em uma relação com o Estado em um processo de individualização que o identifica e o distingue assim, linguisticamente. Lembramos aqui que consideramos o espaço de enunciação tal como compreende Guimarães (2002): Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços “habitados” por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer. (GUIMARÃES, 2002, p. 18). Nesse espaço, segundo o autor, temos a configuração de um locutor, representado por (L) o qual ocupa um lugar social do dizer representado por (l-x), esse lugar social é a posição que o falante ocupa como, por exemplo, l-professor, laluno, l- coordenador e assim por diante. Isso significa que o falante é afetado enquanto a posição social que ele ocupa, a qual o autoriza a dizer certas coisas e não outras. Desse modo, o autor considera que o locutor é dispare a si. “Sem esta disparidade não há enunciação.” (GUIMARÃES, 2002, p. 24). Para melhor caracterizarmos essa representação é necessária a descrição das cenas enunciativas que são especificações locais nos espaços de enunciação. Assim, compreendemos que a cena enunciativa coloca também em jogo, além dos locutores, ou seja, do lugar social, lugares de dizer, que a partir do autor mencionado, chamaremos por enunciadores. Estes se apresentam como a representação da inexistência dos lugares sociais do locutor. Desse modo, estes enunciadores, se posicionam na cena enunciativa, e nos espaços de enunciação por três formulações distintas, são elas: Enunciador-individual, que se caracteriza simplesmente por um lugar de dizer. Ex.: “Ficam criados, no âmbito da rede estadual de ensino, Centros de Estudos de Línguas.” Enunciador-genérico, que se constitui como o apagamento do lugar social, onde o que se diz é dito como aquilo que todos dizem, como temos o dito popular. Ex.:”Quem muito quer nada tem.” Enunciador-universal, que se apresenta como não sendo social, ou seja, fora da história e acima dela, onde se diz sobre o mundo. Ex.: discurso religioso, 29 discurso cientifico, discurso jurídico (decreto de criação dos Centros). Quanto a nossa análise, elegemos aqui fazer uma descrição com base na textualidade, por meio da categoria analítica da reescrituração, e articulação, tal qual Guimarães (2007). Para o autor, a reescrituração é o “procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma forma como diferente de si”. Este procedimento atribui (predica) algo ao reescriturado (GUIMARÃES, 2007, p. 84). E a articulação, segundo Guimarães (2007) “diz respeito às relações próprias das contiguidades locais, como o funcionamento de certas formas afetam outras que elas não redizem. Estes procedimentos enunciativos são próprios de relações no interior dos enunciados ou na relação entre eles”. Em outras palavras, é a forma como um elemento do texto estará relacionado aos que estão ao seu lado. (Guimarães 2007 p. 88) Ao considerarmos a enunciação enquanto constituinte da relação entre falante e língua, analisamos não só palavras ou sentenças, mas textos que se constituem como uma “unidade de sentido integrada por enunciados” (GUIMARÃES, 2010, p. 22). A relação de integração permite tomar os elementos não como estando em relação de soma e linearidade, mas como parte integrante do texto como um todo e tendo seus sentidos precisados na relação com este todo. Nesta concepção, a unidade dos elementos linguísticos se faz pela deriva dos sentidos. O que constrói a coesão do texto não é a coerência lógica de ideias, mas o movimento enunciativo. É assim que uma mesma palavra, em textualidades semelhantes e em um mesmo espaço de enunciação, pode significar (designar) diferentemente. Segundo Guimarães (2002): A designação é o que se poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. (GUIMARÃES, 2002, p. 9). A designação é o modo pelo qual o real é significado na linguagem e não está relacionada às classificações de coisas existentes em conjuntos fixos e préestabelecidos, mas à identificação das coisas significadas na relação entre sujeito, linguagem e mundo. Nessa perspectiva, nosso trabalho se inscreve no quadro teórico da Semântica do Acontecimento (Guimarães, 2002) que considera a significação como histórica, mas não no sentido que se estabelece como um série de fatos consecutivos no tempo, mas no sentido de que a significação é determinada pelo acontecimento enunciativo, ou seja, “Sua materialidade é esta historicidade” (GUIMARÃES, 2005, p. 66) Infere-se, nesse sentido, o ponto crucial da teoria em que se baseia o nosso trabalho, ao consideramos a enunciação enquanto constituinte da relação falante e língua em que a temporalidade é representada no presente do acontecimento pelos memoráveis que recortam um passado. “O passado é no acontecimento, rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma nova temporalização, um novo espaço de tempos, sem a qual não há sentido, não há acontecimento de linguagem, não há enunciação.” (GUIMARÃES, 2002, p. 12) A partir desse quadro teórico, focamos em observar a relação entre línguas como já dissemos, em um espaço de enunciação regulado pelo CEL cuja criação 30 decorreu da necessidade da implantação da língua espanhola nas escolas públicas, no contexto da política de integração do Brasil na Comunidade Latino-americana, no final da década de 80. Essa língua também se legitima no espaço de enunciação brasileiro, a partir da consolidação dos países da América Latina - MERCOSUL que é um bloco formado por países sul-americanos, em busca de fortalecer os países da América do Sul em relação a outros blocos e potências internacionais, e que também visa a consolidar as relações comerciais e culturais no interior do próprio continente. São países membros do bloco: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, também compondo o grupo a Venezuela desde julho de 2006. Todos os países que formam o MERCOSUL são do continente sul-americano, caracterizando-se também por serem países subdesenvolvidos, que estão passando por um processo de desenvolvimento social e econômico. Além disso, não podemos esquecer que todos foram colonizados por países europeus, mais precisamente, Espanha e Portugal, o que, consequentemente, os leva a ter como língua oficial o espanhol e o português, língua dos colonizadores. Nesse cenário destacamos que o Brasil é o único país do bloco que tem como língua oficial a língua portuguesa. A relação entre a língua portuguesa e a língua espanhola no continente sulamericano foi intensificada a partir da formação do bloco MERCOSUL em 1994 e também foi a partir desse acontecimento que foram criadas políticas efetivas para uma aproximação linguística entre os países membros do bloco. Atualmente, a língua espanhola também divide espaço com outras línguas estrangeiras, oferecidas pelo Centro, como alemão, francês, italiano entre outras. Além de estabelecer uma proximidade linguística com outros países, o CEL também objetiva ampliar as habilidades do falante para a inserção no mercado de trabalho. Podem ingressar nos cursos de línguas os alunos que estão matriculados a partir do 7º ano do Ensino Fundamental do ensino regular e da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Já o curso de inglês é somente para os alunos do Ensino Médio. Os cursos têm o prazo de três anos (480 aulas) dividido em seis módulos semestrais. O curso de inglês é o único aplicado em dois módulos (160 aulas) no período de um ano, e isso se deve ao fato dessa língua estrangeira já fazer parte do currículo escolar, desse modo, o tempo de frequência desse curso é menor que os outros oferecidos pelo Centro. O CEL recebe a mesma denominação da escola em que está vinculado, e deve seguir o calendário estabelecido por ela o qual deve constar de sua proposta pedagógica e de seu regimento. Apesar do estabelecimento de tais normas, o Centro tem funcionamento próprio e esse deve ser evidenciado pela escola, a qual oferece apoio técnico pedagógico que também é garantido pelo conselho do Centro. Pesquisas recentes da Secretaria da Educação de São Paulo mostram o êxito obtido pelo projeto na inserção de uma segunda língua estrangeira, uma vez que o Centro tem uma metodologia diferenciada de aprendizagem de línguas estrangeiras, como afirma (Gasparelo, 2008): Nas escolas você tem um currículo igual para todo mundo, mesmo quando você tem alunos que já estão cursando idiomas em escolas particulares. No CEL, você cria módulo onde verifica a capacidade linguística do indivíduo quando ele inicia cada estágio. (GASPARELO, 2008, p. 39). Apesar desse diferencial em relação às escolas públicas, o CEL passou por momentos de reestruturação em que foram implantadas medidas através de resoluções que colocaram em xeque sua credibilidade, e que resultaram assim, na 31 falta de interesse dos alunos pelo projeto. Contudo, com o intuito de atingir o objetivo almejado de ampliar as oportunidades de acesso aos estudantes da rede estadual a uma segunda língua estrangeira moderna, bem como de adequar os CEL às normas e diretrizes da política educacional de modo a garantir-lhes a permanência e progressão nos diferentes níveis de aprendizagem previstos, outras resoluções foram criadas, mas aqui elencamos as mais significativas de acordo com o nosso propósito de trabalho, que apresentamos por meio dos seguintes recortes: (1): 10 de agosto de 1987: Decreto nº 27.270 Decreta: Artigo 1º - “ Ficam criados, no âmbito da rede estadual de ensino, Centros de Estudos de Línguas que terão por finalidade proporcionar aos alunos das escolas públicas estaduais uma possibilidade diferenciada de aprendizagem de várias línguas estrangeiras modernas, com prioridade para língua espanhola”. 2: Resolução SE nº 271, de 20 de novembro de 1987 "Parágrafo único – No primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará, exclusivamente, o ensino de língua espanhola." 3: Resolução SE nº 193, de 18 de agosto de 1988 "Parágrafo único – No primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará, preferencialmente, o ensino de língua espanhola." 4: Resolução No. 44, de 13-8-2014  Artigo 5º - O CEL deverá oferecer cursos de língua estrangeira moderna, preferencialmente em todos os turnos de funcionamento da unidade escolar vinculadora, de forma a atender, em sua totalidade, a demanda proveniente dos cursos de ensino fundamental ou médio da região.  § 1º - A organização dos cursos a serem oferecidos pelo CEL deverá observar a seguinte ordem de prioridade:  1 - curso de língua espanhola;  2 - continuidade dos cursos de línguas estrangeiras modernas em funcionamento, nos termos dos mínimos estabelecidos na presente resolução;  3 - implantação gradativa de cursos de inglês, destinados exclusivamente a alunos do ensino médio;  4 - implantação gradativa de cursos do idioma mandarim, destinados exclusivamente a alunos do ensino médio. Nos quatro recortes elencados, a cena enunciativa se configura pelo Locutor (L) que ocupa o lugar social de (l-x), o locutor-governador que ao assumir essa posição é afetado por uma deontologia estabelecida pelo seu lugar social do dizer enquanto sujeito que fala de um lugar autorizado, de um lugar social de locutor enquanto locutor-governador que decreta e divide-se assim em um enunciador universal, porque fala de uma região do interdiscurso, ou seja, da posição de sujeito jurídico liberal aquele que se apresenta como não sendo social, ou seja, fora da história e acima dela, onde se diz sobre o mundo. Aqui, tomaremos como centro da nossa análise a reescrituração da língua espanhola em que buscamos compreender como é constituída a sua designação nesse espaço. No primeiro recorte, destacamos o enunciado do Artigo 1, acima 32 apresentado: “ Ficam criados, no âmbito da rede estadual de ensino, Centros de Estudos de Línguas” Pela tomada da palavra, o locutor governador decreta a criação dos (CEL) , que é reescrito por substituição por “Centro de Estudos de Línguas”, e “uma possibilidade diferenciada de aprendizagem de várias línguas estrangeiras modernas”, esses enunciados predicam o Centro, na medida em que trazem para esse espaço, uma metodologia diferente de aprendizagem utilizada pelas escolas públicas e também uma oportunidade que o falante tem de escolher um segunda língua estrangeira, e realizar um curso gratuito de línguas”. O espaço de enunciação é caracterizado por “várias línguas estrangeiras modernas” e isso quer dizer que o falante agora pode significar em uma língua estrangeira e tem a opção de escolher entre várias línguas. Mas esse espaço é limitado : “no âmbito da rede estadual de ensino” e “alunos das escolas públicas estaduais” – o que deixa claro que somente esses alunos podem ter acesso ao Centro. Assim, o governador por meio da criação do decreto, exclui qualquer falante que não seja aluno da rede estadual de ensino e também particulariza esse espaço na medida em que distribui hierarquicamente as línguas e legitima a língua espanhola como superior às outras línguas estrangeiras desse espaço, como visualizamos no enunciado “com prioridade para língua espanhola”. Já no segundo recorte, a resolução se integra ao decreto, na medida em que reescreve o seu primeiro parágrafo “prioridade para língua espanhola” por substituição: “ exclusivamente”, o ensino de língua espanhola”. Dessa forma, estabelece-se uma mudança nesse espaço: a língua espanhola que era prioridade passa a ser exclusiva. Assim, o falante não tem mais a opção de escolher entre várias línguas estrangeiras, como proposto no decreto, uma vez que muda-se o modo de distribuição das línguas nesse espaço: “No primeiro ano de funcionamento o Centro proporcionará, exclusivamente, o ensino de língua espanhola”. No terceiro recorte: “No primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará, preferencialmente, o ensino de língua espanhola". A partir desse dizer, temos uma reescritura por substituição do enunciado do recorte 2 “No primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará, exclusivamente, o ensino de língua espanhola." Mais uma vez o tempo é especificado e estabelece se assim, o período em que uma língua e não outra língua é legitimada nesse espaço; como identificamos também que a língua espanhola desta vez é predicada ao ser articulada ao advérbio preferencialmente e não mais ao advérbio exclusivamente. No quarto e último recorte a língua espanhola é definitivamente hierarquizada como superior às outras línguas estrangeiras, como visualizamos por meio da distribuição hierárquica em um processo de enumeração em que os enunciados se integram. Assim, observamos nessa cena, que os cursos de línguas reescrevem os CEL, que regula o espaço de enunciação e distribui as línguas de uma maneira desigual e hierarquicamente legitima uma língua superior à outra como identificamos pelas posições que lhe são atribuídas: “§ 1º - A organização dos cursos a serem oferecidos pelo CEL deverá observar a seguinte ordem de prioridade”:  1 - curso de língua espanhola;  2 - continuidade dos cursos de línguas estrangeiras modernas em funcionamento, nos termos dos mínimos estabelecidos na presente resolução;  3 - implantação gradativa de cursos de inglês, destinados exclusivamente a alunos do ensino médio; 33  4 - implantação gradativa de cursos do idioma mandarim, destinados exclusivamente a alunos do ensino médio”. A partir dessa análise, percebemos nesse espaço, como se dá a relação entre línguas, a qual tratamos como uma relação não natural, mas sobretudo como uma relação política, tal como compreende Guimarães ( 2002): O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo, o político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento (GUIMARÃES, 2002, pág. 16). A contradição de que fala o autor é o Político, a hierarquização das línguas pelo funcionamento da linguagem enquanto determinadas e identificadas por esses espaços caracterizados pelas cenas enunciativas em que inclui as posições sociais, ou os modos de dizer dos locutores. Dessa maneira, é o político que regula, por assim dizer, o espaço de enunciação, legitimando quais línguas estrangeiras distribuídas pelos Centros de Estudo de Línguas (CEL); por sua vez, o Estado como sujeito autoriza a instituição que está diretamente agenciada pelas divisões próprias desse funcionamento, caracterizando-se pelo papel decisivo de reproduzir a divisão (desigual) ao estabelecer políticas linguísticas que determinam o modo de distribuição dessas línguas para os falantes nesse espaço. O espaço de enunciação regulado pelo Centro não é concebido como uma relação empírica entre línguas e falantes. Mas, sim por um espaço que é historicamente constituído por embates entre palavras e seus falantes. O espaço de enunciação é um espaço político, e ele se caracteriza como tal, na medida em que o falante da língua portuguesa é afetado pelas divisões das línguas e o modo como elas são distribuídas. Assim, o falante ao afirmar o seu pertencimento em uma língua já exclui outra e essa condição já estabelece o funcionamento do político. É esse funcionamento que determina a divisão dos papeis sociais, permitindo ou não o acesso a determinados dizeres distinguindo-se, assim, os falantes linguisticamente. O falante da língua portuguesa é afetado por essas divisões que se estabelecem nesse espaço de enunciação, uma vez que seus dizeres são constituídos no acontecimento de linguagem e por meio dos memoráveis. Dessa forma, esse falante é afetado pela história, o político, identificando assim, o seu lugar social em um processo de subjetivação em relação com o Estado, enquanto um processo de individualização que observamos no espaço de enunciação. Então é por meio do processo de subjetivação que pensamos a questão da identidade do falante da língua portuguesa considerando que essa é a língua oficial do Brasil. Os espaços de enunciação, a história e as figuras enunciativas determinam e legitimam uma língua e não outra língua numa distribuição que se faz hierarquicamente. E é nesse espaço que observamos como as línguas são afetadas, no seu funcionamento, por condições históricas específicas e como elas se dividem segundo o modo de distribuição para seus falantes. Muitos estudos são realizados acerca do multilinguismo no Brasil, mas a análise enunciativa nos propiciou uma visão diferenciada por meio do nosso corpus 34 em que percebemos como se dá a representação e significação do sujeito na linguagem numa perspectiva política e sócio-histórica. Pensamos os espaços em que circulam as línguas não somente como um espaço geográfico, mas como um lugar de prática política constituintes de relações diferentes entre língua e falantes. E esse funcionamento se estabelece em um lugar de litígio em que a distribuição das línguas se dá de maneira desigual em que o falante significa no e pelo acontecimento e pelos modos de dizer. Referências GASPARELO, L.F. O Centro de Estudo de Línguas de Sorocaba: projeto pedagógico e práticas de ensino. Sorocaba, Universidade de Sorocaba, 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação. GUIMARÃES, E. Domínio semântico. In: MOLICA, M. C.; GUIMARÃES, E. (orgs.). A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes/RG, 2007. GUIMARÃES, E.(1995). Os limites do sentido. Campinas, SP: Pontes, 2005. __________ (2010). Quando o eu se diz ele: análise enunciativa de um texto de publicidade. In: Revista da ANPOLL n.1- v.29. 2010 __________ (2002). Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação. Campinas, SP: Pontes. Cadernos de Legislação Estadual 1 e 2 graus. Decreto 27270/87 pág. 119 do vol. XXIV. Cadernos de Legislação Estadual 1 e 2 graus. Resolução Se nº 271/87. pág. 389 do vol. XXIV. RESOLUÇÃO SE Nº 193, de 18-08-1988, disponível (http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/notas/193_1988.HTM) Acesso 17/11/2017:13:13:20. em em RESOLUÇÃO SE nº 44, de 13-08-2014, disponível em (http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/44_14.HTM) Acesso em 17/11/2017: 13:04:20. 35 OPERAÇÕES DE DETERMINAÇÃO E A ORGANIZAÇÃO DE DOMÍNIOS NOCIONAIS: O FUNCIONAMENTO DE FALSO ALBANO DALLA PRIA Faculdade de Letras, Ciências Sociais e Tecnológicas Universidade do Estado de Mato Grosso Rua Santa Rita, 148, Centro, Alto Araguaia/MT, CEP 75840-000 adallapria@gmail.com Resumo. A lógica não leva em conta, na formalização dos seus raciocínios, a especificidade das línguas. Aplicados à descrição de certas expressões, tais como ‘atestado de óbito falso’, esses raciocínios são colocados em xeque. Através do método que é próprio da “Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas”, observamos, na prática de construção de significação, que FALSO é marca da dúvida e do bloqueio à construção do termo atestado de óbito, na trajetória de construção do enunciado. Palavras-Chave. Adjetivo. Significação. Operações. Abstract. The formalization of logic reasoning does not consider the specificity of languages. Applied to the description of certain expressions, such as ‘atestado de óbito falso’, logic reasoning fails. Through the method that is proper to the “Theory of Predictive and Enunciative Operations”, we observe, in the practice of meaning construction, that FALSO is a mark of doubt and of blocking the construction path of the term atestado de óbito of the utterance. Key-words. Adjective. Signification. Operation. 1. Introdução Na lógica proposicional, se eu chamo alguma coisa1 de ‘atestado de óbito’2, é porque alguma coisa é um atestado de óbito que existe como tal. Uma expressão do tipo ‘atestado de óbito falso’ coloca em xeque esse raciocínio descritivo. Ela vai contra os princípios da lógica, porque afirma dois estados de coisa que seriam, em princípio, incompatíveis, quais sejam o de que alguma coisa é e não é ela mesma ao mesmo tempo. Isso porque, do ponto de vista lógico, alguma coisa é aquilo que é, segundo o princípio da identidade (A é A), e não pode ser outra coisa diferente dela mesma, segundo o princípio da não-contradição (A é A e não-A). Com efeito, o terceiro termo, isto é, que alguma coisa seja ela mesma e o deixe de ser ao mesmo tempo (A é A ou A é não-A), no escopo de uma mesma proposição, está excluído dos princípios lógicos. A lógica assume o ponto de vista representacionalista da significação. Desse ponto de vista, as línguas são meios expressivos cuja finalidade é tão somente a de veicular conteúdos prontos da realidade abstrata (conteúdos de pensamento ou proposições) para a realidade físico-cultural (enunciados), sem passar por nenhum tipo de ajustamento, seja no plano da expressão seja no plano do conteúdo. A especificidade das línguas não é levada em conta na formalização dos 1 2 O termo em construção é representado sempre pelo itálico. As denotações são representadas sempre entre aspas simples. 36 raciocínios lógicos. Por isso, enquanto metalinguagem explicativa do funcionamento das línguas, esses raciocínios marginalizam sequências que, na prática de linguagem, não são menos significativas do que outras tantas sequências logicamente válidas. Tal é o caso de ‘atestado de óbito falso’. Dada a dificuldade de se construir um sistema lógico de representação que dê conta de descrever adequadamente o funcionamento linguístico de ‘atestado de óbito falso’, tomamos uma posição, sustentada pelo programa de trabalho da “Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas” (CULIOLI, 1990, 1999a, 1999b), qual seja a de construir um sistema homogêneo de representação metalinguística que dê conta de apreender não só os valores mais estáveis do nome ‘atestado de óbito’, semelhantes àqueles que a lógica busca descrever, mas também a gama de valores deformáveis, dentre os quais ‘atestado de óbito falso’, a que se pode ter acesso, através de manipulações teoricamente controladas da “forma esquemática” (CULIOLI, 1990, p. 115-126) de funcionamento de atestado de óbito dentro de um espaço referenciável aberto3, porém centrado4. Essa concepção de teoria que articula o material verbal (objeto) com a prática do seu manuseio (atividade) dispõe de um método que lhe é próprio. Primeiro, temos de nos apropriar, através de processos indutivos, da forma esquemática que regula uma série de enunciados em família parafrástica; segundo, temos de simular, através de processos hipotético-dedutivos, gestos controlados de deslocamento de posições mais ou menos fixas dentro de um espaço referenciável. A metodologia de análise do funcionamento de FALSO implica, portanto, a apreensão do movimento (vai-e-vem) que caminha do funcionamento de FALSO na organização de estados provisórios de conhecimento (que antecipam ações sobre o exterior) até uma posição estabilizada de FALSO num espaço referencial exterior (que determina posições mais ou menos fixas na superfície das línguas), e vice-versa. Foge aos propósitos deste trabalho a construção de um modelo fixo, que exclui dos observáveis a dimensão subjetiva (atividade) da linguagem (variação experiencial e perceptiva). As manipulações que fazemos dos enunciados, além de teoricamente controladas, estão orientadas para a construção de um modelo plástico e maleável dos processos de apreensão do agenciamento de marcadores que são, eles mesmos, traços de operações, quer dizer, são a materialização de fenômenos mentais aos quais não temos acesso e dos quais, enquanto linguistas, só podemos dar uma representação metalinguística, isto é, abstrata (CULIOLI, 2002, p. 27 – grifos do original)5. Nosso objetivo é contribuir para uma maior compreensão: 1) dos processos de determinação das noções semânticas, ou “quasesignos” (REZENDE, 2000, p. 15), que implicam, de um lado, a introdução de alguma Trata-se de um espaço topológico ou de uma topologia de domínio aberto (CULIOLI, 1999a). Essa concepção geométrica do espaço se contrapõe ao conceito aristotélico de classe ou de espaço fechado. Aristóteles compreendia o mundo como uma totalidade geométrica não topológica, ou se está dentro ou se está fora do espaço, e nada mais. A ciência moderna tem explicado (ou descrito) a realidade através um conjunto restrito de categorias segundo o conceito aristotélico de classe. Ficam excluídos do tratamento científico os objetos que não se reduzem à homogeneidade que o conceito de classe lhes impõe. 4 Na passagem das representações abstratas para as representações linguísticas, as primeiras, enquanto formalizáveis das últimas, podem resultar algo diverso daquilo que se tinha por formalizar. O “centro atrator” (CULIOLI, 1990, p. 97) serve de ponto de convergência (transindividual) da identidade (invariante) de forma. Com efeito, o centro visa controlar a construção de um hiato em razão de rupturas na invariante de forma. 5 No original: “c’est un agencement de marqueurs, qui sont eux-mêmes la trace d’opérations, c’est-à-dire, que c’est la matérialisation de phénomènes mentaux auxquels nous n’avons pas accès, et dont nous ne pouvons, nous linguistes, que donner une représentation métalinguistique, c’est-à-dire, abstraite” (CULIOLI, 2002, p. 27 – grifos do original). 3 37 coisa referenciável, provisoriamente chamada ‘atestado de óbito’, no espaço referenciável e, de outro lado, a determinação propriamente dita, através de avaliações qualitativas – que tem FALSO como marcador – sobre a identidade de alguma coisa em relação à representação visada de atestado de óbito nesse último espaço; 2) dos processos sucessivos de ajustamentos entre sistemas de representação não homogêneos. Com efeito, esperamos nos aproximar dos valores operatórios que, em situação prática de construção de significação, são, de fato, observáveis das formas linguísticas, em geral, e, em particular, da sequência ‘atestado de óbito falso’. 2. A predicação lógica e os dilemas de gênese Do ponto de vista lógico, o conteúdo independe das línguas para significar. Delas depende apenas para ser veiculado. A veiculação não implica ajustamentos porque a realidade física e a realidade abstrata são tomadas pela lógica numa relação de continuidade que se confunde com a mesmice. O mundo e o pensamento se recobrem perfeitamente, quer dizer, o mundo é “transparente” ao pensamento, e vice-versa. Essa relação garante a estabilidade do conteúdo, não obstante a variação experiencial e linguística, que é própria à atividade linguageira. Para a lógica, o mais importante é a comprovação da validade de um raciocínio. A lógica não pretende ser uma forma de ação sobre o mundo, sobre os referentes. Por isso, os raciocínios lógicos passam da realidade física para a realidade abstrata, e vice-versa, dentro de uma realidade orgânica, abstraindo de qualquer tipo de ajustamento, conforme já o dissemos acima no contexto da veiculação dos conteúdos. Qual seria, então, a razão do trabalho dos sujeitos em relacionar as unidades? O sujeito da lógica se assemelha a um autômato, na construção de sentenças declarativas que possam ser avaliadas em termos de verdadeiro e falso quanto aos estados-de-coisas que descrevem. O trabalho do sujeito da lógica é axiomático, tomado por evidente, e calçado na instrumentação normativa do pensamento, sob a justificativa da necessidade de se “disciplinar” o pensamento 6. Esse sujeito, por um lado, confunde-se com a realidade abstrata e dela se apaga, por outro lado, confunde-se com a realidade físico-cultural de dela também se apaga. É um sujeito que está em todo tempo-lugar e em tempo-lugar algum. Esse sujeito se converte em puro pensamento ou pura introspecção (solipsismo). Esse sujeito não precisa equilibrar representações interiorizadas com as representações dos outros sujeitos. 3. A atividade epilinguística e o trabalho do linguista Em síntese, o termo “epilinguismo” refere o trabalho do sujeito para posicionar (répérer) raciocínios subjacentes através de “formas que marcam e constroem sua presença, formas que traçam a atividade dos sujeitos (sob a ótica que essas formas lhes conferem)” (VOGÜÉ; FRANCKEL; PAILLARD, 2011, p. 11 – grifos do original) num espaço referencial homogêneo. As línguas naturais são performativas. Se os sujeitos relacionam entidades, é porque intuem a possibilidades de transformá-las, se não no plano físico-cultural ou afetivo, pelo menos no plano simbólico. As formas de superfície se constituem interpretáveis em razão dos raciocínios (teoria) que lhes são subjacentes. Os raciocínios só são acessíveis através das 6 Os fins justificam-se em si mesmos como forma de se aproximar da verdade e/ou se afastar do erro. 38 formas, que são vestígios das operações que organizam, localizam e controlam a representação dentro de um evento em processo de construção. Se, por um lado, sabe-se, por hipótese, da existência de invariantes cuja presença na língua é marcada por formas, por outro lado, é preciso construir caminhos de acesso a esse saber. Nesse sentido, o acesso à teoria (invariante) implica um saber-fazer do linguista, assim como no artesanato, o saber implica o próprio ato de fabricação (DUCARD, 2006, p. 15). Do ponto de vista da linguagem definida como atividade de representação, referenciação e regulação (CULIOLI, 1990, p. 177-213), o trabalho do linguista deve se voltar ao processo de apreensão e de formalização dos observáveis. Esse trabalho simula o investimento da ação subjetiva, “que Culioli chama de força assertiva” (DUCARD, 2009, p. 65 – grifo do original), sobre projetos de representação que se deslocam sob ângulos perceptivos variados. A ação subjetiva é constitutiva dos observáveis. Os observáveis estão teorizados como objetos que articulam ação subjetiva e formalização de ângulos perceptivos através das línguas. Com efeito, a variação subjetiva se constitui como observável através das línguas. Na abordagem estática, como na lógica, as unidades de língua se prestam a encapsular e a veicular um conteúdo que permanece incólume a qualquer organização em cadeias singulares. Na abordagem dinâmica – que acreditamos ser também a nossa – dos fenômenos linguísticos, a linguagem, enquanto a prática de construção de significação numa língua dada, impede-nos de defender a existência de “algumas entidades de língua que sejam determinadas e outras que sejam menos determinadas” (REZENDE, 2000, p. 15), porquanto uma tal distinção reitera os fundamentos da abordagem estática, quais sejam a existência de (a) um plano abstrato de relações intersubjetivas estabilizadas e (b) um sistema de relações determinadas entre forma e conteúdo, que não comporta deformações. O funcionamento de FALSO de que trataremos aqui não se confunde com a descrição da totalidade do fenômeno que se encerra em si mesma. Nossos observáveis – famílias de enunciados em relação parafrástica – não se confundem com os conceitos de dado e de fenômeno enquanto objetos estabilizados. Porque esses abstraem da ação subjetiva e da variação de ângulos perceptivos subjacentes (invariante), cujas marcas são constitutivas das línguas. Esses dois conceitos costumam referir objetos que perderam sua gênese na “prática, seja de interação verbal dos falantes de uma língua, seja de interação dos falantes com o meio ambiente” (REZENDE, 2000, p. 12). A linguística culioliana reabilita a gênese (perdida) da variação nas línguas e assume uma posição diante dela: a gênese de toda a variação é experiencial e subjetiva, e não formal ou processual. A variação diz respeito aos modos de perceber e representar o mundo por sistemas não homogêneos (transindividuais) que, em princípio, não dialogam, razão essa do trabalho dos sujeitos para se fazer dialogar. 4. Processos enunciativos de funcionamento de FALSO Trabalhamos com contexto explícito das intuições 7 que estão sustentando processos de formalização de enunciados em família parafrástica, ao mesmo tempo em que vamos construindo um sistema de representação metalinguística que dê consta de descrever o formal que a linguagem é, isto é, como mecanismo de forma que dá sustentação não só a caminhos que levam a bom termo, porque constroem representação, mas também trajetórias que ficam a meio caminho ou que não se “Se as ciências desconfiaram oficialmente da analogia, praticaram-na clandestinamente. Muitos cientistas utilizam o raciocínio por analogia para construir tipologias, elaborar homologias ou mesmo induzir leis gerais (mas os manuais apagam o rastro do caminho mental subjetivo, assim como o enobrecimento apaga os rastros da sua extração vulgar” (MORAN, 2012. p. 156). 7 39 transformam e – de um certo ponto de vista que não é o nosso – não constroem representação. Para tanto, consideremos o diálogo abaixo: - Você pagou a indenização a Pedro pela morte da sua esposa? - Não! De jeito nenhum. - Por que? - Pedro me entregou um atestado de óbito falso. Assumimos um valor semântico interpretável não qualquer de atestado de óbito falso, que só pode ser apreendido através de ocorrências particulares de Pedro me entregou um atestado de óbito falso, e dentro do diálogo acima formalizado. Nossa unidade de análise é o enunciado. Em outros termos, Culioli atribui ao enunciado um duplo estatuto – teórico e material. É uma unidade empírica de observação porquanto constituída de materialidade e, por isso, o dado mais diretamente observável ao linguista; é uma entidade teórica porquanto é definido como agenciamento de marcadores de operações da atividade de linguagem. Dessa perspectiva, em sua atividade de análise, o linguista parte de dados imediatos e caminha em direção à formulação de dados teorizados (famílias parafrásticas) que lhe fornecem subsídio para retornar ao empírico (PRIA, 2013, p. 42). O processo constitutivo do enunciado compreende um conjunto de relações imbricadas. Em síntese, são relações de natureza primitiva, predicativa e enunciativa. Por ocasião da análise do enunciado Pedro me entregou um atestado de óbito falso será possível observar o funcionamento dessas relações na sua constituição. Aqui, procuramos contemplá-las em três momentos, privilegiando uma relação em cada momento. Não se pretende esgotar – como se isso fosse possível – as relações em tela. Ainda que tenhamos optado por tratá-las em separado, as relações se sobrepõem, como se poderá perceber do texto. O primeiro momento ou SIT0 (= Situação zero) trata da instanciação de um esquema formal por noções semânticas e da organização de domínios nocionais; o segundo, SIT1, trata da organização de posições que visam dar existência aos termos do enunciado; o terceiro, SIT2, trata dos ajustamentos das situações anteriores diante de um contexto discursivo. Todo enunciado é um evento que nasce de uma relação semântica entre domínios nocionais e aponta para uma certa direção de sentido, um lugar onde as propriedades dos termos estão cultural e historicamente adequadas. Para fins de manipulação do enunciado e explicitação da relação semântica que aqui se afigura, comecemos por colocar uma situação zero, doravante SIT0, e um esquema de léxis. SIT0: determinação da orientação semântica. A léxis é um esquema formal de três lugares <ξ0, ξ1, π> que prevê uma variável para o operador π e duas variáveis, ξ0 e ξ1, para os argumentos da predicação. Os espaços formais da léxis são instanciados por noções semânticas e, do ponto de vista cognitivo, asseguram a estruturação do conteúdo de pensamento ou conteúdo proposicional. Trabalharemos com a seguinte léxis: <Pedro entregar atestado-de-óbito>. A “intuição criadora”8 (DUCARD, 2006, p16) projeta, para uma eventual situação enunciativa (Sit*)9, que sejam ratificadas as propriedades 10 dos termos da 8 9 No original: intuition créatrice (DUCARD, 2006, p. 16). O asterisco sempre representa um valor hipotético. 40 léxis, tais como estão relativamente estabilizadas na cultura: Pedro sendo aquele que tem a propriedade de entregar, dentre outras coisas, um atestado de óbito, e atestado de óbito sendo alguma coisa que pode ser entregue por alguém, dentre os quais, Pedro. O enunciado a seguir traduz esses valores: Pedro me entregou um atestado de óbito por ocasião da morte da sua esposa. Observa-se do enunciado ausência de marcas que remetam a um possível bloqueio à construção dos termos, algo que se traduz por um enunciado como Pedro não me entregou um atestado de óbito porque estava desconsolado com a morte de sua esposa. A confirmação das propriedades dos termos, numa eventual situação enunciativa (Sit*), pode resultar na construção quer do ENTREGADOR (<( ) entregar atestado-de-óbito>) quer do ENTREGADO (<Pedro entregar ( )>) quer de ambos os termos, através do predicado entregar. Os termos que vierem a se construir, numa eventual situação enunciativa (Sit*), darão conta de quão adequados estão os termos em relação às noções que os quer “encanar” (REZENDE, 2000, p. 128). Os termos em construção, no nosso enunciado de partida, são Pedro e atestado de óbito. Colocadas em relação, as noções semânticas da léxis esboçam não só uma orientação semântica, “uma grosseira direção de sentido” (REZENDE, 2011, p. 707), quer dizer, uma relação mais ou menos adequada entre os termos e as noções semânticas que lhes quer encarnar, mas também um “projeto de existência” (REZENDE, 2000, p. 280) da representação visada, no nosso caso: alguma coisa entregue por Pedro, provisoriamente representada pelo termo atestado de óbito. Com efeito, esse gesto que visa trazer à existência alguma coisa ainda pouco determinada cuja determinação maior é ter sido introduzida num espaço referenciável, através da associação da ocorrência de alguma coisa a um termo do léxico, é o primeiro passo na direção da sua construção nesse espaço. Por certo, não é um acaso a escolha do termo, resulta da analogia de alguma coisa com ocorrências da noção /atestado de óbito/ 11, conhecidas do enunciador. São operações de qualificação ulteriores que poderão validar a adequação na escolha do termo. No enunciado Pedro nos entregou um atestado de óbito e tanto, é pena que sua esposa esteja morta, as marcas de modalidade assertiva e de aspecto perfectivo (ausência de obstáculo) do contexto encaixante contribuem para essa confirmação. Outro enunciado por colocar a dúvida sobre a adequação, tal é o caso de Pedro nos trouxe um atestado de óbito sem valor algum, será mesmo que sua esposa está morta? SIT1: determinação da direção dos termos. A imersão da léxis num espaço referencial qualquer (abstrato ou físicocultural), impõe que os termos sejam ordenados numa sequência linear. A ordenação, no entanto, esboça enunciáveis cuja existência dos termos pode não ser conhecida dos sujeitos num espaço referenciável. O objetivo da relação predicativa é a construção dessa existência dos enunciáveis. Vejamos as duas glosas a seguir: (1) [Há] Um atestado de óbito [que] foi entregue por Pedro [nosso conhecido] para alguém. (2) Pedro [nosso conhecido] entregou um atestado de óbito [há alguma coisa] para alguém. Enquanto (2) está construindo a existência de um ENTREGÁVEL cujo ENTREGADOR é conhecido dos sujeitos, em (1) está sendo construída a existência do ENTREGADOR cujo ENTREGÁVEL ainda é pouco conhecido dos sujeitos. Propriedades que estão relativamente estabilizadas nas culturas, tais como humano, animado, adulto, infantil, inanimado, individuável, massivo, processo finalizado, iniciador, acidental, e assim por diante (CULIOLI, 1999a, p. 100). 11 Os termos entre barras oblíquas sempre representam noções. 10 41 As posições dos termos refletem, em alguma medida, as posições dos sujeitos no espaço referenciável. Em (1), glosamos a posição do enunciador (S0) sobre co-enunciador (S2), antes mesmo que S0 se tenha feito locutor (S1), numa situação enunciativa. S0 sabe que S2 não sabe alguma coisa de S0 sobre Pedro. Colocar o enunciado no plano do dizível implica eliminar essa diferença. Aquilo que S0 sabe de S2 se converte numa posição de S0 em relação a S2. S0 se sobrepõe a S2 no espaço referenciável. Que é a projeção da imagem do enunciador (S0) sobre o co-enunciador no enunciado (1). O enunciador (S0) está sustentando a posição de alguém (um S com o qual S0 se identifica) que supõe ser o co-enunciador (S2). Tal suposição se traduz pelo marcador de localização há. Trata-se de um operador que visa introduzir alguma coisa no universo de discurso para que predicações ulteriores que possam se efetivar sobre alguma coisa. Esse valor se traduz pela seguinte glosa: Há alguma coisa, falemos dela. Com esse gesto, S0 constrói a existência fictícia de um enunciável. Em (2), também glosamos a posição do enunciador (S0) sobre o coenunciador (S2), antes mesmo que S0 se tenha feito locutor (S1). S0 sabe que S2 sabe alguma coisa de S0 sobre Pedro. Aquilo que S0 sabe de S2 converte-se, mais uma vez, numa posição de S0 em relação a S2, qual seja a de que S0 e S2 ocupam a mesma posição no espaço referenciável. Desse ponto de vista, uma eventual diferença (S2 não sabe alguma coisa de S0 sobre Pedro) não se coloca ou fica em segundo plano, pois, vindo a se colocar, pode construir algum bloqueio à trajetória de determinação de um ENTREGADOR. Para tanto, não se questiona a identidade de alguma coisa enquanto ENTREGADO. Ao nível das relações predicativas essa diferença é pano de fundo. Presume-se de (2) um certo modo de existir do termo atestado de óbito. Com efeito, (2) retoma uma ocorrência de alguma coisa cujo modo de existir ainda pode ser questionado ao nível das relações enunciativas quer para ser colocado em dúvida, como em O Pedro então nos entregou um atestado de óbito? Conta outra. De onde ele tirou um atestado de óbito? quer para ser Foi emitido com rapidez o atestado de óbito que Pedro nos entregou [um atestado de óbito]. S0 constrói a existência do enunciável sob um gesto que abstrai dessas posições. A estrutura predicativa, embora seja um modo particular de apreensão do mundo e resulte da apropriação da realidade psico-física e cultural por um sujeito particular, configura uma construção de tal modo generalizada, porque distende a tal ponto o tempo, o espaço e o mundo (sujeitos), que compreende o conteúdo proposicional, sempre igual em si mesmo, onde toda diferença se apaga. SIT2: determinação da estabilidade intersubjetiva. Ainda que, através da ordenação, a relação predicativa esboce posições, ela o faz no sentido da sua exclusão. Se essas posições podem ser retomadas na relação enunciativa, entendemos que se deva ao fato de a intersubjetividade já estar colocada enquanto projeto – mas ainda não construída – ao nível das relações predicativas. A intersubjetividade é um projeto, e não está dada para o enunciado. Por certo, a intersubjetividade ou as posições intersubjetivas – do modo como as entendemos – são construto da atividade de linguagem, e não o seu o fundamento. Estamos nos apoiando “na hipótese fundadora de que a atividade de linguagem é produto de uma atividade simbólica por gestos” (DUCARD, 2009, p. 68) de apropriação de relações predicativas, mas não só, que se esboçam numa certa direção, mas que nem sempre se constroem como tal. A heterogeneidade do discurso, assim como a sua transcendência, não pode ser tomada nem como anterior nem como exterior às formas que permitem dela dizer, “ela lhes é inerente” (VOGÜÉ; FRANCKEL; PAILLARD, 2011, p. 11). A adequação nocional (SIT0) construída sobre uma eventual situação 42 enunciativa (SIT1) é uma disposição do enunciador (S0) que pode vir a se constituir locutor (S1*). A possibilidade de deslocamentos está na base da apropriação dessa invariante. Toda invariante não-ainda formalizada em relação a uma situação singular (Sit), através de formas interpretáveis de uma língua dada, é suscetível de deslocamentos dentro de um espaço referenciável. Por isso, há sempre o risco de se dizer outra coisa, na passagem das representações abstratas para as representações linguísticas. Nessa passagem, é o centro atrator que assegura possíveis reorganizações do conteúdo proposicional frente às posições que estavam colocadas enquanto projeto na relação predicativa, mas que, na relação enunciativa, são posições de fato. A não coincidência dos modos de ser da invariante de base é de princípio. A continuidade é resultado do investimento do sujeito, e não um fundamento da atividade significante. A intuição de estabilidade enquanto mesmice deve-se, muitas das vezes, às aproximações (analogia com a memória enunciativa ou com projeções enunciativas) que uma disposição atual convoca para a apropriação de formas interpretáveis, caminho de acesso que são a uma “ambiguidade fundamental” 12 (CULIOLI, 1999a. p. 160). O trabalho do sujeito para passar de uma disposição à outra interessa-nos mais do que as descrições que podem ser feitas das aproximações em si. FALSO é marca do trabalho do sujeito, uma disposição de S0, para passar de um modo de ser de alguma coisa, esboçado em SIT0 e projetado em SIT1, para um modo de ser outro-o mesmo que a SIT2 lhe assegura. O mesmo em razão da identidade de forma que é localizada em relação a uma situação particular (Sit) e outro em razão da reorganização nocional que essa localização implica. A passagem de uma situação eventual (Sit*) para uma situação particular (Sit) não é sem consequência. FALSO é, antes de tudo, marca da modalidade da dúvida sobre a posição dos sujeitos da Sit a respeito de alguma coisa. FALSO é marca de alteridade (dissociação) enunciativa. Em SIT2, S0 está dissociado da posição de um eventual locutor (S1*), mas não da disposição de S0, projeta em SIT1, para uma eventual situação enunciativa (Sit*). No nosso enunciado de partida, é a alteridade enquanto o mesmo, mas em outro tempo-espaço, que coloca em dúvida a possibilidade de que alguma coisa se construa como uma ocorrência da noção /atestado de óbito/. FALSO é a marca da dúvida de S1, excluída de SIT1, quanto à construção de alguma coisa como uma ocorrência da noção /atestado de óbito/. A negação da existência de um atestado de óbito que existe como tal é um pano de fundo que não se resolve com FALSO. FALSO marca o bloqueio à trajetória de construção de atestado de óbito que se esboçou em SIT0 e cuja existência se projetou SIT1. Esse bloqueio dá margem a todo tipo de especulação – que não é nosso objetivo fomentar – sobre a trajetória da representação a partir de Sit. Em SIT2, S1 força a volta – como se isso fosse possível ou sem consequência – à situação zero, passando pela situação um, como uma trajetória possível. A volta, ou melhor, a sua tentativa, não é sem consequência para o enunciado. FALSO é a marca dessa consequência no movimento (trabalho) de construção da representação no contexto do enunciado, e não para o fragmento atestado de óbito isolado. 5. Considerações finais Depois de ter passado em revista um conjunto extenso de gramáticas brasileiras de 11 diferentes autores – todos eles apoiados no conceito de aristotélico 12 No original: ambiguïté foncière (CULIOLI, 1999a, p. 160). 43 de classe – uma pesquisa concluiu: “Todos eles apontam que o adjetivo indica “qualidade(s)”” (NEVES, 2011, p. 17). No avesso da tradição gramatical, observamos, na prática de construção de significação, que FALSO é marca da dúvida e do bloqueio à construção do termo atestado de óbito, na trajetória da construção do enunciado. A lógica já apostou na derivação de subtipos como alternativa ao tratamento extensional (ILARI, 1993), que “falha” na descrição de adjetivos como FALSO. Vimos aqui que uma possível razão para a “falha” é o bloqueio colocado por FALSO à construção do nome e à construção da classe de predicados que poderiam ser descritos pelo nome. Como a lógica trabalha com fragmentos de enunciado, fica difícil perceber tanto o movimento construtor da representação quanto os obstáculos que pode vir a encontrar. Buscamos aqui explicitar que esse movimento é muito maior do que o conteúdo que uma construção possa encapsular. Referências CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’énonciation: opérations et représentations. Paris: Ophrys, 1990. ______. Pour une linguistique de l’énonciation: formalisation et opérations de repérage. Paris: Ophrys, 1999a. ______. Pour une linguistique de l’énonciation: domaine notionnel. Paris: Ophrys, 1999b. ______. Variations sur la linguistique. Entretiens avec Frédéric Fau préface et notes de Michel Viel. Paris: Klincksiek, 2002. DUCARD, D. O grafo do gesto mental na teoria enunciativa de A. Culioli. Tradução de Consuelo Vallandro Barbo. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 44, n. 1, p. 64-71, 2009. ______. Seuils, passages, sauts. DUCARD, D.; NORMARD, C. (orgs.) Antoine Culioli: un homme dans le langage. Paris: Ophrys, 2006. p. 13-18. ILARI, R. Alguns problemas semânticos na análise dos adjetivos. Caderno de estudos linguísticos, Campinas, v. 24, p. 41-45, 1993. MORAN, E. O método 3: conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4. Ed. Porto Alegre: Sulina, 2012. NEVES, M. H de M. Uma amostra do tratamento concedido às classes de palavras na tradição gramatical do português. 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São Paulo: Contexto, 2011. p. 9-13. 45 POTENCIALIDADES PARA O ENSINO: ANÁLISE E REFLEXÕES SOBRE O DISCURSO PUBLICITÁRIO EM TRAILERS FÍLMICOS NA PERSPECTIVA MULTIMODAL ALINE GABRIELLE CORREIA DA COSTA, JINNY KELLY CENTENO RAMOS Universidade Federal de Lavras – Departamento de Estudos da Linguagem Av. Doutor Sylvio Menicucci, 1001 - Kennedy, Lavras – MG. CEP: 37200-000. alinnegcosta@gmail.com, jinnykelly.centeno@gmail.com Resumo. O presente estudo busca abordar como o discurso publicitário se compõe em trailers fílmicos através das multissemioses, e discutir as potencialidades de recursos linguísticos e imagéticos aliados ao processo de ensino-aprendizagem. Para isso, admitiu-se como referencial teórico Kress e Van Leeuwen (1996), Bakhtin (1997), Maingueneau (2006), etc. Assim, constatou-se que o discurso publicitário se constitui como um instrumento em potencial no processo de formação de leitores críticos proficientes. Palavras-Chave. Multimodalidade. Discurso Publicitário. Ensino. Trailer Fílmico. Abstract. The present study seeks to address how the advertising speech is composed in film trailers through the multisemiosis, and discuss the potentialities of linguistic and imagery resources allied to the teachinglearning process. For this, Kress and Van Leeuwen (1996), Bakhtin (1997), Maingueneau (2006), and others were accepted as theoretical references. Thus, it was found that the advertising discourse constitutes a potential instrument in the process of training critical readers proficient. Keywords. Multimodality. Advertising Speech. Teaching-learning. Film Trailer. 1. Introdução Mediante a ascensão de novas propostas audiovisuais advindas do crescimento da chamada era tecnológica, muito tem se discutido sobre o trabalho com os textos e recursos multimodais nos gêneros textuais e discursivos. Caracteriza-se por modos e meios multissemióticos a utilização de recursos linguísticos e imagéticos (imagens, escrita, caligrafia e tipografia, som, música, figuras cinéticas, linhas, cores, tamanho, ângulos, entonação, ritmos, efeitos e metáforas visuais, etc.) socialmente modelados através do tempo para se tornarem geradores de sentido, os quais articulam os significados (sociais, individuais/afetivos) exigidos pelos requerimentos de diversas comunidades e contextos. Partindo desse pressuposto, é notável que o discurso publicitário, veiculado as mais diferentes mídias e suportes, muito se utiliza desses recursos para cumprir com o seu objetivo principal, que é vender ou promover uma ideia, produto, serviço ou marca. Assim, quase sempre entrelaçados a arte e/ou ao entretenimento, os trailers fílmicos, que se caracterizam por ser um tipo de anúncio publicitário, fazem 46 uso dos recursos multimodais geradores de sentido em seu discurso publicitário, com o intuito de cumprirem seu(s) propósito(s). Uma vez que o trailer fílmico tem se feito muito presente no cotidiano da maioria dos sujeitos, salienta-se a importância do multiletramento e das formas de conceber e reconhecer os recursos multissemióticos, a fim de que esses sujeitos possam identificar como esses recursos atuam na construção de sentidos e também nas estratégias de persuasão produzidas pela indústria publicitária. Dessa forma, levar para o ensino as características do discurso midiático e seu impacto sociocultural é considerar uma nova forma de conceber a linguagem, com a qual é possível formar cidadãos com autonomia intelectual e pensamento crítico. Partindo desse pressuposto, o presente trabalho, que foi realizado no âmbito do PIBID/CAPES, pretende abordar como o discurso publicitário se constitui nos trailers fílmicos através da multimodalidade, com vistas a discutir as potencialidades do trabalho com os recursos linguísticos e imagéticos aliados ao processo de ensino-aprendizagem. Para tanto, admitiu-se como referencial teórico Kress e Van Leeuwen (1996), Dionísio (2014), Bakhtin (1997), Maingueneau (2006), Rojo (2009), Vestergaard e Schroder (2000), entre outros autores. A partir do estudo empreendido, foi possível constatar que o discurso publicitário se constitui como um instrumento em potencial para os processos de aprendizagem e formação de leitores críticos proficientes. Além disso, também foi possível observar as concepções sociais e ideologias presentes nas formas verbais e não verbais através dos discursos publicitários analisados. 2. Quadro teórico 2.1 O discurso publicitário O discurso publicitário é um poderoso instrumento que influencia diretamente na construção das representações dos papeis sociais. Diante disso, entender que as diversas esferas da atividade humana estão relacionadas a linguagem é fundamental para pensar o discurso, pois é somente através das relações sócio discursivas que o sujeito atua sobre o mundo. Desse modo, esta pesquisa busca entender como o discurso publicitário se constitui na esfera cinematográfica e quais as estratégias para alcançar seu público-alvo. É fato que em cada campo da vida social uso da língua ocorre de acordo com a necessidade de utilização de gêneros do discurso específicos. Para tanto, é necessário utiliza-la de acordo com a necessidade de comunicação de cada falante, e logo, dominá-la, pois, de acordo com Bakhtin (1997, p. 302): Se os gêneros do discurso não existissem e se nós não tivéssemos o seu domínio e se fosse preciso cria-los pela primeira vez em cada processo de fala, se nos fosse preciso construir cada um de nossos enunciados, a troca verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 1997, p. 302). Dessa forma, a manifestação dos gêneros discursivos não acontece aleatoriamente, eles se formam a partir de questões culturais e na medida em que a sociedade avança. Logo, os gêneros atuam nas interações comunicativas. Além disso, os gêneros sofrem, sim, alterações, pois o contexto social é o que determina seu surgimento e transformação. Ou seja, os gêneros se constituem a partir de uma necessidade interacional, dentro de um determinado espaço e tempo. Sobre a relação dos gêneros textuais e a forma como eles atuam nas interações comunicativas, podemos dizer que a maior liberdade na manipulação dos 47 gêneros está entrelaçada a uma relação direta com a audiência e com o meio físico que o transmite, pois segundo Bazerman (1997, p. 14) apud Dionisio (2014) Os gêneros textuais moldam os pensamentos que formamos e as comunicações pelas quais interagimos. Gêneros são espaços familiares nos quais criamos ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são guias que usamos para explorar o não familiar. (BAZERMAN, 1997, p. 14). Segundo Sandmann (1997, p. 12), a linguagem da propaganda se distingue, por exemplo, da linguagem literária, pela criatividade, pela busca de recursos expressivos que chamem a atenção do leitor, que o faça parar e ler ou escutar a mensagem que lhe é dirigida (...). Assim, a propaganda é produzida de forma que sejam criados estímulos visuais para que captar a atenção do leitor. Tais estímulos podem ser caracterizados, pelo uso de recursos multissemióticos, multimodais, além de outros recursos linguísticos, afim de que um anúncio publicitário se destaque e cumpra com seu objetivo. Em concordância, Vestergaard (1994, p.171) confirma que O anunciante quer dar ao seu produto uma imagem destinada a funcionar como vantagem extra para ele no mercado, onde é preciso diferenciá-lo um pouco dos produtos concorrentes, que são (quase) iguais quanto ao seu valor de uso material. O problema, para ele, consiste em conseguir que o leitor-consumidor associe o produto com a desejada imagem ou qualidade. (VESTERGAARD, 1994, p.171) Os sentidos produzidos por meio de gêneros discursivos na esfera publicitária se constroem de forma que o principal objetivo é o de convencer e/ou persuadir. Segundo Reboul (1998), o convencimento é pautado no reforço do posicionamento por meio da lógica, buscando associações e dados. Já a dimensão persuasiva acontece no campo da emoção, assim os argumentos se fortalecem a partir da compaixão, medo, amor e outros sentimentos de grande intensidade. Diante disso, é possível perceber que o discurso publicitário age nos trailers fílmicos de forma persuasiva, visto que a trilha sonora, as legendas e a cenas escolhidas têm o propósito de atingir emocionalmente o espectador. São utilizados mecanismos linguísticos e imagéticos que fazem com que o leitor/interlocutor crie associações positivas com o filme ali promovido, e com isso, perceba-se com vontade de consumir o lançamento. Reconhecer a intenções implícitas no discurso publicitário midiático é, de fato, essencial para a construção de um bom leitor, pois com o fácil acesso ao mundo digital, os jovens e adolescentes veem com grande frequência trailers e outros gêneros similares, e os recursos retóricos com os quais o discurso publicitário opera tem um grande poder sobre a percepção social do sujeito. Dessa forma, é importante que o ensino de língua portuguesa nas escolas ensine aos estudantes diferentes formas explorar as linguagens presentes nesse gênero textual. 2.2 A multimodalidade e os recursos multissemióticos Devido ao crescente aparecimento de textos vinculados às esferas tecnológicas e de informação na sociedade, obteve-se uma demanda por diferentes tipos de leitura, norteadas pelas mais diversas práticas comunicativas, uma vez que o letramento visual está diretamente relacionado com a organização social das comunidades, e consequentemente com a organização dos gêneros textuais. 48 Assim, o texto basicamente escrito e limitado aos aspectos discursivos escritos e gramaticais, organizado de forma rígida, hierárquica e linear, e utilizando a linguagem visual e imagética somente de forma acessória deixou de ser padrão e recorrente. O texto, então, passa a ser multimodal, novas concepções, múltiplas linguagens. A escrita passa, então, a ser ressignificada e, consequentemente, novos meios de leitura são ampliados, requeridos e evidenciados. Ainda sobre as definições de multimodalidade, podemos destacar os conceitos apresentados por Jewitt (2009) apud Dionísio (2014, p. 48, 49) que disserta que multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que entende a comunicação e a representação como envolvendo mais que a língua. A autora ainda postula três pressupostos teóricos que, interconectados, estão subjacentes à multimodalidade: Primeiro, a multimodalidade pressupõe que a representação e a comunicação sempre se baseiam em uma multiplicidade de modos, todos contribuindo para o significado. Em segundo lugar, a multimodalidade pressupõe que os recursos são socialmente modelados através do tempo para se tornarem geradores de sentido, os quais articulam os significados (sociais, individuais/afetivos) exigidos pelos requerimentos de diversas comunidades. Finalmente, a multimodalidade pressupõe pessoas orquestrando o sentido através de uma seleção e configuração particular de modos, enfatizando a importância da interação entre modos. (JEWITT, 2009). De acordo com a teoria da semiótica social (KRESS e VAN LEEUWEN 1996 apud Dionísio 2006), um texto pode ser formado por um ou vários recursos semióticos – palavras e imagens, por exemplo – resultando a noção de multimodalidade. Tais elementos contribuem para a construção de sentido e se constituem como recursos que devem ser considerados no processo de interpretação de um texto. Em conformidade, Kress e van Leeuwen apud Gualberto (1996; 2006) defendem que as estruturas visuais se assemelham as estruturas linguísticas, visto que aquelas também expressam interpretações particulares da experiência, além de se constituírem como formas de interação social. Desse modo, as escolhas de composição de uma imagem também são escolhas de significado: Significados pertencem à cultura, ao invés de modos semióticos específicos [...]. Por exemplo, aquilo que é expresso na linguagem através da escolha entre diferentes classes de palavras e estruturas oracionais, pode, na comunicação visual, ser expresso através da escolha entre os diferentes usos de cor ou diferentes estruturas composicionais. E isso afetará o significado. (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996) Além disso, os autores também entendem que as imagens e signos articulam-se em composições visuais produzindo significados ideacionais, interpessoais e textuais, aliados ao suporte em que circulam, e seu gênero textual. Assim, um texto pode não se restringir apenas aos recursos linguísticos escritos estáticos, ou seja, escolhas linguísticas discursivas ou verbais. Um texto pode utilizar-se ricamente dos mais diversos recursos imagéticos e multissemióticos disponíveis, como imagens, escrita, caligrafia e tipografia, som, música, figuras cinéticas, linhas, cores, tamanho, ângulos, entonação, ritmos, efeitos e metáforas visuais, melodia etc., caracterizando-o, assim, como um texto multimodal. 49 Esses recursos presentes nos textos multimodais estabelecem um modo novo modo de contemplar, por exemplo, a autoria e a recepção de enunciados. Assim, o processo de produção textual não é mais exclusivamente linguístico, integra outros recursos além do texto estritamente verbal e discursivo. Com tudo, as novas formas de leitura concebidas pelos mais variados textos multimodais interagem com o leitor-receptor de forma cognitiva. Coscarelli (2012) e Ribeiro (2012), dizem que os processos cognitivos realizados durante a leitura de um texto digital, por exemplo, que geralmente apresenta linguagens diversas em sua composição, são semelhantes aos da leitura de um texto impresso, no qual normalmente predomina a linguagem verbal escrita. No entanto, segundo os estudos multimodais propostos por e Kress e van Leeuwen (1998), esses recursos multissemióticos presentes na composição de um texto agem em concordância com suas convenções sociais e discursivas, além das redes sistêmicas e metafunções. 2.3 O trailer fílmico O Trailer fílmico surge a partir do interesse das grandes produtoras cinematográficas em chamar atenção para o filme a ser lançado. A ideia inicial era de produzir uma pequena montagem com algumas das cenas do filme, mas com o crescimento da indústria cinematográfica os produtores passaram a se preocupar em mostrar, não só o resumo da história, como também apresentar o estilo, os atores e o visual do filme. A ascensão da indústria cultural a partir do sec. XVII penetra nos filmes uma nova visão de cinema. Por conseguinte, o lucro passou a ser o principal objetivo das grandes produtoras, com as quais os filmes eram vendidos como qualquer outro produto. Assim sendo, o trailer se torna um instrumento de propaganda. Os estúdios perceberam que expor uma prévia atraia mais público para a estreia do filme. E logo surgiram as empresas especializadas apenas na produção de trailers, as quais aplicam diversas estratégias de marketing para atrair o máximo possível de pessoas. Hoje é o trailer fílmico o responsável em transmitir a essência do filme através de recursos multissemióticos usados como estratégias persuasivas, com o intuito de tocar emocionalmente o público. Assim, Sandmann (2000, p. 27) ressalta que Naturalmente vender um produto ou uma ideia é função de toda linguagem da propaganda e não só quando a função apelativa se faz presente com suas marcas linguísticas típicas [...]. De certo modo se pode dizer, pois, que a função persuasiva ou apelativa pode estar presente mesmo sem as marcas tradicionais [...]. É o caso de se atingir, por exemplo, a vaidade do interlocutor ou leitor: “não basta um bom shampoo para fazer a cabeça de uma mulher inteligente. (SANDMANN, 2000, p.27). O fato da prévia possuir marcas linguísticas mais suaves comparado a outros gêneros publicitários muitas vezes não possibilita uma relação do trailer como um gênero publicitário. As estratégias persuasivas são usadas de modo que o espectador se sente convidado a ver o filme, a venda acontece de forma implícita. São essas características do trailer que torna o gênero tão intrigante de ser trabalhado. Por meio dele, é possível discutir questões sociais, ideológicas, culturais e identificar como elas atuam linguisticamente. Desse modo, viabiliza um olhar crítico sobre o mundo, entendendo as relações de poder acerca das estratégias linguísticas e a importância desse conhecimento para construção de um cidadão consciente. 50 3. Os recursos multimodais no discurso publicitário para a construção de multiletramentos Para Rojo (2011), o desenvolvimento das tecnologias da comunicação juntamente com as práticas sociais específicas de leitura e escrita exige que a escola foque seu trabalho nessa realidade e parta dela para ensinar. Ainda, sobre a ascensão da tecnologia e consequentemente das novas práticas de leitura e escrita multimodais, a autora salienta que (...) ocorre que, se houve e se há essa mudança, as tecnologias e os textos contemporâneos, deve haver também uma mudança na maneira como a escola aborda os letramentos requeridos por essas mudanças” (ROJO, 2011, p. 99). Dessarte, os indivíduos devem estar preparados para lidar e decodificar os textos multimodais em seus diferentes suportes e gêneros textuais. Para tanto, devem ser multiletrados, ou seja, estarem aptos a reconhecer, decodificar, e compreender textos multimodais e os recursos linguísticos e imagéticos presentes nestes textos. Devem, portanto, adquirir os multiletramentos. Rojo (2013, p.21) define multiletramentos como práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos contemporâneos – majoritariamente digitais, mas também digitais impressos – que incluem procedimentos (como gestos para ler, por exemplo) e capacidades de leitura e produção que vão muito além da compreensão e produção de textos escritos, pois incorporem a leitura e (re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e infográficos, vídeos, áudio etc. (ROJO, 2013, p.21) Partindo dessa premissa, faz-se necessário inserir e dar importância para o trabalho com os textos multimodais, a fim de desenvolver as capacidades de leitura e produção desses textos, e, consequentemente, formar indivíduos mais críticos e reflexivos. Sendo assim, DIONISIO (2014, p. 41) orienta que “Trazer para o espaço escolar uma diversidade de gêneros textuais em que ocorra uma combinação de recursos semióticos significa promover o desenvolvimento cognitivo de nossos aprendizes.” Considerando que as novas gerações já nascem conectadas e crescem sendo bombardeadas de informações visuais é de extrema importância que a escola acompanhe essa mudança e contribua para que os olhares possam ser educados para diferentes leituras. Logo, preparar o estudante para ler o mundo, a fim de que ele entenda que a interação se dá em diferentes níveis de linguagem é proporcionar um ensino de língua portuguesa produtivo e eficaz. Para tanto, são utilizados os mais diversos gêneros textuais. Para Dionisio (2014, p. 65, 66) “a compreensão destes gêneros exige de seus leitores familiaridade com a tessitura entre as linguagens utilizadas, com as convenções apresentadas, ou seja, as convenções do design.” Esta competência se constrói (e também se revela) com base em nossas experiências sociais mediadas por textos, pelas nossas práticas de letramento. Dessa forma, estas práticas estabelecem a linguagem como uma herança social, uma ‘realidade primeira’, que, assimilada, envolve os indivíduos e faz com que as mentais, emocionais e perceptivas sejam reguladas simbolismo. (...) A linguagem permeia o conhecimento e uma vez estruturas pelo seu as formas 51 de conhecer, o pensamento e as formas de pensar, a comunicação e os modos de comunicar, a ação e os modos de agir. Ela é a roda inventada, que movimenta o homem e é movimentada pelo homem. Produto e produção cultural, nascida por força das práticas sociais, a linguagem é humana e, tal como o homem, destaca-se pelo seu caráter criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a um só tempo. (BRASIL, 2000, p. 125). Por meio de recursos multimodais o trailer fílmico, que se constitui e atua por meio do gênero textual anúncio publicitário, por se tratar utilizar a linguagem multimodal possibilita aos alunos uma experiência diferenciada por meio de uma linguagem próxima a do público jovem em seu dia-a-dia, transformando a aula de português não apenas em um ambiente de ensino e aprendizagem, mas também em um ambiente onde o discente sinta-se pertencente e autônomo. Ele precisa compreender de que forma as habilidades linguísticas são usadas para persuadir, convencer, cativar e acionar diferentes reações no interlocutor. Assim, o aluno passa a ser capaz de reconhecer diferentes estratégias e de se posicionar de uma forma consciente perante a sociedade. Para que se construa uma relação positiva e satisfatória com o ensino de língua portuguesa é necessário, por parte docente, buscar atividades que façam relação com o contexto sócio cultural do estudante. O trailer fílmico é uma excelente ferramenta para trabalhar a visão sobre linguagem em sala de aula. Além disso, a prévia de um filme pode ser escolhida pelos próprios alunos, o que desperta maior interesse e proporciona discussões mais envolventes. 4. Análise de dados A escolha das linguagens ocorre dentro do propósito comunicativo, dos objetivos de comunicação, do tipo de público-alvo e do gênero. Esses são fatores imprescindíveis e determinantes para as escolhas que serão feitas na produção do texto. São eles que motivam, guiam e dão sentido a qualquer escolha de composição do texto multimodal. A prévia selecionada foi o trailer do filme “Mullher Maravilha (Wonder Woman)” da produtora Warner Bros e do estudios DC Comics, lançado no ano de 2017. O trailer se inicia apresentando em letras chamativas os logos das empresas desenvolvedoras. Assim como em qualquer propaganda ou anuncio, a marca precisa ser visível para futuras associações do espectador. Tais logos são inseridos já no começo, como uma primeira “visão” para que o espectador fixe a marca, provavelmente já conhecida pelo público. Inicia-se uma música com ‘batidas’ intensas e logo nas primeiras cenas são mostrados os cenários onde será desenvolvida a história do filme. 52 • Logo das produtoras: é apresentado no começo do trailer; • Música (soundtrack), efeitos de sonoplastia; • Efeitos especiais de computador; • Narração; • Frames do cenário onde se passará a história (padrão hollywoodiano de trailers). • Frames de chamada: abordagem onde é feito a persuasão para, posteriormente o consumo do filme. • Os demais cortes de frames no decorrer do trailer também são proposicionais. Em seguida, a personagem principal, Diana, é filmada em um ângulo contraplongéè, dando a ideia de grandeza. Na primeira cena, a personagem demonstra toda sua força e independência para causar no espectador identificação ou desejo de ser, o plano “ideal”. O enfoque em acessórios como corda e bracelete pode ser para futuras vendas de produtos relacionados, como brinquedos, fantasias, etc. Plano “detalhe”. Outro aspecto importante é o fato do filme ser direcionado a um certo público, ao mesmo tempo que se utiliza de uma temática em alta nos últimos anos, que é o empoderamento feminino. A personagem principal é uma das poucas mulheres poderosas, fortes, e hábeis do universo dos super-heróis. A inclusão de uma personagem assim aproxima o público feminino, onde ele se identifica, e, sentindo-se atraído, muito 53 provavelmente irá consumir o filme e os demais produtos advindos da marca promovida. As cenas seguintes apresentam os acessórios da personagem em um plano detalhe, com a intenção de atrair o telespectador para a compra de produtos como brinquedos, fantasias e outros. Por fim aparecem frames de chamada para posteriormente consumir o filme que será lançado. 5. Considerações finais A partir do estudo empreendido, foi possível constatar que o discurso publicitário, mais especificamente o presente nos trailers fílmicos, utilizam-se de recursos imagéticos e linguísticos para cumprir com seu objetivo de persuadir e vender um filme. Assim, constitui-se como um instrumento em potencial para os processos de aprendizagem, uma vez que requer que seus leitores sejam multiletrados, ou seja, estejam aptos a reconhecer os recursos multimodais que se constituem como meios de persuasão presentes neste gênero. Também foi possível entender as atuais características do trailer fílmico e sua construção como gênero publicitário, visto que a previa do filme carrega uma grande variedade de recursos linguísticos, com os quais o docente pode trabalhar no ensino de língua portuguesa a fim de contribuir para formação de leitores e cidadãos críticos e proficientes. O trailer proporciona uma experiência audiovisual impactante para o estudante, cooperando para que ele se engaje nas discussões acerca da metragem e seja capaz de compreender a amplitude da linguagem e das estratégias linguísticas que circulam no contexto em seu contexto. Desse modo, propor uma reflexão acerca da análise do discurso é provocar questionamentos sobre as estratégias de manipulação, e com isso resistir à padronização das ideias e 54 consumir de modo consciente e autônomo. 6. Referencias BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. DIONISIO, A. & Vasconcelos, L. Genres and Multimedia Learning: some theoretical and methodological reflections on pedagogical application. Manuscrito. Recife, 2010. Manuscrito. DIONISIO, Angela. Gêneros textuais e multimodalidade. in: Karwoski, Acir, Gaydeckza, Beatriz & Brito, Karim (org.) Gêneros Textuais: reflexões e ensino. São Paulo, Parábola. 2011. DIONISIO, Angela Paiva. Multimodalidades e leituras: funcionamento cognitivo, recursos semióticos, convenções visuais. Recife, Pipa comunicação. 2014. DIONISIO. Angela. A multimodalidade discursiva na atividade oral e escrita. in: Marcuschi, Luiz. A e Dionisio. Angela. (orgs.). Fala e Escrita. Belo Horizonte, Autêntica. 2005. Disponível em http://www.ceelufpe.com.br/ebooks/Fala_escrita_Livro.pdf, 2005. Acessado em 22 de maio de 2011. JEWITT, Carey. & Kress, Gunther. (ed). Multimodal Literacy. New York, Peter Lang. 2003. JEWITT, Carey. (ed.) The Routledge Handbook of Multimodal Analysis. New York, Routledge Press. 2009. KRESS, G. VAN LEEUWEN. Reading images: the grammar of visual design. London; New York: Routledge, 2006 [1996]. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da Enunciação. Organizado por Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, diversos tradutores. Curitiba, Criar Edições. 2006. REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ROJO, R. & Moura, e. Multiletramentos na Escola. São Paulo: Parábola, 2013. ROJO, R. Cenários futuros para as escolas. Cadernos Educação no Século XXI Multiletramentos (v. 3), são Paulo, Fundação telefônica. 2013. SANDMANN, A. J. A linguagem da propaganda. 2.ed. São Paulo: Contexto, 1997. VAN Leeuwen, Theo. Introducing Social Semiotics. New York, Routledge Press. 2005. VAN Leeuwen, T. Ten Reasons Why Linguists should Pay Attention to visual communication. in: P. Levine & R. scoLLon. Discourse & Technology: Multimodal Discourse Analysis. Georgetown: Georgetown University Press, 2004. VESTERGAARD, Torben; SCHRODER, Kim. A Linguagem da Propaganda. 55 Editora Martins Fontes, 1994. 56 UM ENSAIO REFLEXIVO SOBRE O LIVRE ARBITRIO EXPOSTO NA OBRA DE SÓFOCLES: TRILOIGA TEBANA ALLAN J M SILVA13 Faculdade de Letras – FALE Universidade Federal do Pará – UFPA Rua Augusto Correa, 1 – Guamá, Belém – Pará, Espaço Universitário Mirante do Rio, Cep. 66075-110. allan.llp@outlook.com Resumo. A Bíblia nos relata que nascemos livres e, que nos foi dado o livre arbítrio de escolha ainda no Éden por Deus Todo Poderoso. Porém, ao pensar no destino que cerca a vida humana, no propósito destinado para todos no momento de seu nascimento, na onisciência divina e na predestinação, é possível pensar que o homem não é senhor, total, de seu destino, é neste momento que as questões passam a se desvelar. O presente ensaio trata das seguintes questões: será que realmente somos livres? Ou somos apenas peças de tabuleiro nas mãos dos "deuses"? Perguntas como essas nos levam de encontro as Tragédias Gregas, isto é, narrativas literárias que envolviam um mundo dominado pelos deuses e pelos heróis dentro de um contexto mitológico e verossímil, a qual ao destino era atribuído a causa de todos os males direcionados a humanidade. Para embasar a proposta de reflexão descrito neste ensaio, foi realizado uma análise da obra de Sófocles: Trilogia Tebana, necessariamente "Édipo Rei" e "Édipo em Colono", em conjunto com textos publicados por autores como Sartre (2002) e a Bíblia Sagrada que tratam do assunto em questão Palavras chave: livre arbítrio, determinismo, édipo rei, édipo em colono. Abstract. The Bible tells us that we were born free and, which was given us the free will of choice still in Eden by God Almighty. However, in thinking of the destiny that surrounds human life, in the purpose destined for all at the time of his birth, in the divine omniscience and in predestination, it is possible to think that man is not the Lord, total, of his destiny, is at this moment that the questions are revealed. This essay deals with the following questions: Are we really free? Or are we just board parts in the hands of the gods? Questions like these lead us against the Greek tragedies, that is, literary narratives involving a world dominated by the gods and the heroes within a mythological and believable context, which the destiny was attributed to the cause of all evils directed to mankind. To base the reflection proposal described in this essay, an analysis of the work of Sophocles was conducted: Trilogy Theban, necessarily "Oedipus King" and "Oedipus in Colono", together with texts published by authors such as Sartre (2002) and the Sacred Bible that deal with the subject in question. Key words: Free will, determinism, Oedipus King, Oedipus in Colono. 1. Introdução 13 Graduando do Curso de Letras Hab. Língua Portuguesa e Bolsista do Programa de Educação Tutorial do Curso de Letras (PET LETRAS) - UFPA 57 Pensar o livre arbítrio é por em debate um dos maiores tabus já criados pelo homem. Desde a idade média a igreja vem alimentando tal teoria com o intuito de que homem fosse responsabilizado pelos seus atos, sejam este de qualquer natureza. Não se pode discutir sobre livre arbítrio sem antes falar de determinismo, predestinação, vontade divina, etc. A ideia de que Deus, ou os deuses, controlam o universo inteiro dentro do campo da onisciência nos faz pensar que não somos realmente livres, ou ainda, que todas as nossas escolhas nos levarão a um mesmo destino e resultado, logo, estaríamos subjugados a uma vontade divina exterior. Mas se tomarmos de posse da teoria de que o homem é senhor de si e capaz de mudar seu destino, então, teríamos que admitir que Deus, ou os deuses, não existem, ou ainda, que são indiferentes para com a humanidade e suas atividades, não possuindo influência nenhuma nas escolhas dos mesmos. 2. Édipo e sua predestinação Quando se fala em predestinação, também se fala em destino, determinismo, em propósito. Há quem diga, os mais céticos, que tudo isso não passa de bobagem, ou que se trata de uma crença sem fundamento, que contradiz a lógica e a razão, pois, o homem se tornou sapiente, e junto com essa sapiência se desenvolveu a arrogância e prepotência, se achando senhor de si, logo, negando a existência de qualquer influência divina ou sobrenatural na criação, no ciclo constante que rege o universo, acreditando apenas naquilo que é físico, material, inteligível. Entretanto, o que o homem não consegue compreender, é o porquê que as coisas ocorrem de forma diferente do que se planeja. Ora, com o advento da tecnologia, com o avanço da ciência, robótica e nanotecnologia, ainda sim é impossível, por exemplo, prever o futuro; ou ainda voltar no tempo; e mais, impossível evitar tais tragédias e fatalidades que afligem pessoas inocentes todos os dias neste mundo. Na obra de Sófocles, o personagem principal era uma criança comum, como todas as outras ao nascer, até então inocente se não fosse tamanho destino cruel que fora lançado sobre ele. Ao nascer, foi dito que a criança cresceria, mataria o pai e desposaria a própria mãe, dando origem a filhos/irmãos da mesma mãe que o gerou, para a época não havia crime maior que este, sinônimo de tamanha vergonha, desventura e escândalo. “[...]. Agora ouve: o homem que vens procurando entre ameaças e discursos incessantes sobre o crime contra o rei Laio, esse homem, Édipo, está aqui em Tebas e se faz passar por estrangeiro, mas todos verão bem cedo que ele nasceu aqui e essa revelação não há de lhe proporcionar prazer algum; ele, que agora vê demais, ficará cego; ele, que agora é rico, pedirá esmolas e arrastará seus passos em terras de exílio, tateando o chão à sua frente com um bordão. Dentro de pouco tempo saberão que ele ao mesmo tempo é irmão e pai dos muitos filhos com quem vive, filho e consorte da mulher de quem nasceu; e que ele fecundou a esposa do próprio pai depois de havê-lo assassinado! [...]” ! – (Palavras de Tirésias fazendo referência a Édipo, Trilogia Tebana, Édipo Rei, p. 38). Um fato interessante, é que ele (Édipo14) sabia de seu destino, ou seja, ele tinha total conhecimento do que ele iria cometer, logo, ele decide se afastar de 14 Personagem principal da obra Édipo Rei, primeira da Trilogia escrita por Sófocles. 58 Corinto, sua cidade, deixando seus pais para que em nenhuma circunstância ele viesse a cometer tais crimes, porém, uma sequência de fatos faz com que tudo que ele temia, viesse a acontecer do mesmo jeito como fora predito por Apolo por intermédio do oráculo de Delfos. “[...]. Sem o conhecimento de meus pais, um dia fui ao oráculo de Delfos, mas Apolo não se dignou de desfazer as minhas dúvidas; anunciou-me claramente, todavia, maiores infortúnios, trágicos, terríveis; eu me uniria um dia à minha própria mãe e mostraria aos homens descendência impura depois de assassinar o pai que me deu vida. [...]”! – (Palavras de Édipo à Jocasta. Trilogia Tebana, Édipo Rei, p. 57). O que Édipo não sabia, era que seus supostos pais deixados em Corinto, não eram de fato seus pais de sangue, o que torna a trama um tanto quanto interessante, pois a cada escolha feita, a cada decisão tomada, Édipo se aproximava mais e mais de seu destino cruel. Algumas religiões afirmam que quando se é predestinado a algo, é impossível desfazê-lo. Era um fator determinante na idade média, onde a igreja católica adotava a doutrina calvinista 15 que dizia que Deus escolhia e elegia previamente os seus, e isso era absoluto e imutável. Mas, tal doutrina era usada para controle popular, ou seja, o Rei e os Nobres queriam permanecer no poder, para isso se dizia que o Rei era divino e sua autoridade era provida por Deus, e ninguém podia mudar isso. Também, era usado como artificio de soberania e superioridade pelos nobres e pelo clero, por exemplo, se você fosse pobre, você seria pobre para o resto da vida e isso valia para sua descendência inteira, pois a mesma estava predestinada a isso. As escolhas feitas pela seu verdadeiro pai o rei Laio, desencadearam um efeito dominó irreversível. Laio, tentou lhe tirar a vida, entregando-o para um pastor para ser lançado no precipício. Neste momento entra um detalhe muito importante na história, perceba que cada personagem se deparou com um momento de extrema tensão, onde tiveram que tomar uma decisão, e cada decisão tomada foi de total relevância para o cumprimento dos presságios proferidos pelos oráculos, o que nos remete a ideia de que, o destino pode, ou não, ser alterado de acordo com as decisões que tomamos, tanto para o bem quanto para o mal. A questão é, se Édipo soubesse de toda a verdade, tendo crescido na casa do rei Laio, ele iria cometer tais crimes? 3. O livre arbítrio em contradição com o determinismo Para o Cristianismo, Deus nos concedeu livre arbítrio de escolha, ou seja, o que escolhemos ser, seguir, viver é de extrema responsabilidade nossa. Sartre (2002), apresenta em seu livro “O Ser e o Nada” na seção dedicada a análise da liberdade, uma teoria que aponta o ser humano como um ser que escapa a todo o rígido determinismo exterior e interior, sendo este o único responsável pelas suas ações. Nietzsche (2006), afirma em seu livro Crepúsculo dos Ídolos que livre arbítrio é um grande engano e que a única condição pela qual todas as coisas são regidas é a necessidade, logo, acreditar no livre arbítrio não seria só um engano, mas também uma superestima. Para Sartre (2002), existe erros tanto na teoria determinista quanto na teoria 15 Doutrina criada por João Calvino, pai do calvinismo, personagem de grande influência na reforma protestante. 