ENELIN 2017 textos completos/ VII Encontro de Estudos da Linguagem/ VI
Encontro Internacional de Estudos da Linguagem: linguagem, instituições
e práticas sociais. Pouso Alegre, 4 a 6 de outubro de 2017 / organização
de Eni Puccinelli Orlandi ... [et al.]. – Pouso Alegre: Univás, 2018.
1512p.
Vários autores
Bibliografia
ISBN: 978-85-67647-44-9
1. Ciências da linguagem. 2. Artigos – Coletânea. 3. Análise de discurso.
4. Enelin. 5. Nupel. 6. Ceddem. I. Orlandi, Eni Puccinelli (Org.). II. Massmann,
Débora Raquel Hetter (Coord.). III. Nogueira, Luciana (Coord.). IV. Chiareti,
Paula (Coord.). V. Título.
CDD – 410.1
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Rafaela Alcoba
Rafaela de Matos Reis
Raiane Gabriela dos Santos Pereira
Raissa Rodrigues de Carvalho
Raphael Araujo Ribeiro
Rariele Cristina
Rodolfo Mendes Raul
Sérgio Murilo Lucas
Tamyres Cecília da Silva
Thais Siqueira de Meireles
Thamara de Oliveira
Wanessa Junqueira Megale
Wesley Openheiner de Carvalho
Sumário
Apresentação .........................................................................................................................19
UMA ANÁLISE ENUNCIATIVA DA PALAVRA “POESIA” EM UM LIVRO DIDÁTICO ....................21
ADILSON VENTURA .................................................................................................... 21
RELAÇÃO ENTRE LÍNGUAS: OS CENTROS DE ESTUDOS DE LÍNGUAS (CEL-SP) E A
CONFIGURAÇÃO DE UM ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO ...............................................................28
ADRIANA DA SILVA..................................................................................................... 28
OPERAÇÕES DE DETERMINAÇÃO E A ORGANIZAÇÃO DE DOMÍNIOS NOCIONAIS: O
FUNCIONAMENTO DE FALSO .................................................................................................36
ALBANO DALLA PRIA .................................................................................................. 36
POTENCIALIDADES PARA O ENSINO: ANÁLISE E REFLEXÕES SOBRE O DISCURSO
PUBLICITÁRIO EM TRAILERS FÍLMICOS NA PERSPECTIVA MULTIMODAL ...............................46
ALINE GABRIELLE CORREIA DA COSTA, JINNY KELLY CENTENO RAMOS ......................... 46
UM ENSAIO REFLEXIVO SOBRE O LIVRE ARBITRIO EXPOSTO NA OBRA DE SÓFOCLES:
TRILOIGA TEBANA ..................................................................................................................57
ALLAN J M SILVA ........................................................................................................ 57
SEMÂNTICA E ENSINO: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DO ENSINO DA SEMÂNTICA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA.................................................................................................................64
ALLAN J M SILVA, BARBARA T S SILVA, BIANCA D GOES, BRENA R HOMEM, PAULA C F
FERREIRA ................................................................................................................... 64
SUJEITO E SENTIDOS E(M) REDE: CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO ..................73
ATILIO CATOSSO SALLES ............................................................................................. 73
CORPO E(M) PERFORMANCE .................................................................................................79
ATILIO CATOSSO SALLES ............................................................................................. 79
OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE A PRÁTICA DISCURSIVA DOS HACKERS ..................................88
ALLAN STROTTMANN KERN ........................................................................................ 88
CINISMO: UM ESTUDO SOBRE O FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA NO DISCURSO ..............97
AMANDA BARBOSA XAVIER COTRIM .......................................................................... 97
OS MECANISMOS DE PRODUÇÃO DE SENTIDO E O PROCESSO DE LEITURA DO TEXTO
PUBLICITÁRIO: UM ESTUDO À LUZ DA TEORIA SEMÂNTICA.................................................105
AMANDA CARVALHO SOUZA; ÉRIKA DOURADO AMORELLI ....................................... 105
REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO-ALUNO ACERCA DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM
DE LÍNGUA INGLESA .............................................................................................................115
AMANDA MARIA BICUDO DE SOUZA ........................................................................ 115
OS COMPLEMENTOS VERBAIS NO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA ...................122
ANDERSON VITOR DOS SANTOS MENDES ................................................................. 122
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA CADETE DA ACADEMIA MILITAR DAS AGULHAS NEGRAS
6
SOB A PERSPECTIVA DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS INSTITUCIONAIS. ....................................131
ANDRÉA LEMOS MALDONADO CRUZ ........................................................................ 131
O IMAGINÁRIO COMO VIA DE TRANSGRESSÃO DO REAL .....................................................137
ANDRÉA PORTOLOMEOS .......................................................................................... 137
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO CAIPIRA NA TELENOVELA ÊTA MUNDO BOM! DE WALCYR
CARRASCO ............................................................................................................................141
ANÍSIO BATISTA PEREIRA .......................................................................................... 141
MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA OS DISCURSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO PROFESSOR
.............................................................................................................................................151
ANTONIO JOSÉ DA SILVA........................................................................................... 151
OS DESAFIOS DA MULHER ASSURINÍ PERANTE A VIOLENCIA DOMESTICA NA ALDEIA
INDÍGENA TROCARÁ, MUNICÍPIO DE TUCURUÍ/PA ..............................................................160
BÁRBARA DE NAZARÉ PANTOJA RIBEIRO; BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO ...... 160
A SIGNIFICAÇÃO DA MULHER AGREDIDA: ANÁLISE DE MANCHETES DO G1 DE MG ............167
BÁRBARA DE OLIVEIRA SILVA ................................................................................... 167
MEMÓRIA E EDUCAÇÃO: SABERES, ENSINAMENTOS E APRENDIZAGENS ENTRE CRIANÇAS
INDÍGENAS DA REGIÃO DO TOCANTINS, NO PARÁ ..............................................................174
BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO, MARIA DE FÁTIMA RODRIGUES NUNES......... 174
AS BASES FILOSÓFICAS DO DISCURSO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE ..............................184
BENEDITO FERNANDO PEREIRA ................................................................................ 184
MULTIFUNCIONALIDADE DO CONECTOR MAS EM TIRINHAS: ASPECTOS TEXTUAIS,
INTERATIVOS E MULTIMODAIS ............................................................................................191
BOUGLEUX BONJARDIM DA SILVA CARMO ............................................................... 191
CONFIGURAÇÕES MULTIMODAIS NA LITERATURA ADAPTADA A QUADRINHOS: A
TEXTUALIDADE DO CONTO MACHADIANO ..........................................................................201
BOUGLEUX BONJARDIM DA SILVA CARMO ............................................................... 201
A ARTE COMO DENUNCIADORA DAS TENSÕES DO SOCIAL EM FELIZES PARA SEMPRE? .....211
BRUNO ARNOLD PESCH, RENATA MARCELLE LARA .................................................... 211
ANÁLISE DO DISCURSO E PORTAL VERMELHO – IDENTIFICAÇÃO, SUJEITOS E DISCURSO
FUNDADOR ..........................................................................................................................220
BRUNO DE AZEVEDO SANTANA GUIMARÃES ............................................................ 220
LETRAMENTO DIGITAL E ACADÊMICO NO PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO .....................226
BRUNO VIEGAS DOS SANTOS, ELLEN MAIRA DE ALCANTARA LAUDADRES, PATRICIA
PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS ..................................................................................... 226
EFEITOS DE SENTIDO A PARTIR DE CHARGES SOBRE O PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO ....232
CARLA CASSIANO DE ALMEIDA, NÁDIA DOLORES FERNANDES BIAVATI...................... 232
LINGUÍSTICA FORENSE, NARRATIVA E DISCURSO: PROPOSTA DE ANÁLISE DAS ALEGAÇÕES
DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA EM UM PROCESSO CRIMINAL.................................................240
CARLA LEILA OLIVEIRA CAMPOS ............................................................................... 240
7
O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRIATIVA VI O ENSINO DE ESCRITA CRIATIVA NAS
AULAS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA .........................................................................................250
CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO ................................................................... 250
THE MEANING MAKING OF DIGITAL MULTIMODAL TEXTS BY UNDERGRADUATE STUDENTS
.............................................................................................................................................258
CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO ................................................................... 258
PSICANÁLISE E ANÁLISE DE DISCURSO: A HOMOLOGIA DOS DISPOSITIVOS DE
INTERPRETAÇÃO ..................................................................................................................265
CAROLINA COSTA CARVALHO BIONDI ....................................................................... 265
CONCEPÇÕES DE FAMÍLIA CONSTRUÍDAS A PARTIR DA LEI E DA LITERATURA.....................273
CAROLINA DO PRADO FRANCO ................................................................................. 273
O SILENCIAMENTO DA CULTURA NEGRA E INDÍGENA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA
.............................................................................................................................................280
CÁSSIO S. CASTANHEIRA ........................................................................................... 280
LEITURA E PRODUÇÃO DE INFERÊNCIAS EM PROCESSOS SELETIVOS DE AVALIAÇÃO SERIADA
.............................................................................................................................................291
CLAUDIA ALVES PEREIRA BRAGA, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ...................... 291
DA LEITURA AO RECONTO: A LINGUAGEM INFANTIL COMO UM PROCESSO DE INTERAÇÃO
VERBAL .................................................................................................................................300
CLÁUDIA ROQUINI NASCIMENTO, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ........................ 300
A LINGUAGEM LITERÁRIA NA FORMAÇÃO DO SUJEITO CRÍTICO .........................................306
CLÉLIO BRAZ DE SOUZA, SOPHIA ASSIS RODRIGUES................................................... 306
A ORALIDADE COMO PARTE DO ENSINO DE LITERATURA....................................................314
DAIANNA B. A. POMPEU........................................................................................... 314
O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM EM CONTEXTOS DIGITAIS NAS AULAS DOS
PROFESSORES DE LÍNGUAS ..................................................................................................324
DANIELLE CRISTINE SILVA ......................................................................................... 324
CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM E MEMÓRIA NA DOENÇA DE
ALZHEIMER: CENÁRIO DAS PESQUISAS SOBRE A TEMÁTICA ................................................333
DANIELY MARTINS DOS SANTOS FERRAZ, NIRVANA FERRAZ SANTOS SAMPAIO ......... 333
A REPRESENTAÇÃO DO CORPO FEMININO EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS NA TV: A
DITADURA DA BELEZA PRESENTE NOS COMERCIAIS DE LINGERIE .......................................339
DARLENE RODRIGUES DE FREITAS ............................................................................. 339
O “ET DE VARGINHA”: UMA COMPREENSÃO DISCURSIVA SOBRE O “CASO” .......................346
DIEGO HENRIQUE PEREIRA ....................................................................................... 346
LEITURA DE CHARGES E DISCURSOS JUVENIS: UMA ABORDAGEM SOBRE CIDADANIA NO
FACEBOOK ............................................................................................................................366
EDILAINE GONÇALVES FERREIRA DE TOLEDO ............................................................. 366
EFEITOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NAS FUNÇÕES EXERCIDAS POR EDUCADORES E
8
EDUCANDOS.........................................................................................................................376
EDMARA BARRA DOS SANTOS .................................................................................. 376
QUEM É CRIMINOSO? ..........................................................................................................383
EDUARDO SANTOS DE OLIVEIRA ............................................................................... 383
“REDONDO É SAIR DO SEU QUADRADO”: UMA ANÁLISE DAS FORMAS DO SILÊNCIO NO
VÍDEO “VIVA A DIFERENÇA”, DA SKOL .................................................................................391
ELAINE CANISELA FERREIRA ...................................................................................... 391
O DISCURSO ROMÂNTICO BRASILEIRO E O APAGAMENTO DO POLÍTICO: O MODO DE
INDIVIDUAÇÃO DO SUJEITO BRASILEIRO E O PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO NA RELAÇÃO
COM O ESTADO ....................................................................................................................397
ÉLCIO ALOISIO FRAGOSO .......................................................................................... 397
DISCURSO NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO: ORGANISMOS INTERNACIONAIS, GERÊNCIA DE CRISES
E INCLUSÃO ..........................................................................................................................406
ELIANA LÚCIA FERREIRA, SANDRO VIEIRA TEÓFILO .................................................... 406
A DEPRESSÃO HOJE: OS TRANSTORNOS COMO LINHAS TÊNUES DE FRONTEIRA ENTRE O
NORMAL E O PATOLÓGICO ..................................................................................................413
ELISA MARA DO NASCIMENTO.................................................................................. 413
O FEEDBACK FORMATIVO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE INGLÊS EM
UM CURSO ONLINE DE MESTRADO ......................................................................................420
ELISA MATTOS DE SÁ ................................................................................................ 420
NETSPEAK E EMOJIS NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE INGLÊS: UMA
INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA ONLINE...................................................................................430
ELISA MATTOS DE SÁ ................................................................................................ 430
DISCURSO LITERÁRIO E EDIÇÃO: PARA/PERITEXTOS LEGITIMADORES.................................439
ELISSON FERREIRA MORATO..................................................................................... 439
O RECONTO ORAL DE NARRATIVA LITERÁRIA E SUAS POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES PARA A
TRADIÇÃO CULTURAL E PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO ..................................................447
ELLEN MAIRA DE ALCANTARA LAUDADRES, PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS .... 447
CORPO(S) DO FEMINI-N/SM-O EM PROTESTO: IMAGEM, MEMÓRIA, IDEOLOGIA E DISCURSO
.............................................................................................................................................450
EMANUEL ANGELO NASCIMENTO ............................................................................. 450
LINGUAGEM E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: O ATO DE ESCUTAR EM INTERFACE COM
A LEITURA.............................................................................................................................459
EMANUELA FRANCISCA FERREIRA SILVA ................................................................... 459
OS SENTIDOS DE CONECTIVIDADE EM DISCURSOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS .......................468
ERIKA KRESS............................................................................................................. 468
RELATOS DE VIAGEM: OS BOROROS EM UMA LEITURA DISCURSIVA ...................................476
FÁTIMA GRAZIELE DE SOUZA, WEVERTON ORTIZ FERNANDES ................................... 476
PONTOS DE CULTURA: DAS AMARRAS DO SUJEITO AO ESPAÇO NACIONAL ........................484
9
FELIPE AUGUSTO SANTANA DO NASCIMENTO........................................................... 484
O DISCURSO E O PODER NA ESTRATÉGIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO FINANCEIRA ..............492
FERNANDO BATISTA PEREIRA, HÉLCIUS BATISTA PEREIRA ......................................... 492
O PORTA-VOZ E O POVO: HOMOGENEIZAÇÕES E SUAS IMPLICAÇÕES EM GETÚLIO VARGAS
.............................................................................................................................................502
FLAVIO DA ROCHA BENAYON, RENATA ORTIZ BRANDÃO ........................................... 502
UM OLHAR DISCURSIVO SOBRE A CAMPANHA PUBLICITÁRIA DA FACECA 2015 .................511
FLÁVIO MARCELO DE CARVALHO SILVA .................................................................... 511
OS MULTILETRAMENTOS EM CONTEXTO ESCOLAR: UMA ANÁLISE DE MATERIAIS DIDÁTICOS
UTILIZADOS EM AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA ...............................................................523
FRANCIELI APARECIDA DIAS ...................................................................................... 523
AS MÃOS COMO METÁFORA NA ANÁLISE DE DISCURSO .....................................................533
FRANCISCO ANTONIO ROMANELLI ............................................................................ 533
O ANÚNCIO PUBLICITÁRIO: TRANSFORMAÇÃO DE LINGUAGENS E DE SUJEITOS ................545
GABRIELLA MARQUES SIQUARA SILVA, ALINE GABRIELLE CORREIA DA COSTA, ISABELA
VIEIRA LIMA ............................................................................................................. 545
A ORGANIZAÇÃO DA HETEROGENEIDADE ENUNCIATIVA E DOS PONTOS DE VISTAS EM
CHARGES DA MAFALDA........................................................................................................555
GABRIELA PACHECO AMARAL, JAQUELINE DOS SANTOS BATISTA SOARES ................. 555
AS VOZES QUE SILENCIAM: UMA ANÁLISE SOBRE O SILÊNCIO EM VIDAS SECAS .................564
GABRIELA PACHECO AMARAL ................................................................................... 564
DISCURSO PATRIARCAL E VIOLÊNCIA: BOURDIEU E A DOMINAÇÃO APRENDIDA ................574
GABRIELA SOARES BALESTERO ................................................................................. 574
LITERATURA E DIREITO: ANALISANDO “METAMORFOSE” DE FRANZ KAFKA ........................584
GABRIELA SOARES BALESTERO ................................................................................. 584
O LUGAR SOCIAL DO LOCUTOR NO ACONTECIMENTO DA ESCRAVIDÃO .............................593
GEORGES SOSTHENE KOMAN ................................................................................... 593
O DESABROCHAR POÉTICO DA LEITURA: EXPERIÊNCIAS LITERÁRIAS NA SALA DE LEITURA
CLARICE LISPECTOR ..............................................................................................................599
GILMA GUIMARÃES LISBOA, GILCILENE DIAS DA COSTA ............................................ 599
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NAS INICIATIVAS FEDERAIS PARA A FORMAÇÃO
CONTINUADA DE PROFESSORES DOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL ..............608
GIOVANNA RODRIGUES CABRAL, POLLYANNA MARIA RESENDE ................................ 608
VILÃO OU VÍTIMA: UMA ANÁLISE DOS ENQUADRAMENTOS DOS PAÍSES NOS CONFLITOS DO
GOLFO PÉRSICO PELAS MANCHETES BRASILEIRAS ...............................................................617
GISELA CARDOSO TEIXEIRA ....................................................................................... 617
ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS UTILIZADAS NO DEBATE POLÍTICO TELEVISIVO AO GOVERNO DO
ESTADO DO AMAPÁ .............................................................................................................627
10
GUASIARA DA SILVA MELO, MIRIAM MAIA DE ARAÚJO PEREIRA ............................... 627
“COM JEITINHO...” UMA ANÁLISE RETÓRICA DO DISCURSO DO PAPA FRANCISCO .............639
GUILHERME BERALDO DE ANDRADE ......................................................................... 639
CONSUMO, IMAGEM, CORPO ..............................................................................................646
GUILHERME CARROZZA, GABRIEL PAIVA ROSA GASPAR ............................................ 646
EFEITOS DE SENTIDO NOS TÍTULOS DA PLAYLIST “BEE COMENTA” DO VLOG CANAL DAS BEE
.............................................................................................................................................658
HAÍSA WILSON LIMA CRUZ ....................................................................................... 658
A METÁFORA COMO RECURSO ARGUMENTATIVO EM TEXTOS DO SÉCULO XIX NO JORNAL
“GAZETA DE NOTÍCIAS”: UM ESTUDO DE CASO ...................................................................668
HEBERTH PAULO DE SOUZA ...................................................................................... 668
MULTILETRAMENTOS: POTENCIALIDADES DO ESTUDO DO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NA SALA
DE AULA ...............................................................................................................................677
HELENA MARIA FERREIRA, LAÍS GONÇALVES SILVA, HELOYDECARLO BATISTA MARQUES
DA COSTA ................................................................................................................ 677
CAPACIDADES DE LINGUAGEM: SINALIZAÇÕES PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR PROFICIENTE
.............................................................................................................................................684
HELENA MARIA FERREIRA, NATÁLIA RODRIGUES SILVA DO NASCIMENTO, LAÍS
GONÇALVES SILVA .................................................................................................... 684
A REPRESENTAÇÃO DE LEITURA NAS TIRINHAS DE LANCAST MOTA ....................................691
HELEONARA GABRIELA SOUZA DE PAULA, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ............ 691
O GÊNERO CONTO MARAVILHOSO EM SALA DE AULA: POTENCIALIDADES PARA A
AMPLIAÇÃO DE HABILIDADES DE LEITURA E NA ESCRITA ....................................................700
HELOYDECARLO BATISTA MARQUES DA COSTA, LARA TRANALI MENDONÇA OLIVEIRA
................................................................................................................................ 700
RECURSOS TECNOLÓGICOS E NARRATIVAS DIGITAIS: QUE HISTÓRIAS ESTAMOS CONTANDO?
.............................................................................................................................................706
ISABEL CRISTINA DORNELAS DA COSTA, MARIANA MELO COSTA, ANA ELYSA BASTOS DE
CASTRO.................................................................................................................... 706
TUTORIAL: UMA ALTERNATIVA PRÁTICA DE ENSINO ...........................................................714
ISABELA VIEIRA LIMA, GABRIELLA MARQUES SIQUARA SILVA .................................... 714
A OBRA DE ARTE ENQUANTO EXPRESSÃO DA TRANSFORMAÇÃO SIMBÓLICA ....................722
MARIANA REZENDE DINI .......................................................................................... 722
A VIOLÊNCIA DISCURSIVA EM REDES SOCIAIS CONTRA REFUGIADOS ..................................728
JAQUELINE APARECIDA NOGUEIRA, LUCAS GUEDES VILAS BOAS ............................... 728
DIALOGISMO E CONSTRUÇÃO DO ACONTECIMENTO NAS MÍDIAS JORNALÍSTICAS: UM
ESTUDO COMPARATIVO À LUZ DA ANÁLISE DO DISCURSO .................................................738
JAQUELINE DOS SANTOS BATISTA SOARES ................................................................ 738
A PRESENÇA DOS ADVÉRBIOS MODALIZADORES COMO ESTRATÉGIA ARGUMENTATIVA NO
GÊNERO CHARGE .................................................................................................................746
11
JENIFFER APARECIDA PEREIRA DA SILVA, IRENE LEIDE ALMEIDA MIGUEZ, MAURICEIA
SILVA DE PAULA VIEIRA ............................................................................................ 746
LETRAMENTO MULTIMODAL: A MULTIMODALIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES EM DIFERENTES
CONTEXTOS ..........................................................................................................................754
JENIFFER APARECIDA PEREIRA DA SILVA, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ........... 754
LÍNGUA INGLESA, TRANSCULTURALIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE: PERCURSOS E
REPRESENTAÇÕES DOCENTES NO ENSINO FUNDAMENTAL I ...............................................764
JOANA DE SÃO PEDRO .............................................................................................. 764
O FALAR DA COMUNIDADE QUILOMBOLA CAMPINA DE PEDRA NO MUNICÍPIO DE POCONÉMT ........................................................................................................................................769
JOCINEIDE MACEDO KARIM ...................................................................................... 769
GOLPE E IMPEACHMENT: A NOÇÃO DE SLOGAN NAS FORMULAÇÕES E CIRCULAÇÕES DE
SENTIDOS NOS TEXTOS MIDIÁTICOS ....................................................................................779
JOSÉ BRAULIO DA SILVA JUNIOR, ALINE SADDI CHAVES ............................................. 779
A PRELAZIA DE CAMETÁ E A EDUCAÇÃO POPULAR NO BAIXO TOCANTINS, NO PARÁ .........788
JOSÉ RIVALDO ARNAUD LISBOA, BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO.................... 788
PRÁTICAS DE LEITURA, TECNOLOGIA E ESCOLA ...................................................................797
JUCIELE PEREIRA DIAS, LUCIANA NOGUEIRA ............................................................. 797
LINGUAGEM DA CRIANÇA: A CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS A PARTIR DA RELEITURA DE
IMAGENS ..............................................................................................................................806
JULIANA PAULA DE OLIVEIRA, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART .............................. 806
A LITERATURA COMO MEIO DE ESTÍMULO AO PENSAMENTO CRÍTICO ...............................815
JULIANA PEREIRA ANDRADE ..................................................................................... 815
O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NA GRADUAÇÃO: UMA PRÁTICA POR MEIO DO GÊNERO