59 do livre arbítrio, o determinismo apresenta um ponto correto que é o de considerar que todo ato, ou ação, é regido pela necessidade, o problema está em não questionar essa causa tal como ela é, ou seja, o que torna uma necessidade necessária? O livre arbítrio por sua vez não apresenta argumentos profundos, exceto o de que somos providos de capacidade de escolha, negar tal teoria seria assumir um aspecto contra intuitivo. Ao ler Édipo Rei é perceptível o quanto as pessoas daquela época eram apegadas as suas crenças, ao amor e respeito para com os deuses, ao sagrado, a valorização aos presságios relatados pelos oráculos, etc. Essa postura em crer cegamente em algo, seria esta a razão e causa de tantos males ao homem? Até certo ponto, não pela sua fé ou crença propriamente dita, mas por não se deixar permitir, não se deixar conhecer. Os adeptos da teoria do livre arbítrio acreditam em uma natureza humana em comum que deriva do pecado e de conhecimento dos deuses, ou seja, somos todos diferentes um do outro, mas com uma natureza em comum, logo, esta natureza é o que nos leva a fazer más escolhas, cometer crimes, etc., para tanto devemos escolher se vamos ou não seguir tal caminho, se vamos ou não nos entregar a esta natureza. Quando o homem não conhece a si mesmo, ele é comparado como barco à deriva, solto, sem rumo no oceano. Afinal, por que o ser humano sofre tanto? A resposta para isso, nada mais é que a falta de conhecimento de si próprio e as más escolhas feitas por este e as consequências disso, é descrito no trecho bíblico a seguir: “Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque, tudo o que o que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas o que semeia do Espirito, do Espirito ceifará a vida eterna”. – (Bíblia Sagrada. Gálatas 6:7-8). O livre arbítrio de escolha faz com que o homem pense ser o senhor de todas as coisas, ele cria em sua mente a ideia falsa de que pode fazer o que quiser e que não será responsável por isso. Ao ouvir uma profecia ou um presságio, os homens da época tratavam de fazer algo para mudar a trajetória do que foi predito, por medo, temor, e outros motivos, no entanto, será que tal atitude também não contribui para a consumação de tais presságios? Os deuses possuem o dom da onisciência, o que permite a eles saberem todas as coisas, mas se os deuses sabem o que faremos, e as decisões que tomaremos, como podemos ter o livre arbítrio? Uma explicação, aproximada, nos mostra que, os deuses conhecem a tal natureza humana citada anteriormente, ou seja, eles sabem como iremos proceder diante de determina situação de escolha, sabem que somos corruptos e pecaminosos, é este conhecer que permite aos deuses saberem o que de fato iremos escolher ou fazer antes mesmo de decidirmos. O trecho da Bíblia Sagrada a seguir mostra Deus dizendo ao homem que este possui o livre arbítrio para escolher e que isto influenciará no seu tempo de vida, porém, Deus também sugere o que deve ser escolhido. “Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te tenho proposto a vida e a morte, a benção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua semente, amando ao SENHOR, teu Deus, dando ouvidos à sua voz e te achegando a ele; pois ele é tua vida e a longura dos teus dias; para que fiques na terra que o SENHOR jurou a teus pais, a Abraão, a Isaque e a Jacó, que lhes havia de dar". – (Bíblia Sagrada. Deuteronômio 30:19-20). O ponto principal está em conhecer a si mesmo, em descobrir sua natureza, 60 seus medos, seus desejos, seu caráter e seu eu16, pois, o ser humano sabendo quem é, tomaria melhores decisões capazes de mudar seu destino, mas a sua arrogância e o fato de ser livre o faz cometer erros que o penalizam eternamente, talvez seja essa liberdade humana a culpada de tantos infortúnios. A frase “O homem está condenado a ser livre”, de Sartre, quer dizer que o homem já nasceu livre, ele não criou a si próprio, logo, a partir do momento em que nasce, este será responsável por tudo quanto fizer. A liberdade em Sartre possui um aspecto diferenciado, pois, esta não se apresenta como uma dádiva necessariamente e sim como um fardo que o homem tem que carregar até o dia de sua morte. Neste contexto é importante pensar de que forma o mundo é transformado por nossas escolhas, por nossas ações, se é positivo ou negativo e como isto afeta as pessoas e a nós mesmos. O destino é caracterizado por ser absoluto, ou seja, seu futuro já está escrito, você já foi predestinado a algo, a forma como você atinge este destino, ou alcança seu propósito neste mundo é o que chamamos de determinismo. Se o destino é absoluto, então não importa quais escolhas façamos, o fim será o mesmo, certo? Em tese sim, por outro lado, temos o pensamento fantástico de que: não sabemos o nosso destino ou a que fomos predestinados. Pois, isso é uma questão que precisa ser desvelada por cada um de nós no decorrer de nossa vida, a única coisa absoluta neste universo é a morte, afinal, todos morreremos um dia, mas como? Quando? Onde? De quê? Isso é algo que será definido, por aquilo que escolhemos fazer ou seguir. A influência divina nessas questões nos remete à ideia de que estamos possivelmente sendo controlados, ou manipulados a seguir opções que nos levarão para aquilo que os deuses nos têm preparado. Se pensarmos assim, chegaremos à conclusão de que é impossível fugir do destino que nos foi proposto. O intrigante em tudo isso, é saber: qual o real propósito divino em submeter o homem a tais provações e situações envolvendo opções e escolhas? Em tese, o objetivo principal é que venhamos nos descobrir. 4. A Ascensão de Édipo Édipo conseguiu mudar seu “destino”, pois passou a conhecer a si mesmo e a entender sua missão nesta terra, o ato de furar os próprios olhos simboliza o fechar da visão para o palpável, e ao mesmo tempo abri-la para as questões que regiam o futuro, oculto para os olhos humanos, mas, desveladas para os olhos da alma. Ao derrotar a esfinge e seu enigma, Édipo foi considerado o salvador de Tebas, e detentor do conhecimento, mas algo lhe faltava; conhecer a si mesmo, foi assim que ele descobriu quem ele realmente era, talvez um pouco tarde demais, mas ainda sim no tempo da graça que lhe fora concedido. Sua missão não estava ligada somente na desgraça que lhe ocorreu, mas sim na glória que viria após estes acontecimentos, e nas vidas que seriam alcançadas por intermédio de seu sacrifício. “Venho para ofertar-te meu sofrido corpo; ele é desagradável para quem o vê, mas o proveito que te poderá trazer torna-o mais valioso que o corpo mais belo”. – (Palavras de Édipo ao rei de Atenas, Teseu, na obra Édipo em Colono, p. 135). A mudança de destino não se dá de uma hora para outra, exige perseverança e fé naquilo que se acredita. Você pode nascer pobre, mas tem a 16 Grifo de destaque. 61 escolha de continuar pobre ou trabalhar duro e mudar sua história. Temos um grande exemplo na história chamado Jesus Cristo, o filho de Deus criado na terra com uma dolorosa missão a cumprir: o de morrer pela redenção da humanidade. Jesus sabia de tudo quanto havia de passar, sabia da coroa de espinhos, das chicotadas que levaria, da pesada cruz que teria de carregar pelo caminho do Gólgota, mas também sabia da glória que o esperava no terceiro dia após sua morte, a qual ressuscitaria dos mortos e subiria aos céus como Deus coroado. Ele poderia muito bem ficar em casa, trabalhar normalmente até que chegasse o dia de sua morte, porém, preferiu a ajudar, e servir a humanidade com seus milagres e ensinamentos, para que ao morrer fosse eternizado para sempre. Assim foi Édipo, viveu como mortal carregando sobre si um fardo pesado que ninguém, senão ele, seria capaz de carregar, sofreu os piores males que um homem poderia sofrer, mas, diante de tudo quando passou, não levantou a mão em punição a ninguém, senão a si próprio, deste modo chegou ao fim de forma gloriosa, tanto, que uma voz como de um deus o chamou para si dizendo: “Por que tardamos tanto a pôr-nos a caminho, Édipo? Fazes-te esperar há muito tempo!17 ” O verdadeiro propósito divino para Édipo não era de fato o sofrimento que lhe foi proposto, mas, que em função desse sofrimento, o mesmo viesse a conhecer seu interior, o seu eu, de tal modo a atingir a redenção pelos seus pecados e desventuras, alcançando assim graça aos olhos dos deuses, além de proporcionar para aqueles que o acolheram em tempos de má sorte: paz, segurança e prosperidade. Pois, o lugar onde jaz, agora é sagrado e nenhum mortal tem permissão de lhe perturbar em seu descanso eterno. Assim morreu Édipo, como aquele que arrebatado foi pelos deuses, em um imenso clarão de luz, eternizando para sempre sua história, presente nos cantos heroicos daquela época e nos registros literários de onde para sempre será lembrado. 5. Considerações Finais Somos responsáveis por aquilo que escolhemos, nossas escolhas e convicções é o que nos faz ser quem realmente somos. Édipo possuía conhecimento sobre muitas coisas, mas não conhecia a si mesmo, sua história, sua verdade, isto o fez tomar decisões que o levaram a ruína e a ser considerado o pior dos homens. No entanto, ao buscar o conhecimento de si, a desnudar sua alma, passando a entender muitas coisas das quais antes não compreendia, alcançando assim redenção aos olhos dos deuses, adentrando no mais sagrado dos jardins se tornando o mais sagrado dos homens. 6. Referências Bíblia Sagrada. Versão Almeida Revista e Corrigida. Edição de 1995. Editora CPAD. NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos – Col. Clássicos de Ouro. 5 ed. Editora Nova Fronteira, 2000. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Editora Vozes. Edição 11, 2002. SÓFOCLES. Trilogia Tebana – Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, Tradução: 17 Trecho referente a voz do deus que, insistente, chamou Édipo momentos antes de sua “morte”, descrita na obra Édipo em Colono, p. 187 62 Mario da Gama Cury, Editora Zahar, Volume I, 15ª reimpressão. 63 SEMÂNTICA E ENSINO: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DO ENSINO DA SEMÂNTICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA ALLAN J M SILVA, BARBARA T S SILVA, BIANCA D GOES, BRENA R HOMEM, PAULA C F FERREIRA Faculdade de Letras – FALE Universidade Federal do Pará – UFPA Rua Augusto Correa, 1 – Guamá, Belém – Pará, Espaço Universitário Mirante do Rio, Cep. 66075-110. allan.llp@outlook.com, barbarasilvasantos15@gmail.com, biancagoes123@gmail.com, brenareys.adry@gmail.com, paulacristinaff30@gmail.com Resumo. Atualmente o Brasil está entre os países com o pior sistema educacional do mundo e, isso é reflexo do descaso, comodismo e falta de investimentos que fomentem uma educação de qualidade que atendem os padrões mínimos aceitáveis. É um efeito cascata que engloba desde a participação do estado na educação até a posição do aluno em sala de aula, isto é, não temos um único culpado nesse contexto. O presente trabalho aborda uma questão bastante discutida entre educadores, linguistas e semanticistas acerca do ensino da Semântica na educação básica. Tal qual sua importância no desenvolvimento da aprendizagem e compreensão do funcionamento da língua, isto é, dos aspectos relacionados aos fenômenos semânticos. O objetivo deste é estabelecer um debate reflexivo sobre os possíveis problemas que abarcam o ensino da Semântica nas escolas e, o impacto desses problemas na formação do aluno quanto cidadão crítico-reflexivo. Para sanar tal objetivo foi desenvolvida uma pesquisa com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (1997) em comparação com estudos desenvolvidos sobre esta temática por autores aqui citados, tais como: Ferrarezi (2008) e Souza (2013). Palavras chave: Ensino, Semântica, PCN. Abstract. Currently Brazil is among the countries with the worst educational system in the world and, this is reflection of the case, convenience and lack of investments that promote a quality education that meets the acceptable minimum standards. It is a cascade effect that encompasses since the state's participation in education to the student's position in the classroom, i.e. we do not have a single culprit in this context. The present work addresses a fairly discussed issue between educators, linguists and semanticists about the teaching of semantics in basic education. such as its importance in the development of learning and understanding the functioning of the language, i.e., aspects related to semantic phenomena. The objective of this is to establish a reflective debate on the possible problems that encompass the teaching of semantics in schools and the impact of these problems in the formation of the student as a critical-reflective citizen. To remedy such an objective, a 64 survey was developed based on the national Curricular parameters – PCNs (1997) in comparison with studies developed on this thematic by the authors cited herein, such as: Ferrarezi (2008) and Souza (2013). Key words: Teaching, semantics, PCN. 1. Introdução A educação do Brasil tem sido tópico de debates e, discussões a bastante tempo, pois para um país que se diz estar em desenvolvimento a educação deveria ser uma das prioridades de maior relevância, no entanto, não é isto que se observa. Um dos principais problemas está diretamente relacionado com a leitura e escrita dos alunos integrados ao sistema educacional brasileiro, e isto independe se a educação é privada ou pública. Dados registrados por pesquisas e publicados nos documentos oficiais, os PCNs, de 1997 e 1998 afirmam que a maior dificuldade gira em tornos destes dois temas supracitados anteriormente. Outro problema, apontado pelos PCNs, é a dificuldade que a escola tem em desenvolver o ensino de língua de forma plena e satisfatória para os padrões de qualidade pré-determinados por estes documentos. As escolas, em grande maioria, ainda se detêm em padrões muito antigos e ultrapassados para o ensino de língua, ainda voltados para gramaticalização, as metodologias não satisfazem as competências a serem desenvolvidas pelos alunos previstas nos PCNs. Logo, é possível atribuir esta deficiência a ação de dois personagens: o educador e/ou a gestão escolar. Há situações em que ambos corroboram destes métodos arcaicos, e há casos em que apenas um destes atua com tal impacto negativo no processo de aprendizagem. Quando se trata do educador a questão é mais complicada, pois não se trata apenas de uma reformulação metodológica, mas também todos os problemas que o envolvem como: baixa capacitação, desvalorização da categoria, salários baixos, etc. e, não menos importante, o modo como este concebe a linguagem. Segundo Geraldi (2011), sua postura ideológica de concepção da linguagem interfere de forma direta no modo como este trabalha o ensino de língua, escolhe seus textos e formula suas metodologias. Quanto a gestão escolar o problema se apresenta de forma menos complexa, pois, no geral este não interfere diretamente no ensino, no entanto, ainda existe casos em que a gestão impõe ao educador regras e padrões de ensino a serem seguidas, impedindo que este atue de forma autônoma no processo de ensinoaprendizagem. Com o advento da linguística e dos diversos ramos de pesquisa emergentes desta, o ensino de língua sofreu um processo de reformulação. A gramática normativa não deixou de ser importante, no entanto, deixou de ser absoluta no ensino dando lugar a outros estudos, tais como: a sociolinguística; análise do discurso; psicolinguística, dentre outros. 2. O que diz os PCNs? 2.1. Formação plena do sujeito crítico Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) trabalham com o pressuposto de que as escolas possuem estrutura suficientemente adequada para colocar em prática aquilo que é descrito em seus textos. Tal estrutura aqui colocada não envolve apenas acesso a tecnologias, ambiente de ensino adequado, etc., não apenas o espaço, mas também a próprias metodologias empregadas para o ensino 65 nessas escolas. O primeiro ponto de discussão é retirado logo no início do documento que diz respeito aos objetivos indicados pelos PCNs para ensino fundamental. Neste é salientado a questão do favorecimento da interação do aluno com a sociedade, de modo que este possa desenvolver no decorrer de sua formação básica a capacidade de compreensão e expressão em situações comunicativas. 2.2. O Ensino da Língua Materna Essa questão está evidenciada logo no primeiro tópico Caracterização da área da Língua Portuguesa, a qual destaca o possível motivo para educação no Brasil ser tão ruim e, tal motivo está relacionado com a dificuldade que as escolas têm em ensinar a Ler e Escrever. Isto também está interligado com o advento da linguística no ensino de língua portuguesa frente a gramática, influenciando assim na reformulação do processo de ensino. Segundo Ilari (2003), essa influência não chegou a modificar totalmente a proposta pedagógica para o ensino de língua materna, uma vez que se acreditava que a Linguística substituiria a Gramática e a Filologia, renovando, assim o ensino da língua. 2.3. O Ensino da Semântica Para introduzir este tópico é necessário o conhecimento do que vem a ser Semântica dentro de um contexto linguístico. Segundo Oliveira (2012), Semântica é o estudo do “significado” das palavras e das sentenças, cujo objetivo é descrever a capacidade que o falante tem de interpretar qualquer sentença de sua língua. Dessa forma o aluno precisa não somente ler e escrever, mas compreender o sentido, o significado daquilo que está lendo, desenvolvendo assim sua capacidade de compreensão e reflexão quanto sujeito crítico social. Olivan (2009), afirma: “A proposta dos parâmetros não despreza o ensino da gramática normativa, mas sim questiona a forma como esta vem sendo trabalhada e propões um ensino de Língua Portuguesa com vistas na dimensão semântica e/ou discursiva da língua, afinal, é através do estudo da semântica, especificamente a semântica da enunciação, que se consegue, a partir de situações concretas de comunicação, ampliar a abordagem gramatical. Logo, a presença da semântica no ensino de Língua Portuguesa tem como objetivo promover a reflexão sobre os recursos semântico-expressivos da língua, desenvolvendo, consequentemente, a competência linguística e comunicativa do aluno e esclarecendo os mecanismos de funcionamento da língua.” Ferreira (2014) afirma que “O significado é importante para os estudos gramaticais, principalmente se o estudo se situa no nível da frase. Não se pode ter uma gramática sem levar em conta o seu significado.” Entretanto, a realidade escolar é bem diferente, o professor/educador carece de metodologias capazes de compartilhar tal ensinamento de forma a ser entendido e usado no contexto social pelos seus alunos. Muitos ainda ensinam a língua de uma forma a favorecer a gramática e esquecendo todo o contexto semântico a qual a mesma está inserida. 3. O ensino da semântica 3.1. O papel dos envolvidos 66 3.1.1. O Estado O estado é o primeiro envolvido, este não faz referência ao governo propriamente dito, mas, aos órgãos regentes da educação que manipulam a forma de ensino da língua, e que têm por função a formulação e confecção dos materiais didáticos que posteriormente serão utilizados pelo docente dentro de sala de aula. Entretanto, órgãos como o Ministério da Educação (MEC) que é um órgão voltado para as políticas de ensino no Brasil, atualmente, possui o papel de atender, promover e desenvolver todas as esferas da educação no país. Tem-se também a Secretaria Municipal de Educação (SEDUC) que por si só têm como papel principal, executar a Política Municipal de Educação e o Plano Municipal de Educação, responsabilizando-se pela Educação Básica nos níveis infantil e fundamental. Ambos os órgãos são responsáveis, também, pela formulação, confecção e distribuição dos materiais didáticos para todas as escolas do país. Estes materiais acabam influenciando de forma indireta na escolha de metodologias utilizadas para abordar determinados temas, amarrando assim a figura do educador o tornando, em sua maioria, dependente do material didático. Ë importante reconhecer também que tais materiais didáticos apresentam, de fato, orientações interessantes sobre como proceder no ensino da língua, deste modo, os livros didáticos: "[...] não devem ser [tomados] como “receitas” ou “soluções” para os problemas e os dilemas do ensino de Língua Portuguesa, e sim como referenciais que, uma vez discutidas, compreendidas e (re)significadas no contexto da ação docente, possam efetivamente orientar as abordagens a serem utilizadas nas práticas de ensino e de aprendizagem” (BRASIL, 2006, p. 17). No entanto, ainda, deixam a desejar no que diz respeito a seleção e abordagem de conteúdo. Os livros didáticos possuem suas próprias metodologias de ensino e seu conteúdo é restrito e escolhido pelo MEC. Logo, alguns temas inerentes a semântica são pouco, ou quase nunca, são abordados dentro de um plano que satisfaça a disciplina, ou que leve em consideração o contexto. 3.1.2. A escola A escola é o segundo envolvido no sistema educacional brasileiro, esta por sua vez, representada pela figura do gestor (diretor) é responsável pela organização e regularização das leis que regem a educação dentro da escola, assim como através de políticas educacionais trazer para a escola recursos que favoreçam o ensino em sua forma plena. No entanto, ainda que bem estruturada e organizada, a escola ainda apresenta lacunas que atingem o ensino-aprendizagem de forma negativa. Tal situação se caracteriza pela maneira como se estabelece a relação entre educador e a gestão. Há instituições que garantem total autonomia ao educador para elaboração de suas próprias metodologias e práticas pedagógicas voltadas para o ensino, porém, há outras instituições que já possuem uma estrutura tradicional fixa, logo, o educador se vê engessado e, impossibilitado de manipular, ou se apropriar de ferramentas extras para desenvolver o conteúdo em sala de aula. De que forma estas diferentes configurações de relação afetam negativamente o aprendizado do aluno? No primeiro caso, o aluno apresentará desenvolvimento crescente quanto ao conteúdo que está sendo ensinado, pois com o educador livre para interagir, as dúvidas e dificuldades terão diversas maneiras de 67 serem sanadas, e consequentemente uma ampliação de conhecimento adquirido. No segundo caso, é possível que o aluno consiga aprender o conteúdo de forma eficaz, no entanto, na grande maioria dos casos o aluno se encontra em uma posição de frustração e desinteresse, pois, o mesmo acaba tendo uma limitação de sua capacidade de aquisição do conhecimento. Tal situação impossibilita que o aluno atinja suas competências em sua plenitude, atrapalhando assim o seu desenvolvimento não apenas em sala de aula, mas também na sua formação quanto sujeito crítico. 3.1.3. O educador O educador é o terceiro personagem envolvido no processo de ensino da semântica em sala de aula. Este, por sua vez, atua como mediador entre o conhecimento e o aluno, é por isso que seu papel é tão importante neste contexto. O seu impacto na aprendizagem muito maior se comparado aos outros envolvidos no processo, logo, a forma como este aluno aprende, assimila e recebe a informação depende de como este professor concebe a linguagem18. Segundo Geraldi (1999), toda prática pedagógica é influenciada por um posicionamento político, isto é, a forma como este concebe a linguagem interfere não somente na sua metodologia de ensino, mas também na seleção de conteúdos que serão ensinados. Para ele, a forma de enxergar a sociedade influência diretamente na forma como ensina. No entanto, os problemas que envolvem o educador e sua participação no ensino vão muito além do posicionamento político em sala. Sua situação é, de certo modo, mais complicada que as anteriores supracitadas acima, pois, além dos fatores internos (estrutura, autonomia, recursos, etc.) que prejudicam seu desempenho, há também os fatores externos. Os fatores externos são aqueles voltados para o contexto social do educador quanto profissional pertencente a uma classe de trabalhadores vinculadas ao estado. Dentre esses fatores podemos destacar a desvalorização da profissão/classe, os salários baixos, as condições precárias de trabalho, a violência crescente em sala de aula, dentre outros que afetam o desempenho deste profissional no exercício da função. Os fatores internos estão relacionados ao ambiente de trabalho do educador, a infraestrutura, a disponibilidade de recursos e ferramentas que favoreçam seu trabalho dentro da sala de aula. Outro fator interno de grande relevância é a própria rede de ensino que ainda apresenta um pensamento tradicional quanto ao ensino de língua. Ao ingressarem nesse mercado, depararam-se com uma rede de ensino enraizada na tradição e adepta às práticas repetitivas do ensino gramatical, o que provocava – e ainda provoca – um bloqueio no ímpeto de afrontar essa tradição e de suportar as pressões sociais ante as mudanças. (OLIVAN, 2009) Entretanto, com o advento da linguística o educador precisou se readaptar em função das novas áreas de estudo da língua que foram surgindo, tais como, a sociolinguística, a pragmática, a semântica, etc. As novas ideias, as novas formas de pensar a linguagem tiveram de passar por processo de aceitação por parte dos gramáticos e conservadores. Muitos, no início, apresentaram resistência aos novos conceitos, outros reconheceram os benefícios que os estudos linguísticos agregavam ao ensino. 18 As concepções de linguagem são teorias e métodos que foram criadas para orientar o ensino de língua do Brasil 68 A Linguística vem contribuindo para o ensino de Língua Portuguesa desde a década de 80, quando os estudos de Sociolinguística, Psicolinguística, Linguística Textual, Pragmática e Análise do Discurso passaram a ser “aplicados” ao ensino da língua materna nas escolas (OLIVAN, 2009) Tais mudanças no ensino também afetaram o aluno no seu processo de aprendizagem, pois os temas abordados apresentavam outra roupagem que não incluía somente a gramática normativa como base, mas também levava em consideração o contexto de realização desses temas e suas diversas variações. Logo, se verificou a necessidade de capacitação dos professores para que o ensino pudesse fluir de modo satisfatório e, que o aluno desenvolvesse suas competências de forma plena. 3.2. Os temas de maior relevância/dificuldade de aprendizado 3.2.1. A sinonímia O ensino de sinonímia nas escolas é algo que abrange desde o modo como é conceituada até sua prática nas salas de aula. Porém, é perceptível o desacordo dos livros didáticos com os principais manuais voltados para o assunto. A primeira discrepância está na contextualização de sinonímia pelos livros didáticos que não atende de forma satisfatória a uma abordagem devida do tema. Não há qualquer preocupação com a forma de introduzir e retomar o tema nos livros didáticos, pelo contrário, o que ocorre é uma abordagem superficial do conteúdo com capítulos relacionados apenas a variação linguística. Um outro problema a ser destacado é o processo de elaboração de atividades, estas deveriam ser capazes de trabalhar o conteúdo de forma contextualizada, porém os livros didáticos carecem de tais recursos, pois, as atividades presentes nestes livros não favorecem uma reflexão por parte do aluno acerca do contexto de realização da língua. A sinonímia é apontada a partir de palavras isoladas, no entanto, estudos recentes mostram que não há sinônimos perfeitos ou integrais como os gramáticos tradicionais abordavam. Com base nos estudos de Ilari e Geraldi (1987), Cançado (2015, p.47) afirma que “para duas expressões serem sinônimas, não basta que tenham a mesma referência no mundo”. Logo, para serem consideradas sinônimas é necessário também considerar o seu contexto de realização. Segundo Abrahão (s.d.) os manuais didáticos “não se detêm no ensino da sinonímia”. Sua pesquisa de análise deste caso mostrou que alguns materiais abordavam o contexto, no entanto, não discute as implicações envolvidas; e outros apenas trabalham o tema com base em semelhança e sentido de palavras isoladas sem se quer citar o conceito de sinonímia. Abrahão ainda ressalta duas hipóteses, a primeira de que: ou a sinonímia é abordada como um evento natural da língua, ou, em virtude de sua complexidade tem-se preferido não abordar o assunto. 3.2.2. A antonímia A partir dos estudos de Hurford e Heasley (1983), Cançado (2015, p. 52) assume três tipos de antonímia: o primeiro sendo do tipo binário ou complementar, o segundo chamado de inverso e o terceiro tipo conhecido como gradativo19. Tal 19 binário ou complementar refere-se aos pares de palavras que, quando uma é empregada, a outra não pode ser; a antonímia do tipo inverso é quando uma palavra descreve a relação entre duas 69 classificação comprova que não basta apenas explicar ao aluno que o tema se trata de palavras com significados opostos, mas sim a necessidade de esclarecer que a oposição de sentido entre palavras pode se dar de variadas maneiras, ou que ainda não existem sinônimos perfeitos, ou seja, palavras que não possuem um oposto verdadeiro. Se tratando de materiais didáticos esta temática não apresenta uma abordagem sistemática satisfatória. Segundo Abrahão (s.d.), a antonímia é aplicada por meio de exercícios pontuais em consonância com a interpretação de textos o que torna o ensino deste tema deficiente. 3.2.3. A metáfora A metáfora é considerada uma das principais figuras de linguagem estudadas atualmente. Está presente nos poemas, textos literários, no cotidiano, nos discursos, etc. É importante ressaltar que inicialmente tudo era metáfora, porém, com o passar do tempo o conceito de metáfora foi revisto dando origem a um conjunto de teorias com diferentes formas de abordar o fenômeno linguístico em questão, essas teorias são elencadas da seguinte forma: clássica, substitutiva, comparativa, interativa, pragmática e cognitiva. Segundo Cruz (s.d.), a clássica faz referência aos estudos de Aristóteles descritos em sua obra “A poética clássica e retórica”. O filósofo acreditava existir quatro tipos de metáfora: do gênero para a espécie, da espécie para o gênero, de uma espécie para outra e por analogia. A substitutiva consistia na substituição de uma palavra por outra de caráter metafórico. A comparativa a grosso modo consistia na comparação de dois termos com similaridades de sentido. A interativa propunha que o sentido atribuído pela metáfora fosse resultado da interação de constituintes diferentes. Na pragmática a metáfora ganhou uma nova percepção por meio dos estudos de Paul Grice e sua Teoria das Implicaturas construindo uma relação entre significado e intencionalidade. Na Linguística Cognitiva a metáfora ganha espaço com os estudos de Lakoff e Johnson que ficou conhecida como a Teoria da Metáfora Conceitual que de modo geral trata a metáfora não apenas como fenômeno linguístico, mas também como parte do pensamento. Cruz (s.d.) afirma que ao observar os materiais didáticos voltados para os ensinos fundamental e médio, contatou os mesmos problemas de abordagem e explicação do tema em questão, enfatizando que tais textos trabalham o conteúdo somente com base nas quatro primeiras teorias das seis que foram citadas no parágrafo anterior. Abrahão (s.d.), sobre a recepção da metáfora pelos alunos, afirma: “É importante fazê-los perceber a Metáfora como um processo recorrente na língua. Sendo considerada inerente ao homem, a metáfora se materializa na história por sujeitos que constroem sentidos e isto implica em questões sociais e ideológicas. O ensino de Metáfora a partir desta perspectiva integradora, trará enriquecimento ao aluno na compreensão e interpretação de fatos linguísticos das quais emanam as construções metafóricas, uma vez que deixará de ser um agente passivo de recepção de significados para atuar na imersão da história e na construção dos sentidos da qual faz parte”. coisas ou pessoas e uma outra palavra descreve essa mesma relação, mas em ordem invertida; a do tipo gradativo é quando duas palavras antônimas se encontram em lados opostos de uma escala de valores. 70 3.2.4. A paráfrase Quanto ao ensino da paráfrase se observa dois problemas: o primeiro que trata esta apenas como um recurso ativo na produção do efeito de sentido desejado e o segundo que faz referência ao problema de clareza atribuído ao discurso. Tais problemas possuem impacto significativo no processo de aprendizagem do aluno impedindo que este desenvolva duas das principais competências citadas nos PCN sendo, a produção e compreensão de textos. Não há materiais didáticos que apresentam uma abordagem do tema que consiga proporcionar ao aluno uma evolução no seu processo de aprendizagem da língua, isso quando possui uma abordagem, pois, o que se percebe é uma ausência do tema nestes textos. Abrahão (s.d.) enfatiza que o fato de não se falar em paráfrase nos livros recorrentes nas escolas de ensino regular se dá não somente pela pouca importância dada ao tema, mas também pelo modo como a linguagem é tratada. 4. Considerações Finais A educação do Brasil ainda carece de muitas melhorias em seu sistema de ensino. Entretanto, muitos dos educadores ainda não estão inseridos no contexto atual evolutivo do ensino da língua no país, tal é que ainda é possível encontrar nas escolas do país a existência de metodologias que trabalham as sentenças, os processos comunicativos e os textos voltados apenas para a gramática, sem considerar o contexto a qual estão inseridas. No entanto, devemos reconhecer que o suporte prestado pela linguística, a criação dos PCNs e, as pesquisas desenvolvidas na área do ensino tem contribuído para uma melhora relevante na formação educacional do aluno. 5. Referências ABRAHÃO, Virginia B. B. A Semântica no ensino de línguas. (s.d.) BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, 1997. Parâmetros Curriculares ______. Secretaria de Educação Fundamental. Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, 1998. Parâmetros Curriculares ______. Orientações curriculares para o Ensino Médio. Vol. 1 Linguagens, códigos e suas tecnologias / Secretaria de Educação Básica. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.240 p. (). CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. 1. Ed., 1° reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015. CRUZ, Gabriela Fontana Abs da. Metáfora E Ensino: Definições E Atividades Propostas No Livro Didático De Língua Portuguesa Para O Ensino Médio. (s.d.) FERREIRA, Michelle de Chiara; GOMES, Nataniel dos Santos. A Semântica e os PCNs: Observações Segundo a Teoria de Pottier nas Vozes Verbais. WEBRevista SOCIODIALETO. Campo Grande, 2015. 71 FERRAREZI JUNIOR, Celso. Semântica para a Educação Básica. 1 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. FIORIN, José Luiz (orgs.). Introdução à Linguística II: princípios de análise. 5. Ed., 2° reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014. GERALDI, João Wanderley. et al. (orgs.). O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 1999. OLIVAN, Karen Neves. A semântica e o ensino de língua portuguesa. Florianópolis, 2009. SILVA, Eliuse Souza. Semântica e o Ensino do Português: reflexões acerca do aspecto verbal. Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. 72 SUJEITO E SENTIDOS E(M) REDE: CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO ATILIO CATOSSO SALLES20 (Univás-CAPES/PNPD) Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem - PPGCL Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli Universidade do Vale do Sapucaí - Univás Avenida Prefeito Tuany Toledo, 470 – Pouso Alegre – MG – CEP: 37550-000 atiliocs@gmail.com Resumo. Na presente reflexão buscamos compreender de modo mais forte a relação do sujeito com o sentido no espaço de um aplicativo de relacionamento, o Tinder. Perguntando-nos, então: com o que o sujeito contemporâneo está se comprometendo ao se filiar a um “app” como o Tinder, e o que dessa filiação decorre? Como se enreda (se tece) a escrita do sujeito contemporâneo no espaço material deste aplicativo? Antes de alinhavarmos os primeiros apontamentos, destacamos que a perspectiva teórica recortada para fazer trabalhar esta reflexão é a da Análise de Discurso; teoria esta que toma a relação língua/sujeito/história e introduz o objeto discurso como observatório de compreensão. Essa posição teórica se relaciona com nossa questão à medida que nos oferece pistas para compreendermos de modo consequente a relação do sujeito com os vários sentidos contemporâneos de amor que se produzem na/pela língua em nosso corpus Palavras-chave: Tinder; Encontro amoroso; Sujeito; Escrita. Abstract. In this reflection we seek to understand more strong the relationship of the subject with the direction in the space of one application of relationship, the Tinder. Asking us, then: with which the subject is committing to contemporary join a "app" as the Tinder, and that such affiliation arises? As if ensnares (is weaved) writing the contemporary subject in space material of this application? Before the first alinhavarmos notes, we emphasize that the theoretical perspective is cropped to make working this reflection is the Discourse Analysis; theory this which takes the relation language/subject/history and introduces the object discourse as the observatory of understanding. This theoretical position relates to our question to the extent that offers us clues to understand consistently the relationship of the subject with the various senses contemporaries of love that is producing in/by language in our corpus. Keywords: Tinder; Loving dating; Subject; Writing. 1. Introdução O Tinder é uma ferramenta, um aplicativo disponível para IOS e Androids 20 Bolsista de Pós-Doutorado - CAPES/PNPD, na Universidade do Vale do Sapucaí, sob supervisão da Profa. Dra. Eni P. Orlandi. 73 que se baseia na geolocalização e nos interesses em comum de seus usuários. Esta ferramenta utiliza como ‘base’ o perfil do usuário no Facebook para ‘linkar’, “conectar” as pessoas. Este aplicativo pode ser baixado gratuitamente na App Store e no Google Play. 2. Primeiro gesto de leitura Como ponto de partida dessa nossa reflexão, trago uma breve descrição do aplicativo. Eis a primeira etapa: após baixar o aplicativo uma mensagem na tela de seu celular indicará que para prosseguir, como procedimento padrão, os seus dados do Facebook serão acessados. Esse link direto com o Facebook nos aponta para uma questão: o sujeito contemporâneo está inscrito na rede, de modo que é a partir dessa inscrição que se abre a possiblidade de migração de dados desse usuário “jáaí” para outro suporte como o Tinder. E aqui cabe nos perguntar: que subjetividade contemporânea o app projeta na relação com essa memória metálica? Ou ainda, qual subjetividade essa inscrição do sujeito na rede projeta? De acordo com o tutorial do Tinder “o aplicativo não viola a privacidade do usuário21, a não ser que ele “permita”, e também não revela no Facebook as interações dos usuários dentro do sistema.” Aqui uma contradição se coloca. Afinal, o cadastro não seria um modo de credenciamento (juridicamente legal) para o sujeito se apresentar publicamente? O gesto de cadastrar é a ficha de entrada do usuário na lógica do Tinder. Lógica esta que nos aproxima da lógica de mercado. Há o cadastro e o usuário (aqui pensamos o usuário enquanto metáfora de produto) passa a estar disponível no app, no mercado (do amor?). Funcionamento este que nos rememora a ideia de cardápio. O usuário se apresenta como um produto “disponível” em um cardápio. E aqui estamos compreendendo o “cardápio” como um arquivo. Aqui que aponta para sempre há um a mais a se ver, que se prolonga no movimento de um trajeto de ‘existência’ [de leitura] em redes de memória, de lembranças, de narrativas. “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que já se viu...” escreveu José Saramago. Parafrásticamente, formulamos: ler o que não foi lido, ler outra vez o que já se leu. O gesto de leitura em rede ou na rede é que nos toma neste texto, na relação com uma noção teórica da Análise de Discurso: o arquivo – a leitura de arquivo. A noção de ‘arquivo’, em Ler o Arquivo Hoje, é compreendida por Michel Pêcheux (2010) enquanto um “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”. No entanto, conforme aponta Gallo (2003), não se pode evitar ler tal noção a partir de certo deslocamento: “campo de documentos pertinentes e disponíveis na rede, sobre uma questão”. Aliás, em seu texto, Pêcheux se refere logo no início, a um interesse pelos bancos de dados. Esse banco de dados, compreendemos, não se refere a documentos físicos ou ‘em nuvem’ (utilização da memória e das capacidades de armazenamento interligados por meio da Internet), mas às regiões do interdiscurso que o sujeito acessa, que faz retornar numa relação de diferença um sempre já-la. E é aqui que nos apoiamos para pensar o ‘cardápio’ que o Tinder nos oferece. Em seguida, abre-se a possibilidade do preenchimento do perfil (espaço possível de descrição de um produto). Dentre os itens disponíveis, é possível ‘definir’ sexo, idade, e sua localização. 21 Grifo nosso. 74 Esta localização georeferencial não necessariamente corresponde ao lugar fixo onde o usuário se encontra. É possível recortar outro espaço geográfico, diferente do atual. Neste momento ainda, em poucos caracteres, o usuário formula uma breve descrição sobre si que constará abaixo de sua foto. Agora, após o preenchimento do perfil, o usuário começa a ter acesso direto aos demais usuários. É nessa etapa que se torna possível selecionar, curtir o perfil dos outros usuários. Quanto mais perfis você curtir, mais aumenta a possibilidade de acontecer o possível encontro em rede. Esse encontro somente acontece se o usuário que você ‘curtiu’ te ‘curtir’ também, e a isso se dá o nome de “match”. No Tinder duas pessoas se conectam pelo “match”, verbo que significa encontrar, casar, corresponder, unir e quando substantivo significa jogo, partida, lembrando as partidas de tênis. No jogo de tênis, o match point é o ponto que permite encerrar a partida. Imaginemos uma situação: um jogador está ganhando por 2 sets a 0 [nesse jogo são necessários 3 sets para ganhar]. No 3º set, o placar aponta 5 games a 3 para o jogador que está na frente por 2 sets [são necessários 6 games para fechar 1 set]. Ele está sacando e faz 40 à 30 nesse game. Agora temos um "match point", pois caso esse jogador faça esse ponto, o jogo acaba; mas se o adversário fizer esse ponto, o jogo continua por mais certo período. Será este o sentido de encontro amoroso no app? Outro movimento de leitura possível é pela via da fonética, que é a parte da linguística que estuda os elementos mínimos da linguagem (sons da fala) em sua realização. Se observarmos a construção fonética do enunciado “eu dei um match”, a palavra match, em sua realização sonora, nos aproxima de outro sentido possível: mete. “Eu dei uma mete”. Nessa direção, o enunciado, em nossa compreensão, 75 passa a produzir outro sentido, agora não mais na relação com a palavra em inglês, mas com o verbo “meter”. Ouvir “mete” e não “match” aponta para um lugar outro de produção de sentidos, um lugar que aciona sentidos de um espaço relacionado ao sexo, abre o equívoco. Uma coisa interessante a se observar nesta etapa é que em nenhum momento o usuário consegue identificar se fora rejeitado por alguém. Essa é uma das principais especificidades do Tinder: evitar o temido “fora” ou simplesmente “ser ignorado”, já que o usuário terá a oportunidade de conversar somente com pessoas que também gostaram e escolheram o seu perfil. Somente após o “match”, a ligação direta entre os perfis, que se torna possível iniciar o chat na própria ferramenta. Já se a situação for contrária e a pessoa não gostar do perfil sugerido, não haverá nenhuma notificação e o perfil indesejado não será mais exibido. Todo o processo é realizado anonimamente. A ideia de anonimato vendido no Tinder desliza-se enquanto processo de produção se sentidos para: evitar ser ignorado, evitar o temido fora, a desilusão, gratuidade de uma desilusão amorosa. É a esse modo que a subjetividade contemporânea vai se formulando na/pela especificidade do encontro amoroso no Tinder. Mas aqui nos perguntamos, em que medida essa projeção, desejo de “segurança” sobre-determina o sentido de encontro em rede? E de que modo o sujeito lida com o não-realizado desse efeito de sentido? Isso, porque, sabemos que a desilusão neste espaço metálico é tão irremediável quanto num encontro presencial. Como palco das mais diversas manifestações midiáticas contemporâneas, o mundo tecnológico, e aqui especificamente pensamos o Tinder, abarca múltiplas facetas de uso e modos de significar os encontros amorosos. Uma plataforma tecnológica móvel que nos concede a possibilidade de estamos conectados e que se conheçam por meio da fotografia, dos perfis e da geolocalização. O aplicativo Tinder possibilita ao sujeito brifar22 o seu desejo por meio do preenchimento do seu perfil e acesso à sua geolocalização. É um espaço móvel que aponta para o desejo do sujeito (ou faz o sujeito desejar), criando como efeito um sentimento de imediatismo que ultrapassa as barreiras de tempo e espaço. Também, se acaso não curtir algum usuário, ou este te ignorar, há a possibilidade de ‘desfazer’ o “match” mesmo depois de já ‘ligados’. Será aqui outra formulação possível de encontro amoroso na contemporaneidade? Qual é essa formulação? Nota-se como essa nova lógica midiática do Tinder acelera as mudanças ocasionadas pela mobilidade do virtual e uma grande influência das novas tecnologias na constituição da subjetividade pós-moderna. Nos entremeios dessa pratica de busca por um par ideal, evidencia-se um forte movimento em rede norteado por um sentimento de “estou à disposição”, ou conforme dissemos acima, uma possível busca por “um amor à la carte”, e até mesmo uma cerveja ao entardecer apenas. Por que não? Em Elogio ao amor (2013), o filósofo Alain Badiou discute a tese de que o amor na atualidade aparece como um “contrato de seguro social”, como tudo que prevê segurança como norma; ou seja, o amor é um risco inútil. Ainda de acordo com o filósofo, “o encontro amoroso é isso: você sai em busca do outro para fazê-lo existir com você, tal como ele é” (BADIOU, 2013, p.18). A busca do indivíduo pelo outro, para juntos formarem o dois e estabelecer o contrato de seguro social é urgente no espaço dos aplicativos móveis como o Tinder. No virtual, as características singulares de cada sujeito vêm atreladas ao capitalismo afetivo. Notam-se relações sociais entre sujeitos cada vez mais complexas, baseadas em uma disputa para saber quem será o mais notado, mais 22 Gesto ou ação de expor um briefing de alguma propaganda ou publicidade. 76 seguido, curtido com a finalidade, principalmente, de conquistar a tão importante visibilidade ou até mesmo uma “alma-gêmea” (ou um “match”, como sugere o Tinder). É também pelo corpo móvel e tecnológico que o usuário convoca uns aos outros. O Tinder passa, assim, a ocupar um lugar privilegiado de “canal de comunicação” na sociedade capitalista atual. E a questão que fica é: a partir do crescimento dessas novas mídias, a sociedade e a cidade se reconfiguram como e para quem? Da nossa posição, o comum dos sentidos sobre o amor não pode envolver uma interpretação di-fusa de um sujeito pragmático. Menos ainda os claros limites da argumentação amorosa que toca certo positivismo às vezes. O amor, como bem formulou Beckett, não se encomenda, talvez somente os sentidos de amor se encomendem. Estes sim circulam e fazem gancho conforme vemos no terceiro bloco discursivo. O amor significa em sua forma material. É nisso que investimos para pensá-lo como discurso, ligando sentido (linguagem), sujeito e história. Desse modo, pode-se pensar o sujeito de amor “com o seu corpo não apenas deslocandose empiricamente no mundo, mas materialmente (na história e na sociedade), em seus processos de significação/identificação, como sujeitos de sentido” (ORLANDI, 2012, p.92). Fazemos questão de trazer uma crítica de Pêcheux sobre o sujeito pragmático, justamente para me opor a essa leitura positivista de encontro amoroso na atualidade. De acordo com Pêcheux (2008, p.92) “o sujeito pragmático – isto é, cada um de nós, os “simples particulares” face às diversas urgências de sua vida – tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica portáteis que vão da gestão cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o porta-notas, as chaves, a agenda, os papéis, etc) até as “grandes decisões” da vida social e afetiva (eu decido fazer isto e não aquilo, de responder a X e não a Y, etc...) passando por todo um contexto sócio-técnico dos “aparelhos domésticos” (isto é, a série dos objetos que adquirimos a fazer funcionar, que jogamos e que perdemos, que quebramos, que consertamos e que substituímos)...”. Compreendemos, num efeito de fecho, que o sujeito não é anterior em relação ao discurso. Está aí talvez a maior dificuldade dessa pesquisa: fazer coincidir discursos sobre o amor (que por sua própria natureza engendram sentidos diversos e até mesmo contraditórios) a um sujeito centrado. O sujeito do qual a análise de discurso se ocupa é contemporâneo ao sentido, por conta disso, não pode ser sua fonte. O sujeito não é o ponto de partida, ele é um efeito e um resultado do processo de interpelação do indivíduo em sujeito. A respeito dessa formulação emprestada de Althusser, Pêcheux (2009, p. 141), diz que “[...] evita cuidadosamente a pressuposição da existência do sujeito sobre o qual se efetuaria a operação e interpelação” – daí não se dizer: “o sujeito é interpelado pela Ideologia”. “O discurso é o efeito de sentidos entre sujeitos interpelados pela ideologia [...]”. O sujeito não antecede a interpelação. Daí o esquecimento número 01 estar relacionado à origem do sentido a partir do sujeito. Não se trata do sujeito que engendra sentidos sobre o amor no Tinder, mas do surgimento contemporâneo dos dois (sujeito e sentido). 3. Referências ACHARD, P.; DAVALLON, J.; DURAND, J. L.; PÊCHEUX, M. ORLANDI, E. P. Papel da Memória. Tradução de José H. Nunes. Campinas – SP: Pontes, 1999. ALTHUSSER, Louis. A corrente subterrânea do materialismo aleatório. 77 Tradução de Monca Zoppi-Fontana. Revista Crítica Marxista, 2005. BADIOU, Alain. Elogio ao amor; tradução Dorothée de Bruchard – Sâo Paulo: Martins Fontes, 2013. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001. GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível. In: PÊCHEUX, Michel. Análise de discurso, Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 2011 (pp. 93-105). JAKOBSON, Roman. Linguística e Poética. In: ____. Linguística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1987. ORLANDI, Eni Puccinelli. Palavras de amor. Cad. Ling,. Campinas, (19): 75-95, jul./dez. 1990. _____. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3. ed. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, [2007- 1997] 1995. _____. Discurso em Análise: Sujeito, Sentido e Ideologia. Campinas-SP: Pontes, 2012. PÊCHEUX, Michel. (1982) O mecanismo do desconhecimento ideológico. In: ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. PÊCHEUX, Michel. Análise de discurso, Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 2011 (pp. 107-119). ______. Ideologia: aprisionamento ou campo paradoxal? [1982] In: PÊCHEUX, Michel. Análise de discurso, Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 2011 (pp. 107-119). ______. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. (Org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994. (p. 55-64). ______. 1978). Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação Em: Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, Campinas: Ed. Unicamp, 1997 PÊCHEUX, Michel. Lecture et Mémoire: Project de Recherche. In: L´inquiétude du discours. Paris, Ed. Cendres, 1981; 1990. _____. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 3. ed. Campinas-SP: Pontes, [1990-2002-2008]. _____. Delimitações, inversões, deslocamentos. Cad. Est. Ling., Campinas, jul./dez. 1990. Sites: https://www.gotinder.com/, acessado no dia 15 de julho, às 15:00. 78 CORPO E(M) PERFORMANCE 23 ATILIO CATOSSO SALLES24 (Univás-CAPES/PNPD) Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli Universidade do Vale do Sapucaí Av. Pref. Tuany Toledo, 470 37550-000 - Pouso Alegre – MG atiliocs@gmail.com Resumo. Esta pesquisa, filiada ao domínio teórico da escola francesa da Análise de Discurso, tem interesse em investigar a articulação sujeito/corpo/arte. Para tanto, o corpus discursivo é constituído de uma performance intitulada “The artist is present”, produzida pela artista Marina Abramovic, no MoMa, em 2010. Interessa, pois, pensar como se dá o trabalho de compreensão de uma performance, perguntando pelos sentidos que tomam corpo e tomam o corpo do sujeito. Nas discursividades analisadas, o movimento dos sentidos, do sujeito com o seu olhar e o seu corpo, em um território (espaço-histórico-social), determina sentidos possíveis, em posições discursivas possíveis, funcionando como espessura material significante. Uma espessura material que é estrutural, simbólica e formulada como linguagem. Palavras-Chave: Quadro cênico; Corpo; Sujeito; Performance. Résumé. Cette recherche, affiliées à la domaine théorique de l'école française d'analyse du discours, a un intérêt dans l'enquête sur le lien sujet/corps/arte. Pour les deux, le corpus discursif se compose d'une performance intitulée "L'artiste est présent", produit par l'artiste Marina Abramovic, au MoMa, en 2010. L'intérêt, par conséquent, de penser comment le travail de compréhension d'une performance, de demander des directions qui prennent corps et prendre le corps du sujet. Dans le discursividades analysés, le mouvement des sens, le sujet avec votre look et votre corps, dans un territoire (espace-historique-social), détermine les significations possibles, dans des positions discursives que possible, travaillant comme significative de l'épaisseur du matériau. Une épaisseur de matériel qui est structurel, symbolique et formulé comme une langue. Mots-clés: Oac ; Corps ; Sujet ; Les performances. 1. Introdução Para efeito de um trabalho analítico/teórico em Análise de Discurso, invisto primeiro em pensar que “aos homens enquanto seres históricos e simbólicos que 23 Agradeço a Profa. Eni P. Orlandi por toda sensibilidade de escuta no gesto de orientação. Com a Eni compreendi que a força do afeto toca a espessura da reflexão, o que fundou, na teoria, um lugar apaixonado para o meu dizer sobre o corpo e(m) performance. 24 Bolsista de Pós-Doutorado - CAPES/PNPD, na Universidade do Vale do Sapucaí, sob supervisão da Profa. Dra. Eni P. Orlandi. 79 somos não nos basta falar para significar e nos significarmos” Orlandi (2001, p.154). De acordo com a autora, além de “falarmos”, também, escrevemos poemas, cantamos, dançamos, fazemos literatura, cinema [...] entre outras diferentes formas de significação. Nessa direção, estranhar os sentidos e os modos pelo quais o sujeito de diz e é dito é do que me ocupo aqui no início desta reflexão. De acordo com Orlandi (2002) “o corpo do sujeito e corpo da linguagem não são transparentes”. Sujeitos com/e seus corpos estão ligados ao corpo social (Orlandi, 2001), e isso também não é da ordem da transparência. Meu interesse pelos processos de significação do sujeito com o seu corpo tomou forma com a pesquisa realizada sobre a cidade em minha dissertação de mestrado. Considerei, a partir da análise do documentário “Território Vermelho” (2004) do cineasta Kiko Koifman, o modo como o sujeito com o seu corpo atravessa o espaço público em uma faixa de pedestre. Um dos princípios desse meu trabalho, com a questão urbana, é que o corpo do sujeito vai se mostrando, sendo mostrado, atado ao corpo da cidade. Ele vai assim ganhando existência a partir dessa ligação com o espaço, com o que também está fora de seu corpo. Um modo do corpo (r)existir e assim se significar e, esse gesto de ocupar a faixa de pedestre (seja para atravessar, trabalhar, produzir arte) aponta, ao meu ver, para uma resistência que remete à questão da identificação no funcionamento próprio da ideologia que fal(h)a ao sujeito. Este percurso no mestrado é constitutivo da minha relação com as questões de pesquisa (e, diria, de vida) que ora proponho compreender. Questões estas que giram, dançam, produzem volteios em torno da relação do sujeito, com seu corpo, em um espaço. Articulando sujeito/corpo/linguagem, busco compreender como o corpo, recortado pela materialidade do sujeito, sua historicidade, se significa e produz significação em um espaço de existência; tomando os homens como seres simbólicos e históricos-sociais, pensando o interdiscurso e sua relação com o espaço. A esse respeito, Rolnik (2006) formula que nos significamos ao nos filiarmos a um território. Território aqui compreendido enquanto lugar de pertencimento pelo próprio de nossa existência, não como mero espaço físico com suas delimitações/divisas geográficas, mas sim espaço que também significa. Finalmente, penso que a questão aqui é: qual a relação do corpo com a ideologia, como, em sua especificidade, em sua espessura material, o sujeito textualiza seu corpo (e se textualiza) pela maneira mesma como está nele (já) significado. O corpo normatizado, o corpo em movimento, o corpo fora de lugar, o corpo “instalado” de um sujeito que interpreta e é interpretação sem cessar. Como material de pesquisa recorto uma performance intitulada “The artist is present”, produzida pela artista Marina Abramovic, em 2010, no MoMa. Nessa performance, Marina Abramovi, no átrio do museu, em um espaço quadrado recortado por uma fita, dispõe uma mesa e duas cadeiras, sendo uma dessas cadeiras ocupada por ela, a outra ficou à disposição para as pessoas que estivessem visitando a exposição (organizada pelo MoMa para homenageá-la) pudessem se sentar e dividir um tempo indeterminado de silêncio com a artista. Assim se iniciou a performance. M. Pêcheux (1990) considera que não só a língua, mas também a história tem seu real. A partir do texto “Processos de significação, corpo e sujeito”, Orlandi (2012) propõe uma reflexão sobre o corpo, articulando as instâncias do inconsciente e da ideologia. De acordo com a autora: 80 “Embora se trabalhe, na análise de discurso, sobejamente, a materialidade da história e da língua, pouco se tem dito a respeito da materialidade do sujeito, mesmo que se afirme sua não transparência, fazendo intervir a questão da ideologia e do inconsciente” (ORLANDI, 2012, p. 84). Neste trabalho, proponho, tal como Orlandi (2001, 2002, 2012), tomar o corpo, o corpo de um sujeito, não enquanto um corpo empírico, constituído de carne. O que interessa é a materialidade do sujeito na relação do sujeito com o seu corpo, pois como afirma a autora, tratar da materialidade do corpo na relação com um sujeito é considerar a ideologia, a história e os processos de vida social intervindo sobre a produção da significação e é, nesse sentido, que se pode apontar que a relação do sujeito com o seu corpo aparece como transparente, mas não é. Para introduzir, através dos elementos do discurso, o modo como estou compreendendo a performance, traço agora alguns apontamentos que considero importante investir sobre o trabalho do corpo e do olhar em/na arte. A performance é uma arte de fronteira, podendo ser definida por alguns como uma arte híbrida. Já o termo performance act sugere eventos realizados por artistas, no bojo das ‘experiências’ vanguardistas europeias. Richard Shechner (2003, p.39) propõe oito situações em que a linguagem artística pode se dar a ver: 1. na vida diária, cozinhando, socializando-se; 2. nas artes; 3. nos esportes e outros entretenimentos populares; 4. nos negócios; 5. na tecnologia; 6. no sexo; 7. nos rituais sagrados e seculares; 8. na brincadeira; Tais situações empíricas em que a arte pode se dar a ver, num primeiro momento dessa reflexão, se colocam para mim como importantes, na medida mesma em que possibilitam jogar com a aproximação do corpo do artista, o público e a obra num só momento. E é nesse enlace do corpo numa relação forte com as artes, com o sexo, com a tecnologia... que corpo e sujeito – em relação a - são convocados não mais para uma mera ou simples contemplação em performance. É o corpo, o corpo em movimento que faz deslizar sentidos pelo espaço. Como é que durante esse processo de produzir uma performance é o próprio corpo que (se) produz – isto é, se torna isso ou aquilo que se percebeu – enquanto efeito no movimento de sua realização mesma? E, ainda, da realização do corpo em performance, o que fica para a arte que não seja só a marca da passagem de um corpo? E, em que lugar nós ficamos, os observadores, que afinal temos nosso próprio corpo? Uma pista primeira para estas perguntas nos é oferecida por Phelan ao formular: “tentar escrever sobre o evento indocumentável da performance é invocar as regras do documento escrito e, logo, alterar o evento em si mesmo” (PHELAN, 1997, p.173). E, nesse sentido, é consequente de minha posição tomar a arte não como um evento interpretável. A efemeridade da performance é a sua condição. Em movimento o que é registrado em uma performance não é a verdade, talvez o que se produza é um efeito de verdade. “A ação é verdade. Nada do que foi registrado é 81 verdade. Nada do que foi dito é verdade. Somente a ação” (Jack Bowman, flyer distribuído no Cleveland Performance Art Festival25. Até porque nem é esse o esforço que anseio empreender. Mas sim considerar a performance como um recorte de um processo discursivo de significação que faz furo (ou não) no evento (nos termos de Badiou, 2013). Ou, ainda, como melhor observa Orlandi sobre o papel da Análise de Discurso: ...aquela que não explica, nem serve para tornar inteligível ou interpretar o sentido, mas que nos leva a melhor compreender os processos de significação, o modo de funcionamento de qualquer exemplar de linguagem para significar. Com efeito, a relação que a análise do discurso estabelece com o texto não é para dele extrair um sentido mas sim para problematizar essa relação, ou seja, para tornar visível sua historicidade e observar a relação de sentidos que aí se estabelece, em função do efeito de unidade. (2007, p. 173) Para Pêcheux (1997: 161) “a expressão processo discursivo passará a designar o sistema de relações de substituições, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos linguísticos – “significantes”- em uma formação discursiva dada.” Desse modo, nesta pesquisa, proponho me voltar para a compreensão do(s) processo(s) de significação do objeto arte [dotado de discursividade] na relação com o trabalho da formulação, da constituição e da circulação (ORLANDI, 2001). O objeto arte, observo, não está em somente um espaço de significação, este se formula na/pela sua re-significação, o que, por contraste, nos remete sempre a outros dizeres possíveis em jogo. Dito de outro modo, o sentido da matéria significante de nosso material está em seu lugar mesmo de inscrição, e, não apenas em seu constructo (constituição) físico ou formal (forma). Isso, pois, a matéria significante, costurada pelo social e histórico, produz efeitos de sentido, e não a matéria em si mesma. Orlandi (1999) ensina que “a linguagem é linguagem porque faz sentido. E a linguagem só faz sentido porque se inscreve na história”. E é por essa via que penso a performance. Sendo linguagem, a performance produz sentido(s). Pensando deste lugar, a performance é tomada, em sua imbricação material, como um complexo de significação envolto de dizeres contemporâneos que instala diferentes gestos de leitura determinados pela sua condição específica de produção, pondo em movimento o espaço da incompletude, da polissemia, do sentido outro possível. O movimento instala-se. Tal tomada de posição discursiva colocou, desde o início, o conflituoso desafio de compreender o caráter material do corpo (e também do olhar) instalados - não de modo fixo, estático - na performance “The artist is present”, mas sim no modo como esse corpo por uma dupla subordinação – de um lado a subordinação do corpo ao roteiro previsto formalmente na performance, subordinado à “regra” de ocupar um espaço determinado e de um modo determinado, e de outro lado o corpo investido da relação forte sujeito/ sentido/mundo produzindo a marca de uma passagem que faz furo na falha do ritual ideológico, possível lugar de resistência (PÊCHEUX, 2009). Ou seja, interessa-me ler as condições reais de produção e circulação, tendo como pedra de toque a noção de ideologia tal qual essa fora 25 No original: “The Act is TRUTH. Nothing that was ever recorded is truth. Nothing that was ever said is truth. Only the ACT”. Cleveland Performance Art Festival. Disponível em: <http://www.performance-art.org>. Acesso em: 10 set. 2016. 82 formulada por Pêcheux26 (2009). Um adendo se faz importante neste percurso da pesquisa. Apesar de alguns pesquisadores elegerem um ou outro termo/expressão na análise da performance, jogando com palavras como Art charnel; Art corporel; Specimen art; Hardship art ou Ordeal arts, não proponho optar por um conceito ou outro aqui. No livro L’art corporel (1983), François Pluchart formulou: “Se a expressão ‘arte corporal’ tem o mérito de manter a questão do corpo no interior do domínio da arte, a palavra ‘performance’ gerou os piores mal-entendidos”. Concordo com Pluchart, visto que em minha compreensão, o corpo é o próprio do sujeito e também o objeto da arte da performance. Eis um ponto de deslocamento. A performance pode se dar na rua ou em espaço in situ. O quadro cênico da performance não se desenha ou se dá em um lugar específico senão em todos os que, à volta de nós, formam a cena. Pensemos na ideia de fluxo para pensarmos o espaço da performance; sendo fluxo, fluido, o espaço do quadro cênico pode se dar a ver em todos os espaços: espaço ´público’, a rua, lá onde você caminha, lá onde paro para ler na praça, no espaço institucionalizado, em um museu, em uma galeria de arte, em uma escola. Nessa direção, compreendo que lugar, o lugar da performance, é o espaço praticado, espaço dotado de sentido. 2. Corpo e(m) performance no trabalho da significação De que modo o corpo comparece na situação de uma performance? De início, diria: o corpo comparece pela via da fala, mas não me refiro aqui a uma fala do corpo ou sobre o corpo, mas é o corpo enquanto ele fala, corpo que significa. É o corpo do sujeito, da linguagem, constituídos pelo “confronto do simbólico com o político” (Orlandi, 2002, p.91). Corpo e sujeito, que em performance, se dão enquanto um processo de significação atravessados de memória. Isto quer dizer, ...assim como as palavras já vem significando antes mesmo que as tomemos como nossas palavras, nosso corpo já vem sendo significado mesmo que não o tenhamos, conscientemente, significado. Não há corpo que não esteja investido de sentido, e que não seja o corpo de um sujeito que se constitui por processos de subjetivação nos quais as instituições e suas práticas são fundamentais para a forma com que ele se individualiza, assim como o modo pelo qual, ideologicamente, somos interpelados em sujeitos, enquanto forma histórica. (ORLANDI, 2002, p.91-92) Nesse sentido, é possível afirmar que há maneiras e espaços do corpo (se) significar. Numa discursividade sobre o humano, existem historicamente formas e lugares para que o sentido seja possível ao sujeito que interpreta. Nesse lugar de pensar, a performance é sentido; constitui espaço de interpretação; é um movimento (de significação) que liga (estrutura) corpo, espaço e sujeito; constitui uma forma específica de produção dos sentidos. Em meio a toda profusão, (des)instalação dos sentidos postos em jogo na produção de um modo de significação, provoca-me o fato de, ao tematizar a performance , a relação entre performance e movimento (de significação) aí insistir. Indício, talvez, de uma especificidade do domínio de significação da performance. Em cena, pensei, temos um corpo (um corpo qualquer?) que forma a base de 26 A primeira edição de “Les Vérités de La Palice” publicada em francês em 1975. Em 1988, a primeira tradução brasileira com o título “Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio”. Retomo neste trabalho uma edição recente publicada em 2009. 83 compreensão de algo cenicamente instalado. Entre as inúmeras possibilidades de articular corpo/performance interessa lidar com a performance como um espaço de produção e estabilização de sentidos de movimentos, configurando memória (Pêcheux, 1990). O que proponho é pensar a performance como um, entre outros, espaço discursivo fluido de memória em movimento. Espaço de diferentes movimentos, recortado por esquecimentos, recobrimentos, deslocamentos e tensões de sentidos. Espaço, portanto, que se estrutura entre outras formas, ritualizadas ou não, mas sempre políticas de subjetivação dos sujeitos. Performance como espaço discursivo, mobiliza, como indiquei, a noção de memória. Para além dos limites entre um espaço subjetivo ao sujeito e uma exterioridade, que se elabora, por exemplo, como memória histórica, direi que a memória a qual a performance remete se apresenta “como estruturação da repetição e da regularização” (Pêcheux, 1999, p.52). A repetição, de acordo com Pêcheux, é “um efeito material que funda comutações e variações, e assegura (...) o espaço da estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identidade material” (Pêcheux, 1999, p. 53). Repetição e regularização dos sentidos como condição de estruturação de um espaço discursivo. É dessa forma que proponho tomar a performance como espaço discursivo fluido de memória do movimento. Tomo como base o que Pêcheux (1999, p., 56) formulou a respeito: Ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e retomadas, de conflitos de regularização... um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos. A repetição formal de um movimento ou gesto no nível da realização (espetáculo) de uma performance – pensando aqui que espetáculo pode ser compreendido como a textualização da performance – é um mecanismo de constituição da performance como memória. Como formula Orlandi (2004), os espaços são organizados de forma política. Na performance não seria diferente. Enquanto hipótese, infiro que há uma espécie de interconstitutividade entre espaço e corpo. Nesse trajeto, é possível tomar a performance como um objeto simbólico que inscreve, ou seja, formula sentidos – em seu modo mesmo de ganhar existência – na relação contingencial27 do sujeito com o Real e também com o real do espaço. A performance é desse modo uma forma de textualização do político, um modo de dar a ver interpretações (jogo forte com a re-divisão de algo do Real). O gesto de produção de uma performance se dá enquanto necessidade de tornar algo do Real discernível, diria “organizado”. A performance se produz, discursivamente, na relação entre o(s) sujeito(s), é linguagem em suas diferentes formas e história. Enquanto especificidade, observo que o corpo do sujeito em performance se diz numa certa relação histórica com múltiplas formas materiais. Entra em cena no átrio do MoMa sujeitos em um estado específico: o da performance. E nesse caso, no modo mesmo como tais corpos em performance se dão a ver, é que penso sujeitos (no plural) instalados (instalando sentidos) em cena. Parece haver nesse lugar, o da performance, possibilidade “de identificação com outros sentidos que tornam possível ao sujeito fazer sentido, muitas vezes a 27 Leio o contingencial aqui como algo que é da ordem do constitutivo, do estruturante dos sentidos. 84 partir do não-sentido ou da falta de sentido” (Rodrigues, 2011, p.05). É, portanto, nessa medida que a performance trabalha os diferentes modos de significar a relação sujeito-espaço, corpo-espaço. Sua textualidade recorta o movimento aparentemente trivial (de sentar-se em silêncio diante de outra pessoa por um determinado tempo), produzindo o movimento de identificação de sujeitos. (The Artist Is Present (A artista está presente), 2010) Ao dispor em cena uma mesa e duas cadeiras e um conjunto de sujeitos identificados com os sentidos que significam “arte”, a performance deixa ver que, discursivamente, os sentidos se produzem em várias direções. Deixa instalar o movimento próprio da significação, na história, jogando em cena com os recortes da memória que tornam possíveis outros sentidos. 3. Conclusão O inusitado dos sentidos, o inusitado do corpo-sujeito em relação a performance acontecendo no espaço de um Museu, o MoMa, não necessariamente se dá enquanto sua característica fundante, nem mesmo o fato da performance acontecer sobre um espaço forjado, o átrio do museu. Esse sempre é e sempre será palco de diversas formas que conformam sentidos de arte. É nessa medida, aposto, que na performance o trabalho com os sentidos se dá pela via da formulação. E a performance como discurso se textualiza no corpo do sujeito enquanto encadeamento (organização) de múltiplas sequências discursivas. Desse modo, com Orlandi (2001, p.159), penso: “o sujeito (em performance28) não apenas deslocando-se empiricamente no mundo mas materialmente ( na história e na sociedade) em suas processos de significação/identificação, como sujeitos de sentido. 28 Acréscimo nosso. 85 Na performance temos outas formas (diferentes da dança, da pintura, da pichação, etc....) de atar o corpo do sujeito ao corpo social, uma forma singular (Orlandi 2002) na produção de diferentes efeitos de sentidos. O corpo como espessura material significante posiciona discursivamente o sujeito, no caso da performance, coloca-o em cena numa sempre relação à produção dos sentidos. 4. Referências ABRAMOVIC, Marina. Doc. The Artist Is Present, 2010. BADIOU, Alain. 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Uma leitura da cena contemporânea: o flashmob como metáfora da relação entre silêncio e linguagem. Seminário de Estudos em Análise do 86 Discurso (5.: 2011: Porto Alegre, RS) Anais do V SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso [recurso eletrênico] – Porto Alegre: Instituto de Letras da UFRGS, 2011. Comissão Organizadora do V SEAD: Maria Cristina Leandro Ferreira, Freda Indursky e Solange Mittmann. Organização dos Anais: Solange Mitimann e Dulce Beatriz Mendes Lassen. Disponível em: http//www.analisedodiscurso.ufrgs.br/anaisdosead/sead5.html. ISSN 2237-8146. ROLNIK, S. Cartografia Sentimental. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006. SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo, Tradução Dandara, Rio de Janeiro: UNI-RIO, ano 11, 2003, p.25-50. 87 OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE A PRÁTICA DISCURSIVA DOS HACKERS ALLAN STROTTMANN KERN Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem Universidade do Vale do Sapucaí Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 37550-000 – Pouso Alegre – MG – Brasil allan_kern@hotmail.com Resumo. Tomando as práticas dos chamados “hackers” como o tema desta reflexão, nosso objetivo é apontar e discutir algumas questões suscitadas pela proposta de uma análise discursiva dessas práticas. A partir da observação de diferentes sentidos relacionados à palavra “hacker” em sua recente história, interrogamos um discurso que busca classificar e categorizar hackers e suas práticas em “tipos”, a partir de critérios empíricos que perdem de vista o movimento no (e do) discurso. Palavras-chave. Discurso. Ideologia. Tecnologia. Sujeito. Abstract. Taking the practices of so-called “hackers” as the theme of this reflection, our objective is to point out and discuss some issues raised by the proposition of a discursive analysis of these practices. From the observation of different meanings related to the word “hacker” in its recent history, we interrogated a discourse that seeks to classify and categorize hackers and their practices into “types”, based on empirical criteria that lose sight of the movement in (and of) discourse. Keywords. Discourse. Ideology. Technology. Subject. 1. Introdução Nesta breve apresentação, pontuamos algumas observações gerais sobre o objeto temático de nossa pesquisa de doutorado: as práticas dos chamados “hackers”, que procuramos compreender segundo a perspectiva teórica da análise de discurso desenvolvida a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux e Eni Orlandi. O discurso é definido por Pêcheux (1969, p. 81) como “efeito de sentidos”, e concebido como aquilo que constitui a ligação material entre ideologia e linguagem. Segundo essa perspectiva, é o funcionamento do discurso que determina como os objetos simbólicos significam de acordo com as diferentes situações, e é esse funcionamento que a análise do discurso procura compreender e explicitar. Ou seja, o sentido aí não é tomado como algo que estaria “contido” nos objetos ou “colado” nas palavras. É um efeito produzido a partir de uma posição, em uma dada conjuntura, que para ser compreendido deve ser remetido às condições de produção do discurso, que abrangem as relações entre língua, sujeito e história. É, então, a partir dessa perspectiva que procuramos refletir sobre as práticas dos hackers. Assim, primeiramente, trazemos um resumo da história dessas práticas, tomando como referência os trabalhos de Steven Levy (1984) e André Lemos (2002). A seguir, interrogamos algumas distinções que dividem hackers em “tipos”, atribuindo rótulos que buscam classificá-los sem levar em conta o fato de que cada prática se realiza em condições muito específicas no tempo e no espaço. 88 Por fim, buscamos levantar algumas questões teóricas mais específicas sobre o nosso objeto, a fim de fomentar novas análises que façam avançar nossa pesquisa. 2. O que faz um hacker? A palavra “hack” é um verbo da língua inglesa que pode ser traduzido para o português como “cortar”, com um golpe rápido e preciso. Como cortar lenha. S. Levy, em seu livro “Hackers: heroes of the computer revolution” (1984), conta que o verbo começou a ser utilizado em meados da década de 1950 por estudantes de engenharia do MIT, no âmbito de um trabalho desenvolvido pelos alunos do instituto em paralelo às atividades acadêmicas. Conhecido como The Tech Model Railroad Club, o grupo dedicava parte (às vezes grande parte) do seu tempo livre para construir miniaturas de trens, que eram programados para percorrer miniaturas de cidades em escalas automáticas que simulavam os fluxos de estações reais. O grupo se dividia em duas partes, uma delas dedicada ao trabalho artístico de construção das maquetes e miniaturas (a “parte de cima”) e a outra responsável por fazer funcionar os sistemas elétricos automatizados que produziam todo o movimento (a “parte de baixo”). Em contraste com a beleza da parte de cima, a parte de baixo era uma massa caótica de fios e circuitos, conhecida como “O Sistema”, onde se concentrava a maioria dos engenheiros. Quando alguém se empenhava no desenvolvimento de algum projeto ou produto visando a não apenas um objetivo construtivo, mas também certo prazer pessoal pelo mero envolvimento, aquela prática era chamada de “hack”. Segundo Levy (idem, p. 10), “para se qualificar como um ‘hack’, o trabalho devia estar imbuído de inovação, estilo e virtuosidade técnica29”. Tratava-se, em geral, de artimanhas que ofereciam soluções engenhosas a problemas técnicos complexos. Nesse contexto, os primeiros indivíduos conhecidos como “hackers” eram, em geral, jovens engenheiros que mostravam talento na área de programação, e trabalhavam nos espaços fechados do MIT em máquinas de computação que ocupavam salas inteiras. De acordo com Levy (idem), alguns deles passavam noites explorando o funcionamento das máquinas, aproveitando a ociosidade do pósexpediente para estudá-las e aprimorá-las, tendo em mente suas próprias questões e interesses teórico-práticos. Assim, deslizavam os sentidos possíveis dessas máquinas na e para a sociedade. Um exemplo significativo disso é o de um computador chamado TX-0, desenvolvido pelas forças armadas com a finalidade de resolver problemas gerados por outro computador, chamado TX-2. Quando tal objetivo foi atingido, o colossal TX-0 foi cedido ao MIT em um empréstimo de longo prazo, e logo tornou-se acessível aos entusiastas do “Sistema” do Tech Model Railroad Club. Segundo Levy (1984, p. 27), “algo novo coalescia” em torno daquela máquina, posta à disposição de uma dúzia de engenheiros que conduziam a programação para além de seus limites técnicos. Nessas condições, começa a ganhar forma o que Levy (idem) descreve como a “ética hacker”, um conjunto de conceitos, crenças e costumes que, embora não chegassem a ser discutidos e debatidos, eram silenciosamente compartilhados pelos hackers. Uma formação discursiva, determinando as possibilidades de sentido(s) da computação na conjuntura das primeiras práticas de hacking, no âmbito do MIT. Segundo pensavam os hackers, toda informação deveria ser livre, e o acesso a computadores devera ser total. Além disso, havia um sentimento de desconfiança em relação a autoridades, e predominava a ideia de que os hackers deveriam ser julgados por suas práticas de hacking, e não por critérios como diplomas, idade, raça, sexo, etc. 29 “(...) to qualify as a hack, the feat must be imbued with innovation, style and technical virtuosity”. 89 Levy (idem) conta que, até meados da década de 1960, a “ética hacker” se constituiu em (e através de) práticas realizadas nos espaços fechados do MIT, de modo que o impacto das práticas dessa primeira geração de hackers era limitado por questões como a rotatividade de pessoal e as dificuldades práticas de se operar computadores que eram máquinas de porte industrial. Assim, após uma primeira geração de hackers formada nesse espaço universitário do MIT, houve uma segunda geração que ganhou força na década de 1970. Enquanto os hackers do MIT se dedicavam a procurar aplicações novas e impensadas para as grandes máquinas, a geração chamada por Levy de “hardware hackers” tinha como preocupação central a proliferação dos computadores. Desta forma, essa segunda geração, que surgiu e se estabeleceu no norte da Califórnia, assumiu para si a tarefa de transformar os computadores em máquinas menores e mais acessíveis. Sob influência da contracultura que irrompe nos anos 1960, essa nova geração de hackers levou ao espaço público as práticas de hacking, dando vazão à discursividade (Levy fala em “ética” e “cultura”) que vinha do MIT. Ainda no que toca os efeitos da contracultura na chamada “ética hacker”, os chamados “phreakers” desempenharam um papel importante na história das práticas de hacking, embora não estivessem diretamente ligados à computação. Segundo Lemos (2002, p. 207), “a ação dos phreakers começa nos anos 1960 com a apropriação do sistema de telecomunicações mundial, tendo como objetivo viajar gratuitamente pelas redes”. Ainda de acordo com Lemos (idem), uma das figuras mais importantes da história dos phreakers foi John Draper, que descobriu, por acaso, que um apito que viera de brinde em uma caixa de cereal produzia a frequência de 2600 Hz, e que esta tonalidade permitia a realização de chamadas internacionais gratuitamente. Draper logo se tornou um phreaker conhecido como Captain Crunch (o nome da marca de cereal), e sua descoberta “incitou outros phreakers a produzirem equipamentos clandestinos” (ibidem). Tanto os “phreakers” quanto os “hardware hackers” descritos por Levy representam dois movimentos importantes da década de 1970, cuja confluência, a partir dos anos 1980 e 1990, criou as condições para as práticas de hacking como as conhecemos hoje30. Enquanto os primeiros (se) constituíram (em) redes de resistência ao controle dos sistemas de telecomunicação pelo Estado, os últimos criaram condições para o desenvolvimento dos computadores pessoais (PCs), deslocando as práticas de hacking dos espaços institucionais fechados aos quais estavam, até então, limitadas. Assim, se nas décadas de 1950 e 1960, a discursividade ligada às práticas de hacking estava centralizada em um lugar específico (o MIT), a partir dos anos 1970 os sentidos ligados à “ética hacker” passaram a circular a partir de diferentes redes de comunicação. No começo da década de 1980, surge aquela que seria definida por Levy como a terceira geração de hackers, que se constituiu sob os efeitos da popularização31 dos computadores pessoais (PCs). Se, por um lado, os PCs ofereciam um grau de autonomia com o qual os hackers há tempos sonhavam, por outro, a maior parte dos novos adeptos da “onda informática” dos anos 1980 não era composta de “hackers” (entusiastas da programação), mas de pessoas que queriam usar computadores sem precisar aprender a escrever programas, e estavam dispostas a pagar por programas escritos por outros. É o começo da indústria do software, que, conforme Levy, transformou as práticas dos hackers na medida em que a disseminou. Segundo o autor, “a Ética Hacker, ao estilo dos microcomputadores, não implicava mais, necessariamente, que a informação 30 Referimo-nos às práticas de hacking que se realizam no espaço da internet. Segundo Levy (1984, p. 313), a popularização dos PCs foi impulsionada pela venda de computadores pequenos e baratos, de marcas como Apple, Radio Shack, Commodore e Atari. 31 90 deveria ser livre32” (op. cit., p. 313). Ou seja, a popularização dos computadores, que era um sonho de muitos hackers desde as primeiras gerações no MIT, aconteceu a partir de uma popularização dos programas, e não da programação. Os softwares, sobretudo jogos de computador, se tornaram objetos de consumo que possibilitaram o enriquecimento de diversos programadores. Porém, se Levy vê aí uma “transformação” do que ele define como a “ética hacker”, em nossa perspectiva consideramos que há uma ruptura na (suposta) unidade discursiva dessas práticas, isto é, no efeito imaginário de homogeneidade nelas projetada. A partir de então, há uma divisão entre os hackers defensores do “código aberto” e os favoráveis à criação de patentes em defesa da “propriedade intelectual”. 3. O imaginário dos “bons” e “maus” hackers De modo geral, a década de 1980 foi um momento em que muitos hackers começaram a ganhar dinheiro com as suas práticas, fosse através do comércio ligado à informática ou dos chamados “crimes cibernéticos 33”. Ao mesmo tempo, certas práticas de hacking apareceram como atos de cidadãos conscienciosos, preocupados com a segurança de certos sistemas de informação que poderiam estar expostos a outros hackers34. Tudo isso contribuiu para que se constituísse, a partir dos anos 1980, uma representação imaginária das práticas de hacking que as associava, de modo quase automático, a práticas criminosas. Assim, tornou-se comum, nessa época, a projeção de certas imagens (geralmente negativas) associadas aos hackers e suas práticas, e designações formuladas a fim de diferenciar os “bons” e os “maus” hackers. Um exemplo disso é a distinção entre “hackers” e “crackers”. De acordo com Lemos (2002, p. 226), “cracker é a denominação dada pela geração de hackers para se diferenciar dos criminosos do ciberespaço”. Ou seja, trata-se de um nome formulado por hackers com o objetivo de deslocar um sentido pejorativo atribuído à palavra “hacker”, isto é, o sentido de uma prática criminosa. Porém, como adverte o autor (idem), essa divisão entre “hackers” e “crackers” não é exata, e nem unânime. Embora houvesse determinados hackers que, influenciados pela radicalidade da cultura punk/hardcore, não tivessem problema nenhum em se assumir como “crackers”, o rótulo não funcionava por diferentes razões. Tratava-se de uma designação do sujeito a partir de sua prática, mas não havia uma diferença suficientemente clara entre os termos “hack” e “crack”, que explicasse as razões de a primeira prática ser considerada “boa”, e a segunda, “má”. Além disso, parecia claro que muitos “hackers” podiam assumir a postura de “crackers”, dependendo da situação. Outra tentativa de distinguir hackers entre “bons” e “maus” aparece com os termos “white hat” e “black hat”, respectivamente. Essas formulações fazem referência a filmes de faroeste, produzidos entre as décadas de 1920 e 1950, nos quais a cor do chapéu servia para diferenciar os cowboys, de modo que os que usavam chapéu branco eram “heróis”, e os de chapéu preto eram “vilões” 35. Embora 32 “the Hacker Ethic, microcomputer-style, no longer necessarily implied that information was free”. De acordo com Lemos (2002, p. 213), o primeiro caso em que uma prática de hacking resultou em um processo penal ocorreu em 1983, quando um grupo de adolescentes norte-americanos invadiu o banco de dados de uma empresa chamada Ciments Lafarge, no Canadá. 