RESENHA CRÍTICA .................................................................................................................825
JÚLIO CÉSAR PAULA NEVES, JAQUELINE APARECIDA NOGUEIRA ................................ 825
A CONSTRUÇÃO DA OPINIÃO EM REDES SOCIAIS: AS VINCULAÇÕES POLÍTICO-IDEOLÓGICAS
NO DISCURSO .......................................................................................................................831
JUSSATY LUCIANO CORDEIRO JUNIOR ....................................................................... 831
O MAPEAMENTO DAS CAPACIDADES DE AÇÃO EM PROPOSTAS DE LEITURA DE TIRAS DE
HUMOR: UMA ANÁLISE DE LIVROS DIDÁTICOS ....................................................................842
LARA TRANALI MENDONÇA OLIVEIRA ....................................................................... 842
A QUESTÃO DO APAGAMENTO DO SUJEITO DENTRO DO GÊNERO FANTÁSTICO ................849
LARISSA SENA ROCHA DO NASCIMENTO ................................................................... 849
O DISCURSO DAS FINANÇAS PESSOAIS VOLTADO ÀS MULHERES: RELAÇÕES
INTERDISCURSIVAS E ESTEREÓTIPOS ...................................................................................853
LARYSSA CALIXTO MILITÃO, LEONARDO BIAZOLI, CARLA LEILA OLIVEIRA CAMPOS, JOÃO
PAULO DE BRITO NASCIMENTO ................................................................................ 853
ANÁLISES DE DEFINIÇÕES GRAMATICAIS EM LIVROS DIDÁTICOS À LUZ DE PERINI E OUTROS
TEÓRICOS .............................................................................................................................864
12
LETÍCIA DA SILVA ZARBIETTI COÊLHO , LILIAN PACHECO MONTEIRO DA COSTA ,
LUCIANO MAGNO ROCHA, ANNA CAROLINA FERREIRA CARRARA RODRIGUES , LIDIA
MARIA NAZARÉ ALVES ............................................................................................. 864
ANÁLISE DIACRÔNICA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA DIAFÁSICA: CARTA E EMAIL ..................873
LETICIA DA SILVA ZARBIETTI COÊLHO, MAIDA DE FREITAS ALVES, LUCIANO MAGNO
ROCHA, LIDIA MARIA NAZARÉ ALVES ........................................................................ 873
LEITURA DE FÉRIAS: O QUE OS USUÁRIOS DO TWITTER ESTÃO LENDO? .............................883
LETÍCIA DA SILVA ZARBIETTI COÊLHO, LILIAN PACHECO MONTEIRO DA COSTA, LUCIANO
MAGNO ROCHA, LIDIA MARIA NAZARÉ ALVES .......................................................... 883
IDEOLOGIA, CORPO E MEMÓRIA: A INDIVIDUAÇÃO DO SUJEITO TRAVESTI PELO DISCURSO
MARGINAL ...........................................................................................................................889
LIDIA NORONHA PEREIRA ......................................................................................... 889
HOMEM VERSUS MULHER: GESTOS POLÍTICOS NA/PELA FOLHA DE S. PAULO EM
ENTREVISTA COM LAERTE COUTINHO .................................................................................896
LIDIA NORONHA PEREIRA ......................................................................................... 896
INCLUSÃO ESCOLAR DO ALUNO SURDO: ALGUNS SENTIDOS POSSÍVEIS .............................904
LISIANE FLORES DE OLIVEIRA STRUMIELLO ................................................................ 904
POLÍTICAS DE LÍNGUA(S) E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO SUJEITO .............................911
LOURDES SERAFIM DA SILVA .................................................................................... 911
PSICOTERAPIA DE GRUPO NUMA PERSPECTIVA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL.............919
LUANA DE CÁSSIA FARIA .......................................................................................... 919
SÃO BENEDITO, “O NEGRO”: CONFLITOS E RESISTÊNCIAS EM PIRANGUINHO/MG NO INÍCIO
DO SÉCULO XX ......................................................................................................................928
LUCAS INÁCIO RODRIGUES ....................................................................................... 928
A FESTA MAIS DOCE DO BRASIL: PIRANGUINHO E A FESTA DO MAIOR PÉ DE MOLEQUE DO
MUNDO ................................................................................................................................938
LUCAS INÁCIO RODRIGUES ....................................................................................... 938
EDUCAÇÃO E TRABALHO NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC): LINGUAGEM,
INSTITUIÇÕES E PRÁTICAS SOCIAIS ......................................................................................948
LUCIANA NOGUEIRA, JUCIELE PEREIRA DIAS ............................................................. 948
MEMÓRIAS E SIMBOLOGIAS: A LINGUAGEM IDENTITÁRIA DOS SINOS DA CIDADE DE SÃO
JOÃO DEL- REI ......................................................................................................................959
LUCIANE ANDREA DE OLIVEIRA, MARIA GORETTI LIMA GUIMARÃES, PATRICIA PEIXOTO
CARNEIRO VIEGAS, RAFAEL JOSÉ DE SOUSA .............................................................. 959
FOTOGRAFIA COMO FERRAMENTA PEDAGÓGICA ...............................................................964
LUDMILA MAGALHÃES NAVES, DALVA DE SOUZA LOBO ............................................ 964
FOTOGRAFIA COMO ARTE LITERÁRIA NA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS ..................................974
LUDMILA MAGALHÃES NAVES, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ............................. 974
A RELAÇÃO ALUNO-ESCRITA: QUESTÕES RELATIVAS À DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NO
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO ............................................................................................981
13
LUZIA ALVES ............................................................................................................. 981
LINGUAGEM POÉTICA COMO ESTRATÉGIA PARA AQUISIÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DA LEITURA
.............................................................................................................................................992
MARAISA DOS SANTOS, DALVA DE SOUZA LOBO ....................................................... 992
DIREITO E LINGUAGEM: HERMENÊUTICA E DESVELAMENTO DO SER ...............................1000
MARCELA ANDRADE DUARTE, RAFAEL LAZZAROTTO SIMIONI ................................. 1000
UM OLHAR BAKHTINIANO PARA O FILME “A CHEGADA” ...................................................1009
MARCELA ARANTES MEIRELLES, TÂNIA MARA SILVEIRA DIAS .................................. 1009
ASPECTOS LINGUÍSTICO-EDUCACIONAIS DA TEORIA CULIOLIANA .....................................1016
MARCOS LUIZ CUMPRI ........................................................................................... 1016
A ESCRITA DO GÊNERO ACADÊMICO ENSAIO: UMA REFLEXÃO SOBRE ARGUMENTATIVIDADE
E AUTORIA ..........................................................................................................................1024
MARIA DA PENHA BRANDIM DE LIMA, MARIA CRISTINA RUAS DE ABREU MAIA ...... 1024
SOBRE A LINGUAGEM DE MOBILIZAÇÃO E RESISTÊNCIA POLÍTICA NO ESPAÇO DA INTERNET,
ATRAVÉS DE TEXTOS “MANIFESTOS” .................................................................................1034
MARIA DO CARMO DE OLIVEIRA MOREIRA DOS SANTOS......................................... 1034
O POLÍTICO NA LINGUAGEM: UMA ANÁLISE DE DICIONÁRIOS ESPECIALIZADOS SOBRE A
ESCRAVIDÃO NEGRA NO BRASIL ........................................................................................1044
MARIA FERNANDA FACCIPIERI SILVA ...................................................................... 1044
O DINAMISMO DA LINGUAGEM NA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA ........................................1056
MARIA GORETE FERREIRA....................................................................................... 1056
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E A MIDIATIZAÇÃO DO TRABALHO E DO TRABALHADOR: O
LUGAR DA REALIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL ...................................................1063
MARIA ISABEL BRAGA SOUZA ................................................................................. 1063
ANÁLISE DO DISCURSO VIA “OS POEMAS” DE MÁRIO QUINTANA .....................................1071
MARIA NICOLAU .................................................................................................... 1071
GRAFOS NA LEITURA DE AD ...............................................................................................1082
MARIANA GARCIA DE CASTRO ALVES ...................................................................... 1082
A BÍBLIA COMO TEXTO LITERÁRIO EM MOTION GRAPHICS: O QUE PENSAM OS LEITORES
INTERNAUTAS ....................................................................................................................1089
MARIANA JUNIA GOUVEA DOS SANTOS, CYNTHIA AGRA DE BRITO NEVES ............... 1089
A PERSPECTIVA TEOLÓGICA FEMINISTA E A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO EQUIVALENTE
DO FEMININO.....................................................................................................................1099
MARIANA REZENDE DINI ........................................................................................ 1099
ARGUMENTAÇÃO E MULTIMODALIDADE: UMA ANÁLISE DOS MECANISMOS ENUNCIATIVOS
PRESENTES EM GÊNEROS MULTIMODAIS ..........................................................................1108
MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA, CLAUDIA ALVES PEREIRA BRAGA .................... 1108
A CRIAÇÃO IMAGINÁRIA E RELEITURA DE IMAGENS: UM ESTUDO SOBRE A LINGUAGEM DA
CRIANÇA .............................................................................................................................1118
14
MELINA CARVALHO BOTELHO, ILSA DO CARMO VIEIRA GOULART ........................... 1118
NAS NOTAS DE ALENCAR: REFLEXÕES ACERCA DO FEMININO ...........................................1127
MILENA PALHA, VANISE MEDEIROS ........................................................................ 1127
A EDUCAÇÃO E O ALUNO EM PROPAGANDAS GOVERNAMENTAIS, UM OLHAR PARA AS
REPETIÇÕES ........................................................................................................................1133
MILENE MACIEL CARLOS LEITE ................................................................................ 1133
A APRENDIZAGEM DA ESCRITA E SUAS IMPLICACÕES NA VIDA DO SUJEITO SURDO .........1139
MIRIAM MAIA DE ARAÚJO PEREIRA ........................................................................ 1139
ENQUADRANDO O CONCEITO “CORRUPÇÃO: UMA ANÁLISE COGNITIVA E DISCURSIVA DAS
METÁFORAS SOBRE CORRUPÇÃO ......................................................................................1149
NATÁLIA ELVIRA SPERANDIO .................................................................................. 1149
A PRODUÇÃO DAS BIBLIOTECAS DIGITAIS E A QUESTÃO DOS DIREITOS AUTORAIS NO GESTO
DE COMPARTILHAR ............................................................................................................1157
NATÁLIA RODRIGUES SILVA ..................................................................................... 1157
EDUCAÇÃO PARA O PENSAR: UMA EXPERIÊNCIA EM PIRANGUINHO-MG .........................1165
NATANAEL DOS SANTOS SILVA, ELIZABETH DA SILVA .............................................. 1165
O COBRADOR, DE RUBEM FONSECA: O RECURSO DA VIOLÊNCIA ATRAVÉS DOS PALAVRÕES
...........................................................................................................................................1172
NATANAEL LUIZ ZOTELLI FILHO ............................................................................... 1172
O NOME PRÓPRIO DE ESCRAVO NAS CARTAS DO CONDE DO PINHAL ...............................1183
NAYARA FERNANDA DORNAS, SOELI MARIA SCHREIBER DA SILVA .......................... 1183
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A LEITURA DE TEXTOS FÍLMICOS NA PERSPECTVA DA ANÁLISE
DE DISCURSO: OUTROS SENTIDOS POSSÍVEIS ....................................................................1193
NEURES BATISTA DE PAULA SOARES, EDINETH FRANÇA SOUSA SILVA ALVES ........... 1193
UMA VOZ DA MANTIQUEIRA NA INTERNET: A PORTEIRA DO MATO .................................1199
NILO SERGIO S. GOMES, IRIS AGATHA DE OLIVEIRA ................................................. 1199
MOVIMENTOS ARGUMENTATIVOS DA ESCRAVIDÃO E DA ANTIESCRAVIDÃO NO JORNAL O
ABOLICIONISTA ..................................................................................................................1205
NIRCE APARECIDA FERREIRA SILVÉRIO .................................................................... 1205
SEMIÓTICA: A PERCEPÇÃO DOS TERMOS JURÍDICOS .........................................................1214
PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS, BRUNO VIEGAS DOS SANTOS ....................... 1214
CORPO E SUBJETIVIDADE EM I WANT A FAMOUS FACE .....................................................1224
PAULA CHIARETTI ................................................................................................... 1224
A PUBLICIDADE EM DIFERENTES CONTEXTOS: IMPACTOS DAS TECNOLOGIAS NA
(RE)CONFIGURAÇÃO DO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO .............................................................1229
PAULA SILVA ABREU, MAURICEIA SILVA DE PAULA VIEIRA ...................................... 1229
CONTORNOS DE UMA VIDA A PARTIR DE UM DISCURSO DE POSSE ..................................1239
POLLYANNA JÚNIA FERNANDES MAIA REIS ............................................................. 1239
15
OS JOGOS DE (DES)CONSTRUÇÃO IMAGÉTICA EM UMA NARRATIVA DE VIDA ..................1247
POLLYANNA JÚNIA FERNANDES MAIA REIS ............................................................. 1247
ANALFABETISMO E LETRAMENTO SOCIAL: AS DIVERSAS FORMAS DE APRENDER .............1257