34 “Os hackers alemães do Chaos Computer Club de Hamburgo, por exemplo, penetraram o sistema da Caixa Econômica local, retiraram em poucas horas milhares de marcos, e no dia seguinte foram à agência devolver e mostrar as falhas do sistema” (LEMOS, 2002, p. 210). 35 Um aspecto interessante desse deslizamento de “hacker” para “cowboy” é que, a partir dele, os sentidos do espaço virtual das redes digitais se filiam a sentidos do chamado “velho oeste” (território conquistado no processo de expansão da fronteira dos Estados Unidos no século XIX, reinterpretado pela indústria do cinema do século XX): uma terra a ser desbravada e conquistada, um lugar “sem 33 91 as expressões “white hat” e “black hat” se especifiquem por apontar para o trabalho em “segurança” como contraponto às práticas criminosas de hacking, essa distinção também produz uma divisão estanque das práticas em categorias préestabelecidas, que não levam em conta as particularidades da situação. Nas definições apresentadas a seguir, podemos observar a equivocidade dessas categorizações baseadas na separação estanque dos opostos. Imagem 1: “Black Hats36” e “White Hats37” (Fonte: www.isoftdl.com) Essas descrições são formuladas de modo a marcar uma diferença entre as práticas, mas o efeito produzido é o de marcar as diferenças de propósitos: “maliciosos ou destrutivos” no caso dos “black hats”, e “defensivos” no caso dos “white hats”. Assim, são ainda as supostas intenções dos sujeitos que sustentam a caracterização dos primeiros como criminosos (“crackers”) e dos últimos como “analistas de segurança”. Então podemos observar, de partida, que as definições acima não consideram essas práticas tendo em vista o funcionamento discursivo da linguagem, mas apenas seu aspecto pragmático. Vejamos mais de perto o modo como essas formulações procuram definir e diferenciar os hackers segundo as suas “boas” ou “más” intenções. Individuals with extraordinary computing skills, resorting to malicious or destructive activities Individuals professing hacker skills and using them for defensive purposes. Destacamos em negrito os trechos que, em cada um desses enunciados, especificam o sentido de “indivíduos” a partir de referências às suas habilidades: as dos “black hats” aparecem como “habilidades computacionais extraordinárias” e as dos “white hats” como “habilidades de hacker”. Embora seja fácil admitir que as duas formulações tenham “o mesmo” sentido 38, o fato de que o termo ‘hacker’ aparece na descrição de “white hats” e é suprimido na descrição de “black hats” aponta para uma tentativa de deslocar, do termo ‘hacker’, alguns sentidos pejorativos a ele associados, a fim de assegurar determinados lugares legitimados para os hackers na sociedade. Em outras palavras, tem-se aí uma perspectiva que procura inscrever as práticas de hacking na discursividade jurídica que lega às instituições o poder de organizar e controlar essas práticas. A partir daí, a diferença entre os “bons” e os “maus” hackers se especifica em um deslizamento ligado à palavra ‘habilidade’. Como podemos observar a partir dos mesmos recortes, se na lei”, à espera do poder do (Capital assegurado pelo) Estado. Esse efeito de sentido se produz sobre o apagamento de processos discursivos já colocados em curso nesse espaço pelos “nativos” que ali estavam: no caso do velho oeste, as leis e códigos dos índios americanos; no das redes digitais, a “ética hacker” descrita por S. Levy (1984). 36 “Black hats” (Chapéu preto): indivíduos com habilidades computacionais extraordinárias, recorrendo a atividades destrutivas ou maliciosas. Também conhecidos como crackers”. 37 “White hats” (Chapéu branco): indivíduos que professam habilidades de hacker e as usam para propósitos defensivos. Também conhecidos como analistas de segurança”. 38 Afinal, é senso comum todo hacker deve apresentar habilidades computacionais extraordinárias. 92 definição dos “black hats” a habilidade está simplesmente “com o sujeito39”, na descrição dos “white hats” a habilidade é algo que o sujeito deve “professar”40, ou seja, que o sujeito deve assumir e exercer publicamente nos espaços simbólicos juridicamente administrados pelo Estado. A partir desse processo de institucionalização da figura (ideologicamente) criminalizada do hacker, surge a noção de “ethical hacker41” ou “hacker ético”, cuja prática se realiza no âmbito de espaços institucionais e consiste em zelar pela segurança de sistemas de informação de acesso restrito. Não podemos deixar de notar a inversão que a noção de “hacker ético” produz em relação à “ética hacker” descrita por Levy (1984), que tinha como uma de suas marcas a defesa radical de que “a informação deveria ser livre”. Podemos observar que, a partir da divisão entre “bons” e “maus” hackers (marcada a partir de distinções como “hacker” e “cracker”, ou “white hat” e “black hat”), há o movimento de significar as práticas de hacking sem pensá-las como tais, isto é, considerando-as apenas a partir de classificações/rótulos para os hackers. Essas categorizações que levam em conta apenas os lugares sociais empíricos do indivíduo perdem de vista um aspecto crucial do funcionamento do discurso: os sujeitos não se fixam nesses lugares, mas, ao contrário, estão sempre em movimento. 4. A constituição do hacker como posição-sujeito A equivocidade de distinções “preto-no-branco” como as que discutimos acima aparece também na caracterização de um terceiro tipo de hacker: os “gray hats”. Imagem 2: “Gray Hats42” (Fonte: www.isoftdl.com) Ao relativizar a oposição de “black hats” e “white hats”, a noção de “gray hats” não funciona como uma espécie de meio-termo. Ela expõe a contradição produzida pela tentativa de criar esses rótulos para os sujeitos a fim de diferenciar suas práticas em “boas” ou “más”. Assim, se os “black hats” estão associados à criminalidade e os “white hats” à segurança, qual é, então, o lugar dos “gray hats”? Seriam esses hackers criminosos que ocasionalmente trabalham com segurança? Ou analistas de sistemas que às vezes deslizam para o crime? O fato é que a introdução da noção de “gray hats” faz ruir a proposta de dividir “bons” e “maus” hackers em categorias opostas como as de “white hats” e “black hats”. Ela mostra que, em termos de discurso, não se trata de lugares fixos, mas de posições que se colocam em jogo nos diferentes processos de significação. 39 “Individuals with extraordinary computing skills” “Individuals professing hacker skills” 41 Há, inclusive, instituições que fazem exames de qualificação e certificação de “hackers éticos” (cf. https://en.wikipedia.org/wiki/Certified_Ethical_Hacker). 42 “Gray hats” (Chapéu cinza): indivíduos que trabalham ofensivamente e defensivamente em variadas ocasiões”. 40 93 Assim, podemos tomar a constituição discursiva do hacker em posição-sujeito como algo que se realiza em cada prática de hacking na qual ele (se) investe. Consideremos um caso particular para dar corpo ao que estamos pontuando. Em maio de 2013, o analista de sistemas norte-americano Edward Snowden, que trabalhava em uma empresa chamada “Booz Allen Hamilton”, foi o responsável pelo vazamento que revelou uma rede de vigilância mundial construída por agências de inteligência governamentais (a começar pelas norte-americanas) com a ajuda de empresas como aquela em que Snowden trabalhava. Segue um trecho do relato de Snowden sobre o trabalho dos programadores que atuam como “analistas de segurança” para o governo dos EUA. When you’re in positions of privileged access like a Systems Administrator for this sort of intelligence community agencies, you’re exposed to a lot more information on a broader scale than the average employee, and because of that you see things that may be disturbing, but over the course of a normal person’s career you would only see one or two of these instances. When you see “everything”, you see them on a more frequent basis and you recognize that some of these things are actually abuses, and when you talk to people about them, in a place like this, where this is the normal state of business, people tend to not to take them very seriously and, you know, move on from them. But over time, that awareness of wrongdoing sort of builds up and you feel compelled to talk about it, and the more you talk about it, the more you’re told it’s not a problem, until eventually you realize that these things need to be determined by the public, not by somebody who is simply hired by the government43 (SNOWDEN, 2013). Quando solicitado, em outra entrevista, a dar um exemplo específico do alcance dos sistemas de vigilância dessas agências de inteligência, Snowden respondeu: A simple example that everybody can relate to is you’ve got young enlisted guys, 18 to 22 years old. They’ve suddenly been thrust into a position of extraordinary responsibility where they now have access to all of your private records. Now, in the course of their daily work, they stumble across something that is completely unrelated to their work in any sort of necessary sense. For example, an intimate nude photo of someone in a sexually compromising situation, but they’re extremely attractive, so what do they do, they turn around in their chair and they show their co-worker. And their co-worker says “oh hey, that’s great, send that to Bill down the way, and then Bill sends it to George, George sends it to Tom, and sooner or later this person’s whole life has been seen by all of this other people. It’s never reported. Nobody ever knows about it because the auditing of these 43 “Quando você está em posições de acesso privilegiado, como administrador de sistemas, para este tipo de agência das comunidades de inteligência, você é exposto a muito mais informação em larga escala do que um empregado comum, e por causa disso você vê coisas que podem ser perturbadoras, mas ao longo de uma carreira normal, isso acontece uma ou duas vezes. Quando você vê “tudo”, você vê essas coisas com mais frequência e reconhece que algumas dessas coisas são na verdade abusos, e quando você conversa com as pessoas sobre essas coisas, em um lugar como esse, onde isso faz parte do trabalho cotidiano, as pessoas tendem a não levar a sério e, você sabe, deixam passar. Mas com o tempo, o peso de saber dessas infrações vai se acumulando e você se sente levado a falar sobre isso, e quanto mais você fala sobre isso, mais te dizem que isso não é um problema, até você perceber que que essas coisas precisam ser determinadas pelo público, e não por alguém que é um simples contratado do governo” (tradução nossa). 94 systems is incredibly weak. The fact that your private images, records of your private lives, records of your intimate moments have been taken from your private communication stream, from the intended recipient, and given to the government without any specific authorization, without any specific need, is itself a violation of your rights. Why is that in a government database?44 (SNOWDEN, 2014). Os relatos de Snowden ajudam a explicitar como, em um mesmo lugar social (no caso, o dos “analistas de segurança” que trabalham para agências do governo), há diferentes posições-sujeito possíveis diante de cada situação. No exemplo dado, de uma foto pessoal que é secretamente acessada com a autoridade do governo, Snowden (idem) afirma que isso é considerado uma espécie de “bônus” que vem com esses lugares institucionais das práticas de vigilância45. Em outras palavras, hackers contratados como “analistas de segurança”, ou seja, supostos “white hats”, recorrem a “atividades maliciosas” como os chamados “black hats”. Eles ocupam o lugar institucional legitimado do “hacker ético”, mas seus gestos podem, com facilidade, deslizar secretamente para fora desse lugar, enquanto posição-sujeito. O próprio Snowden é um exemplo interessante para pensarmos a constituição do hacker como posição-sujeito. Quando ele começou a questionar as práticas que considerava “abusivas”, sua posição foi gradativamente se deslocando da formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito e feito no expediente de um analista de segurança que trabalha para a NSA: “quanto mais você fala sobre isso, mais te dizem que isso não é um problema”. Snowden afirma, na entrevista de 2014, que procurou conversar sobre esses problemas com colegas, “primeiro lateralmente, depois verticalmente”. Até que a constituição de Snowden como posição-sujeito produz uma ruptura ao dizer, nas entrevistas concedidas em 2013, tudo aquilo que não pode e não deve ser dito por alguém que trabalha como analista de segurança para o governo dos EUA. Quando Snowden viajou de seu local de trabalho no Havai a Hong Kong, onde seria entrevistado por Glen Greenwald e Laura Poitras, um pedido de extradição foi imediatamente pedido. Sua solução para escapar ao sistema jurídico norte-americano foi pedir asilo ao governo russo, o que lhe foi rapidamente concedido. 4. Comentários finais (e algumas questões) As entrevistas de Edward Snowden, sobretudo as primeiras, em maio de 2013, constituem um material relevante para a nossa proposta de pesquisa sobre as práticas de hacking, e provavelmente serão objeto de novas análises que desenvolveremos. Por ora, procuramos apenas os de mostrar diferentes (efeitos de) 44 “Um exemplo simples, com o qual todos podem se relacionar, é que você tem jovens contratados, entre 18 e 22 anos. Eles de repente são colocados em uma posição de extraordinária responsabilidade, a partir da qual eles passam a ter acesso a todos os seus registros pessoais [Snowden aponta para o entrevistador]. Bem, no curso de um dia de trabalho, eles topam com algo que não tem relação alguma com as necessidades do trabalho. Por exemplo, uma foto íntima nua, de alguém em uma situação sexualmente comprometedora, mas essa pessoa é extremamente atraente, então o que eles fazem, eles se viram em suas cadeiras e mostram para o colega. E aí o colega diz ‘ei, legal, mande isso para o Bill lá embaixo’, e o Bill manda para o George, George manda para o Tom, e cedo ou tarde toda a vida dessa pessoa foi vista por todas essas outras pessoas. Nunca é reportado. Ninguém nunca fica sabendo porque as auditorias desses sistemas são incrivelmente fracas. O fato de que as suas imagens privadas, registro das suas vidas privadas, registros de seus momentos íntimos, foram retirados do fluxo das suas comunicações privadas, do destinatário pretendido, e dadas ao governo, sem qualquer autorização específica, e sem qualquer necessidade específica, é uma violação dos seus direitos. Por que isso está em um banco de dados do governo?” (tradução nossa). 45 No original: “(...) these are seen as a fringe benefit of the surveillance positions”. 95 sentidos ligados às práticas dos hackers e pontuar, teoricamente, a questão da constituição do sujeito, no discurso, como posição entre outras. De modo geral, também notamos que a distinção entre “bons” e “maus” hackers diz respeito a um ponto fundamental da constituição do chamado “sujeito de direito”: a responsabilidade, ou, mais especificamente, a responsabilização do indivíduo pelo sistema jurídico, isto é, a imputação de sua responsabilidade46. Essa relação entre a responsabilidade e a imputabilidade no discurso jurídico também suscita questões para futuras análises. Quais os sentidos de “ser responsável”, “ser irresponsável” e “ser imputável” nas condições de produção do discurso estruturadas pelas redes digitais? O que as práticas dos hackers têm a nos ensinar sobre o funcionamento da ideologia e as possibilidades de resistência nessas condições? Como pensá-las enquanto práticas sociais simbólicas que articulam, em diferentes processos discursivos, as chamadas “línguas naturais” às “línguas artificiais”? 5. Referências LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea (2002). 7ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2015. LEVY, Steven. Hackers: heroes of the computer revolution (1984). Sebastopol: O’Reilly, 2010. PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (1969). In: Gadet, F. & Hak, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso. 4ª ed. Campinas: Unicamp, 2010. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1975). 3ª ed. Campinas: Unicamp, 1997. SNOWDEN, Edward. Youtube. “NSA whistleblower Edward Snowden: 'I don't want to live in a society that does these sort of things'”. Publicado em 9 de julho de 2013. Disponível em: https://youtu.be/0hLjuVyIIrs. Acesso em 20/11/2017. SNOWDEN, Edward. Youtube. “Edward Snowden: ‘If I end up in Guantánamo I can live with that’ | Guardian Interviews”. Publicado em 18 de julho de 2014. Disponível em: https://youtu.be/L_amBkYx_Fk. Acesso em 20/11/2017. 46 Como escreve Pêcheux (1975, p. 159), “a lei sempre encontra ‘um jeito de agarrar alguém’, uma ‘singularidade’ à qual aplicar sua ‘universalidade’”. 96 CINISMO: UM ESTUDO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA NO DISCURSO AMANDA BARBOSA XAVIER COTRIM Instituto de Estudos da Linguagem Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) R. Sérgio Buarque de Holanda, 571 - Cidade Universitária, Campinas - SP, CEP: 13083-859 amandacotrim87@gmail.com Resumo. Para esse trabalho, propomos pensar sobre o funcionamento do cinismo nos discursos que dizem os processos migratórios contemporâneos. Analisamos parte do discurso da Campanha da GrãBretanha contra os imigrantes-refugiados, que circulou na imprensa em 2014, na tentativa de refletir, pela Análise de Discurso, sobre a relação discurso, cinismo e ideologia em seu processo de constituição, formulação e circulação (ORLANDI, 2007). Palavras-Chave. Discurso, Cinismo, Ideologia, Migrações, Análise de Discurso Abstrat: For this work, we propose to think about the functioning of cynicism in the discourses that say the contemporary migratory processes. We look at part of the speech of the British Campaign against refugeeimmigrants, circulated in the press, in 2014, in an attempt to reflect, through Discourse Analysis, on the relation discourse, cynicism and ideology in its process of constitution, formulation and circulation (ORLANDI, 2007). Keywords: Discourse, Cynicism, Ideology, Migration, Speech Analysis 1. Apresentação Este trabalho é um esboço de uma reflexão ainda muito inicial que está se desenvolvendo no âmbito da pesquisa de doutorado. Na tese investigamos o funcionamento do cinismo nos processos discursivos contemporâneos, mais especificamente nos discursos institucionais e de governo que dizem os processos migratórios no século XXI. Algumas reflexões desenvolvidas por autores de áreas como Filosofia, Psicanálise e, mais recentemente, Análise de Discurso de linha materialista, têm insistido na ideia de que, para compreendermos a sociedade na contemporaneidade, precisamos considerar o caráter cínico de seu funcionamento (BALDINI e DI NIZO, 2015). O filósofo Sloterdike (2012) em seu trabalho sobre o cinismo contemporâneo recupera sua historicidade, desde Grécia Antiga, fazendo uma diferenciação entre o cinismo grego (kynismo)47 e o cinismo atual. Na figura de Diógenes, os cínicos eram descendentes de escravos, estrangeiros ou prostitutas e não possuíam cidadania 47 A noção de kynismo e cinismo é objeto de estudo da tese de doutorado de DI NIZO, em desenvolvimento no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP. 97 ateniense. Eles rejeitavam os valores instituídos, fama, dinheiro e não acreditavam no poder (SLOTERDIK 2012). Os cínicos gregos partiam do pressuposto de que não havia diálogo entre eles- os excluídos- e os poderosos. Como um cético (SLOTERDIK 2012), o cínico não estava preocupado com os argumentos utilizados pelos poderosos, mesmo sabendo sobre esses argumentos. Podemos dizer, de modo não alongado, que o cinismo na Grécia funcionava como um trabalho de resistência, em que os cínicos reconheciam o poder, mas se contrapunham a ele, o ignorando, debochando dele. Ou seja, havia reconhecimento, mas não havia identificação com o poder. Na contemporaneidade, no entanto, a atividade cínica, nas palavras de Sloterdik (2012), troca de lado e passa a ser a lógica do poder. O autor trabalha o cinismo no sentido de uma impostura, “como se passássemos da célebre formulação de Marx (eles não sabem, mas o fazem) para um eles sabem muito bem o que estão fazendo e mesmo assim fazem (BALDINI, 2009). Esse cinismo, para Zizek (1992, p. 313), não é uma postura direta da imoralidade, mas a própria moral posta a serviço da imoralidade”. A partir dessa breve introdução teórica apresentada acima, pretendemos nesse trabalho analisar o cinismo como uma prática discursiva (BALDINI e DI NIZO, 2015) nas relações de poder. Desse modo, não adotaremos a problemática centrada no sujeito falante e nem no poder como um lugar estático e original, para que assim possamos formular questões em termos de representações. A nossa pergunta consiste em saber como o cinismo funciona no discurso, considerando o sujeito e a situação (condições de produção), na tentativa de pensar a relação discurso, cinismo e ideologia em seu processo de constituição, formulação e circulação48 (ORLANDI, 2007). 2. Cinismo e Ideologia A ideologia para a Análise de Discurso materialista é compreendida, desde Althusser (1985), como uma prática. Trata-se de um funcionamento que produz evidências; uma operação em que a língua e a história estão em pleno movimento. Essa perspectiva recusa o idealismo centrado no sujeito, a ilusão discursiva do sujeito como origem (ORLANDI, 2017) e mobiliza a noção teórica e analítica de interdiscurso, desenvolvida por Pêcheux (1975), o qual afirma que alguma coisa fala antes em outro lugar independentemente. Ou seja, há a constituição do Outro (a historicidade e o social) naquilo que se diz; uma voz sem nome, como escreve Courtine (1982). Se o cinismo é uma marca da ideologia (BALDINI e DI NIZO, 2015), como seu funcionamento se dá no discurso? Antes de renunciar, em 2016, o primeiro Ministro britânico, David Cameron, estabeleceu uma Campanha contra a imigração europeia e o islamismo, sustentando esta campanha sob o argumento da necessidade de proteção da GrãBretanha contra o terrorismo originado do exterior, enfatizando que os imigrantesrefugiados deveriam ser deportados. No dia 28 de novembro de 2014, o Jornal Hoje, da Rede Globo, transmitiu o pronunciamento do primeiro ministro britânico sobre esse tema com a seguinte manchete: “David Cameron anuncia medidas para reduzir imigrantes no Reino Unido”. Logo abaixo do vídeo, o jornal continua: “O primeiro ministro britânico começou o discurso reconhecendo a valiosa contribuição dos imigrantes, mas depois disse que os serviços públicos não estão dando conta de tantos estrangeiros”. 48 Aqui se faz necessário destacar o trabalho de Slouterki (2012) o qual faz uma diferenciação entre cinismo e kynismo. O cinismo contemporâneo existe nas relações de poder. Já o kynismo tem sentido de contravenção e resistência. São noções diferentes que produzem efeitos diferentes, face ao real da história e da política na relação com o imaginário. 98 Notamos que a imprensa estabeleceu uma relação direta entre imigrantes e estrangeiros, como sinônimos, concordando que estrangeiros são os imigrantes, numa relação oposta com o que poderíamos pensar sobre o turista, que também é estrangeiro. Mas não é desse estrangeiro que se trata. A seguir, recortamos parte do pronunciamento do (ex) Ministro para a análise. 3. Análise “Os imigrantes ajudaram a desenvolver a Grã-Bretanha, mas espero que a União Europeia nos apoie na decisão de deportá-los”, referindo-se aos refugiados do Oriente Médio49. A partir dessa formulação, faremos um deslizamento a fim de melhor compreender esse funcionamento: “Os imigrantes ajudaram a desenvolver a Grã-Bretanha [eu sei que os imigrantes ajudaram a desenvolver a Grã-Bretanha], mas espero [eu espero/esperamos] que a União Europeia nos apoie [me apoie] na decisão de deportá-los”. O pronunciamento do Ministro, acompanhado pela mídia em vários países do mundo, demonstrou que não são todos os imigrantes que devem ser deportados, mas os refugiados, e mais especificamente os que são relacionados ao refúgio proveniente da Síria, um implícito que funciona por causa da memória discursiva da política governamental e institucional da Grã-Bretanha sobre o islamismo e sobre o refúgio do século XXI, que teve suas representações mais transmitidas pela mídia após 2011, com o início da guerra na Síria. E aí nos cabe perguntar: no que a expulsão de imigrantes é transformada quando olhamos para o discurso da Campanha? 3.1 Relação saber e crença Apesar de saber que os imigrantes ajudaram no desenvolvimento da GrãBretanha, e que por isso, podemos dizer, eles não representariam uma ameaça ao país, defende-se que os imigrantes devem ser deportados. O saber da formulação é da ordem do reconhecimento. No entanto, esse saber é invalidado quando, em seu discurso, a campanha estabelece uma oposição entre o saber/reconhecimento e a decisão. O “sabemos, mas”, “a Grã-Bretanha sabe, mas” ou “eu sei, mas”, ou ainda “reconhecemos, mas” funciona para apagar o que se sabia, reformulando a memória a partir daquilo que vai ser dito. O saber sai de cena para o que o querer/desejo apareça: Espero que a União Europeia nos apoie. O Ministro, de sua posição-sujeito na Formação Discursiva contra imigração, Britânico e Europeu, enunciou ancorado em uma defesa: a de que os imigrantes precisam ser expulsos. Essa defesa se sustenta a partir de um discurso da necessidade [espero que a União Europeia nos apoie/ necessitamos que a União Europeia nos apoie/ queremos que a União Europeia nos apoie], que deixa ver uma crença, um desejo: [eu sei, mas espero- um espero que desliza para quero-desejo-acredito] de que não há outra decisão a ser tomada, que não há nada a ser feito como alternativa, a não ser deportar os imigrantes. Ao dizer que é preciso expulsar o outro, a insegurança e o risco- sentidos impregnados na imagem desse imigrante-refugiado- tornam-se, pela ideologia, uma evidência. Afinal, é “só” por isso- e por “tudo” isso- que os imigrantes devem ser expulsos. A discursividade cínica, como marca da ideologia, traveste-se de como sendo o bem comum aquilo que é da ordem dos próprios interesses do sujeito nas relações de 49 Formulação do (ex) Primeiro Ministro britânico, David Cameron, divulgada em 28 de novembro de 2014, pela mídia televisiva (Jornal Hoje, da Rede Globo). Link: http://g1.globo.com/jornalhoje/videos/t/edicoes/v/david-cameron-anuncia-medidas-para-reduzir-imigrantes-no-reino-unido/3796408/ 99 poder (ZIZEK, 1992), produzindo, pelas condições de produção, um efeito de consenso. É importante destacar de que não se trata de consenso e nem de um bem comum, mas de um efeito, que pelas condições objetivas de um pronunciamento/decisão institucional divulgada em um aparato midiático, e pelas relações de poder (quem fala em uma sociedade de classes), não concede abertura para uma visão outra. Se o cínico na Grécia partia de um princípio de um não-diálogo entre ele (o excluído) e os poderosos, e por ser cético em relação ao poder o cínico ria dele, na contemporaneidade o cínico nas relações de poder simula o diálogo, mesmo não acredita nele. Nesse caso que estamos analisando, podemos perceber que o cínico radicaliza em seu discurso (GOLDEMBERG, 2002) ao produzir um efeito do “beco sem saída” (SLOUTERDIK, 2012), fazendo crer que existiu, por parte do poder, um esforço para equilibrar os conflitos, colocando em forças iguais governo e imigrantes, mesmo sabendo que isso, de fato, não ocorreu. 3.2 Dissimulação e Simulação Na Campanha da Grã-Bretanha, o cinismo é a expressão de algo mediante palavras que se sobrepõe e se contradizem: “os imigrantes ajudaram a construir a GrãBretanha, mas”, algo que se estabelece na relação entre o institucional e o jogo. O Ministro está convencido de sua causa, ou em outras palavras, de seu desejo- e convencido de seu poder- e por isso transita pela contradição, deixando-a ser vista mediante o contexto. Assim como na ironia (ORLANDI, 2012), no discurso cínico que estamos analisando, há, ao mesmo tempo, uma simulação e uma dissimulação. A simulação ocorre porque o Ministro, em sua posição sujeito, apresenta o seu querer (deportar imigrantes) como sendo um querer coletivo (a Grã-Bretanha quer), ignorando opiniões contrárias ou possibilidades outras. E a dissimulação se dá porque, ao dizer que reconhece a contribuição dos imigrantes, esse reconhecimento oculta sua decisão e seu projeto político de expulsá-los. Talvez esteja na simulação e na dissimulação a força do cinismo que, neste caso, vem dar conta dessa contradição que fora amenizada: “sabemos, mas”, funcionando como um efeito ideológico do discurso cínico; uma reafirmação do poder pelo discurso. A expulsão de imigrantes é sentenciada pelo governo britânico como sendo a única alterativa que restou, materializando, na linguagem, o que Mariani (2014) chamou de uma “possível perversão social contemporânea. “Eu sei que, mas” é uma formulação dita em posições-sujeito nas quais “a submissão à Lei simbólica e às leis sociais deram-se frouxamente” (MARIANI, 2014, p. 219) 50. A formulação “os imigrantes ajudaram a construir a Grã-Bretanha, mas espero que a União Europeia nos apoia na decisão de deporta-los” estanca, pelo discurso, qualquer forma de diálogo ou produção de sentidos outros sobre a questão migratória, interditando qualquer possibilidade de novos sentidos sobre o que é ser imigrante/refugiado na Europa, pois a Campanha diz que reconhece o outro (imigrante-refugiado) negando-o. É um reconhecimento “afrouxado” para usar as palavras de Mariani. Um reconhecimento cínico. Não há nada em comum entre o discurso de Diógenes, que depende do discurso dominante para existir como tal, e o moderno discurso do cínico, fechado em si próprio (...). Se o primeiro revela a incidência do desejo de um só sobre os significantes-mestre (nomos) de todos, o segundo se caracteriza precisamente por neutralizar a incidência do desejo dos que entram em seu aparato. 50 A ideia de perversão, da psicanálise, pensada em relação ao cinismo é um dos temas da minha pesquisa de doutorado. O tema não será desenvolvido nesse artigo, contudo. 100 (GOLDENBERG, 2002, p. 75) Neste sentido, o cinismo é um certo modo de pertencimento do sujeito a uma Formação Discursiva, “certo modo de relação com o saber, uma tomada de posição desengajada, ou de uma subjetivação assumida apenas para ser parodiada” (BALDINI, 2012, p. 110-111). O cínico grego (excluído) sabia que não haveria diálogo com o poder; o cínico contemporâneo também sabe que não haverá diálogo com o excluído, mas age como se não soubesse, numa espécie de teatralidade/simulação. O cínico contemporâneo não é cético, mas, usando as palavras de Baldini (2012), desengajado, pouco interessados nos argumentos que não os dele, mesmo sabendo da existência de argumentos outros. Ou seja, há reconhecimento e há identificação, no sentido de haver uma afirmação de pertencimento do sujeito à lógica que instaura algo como verdade, mas ao se descomprometer em relação àquilo, mantém-se em uma relação de poder: eu sei, eu reconheço, eu pertenço a esse laço, e eu posso – tenho poder – me descomprometer com isso, sem perder meu lugar, pelo contrário, meu lugar está garantido inclusive em função de minha força em escancarar meu descomprometimento. O cínico está tão iludido sobre a garantia de seu lugar nas relações de poder, que, por isso, simula. Ele não está menos preso que o seu interlocutor na trama que ele cria. Trata-se de “uma relação com o inconsciente tal qual ele só existe para os outros, o que faz com que o interessado se imagine autônomo e livre de qualquer outra determinação que não a sua boa ou má vontade” (GOLDENBERG, p. 15, 2002). E é disso que se trata o discurso do governo britânico, mesmo reconhecendo a importância dos imigrantes para a constituição daqueles países, ignora seu saber, já que não existe espaço para esse outro nem no território e nem no discurso. O cinismo, então, seria uma prática discursiva nas relações de poder de dupla face: se reconhece uma coisa e apaga-a para impor outra. 3.3 Cinismo e promessa Em nossa análise, identificamos que há no funcionamento do discurso cínico um sentido de promessa. Tentaremos elaborar essa afirmação a seguir. A sequência discursiva que elegemos para esse trabalho pode ser deslizada51 para: "vamos deportá-los" ou "a Grã-Bretanha vai deportá-los". Esse dizer produz um compromisso, que por sua vez tem efeito de promessa (aquilo que o político fará em favor de um grupo imaginário- os britânicos) em contraposição a um efeito de ameaça (aquilo que o político fará contra um grupo também imaginário- os imigrantes) (FELMAN, 1980). Ao realizar seu pronunciamento em cima de um palanque, e estar sendo observado pela imprensa internacional, o Ministro seduz com o corpo, o qual fala e se projeta numa posição sujeito de equalizador daquele conflito. A promessa- e diríamos o cinismo- convoca o outro imaginário porque necessita que sua farsa se constitua, se formule e circule. Parafraseando Felman (1980), cínico não crê, mas faz crer, materializando na linguagem um efeito significante de autoreferenciação: “eu-Ministro/governo - espero, logo todos devem esperar”. 51 Trabalhamos teoricamente em nossa tese noções como efeito metafórico, deslize, deslocamento, paráfrase, polissemia para pensar o cinismo. Consideramos dois processos fundamentais para o discurso cínico: o perifrástico e o polissêmico. “São eles responsáveis pelo limite impreciso e instável entre a pluralidade de sentidos possíveis e a permanência de um “mesmo” sentido em suas várias formas. A tensão entre esses dois processos institui a diferença entre a produtividade -reiteração (paráfrase) de processos cristalizados na linguagem - e a criatividade - a instituição do novo (polissemia) pela ruptura do processo de produção dominante” (ORLANDI, 2012, s/p). 101 Se a política governamental é cínica, o cinismo já não estaria funcionando como resistência, como na Grécia, mas como violência travestida de solução. Na linguagem, o cinismo, como uma prática autoritária da política, antecipa o sentido sobre determinado acontecimento, interditando-o, e o cínico se apresenta como se não tivesse nada a ver com isso. 4.Considerações Nesse brevíssimo ensaio, apresentamos que o cinismo, como marca da ideologia, tem a ambiguidade materializada no discurso: se diz uma coisa para dizer outra, ou melhor, se diz uma coisa para apagar outras, mas não quaisquer outras. Não se trata simplesmente de uma ambiguidade, uma contradição, o que é da ordem de qualquer discurso, mas de uma ambiguidade que está a serviço de um gozo52. Trata-se de um dizer “x” para se fazer “y”. Mas, no cinismo, diferente da ironia (ORLANDI, 2012), que depende do “entendimento” do interlocutor, o locutor ignora o interlocutor, mas se comporta como se não o ignorasse. No discurso da Campanha da Grã-Bretanha perceberemos que há duas instituições agindo sobre esses dizeres: a política governamental e a mídia, condições que interferem na interpretação do acontecimento. Os discursos de governo se constituem sob a impossibilidade de confronto e de debate naquele espaço de circulação. Nas relações de poder, o cinismo retira a responsabilidade do sujeito, em sua posição social de poder, que pode se esconder de seu saber e se posicionar pela sua crença, num processo de esvaziamento e desprendimento parcial daquilo que se sabia antes (MANNONI, 1973). A crença, que sustentaria o cinismo- "Eu sei que os imigrantes ajudaram a desenvolver a Grão Bretanha, mas espero [acredito-desejo-quero] que a UE nos apoie na decisão de deportá-los" não tem relação com o que precisa ser feito, mas com o que se acredita que deve ser feito (MANNONI, 1973); é uma adesão, um posicionamento político; por isso a crença não tem relação com um debate polêmico e interminável sobre os direitos humanos, mas com a decisão-adesão- de um projeto que pretende conservar um sentido que fora eleito como essencial, como é o caso do sentido de segurança nacional, que deriva do discurso contra a imigração; conservando um estado de poder que sustenta um ideal a ser fecundado (FOUCAULT, 2010). Podemos refletir se o cinismo não funcionaria como uma espécie de blindagem política, já constituída na linguagem, uma vez que sua formulação e circulação já impõe o silenciamento do outro, da contra argumentação. A política (cínica), como lugar que tem reconhecimento social, joga com a identificação dos sujeitos: "x é melhor do que y", produzindo um sentido comum: "não ter imigrantes é melhor do que ter". Desse modo, podemos pensar que o cinismo é uma forma de subjetivação política, um modo particular de interpelação ideológica.53 O cinismo, como tentamos mostrar nesse trabalho, é uma noção que cria laços com a história, tendo no campo da Filosofia uma espécie de “categoria unificada”. Não apostamos que vamos descobrir nada muito além do que já foi escrito sobre o cinismo, um objeto de estudo fecundo, intrigante e complexo. Contudo, pensamos que o cinismo não é uma categoria fixa, não se trata de um conjunto de enunciados que podem ser tidos como cínicos. O que acreditamos- e pretendemos devolver isso em nossa tese - é que não há cinismo, há cinismos, e que eles se manifestam de modos parecidos, mas não idênticos nas relações de poder. Por isso, a análise sobre a enunciação é fundamental. E então poderíamos, 52 7 Pretendemos discutir melhor a noção de gozo para a Psicanálise em nossa tese. Estamos trabalhando a noção de interpelação ideológica em nossa tese de doutorado. 102 no futuro, dizer se o cinismo é da ordem da constituição, da formulação ou de ambas. 7. Referências BALDINI, L. Cinismo, discurso e ideologia. IV SEAD - SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO 1969-2009: Memória e história na/da Análise do Discurso Porto Alegre, de 10 a 13 de novembro de 2009 BALDINI, L. e DI NIZO, Patrícia. O Cinismo como prática ideológica. Estudos da Língua(gem) Vitória da Conquista v. 13, n. 2 p. 131-158, dezembro de 2015. BALDINI, L.J. Discurso e cinismo. In: MARIANI, B.;MEDEIROS, V. (orgs.). Discurso e...Rio de Janeiro:7LetrasFaperj, 2012. COURTINE, J.J. O Chapeu de Clementis. In: Indursky, E (org.) Os múltiplos territtórios da análise de discurso, In: Philosophiques, vol. IX, Paris, 1982. FELMAN, Sohshana. Le Scandale du corps parlant. Paris Ed. du Seuil, 1980. 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Este artigo investiga o processo de leitura e os mecanismos de produção de sentido, à luz do estudo da Teoria Semântica. Como subsídios para esta pesquisa baseamos nos pressupostos teóricos de Frege (1978) sob a perspectiva da referência, que é fundamentada no texto “Sobre o sentido e a Referência” e nos pontos de percepção e inferência da teoria de Umberto Eco (1998), mencionados na obra “Tipos Cognitivos e Conteúdo Nuclear”. O corpus de análise deste estudo é uma propaganda publicitária impressa de lingerie da marca Duloren, que circulou no Rio de Janeiro, no ano de 2012. Palavras-chave: Teoria Semântica. Processo de Leitura. Publicidade e Propaganda. Textos Publicitários. Abstract. This article investigates the reading process and the mechanisms of meaning production, in the light of the study of Semantic Theory. As support for this research we base it on the theoretical assumptions of Frege (1978) from the perspective of reference, which is based on the text "On the meaning and the Reference" and the points of perception and inference of the theory of Umberto Eco (1998), mentioned in the book "Cognitive Types and Nuclear Content". The corpus of analysis of this study is a printed advertising advertisement of Duloren brand lingerie, which circulated in Rio de Janeiro in the year 2012. Keywords: Semantic Theory, Reading Process, Advertising and Marketing, Advertising Texts. 1. Introdução O tema deste artigo refere-se aos mecanismos de produção de sentido envolvidos no ato da leitura e está inserido na área dos estudos linguísticos. Partimos de uma concepção abrangente do processo de leitura, na qual compreendemos que seja não só uma decodificação de símbolos, como também o processo de produção de sentido entre o leitor e o texto. A partir de estudos previamente realizados na disciplina de Teoria Semântica, oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade 54 Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Atua como bolsista FAPEMIG. 55 Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Atua como bolsista FAPEMIG. 105 Católica de Minas Gerais (PUC Minas) observamos que as discussões teóricas embasadas em textos de renomados autores desta área do conhecimento podem nos esclarecer, ainda mais, acerca do ato de ler. Neste sentido, o objetivo geral desse estudo é entender o processo de leitura a partir de estudos e pressupostos semânticos. Tal pesquisa justifica-se, uma vez que “dentre muitos dos instrumentos de que as pessoas dispõem numa sociedade, como forma de dominar e de processar o conhecimento, provavelmente a leitura é um dos mais importantes” (MARI; MENDES, 2005, p.155, grifo nosso). Em um primeiro momento, apresentaremos de que forma os estudos linguísticos concebem a leitura. Por muito tempo, entendia-se que o ato de ler se restringia à decodificação da língua, aos conhecimentos da gramática e à leitura das sentenças que formam um texto. Existia assim uma preocupação excessiva com a sintaxe, e o sujeito não era estimulado a interagir com o texto, nem muito menos, a desenvolver sua competência analítica/discursiva. Entretanto, há décadas, uma nova perspectiva de leitura vem sendo discutida e defendida por teóricos. As autoras Coscarelli; Novais (2010) afirmam que leitura abarca a ação dinâmica de vários campos de processamento. É um processo de assimilação de diferentes operações. Após essa discussão e fundamentação inicial, faremos uma associação entre certos conceitos e o ato de ler. Para isso, selecionamos os estudos teóricos de autores como Frege (1978) e Eco (1998). Recorremos, também, a outros autores com escopo de elucidar/aprofundar as questões e conceitos debatidos por esses dois teóricos. Em um terceiro momento, o foco será o texto publicitário, sua linguagem e especificações, relatando as características e estrutura deste tipo de gênero, que é o nosso objeto de análise. Por fim, realizaremos um diagnóstico da propaganda da empresa Duloren, que circulou na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2012. Almejamos, com esse estudo, mostrar a leitura do texto publicitário, a partir dos conceitos e discussões propostas no decorrer do desenvolvimento desse artigo. 2. Desenvolvimento 2.1 O processo de leitura na construção do sentido, significação e interpretação de mundo Diversos estudos linguísticos vêm comprovando a importância de se entender, efetivamente, o processo de leitura assim como os seus impactos, tanto no aprendizado como no modo de significação e interpretação do mundo pelos leitores. Corrêa (2005) relata que, por muito tempo, a leitura foi considerada como a ação de decodificar as palavras, na qual se convertiam apenas letras em sons. Segundo a autora, o real ato de ler é um processo muito mais amplo, em que há a atribuição de sentido ao texto, no qual o leitor, a partir de seus conhecimentos prévios interage com o texto, estabelecendo significado. Corroborando com essa ideia, os autores Mari; Mendes (2005) afirmam que a leitura é um método complexo, que exige o desenvolvimento de vários conhecimentos: o conhecimento linguístico (dimensão gramatical e lexical), o conhecimento de mundo e a interação leitor-texto. A partir destas afirmações, compreendemos que o ato de ler não deve ser concebido apenas como uma técnica, mas como um processo de formação e estabelecimento de sentidos entre o leitor e o texto, se distanciando do conceito de leitura linear, fragmentada e restrita ao conteúdo do texto. “Para ler necessitamos, 106 simultaneamente, manejar com destreza as habilidades de decodificação e aportar aos textos nossos objetivos, ideias e experiências prévias”(SOLÉ, 1998, p.23). Nesse viés, a decodificação de símbolos no texto constitui apenas um dos métodos necessários para a leitura, mas não um todo. Ao discutirem sobre leitura, as autoras Coscarelli e Novais apontam que: cada ato de leitura é carregado de atos particulares, pois cada leitor traz para sua leitura uma situação diferente, interesses diferentes, assim como tem um olhar diferenciado para o texto e tudo isso vai gerar um processamento diferenciado do texto. O processamento como um todo vai fazer emergir sentidos diferentes(COSCARELLI; NOVAIS, 2010, p. 38). Desse modo, a multiplicidade de sentidos atribuídos a um texto é plausível e advém, justamente, dos diferentes tipos de leitores/receptores e de suas relações estabelecidas com ele. É no processo de leitura que o homem estabelece vínculos entre o texto e a realidade, além de interpretar e atribuir sentido ao mundo. Neste viés, a leitura é concebida como um caminho para o desenvolvimento da criticidade, da reflexão e da autonomia, tendo em vista que, o leitor não deve se limitar à significação superficial/mínima estabelecida pelos itens que compõem o texto. Portanto, neste processo o leitor deve ter espaço para atribuir sentido ao texto, para que possa realizar uma leitura produtiva. Entretanto, ressaltamos que existem restrições relacionadas à interpretação. Os autores Mari; Mendes (2005) em “Processos de Leitura: fator textual” discutem que o próprio funcionamento da linguagem, as regras que a regem, assim como as estruturas/os gêneros textuais, estabelecem restrições na compreensão dos textos e na atribuição de sentido. De acordo com eles: pensamos [..] que o reconhecimento de limites seja válido para quaisquer atividades que desempenhamos e não apenas as de reconhecimento de sentido de um texto. Existem limites que são dados pelo meio- pela textualização- , existem limites do organismo –aqueles que cada um de nós reconhecemos- que vão atuar nesse meio” (MARI; MENDES, 2005, p. 159). A partir do exposto acima, corroboramos com a ideia de que “para compreender o ato da leitura temos que considerar então (a) o papel do leitor, (b) o papel do texto, (c) e o processo de interação entre o leitor e o texto” (LEFFA, 1996, p.17). 2.2 O processo de leitura sob a ótica da Teoria Semântica Por meio da concepção de leitura discorrida na seção anterior, propomos abordar a seguinte questão: de que forma os pressupostos da Teoria Semântica ajudam a elucidar, ainda mais, o processo de leitura? Como ponto de partida para essa discussão, selecionamos os estudos teóricos de autores como Frege (1978) e Eco (1998). Frege (1978) discute, dentro da filosofia da linguagem, o conceito de referência. Para tal, esse autor demonstra que relacionado ao sinal56 tem-se três dimensões: a representação, o sentido e a referência: 56 O termo sinal refere-se, segundo o autor, a nome, combinação de palavras, letra. 107 A referência de um nome próprio é o próprio objeto que por seu intermédio designamos; a representação que dele temos é inteiramente subjetiva, entre uma e outra está o sentido, que, na verdade, não é tão subjetivo quanto à representação, mas que também não é próprio do objeto (FREGE 1978, p. 65, grifo nosso). Ainda, no decorrer de seu estudo, Frege (1978) apresenta que sentidos diferentes podem ser atribuídos a uma única referência. O filósofo ilustra essa questão defendendo que “a referência de “Estrela da tarde” e “Estrela da manhã” seria mesma, mas não o sentido” (FREGE 1978, p. 62). O autor Machado (2012), ao discorrer sobre essa obra, afirma que, segundo o filósofo é o sentido que define a referência. Consideramos que, especialmente, esse conceito de referência, discutido por Frege (1978), traz importantes contribuições para o entendimento do processo de leitura, para atribuição de sentido ao texto, se pensarmos na relação entre o texto e o(s) seu(s) referente(s). Sabemos que o autor discute esse conceito no campo da filosofia, a partir de um ponto de vista lógico, e, portanto, sem se ater a especificidades da questão para a interpretação textual. Entretanto, a proposta dessa pesquisa é pensarmos esse conceito dentro do âmbito da Linguística, a partir dos estudos semânticos. Para tal, realizaremos uma extensão do conceito de referência para referenciação, com o objetivo de proporcionarmos um maior alcance para essa reflexão. Essa extensão se justifica pelo fato de estarmos discutindo sobre questões relativas à interpretação textual, por meio de uma concepção de leitura abrangente. No que tange ao processo de leitura, a referenciação é um ponto relevante a ser discutido, uma vez que segundo os autores Mari e Mendes (2005) para qualquer texto é possível formular os seguintes questionamentos: (a) o que esse texto significa no que refere-se aos signos nele dispostos? (b) o que esse texto refere, no tocante a fatos de uma realidade que pode recobrir? Para os autores, qualquer texto possui uma estrutura de significados elaborada a partir da correlação dos signos nele dispostos (padrão mínimo de significação), sendo que, essa significação opera como condição primeira para a referenciação. A partir do exposto, fica clara a importância da referenciação (texto-realidade) na leitura. Já Umberto Eco em ‘Tipos Cognitivos e Conteúdo Nuclear’ discute a percepção no processo de significação: qualquer fenômeno, para poder ser entendido como signo de algo mais, e de um certo ponto de vista, deve ser antes de mais nada percebido [..] quando a tradição fenomenológica fala de “significado perceptivo” compreende algo que, em termos de direito, precede a constituição do significado como conteúdo de uma expressão (ECO, 1998, p.111). Nesse texto, ele trata a percepção como um antecedente de uma inferência e da formação de um juízo perceptivo. Nesse viés, entendemos que a percepção seria uma espécie de estágio inicial para a significação. Para retratar este fenômeno, o autor discute, dentre vários conceitos, o de Tipo Cognitivo (doravante, TC). Segundo o filósofo, “TC é aquele algo que consente o reconhecimento [..] é aquilo que nos permite unificar a multiplicidade da intuição” (ECO, 1998, p.115-116). O autor explica que diante de um objeto desconhecido, elabora-se o TC (esquema) do mesmo. Conforme evidenciado em seu texto, é possível perceber o objeto, realizar inferências com aquilo que já se conhece e elaborar o TC desse. É esse TC 108 que permite, inclusive, incluir o objeto em questão em algum domínio e conceito. Para Eco (1998) é o reconhecimento que conduz o leitor a falar em “tipo”. A elaboração desse TC conduz a uma organização da percepção primária do objeto. Tendo em vista que para retratar a significação, o autor abarca a percepção, relacionaremos esse fenômeno ao processo de atribuição de sentido ao texto. Dentro do processo de leitura, pensaremos nesse estágio primário da percepção, assim como na formação posterior de um juízo perceptivo e de inferências. As autoras Ferreira e Dias (2004) em “A leitura, a produção de sentidos e o processo inferencial” defendem, justamente, a importância das inferências na construção do sentido do texto por parte do leitor. Conforme, segue: elas [inferências] possibilitam a construção de novos conhecimentos a partir de dados previamente existentes na memória do interlocutor, os quais são ativados e relacionados às informações veiculadas pelo texto. Esse processo favorece a mudança e a transformação do leitor, que por sua vez, modifica o texto (FERREIRA; DIAS, 2004, p. 439). Após essa discussão teórica, analisaremos de que forma esses fenômenos discutidos (referenciação, percepção e inferências) podem ser reconhecidos na leitura de um texto publicitário na perspectiva da atribuição do sentido. Para tanto, na próxima seção, faremos uma breve discussão acerca das características desse tipo de texto, seguida por uma análise mais aprofundada da propaganda escolhida como corpus deste estudo. 2.3 A leitura do texto publicitário Uma vez que realizaremos a análise de uma propaganda, torna-se relevante, mencionarmos, ainda que de forma breve, aspectos e características que permeiam o texto publicitário e que diretamente influenciam na sua leitura. Segundo Pinto (2011), com as facilidades propiciadas pelo avanço das tecnologias, recebemos um grande número de informações transmitidas por diferentes meios de comunicação, que empregam diversas linguagens no processamento do texto. A partir disso, de acordo com a autora, precisamos conferir sentido a textos compostos por diferentes linguagens, como: palavras, imagens, cores, gestos, entres outros, que se relacionam na construção do sentido do texto. É neste cenário que se apresenta a propaganda. Esse gênero textual vale-se da linguagem verbal e da não-verbal para sua produção. Sabemos que o texto publicitário circula nos principais meios de comunicação como revistas, televisão, rádio, jornal, outdoor, internet, entre outros, e é produzido com o escopo principal de criar no leitor o desejo, a vontade de adquirir o que está sendo anunciado ou, até mesmo, provocar uma mudança de comportamento. Para isso, utiliza-se da linguagem verbal, por meio da qual se constrói estruturas polissêmicas, argumentos de autoridade, adjetivações, como também, da linguagem não-verbal, com uso e destaque de imagens, símbolos, cores e sons. Sobre esse assunto, a autora Pinto(2011) afirma que a publicidade estrutura seus textos, de preferência, por meio de imagens, sons e de palavras, sendo que entre esses circulam sentidos determinados. É importante esclarecermos que a junção dessas diferentes linguagens, em um só texto, é denominada pela literatura de multimodalidade: a multimodalidade é entendida, em termos gerais, como a copresença de vários modos de linguagem, sendo que os modos interagem na construção dos significados da comunicação social. O 109 que é importante nessa visão de uso de linguagens é que os modos funcionam em conjunto, sendo que cada modo contribui de acordo com a sua capacidade de fazer significados. (HEMAIS, [2010?], p.1). Dessa forma, entendemos que a linguagem verbal e não-verbal se relacionam na construção de sentido do texto e que os diferentes modos de linguagem influenciam diretamente na sua compreensão. Diante dessa realidade, a leitura crítica por parte dos leitores assume um papel importante, exigindo que os sujeitos desenvolvam novas formas de olhar para os textos. Portanto, torna-se ainda mais evidente que a leitura não envolve apenas a decodificação de frases dentro de um texto. Diante do contexto tecnológico em que vivemos, é necessário ir além da linguagem verbal. Neste viés, “quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística, e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares” (MARCUSCHI, 2008, p.154). 2.4 Análise da peça publicitária O corpus de análise desse estudo é composto por uma peça publicitária (em anexo) da empresa de lingerie Duloren, divulgada nos principais veículos impressos da cidade do Rio de Janeiro, em março de 2012. Conforme já mencionado nesse artigo, reforçamos que esta análise será baseada no conceito de referenciação, e, nos aspectos relativos à percepção e à inferência. Também procuramos enfocar e apontar questões relacionadas aos diferentes recursos que constituem as propagandas, seja na sua materialidade linguística (multimodalidade) ou nos aspectos discursivos envolvidos, ressaltando as condições de produção e de circulação. Iniciando nosso diagnóstico, observamos que, em um primeiro plano, a peça publicitária apresenta a seguinte estrutura: a imagem de uma moradora, trabalhadora da Favela da Rocinha (a publicidade faz referência à profissão de depiladora na peça publicitária), que está vestida apenas com as lingeries Duloren. Na cena enunciativa, a moça situa-se em uma laje à frente de um rapaz, caracterizado como policial do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), que se encontra fardado, desprotegido (sem o colete a prova de balas) e desacordado. A mulher tem em sua mão o quepe do soldado, objeto em que consta o distintivo do militar. A propaganda é composta pelo seguinte slogan: “Pacificar foi fácil, quero ver dominar”. Como plano de fundo tem-se o cenário da favela Rocinha, considerada a maior do Rio de Janeiro e uma das primeiras comunidades a receber a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na capital carioca. Também, verifica-se a presença da logomarca da empresa, assinando e certificando a peça, seguida do seguinte slogan institucional: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz”. Consideramos que toda essa descrição realizada acima configura-se como um momento inicial da significação, caracterizando o processo de percepção desse objeto publicitário. Conforme Mari; Mendes (2005), todo texto deve seguir determinadas regras para a construção do sentido, sejam elas referentes à língua, sejam relacionadas aos padrões narrativos (tipos e gêneros textuais). Segundo esses autores, a percepção demanda o domínio dos preceitos de textualidade que se concretizam em um texto. Desse modo, identificamos na estrutura da propaganda os seguintes fatos: a presença de slogans, da logomarca, do jogo na peça publicitária, especialmente, com a linguagem não-verbal (neste caso a imagem) Tudo isso configura-se como uma percepção inicial desse texto. Para tal, o 110 leitor precisa conhecer um conjunto de regras/preceitos que regem a construção desse gênero textual. Outro artifício relevante utilizado para a construção de sentido dessa peça publicitária é a referenciação, permitindo identificar a que esse texto remete e/ou recobre, em termos de realidade, conforme explicita os autores Mari; Mendes (2005). Neste viés, consideramos que, por meio da propaganda de lingerie, a empresa Duloren faz referência e ironiza o processo de pacificação das comunidades do Rio de Janeiro, que receberam a UPP em 2011. Para tanto, utilizase de objetos de referência na construção/produção de sentidos com a intenção de atingir o seu objetivo junto ao público alvo. Neste caso, a empresa parece ter a intenção de ir além do interesse comercial de vendas do produto, realizando uma crítica ao processo de pacificação na favela da Rocinha. Perante este cenário, identificamos três objetos de referência para construção de sentido, sendo eles: a figura da “mulher”, do“policial” e do “cenário”, onde a foto foi produzida. No que se refere à mulher, ressaltamos que a produção de sentido está no fato de ela significar no anúncio muito mais do que um símbolo sexual ou em representar a questão sexista. No contexto apresentado, a moradora simboliza tanto as minorias como a parte oprimida das comunidades, entre elas o público feminino, os cidadãos, os trabalhadores e os negros. Já o policial personifica o poder do estado, da lei e da autoridade, sendo considerado como um símbolo da opressão e da coerção. Enquanto o cenário é identificado na cena enunciativa por uma residência típica de aglomerados, sendo caracterizado na publicidade pela laje de uma moradia no alto da comunidade. Na foto, é possível reconhecer a presença da população da favela, representada na cena pela moradora que está de lingerie e quepe na mão, e da autoridade policial, na figura do modelo fardado e desacordado. A partir desses sentidos atribuídos à mulher, ao policial e ao cenário, elencamos dois objetos de referenciação: o processo de Pacificação e o de Dominação. O primeiro consiste na presença da polícia nas comunidades, com a intenção de coibir o crime e restabelecer a ordem e a segurança, representando o Poder do Estado versus Comunidade. Ao passo que o segundo pode ser caracterizado pelo controle das comunidades, que na prática é realizado pelo tráfico de drogas, através do domínio das facções criminosas nas comunidades cariocas. Diante disso, constatamos que existe um jogo de comparações entre o processo de pacificação relatado acima, que efetivamente ocorreu, e a dominação do soldado pela moradora na cena relatada, descaracterizando assim, o poder do BOPE. Todo esse jogo realiza-se já na composição da peça publicitária, por meio da escolha dos itens lexicais (pacificar versus dominar) e do uso da linguagem nãoverbal, através da imagem e montagem da cena fotográfica. Nela, o soldado encontra-se acuado, em uma situação de dominação, derrota e de desvantagem perante a mulher. No momento em que ele aparece desacordado, está totalmente sob o domínio da moradora. Este fato é reforçado pelo slogan da Duloren que diz: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz”, mostrando uma situação atípica, em que o comum seria o policial dominar a moradora e não o contrário. Portanto, neste momento, ao visualizar a cena, parece-nos que a propaganda faz uma grande crítica e ironiza também outros aspectos sociais importantes dentro da realidade das comunidades do Rio de Janeiro: não só à questão sexista do gênero como também à violência, à condução do processo de pacificação e à relação conflituosa entre a polícia, a população e o crime organizado do tráfico de drogas. Conforme Soulages, a publicidade tem esse poder de envolver e persuadir os 111 indivíduos, que assim como outras produções de cultura de massa “apresenta uma série de enunciados críticos ou cínicos em relação a certos valores sociais, ainda que frequentemente originados de um posicionamento lúdico” (SOULAGES, 2014, p.256). Desse modo, entendemos que a leitura requer cada vez mais uma maturidade e um olhar ainda mais apurado do texto por parte do leitor. Diante do exposto acima, caracterizamos a construção de todo esse sentido como um processo inferencial. Observamos que para realizar a leitura desse texto, é importante associarmos os elementos textuais (verbais ou não) aos conhecimentos prévios dos indivíduos, estabelecendo assim, as pontes/inferências, que farão um diálogo com outros textos e contextos sociais, como o acontecimento da pacificação nas comunidades. Provavelmente, um cidadão de outro estado, que não esteja envolvido no contexto das pacificações ou não detenha informações sobre o assunto, certamente, terá dificuldades para a realização da inferência proposta nessa análise. “É lançando mão desse conhecimento (linguístico e de mundo) que o leitor poderá garantir uma compreensão para além dos elementos superficiais do texto, negociando com o autor os significados plausíveis e permitidos” (FERREIRA; DIAS, 2004, p. 441). Por fim, ao apresentar toda essa análise, iluminada por conceitos da Teoria Semântica, podemos certificar a importância do processo de leitura na vida dos indivíduos, utilizando de elementos como a percepção, a referenciação e a inferência para produzirem sentidos ao texto e aumentarem o conhecimento sobre o mundo. È necessário salientar ainda, que mesmo que os sujeitos apreendam um mesmo sentido para esse texto, cada leitor criará uma imagem, uma representação dessa peça publicitária, de acordo com as suas vivências, experiências, concepções e até mesmo interesses. 3. Referências COSCARELLI, C.V; NOVAIS, A.E. Leitura: um processo cada vez mais complexo. Letras de Hoje. Porto Alegre, v.45, n.3, p.35-42, jul./set. 2010. CORRÊA, J.P. O que é leitura? O que fazemos quando lemos? 2005. 32f. Monografia (Pós Graduação em Língua Portuguesa) – Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2005. ECO, U. Tipos cognitivos e conteúdo nuclear. In: Kant e o ornitorrinco. 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Via Litterae. Anápolis, v.4, n.2, p.249-268.jul./dez.2012. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. PINTO, C.S. Gênero multimodal e leitura: mobilizando novas estratégias de letramento. Natal, RN. 2011. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. SOULAGES, J. C. O Gênero da Publicidade ou o culto das aparências. Trad. Renato de Mello e Wander Emediato. In: EMEDIATO, Wander; LARA, Glaúcia Muniz Proença (Orgs.). Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014, v. 4, p.255-266. 113 ANEXO – PEÇA PUBLICITÁRIA Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/03/campanha-polemicada-duloren-e-retirada-de-circulacao-pelo-conar.htm>. Acesso em: 04/10/2016. 114 REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO-ALUNO ACERCA DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA AMANDA MARIA BICUDO DE SOUZA Universidade do Vale do Sapucaí – UNIVÁS amandamarya@yahoo.com.br Resumo. Este estudo objetiva identificar e compreender, por meio de representações imaginárias, os saberes do grupo de discentes de Língua Inglesa do Curso de Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS), oferecido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) – Câmpus Campos do Jordão (CJO), no que se refere às concepções que esses alunos têm com relação ao processo de ensino e aprendizagem da língua estrangeira. O referencial teórico da presente pesquisa se ancora na Análise do Discurso de Linha Francesa (ADF) abordando, mais especificamente, os conceitos de representações imaginárias, língua materna, língua estrangeira, sujeito e formações discursivas. Para atender aos objetivos propostos na presente análise foi feita a aplicação de questionários escritos aos discentes do IFSP-CJO, dos quais selecionamos alguns depoimentos para análise das representações. Palavras-chave: discentes, representações imaginárias, língua estrangeira Abstract. This study aims to identify and understand, through imaginary representations, the knowledge of the group of students of English Language of the Course of Technology in Analysis and Development of Systems (ADS), offered by the Federal Institute of Education, Science and Technology of São Paulo ( IFSP) Campus Campos do Jordão (CJO), with regard to the conceptions that these students have with regard to the process of teaching and learning the foreign language. The theoretical reference of the present research is anchored in the Analysis of the French Line Discourse (ADF), addressing, more specifically, the concepts of imaginary representations, mother tongue, foreign language, subject and discursive formations. In order to meet the objectives proposed in the present analysis, written questionnaires were applied to the students of the IFSP- from which we selected some testimonials to analyze the representations. Key-words: students, imaginary representations, foreign language 1. Fundamentação teórica Segundo Orlandi (2009), a relação entre língua, discurso e ideologia é a base da ADF. Sendo o discurso a materialidade da ideologia e a língua a materialidade do discurso, pode-se concluir que o discurso é, de fato, o objeto de estudo dessa perspectiva, pois nele a relação entre língua e ideologia pode ser observada, visando compreender o modo como a língua produz sentido(s) para o sujeito. No que se refere ao sujeito, Orlandi (2009) apresenta o sujeito de linguagem como sendo um sujeito descentrado, afetado pela língua e pela história, embora não tenha controle da influência de ambas em seu dizer. O sujeito da ADF é “materialmente dividido desde a sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para se produzir sentidos, ele é afetado por elas” (ORLANDI, 2009, p. 49). O sujeito que produz discurso, embora 115 acredite ser o produtor legítimo de seu discurso e se veja capaz de chegar a um sentido único e verdadeiro, não o faz, já que essa é uma ilusão necessária para enunciar. Sendo o discurso e o sujeito constituídos pela ideologia, podemos afirmar que ela também é a responsável por divulgar e construir as representações imaginárias, que norteiam o modo como agimos no mundo. De acordo com Orlandi (2009), os mecanismos de funcionamento da linguagem se amparam nas representações imaginárias. Assim, não são os sujeitos nem os lugares empíricos que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de projeções. Determinadas pelo imaginário discursivo que se concretizam as práticas escolares: o aluno enuncia, imaginando o que o professor espera dele, enquanto o professor enuncia imaginando o que o aluno espera que ele fale, a partir do lugar social que ocupa, e assim por diante. 1.2 O papel do professor de Inglês Segundo Brown (2007), teórico da perspectiva cognitivista, é tarefa dos professores fazer com que a sala de aula seja um ambiente no qual os alunos se sintam confortáveis e motivados para falar em Língua Estrangeira, superando sua ansiedade e seu medo de errar. O autor (Brown, 2007) afirma que um bom professor de Inglês deve possuir conhecimento técnico, habilidades pedagógicas, habilidades interpessoais e qualidades pessoais. Para Harmer (2007), uma das mais importantes tarefas do professor é organizar os alunos para que possam realizar diferentes atividades. Isso envolve planejar as atividades a serem propostas, fornecer informações claras aos alunos, orientá-los na realização das atividades, propor trabalhos individuais e em grupos e prover “feedback” ao final das atividades. Além disso, é importante que o professor busque interagir com seus alunos de maneira efetiva. Para que essa interação seja bem sucedida o professor deverá estar atento a quatro fatores: deve reconhecer seus alunos, ouvi-los, respeitá-los e tratar a todos igualmente. O professor precisa despertar a confiança dos alunos, sendo reconhecido como um bom líder e um profissional competente. Harmer (2007) e Brown (2007) traçam o perfil do professor Ideal, aquele que, como citado por Brown (2007), possui conhecimento técnico, habilidades pedagógicas, habilidades interpessoais e qualidades pessoais. Além disso, domina estratégias de ensino, desempenha diferentes funções, motiva e diminui a ansiedade dos alunos. Em suma, é um profissional perfeito e completo. No entanto, como percebemos na prática docente, esse modelo Ideal de aprendizagem e de professor costuma falhar, porque ainda que o professor tente ser coerente com tudo o que foi proposto pela teoria cognitivista, existe uma grande lacuna entre o que ser quer fazer e o que de fato se consegue fazer. Trata-se do equívoco que é sempre e inevitavelmente constitutivo do fazer-dizer, como postulado pela perspectiva discursiva. Para Cavallari (2014) tanto a incompletude quanto a falta são necessárias no processo de construção do saber, permitindo que o mesmo seja reinventado durante o processo de ensino-aprendizagem. De acordo com Cavallari (2014, p.2) “se não há falta, não há desejo”, a falta impulsiona o desejo de saber. Aqui se encontra uma diferença radical em relação à falta no processo de ensino-aprendizagem da maioria dos métodos e abordagens de ensino atuais que orientam os docentes. Como vimos na visão da perspectiva 116 cognitivista, o professor deve dar aos alunos todas as respostas de que ele precisa, deve ter um conhecimento pronto e atualizado para ser transmitido, visando atender a todas as expectativas dos alunos, evitando a falta. Não pretendemos, com nossa análise, desqualificar as contribuições trazidas pelos teóricos da perspectiva cognitivista. No entanto, ancorados na AD, vemos o processo de aquisição de uma língua estrangeira (LE) como algo muito mais complexo e até mesmo contraditório do que propõe a perspectiva cognitivista. Guilherme de Castro (2004, p.197) explica que a complexidade desse processo se dá, principalmente, pela “contradição inevitável entre o impulso em direção ao novo e o receio do exílio dessas discursividades fundadoras enquanto constitutivas de sua estruturação como sujeito”. Para a autora, o sujeito aprende significativamente uma segunda língua quando se abre para a experiência do próprio estranhamento e quando se inscreve em formações discursivas da segunda língua. De acordo com a referida autora, a aquisição de línguas requer/solicita a instauração de uma relação do sujeito com o simbólico. “Essa relação é estruturante do sujeito consigo mesmo, com os outros e com o conhecimento” (GUILHERME DE CASTRO, 2004, p.199). Sendo assim, a aquisição de uma segunda língua estará sempre perpassada pela relação já instaurada entre o sujeito e a língua materna. Payer (2007), ao abordar os conceitos de língua nacional e língua materna, aponta para a necessidade de se diferenciar a dimensão da língua nacional e da língua materna na linguagem, considerando-se as condições sócio-históricas e os efeitos de sentido da língua para os sujeitos, nas diversas condições de produção em que eles se inscrevem. Estendendo sua abordagem para o ensino de LE, podemos afirmar que assim como língua materna (LM) e língua nacional (LN) não coincidem, LM e LE também constituem-se como memórias discursivas distintas. Guilherme de Castro (2004) postula que aprender uma segunda língua significa, de certa maneira, tornar-se um outro, e daí nascem as dificuldades apresentadas pelos alunos, devido ao fato de terem de enfrentar, através de rupturas e deslocamentos, um espaço de diferença. Revuz (2010) destaca que, tradicionalmente, as abordagens de ensino de língua estrangeira não levam em consideração o confronto estabelecido em língua materna e língua estrangeira e tendem a privilegiar o ensino da habilidade oral em detrimento da habilidade escrita, estando aquele em relação de primazia a este. Muitos alunos, quando começam a estudar uma língua estrangeira, se colocam em uma posição de não saber absoluto, retornando ao estágio de bebê que ainda não fala, (re) fazendo a experiência da importância de se fazer compreender. “O sentimento de regressão associado a essa situação é reforçado quando a aprendizagem privilegia no início, como acontece, frequentemente, um trabalho exclusivamente oral focalizando sons e ritmos”. (REVUZ 2010). Outro aspecto importante apontado por Revuz (2010) é o fato de que nem todo mundo está pronto para a experiência de aprender uma língua estrangeira. Algumas pessoas evitam adentrar nesse processo, porque têm medo; outras colocarão em uso o que a autora chamada de estratégia da peneira: aprendem, mas não assimilam quase nada; outras, fazendo uso da estratégia do papagaio, serão meras reprodutoras, repetindo estruturas sem autonomia. Há ainda aquelas pessoas que adotarão a estratégia do caos, tendo o imaginário da língua estrangeira povoado por um acúmulo de termos, sem organização gramatical ou sintática; outros procurarão memorizar regras gramaticais, reduzindo a língua a procedimentos lógicos e buscando equivalência de termos e expressões entre língua estrangeira e língua materna. Por fim, há aqueles que terão o desejo de anular completamente a língua materna, a primeira língua, para adentrar no 117 universo da língua do outro. Revuz (2010) afirma que o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira tem uma significação diferente para cada pessoa, mas está sempre ligado à ruptura e ao exílio, numa tensão dolorosa entre dois universos. 2. Análise dos registros discursivos Ao analisar as respostas fornecidas ao questionário de pesquisa, observamos, em um primeiro movimento de análise, algumas regularidades discursivas. Os eixos de análise foram propostos, a partir do olhar da pesquisadoraanalista, sem perder de vista os objetivos da análise. Os eixos propostos são: 2.1 O sujeito-aluno e sua representação de uma boa aula de Inglês A pergunta do questionário escrito que fomentou as respostas abaixo foi: Para você, o que é ter uma boa aula de Inglês? A1: É uma aula onde todos conseguem aprender e se divertir ao mesmo tempo com atividades de listening e speaking para aprimorar o conhecimento da língua. A2: É uma aula dinâmica,onde o aluno interaja junto a matéria para desenvolver o estudo. A3: Uma aula a qual se estimula a fala da língua, afim de se conseguir produzir diálogos, Tão quanto das estratégias de escrita e leitura, consequentemente se abordará o significado de várias palavras, assim atualizando o vocabulário. A4: Para mim uma boa aula de inglês é ter bastante conversação, pois no curso usa-se muito a língua inglesa. A5: Uma aula onde os alunos interajam com o professor e tenham aula de escrita, escuta e fala em Inglês. Retomando os dispositivos teórico-analíticos acima citados, vemos que os dizeres de A1, A2, A3, A4 e A5 se inscrevem na mesma formação discursiva que, como citado por Revuz (2010), colocam o ensino da habilidade oral como prioritário em detrimento das demais habilidades. O imaginário dos sujeitos-alunos está amparado na abordagem comunicativa de ensino de língua inglesa (LI) que propõe o ensino e aprendizagem do idioma dentro de um contexto de fala e escuta, sendo estas as habilidades primordiais para a aquisição da LE, aos moldes da aquisição da língua materna, como apontado por Revuz (2010). Nesse sentido, ainda que esse não seja o objetivo da disciplina, como é o caso da ementa de Inglês Técnico do curso de ADS, contexto no qual os sujeitos-alunos estão inseridos, os alunos esperam que as aulas de idiomas reproduzam os mesmos moldes de aulas de curso de idiomas, por exemplo. Observem que A1 cita que na aula de LI o aluno deve aprender, mas também se divertir, o que é mais uma das características das aulas da abordagem comunicativa. A2 também aponta a importância do dinamismo das aulas e acrescenta a necessidade do aluno interagir com o conteúdo que está aprendendo. A5 estende essa interação para a relação professor-aluno e acrescenta mais uma habilidade que deve ser trabalhada nas aulas de LI: a escrita. Apenas A3 cita a importância da leitura e da construção do vocabulário além da proposta de trabalho com a habilidade oral, de compreensão auditiva e de escrita. A ementa da disciplina de Inglês Técnico prevê o trabalho prioritário com a habilidade de leitura, pois essa é a habilidade que os alunos de ADS mais precisam 118 dominar no contexto profissional de atuação. No entanto, os sujeitos-alunos não parecem interessados nesse desenvolvimento. Estão mais focados nos desejos (WANTS), como citado por Hutchinson and Waters (2010), do que nas necessidades (NEEDS). Acreditamos, porém, que essa opção por uma habilidade e não outra não se dá de maneira consciente. O sujeito-aluno não controla esses desejos, mas sim se insere em uma formação discursiva que traz a tona o interdiscurso. O que significa dizer que eles reproduzem outros dizeres, se ancoram em uma memória discursiva de uma aula ideal de LI, baseados em pressupostos da perspectiva cognitivista e no contexto sócio-histórico de ensino/aprendizagem de inglês contemporâneo que enfatiza que todos devem ser capazes de se comunicar em inglês para terem acesso ao mundo internacional do trabalho, do turismo, da academia. O sujeito-aluno enuncia, acreditando que o que diz tem origem em seu dizer, mas se esquece de que é afetado pela língua e pela ideologia. Considerando, ainda, as considerações trazidas por Celada (2011) com relação ao processo de ensino/aprendizagem de espanhol, podemos dizer que a memória da língua portuguesa inscrito no funcionamento do fio discursivo da LI produz o efeito de suscitar o imaginário de língua da comunicação, língua oral por meio da qual o sujeito compreende e se faz compreender. A1, A2, A4 e A5 se inscrevem nessa formação discursiva ocupando a posição-sujeito de oralidade. A3 e A5 incluem a necessidade de trabalho com a habilidade escrita, ocupando a posição-sujeito dividida entre escrita-oralidade, conforme designado por Celada (2011). 2.2 O sujeito-aluno e sua representação de um bom professor de Inglês A segunda pergunta do questionário destinado aos alunos pesquisados foi: Qual seria o perfil de um bom professor de Inglês? Passemos às respostas dos sujeitos participantes da pesquisa para, em seguida, fazermos nossas considerações: A1: O tipo que fala bastante assim como todo prof de letras. A2: Um profissional que consiga “quebrar o gelo” entre o aluno e a matéria estudada. A3: Em minha opinião, muito amigável e bem didático. Didático, porque é necessário apresentar os conceitos da língua de uma forma básica e clara para não criar confusão com o inglês. E amigável , pois isso irá incentivar muito mais a participação dos alunos. A4: Um professor dinâmico, atualizado, simpático A5: Comunicativo e que faça a turma participar. As respostas de A1, A2, A3, A4 e A5 estão amparadas na perspectiva cognitivista de ensino que orienta, de modo geral, o processo de ensinoaprendizagem de línguas na atualidade. Como citamos no eixo 1, elas remetem a representação imaginária de um sujeito-professor que na posição de professor de inglês deve ser comunicativo e dinâmico. Brown (2007) aponta que o professor de inglês deve tornar a sala de aula um ambiente no qual os alunos se sintam confortáveis e motivados para falar em língua estrangeira, superando sua ansiedade e seu medo de errar. Os dizeres de A2 e A5 vão encontro desse postulado de Brown (2007) e apontam o professor com responsável por motivar os alunos e fazêlos participar das aulas. Esse professor é o que Harmer (2007) intitula como tutor, 119 aquele que orienta e guia seus alunos. Além disso, é facilitador do processo de aprendizagem, responsável por atender a todas as necessidades e desejos dos alunos, sendo capaz de identificar o que eles necessitam sem que eles, necessariamente, tenham que verbaliza-las, buscando sanar suas dificuldades através de propostas variadas, para que nada lhes falte. A3 e A4 citam, ainda, características pessoas esperadas do professor: ele deve ser amigável e simpático. Conforme destacado por Brown (2007) o professor deve ter, além das habilidades pedagógicas, conhecimento técnico, habilidades interpessoais e qualidades pessoais. Em suma, deve ser um professor perfeito o que, de acordo com a perspectiva discursiva, não é possível, pois somos seres incompletos, fadados à errância simbólica. Outro aspecto a destacar é o dizer de A1 que produz um efeito de sentido generalizado e estereotipado do profissional de letras. A afirmação “o tipo que fala bastante assim como todo prof de letras” se inscreve em uma formação discursiva diferente daquela que retoma os conceitos da perspectiva cognitivista, conforme exposto acima. O dizer de A1 remete a uma memória discursiva popularizada, que posiciona o sujeito-professor formado em Letras em um grupo de pessoas falantes, porque são da área de humanas, porque ensinam línguas e ensinar línguas pressupõe falar muito, ao contrário das aulas de exatas, por exemplo. Nessa construção discursiva estereotipada se ancoram, também, as representações de professor de LI como comunicativo e dinâmico, como citado por A4 e A5. Percebe-se que as formulações dos sujeitos-alunos supracitados se mostram esvaziadas de sentidos, visto que eles não singularizam ou (re)significam o que estão dizendo, o que sugere que seus dizeres nada mais são do que a materialização de representações sócio-historicamente compartilhadas, ou seja, eles reproduzem discursos recorrentes na contemporaneidade e que ditam as práticas docentes que devem ser seguidas. 3. Considerações finais Tomando como base os pressupostos teóricos adotados nesta pesquisa e a análise dos registros discursivos, podemos afirmar todos os alunos entrevistados evocam o mesmo discurso acerca do ensino e do professor considerados como Ideal que, por sua vez, evocam as mesmas representações da aula de LI como ambiente dinâmico de aprendizagem oral e de escuta do idioma e do professor de LI como dinâmico e comunicativo, facilitador da aprendizagem e responsável por promover a interação entre os alunos. Tais representações estão ancoradas em pressupostos da abordagem comunicativa de ensino de LI, que norteiam o modo como o ensino da LE tem sido ensinado na atualidade. 6. Referências BROWN, H. Douglas. Teaching by principles: an interactive approach to language pedagogy. United States of America: Longman, 2007. CAVALLARI, Juliana Santana. Falta, desejo e (trans)formação do saber. In: Guavira Letras, n. 16, Jan/Jul 2014, p. 169 – 183. CELADA, Maria Teresa; PAYER, Maria Onice. Relação sujeito língua(s) – materna, nacional, estrangeira. In: As bordas da linguagem. Uberlândia: EDUFU, 2011. GUILHERME DE CASTO, M. F. F. O discurso midiático institucional para o ensino 120 de segundas línguas. In: Fernandes, C. A. e Santos, J. B. C. (Org). Análise do Discurso: unidade e dispersão. EntreMeios: Uberlândia, 2004, p.197 -209. HARMER, Jeremy. The practice of English Language Teaching. United States of America: Pearson Longman, 2007. HUTCHINSON, T. & WATERS, A. 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Central UFLA, s/n, prédio DEL/DCH - Aquenta Sol, Lavras - MG, 37200-000 Graduando em Letras Português/Inglês – Bolsista Cnpq/UFLA andersonvsmendes@hotmail.com Resumo. Este trabalho discute o modo como o livro didático (LD) aborda os conhecimentos sintáticos, mais especificamente os complementos verbais, a partir da análise de um livro destinado ao 8º ano do ensino fundamental. O objetivo desse trabalho é verificar como os conhecimentos sintáticos sobre os complementos verbais são explorados no livro didático “Projeto Teláris Português - 8º ano”. Na construção do quadro teórico, foram utilizados os trabalhos de Duarte (2007), Perini (2010), dentre outros. Palavras-Chave. Sintaxe. Complementos verbais. Ensino. Livro didático. Abstract. This work discusses the way in which the textbook (TB) approaches the syntactic knowledge, more specifically the verbal complements, starting from the analysis of a book focused on 8th grade of elementary school.. Hence, the objective of this work is to verify how the syntactic knowledge about verbal complements are explored in the textbook "Projeto Teláris Português – 8º ano." In the construction of the theoretical framework, the works by Duarte (2007), Perini (2010), among others, were used. Keywords: Syntax. Verbal complements. Teaching. textbook. 1. Introdução A questão do ensino de gramática na escola, sempre pautado nas gramáticas normativas, vem sendo discutido há décadas por diversos especialistas em linguística, que acreditam haver um enorme distanciamento entre a gramática normativa ensinada ao aluno, e a gramática realmente utilizada no contexto comunicativo. Este trabalho de pesquisa busca verificar como os conhecimentos sintáticos sobre os complementos verbais são explorados no livro didático “Projeto Teláris Português - 8º ano”. O tema central é o estudo dos complementos verbais, contrapondo os preceitos da gramática tradicional 57 com os estudos linguísticos sobre a sintaxe. Qual a importância dos estudos sintáticos para que o aprendiz possa desenvolver habilidades linguísticas necessárias à produção escrita? E por que 57 Segundo Azeredo (2015, p.197), a expressão gramática tradicional presente no discurso acadêmico tem sentidos diferentes quando esse discurso tem caráter historiográfico- descritivo, e quando tem por assunto a atividade pedagógica. No primeiro caso, ela diz respeito a um conjunto de conhecimentos sobre a estrutura e o uso das línguas. Já no segundo, a expressão gramática tradicional representa um conteúdo as ser aprendido nas escolas para o domínio e emprego das formas corretas da linguagem falada e escrita. 122 ainda se aprende a sintaxe nos moldes e regras da Gramática Tradicional? Essas são perguntas relevantes, pois exigem um olhar mais crítico e reflexivo acerca do modo como a gramática tradicional é enxergada em sala de aula, e por isso nortearão o presente trabalho. Compreende-se que esse estudo poderá contribuir para que os leitores possam entender melhor a sintaxe, e a perceber o quanto próxima ela está do cotidiano linguístico dos falantes. Parte-se, também, do entendimento segundo o qual as formas de conceituar e de classificar os termos da oração na Gramática tradicional não contribuem para o entendimento das relações sintáticas que se estabelecem entre esses termos e acabam por gerar controvérsias. Para o desenvolvimento deste artigo realizou-se uma pesquisa bibliográfica, com o intuito de analisar e verificar a importância que a sintaxe exerce na construção da estrutura gramatical de um texto. Foram utilizados pressupostos teóricos de diferentes estudiosos, tais como Duarte (2013), Perini (2007), Lima (2010), dentre outros, para apresentar os vários conceitos relativos ao conhecimento sintático da língua. Após essa pesquisa bibliográfica, foi realizada uma análise das propostas de ensino de sintaxe – mais especificamente a transitividade e complementos verbais encontradas na primeira edição do livro Didático (LD) “Projeto Teláris Português - 8º ano” das autoras Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi. A escolha deste livro didático se deu pelo fato de sua proposta parecer ser condizente com as exigidas pelo PCN de língua portuguesa no que diz respeito às habilidades de leitura e produção de textos, e à reflexão sobre aspectos linguísticos nos contextos de produção e circulação de gêneros textuais. Este trabalho está organizado em duas partes. Na primeira, apresenta-se o referencial teórico que norteia a pesquisa e, na segunda, apresentam-se as análises do livro didático selecionado. 2. Sintaxe e conhecimento sintático Os estudos sobre a linguagem humana consolidaram-se no século XX, quando a linguística tornou-se oficialmente uma ciência. Porém, de início, a sintaxe não atraiu significativamente os olhares dos linguistas da época, que se preocuparam mais com as pesquisas em fonologia e morfologia. A sintaxe só ganhou relevância e começou a ocupar um lugar de destaque nos estudos linguísticos a partir do momento em que foram desenvolvidas as ciências formais durante a década de 1960, quando os linguistas conseguiram aprofundar seus estudos em análises sintáticas, a partir dos estudos de Chomsky. Para Othero e Kenedy (2015, p. 7) “o auge dessa fase da sintaxe como locomotiva dentro da Linguística data da década de 1980 com a formulação do que ficou conhecido como Teoria de Princípios e Parâmetros.” Esse modelo teórico, desenvolvido pelo gerativista Noam Chomsky, colocou a sintaxe como o centro das outras áreas da linguística. Desde então, os linguistas passassem a ter outro olhar em relação ao conhecimento sintático das línguas, mesmo não concordando inteiramente com a teoria gerativista. O fato de o gerativismo ter avançado substancialmente nos estudos sobre sintaxe, não quer dizer que essa teoria seja a única que contribuiu para evolução dos estudos sintáticos atuais, mas, como afirmam Othero e Kenedy (2015, p.8) “O sucesso da pesquisa em sintaxe a partir dos anos 1960 levou inevitavelmente a vários debates acalorados e visões divergentes sobre a sobre a natureza do objeto de estudo da sintaxe.” 123 Atualmente, o termo sintaxe alarga-se para as diversas áreas do conhecimento linguístico, com inúmeras vertentes: Sintaxe Normativa tradicional, Sintaxe Gerativa, Sintaxe Funcional, Sintaxe Lexical, Sintaxe Descritiva, dentre outras. Isso prova que a Sintaxe é um campo da linguística com muito mais perguntas do que respostas, tendo, assim, muito ainda a ser explorado. Discutir o conhecimento sintático pode ser uma tarefa complexa, porém fundamental, pois, por meio da sintaxe, relações estruturais de sentido são estabelecidas, informações são avaliadas, significados podem ser inferidos, dentre outros. Dessa maneira, a sintaxe contribui para uma análise da função social da língua ao estabelecer relações que possibilitam a interação entre os falantes de uma comunidade linguística. A sintaxe estuda os processos de estruturação das sentenças, com o objetivo de explicar e descrever as regras para a formação dessas sentenças. Com isso, busca compreender a organização e o funcionamento das estruturas e dos diversos fenômenos gramaticais característicos em uma língua natural. Perini (2010) aponta que a estrutura de uma língua é muito mais complexa do que geralmente se imagina, e que muitas das noções utilizadas na descrição gramatical estão ainda mal definidas, e constituem assunto de discussões teóricas intensas e até tensas. Talvez o primeiro passo para se compreender a estruturação de uma determinada língua seja perceber que não existe um único modo de se estudar a sintaxe. Um sintaticista funcional, por exemplo, pode se opor à teoria gerativista, mas jamais irá descartá-la em seus estudos. Os estudos sintáticos atuais se desenvolvem baseados em várias outras “sintaxes”, o que proporciona aos linguistas muitos paradigmas para seus estudos e pesquisas. Nesse sentido esse trabalho propõe discutir as questões sintáticas relativas à estruturação dos complementos verbais, com base em alguns conceitos que serão apresentados nas sessões seguintes. 3.Estrutura argumental – os argumentos e os predicadores na organização da oração A gramática tradicional (GT) apresenta uma análise muito simples e desprovida de rigor conceitual em relação aos processos sintáticos que envolvem os termos da oração e, assim, acaba por dividi-los em: sujeito + verbo + objeto direto/indireto ou predicativo, por exemplo. Para Duarte (2007) uma das dificuldades enfrentadas pelos que buscam entender a estrutura da oração com base nas gramáticas tradicionais é a forma pela qual se distribuem os chamados termos da oração. A autora discute o grande erro de se dividir esses termos em “essenciais”, “integrantes” e “acessórios”, quando na verdade eles não devem ser divididos, mas sim integrados pelas relações gramaticais que estabelecem uns com os outros. Além disso, há o fato da GT, muitas vezes, apresentar, primeiro, uma análise que privilegia o sujeito (argumento externo), em vez de analisá-lo em relação ao predicador verbal, uma vez que a melhor maneira de se descrever a estrutura oracional é partindo de seu núcleo, que é o predicador, pois é ele quem projeta a estrutura argumental da oração. As orações apresentam três tipos de predicadores: o verbal (o núcleo é um verbo), o nominal (o núcleo é um adjetivo ou um substantivo), e o verbo nominal (predicador verbal e nominal simultaneamente), no entanto o presente artigo explora apenas as questões relativas aos predicadores verbais e seus complementos. A noção de argumento tem sua origem na lógica de que um constituinte central, o predicado, que não tem seu sentido completo, pede um determinado número de argumentos que lhe completem o sentido. 124 Muitas literaturas definem os argumentos como uma noção estritamente semântica ligada à noção de papéis temáticos 58, e os complementos e os adjuntos, como noções estritamente sintáticas, que envolvem a posição estrutural e a atribuição de casos. Percebe-se então que os argumentos são estabelecidos em uma estrutura semântico-lexical e são associados, na estrutura sintática, às posições de sujeito, de complementos e, também, de adjuntos. Sendo assim, um argumento não se restringe às posições de sujeito e de complemento, mas sobretudo às relações que se estabelecem estritamente na sintaxe e obedecem a posições e a funções estabelecidas pela estruturação sintática de uma determinada língua. Assim, os argumentos internos (ou complementos verbais) se classificam em função da presença ou ausência de uma preposição anteposta ao sintagma selecionado pelo verbo: os argumentos preposicionados e os não-preposicionados. Têm-se assim os objetos indiretos e os diretos das gramáticas tradicionais. A abordagem tradicional apresenta uma divisão simplificadora e imprecisa em virtude da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), instituída com vistas à didatizar o ensino da sintaxe normativa tradicional. Enquanto os complementos diretos fazem parte de uma classe relativamente homogênea, os complementos preposicionados formam uma classe heterogênea, que pode ser subdividida em, pelo menos, três grupos com características distintas. 4. A transitividade e os complementos verbais A GT apresenta que existem verbos que, por natureza, têm sentido completo, podendo por si mesmos constituir o predicado: são os verbos de predicação completa, por exemplo, verbos como pular, murchar, inchar etc. Existem outros verbos que precisam, para integrar o predicado, de outros termos (argumentos) são os verbos de predicação incompleta. Os de predicação completa denominam-se, tradicionalmente, como intransitivos, e os de predicação incompleta, como transitivos. Cunha e Cintra (2010) tratam a transitividade como não sendo algo inerente ao verbo, mas sim à sentença. Assim, os autores afirmam que não se pode afirmar que um verbo é transitivo direto ou intransitivo sem analisar o contexto sintático em que ele ocorre. Para Bechara (2010) a transitividade pode ter aplicações muito vagas, e quando isso acontece cabe ao léxico determiná-la. O autor conclui que a oposição entre transitivo e intransitivo não é absoluta, pertencendo mais ao léxico do que à gramática. Em entendimento oposto ao de Cunha e Cintra, Perini (2011) defende que é um equívoco tratar a transitividade como propriedade de seu contexto, e não do verbo. Para Perini, essa visão tem como consequência o esvaziamento da noção de transitividade como propriedade dos verbos e que se constitui como um fenômeno formal (sintático). A transitividade verbal envolve, então, três aspectos importantes: o sintático, o semântico e o contextual. O aspecto sintático se refere à estrutura formal da língua; o aspecto semântico se relaciona ao significado desejado para que o ouvinte depreenda a verdadeira intenção do falante; e o contextual sinaliza as 58 Papel temático é “a relação de significado que liga uma palavra que exprime ação, estado ou evento com as unidades que exprimem os participantes dessa ação, estado ou evento”. Veja: a-[ O gato] arranhou Toninho. b-[ Toninho] foi arranhado pelo gato. Nos dois exemplos, o gato é o agente, aquele que pratica a ação de arranhar. Mas somente em a o termo o gato é o sujeito da oração. (PERINI, 2006). 125 possibilidades de alguns verbos ocorrerem com ou sem complementos, indicando também a possibilidade de alguns verbos transitivos diretos ocorrerem complementados com um objeto direto ou com um complemento preposicionado. A tabela 1, abaixo, resume os tipos de complementos verbais e suas características. Tabela 1. Os tipos de complementos verbais e suas características Tipos Objeto direto Objeto indireto Complemento relativo Complemento circunstancial Complemento nulo Características É representado por um SN, desempenha o papel semântico de tema e pode ser substituído pelos pronomes: a, o, os, as. É representado por um SP, cujo papel semântico é o de beneficiário, alvo ou fonte de uma ação, que, na maioria das vezes, possui o traço semântico [+animado] e pode ser substituído pelas formas pronominais átonas “lhe” e “ lhes”. É representado por um SP, porém, tem características sintáticas e semânticas diferentes das do objeto indireto, pois, não pode ser substituído pelo pronome oblíquo “lhe”, não tem o papel semântico de beneficiário, alvo ou fonte e não tem o traço semântico [+animado] são complementos de natureza adverbial, indispensáveis à construção do verbo, o que os diferencia dos adjuntos adverbiais complementos não explícitos que podem ocorrer por redundância ou generalidade, ou quando a situação e o contexto verbal permitem que o objeto seja recuperado A partir dessa discussão teórica, pretende-se, na próxima seção, apresentar as análises sobre transitividade e complementos verbais em um livro didático destinado ao 8º ano do ensino fundamental. 5. Analise do Livro didático O Livro didático “Projeto Teláris Português - 8º ano” das autoras Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi , faz parte do Plano Nacional do Livro Didático. A seguir, a capa do livro destinado ao 8º ano: Figura 01 – Capa do Livro didático analisado. Fonte: Projeto Teláris - Português 8. Segundo o Manual do Professor, as autoras propõem uma prática de análise e reflexão sobre a língua que leve em conta as condições reais de comunicação tendo como norteadores gêneros textuais de circulação social real. Pretendem tornar concretos os fatos linguísticos para que se possa descrever e sistematizar as ocorrências linguísticas em situações de uso formal ou informal. Percebe-se que a proposta do LD procura se enquadrar nos parâmetros exigidos pelo PCN de língua portuguesa do ensino fundamental que afirma ser preciso “permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva.” (BRASIL, 1998, p. 27). De forma geral, o livro do 8º ano do ensino fundamental traz propostas interessantes, mas o que se pretende nesse trabalho é verificar como são tratados os estudos sintáticos sobre os complementos verbais. Veja a seguir algumas das 126 análises feitas. Em relação ao tratamento dado à sintaxe, o capítulo apresenta como proposta inicial uma discussão sobre o predicado, conforme se verifica na imagem a seguir: Figura 02 - Conceito de predicado. Fonte: Projeto Teláris - Português 8. A seção “língua: usos e reflexão” deste capítulo introduz o conceito de predicado a partir de fragmentos de um texto já trabalhado na unidade, para relacionar o conceito às sequências discursivas. Percebe-se, então, que o livro trabalha, na maioria das vezes, os estudos gramaticais dentro do contexto de gêneros textuais, o que é um fator positivo, pois associa o ensino de sintaxe aos textos e não a frases soltas. Para abordar os tipos de predicado, o LD apresenta o seguinte conceito: “predicado é o termo (parte da oração) que traz uma informação sobre o sujeito” (BORGATO; BERTIN; MARCHEZI, 2013, p 111). Analisando conceitualmente esta definição verifica-se uma falha nessa afirmação, pois nem sempre há um sujeito na oração, mas mesmo assim há um predicado. O LD não parte da discussão sobre o predicado/predicador como o item lexical que faz exigências sintáticas e semânticas. Continuando a análise agora serão analisados como são propostos os exercícios relacionados à predicação verbal nessa sessão. Figura 3 e 4 – Atividades sobre predicação. Fonte: Projeto Teláris - Português 8. Observa-se que os exercícios, da página a esquerda, trabalham apenas a identificação e a classificação dos predicados, deixando de propor de fato uma análise mais reflexiva. As orações que aparecem no exercício são retiradas do texto já trabalhado com os alunos, porém elas aparecem soltas e fora de contexto. Já na pagina a direita, o LD traz uma informação interessante ao relacionar os tipos de predicados com as sequências textuais (narrativas, descritivas, e expositivas), pois com isso procura integrar a relação da sintaxe com o texto. Os exercícios desse 127 tópico são mais reflexivos e analíticos, não ficando só na identificação e classificação, pois se baseiam em gêneros textuais para mostrar a relação entre as sequências textuais e os tipos de predicados predominantes nelas. Ao conceituar esses complementos, seguindo a NGB, as autoras dão conta de explicar o objeto direto e o objeto bitransitivo, mas acabam por conceituar como objeto indireto o que na verdade é um complemento relativo. Veja a figura 5. Figura 5 e 6 – Conceituando os termos objetos Verbo intransitivo e complemento circunstancial. Fonte: Projeto Teláris - Português 8. Observa-se que no exemplo “Muitos habitantes do planeta dependem de águas subterrâneas”, utilizado para conceituar o termo objeto indireto, o livro apresenta o SP “de águas subterrâneas” como sendo um objeto indireto somente com base no fato de o complemento estar ligado ao verbo pela preposição “de”. No entanto, vale lembrar que existem mais dois complementos verbais que também se ligam ao verbo por um SP: o complemento relativo e o complemento circunstancial, (LIMA, 2010, p.252). Na página 146, figura 6, o LD retoma o conceito de verbo intransitivo para introduzir o conceito de complemento circunstancial, um passo considerável para os conhecimentos sintáticos, não só por alertar o professor sobre a não distinção entre adjunto adverbial e complemento circunstancial na NGB, mas também por apresentar o complemento circunstancial efetivamente ao aluno. Das atividades propostas sobre complementos, a maioria propõe exercícios de identificação e classificação, como nos casos já analisados até então. Porém, dessa vez o LD apresentou duas atividade de reflexão a partir de textos multimodais mostradas nas figuras 07 e 08 abaixo. Figura 07-08 – Piada de monstro / piada sobre pescaria. Fonte: Projeto Teláris - Português 8. Pode-se ver na figura 07 que o exercício exige do aluno uma reflexão linguística tanto sobre o gênero textual trabalhado, quando procura fazer com que o aluno entenda a intenção do gênero piada pela contradição, como também quando 128 possibilita ao aluno perceber que ao trocar o verbo contar pelo verbo rir, a transitividade verbal se modifica. O exercício que aparece na figura 08 utiliza o gênero piada para trabalhar um tipo de complemento ignorado em outros exercícios já analisados, o complemento nulo, que o LD classifica como complemento subentendido. Esse é mais um importante passo para o ensino por trabalhar a sintaxe no texto de forma contextualizada. Ao fim da análise sobre os complementos verbais no LD, verificou-se que apesar do livro estar ainda preso aos preceitos da GT, ele faz avanços significativos como apresentar o complemento circunstancial e nulo. Em nenhum momento o LD citou o complemento relativo, apesar de o complemento ter aparecido como objeto indireto. 6. Considerações finais A partir do que foi exposto nesse trabalho, compreende-se que a sintaxe é um campo da linguística que necessita de mais pesquisadores, que com seus estudos sejam capazes de quebrar o preconceito de que sintaxe é só regra, e ponto. Atualmente a sintaxe não é tida como única, e muitos estudiosos já utilizam o termo sintaxes pelo fato de existirem diferentes teorias sintáticas se desenvolvendo no mundo. Precisa-se se pensar também no ensino da sintaxe e como o conhecimento sintático está sendo transmitido nas escolas. Perceber que usar a GT com o pretexto de que essa é maneira mais didática de se ensinar a língua, já não funciona. Isso porque a sintaxe que aparece nos diferentes textos em circulação é mais ampla do que as frases isoladas que muitas vezes são apresentadas nos compêndios tradicionais. O livro didático sempre foi, e é até hoje, a ferramenta mais utilizada pelos professores em suas aulas. Sendo assim, o conteúdo do LD deve ser condizente como o que os PCNs recomendam que seja ensinado aos alunos da educação básica. Conforme o trabalho apresentou, a proposta do Livro analisado se presta a esse papel na teoria, mas acaba por não segui-la efetivamente. O livro avança ao tentar apresentar os conceitos contextualizando-os com os textos, porém na maioria das vezes acaba por apresentar ao aluno somente formas de classificar e identificar esses conceitos. Contudo, percebe-se que muito ainda precisa ser feito para que o ensino da sintaxe não seja pautado somente nas regras prescritas pela NGB, e que esse ensino aconteça com base na linguagem em uso, ou seja, que se parta dos diferentes textos em circulação, sejam eles orais ou escritos. Afinal, o conhecimento sintático está na estrutura da linguagem, e aprende-lo só é possível quando se entende que, assim como a linguagem, a sintaxe não é estática, e deve ser entendida não como uma estrutura regrada e fechada, mas como uma estrutura que se adéqua para atender às nuances de uma língua. 7. Referências AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à sintaxe do português. 9. ed. Rio de Janeiro, RJ: J. Zahar, 2007. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf > acessado em: 01/03/2017 < BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. 2. ed., ampl. e 129 atual. -. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2010. BORGATTO, A. M.Trinconi; BERTIN, T. C. Hashimoto; MARCHEZI, L. de Carvalho. Projeto Teláris: Português 8. 1.ed. São Paulo: Ática, 2012. CUNHA, Celso Ferreira da; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro, RJ: Lexikon, 2008. DUARTE, M.E.L. Termos da Oração. In: VIEIRA, S.R.; BRANDÃO, S. F. (Org.) Ensino de Gramática: Descrição e uso. São Paulo. Contexto, 2007. p. 186-204. LIMA, Rocha. Gramática normativa da língua portuguesa. 48. ed. Rio de Janeiro, RJ: J. Olympio, 2010. OTHERO, Gabriel de Ávilla, KENEDY, Eduardo. (org). Sintaxe, Sintaxes: uma introdução. São Paulo: Contexto, 2015. PERINI, Mario Alberto. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Editora Ática, 2011. PERINI, M. A. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento gramatical. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. 130 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CADETE DA ACADEMIA MILITAR DAS AGULHAS NEGRAS SOB A PERSPECTIVA DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS INSTITUCIONAIS. ANDRÉA LEMOS MALDONADO CRUZ Academia Militar das Agulhas Negras Rodovia Presidente Dutra, Km 306. Resende-RJ CEP 27534-970 andrea.maldonado@aman.ensino.eb.br Resumo. A investigação das práticas discursivas no ambiente acadêmico militar e de sua influência nas relações entre seus sujeitos históricos: cadetes e instrutores, encontra-se alinhada com as pesquisas desenvolvidas no campo da Teoria do Discurso. Os lugares sociais determinados a homens e mulheres geram dificuldades e preconceitos que as mulheres ainda sofrem quando inseridas em instituições masculinizadas como as militares. Nesta perspectiva, é necessário compreender a construção da identidade social militar das primeiras cadetes da linha bélica do Exército Brasileiro à luz dos conceitos socioconstrucionistas do discurso. Palavras-Chave. Linguagem. Identidade. Práticas discursivas. Exército Brasileiro. Summary. The investigation of the discursive practices in the military academic environment and its influence in the relations among its historic subjects: cadets and instructors, is aligned with the researches done upon the Discourse Theory. Social places, intended for men and women use, cause difficulties and prejudice that women still suffer when they are integrated in a masculine institution as military officers. From this point of view, it is necessary to understand the construction of the social military identity of the first group of female cadets in the belic line of the Brazilian Army in the light of the socialconstructionist concepts of the discourse. Key words. Language. Identity. Discursive practices. Brazilian Army. 1. Identidade e Linguagem O termo identidade tem despertado, cada vez mais, o interesse dos cientistas sociais, que ampliaram, ultimamente, os estudos sobre o assunto. Alguns autores definem identidade analisando-a sob a perspectiva social e pessoal, como atributos específicos do indivíduo e características que assinalam pertencimento a grupos ou categorias. Outros teóricos partem de uma ideia de identidade concebida a partir de sistemas culturais. Nesta perspectiva, a identidade é compreendida como culturalmente formada num conjunto de significados partilhados por representação coletiva. Segundo Dubar (1997), a identidade não nasce com o indivíduo. Ela é 131 construída e sofre sucessivas reconstruções ao longo da vida, constituindo-se do trabalho de diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e definem as instituições. Dessa forma, a identidade possui caráter relacional, pois é, ao mesmo tempo, uma estratégia de inclusão e um mecanismo de exclusão, que situa o sujeito em um grupo e o distingue dos demais. A construção da identidade é, então, um processo que está inserido no plano das relações sociais. Essas relações, no entanto, não são fixas. Em função das mudanças sofridas pelas sociedades modernas no final do século XX e do fenômeno da globalização, que modificou as estruturas sociais, surgiram novas formas de organização e de relações entre as pessoas. Tais modificações transformaram, também, as noções de identidade. Stuart Hall, em sua obra intitulada A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (2001), afirma que a identidade do sujeito pós-moderno não é permanente, está fragmentando-se por operar em um mundo sob constantes transformações. Assim, longe de ser entendida como uma estrutura estável, atualmente, alguns cientistas sociais e, principalmente, pesquisadores da área da linguagem, concebem identidade segundo a visão socioconstrucionista. Essa perspectiva surgiu com base na teoria do construcionismo social, emergente do final do século XX e início do século XXI. Ligada à área da psicologia clínica, seu foco eram os processos relacionais e discursivos por meio dos quais o indivíduo constrói a si mesmo e dá significado ao que está ao seu redor. Segundo essa teoria, o conhecimento sobre a realidade e os sentidos dados ao mundo são construídos socialmente, situados historicamente e reforçados pelas práticas sociais. Por analogia, o conhecimento sobre si mesmo e sobre sua identidade também derivam dessa construção social e, portanto, são culturalmente situados, o que nos faz retornar aos conceitos identitários do sujeito pós-moderno, de Hall (2003). A concepção socioconstrucionista da identidade a interpreta como: “... um construto de natureza social – portanto, político –, isto é, identidade social, compreendida como construída em práticas discursivas, e que não tem nada a ver com uma visão de identidade como parte da natureza da pessoa, ou seja, identidade pessoal...” (MOITA LOPES, 2003, p. 20). Portanto, através das práticas discursivas, as identidades sociais de seus participantes são percebidas, ao mesmo tempo que, participando dessa relação social, fazemos parte da construção e reconstrução dessas identidades. 2. As instituições militares e suas práticas discursivas Inseridas no quadro das relações sociais, as instituições militares veem, também, a identidade de seus atores sociais sujeitada às suas práticas discursivas e passíveis de se moldar ou adaptar-se à nova ordem de transformações mundiais. Há poucos trabalhos acadêmicos sobre as instituições militares como objeto de estudo na área da linguagem. A maioria dos estudos aborda o papel dos militares na política brasileira. O antropólogo Celso Castro foi um dos primeiros a realizar uma pesquisa etnográfica sobre o processo de construção da identidade social militar, realizada na Academia Militar das Agulhas Negras, estabelecimento de ensino superior responsável pela formação do oficial da linha militar bélica do 132 Exército Brasileiro. A proposta de Castro (1990) parte do processo de socialização escolar pelo qual os cadetes da AMAN passam, como elemento articulador entre o mundo institucional e a subjetividade, o que chamou “o espírito militar”, que seria resultado dessas práticas discursivas e culturais notadamente institucionalizadas. Segundo o autor, ao ingressar na Academia, o jovem é submetido a um processo de construção da identidade militar num ambiente de internato, o que facilita a absorção das práticas discursivas, combinando mecanismos de separação do ambiente civil e de unificação ao novo grupo, que permitem a delimitação de fronteiras simbólicas essenciais para a construção das identidades sociais. No entanto, apesar dessa aparente reclusão e distanciamento aos quais esses jovens são submetidos, e que facilitam a definição um ethos específico militar, eles não estão isolados da sociedade, sendo, assim, influenciados por todas as suas transformações. Uma dessas interferências pode ser desencadeada pelo ingresso de mulheres na linha militar bélica do Exército Brasileiro, que teve início em 2017, com a implementação da Lei Nº 12.705, de 8 de agosto de 2012, da Presidência da República. No concurso, realizado esse ano, foram abertas vagas destinadas, inicialmente, ao Quadro de Material Bélico e de Intendência. 3. As mulheres e as Forças Armadas Brasileiras No Brasil, a inserção feminina nas Forças Armadas não foi pautada por uma política federal homogênea e cada instituição administrou de maneira independente a questão em contextos e momentos particulares. Seu início oficial foi em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, com o envio de 73 enfermeiras para servirem em quatro hospitais do Exército Norte-Americano. Mas, após a guerra, elas foram licenciadas do serviço ativo, passando para o quadro da reserva remunerada como oficiais. Antes desse período, houve a participação pontual de brasileiras no militarismo, fruto da necessidade, muitas vezes individual, de intervenções de caráter regional. Foi o caso de Maria Quitéria de Jesus, baiana que, em 1823, lutou pela manutenção da independência do Brasil, sendo a primeira mulher a assentar praça em uma unidade militar, no Batalhão de D. Pedro I, com o nome de “guerra” Medeiros e assumindo identidade masculina, pois de outra forma, não seria aceita como voluntária. Somente em 1980, com a criação do CAFRM – Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha do Brasil - Lei n. 6.807 –, a presença feminina foi institucionalizada, sob influência das transformações ocorridas naquela década em relação à abertura democrática e à crise econômica, social e cultural do período. De acordo com Carreiras, a incorporação feminina nas Forças Armadas na maioria dos países é resultado de um processo de modificações pelas quais a sociedade passou, “... marcando, desde a II Guerra Mundial, tanto a gestão da violência e a estrutura sócio-organizativa das instituições militares como as relações intersexos e o padrão de participação social das mulheres” (CARREIRAS, 1997, p. 1). Vemos, então, que a incorporação das mulheres nesse campo profissional de domínio eminentemente masculino não foi precedida pela percepção de igualdade de papéis sociais destacados pelas políticas e teorias de gênero. A Força érea Brasileira foi a primeira das três Forças Armadas a admitir mulheres na Academia da Força Aérea, em 1996, na arma de Intendência, e em 2003 na Aviação. Somente em 2014, a Marinha abriu concurso oferecendo doze vagas para mulheres na Escola Naval, e este ano, 2016, o Exército disponibilizou vagas para a AMAN. Em abril de 2014, o Ministério da Defesa do Brasil criou sua Comissão de Gênero, tendo como finalidade estudar e propor ações visando à 133 efetivação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, procurando sempre adequar as características de cada uma das Forças Armadas. Porém, antes de tecermos considerações a respeito das questões de gênero no contexto da inserção das mulheres nas Forças Armadas, precisamos ampliar nosso foco e verificar o assunto no contexto das relações sociais. As concepções dos papéis sociais das mulheres e dos homens na sociedade também vêm sofrendo transformações nestes tempos de pós-modernidade. De acordo com Marodin (1997), numa determinada estrutura social podemos encontrar determinados papéis e funções tradicionalmente internalizados que são considerados próprios ou naturais de seus respectivos gêneros. Esses papéis sociais são exteriorizados através da linguagem, do comportamento e das atitudes influenciados pelos estereótipos convencionados pelos grupos culturais aos quais os indivíduos pertencem e que resultam de sua socialização e de sua posição social. Podemos dizer, então, que esses papéis materializam-se em “modos de ação”, em práticas que influenciam o mundo, o que, Norman Fairclough, define como discursos: “... formas de representar aspectos do mundo – os processos, relações e estruturas do mundo material, do mundo mental dos pensamentos, sentimentos, crenças e assim por diante, e o mundo social” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 124). Ao longo da história, verifica-se que as práticas discursivas, que nada mais são do que um constructo social, delimitaram os conceitos de identidade feminina na concepção de feminilidade interiorizada pela educação e pelas normas de comportamento impostas pela sociedade. Segundo Pierre Bourdieu (1999) as expressões masculinas ou femininas são: produto de um trabalho social de nominação e inculcação, ao término do qual uma identidade social instituída por uma dessas linhas de demarcação mística, conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social incorporada (BOURDIEU, 1999, p. 63-64). O habitus militar, aquilo expressa seu ethos, é a administração da violência, uma vez que a sua função é o combate armado bem-sucedido, com monopólio do Estado. Ao exteriorizá-lo, as Forças Armadas reproduzem o modelo socialmente dominante, cuja concepção da masculinidade, representada pela força física e virilidade, contribui para a reprodução de estereótipos sexuais (CARREIRAS, 1997, p. 45). Sendo as instituições militares identificadas por espaços de virilidade, a construção de gênero nesse ambiente identifica as mulheres como sensíveis e frágeis e os homens como fortes e violentos. Essas características identificadoras do feminino e do masculino acabam por limitar o acesso de mulheres nas Forças Armadas de forma igualitária. Para Bourdieu (1999), um dos mecanismos de mudança dessa reprodução de uma ordem masculina pode ser a escola: os mais importantes [fatores de mudança] são os que estão relacionados com a transformação decisiva da função da instituição escolar na reprodução da diferença entre os gêneros, tais com o aumento do acesso das mulheres à instrução e, correlativamente, à independência econômica e à transformação das estruturas familiares (BOURDIEU, 1999, p. 107). Ao analisar o ambiente acadêmico militar, suas práticas discursivas, seu habitus e o processo educacional pelo qual passam os militares da linha bélica do 134 Exército, verifica-se um reforço de características valorizadas no processo de socialização masculina, tais como a força, a liderança, a capacidade de domínio. Essas características, culturalmente percebidas como pertencentes ao universo masculino, podem marcar uma segregação entre cadetes homens e mulheres, influenciando, assim, a construção da identidade social desse novo grupo. Os estabelecimentos de ensino militar devem estar atentos para que suas práticas acadêmicas possam contribuir na formação de mulheres militares em sentido pleno. Tais práticas, deveriam ser o resultado de uma mudança na percepção de gênero da instituição militar, pois, ao ser inserida no ambiente militar acadêmico, essa mulher passará por um processo de socialização comum a todos os cadetes cujo objetivo é a formação de um profissional com os mesmos valores institucionais. Esses valores farão parte de um constructo social desenvolvidos pelas práticas discursivas socializadas no ambiente escola e constituirão parte da formação identitária dessas cadetes. Nesse aspecto, deve-se considerar o fator interacional entre docentes e discentes. Em um ambiente acadêmico militar, assim como em qualquer outro ambiente escolar, os docentes (no caso específico da EsPCEx e da AMAN, campus do estudo desse projeto, os instrutores) constroem-se como sujeitos constantemente. As práticas discursivas, a linguagem da qual se utilizam, veiculam informações que refletem no comportamento discente e que vão além de simples palavras, pois se constituem em mensagens simbólicas, em gestos implícitos ou explícitos que também permitem que o cadete ocupe um espaço em seu meio social, o qual poderá corresponder aos conceitos e/ou preconceitos que podem existir no contexto militar, nas práticas institucionais. Sendo assim, as atitudes implícitas ou explícitas e as palavras do educador podem interferir intensamente na concepção identitária desses cadetes. No entanto, até os dias atuais essas relações, na área combatente, eram restritas ao gênero masculino. Cabe-nos considerar se tais práticas acadêmicas e relações sofreriam mudanças com a inserção das mulheres nesse ambiente. É necessário, então, aprofundar os estudos na esfera institucional do Exército Brasileiro para que ele possa estar preparado para construir a identidade social de seus militares de acordo com seu imperativo funcional social, que é a defesa da Pátria, e ao, mesmo tempo, possa contribuir para ressignificar as concepções militares sobre a maneira que eles percebem a mulher dentro da instituição militar, dando a ela a possibilidade real de mostrar as suas capacidades. 4.Referências BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 159p. CARREIRAS, Helena. Mulheres nas Forças Armadas portuguesas. Lisboa: Edições Cosmos, 1997. CASTRO. Celso. O Espírito Militar. Um antropólogo na caserna. 2ª ed. Rio de Janeiro: J.Zahar, 2004. DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Portugal: Porto Editora, 1997. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 2001. 135 HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10ª ed. DP&A: São Paulo, 2001. MARODIN, M. As relações entre o homem e a mulher na atualidade. In: STREY, M.N. Mulher, estudos de gênero. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 1997. MOITA LOPES, Luiz Paulo (org). Discursos de Identidades. Discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e na família. Campinas: Mercado de Letras, 2003. 136 O IMAGINÁRIO COMO VIA DE TRANSGRESSÃO DO REAL ANDRÉA PORTOLOMEOS Departamento de Estudos da Linguagem Universidade Federal de Lavras Av. Doutor Sylvio Menicucci, 1001 - Kennedy, Lavras - MG, 37200-000 andrea@del.ufla.br Resumo. Este texto pretende mostrar uma parte do pensamento de Luiz Costa Lima, na obra O controle do imaginário, que pensa sobre discursos que determinaram o lugar de inverdade do discurso ficcional, invalidando a ficção como via de construção de saberes, de relativização de verdades social e culturalmente estabelecidas. Este trabalho tem a intenção de provocar diálogos sobre a construção de um veto ao ficcional que é um veto à nossa própria imaginação na interpretação do mundo e da sociedade. Palavras-Chave. Literatura. Imaginário. Controle. Abstract. This text aims to show a part of Costa Lima’s thoughts, on O controle do imaginário. It has thoughts about discourses that determined the place of untrue of the fictional discourse, invalidating the fiction as a way of build knowledge, as a way of relativization of socially established’s trues.This work has the intention of encourage dialogues about the construction of a veto to the fictional that is a veto to our own imagination in the interpretation of the world and of the society. Key-words. Literature. Imaginary. Control. 1. O controle do imaginário na perspectiva de Luiz Costa Lima Este texto pretende mostrar uma pequena parte do pensamento de Luiz Costa Lima, na sua incontornável obra, O controle do imaginário. Obra incontornável porque pensa sobre discursos que historicamente determinaram o lugar de inverdade, de mentira, do discurso ficcional, invalidando a ficção como via de construção de saberes, como via de relativização de verdades social e culturalmente estabelecidas. Este trabalho tem a intenção, então, de provocar leituras, pesquisas e diálogos sobre a construção histórica de um veto ao ficcional que é, em última instância, um veto à nossa própria imaginação - exercitada em altíssimo grau pela literatura - na interpretação do mundo e da sociedade que constituímos. Vou destacar aqui e tentar desenvolver precária e basicamente, com o apoio no texto de Luiz Costa Lima, 4 ideias propostas por ele no sentido da investigação desse controle. 1)- Como a ideia de subjetividade surge historicamente?; 2)- Como ela se manifesta na poesia quando do seu surgimento?; 3)- Como o discurso subjetivo passa a ser orientado pelo discurso da Razão?; 4) Quais as consequências desse controle da subjetividade? Segundo Costa Lima, Hans Ulrich Gumbrecht, grande medievalista contemporâneo, analisa a crise que sacudiu a Alta Idade como resultante da “pouca flexibilidade da estrutura mental então dominante” (LIMA, 1989, p.12). Essa 137 estrutura mental pouco flexível era consequência, entre outras, “da cosmologia cristã de então que apresentava para cada experiência uma única interpretação” (idem, p.12). Por outro lado, no período da Baixa Idade Média, mais precisamente nos séculos XIV e XV, podemos entrever uma “maturação da experiência da subjetividade” (idem, ibidem) iniciada no século XII. Nesse sentido, deixa-se de crer que a verdade foi inscrita nas coisas do mundo pela divindade que se revelava por sinais inequívocos. “Cada fenômeno passa a admitir vários sentidos e ao sujeito passa a caber a apreensão do sentido adequado” (idem, p.12). A subjetividade adquiria, assim, uma função de acréscimo. Ou seja, a ordem cósmica tradicional, teologicamente formulada, não era mais suficiente na explicação do mundo; então, “ao sujeito individual cabia a descoberta da Razão orientadora” (idem, p.13) dessa explicação. Luiz Costa Lima lembra Block, outro medievalista, que avalia o movimento de reconhecimento da subjetividade a partir do século XII. Esse autor discute, por exemplo, as mudanças nos processos judiciais: “o direito na primeira Idade Média não levava em conta os motivos ou intenções do ofensor, pois Deus, e não o homem, era o único capaz de avaliar a intenção”. (idem, p.14) “Deus manifesta a verdade do sucedido através de sinais visíveis e inequívocos, expressos no resultado de um duelo.” (idem, p.14) Block avalia que essa forma de resolução judicial começa a ser corrompida no século XII. É ainda Costa Lima quem destaca que o século XII é o século da luta entre a centralização do Estado e a aristocracia feudal; é o século de início de ascensão do indivíduo e do realce de sua subjetividade contra os interesses da nobreza feudal. A ascensão do indivíduo pode ser expressa em novas formas literárias em que a subjetividade assume um papel relevante. Ainda de acordo com o teórico, a atenção dedicada ao sujeito individual nos novos gêneros se relaciona também aos interesses da centralização do Estado e da burguesia nascente, em contraposição aos valores e princípios da aristocracia feudal (quais sejam: “preservação de uma comunidade de sangue, da tradição e da ideia de uma justiça divina que manifestarse-ia por sinais externos” (idem, p. 15)). É importante lembrar, como o faz Costa Lima, que Paul Zumthor, na emblemática obra A letra e a voz, vai destacar a presença do eu na poesia medieval. Entretanto para que esse eu não seja confundido como expressão de uma individualidade, resta lembrar que o autor distingue duas situações básicas na poesia medieval: 1) - um eu vazio enquanto referente, cuja presença se esgota no entrelaçamento das peças do poema; 2)- uma literatura de papéis fixos, obediente a topoi seculares e a uma tradição impessoalizada.” (COSTA LIMA, 1989, p.16) Dito de outra forma, importa observar que na poesia medieval “o eu lexicalizado não corresponde ao eu da pessoa que escreve” (idem, p.16), ou seja, “a experiência textual não integra a experiência pessoal; o eu é uma forma vicária, flutuante, que declara apenas a voz que o pronuncia. Poesia quase totalmente objetivada, diz Zumthor” (idem, p.16). Importa destacar aqui, o que Zumthor advertiu em sua obra, isto é, ao longo do século XV, essa situação se transforma; a poesia ganha, então, um “eu saturado de pessoalidade” (idem, p.17). Ainda no século XV, a reprodução tipográfica desestabiliza o hermetismo que marcava a cultura manuscrita; nesse sentido, pense nas condições materiais e sociais dos manuscritos. Progressivamente, avalia Zumthor, a cultura perdia seu caráter iniciático. Ou seja, “a forma escrita serve de base para o estabelecimento de um novo conjunto de valores”. (idem, p 19). 138 Ao passo que na lírica dos séculos XII e XIII dominava a ligação da poesia com a música, com a memória e com a oralidade, a poesia dos séculos XIV e XV estava fundada no canto e “no sentimento do eu”, assim como renunciava à memória confiando sua produção à forma escrita. (idem, p.19) Luiz Costa Lima, com base na leitura das crônicas de Fernão Lopes, nos mostra que a subjetividade na primeira metade do século XV esboçava seus empregos possíveis. Ela podia: 1)- ser utilizada como “desserviço da verdade” (idem, p.21) na poesia 2)- “dar ensejo ao choque de opiniões” (idem, p.21) ou 3)“estar subordinada à verdade, condição só satisfeita quando canalizada em favor da Razão” (idem, p.21), daí a legitimação do discurso historiográfico como um discurso superior ao da ficção na medida em que ele é capaz de revelar, através de sua objetividade, de sua racionalidade, a verdade inscrita nos fatos. De acordo com Costa Lima, o entendimento do mundo pelo homem presume uma prática de exercício da Razão e a extirpação de uma subjetividade associada ao ato de recontar os fatos de maneira a favorecer quem conta ou de acordo com os costumes do tempo em que se vive. Curiosa e estranhamente, o historiador nega sua historicidade para que se mostre como diáfano (límpido) servo da verdade; intemporaliza a razão para que se tenha como por ela traspassado. (idem, p.22) O lugar da razão torna-se o “posto solar”; o lugar da opinião, inseguro. A entrada da doxa no reino do historiador não é simples e só se dá pela “desmundanização do historiador, isto é, por sua capacidade de resistir e vencer a própria subjetividade” (idem, p.23), “no exame e na captura dos fatos, pela indagação dos prós e contras relativos a certa posição, pelo desencavar afinal da verdade” (idem, p.23). Segundo Costa Lima, a História começava se constituir como discurso da razão, desdenhoso do discurso da ficção. A posição do discurso histórico relativa à ficção será esta: as belas-letras (ou a poesia) se afastam do caminho da verdade. Em conformidade com o pensamento de Costa Lima, os caminhos possíveis para a permanência da ficção entre nós serão: 1)- ou admitir o Império da Razão e declarar sua inferioridade enquanto via de acesso ao conhecimento; 2)- ou procurar um compromisso com a Razão. A segunda via será a opção escolhida e, para isso, será decisiva a contribuição da Retórica. A Retórica, como representante do discurso ficcional, se aliava então à História. A Retórica dava à História uma solução para um de seus pontos fracos como discurso da Razão: o olhar individual do historiador. O vício (o olhar individualizado) do historiador era próprio do senso comum, da gente comum; então, a solução estava em se conceber o discurso historiográfico como parte de uma elite, o que se fez pela aprendizagem da arte de falar e escrever bem, ou seja, da Retórica. (idem, p.24) Nesse movimento de necessário compromisso da ficção com o discurso da Razão, cabe ainda citar o esforço das poéticas renascentistas em elaborar uma compreensão própria da mimesis aristotélica (como imitação literal) para controlar as expressões da individualidade que tendiam a se manifestar na poesia. “A imitação estabelece a triagem entre os verdadeiros artistas e os que não o são”. (idem, p.25) Segundo essas poéticas preceptísticas, sem o princípio do modelo a 139 ser imitado, “o eu-poético se tornaria uma entidade selvagem, incontrolável, incapaz de respeitar hierarquias” (idem, p.26), impossibilitando assim a classificação de seus textos em nobres ou vis. Segundo Costa Lima, “o veto à ficção não é um veto à subjetividade em si mesma” (idem, p.26). Abre-se historicamente uma possibilidade de legitimação para a subjetividade, mas essa legitimação só será alcançável se a subjetividade abrigar um modelo aceitável pelos estudiosos e eruditos da época: a nobreza da linguagem (elegantia sermonis) nos moldes dos autores considerados modelares pelos preceptistas das poéticas. Ou ainda, a subjetividade se conformava à objetividade racional dos modelos a serem imitados. 2. Para concluir Concluindo esse breve panorama que tem como objetivo predominante fomentar novas incursões pela citada obra de Luiz Costa Lima, a recuperação da subjetividade como elemento producente fora dos limites da Razão acontecerá somente no século XVIII, mais especificamente com os movimentos das escolas românticas. Entretanto, sabemos que o acesso ao conhecimento pela via da intuição ou da emoção continuou historicamente superposto pela Razão, ainda que muitas grandes obras da literatura evidenciem o quanto a arte, sem se subordinar a essa verdade histórica e socialmente construída, se revela válida na investigação da realidade. Resta-nos hoje uma importante tarefa: pensar quais discursos apagam, na contemporaneidade, a importância do literário - mesmo que muitas vezes sob uma forma camuflada de validação da literatura - como forma de libertação de verdades pré-concebidas e de compreensão mais larga da vida e do mundo. 3. Referências FRANCO, Moretti. O romance: história e teoria. In: Novos estudos. - CEBRAP no.85. São Paulo. 2009. <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002009000300009> Acesso em 01 de novembro de 2017. LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário. Razão e Imaginação nos Tempos Modernos. Rio de Janeiro: Forense, 1989. ZUMYHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das letras, 2001. 140 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO CAIPIRA NA TELENOVELA ÊTA MUNDO BOM! DE WALCYR CARRASCO ANÍSIO BATISTA PEREIRA Instituto de Letras e Linguística – ILEEL Universidade Federal de Uberlândia – UFU Av. João Naves de Ávila, 2121, Santa Mônica, Bloco G, Uberlândia – Minas Gerais, CEP: 38408-100. pereira.anisiobatista@ufu.br Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a constituição do sujeito caipira na telenovela Êta Mundo Bom!, de Walcyr Carrasco, exibida pela rede Globo de televisão em 2016. Como suporte teórico metodológico, tomaram-se como recorte algumas formulações da Análise do Discurso de linha francesa, sobretudo de Michel Foucault, com ênfase aos conceitos de sujeito, discurso e subjetividade. Conclui-se que o protagonista, Candinho, se constitui a partir de suas práticas ligadas a sua exterioridade imediata. Palavras-chave: Sujeito. Discurso. Subjetividade. Êta Mundo Bom!. Abstract: The present work aims to analyze the constitution of the caipira subject in the telenovela Êta Mundo Bom !, by Walcyr Carrasco, shown by Globo television network in 2016. As a theoretical and methodological support, some formulations of the Discourse Analysis of the French line were taken as a cut- especially Michel Foucault, with emphasis on the concepts of subject, discourse and subjectivity. It is concluded that the protagonist, Candinho, is constituted from its practices linked to its immediate externality. Keywords: Subject. Speech. Subjectivity. Good World!. 1. Introdução O que eu visto não é linho Ando até de pé no chão E o cantar de um passarinho É pra mim uma canção Vivo com a poeira da enxada Entranhada no nariz Trago a roça bem plantada Pra servir o meu país. (Joel Marques/Maracaí,1998) A constituição do sujeito pelas práticas discursivas nos remete a uma reflexão cuidadosa, sobretudo, considerando-se que o sujeito não é fixo, mas que está sempre em deslocamento e construção, na e pela história. Pensando nessa 141 questão, neste trabalho se propõe a problematizar a constituição do sujeito caipira na telenovela Êta Mundo Bom!, de Walcyr Carrasco, exibida pela Rede Globo entre janeiro e agosto de 2016, com destaque para o protagonista Candinho, vivido pelo ator Sérgio Guizé. Ressalte-se que esse caráter caipira, especialmente do protagonista, é uma influência de um conto que posteriormente se transformou em filme, cuja roupagem é tomada para a novela. Trata-se de uma produção inspirada no filme Candinho, de Abílio Almeida, produzido na década de 1950 e protagonizado por Mazzaropi. Nessa direção, este trabalho encontra-se dividido da seguinte maneira: em um primeiro momento, foram discutidos os aspectos da Análise do Discurso de vertente francesa, com ênfase aos aspectos sujeito e discurso, segundo as formulações de Michel Foucault; posteriormente, foi realizada a análise do material (imagens, trilha sonora e fala do sujeito protagonista) sobre a referida telenovela, possibilitando obter os resultados sobre a constituição do sujeito caipira na telenovela supracitada, direcionando as discussões para as considerações finais. 2. Sujeito e discurso em Michel Foucault: breves considerações O discurso em Michel Foucault (2008) pode ser compreendido como o fator responsável pela constituição do sujeito, que está impregnado no social, pela aliança entre a materialidade linguística e o aspecto histórico. Este o torna um acontecimento, tendo em vista que o enunciado, ainda que repetível, o momento histórico o torna singular. Além disso, há no discurso um posicionamento de sujeito, não fixo e constituído sempre por discursos diversos, bem como se percebe que um enunciado retoma outros enunciados já ditos. Nossa metodologia de análise se direciona aos postulados de Foucault no que respeita, dentre outros fatores, a sujeito e discurso. Para efeito de análise desse sujeito protagonista, as figuras colhidas na internet foram tomadas como enunciados. Um enunciado, segundo a Arqueologia foucaultiana, deve ser considerado pela dimensão de sua função enunciativa: apresenta um campo associado, já que se relaciona com outros enunciados; um suporte, no caso a mídia; uma data de emergência e um posicionamento de sujeito. Dentre outros fatores, esses integrantes da função enunciativa são relevantes para as análises, sobretudo pela questão do sujeito, não o autor das imagens ou aquele que as postou na internet, mas o protagonista que se posiciona nas figuras, apresentando suas subjetividades. Além disso, outro aspecto considerável, para leitura das letras musicais e falas do personagem, é a materialidade repetível, isto é, as unidades linguísticas que são passíveis de serem repetidas na construção de outros enunciados, mas o momento histórico lhe dá a dimensão de acontecimento, portanto, uma singularidade. Considerando a história como aspecto fundamental nos processos discursivos e na constituição do sujeito, de acordo com a linha teórico-metodológica adotada, trata-se da nova história. Essa história apresenta uma dimensão não condizente com a história tradicional, esta direciona para certa linearidade dos acontecimentos. A nova história, também chamada de universal, sobrepõe a global, uma vez que considera as várias histórias, isto é, as inúmeras microestruturas sociais, não possuindo uma linearidade dos fatos, mas que caracteriza por uma recorrência a fatos passados. Nessa dimensão histórica, os discursos são sempre povoados de outros discursos e servem de base para as práticas discursivas futuras. Essa característica serve de base para o entendimento, também, da noção de temporalidades distintas 142 vivenciadas pelos sujeitos em um mesmo momento histórico, pelas diferenças nas relações de saber e poder desses sujeitos. Um exemplo desse fator é a relação do homem com a tecnologia que ainda nos tempos modernos se dá de forma desequilibrada, já que dois sujeitos podem vivenciá-la de maneiras bastante distintas, de acordo com suas vivências sociais. Em cada momento histórico são produzidos seus discursos, de acordo com suas condições históricas de possibilidade, autorizados a circularem ou interditados condizentes com o momento. Os discursos são produzidos sob determinadas condições históricas de possibilidade e passam por regularidades que os determinam, atribuindo-lhes um caráter de unidade: Chamaremos de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 43, grifo do autor). Essas regras de formação dos discursos, ligadas ao momento histórico, se enquadram na chamada dispersão, tendo em vista o caráter descontínuo de um discurso e sua relação com outros já produzidos. A modalidade de enunciação aponta para o sujeito do discurso, seu posicionamento e o que é autorizado ou não esse sujeito dizer em determinadas circunstâncias. Os discursos autorizados pela sociedade em geral se enquadram no dizível de uma determinada época, aquilo que é tomado como verdadeiro, desejos de verdade que seus sujeitos apresentam (FOUCAULT, 1996). A partir dessas verdades legitimadas pela sociedade, os sujeitos acabam por se subjetivarem, ligados, também, pelas relações de poder que os contornam. O conceito de vontade de verdade é definido por Foucault ligado à noção de conhecimento científico, sobretudo com o advento do positivismo. No entanto, considera-se que em cada discurso, quer científico ou não, há ali uma verdade, uma vontade de verdade que se manifesta e exerce o trabalho de subjetivação dos sujeitos, estes como sendo seu efeito. Esses discursos não considerados científicos são denominados de outras arqueologias. Porém, vale destacar que a verdade não é algo absoluto, mas lugares criados pelos próprios sujeitos e que esses discursos, uma vez produzidos e circulados, constituem sujeitos (FOUCAULT, 1993). As práticas discursivas acabam por subjetivar os sujeitos, pelos lugares de verdades legitimados socialmente e que produzem esses sujeitos a partir de determinadas formações discursivas. Nesse âmbito, de acordo com Foucault (1993, p. 205), vale considerar que “todas as práticas pelas quais o sujeito é definido e transformado são acompanhadas pela formação de certos tipos de conhecimento”. Os discursos, tomados como verdadeiros, sobretudo em determinadas épocas, são legitimados por meio dessa autorização de circulação do saber, condizente com algumas ordens, a saber: o sujeito é autorizado ou não produzir discursos de acordo com seu status de saber; em cada momento histórico são produzidos e circulados seus discursos, legitimados ou não pela sociedade em geral, isto é, por um número considerável de sujeitos. De acordo com Foucault (1996, p. 9), "sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”. Considerando o sujeito como peça relevante na produção de um discurso, recorremos às indagações sobre as modalidades enunciativas, abordadas por 143 Foucault (2008, p. 55): Primeira questão: quem fala? Quem, no conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dela sua singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, se não sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é o status dos indivíduos que têm - e apenas eles - o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? Fica explícito a relação sujeito e discurso no que tange à produção e circulação de determinado discurso, ligados àquele que o produz, pelo status de verdade que pode ou não ser legitimado socialmente. Vale destacar as várias posições de sujeitos que um mesmo indivíduo pode ocupar na esfera social, cujas modalidades enunciativas revelam quem produz determinado discurso. Nessa ordem discursiva, vale destacar que os discursos se constituem, também, pela resistência, já que os sujeitos se inscrevem em determinadas formações discursivas e não em outras. O que se percebe, então, é a existência de contrastes discursivos, que os sujeitos, pelo seu poder, resistem a determinadas formações discursivas nas quais não se inscrevem. Por meio dos discursos, a concepção de sujeito, de acordo com o suporte teórico-metodológico adotado, pode ser definido como constituído a partir de suas relações de saber e poder. De acordo com Foucault (1981), os indivíduos estão em constantes relações de poder umas com as outras, constituindo-se em sujeitos por um processo de singularização que essas relações provocam. A noção de relações de poder é um aspecto relevante na constituição dos sujeitos pelas práticas discursivas, considerando que os sujeitos se relacionam cotidianamente na sua vida social, constituindo-se em microfísicas de poder. Por meio dessas relações, são produzidos sujeitos, promovidas individualizações, processos de subjetivação que constitui os indivíduos em sujeitos, estes sempre em caráter social, nunca individual, já que o sujeito é tomado como o reflexo social, de acordo com suas relações de saber e de poder. O sujeito é definido, portanto, socialmente, já que o fator histórico o constitui (na/pela história, pelas suas práticas no presente e pela noção de memória, suas relações com discursos produzidos anteriormente). O poder não é algo dado, em que uma pessoa o detém e exerce sobre outro indivíduo, mas significa exercício, funcionamento, embora existam poderes muito bem cristalizados na sociedade de uns sobre outros, sobretudo de caráter institucionais. Essa figuração institucional influencia essas relações de poder e nas práticas discursivas no seio da sociedade, pois se tratam de estruturas convencionais, já estabilizadas. Considerando esse exercício diário, entendem-se, então, como relações de microfísicas do poder, de sujeitos, que, por meio de suas relações sociais, acabam por se subjetivarem a partir de suas relações discursivas e com outros sujeitos. Fernandes (2012) ressalta que, por meio das subjetividades adquiridas, o indivíduo se torna sujeito, a partir das quais se posiciona e se inscreve em determinada identidade, a qual não é fixa, uma vez que esse sujeito é histórico e as relações de saber e de poder estão em constantes mudanças. Essa não fixação do sujeito, social, pode ser evidenciada na análise do sujeito protagonista Candinho, da novela Êta Mundo Bom!, a qual segue no próximo tópico. 3. Uma leitura do sujeito protagonista Candinho 144 Sucesso de crítica e público, a telenovela supracitada, ambientada na década de 1940, escrita por Walcyr Carrasco e dirigida por Jorge Fernando, foi exibida pela rede globo em 2016, cujo protagonista, Candinho, interpretado pelo ator Sérgio Guizé, foi tomado como nosso objeto de análise. Assim, este estudo se debruça na constituição desse sujeito caipira, por meio de seus traços característicos, isto é, suas subjetividades que o inscrevem nessa identidade caipira. A logomarca da telenovela (ÊTA MUNDO BOM!) apresenta um acento circunflexo na letra inicial da primeira palavra do título, inexistente de acordo com a norma culta da Língua Portuguesa. Esse acento proposital cria um efeito de sentido no que tange ao sujeito caipira, tanto no que diz respeito ao chapéu quanto ao dialeto caipira (linguagem não consonante com a norma culta). Em relação à abertura, são exibidas imagens de Candinho no seu “rancho”, casa na zona rural, em meio aos seus afazeres domésticos (a lida com os animais e plantas), ao som da música cuja letra remete para o local imediato onde reside o personagem (“O baile lá na roça foi até o sol raiar”), na voz de Suricato. O termo “roça” aponta para um sujeito roceiro, o qual possui um burro, Policarpo, seu animal de estimação, típico de pessoas residentes no meio rural, bem como se percebe na figura abaixo. Quanto ao material de análise, além do discurso linguístico contido nas letras de músicas e falas do personagem, o enunciado imagético proporciona uma nítida caracterização desse sujeito e suas subjetividades, sendo o reflexo de sua exterioridade que o cerca. Não se considera, aqui, o estereótipo que coloca esse sujeito em um nível de inferioridade social, memória arraigada socialmente sobre esse aspecto. Trazendo essas questões para o recorte teórico-metodológico adotado para as análises, o saber e as relações de poder ganham destaque, considerando que esse sujeito, a seu modo, possui um saber, não aquele institucionalizado, mas de acordo com sua natureza ligada ao meio rural. Figura 1: O sujeito Candinho e seu caráter caipira. Disponível em: <http://www.purepeople.com.br/midia/candinho-sergio-guizetambem-resgata-p_m1316531>. Acesso em: 01 out. 2017. 145 Foucault (1993) destaca a relação entre verdade e subjetividade, fator que pode ser observado nos aspectos tidos como verdadeiros em relação ao protagonista, Candinho. Pela imagem, é possível perceber subjetividades mais aparentes desse sujeito, constituindo-o em caipira, pelos trajes (chapéu e botinas de couro e roupa desengonçada, sem requintes de elegância), atrelados pelo animal rural e o ambiente à sua volta. Além disso, para complementar esse ambiente, a letra musical interpretada por Chitãozinho e Xororó evidencia esse espaço caipira do sujeito (“No rancho fundo / Bem pra lá do fim do mundo”), canção que embala as imagens da fazenda onde esse protagonista é criado. “Bem pra lá do fim do mundo” evidencia um distanciamento espacial e sociocultural entre campo e cidade, cujas fronteiras são perceptíveis, refletindo nas práticas discursivas que demarcam os sujeitos. Assim, o sujeito protagonista apresenta esse caráter roceiro pelas suas práticas que diferenciam dos sujeitos urbanos, pelos seus modos de vida. Traz consigo uma memória do autêntico “roceiro”, sobretudo pela influência das pessoas com as quais mantém relações discursivas e de poder. Foucault (1996) defende que todo discurso é marcado por uma verdade que é tomada como um lugar construído e legitimado pelos sujeitos. Por essas considerações, os regimes de verdade, bem instaurados nesse espaço rural, lhe proporcionam uma constituição segundo os traços dessa exterioridade imediata. Além disso, falas do sujeito Candinho podem ser tomadas para conferir a sua constituição, revelando seu dialeto caipira e sua “ingenuidade”, dados tipicamente pela sua relação com o ambiente imediato, retomando, inclusive, letra de música integrante da trilha sonora da novela (“Tudo o que acontece de ruim na vida da gente é pra miorá”), interpretada por Moska e o próprio título da novela (“Êta mundo bão!”) e “medaião” (em referência a sua medalha), em que o personagem substitui o “melhorar” por “miorá”, o “bom” por “bão” e “medalhão” por “medaião”. Dessa forma, esses saberes dados pelas práticas discursivas constituem o sujeito, colocando-o em um lugar socialmente demarcado e o lugar desse protagonista da novela é bem definido, dado tanto pela exterioridade denunciada pela figura quanto pelas suas subjetividades que o caracterizam como jovem caipira. Ao direcionar suas considerações rumo ao sujeito que fala, Foucault (2008) problematiza o lugar social de onde fala esse sujeito. Nessa perspectiva, o lugar de onde Candinho fala é bem demarcado, possibilitando suas modalidades enunciativas a partir desse ambiente socialmente fecundo para seus discursos, com linguagem nitidamente marcada pelo dialeto caipira. Esse sujeito caipira se constitui a partir de suas relações de saber e de poder (conhecimentos passados de seus pais na fazenda na qual vive e o ambiente rural no/com o qual convive), fazendo com que ele se subjetive dessa forma, a caráter caipira, assumindo essa identidade, tomando as palavras de Foucault (1981). A figura abaixo retrata essas relações de poder as quais Candinho vivencia e se constitui a partir de suas práticas cotidianas. Figura 2: O ambiente rural constituinte do sujeito Candinho. 146 Disponível em: <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/novela-eta-mundo-bom/novelaeta-mundo-bom-resumos-de-15-21-de-maio-19253879.html>. Acesso em: 01 out. 2017. A figura 2 mostra, então, o ambiente no qual o sujeito protagonista vive, apesar de este não aparecer na fotografia. Observam-se tanto pessoas da família de Candinho, residentes na fazenda, quanto outras, urbanas. Essas diferenças de subjetividades demarcam lugares na constituição dos sujeitos, cujas relações de poder reforçam suas individualidades, em que o caráter caipira fica mais evidente. Trata-se de saberes distintos, práticas discursivas diferenciadas entre sujeitos de acordo com as circunstâncias vivenciadas. As relações de poder, tomando as considerações foucaultianas, se dão pelas práticas cotidianas. Nessa direção, esse sujeito protagonista mantém relações de poder a partir de suas vivências com os integrantes de sua família, influenciando-o no seu processo de subjetivação, pelas verdades ali instauradas, esse sujeito se constitui a partir do que é vivenciado no berço familiar, caracterizando-o como quem vive no meio rural. Frente a essa constituição, não podemos deixar de mencionar que não existe um caipirismo uniforme no país, tendo em vista as diversidades brasileiras, e o estilo caipira se constitui de diferentes formas pelas regiões do Brasil. No entanto, algumas semelhanças podem se encaixar no conceito mais amplo de sujeito caipira, como a linguagem de quem não possui um vocabulário rebuscado, isto é, não possui um domínio sobre as letras; a exterioridade imediata do sertão; a simplicidade típica de quem não convive rotineiramente com as práticas dos centros urbanos. O sujeito Candinho, apesar de apresentar sua característica caipira, formada a partir de suas vivências no ambiente familiar rural, apresenta suas subjetividades particulares, as quais não são fixas, pois, de acordo com suas vivências discursivas na história, sua constituição sofre deslocamentos. Essas alterações são evidentes a partir do momento em que o sujeito protagonista deixa o campo e migra para o centro urbano, alterando suas relações de saber e de poder, de acordo com a figura 3. Figura 3: Candinho em um novo ambiente: urbano. 147 Disponível em: <https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/20 16/05/04/com-apoio-da-mae-candinho-pedesandra-em-namoro-em-eta-mundo-bom.htm>. Acesso em: 01 out. 2017. O choque entre as subjetividades típicas rurais e as urbanas demarcam os lugares sociais entre os personagens, cujo protagonista é visto a partir de uma inferioridade pelos personagens urbanos. Na figura, a antagonista Sandra faz uso desse saber “ingênuo” de Candinho e o protagonista inicia um novo processo de relações de poder e de saber, influenciando as suas subjetividades. Essas diferenças entre os dois sujeitos apontam para as diferenças de temporalidades vivenciadas entre os sujeitos em um mesmo momento histórico. No rancho (meio rural), o sujeito se constitui desprovido do saber sistematizado, sem acesso às novas tecnologias e a um contexto urbano, enquanto que o sujeito Sandra apresenta essa subjetividade ligada às modernidades que o contexto urbano lhe proporciona. Foucault (1996), quando discorre sobre a autorização ou não de certos discursos em certos contextos, defende a interdição desses discursos não autorizados a circularem em determinados lugares e momentos históricos. Nas circunstâncias do meio urbano, o sujeito Candinho é colocado em outra ordem, cujas subjetividades como dialeto caipira, trajes rurais, são interditadas por aqueles sujeitos urbanos. Nesse contexto, a esse sujeito dominado, são impostas outras formas de subjetividades, adequando-se àquele espaço o qual ele passa a pertencer. O figurino não mais tipicamente caipira e aquele ambiente urbano lhe obriga a se subjetivar a partir de suas novas práticas, já que suas próprias necessidades sociais o levam a mudanças. Esse processo de transição remete às palavras de Foucault (2008) sobre a descontinuidade do sujeito, uma vez que a história é dinâmica e as relações de saber e poder variam, influenciando na constituição dos sujeitos. Candinho então vai perdendo seu caráter caipira, cujo figurino é alterado bruscamente e seu dialeto caipira de forma mais gradual. Aquela exterioridade interiorana sede lugar para o espaço urbano e, por isso, a dinâmica histórica proporciona essa mudança de subjetividades, constituindo esse sujeito protagonista de acordo com as convenções urbanas. O contraste entre o rural e o urbano é evidenciado a partir do contato inaugural desse protagonista, possibilitando traçar uma fronteira entre campo e cidade. Os discursos são outros, cujas práticas, inclusive de linguagem, 148 apontam para um linguajar correto, em oposição ao dialeto caipira. Porém, faz-se necessário considerar esse caráter caipira não como uma inferioridade em relação ao urbano, mas uma espécie de saber típica do interior, como uma diferença, não como de menor valor. Vale ressaltar que permanece uma memória, uma vez que traços sólidos desse sujeito são mantidos, como o caráter de bom moço, frequência ao sítio onde fora criado, sua paixão pelo primeiro amor e sua postura positiva frente aos contratempos que se deparam na vida. Levando em consideração que o sujeito está sempre em processo de construção, vale destacar, ainda, que esses traços subjetivos não são fixos, bem como se percebe a partir de sua mudança do “rancho” para a zona urbana, na qual ele se transforma (mudança no visual, na linguagem e no comportamento), condizendo com as considerações de Fernandes (2008), cujo sujeito é histórico e está sempre em processo de deslocamento, dispersão, na ordem do (i)nacabado. 4. Considerações finais Pela análise do material referente à telenovela Êta Mundo Bom!, de Walcyr Carrasco, é possível afirmar que a constituição do sujeito caipira, Candinho, se dá por meio de suas relações de saber e poder, tendo em vista o ambiente “roceiro” no qual ele habita e as pessoas de sua família com as quais ele convive, que também são caipiras. Esses traços caipiras são perceptíveis nas suas características mais aparentes, como o modo de se vestir, de falar e traços comportamentais, como a ingenuidade. Não se tratam se subjetividades tomadas como inferiores as de outro sujeito, como urbano, por exemplo, mas de um sujeito com seu estilo próprio relacionado a um saber específico, ligado à sua exterioridade imediata, o meio rural. Pelo suporte teórico-metodológico adotado para a análise, outro fator que merece destaque se refere à descontinuidade do sujeito, isto é, sua dispersão na história, tomando como pano de fundo a mudança de ambiente de Candinho, sujeito que deixa a zona rural (roça) e se muda para a cidade. Essa alteração nas relações de saber e poder o transforma em um novo sujeito, possibilitando a compreensão de que o sujeito não é fixo, mas que está sempre em processo de constituição por meio da história. 5. Discografia LÔBO, Haroldo; MEDEIROS, Geraldo. O sanfoneiro só tocava isso. Intérprete: Suricato. In: ÊTA MUNDO BOM! VOL. 1. Rio de Janeiro: Som Livre, p2015. 1 CD. Faixa 1. BABO, Lamartine; BARROSO, Ary. No rancho fundo. Intérprete: Chitãozinho e Xororó. In: ÊTA MUNDO BOM! VOL. 1. Rio de Janeiro: Som Livre, p2015. 1 CD. Faixa 7. CARVALHO, Mú; MOSKA, Paulinho. Tudo que acontece de ruim é para melhorar. Intérprete: Paulinho Moska. In: ÊTA MUNDO BOM! VOL. 2. Rio de Janeiro: Som Livre, p2016. 1 CD. Faixa 19. 6. Referências FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012. 149 FOUCAULT, Michel. [1969]. Arqueologia do Saber. 7. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. _____. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996. _____. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. _____. Verdade e Subjectividade (Howison Lectures). Revista de Comunicação e linguagem. nº 19. Lisboa: Edições Cosmos, 1993. p. 203-223. 150 MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA OS DISCURSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PROFESSOR ANTONIO JOSÉ DA SILVA Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos Linguísticos Universidade do Estado de Mato Grosso Avenida Santos Dumont, S/n, Bairro: DNER, Cáceres-MT CEP 78200-000 prof.antoniosilva@uol.com.br Resumo. Este trabalho tem como objetivo analisar como se dá o processo de identificação do sujeito professor. O corpus, significado como objeto simbólico-ideológico constitui-se por meio de entrevista através de questionário direcionado aos professores de Língua Portuguesa. O movimento entre o mercado editorial, a ciência e o Estado, lugares que funcionam como redes de sentidos imaginários, em um jogo, projetados pelas Políticas Públicas para os professores na efetivação da seleção do livro didático. Palavras chaves: Identificação. Sujeito-professor. Sentidos. Abstract. This study aims to analyze how the process of identification of the subject teacher occurs. The corpus, meaning as a symbolicideological object, is constituted through an interview through a questionnaire directed to the teachers of Portuguese Language. The movement between the publishing market, science and the State, places that function as networks of imaginary senses, in a game, designed by the Public Policies for the teachers in the effectiveness of the selection of the textbook. Keywords: Identification. Subject-teacher. Senses. Neste trabalho, queremos compreender o modo como o professor identificase com o livro didático enviado para as escolas pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). As políticas públicas de ensino através do livro didático fundamentam e orientam o processo educativo nas escolas brasileiras. O ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa nas escolas é objeto de discussão desde o século XIX, período em que o livro didático tornou-se um instrumento para o professor ministrar as aulas. Nosso objetivo é compreender como se dá a identificação dos professores no processo de seleção do livro didático do nono ano da disciplina de Língua Portuguesa da Escola Estadual ¨13 de Maio¨, localizada no município de Porto Esperidião/MT, município que faz fronteira com a Bolívia e fica a 340 km da capital Cuiabá-MT. Nesse sentido, observamos nos discursos o modo como a formação discursiva posta em funcionamento revela as contradições e as relações de forças, que funcionam na efetivação da seleção do livro didático pelos professores. Essas discursividades constituem-se numa representação imaginária de política pública, pelas regularidades no processo que institucionaliza a seleção do manual didático significado pelo Estado. 151 Nossa inquietação é entender o processo de identificação nos discursos do sujeito professor na seleção do livro didático na escola. Nessa seleção analisamos os discursos dos professores sobre as políticas de ensino, ou seja, propomos um percurso de reflexão para compreendermos os efeitos de sentidos produzidos pelas políticas públicas de ensino relativas à política de distribuição e adoção do livro didático no Brasil. Nessa direção, questionamos: Há movimentos de resistência pelos professores na escolha do livro didático? Nosso trabalho reflete sobre a identificação do sujeito professor com o principal “instrumento linguístico” utilizado pelos professores para desenvolver o processo ensino-aprendizagem na maioria das escolas públicas. Nas aulas de Língua Portuguesa, observamos que o livro didático se destaca como a “ferramenta” mais utilizada por professores e estudantes. O livro didático vem passando por mudanças, sendo discutido por inúmeros estudiosos de diferentes filiações teóricas para refletirem sobre esse material pedagógico disponibilizado pelo Estado, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Sobre os instrumentos linguísticos, Auroux (2014) aponta que os conceitos de gramatização e de instrumentos linguísticos estão muito ligados. Para o autor, a gramatização é um “processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua”. (idem, p. 65). Em nosso caso, tomamos o livro didático como instrumento linguístico utilizado pelos professores para o trabalho com a língua em sala de aula. Segundo Horta (2008) da perspectiva da História das Ideias Linguísticas, as gramáticas e os dicionários são vistos como instrumentos linguísticos e têm sido estudados também como objetos de conhecimento. Para o autor, o mesmo se pode dizer a respeito dos manuais didáticos. (Idem, p.110). Esse trabalho se inscreve na perspectiva da História das Ideias Linguísticas (HIL) articulada à Análise do Discurso (AD) de linha materialista, formulada por Pêcheux, na França e desenvolvida por Eni Orlandi, entre outros pesquisadores, no Brasil. Em outras palavras, se insere na perspectiva discursiva da linguagem, que considera a relação entre Língua e História. Nessa perspectiva, a escola tem a função de preparar o aluno/cidadão para viver em sociedade, é um lugar em que é propagado o saber sobre a língua, via livro didático. Nesse sentido, Silva (2007, p. 141) afirma: Ensinar-aprender uma língua escrita na Escola é, basicamente, adquirir uma competência linguística escrita e um saber sobre uma língua nacional em que se entrecruzam relações também complexas entre conhecimentos científicos e saberes institucionais em um espaço-tempo determinado. A escola é, pois, fundamental para legitimar e instrumentalizar a língua. O material didático, que fora pensado inicialmente para ser um complemento nas aulas, ganhou um importante espaço dentro do ambiente escolar como organizador dos conteúdos, da metodologia e do referencial teórico. Ainda, segundo Silva (2007. p. 155), Obscurecemos o fato de que a posição de sujeito-aluno se constitui como sujeito de um discurso pedagógico em um processo histórico de produção de linguagem e de conhecimento, em que as relações de poder conformam as instituições de um Estado, como a Escola, pelo apagamento do político que as determina. A autora afirma que a prática de ensino ligada à transformação histórica do processo de produção econômica, produz a normatização da força de trabalho e a 152 organização das relações sociais, sendo o aluno e o professor sujeitos das forças produtivas dessa sociedade. Muito se tem discutido sobre o material que orienta o processo educativo na maioria das escolas brasileiras. Esses estudos são importantes porque contribuem com o ensino no Brasil. Portanto, precisamos refletir sobre o material didático que é produto de uma sociedade. Nesse sentido, questionamos: Até que ponto pode um livro didático contribuir no processo de produção do conhecimento da língua? Para responder esta questão, queremos compreender nas políticas públicas de ensino de Língua, as contradições e as relações postas em funcionamento pelas diferentes Formações Discursivas (FDs). As formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988). Um material didático que trata a língua enquanto sistema torna-se um objeto que se dá em si mesmo, conforme Orlandi (1996, p.22), o material didático, que tem esse caráter de mediação e cuja função sofre o processo de apagamento (como toda mediação) e passa de instrumento a objeto. Enquanto objeto, o material didático anula sua condição de mediador. O que interessa, então, não é saber utilizar o material didático para algo. Como objeto, ele se dá em si mesmo, e o que interessa é saber o material didático (como preencher espaços, fazer cruzinhas, ordenar sequências, etc). A reflexão é substituída pelo automatismo, porque, na realidade, saber o material didático é saber manipular. A mediação do conhecimento científico pelo material didático pode passar por um processo de apagamento caso seja empregado como um objeto que comporta o conhecimento. Nesse sentido, o livro didático não é utilizado como um instrumento, como um dos recursos no processo ensino aprendizagem, mas como a principal fonte para transmitir conhecimento, trabalhando a língua como transparente, distanciando de um trabalho na perspectiva discursiva que concebe a língua na sua relação com a exterioridade, ou seja, como mediação necessária entre o homem e a realidade que o cerca (ORLANDI, 2015). Na constituição da AD, a língua, o texto, a interpretação, o sujeito e o sentido, em suas inter-relações são fundamentais como campo de estudo. A língua para que tenha sentido, é preciso que tenha história, para que o próprio sentido tenha sentido, é preciso que haja interpretação, mas os sentidos só têm sentido quando também se tem um sujeito. Dentre essas perspectivas, destacamos que a AD considera as condições de produção, exterioridade, processo histórico social, como constitutivos do discurso. Não trabalha com a língua enquanto sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com homens expressando-se oralmente e por escrito, falando, produzindo sentidos, enquanto sujeitos e enquanto membros da sociedade. Trata o discurso como palavra em movimento, prática de linguagem. A língua deve fazer sentido enquanto trabalho simbólico, que significa a partir do trabalho social, constitutivo do homem e da sua história. Pêcheux (1995) relata que o funcionamento da ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em sujeitos acontece por meio do complexo das formações ideológicas e dá a cada sujeito a sua realidade, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas-experimentadas (p. 162). A interpelação do indivíduo em sujeito do seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (que constitui como sujeito). Para Pêcheux (1995), existem três modalidades de identificação do sujeito: a 1ª - É a superposição que revela uma identificação plena do sujeito do discurso com 153 a forma-sujeito da FD que o afeta, tendo-se aí o discurso do bom sujeito. A 2ª caracteriza o mau sujeito, pois o discurso do sujeito da enunciação se volta contra o sujeito universal por meio de uma tomada de posição. O sujeito se contra-identifica com a formação discursiva que lhe é imposta. A 3 ª - além da identificação plena e da contra-identificação, Pêcheux acrescenta uma terceira modalidade, na qual o sujeito ao desidentificar-se de uma formação discursiva, desloca sua identificação para outra formação discursiva. Tendo assim um mau sujeito. Análise Analisamos o corpus constituído por discursos produzidos por meio de uma entrevista direcionada aos professores de língua portuguesa do ensino fundamental na escola pesquisada sobre o processo de seleção do livro didático. Pelo viés da teoria discursiva, buscamos compreender o funcionamento desses discursos, ou seja, realizamos gestos de interpretação, observando as posições-sujeito ocupadas pelos professores, inscritos numa dada formação discursiva com a qual se identificam quando participam do processo de seleção do livro didático. Organizamos a análise em recortes porque os discursos dos sujeitosprofessores se relacionam com as diferentes posições assumidas pelos próprios sujeitos, inscritos numa dada formação discursiva, quando respondem ao questionário. Consideramos que esses discursos indicam os efeitos de sentido produzidos nas sequências discursivas (SD), que segundo Courtine (1981, p. 25), são “sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase”. Reunimos o material de análise e organizamos as sequências discursivas que demonstram diferentes modos de identificação do sujeito-professor referente a esse recorte. SD1: As editoras enviam às escolas exemplares dos livros didáticos pelos seus representantes para serem escolhidos pelos professores. Há alguns anos estes exemplares eram acompanhados de catálogos com algumas informações gerais sobre os referidos livros. É comum a oferta de brindes por parte dos representantes aos gestores escolares, como objetos (canetas, bloquinhos de anotações, etc.) ou a oferta de conteúdos digitais disponíveis na internet ou em CDs aos professores de algumas disciplinas. Dependendo da área, a escolha é realizada sem grandes conflitos. Em algumas áreas, há quase sempre um grupo que toma a iniciativa e capricha nos argumentos para convencer os colegas da importância de se escolher este e não aqueles livros. Nem sempre esses argumentos possuem base na leitura e análise completa dos livros. (Prof. 1) SD2: Comecei a trabalhar como professora o ano passado e não tenho muita experiência. Recente tive o prazer de participar da escolha, ocorrendo da seguinte forma: os professores de linguagem olharam, leram, consultaram as editoras e em seguida se reuniram para escolherem juntos a melhor opção para se trabalhar com seus alunos, escolhendo aquele que se encaixava melhor com a proposta pedagógica da instituição. (Prof. 2) SD3: Os professores da área de linguagem se reúnem para estarem analisando o livro didático e o que trás de referência. (Prof.3) Recortamos três sequências discursivas que respondem a pergunta que 154 fizemos aos professores sobre o processo de seleção do Livro didático. Podemos perceber nas formulações em negrito algumas marcas linguísticas que vamos analisar nos discursos dos sujeitos professores para observar os efeitos de sentidos produzidos no processo de seleção do livro didático realizado na escola. O sujeito-professor, na sd1, faz uma descrição de como as editoras tentam influenciar no processo de seleção do livro. Afirma que as editoras ofertam brindes aos gestores, bem como conteúdos digitais disponíveis na internet ou em CDs para os professores. Desse modo, há uma denúncia, a professora relata que as editoras querem fazer permuta: oferecem brindes para persuadir a escola a escolher os livros da empresa. O capitalismo funcionando, o mercado se impondo na seleção dos livros didáticos. Notamos que a professora faz inicialmente uma descrição do processo e a seguir relata que a “escolha” quase sempre é realizada sem grandes conflitos entre os docentes das áreas. No entanto, afirma que há situações em que alguns grupos influenciam a escolha com argumentos fortes para convencer os colegas da importância da escolha de um e não outro livro. Nessa sequência discursiva, as marcas linguísticas “dependendo da área”; “algumas áreas”; “um grupo” que poderia significar o trabalho feito em conjunto, tal como prescreve o Guia do PNLD, toma outra direção. A professora se posiciona de modo diferente apontando uma falha no processo. O pronome indefinido “algumas” produz um efeito de sentido de negação ou dúvida no processo de seleção, ou seja, outros “escolheram” o livro. Na formulação “escolher este ou aquele livro, nem sempre esses argumentos possuem base na leitura e análise completa dos livros”, o sujeito-professor dá a entender que discorda da forma como a “escolha” é feita, sugerindo que deveriam se pautar na leitura e análise do livro. Quando emprega a expressão “nem sempre”, o sujeito-professor deixa em suspenso em seu argumento que a seleção possui pouca leitura para fundamentar a escolha do livro. Há uma indeterminação quando o sujeito professor afirma que: “em algumas áreas, há quase sempre um grupo que toma a iniciativa”. Ele participa da seleção, no entanto, faz comentários sobre outras áreas, e não da área de linguagens da qual faz parte. Compreendemos, conforme a sd1, que a escolha pode ocorrer pautando-se na “oferta de brindes, por parte dos representantes, aos gestores escolares, como objetos (canetas, bloquinhos de anotações, etc.)” ou na “oferta de conteúdos digitais disponíveis na internet ou em CDs aos professores de algumas disciplinas”. Nesse funcionamento, há um movimento de resistência. Se não optar pelo livro que a maioria dos professores escolheu, se ela e os demais colegas escolherem outra coleção, ainda assim, essa ação legitima a política do Estado, pois a “escolha” será das obras selecionadas pelo PNLD. Na formulação, da sd1, “editoras enviam às escolas exemplares dos livros didáticos pelos seus representantes para serem escolhidos pelos professores”, observamos que a professora faz uma crítica às editoras porque a seleção dever ser feita com a utilização do Guia, no entanto, as editoras enviam as coleções aprovadas aos docentes como estratégia de divulgação. O mercado editorial exige ser conhecido para ser consumido/vendido. No entanto, conforme a Portaria Normativa nº 7, de 05 de abril de 2007, que dispõe sobre as normas de conduta no âmbito da execução dos Programas do Livro, no artigo 3º, parágrafo 3º, constituemse proibições aos Titulares de Direitos Autorais e seus representantes “I – Oferecer vantagens de qualquer espécie a pessoas ou instituições vinculadas ao processo de escolha, no âmbito dos Programas do Livro, a qualquer tempo, como contrapartida à escolha de livros ou materiais de sua titularidade;”. As editoras e/ou seus representantes, imersos na dinâmica do comércio, contrariamente à Lei oferece brindes visando ao lucro com a venda das coleções. Embora teça uma crítica ao modo como as editoras tentam influenciar os 155 professores no processo de “escolha” de obras pré-selecionadas pelo Estado, pois, o MEC/PNLD já fez a pré-seleção, e qualquer que seja a coleção adotada, todas passaram pela aprovação do Estado, posiciona-se favorável a “uma leitura e análise completa dos livros”. A “leitura e análise” deverão ocorrer das obras enviadas para a escola pelas editoras. O Estado disponibiliza para os professores o Guia com as resenhas das coleções aprovadas para a seleção. Nesse discurso a professora aponta como falha no processo de seleção, o fato de os professores não ter o livrearbítrio na seleção do livro para desenvolver as práticas pedagógicas. Nesse processo, o professor uma vez interpelado pela ideologia do Estado, seleciona uma coleção dentre as obras apontadas pelo Programa Nacional do Livro Didático, mas pode trabalhar com o livro de forma diferenciada na sala de aula. Na sd2, o sujeito-professor posiciona-se diferente do discurso da sd1, afirma que é da área de linguagem. A professora se identifica com as políticas públicas do Estado, que determina as normas para a realização da seleção, “recente tive o prazer de participar da escolha”. Entendemos que o sujeito-professor está inscrito numa formação discursiva específica, singular em relação aos demais professores, pois considera um prazer participar de um processo em que os docentes fazem uma “escolha” de obras previamente selecionadas pelo Estado. O sujeito-professor afirma que durante o processo as obras selecionadas foram as que apresentam “a melhor opção” para os alunos e “que se encaixava melhor com a proposta pedagógica da instituição”. Essas formulações produzem efeito de sentido de que o livro didático escolhido é a melhor opção entre tantos outros apresentados. Segundo Pfeiffer (2003, p. 95), o livro didático “assume as vestes do discurso científico da verdade unívoca” para o professor inscrito numa formação discursiva que incorpora o já-dito nas políticas públicas em funcionamento que regulamentam quais instrumentos linguísticos podem ser utilizados no processo ensino-aprendizagem. O discurso para Orlandi (2015), concordando com Pêcheux (1969), mais do que transmissão (mensagem) é efeito de sentidos entre locutores Dizer que o discurso é efeito de sentidos entre locutores significa deslocar a análise de discurso do terreno da linguagem como instrumento de comunicação... a propósito de um referente e baseando-se em um código que seria a língua, o outro responde e teríamos aí o circuito da comunicação. Não há essa relação linear entre enunciador e destinatário. Ambos estão sempre já tocados pelo simbólico... efeitos que resultam da relação de sujeitos simbólicos que participam do discurso, dentro de circunstâncias dadas. Os efeitos se dão porque são sujeitos dentro de certas circunstâncias e afetados pelas suas memórias discursivas. (ORLANDI, 2015, p. 17) Assim, os discursos são mais que a relação entre locutores, relação como estímulo e resposta, transmissão (mensagem). Para a análise de discurso, o discurso é efeito de sentido entre locutores que está além da análise linguística. Desse modo, para fazer análise é necessário compreendermos o sujeito e a situação para relacionar o discurso com sua condição de produção, sua exterioridade. Podemos observar na sd3, que o sujeito-professor se posiciona que é da área de linguagem e se identifica com os discursos que circulam na escola sobre as propostas apresentadas no livro didático, pois faz a seleção “analisando o livro didático e o que trás de referência” e se inscreve na mesma formação discursiva dos autores do livro didático que foi escolhido, ou seja, concorda com o discurso dos 156 autores, porque são afetados pelas suas memórias discursivas. Conforme Orlandi (2015, p. 52), “Ao invés de se fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete”. Sobre a repetição, Orlandi (1996, p.70) distingue três tipos: a repetição empírica ou mnemônica; a repetição formal que consiste na técnica de produzir frases; e a repetição histórica “que inscreve o dizer no repetível enquanto memória constitutiva”. (Idem). Notamos nessa sequência discursiva que o discurso do professor é atravessado pelo discurso do Estado, que impõe um processo de seleção do livro didático, com apresentação de resenhas dos livros pré-selecionados. Interdita, direciona apontando para um caminho, só uma possibilidade de o professor selecionar livros que não sejam os já pré-selecionados pelo Estado, ou seja, o professor reproduz o discurso disponível nas políticas, um discurso engessado, configurando-se numa repetição mnemônica, que só repete o já-dito sobre processo ou só diz aquilo que imagina que querem que ele diga. Analisamos as marcas linguísticas nos discursos dos professores para entendermos os efeitos de sentido e as formações discursivas, nas quais se inscrevem seus discursos e pudemos observar que ao fazer a descrição do processo de seleção do livro didático, os professores se inscrevem em diferentes posição-sujeito: na sd1, o sujeito-professor aponta uma falha no processo de seleção do livro didático, marcando um certo distanciamento da prática que se realiza; na sd2, o sujeito-professor, interpelado pela ideologia, se identifica com as políticas de Estado e concorda com o modo como escolhem o livro, ou seja, ele se inclui no processo, defendendo a possibilidade de escolherem “juntos” a melhor opção; na sd3, o sujeito-professor descreve que o processo se realiza tal como prescreve a proposta do Estado, corroborando com o dizer da sd2, a ausência de marcas linguísticas que marquem se está ou não de acordo com o processo também significam, pois as condições de produção se dão numa relação em que as políticas públicas determinam o que pode e deve ser dito. Considerações Neste trabalho, observamos nos discursos as formas de identificação dos docentes de língua portuguesa. O professor da educação básica identifica-se com as políticas públicas de ensino no processo de escolha do livro didático, nesse processo, faz uma simulação, uma pseudo-seleção do livro didático, pois o Estado disponibiliza as resenhas das coleções com uma lista de obras selecionadas e aprovadas para que os professores adotem. Ou seja, o processo de seleção do livro didático reflete a ideologia do Estado. No entanto, o professor pode resistir e diversificar o material em sua prática pedagógica e desconstruir a imagem de professor como incapaz de produzir conhecimento. Ressignificar sua prática pedagógica e fortalecer os espaços de resistência, que Pfeiffer (1995, p.31) define como “movimento de resistência e de afirmação de identidade”. Nessa resistência, pode minimizar os efeitos de sentidos do Estado na seleção do livro didático. No decorrer da pesquisa, notamos por meio dos discursos dos sujeitos que no processo de seleção do livro didático o professor apenas atende ao que as políticas públicas estabelecem. Analisamos que os sujeitos professores são capturados e marcam suas posições em relação ao papel do Estado: identificam-se, ora plenamente, ora parcial. Há um discurso engessado que não possibilita ao professor romper o ritual de “escolha” do livro didático. As políticas públicas de ensino através da distribuição gratuita do livro didático institucionalizaram um 157 processo rígido, fechado, estabelecendo ações para as instituições envolvidas: as editoras, as universidades e as escolas. O livro didático deve ser um meio, dentre os muitos, de que os professores dispõem para aprimorar o trabalho pedagógico. Ele pode desenvolver caminhos pelo fato de o sujeito não ser o mesmo e a língua não ser transparente. Dessa maneira, para que haja troca de sentidos e de experiências nas aulas, é preciso que o aluno e o professor estabeleçam relações entre o conteúdo abordado no livro e o espaço histórico-social de sua produção, bem como as práticas sociais da humanidade. Referências AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Editora da Unicamp, 1992. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de 1996. Disponível em http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf. Acesso em 23/11/2015. COURTINE, Jean Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçados aos cristãos. São Carlos. EDUFSCar. 1981. FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O carácter singular da língua na análise do discurso. In: Organon. V. 17, n. 35, Porto Alegre: UFRGS, 2003. ISSN eletrônico: 2238-8915. Disponível em: seer.ufrgs.br/organon/article/view/30023. INDURSKY, Freda. Estudos da linguagem: Língua e Ensino. Organon, v. 24, nº 48, 2010. NUNES, José Horta. Uma articulação da análise de discurso com a história das ideias linguísticas. Letras, Santa Maria, v. 18, n. 2, p. 107-124, jul./dez.2008. ORLANDI, Eni. P. A Linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso. São Paulo: Pontes, 1996. ______Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas, SP. Vozes, 2 ed. 2001. ______. Discurso em Análise Sujeito, sentido e ideologia. Campinas, SP. Pontes Editores. 2012. ______. Eni P. Análise de Discurso. In ORLANDI, Eni P. e LAGAZZIRODRIGUES, Suzy (Org.). Discurso e Textualidade. Campinas SP: ed. Pontes 2015. ______. E. P. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Pontes, Campinas, SP: 2015 PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: ed. da UNICAMP, 1988. PFEIFFER, Claudia Castellanos. Políticas públicas: educação e linguagem. 158 Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, 53(2): 149-155, Jul./Dez. 2011. 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O presente trabalho tem como objetivo verificar os desafios encontrados pelas mulheres indígenas Assuriní diante dos altos índices de violência doméstica presente na aldeia Trocará, Município de Tucuruí/Pará, e como tais mulheres buscam estratégias para diminuir as agressões sofridas, modificando assim a realidade, que vivenciam. Para atingir os objetivos propostos, buscamos apoio teórico-metodológico em autores que trabalham a questão indígena e os diversos problemas que estas populações enfrentam em decorrência da violência doméstica em suas aldeias, entre os quais destaca-se, VERDUM (2008) KAXUYANA E SILVA (2008), entre outros. Da mesma forma, realizou pesquisa de campo na referida aldeia, quando, através das técnicas da observação participante e da realização de entrevistas se estabeleceu relação mais estreita com os habitantes da aldeia Trocará. Dados preliminares da pesquisa apontaram altos índices de alcoolismo entre os indígenas Assuriní, sendo um dos grandes responsável pelas crescentes violências domesticas que as mulheres estão sendo submetidas na sua aldeia, haja vista que os homens sob o efeito do álcool tornam-se muito agressivos, fato gerador de atos de violência. Contudo, também se observou que as mulheres Assuriní não se acomodam com a situação, desenvolvem estratégias para se desvencilharem dos ataques de violência dos homens, como, por exemplo, amarram os agressores embriagados até recobrar a consciência, assim como, se organizam através de reuniões para ajudarem umas às outras, através da exposição dos problemas enfrentados, conversas, conselhos para como agir e auxílios diversos. Palavras-Chave. Violência doméstica, Mulher Assuriní, Poder feminino Abstract. The present study aims to verify the challenges faced by indigenous Assuriní women in the face of the high rates of domestic violence in the village of Trocará, in the municipality of Tucuruí / Pará, and how these women seek strategies to reduce the aggression suffered, thus modifying the reality that experience. In order to reach the proposed objectives, we seek theoretical and methodological support in authors who work on the indigenous issue and the various problems that these populations face as a result of domestic violence in their villages, among which we highlight, VERDUM (2008) KAXUYANA AND SILVA 2008), among others. In the same way, he carried out field research in that 160 village, when, through the techniques of participant observation and interviewing, a closer relationship was established with the inhabitants of the Trocará village. Preliminary data from the survey showed high levels of alcoholism among the Assuriní Indians, one of the main ones being responsible for the increasing domestic violence that women are being subjected to in their village, given that men under the influence of alcohol become very aggressive, fact generator of acts of violence. However, it has also been observed that the Assuriní women do not settle for the situation, they develop strategies to get rid of the attacks of violence of the men, for example, tie the drunk aggressors until regain the consciousness, as well as, they organize themselves by means of meetings to help each other by exposing the problems they face, conversations, advice on how to act, and various aids. Key words. Domestic Violence, Assuriní, Female Powe. 1. Consideraçoes iniciais Muitas são as batalhas travadas pela mulher indígena, mas aos poucos estão ganhando sua autonomia por meio de associações criadas no seio de suas comunidades, para que assim tenham participação atuante diante da sociedade não indígena e no interior de suas aldeias, muitas etnias, pela perseverança de suas mulheres e com suas associações, estão constantemente saindo de suas comunidades em busca de informações e apoio para lutar contra atos de violência que infligem o cotidiano das aldeias indígenas de várias regiões do país, aterrorizando o dia a dia de mães e crianças indígenas. A violência doméstica é uma realidade presente, infelizmente no mundo todo, e mesmo que haja uma lei de combate vigorando no país, a Lei Maria da Penha 59, ainda é muito grande os índices da violência: agressões físicas, psicológicas, verbais, que subjugam e inferiorizam as mulheres, as humilham e as agridem, deixando marcas profundas não apenas na pele, mas também na alma. Há uma constante batalha para a redução e finalização da violência doméstica, mas muito ainda deve ser feito, pois só no Brasil, a cada uma 1h30, uma mulher é morta em decorrência da violência doméstica, que parte na maioria das vezes de seus próprios companheiros. Esse problema também é evidenciado nas diferentes comunidades indígenas brasileiras, em que os índices significativos de violência sofrida pelas mulheres, por parte de seus companheiros, maridos e filhos, são significativos, conforme Kaxuyana e Silva (2008). Tal questão é mais intensa, principalmente, entre aqueles que mantêm um contato mais estreito com a sociedade não indígena, não que isso também não ocorra entre os povos que têm uma interação menor, mas se percebe que o contato maior dos homens indígenas com os não indígenas tem impactado fortemente, haja vista o machismo, grande causador das formas de violência contra a mulher. Além disso, o alcoolismo, que provoca grande desestruturação nas aldeias, gera violência doméstica, vitimando principalmente as mulheres e as crianças indígenas. Fato 59 A Lei n. 11.340, ou Lei Maria da Penha, foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 7 de agosto de 2006, entrando em vigor no dia 22 de setembro de 2006. Maria da Penha Maia Fernandes, que nomeia a lei, foi vítima de violência doméstica durante seus 23 anos de casada. Em 1983, o marido por duas vezes, tentou assassiná-la. Na primeira vez, com arma de fogo, deixandoa paraplégica, e na segunda, por eletrocussão e afogamento. Após essa tentativa de homicídio, ela tomou coragem e o denunciou, mas ele só foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em cárcere no regime fechado. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Maria_da_Penha>. 161 presente na comunidade indígena Assuriní do Trocará, localizada no município de Tucuruí no sudeste paraense onde esse estudo centra-se. Pois em decorrência da pesquisa de campo realizada em outubro de 2016, no qual foi realizada observação in loco e entrevistas com os moradores sejam homens, mulheres, crianças e idosos, verificou-se que a violência doméstica é um problema que vem assolando de forma ativa essa população, provocando medo, instabilidade e estratégias para que haja uma diminuição desse problema na aldeia Trocará. 2. Violência doméstica na aldeia trocará São diversos os fatores que levam a agressões sofridas pelas mulheres Assuriní, como as brigas conjugais, conflitos entre sogros, genros e noras ou mesmo entre pais e filhos, ocasionando com isso as formas de violência que não apenas se restringem às verbais, mas extrapolam para a física, como se percebe na fala da senhora Passavia Assuriní: A minha sogra não gostava muito de mim, só que eu não ficava contra ela, não brigava com ela. Mas se ela não gostava de mim e eu falava pro meu marido, ele batia na mãe dele, não gostava que brigasse comigo e batia nela. Aí eu falei pra ele: - Olha não pode bater na mãe, não, se for assim a gente pode separar. Aí ele falou não, aí ficou nisso, mãe dele foi ficou doente, aí quando ele foi ficou, aí ele batia na mãe dele, aí. Como eu falo pro filho dele, olha meu filho, teu pai batia muito na tua avó por causa de mim, aí ele pegou falou assim: - Tá bom, mãe. Aí falei: - Mas não é bom bater na mãe, não, tem que respeitar mãe da gente, viu? Então eu procuro tá conversando com ele pra num fazer o que o pai dele fazia né, pra num fazer comigo, com a mulher ou filha dele né? (Senhora Passavia Assuriní, entrevista realizada em outubro de 2015). Assim sendo, podemos perceber como as agressões físicas sofridas pelas mulheres indígenas da Reserva Trocará estão relacionadas a diversos fatores, como o exposto acima, ocasionado por conflitos familiares em que, se a situação fosse o inverso, e a nora, que tivesse algum tipo de mal-estar com sua sogra, possivelmente, a agressão seria acometida a ela, como se devesse punir aquela que gera o conflito na família. Mas percebe-se que as mulheres buscam em meio a esse problema vivenciado por elas, aconselhar seus filhos, netos e maridos sobre quanto a violência é um problema que pode destruir ainda mais os laços familiares e, assim, intencionam em meio aos diferentes episódios, acabar com as agressões sofridas por elas, evitando, com isso, danos ainda maiores no futuro. Porém, em meio aos diferentes motivos que levam aos abusos sofridos pelas mulheres Assuriní, o principal e mais violento se desenvolve pelo consumo de bebidas alcoólicas e usos de drogas, como a maconha, que os Assuriní não tinham conhecimento prévio. Na comunidade Assuriní, todos os habitantes são livres para andar, brincar e viver em qualquer ambiente. As mães deixam seus filhos sem preocupação, pois sabem que um cuida do outro e quando sentem alguma necessidade, como se alimentar, por exemplo, a criança procurará por conta própria sua casa, no entanto, quando há alguém bêbado na aldeia a preocupação é inevitável, pois sabem que diante dos efeitos do álcool, os indígenas se tornam violentos e agressivos. Segundo relatos dos Assuriní, o álcool é o maior causador da violência doméstica, fazendo que os indígenas fiquem irreconhecíveis e passem a atacar não apenas seus familiares, mas qualquer pessoa que estiver em seu caminho, fato 162 presenciado ainda no decorrer de minha primeira pesquisa de campo, em outubro de 2015, pois em um momento de reunião ao redor do campo de futebol foi anunciado que um homem bêbado se aproximava, então todos ficaram em alerta, as mães pegaram seus filhos, pessoas se esconderam e todos alertando para sair de perto o mais rápido possível, pois em qualquer gesto, ele poderia agredir qualquer pessoa. Diante disto, percebe-se o quanto a presença de bebidas alcoólicas assusta a população Assuriní, e o quanto esse vício é sentido por toda a comunidade principalmente, pelos familiares da pessoa, como mulheres, pais e filhos, já que também, a partir do efeito das bebidas, é que a violência é sentida dentro e fora de casa, como pode ser observado no relato de Puraké Assuriní: Ontem mesmo a mulher teve que correr pra se salvar do marido, ela e as criança, porque aqui há muito consumo de bebida e maconha, que eles compram lá na cidade. Isso que é ruim porque maconha a gente não conhece, eu já peguei dois pacote de maconha de dois índio daqui, ai pequei e levei pro delegado e perguntei o que era isso, ele me disse que era maconha (Puraké Assurini, liderança indígena, entrevista realizada em outubro de 2015). Percebe-se que a violência se agrava com a utilização pelos Assuriní de drogas que vem de fora da comunidade, mesmo que as lideranças busquem formas de diminuir o consumo de bebidas e drogas ilícitas dentro da aldeia, isso ainda é o fator que mais implica em agressões no seio familiar. No qual muitas vezes são causados danos irreparáveis, pois de acordo com estado que os homens ficam, as agressões são variadas. Já houve caso de filho cortar a mão do pai com terçado, por ter lhe chamado a atenção, mas as maiores vítimas são as mulheres, mães e crianças, muitos maridos correm atrás delas com faca ou espingarda, e estas têm que se esconder em casas de parentes e vizinhos para se livrar das agressões. Os pretextos para ocorrer a violência são os mais variados possíveis, desde falar algo que os desagrade ou mesmo por ciúme, como é evidenciado na fala de Sunitá Assuriní: Assim meu tio ele bebia muito né? Ele batia na minha irmã, eu era mais menorzinho, ele batia na minha irmã, fica com ciúme dela, chamava o nome de outro homem pra ela. Bebia, batia nela, jogava e empurrava ela na parede, batia nela, ele mesmo matou um filho dele na barriga da minha irmã. Ele deu um murro na barriga da minha irmã e ela desmaiou e perdeu o bebê dela. As criança ficam com medo, minhas sobrinhas tudinho com medo vão arrudiar ao redor da casa se esconder na casa dos outro (Sunitá Assuriní, morador da aldeia, entrevista realizada em outubro de 2015). Como pode ser verificado, as agressões são tão violentas que põem em risco a vida de todos, mesmo daqueles que não vieram ao mundo, provocando medo, pavor e revolta, a partir daí, as crianças que assistem, crescem revoltados e quando já tem idade suficiente para enfrentar alguém, enfrentam e lutam contra os agressores ou mesmo reproduzem os mesmos fatos que presenciavam quando criança, surgindo a partir daí, mais violência nas famílias. Assim também como o índice de violência se perpetua no seio familiar, provocando mais sofrimento e preocupação, pois mesmo que as mulheres sofram as agressões, elas se preocupam com os companheiros que agem de forma descontrolada, como fica evidente na fala de Sunitá Assuriní. 163 Meu irmão é casado, ele é violento, ele, ele pega a espingarda, ele pega a moto e vai embora com a moto não tá nem aí pra onde ele vai, a mulher fica preocupada, tem dia que elas lutam com ele lá pra pegar a chave dele da moto, e ele bate nela, empurra ela. É briga violenta, quando eles brigam é murro, é chute, é tapa, não tão nem aí, se está pegando em outra pessoa (Sunitá Assuriní, morador da aldeia Trocará, entrevistas realizada em outubro de 2015). Muitos, além de bater nas mulheres, destroem os bens de suas casas, como móveis, eletrodomésticos e eletroeletrônicos. As brigas se restringem, na maior parte das vezes, apenas as famílias, principalmente, entre o homem e a mulher, mas se as mulheres pedirem ajuda ou alguém diferente adentrar no conflito, aí toda a família e até mesmo a comunidade irá se envolver, como foi exposto em entrevistas pelos moradores. Sem falar que os efeitos desses conflitos e agressões são terríveis, pois as marcas deixadas são violentas e profundas, ainda mais que, no momento da briga, usam todos os instrumentos e agressões possíveis, como facões, facas, espingardas, se ferem, se cortam, causando, com isso, uma briga familiar que abala as relações dentro da aldeia e amedronta cada vez mais as crianças e mulheres que são as que mais sofrem nesses acontecimentos. O efeito do álcool além de pôr em risco as relações da família, também causa perigo para o próprio indígena que o consome, pois houve caso na aldeia, no qual um indígena teve a vida tirada em decorrência das consequências do alcoolismo: ele bebeu brigou com a esposa, saiu da comunidade e foi para a cidade de Tucuruí, onde consumiu mais bebida e ficou transtornado, provocou não indígenas, pegando suas bebidas que estavam em cima da mesa, e foi morto por eles, sendo que jogaram seu corpo em um campo de um bairro da cidade de Tucuruí. Os Assuriní só souberam no outro dia quando foram avisados que ele estava morto. Sendo assim, diante do exposto, verifica-se o quanto o consumo de bebidas alcoólicas e o uso de drogas ilícitas refletem negativamente dentro da aldeia Trocará, lesionando a integridade de familiares, principalmente, os mais próximos, que além de sofrerem com a violência são os que mais sentem emocionalmente a cada gesto de horror e violência. 3. Considerações finais Mas diante de tais problemáticas, é importante mencionar que muitas coisas estão sendo feitas para que haja a diminuição no alto índice de alcoolismo nesta comunidade. Assim como a respeito à Lei Maria da Penha, que muito ainda deve ser feito no que diz respeito a beneficiar e amparar as populações indígenas, sendo necessário, primeiramente, que se passe por uma reformulação visualizando as especificidades desses povos. Da mesma forma, é preciso que sejam implantados programas e ações destinadas as mulheres indígenas, como palestras que evidenciem para que serve a lei e no que pode ajudá-las, proporcionando, assim, maior esclarecimento sobre o assunto, uma vez que, muitas desconhecem a Lei Maria da Penha e não tem noção que ela ampara vítimas de violência doméstica. Além do mais, as aldeias ficam distantes das delegacias e postos policiais para fazer as denúncias, fazendo com que as mulheres pensem se realmente devem denunciar, pois além das agressões e violência, está em jogo os sentimentos que elas têm por seus companheiros e os possíveis danos que isso pode ocasionar. Sobre tal questão, Kaxuyana e Silva (2008) afirmam que mesmo as mulheres indígenas admitindo que são atingidas pela violência doméstica, ainda questionam os efeitos e consequências da lei dentro de suas comunidades, pois além de não ser suficientemente bem-aplicada junto a elas, ainda questionam os impactos que 164 causará a seus maridos e filhos, afinal, tudo ainda é muito novo para as mulheres indígenas em relação a isso. Na maior parte das vezes, elas pensam se os homens terão que ficar presos nas cidades pelo abuso que cometeram, e aí questionam os impactos de tal ato: quem ajudará nas realizações das atividades familiares, como caça e pesca, nas roças ou dentro de casa, já que no dia a dia os trabalhos são partilhados? Tudo isso gera dúvidas e acaba silenciando estas mulheres, que precisam de maior informação para poderem decidir se tais instrumentos servem para elas ou preferem resolver a situação da violência de acordo com as limitações e termos estabelecidos por seus povos (KAXUYANA; SILVA, 2008). Isso também ocorre, de acordo como Verdum (2008), porque as mulheres indígenas têm poucas oportunidades e falta de informações para denunciar seus agressores, e quando fazem tais denúncias ainda sofrem com a incompreensão e pressão no seu ambiente comunitário, fato que dificulta ainda mais que sejam amparadas por esses procedimentos jurídicos (VERDUM, 2008). Desta forma, é perceptível que, além da necessidade de possuírem maiores informações, é preciso também uma reformulação em torno da Lei Maria da Penha, pois mesmo que, de acordo com seus princípios, ela busque amparar todas as mulheres, independente de etnia ou religião, ainda tem muito a se adequar no que diz respeito ao princípio da autodeterminação dos povos indígenas, como forma de garantir que essas mulheres sejam subsidiadas ao enfrentamento da violência de acordo com os fundamentos dos direitos humanos, já que tal problema deve ser tratado para além das relações culturais e religiosas, mas sim no bojo dos direitos das mulheres indígenas em conseguir viver livres de violência. Como a Lei ainda apresenta falhas em sua aplicabilidade, as mulheres Assuriní por meio de estratégias, lutas e espírito de liderança encontram maneiras para conseguir diminuir as agressões sofridas por elas em decorrência da utilização de álcool por seus maridos e companheiros dentro da aldeia. Para isso elas buscam conversar com seus esposos e filhos para que possam parar de beber e, consequentemente, não agir com violência em suas casas, percebe-se também que, nesse momento, os filhos são o elo que serve para conscientizar os pais a pararem com o álcool em nome da família, pois dizem para pensar neles e o quanto o álcool está provocando seu sofrimento. Elas também agem em casos que eles não ouvem suas argumentações e continuam praticando atos violentos, prendendo e amarrando-os como forma de detê-los enquanto durar o efeito do álcool. Recentemente, na comunidade, foi elaborado e posto em prática o projeto Bem Viver, contando com o apoio de psicólogos, assistente social e demais profissionais para conscientizar os habitantes sobre as consequências que o alcoolismo pode causar. Neste sentido, evidencia-se que o índice de alcoolismo é um problema que afeta em diversos sentidos a comunidade Assuriní, principalmente, as mulheres e crianças, sejam esposas, mães e filhas, que sofrem com a violência atribuída por aqueles que o consomem, mas estão atuantes buscando melhorias e maneiras para acabar com esse problema e poderem viver em harmonia em meio a seu seio familiar. 4. Referencias KAXUYANA, V. P. P.; SILVA, S. E. S. A lei Maria da Penha e as mulheres indígenas. In: VERDUM, R. (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008. 165 VERDUM, R. (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008. 166 A SIGNIFICAÇÃO DA MULHER AGREDIDA: ANÁLISE DE MANCHETES DO G1 DE MG BÁRBARA DE OLIVEIRA SILVA Curso de Letras FEPI - Centro Universitário de Itajubá Avenida Doutor Antônio Braga Filho, 687, Varginha, Itajubá – MG, 37.5001-002 barbaraoliveira.lts@gmail.com Resumo. Neste trabalho, analisa-se, pelo domínio da Análise de Discurso, como a mulher agredida é significada em uma manchete de um site de notícias. Toma-se como corpus uma manchete que trata de agressão à mulher, formulada no site de notícias G1, mantido pela Rede Globo, que é uma empresa de comunicação de relevância no país. Essa formulação ocorreu dentro do estado de Minas Gerais. Nela analisa-se as relações de sentido produzidas pela formulação, considerando os sujeitos envolvidos e os discursos que a atravessam. Por meio dessa análise, pensa-se no modo como a mulher agredida é significada pela (e na) manchete; Significação que pode ser estendida aos sentidos circulantes pela (e na) sociedade em geral. Palavras-Chave. Análise de Discurso. Mulher. Agressão. Manchetes. Significação. Resumo em segunda língua. Within the framework of the French Discourse Analysis, this work aims at comprehending how a woman who is a victim of physical assault is signified in the headline of a news website. A corpus is taken as a headline that deals with aggression against women, formulated in the G1 news site, maintained by Rede Globo, which is a communication company of relevance in the country. This formulation occurred within the state of Minas Gerais. It analyzes the relations of meaning produced by the formulation, considering the subjects involved and the discourses that cross it. Through this analysis, one thinks of how the battered woman is signified by the (and the) headline; Meaning that can be extended to the circulating senses by (and in) society in general. Palavras-Chave na segunda-língua escolhida. Discourse Analysis. Woman. Aggression. Headlines. Signification. 1.Introdução A mulher, a posição ocupada e as dificuldades enfrentadas. Discussões acerca desse assunto têm conquistado espaço em diversas áreas, inclusive no âmbito científico. Com a ascensão das mulheres no setor profissional e pessoal criou-se uma imagem de que a almejada igualdade, buscada por séculos, finalmente está sendo conquistada. Ainda que a atuação feminina venha adquirindo espaço em diversas áreas, casos de violência contra a mulher parecem aumentar. Em uma sociedade na qual se parece ter tanta liberdade individual, a violência continua atingindo não somente mulheres que se submetem ao controle do marido como homem da casa e fornecedor de todo sustento, mas também algumas mulheres independentes, bemsucedidas. 167 Pensando em contribuir para os estudos de Análise de Discurso e para uma maior visibilidade da causa feminista, é que se deu a escolha desse tema de pesquisa. A escolha do corpus, por sua vez, ocorreu a partir de uma publicação do site G1 a respeito dos dez anos de Lei Maria da Penha, em que foram reunidas mais de 4 mil manchetes que tratam de violência contra a mulher em todo território nacional. Dessas 4 mil notícias, dez foram selecionadas como corpus de análise, entretanto, apenas uma foi escolhida para demonstrar por meio deste a pesquisa que foi feita. Com todo esse histórico de luta contra a violência doméstica que se intensificou em todo país a partir da sanção da Lei Maria da Penha, este trabalho tem como objetivo pensar sobre a significação da mulher em uma manchete que trata dessa violência. De que forma essa mulher agredida é significada nessa (e por essa) manchete? Assim, tomando a significação da mulher como o centro da discussão, a análise ocorrerá no domínio da Análise de Discurso (de linha francesa), cujo maior expoente é Michel Pêcheux. Também serão utilizados como aporte teórico o trabalho de Eni P. Orlandi, que avança continuamente as noções nesse campo. 2. Um olhar discursivo para a significação A noção de condições de produção Para facilitar o entendimento sobre a noção de condições de produção, é necessário entender que no alicerce dos processos discursivos, há uma materialidade histórica, constituída pelas relações sociais onde sujeitos históricos atuam com a formulação dos dizeres, provocando transformações nas relações de sentidos e gerando a prática discursiva. (FONSECA, 2010, p. 2). Portanto, não se deve entender as condições de produção como exteriores a uma formulação, mas determinantes delas. Elas podem ser consideradas de dois modos: sendo elas “em sentido estrito, é considerado o contexto imediato, e em sentido amplo, considera-se o contexto sócio histórico e ideológico”. (ORLANDI, 2015, p. 28). Em sentido estrito, considerase a produção no momento em que ela se materializa; em sentido amplo, considerase a memória, todo sentido anterior e que de certa forma atravessa aquele discurso. Observando o corpus de análise desta pesquisa, percebe-se que as condições de produção em sentido amplo são aquelas que envolvem e afetam a formulação de forma geral, ampla, histórica; é a memória que atravessa a formulação. Ou seja, primeiramente em um jornal regional são esperados relatos de acontecimentos cotidianos dos locais onde este circula. Sendo de circulação virtual, esse jornal alcança um maior público e, assim, as notícias não são necessariamente locais. É também considerada a imparcialidade esperada do jornal em relação às notícias publicadas por ele. E, por fim, considera-se que todo relato de uma manchete é tomado como verídico, uma vez que já está estabilizado na memória discursiva que um jornal não pode relatar falsas notícias. Esses apontamentos feitos em relação às condições de produção em sentido amplo nas manchetes podem ser vistos não somente nesse corpus de análise como em toda e qualquer manchete de jornal produzida, sendo ele de materialidade virtual ou não. Pode-se pensar que já circulam ideias sobre uma manchete, que antecedem uma formulação e atravessam o gesto de autoria, pois existe “o já esperado” dessa formulação. Em sentido estrito, que é o contexto imediato, temos a publicação do relato, que no caso do corpus dessa pesquisa será o de uma agressão. Esse relato é feito por determinado jornalista que é quem organiza, enquanto autor, os sentidos 168 ocorridos. Pode-se dizer que esse relato não é totalmente inédito. Para Pêcheux, a relação de sentidos não tem um início, pois ela se constitui sempre de um discurso antecedente. (ELICHIRIGOITY, 2007, p.8). Neste caso, o autor é visto como um organizador, ele relaciona sentidos que já circulavam e dispõe em uma formulação dele, sendo “a organização” inédita. Considerando, então, “refletindo como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua” (ORLANDI, 2015, p. 16), que é constitutiva da linguagem, torna-se de suma importância entender as condições de produção das manchetes para que se busque uma significação da mulher agredida. Para Medeiros (2008) as condições de produção são tão importantes que se tornam um fundamento para o analista. Segundo a autora, Courtine (1982) afirma que as condições de produção, são um recurso para constituição do processo discursivo. Entretanto, além de compreender a noção de condições de produção, é preciso também estar atento a outros fatores como a noção de mulher dentro da manchete. A noção de mulher nas condições de produção das manchetes Para compreender a análise, é necessário entender também a noção de mulher nas condições de produção da manchete selecionada como corpus. Buscase, por meio deste trabalho, pensar sobre a significação da mulher na manchete, ou seja, a forma como ela é representada na formulação. A formulação em questão trata de uma situação em que a mulher (de modo amplo) é violentada, agredida pelo marido. Dessa forma, pode-se inferir que essa mulher se encontra em uma situação vulnerável. Pode-se presumir que essa mulher está fragilizada devido à agressão sofrida. Massman e Brasil (2017) dizem, sobre a seleção do corpus de análise, que: Considerando o exposto, os sentidos que são produzidos em torno de e sobre a mulher nos recortes selecionados para este estudo, inscrevem-se em determinadas posições que, por sua vez, projetam formações discursivas e formações ideológicas relacionadas ao lugar ocupado por quem fala. Assim, a palavra mulher, quando empregada nos recortes aqui analisados, retoma aquilo que já foi dito sobre a mulher por alguém em outras situações e outros textos/lugares. Conforme analisam as autoras, a palavra, ao ser empregada em textos da legislação brasileira, traz o que já foi dito sobre a mulher anteriormente. Esse movimento do interdiscurso, em que uma palavra/um texto acaba por evocar outros textos é constitutivo de todo e qualquer discursividade, jurídica ou não. Assim, uma manchete de agressão contra a mulher retoma outros textos, não somente sobre violência, mas também aqueles que parecem se significar em um viés oposto. Os dizeres anteriores sobre a mulher em situação de violência diferem-se muito de outras formulações que podem ser encontradas em revistas, tanto virtualmente quanto em bancas de jornal, como em manchetes de revistas de moda, de produtos de beleza ou de saúde da mulher, nas quais as mulheres são mostradas com muito glamour, bem vestidas, suas belezas são exaltadas e seus corpos, evidenciados. Outra diferença, em relação a outros textos (atravessados por outros discursos), é que há sempre uma imagem das mulheres envolvidas ou pelo menos imagens ilustrativas de mulheres felizes e realizadas que somam ao imaginário situações de prazer, de satisfação. No caso de notícias de agressão ou de qualquer tipo de violência, quando a imagem existe, é de uma mulher com sinais de agressão 169 ou uma imagem de um momento feliz, mas que é apresentada somente para situar o leitor sobre quem foi a vítima. Conforme já dito, neste trabalho busca-se pensar em como ocorre a significação da mulher agredida, na formulação/manchete do G1. Como será ela, então, representada na manchete? Quais sentidos atravessam o imaginário do leitor ao se deparar com uma manchete acerca deste assunto? Questões norteadoras da análise que será desenvolvida a seguir. 2. A mulher agredida e significada Figura 1. Mulher é morta em MG. Fonte: Retirado do site G1 (G1, 2017) As condições de produção que permitiram a formulação encontram-se, em sentido amplo, primeiramente no ato de adultério cometido por parte da mulher. A condenação por tal ato pode ser vista em diversas formações discursivas, por exemplo, na religiosa e na machista. Na formação discursiva religiosa, principalmente ao considerarmos os dizeres de instituições cristãs, o casamento deve ser tratado como uma honra para todos e, entre o casal, deve ser imaculado. Essa é uma das formulações que circulam na bíblia, livro que os cristãos têm como de origem divina, como “manual” a ser seguido para o caminho de Deus. Logo, o ato de adultério é considerado por instituições religiosas cristãs como um pecado grave diante de Deus por ser uma violação ao casamento. Envolvendo ainda alguns princípios da formação discursiva religiosa, mas com relação a moralidade, com àquilo que é aceitável (ou não) pela sociedade. Mulheres que se relacionam com mais de um parceiro ou parceira, não são “bem vistas”, pois está cristalizado na memória discursiva brasileira, seja em formulações orais de pessoas mais velhas, seja em textos atuais jornalísticos, como recentemente em publicação da Revista Veja (sobre a primeira-dama Marcela Temer), que pareceu significar uma mulher de respeito como a que deve estar em casa a serviço da família e do marido. Essa formação parece ter relação com a formação discursiva machista, pois também já circula fortemente no interdiscurso que o homem trai por necessidade física e que a mulher, por existir para servir, cuidar da casa, do marido e dos filhos, não deve ter esse tipo de postura. Pensando ainda sobre as condições de produção em sentido amplo, é válido analisar como o adultério, na formulação da manchete, pôde ser significado como uma permissão para o ato criminal. Costumava ser comum em tempos antigos que a honra masculina fosse “lavada” com a morte caso a mulher cometesse adultério. Então, pode-se entender que essa significação, ainda que passada, continua atravessando um imaginário na sociedade. Na manchete, o encadeamento dos fatos “morte após revelação” pode ser filiado a essa memória, pois o que foi dito pela mulher significou-se como a possível causa de sua morte, mesmo sendo formulado apenas como um adjunto adverbial de tempo (oracional). Pensa-se em quais condições permitiram que esse crime fosse cometido 170 (para que pudesse compor a manchete). Entende-se que, se o imaginário da sociedade ainda é fortemente atravessado por significações machistas, o fato de a mulher ter engravidado de um relacionamento anterior ao que ela estava não só permitiu esse acontecimento como agravou o ato adúltero que ela havia cometido. Nota-se que não há especificação sobre a cidade em que o assassinato aconteceu, é dito apenas que ele ocorreu no estado de Minas Gerais. Essa falta de informação sobre o local do crime acontece, geralmente, em casos de crimes hediondos, quando além de preservar a identidade das vítimas é necessário preservar a integridade do suspeito. A referência ao estado, nesse caso, também compreende as condições de produção em sentido estrito. Além disso, a omissão da cidade ou de mais informações sobre o local pode ter ocorrido devido à extensão da manchete, já que a causa da morte ocupou grande parte dos caracteres da formulação. Retornando, então, à questão da significação da mulher agredida, conclui-se que na manchete a mulher é significada como esposa, amante e mãe. A inserção da possível causa da morte indica que o gesto de traição cometido pela mulher está cristalizado como contrário ao esperado de uma esposa, e que o relacionamento adúltero originou um filho, o que, talvez, para o marido tenha motivado ainda mais sua ação violenta. Outras informações poderiam ter sido filiadas para a organização da manchete: cidade, arma, idade da vítima; ou até mesmo a formulação poderia conter somente “Mulher é morta por marido”. No entanto, se a informação “após dizer ao marido que estava grávida de ex” foi recortada e articulada à formulação (embora represente sintaticamente apenas o tempo da ação) é porque funciona anteriormente, na memória discursiva, como algo relevante a ser dito, a ser informado. Não se fala aqui, assim como em todas as análises anteriores e posteriores, em escolha proposital do autor da manchete, pois seu gesto é considerado, em um viés discursivo, como uma organização de sentidos já circulantes, já inscritos em textos anteriores como “o que é relevante”; logo, ele não “fez uma escolha”, mas apresentou o que é esperado que fosse apresentado: a causa da morte. Causa que pode levar a mulher a ser significada não somente como vítima, mas também como adúltera, como aquela que “deu motivos” para que a sociedade, ou para que o próprio marido a punisse. 3. Considerações Finais A manchete em questão foi selecionada tomando como base de que é de responsabilidade do analista a forma como se define o dispositivo analítico. Este, por sua vez, deve considerar a natureza do corpus e o propósito do estudo. Para a Análise de Discurso, o objeto simbólico é imbuído de significação, produzindo sentidos que são organizados em textos (ORLANDI, 2015, p. 25). Esses textos são organizados com sentidos diferentes e as diferenças não podem e não são ignoradas por este estudo. A análise foi feita a partir da seleção do corpus, sem ignorar que, enquanto analista de discurso, percebemos significações distintas sob o mesmo objeto trabalhado. Considerando todas as questões ditas, as afirmações feitas ao longo deste trabalho foram percebidas considerando principalmente a memória discursiva que já circula na sociedade, sem desconsiderar outras possibilidades de análise e de significação não somente da mulher, mas também acerca das condições de produção e do veículo de publicação. Posterior a análise, verificam-se acerca da significação dessa mulher 171 agredida. Uma delas pode ser vista nas justificativas do acontecimento criminal; ao dizer que uma mulher foi violentada ou assassinada após ter agido de forma “x”, verifica-se um tempo funcionando como a causa da agressão. Ou seja, na manchete analisada pode-se perceber que há um motivo para que essa agressão tenha acontecido, como se essa mulher tivesse provocado esse acontecimento. Isso pode ser apontado como um fato preocupante, pois nenhuma agressão deveria ser justificável. Mesmo que tenha havido uma discussão ou uma traição, existem meios pacíficos de se resolver problemas sem que haja necessidade de se agir com violência. Outra regularidade importante que foi verificada ao longo da análise é o fato de a mulher provocar o acontecimento criminal. Percebe-se de várias formas, por meio de sentidos já estabilizados na sociedade, que em qualquer posição em que a mulher se encontre, ela poderá ser significada como responsável pela agressão que sofreu. Assim como a postura da mulher justifica a agressão, a posição dessa mulher também influencia a forma como ela é significada. Ainda que sua posição seja “positiva” dentro da sociedade, a mulher sempre pode ser culpabilizada pela violência sofrida. Afinal, há uma estabilização de sentidos que permite que sejam criadas formulações a respeito de como uma mulher deve agir, se comportar. Confirma-se, desse modo, a importância de trabalhos que deem visibilidade à questão da significação da mulher, pois, apesar de ser evidente um funcionamento de uma nova discursividade atravessada/sustentada por sentidos de liberdade, igualdade, escolha, empoderamento... há formações discursivas (como a machista, a patriarcal, a religiosa, a capitalista) que parecem funcionar em direção oposta, na cristalização da inferioridade da mulher. Contudo, como o discurso é “curso”, é movimento, dar espaço à questão é deslocar sentidos e criar a oportunidade da escrita de uma nova – futura- manchete. 4. Referências ELICHIRIGOITY, M. T. P. Análise do Discurso na área de Letras. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 34, p. 169-199, jun. 2007. FERNANDES, C.A.Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2008. FONSECA, R. O. Condições de produção do discurso e formações discursivas: uma proposta de abordagem da práxis discursiva. Revista Icarahy, Niterói, n. 4, p. 1-14, jun. 2007. G1 MG, 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/minasgerais/noticia/2015/10/mulher-e-morta-em-mg-aposdizer-ao-marido-que-estavagravida-de-ex.html>. Acesso em: 17 nov. 2017 MASSMANN, D; BRASIL, P. Mulher e Vulnerabilidade no Direito brasileiro: uma questão de sentidos. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANDRADE, Denise Almeida de; MACHADO, Monica Sapucaia. Mulher, Sociedade e Vulnerabilidade. Erechim: Deviant, 2017. Cap. 3. p. 47-64. MEDEIROS, C. As Condições de Produção e Discurso na Mídia: A Construção de um Percurso de Análise. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 20, dez. 2008. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas: Pontes, 2015. 172 ORLANDI, Eni P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas: Pontes Editores, 2007. 173 MEMÓRIA E EDUCAÇÃO: SABERES, ENSINAMENTOS E APRENDIZAGENS ENTRE CRIANÇAS INDÍGENAS DA REGIÃO DO TOCANTINS, NO PARÁ BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO60, MARIA DE FÁTIMA RODRIGUES NUNES61 PPGEDUC/UFPA-Cametá PPGEDUC/UFPA-Cametá celpinto18@gmail.com, nunesfatima098@gmail.com Resumo: O presente estudo objetiva identificar através de brincadeiras e brinquedos utilizados por crianças indígenas da região do Tocantins, no Pará, que saberes são transmitidos através dos modos de brincar e confeccionar brinquedos no cotidiano das aldeias Anambé, no município de Mojú e os Assuriní do Trocará, no município de Tucuruí. Para tanto, se buscou apoio teórico- metodológico em obras de autores que se ocupam da temática em questão, como: CARVALHO (1998), PEREIRA (2008), RODRIGUES (2009), COHN (2000, 2005, 2010), CUNHA (2012), PINTO (2014), entre outros. Assim como, foi realizada a pesquisa de campo, mediante a observação participante, gravação de entrevistas e conversas informais com moradores das aldeias em questão, acrescidas a utilização de fontes imagéticas. Dados da pesquisa aponta que a aquisição de saberes, aprendizados e conhecimentos das crianças indígenas se concretiza por intermédio de brinquedos e das suas múltiplas brincadeiras, executadas cotidianamente nos mais diversificados espaços, e que estas possuem simbologias de suma importância para tais crianças, visto que são impregnadas de valores, princípios, conhecimentos e saberes, pois é mediante brinquedos e brincadeiras que as crianças aprendem mergulhar, remar, plantar, cozinhar, lavar roupa, pescar, caçar, trançar cestos, fazer farinha, artesanatos, entro outros. Palavras-Chave: Memória, Educação, Brincadeiras, Saberes, Crianças Indígenas. 1. Introdução Abrir as portas do mundo infantil é uma grande dificuldade e responsabilidade, é trilhar labirintos percorridos em diferentes tempos e espaço e exige determinadas condutas (PIACENTINI, 2013), Professora/pesquisadora da Universidade Federal do Pará, Coordenadora do Centro de Pesquisa do Campus Universitário do Tocantins/UFPA-Cametá, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura e da Faculdade de História do CUNTINS/UFPA-Cametá. É Líder dos Grupos de pesquisas QUIMOHRENA e HELRA e coordenadora das Pesquisas História, Educação e Saberes Tradicionais na Amazônia & Memoria, Cultura e Cidade: Vivencias de homens e mulheres na Cidade de Cametá, no Pará – Séculos XVIII a XXI. E-mail: celpinto18@gmail.com. 61 Professora de ensino Médio e graduação no Município de Cametá-Pará, participante do Grupo de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (HELRA), integrante das Pesquisas História, Educação e Saberes Tradicionais na Amazônia. 60 174 Mesmo para se permitir ousadias, estas condutas precisam cercarse de procedimentos científico-metodológicos, que garantam um mínimo de coerência e um máximo de observações que o universo selecionado caracteriza e indica. O universo referido é o mundo da criança, o especificamente infantil, numa amplitude cujo limite está cercado pelo que o distingue: basicamente o mundo adulto. E, mais ainda, este mundo infantil está caracterizado por um significado de infância, enquanto conceito universal, expresso pelo fio condutor de um sentimento de infância (PIACENTINI, 2013, p. 159). Percebe-se pela historiografia da infância que ao longo dos séculos, a criança vem assumindo diferentes papéis de acordo com a época e a sociedade em que está inserida. A concepção de infância, assim como muitas concepções existentes nas sociedades, é uma noção historicamente construída e como todas as construções históricas, consequentemente, vêm sofrendo mudanças, não se manifestando de maneira homogênea nem mesmo no interior de uma mesma sociedade e época. Para Rodrigues (2009), as visões sobre a infância são um conceito construído socialmente e historicamente. A inserção concreta das crianças e seus papéis variam com as formas de organização da sociedade no tempo e no espaço, logo, a ideia de infância não existiu sempre e da mesma maneira. A temática da infância e das crianças está rodeada de inúmeras concepções e ideias, mas, na maioria das vezes, elas são criadas sem levar as diferenças existentes dentro do termo tão abrangente que é criança e infância. Sendo assim, essas concepções desconsideram, ou até mesmo, ignoram os vários contextos onde se inserem as crianças, seja histórico, político, social, econômico e cultural (RODRIGUES, 2009). E o fato de desconsiderar esses contextos acarretou na construção de uma ideia de criança e infância de forma universal, homogênea como se infância fosse igual em todo lugar e sociedades, ou seja, descontextualizada que não leva em consideração as especificidades das várias infâncias. Esse artigo busca dar ênfase na infância das crianças indígenas da região do Tocantins, analisando suas formas de brincar e confeccionar brinquedos no cotidiano das aldeias. Aqui coube focarmos apenas em duas etnias da região Tocantina, os Anambé, que estão localizados no município de Moju, e os Assuriní, no município de Tucuruí, cada etnia se distingui nas suas histórias, culturas e espaços. Mas nas duas aldeias o brincar se faz presente entre as crianças e o aprender se dá experimentado, vivendo o dia a dia da aldeia e, acima de tudo, acompanhando os mais velhos, criando, inventado e tendo liberdade para circular nos diferente espaço dentro da aldeia. Para Cruz (2009), as crianças indígenas aprendem vivendo o cotidiano de sua aldeia, que é sempre cheio de afazeres e práticas, que fazem com que estas vivam explorando o mundo através de seu corpo. Todas as suas ações se transformam em ferramentas para aprender e expressar seus conhecimentos elaborados. Logo, o desenvolvimento dos sentidos é fundamental para a capacidade de ver, ouvir e fazer, e as formas de apender, saber e conhecer estão intimamente ligadas as capacidades sensoriais (CRUZ, 2009). Ressalta-se que estudos a respeito da temática indígena é algo ainda recente, apesar destes terem sido os primeiros habitantes do Brasil. Contudo, não restam dúvidas de que, atualmente, se tem avançado em relação aos estudos dessa temática. Entretanto, segundo Cohn, os trabalhos relacionados à infância e aprendizado ainda são raros, mesmo havendo um esforço da Antropologia para abordar a infância nas sociedades indígenas (COHN, 2002). Os poucos trabalhos 175 relacionados à infância, ainda tratam o ser criança como imaturos, inacabados e incompletos e, assim, a criança está à margem dos estudos antropológicos. O mundo infantil é carregado de significado e aprendizado além de ser algo desafiador, pois as crianças das comunidades indígenas estabelecem uma participação direta nas atividades cotidianas nas aldeias, e isso faz com que a assimilação do aprendizado, socialização e valores tradicionais ocorra de forma rápida e prazerosa. Para Fernandes, a educação nas sociedades indígenas é comunitária e igualitária gerando uma interação dos indivíduos gradual, participativa e contínua (FERNANDES, 1976). Neste sentido, Zanella (2003), ao abordar a aprendizagem infantil, conceitua o processo de aprendizagem e como o indivíduo se transforma por meio dele: Aprendizagem é um fenômeno do dia e não se aplica apenas a sala de aula. A capacidade para aprender está presente desde o nascimento e significa um potencial de desenvolvimento que ocorre à medida que o ser humano amadurece suas estruturas celebrais e seu sistema nervoso. Por processo entende-se tudo que ocorre quando o indivíduo aprende. Como a pessoa está aprendendo pode se afirmar que a aprendizagem é um processo contínuo, existente ao longo da vida e enquanto houver vida, sendo que, conforme a faixa etária, existem aprendizagem a realizar e desenvolvimento a conquistar (ZANELLA, 2003, p. 30-31). Percebe-se que a aprendizagem infantil é algo adquirido do meio em que se vive, trazendo essa análise para a realidade das crianças, verifica-se que o aprendizado ocorre no seu cotidiano, na sua experiência de vida, pois as crianças indígenas são criadas de forma livre, o aprendizado é feito em uma simples brincadeira ou ouvindo as histórias dos mais velhos, vendo um jovem praticando a pintura corporal, ou seja, a todo momento há aprendizagem. Para a composição do presente estudo foi utilizada a História Oral, cujo objetivo é analisar a cultura e os saberes a partir das falas dos próprios indígenas, principalmente, das crianças e dos mais velhos, sendo homens e mulheres. As primeiras, por estarem em plena vivência das suas experiências de infância, e os últimos, porque é pela oralidade que eles buscavam na memória recordações de sua infância, assim como os saberes contidos em práticas culturais muito peculiares das crianças é pela memória que as interpretações dos fatos cotidianos das comunidades indígenas se constituem em conhecimento. Além de possibilitar as análises das saudosas lembranças da infância e das práticas de brincadeira dos mais velhos e do processo de ensino-aprendizagem contido nessas brincadeiras, que foram fundamentais para se pensar a criança como sujeito completo e formador de saberes e construtores de cultura, mostrando como essas crianças foram e estão sendo atores sociais. 2. Os anambé: espaços, crianças e brincadeiras A aldeia indígena Anambé se localiza no município de Moju Pará, tendo um número considerável de crianças, que diariamente se relacionam e interagem entre si nos mais diversos espaços desta aldeia, por meio de suas múltiplas brincadeiras e brinquedos. Tais brincadeiras acontecem e se desenrolam em quaisquer momentos e espaços, dado seu caráter de espontaneidade e o fato de a vida da criança se confundir com a brincadeira. Não interessa para elas se é cedo ou tarde, se é dia ou noite, se está chovendo ou fazendo sol. Ou ainda, se o local é o galho 176 de uma árvore, o rio, o mato, sua casa, uma canoa, o que importa mesmo é que a brincadeira aconteça. As crianças Anambé estão em todos os lugares da aldeia, não tem quase nenhuma restrição a respeito de locais que não possam frequentar, circulam livremente de local para local sem que sejam incomodadas ou importunadas. Vale menciona que elas são sempre bem informadas do que acontece na aldeia, e muitas vezes exercem a função de mensageiras e fazem isso como muita alegria, como se pode observar na fala de Maria Valdeniza Anambé, que nos relatou um pouco do o modo de vida dessas crianças, “A vida deles é assim brincar, correr, banha no rio, aqui quando tá com três anos de idade já sabe nadar, a gente ensinar a fazer tarefa de dia a dia, aprendi a ler e a escrever, mas também os afazeres a gente não obriga, incentiva a fazer, porque vai precisa mais tarde fazer, ensinar a fazer porque é bom pra eles ter essa liberdade... O dia todo eles vivem pelos espaços da aldeia e não se cansam do que eles fazem, ai e o dia todinho eles brincando, correndo, saltando ai na água e assim eles vão vivendo, vem almoça fica por ai depois vai chama outra turma daí e vai de novo no mesmo... Ele só fica em casa quando tá dodói que a gente não deixa sair pra não fica mais doente, então é importante isso pra eles no crescimento, né” (Maria Valdeniza Pantoja Anambé, 39 anos, moradora da aldeia). As brincadeiras e brinquedos das crianças Anambé passam por mudanças e transformações significativas, não sendo, portanto, as mesmas ou os mesmos do tempo de seus pais e avôs, até porque a cultura é dinâmica. No caso dos brinquedos a grande maioria já é comprada pronto, ou seja, é de origem industrial, contudo, ainda se observa a confecção de brinquedos feitos artesanalmente, que são fontes de saberes e conhecimentos, podemos tomar, como exemplos, a fabricação de brinquedos feitos de forma artesanalmente, isso porque ao fazer um barquinho de miriti ou madeira mole para brincar, a criança Anambé aprende todas as técnicas e as etapas do preparo de um barco, e poderá muito bem aplicar todo esse conhecimento mais tarde para produzir um barco de madeira em tamanho normal. Aliás, esse é um meio de transporte muito usado pelos habitantes da aldeia Anambé para navegar pelos rios que cortam sua reserva. O mesmo vale para o preparo do arco e da flecha em miniatura, as crianças ao fazerem isso aprendem as técnicas de seu preparo, e quando adultas, a técnica de construir arcos e flechas é fundamental para obtenção de alimentos. Da mesma forma, a confecção deste apetrecho de caça permite com que as crianças Anambé passem a desenvolver, exercitar e aperfeiçoar a pontaria, que lhes será muito útil na caça e na pesca, uma vez que estas atividades são muito importantes para os povos indígenas. Fazer pratinhos ou tigelas de barro também lhes proporciona a aquisição de saberes, pois quando confeccionam estes utensílios para fins de brincadeira aprendem a trabalhar o barro e deixa-lo na textura correta para o preparo dos mesmos, assim, quando adultas podem aplicar esses saberes para fazer não apenas tigelas ou pratos, mas também outros utensílios de uso diário. Embora existam mudanças na forma de brincar e nos brinquedos das crianças Anambé em relação ao passado, observa-se que algumas práticas de brincar ainda são muito parecidas com aquelas que os mais velhos brincavam na infância, e as brincadeiras de maior preferência acontecem sempre em contato com a natureza. As crianças da reserva Anambé nos relataram que atualmente gostam de brincar de pira (pegador ou pega-pega) na água e na terra, de casinha, pular corda, macaca, de cabo-de-guerra, de boneca, de bola, entre outras brincadeiras. Todas essas brincadeiras nos levam a perceber um conjunto de ensino e 177 aprendizado fundamentais para a sobrevivência cultural e social, assim como proporciona a afirmação étnica dessa etnia. Ao brincar na água de pira, ou de qualquer outra brincadeira, as crianças aprendem múltiplos ensinamentos, como: nadar, mergulhar, controlar a respiração de baixo d’água, remar uma canoa, visto que, quando estão tomando banho sempre tem uma canoa por perto. No mesmo sentido, o conhecimento também é adquirido ao brincar de subir nas árvores, quando aprendem a respeitar a natureza, viver em harmonia com ela, sem que para isso precise agredi-la e, sobretudo, entendem a importância que as árvores têm para a manutenção da vida. Brincar de macaca (amarelinha) ensina a contar números, assim como, pular com duas pernas ou com uma apenas, aprendem a desenhar formas geométricas, como: quadrados e retângulos, comum nas suas pinturas corporais. Uma brincadeira bastante comum das crianças Anambé acontece na margem do rio, quando meninas e meninos se juntam para brincar com a argila. As crianças sabem que, além da brincadeira divertida, a argila pode funcionar muito bem como uma espécie de bloqueador solar natural, sem falar que aprendem a conviver de forma harmoniosa com o meio em que vivem, pois, o contato com a natureza é constante e carregado de conhecimentos. Portanto, o aprendizado das crianças Anambé se dá de forma espontânea, assim elas tornam-se livre para aprender a qualquer momento e com que lhes parece mais agradável. Essa liberdade de aprendizados também ocorre entre as crianças Assuriní do Trocará como veremos adiante. 3. Brincando de aprender: criança assuriní, identidade, cultura e saberes A reserva Assuriní do Trocará está situada na margem esquerda do rio Tocantins, a 18 km da cidade de Tucuruí, em plena BR-422, que liga os municípios paraenses de Cametá e Tucuruí, e atravessa a reserva indígena, onde atuam vários sujeitos, que juntos lutam a cada dia pela sua sobrevivência, sua cultura e pela sua afirmação étnica. Pois, é importante mencionar que a aldeia Assuriní é um espaço permeado de culturas, valores, crenças, costumes, tradições e saberes. E todos esses fatores são facilmente assimilados pelas crianças através das brincadeiras, brinquedos e jogos. Daí a sua importância, pois analisar os jogos, as brincadeiras e os brinquedos torna-se de fundamental importância para se compreender como se dá a organização social das crianças Assuriní. Sem falar, que é através das brincadeiras, dos brinquedos e dos jogos que se constroem o ensino e a aprendizado indígena. Podemos observar uma brincadeira bastante conhecida e praticada na aldeia, não só pelas crianças, mas também pelos adultos, principalmente, por ser uma modalidade que faz parte dos jogos indígenas (que ocorre anualmente e reúne diferentes etnias de várias regiões do Brasil e exterior), é o cabo de guerra, uma brincadeira que exige força e união, cuja participação entre crianças não há separação de gênero, entre adultos, os homens disputam com homens e as mulheres entre si. Para Ângela Nunes a construção do brincar no cotidiano da aldeia, é marcada pela relação das crianças com outras crianças maiores ou menores que se alternam entre tarefas domésticas e brincadeiras desenvolvendo suas habilidades, descobertas e modos de ser e pensar o que é ser criança. Além, da relação entre crianças, é importante destacar a relação entre crianças e adultos. No processo de construção das brincadeiras e dos brinquedos e qual a importância do adulto nesse processo de interação social. Os adultos demonstram-se 178 extremamente pacientes e ouvem as crianças com total atenção (NUNES, 2003). Através da memória do Senhor Puraké Assuriní, uma das lideranças do povo Assuriní, percebemos como os adultos contribuem e interagem diretamente nas brincadeiras infantis, fazendo como que haja uma constante troca de saberes e socialização envolvendo crianças e pessoas mais velhas: No meu tempo nos brincava assim nos tinha o igarapé né tinha os cachorro e as antas, ai a anta corria e caia na água ai o pessoal matava ne. Então nos brincava o capitão inventou pra nós e falava vocês ainda não vão brincar com a flecha não. Então ele fazia barro igual uma peteca ai botava um bucado de criança, e os maiores corria como se fosse uma anta, ai corria e caia na água e os cachorros atrás, mas era criança que imaginava que era cachorro. Quem fosse cachorro ficava latindo até os caçadores que estavam com as petecas de barro chegar e quem era caçador jogava as petecas na anta até acertar, quem acertasse matava ai nos puxava ai nos fazia a comparação como era que cortava tirava o bucho só de faz de conta só por cima ai trazia nas costas e trazia pra casa... ai quando chegava o velho perguntava _ ta goda a anta? Nos dizia: _ ta goda_ então traz pra cá. Ai na imaginação nos ia dividir a carne dava pra mulherada, pra criança até distribuir tudo. E assim que a gente brincava (Puraké Assuriní, uma das lideranças da comunidade Assuriní, entrevistado em 12 de outubro de 2015). Atentamos para esse relato de Puraké Assuriní, no qual é evidenciado todo um contexto cultural e social do povo Assuriní, traz que através da imaginação o cotidiano vivenciado na aldeia. Como a caçada e todos os processos de manutenção de alimentos, também aborda as relações de amizade, de gênero, além da obediência e ensinamentos, valores que são transmitidos pelos mais velhos e que são capitados pela criança, através do imaginário. Pois, conforme afirma Dutra, a mente dos indivíduos tem a capacidade de inventar e criar situações a partir das experiências vividas no seu cotidiano, um alimento, um gestos, um olhar, uma palavra são carregado de símbolos servem como suporte para o imaginário (DUTRA, 2013). O imaginário não está preso a convenções sociais. Ele é fluido, uma espécie de sedutor de imagens, um depositório do inconsciente, mas que age “conscientemente”. Refaz se a todo o momento, utiliza como força impulsionadora o símbolo, elemento que não somente pode dar a entender, mas também pode expressar sua “existência”. Nada passa despercebido ao imaginário, que depende da imagem simbólica para se constituir existindo, e entre ambos há um entrelaçamento uma profunda, obscura e ao mesmo tempo clara relação. Toda ação do homem é produtora, mediadora e impulsionadora de imaginários, estando em seu convívio diário presentes os elementos naturais e culturais que subsidiam a formação da mente. Esses elementos são considerados como criadores de imaginários, uma vez que são grandiosos produtores e reveladores de representações, uma via de mão dupla na construção de representações simbólicas (DUTRA, 2013, p.58- 59). Então o ato de brincar de faz de conta de imaginar algo, só é possível através dos símbolos que as crianças Assuriní carregam consigo, todas essas grandiosidades de detalhes contida na imaginação nada mais é que o reflexo de sua cultural, do seu modo de vida. Através da imaginação se constroem ensinamentos 179 reais, significados que vão se refletir no dia a dia dessas crianças. É através do imaginar que se aprende a pescar, a caçar, a dividir o alimento a se inserir na vida social da comunidade. Percebe-se que a criança Assuriní aprende através da prática das brincadeiras a realidade do cotidiano, que prepara essas crianças para a vida adulta. O lúdico está sempre relacionado com formas de sobrevivência aprende-se a casar, a pintar, a dançar, a falar na língua materna, brincadeiras essas que são vivenciada e praticada na natureza e no espaço da comunidade. A aldeia Assuriní tem um contexto social fundado na tradição oral, e seu conhecimento histórico está na memória dos mais velhos, pessoas sábias, que, além da palavra oral, também, dominam as práticas, os valores e os costumes da sua gente. Sendo assim, o saber é repassado pelos mais velhos, de uma criança para outra, dos pais para os filhos, enfim é um constante aprendizado. E as crianças socializam com o meio e adquirem conhecimento de vida, além de absorverem as tradições da aldeia. Através das lembranças da infância do senhor Puraké Assuriní, observa-se que, também, é na imaginação que constroem aprendizado de uma vida real, e que as brincadeiras são sempre inspiradas e motivadas pela natureza, o uso de elementos da natureza é unanimidade na hora das brincadeiras. Pedras, sementes, folhas, galhos e muitos outros recursos viram objetos para diversão nas brincadeiras das crianças, como ocorre também entre as crianças Anambé. Ângela Nunes menciona que nas comunidades indígenas também há brinquedos que trazem representações das atividades cotidiana dos pais, há brinquedos que são feitos a partir dessas práticas como, por exemplo, pequenas varas de pescar, pequenas panelas de barros, pequenas armas, pequenas máscaras de rituais entre outros objetos (NUNES, 2003). Neste sentido, na comunidade Assuriní é comum os brinquedos e as brincadeiras estarem ligadas aos serviços do dia-a-dia, e é esse brincar que leva ao aprendizado de sua sobrevivência, de sua cultura e identidade. O brincar se torna aprendizado importantíssimo, pois quando as crianças estão brincando de fazer cerâmicas de barro, tendo com molde panelinhas de plástico, brinquedo muito comum das crianças não indígenas, mas que na aldeia, entre as crianças Assuriní é resinificado de forma diferente, já que faz com que essas crianças aprendam a confeccionar a cerâmica Assuriní, tão importante da manutenção da cultura e também da economia do seu povo. É importante frisar, conforme afirma Procópio, que a fabricação das cerâmicas de barro é trabalho masculino, mas as crianças sujeitos que tem atuação direta na cultura e saberes completos, não tem percepção de divisão conforme o gênero, a diferença de gênero é uma construção que se dá gradualmente pelos ensinamentos dos mais velhos (PROCÓPIO, 2015). O brinquedo e brincadeira também levam as crianças Assuriní a fortalecerem a identidade étnica, quando estas crianças resinificam o brinquedo de origem não indígena transformando a boneca, com características não indígenas em um Assuriní, através da pintura corporal, usando tinta de jenipapo para pintar a boneca, assim como os Assuriní fazem. Isso nos levar a analisar o intenso processo de globalização em que as comunidades indígenas vivenciam no decorrer do tempo. Para Stuart Hall a globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço, portanto as identidades são afetadas pela globalização havendo uma frequentação e uma adaptação dos indivíduos com o seu tempo, seus espaços e as ferramentas que o sujeito adquire nesse tempo e nesse espaço. O pensamento de Hall amplia a compreensão de hibridismo, 180 sinalizando que as identidades culturais são híbridas, ou seja, movidas por mudanças, encontros e desencontros. Dessa forma, reforça seu entendimento em torno da identidade, alegando que não é possível afirmar que temos uma “identidade”, mas que somos compostos por uma identificação, passível de mudança e transformação (HALL, 2006). Para Homi Bhabha a cultura é uma fronteira metaforicamente falando, pois nos leva a entender que a cultura é um lugar que abriga certo perigo, para quem se compromete e estuda-la, pois, é um lugar de conflitos de identidades. As identidades não estão mais fixadas. Portanto, é preciso pensar a cultura desses sujeitos cuja identidade se fragmentou como um espaço de coletividade de mescla e não como fixa, mas busca analisar a cultura como dinâmica. Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou aflição, são produzidos performaticamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como reflexo de traços culturais ou étnico preestabelecidos, inscritos na lapides fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais (BHABHA, 1998, p. 2021). A boneca Assuriní, no momento que está sendo pintada como a mesma pintura étnica, ganha uma ressignificação que nos leva a perceber esse hibridismo cultural. Segundo Néstor Canclini, a modernidade é sinônimo de pluralidade, onde se mesclam relações entre o hegemônico e subalterno, tradicional e o moderno. Sendo assim, a modernização não serviu somente para separar nações, etnias e classes, mas também para fazer um cruzamento sócio cultural que levam a misturar o tradicional e moderno. A boneca pintada com a pintura corporal Assuriní é um exemplo dessa mistura do tradicional e do moderno, que leva a uma ressignificação da cultural tradicional local (CANCLINI, 1998). As crianças também aprendem a afirmar sua identidade cultura e étnica a através de desenhos, onde pelo observar os mais velhos a fazerem a pintura corporal, recriam essas pinturas primeiramente no chão de terra e depois que aprendem pintam um aos outros. 4. Considerações finais Desta forma, os estudos sobre a infância indígena proporcionam uma série de aprendizados que são essenciais para entender a cultura e a identidade desse povo. Como, por exemplo, as brincadeiras que estão inseridas no dia a dia desses sujeitos, que são vistas como intenso processo de aprendizagem e socialização, já que envolvem diferentes tipos de relações entre as crianças e os mais velhos. Uma vez que essas brincadeiras são permeadas de cultura, oralidade e memória desses sujeitos, e assim são formas de evidenciar a riqueza cultural e a identidade dos povos estudados. Portanto, a memória foi indispensável para compreender e analisar a cultura e as práticas e saberes tradicionais se fazem presente dentro das aldeias é pela memória que as interpretações dos fatos cotidianos desta comunidade indígena se constituem em conhecimento, além de possibilitar as análises das saudosas lembranças da infância e das práticas de brincadeira dos mais velhos e do processo de ensino-aprendizagem contido nessas brincadeiras. Através das brincadeiras e brinquedos utilizados pelas crianças indígenas da região do Tocantins, no Pará, das aldeias Anambé, no município de Mojú e Trocará, no município de Tucuruí. Analisamos que as crianças são carregadas de saberes e, ao socializarem-se nos mais diversos espaços, são consideradas membros 181 importantíssimos na aldeia, atuando tanto no que diz respeito à cultura, religiosidade, educação, quanto na economia voltada para a sobrevivência do grupo. E são sujeitos que se engajam ativamente na constituição de laços afetivos e de relações sociais em todos os espaços da aldeia pelos quais circulam. Os pequenos se destacam em diferentes espaços, estão sempre envolvidos nos afazeres domésticos e nas etapas de feitura de adornos ou artesanatos, pois, são os responsáveis pela coleta da matéria-prima, confecção, e também pela venda dos artesanatos que os mais velhos fazem. Aprendem as técnicas brincando e observando os pais, os avós, os tios e as outras crianças fazerem, as crianças crescem livres para trilharem os diferentes espaços, caminhando sempre em grupo. Na cultura as crianças se mostram com sujeitos ativos, de modo que elas criam e recriam formas culturais, estabelecendo diálogos com a identidade do seu povo, visto que no momento em que brincam com brinquedos de origem não indígena a transformam, incorporando características das suas etnias. Sendo assim, a aquisição de saberes, aprendizados e conhecimentos das crianças indígenas se concretizam por intermédio de brinquedos e das suas múltiplas brincadeiras, executadas cotidianamente nos mais diversificados espaços, e que estas possuem simbologias de suma importância para tais crianças, visto que são impregnadas de valores, princípios, conhecimentos e saberes, pois é mediante brinquedos e brincadeiras que as crianças aprendem mergulhar, remar, plantar, cozinhar, lavar roupa, pescar, caçar, trançar cestos, fazer farinha, artesanatos, entro outros. 5. Referências BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997. COHN, C. A criança, o aprendizado e a socialização na Antropologia. In: Criança Indígena: ensaio antropológico. São Paulo: Global, 2002 (Col. Antropologia e Educação). p. 213- 234; p. 117- 147. COHN, C. A. 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Propomos aqui retomar pensadores como Mounier, Hegel e Marx, que serviram de base para a elaboração do pensamento de Paulo Freire, e explicitar os conceitos usados pelo autor neste processo, apontando desvios discursivos por ele efetuados no sentido de constituir um corpo teórico se aproveitasse em uma práxis educacional libertadora da consciência, sempre em contato com o real. Procura-se, com isso, inserir Paulo Freire na tradição filosófica ocidental, sobretudo, no contexto latino-americano. Palavras-chave: Paulo Freire filósofo. Discurso pedagógico. Pedagogia freireana. Abstract. We propose in this paper retake some thinkers like Mounier, Hegel and Marx, whose thought influenced Paulo Freire during the elaboration of his own thought, in order to determine the concepts used by this author, as well as to point the discursive deviations made by Freire related to them in this process of building a pedagogical method of consciousness formation in contact with the concrete reality. We aim also to situate Paulo Freire in his place into the Western Philosophy, especially in the Latin American context. Key-words: Paulo Freire’s Philosophy. Pedagogic Discourse. Paulo Freire’s Pedagogy. 1. Introdução Paulo Freire é um dos pensadores brasileiros mais estudados e citados não só no Brasil, mas em vários estudos realizados no âmbito educacional em muitos países. Sua pedagogia é uma das mais influentes no pensamento educacional no século XX. Ao longo de décadas de elaboração tanto teórica quanto prática, a práxis freireana sofreu influência de várias correntes filosóficas, e em todos os momentos de sua construção sempre teve como objeto a busca da independência crítica do homem, a sua construção como sujeito livre e transformador da realidade. Neste texto, procuramos identificar algumas das mais importantes bases de pensamento nas quais se apoiou Paulo Freire ao longo da sua caminhada reflexiva que culminou no seu pensamento pedagógico. Para isso, apontamos duas fases da obra de Freire, marcadas, sobretudo, pelas ideias de Emmanuel Mounier, Georg Hegel e de Karl Marx. 2. Paulo Freire, leitor de Mounier O pensamento de Mounier é uma filosofia comunitária baseada na formação 184 da pessoa (daí o nome Personalismo), que se opõe vivamente ao individualismo, em especial, ao espírito individualista burguês surgido com o capitalismo liberal. Para o filósofo, o capitalismo tornou-se uma força tirânica que criou uma desordem social que atenta contra o ser humano, despojando-o da sua humanidade, de tudo que o possa constituir como pessoa. Mounier considera urgente uma revolução espiritual do sujeito capaz de ações transformadoras da ordem material injusta da modernidade liberal. A pessoa, para Mounier, é essencialmente um ser comunitário, de modo que só se realiza em contato com os outros (MOUNIER, 2000), e a educação cumpre um papel central nesse processo: ela “tem a missão de despertar indivíduos que sejam capazes de viver e de se engajar como pessoas” (MOUNIER, 2003, p. 61). O personalismo de Mounier associa a noção de consciência com a de comunidade, sustentada por suas reflexões sobre comunicação interpessoal e comunhão. Essa liberdade não é a da individualidade liberal (que para ele é isolamento e solidão, e não liberdade), mas a da pessoa enquanto consciência autônoma em comunicação com as outras. Da comunicação nasce a comunhão que, fundada no amor, é um dos sustentáculos da idéia de revolução comunitária proposta por Mounier. A revolução comunitária é um processo de conscientização que deve se disseminar por toda a sociedade, prenunciando um socialismo utópico, que substitua as opressões de direita e os totalitarismos de esquerda. E é pela educação que as consciências se tornam críticas da realidade. Ela deve ser pensada para além da tutela do Estado, devendo estar sob a tutela do povo. Isso dá um tom libertário às reflexões pedagógicas de Mounier, o que também se encontra em Paulo Freire. A primeira fase da obra de Paulo Freire é a que mais se aproxima das ideias de Mounier, quando o autor publica seus primeiros escritos. Nesta fase, a antropologia de Freire é marcadamente personalista: o homem é “pessoa”, e não um objeto; é sujeito capaz de atuar intencionalmente no mundo. O homem, enquanto pessoa, não se reduz à sua condição animal (biológica) e nem às condições impostas pela vida em sociedade, as determinações da cultura. Neste sentido, o educador retoma o conceito personalista-fenomenológico de transcendência: o homem, e somente ele, é capaz de transcender. Transcender é refletir a si mesmo no sentido de ressignificar-se. Mas Freire vai além, e coloca que a transcendência é mais que isso, é também uma consciência de finitude do homem, “do ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu Criador”. Posteriormente, o personalismo freireano assume maior engajamento político: isso ocorre quando, no Chile e depois em Genebra, o autor conhece a Filosofia e a Teologia da Libertação. Nesse momento, as ideias de Paulo Freire são marcadas, sobretudo, por uma perspectiva cristã que o autor utiliza para construir a sua concepção de Homem e do processo de humanização do ser, em uma relação com o mundo natural e com o mundo da cultura. O mundo natural é dado, mas o cultural é feito por homens: o homem só se torna plenamente homem no contato com o outro, construindo-se comunitariamente (BEISIEGEL, 2010, p.29). Freire faz ver que esse processo de humanização se dá na medida em que o homem age conscientemente no mundo. Ele encontra na educação a forma privilegiada de tomada de consciência do ser humano a ser empreendida a partir do mergulho existencial concreto na sua realidade vivida, problematizando essa mesma realidade, num processo que, mais do que um letramento escolar, constituise num movimento de feitura subjetiva capaz de humanizar o homem, tornando-o pleno por meio de uma auto- e uma recriação de si, e das condições de existência. Tornar-se capaz de refletir sobre os determinantes sócio-históricos que afetam 185 direta e indiretamente a própria vida é o que constitui o cerne do despertar consciencial crítico para Freire. Tanto Freire quanto Mounier apresentam um acentuado anti-determinismo nas relações sociais que se traduz, em Mounier, em uma filosofia centrada na formação da pessoa em comunidade, pensamento esse que Paulo Freire toma e reelabora numa pedagogia que propõe um processo educativo em que o sujeito se educa com o outro – portanto, em comunidade –, tendo a realidade como meio comum. Pensador cristão, Emmanuel Mounier foi uma das bases teóricas nas quais se assentaram os pensadores da Filosofia e da Teologia da Libertação que ganharam força nos anos 60 e 70 na América Latina, com filósofos e teólogos como Enrique Dussel e Leonardo Boff, que também influíram sobejamente no pensamento freireano. De fato, a primeira fase do pensamento de Paulo Freire é marcada por um discurso profundamente cristão, que tem nas noções de liberdade e de conscientização pela re-união com o Criador, para a mudança do mundo, um ponto central: “Paulo Freire era um educador cristão militante, possuído por um sentimento de missão que se exprime numa prática votada à modificação interior dos homens, para que eles, por sua vez, pudessem participar como sujeitos, na transformação da sociedade” (BEISIEGEL, 1989, p.43). Ambos colocam a necessidade de um engajamento do sujeito no processo de transformação da sociedade classista numa sociedade mais igualitária por meio da conscientização e do diálogo. O diálogo aqui leva a um engajamento nas lutas de emancipação popular, e não somente pessoal, como nos personalistas em geral. Seu personalismo visa a tomada de consciência que promova ações que possibilitem a instauração das condições sociais mínimas para que o indivíduo se veja como ser humano, para que daí possa perceber-se como pessoa. Para os personalistas, a liberdade é definidora do ser humano. De início Freire menciona a ligação com o Criador como sendo a “unidade fundamental” e suprema liberdade. Retomando a ideia de comunhão de Mounier, e ressignificando-a ao modo socialista, o autor, já na Pedagogia do Oprimido privilegiará a noção de comunhão em lugar da ligação com a divindade, trazendo o seu pensamento – e a sua ação – para a realidade concreta imediata. Freire negou a ligação com a divindade (seu momento primeiro) para suprassumi-la na noção da identidade à humanidade, que é também identidade com o divino, não apenas com a divindade. Assim, a noção de unidade fundamental suprassume-se de uma divindade para a plena humanidade que é a unidade suprema entre divino e humano, realizando, então, como sucede para o espiritualismo-personalismo, a plena liberdade. N’A Pedagogia do Oprimido notamos o tom político da pedagogia proposta baseando-se na proposta de uma Igreja politicamente engajada, libertadora, de cunho marxista. Em escritos posteriores, Freire se afasta ainda mais de Mounier ao colocar que a tomada de consciência, é o despertar desta para sua missão emancipadora: a comunhão, cada vez mais, assume um tom de efetividade social, descendo do céu espiritualista para o chão da igreja libertadora. Por fim, o exílio aproxima Freire do marxismo histórico, afastando-o da tradição personalista, como veremos. Contudo, foi criticado pelos marxistas ortodoxos, que identificavam traços populistas em seu discurso pedagógico. Na fase pós-personalista, o diálogo deixa de ser encontro de subjetividade para ser uma relação dialética de conscientização mútua, e a tomada de consciência perde seu caráter subjetivo para inserir-se num processo objetivo, histórico, de emancipação cultural. 