POLLYANNA MARIA RESENDE, CAROLINNE MACHADO BARRA, DÉBORAH OLIVEIRA
SILVA ..................................................................................................................... 1257
DISPUTAS SIMBÓLICAS NO CAMPO ESCOLAR ....................................................................1263
RAFAEL XAVIER TOLENTINO .................................................................................... 1263
IMAGINÁRIOS DA SEXUALIDADE: PROBLEMAS DE GÊNERO ..............................................1271
RAÍSSA RODRIGUES DE CARVALHO ......................................................................... 1271
EFEITOS DE SENTIDO, INTERDISCURSO E MEMÓRIA: UM EXAME DOS MEMES “NEGO ISSO,
NEGO AQUILO” ..................................................................................................................1280
RAQUEL COSTA GUIMARÃES NASCIMENTO, ERISLANE RODRIGUES RIBEIRO ............ 1280
A CONSTRUÇÃO DOS SUJEITOS BRASILEIROS NA ENUNCIAÇÃO PRESIDENCIAL DE GETÚLIO
VARGAS: UMA ANÁLISE SEMÂNTICA DA PROCLAMAÇÃO DE 1937 ....................................1288
RENATA ORTIZ BRANDÃO ....................................................................................... 1288
DISPOSITIVO E DISCURSO NO DESIGN DA PRIMEIRA PÁGINA DO JORNAL IMPRESSO .......1298
RICARDO AUGUSTO ORLANDO ............................................................................... 1298
INTERAÇÃO E ORALIDADE NOS BLOGS DE VIAGEM: uma análise do blog Esse Mundo é Nosso
...........................................................................................................................................1309
ROBERTA VIEIRA FÁVARO GÜNTHER ....................................................................... 1309
A COMPLEXIDADE DO FORMALISMO DA LINGUAGEM JURÍDICA FRENTE À PRECARIEDADE DA
COMPREENSÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA ......................................................................1318
RODRIGO RIOS FARIA DE OLIVEIRA ......................................................................... 1318
“O MUNDO TEM UMA NOVA EMBALAGEM”: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA CAMPANHA
PUBLICITÁRIA DA VALE FÉRTIL ...........................................................................................1326
ROSANA CRISTINA GIMAEL ..................................................................................... 1326
LINGUAGEM ORAL, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA: A FORÇA DO CANDOMBLÉ E DA “DANÇA DE
SANTO” ..............................................................................................................................1336
SANDRA CORDEIRO MOLINA .................................................................................. 1336
A PROJEÇÃO IMAGINÁRIA DA/PARA ESCOLA DO CAMPO ..................................................1343
SANDRA REGINA SILVA, ANA LUIZA ARTIAGA RODRIGUES DA MOTTA ..................... 1343
A MATERIALIDADE VERBAL E A NÃO VERBAL: UM OLHAR DISCURSIVO PARA A OBRA DE
CLARICE FREIRE ..................................................................................................................1351
SARA JONAS DE ASSIS, STELLA MARIS RODRIGUES SIMÕES ..................................... 1351
ESTRATÉGIAS DE CATEGORIZAÇÃO/REFERENCIAÇÃO NA FALA DE UMA ESTUDANTE
SECUNDARISTA ..................................................................................................................1358
SÉRGIO CASIMIRO .................................................................................................. 1358
A LEITURA LITERÁRIA NA AFIRMAÇÃO DA SUBJETIVIDADE ................................................1367
SIMONE APARECIDA BOTEGA, ANDRÉA PORTOLOMEOS ......................................... 1367
16
SENTIDOS QUE EMANAM DO MATERIAL DE DIVULGAÇÃO DE CAMPANHAS DA DENGUE NO
MUNICÍPIO DE VARGINHA ..................................................................................................1374
SIMONE CATARINA SILVA ARCHANJO ..................................................................... 1374
ARGUMENTAÇÃO, ARGUMENTATIVIDADE E PERSPECTIVAÇÃO NA CARTA DO ESCRAVO
FELÍCIO E NA LEI NA ATUALIDADE ......................................................................................1382
SOELI MARIA SCHREIBER DA SILVA ......................................................................... 1382
A PROPOSTA DE REDAÇÃO DO ENEM: MEMÓRIA DISCURSIVA EM BLOCO .......................1389
STELLA MARIS RODRIGUES SIMÕES ........................................................................ 1389
O DISCURSO DO RISCO EM HIV/AIDS E A PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES .......................1398
STÉPHANIE LYANIE DE MELO E COSTA ..................................................................... 1398
O DISCURSO SOBRE O ENSINO MÉDIO NOS PROJETOS VOLTADOS À PROFISSIONALIZAÇÃO
...........................................................................................................................................1410
TAMYRES CECÍLIA DA SILVA .................................................................................... 1410
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ENSINO MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE: RELAÇÕES ENTRE
LINGUAGEM E TRABALHO ..................................................................................................1419
TAMYRES CECÍLIA DA SILVA .................................................................................... 1419
DIZENDO DO CORPO COM O CORPO: ANÁLISE DE UMA PERFORMANCE EMBLEMÁTICA DO
FEMINISMO ........................................................................................................................1428
TELMA DOMINGUES DA SILVA ................................................................................ 1428
A ESPACIALIZAÇÃO DA LEITURA NO JORNAL, DA CIDADE AO DIGITAL ...............................1435
TELMA DOMINGUES DA SILVA ................................................................................ 1435
ANÁLISE ARGUMENTATIVA DAS NARRATIVAS FEMININAS SOBRE O ABORTO DE FETOS
ANENCÉFALOS ....................................................................................................................1441
TATIANA AFFONSO FERREIRA PAIVA ....................................................................... 1441
BELA, RECATADA E DO LAR: UM OLHAR SOBRE A IMAGEM DA MULHER BRASILEIRA .......1452
TATIANA BARBOSA DE SOUSA ................................................................................ 1452
DISCURSO E MÍDIA: MARCELO CRIVELLA NAS ELEIÇÕES DO RIO DE JANEIRO ....................1462
TATIANE DOS SANTOS ALVES, EDVANIA GOMES DA SILVA....................................... 1462
A FORÇA DAS PALAVRAS: OS SENTIDOS DO SUCESSO ........................................................1467
THIAGO SOARES ..................................................................................................... 1467
“A MARCHA DA FAMÍILIA COM DEUS PELA LIBERDADE” (1964 E 2014): CONSTRUÇÃO DO
ACONTECIMENTO E PAPEL ATRIBUÍDO À MULHER PELO JORNAL “O GLOBO” ..................1476
TÚLIO SOUSA VIEIRA, WILLIAM AUGUSTO MENEZES ............................................... 1476
DISCURSO E TURISMO: A FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO EM SILVIANÓPOLIS –
MINAS GERAIS ....................................................................................................................1487
VANESSA JUNQUEIRA MEGALE, ANDREA SILVA DOMINGUES .................................. 1487
JUVENTUDE, REDES E TRANSTORNOS ALIMENTARES:UMA ESCUTA DISCURSIVA DOS
SUJEITOS DA ANOREXIA E DA BULIMA ...............................................................................1496
WEDENCLEY ALVES SANTANA, NATHÁLIA VILLANE RIPPEL ....................................... 1496
17
A MÍDIA IMPRESSA NEOPENTECOSTAL SOBRE O GÊNERO E A SEXUALIDADE....................1506
WELLTON DA SILVA DE FATIMA .............................................................................. 1506
18
Apresentação
O VII Encontro de Estudos da Linguagem e VI Encontro
Internacional de Estudos da Linguagem – Enelin 2017 – foi promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da
Universidade do Vale do Sapucaí (Univás), através de seu Núcleo de
Pesquisas em Linguagem (Nupel). Com o tema “Linguagem, Instituições e
Práticas Sociais”, o evento foi realizado na Univás, em Pouso Alegre, de 04 a
06 de outubro de 2017. Participaram como convidados para Conferências e
Mesas-Redondas pesquisadores do Uruguai, da Itália e de diversas regiões do
Brasil. Essas relações de intercâmbio têm contribuído para o avanço das
pesquisas em ciências da linguagem.
Durante os três dias de atividades, os participantes prestigiaram e
contribuíram com as Sessões Coordenadas, sessões de Comunicações
Individuais, sessões de Pôsteres, além de uma apresentação musical regional
e lançamento de livros. Todas essas atividades proporcionaram um produtivo
intercâmbio de pesquisas nos diferentes domínios dos estudos da linguagem e
um debate com áreas afins. Isso contribuiu para fazer circular a produção de
conhecimento acadêmico que se vem desenvolvendo na universidade e, ao
mesmo tempo, fortalecer o espaço de reflexão com os trabalhos produzidos por
pesquisadores de outras instituições brasileiras e do exterior.
Esta sétima edição do evento teve ampla divulgação e contou com a
presença de diversos docentes, discentes e interessados em geral não só da
região sul-mineira, mas de todo o país, ampliando significativamente o número
de participantes no evento. Neste ano, participaram do evento com inscrição e
apresentação de trabalho 110 professores pesquisadores, 167 alunos de pósgraduação, 101 alunos de graduação, 38 professores da Rede Básica de
Ensino, sendo que o encontro recebeu inscrições de todas as regiões do Brasil
e também do exterior.
Vale destacar que a crescente participação de graduandos e pósgraduandos de diferentes IES de todo o Brasil demonstra a contínua inserção
social do PPGCL em Pouso Alegre, na região sul de Minas, e em todo o país,
no trabalho de difusão científica. Ao lado disso, o Enelin vem contribuindo para
a circulação de trabalhos de discentes e docentes do PPGCL, bem como de
outros alunos e discentes de outras IES, por meio das apresentações de
trabalhos no evento, e também por meio da publicação dos trabalhos
apresentados. Como forma de divulgar e fazer circular esses trabalhos é que
publicamos os Anais do Enelin 2017.
A comissão organizadora do evento agradece à Fundação de Ensino
Superior do Vale do Sapucaí, à Universidade do Vale do Sapucaí, às agências
de fomento, CAPES e FAPEMIG, e a todos os colaboradores (professores,
monitores, funcionários e técnicos) que ajudaram a promover a organização e o
sucesso do Enelin 2017, que resultou na presente publicação.
19
TEXTOS COMPLETOS
20
UMA ANÁLISE ENUNCIATIVA DA PALAVRA
“POESIA” EM UM LIVRO DIDÁTICO
ADILSON VENTURA
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Departamento de Estudos Linguísticos e Literários
Programa de Pós Graduação em Linguística – PPGLIN
Endereço: Estrada do Bem Querer, km 4, Caixa Postal 95
Vitória da Conquista – BA CEP: 45083-900
adilson.ventura@gmail.com
Resumo. O objetivo desse trabalho é analisar os sentidos da palavra
“poesia” no livro didático “Português: Linguagens, 8º ano” de Cereja e
Magalhães. Para tanto, nos posicionaremos na Semântica do
Acontecimento, considerando que os estudos do sentido devem se
localizar na enunciação, no acontecimento do dizer. Como procedimentos
de análise, utilizaremos a reescritura e articulação, podendo, assim,
estabelecer o Domínio Semântico de Enunciação (DSD) dessa palavra
neste texto.
Palavras-chave. Enunciação, Poesia, Semântica do Acontecimento,
Sentidos, DSD.
Abstract. The aim of this paper is to analyze the meanings of the word
"poetry" in the textbook "Portuguese: Linguagens, 8º ano" by Cereja and
Magalhães. To do so, we will focus on Semantics of the Event,
considering that the studies of meaning must be located in enunciation, in
the event of saying. We will use the rewriting and articulation as analysis
methods, being able to establish the Semantic Domain of Determination
(DSD) of this word in this text.
Keywords: Enunciation, Poetry, Semantics of the Event, Senses, DSD.
1. Introdução
Esse trabalho faz parte de um projeto de pesquisa que desenvolvemos na
UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) que tem por objetivo entender
os sentidos do que seja interpretação em livros didáticos. Pensamos que entender
como o livro didático apresenta a interpretação é de fundamental importância, na
medida em que este material é muito usado nas escolas e, por isso, atua de forma
decisiva na formação dos alunos, indicando-lhes como devem interpretar textos,
conceitos, imagens, etc. Assim, dentre esses conceitos, observamos a construção
dos sentidos de poesia na Unidade I do livro didático “Português: Linguagens, 8º
ano” de Cereja e Magalhães (2009). Com isso podemos ver o que o livro traz como
o que é poesia, e, ao mesmo tempo, observamos como se constrói a interpretação
de poesias no livro didático. Além disso, pensamos que a construção de sentidos é
uma questão ética, na medida em que, ao se atribuir determinados sentidos a um
conceito específico, a nossa relação com o mundo é dirigida de um determinado
modo. Pensamos, como exemplo, se consideramos determinado sentido para
família, acreditamos que família seja somente uma coisa, excluindo outras
possibilidades (outros sentidos) para o que seja família, o que, de determinado
21
modo, pode construir um preconceito social.
2. Semântica do Acontecimento
Para essa análise, como já dissemos, nos colocaremos na perspectiva
teórica da Semântica do Acontecimento, que considera que “o estudo do sentido da
linguagem deve localizar-se na enunciação, no acontecimento do dizer.”(Guimarães,
2002, p.7). Sendo assim, colocando-se numa posição enunciativa dos estudos do
sentido, considera-se que a enunciação é uma relação do locutor com a língua.