3. Paulo Freire, leitor de Hegel Menos evidente é a contribuição de Hegel para o pensamento de Paulo 186 Freire. Hegel não se ocupou diretamente de educação, porém, seu pensamento está pontuado de elementos que induzem a uma leitura bastante frutífera no que tange à formação da consciência. É preciso, pois, pensar Hegel para além da sua filosofia puramente especulativa, procurando entrever a dimensão pedagógica do seu entendimento do devir do homem e da história. A dialética crítica hegeliana é um ponto de destaque para essa abordagem, uma vez que se funda na experiência do real como motor do racional, e deste como constituinte daquele. O conceito de substância, que em Hegel se confunde com o de sujeito como absoluto verdadeiro, é consciência de si frente ao outro. É o inacabamento constitutivo identitário desse sujeito que o faz reconhecer-se como ser em processo de feitura que se abre ao ser-outro e, ao mesmo tempo em que se percebe como um si-mesmo diferente, se faz com o outro, sendo, portanto, um ser que se torna outro. Assim ele se efetiva ontologicamente na prática existencial (HEGEL, 2008). Desse modo, o ser-em-si é prerrogativa para o indivíduo poder ser um ser-aí (existencial), mas é na sua negação (o outro), e na tomada de consciência tanto de si como dessa negação, que está a chave do tornar-se. É na alteridade que esse ser vai se fazer como ser-mais, posto que é condição para tornar-se (ser o que não é). Só então esse sujeito se torna verdadeiro e irredutível à determinação material. Trata-se de um movimento dialético entre ser-em-si e ser-outro cuja síntese é o sermais, um tornar-se pela abertura à alteridade. A retomada e o deslocamento discursivo de Freire em relação ao colocado por Hegel ocorrem na consideração freireana da vida como experiência com o seroutro mediada pela realidade, sendo esta constituída pela cultura e pelo diálogo que permitam a tomada de consciência do sujeito incompleto como construtor ativo da realidade (e não como mero ser passivo), movimento necessário para a sua feitura e ação autônoma. Um ser-em-si relacional mediado pela concretude do material, da vivência e, por isso mesmo projeto de si, sempre aberto e em processo de tornar-se mais, é a proposta de Paulo Freire visando à transformação da realidade por meio dessa relação dialógica (mais do que dialética, neste caso). Tanto em Freire como em Hegel temos, portanto, um sujeito de identidade aberta que se faz pela relação que “absorve” o distinto-de-si: “estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é” (FREIRE, 1982, p. 39). Mais adiante, o autor destacará precisamente o ser na sua dimensão limite como constitutiva e origem da sua busca pela transcendência, pelo encontro com o outropleno, na figura do divino: [O homem] não é o resultado exclusivo da transitividade de sua consciência que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí, reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um “eu” de um “não eu”. A sua transcendência está também, para nós, na raiz da sua finitude. Na consciência que tem desta finitude (FREIRE, 1982, p. 40). O pensamento de Freire caminha, como vemos, num sentido antropológico, pelo encontro do ser com o outro, em seguida, num sentido transcendente pelo encontro com o outro-divino e posteriormente, num sentido cosmológico, pelo encontro com a terra. E é na Pedagogia da Esperança, texto posterior à Pedagogia do Oprimido, que Freire retoma o conceito de comunhão e o expande de modo a englobar o todo da natureza: a “unidade” é, agora, além da identidade homemdivino, a identidade homem-natureza. O universo da comunhão abrange homens, mulheres, árvores, bichos, a terra mesma, os rios, os mares. Esta discussão abre campo para uma ecopedagogia. A unidade é comunhão, é ser-com-outro, e representa o rompimento da relação servil que se expressa em ser-para-outro, que é a relação oprimido/opressor. É, pois, uma relação fundamentada na liberdade. 187 Comunhão é harmonia, e a noção de comunidade se insere nessa ordem cósmica integrada e ordenada. A liberdade nessa perspectiva se manifesta num jogo de forças no qual a ordem forma o homem e o homem constrói a ordem. Isso leva à totalidade, que é a síntese desse jogo de forças. Percebemos aí a dialética hegeliana e a noção de liberdade objetiva presentes no discurso de Paulo Freire. Carlos Alberto Torres em seu livro Pedagogia da Luta fala da importância de Hegel na formulação dos princípios básicos da Pedagogia do Oprimido. Segundo ele, a Dialética do senhor e do escravo e o Reconhecimento têm relação direta com a dialética opressor/oprimido da Pedagogia do Oprimido (TORRES, 1997). O próprio Freire deixa clara essa relação: Se o que caracteriza os oprimidos, como ‘consciência servil’ em relação à consciência do senhor, é fazer-se quase ‘coisa’ e transformar-se, como salienta Hegel [...], em ‘consciência para outro’, a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este ‘ser para outro’ (FREIRE, 2005, p. 40). Freire, porém, não aceita a noção hegeliana de “reconciliação e síntese”, e abdica da noção de desenvolvimento positivo da história. A história perde qualquer paradigma que garanta seu progresso positivo para a humanização e a emancipação. A grande diferença entre Hegel e Freire será, justamente, a superação da positividade da negação natural hegeliana na Pedagogia do Oprimido. Esvaziada da noção de positividade, a humanidade só pode ser pensada enquanto projeto coletivo. A relação opressor/oprimido em Freire aponta não só para a libertação das injustiças decorrentes da exploração do trabalho, mas também para a tarefa coletiva da construção do sentido que se dá ao processo de humanização. Assim, Hegel está na base da sua noção de libertação enquanto comunhão: a liberdade é o próprio processo de constituição da razão na relação opressor/oprimido. É racional reconhecer o outro como igual, portanto livre. Livre o oprimido da opressão, e livre o opressor do seu impulso dominador. O jogo de forças, a relação dialética opressor/oprimido, constrói constantemente a ordem social na qual um e outro se “formam”, educam suas mentes e sentimentos. É desse modo que Freire bebe na fonte de Hegel, deslocando, contudo conceitos do autor para o campo da formação da consciência e da ação social concreta dela decorrente, não só reinterpretando a história como movimento autônomo de eventos, mas assumindo-se como agente nesse processo de reinvenção de si e do mundo. 4. Paulo Freire leitor de Marx O processo de formação do sujeito em um ser-mais mediado pela realidade concreta em Freire sofre uma transformação ao longo da sua história, e será durante o seu exílio no Chile por ocasião da ditadura militar no Brasil que ficará mais acentuado o discurso marxista nos escritos do autor: A permanência de Paulo Freire no Chile, entre 1965 e 1979, foi marcada por muito trabalho e grande dedicação ao estudo e à reflexão [...]. Destacam-se entre os estudos publicados nesse período, os livros Educação como prática da liberdade, de 1965, e Pedagogia do oprimido, concluído em 1968 (BEISIEGEL, 2010, p. 77). Mergulhado agora em nova e diferente realidade, [...] Paulo Freire progressivamente desloca as análises para os desafios colocados 188 pela nova conjuntura (Idem, ibidem, p. 78). É nesse momento que o discurso de Paulo Freire se afasta do idealismo cristão do primeiro momento, para assumir um tom mais crítico da sociedade burguesa. Sempre na mesma linha temática, a problemática da formação da consciência “se realizava no âmbito daquele diálogo com numerosos outros intelectuais de ‘esquerda’” (BEISIEGEL, 2010, p. 82). A formação da consciência crítica do homem passa a ser vista então como uma ação política revolucionária e transformadora de uma sociedade autoritária em uma sociedade verdadeiramente democrática (BEISIEGEL, 2010, p. 34). Freire insiste no dialogismo como prática transformadora, mas agora o seu discurso estará impregnado de conceitos marxistas que lhe servem de instrumento para entender o processo de opressão na sociedade de classe capitalista. Muito embora o discurso freireano tenha tido um tom socialista desde o início (TORRES, 1976, p.70), é nessa fase que se explicita a aproximação de autores como Marx, Marcuse, Althusser e Fromm, entre outros (BEISIEGEL, 2010, p. 84). Um dos pontos fortes da constante reelaboração da sua práxis é a tomada de consciência de que a escola também pode servir à domesticação do homem quando a educação que ali se faz é também opressora, e impede a formação da sua consciência crítica transformadora, pois age autoritariamente tratando o educando de modo passivo, de forma antidialógica, domesticando-o. Esse sujeito não se humaniza, já que não pensa, mas é pensado, tornando-se um alienado social. O discurso de Freire passa, nesse momento, a materializar o discurso igualitário substituindo termos tradicionais como “sala de aula”, “professor” e “aluno” por “grupo de discussão”, “coordenador de debate” e “participante de grupos de debates”, sempre no espírito de que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005, p.78). Apropriando-se do conceito de luta de classes, Freire fala de “alienação” para descrever o sujeito produzido pela chamada educação bancária, e coloca a necessidade do engajamento na luta contra essa forma de opressão. É também marcante a ênfase nos conceitos de “opressor” e “oprimido”, sobretudo a partir da Pedagogia do Oprimido, em substituição à terminologia anteriormente usada de “consciência intransitiva” e “transitiva” (ou seja, ingênua e crítica); a temática da liberdade torna-se uma obsessão (BEISIEGEL, 2010), a qual deve ser conquistada de forma revolucionária. O materialismo histórico e dialético está na base de uma ação exercida por sujeitos que já não são considerados abstratamente, mas concretamente em relação com a realidade que se lhes apresenta como desafio. 5. Considerações finais É interessante notar que o pensamento de Paulo Freire sempre se refez em contato com a prática educativa em variados contextos históricos, de modo que o autor se permitiu rever conceitos e se deixou influenciar por variadas correntes de pensamento – podemos dizer, por variados discursos –, apropriando-se de conceitos, deslocando-os, redizendo o já-dito e refazendo seu discurso sempre a partir das condições de produção que vivenciava. Como afirma Torres (1976, p.71), “utilizar um conceito de um autor não pressupõe assumir todo seu sistema teórico”; e é isso que percebemos no discurso pedagógico do autor. Freire analisou situações reais de vida a partir de linhas diversas de pensamento, e elaborou, mais do que um método educativo, um corpo teórico genuinamente filosófico, tanto pela consistência teórica, quanto pela sua originalidade de pensamento. Um método pedagógico prático de eficácia testada e comprovada em muitos países do mundo. 189 Uma práxis que se permite mudar, adaptar-se e avançar rumo à efetiva formação do ser como ser-mais, transformador do real e livre. Assim, a obra de Paulo Freire é um conjunto sistemático constituído de dois núcleos fundamentais, intimamente inter-relacionados e interdependentes: a dimensão teorético-reflexiva, e a dimensão prática. Esta última é propriamente o seu método pedagógico de alfabetização de jovens e adultos, cujas dimensões filosóficas libertadoras radicam em uma construção teórica elaborada a partir de várias fontes do pensamento filosófico ocidental que, deslocadas pelo contato com a materialidade do real da história de sujeitos concretos, são continuamente ressignificadas, e juntas, prática e reflexão, desembocam no que poderíamos caracterizar como uma Filosofia Prática Libertária, que pode ser inserida tanto no contexto latino-americano da Filosofia da Libertação, quanto no contexto global do pensamento libertário. Dito de outro modo, a sua filosofia é uma forma contemporânea de humanismo crítico. No contexto histórico do Brasil dessa época, tal projeto de hominização se traduziria em uma práxis educativa cujo sujeito seria, sobretudo, a massa oprimida, mas que não excluía também, a elite opressora. A práxis educacional freireana deve, portanto, ser entendida como uma teoria que se nutre da realidade para ser elaborada por meio da reflexão, e, ato contínuo, se volta para a realidade como prática transformadora da consciência e da materialidade histórica mesma. 6. Referências BEISIEGEL, C. de R. Paulo Freire. Coleção Educadores. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. BEISIEGEL, C. de R. Política e educação popular. São Paulo. Ática: 1989. FREIRE. P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 46 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2008. MOUNIER, E. Révolution personnaliste et communautaire. Paris. Éditions du Seuil: 2000. MOUNIER, E. Manifeste au service du personnalisme. Paris. Éditions du Seuil: 2003. TORRES, C. A. A Dialética Hegeliana e o Pensamento Lógico-Estrutural de Paulo Freire. Síntese: Revista de Filosofia. v.3, n.7, 1976. 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A análise, apoiada nas cenas multimodalmente representadas, verificou: (i) produtividade das funções não prototípicas; (ii) as pistas interpretativas fornecidas pela multimodalidade e (iii) que as tiras valem-se da língua em uso no contínuo oral-escrito. Palavras-Chave. Mas. Tira. Multifuncionalidade. Multimodalidade. Interação. Abstract. This article describes the functions of the connector but in strips and its semantic-pragmatic expansion, according to pragmaticfunctionalist studies. The corpus consists of a sample of four strips from different circulation contexts, themes and authors. The analysis, based on the multimodally represented scenes, verified: (i) productivity of nonprototypical functions; (ii) the interpretative clues provided by multimodality and (iii) the strips use the language in use in the oral-written continuum. Keywords. But. Comic strip. Multifunctionality. Multimodality. Interaction. 1. Introdução Os estudos gramaticais tradicionais postulam determinados valores semânticos para a conjunção mas centrados na adversatividade (BECHARA, 2009; CUNHA; CINTRA, 2008). Em contrapartida, um número substancial de pesquisas tem constatado o alargamento dos sentidos e dos usos dessa conjunção, em virtude da dimensão enunciativa, pragmática, cognitiva e discursiva da análise e descrição linguísticas. Nessa perspectiva, em relação à conjunção em discussão, é concensual entre diversas linhas teóricas o fato da dinâmica do uso propiciar a interveniência de funções não prototípicas (ALOMBA RIBEIRO, 2005; NEVES, 2000; URBANO, 1999). Embora existam estudos que analisam a conjunção mas em diferentes gêneros textuais (SANTANA; MESQUITA, 2008; SELLA, 2008), essa exploração da expansão textual-interativa em registros ou em gêneros menos formais não têm se 191 efetivado com a mesma profundidade, como é o caso das tirinhas. Diante disso, o objetivo deste trabalho é descrever a multifuncionalidade do conector mas em uma amostra de tiras, a partir dos paradigmas da Pragmática Linguística, com a determinação do papel da multimodalidade no processo de interpretação contextual. 2. O mas na descrição gramatical tradicional: breves considerações Para Bechara (2009, p. 320), os termos conector e conjunção são sinônimos, ou seja, “os conectores ou conjunções coordenadas são de três tipos, conforme o significado com que envolvem a relação das unidades que unem: aditivas, alternativas e adversativas”. Nessa acepção, a conjunção coordenativa adversativa é um conector, pois “como sua missão é reunir unidades independentes, pode também ‘conectar’ duas unidades menores que a oração, desde que do mesmo valor funcional dentro de mesmo enunciado” (BECHARA, 2009, p. 319). Igualmente, acentuando oposição e incompatibilidade, porém sem modificar o valor sintático das orações reunidas. Cunha e Cintra (2013, p. 594), por sua vez, apresentam posicionamentos teórico-descritivos semelhantes, já que as adversativas “ligam dois termos ou duas orações de igual função, acrescentando-lhes, porém, uma ideia de contraste: mas, porém, todavia, contudo, no entanto, entretanto”. Quanto à posição dessas conjunções, asseveram que “apenas mas aparece obrigatoriamente no começo da oração; porém, todavia, contudo, entretanto e no entanto podem vir no início da oração ou após um dos seus termos” (CUNHA; CINTRA, 2013, p. 595). Vale ressaltar que, ao contrário de Bechara (2009), Cunha e Cintra (2013) apontam a possibilidade de outros valores para a conjunção mas, chamados por esses gramáticos de afetivos. Mostram, portanto, alguns possíveis valores semânticos além da ideia básica de oposição, a saber: valores de restrição, retificação, atenuação, compensação e adição. Mencionam um interessante emprego, que pode-se considerar relacionado às funções interativas da referida conjunção, tal como seu uso em mudança de assunto e explanam que muitas palavras não se encaixam na classificação tradicional, conforme a Nomenclatura Gramatical Brasileira, recebendo a designação de palavras denotativas, (CUNHA e CINTRA, 2013). Por conseguinte, o mas pode, por exemplo, denotar uma situação ou algum desses valores particulares que a tradição atualmente aceita que se dá em virtude da dimensão discursiva. Todavia, essas situações, não previstas pela tradição, são colocadas como marcas expletivas. (CUNHA e CINTRA, 2013). 3. Os conectores contra-argumentativos e as funções não prototípicas Os conectores contra-argumentativos (doravante CCA) formam um grupo específico de partículas pertencentes a um fenômeno linguístico, qual seja, os marcadores discursivos (daqui em diante MD). Para Portolés (2001), os MD são definidos como unidades que tem o significado orientado a processar o discurso em relação ao contexto e servindo-se, por meio de suas propriedades morfossintáticas e semântico-pragmáticas, como guias às inferências que se realizam na comunicação. Tais unidades atuam pragmaticamente no nível discursivo, ampliando a ligação entre frases, relacionando membros do discurso e expandindo-se ao contexto extraverbal. A partir dessa conceituação, o referido autor estabelece cinco grupos de MD, a saber: estruturadores da informação, conectores, reformuladores, operadores discursivos e marcadores de controle de contato. Cada um desses grupos possui subcategorias. No caso do grupo dos conectores têm-se os aditivos, os consecutivos e os contra-argumentativos. Os MD CCA são definidos por Portolés 192 (2001) como palavras que inferencialmente relacionam ou vinculam membros do discurso e, nesse processo, o segundo membro suprime ou atenua as conclusões pretendidas pelo primeiro, além de sua característica antiorientada (ALOMBA RIBEIRO, 2005). A natureza da antiorientação, isto é, instruções argumentativas que anulam inferências ou conclusões pretendidas, é patente nos contraargumentativos. Com efeito, Anscombre e Ducrot (1994) assim esquematizam o movimento polifônico do conector aqui estudado: enunciar A, mas B supõe concomitantemente: (i) apresentar A como um argumento para uma conclusão C; (ii) apresentar B como um argumento contrário a C (não C); (iii) assinalar a B mais força argumentativa a favor de não C da que tem A a favor de C; (iv) A, mas B manifesta, pois, uma hierarquia argumentativa a favor da não C. Para Alomba Ribeiro (2005) o mas é um conector contra-argumentativo (CCA), em virtude da completude de seu movimento argumentativo. Isto é, em acordo com argumento apresentado pelo adversário enunciativo, introduz um argumento que o invalida. Com isso, o interlocutor no ato da contra-argumentação constrói um raciocínio a favor ou contra uma determinada conclusão e, ao mesmo tempo um argumento superposto a favor de uma conclusão oposta. Sob essa ótica, pragmaticamente, o CCA em estudo pode assumir funções várias, tais como adição, comparação, (des)compensação, função interativa conversacional, pragmática, justificativa etc. Com o mas, o enunciador distribui a informação, estrutura a argumentação, explicita restrições e desigualdade entre os argumentos lançados na contraposição entre enunciados (ALOMBA RIBEIRO, 2005). Em suma, a contraargumentatividade se expressa em vários graus, com distintos movimentos de desigualdade argumentativa. Dentre as funções de ordem interativo-pragmáticas têm-se, a saber: (i) a função interativa conversacional em que o conector “mas” além de ter funções textuais, possui funções interacionais, dentre elas agir como um encadeador de turnos conversacionais, organizando dando unidade à construção desses turnos; (ii) função pragmática em que diversos elementos contextuais determinam o sentido de seu uso. Geralmente, há a contraposição, no entanto, o enunciado anterior embora admitido, é considerado insuficiente (ALOMBA RIBEIRO, 2005). Além dessas funções, numa perspectiva funcionalista, Neves (2000) apresenta outras especificações dos valores semânticos do mas, a saber: marcação de compensação com ou sem gradação, marcação de restrição por acréscimo, negação de inferência, contraposição por comparação, por eliminação, além de outros usos que a autora explana, embora não rotule com terminologia específica. Em geral, a conjunção coordenativa mas marca uma relação de desigualdade entre os segmentos coordenados e, por essa característica, não há recursividade em suas construções [...] (NEVES, 2000, p. 755). Dessa forma tem-se: (i) marcação de eliminação: a oração iniciada pelo mas elimina o membro coordenado anterior; (ii) marcação de início de turno: em construções interativas pode funcionar com funções restritivas, inserção de argumento por meio de enunciado interrogativo hipotético, mudança de foco da narrativa ou conversação, eliminação, introdução de novo tema (NEVES, 2000). Por sua vez, Urbano (1999) destaca o caráter retrospectivo e prospectivo estabelecido pelas relações inferenciais anafóricas, catafóricas e capacidade digressiva marcadas pelo uso desse conector Além disso, sinaliza o contexto pressuposicional apresentando características semânticas orientadas tanto para o texto, quanto para a interação ao gerir tópicos ou reorientando a tipologia discursiva (URBANO, 1999). 4. Multimodalidade e interpretação contextual 193 Nesta seção, importa situar em que medida os elementos e aspectos não linguísticos relativos à natureza das tiras cômicas corroboram para a o estudo das funções textuais-interativas do CCA mas. Portanto, assume-se a necessidade de ler os textos multimodalmente pela disposição gráfica do material linguístico e imagético intencionalmente elaborado, em virtude dos fins comunicacionais (KRESS, 2010). A partir disso, é preciso ter em conta duas perspectivas. A primeira é assumir as história em quadrinhos como gênero textual secundário, conforme Bakhtin (2000), porém constituindo-se num hipergênero textual (RAMOS, 2009), no qual a tira livre é um subgênero, dada a sua capacidade de síntese, objetividade e argumentatividade (RAMOS, 2014). A segunda concerne em considerar a cena narrativo-descritiva construída pela linguagem quadrinística (EISNER, 1999). Tratase da figuratividade, na qual o uso de gestos, representações de som, movimentos códigos, imagens, ações e configurações multimodais recriam, representam ou simulam uma cena, em suma, uma encenação da interação, já que os sentidos constroem-se e manifestam-se multimodalmente, posto que a figuratividade recria sensações presentes na interação. Portanto, elementos chaves para a interpretação contextual (TAVARES, 2010). Diante disso, pode-se abordar a textualidade para além do enfoque sintático semântico dos gêneros multimodais, ou seja, tratar os quadrinhos com o enfoque na interação (LINS, 2008). Interagir pressupõe seleção e ordenação linguística postas em ação pelos sujeitos para determinados fins comunicacionais (ELIAS; LINS; SOUZA JR., 2011, p. 02). Além disso, a construção dessa interação, no contínuo oral-escrito das tiras, favorece a emergência da língua em uso (LINS, 2008). Sob essa perspectiva, a enunciação não se dá isoladamente e a compreensão do conteúdo proposicional, presente nas tiras, depende da imbricação entre modalidades na constituição dos referentes, isto é, na constituição do discurso (SOUZA JÚNIOR, 2012). 5. Aspectos metodológicos A presente pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e de cunho qualitativo, com análise descritiva da língua em uso em gênero textual (BAKHTIN, 2000). É exploratória pela possibilidade de ampliação do corpus e verificação empírica da análise. Como operacionalização, os taxionomias adotadas estabelecem-se como parâmetros para descrição de cada exemplar. Com isso, constituiu-se uma amostra de quatro tiras como corpus e, na descrição, três perspectivas são consideradas: (i) a tira como simulacro de cena linguístico-interativa, no seu próprio material multimodal; (ii) o diálogo com outras instâncias discursivas e enunciativas e (iii) quais funções do mas se apresentam. Os exemplares da amostra são de domínio público e disponíveis em diferentes sites, como forma de determinar os usos feitos do conector mas em diversos contextos e/ou eventos sociocomunicativos. Por apresentarem diferentes registros linguísticos, cenários culturais e temas, tais questões não foram aqui analisadas, a não ser em virtude da interpretação pragmática do conteúdo proposicional expresso ou inferido nos enunciados verbais dispostos nas tiras, conforme cada caso. Finalmente, o presente trabalho apresenta-se como recorte e com resultados parciais da pesquisa iniciada por Carmo e Alomba Ribeiro (2014), porém numa perspectiva teórico-analítica. 6. Análise das Tiras 194 Uma primeira característica não prototípica que o mas assume é seu deslocamento sintático para além da coordenação, isto é, vincular enunciados no mesmo nível sintático, tal como apresentado pelos gramáticos tradicionais. Na figura 1, é possível perceber que o conector não assinala sentido de oposição entre o enunciado do segundo balão em relação ao terceiro balão da mesma personagem: “quando ela inspirava, fazia o som de uma tuba, mas quando ela expirava...”. É evidente a função de gerir o tópico conversacional representado pelos enunciados da mesma personagem. Além de apresentar uma função aditiva não predominante que poderia ser representada por “quando ela inspirava fazia o som de uma tuba e quando ela expirava fazia o som de...”. A gestão de tópico conversacional se mostra profícua na língua falada (URBANO, 1999) e, nesse caso, a função adversativa se coloca em segundo plano, já que o jogo interacional da conversação e do ritmo narrativo sinalizado e representado pelos balões e a divisão dos quadros denota outro ritmo prosódico. Figura 1: Tirinha do Garfield Fonte: MAYER, 2012. O contraste prototípico da conjunção é apresentado, de forma velada, na relação das ideias de inspiração-expiração e, nesse sentido, há também uma marcação de contraposição na mesma direção argumentativa (NEVES, 2000). Com isso, tanto o fato da inspiração quanto expiração mencionados pela personagem são vistos de forma negativa, porém em níveis distintos. Esses elementos estão bastante marcados pela expressão facial da personagem, como se observa na Figura 01. Tal fator, mostra que o elemento não linguístico da tira fornece pista para a interpretação da direção argumentativa no mesmo sentido negativo. Igualmente, a expressão “expirava” marcada em negrito e em tamanho maior são elementos multimodais que indicam, ainda, que o segundo enunciado vinculado é mais negativo que o primeiro. O item mas pode assinalar funções expressivas e subjetivas (URBANO, 1999). Ainda na posição de introdutor tópico, na segunda tirinha a seguir, o conector introduz um enunciado exclamativo. A ideia de introdução de novo tópico tem relação com a pausa sinalizada pela pontuação do balão anterior e sua colocação em novo quadro. Entretanto, é clara a posição de subjetividade marcada pelo conector. Como afirma Urbano (1999), esse marcador pode sinalizar uma entonação expressiva de cunho emotivo e subjetivo, como demonstrado no segundo balão da tira anterior e presente no segundo balão da Figura 02 a seguir: Figura 2: Amor à primeira vista 195 Fonte: SANTOS, 2015. Ao introduzir o enunciado no segundo balão na tira acima, o conector prepara um tópico retificativo da ideia apresentada no primeiro balão. Não há a marcação de contraste prototípica na relação ideacional apresentada entre as proposições de cada balão. Entretanto, o vínculo se dá na mesma direção argumentativa, já que a proposição do primeiro balão apresenta uma ideia positiva e o enunciado do segundo balão não se opõe ao conteúdo semântico em si, senão rearticula expressiva e positivamente esse conteúdo adequando-o à situação, isto é, à chegada da segunda personagem no segundo quadrinho da tira. A figura 3 mostra uma tira, na qual a marcação do conector se dá frente à cena da enunciação sem valor de contraste e/ou oposição, apenas com função interativa, na qual o contexto extraverbal representado na imagem é aludido pelo marcador (URBANO, 1999). Vale conjecturar o contraste tenuamente demonstrado entre a condição contextual pressuposta, isto é, as personagens que são pinguins, “conscientes” de sua condição de viver em locais muito frios, contrasta enunciativamente com a expressão “mas que calor!”. Portanto, na tira a seguir, contrasta-se interativamente um topos cognitivamente situado e figurativizado pelo contexto, com outro linguisticamente enunciado, representado na “fala” das personagens: Figura 3: Tirinha sobre Carnaval Fonte: SILVA, 2007. Observa-se, nesse caso, que não há relação semântica ou pressuposicional entre os conteúdos proposicionais mediados pelo conector, posto ainda que os enunciados são retirados de uma marchinha de carnaval composta por Haroldo Lobo e Nássara. Finalmente, na quarta figura observa-se o mas introduzindo um enunciado interrogativo, típico de sua função interativa de iniciar turno (NEVES, 2000), marcando a inserção de argumento por meio de enunciado interrogativo hipotético: Figura 4: Tirinha sobre obesidade 196 Fonte: RODRIGUES, 2010. Com efeito, a função contrastante prototípica está semanticamente mais distanciada e assumindo uma posição mais interativa, como postulado por Neves (2000). Conforme a Teoria da Relevância (SPERBER; WILSON, 2001), é preciso buscar as pistas contextuais e as suposições mais relevantes para deduzir as conclusões pretendidas pelo interlocutor. Trata-se, pois, da atividade inferencial requerida pelo ouvinte - no caso do segundo personagem da tira - e pelo leitor, de forma geral. Sob essa ótica, a tira acima requer um esforço inferencial maior. Ao enunciar “mas será que esse salgadinho de milho é realmente livre de colesterol?” pode-se: (i) supor aceitar tacitamente que na embalagem esteja escrita a composição do salgadinho e sua baixa taxa de colesterol, ainda que as pistas imagéticas não destaquem essa possibilidade; (ii) Pressupor que o salgadinho é, de fato, de milho pela indicação do dêitico “este” e que, portanto, salgadinhos de milho costumam ter taxa de colesterol altas e que, especificamente, o salgadinho de posse da personagem está livre de colesterol; (iii) Supor que a crença das pessoas, em geral, representada na voz da personagem, diz que salgadinhos de milho são produtos com altas taxas de colesterol. Detalhar esse percurso inferencial é fundamental para entender como as funções interativas constroem-se, ao menos em parte, sob um fundo cognitivo do processamento textual, uma vez que, para Sperber e Wilson (2001), a expressão linguística é pista para o processo cognitivo em busca da relevância, isto é, se fazer entender ou exprimir as intenções comunicativas com o mínimo de esforço cognitivo. Assim, pode-se interpretar o conteúdo proposicional da tira como um todo, considerando a resposta da segunda personagem, pois juntos codificam uma intenção comunicativa por meio da tira em si mesma. Contudo, destacadamente, outras respostas poderiam ser levantadas a partir da interpretação da pergunta da personagem no primeiro balão. Diante disso, assumir a suposição (i) não é possível por falta de pistas contextuais na cena representada na tira. Assumir a suposição (ii) é dizer que a personagem crê que salgadinhos de milho são ricos em colesterol e duvida da condição do produto que está em suas mãos, indicado pelo dêitico. No que tange à posição (iii) emanada da segunda, entretanto cabe ao leitor adotar a crença geral da condição nutricional dos salgadinhos, posicionando essa crença geral na voz da personagem. Diante disso, a suposição (iii) se sobrepõe a todas e abarcando a segunda, pelo fato do conector mas realizar um contraste, posto que se ele introduz um enunciado interrogativo, que conota a dúvida da personagem quanto ao salgado ser livre de colesterol, é porque subjaz a crença de que salgados como esses não são livres desse tipo de valor nutricional. 7. Considerações finais Este trabalho descreveu as funções pragmáticas e interativas do conector mas em tirinhas. Contrastou a expansão textual-interativa da conjunção estudada com a descrição gramatical tradicional que, por sua vez, precisa ser revisada com constância, tendo em vista a dinamicidade da língua e as contribuições dos estudos linguísticos para melhor entendimento dos fatos da linguagem e da interação verbal. Demonstrou-se como a intepretação pragmática dos enunciados verbais, em 197 que vigora a atuação argumentativa do mas, depende dos elementos não verbais como pistas contextuais para apreensão das relações textual e interativamente construídas e simuladas na cena construída em cada tira. Além disso, a interação e o contínuo oral-escrito, figurativizados nas tiras, favorecem a interveniência de funções pragmáticas e menos prototípicas. Não obstante, importa a ampliação do corpus para uma apreciação mais robusta da proposta aqui discutida. Finalmente, este trabalho espera contribuir, em primeiro plano, para a validação das descrições e modelos teóricos que analisam os conectores numa perspectiva mais ampla, isto é, não restrita à dimensão estrutural da descrição. Em segundo, ampliar os estudos descritivo-analíticos em textos multimodais, concernentes ao uso das conjunções em contextos reais de uso, notadamente, nas suas funções de marcadores do discurso. 8. Referências ALOMBA RIBEIRO, M. D´A. Los conectores argumentativos en lós aprendices hispanohablantes de português. 2005. 271 f. Tese (Linguística Aplicada) – Departamento de Filologia Alcalá de Henares, 2005. ANSCOMBRE, J, C.; DUCROT, O. La argumentación en la lengua. Editorial Gredos: Madrid, 1994. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CARMO, B. B. S.; ALOMBA RIBEIRO, M. D’A. 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Ilhéus-Bahia bougleuxcpmatnre7@gmail.com RESUMO. Este trabalho caracteriza a Literatura adaptada a quadrinho, a partir das categorias da textualidade e da multimodalidade. Para tanto, analisa-se o conto O esqueleto, de Machado de Assis, adaptado. Determinam-se as tipificações, processos referenciais na tradução intersemiótica e, como resultado, mostra-se: (i) a imbricação de linguagens na constituição da textualidade; (ii) a reconstituição do processo de interação narrativo; (iii) a rearticulação dos processos referenciais para a linguagem em tela. Palavras-Chave. Literatura adaptada. Multimodalidade. Textualidade. Machado de Assis. Abstract. This work characterizes Literature adapted to the comic from the categories of textuality and multimodality. Then, we analyze the story O Esqueleto, by Machado de Assis, adapted. The typifications, referential process in inter-semiotic translation are determined and, as a result, are shown: (i) imbrication of languages in the rearticulation of textuality; (ii) reconstitution of the process of narrative interaction; (iii) rearticulation of the referential process for the language on screen. Keywords. Adapteded literary. Multimodality. Textuality. Machado de Assis. 1. Introdução Este trabalho, a partir do escopo da Linguística Textual (doravante LT), conforme Koch (2009), dialoga com os estudos da multimodalidade (KRESS, 2010) e da Teoria dos Gêneros Textuais (BAKHTIN, 2000; MÜLLER, 2012) para estabelecer um estudo62 exploratório quanto à questão da textualidade de gênero multimodal. Diante disso, o presente trabalho objetiva caracterizar a Literatura adaptada a quadrinhos, enquanto gênero textual híbrido, isto é, construído na imbricação entre linguagem verbal e não-verbal. Trata-se, dessa maneira, de explorar como essa inter-relação entre diferentes modalidades constitui o gênero A investigação proposta nesta pesquisa insere-se na linha Análise de textos e discursos: leitura, produção textual, textualidade e gêneros, no contexto do grupo de pesquisa Linguagem, Ensino e Identidade, coordenado pela profa. Dra. Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro. Disponível em: <dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2394297052517994>. Acesso em: 28 set. 2017, 10:24 h. 62 201 supracitado, tendo em vista os fatores de textualidade e a mesclagem genérica. Em decorrência de tal problemática, é possível supor que as configurações da textualidade se efetivem de forma peculiar, na qual a multimodalidade tem papel fundamental, notadamente, em reconstituir tipificações da narrativa no processo de adaptação e reconfigurar os objetos de discurso. Nesse contexto, numa abordagem descritivo-qualitativa, tomou-se o conto O Esqueleto, de Machado de Assis, adaptado por Molina e Koprowski (2015) como objeto de estudo. Todavia, apresentam-se resultados parciais desse processo analítico exploratório. A presente abordagem justifica-se pelo fato do gênero em questão já ser discutido por uma série de linhas de pesquisa, inclusive com análises e descrições das adaptações dos textos machadianos, notadamente, a partir dos estudos da comunicação, dos estudos interartes, da linguagem dos quadrinhos, dentre outros (DINIZ, 1998; LIMA, 2012; MIRANDA; PINHEIRO-MARIZ, 2014). Contudo, não se aborda alguns fenômenos importantes relativos à constituição pictural da narrativa do texto-fonte, a reconfiguração dos processos referenciais por vias não verbais, além da lacuna existente relativa a uma descrição mais robusta da textualidade da adaptação em suas funções textuais-comunicativas, tal como aqui pretendido. Nessa direção, a caracterização do gênero pode situar outras investigações e descrições importantes na centralidade da perspectiva linguística. 2. O fenômeno do texto e a multimodalidade: categorias norteadoras Para fins deste trabalho, importa delinear as categorias oriundas da LT e da Teoria da Multimodalidade para análise da adaptação do texto literário a quadrinhos. Nesse sentido, coaduna-se com Koch (2001) a necessidade de centralizar o texto como objeto de estudo, os fenômenos linguísticos e sócio-cognitivos relativos a sua organização, funcionamento e compreensão, isto é, a teoria do texto concebe a linguagem como lugar da interação social e como ação intersubjetiva e, por conseguinte, o ato de construir objetos de discurso ocupa um espaço fundamental nesse processo (KOCH, 2009). No que tange aos fatores de textualidade, a LT tem investigado diversos fenômenos que consideram como caracterizadores do objeto texto, ou seja, estabelecer critérios para determinar o que faz do texto um texto (COSTA VAL, 1999). Segundo Costa Val (1999, p. 03) “pode-se definir texto ou discurso como ocorrência linguística falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal”. Nessa acepção, deve-se assumir que: (i) incorrem elementos pragmáticos relativos ao conjunto histórico, social, cultural e comunicativo que se sobrepõem para a atuação do texto como espaço de construção de sentidos; (ii) elementos semânticos cooperam para entrelaçar essa atuação em termos de coerência; (iii) atuam recursos de coesão para a articulação do plano formal e estrutural. Além desses princípios, emerge-se a questão da (re) construção de objetos de discurso ou processo de referenciação, como dimensão fundamental acerca do fenômeno/objeto texto, isto é, os sujeitos intersubjetivamente estabelecem a ativação e (re)categorização de referentes (MONDADA; DUBOIS, 2016). Numa perspectiva complementar, advém-se a questão da multimodalidade. Souza Júnior (2012) esclarece que não cabe à LT elaborar métodos de análise das modalidades não verbais dos textos, mas cumpre dialogar com esses estudos, tendo em consideração e presença de semioses não-verbais nos eventos comunicativos e como esses processos contribuem para a construção do discurso e se configuram nas ações de linguagem, isto é, permeiam a interação humana, bem como se relacionam com os modos de processamento textual (DIONÍSIO, 2011). 202 Com efeito, para Dionísio (2011), em virtude das diferentes formas semióticas e da interação humana, as pessoas precisam atribuir sentidos com múltiplas linguagens. Assim, se a imagem também faz parte da organização social das comunidades, isso implica organização dos gêneros textuais (DIONÍSIO, 2011). Como o processo de interação social se materializa na linguagem, Kress (2010) postula que os diferentes signos se motivam na busca pela construção das significações, considerando as constrições culturais, o engajamento e princípios comunicacionais. Com isso, pressupõe-se que os gêneros textuais, em suas multimodalidades, estão atrelados às instanciações sociais, culturais e comunicativas (KRESS, 2010). 3. A tradução inter-semiótica, a obra machadiana e gênero textual O processo de adaptação não se dá sem conflitos conceituais, escolhas e uma dimensão subjetiva de seu funcionamento. Tal realidade se mostra pelo substancial número de investigações que tratam desses elementos sob diversos enfoques teóricos. Vale salientar que a obra machadiana é tomada como objeto de análise sob vários ângulos, de acordo a linha teórica adotada. Contudo, se mostra consensual que a adaptação das obras do grande escritor brasileiro se efetiva por duas razões centrais, a saber: (i) revalorizar o texto machadiano diante de um novo público consumidor e leitor de HQ pouco habituado à leitura dos textos canônicos; (ii) estabelecer a criação de uma nova obra que facilite ou sirva de estímulo à leitura da obra original (RAMOS, 2009). Tratam-se, portanto, de dois aspectos problemáticos e polêmicos, uma vez que o primeiro pressupõe uma desvalorização da obra original e supervalorização da linguagem quadrinística e a segunda razão pressupõe uma desvalorização da HQ em relação ao texto literário canônico, tal como afirma Ramos (2009), razão que busca-se dar ao texto em quadrinhos maior status por se tratar de obras literárias canônicas e já socialmente valorizadas. No entanto, assume-se, consonante o referido autor, a autonomia da linguagem quadrinística em relação à Literatura. Todavia, do ponto de vista da textualidade, as razões acima mencionadas incorrem em valores e discussões que saltam o valor de cada texto, gênero e modalidade, enquanto fenômeno da interação verbal. Em outros termos, para a LT, Teoria dos Gêneros e os estudos da multimodalidade não importam as valorações sociais e ideológicas que possam ser atribuídas às manifestações textuais e, sim, o fenômeno do texto em si, como objeto de investigação científica. Em virtude dessas ponderações, adota-se a tradução inter-semiótica como processo de recriação, já que um novo gênero se constitui como obra ao mesmo tempo literária e quadrinística (NASCIMENTO, 2014; PINA, 2014). Nessa acepção, a transcodificação requer subversão, conflito e reinterpretação semiótica, posto que na relação signo-signo, em suas variadas dimensões, envolve uma reconfiguração de sentidos. Em virtude disso, Descardeci (2002) postula que a leitura desses textos também se dá de forma multimodal e esse processo relaciona-se, de forma direta, aos fatores pragmáticos da textualização, por exemplo, a intencionalidade e a aceitabilidade. A autonomia das diferentes semioses, linguagens e formas de arte, em todo caso, estão sujeitas às diferentes composições da atividade e criatividade linguística humana. Nesse aspecto, torna-se patente o diálogo entre linguagens (PINA, 2014) e práticas de intertextualidade (BAKHTIN, 2000). Nesse sentido, diversas forças transculturais perpassam os contextos de circulação das adaptações, seja pela subversão, como releitura ou recriação. Entretanto, é notório que esses eventos comunicativos multimodais estabelecem novas dinâmicas de leitura, produção e circulação de obras (MARCUSCHI, 2011). 203 Mais ainda, configuram uma forma peculiar de ação social e que estabelece formas próprias de organização sóciodiscursiva (MARCUSCHI, 2011; MÜLLER, 2012). Nessa perspectiva, Pina (2014) defende que o texto de chegada sendo novo, não apaga o antigo totalmente, já que não se trata de uma questão de fidelidade, mas de ampliar espaços e formas de leitura, num relação dialógica. Dessa forma, na condição de gênero textual a Literatura adaptada a quadrinhos não estabelece em si mesmo um novo paradigma, mas diferentes possibilidades de recorrências, tipificações, de (re)organização do discurso literário, de ações sociais específicas e como parte das mesclagens e hibridizações inerentes às interações humanas via linguagem (KRESS, 2010; MÜLLER, 2012). 4. Aspectos metodológicos A presente pesquisa é de natureza qualitativa e insere-se no contexto da análise de gênero textual, numa perspectiva indutiva considerando as categorias norteadoras. Para tanto, procedeu-se com a seguintes etapas: (i) caracterização geral da adaptação realizada por Molina e Koprowski (2015), com base na terminologia quadrinística em Eisner (1999); (ii) descrição da construção referencial dos objetos do discurso no texto-adaptado, fator central da textualidade, que precisa ser rearticulada na interação sob a imbricação de várias modalidades de linguagens (SOUZA JÚNIOR, 2012). Não obstante, ambas etapas envolveram verificações comparativas e indicações quanto aos aspectos composicionais e pragmáticos mais proeminentes. A escolha de um conto machadiano para a presente investigação se efetiva por três razões centrais: (i) o volume substancial de adaptações já realizadas da obra machadiana, principalmente contos; (ii) o quantitativo de pesquisas, artigos e publicações que analisam diversas obras de Machado de Assis adaptadas; (iii) sendo uma adaptação literária e de texto narrativo, é possível estabelecer possíveis generalizações quanto ao processo de adaptação, conforme as categorias que ancoram a análise. 5. Textualidade e referenciação na adaptação: análise exploratória Importa destacar que há uma relação dialógica entre os textos de partida e chegada e, dessa maneira, não há autonomia total nesse processo (PINA, 2014). Com isso, é possível destacar aspectos da releitura do discurso na transcodificação, já que tratam-se de duas linguagens autônomas. Nessa ótica, a narratividade, enquanto forma de organização do discurso e independente da configuração semiótica, pode constituir-se como um elo de proximidade em termos de gênero textual, com a ressalva de que tanto o texto literário, quanto o texto em quadrinhos sofrem as devidas constrições quanto às práticas discursivas em que se inserem, numa condição intersemiótica em diferentes graus (MAINGUENEAU, 2005). Para efeitos da análise e da caracterização, a comparação se dá com o texto-fonte ou o conto original, qual seja o conto O esqueleto, adaptado por Molina e Koprowski (2015), colocado em paralelo com a narrativa original 63 de Machado de Assis, publicado em 1875 no Jornal das Famílias. A primeira dimensão é a enunciativa e diz respeito à composicionalidade, estilo, conteúdo temático e plano textual geral. Nesses termos, o plano textual Nesta pesquisa utilizou-se a versão em domínio público disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000189.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2017, 13:30 h. 63 204 concerne ao material linguístico que materializa o discurso ficcional. Na adaptação, mostra-se que há alterações na estruturação do discurso, mas não na estrutura retórica ou na sequência da história como um todo. De fato, toda a adaptação realizada por Molina e Koprowski (2015) trabalha com a criatividade visual, mediante o uso de uma ampla paleta de cores neutras e frias simulando o clima noturno, tétrico e solitário sugerido pela narração, tais como o negro, sépia, graus de cinza, azul e verdes escuros, alaranjado, cobre, dentre outras cores. Imagem 1. Timing e disposição do material verbal Fonte: Molina e Koprowski (2015). Como se vê, a formatação dos tipos de quadrinhos e a disposição desses no decurso da narrativa seguem diferentes padrões e formas, bem como, em geral, cada quadro foi construído com uma cor predominante, fator que reforça o timing da narrativa (EISNER, 1999). Dessa maneira, por exemplo, as descrições picturais presentes na narrativa original não são alteradas significativamente. Não obstante, as nuances e mudanças materializadas na descrição do narrador são reforçadas em diferentes quadros que mostram visualmente os detalhes. Além dos diferentes enquadramentos, Molina e Koprowski (2015), em dados momentos, alteram a ordem “natural” da leitura - de esquerda para a direita - Eisner (1999) ratifica que essas quebras de fluxo do olhar são parte da constituição da leitura quadrinística. Outro elemento interessante são as diferentes perspectivas e enquadramentos utilizadas na adaptação (EISNER, 1999). Isto é, toda a obra mescla quadros com figuras inteiras, enquadramentos médios e posições aproximadas em close-up. Além disso, cada capítulo é aberto com uma inscrição construída com imagens ricamente adornadas com alusões fúnebres, figuras de cadáveres, esqueletos, cemitérios, lugares lúgubres, pântanos e outros arquétipos relativos à morte. Convém ressaltar a qualidade estética geral do texto-alvo com um visual atrativo. Conforme o recorte traçado para a análise, do ponto de vista da construção referencial, alguns elementos interessantes podem ser destacados. Com efeito, há uma relação de complementaridade entre os trechos descritivos e a representação imagética da cena. Para Souza Júnior (2012) os elementos visuais são pistas fundamentais para a (re) construção dos objetos de discurso, isto é, a construção referencial se efetiva por diferentes vias ou modalidades semióticas. Por exemplo: a expressão “à luz trêmula das velas...” (MOLINA; KOPROWSKI, 2015 s.p.), no primeiro capítulo, é reconstruída com uma imagens da luz das velas com diferentes sobreposições que simulam o movimento das chamas: Imagem 2. Vela (complementaridade referencial) 205 Fonte: Molina e Koprowski (2015) No capítulo quatro, por exemplo, um quadrinho mostra uma das personagens solicitando uma explicação e utiliza a expressão dêitica “deste”. Porém, o seu interlocutor não compreende a referência. No quadro seguinte, o referente é recuperado visualmente com a primeira personagen apontando com o dedo - em enquadramento close-up (EISNER, 1999) para um terceiro interlocutor, até então em silêncio no trecho. Esse elemento mostra que a ausência da construção referencial verbal é complementada e co-construída visualmente (SOUZA JÚNIOR, 2012). Assim, o referente mencionado no primeiro balão do quadro maior é recuperado visualmente no segundo quadro com o dedo em primeiro plano destacado: Imagen 3. Close-up (Recuperação de referente) Fonte: Molina e Koproswki (2015) No quinto capítulo, um quadro reconstrói ou reconstitui uma referência posta pelo narrador-personagem que contém os seguintes dizeres: “Um dia porém, recebi um bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa estranha que lá ia; pedia-me que não a abandonasse” (ASSIS, 1994, p. 12). Essa cena não fica à cargo da voz do narrador, mas é transposta para um único quadro. Dessa forma, a enunciação passa para a voz da personagem que envia o bilhete. Com isso, há uma reconstituição referencial delegada ao visual no texto-alvo: 206 Imagem 4. O bilhete (Reconstituição referencial) Fonte: Molina e Koproswki (2015). Em outro trecho da narrativa a reconstituição referencial da adaptação valese do uso da função emocional do requadro (EISNER, 1999), isto é, as formas dos contornos do quadrinho e a prese. nça de onomatopeia, que não existe no textofonte, senão mencionado como o grito da personagem Imagem 5. O grito (Reconstituição referencial e inserções) Fonte: Molina e Koproswki (2015). Na adaptação, o grito da personagem dona Marcelina é reconstruído imageticamente com o requadro, sua função emotiva e a onomatopeia. Dessa forma, integrando elementos presentes no texto-fonte com outros novos condizentes com a linguagem dos quadrinhos. Fica evidente, pelo exposto, que a leitura da adaptação exige participação ativa do leitor na construção dos sentidos construídos nessa intertextualidade e na emergência da multimodalidade que reestruturam, em vários níveis, os movimentos retóricos da sequência narrativa. Com efeito, signos são criados, transformados ou descartados, conforme o projeto adaptativo, isto é, como um processo global, conforme Nascimento (2014). Em outros termos, as especificidades da narratividade quadrinística e os elementos não-verbais estruturais dessa linguagem propiciam o surgimento de elementos novos na adaptação. 6. Considerações finais O objetivo deste trabalho foi caracterizar a literatura adaptada a quadrinhos, 207 consoante o escopo da LT e considerando aspectos da tradução realizada no conto O esqueleto, de Machado de Assis, bem como a construção referencial. Embora a tradução inter-semiótica de textos literários, dentre esses os machadianos, seja investigada por várias linhas de pesquisa, consoante uma vasta literatura nessa direção, a LT ainda não explorou esse fenômeno e esse gênero de forma mais detida. Além disso, o diálogo entre os estudos da textualidade e da multimodalidade tem crescido como forma de melhor compreender o texto, como objeto de investigação. A literatura e a análise sugerem que a adaptação de obras de Machado de Assis, tanto romances como contos, bem como a adaptação de quaisquer obra literária implica uma textualidade construída no intertexto e como procura-se apontar, mediante a análise neste trabalho, como um gênero peculiar, híbrido que emerge do processo de leitura e transcodificação da linguagem literária para a quadrinística. A análise apontou para a hibridização do gênero e que a adaptação não altera significativamente as tipificações do discurso narrativo, ao passo que estabelece uma dinâmica diferenciada, em razão da multimodalidade. No entanto, não se pressupõe que outras adaptações não realizem maiores alterações nesse processo. Como trata-se de um estudo exploratório, as etapas adotadas nesta pesquisa estão esboçadas mais no sentido de problematização, de reflexão das possibilidades e numa apreciação geral, do que na atribuição um escopo definitivo e finalizado do processo. Espera-se, com isso, oportunizar a discussão acerca da adaptação sob o viés da textualidade. Este trabalho precisa desdobrar-se em algumas questões que aqui não puderam ser aprofundadas, dentre elas, considerar quais elementos do texto-fonte favorecem o processo de adaptação. Pensar quais elementos pictóricos estão figurativizados na narrativa e que podem corroborar para a adaptação. No entanto, fica evidente a complementaridade de modalidade semióticas na construção referencial e a manutenção dos movimentos retóricos da narrativa, elementos que contribuem para a hibridização e caracterização geral do gênero Literatura Adaptada. 7. Referências ASSIS, J. M. De Obra Completa. vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000189.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2017. 20:22 h. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. COSTA VAL, M. G. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. DESCARDECI, M. A. A. S. Ler o mundo: um olhar através da semiótica social. Educação Temática Digital, Campinas, v. 3, n. 02, p. 19-26, jun. 2002. Disponível em < https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/article/view/604>. Acesso em: 10 ago. 2017. 13:32 h. DINIZ, T. F. N. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. 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Nesta pesquisa em que se objetiva compreender, por uma perspectiva discursiva, a maneira com que a arte denuncia as tensões do familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)-profissional no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise, debruça-se analiticamente sobre a abertura do segundo episódio da minissérie. A arte no jogo familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)profissional, in-visibiliza a tensão social/cultural de-marcada nos rituais da vida cotidiana desses sujeitos. Palavras-chave. Análise de Discurso. Social. Contradição. Arte. Abstract. In this research in which it is objectively understood, from a discursive perspective, the way in which art denounces the tensions of the familiar/ religious-desires/impulses of the subject (s)-professional in the relationship between Marília, Cláudio and Denise, analyzes the opening of the second episode of the miniseries. Art in the family/ religious-desires/ impulses game of the subject (s) -professional, in-visibilizes the social / cultural tension of-marked in the rituals of the daily life of these subjects. Palavras-chave. Discourse Analysis. Social. Contradiction. Art. 1. Introdução Este trabalho teórico-analítico-discursivo debruça-se sobre a minissérie Felizes para sempre?, escrita por Euclydes Marinho, produzida pela O2 Filmes e exibida na Rede Globo de Televisão entre os dias 26 de janeiro e 6 de fevereiro de 2015. Consideramos neste material audiovisual, que é constituído por diferentes materialidades de composição discursiva, tal como Lagazzi (2011), as especificidades de cada materialidade no batimento/alternância da descrição e interpretação. Neste batimento, descrição-interpretação, investimos analiticamente no funcionamento da contradição constitutiva do social em Felizes para sempre?. A categoria da contradição abordada por uma vertente que não privilegia a contradição lógica, segundo Léon e Pêcheux (2014), leva em consideração sua Este artigo é constitutivo do projeto de pesquisa docente proposto por Lara (2016-2019), “Imagensvisuais e projeções imaginárias de sujeitos em materiais artísticos e midiáticos”, em desenvolvimento na Universidade Estadual de Maringá. 65 Licenciado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da referida instituição. Membro do GPDISCMÍDIA – CNPQ/UEM – Grupo de Pesquisa em Discursividades, Cultura, Mídia e Arte. 66 Doutora em Linguística pela Unicamp. Professora do Departamento de Fundamentos da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEM. Líder do GPDISCMÍDIA–CNPq/ UEM. 64 211 tensão constitutiva, ou seja, a “[...] tensão contraditória entre a relação paradigmática de substituição que tende em direção à estabilização da forma lógica e a existência de relações de deriva e de alteração entre sequências [...]” (LÉON; PÊCHEUX, 2014, p. 172). Nesse sentido, a análise é deslocada, conforme os autores, em direção às “formas materiais discursivas de contradição ligadas à alteração e à deriva”, reafirmando, assim, “que um uso materialista da noção de contradição na análise do discurso supõe necessariamente, levar em consideração os espaços de heterogeneidades nos quais funciona essa contradição” (LÉON; PÊCHEUX, 2014, p. 173). Felizes para sempre? apresenta em sua trama a arte (pictórica), principalmente a arte pictórica brasileira da primeira metade do século XX, como denunciante de um social/cultural marcada pela tensão do familiar/religiosodesejos/impulsos do(s) sujeito(s)-profissional. Neste jogo, o artístico (de)marca os rituais cotidianos da minissérie. Recortamos para esta análise o relacionamento de Marília (restauradora), Cláudio (colecionador e marido de Marília) e Denise/Danny Bond (garota de programa de luxo que figura, na minissérie, como alguém que entende de arte). O objetivo é compreender, por uma perspectiva discursiva, a maneira com que a arte denuncia as tensões do familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)profissional no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise. Nesse sentido, é que nos interrogamos como nas relações entre Marília, Cláudio e Denise o artístico denuncia a tensão social/cultural nas práticas desses sujeitos. 2. Tateando a cultura e o social Para abordar sobre o jogo familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)profissional no funcionamento (discursivo) da minissérie Felizes para sempre?, situamos a cultura, as aquisições culturais e o social, constitutivos desse jogo, denunciados pelo artístico na minissérie. Falar do social, conforme Lagazzi (2013, p. 313), “é falar de relações entre sujeitos de linguagem”. Retomando “Delimitações, inversões, deslocamentos” (1990) de Pêcheux, a autora afirma que “pensar ‘o invisível, o alhures, o nãorealizado, o impossível, as diferentes modalidades de ausência’ no social é ter que se haver com sujeitos de linguagem, ter que se haver com a linguagem”! (LAGAZZI, 2013, p. 313). O social, nesse sentido, é espaço também do alhures, do invisível, do não-realizado, de distintas modalidades de ausência, do que pode vir a ser do outra forma, é espaço de linguagem, “do movimento de sujeitos na linguagem, do movimento de sujeitos de linguagem”, nas palavras de Lagazzi (2013, p. 313). No ensaio O mal-estar na civilização (1969 [1930]), Freud dedica-se a refletir sobre cultura e as aquisições culturais do homem67, assim como a maneira que estes funcionam na e pela cultura. A palavra civilização, nesse contexto, como explica o psicanalista, descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger o homem contra as forças da natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos (FREUD, 1969, p. 109 grifos nossos). Baseado nos dois intuitos citados anteriormente, Freud (1969) apresenta 67 Termo empregado por Freud. 212 quatro aspectos das aquisições culturais do homem. São eles: as atividades e os recursos que tornam a terra mais proveitosa e as atividades e os recursos que protegem contra as forças da natureza; os instrumentos que o homem vai desenvolvendo, mediante os quais recria seus órgãos motores e sensoriais ou amplia os limites de funcionamento do corpo; a beleza, que leva o homem a buscar sinais de asseio, de ordem e de limpeza; “as mais elevadas atividades mentais do homem – suas realizações intelectuais, científicas e artísticas – e o papel fundamental que atribui às ideias [sic] na vida humana” (FREUD, 1969, p. 114); a forma como os relacionamentos recíprocos dos homens, “seus relacionamentos sociais, são regulados – relacionamentos estes que afetam uma pessoa como próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro de uma família e de um Estado” (FREUD, 1969, p. 115). Como sinaliza Freud (1960), quando escreve o ensaio O mal-estar na civilização – publicado pela primeira vez em 1930 – no processo de regular os relacionamentos dos sujeitos, a civilização, nas palavras do autor, tem que utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sobre controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem (FREUD, 1969, p. 134). Mariani (2009), ao partir de algumas pistas formuladas por Pêcheux em O discurso: estrutura ou acontecimento, compreende cultura, na perspectiva discursiva, como resultante da prática de (entre) sujeitos que remetem a um determinado momento, lugar e formação histórica; prática estas ligadas às “formas de ser e estar em sociedade” (MARIANI, 2009, p. 45). Essas práticas, como frisa a autora, estão intrincadas aos modos de (re)produção, resistência e transformação dos sentidos. Deve-se destacar, em conformidade com Ferreira (2015), que a resistência da cultura “é um lugar privilegiado de produção de sentidos e também de estereótipos a provocarem danosos efeitos de homogeneidade nos fatos, condutas e valores de ordem cultural”. Ao mesmo tempo em que a cultura, “em sua potência de pluralidades”, é uma “matriz de diversidades”, ela “pode funcionar como anteparo ideológico de dominação e opressão” (FERREIRA, 2015, p. 165-166). Tanto na perspectiva discursiva como na psicanalítica, observa-se que a cultura é da ordem do plural, do diverso, e que está relacionada a determinações sócio-históricas e ideológicas que abrangem as práticas dos sujeitos (de linguagem) em sociedade. Por vezes, imaginariamente, produz efeito de homogeneidade, como expõe Ferreira (2015). No e pelo seu funcionamento, como explica Freud, as aquisições culturais regulam/modelam as relações sociais. As aquisições culturais abordadas por Freud (1969), que têm como finalidade controlar as relações entre os sujeitos, assim como dominar a natureza, materializam-se na trama de Felizes para sempre? no/pelo entrelaçar do legal e ilegal, do permitido e não-permitido cultural e socialmente na constituição da família Drummond, como também de sua casa decorada com obras de arte. 3. Em cena: os sujeitos Marília, Cláudio e Danny Bond 213 O cenário de Felizes para sempre? é a cidade de Brasília, no ano de 2013. Para a construção do per-curso analítico deste trabalho, recortamos a arte como denunciante das tensões do social/cultural, que é marcada pelo jogo familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)-profissional. Para tanto, focamos no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise/Danny Bond. A sequência de frames selecionada para a análise é da abertura do segundo episódio da minissérie, intitulado “Vale a pena sofrer por amor?”. Na abertura deste episódio, o casal Marília e Cláudio recebem pela primeira vez (e única vez) em sua casa a garota de programa de luxo (classe AA) Danny Bond, escolhida por eles ao final do primeiro episódio no site Black Orchid. Pelos enquadramentos da câmera, que focam na movimentação/no andar sensual de Danny Bond, adentrando a casa do casal e em suas observações das obras pictóricas que compõem este espaço, nota-se a personagem e atenta-se aos quadros de pintores brasileiros que produziram na primeira metade do século XX, bem como a forma como tais quadros estão dispostos, como se pode observar na sequência abaixo. Figura 1: Sequência de frames da abertura do segundo episódio – Vale a pena sofrer por amor?” Recorte verbal-oral da primeira sequência de frames Danny: Posso? Nossa, que linda a casa de vocês! Olha, Portinari... e no chão! Cláudio: Samanta [Marília] é restauradora. Danny: Linda profissão. Já vi que vocês gostam de artistas brasileiros! Bonadei, Volpi. Marília: Meu marido é colecionador. Na década de 1980, ao abordar sobre a casa e a rua, DaMatta (1986) afirma que a casa ordena um mundo à parte. Neste universo, segundo o autor, o tempo não é histórico, mas cíclico, “tempo que vive de durações que não se medem por relógios, mas por retratos amarelados e corroídos pelas traças, como naquela poesia de Drummond”. A duração do tempo e experiência podem ser revertidas pela saudade dos dias em que a família estava reunida “em torno de alguma figura importante para sua unidade e sobrevivência, enquanto grupo uno e integrado” (DAMATTA, 1986, p. 24). Se considerarmos estas dimensões, conforme DaMatta, observaremos que a casa e a rua são mais que espaços geográficos. Elas são modos de ler, falar e explicar o mundo. Em Felizes para sempre?, a casa de Cláudio e Marília é enfeitada/decorada por obras de arte de artistas (re-conhecidos) como, por exemplo, Portinari, Bonadei e Volpi, como diz Danny ao observar este espaço. Num primeiro momento, tais obras (pictóricas) são apresentadas por Marília como acervo de um colecionador, porém, elas são uma maneira do personagem Cláudio lavar dinheiro de sua 214 construtora, como nos é mostrado no decorrer da minissérie. O ato de colecionar, como explica Benjamin (1987), ao abordar sobre o desempacotar de sua biblioteca, é “[...] apenas um dique contra maré de água viva de recordações que chega rolando na direção de todo colecionador ocupado do que é seu” (BENJAMIN, 1987, p. 227). Nesse contexto, “quase toda paixão confina com um caos, mas a de colecionar com o das lembranças. Contudo, direi mais ainda: o acaso e o destino que tingem o passado diante de meus olhos se evidenciam simultaneamente na desordem habitual desses livros” (BENJAMIN, 1987, p. 228). Conforme o autor, o colecionador está nesta tensão entre a ordem e a desordem. Esta tensão entre ordem e desordem, conforme Benjamin (1987), constrói o colecionador, a coleção e as relações dessas com a lembrança. Em Felizes para sempre?, tal tensão constitui o personagem Cláudio e suas relações com os outros sujeitos da minissérie, num movimento constante de colecionar, não apenas obras pictóricas, como também poder, amantes, sujeitos da política. O maior fascínio do colecionador, segundo Benjamin (1987, p. 228), “é encerrar cada peça num círculo mágico onde ela se fixa quando passa por ela a última excitação – a da compra. Tudo o que é lembrado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura, pedestal, fecho de seus pertences”. Justamente nesse emoldurar (das relações que atravessam discursivamente a “Pinacoteca Marília Drummond”) que (in)conscientemente o colecionar funciona na/pela relação com a profissão de Marília (restauradora), que é tida como alguém que aprecia, entende de/sobre arte, que participa do processo de recuperação de obras de arte. A restauração, segundo Carvalho (2008, p. 134), ao citar Viñas (2004), é um conjunto de “atividades materiais, ou de processos técnicos, destinados a melhorar a eficiência simbólica e historiográfica dos objetos, atuando sobre os materiais que os compõem”. Nesse sentido, para o autor, ao citar Brandi (2005), a restauração visa restabelecer a unidade potencial da obra, desde que “não cometa um falso artístico e não remova as marcas que a obra adquiriu com a passagem do tempo” (CARVALHO, 2008, p. 135). Na minissérie, esse efeito de falseamento não está na restauração em si, mas justamente naquilo que não é possível de se restaurar, ou seja, as fraudes (uso de obras para lavagem de dinheiro por parte de Cláudio, no desconhecimento de Marília), o sentido de lar, pois a casa é, de fato, uma fachada. Fachada porque serve para depósito de obras envolvidas nessas ações ilegais quanto fachada no sentido de que embelezam paredes de um cenário familiar forjado na/pela traição múltipla de Cláudio com a esposa. A arte, para Freud, como argumenta Fuks (2003), se distancia dos estetas que concebiam a arte com um modo de expressão do belo, da harmonia, para afirmar que a força cultural da arte “encontra-se no registro das pulsões e do desejo. Ou seja, o que ele introduz de novo no universo das artes é o desvelar da íntima relação entre a produção artística e os processos inconscientes” (FUKS, 2003, p. 18). Uma dessas vias impostas pela civilização ao sujeito para assegurar o controle de suas pulsões é a sublimação. Na criação artística, as pulsões e os desejos, encontram uma forma própria e subjetiva de satisfação, transformando os restos pulsionais, “ajudando a minorar os poderes da repressão e inibição sob a cultura, modificando-a. O impacto de determinadas obras plásticas sobre a civilização, com seu eventual valor subversivo, testemunha o vigor dos efeitos da sublimação sobre a vida social” (FUKS, 2003, p. 18). Esta função da arte, apresentada pela autora, na minissérie assume o lugar de denunciante das tensões do social que são construídas na/pela relação com os processos de “fugir” da repressão social/cultural dos desejos e instintos dos personagens. O espaço casa, composto por obras de arte, que emolduram e organizam tanto o espaço físico como as relações entre os sujeitos, que (se) significam inicialmente como 215 lugar de uma família unida, perfeita, também é significado como um espaço de atuação profissional, um espaço que, retomando as ideias de DaMatta (1986), já expressas, está imbricado com a rua, mas que, ao mesmo tempo, se distancia de seu fluxo, da maneira como os sujeitos relacionam-se entre si e com ela. Isto é, a casa e suas relações com a arte pictórica, se constituem nessa relação com as profissões e hobby de Marília e Cláudio, sendo também significada como um espaço de atuação profissional (de uma profissão não-regulamentada) para Danny Bond, prostituta de luxo68, de nível universitário, a qual figura como entendedora de arte (pictórica), e toca piano69. Uma personagem que joga com os desejos 70 apresentados como sendo do casal, mas participa da “fantasia” de sexo a três de Cláudio, como exibido numa fala da cena da terapia do casal no primeiro episódio. Desejo este que não chega a ser realizado, mas que se realiza nas relações extraconjugais (Denise-Cláudio e Denise e Marília). Retomamos aqui um trecho da análise do primeiro episódio da minissérie Felizes para sempre?, realizada por Lara (2017), pois nela a autora sinaliza o jogo de imagens constitutivo da família Drummond que o artístico denuncia. O entrelaçamento de cenas que significam o adultério, para Lara (2017, p. 339), joga “com as imagens que se querem ‘preservadas’ socialmente no mundo normatizado, regrado e estável ou que requer o reestabelecimento da ordem”. Põe à visibilidade um mundo de aparências que não desaparece sem deixar marcas. A “família feliz”, ou ainda, “perfeita”, “se compõe de cacos, pedaços desestabilizados, in-visíveis, que querem ser recompostos por terapia de casal, ou discursos moralizantes ou mesmo desejosos de um ‘apimentar a relação’ na busca por satisfação dos desejos ocultos e/ou reprimidos” (LARA, 2017, p. 339). A casa de Cláudio e Marília Drummond, decorada com/por obras pictóricas, considerando a contradição constitutiva do social, é denunciada (discursivamente) pela arte no in-visibilizado de um mundo dividido, marcado pela tensão social/cultural, nas/pelas práticas não-institucionalizadas, não-permitidas empresarial e politicamente ou no casamento; o colecionar-restaurar vai sendo significado por pinceladas que apontam para as im-perfeições que constituem estes sujeitos e a família Drummond. Tal tensão que compõe o cenário da minissérie, mais especificamente, as relações dos sujeitos Cláudio, Marília e Danny Bond entre si e destes com a casa enfeitada por obras de arte, nos fez lembrar o texto “Delimitações, inversões, deslocamentos”, de Pêcheux (1990), mais precisamente, no ponto “A questão da revolução socialista a partir do século XIX”, quando ao abordar sobre o irrealizado no movimento popular, o autor afirma que a burguesia necessita que o ideal de 68 Para Cláudio (marido de Marília), segundo Lara (2017, p. 345), “produz sentido”, inconscientemente, entender a prostituição como profissão, não por reconhecê-la como trabalho, mas “como prestação de serviços como se fosse outro qualquer, selecionando o corpo-produto por critérios qualificadores de mercado”, em que a designação “luxo”, pré-qualifica “o produto-serviço no nível sócio-econômico-cultural em que o sujeito se situa em sociedade”. 69 O “tocar piano”, explica Lara (2017) baseada em estudo histórico de Vasconcelos (2004), é uma formulação visual que atualiza um gesto histórico pertencente a um imaginário de sociedade na qual mulheres de classe médio-alta eram submetidas a uma educação doméstica que lhes possibilitassem ser mães, gestarem uma casa e terem um nível cultural considerado apropriado para qualificá-las ao casamento. Aprender a tocar piano era uma das atividades da aprendizagem da educação doméstica. 70 O desejo conforme Roudinesco, Plon (1998), é um termo utilizado na filosofia, psicanálise e psicologia para designar propensão, anseio, necessidade, apetite, cobiça, ou seja, qualquer forma de movimento em direção a determinado objeto cuja atração espiritual ou sexual é sentida pelo corpo e pela alma. Na Psicanálise freudiana, esse conceito está no contexto do inconsciente, designando ao mesmo tempo a propensão e a realização da propensão. Assim, o desejo é uma realização de um anseio inconsciente. 216 igualdade permaneça irrealizado: “a dominação da ideologia jurídica introduz assim, por meio de uma barreira política invisível, que se entrelaça sutilmente com as fronteiras econômicas visíveis engendradas pela exploração capitalista” (PÊCHEUX, 1990, p. 11, grifos do autor). Essa barreira invisível, da qual nos fala o filósofo, não separa dois “mundos”, mas divide um em dois; [...] atravessa a sociedade como uma linha móvel, sensível às relações de força, resistente e elástica, sendo que, de um e outro de seus lados, as mesmas palavras, expressões e enunciados de uma mesma língua, não têm o mesmo “sentido”, esta estratégia da diferença sob a unidade formal culmina no discurso do Direito, que constitui assim a nova língua de madeira da época moderna, na medida em que ela representa, no interior da língua, a maneira política de negar a política (PÊCHEUX, 1990, p. 11 grifos do autor). Se pensarmos os sentidos possíveis do/para o artístico que atravessa e constitui o relacionamento de Marília, Claúdio e Denise-Danny Bond, assim como o relacionamento destes com a arte pictórica e com a música, essa linha móvel, resistente e elástica, sobre a qual nos fala Pêcheux (1990), é que faz com que os sentidos do colecionar, do restaurar-colecionar, do ser família, do que é nãopermitido, não-aceito socialmente, signifique de maneira diferente nos dizeres de cada personagem sobre seus desejos, como também sobre o que seja a arte e a maneira como ela se condensa em uma coleção. 4.Considerações Finais Na busca por compreender, por uma perspectiva discursiva, a maneira com que a arte denuncia as tensões do familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)-profissional no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise na minissérie Felizes para sempre?, interrogamo-nos, neste artigo, sobre como nas relações entre Marília, Cláudio e Denise o artístico denuncia a tensão social/cultural nas práticas desses sujeitos. Para responder a esta indagação, durante o percurso de análise, debruçamonos sobre a materialidade casa, como espaço onde, pelo movimento dos personagens de (tentar) burlar as regras socialmente aceitas ou, recuperando Freud (1969), os limites estabelecidos culturalmente, sem que estes deixem de existir, investimos no funcionamento da contradição constitutiva do social, na e pelas relações entre os sujeitos Marília, Cláudio e Denise/Dany Bond. Nessa casa onde as obras de arte compõem o espaço físico, como também o relacionamento desses sujeitos entre si, e deles com o artístico, as obras de arte (pictórica) assumem o papel de denunciante das atitudes de cada personagem que, na tentativa de satisfazer seus desejos (in-conscientes), quebram as regras sociais e jurídicas, seja para se satisfazer sexualmente, na vida profissional, ou, ainda, para colecionar relacionamentos extra-conjugais e/ou poder (sobre outros sujeitos). Nesse sentido, em Felizes para sempre? o emoldurar (do) pictórico, que enquadra, organiza os ciclos de vivência dos sujeitos Marília, Cláudio e Danny Bond, in-visibiliza a maneira como as regras sociais, empresariais/políticas demarcam os direitos, deveres, o aceito e o não aceito culturalmente no relacionamento entre os próprios membros da família, da localidade geográfica onde se passa a minissérie, Brasília. Como sinaliza Lara (2017), o que, de fato, fica como discurso da minissérie é a ideia de resposta social como punição jurídica para os sujeitos e a impossibilidade da felicidade eterna. 217 5.Referências BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. In: ______. Rua de mão única: obras escolhidas volume II. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 227-235. CARVALHO, Roberto Farias de. O tempo e as obras de arte: considerações acerca da possibilidade de conservação de arte contemporânea. In: IV Encontro de História da Arte – IFCH, 2008, Campinas. Anais... 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O presente trabalho tem como objetivo amarrar os fios concordantes sobre ideologia, luta de classes e discurso ao analisar a matéria "Enquanto o povo quer diretas, Fiesp quer manter Temer e fazer reformas", publicada no dia 26 de junho de 2017, pelo Portal Vermelho. Assim, antes de adentramos em nossa análise, percorreremos um caminho teórico acerca de conceitos que auxiliarão no processo de pesquisa. No primeiro momento, traremos as abordagens sobre Aparelhos Ideológicos de Estados apresentados por Louis Althusser (2008). No segundo momento, trataremos sobre a luta de classes e seus ideais materiais ideológicos, através do texto de Michel Pêcheux (2014). Em nossa análise, abordaremos a materialidade do Portal Vermelho que se auto define como de ‘esquerda’ e analisaremos o Manifesto Vermelho que é o norte do referido portal como discurso fundador (ORLANDI, 2001). Estudar tais conceitos em matérias jornalísticas é fazer uma reflexão importante sobre a sociedade sob o viés da ideologia e desmistificar a ideia do senso comum de que ela seja apenas uma mera “ilusão”. Palavras-Chave. Análise do Discurso. Ideologia. Internet. Mídia. Abstract: The present work aims to tie the concordant threads on ideology, class struggle and discourse in analyzing the matter "While the people want direct, Fiesp wants to keep Temer and make reforms," published on June 26, 2017, by the Red Portal . Thus, before entering our analysis, we will walk a theoretical path about concepts that will aid in the research process. In the first moment, we will bring the approaches on State Ideological Apparatus presented by Louis Althusser (2008). In the second moment, we will deal with the class struggle and its ideological ideals, through the text of Michel Pêcheux (2014). In our analysis, we will approach the materiality of the Red Portal that defines itself as 'left' and we will analyze the Red Manifesto that is the north of the portal as a founding discourse (ORLANDI, 2001). In short, to study such concepts in journalistic matters is to make an important reflection on society under the bias of ideology and to demystify the idea of common sense that it is only a mere "illusion". Keywords. Speech. Ideology. Internet. Media. 1. Introdução 220 Os conceitos sobre ideologia e sua materialidade, ou as reflexões acerca destes conceitos, nos foram retomados por Althusser ([1970] 2008) e Pêcheux ([1975] 2014. Cada um, a seu modo, teceu análises sobre o assunto e abordou pontos importantes sobre a constituição da ideologia e seus respectivos sensos e contrassensos. Antes de adentramos em nossa análise, percorreremos um caminho teórico acerca de conceitos que auxiliarão no processo de pesquisa. No primeiro momento, traremos as abordagens sobre Aparelhos Ideológicos de Estados apresentados por Louis Althursser ([1970] 2008). Em seguida, faremos associações entre os conceitos apresentados pelo mesmo com os conceitos dos autores supracitados. No segundo momento, trataremos sobre a luta de classes e seus ideais materiais ideológicos, através do texto de Michel Pêcheux ([1975] 2014). Em nossa análise, abordaremos a materialidade do Portal Vermelho que se auto define como de ‘esquerda’ e analisaremos o Manifesto Vermelho que é o norte do referido portal como discurso fundador (Orlandi, 2001). Em suma, estudar tais conceitos em matérias jornalísticas é fazer uma reflexão importante sobre a sociedade sob o viés da ideologia e desmistificar a ideia do senso comum de que ela seja apenas uma mera “ilusão”. 2. Aspectos inerentes à Luta de Classes Em Sobre a reprodução, o filósofo francês Louis Althusser nos apresenta uma reflexão sobre os conceitos acerca dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Em seu texto, Althusser retrata as lutas de classe e parâmetros conceituais pertinentes sobre a ideologia dominante e dominada decorrente desta luta. Ao se referir à ideologia dominante, o mesmo afirma que a mesma “não é a simples repetição”, mas sim, uma renovação de elementos ideológicos anteriores. Desta forma, podemos entender que esta ideologia sempre se reinventa e se torna, basicamente, um elemento que é submetido à luta de classes (ALTHUSSER, 2008, p. 240). De acordo com este conceito, Michel Pêcheux (2014), afirma ainda que “[...] os AIE não são, por outro lado, puros instrumentos da classe dominante, máquinas ideológicas que reproduzem pura e simplesmente as relações de produções existentes”. Ou seja, os AIE não são ferramentas, mas sim o “lugar” e o “meio” de realização da ideologia da classe dominante. Voltando-se novamente ao texto de Althusser (2008, p.251), o filósofo aprofunda sua análise sobre os AIE e retoma uma reflexão feita pelo mesmo em 1970, quando dizia que: Se é verdade que os AIE representam a forma na qual a ideologia da classe dominante deve realizar-se (para ser politicamente ativa) e a forma com a qual a ideologia da classe dominada deve, necessariamente, medir forças e enfrentar, as ideologias não ‘nascem’ nos AIE, mas surgem das classes sociais envolvidas na luta de classe: de suas condições de existência, de suas práticas, de suas experiências de luta, etc. Desmistifica-se a ideia que a ideologia da classe dominante nasce diretamente nos AIE, e afirma que a mesma se origina no processo de luta classista que tem como elementos as condições de existências e práticas, dentre outros fatores. É importante ter essa ideia em mente, pois o senso comum atribui aos AIE a responsabilidade da criação desta ideologia e esquece-se que a luta entre as classes origina e reformula as ideologias dominantes e dominadas. 