Para descrever esta relação, há os procedimentos metodológicos de análise, que
são a reescrituração e a articulação, os quais são observados num acontecimento
enunciativo específico para que assim possamos ter quais são os sentidos de uma
determinada forma em um texto. A reescrituração é o mecanismo no qual um
elemento linguístico faz-se presente em vários momentos do texto, ou seja, ele é
reescriturado de diversas formas ao longo do texto, e isso acaba por predicar algo
ao elemento reescriturado, isto é, constrói seus sentidos nesse texto específico. A
articulação diz respeito às relações contíguas, ou seja, as relações semânticas de
uma forma linguística com outras que não são a sua reescritura (Guimarães, 2009).
Lembrando aqui que a Semântica do Acontecimento, diferentemente da Linguística
Textual, considera que o texto é uma dispersão de sentidos.
Ao trazer o Acontecimento, entramos na questão da temporalidade. Assim,
não se considera o tempo linearmente, como uma sequência natural. Em cada
acontecimento, há um embate de tempos funcionando, no qual o acontecimento
recorta enunciações passadas e projeta uma futuridade de significações. Nas
palavras de Guimarães (2002, p.12)
De um lado ela se configura por um presente que abre em si uma
latência de futuro (uma futuridade), sem a qual não há
acontecimento de linguagem, sem a qual nada é significado, pois
sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de
interpretável. O acontecimento tem como seu um depois
incontornável, e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem
significa porque projeta em si mesmo um futuro. Por outro lado este
presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um
passado que os faz significar. Ou seja, esta latência de futuro, que,
no acontecimento projeta sentido, significa porque o acontecimento
recorta um passado como memorável.
E esta temporalidade acontece sempre em espaços de enunciação
determinados, ou seja, em espaços nos quais ocorrem a relação entre línguas e
falantes. Porém, esta relação não é pensada enquanto uma relação empírica, e sim
enquanto “um espaço regulado e de disputas pela palavra e pelas línguas”
(Guimarães, 2002, p.18). Sendo, portanto, um espaço político, aqui pensado como
um conflito entre uma divisão normativa do real e disputas pela palavra, pelos
sentidos, ou seja, estabelece-se uma divisão do real, porém esta divisão é sempre
redividida, por conta dos conflitos entre falantes e línguas, conflitos que
estabelecem sentidos e, ao mesmo tempo, abrem a possibilidade para novos
sentidos.
Para este trabalho em específico, iremos mobilizar estes conceitos
apresentados logo acima. Passamos agora para as análises do corpus.
3. Análise do corpus
22
Como já dissemos, nesse trabalho iremos analisar a construção dos sentidos
de poesia na Unidade I do livro didático “Português: Linguagens, 8º ano” de Cereja
e Magalhães (2009). A análise será no livro do professor e isso nos interessa na
medida em que, quando a palavra está em um exercício, temos acesso às
respostas que o livro propõe. E essas respostas podem nos indicar o modo como a
interpretação é entendida nesse livro.
Na Unidade I temos 6 poesias usadas como motivadores para exercícios, os
quais trazem questões de algum ponto gramatical e também questões de
interpretação. Desses seis exercícios, trouxemos para este trabalho a metade, ou
seja, três exercícios. O primeiro dos exercícios está na página 29:
Imagem 1: Poema Honoris Causa in Cereja e Magalhães (2009, p.29)
Imagem 2: Exercício sobre o Poema Honoris in Causa Cereja e Magalhães (2009, p.30)
Neste exercício temos a palavra “poema” sendo uma reescritura de poesia e
esta palavra articulada a título e a verso. Sendo assim, temos o seguinte DSD:
DSD 1: DSD da palavra poema no primeiro exercício
Neste primeiro DSD temos então a palavra “poema” sendo determinada por
“título” e por “verso”, ou seja, poema é um tipo de texto que possui um título e
também é escrito em versos.
No segundo exercício temos:
23
Imagem 3: Poema Pois é in Cereja e Magalhães (2009, p.31)
Nesse exercício temos uma reescrituração de poesia por poema e também
uma reescrituração de poesia por canção, construindo uma relação de sinonímia.
Além disso, temos uma articulação de poema com “como você sabe”, com “eu lírico”
que, por sua vez, se articula com “voz que fala nos versos”; também temos uma
articulação de poema com estrofe, caracterizando assim o DSD desse exercício:
DSD 2: DSD da palavra poema no primeiro exercício.
Neste segundo DSD, temos que “poema” está numa relação de sinonímia
com “canção”, sendo que estes dois termos são determinados por “como já se
sabe”, por “estrofe” e por “eu-lírico”, que é determinado por “voz que fala nos
versos”. Esta construção nos permite ver que os sentidos de “poema” são
construídos dessa forma como descrevemos, o que já aponta para um sentido de
que todos já sabem o que seja poesia.
No terceiro e último exercício, temos:
Imagem 4: Poema Quiproquó in Cereja e Magalhães (2009, p.41)
24
Imagem 5: Exercício sobre o Poema Quiproquó in Cereja e Magalhães (2009, p.41 e 42)
Nestes exercícios observamos novamente a reescritura de poesia por
poema, sendo que este aparece articulado com estrofes, versos, título e eu-lírico. A
partir dessas reescrituras e articulações, temos um outro DSD:
DSD 3: DSD da palavra poema no terceiro exercício
Neste outro DSD podemos observar que, conforme no segundo, a palavra
“poema” é determinada por “estrofes” e por “eu-lírico”. Porém, temos agora duas
determinações que apareceram no primeiro DSD, que são por “título” e por “versos”.
Assim constituído este DSD, temos que o “poema” possui uma forma específica, na
qual é escrita em versos e em estrofes, por um eu-lírico que dá um título a este texto
específico, ou seja, o poema. E com esse conjunto de análises, chegamos ao
seguinte DSD:
DSD 4: DSD da palavra poema na Unidade I
Com este DSD temos certos sentidos de “poesia” que, conforme já dissemos,
coloca a poesia num sentido estável, de que já se sabe o que é por conta de ser um
texto escrito em versos e estrofes. Assim, ao estabelecer este sentido, temos
instaurado um conflito (político), pois, assim configurada, a poesia já tem um lugar
específico, não trazendo outras possibilidades de textos poéticos nesse Espaço de
Enunciação. Com isso, nesse espaço constroem-se leitores nos quais somente será
poesia o que estiver escrito em versos e estrofes.
Além da análise de “poesia”, uma outra questão nos chamou a atenção nas
análises feitas até o momento. No que concerne aos exercícios, pela análise ser no
livro do professor, temos acesso às respostas propostas, as quais, geralmente, são
25
tratadas como as respostas corretas, tanto por professores quanto por alunos.
Temos, nos três exercícios, o seguinte:
Exercício 1
2 questões gramaticais
1
questão
sobre
interpretação
–
Resposta Pessoal mas,
no livro do professor,
tem uma sugestão da
resposta correta
Exercício 2
3 questões sobre
interpretação, sendo que
uma possui a resposta
correta, a outra é uma
resposta pessoal, mas
tem uma sugestão. A
terceira é de copiar no
texto.
Exercício 3
Possui 6 questões sendo
que duas são sobre
gramática e 4 de
interpretação.
•
Dessas questões sobre
interpretação, as de
número 3, 4 e parte a e b
da 5 são de respostas
unívocas, ou seja, são
certas ou erradas. A letra
c da número 5 é com
resposta aberta, mas
possui sugestão. A
questão número 6 é de
interpretação, porém é
objetiva.
Tabela 1 – Exercícios e respostas
Assim, nas relações que observamos nessas respostas, podemos dizer que a
interpretação, quando ocorre nos exercícios, coloca a resposta ou em uma relação
biunívoca, isto, de resposta correta ou errada, na medida em que o livro já traz qual
é essa resposta. Em outras possibilidades, temos que o livro deixa a resposta como
pessoal, mas, ao mesmo tempo, o livro traz uma sugestão, o que, neste espaço de
enunciação, coloca que há uma resposta correta, a apontada pelo livro. Ainda temos
uma outra possibilidade, já que há uma relação com copiar no texto. Dessa forma,
mesmo tendo uma poesia para motivar a fazer os exercícios, não há questões que
contemplem a poesia em si, isto é, há questões de interpretação, mas nada que
traga uma especificidade para este tipo de texto, ou seja, qualquer texto poderia
estar neste lugar.
Um outro ponto interessante a se pensar é que, como dissemos na
introdução, estabelece-se um sentido para interpretação de texto no qual todos
podem interpretar, mas que somente o livro didático possui a resposta correta. Isto
traz um memorável no acontecimento de que, na escola, sempre tem que se buscar
a resposta correta, o que, em certa medida, faz com que não exista a interpretação,
e sim a busca por esta resposta ou senão simplesmente fazer uma cópia do texto
motivador.
4. Considerações finais
Com estas análises feitas na Unidade I do livro didático “Português:
Linguagens, 8º ano” de Cereja e Magalhães (2009), podemos observar uma
26
construção de sentidos para poesia na qual esta é identificada pelo formato, pelas
relações entre versos e estrofes. Por outro lado, a interpretação de texto fica no
lugar do logicamente estabilizado, isto é, interpretar é descobrir a resposta correta.
Como dissemos no início, ao se colocar, no momento de aprendizagem, os
sentidos de um conceito de determinado modo, temos funcionando uma questão
ética, ou seja, instaura-se uma futuridade na qual poesia será sempre escrita em
versos e estrofes, e interpretação é a de acertar a resposta correta ou copiar partes
do texto. Essa futuridade traz, de certo modo, uma possibilidade de que os futuros
alunos não percebem a poeticidade de certos textos e também uma incapacidade
de interpretar textos. Pensamos que a importância de se analisar o livro didático
está em poder observar os sentidos desses e de outros conceitos, para assim poder
propor alternativas para se pensar a constituição de sentidos e, de certa maneira,
construir uma outra divisão no espaço de enunciação das escolas no Brasil.
5. Referências
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza
Linguagens, 8º ano. São Paulo: Editora Saraiva, 2009
Cochar.
Português:
GUIMARÃES, Eduardo. Semântica do Acontecimento. Campinas: Pontes, 2002.
GUIMARÃES, Eduardo. A Enumeração: Funcionamento Enunciativo e Sentido. In:
Cadernos de Estudos Linguísticos 51 (1). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
27
RELAÇÃO ENTRE LÍNGUAS: OS CENTROS
DE ESTUDOS DE LÍNGUAS (CEL-SP) E A
CONFIGURAÇÃO DE UM ESPAÇO DE
ENUNCIAÇÃO
ADRIANA DA SILVA
Universidade Federal de São Carlos- (UFSCar)
Programa de Pós Graduação em Linguística – Prédio CECH (Centro Educação e
Ciências Humanas)-UFSCar Rodovia Washington Luís, Km 235 – São Carlos-SPCEP-13565-905
silvadri2015@gmail.com
Resumo. Fundamentado no quadro teórico da Semântica do
Acontecimento (GUIMARÃES, 2002), este estudo tem como objeto o
espaço de enunciação regulado pelo Centro de Estudo de Línguas (CELSP), um órgão criado pelo governo do Estado de São Paulo em
decorrência da necessidade da implantação da língua espanhola nas
escolas públicas, no contexto da política de integração do Brasil na
Comunidade Latino-americana, no final da década de 80. Atualmente, a
língua espanhola também divide espaço com outras línguas estrangeiras,
oferecidas pelo Centro. Além de estabelecer uma proximidade linguística
com outros países, o CEL também objetiva ampliar as habilidades do
falante para a inserção no mercado de trabalho. Esse projeto contempla
somente a rede pública. Assim, só os alunos que estão matriculados a
partir do 7º ano do Ensino Fundamental do ensino regular, ensino médio,
e da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que podem ingressar nos
cursos de línguas. Nosso corpus é composto pelo decreto de criação do
CEL e resoluções que estabeleceram as normas de seu funcionamento,
as quais nos permitiram dar visibilidade ao espaço de enunciação
regulado pelo Centro, em que o falante da língua portuguesa é
subjetivado em uma relação com o Estado e, dessa forma, é identificado
como usuário de uma língua estrangeira. E, para nossas análises,
fizemos uso do aporte metodológico da textualidade, o que nos auxiliou
na investigação e na análise dos dados já coletados.
Palavras-chave. Enunciação; língua portuguesa; Cel.