221 Antes que passemos a outros conceitos pertinentes a esta temática, faz-se necessário conceituarmos o que são Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Segundo Althusser, os AIE são instituições distintas especializadas, como a Igreja, escola, família, jurídico, político, dentre outros. Estes, os AIE, se diferem dos Aparelhos Repressivos de Estados (ARE) no que tange ao funcionamento. Enquanto os AIE funcionam por meio da ideologia, os ARE podem funcionar de forma repressora, violenta. No entanto, o próprio autor afirma que não existe aparelho puramente repressor ou ideológico. Em primeira e segunda instância, uma se assemelha à outra (ALTHUSSER, 2008, p.266). Outra proposta de análise presente no texto faz referência a “história da ideologia”. Althusser, ao refletir sobre as ideias de Marx no livro A ideologia alemã, informa que a ideologia não tem história. Segundo o mesmo, Marx exprime essa ideia através de bases positivistas, uma vez que “sua história lhe é exterior, ou seja, situa-se onde existe a única história real, a dos indivíduos concretos, etc.”(ALTHUSSER, 2008, p. 276). Para Marx, a ideologia se apresenta de forma negativa, exterior. Pensamento que se difere de Althusser quando ele defende que [...] as ideologias têm uma história própria (embora seja determinada, em última instância, pela luta de classes); e, por outro, creio poder defender, ao mesmo tempo, que a ideologia em geral não tem história, não em um sentido negativo (o de que sua história lhe é exterior), mas em um sentido absolutamente positivo (ALTHUSSER, 2008, 277) O sentido positivo proposto pelo autor, diz respeito ao pertencimento da ideologia a uma estrutura de funcionamento que transforma uma realidade “nãohistórica” em uma estrutura histórica, como no caso da história da luta de classes. Pêcheux (2014, p.6) ratifica essa ideia ao afirmar que “a luta de classes é o motor da história, incluindo a história da luta ideológica de classes”. Entendendo o papel importante da ideologia, Althusser refere-se ainda ao sujeito e afirma que “toda ideologia existe pelo sujeito e para os sujeitos”. O autor se refere a interpelação da ideologia nos indivíduos como sujeito. Em seu texto “Ousar pensar, e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes”, Michel Pêcheux, aborda a interpelação através de três características: a identificação, a contraidentificação e a desidentificação. A primeira, identificação, é caracterizada através da relação sujeito/Sujeito. Neste caso, o sujeito se assujeita livremente ao Sujeito. A segunda, contraidentificação, não há “coincidência” entre sujeito e Sujeito. Já a desidentificação, ocorre quando há um rompimento das matrizes ideológicas entre sujeito e Sujeito. 3. Reflexo da Luta de Classes no manifesto do Portal Vermelho O ciberespaço, segundo o filósofo e sociólogo, Pierre Lévy (2010, p.99), define-se como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de computadores e das memórias dos computadores”. E, como tal, proporcionou-se a veiculação de conteúdos com periodicidade quase instantânea. Jornalistas, pesquisadores e estudiosos lançaram-se à Internet utilizando-se do seu aparato tecnológico para veicular notícias e abordar assuntos não discutidos pela mídia tradicional (BORGES, 2010). O ambiente virtual, portanto, torna-se um espaço onde os sujeitos podem se identificar com os conteúdos produzidos e veiculados pelos blogs e portais de 222 notícias, se inscrevendo, desta forma, em uma dada posição ideológica. Esta prática permite aos sujeitos uma interlocução com outros sujeitos que estão em diferentes regiões, bem como o compartilhamento de conteúdo e ideias em comum. As fanpages (páginas de fãs) presentes no Facebook e em outras redes sociais, são exemplos desta interlocução entre diferentes sujeitos que se inscrevem em uma mesma posição ideológica. Destarte, propomos analisar o Portal Vermelho, que é uma página virtual que tem como tema “A esquerda bem informada”. A partir deste tema, identificamos que o referido portal se propõe a informar aos sujeitos que se identificam com a “política de esquerda”, cujo ideal é a transformação social da sociedade capitalista para comunista em seu sistema econômico (MARX E ENGELS, 1987). Segundo informado no Portal Vermelho, a página é mantida pela Associação Vermelho, que é uma entidade sem fins lucrativos. Em sua política de utilização do conteúdo, O Vermelho autoriza e incentiva a utilização de qualquer texto, imagem e arquivos de som e vídeo disponíveis no portal por quaisquer pessoas em quaisquer meios de divulgação, desde que esta utilização não seja contrária aos princípios definidos no Manifesto Vermelho. Sugerimos que seja registrado, sempre que possível, o nome do autor do texto (caso o mesmo esteja assinado), da seguinte forma: Texto de fulano de tal, publicado originalmente no Portal Vermelho. Alertamos que a maior parte das imagens e textos publicados em nosso portal são reproduzidos de outras fontes. <Disponível em http://www.vermelho.org.br/interna.php?pagina=quemsomos.htm> Acesso em 28 de julho de 2017. Como podemos observar, o Portal Vermelho autoriza a veiculação de seu conteúdo mediante o respeito ao crédito do autor do texto bem como ao próprio portal. Essa é uma prática comum das agências de notícias que autorizam a veiculação do seu conteúdo. Notamos, também, em suas diretrizes, que o portal permite a divulgação “desde que esta utilização não seja contrária aos princípios definidos no Manifesto Vermelho”, ao qual visualizaremos abaixo: Figura 1 < Disponível em: http://www.vermelho.org.br/html/galomanifesto.gif> Acesso em 28 de julho de 2017. Percebemos, assim, que a Formação Discursiva (FD) do portal, direciona seu olhar à causa dos trabalhadores e ‘rejeita’, desta forma, a política neoliberal. O excerto “treva neoliberal” não somente serve para ilustrar o pano de fundo da figura, como também remete ao processo político de ‘direita’. Segundo Eni Orlandi (1999), “se observarmos do ponto de vista da cromatografia política, o negro tem sido a cor do fascismo, dos conservadores, da ‘direita’ em sua expressão política” (p.29). Por outro lado, a cor vermelha que serve para ilustrar a figura do galo, o 223 nome do manifesto e a nomenclatura do próprio portal, mostra o efeito de revolução. “A cor vermelha está ligada historicamente às posições revolucionárias, transformadoras” (ibidem, p.29). Neste caso, sob o fundo preto, as palavras “Manifesto Vermelho” e o próprio galo que ilustra a figura, fazem apelo à revolução frente à tradição de direita e ratificam o ideal de “iluminar” as ideias das trevas que a política neoliberal representa. O próprio galo pintado de vermelho, confirma a ideia supracitada com a frase “e toda aurora tem seus galos, clarinando no escuro o dia por nascer”, ou seja, o referido portal pretender ser este “galo” na internet, que tem por objetivo “anunciar” o novo dia (ideal revolucionário) em meio às trevas que o tradicionalismo neoliberal impõe à sociedade capitalista. Nesta análise, portanto, encontramos em si uma memória, isto é, o interdiscurso. O linguista e teórico Jean-Jacquee Courtine (2016) retoma os conceitos de Pêcheux acerca do interdiscurso ao informar que o mesmo “consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma FD é levada, em função das posições ideológicas que essa FD represente em uma conjuntura determinada” (p.40). Assim, identificamos na análise do manifesto acima, a presença do interdiscurso, à medida que podemos identificar o interdiscurso tanto através dos efeitos de sentido possibilitados pelas cores utilizadas pelo manifesto, como no símbolo que representa o ideal do portal, bem como nos dizeres inscritos na declaração do Vermelho. Outro aspecto referente ao Manifesto, é que o mesmo torna-se o discurso fundador do Vermelho, pois, a partir de sentidos ideológicos propostos, remete a uma significação do novo, ou seja, “busca a notoriedade e a possibilidade de criar um lugar na história, um lugar particular [...] que confunde a realidade, a imaginação (a ficção, a literatura) e o imaginário (a ideologia, o efeito de evidência construído pela memória)” (ORLANDI, 2001, p.16-17). Ainda segundo Orlandi, “o que define o discurso fundador, a nosso ver, não são esses materiais, mas a historicidade tal como a enunciamos anteriormente” (2001, p.23). Ou seja, o que a pesquisadora informa é que a historicidade dos processos discursivos é o mais interessante, pois demonstram aspectos mais relevantes dos enunciados, mitos, lendas, ordens dos discursos, e afins. 5. Considerações Finais Este trabalho tratou sobre os conceitos de Ideologia e suas possíveis reflexões presentes nos textos de Marx, Althusser, Pêcheux, Figueira e Dunker. Assim, analisamos o caráter ideológico sob diferentes aspectos e elucidamos conceitos e reflexões sobre as teorias que compõem a obra dos autores supracitados. Percebemos a importância em compreender tais reflexões, pois, as mesmas compõem papel fundamental nos estudos da Análise do Discurso. A interpelação do sujeito pela ideologia, o direciona ao sentido e este, só existe quando se remete a História. Analisamos o Portal Vermelho através do Manifesto Vermelho que ‘rege’ os parâmetros ideológicos e constatamos que os sentidos atravessados através da declaração analisada, a constitui como sendo uma Formação Discursiva de esquerda e que tem como principal objetivo se contrapor ao sistema capitalista vigente no Brasil. A Análise do Discurso (AD) procura entender os sentidos da língua, enquanto bem simbólico e que é constitutivo da história humana (Orlandi, 1999). Por isso, a 224 AD pretende compreender os objetos simbólicos que produzem sentidos e estão inscritos nas diversas formações discursivas. 6. Referências ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. [1995] Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Introdução de Jacques Bidet. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2008. CONEIN, B; COURTINE, J-J; GADET, F; MARADIN, J-M; PÊCHEUX, M. Materialidades Discursivas. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: Ed Unicamp, 2016. LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 40, 2010. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista (10a. Ed., São Paulo: Global, 2006 [1987]) PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. 5.ed. Campinas: Ed.Unicamp. 2014. ______________. Ousar pensar e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes. Trad. Guilherme Adorno e Gracinda Ferreira. Décalages – an Althusser Studies Journal, v. 1, n. 4, 2014. ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999. ____________. (Org.). Discurso Fundador. Campinas, SP: Pontes, 2001. 225 LETRAMENTO DIGITAL E ACADÊMICO NO PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO BRUNO VIEGAS DOS SANTOS, ELLEN MAIRA DE ALCANTARA LAUDADRES, PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) - Palácio Dos Condes Do Redondo (Sede). Rua De Santa Marta 56 - 1169-023 Lisboa – Portugal Universidade Federal de Lavras (UFLA) – Departamento de Educação -Câmpus Universitário, Caixa Postal 3037, CEP 37200-000 • Lavras/MG Universidade Federal de Lavras (UFLA) – Departamento de Educação -Câmpus Universitário, Caixa Postal 3037, CEP 37200-000 • Lavras/MG brunoviegas.santos@yahoo.com.br, ellenusp@yahoo.com.br, patypcr@hotmail.com, Resum. O sujeito que ingressa em um curso de Direito precisa saber que, se for exercer a profissões jurídicas, além de um letramento acadêmico (STREET, 1999), também deve ser letrado digitalmente (XAVIER, 2007;) (BUZATO, 2006). Diante da sociedade em rede (CASTELLS, 2005) em que novos perfis são requeridos dos diversos profissionais, também são exigidas diferentes habilidades dos bacharéis em direito, vez que hoje existe nos Tribunais de Justiça o Sistema do Processo Judicial Eletrônico. Constatou-se que, mesmo existindo o letramento acadêmico, não é o suficiente para formação de um profissional completo. Palavra-Chave: letramento digital – letramento acadêmico – processo judicial eletrônico Abstract: The subject who enters a course of law needs to know that if he is to exercise legal professions, in addition to academic literacy (STREET, 1999), must also be digitally literate (XAVIER, 2007;) (BUZATO, 2006). In the face of the networked society (CASTELLS, 2005) in which new profiles are required of the various professionals, differents skills of the bachelors in law are also required, since today there is the Electronic Process System. It was found that, even if academic literacy existed, it is not enough to train a full professional Key-words: digital literacy - academic literacy - electronic judicial process 1. Introdução Vivemos em uma sociedade em rede (Castells, 2005) em que novos perfis são requeridos dos diversos profissionais, também dos bacharéis em Direito são exigidas novas habilidades. Onde antes se exigia conhecimento técnico e uma boa oralidade, atualmente, podemos acrescentar o letramento digital. Com a instauração do Sistema do Processo Judicial Eletrônico nos Tribunais de Justiça e a possibilidade de acesso de processos de diversas localidades sem sair do escritório, a necessidade de saber fazer uso desse software torna-se imprescindível. Assim, pretende-se tratar da necessidade de assimilação do Sistema do 226 Processo Judicial Eletrônico como uma forma de letramento digital, ainda dentro do núcleo de formação de futuros advogados. Foi notado que os estagiários do curso de Direito, em uma cidade das vertentes de Minas Gerais, que estão em processo de aprendizagem de institutos jurídicos (letramento acadêmico), não têm práticas de letramento digital, isto é, alguns têm dificuldade na elaboração de petições ao usar uma tecnologia digital, como, por exemplo, ao digitar ou ao justificar um texto e acesso ao sistema do Processo Judicial Eletrônico (também intitulado de PJE), necessário para o desenvolvimento de atividades com os clientes por eles atendidos no Núcleo de Prática Jurídica. Tem como objetivo, portanto, identificar as principais dificuldades dos alunos, que frequentam o estágio supervisionado obrigatório do curso de Direito de uma cidade das vertentes no estado mineiro. 2. O estágio em Direito e os letramentos O sujeito que ingressa em um curso de Direito precisa ter consciência que, se for exercer uma profissão jurídica, esse profissional, além de um letramento acadêmico Street (1999), também deve ser letrado digitalmente Soares (2002), Xavier (2007), Buzato (2006). Pesquisadores do campo da linguística, antropólogos e historiadores concebem o letramento como prática social e proclamam ser o letramento mais que o conhecimento do código da língua per se, mas se refere aos usos e às funções da escrita dentro das práticas sociais em que se insere (STREET, 2003). O letramento não tem uma definição rígida, além de compreender diversas classificações, mas, podemos inferir, que compreende o desenvolvimento de algumas habilidades de escrita e de oralidade e o uso das multimodalidades textuais para atender as atividades cotidianas. Percebe-se, ainda, que são tímidos os estudos sobre o letramento acadêmico nas universidades, já que o enfoque maior sobre o letramento é na Educação Básica (MARINHO, 2010). Nesse sentido, que preocupa-se com o letramento acadêmico. É na universidade que a maioria dos alunos tem contato com os gêneros textuais acadêmicos, que correspondem a gêneros de leitura e de escrita acadêmica, tais como resenha crítica, artigos, teses, dissertações, monografias, etc. Com o processo de escolarização, os gêneros tornam-se mais complexos, seriam considerados por Bakhtin (2003) como os gêneros secundários. O que não engessa os enunciados (MARINHO, 2010), apesar de existir uma forma, cada indivíduo pode fazer uso da sua subjetividade, tanto na escrita, quanto na oralidade. Assim, compreende-se que a universidade tem importante função em desenvolver habilidades de escrita e de oralidade para as práticas sociais. O estágio, portanto, é o momento de colocar em prática alguns aprendizados adquiridos ao longo do curso de graduação. Os alunos de Direito, ao ingressarem no 7º período, devem passar pelo estágio obrigatório, que vai depender do currículo de cada universidade, que estabelece suas modalidades. No caso em tela, os alunos tem opção de fazer atendimento no Núcleo de Prática Jurídica, de acompanhar um escritório de advocacia devidamente credenciado ou assistir uma carga horária de audiências. Focamos, aqui, o estágio realizado no Núcleo de Prática Jurídica. Os alunos, supervisionados por um professor da instituição, fazem atendimento a clientes de baixa renda. Caso não consigam fazer a mediação entre as partes, elaboraram a 227 respectiva peça processual. Acontece que essas peças processuais devem seguir uma certa formalidade. Observar a formatação, além do conteúdo, seguindo os requisitos processuais. É nesse momento que os alunos devem saber fazer uso de programas de editor de texto e conhecer o processo eletrônico judicial, ou seja, a fusão do letramento acadêmico e do letramento digital para a prática profissional. Soares (2002, p. 151) define letramento digital como um “certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel”. 3. Descrição da metodologia Os alunos elaboram petições e as encaminham para peticionamento eletrônico, supervisionado pelo professor da instituição. O advogado responsável analisa as petições enviadas. O próprio advogado protocola ou devolve para correções. Nesses casos podem ocorrer erros de: a) estrutura/forma, b) conteúdo. Assim, durante os meses de junho a setembro de 2017 foram analisados e acompanhados o trâmite de peticionamento desses estagiários e quais têm sido as recorrências mais comuns. 4. Análise de dados A cada mês são submetidos um número variado de petições iniciais (aquela que inicia o processo judicial) e cerda de 9 petições intercorrentes (petições de algum processo já em andamento), além dos andamentos (marcações de audiências). Tabela 1 - Petições distribuídas e não distribuídas em 2017 Petições distribuídas Junho/2017 Petições não distribuídas TOTAL 29 9 38 Junho julho/2017 e 13 10 23 Agosto setembro/2017 e 8 4 12 Fonte: Do autor Diante da Tabela 1, verificamos que em junho/2017 houve um acúmulo de petições, decorrente das atividades do 1º semestre de 2017. Enquanto os meses de agosto e setembro referem-se ao início do 2º semestre de 2017, logo após o 228 recesso escolar; o que justifica a discrepância do número de petições elaboradas e enviadas ao advogado responsável. Gráfico 1 - Proporção das ações distribuídas e não distribuídas em 2017 Fonte: Do autor Pelo Gráfico 1 nota-se que há uma equivalência nos meses de agostosetembro/2017 e junho-julho/2017 de petições distribuídas e não distribuídas. Tabela 2 - Erro de forma e de conteúdo das ações não distribuídas Erro de forma Erro de conteúdo TOTAL 4* 7* 9 e 4 6 10 Agosto e setembro/2017 2 2 4 Junho/2017 junho julho/2017 *Erro de forma e de conteúdo Fonte: Do autor Na tabela 2, demonstra os erros das ações não distribuídas, que acontecem por erro de forma, de conteúdo ou por ambas, conforme ocorreu no mês de junho. Os erros de forma correspondem ao mal uso das ferramentas tecnológicas, enquanto o erro de conteúdo está no âmbito do letramento digital. Gráfico 2 - Proporção de erros de conteúdo e de forma de ações não distribuídas 229 Fonte: Do autor As causas de erros em petições elaboradas pelos alunos são: a) Esquecer de anexar os documentos (todos ou alguns); b) Erro de digitação ou de grafia; c) Não observar as regras para envio de uma petição, ex.: falta timbre do núcleo de prática jurídica da instituição de ensino superior, espaçamento etc. Conclui-se que: - alguns alunos têm dificuldades de estruturar suas petições no editor de texto, ou não conseguem fazer conversão para extensão exigida; - parte dos alunos desconhece o sistema do Processo Judicial Eletrônico. 5. Considerações Finais Ao final, constatou-se que, mesmo existindo o letramento acadêmico, que exige a leitura de artigos e produções científicas, o seu desenvolvimento para o exercício da advocacia não é o suficiente para formação de um profissional completo. A identificação dessas dificuldades permitiu a elaboração de um projeto de extensão para o letramento digital com esses alunos. Diversos concursos públicos ligados a candidatos com graduação em Direito exigem conhecimento em informática. Além disso, os próprios operadores do Direito, sejam eles Magistrados, Promotores, Defensores Públicos, Advogados e os servidores do Poder Judiciário, precisam atuar diariamente com seus certificados digitais, softwares, editores de texto e as mais variadas formas de tecnologia digital. Propõe-se, assim, como tentativa de redução do analfabetismo digital, de forma instrumental, a inclusão de práticas aos planos de curso que privilegiem o uso de computadores e software (editor de texto, planilhas, apresentação...) que proporcionem um letramento digital, além da possibilidade de no estágio ter acesso ao PJE (processo judicial eletrônico). 6. Referências BUZATO, M. E. K. Letramentos Digitais e Formação de Professores. EducaRede, p. 1–14, 2006. 230 CASTELLS, M. A sociedade em rede. A Sociedade em Rede p. 286 , 2005.9788577530366 MARINHO, M. A escrita nas práticas de letramento acadêmico. RBLA, v. 10, n. 2, p. 363–386, 2010. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação & Sociedade, v. 23, n. 81, p. 143–160, 2002. SOUZA, V. V. S. Letramento digital contextualizado: uma experiência na formação continuada de professores. UFU, 2007. STREET, B. What´s in New Literacy Studies? Critical approaches to literacy in theory and practice. Current Issues in Comparative Education. Teachers College, Columbia, University, 2003 XAVIER, A. C. DOS S. Letramento digital e ensino. In: Alfabetização e letramento: conceitos e relações. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. p. 152. 231 EFEITOS DE SENTIDO A PARTIR DE CHARGES SOBRE O PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO CARLA CASSIANO DE ALMEIDA, NÁDIA DOLORES FERNANDES BIAVATI DELAC-Departamento de Letras, Artes e Cultura Universidade Federal de São João del-Rei Praça Dom Helvécio, 74 – Dom Bosco, São João del-Rei –MG, 36301-160 carla-cassiano2012@hotmail.com, nadiabiavati@ufsj.edu.com Resumo. O presente artigo destaca aspectos inerentes à charge favorável ao Programa Escola sem Partido, considerando ações e práticas sobre o discurso ali veiculadas, em estudo de caso. Toma-se o viés da Análise de Discurso de vertente francesa, bem como aspectos voltados para interdiscursividade, para compreender aspectos que rememoram certo modo de perceber a escola, o professor, e, outas instituições, considerando os efeitos de sentido dessas representações. Palavras-Chave. Escola sem Partido. Análise de Discurso, Interdiscursividade, Charges. Abstract. The present article highlights aspects inherent to the favorable charter of the School without Party Program, considering actions and practices on the discourse presented there, in a case study. We take the bias of French Speech Analysis, as well as aspects directed at interdiscursivity, to understand aspects that reflect a certain way of perceiving the school, the teacher, and, as other institutions, considering the meaning effects of these representations. Key-works. School without Party. Discourse Analysis. Interdiscursivity. Cartoons. 1. Introdução O presente trabalho aborda o modo como professores e alunos são representados em charges que apoiam o Movimento Escola sem Partido. Destacase especialmente o modo como tais charges representam os referidos atores sociais considerando a rede de sentidos constituídos a partir do gênero em questão. Para a análise, consideramos que a rede de sentidos que se dá na escola só é válida quando transforma o sujeito rumo à cidadania, ou seja, quando o educando reconstrói os ensinamentos trazidos pelo educador de modo crítico, questionando-o e buscando aprimorar cada vez mais seus conhecimentos. Como dito por Freire (1996, p. 26), “nas condições de verdadeira aprendizagem, os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador igualmente sujeito do processo”. Sob esse ponto de vista, temos uma troca de saberes, relações e atores sociais que se dão em um determinado local criado e propiciado para o ensino e aprendizagem: a escola. Segundo a Lei 9.494/90- que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), é assegurado o direito à educação escolar em igualdade de condições de entrada e permanência pela oferta de um ensino público e gratuito de qualidade. Deseja-se e empenha-se que os sujeitos sejam formados para ação 232 social e para a interação orientadas para a atuação em sociedade. Segundo Gelati (2009, p. 104), A convivência do homem em grupo, em sociedade foi criando, estabelecendo um conjunto de regras. Ao tornar-se um ser social, consequentemente, surgiram necessidades, papéis sociais, enfim, a divisão social do trabalho também ocupou papel de grande relevância nesses novos tempos. “Toda conduta institucionalizada envolve certo número de papéis. Assim, os papéis participam do caráter controlador da institucionalização.” (apud BERGER; LUCKMANN, 2007, 82 Roteiro, Joaçaba, v. 34, n. 1, p. 79-92, jan./jun. 2009 Fábio Cesar Gelati p. 104) No processo de institucionalização, o indivíduo deve atuar e produzir discursos em diversas condições sociais voltadas para o bem comum. Esses discursos, como ditos por Foucault (2000) apud Sommer (2007), são práticas organizadoras da realidade. Ainda que feitos de signos, "o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala" (Foucault, 2000, p. 56, grifos do original). Os discursos estabelecem hierarquias, distinções, articulam o visível e o dizível. Quer dizer, o foco não estaria "no significado das palavras, mas sim no papel do discurso nas práticas sociais" (idem, p.193, tradução livre), no papel dos discursos na organização das relações entre indivíduos, instituições e organizações sociais mais amplas. (SOMMER, 2007, p 01) O discurso escolar em questão deve antes de tudo ser diferenciado do discurso pedagógico. Segundo Gvirtz (1999, p. 15, tradução livre apud Sommer, 2007) é preciso fazer uma distinção entre práticas escolares e práticas discursiva, “as primeiras se distinguem destas últimas a medida que se considera que são produções da escola, e as segundas seriam produções sobre a escola, ou seja, conformariam metadiscursividades na medida em que seriam práticas discursivas (as pedagógicas) que se referem a outras práticas discursivas". Interessa-nos, portanto, os discursos escolares e os discursos sobre a escola, compreendendo-os como caminhos para atuação social. Discordante da ideia de que a escola tem propiciado uma boa formação, o Movimento Escola Sem Partido compreende um conjunto de discursos sobre a instituição escolar, em que se consolidam dizeres: - De discordância sobre formas do fazer escolar, referendando a ideia de, aparentemente, um discurso político sobre o modo como a manifestação da palavra deve acontecer na escola. - Da discordância de que a escola tem atuado efetivamente a favor dos valores familiares. Com isso, parte-se da ideia de uma suposta neutralidade para trazer críticas sobre práticas e as representações sobre uma boa aula, bem como o comportamento requerido aos professores dentro de um conjunto de dizeres normativos. Segundo fontes da página de web do programa e da página do Wikipédia (enciclopédia online), o Projeto/ Programa Sem Partido baseia-se em uma proposta normativa que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio de um cartaz com o seguinte conteúdo: No exercício de suas funções, o professor: I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover 233 os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito; V – respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções; VI – não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala de aula. (BRASIL, 2015) Na tentativa de consolidar os regramentos para o professor, houve um projeto de lei apresentado para apreciação em 23 de março de 2015, pelo deputado Izalci Lucas (PSDB/DF). Conforme descrição do projeto de lei, inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Esse projeto de lei (doravante PL) prevê que a “doutrinação política e ideológica em sala de aula seja extinta”, bem como a “extinção da usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”, citando os dizeres do projeto.. Cita-se, por exemplo, o Art. 1º, que apresenta os princípios educacionais propostos pelo projeto, os quais visam a garantia do se nomeia como “educação neutra, livre de pensamentos políticos, ideológicos e religiosos”. Art. 1º. Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o "Programa Escola sem Partido", atendidos os seguintes princípios: I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico; III - liberdade de consciência e de crença; IV - liberdade de ensinar e de aprender; V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença; VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da ideologia de gênero. (BRASIL, 2015) Desse modo, defende-se que haja na neutralidade política, ao mesmo tempo em que se pretende uma orientação voltada para a formação moral do aluno, entendendo que temas transversais voltados para a sexualidade devem ser evitados, uma vez que aspectos da “ideologia de gêneros” suscitariam influência negativa aos alunos. 234 O projeto de lei (doravante PL), bem como o Movimento Escola Sem Partido provocam amplas discussões, pois, conforme o que se percebe da formação dos sujeitos escolares, não existe neutralidade, e, nessa mesma direção, os assuntos presentes na sociedade devem, sim, estar presentes na discussão escolar, uma vez que a própria escola é uma instituição social. Ir contra isso invoca falha na proposição de uma escola crítica, formadora de alunos reflexivos e constituída por professores preocupados com a cidadania dos alunos. O site de divulgação do programa/ projeto apresenta algumas justificativas e posicionamentos favoráveis ao projeto. Além disso, a influência da rede social do programa no Facebook contribui para a disseminação de inúmeros pensamentos questionáveis à ideia de escola conforme se pensa na atualidade, ainda que seja comprometida com os propósitos de uma educação voltada para a vivência em sociedade. Nessa direção, o Movimento Escola sem Partido parte do processo que, como se vê em charges analisadas, compreende o professor atual como “alienado e doutrinador”, ao mesmo tempo em que compreende o aluno como “inocente audiência cativa” Diante disso, é totalmente relevante que os comentários, bem como os artigos, charges, vídeos, reportagens, notícias referentes à campanha sejam problematizados e discutidos discursivamente. 2. Fundamentação Teórica – A importância da AD e proposta da interdiscursividade para a análise de charges e textos virtuais em apoio ao Escola Sem Partido Para investigarmos gêneros textuais cuja temática aborda o Movimento Escola Sem Partido, tomamos primeiramente a investigação sobre discursos que perpassam o universo escolar. O termo Discurso, o qual é discutido e proposto em várias esferas, é tomado na Análise de Discurso francesa como de efeitos de sentido entre os sujeitos (PÊCHEUX,1990). O fundador da Análise de Discurso na perspectiva francesa comenta A Análise de Discurso – quer se a considere como um dispositivo de análise ou como a instauração de novos gestos de leitura- se apresenta com efeito como uma forma de conhecimento que se faz no entremeio e que leva em conta o confronto, a contradição entre sua teoria e sua prática de análise. E isto compreendendo-se o entremeio seja no campo das disciplinas, no da desconstrução, ou mais precisamente no contato do histórico com o linguístico, que constitui a materialidade específica do discurso. (Pêcheux, 1990, p. 08) Dessa forma, a Análise de Discurso se funda na arte no entremeio, no que “é discutível e do que é interpretável” em um dado contexto sócio histórico, em acontecimentos e ações sociais. Como postulado por Pêcheux (1990): [...] a história “aparenta” o movimento da interpretação do homem diante dos “fatos”. Por isso a história está “colocada” e a Análise de Discurso trabalha justamente no lugar desse “aparentar”, criando um espaço teórico em que se pode produzir o “deslocamento” dessa relação, desterritorializando-a. (Pêcheux, 1990, p. 09) Como dito por Orlandi (1990), Pêcheux vai além dos entremeios, e busca em seu trabalho de análise percorrer um espaço de “múltiplas urgências do cotidiano”, entrecruzando os três caminhos: o do acontecimento, o da estrutura e o da tensão entre descrição e interpretação na análise. 235 Conforme dito por Maldidier (2003) apud Brasil (2001), O discurso me parece, em Michel Pêcheux, um verdadeiro nó. Não é jamais um objeto primeiro ou empírico. É o lugar teórico em que se intricam, literalmente, todas as suas grandes questões sobre a língua, a história, o sujeito. A originalidade da aventura teórica do discurso prende-se ao fato que ela se desenvolve no duplo plano do pensamento teórico e do dispositivo da análise de discurso, que é seu instrumento (MALDIDIER, 2003, p. 15-16). A análise se preocupa com sujeitos nos movimentos de história na língua. Sendo assim, temos o discurso constituído pela tríade: língua, sujeito e história. Trazemos, portanto, a ideia de Pêcheux em seu trabalho de (1990), Discurso: estrutura ou Acontecimento, que trata o discurso como estrutura e acontecimento. Isso implica considerar os efeitos de sentido a partir dos dizeres multimodais, em gêneros, postos em interface com a história, na enunciação. No trabalho da análise, materialidade e semioses são aspectos significativos na construção e/ou veiculação de valores referendados em gêneros como a charge. Nessa perspectiva, a ADF nos alerta que o mesmo discurso pode ser enunciado diversas vezes, mas em cada uma delas invocará sentidos específicos do momento (acontecimento) da enunciação. Entendemos, portanto, que a linguagem nunca é neutra, pois os gêneros fazem circular sentidos. Para o texto em questão, selecionamos uma charge em que se enunciam dizeres sobre professores e alunos, representando-os em aspectos que evocam discursos, investimentos de ideologias rememoradas pelos sujeitos que produzem a charge, trazendo polêmicas sobre a instituição escolar. Ao ler a charge, que geralmente carrega um caráter humorístico e/ou irônico, mostram-se vários aspectos que se instauram na sociedade, traduzindo tomadas de posição e construção de sentidos discordantes do modo como se coloca a identidade de professores no espaço escolar. Como dito por Pêcheux (1990): [...] todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio históricas de identificação, na medida em que filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente bem sucedida, isto é, ligação sócio histórica que não seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido performativo do termo – isto é, no caso, por um “erro de pessoa”, isto é, sobre o outro, objeto de identificação. (PÊCHEUX, 1990. p. 56) Em seu processo de formulação, Orlandi (1991) rememora que todo discurso é articulado por dois grandes e importantes processos: o parafrástico e o polissêmico. Pelas trocas simbólicas, o refazer dizeres e a pluralidade de sentidos são processos perceptíveis na produção, distribuição e circulação dos gêneros em seus dizeres instituídos. Dessa maneira não se mantém a noção de um sentido literal em relação aos outros sentidos, isto é, os efeitos de sentido que se constituiriam no uso da linguagem. Não há um centro, que é um sentido literal, e suas margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição, todos os sentidos são possíveis e, em certas condições de produção, há a dominância de um deles. O sentido literal é um efeito discursivo. (ORLANDI, 1991, p. 143/ 144) 236 O sentido produzido no momento da interlocução tem caráter dominante e se constitui a partir da história e a cada interlocução é recolocada de forma única a se institucionalizar. As escolhas linguísticas feitas são propícias para um determinado momento de enunciação, entretanto, é necessário pensar que uma única escolha linguística pode ser revisitada em diversos momentos da mesma forma e produzir sentidos diferentes. 3. A Charge com o olhar voltado para o campo político- partidário A charge é um gênero textual/discursivo que circula diariamente nos meios midiáticos, principalmente após a ascensão das redes sociais. Nos últimos anos, a circulação de charges tem crescido cada vez mais nessas redes, ampliando o campo de circulação principalmente por se tratar de um texto atraente ao leitor, que possibilita “viralizar” uma leitura rápida e direta no âmbito verbal/visual. Para o presente trabalho, tomamos uma charge enunciada em um contexto pró escola sem partido. Em geral, o movimento Escola sem Partido se baseia em um discurso que tenta se posicionar contra aspectos políticos nomeados como “doutrinadores” pelo movimento. Essa ideia acompanha o modo como discursos políticos de ultra direita vêm emergindo em um momento em as práticas políticas ditas de esquerda se enfraquecem. Há o fundamento de um caminho para um “ideal social”, que parte dos dizeres “neutros”, pondo à mostra escolhas partidárias nem sempre perceptíveis sobre as identidades no universo escolar. A charge analisada aqui foi escolhida a partir de postagens favoráveis ao Movimento Escola sem Partido no Facebook e que também partem de posicionamento pró- Programa sem Partido. Para o momento, escolhemos a charge abaixo, cuja representação de professor(a) e aluno se dão a partir do posicionamento polêmico. (Fonte: Facebook) A charge nos remete tanto a aspectos intertextuais quanto interdiscursivos quando representa professor e aluno ao seu modo. Representa-se a denominação “aluno inocente”, atribuída ao indivíduo que é interpelado por discursos trazidos pela professora. A imagem desse “aluno inocente” é a de que uma identidade recorrente de aluno é passível de receber toda e qualquer informação sem questioná-la. Percebe-se um atravessamento do discurso partidário, que remete metonimicamente à estrela símbolo petista afixada como botton na figura representada pejorativamente, uma professora que vomita lixo na cabeça do aluno. Tal figura, representada como professora de escola pública, pretensamente ensina esse “lixo”, atitude que é criticada ao representar o ato da professora que vomita ideias criticáveis, como “lixo” e “sexo”. 237 A professora se mostra uma figura monstruosa que “transmite” ideias sobre sexo, outro elemento trazido como “conteúdo” difundido pela professora, ideia que, no interdiscurso institucional, não condiz com o que se espera de tema a ser tratado na escola sem partido. No movimento interdiscursivo na charge, remete-se ao fato de que a Escola Sem Partido se manifesta contra a ideologia de gênero, temática amplamente criticada pelo programa e proibitiva, conforme o projeto de lei proposto. Nessa direção, o “lixo” é tomado como efeito de sentido que rememora ideias contra religião e sobre sexo. Portanto, a figura monstruosa “professora” invoca discursos antirreligiosos “imorais” fundamentados no sexo, que nos leva a compreender “sexo e religião” como dizeres antagônicos no gênero em questão. Encontram-se aqui o interdiscurso e o intertexto, que compreendemos ao mencionarmos o artigo 3º do projeto Escola sem Partido, que defende Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes. (BRASIL, 2015)’ A charge, no interdiscurso e intertextualmente, dialoga com o trecho do Projeto de Lei citado acima. Segundo Maingueneau (1984 apud BRANDÃO, 2006), “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”. Desse modo, O interdiscurso passa a ser o espaço de regularidade pertinente, do qual os diversos discursos não seriam senão componentes. Esses discursos teriam a sua identidade estruturada a partir da relação interdiscursiva e não independentemente uns dos outros para depois serem colocados em relação. (BRANDÃO, 2006, p. 89) A presença de um discurso conservador nos remonta à ideia de educação de caráter supostamente neutro, que distancia os alunos de outras convicções e valores trazidos pela ideologia familiar e conservadora, aspecto que parece ser apregoado no movimento. 4. Considerações finais Observando a charge escolhida, encontramos um aporte importante para problematizar a visão da escola brasileira nos dias atuais, bem como o modo com o Projeto Escola sem Partido é colocado em debate em páginas pró Projeto nas redes sociais. A charge é um gênero muito utilizado para críticas, constituída em realidade interdiscursiva repleta de cruzamentos que, no caso, satirizam, ao mesmo tempo criticam o professor e o aluno atuais, pois desejam a identidade do professor e do aluno voltadas para uma neutralidade utópica, visão equivocada. Nesse propósito equivocado, referenda a ideia de professor, interpelado pelo construto partidário como o “que vomita conhecimentos inúteis”, ao mesmo tempo em que o aluno reforça a representação do sujeito passivo e inocente, “audiência cativa” que recebe conhecimentos, sem avaliá-lo. Comparando a charge e artigos do projeto de lei Escola Sem Partido, percebemos um conjunto de representações que o movimento acredita permearam a formação, as práticas e os valores trazidos pelas escolas brasileiras atualmente. Tais representações colocam em cheque as identidades do professor e do aluno em seus papéis, trazendo o conservadorismo em defesa de uma suposta “neutralidade” requerida por universos partidários. A charge remete à interdiscursividade que 238 corrobora com a tendência de as charges serem colonizados por discursos políticopartidários, aspectos que definitivamente não são neutros, especialmente por se situarem em um gênero interpelado por ideologias, constituindo sentidos nesse processo. 5. Referências BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Editora da UNICAMP, 2002. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 867, de 2015. Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido”. Brasília, 2015. Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropos> Acesso em 28 jun. 2017. BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 193 de 2016. Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido”. Brasília, 2016. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=12566>Acesso em 28 jun. 2017. BRASIL. Lei de diretrizes e Bases da educação Nacional. 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente. São Paulo: Paz e Terra, p. 25, 1996. GELATI, Fábio Cesar. A escola como instituição socialmente construída. Roteiro, v. 34, n. 1, p. 79-92, 2009. ORLANDI, Eni Puccinelli. A Análise de Discurso em suas diferentes tradições intelectuais: o Brasil. Seminário de Estudos em Análise de Discurso, v. 1, p. 8-18, 2003. ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Pontes, 2001. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. In: O discurso: estrutura ou acontecimento. Pontes, 2008. SOMMER, Luís Henrique. The order of school discourse. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 34, p. 57-67, 2007. Corpus: Charge 1Disponível em:< ttps://www.google.com.br/search?tbs=sbi:AMhZZivqxfV9223RYDzDEFcZDqtCpVJd ACkKlHl9i3JfDqG003yvWaLEhMk-tF0m3kWtgKLKXpgZ6MwY9KPYVdMTCvf4Qorrz3Pv3K6WLM_ 239 LINGUÍSTICA FORENSE, NARRATIVA E DISCURSO: PROPOSTA DE ANÁLISE DAS ALEGAÇÕES DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA EM UM PROCESSO CRIMINAL CARLA LEILA OLIVEIRA CAMPOS Instituto de Ciências Sociais Aplicadas Universidade Federal de Alfenas – Campus Varginha Avenida Celina Ferreira Ottoni, 4000 - Padre Vitor, Varginha - MG, 37048-395 carla.oliveira@unifal-mg.edu.br Resumo. O objetivo do trabalho é analisar a construção conflitiva das narrativas das alegações finais da acusação e defesa em um processo criminal. Filiamo-nos à Análise do Discurso Forense, para compreender como os modos de interação e os papéis sociais desempenhados pelos sujeitos influenciam suas práticas linguísticas. Em nossa análise, vimos como esses fatores influenciam as escolhas linguísticas operadas pelas partes na construção de suas narrativas e no trabalho de valoração dos eventos narrados. Palavras-Chave. Narrativas forenses. Conteúdo ideacional. Relações interpessoais. Alegações finais. Processo criminal. Abstract. This paper aims at analyzing the narrative contrastive representation in prosecution and defense closing speeches in a criminal case. Within the theoretical framework of Forensic Discourse Analysis, this study aims to understand how interaction patterns and social roles played by subjects influence the discourse production in court. In our analysis, we have seen how these factors influence the subject’s linguistic choices in the construction of an in the valuation of narrated events. Keywords. Forensic narratives. Ideational content. Interpersonal relationships. Closing arguments. Criminal case. 1. Introdução Segundo Gibbons (2003), os processos legais, as audiências judiciais, os interrogatórios policiais desenrolam-se por meio da linguagem, permitindo-nos concluir que a lei e sua linguagem permeiam nossas vidas. Assim, considerando que os assuntos levados ao judiciário, na maioria das vezes, são objeto de litígio, envolvendo, no mínimo, duas versões dos fatos, podemos afirmar que a linguagem da lei não é isenta de disputas. Como, aliás, qualquer forma de uso da língua não o é. Também não podemos deixar de reconhecer as peculiaridades que envolvem o discurso legal, desde sua linguagem pautada pela técnica e pelo conservadorismo até os procedimentos e as relações sociais que subjazem à produção linguística forense. Pensando nessas colocações, o presente trabalho tem por objetivo analisar como se dá a construção das narrativas das alegações finais da acusação e da defesa em um processo de falsificação de documento público, por meio do conteúdo ideacional das peças e dos processos de negociação da imagem e dos relacionamento interpessoais. Para tanto, adotaremos como aporte teórico a linguística forense que, 240 segundo Gibbons (2003, p. 37), propõe “a aplicação da pesquisa linguística [...] a diferentes questões associadas à lei”. Para o desenvolvimento de nossa proposta tomaremos como categorias de análise, conforme estudo realizado por Rosulek (2010), o conteúdo ideacional dessas narrativas (HALLIDAY, 1998) e o processo de negociação de imagens e de construção dos relacionamentos interpessoais. Desse modo, objetivamos investigar como os modos de interação que envolvem a produção do discurso nos tribunais e os papéis sociais desempenhados pelos sujeitos influenciam as práticas linguísticas. Isso significa associar a análise das propriedades internas do texto às condições de produção do discurso. Considerando o contexto e as regras de interação nos tribunais, podemos afirmar que os gêneros produzidos nesse espaço lançam mão, constantemente, das narrativas como forma de reconstrução dos eventos sociais e enquanto estratégia argumentativa a favor da naturalização de determinada versão dos fatos (COULTHARD; JOHNSON, 2007, p. 68). As narrativas das alegações finais se revestem de especial importância no processo, pois, segundo Rosulek (2015, p. 3), elas constroem representações de um mesmo evento, para o mesmo magistrado, e são elaboradas sempre em oposição à voz do outro, buscando se afirmar como representação válida da realidade. Em relação ao corpus desta proposta, analisaremos um processo criminal de falsificação de documento público, que tramitou na Justiça Federal, de acordo com as categorias linguísticas acima apresentadas 71, mas sem perder de vista o contexto mais amplo em que a comunicação se desenvolve, observando as restrições legais ao ato de comunicação e como os papéis desempenhados pelos sujeitos comunicantes perpassam os seus dizeres. Com o intuito de apresentar os resultados de nossa pesquisa, o presente artigo se subdividirá em três tópicos. No primeiro, apresentaremos o quadro teórico e metodológico de abordagem do corpus e, nos dois seguintes, a análise do processo com base na teoria e nas categorias linguísticas abaixo detalhadas. 2. Delineamentos teóricos e procedimentos metodológicos Os trabalhos que buscam investigar o discurso legal lançam mão dos estudos da análise do discurso e se enquadram na subdisciplina Análise do Discurso Forense (ADF). Para Coulthard e Johnson (2007, p. 7), esse subdomínio da Análise do Discurso e da Linguística Forense está voltado para a investigação de como as funções institucionais específicas estão relacionadas aos usos da língua. Podemos considerar, portanto, que esse ramo da linguística forense é marcado por dois adjetivos: institucional e social, procurando compreender a interseção entre o discurso institucional, a lei e os significados sociais. Assim, ADF considera que a análise puramente textual é limitada, sendo necessário o estudo de como as relações institucionais e sociais trabalham mediante as práticas de linguagem e estruturas textuais. Em relação a este último aspecto é interessante destacarmos que o discurso jurídico se constrói com fundamento no sistema de leis de uma determinada sociedade. Segundo Gibbons (2003, p. 53), a lei representa um sistema de valor social, impondo direitos e deveres, prescrevendo e punindo comportamentos que forem de encontro às normais sociais e é em torno desse sistema legal que os textos forenses precisam 71 Ressaltamos que, nesta versão do trabalho, devido ao limite do número de páginas destinado à publicação dos artigos nos Anais, apresentaremos a análise de apenas algumas categorias que ilustram o trabalho completo. 241 se construir. Além disso, eles não podem deixar de considerar os valores sociais gerais que circulam em determinada sociedade e o sistema sociocultural dos participantes da atividade comunicativa e as relações interacionais que a englobam. Concordamos, portanto, com Gibbons (2003, p. 96) que, para compreendermos a interação humana, precisamos entender os quadros nos quais ela opera, as condições e regulações externas que a cercam e transmitem seu significado. Nesse sentido, é importante que entendamos como se desenrola um processo penal no direito brasileiro. O processo penal brasileiro é organizado nas seguintes fases: a) inquisitiva ou postulatória: a polícia investiga o crime, elabora o inquérito apresentando as provas e depoimentos do autor e das testemunhas e envia ao juiz; b) instrutória ou probatória: após autorização do juiz, o Promotor de Justiça 72 analisa o processo e decide se vai ou não oferecer a Denúncia contra o acusado. Oferecida a Denúncia, o juiz decide se vai recebê-la ou rejeitá-la. Recebendo-a, o réu é citado para apresentar Resposta Escrita à Acusação e dá-se prosseguimento ao processo por meio da realização da(s) audiência(s) de instrução e julgamento, sendo produzidos os Termos de Audiência. Ao fim da instrução processual, a acusação e a defesa apresentam suas alegações finais e, após análise dessas peças, o juiz produz a sentença; c) fase executória: execução da sentença com trânsito em julgado. Em relação às alegações finais, Rosulek (2010) enumera diversos estudos dessas peças, argumentando que eles se baseiam geralmente em dois aspectos: o seu conteúdo ideacional, buscando compreender que informações são incluídas ou excluídas de cada versão dos fatos e a negociação da própria imagem e dos relacionamentos interpessoais, que tem como foco a construção da imagem do advogado e de suas relações com os interlocutores, com o contexto e com o próprio texto. Nesses termos, observa-se que a proposta de Rosulek (2010) está intimamente ligada à de Halliday (1976) acerca das três funções da linguagem. Para o autor, o ato comunicacional é construído pelas relações entre o “nós”, os “outros” e o “meio” em que a comunicação se desenvolve, de acordo com os papéis sociais desempenhados no evento comunicativo. Nessa perspectiva, Halliday propõe três funções básicas da comunicação (função ideacional, função interpessoal e função textual). Para Halliday, essas três funções se combinam e se atualizam simultaneamente nos enunciados, possibilitando o ato comunicacional. No que tange ao conteúdo ideacional, adotaremos como categoria de análise o modelo de narrativa de Labov (1972, p. 359-360). Para o autor, uma narrativa pode ser definida como um método de recapitulação da experiência passada, por meio de uma sequência verbal de orações ligada à sequência de eventos que (infere-se) ocorreram de fato. Tais narrativas estruturam-se em torno de seis propriedades (Sumário, orientação, ação complicadora, avaliação, resolução e coda)73. Segundo Heffer (2010), o modelo de Labov é interessante à análise das narrativas forenses especialmente pela subdivisão feita na propriedade avaliação. Esse modelo avaliativo é fundamental de ser considerado nas narrativas forenses, já que elas exercem forte função argumentativa, pois é por meio delas que se tem acesso aos fatos a serem julgados. Contudo, não podemos nos esquecer de que as narrativas que chegam aos tribunais são valoradas (VALVERDE; FETZNER; A Denúncia é a peça oferecida pelo Promotor de Justiça quando tratar-se de ação penal pública, que é o caso de nosso trabalho. 72 73 Como já explicado na Nota 1, nesta versão, apresentaremos a análise apenas alguns enunciados da avaliação. 242 TAVARES JÚNIOR, 2013, p. 49), ou seja, os fatos foram analisados e selecionados de acordo com os interesses comunicativos das partes. Metodologicamente, nosso trabalho de análise se desenvolverá a partir das categorias abaixo propostas, considerando as três funções da linguagem de Halliday (1976): a função textual, a interpessoal e a ideacional. Ao descrever as propriedades formais dos textos (função textual), procuraremos identificar e analisar os conteúdos e as escolhas lexicais adotados pela acusação e pela defesa na construção de suas narrativas (função ideacional), bem como as estratégias de construção da imagem e do relacionamento (função interpessoal). No que se refere à interpretação do texto enquanto objeto de interação, o trabalho de análise deve se preocupar com o modo como as relações entre o sujeito produtor do texto e os destinatários influenciam o dizer. 3. Análise do corpus Para abordar o conteúdo ideacional das peças, elegemos como categorias de análise a seleção e/ou reinterpretação dos fatos que compõem suas narrativas, a partir das escolhas de determinadas unidades lexicais pelos locutores – verbos, adjetivos e outros qualificadores. Em termos de organização das análises, elaboramos um quadro dividindo os textos de acordo as propriedades das narrativas propostas por Labov e, na propriedade “avaliação encaixada”, apresentamos uma subdivisão a partir dos temas em torno dos quais se organizam as peças e que se configuram nos elementos constituintes do crime (materialidade, autoria, tipicidade e dolo 74). Como dito, anteriormente, o processo em análise trata do crime de falsificação de documento público, imputada ao réu E.M.75, pelo fato de, segundo a acusação, ele ter inserido informações falsas na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) de um de seus funcionários. Vejamos, a partir de agora, como esses mesmos fatos são valorados nas narrativas das alegações da acusação e da defesa, procurando compreender o conteúdo ideacional das peças a partir das marcas textuais acima expostas. Propriedade Avaliação estrutural (externa à narrativa): Acusação Defesa O réu é inocente. O réu é culpado pelo crime de falsificação de documento público. Propriedade Avaliação encaixada (MATERIALIDADE DO CRIME)76 Acusação Defesa 74 Nesta versão, apresentaremos a análise apenas dos enunciados relacionados à materialidade. Por razões éticas, apresentaremos apenas as iniciais dos nomes das partes envolvidas no processo. 76 “Conjunto de elementos e circunstâncias que evidenciam a criminalidade de um ato.” (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009). 75 243 a) “Não existem indícios suficientes de materialidade, não existem provas suficientes para a a) “A materialidade do crime de falsificação de condenação, devendo a absolvição ser reconhecida.” documento público (art.297, §3°, II, do Código Penal) encontra-se consubstanciada nos seguintes b) “A sentença trabalhista que condenou ao pagamento de diferenças e retificação de CTPS foi elementos: a) documento de fls.12 do anexo l. equivocada quanto ao teor das provas deduzidas no consistente em cópia da Carteira de Trabalho e curso do processo, e não deve ser usada para Previdência Social de E. de A. G., em cujo corpo encontra-se assentada a anotação de remuneração condenar criminalmente o réu. de R$650,00 (seiscentos e cinquenta reais), sendo c) “Também não se presta a comprovar o suposto que o empregado percebia mensalmente o valor de prejuízo da Previdência Social o documento de pagamento de contribuição previdenciária nos autos R$850,00 (oitocentos e cinquenta reais), cuja diferença remanescente era paga "por fora", como de processo trabalhista. Tal comando foi emitido pelo juízo da Vara do Trabalho em absoluto restou sobejamente comprovado durante a desconhecimento da legislação aplicável à empresa instrução, pela anexação aos autos do processo trabalhista de n° XXX; b) cópias do comprovante de do réu, que é aderente AO SIMPLES NACIONAL. [...] A guia foi apenas foi paga sem oposição para encerrar recolhimento de contribuição previdenciária, [...] o caso trabalhista. Não se tratou de reconhecimento que corresponde à confissão de pagamento de salário que sobejava o valor anotado em carteira de de culpa, mas sim de pagamento INDEVIDO, CONSIDERANDO AS NORMAS DO SIMPLES NACIONAL trabalho (fls.44/45). Tais provas estampam a E DOCUMENTO DE FLS 15.” incorreção da anotação lançada no documento trabalhista do empregado, demonstrando a ocorrência do ilícito (falsidade material).” b) “Inequívoca a presença na espécie, portanto, das elementares típicas "falsificar"' e "documento público" aludidas no art.297, caput [...].” c) “A autoria e a tipicidade penal da conduta [...] avultam patentes das provas documentais [...] prova indiciária e do próprio interrogatório judicial do réu.” Considerando os papéis sociais desempenhados pelas partes no processo, na avaliação estrutural, a acusação, logicamente, considera o réu culpado, cabendo a ela construir uma narrativa que demonstre essa culpabilidade. O inverso acontece com a defesa. Passaremos à investigação da “avaliação encaixada”, considerada, como vimos, por Heffer (2010), importante propriedade de análise por ter a finalidade de construir gradualmente a culpa ou inocência do réu. Vejamos portanto, como, a partir do elemento constituinte “Materialidade do Crime”, as narrativas constroem suas avaliações encaixadas da conduta do réu e dos fatos ocorridos durante a instrução processual. No que tange a tal elemento, a acusação inicia sua narrativa (enunciado “a”) fundamentada em provas documentais, buscando fundamentar a criminalidade do ato praticado pelo réu por meio da cópia da CTPS do empregado, na qual o valor anotado era menor do que a “diferença remanescente” “paga ‘por fora’” (segundo palavras da acusação), reafirmando, mais uma vez, que esse ato “restou sobejamente comprovado” nos autos da ação trabalhista; e por meio de cópia do comprovante de recolhimento de contribuição previdenciária, pago pelo réu no processo trabalhista, documento este que a acusação avalia corresponder “à confissão de pagamento de salário que sobejava o valor anotado em carteira de trabalho”. Como forma de avaliar tais provas documentais, a acusação utiliza-se dos verbos “estampar” e “demonstrar” para evidenciar a validade e clareza desses documentos como provas do “ilícito” praticado pelo réu. Nos enunciados “b” e “c”, mais uma vez, a acusação valora tais provas, utilizando-se dos adjetivos “inequívoca” e “patentes” e do verbo “avultar” para avaliar que tais documentos demonstram a presença das elementares da tipicidade da conduta prevista no artigo 297, § 3º, II, do Código Penal 77: “falsificar” e “documento Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa. [...] 77 244 público”. Como a acusação utiliza-se de provas documentais para comprovar a materialidade do crime praticado pelo réu, cabe à defesa, já que, como vimos, sua peça se constrói em reposta à peça acusatória, desqualificar essas provas. Vejamos como se dá esse processo de (des)valoração dessas provas nos enunciados “a”, “b” e “c”: no enunciado “a”, inicialmente, a defesa se refere a “indícios” e, posteriormente a “provas”, afirmando que ambos não são suficientes para comprovar a materialidade do crime e condenar o réu. Essa avaliação é justificada nos enunciados “b” – que qualifica a sentença trabalhista como “equivocada” – e “c” – que afirma que o recibo de pagamento à Previdência Social “não se presta a comprovar o suposto prejuízo” a este órgão (destaque-se a utilização do adjetivo “suposto”). Neste enunciado, a defesa avalia mais uma vez a sentença trabalhista, declarando seu “absoluto desconhecimento da legislação” e traz um fato novo à narrativa, ignorado totalmente pela acusação: a empresa do réu é aderente ao Simples Nacional. Isso permite à defesa avaliar o pagamento à previdência como indevido, não podendo ser, portanto, considerado como reconhecimento de culpa, opondo-se, claramente, à versão apresentada pela acusação. Considerando a partir de agora o caráter interpessoal dessas narrativas e como ele contribui para a construção da imagem das partes, destacamos, inicialmente que, buscando atender às próprias características dos gêneros produzidos no âmbito forense, as peças são marcadas pelo alto grau de formalidade tanto no tratamento entre as partes (que se referem uma à outra como “a defesa”, o “Ministério Público Federal), quanto em relação às escolhas linguísticas, como vimos nos trechos das narrativas acima apresentadas (sempre primando pelo uso da linguagem técnica e formal). Outra característica da linguagem jurídica presente nas peças é a utilização de estratégias linguísticas que procuram dar um caráter objetivo às narrativas, buscando fundamentá-las em citações de textos legais, em provas documentais ou no depoimento de testemunhas 78. Contudo, essas escolhas são feitas sempre no intuito de demonstrar a credibilidade de uma versão parcial dos fatos de acordo com os papéis sociais desempenhados pelas partes e seus propósitos comunicativos. Em relação à negociação do relacionamento com as testemunhas do processo, vejamos como cada uma das partes reinterpreta, avalia ou silencia o depoimento do réu, da testemunha de defesa e da testemunha de acusação. Em relação ao depoimento do réu, tanto a acusação quanto a defesa fazem menção a ele. A acusação, como se observa no enunciado abaixo, cita seu dizer para confirmar a tipicidade de sua conduta, avaliando que o réu admitiu de forma explícita que não anotava “com acuidade” os dados nas CTPS dos funcionários. Já em relação à afirmação do réu de que os valores pagos a mais eram gratificações, a acusação levanta dúvida ao adotar o verbo “alegando” para fazer menção a este trecho. Nesse sentido, a explícita admissão do fato pelo réu em seu interrogatório judicial de que não anotava com acuidade os dados nas carteiras de trabalho dos funcionários [...], embora alegando que os valores pagos a maior seriam feitos a título de gratificações por desempenho [...]. § 3o Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000). [...] II – na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000). (Grifos do original). (BRASIL, 1940). 78 Neste artigo, pela motivação já exposta, apresentaremos a análise desta última estratégia apenas. 245 Já a defesa, no intuito de contestar a versão da acusação e valorizar o depoimento do réu, conferindo a ele um caráter de verdade, faz menção a seus dizeres em dois momentos de sua narrativa, como se verifica nos enunciados seguintes. Em um primeiro momento, o que foi construído como dúvida pela acusação, pois era uma alegação, torna-se certeza na avaliação da defesa (“o réu deixou claro”). Note-se, ainda, no mesmo enunciado, o destaque dado à palavra “eventualmente”, o que procura afastar a recorrência dos pagamentos a mais dados aos funcionários, o que os transformaria em salário. No segundo enunciado, a defesa apenas nega o que qualifica como “alegações” do Ministério Público, dizendo que o réu “declarou que anota corretamente o salário dos funcionários” e, posteriormente avalia positivamente a conduta do réu, afirmando que o oferecimento de gratificação aos funcionários intencionava agradecê-los pela atuação, motivando-os. O réu em seu depoimento deixou claro que, EVENTUALMENTE, poderia conceder ao funcionário uma gratificação. O RÉU, ao contrário das alegações do Ministério Público, declarou que anota corretamente o salário de seus funcionários em CTPS. [...] Com o oferecimento da gratificação a intenção do réu era de agradecer ao funcionário por sua atuação, realizando a motivação do funcionário. Quanto ao depoimento das testemunhas, a acusação cita tanto o depoimento da testemunha de defesa do réu (A.M.H.) quanto o da testemunha de acusação (E.L.S.D.). Em relação à testemunha do réu, ao afirmar que A.M.H. “atualmente é empregado do réu”, a acusação procura lançar dúvida sobre a credibilidade de sua pessoa para testemunhar. Posteriormente, afirma que tal testemunha confirma a versão do réu, mas avalia que “acaba por deixar transparecer [que] o era feito de forma assídua, transvestido de verdadeiro salário”, não esclarecendo, porém, como chegou a esta conclusão sobre a fala da testemunha. Com essa avaliação, a acusação busca lançar dúvida sobre a credibilidade do dizer de A.M.H. De modo diverso, em relação à testemunha de acusação, o que se busca, ao qualificá-la como “testemunha compromissada, em juízo”, é conferir-lhe credibilidade. Com isso, a acusação procura também se opor à afirmação da defesa já levantada em outras fases do processo, de que E.L.S.D. era amigo do reclamante. Em relação a seu dizer, a acusação busca destacar aquilo que confirma sua versão dos fatos: “sempre trabalhava depois do horário”, “assinava folha de ponto em branco”, “confirmando o depoimento na Justiça do Trabalho de que o valor salarial anotado na CTPS era menor do que efetivamente recebia”. Note-se que os verbos de dizer utilizados para fazer menção a sua fala são: afirmar e confirmar, verbos que denotam certeza. A.M.H., que atualmente é empregado do réu, também afirma que os valores pagos a maior seriam a título de gratificação, o que de nada afasta o crime, já que, conforme ele próprio acaba por deixar transparecer, o pagamento era feito de forma assídua, transvestido de verdadeiro salário. E.L.S.D., testemunha compromissada, em juízo, afirma que sempre trabalhava depois do horário e que assinava folha de ponto em branco; que tentaram implantar o ponto digital, o que não funcionou, porque os trabalhadores laboravam após as 18h, confirmando o depoimento na Justiça do Trabalho de que o valor salarial anotado na CTPS era menor do que efetivamente recebia. 246 A defesa, por sua vez, silencia o depoimento de A.M.H, testemunha de defesa, provavelmente porque, durante a instrução processual, a acusação afirma que ele mudou seu depoimento na Justiça do Trabalho (afirmando que as gratificações não eram anotadas em folha) e também pelo fato de ele ser comprometido com o réu, por ser seu funcionário atualmente. Nesse sentido, em sua narrativa consta apenas o depoimento da testemunha de acusação, à qual a defesa busca desqualificar, ao afirmar que tal testemunha “é amiga íntima” do reclamante, tendo pescado juntos por 2 vezes, sendo a amizade de ambos “incontestável e o interesse na causa também”, motivos pelos quais a defesa qualifica seu depoimento como “imprestável”. Finalmente, no último enunciado, ainda sobre o depoimento da mesma testemunha, a defesa busca desqualificar seu dizer, ao avaliá-lo como “contraditório”, não podendo, portanto, ser tomado como prova para “fundamentar a condenação do réu”, como pretendeu a acusação. Assim como o fez a acusação em relação à avaliação do depoimento da testemunha A.M.H., a defesa também não esclarece quais os outros elementos do depoimento de E.L.S.D. – além do valor da remuneração – a teriam levado a avaliá-lo como “contraditório”. A referida testemunha [E.L.S.D.] é amiga íntima de E. de A.G., sendo seu depoimento imprestável nos termos da legislação vigente. O depoente reconhece em depoimento [...] ter pescado com E. de A.G. por 2 vezes, embora tenham trabalhado juntos na empresa do réu por um período de 6 meses. A amizade deles, é incontestável e o interesse na causa também. Além do mais o depoimento da testemunha E.L.S.D. é contraditório inclusive quanto ao valor da própria remuneração, não devendo ser considerado para fundamentar a condenação do réu. Como podemos observar, as partes, na construção de suas imagens e do relacionamento com os demais sujeitos do processo, procuram atender às características dos gêneros produzidos na esfera forense, primando pela cordialidade no relacionamento e pela aparente objetividade de suas narrativas, fundamentando os fatos narrados na Lei – estratégia que funciona também como argumento de autoridade além de revestir a narrativa de caráter jurídico – em evidências e no depoimento testemunhal. Essa imagem de objetividade, cordialidade e credibilidade de sua versão dos fatos objetiva criar uma imagem positiva das partes em relação ao magistrado, mostrando que os fatos foram analisados e as análises fundamentadas, funcionando como estratégia de persuasão. Contudo, como verificamos, essa pretensa objetividade é apenas aparente, já que, cada uma dessas estratégias é valorada de acordo com os propósitos comunicativos dos locutores, revelando suas crenças e posicionamentos acerca dos fatos por meio dos processos de avaliação, interpretação e silenciamento de determinadas vozes. 3. Considerações finais Como apresentado no quadro teórico em que se inscreve este trabalho, os estudos desenvolvidos sob o viés da Análise do Discurso Forense buscam compreender a interseção entre o discurso institucional, a lei e os significados sociais. Nesse sentido, em nossas análises, vimos como as regras de interação no tribunal influenciam não só as escolhas linguísticas operadas pelas partes na 247 construção de suas narrativas, bem como o tratamento dado por elas à outra parte, às testemunhas e ao magistrado, revelando um caráter de cordialidade e de formalidade. Todavia, os papéis sociais desempenhados pelas partes e seus propósitos comunicativos seja na acusação ou na defesa do réu influenciam suas escolhas linguísticas e também dos fatos que comporão suas narrativas, revelando o trabalho de valoração dos eventos narrados. Esse trabalho de valoração das narrativas, considerando as regras de interação nos tribunais, já é esperado de cada uma das partes e é justamente o modo como constroem esse processo interpretativo dos fatos que vai revelar a maior ou menor credibilidade de suas versões. Por fim, considerando conforme Gibbons (2003) que a lei representa o sistema de valores de determinada sociedade, impondo direitos e deveres e punições a quem não a cumpre, vimos que os sujeitos discursivos, na construção narrativa que fizeram do evento social em questão, revelam sua inscrição nesse sistema de normas, não cabendo discussões acerca da licitude ou ilicitude do ato de inserir informações falsas em documento público. O que eles buscam, de fato, é construírem determinada representação do réu no intuito de inserir ou afastar sua conduta do tipo penal em questão, já tomado como valor social incontestável, pois previsto em lei. 4. Referências BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Brasília: Senado Federal, 1040. COULTHARD, M.; JOHNSON, A. Introducing forensic linguistics. London; New York: Routledge, 2007. GIBBONS, J. Forensic linguistics: an introduction to language in the justice system. Oxford: Blackwell Publishing, 2003. HALLIDAY, M. A. K. El languaje como semiótica social: la interpretación social del lenguaje y del significado. Santafé de Bogotá, Colômbia: Fondo de Cultura Econômica, 1998. HALLIDAY, M. A. K. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (Org.). Novos horizontes em linguística. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1976. HEFFER, C. Narrative in the trial: constructing crime stories in court. In: COULTHARD, M.; JOHNSON, A. (Eds.). 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Rio de Janeiro: Forense, 2013. 249 O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRIATIVA VI O ENSINO DE ESCRITA CRIATIVA NAS AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 CEP: 05508-010 - Cidade Universitária São Paulo SP / Brasil Doutorando em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês ceplacido@gmail.com Resumo. O desenvolvimento do pensamento criativo vem recebendo atenção tanto nas aulas de línguas estrangeiras. Na era da informação e da Internet das coisas, a criatividade vem sendo revisada constantemente. Entretanto, como os professores de segunda língua podem abordar essa volatilidade? Por exemplo, eles deveriam usar o Guia do Curso como seu único guia de método ou devem desenvolver as habilidades cognitivas como o pensamento criativo, tão importante na era pós-moderna (LYOTARD, 2013). Devido a isso, este artigo tem como objetivo propor e discutir conceitos-chave para se entender melhor a posição do professor de língua estrangeira e como eles podem lidar substancialmente com as novas habilidades cognitivas, especialmente acerca do desenvolvimento do pensamento criativo através da Escrita criativa. Palavras-chave. Pensamento criativo; criatividade; escrita criativa Abstract. Creative thinking has become one of the most requested features in foreign language classes as well as in many business circles. In the information era and the Internet of things, teaching of second languages have been revised and modified constantly. How should second language teachers address this educational volatility? They have found themselves in a quite obscure crossroad. For example, should they use the Coursebook as their only method guide or should they develop other students' skills, skills considered important for the postmodern era (LYOTARD, 2013) such as creative thinking. Having total consciousness of this hazy and shifting fork, this article aims to propose and discuss key concepts to better understand the foreign language teacher position and how they can deal substantially with the new ciberliterary skills, especially with the development of creative thinking through Creative Writing (CW) in foreign language classes. Keywords. Creative thinking; Creativity; Creative Writing. 1. Introdução Conceituar o termo criatividade não é uma tarefa muito fácil. Isso porque ele 250 pode apresentar diferentes definições dependendo do momento histórico o qual decidimos analisar. E, mesmo assim, um mesmo período histórico pode apresentar mais de uma definição ou, mesmo, diversas definições, definições essas até de sentido contrário, oposto (POPE, 2005). Por isso, focarei aqui em apenas dois grandes momentos os quais considero de extrema importância para se compreender um pouco melhor algumas das diversas definições existentes do termo criatividade na Modernidade (LYOTARD, 2013): 1) divino e/ou demiúrgico e o 2) cognitivista. 2. As divindades e os demiurgos da criatividade Na Grécia Antiga, Platão acreditava que o poeta não conseguiria desenvolver algo, criar algo do nada sem a ajuda direta das famosas musas, pois seriam elas sua fonte de inspiração, ou melhor, seu meio na Terra para chegar a fonte inspiratória: os Deuses do Olimpo. Esse conceito de criatividade ficou conhecido como: divino e/ou demiúrgico (LUBART, 2007). Entretanto, essa não é a única explicação teórica sobre o potencial criativo do artesão, por exemplo. Platão também acreditava na existência do espírito humano cuja composição se dava por dois tipos de divisões, de câmaras. Essas câmaras, por sua vez, representavam um tipo de receptáculo onde uma determinada divindade (Zeus, Atena, Hefesto, entre outros Deuses Olímpicos) as “enchia” de inspiração. Já a segunda câmara funcionava como um meio de expressão dessa inspiração, ou seja, era por onde o divino se expressava. Em outras palavras, os Deuses “emprestavam” esse dom aos seus escolhidos, os demiurgos (trabalhadores para o povo, em grego antigo) que, por sua vez, produziam, ou melhor, reproduziam as mais diversas obras de arte (e de ciência também, embora tal divisão ainda não fosse muito clara) na Terra. É bom lembrar que a própria palavra criatividade teve sua cunhagem relativamente recente frente à existência da humanidade. Segundo Lis Chamberlain (2005), ela se deu a partir do verbo latino creare que, por sua vez, significa começar, gerar e/ou formar algo. Etimologicamente falando, para Chamberlain (2005), dentro do mundo lusófono, o adjetivo criativo surgiu no século XX, a partir da junção do sufixo –ivo ao radical do particípio passado da forma alatinada criat- (de creatus, particípio passado de creare). E em um dos poucos consensos sobre os estudos terminológicos acerca do substantivo feminino criatividade, acredita-se que esse termo tenha surgido da adição do sufixo –i-dade ao adjetivo criativo. Rob Pope (2005) nos lembra de outro fator importantíssimo que explica, e muito, a origem, ou melhor, a atribuição do caráter divino (ainda presente atualmente, embora um pouco menos), no termo criatividade, e esse fator se inicia com a seguinte pergunta: Quem criou o mundo? Deus, nas suas mais diversas manifestações, pinturas, crenças, esculturas, conceitos, literaturas, religiões (monoteístas ou politeístas), ou seja, foi a entidade Deus que criou tudo e todos. Portanto, essa entidade (ou entidades) é responsável pela criação de tudo e todos, reforçando assim sua característica ontológica (no sentido kantiano do termo) de criação. Pope (2005) ainda discorre em suas explicitações sobre a origem dos sentidos constitutivos do termo criatividade indicando que seu foco de análise, ou melhor, as observações iniciais feitas por filósofos gregos (especialmente Platão e reconceituada mais tarde pelos neoplatônicos) desse elemento recaem no produto acabado, ou seja, novamente em sua configuração integral. Por exemplo, se o resultado criador é um vaso, as análises investigativas da 251 criatividade recaem sobre o vaso em si, no produto acabado e não sobre o artesão criador deste vaso. Portanto, é um procedimento divino e não humanístico pela perspectiva de Todd Lubart (2007). Tal pensamento cosmogônico (no sentido mais geral, de criação) reforça ainda mais a ideia de completude e demiurgia presentes no termo criação. Em suma, de acordo com Rob Pope (2005) e Lubart (2007), há três características principais atribuídas à ideia inicial de creare, que ainda são persistentes nos dias atuais, e também são encontrados no termo criatividade: divino, demiurgia e completude. Entretanto, segundo Pope (2005), a partir do século XVIII, por meio dos ideários iluministas provenientes da Revolução Francesa, o sentido desse termo muda substancialmente: “By the eighteenth century, however, there was a much more positive link being forged between the power of the human ‘Mind’ and the capacity to ‘create’, productive mental images” (POPE, 2005, p. 35).79 3. Conceitos de criatividade por meio da linha da psicologia cognitivista na Modernidade Segundo Lev Vygotsky (2001), o ser criativo não é um ser demiurgo, muito menos uma divindade olímpica. O ser criativo é o resultado direto de diversas interações ocorridas desde a sua infância até a fase adulta. Interação essa extremamente benéfica entre um ser menos inexperiente e um ser mais experiente. Entretanto, tal interação mutual não ocorre apenas entre dois seres da mesma espécie, mas ela também se consubstancia entre um ser e o seu ambiente circundante. Portanto, para Vygotsky (2001), a criatividade é uma característica cognitiva, pertencente às funções psicológicas superiores, primordialmente humana e está, por conseguinte, interligada diretamente aos diferentes tipos de desenvolvimento que esse ser humano pode apresentar onto e filogeneticamente. Vygotsky (2001) não é o único pesquisador moderno a afirmar tais conceitos sobre o ser criativo. Csikszentmihalyi (1995) também acreditam que a criatividade é um fenômeno psicossocial. Sendo assim, ambos apreendem o ser criativo como sendo um ser resultante tanto de características inerentes a ele, quero dizer, intrapessoal, quanto das características de seu meio social, do ambiente onde eles interagem uns com os outros, e entre eles e o ambiente, interpessoal. Na mesma esteira, Mitján Martínez (2012) afirma que a criatividade é uma área de resolução de problemas. Embora seja uma afirmação contundente, ela parece nos prover com mais perguntas do que respostas. E uma dessas perguntas seria exatamente a seguinte: O que seria uma área de resolução de problemas? Martínez (2012) tenta definir melhor esse conceito ao afirmar que frente a problemas aparentemente sem solução, o ser humano, por meio de diversas atividades cognitivas, tende a buscar soluções úteis, frutíferas as quais possam ser utilizadas para resolver o problema (ou problemas) em questão. Em outras palavras, podemos afirmar que o ser criativo se utiliza de processos cognitivos para tentar resolver ou, pelo menos, identificar uma solução diferente para um problema aparentemente sem solução (ou de solução corrente inviável, infrutífera ou custosa). Mas o que seriam esses processos cognitivos? Eles são divididos em etapas? Eles ocorrem simultaneamente ou sequencialmente? Jimmy Hayes (2005, p. 135) atesta que essas são perguntas difíceis de serem respondidas monoliticamente. Entretanto, ele indica a existência de cinco grandes processos cognitivos os quais podem nos auxiliar a entender um pouco 79 Por volta do século XVIII, no entanto, havia uma ligação muito mais positiva sendo forjada entre o poder da "Mente" humana e a capacidade de "criar", produtivo de imagens mentais. 252 melhor tais perguntas, seus nomes são: 1) preparação, 2) Definir objetivos, 3) Representação mental, 4) Busca de soluções e 5) Revisão. Por preparação (preparation, em inglês), Hayes (1989) entende ser o esforço, a energia, o estímulo proferido pelo ser criativo a fim de angariar conhecimento e habilidades as quais são essenciais, fundamentais para o próprio ato criativo em si. Com tal afirmação, Hayes (2005) se opõe claramente às qualidades iniciais (divindade, demiurgia e completude) presentes no termo criação. Para exemplificar melhor seu ponto-de-vista moderno, Hayes (2005) cita diretamente grandes artistas como o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart e o pintor pré-impressionista neerlandês Van Gogh e algumas de suas principais obras artísticas. Já por definir objetivos (goal setting, em inglês), Hayes (2005) atesta ser um tipo de capacidade. E é exatamente por meio dessas capacidades que os seres criativos conseguem mais adequadamente verificar, pontuar, ou seja, definir uma oportunidade de resolução de um problema qualquer. Oportunidade essa que, muitas vezes, pode passar despercebidas pelos olhares inexperientes ou, mesmo, desatentos de um ser humano. Por exemplo, um barqueiro irlandês necessita atravessar uma ovelha, um lobo e um maço de capim para o outro lado do rio Shannon. Entretanto, no seu simplório barco, cabem apenas dois desses itens por vez. Para dificultar ainda mais essa historieta, o barqueiro irlandês sabe que o lobo não pode ficar sozinho com a ovelha no barco, caso contrário, ele irá comê-la e, por sua vez, a ovelha também não pode ficar sozinha com o maço de capim, já que ela também pode comê-lo. Como esse problema pode ser resolvido? Baseado em Hayes (2005), é pela identificação de uma oportunidade resolutória que esse barqueiro irlandês conseguirá transportar todos os três itens para o outro lado do rio Shannon. Ainda segundo Hayes (2005), essa capacidade não é inata ao ser humano, ela deve ser incentivada, estimulada e seu condicionamento ocorrerá através da junção de uma experiência prévia desse ser humano e sua capacidade de avaliar as diferentes facetas de um mesmo problema. No caso especifico de nossa historieta, o barqueiro irlandês já possui experiência prévia (ele sabe conduzir um barco pelo rio Shannon) a qual será útil na resolução do problema apresentado e o “novo” estímulo pode vir do ambiente (por exemplo, o rio Shannon é um lugar inóspito o que dificulta ainda mais o trajeto do barqueiro) e dos outros entes (ovelha, lobo e capim), pois dependendo da combinação, um deles será comido, e o barqueiro terá falhado em concretizar seu objetivo inicial, ou seja, transportar todos os três entes de um lado para o outro do rio Shannon vivos. O terceiro processo cognitivo indicado por Hayes (2005) se chama representação mental (representation, em inglês), mas representação mental do quê? Segundo esse autor, é a representação mental do problema a ser enfrentado, resolvido. Com o intuito de poder resolver um problema em questão, o sujeito tem que delinear mentalmente a representação desse problema. Essa representação pode ser visual ou verbal, por exemplo. Tendo essa delineação em mente, as escolhas ou, mesmo, as decisões a serem tomadas se tornam mais palpáveis, mais viáveis de se concretizarem, pois o esquema resolutório está em processo, em andamento na mente do sujeito. Hayes (2005) compara esse processo com a profissão de arquiteto, pois segundo ele quando um arquiteto projeta uma casa, um apartamento, ou seja, qualquer prédio, ele deve decidir sobre várias oportunidades em mão. Tais decisões terão que ser tomadas baseadas em suas representações mentais em busca de respostas para perguntas como: Qual será a altura do prédio 253 a ser construído? Quantos andares esse prédio apresentará? Onde será sua localização? Ele terá acesso a cadeirantes? Se sim, de qual forma? Por conseguinte, para Hayes (2005), o ser criativo será aquele que conseguir representar mentalmente possíveis respostas para o problema em destaque e, é claro, chegar a soluções plausíveis, viáveis. Entretanto, isso só ocorrerá, se o ser criativo passar por esse processo cognitivo. O quarto processo cognitivo é denominado busca de soluções (searching for solutions, em inglês). E como já percebemos nos parágrafos anteriores, esse processo está ligado diretamente aos processos 1, 2 e 3. Todos os processos prévios visam encontrar uma solução para um problema qualquer, portanto, o quarto processo é também o processo objetivo, é aonde se quer chegar. Hayes (2005) o chama também de pensamento divergente. E por que isso? Segundo esse autor, durante todo o processo criativo, o sujeito se depara com várias possíveis soluções, e todas essas soluções são alternativas para a resolução de um mesmo (em alguns casos, até mais de um) problema. O último processo cognitivo é a revisão (revision, em inglês). Esse processo é de extrema importância para o próprio ato criativo em si, pois, segundo Hayes (2005), a revisão é a consubstanciação de todos os processos cognitivos anteriores (1, 2, 3 e 4). Os seres criativos conseguem revisitar com grande destreza seus respectivos produtos em processo de acabamento. Embora Hayes (1989) veja a perfeição como um tipo de utopia e de difícil, quiçá impossível, concretização, ele afirma que ela é o objetivo final de qualquer ser criativo. Sendo assim, a cada ato revisório, o ser criativo sobe um degrau na escada do perfeccionismo (termo mais adequado, a meu ver, por indicar um processo gradual, incompleto ao invés de estagnação e completude). Além disso, ainda para Hayes (2005), o ser criativo apresenta uma sensibilidade bem mais aguçada, bem mais flexível (termo usado pelo próprio autor) sobre o seu produto. Isso ocorre, porquanto o ser criativo consegue detectar com mais astúcia, mais escrutínio as possíveis “falhas” de suas obras e, por conseguinte, eles também seriam mais suscetíveis às alterações, às mudanças necessárias para a “correção” das falhas (ou melhor, das imperfeições, termo mais adequado, a meu ver, por também denotar processo gradual e incompleto) de seus produtos. Todos esses cinco processos cognitivos acabam por refletir diretamente na performance do ser criativo assim como no seu produto. Para finalizar, Hayes (2005) ainda adiciona o termo motivação. Segundo esse autor, um ser motivado trabalha com mais afinco para solucionar um problema em questão e, para isso, ele deve adquirir mais conhecimento, mais informação para consubstanciar seu (s) objetivo (s). Com base em sua teoria, um ser criativo também se diferencia de um ser não criativo, por meio de suas motivações, na medida em que elas o tiram da inação, do ócio criativo. Portanto, saber quais são as motivações que levam um sujeito a efetuar os processos cognitivos 1, 2, 3, 4 e 5 também condicionam suas diferenças cognitivas. 4. O desenvolvimento do pensamento criativo por meio do ensino da Escrita Criativa (EC) nas aulas de língua estrangeira Como você já deve ter percebido até esse momento, considero o pensamento criativo como sendo uma qualidade essencial para a realização das aptidões dos seres humanos nos dias atuais. Ao afirmar isso, você também deve ter notado minha coadunação com a visão vygotskiana de criatividade, ou seja, a qualidade de ser criativo pertence às funções mentais superiores, devido a sua 254 capacidade plástica de se moldar e ser moldada em contextos sócio, histórico e culturais específicos, por meio da utilização de elementos mediadores (instrumentos e signos) os quais o auxiliarão a se desenvolver e se comunicar com outros. Entretanto, o segundo pergunta-problema deste artigo ainda se mantém: Como o pensamento criativo se consubstancia e, por conseguinte, pode ser desenvolvido nas aulas de língua estrangeira? Uma forma eficaz para desenvolver o pensamento criativo do aluno de língua estrangeira é por meio da confecção de textos considerados criativos, em outras palavras, por meio da prática da Escrita Criativa (EC). Segundo Mancelos (p. 14, 2014), a EC “(...) é uma área do saber relativamente nova”, originária dos Estados Unidos e depois se espalhou para diversos países europeus (Alemanha, França e Inglaterra). Ainda segundo esse autor, embora a EC foque na construção formal e conteudística dos mais diversos tipos de textos literários, podemos encontrar atualmente workshops (e até mesmo telúricas) de EC com ênfase em textos considerados nonfiction (de não ficção) como, por exemplo, relatos, diários, biográficas, autobiografias, artigos jornalísticos, discursos políticos, etc. Sendo assim, a área de EC deve ser apreendida como uma área de saber interdisciplinar, pois várias correntes de pensamento se entrecruzam para a sua realização (Teoria Literária, História da Literatura, Linguística Aplicada, Análise do Discurso, Sociolinguística, entre muitas outras). Mancelos (2014) ainda comenta que quando questionado se as aulas de EC funcionam, ele rebate com as seguintes perguntas: Então você também não acredita nos conservatórios de música, nas escolas de belas-artes ou de cinema? (MANCELOS, p. 15, 2014) Além disso, a EC pode ser um exercício eficiente para desbloquear o pensamento criativo, Murray (2006) comenta que a pressão para se escrever artigos e publicá-los, principalmente em inglês, está se tornando cada vez mais intensa. Por isso, a EC pode ser um recurso pedagógico poderoso para auxiliar os alunos de graduação e pós-graduação a desenvolver seu pensamento criativo (qualidade essencial para se escrever qualquer tipo de texto, a meu ver) e de até se relacionarem melhor com o processo da escrita. Esses não são os únicos motivos de se ensinar EC nas aulas de língua estrangeira. Devido à sua capacidade de abstração e aceitação do novo (como a quebra de regras gramaticais, rupturas com dos diversos gêneros literários, incentivo à imaginação e ao próprio pensamento criativo), os alunos podem ser beneficiados com a sensibilização de diversos temas de extrema importância para a formação atual tanto de um leitor quanto de um escritor proficiente, temais tais como: o multiculturalismo, o interculturalismo e o transculturalismo. Sabendo-se que por multiculturalismo, devemos entendê-lo como a coexistência de vários grupos sociais convivendo em um espaço, quer presencial, quer desterritorializado, dentro de uma sociedade específica (CANDAU, 2005). Já por interculturalismo, apreendido aqui pela visão francesa, é a inter-relação entre diferentes culturas, com ênfase no sentido de troca e diversidade (CANDAU, 2005). E, por fim, compreendo transculturalismo como um tipo de processo o qual um indivíduo, por vários motivos, deve ou tem que assimilar outra cultura (ou culturas) distinta da sua. Esse processo pode ser penoso, ou até mesmo prejudicial, na medida em que essa assimilação pode resultar na perda parcial da cultura de origem (CANAGARAJAH, 2007). Outros pontos relevantes que podem ser trabalhados nas aulas de EC em língua estrangeira é a questão da desautomatização da língua e o desenvolvimento da consciência linguística do aluno. O primeiro é um termo cunhado pelos formalistas russos em uma das tentativas de separar a “linguagem prosaica” da “linguagem poética” (POPE, 2005). Para os formalistas russos, a desautomatização 255 deve ser considerada como uma das funções da criação artística, pois por meio do estranhamento ou da singularização da estrutura proposta pelo artista, o leitor pode contemplar melhor o mundo das artes e suas respectivas obras (POPE, 2005). Por consciência linguística, devemos entender como sendo um tipo de qualidade, capacidade existente no indivíduo com o intuito tanto de agir quanto de descrever seus próprios conhecimentos da língua alvo, ou seja, da língua a qual ele está aprendendo e/ou adicionando a sua cultura. Gomberg (1992) nos lembra aqui de a consciência linguística é composta por outros dois fatores de extrema relevância para a compreensão e aquisição de uma língua estrangeira: metalinguagem e metacognição. O primeiro é a linguagem sobre a linguagem enquanto o segundo é o “(....) conhecimento introspectivo e consciente que indivíduos particulares possuem de seus próprios estados ou processos cognitivos e a habilidade que esses indivíduos possuem de monitorar e planejar seus próprios processos cognitivos” (GOMBERG, p. 13, 1992). Embora a EC ainda seja uma área relativamente nova (MANCELOS, 2014), acredito que ela possua um grande potencial para o ensino e desenvolvimento de diferentes tipos de escrita, na medida em que ela lida diretamente com questões que são consideradas barreiras para a elaboração de um texto qualquer (bloqueio criativo, autonomia, autoconfiança, etc..), mesmo para um aluno da pós-graduação (MURRAY, 2006). Por ser interdisciplinar (MANCELOS, 2014), ela ainda pode ser utilizada não apenas nas aulas de língua estrangeira, como também nas aulas de língua materna, história, matemática, biologia, entre muitas outras. E, como investigado até esse momento, ela também apresenta um grande potencial no desenvolvimento do pensamento criativo, pensamento esse de extrema importância e de grande requisição tanto nos meios acadêmicos quanto empresariais. 5. Referências CANDAU, Martin Sociedade, Educação e cultura(s): questões e propostas. Rio de Janeiro: Vozes, 2005. CANAGARAJAH, Suresh. 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Paper presented at the Society for Research into Higher Education conference, December, in Brighton, UK. POPE, Rope. Creativity: Theory, History and Practice. New York: Routledge, 2005. VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 257 THE MEANING MAKING OF DIGITAL MULTIMODAL TEXTS BY UNDERGRADUATE STUDENTS CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 CEP: 05508-010 - Cidade Universitária São Paulo SP / Brasil Doutorando em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês ceplacido@gmail.com Resumo. O processo de significação de textos multimodais não vem sendo extensivamente investigada no Brasil. Devido a este motivo, o objetivo principal deste trabalho acadêmico foi o de investigar como os graduandos de uma universidade pública compreendem e desenvolvem (Glăveanu, 2011; John-Steiner, Connery & Marjanovic-Shane, 2015; Sharpe, 2004; Shayer, 2008; Vygotsky, 2004, 2007; Wertsch, 2010) textos multimodais. A coleta de dados ocorreu em um curso extracurricular de escrita criativa em inglês. As análises preliminares indicaram que todos os alunos participantes conseguiram desenvolver suas respectivas compreensões acerca de textos multimodais. Palavras-chave. significação; textos multimodais; escrita criativa Abstract. The reading of digital multimodal texts has become increasingly common in English as a second language classrooms. Although its reading has become a customary practice between ESL teachers and students, its production is still incipient. Based on the preliminary data of this research, all the ESL undergraduate students interviewed from the University of São Paulo, claimed they did not compose digital multimodal texts on a regular basis, and 85% also stated they did not know how to create digital multimodal texts. For these reasons, the main objective of this research was to investigate the existing relationships between these ESL undergraduate students’ cultural knowledge of digital multimodal texts (here exemplified as fanfictions) and multimodality. Furthermore, we also analyzed the effectiveness of using digital multimodal texts in an extracurricular course entitled Fanfictional Creative Writing in English, which took place in the same university. The pedagogical framework of this course was the Vygotskian sociocultural theory. The results of this research indicated that participating ESL undergraduate students could not differentiate digital multimodal texts from non-digital multimodal texts. In addition, they also exhibited great difficulties in producing digital multimodal texts without the direct help of a more experienced partner, and assessing their own texts as well. Keywords. Digital multimodal texts; sociocultural theory; Creative Writing 1. Introduction Creative Writing in English (CWE) has not been extensively researched in Brazil. There are few courses on CWE in Brazilian Languages and Literature 258 universities, and even fewer available publications on this area as well (Myers, 2006; Morley, 2007; Blythe and Sweet, 2008; Healey, 2009; Oberholzer, 2014). Therefore, the aim of this research has been to identify the students’ concepts about creativity, fanfictions and creative writing courses. Along with this identification, the other aims have been the investigation of the students broadening of these concepts and the development of their fanfictional creative writing. 2. The meaning making process based on Vygotskian sociocultural theory Meaning Making is one of the key concepts to understand the Vygotskian sociocultural theory. Although meaning making is a crucial aspect of Vygotsky’s research, it has not been extensively researched. For Vygotsky (2004, 2007), meaning making is people’s construction of knowledge in their attempt to better understand others with and across different contexts and codes. It is sometimes referred to as a synonym of comprehending. If a person knows how to conceptualize properly an idea, object or person, he will comprehend a command (or instruction) more properly. In relation to creative writing, some researchers (Earnshaw, 2007, Morley, 2007; Ramet, 2007) have demonstrated that the meaning making process in creative writing classes have 1) made the students self-aware of what, why and how they want to write a certain story, 2) made them self-mastered concepts, definitions and literary genres and 3) made them more creative by motivating them transform the creative writing content received. In fact, learning how to write creatively has exponentially increased students’ awareness of the construction of several literary genres, assisting them interpret and produce better structured texts. According to Morley (2007, p. 64), “(…) the major challenge to any writer is the work itself: getting the book written; making characters believable; allowing subject and form to work together; and creating verisimilitude”. If aspiring fictional writers desire to become crafted writers, they should comprehend very clearly the basic writing elements which compose a certain fictional text. He (2007, p. 65) went further and asked: How can a writer compose a text, if he does not understand the text itself? Raising awareness of what you are writing should be part of the meaning making process of any creative writing course. Morley (2007) discovered that many students who come to creative writing courses have already written some fictional piece of work. Additionally, he also discovered that they already have notions of literary terms such as characters, setting, atmosphere, mood, and so on. Although the students are aware of their existence, they usually do not know how to conceptualize or define them, which make them produce very superficial stories. After becoming aware of their limitations, they can, along with their teachers, construct more substantial meanings for them. This is not a very easy task, and requires lots of practice. For Ramet (2007, p. 01), “One of the first rules to remember is that writers write. You should write something every day, even if all you do with the finished piece is tear it up and throw it away”. She claimed that constant practice is one of the keys for better understanding and developing the craft of writing. Furthermore, she added that this is the path to any writer who desires to master a certain literary genre. In the same vein, Earnshaw (2007, p. 365) also claimed that self-mastery only comes after years of practice: “Repeating the performance, having an ongoing practice as a writer, just as a doctor or an engineer or a solicitor has a practice, is the real difference between a professional and an amateur”. However, he attested that 259 self-mastery without the professional help of a creative writing teacher is a much longer path. For Earnshaw (2007, p. 367), teachers are indispensable to assist their students to make sense of the creative writing world. For Vygotsky (2004, p. 12), “(…) the functional use of the sign or word is the means through which the adolescent masters and subordinates his own mental operations and directs their activity in the resolution of the tasks which face him”. In other words, people should not only apprehend a sign or word, people should really comprehend (master) it to apply it to different contexts. Moreover, it is quite typical of students to attend their first creative writing courses with ‘fixed’ concepts or definitions for basic writing elements, literary texts and even creativity. The broadening of students’ concepts and definitions may be a challenge. 3. Preliminary analysis of data The students’ concepts about creativity tended more to the I-paradigm than to the We-paradigm approach to creativity (Glăveanu, 2011). Their answers were mainly generated in three different research tools that I used to collect data in the course. The three tools were: 1) the initial questionnaire, 2) the classroom transcriptions and 3) the students’ classroom tasks. In the beginning of class 1, students received the initial questionnaire. Their most relevant excerpts, collected from this questionnaire, are illustrated as follows: Students’ excerpts taken from the initial questionnaire In relation to their initial questionnaire answers, students A, B and E claimed that creativity is an ability, capacity which requires practice to be improved. This is one of the main characteristics presented in the I-paradigm approach. According to Glăveanu (2011), some of the I-paradigm theorists (Bridges, 2003; Carson, 2011) believe that creativity is an ability which needs practice: “(…) creativity is marked by the ability to create, bring into existence, to invent into a new form, to produce through imaginative skill, to make to bring into existence something new” (Bridges, 2003, p. 14). Carson (2011, p. 18) went even further. She ascertained that creativity is an essential ability which should be extensively used “(…) to originate something completely new, from the scratch, in some way original”. This characteristic was present in both student C’s answer (“habilidade para se criar algo do nada”) and student D’s answer (“criar, recriar e resolver problemas do zero”). Another relevant factor which reinforced the students’ tendency to the I-paradigm approach refers to 260 the presence of the adjective new, which appeared in 4 (80%) of the students’ opinions. According to Glăveanu (2011), the adjective new is a basic constitutive characteristic of the I-paradigm approach to creativity. He attested that this adjective is one of the most recurrent definitions connected with creativity, appearing in most of the I-paradigm theorists. Nevertheless, for him, the adjective new does not only entail the “(…) creation of something out of nothing”, but it also involves transformation “(…) by combining, changing, or reapplying existing ideas” (Glăveanu, 2011, p. 07). Vygotsky (2004, p. 7) also acknowledged novelty as a characteristic of creativity: “(…) any human act that gives rise to something new is.... a creative act”. In fact, the adjective new is not the only recurrent adjective used by the Iparadigm theorists to conceptualize creativity. Conforming to Carson (2011), creativity encompasses several key adjectives which may help us better understand its main constitutive particularities. These adjectives are usually: unique, achieving, extraordinary and original. Some of these adjectives were identified in the classroom transcriptions. After answering the initial questionnaire, students were asked to discuss in groups the first set of key questions. In relation to the first question (What is creativity?), only students B, D and E answered. Their answers are in the following table: Students Students’ classroom transcriptions B We think creativity has something to do with fulfilling. We write to fulfil something. We cannot say that everything we write is to fulfill something. Sometimes we just write. We want to be like, we want to happen. We want to express in some ways, many ways. But we write to fulfill ourselves, a wish we have. D We also make something like originality. Because we cannot recreate something if it wasn’t created before. Originality would be more like uniqueness. It’s not something you come up out of the blue. It’s something you can only live in your own way. It belongs to you. It’s a complete part of who you are in this world. E I think extraordinary is the closest definition for creativity. Because this is what we feel more close to writing. We create something that it wasn’t created before. It’s is an extraordinary process, actually. If you see it. Student D suggested that uniqueness is a synonym for original. According to Glăveanu (2011, p. 09), creative people possess a “(…) need for uniqueness, which reflects their desire to be unique. By uniqueness, he meant people’s contemporary ever-lasting desire to be a different person from the others, to be singular, special, one of a kind. For Glăveanu (2011), the innatist characteristic has been embraced by the I-paradigm theorists unanimously. Vygotsky (2004, p. 33) also believes that all human beings are creative: “(…) there is a widespread opinion that creativity is the province of a select few. This is not true, (…) creation is the province of everyone to one degree or another”. Carson (2011) proposed that people’s creativity requires awakening. However, she recognized that the awakening of creativity may sometimes happen 261 suddenly, out of the blue: “(…) creative ideas often come at a time when the person appears to be thinking about something else, or not really thinking at all” (Carson, 2011, p. 35). To support her claims, she cited several writers such as Marcel Prost and Samuel Taylor Coleridge. In relation to Marcel Proust, she attested that “(…) he was engaged in the most trivial of pursuits – eating a cake – when he was overcome by the recollections which led him to write his great novel” (Carson, 2011, p. 25). She (2011) also inferred that creativity may be developed without much practice. However, she clearly highlighted that creativity without practice (or apparent efforts) are less often and more difficult to be concretized: “(…) it is true that some brains are naturally more inclined toward creative ideation than others. However, this is a skill that must be practiced and learned constantly. Although it may not make an Einstein out of everyone, practice and exercise can definitely make any brain more creative” (Carson, 2011, p. 23). Another recurrent characteristic related to the I-paradigm approach to creativity is originality (Glăveanu, 2011). Interestingly to notice, this word was used twice by student D in her attempt to conceptualize creativity. However, they seem to have different connotations. In her first answer, she apparently used it to refer to something new, novel. According to Sternberg and Lubart (1999, p. 35), original as a synonym of new is a quite common I-paradigm characteristic, because creativity can be apprehended as an “(…) ability to produce ideas that are both novel (i.e., original) and appropriate (i.e., useful)”. On the other hand, in student D’s second answer, she used originality as a synonym of uniqueness, singularity. As a matter of fact, she compared originality with uniqueness (Originality would be more like uniqueness). In the same vein, Thompson (2008, p. 226) also attested that uniqueness is a constitutive characteristic of originality: “(…) originality entails uniqueness which involves thinking ‘without boundaries,’ or ‘outside the box’”. In turn, he acknowledged that originality is also a fundamental characteristic of creativity. One more adjective that is constantly linked with the I-paradigm approach to creativity is extraordinary (Glăveanu, 2011). Conforming to Craft (2002, p. 114), “Extraordinary creativity involves, then, the production of new knowledge which has a major impact on an existing area of knowledge, the boundaries of which are monitored by experts within that field”. In addition, she advocated that an ordinary person can indeed produce an extraordinary piece of work, because the concept of extraordinary is quite volatile. Still for Craft (2002), something (or someone) which (who) was not previously considered extraordinary by its (their) community may become extraordinary if it (they) receive experts’ validation. The students’ tendency for the I-paradigm approach to creativity was also identified in some of their classroom tasks. For example, in the middle of class 1, after the discussion of the first question (What is creativity?), students were invited to compose a visualization about their answers. I opted for doing that to provide the students with a safe environment where they could convey their concepts about creativity as free and comfortable as possible. Based on the students’ first visualizations about the concept of creativity, we can notice that most of them used imagination to reflect upon creativity. According to Vygotsky (2004, p. 348) “(…) no accurate cognition of reality is possible without a certain element of imagination, a certain flight from the immediate, concrete, solitary impressions in which this reality is presented in the elementary acts of consciousness”. Their imagination is sometimes represented as drawings, sometimes as the use of distinctive colors. For example, student B and E drew squares and circles. Student E even drew arrows and a star. Although student A also used circles, she delineated them in distinct colors (light blue, dark blue, purple, 262 black and orange). In addition, he also added that in today’s workplace, the necessity for creative people have increased. Consequently, this has motivated ‘experts of creativity’ to develop psychometrical tools (exams, machines, etc.) to identify people’s creative stage and then find ways for improving them. The students also exhibited constant desires for learning creative writing techniques. For example, by the end of class 1, student A asked me if we were going to learn about foreshadowing. Student C claimed that one of her motivations for doing this course was to learn more about characterization. Students D inferred that she did not know how to use metaphors in her fanfictions and then asked if there would be any classes about metaphorization along the way. At first, the Fanfictional Creative Writing course was not organized to deal with creative writing techniques. To be honest, the main goals were to broaden students’ concepts about creativity, fanfictions and creative writing classes. Along with that, I also expected to develop their fanfictional creative writing. However, due to students’ persistent demands, I had to reorganize the course and then included some of their suggested creative writing techniques. For Glăveanu (2011, p. 05), “In the spirit of the I-paradigm, psychometric tests were validated on and applied to non-eminent persons” to identify people’s creativity. For this reason, many people start courses expecting to be assessed. 4. References Bridges Sonny. Understanding Enterprises: Entrepreneurship and Small Business. New York: Palgrava MacMillan, 2003. Blythe, Hay., & Sweet, Harry. Why creativity, why now? Tomorrow’s Professor, 2008. Carson, Shelly. Your Creative Brain. Harvard Health Publications, 2011. Craft, Arthin. Creativity in the Early Years. Life Wide Foundation. London, 2002. Csikszentmihalyi, Mahaly. Creativity: Flow and the psychology of discovery and invention. New York: HarperCollins, 1999. Earnshaw, Sunny. The handbook of creative writing. Edinburgh University Press, 2007. Glăveanu, Vlad. Creativity as a sociocultural act. Journal of Creative Behavior, 2011. Healey, Parpin. The rise of creative writing and the new value of creativity. The University of Minnesota, 2009. John-Steiner, Vera., Connery, Catherene. & Marjanovic-Shane, Ana. Vygotsky & Creativity: A Cultural-historical Approach to Play, Meaning-Making and the Arts. New York: Peter Lang Publishers, 2015. Morley, Dan. The Cambridge Introduction to: Creative Writing. Cambridge University Press, 2007. Myers, Dan. The Elephants Teach: Creative Writing Since 1880. New Jersey: Prentice Hall, 2006. Oberholzer, Peter. Student Conceptions of Creative Writing. Masters Research Report, University of the Witwatersrand, 2014. 263 Ramet, Ahmed. Creative Writing. Spring Hill House, Oxford, 2007. Sharpe, Murray. Imagination and creativity in childhood. In: Journal of Russian and East European Psychology, vol. 42, n. 1, 2004. Sefertzi, Elthan. Creativity. InnoRegio project, 2000. Shayer, Martin. Not just Piaget, not just Vygotsky, and certainly not Vygotsky as an alternative to Piaget. UK: Open University Press, 2008. Sternberg, Ron. The concept of creativity: Prospects and paradigms. New York: Cambridge University Press, 1999. Thompson, Lau. Making the team. Upper Saddle River, NJ: Pearson Education, Inc, 2008. Wertsch, John. Vygotsky and the social formation of mind. UK: Harvard University Press, 2010. Vygotsky, Levy. The Collected Works (Ed. Rieber, R.W.), Vol. 4. New York: Plenum Press, 2004. ______. Imagination and creativity in childhood. Journal of Russian and East European Psychology, 2007. 264 PSICANÁLISE E ANÁLISE DE DISCURSO: A HOMOLOGIA DOS DISPOSITIVOS DE INTERPRETAÇÃO CAROLINA COSTA CARVALHO BIONDI Departamento de Artes e Letras UESC - Universidade Estadual de Santa Cruz Campus Soane Nazaré de Andrade - Rod. Jorge Amado, km 16 - Salobrinho, Ilhéus - BA, 45662-900 Resumo: Trata-se, no presente artigo, de conferir as relações de homologia entre a interpretação na clínica psicanalítica freudiana e na análise de discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux, para, a partir de suas aproximações e divergências, verificar em que medida pode-se afirmar que o psicanalista é um analista de discurso. Palavras-Chave: psicanálise, clínica, interpretação, análise de discurso francesa, Freud, Pêcheux. Resume: In this article, it is a question of conferring the relations of homology between the interpretation in the Freudian psychoanalytic clinic and in the analysis of French line discourse, founded by Michel Pêcheux, to, from its approximations and divergences, verify in which it can be said that the psychoanalyst is a discourse analyst. Keywords: psychoanalysis, clinical, interpretation, French discourse analysis, Freud, Pêcheux. 1. Introdução A Psicanálise é um método terapêutico criado por Sigmund Freud no século XX para tratar sintomas mentais através da linguagem. Ela pressupõe a existência de uma atividade psíquica inconsciente que nos determina por efeito estrutural de um recalcamento. Consiste em uma teoria que advém de uma prática clínica. Já a Análise de Discurso, disciplina fundada na França por Michel Pêcheux na década de 1960, se ocupa, através de uma junção do materialismo histórico, da linguística e da psicanálise, de estudos sobre o discurso, mais especificamente em como se produz o campo do sentido e como a ideologia se manifesta na língua. Observa-se que há uma relação de convergência entre o dispositivo de interpretação psicanalítica e a da análise de discurso, sendo o psicanalista um possível analista de discurso. Ambas as disciplinas trabalham a produção do sentido a partir de regularidades discursivas, ou seja, de como o texto significa e não o que ele significa, o que seria uma análise hermenêutica. Ambas também concebem uma noção de verdade que se constrói como produto de um gesto de descrição/interpretação, buscando o analista uma posição relativizada em face da interpretação, a fim de não partir de hipóteses apriorísticas. 2. Justificativa A proposta do presente projeto é de aproximar a psicanálise e a análise de 265 discurso como procedimentos de origem e estrutura semelhantes. O sentido de estabelecer tal relação advém da necessidade de esclarecer questões epistemológicas da interpretação na psicanálise, bem como sobre a pesquisa a respeito dos fundamentos da técnica psicanalítica. 3. Problema O psicanalista escuta um sujeito que sofre e narra seu sofrimento. Ele escuta e intervém sobre um discurso com a finalidade de modificar ou reduzir o mal-estar e sintomas de um indivíduo. Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a interpretação em psicanálise possui duas acepções: fazer emergir o sentido latente nas palavras e nos comportamentos de um sujeito e, no tratamento, a comunicação feita ao sujeito, visando dar-lhe acesso a esse sentido latente, segundo as regras determinadas pela direção do tratamento. Assim, vale perguntar, em que consiste este método de interpretação? Quais são os seus critérios? A quê evidências responde? Trata-se, portanto, de um ensaio que visa investigar os fundamentos teóricos de um discurso do método psicanalítico. 4. Desenvolvimento Freud (1923) afirma que a psicanálise é, ao mesmo tempo, um método de investigação e tratamento. Assim, coloca a linguagem tanto como método quanto como objeto, produzindo um possível alinhamento epistemológico entre a psicanálise e a análise de discurso. Tal fato fornece o critério necessário para a homologia, uma vez que se trata de práticas interessadas em descrever discursos, através de certos procedimentos. Assim como a hipótese psicanalítica é a de que o sintoma é uma metáfora, o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito, sendo simbólico e estando relacionada com a história desse sujeito, a Análise de Discurso compreende o discurso a partir do confronto entre o dito com o não dito, e do que é dito de um modo e não de outro, sendo a ausência igualmente constituinte do dizer e do sentido (ORLANDI, 2009). O psicanalista, pois, em seu ato, possui um conjunto de intervenções que visam levar o sujeito à decifração de seu texto inconsciente, levando a um reordenamento do gozo e redução do mal-estar. A tarefa de fazer saber do sentido inconsciente consiste, portanto, em um trabalho de interpretação. Em que o psicanalista fundamenta e orienta sua interpretação? 4.1 A Interpretação na Psicanálise Apesar de, no início da psicanálise, Freud (1988) realizar intervenções de caráter explicativo, incidindo sobre o sentido, na própria “Interpretação dos Sonhos” (1900) ele já dava pistas sobre a impossibilidade de qualquer chave interpretativa, afirmando a associação livre do sonhador como única via de acesso ao conteúdo latente do sonho. Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911), Freud (p. 24) traz o exemplo do sonho de um homem que cuidou de seu pai por um difícil período de doença ao que este veio a falecer e que, nos meses seguintes ao ocorrido, sonhou repetidas vezes que o pai estava vivo e falava com ele como antes, mas que ao mesmo tempo “lhe doía muito que o pai já tivesse morrido e apenas não o soubesse” modo com que termina o sonho. 266 Analisando, Freud (p. 24) descreve que a chave de entendimento do sonho é a inclusão da frase “conforme o desejo do sonhador”, que teria sido suprimida após a frase “que o pai tivesse morrido”. Desse modo, conclui que a lembrança dolorosa de ter desejado a morte do pai enquanto este ainda estava vivo e o medo de que este tivesse suspeitado fez subtrair, através do recalque, o fragmento do pensamento onírico. Assim, Freud afirma que o sonho é antes de tudo o seu relato, tornado explícito no modo como o analisando o narra e quais fragmentos ele omite. Em “Construções em análise” (1937) formula um conceito de interpretação a partir da comparação do trabalho do analista com o do arqueólogo que, assim como este reconstrói um fóssil a partir de seus restos, também o analista reconstrói os elos de ligação inconscientes a partir das lacunas do discurso do consciente do analisante (FREUD, 1977). Nesse artigo ele retoma um exemplo de interpretação de sonho de Psicopatologia da vida cotidiana (1901) para ilustrar. (FREUD, 1977) Trata-se de um analisante que relata sonhos nos quais se repete a palavra Jauner, um sobrenome comum. O analisante conhece um Sr. Jauner, mas as associações não se desenvolvem por aí. Freud, então, toma a palavra como lapso e propõe ao analisante que ele poderia querer dizer Gauner, que significa velhaco, vigarista. O analisante responde que se trata de um exagero de Freud, um genhardt. Contudo, ao fazer o comentário, troca o “G” por “J”, dizendo Jenhardt, lapso que para Freud confirma o acerto de sua interpretação. Assim, Freud demonstra que o sentido não deve ser tomado na via do significado (Jauner como sobrenome), mas, como se diria a partir da linguística, como significante (imagem acústica do conceito saussuriano), ao substituir o fonema “J” por “G”, o que produz efeito de sentido. Lacan, contudo, introduziu o conceito de significante em sua concepção de interpretação. Ali onde Freud utilizava o método da associação livre, Lacan em “A carta roubada” (1956, p. 56) e “A instância da letra ou a razão desde Freud” (1957, p. 179) formulou o conceito de cadeia significante e a hipótese do “inconsciente estruturado como uma linguagem”. Através dos estudos de Lévi-Strauss sobre as estruturas elementares de parentesco, ancorado na linguística de Saussure, toma a estrutura da língua como estrutura modelo, capaz de transposição metodológica para explicar os fatos humanos. Assim, o simbólico passa a ser a função ordenadora da cultura, que aliena o homem e faz dele um animal regido pela linguagem, esta determinante das formas de vínculo social e escolhas sexuais (OCARIZ, 2003, p. 103). Chemama (2002) afirma que a hipótese lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem tem efeitos sobre o conceito de interpretação psicanalítico, pois a inversão realizada por Lacan do signo Saussuriano, colocando o significante sobre o significado S/s e atribuindo um sentido à barra, produz uma ideia de interpretação como revelação de um sentido oculto, conforme a noção de sintoma que traz em “Função e Campo da Palavra e da Linguagem” (1953) “o sintoma é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito” (LACAN, 1998, p. 282). A concepção de que o significante não significa o sujeito, mas “representa o sujeito para outro significante”, contribui para um abandono da busca pelo significado, fazendo com que o analista vá buscar na polissemia da linguagem, o fundamento da interpretação (LACAN, 1998, p. 285). Desse modo, o sentido do dito do paciente não é avaliado por sua organização frasal, mas na sequencia acústica à cadeia significante (CHEMAMA, 1995, p. 110) e suas correlações. Desse modo, entende-se que a interpretação deve ter em vista deixar abertos os efeitos de sentido do significante, a fim de abrir possibilidades para novas significações. 267 Tal fato, contudo, abre margem para uma problemática: na falta de significado fixo ao significante, como a interpretação garantiria sua eficácia, um sentido ou direção? Sobre isso, Lacan (1979, p. 189) discorre em “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, acerca das garantias da interpretação: [...] é falso dizer que a interpretação, como se escreveu, está aberta a qualquer sentido, sob o pretexto de que só se trata da ligação de um significante a um significante e, consequentemente uma ligação louca. A interpretação não está aberta a todos os sentidos. É conceder àqueles que se levantam contra os caracteres incertos da interpretação analítica dizer que todas as interpretações são possíveis, o que é propriamente um absurdo. Não é porque eu disse que o efeito da interpretação é isolar um coração, um kern, para exprimir como Freud, de non sense, que a interpretação ela mesma é um não senso. A interpretação é uma significação não importa qual. Ela vem aqui no lugar do s, e reverta a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível. É preciso interpretar no nível do s, que não é aberto a todos os sentidos, que não pode ser não importa o quê, que é uma significação aproximada, sem dúvida. [...] A interpretação não é aberta a todos os sentidos. Ela não é de modo algum não importa qual. É uma interpretação significativa, e que não deve faltar. Isso não impede que não seja essa significação que é, para o advento do sujeito, essencial. O que é essencial é que ele veja, para além dessa significação, a qual significante – não-senso, irredutível, traumático – ele está como sujeito, assujeitado (LACAN, 1979, p.189). Assim, através do que o analisante diz em determinado momento, uma palavra que pronunciou antes, fragmentos de discurso que tinha desenvolvido, uma lembrança que faz relação com a que está referindo, estabelecem-se correlações obrigatórias que fazem com que, em uma vida, sejam repetidos os mesmos termos, as mesmas escolhas, o mesmo destino (CHEMAMA, 1995, p.111). Passemos ao estudo da interpretação em análise de discurso. 3. 2 A Interpretação na Análise de Discurso Existem muitas formas de estudar a linguagem: o estudo dos signos ou sistemas de regras formais é objeto da linguística; as regras de bem dizer, objeto da Gramática; a Análise de Discurso não trata nem da língua, nem da gramática, mas do discurso, ou seja, o modo como os homens utilizam a língua para fazer sentido. (ORLANDI, 2009, p.15.) Michel Pêcheux (2014, p. 38), fundador dessa teoria, define discurso como sendo “o efeito de sentido entre interlocutores”. Apesar de o campo do sentido aquilo que se interpreta do que se lê, se ouve e se diz - parecer algo posto e aleatório, os estudos de análise de discurso desvelam que o sentido nada tem de natural, sendo historicamente determinado e socialmente administrado. Levando em conta o sujeito na história, a Análise de Discurso considera os processos e condições de produção da linguagem, pela análise da relação da língua com os sujeitos que a falam e com as situações em que o dizer se produz. 268 Assim Pêcheux, através tríplice aliança entre o materialismo histórico, a linguística e a psicanálise, tenta mostrar como se produz sentido e como a ideologia se manifesta na língua. O autor retoma o conceito de interpelação ideológica proposto por Althusser em sua releitura de Marx, e constrói uma teoria nãosubjetivista do sentido e do sujeito (BALDINI, 2013). Ele afirma que, ao se inscrever na língua, o indivíduo é interpelado a tornarse sujeito pela ideologia, resultando em uma forma-sujeito histórica. Desse modo, a ordem da língua e da história determina, assim, a ordem do discurso. Já com a psicanálise, Pêcheux relaciona que na operação de interpelação-assujeitamento, ocorre um processo de identificação que produz uma formação imaginária, constitutiva de um efeito sujeito que tem a ilusão de ser a fonte do sentido. Isso ocorre porque o sujeito desconhece que o sentido se forma fora dele e que, ao falar, reproduz as fronteiras do dito e não-dito. Desse modo, a teoria da interpelação-assujeitamento e a dos dois esquecimentos, são tomadas de empréstimo e análogas às teorias da identificação imaginária (assujeitamento ao Outro e identificação ao outro) e do recalcamento lacaniano (MALDIDIER, 2003). Nessa medida, para estudar as regularidades da linguagem em sua produção, o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade. Para o autor (1938), essa maneira de trabalhar comporta algumas exigências. Primeiramente, consiste em dar relevância aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Segundo o autor Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de interpretar: Essa concepção da descrição supõe, ao contrário, o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua. (PÊCHEUX, 2015, p. 50) Este real da língua se refere às propriedades da linguagem como equivocidade, mas também à elipse, à falta entre outros. Em segundo lugar, o objeto da linguística encontra uma zona intermediária de processos discursivos estáveis (derivados do jurídico, administrativo e das convenções sociais) que suspendem relativamente às propriedades lógicas dos objetos. Assim, o autor diz que A consequência do que precede é que descrição [...] está intimamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. [...] Todo enunciado, toda sequencia de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. (PÊCHEUX, 2015, p. 53) Pêcheux (2015, p. 53) ainda diz que é neste ponto que se encontram as disciplinas de interpretação: É porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio ao linguajeiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a 269 possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes. Assim, um dos problemas, de acordo com Pêcheux, é determinar nas práticas de análise de discurso, o lugar e momento de interpretação, em relação aos da descrição. Ele frisa que não se trata necessariamente de fases sucessivas, e estas não estão condenadas a se entremisturar. O autor ainda lembra que o fato de que toda descrição abre sobre a interpretação, não significa que ela incida sobre qualquer coisa. Toda descrição de um enunciado põe necessariamente em jogo, através da identificação dos espaços vazios, de elipses, negações, interrogações e múltiplas formas do discurso relatado, o discurso-outro, como espaço virtual de leitura desse enunciado ou sequencia. Finalizando sobre a interpretação na análise de discurso, Pêcheux afirma que Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na materialidade descritível da sequencia, marca, no interior dessa materialidade, a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio princípio do real sócio-histórico. E é nisto que se justifica o termo de disciplina de interpretação, empregado aqui a propósito das disciplinas que trabalham nesse registro. (PÊCHEUX, 2015, p. 54) Para ilustrar o dispositivo de análise em AD, Orlandi (2009) traz o exemplo de uma faixa colocada em um campus universitário em época de eleições. Trata-se de uma faixa preta com a seguinte frase: “Vote sem medo!”. A autora analisa a cor e as possíveis relações existentes sobre a frase. Retoma o fato de que a cor preta é historicamente a expressão política da “direita” conservadora. Já as palavras “sem medo”, trazem em si sentidos anexados relativos a levantar suspeita sobre um dos candidatos, alertar sobre perigo à população e ainda indiretamente, de que estão contra o possível candidato ameaçador, colocando-se na posição de salvadores e rompendo com o principio de ético de neutralidade política. Desse modo, demonstra que os sentidos não literais, estão apenas nas palavras, mas na situação e condições em que foi produzido. 3.3 A Verdade na Interpretação O exame dos procedimentos de interpretação, contudo, trazem consigo uma segunda problemática: a da garantia sobre a interpretação, tanto na psicanálise como no dispositivo de análise de discurso, fato que introduz o segundo ponto de exame do projeto. Este diz respeito à convergência da noção de verdade do sentido produzido em ambos os métodos de leitura-interpretação do texto. Em psicanálise, existe uma ideia de que em toda formação inconsciente, uma verdade está em suspenso, que se diz, na espera de ser parida. Contudo, ao se compreender o “inconsciente estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1957, p. 179) abre-se para uma noção de um processo infinito de produção através das relações intersubjetivas. Nessa medida, não é possível conceber um processo analítico com uma interpretação verdadeira em detrimento de outra falsa, uma vez que a verdade do inconsciente e do sintoma não é algo que esteja pronto, sepultado e enterrado, e que a análise irá desenterrar. Trata-se de algo futuro, um texto que vai se produzir, 270 se construir (OCARIZ, 2003, p. 105). A verdade, para Lacan, não é algo que se descobre, mas algo que se constrói, retroativamente, no movimento de relacionar o que se está dizendo, com a verdade singular de cada um (LACAN apud OCARIZ, 2003, p.105). Assim, na psicanálise a finalidade da interpretação é se servir do equívoco do significante para dividir o sujeito e abrir o campo do sentido, fazendo-o associar e produzir novos significantes e significados, ao passo que a interpretação falsa, é a que opera em nome do saber suposto, nomeando o objeto e fixando o campo do sentido (SOLER, 1985). Já no campo da análise de discurso, não há igualmente verificação de um “sentido verdadeiro”, mas pelo real sentido em sua materialidade linguística e histórica. A AD não está interessada em extrair sentidos, respondendo à questão “o que este texto quer dizer?” A AD considera que a linguagem não é transparente, e por isso não busca atravessar o texto para encontrar o sentido do outro lado. A questão que ela coloca é “como” o texto significa e não “o quê” significa. Ela não trabalha com textos como ilustração ou como documento de algo já sabido em outro lugar e que o texto exemplifica. Ela visa produzir um conhecimento a partir do próprio texto, por que o vê possuindo materialidade própria e significativa, espessura semântica, discursividade (ORLANDI, 2009) Assim, tal como o psicanalista, o analista de discurso lê para além das evidências e acolhe a opacidade da linguagem, os sentidos históricos e a constituição dos sujeitos pela ideologia e pelo inconsciente. Ele sabe que os processos de identificação dos sujeitos constituem uma pluralidade contraditória de filiações históricas. O dispositivo de análise deve, portanto, explicar os gestos de interpretação que se ligam aos processos de identificação dos sujeitos, suas filiações de sentido, descrever a relação do sujeito com sua memória, correlacionando descrição e interpretação (ORLANDI, 2009). Assim, a interpretação é aqui objeto de análise. O sujeito que fala, interpreta, e tanto o psicanalista, como o analista de discurso devem descrever o gesto de interpretação do sujeito que constitui o sentido a ser analisado. 4. Referências BALDINI, L. Sujeito e subjetividade: psicanálise e análise de discurso. In: Análise do discurso em perspectiva: teoria, método e análise/Verli Petri e Cristiane Dias orgs. – Santa Maria: Ed da UFSM, 2013. CHEMAMA, R. Dicionário de Psicanálise. Trad.: Francisco Franke Settineri. – Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995. FREUD, S. [1923]. Dois artigos de enciclopédia: psicanálise e teoria da libido. In: ____Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorortu, 1988. V. 23. MALDIDIER, D. A inquietação do discurso. – (Re)ler Michel Pêcheux Hoje. Trad Eni P. Orlandi – Campinas: Pontes, 2003. OCARIZ, M. C. O sintoma na clínica psicanalítica: o curável e o que não tem cura. – São Paulo: Via Lettera Editora, 2003. ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 8ª Ed. Campinas, SP: Pontes, 2009. 271 PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Orlandi. 7ª Ed. Campinas, SP: Pontes, 2015. SOLER, C. As regras da interpretação. Analytica, vol. 41, Navarin editeur, Paris, 1985, p. 15-23. 272 CONCEPÇÕES DE FAMÍLIA CONSTRUÍDAS A PARTIR DA LEI E DA LITERATURA CAROLINA DO PRADO FRANCO Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem Universidade do Vale do Sapucaí. Avenida Prefeito Tuany Toledo, 470, Prédio Central, Fátima, Pouso Alegre – MG – 37550.000. carolinapfranco@outlook.com Resumo. Neste estudo, analisamos as variações do discurso de família ocorridas desde o primeiro Código Civil brasileiro de 1916, aos anos atuais, com o último Código Civil de 2002. Pesquisamos também o modo como as relações de família foram retratadas nas obras “Clara dos Anjos” de Lima Barreto e “Leite Derramado” de Chico Buarque de Hollanda. Desta forma, buscamos compreender os sentidos de família que circulam na lei e na Literatura, sustentados na teoria e metodologia da Análise de Discurso. Palavras-Chave. 1. Família; 2. Lei; 3. Literatura; 4. Análise de Discurso; 5. Formações imaginárias. Abstract. In this study, we analyze the variations of the family discourse that occurred since the first Brazilian Civil Code of 1916, to the present years, with the last Civil Code of 2002. We also investigate the way in which family relations were portrayed in the works "Clara dos Anjos" of Lima Barreto and "Spilt Milk" of Chico Buarque de Hollanda. In this way, we seek to understand the family meanings that circulate in law and in literature, based on the theory and methodology of the Discourse Analysis. Keywords. 1. Family; 2. Law; 3. Literature; 4. Discourse Analysis. 5. Imaginary Formations. 1. Introdução Neste trabalho, estudamos as variações do discurso de/sobre a família ocorridas desde o primeiro Código Civil brasileiro, do ano de 1916 aos anos atuais, com o último Código Civil, do ano de 2002. No entanto, não são somente as mudanças jurídicas que nos interessam. As relações de família retratadas nas obras literárias – “Clara dos Anjos” (concluída em 1922, mas publicada em 1948) de Lima Barreto e “Leite Derramado” (2009) de Chico Buarque de Hollanda – são analisadas também. Interessa-nos saber quais os discursos produzidos pela lei e pela Literatura sobre a família, buscando mostrar uma possível articulação entre eles nessas diferentes materialidades discursivas. De maneira que, para as análises, questionamos que formações imaginárias acerca da família estão funcionando nos textos tomados como corpus de análise. A obra de Lima Barreto, além de abordar fatos que vão além das relações de um núcleo familiar, foi concluída num período bastante próximo a do início da vigência do primeiro Código Civil brasileiro (1916). A obra “Leite Derramado” também não foi escolhida por acaso. Retrata a história de um senhor centenário que, num leito de hospital do Rio de Janeiro dos dias atuais, relata aos parentes e funcionários do local a decadente trajetória de sua família. Portanto, o critério mais 273 geral de nossa escolha dos romances em análise, foi a questão da protagonização da família e do seu funcionamento. Desta forma, podemos compreender quais relações e articulações se estabelecem entre Direito e Literatura, sustentando-nos teoricamente na Análise de Discurso, pensando os processos discursivos em diferentes materiais, ao tomar a relação entre língua e história na produção dos sentidos. Mas, para pensar os conceitos de família que vêm sendo produzidos ao longo dos anos, julgamos importante entender como algumas concepções são formuladas e circulam no Direito e na literatura, procurando mostrar como estão impressos aí os efeitos do imaginário. 2. A Lei e a Literatura Segundo Miaille (2005), o Direito costuma ser definido como um conjunto de normas que organizam as relações entre as pessoas de uma sociedade, mas ele oculta, na verdade, as verdadeiras relações jurídicas. Estas relações se encontram organizadas no que o autor chama de modo de produção (representação ideológica de uma sociedade como um consenso de indivíduos separados e livres). Ao lutar por direitos e deveres iguais (acreditando na viabilidade da justiça), luta-se por uma igualdade que não reconhece as singularidades do sujeito. Para Lagazzi (1998) a instância jurídica é uma ordem de sentidos constitutiva da memória do dizer, portanto determinante das relações sociais e por essas inserida no jogo contraditório da prática significante que move o interdiscurso. A autora traz a preocupação de se falar em ‘instância jurídica’ e não ‘direito’. Segundo ela, ‘direito’ desconsidera as diferentes épocas e sociedades, unificando funcionamentos distintos. A instância jurídica é parte de um todo e só pode ser entendida em relação a ele. Ou seja, por mais que o jurídico seja um dos espaços um dos que são fundamentais para o Estado - de estabilização dos discursos, de apagamento da memória discursiva, de sustentação da evidência dos sentidos, não se pode deixar de lado sua historicidade. Enquanto o Direito, na forma da Lei, regula as relações do homem em sociedade, a Literatura congrega a relação da língua com a ficção, é exercício de reflexão e de experiência com a escrita. Ela compreende um modo próprio de materialização do discursivo. É uma das formas mais iniciais de ligação do sujeito com a sua própria subjetividade. Desta forma, o texto literário, em nossa perspectiva, é compreendido como materialidade discursiva, como realização no plano da língua da relação do homem com o mundo em seus efeitos de sentidos existentes, possíveis ou imaginados. O discurso, enquanto prática de linguagem, priorizando-se o verbal, é estudado com o intuito de compreender a língua produzindo sentido, seja no texto jurídico ou literário. De acordo com Orlandi (2015), se o texto é unidade de análise, só pode sê-lo porque representa uma contrapartida à unidade teórica, que é o discurso, definido como efeito de sentidos entre os locutores. Para a Análise de Discurso, o que interessa é a forma como o texto organiza a relação da língua com a história no trabalho significante do sujeito em sua relação com o mundo. A função social do texto jurídico é um princípio estruturante do ordenamento jurídico e encontra sede ao longo da história do homem na terra, desde os tempos mais remotos, assumindo em cada período, os contornos próprios do modelo político, econômico, cultural e jurídico de cada sociedade. Desde o momento em que a sociedade politicamente organizada criou a regra de Direito para ela se submeter, essas mesmas regras objetivaram e objetivam alcançar uma finalidade, uma função predisposta em suas estruturas dogmáticas. Vale dizer, a respeito do Direito, que se está tratando de um “Direito 274 burguês” tal como se pode defini-lo a partir de uma compreensão do materialismo histórico, considerando a forma-sujeito histórica atual, que é a do capitalismo em que se tem o sujeito “livre”, isto é, com a ilusão de autonomia, o sujeito de deveres e direitos. Althusser (1980) arrisca-se a dizer que o Direito não existe a não ser em função das relações de produção existentes que, conjuntamente com as forças produtivas, são os componentes básicos do modo de produção, a base material da sociedade. Porém, apesar de o Direito exprimir as relações de produção, no sistema de regras, ele não faz qualquer menção às citadas relações, pelo contrário, pontua Engels (2012), ele as escamoteia. O texto literário, por sua vez, desempenha o papel de instituição social, pois pode ser concebido como o que “utiliza a linguagem” como meio específico de comunicação, uma vez que a linguagem é uma criação social. Observa ainda que o conteúdo social das obras em si próprias e a influência que a Literatura exerce no leitor fazem dela um instrumento de mobilização social. Em nossa perspectiva, não se trata de uma relação de utilização da linguagem para um determinado fim, porque esta é uma posição teórica que é conflitante com a nossa, a Análise de Discurso, a qual não toma a língua como instrumento de comunicação. 3. Análises Para iniciar as análises, apresentamos recortes da lei, com os Códigos Civis de 1916 e 2002, que versam sobre a mesma temática: a questão matrimonial, entre homem e mulher, o que nos leva a refletir sobre a desigualdade de gênero, e a filiação. Primeiramente segue um recorte (R1) de um artigo do Código de 1916, que versa sobre direitos e deveres do cônjuge na relação matrimonial: R1 - Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311). III. O direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV). (Vide Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919). IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III). V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277. Observemos agora outro recorte (R2) do Código de 2002, que aborda a mesma temática: R2 - Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos. 275 Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos. A supremacia do homem pode ser sentida no dispositivo apresentado. Pelo art. 233 do C.C. de 1916, ao marido incumbia a chefia da sociedade conjugal, tendo a mulher função de colaboradora do marido no exercício dos encargos da família, cabendo a ela velar pela direção material e moral (art. 240). Segundo prescreve Orlando Gomes (2003), o casamento do menor de 21 anos necessitava do consentimento de ambos os pais, mas, havendo discordância, prevalecia a vontade paterna. Posição privilegiada da figura masculina. Além disso, uma das regras de maior discriminação, talvez a pior, era a que considerava a mulher como relativamente incapaz (art. 6°, II do C.C. 1916), dandose margem ao entendimento de que o intuito do legislador era deixar a mulher sempre sob o comando masculino. Muitas mulheres sequer chegaram a ser “capazes” durante toda sua vida. Pois como poderiam se casar a partir dos 16 anos e só adquiririam a ‘capacidade’ aos 21, aquelas que casaram antes dessa idade não chegaram a possuir a ‘capacidade’ plena. A Constituição de 1988 deu um novo enfoque aos institutos do direito de família. A Lei 4.212/1962 deu à mulher casada a ‘capacidade’; a Lei 6.515/77 permitiu o divórcio, proibição contida no Código Civil revogado. Hoje consta expressamente a igualdade entre homens e mulheres, como também que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente por ambos. Podemos observar que a construção do papel do homem no seio familiar, segundo o Código Civil de 1916, está relacionada à administração e ao controle do matrimônio, referenciado pela legislação como “sociedade”. Ao homem cabia: a sociedade conjugal, legalidade da família, administração do domicílio e dos bens. Diante deste contexto, apresentado pela legislação, podemos identificar os conceitos de Althusser (1980) sobre os Aparelhos Ideológicos do Estado, através do Aparelho Ideológico familiar, representado pela figura do marido. As obras literárias, por sua vez, coadunam com os recortes jurídicos trazidos do início do século XX. Em “Clara dos Anjos” de Lima Barreto, por exemplo, relatase a história de uma pobre mulata, filha de um carteiro do subúrbio do Rio de Janeiro do início do século XX que, apesar das cautelas excessivas da família, é iludida e, como tantas outras, desprezada por um rapaz de melhor condição social do que a sua. Ao descobrir a gravidez, a personagem Clara decide ir à casa da família de Cassi, exigir que o moço se casasse com ela. O ato da menina revela que nem ela e nem sua família se importavam com o caráter do rapaz. Para elas, importava apenas que a filha se casasse para não se tornar motivo de vergonha perante a sociedade. D. Salustiana, mãe do rapaz, desde o princípio da história, mostra-se preconceituosa e bastante preocupada com as aparências. Além disso, sempre apoiou as ações do filho, mesmo tendo ciência de que ele tinha um mau caráter. E, para fazer isso, responsabiliza unicamente a moça, com um discurso arraigado e sustentado ainda nos dias de hoje, através da cultura do machismo: “- Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...” (LIMA BARRETO, 1998, p. 76). O pai de Cassi, que não concordava com as ações do filho, chega a casa no momento da discussão e toma conhecimento da gravidez de Clara. A menina pede, então, a ele, que obrigue seu filho a se casar com ela. O Sr. Azevedo, bastante desgostoso, compadece da situação da garota, mas afirma não poder ajudá-la, pois 276 ele próprio não sabe do paradeiro de Cassi. A história de “Clara dos Anjos” encerrase de modo a fazer o leitor pensar sobre possíveis relações imaginárias produzidas. Vejamos o próximo recorte (R3): R3: “Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero: - Mamãe! Mamãe! - Que é minha filha? - Nós não somos nada nesta vida”. (LIMA BARRETO, 1998, p. 77) Há acima um diálogo entre duas mulheres, mãe e filha, que reflete a identificação entre elas num momento de desamparo e dor. Clara fala em nome dela, da mãe e de todas as mulheres em iguais condições. Lima Barreto mostra ao leitor um universo conduzido pelo homem, branco, que cerrava as portas à população negra, negandolhe o direito de participar, de forma igualitária, da sociedade. Em várias passagens da história, é notável que Cassi Jones contava com a silenciosa concordância das autoridades, que viam o comportamento por ele perpetrado como algo sem importância, uma vez que as vítimas eram sempre pessoas pobres e não detinham influência na sociedade. A segunda obra escolhida para a composição do trabalho, “Leite Derramado” (2009), é uma narrativa escrita pelo cantor e compositor Chico Buarque. É um monólogo, que transita entre a lucidez e as lembranças do protagonista, pontuado por momentos de humor. A obra condensa a história dos últimos dois séculos brasileiros. Num leito de um hospital público da cidade do Rio de Janeiro dos dias atuais, o centenário Eulálio Montenegro d’Assumpção, membro da aristocracia carioca, relata a decadente trajetória de sua família. Como se trata de um monólogo, a personagem mescla lembranças nítidas e digressões com conversas corriqueiras com enfermeiros e parentes que vão visitá-lo. Ao longo da história, é possível perceber que Eulálio confunde as pessoas, como também os episódios que narra, em uma linguagem desconexa. Interessante notar que, em termos de formulação, o autor (narrador) adota um estilo literário que conta os fatos de maneira bastante própria: sem parágrafos nem pausas, deixando a narração mais próxima possível das conversas cotidianas da personagem. Em termos ainda de formulação, há elementos de indistinção marcados no texto. É uma espécie de reprodução do fluxo da linguagem mesmo como ela é praticada pela personagem. Observemos o trecho, a partir do recorte (R4) abaixo, em que o protagonista conversa sobre a possibilidade de namorar uma das enfermeiras: R4: quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler. Sinto que você leva jeito porque é aplicada, tem meigas mãos, não faz cara ruim nem quando me lava, em suma, parece uma moça digna apesar da origem humilde. (BUARQUE, 2009, p. 9) O recorte acima evidencia a preocupação da personagem com bens materiais e com o conforto, mas, principalmente, com as aparências de seu próximo relacionamento: “escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler”. No mesmo trecho, mas um pouco mais adiante, Eulálio deixa transparecer seu preconceito ao dizer: “parece uma moça digna apesar da origem humilde”. A 277 conjunção “apesar de” indica uma concessão. Ao admiti-la, está se afirmando que uma moça de origem humilde, em regra, não é ou não deveria ser digna. A organização familiar reflete os modos de produção socioeconômica. Ou seja, de acordo com Engels (2012), a cada modo de produção, encontram-se um ou mais tipos de organização familiar. Desta forma, com a força do capitalismo, as classes ricas acabam sendo mais favorecidas que outras e, consequentemente, mais valorizadas em detrimento de outras, mais pobres, conforme evidencia a proposta de Eulálio. A Literatura assim como o Direito são instrumentos fortes de reflexão para pensar a família. Através de suas personagens, a Literatura constrói e faz circular sentidos sobre a condição da mulher e do homem na família e, consequemente, na sociedade. 4. Considerações finais Considerada a base da sociedade, a família vem sofrendo muitas transformações ao longo do tempo, inclusive no modo de se significar. Por isso acreditamos ser tão importante a discussão sobre o tema, de modo a nos fazer refletir sobre as reais modificações da família, e/ou do imaginário de família, conforme pode ser visto na legislação e seu funcionamento no meio social. Além disso, pensar este modo de significação na literatura é necessário, porque se torna possível relacioná-la à nossa vivência. Como podemos ver, há diversas perspectivas e modos de se relacionar e de compreender a família nos diferentes materiais de linguagem. Considerando minha formação, que se dá tanto no Direito, quanto nas Letras, em termos de formação acadêmica, esses autores trazidos estão em constante relação com o que venho pensando a respeito da questão da família, agora discursivamente. Trata-se de um trabalho ainda em desenvolvimento e uma das questões teórico-analíticas em que estamos trabalhando é justamente em compreender a articulação que pode haver entre esses dois objetos ideológicos: a Lei e a Literatura no que diz respeito ao modo como funciona o imaginário de família que, certamente, não deixa de produzir efeitos sobre o real. 5. Referências ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980. BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo, SP: Editora Ática, 1998 [1948]. BRASIL. Código Civil. Lei n° 3.071 de 1° de janeiro de 1916. BRASIL. Código Civil. Lei n° 10406, de 10 de janeiro de 2002. ENGELS, Friedrich. [1884] A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 3ª Ed., São Paulo, SP: Expressão Popular, 2012. GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 278 HOLLANDA, Chico Buarque de. Leite derramado. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009. LAGAZZI, Suzy. A Discussão do Sujeito no Movimento do Discurso. 1998, 121 p. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998. MIAILLE, M. Uma Introdução Crítica ao Direito. Trad. Ana Prata, Lisboa: Editorial Estampa, 2005. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: Princípios e procedimentos. 12ª Edição, Campinas, SP: Pontes, 2015. 279 O SILENCIAMENTO DA CULTURA NEGRA E INDÍGENA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA CÁSSIO S. CASTANHEIRA Universidade do Vale do Sapucaí – PPGCL/UNIVÁS Av. prefeito Tuany Toledo, 470 – Fátima III – Pouso Alegre, CEP: 37550-000 cassio.castanheira@ig.com.br Resumo. Neste trabalho buscamos compreender o funcionamento discursivo da lei 11.645/08 em livros didáticos de história que são utilizados nas últimas séries do ensino fundamental na cidade de Bom Sucesso, Minas Gerais. Nosso ponto de partida para as análises desses livros didáticos é o campo teórico da Análise de Discurso, a partir da qual pudemos compreender a forte afetação de fundamentos da historiografia positivista que promove, como efeito, o silenciamento da cultura indígena e africana nesses materiais que têm sido tomados como suporte pedagógico para o ensino de história no Brasil. Para nós, tal situação se apresenta como um problema porque textualiza a fundação da história do Brasil a partir de discursividades eurocêntricas, destinando a outros grupos os feitos de fundação linguística e cultural do brasileiro, colocando à margem negros e indígenas. Palavras-Chave. Discurso histórico. Livro Didático. Lei 11.645/08. Abstract. In this work we seek to understand the discursive functioning of law 11,645/08 in history textbooks that are used in the latest series of elementary school in the town of Bom Sucesso, Minas Gerais. Our starting point for the analysis of these textbooks is the field of theoretical analysis of Speech, from which we were able to understand the strong fundamentals of the positivist historiography affectation that promotes, as fact, the silencing of culture African indigenous and those materials that have been taken as educational support for teaching history in Brazil. For us, this is a problem because textualiza the Foundation of Brazil's history from discursividades eurocêntricas, the other groups of Brazilian cultural and linguistic Foundation, putting the black margin and indigenous. Keywords. Historic speech. Textbook. Law 11,645/08. 1. Introdução Neste trabalho, temos o resultado parcial de uma pesquisa que pretende discutir como o livro didático silencia discursos da cultura negra e indígena no Brasil. A partir do referencial teórico da Análise de Discurso, propomos problematizar o livro didático como um material que simula a realidade, silenciando vozes, encobrindo a história e excluindo, na sua textualidade, uma grande parcela da população que é responsável pela formação social e cultural deste país. Desde a invasão e conquista do território brasileiro, as visões e os discursos sobre os índios estavam vinculados a um projeto de dominação que os portugueses desejavam implantar. Desde então, negros e índios passaram a ser caracterizados pelos europeus como selvagens e inferiores. Para solucionar o que os europeus 280 entendiam como problema, foi realizado um trabalho de catequização pelo ensino dogmático religioso de cunho cristão. No entanto, tal situação que, para nós, é um processo de aculturação de negros e indígenas, isto é, um processo de desmerecimento de uma cultura em detrimento de outra, foi discursivizada a partir de fundamentos de caráter universal e humanista. Tais fundamentos também sustentaram a textualização da história do Brasil por muitos anos, sendo reafirmadas pela historiografia positivista que assumiu uma posição de ser a disciplina responsável por narrar objetivamente fatos históricos. Nosso objetivo, então, é compreender o funcionamento discursivo da lei 11.645/08 em livros didáticos de história que são utilizados nas últimas séries do ensino fundamental na cidade de Bom Sucesso, Minas Gerais. Vamos mobilizar para o alcance desse objetivo o dispositivo teórico da Análise de Discurso, a partir do qual podemos compreender a forte afetação de fundamentos da historiografia positivista que promove, como efeito, o silenciamento da cultura indígena e africana nesses materiais que têm sido tomados como principais suportes pedagógicos para o ensino de história no Brasil. A tradição narrativa da historiografia positivista é marcada pela cronologia linear, político, unidimensional, homogêneo, econômico e com personagens que ganham uma dimensão sobre-humana, reconhecendo-os como heróis que, em sua grande maioria, significam uma fortaleza e superioridade étnica e cultural branca e europeia sobre as demais etnias e culturas. Os negros e índios aparecem apenas como grupos que deram algumas contribuições para a formação cultural do Brasil, e nunca estão presentes como heróis ou como agentes históricos importantes. Este silenciamento da cultura indígena e africana promove, como efeito, a construção de sentidos que significam o grupo de negros e índios como inferiores aos demais grupos, fortalecendo uma situação de preconceito e exclusão social ainda no século XXI. 2. O livro didático e o mercado da mundialização O livro didático e a educação não podem ser pensados fora da sociedade, como muitas vezes nos vem sendo apresentados. São aspectos que influenciam e são influenciados pela sociedade, isto é, pela situação política, econômica e social de um determinado período histórico. Desde o século XIX, as políticas do livro didático mantiveram conectados os interesses estatais aos interesses privados. Editores e autores sempre se interessaram por este produto que circula no mercado e produz lucro. Assim, editoras, buscando vender seus livros, seguem determinações da classe social que possui o domínio do capital. Nesse sentido, desde a segunda metade do século XIX, comissões, comitês e programas governamentais determinam tanto os conteúdos a serem abordados, quanto a organização do livro e, principalmente, os paradigmas a serem trabalhados em sala de aula. Com o tempo, o livro didático foi apresentado com diferentes configurações. A história do Brasil, na metade do século XIX era apresentada como um apêndice da história das civilizações. Somente no início do século XX o Brasil passa a ter destaque sendo apresentado como uma disciplina independente a partir do Estado Novo, com Getúlio Vargas, sendo textualizado, enfaticamente, o nacionalismo como edificação de personagens emblemáticos para o desenvolvimento industrial. Com o culto às personalidades, visam à construção de uma identidade nacional a partir de elementos paradigmáticos que representavam o próprio governo getulista. Atualmente, o que vem sendo difundido nos livros didáticos é o efeito do fenômeno da mundialização, pelo qual os interesses internacionais estão voltados 281 para uma identidade global, em detrimento de uma identidade nacional. Bittencourt (2009), explica que a própria condição do sistema capitalista articula a modernização e a tecnologia num sentido global e, dessa forma, o nacional é considerado ultrapassado uma vez que se preconiza o ideário de uma identidade supranacional para que todos possam se sentir cidadãos do mundo. Numa concepção em que se preconiza a mundialização, todos somos convidados a nos adequarmos a um modelo único, que procura excluir as diferenças sociais buscando uma nova homogeneização. É nesse sentido que se pretende colocar o livro didático como espaço político-simbólico para a informação de conhecimentos que sejam voltados a um único objetivo que, com um viés mercadológico, pode alcançar uma padronização cultural. 3. Estabilização da historiografia positivista no livro didático Nos séculos XIX e XX o Estado buscava, por meio dos livros didáticos de História, fortalecer o espírito nacionalista e o amor à pátria brasileira. Seu uso estava basicamente voltado a fazer com que, por meio do discurso dos professores, os alunos apreendessem o conteúdo unicamente apresentado nos livros didáticos distribuídos nas escolas públicas. No entanto, tal situação impetra o que, para nós, se apresenta como um problema. [...] de modo global, vemos que o livro didático de história tem cumprido a função de veicular, reforçar ideias. Muitos deles veiculam um conteúdo fragmentado, apresentado como fato, isto é, como acontecimento único, estanque, sem relação com os demais fatos anteriormente já apresentados ao aluno, ou com possíveis encaminhamentos em processos sociais, políticos e econômicos. Nesse modo de apresentação, inexiste a ideia de processo, estrutura e temporalidade que não sejam a curta, episódica. Nesse sentido, esses materiais podem ser vistos como um instrumento que governam o ensino pelo mascaramento da história como instrumentos para a alienação. (BARROS & MATSUDO, 2016, p.163) Nos discursos apresentados em livros didáticos, ainda conforme Barros e Matsudo (2016), são apagados os preconceitos, as revoltas, havendo a insinuação de uma convivência pacífica entre negros, índios e brancos ao longo das décadas. A partir do século XIX, a História foi definida como disciplina, num repertório de biografias de homens ilustres, datas e batalhas. Conforme Fonseca (1993), a partir de 1940, no Estado Novo, o Ministério da Educação e Saúde Pública estabeleceu o ensino de História do Brasil como disciplina autônoma, desvinculando, assim a história do Brasil da História Universal, incitando a formação moral e cívica dos alunos que se preparavam para o exercício do poder e para a direção da sociedade. A História Nacional identificou-se com a História da Pátria, cuja missão juntamente com a História da Civilização, era de integrar a população brasileira a moderna civilização ocidental. A partir daí o livro didático de História tem cumprido a função de homogeneizar o saber escolar e de veicular e reforçar o “espírito” nacionalista e o amor à pátria brasileira. A maioria deles veiculam um conteúdo fragmentado como fato, isto é, como acontecimento único, estanque, sem relação com os demais fatos. Nesse modo de apresentação, esses materiais podem ser vistos como um instrumento que governa o ensino pelo mascaramento da História. A educação, principalmente por meio da disciplina de História, conserva-se 282 privilegiando a formação da nacionalidade, tarefa assumida pelo Ministério da Educação que não se descuidou do material didático distribuído no país (cf. op cit). Ao longo dos tempos foram-se multiplicando as siglas de órgãos envolvidos direta e indiretamente com a produção de livros didáticos e estes desempenharam importante papel estratégico na difusão de valores que foram transmitidos às sucessivas gerações de brasileiros. No entanto, à revelia dessa situação, e sob a influência do Marxismo, da Nova História e da Historiografia inglesa, muitos livros didáticos foram renovados, outros surgiram, incorporando os avanços acadêmicos que contribuíram para a retomada da disciplina de História como espaço crítico. O ensino de História hoje, não se alicerça num passado pronto e acabado, numa verdade absoluta caracterizada pelo discurso dos grandes homens e heróis. Neste novo cenário, ensinar história significa impregnar de sentido a prática pedagógica cotidiana na perspectiva uma escola cidadã. Holanda (1936), afirmava que nos livros didáticos de história há a insinuação de uma convivência pacífica entre as raças, sem “dissonâncias”, que se daria por meios dos laços “sentimentais” que os aproximava. Observe: O escravo das plantações e das minas não era um simples manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época industrial o substituísse pelo combustível. Com frequência as suas relações com os donos oscilavam da situação de dependente para a de protegido, e até de solidário e afim. Sua influência penetrava sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de qualquer ideia de separação de castas ou raças, de qualquer disciplina fundada em tal separação (Holanda, 1936, p. 55). Os sentidos de uma narrativa que expressa a ideia de que portugueses, negros e índios se relacionavam bem por conta da mistura e da convivência entre eles mobiliza sentidos já estabilizados acerca de uma suposta superioridade de brancos, de senhores feudais, indiciando ao leitor uma via de interpretação que sustentará tal modo de compreensão acerca de negros e indígenas: a inferioridade em relação às demais etnias. Orlandi (2003) explica que “em relação à história de um país, os discursos fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país” (Orlandi, 2003, p.7), e vão se cristalizando na memória nacional. Os enunciados que vão caracterizar os discursos fundadores são situados como “lugares” em que a memória nacional se fixou. Para nós, estes discursos estão em funcionamento nos livros didáticos de história. O livro didático de História pioneiro na construção do discurso de uma escravidão branda foi publicado em 1900 para ser utilizado no ensino secundário do Colégio Pedro II. Ele descreve um quadro harmônico entre senhores e escravos: Nas fazendas agrupavam-se em famílias, senão no sentido da lei, ao menos no da religião. Usavam o sobrenome do senhor e eram por eles estimados, sobretudo quando criados d’eles. Era frequente o costume de alforriar em testamento, de todo ou sob condição os bons escravos e recusar o dinheiro da alforria que o negro pouco a pouco ajuntava para redimir o cativeiro. A emancipação não era, pois entre nós, como os Estados Unidos, impedida ou regulada por lei, era negócio particular entre o senhor e o escravo (...) (PINA apud RIBEIRO, 2009, p. 127). É importante destacar que no século XIX e princípios do século XX a relação 283 do professor e do aluno com o livro didático era limitada. O professor apresentava e selecionava o que deveria ser lido e fazia sua interpretação. Caberia ao aluno ler o texto, dominar as palavras escritas e repeti-las diante do professor e dos colegas (BITTENCOURT, 1996). Esta tradição pedagógica ajudou a consolidar este discurso na medida em que o professor se utilizava de um texto autorizado, já com a devida interpretação e exigia do aluno uma leitura que se aproxima ao máximo de uma interpretação já estabilizada. Portanto, aquele discurso não admitia réplicas, o que estabelecia uma via de interpretação e de produção de sentidos acerca de um recorte já estabelecido, medida que, segundo Orlandi (2003), promove a invenção de um passado e elaboração de um futuro como se os sujeitos que passam, então, a participar dessa interpretação unilateral participassem dessa história inventada, tomando-a como verdade. A historiografia e a metodologia da narrativa sobre a história do Brasil privilegiaram o olhar europeu sobre os povos negros e indígenas. A presença do português é tão decisiva, anulando o índio e colocando o negro em uma condição de marginalidade. De acordo com Eni Orlandi: O caso do contato cultural entre índios e brancos, o silenciamento produzido pelo Estado não incide apenas sobre o que o índio, enquanto sujeito faz, mas sobre a própria existência do sujeito índio. E quando digo Estado brasileiro do branco. Estado que silencia a existência do índio enquanto parte e componente da cultura brasileira. Nesse Estado, o negro chega a ter uma participação. De segunda classe é verdade, mas têm uma participação, à margem, o índio é totalmente excluído. No que se refere à identidade cultural, o índio não entra nem como estrangeiro, nem sequer como antepassado (ORLANDI, 1990, p. 55). É possível perceber que o discurso tradicional positivista que foi transferido para os manuais escolares de História estabeleceu apagamentos e silenciamentos locais em relação ao passado dos negros e índios. Negros e índios foram esquecidos como sujeitos singulares e destacáveis, enquanto o homem branco foi sempre lembrado em sua saga repleta de heróis. Estes manuais escolares que, ao nosso ver, deveriam ser uma fonte intermediária entre o saber científico e o saber escolar, oferecendo subsídios para que o aluno construísse ao longo de sua trajetória escolar seu próprio ponto de vista, vêm sendo elaborados e utilizados de modo a produzir a marginalização de índios e negros, mantendo a trágica tradição de preconceitos e exclusão social. O que vimos analisando é que o livro didático mobiliza um discurso imposto, tanto no sentido de ser obrigatório quanto no sentido de ser um discurso oriundo de “autoridade”. Frente a isso, convém compreender que a concepção de autoridade está associada aos seus desdobramentos na produção de leitura, conforme formulou Orlandi: Pelo conceito de autoridade, há um deslize entre a função crítica e a censura, ou melhor, desliza-se da crítica para a censura. O que reverte em prejuízo do próprio papel do crítico – e, consequentemente, impede a possibilidade de se instaurar o leitor sujeito –, pois desloca-se a natureza da sua atividade: toma-se o crítico como juiz, como censor, imobilizando-o em um momento dado de sua história de leituras. Não se dá ao “modelo” um direito elementar, que faz parte do cotidiano de qualquer leitor: o de ler o mesmo texto de formas diferentes. Ele acaba por comprometer-se com a leitura e a protegê-la institucionalmente. Por reflexo, tira-se 284 também do leitor o que se tirou do crítico, isto é, sua dinâmica: o leitor fica obrigado a reproduzir o seu modelo de leitura, custe o que custar. O que, em geral, custa a sua capacidade de reflexão (ORLANDI, 1999, p. 45). Orlandi nos faz compreender que um discurso feito por uma autoridade dificulta a polissemia, dando margem para que pensemos este discurso como performativo. Dessa maneira, é possível entender a força dos discursos fundadores, positivistas, mobilizando os sentidos que mobilizam nos livros didáticos. A permanência dos discursos fundadores está ligada também à falta de um diálogo entre as recentes pesquisas acadêmicas e a produção da escrita didática da história com os professores e gestores do ensino básico. Muitos professores de história, ou talvez a maioria, estão distantes da produção do saber histórico. Não buscam, em sua maioria (BARROS & MATSUDO, 2016), acompanhar os debates em torno do conhecimento científico por meio de leituras de caráter teórico submetendo-se, assim, acriticamente ao saber que foi condensado no livro didático. 4. Os efeitos do discurso de autoridade do livro didático Em razão das deficiências de formação e das péssimas condições de trabalho, as aulas do professor do ensino básico têm se transformado, há mais de 30 anos, num reforço do discurso contido no livro didático adotado, que é visto pelos alunos como única fonte digna de confiança. Conforme Bittencourt (2002), nos últimos anos o livro didático transformou-se em uma das principais ferramentas do professor no processo de ensino aprendizagem, tendo gerado inclusive críticas por parte de alguns que acreditam que o livro deve ser apenas um suporte pedagógico do educador, e não uma fonte primária como muitos fazem uso, transformando-o em único recurso pedagógico para ministrar as aulas. As reformas educacionais nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo a partir da Lei 5692/71, mudou a relação entre o livro didático e o professor. Se antes o professor tinha mais autonomia em relação ao uso do livro, na nova realidade educacional os professores, especialmente aqueles que se formavam nos cursos de Licenciaturas curtas (2 anos), passaram a depender cada vez mais dos livros para suas aulas. Ao longo dos anos, os livros didáticos passaram a ser os portadores do discurso competente a ser transmitido aos alunos. A partir da abertura política e a reconstrução democrática, foi renovada significativamente a produção historiográfica, trazendo novos discursos e abordagens. Começaram a surgir debates educacionais e reformas curriculares que expressam o desejo de romper com determinados discursos fundadores de nacionalidade, rompendo com a tradição no ensino de História. Toda essa renovação vai refletir nos livros didáticos, que passaram a ser reescritos substituindo algumas narrativas vinculadas à educação patriótica pela disseminação de valores que estimulam a convivência social, o respeito e a liberdade. No entanto, estas novas correntes historiográficas que vêm sendo inseridas no debate atual sobre o livro didático, a partir da ampliação das pesquisas acadêmicas, não conseguirão renovar de modo significativo a elaboração desses livros. Com o discurso fundador da nacionalidade, que se dá especialmente pelo “mito das três raças”, os livros didáticos continuam a apresentar uma visão eurocêntrica da História de nosso país, perpetuando estereótipos e preconceitos. A aprovação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de ensino básico, que foi substituída, e