Resumen. En el marco teórico de la Semántica del Acontecimiento
(GUIMARÃES, 2002), este estudio tiene como objeto el espacio de
enunciación regulado por el Centro de Estudio de Lenguas (CEL-SP), un
órgano creado por el gobierno del Estado de São Paulo como
consecuencia de la necesidad de la implantación de la lengua española
en las escuelas públicas, en el contexto de la política de integración de
Brasil en la Comunidad Latinoamericana, a finales de la década de los
80. Actualmente, la lengua española también divide espacio con otras
lenguas extranjeras ofrecidas por el Centro. Además de establecer una
proximidad lingüística con otros países, el CEL también objetiva ampliar
las habilidades del hablante para la inserción en el mercado de trabajo.
Este proyecto contempla solamente la red pública. Así, sólo los alumnos
que están matriculados a partir del 7º año de la enseñanza primaria de la
enseñanza regular, la enseñanza media, y la educación de jóvenes y
adultos (EJA) que pueden ingresar en los cursos de idiomas. Nuestro
28
corpus está compuesto por el decreto de creación del CEL y resoluciones
que establecieron las normas de su funcionamiento, las cuales nos
permitieron dar visibilidad al espacio de enunciación regulado por el
Centro, en el que el hablante de la lengua portuguesa es subjetivado en
una relación con el Estado y, de esta forma, se identifica como usuario de
una lengua extranjera. E, para nossas análises, fizemos uso do aporte
metodológico da textualidade, o que nos auxiliou na investigação e na
análise dos dados já coletados.
Palabras clave. la enunciación; lengua portuguesa; CEL.
Este trabalho tem como objeto o espaço de enunciação regulado pelo Centro
de Estudo de Línguas (CEL-SP), um órgão criado pelo governo do Estado de São
Paulo em decorrência da necessidade da implantação da língua espanhola nas
escolas públicas, no contexto da política de integração do Brasil na Comunidade
Latino-americana, no final da década de 80.
Nosso corpus é composto pelo decreto de criação do CEL e resoluções que
estabeleceram as normas de seu funcionamento, as quais nos permitiram dar
visibilidade ao nosso objetivo de pesquisa, ao estudarmos o Centro como órgão
regulador na relação entre línguas, em que o falante da língua portuguesa é
subjetivado em uma relação com o Estado em um processo de individualização que
o identifica e o distingue assim, linguisticamente.
Lembramos aqui que consideramos o espaço de enunciação tal como
compreende Guimarães (2002):
Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de
línguas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem,
transformam por uma disputa incessante. São espaços “habitados”
por falantes, ou seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer
e aos modos de dizer. (GUIMARÃES, 2002, p. 18).
Nesse espaço, segundo o autor, temos a configuração de um locutor,
representado por (L) o qual ocupa um lugar social do dizer representado por (l-x),
esse lugar social é a posição que o falante ocupa como, por exemplo, l-professor, laluno, l- coordenador e assim por diante. Isso significa que o falante é afetado
enquanto a posição social que ele ocupa, a qual o autoriza a dizer certas coisas e
não outras. Desse modo, o autor considera que o locutor é dispare a si. “Sem esta
disparidade não há enunciação.” (GUIMARÃES, 2002, p. 24).
Para melhor caracterizarmos essa representação é necessária a descrição
das cenas enunciativas que são especificações locais nos espaços de enunciação.
Assim, compreendemos que a cena enunciativa coloca também em jogo,
além dos locutores, ou seja, do lugar social, lugares de dizer, que a partir do autor
mencionado, chamaremos por enunciadores. Estes se apresentam como a
representação da inexistência dos lugares sociais do locutor.
Desse modo, estes enunciadores, se posicionam na cena enunciativa, e nos
espaços de enunciação por três formulações distintas, são elas:
Enunciador-individual, que se caracteriza simplesmente por um lugar de
dizer. Ex.: “Ficam criados, no âmbito da rede estadual de ensino, Centros de
Estudos de Línguas.”
Enunciador-genérico, que se constitui como o apagamento do lugar social,
onde o que se diz é dito como aquilo que todos dizem, como temos o dito popular.
Ex.:”Quem muito quer nada tem.”
Enunciador-universal, que se apresenta como não sendo social, ou seja,
fora da história e acima dela, onde se diz sobre o mundo. Ex.: discurso religioso,
29
discurso cientifico, discurso jurídico (decreto de criação dos Centros).
Quanto a nossa análise, elegemos aqui fazer uma descrição com base na
textualidade, por meio da categoria analítica da reescrituração, e articulação, tal
qual Guimarães (2007). Para o autor, a reescrituração é o “procedimento pelo qual a
enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar
uma forma como diferente de si”. Este procedimento atribui (predica) algo ao
reescriturado (GUIMARÃES, 2007, p. 84).
E a articulação, segundo Guimarães (2007) “diz respeito às relações próprias
das contiguidades locais, como o funcionamento de certas formas afetam outras
que elas não redizem. Estes procedimentos enunciativos são próprios de relações
no interior dos enunciados ou na relação entre eles”. Em outras palavras, é a forma
como um elemento do texto estará relacionado aos que estão ao seu lado.
(Guimarães 2007 p. 88)
Ao considerarmos a enunciação enquanto constituinte da relação entre
falante e língua, analisamos não só palavras ou sentenças, mas textos que se
constituem como uma “unidade de sentido integrada por enunciados”
(GUIMARÃES, 2010, p. 22).
A relação de integração permite tomar os elementos não como estando em
relação de soma e linearidade, mas como parte integrante do texto como um todo e
tendo seus sentidos precisados na relação com este todo.
Nesta concepção, a unidade dos elementos linguísticos se faz pela deriva
dos sentidos. O que constrói a coesão do texto não é a coerência lógica de ideias,
mas o movimento enunciativo. É assim que uma mesma palavra, em textualidades
semelhantes e em um mesmo espaço de enunciação, pode significar (designar)
diferentemente.
Segundo Guimarães (2002):
A designação é o que se poderia chamar de significação de um
nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação
enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto
uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real,
ou seja, enquanto uma relação tomada na história. (GUIMARÃES,
2002, p. 9).
A designação é o modo pelo qual o real é significado na linguagem e não
está relacionada às classificações de coisas existentes em conjuntos fixos e préestabelecidos, mas à identificação das coisas significadas na relação entre sujeito,
linguagem e mundo.
Nessa perspectiva, nosso trabalho se inscreve no quadro teórico da
Semântica do Acontecimento (Guimarães, 2002) que considera a significação como
histórica, mas não no sentido que se estabelece como um série de fatos
consecutivos no tempo, mas no sentido de que a significação é determinada pelo
acontecimento enunciativo, ou seja, “Sua materialidade é esta historicidade”
(GUIMARÃES, 2005, p. 66)
Infere-se, nesse sentido, o ponto crucial da teoria em que se baseia o nosso
trabalho, ao consideramos a enunciação enquanto constituinte da relação falante e
língua em que a temporalidade é representada no presente do acontecimento pelos
memoráveis que recortam um passado. “O passado é no acontecimento,
rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma nova
temporalização, um novo espaço de tempos, sem a qual não há sentido, não há
acontecimento de linguagem, não há enunciação.” (GUIMARÃES, 2002, p. 12)
A partir desse quadro teórico, focamos em observar a relação entre línguas
como já dissemos, em um espaço de enunciação regulado pelo CEL cuja criação
30
decorreu da necessidade da implantação da língua espanhola nas escolas públicas,
no contexto da política de integração do Brasil na Comunidade Latino-americana, no
final da década de 80. Essa língua também se legitima no espaço de enunciação
brasileiro, a partir da consolidação dos países da América Latina - MERCOSUL que é um bloco formado por países sul-americanos, em busca de fortalecer os
países da América do Sul em relação a outros blocos e potências internacionais, e
que também visa a consolidar as relações comerciais e culturais no interior do
próprio continente.
São países membros do bloco: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai,
também compondo o grupo a Venezuela desde julho de 2006. Todos os países que
formam o MERCOSUL são do continente sul-americano, caracterizando-se também
por serem países subdesenvolvidos, que estão passando por um processo de
desenvolvimento social e econômico. Além disso, não podemos esquecer que todos
foram colonizados por países europeus, mais precisamente, Espanha e Portugal, o
que, consequentemente, os leva a ter como língua oficial o espanhol e o português,
língua dos colonizadores. Nesse cenário destacamos que o Brasil é o único país do
bloco que tem como língua oficial a língua portuguesa.
A relação entre a língua portuguesa e a língua espanhola no continente sulamericano foi intensificada a partir da formação do bloco MERCOSUL em 1994 e
também foi a partir desse acontecimento que foram criadas políticas efetivas para
uma aproximação linguística entre os países membros do bloco.
Atualmente, a língua espanhola também divide espaço com outras línguas
estrangeiras, oferecidas pelo Centro, como alemão, francês, italiano entre outras.
Além de estabelecer uma proximidade linguística com outros países, o CEL
também objetiva ampliar as habilidades do falante para a inserção no mercado de
trabalho. Podem ingressar nos cursos de línguas os alunos que estão matriculados
a partir do 7º ano do Ensino Fundamental do ensino regular e da Educação de
Jovens e Adultos (EJA). Já o curso de inglês é somente para os alunos do Ensino
Médio. Os cursos têm o prazo de três anos (480 aulas) dividido em seis módulos
semestrais.
O curso de inglês é o único aplicado em dois módulos (160 aulas) no período
de um ano, e isso se deve ao fato dessa língua estrangeira já fazer parte do
currículo escolar, desse modo, o tempo de frequência desse curso é menor que os
outros oferecidos pelo Centro.
O CEL recebe a mesma denominação da escola em que está vinculado, e
deve seguir o calendário estabelecido por ela o qual deve constar de sua proposta
pedagógica e de seu regimento. Apesar do estabelecimento de tais normas, o
Centro tem funcionamento próprio e esse deve ser evidenciado pela escola, a qual
oferece apoio técnico pedagógico que também é garantido pelo conselho do Centro.
Pesquisas recentes da Secretaria da Educação de São Paulo mostram o
êxito obtido pelo projeto na inserção de uma segunda língua estrangeira, uma vez
que o Centro tem uma metodologia diferenciada de aprendizagem de línguas
estrangeiras, como afirma (Gasparelo, 2008):
Nas escolas você tem um currículo igual para todo mundo, mesmo
quando você tem alunos que já estão cursando idiomas em escolas
particulares. No CEL, você cria módulo onde verifica a capacidade
linguística do indivíduo quando ele inicia cada estágio.
(GASPARELO, 2008, p. 39).
Apesar desse diferencial em relação às escolas públicas, o CEL passou por
momentos de reestruturação em que foram implantadas medidas através de
resoluções que colocaram em xeque sua credibilidade, e que resultaram assim, na
31
falta de interesse dos alunos pelo projeto.
Contudo, com o intuito de atingir o objetivo almejado de ampliar as
oportunidades de acesso aos estudantes da rede estadual a uma segunda língua
estrangeira moderna, bem como de adequar os CEL às normas e diretrizes da
política educacional de modo a garantir-lhes a permanência e progressão nos
diferentes níveis de aprendizagem previstos, outras resoluções foram criadas, mas
aqui elencamos as mais significativas de acordo com o nosso propósito de trabalho,
que apresentamos por meio dos seguintes recortes:
(1): 10 de agosto de 1987: Decreto nº 27.270
Decreta: Artigo 1º - “ Ficam criados, no âmbito da rede estadual de ensino,
Centros de Estudos de Línguas que terão por finalidade proporcionar aos alunos
das escolas públicas estaduais uma possibilidade diferenciada de aprendizagem
de várias línguas estrangeiras modernas, com prioridade para língua
espanhola”.
2: Resolução SE nº 271, de 20 de novembro de 1987
"Parágrafo único – No primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará,
exclusivamente, o ensino de língua espanhola."
3: Resolução SE nº 193, de 18 de agosto de 1988
"Parágrafo único – No primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará,
preferencialmente, o ensino de língua espanhola."
4: Resolução No. 44, de 13-8-2014
Artigo 5º - O CEL deverá oferecer cursos de língua estrangeira moderna,
preferencialmente em todos os turnos de funcionamento da unidade escolar
vinculadora, de forma a atender, em sua totalidade, a demanda proveniente
dos cursos de ensino fundamental ou médio da região.
§ 1º - A organização dos cursos a serem oferecidos pelo CEL deverá
observar a seguinte ordem de prioridade:
1 - curso de língua espanhola;
2 - continuidade dos cursos de línguas estrangeiras modernas em
funcionamento, nos termos dos mínimos estabelecidos na presente
resolução;
3 - implantação gradativa de cursos de inglês, destinados exclusivamente a
alunos do ensino médio;
4 - implantação gradativa de cursos do idioma mandarim, destinados
exclusivamente a alunos do ensino médio.
Nos quatro recortes elencados, a cena enunciativa se configura pelo Locutor
(L) que ocupa o lugar social de (l-x), o locutor-governador que ao assumir essa
posição é afetado por uma deontologia estabelecida pelo seu lugar social do dizer
enquanto sujeito que fala de um lugar autorizado, de um lugar social de locutor
enquanto locutor-governador que decreta e divide-se assim em um enunciador
universal, porque fala de uma região do interdiscurso, ou seja, da posição de sujeito
jurídico liberal aquele que se apresenta como não sendo social, ou seja, fora da
história e acima dela, onde se diz sobre o mundo.
Aqui, tomaremos como centro da nossa análise a reescrituração da língua
espanhola em que buscamos compreender como é constituída a sua designação
nesse espaço.
No primeiro recorte, destacamos o enunciado do Artigo 1, acima
32
apresentado: “ Ficam criados, no âmbito da rede estadual de ensino, Centros de
Estudos de Línguas” Pela tomada da palavra, o locutor governador decreta a
criação dos (CEL) , que é reescrito por substituição por “Centro de Estudos de
Línguas”, e “uma possibilidade diferenciada de aprendizagem de várias línguas
estrangeiras modernas”, esses enunciados predicam o Centro, na medida em que
trazem para esse espaço, uma metodologia diferente de aprendizagem utilizada
pelas escolas públicas e também uma oportunidade que o falante tem de
escolher um segunda língua estrangeira, e realizar um curso gratuito de línguas”. O
espaço de enunciação é caracterizado por “várias línguas estrangeiras modernas” e
isso quer dizer que o falante agora pode significar em uma língua estrangeira e tem
a opção de escolher entre várias línguas. Mas esse espaço é limitado : “no âmbito
da rede estadual de ensino” e “alunos das escolas públicas estaduais” – o que deixa
claro que somente esses alunos podem ter acesso ao Centro. Assim, o governador
por meio da criação do decreto, exclui qualquer falante que não seja aluno da rede
estadual de ensino e também particulariza esse espaço na medida em que distribui
hierarquicamente as línguas e legitima a língua espanhola como superior às outras
línguas estrangeiras desse espaço, como visualizamos no enunciado “com
prioridade para língua espanhola”.
Já no segundo recorte, a resolução se integra ao decreto, na medida em que
reescreve o seu primeiro parágrafo “prioridade para língua espanhola” por
substituição: “ exclusivamente”, o ensino de língua espanhola”.
Dessa forma, estabelece-se uma mudança nesse espaço: a língua espanhola
que era prioridade passa a ser exclusiva. Assim, o falante não tem mais a opção de
escolher entre várias línguas estrangeiras, como proposto no decreto, uma vez que
muda-se o modo de distribuição das línguas nesse espaço: “No primeiro ano de
funcionamento o Centro proporcionará, exclusivamente, o ensino de língua
espanhola”.
No terceiro recorte: “No primeiro ano de funcionamento, o Centro
proporcionará, preferencialmente, o ensino de língua espanhola". A partir desse
dizer, temos uma reescritura por substituição do enunciado do recorte 2 “No
primeiro ano de funcionamento, o Centro proporcionará, exclusivamente, o ensino
de língua espanhola."
Mais uma vez o tempo é especificado e estabelece se assim, o período em
que uma língua e não outra língua é legitimada nesse espaço; como identificamos
também que a língua espanhola desta vez é predicada ao ser articulada ao advérbio
preferencialmente e não mais ao advérbio exclusivamente. No quarto e último
recorte a língua espanhola é definitivamente hierarquizada como superior às outras
línguas estrangeiras, como visualizamos por meio da distribuição hierárquica em um
processo de enumeração em que os enunciados se integram.
Assim, observamos nessa cena, que os cursos de línguas reescrevem os
CEL, que regula o espaço de enunciação e distribui as línguas de uma maneira
desigual e hierarquicamente legitima uma língua superior à outra como
identificamos pelas posições que lhe são atribuídas:
“§ 1º - A organização dos cursos a serem oferecidos pelo CEL deverá observar
a seguinte ordem de prioridade”:
1 - curso de língua espanhola;
2 - continuidade dos cursos de línguas estrangeiras modernas em
funcionamento, nos termos dos mínimos estabelecidos na presente
resolução;
3 - implantação gradativa de cursos de inglês, destinados exclusivamente a
alunos do ensino médio;
33
4 - implantação gradativa de cursos do idioma mandarim, destinados
exclusivamente a alunos do ensino médio”.
A partir dessa análise, percebemos nesse espaço, como se dá a relação
entre línguas, a qual tratamos como uma relação não natural, mas sobretudo como
uma relação política, tal como compreende Guimarães ( 2002):
O político, ou a política, é para mim caracterizado pela
contradição de uma normatividade que estabelece
(desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de
pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo, o
político é um conflito entre uma divisão normativa e desigual
do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu
pertencimento (GUIMARÃES, 2002, pág. 16).
A contradição de que fala o autor é o Político, a hierarquização das línguas
pelo funcionamento da linguagem enquanto determinadas e identificadas por esses
espaços caracterizados pelas cenas enunciativas em que inclui as posições sociais,
ou os modos de dizer dos locutores.
Dessa maneira, é o político que regula, por assim dizer, o espaço de
enunciação, legitimando quais línguas estrangeiras distribuídas pelos Centros de
Estudo de Línguas (CEL); por sua vez, o Estado como sujeito autoriza a instituição
que está diretamente agenciada pelas divisões próprias desse funcionamento,
caracterizando-se pelo papel decisivo de reproduzir a divisão (desigual) ao
estabelecer políticas linguísticas que determinam o modo de distribuição dessas
línguas para os falantes nesse espaço.
O espaço de enunciação regulado pelo Centro não é concebido como uma
relação empírica entre línguas e falantes. Mas, sim por um espaço que é
historicamente constituído por embates entre palavras e seus falantes. O espaço de
enunciação é um espaço político, e ele se caracteriza como tal, na medida em que o
falante da língua portuguesa é afetado pelas divisões das línguas e o modo como
elas são distribuídas.
Assim, o falante ao afirmar o seu pertencimento em uma língua já exclui
outra e essa condição já estabelece o funcionamento do político. É esse
funcionamento que determina a divisão dos papeis sociais, permitindo ou não o
acesso a determinados dizeres distinguindo-se, assim, os falantes linguisticamente.
O falante da língua portuguesa é afetado por essas divisões que se estabelecem
nesse espaço de enunciação, uma vez que seus dizeres são constituídos no
acontecimento de linguagem e por meio dos memoráveis.
Dessa forma, esse falante é afetado pela história, o político, identificando
assim, o seu lugar social em um processo de subjetivação em relação com o
Estado, enquanto um processo de individualização que observamos no espaço de
enunciação. Então é por meio do processo de subjetivação que pensamos a
questão da identidade do falante da língua portuguesa considerando que essa é a
língua oficial do Brasil.
Os espaços de enunciação, a história e as figuras enunciativas determinam e
legitimam uma língua e não outra língua numa distribuição que se faz
hierarquicamente.
E é nesse espaço que observamos como as línguas são afetadas, no seu
funcionamento, por condições históricas específicas e como elas se dividem
segundo o modo de distribuição para seus falantes.
Muitos estudos são realizados acerca do multilinguismo no Brasil, mas a
análise enunciativa nos propiciou uma visão diferenciada por meio do nosso corpus
34
em que percebemos como se dá a representação e significação do sujeito na
linguagem numa perspectiva política e sócio-histórica.
Pensamos os espaços em que circulam as línguas não somente como um
espaço geográfico, mas como um lugar de prática política constituintes de relações
diferentes entre língua e falantes. E esse funcionamento se estabelece em um lugar
de litígio em que a distribuição das línguas se dá de maneira desigual em que o
falante significa no e pelo acontecimento e pelos modos de dizer.
Referências
GASPARELO, L.F. O Centro de Estudo de Línguas de Sorocaba: projeto
pedagógico e práticas de ensino. Sorocaba, Universidade de Sorocaba, 2009.
Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação.
GUIMARÃES, E. Domínio semântico. In: MOLICA, M. C.; GUIMARÃES, E. (orgs.).
A palavra: forma e sentido. Campinas: Pontes/RG, 2007.
GUIMARÃES, E.(1995). Os limites do sentido. Campinas, SP: Pontes, 2005.
__________ (2010). Quando o eu se diz ele: análise enunciativa de um texto de
publicidade. In: Revista da ANPOLL n.1- v.29. 2010
__________ (2002). Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da
designação. Campinas, SP: Pontes.
Cadernos de Legislação Estadual 1 e 2 graus. Decreto 27270/87 pág. 119 do vol.
XXIV.
Cadernos de Legislação Estadual 1 e 2 graus. Resolução Se nº 271/87. pág. 389
do vol. XXIV.
RESOLUÇÃO
SE
Nº
193,
de
18-08-1988,
disponível
(http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/notas/193_1988.HTM) Acesso
17/11/2017:13:13:20.
em
em
RESOLUÇÃO
SE
nº
44,
de
13-08-2014,
disponível
em
(http://siau.edunet.sp.gov.br/ItemLise/arquivos/44_14.HTM) Acesso em 17/11/2017:
13:04:20.
35
OPERAÇÕES DE DETERMINAÇÃO E A
ORGANIZAÇÃO DE DOMÍNIOS NOCIONAIS:
O FUNCIONAMENTO DE FALSO
ALBANO DALLA PRIA
Faculdade de Letras, Ciências Sociais e Tecnológicas
Universidade do Estado de Mato Grosso
Rua Santa Rita, 148, Centro, Alto Araguaia/MT, CEP 75840-000
adallapria@gmail.com
Resumo. A lógica não leva em conta, na formalização dos seus
raciocínios, a especificidade das línguas. Aplicados à descrição de certas
expressões, tais como ‘atestado de óbito falso’, esses raciocínios são
colocados em xeque. Através do método que é próprio da “Teoria das
Operações Predicativas e Enunciativas”, observamos, na prática de
construção de significação, que FALSO é marca da dúvida e do bloqueio
à construção do termo atestado de óbito, na trajetória de construção do
enunciado.
Palavras-Chave. Adjetivo. Significação. Operações.
Abstract. The formalization of logic reasoning does not consider the
specificity of languages. Applied to the description of certain expressions,
such as ‘atestado de óbito falso’, logic reasoning fails. Through the
method that is proper to the “Theory of Predictive and Enunciative
Operations”, we observe, in the practice of meaning construction, that
FALSO is a mark of doubt and of blocking the construction path of the
term atestado de óbito of the utterance.
Key-words. Adjective. Signification. Operation.
1. Introdução
Na lógica proposicional, se eu chamo alguma coisa1 de ‘atestado de óbito’2, é
porque alguma coisa é um atestado de óbito que existe como tal. Uma expressão do
tipo ‘atestado de óbito falso’ coloca em xeque esse raciocínio descritivo. Ela vai
contra os princípios da lógica, porque afirma dois estados de coisa que seriam, em
princípio, incompatíveis, quais sejam o de que alguma coisa é e não é ela mesma
ao mesmo tempo. Isso porque, do ponto de vista lógico, alguma coisa é aquilo que
é, segundo o princípio da identidade (A é A), e não pode ser outra coisa diferente
dela mesma, segundo o princípio da não-contradição (A é A e não-A). Com efeito, o
terceiro termo, isto é, que alguma coisa seja ela mesma e o deixe de ser ao mesmo
tempo (A é A ou A é não-A), no escopo de uma mesma proposição, está excluído
dos princípios lógicos.
A lógica assume o ponto de vista representacionalista da significação. Desse
ponto de vista, as línguas são meios expressivos cuja finalidade é tão somente a de
veicular conteúdos prontos da realidade abstrata (conteúdos de pensamento ou
proposições) para a realidade físico-cultural (enunciados), sem passar por nenhum
tipo de ajustamento, seja no plano da expressão seja no plano do conteúdo.
A especificidade das línguas não é levada em conta na formalização dos
1
2
O termo em construção é representado sempre pelo itálico.
As denotações são representadas sempre entre aspas simples.
36
raciocínios lógicos. Por isso, enquanto metalinguagem explicativa do funcionamento
das línguas, esses raciocínios marginalizam sequências que, na prática de
linguagem, não são menos significativas do que outras tantas sequências
logicamente válidas. Tal é o caso de ‘atestado de óbito falso’.
Dada a dificuldade de se construir um sistema lógico de representação que
dê conta de descrever adequadamente o funcionamento linguístico de ‘atestado de
óbito falso’, tomamos uma posição, sustentada pelo programa de trabalho da
“Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas” (CULIOLI, 1990, 1999a,
1999b), qual seja a de construir um sistema homogêneo de representação
metalinguística que dê conta de apreender não só os valores mais estáveis do nome
‘atestado de óbito’, semelhantes àqueles que a lógica busca descrever, mas
também a gama de valores deformáveis, dentre os quais ‘atestado de óbito falso’, a
que se pode ter acesso, através de manipulações teoricamente controladas da
“forma esquemática” (CULIOLI, 1990, p. 115-126) de funcionamento de atestado de
óbito dentro de um espaço referenciável aberto3, porém centrado4.
Essa concepção de teoria que articula o material verbal (objeto) com a prática
do seu manuseio (atividade) dispõe de um método que lhe é próprio. Primeiro,
temos de nos apropriar, através de processos indutivos, da forma esquemática que
regula uma série de enunciados em família parafrástica; segundo, temos de simular,
através de processos hipotético-dedutivos, gestos controlados de deslocamento de
posições mais ou menos fixas dentro de um espaço referenciável. A metodologia de
análise do funcionamento de FALSO implica, portanto, a apreensão do movimento
(vai-e-vem) que caminha do funcionamento de FALSO na organização de estados
provisórios de conhecimento (que antecipam ações sobre o exterior) até uma
posição estabilizada de FALSO num espaço referencial exterior (que determina
posições mais ou menos fixas na superfície das línguas), e vice-versa.
Foge aos propósitos deste trabalho a construção de um modelo fixo, que
exclui dos observáveis a dimensão subjetiva (atividade) da linguagem (variação
experiencial e perceptiva). As manipulações que fazemos dos enunciados, além de
teoricamente controladas, estão orientadas para a construção de um modelo
plástico e maleável dos processos de apreensão do
agenciamento de marcadores que são, eles mesmos, traços de
operações, quer dizer, são a materialização de fenômenos mentais
aos quais não temos acesso e dos quais, enquanto linguistas, só
podemos dar uma representação metalinguística, isto é, abstrata
(CULIOLI, 2002, p. 27 – grifos do original)5.
Nosso objetivo é contribuir para uma maior compreensão:
1)
dos processos de determinação das noções semânticas, ou “quasesignos” (REZENDE, 2000, p. 15), que implicam, de um lado, a introdução de alguma
Trata-se de um espaço topológico ou de uma topologia de domínio aberto (CULIOLI, 1999a). Essa concepção
geométrica do espaço se contrapõe ao conceito aristotélico de classe ou de espaço fechado. Aristóteles
compreendia o mundo como uma totalidade geométrica não topológica, ou se está dentro ou se está fora do
espaço, e nada mais. A ciência moderna tem explicado (ou descrito) a realidade através um conjunto restrito de
categorias segundo o conceito aristotélico de classe. Ficam excluídos do tratamento científico os objetos que
não se reduzem à homogeneidade que o conceito de classe lhes impõe.
4 Na passagem das representações abstratas para as representações linguísticas, as primeiras, enquanto
formalizáveis das últimas, podem resultar algo diverso daquilo que se tinha por formalizar. O “centro atrator”
(CULIOLI, 1990, p. 97) serve de ponto de convergência (transindividual) da identidade (invariante) de forma.
Com efeito, o centro visa controlar a construção de um hiato em razão de rupturas na invariante de forma.
5 No original: “c’est un agencement de marqueurs, qui sont eux-mêmes la trace d’opérations, c’est-à-dire, que
c’est la matérialisation de phénomènes mentaux auxquels nous n’avons pas accès, et dont nous ne pouvons,
nous linguistes, que donner une représentation métalinguistique, c’est-à-dire, abstraite” (CULIOLI, 2002, p. 27 –
grifos do original).
3
37
coisa referenciável, provisoriamente chamada ‘atestado de óbito’, no espaço
referenciável e, de outro lado, a determinação propriamente dita, através de
avaliações qualitativas – que tem FALSO como marcador – sobre a identidade de
alguma coisa em relação à representação visada de atestado de óbito nesse último
espaço;
2)
dos processos sucessivos de ajustamentos entre sistemas de
representação não homogêneos.
Com efeito, esperamos nos aproximar dos valores operatórios que, em
situação prática de construção de significação, são, de fato, observáveis das formas
linguísticas, em geral, e, em particular, da sequência ‘atestado de óbito falso’.
2. A predicação lógica e os dilemas de gênese
Do ponto de vista lógico, o conteúdo independe das línguas para significar.
Delas depende apenas para ser veiculado. A veiculação não implica ajustamentos
porque a realidade física e a realidade abstrata são tomadas pela lógica numa
relação de continuidade que se confunde com a mesmice. O mundo e o
pensamento se recobrem perfeitamente, quer dizer, o mundo é “transparente” ao
pensamento, e vice-versa. Essa relação garante a estabilidade do conteúdo, não
obstante a variação experiencial e linguística, que é própria à atividade linguageira.
Para a lógica, o mais importante é a comprovação da validade de um
raciocínio. A lógica não pretende ser uma forma de ação sobre o mundo, sobre os
referentes. Por isso, os raciocínios lógicos passam da realidade física para a
realidade abstrata, e vice-versa, dentro de uma realidade orgânica, abstraindo de
qualquer tipo de ajustamento, conforme já o dissemos acima no contexto da
veiculação dos conteúdos. Qual seria, então, a razão do trabalho dos sujeitos em
relacionar as unidades?
O sujeito da lógica se assemelha a um autômato, na construção de
sentenças declarativas que possam ser avaliadas em termos de verdadeiro e falso
quanto aos estados-de-coisas que descrevem. O trabalho do sujeito da lógica é
axiomático, tomado por evidente, e calçado na instrumentação normativa do
pensamento, sob a justificativa da necessidade de se “disciplinar” o pensamento 6.
Esse sujeito, por um lado, confunde-se com a realidade abstrata e dela se apaga,
por outro lado, confunde-se com a realidade físico-cultural de dela também se
apaga. É um sujeito que está em todo tempo-lugar e em tempo-lugar algum. Esse
sujeito se converte em puro pensamento ou pura introspecção (solipsismo). Esse
sujeito não precisa equilibrar representações interiorizadas com as representações
dos outros sujeitos.
3. A atividade epilinguística e o trabalho do linguista
Em síntese, o termo “epilinguismo” refere o trabalho do sujeito para
posicionar (répérer) raciocínios subjacentes através de “formas que marcam e
constroem sua presença, formas que traçam a atividade dos sujeitos (sob a ótica
que essas formas lhes conferem)” (VOGÜÉ; FRANCKEL; PAILLARD, 2011, p. 11 –
grifos do original) num espaço referencial homogêneo. As línguas naturais são
performativas. Se os sujeitos relacionam entidades, é porque intuem a
possibilidades de transformá-las, se não no plano físico-cultural ou afetivo, pelo
menos no plano simbólico.
As formas de superfície se constituem interpretáveis em razão dos raciocínios
(teoria) que lhes são subjacentes. Os raciocínios só são acessíveis através das
6
Os fins justificam-se em si mesmos como forma de se aproximar da verdade e/ou se afastar do erro.
38
formas, que são vestígios das operações que organizam, localizam e controlam a
representação dentro de um evento em processo de construção. Se, por um lado,
sabe-se, por hipótese, da existência de invariantes cuja presença na língua é
marcada por formas, por outro lado, é preciso construir caminhos de acesso a esse
saber. Nesse sentido, o acesso à teoria (invariante) implica um saber-fazer do
linguista, assim como no artesanato, o saber implica o próprio ato de fabricação
(DUCARD, 2006, p. 15).
Do ponto de vista da linguagem definida como atividade de representação,
referenciação e regulação (CULIOLI, 1990, p. 177-213), o trabalho do linguista deve
se voltar ao processo de apreensão e de formalização dos observáveis. Esse
trabalho simula o investimento da ação subjetiva, “que Culioli chama de força
assertiva” (DUCARD, 2009, p. 65 – grifo do original), sobre projetos de
representação que se deslocam sob ângulos perceptivos variados. A ação subjetiva
é constitutiva dos observáveis. Os observáveis estão teorizados como objetos que
articulam ação subjetiva e formalização de ângulos perceptivos através das línguas.
Com efeito, a variação subjetiva se constitui como observável através das línguas.
Na abordagem estática, como na lógica, as unidades de língua se prestam a
encapsular e a veicular um conteúdo que permanece incólume a qualquer
organização em cadeias singulares. Na abordagem dinâmica – que acreditamos ser
também a nossa – dos fenômenos linguísticos, a linguagem, enquanto a prática de
construção de significação numa língua dada, impede-nos de defender a existência
de “algumas entidades de língua que sejam determinadas e outras que sejam
menos determinadas” (REZENDE, 2000, p. 15), porquanto uma tal distinção reitera
os fundamentos da abordagem estática, quais sejam a existência de (a) um plano
abstrato de relações intersubjetivas estabilizadas e (b) um sistema de relações
determinadas entre forma e conteúdo, que não comporta deformações.
O funcionamento de FALSO de que trataremos aqui não se confunde com a
descrição da totalidade do fenômeno que se encerra em si mesma. Nossos
observáveis – famílias de enunciados em relação parafrástica – não se confundem
com os conceitos de dado e de fenômeno enquanto objetos estabilizados. Porque
esses abstraem da ação subjetiva e da variação de ângulos perceptivos subjacentes
(invariante), cujas marcas são constitutivas das línguas. Esses dois conceitos
costumam referir objetos que perderam sua gênese na “prática, seja de interação
verbal dos falantes de uma língua, seja de interação dos falantes com o meio
ambiente” (REZENDE, 2000, p. 12). A linguística culioliana reabilita a gênese
(perdida) da variação nas línguas e assume uma posição diante dela: a gênese de
toda a variação é experiencial e subjetiva, e não formal ou processual. A variação
diz respeito aos modos de perceber e representar o mundo por sistemas não
homogêneos (transindividuais) que, em princípio, não dialogam, razão essa do
trabalho dos sujeitos para se fazer dialogar.
4. Processos enunciativos de funcionamento de FALSO
Trabalhamos com contexto explícito das intuições 7 que estão sustentando
processos de formalização de enunciados em família parafrástica, ao mesmo tempo
em que vamos construindo um sistema de representação metalinguística que dê
consta de descrever o formal que a linguagem é, isto é, como mecanismo de forma
que dá sustentação não só a caminhos que levam a bom termo, porque constroem
representação, mas também trajetórias que ficam a meio caminho ou que não se
“Se as ciências desconfiaram oficialmente da analogia, praticaram-na clandestinamente. Muitos cientistas
utilizam o raciocínio por analogia para construir tipologias, elaborar homologias ou mesmo induzir leis gerais
(mas os manuais apagam o rastro do caminho mental subjetivo, assim como o enobrecimento apaga os rastros
da sua extração vulgar” (MORAN, 2012. p. 156).
7
39
transformam e – de um certo ponto de vista que não é o nosso – não constroem
representação. Para tanto, consideremos o diálogo abaixo:
- Você pagou a indenização a Pedro pela morte da sua esposa?
- Não! De jeito nenhum.
- Por que?
- Pedro me entregou um atestado de óbito falso.
Assumimos um valor semântico interpretável não qualquer de atestado de
óbito falso, que só pode ser apreendido através de ocorrências particulares de
Pedro me entregou um atestado de óbito falso, e dentro do diálogo acima
formalizado. Nossa unidade de análise é o enunciado. Em outros termos,
Culioli atribui ao enunciado um duplo estatuto – teórico e material. É
uma unidade empírica de observação porquanto constituída de
materialidade e, por isso, o dado mais diretamente observável ao
linguista; é uma entidade teórica porquanto é definido como
agenciamento de marcadores de operações da atividade de
linguagem. Dessa perspectiva, em sua atividade de análise, o
linguista parte de dados imediatos e caminha em direção à
formulação de dados teorizados (famílias parafrásticas) que lhe
fornecem subsídio para retornar ao empírico (PRIA, 2013, p. 42).
O processo constitutivo do enunciado compreende um conjunto de relações
imbricadas. Em síntese, são relações de natureza primitiva, predicativa e
enunciativa. Por ocasião da análise do enunciado Pedro me entregou um atestado
de óbito falso será possível observar o funcionamento dessas relações na sua
constituição. Aqui, procuramos contemplá-las em três momentos, privilegiando uma
relação em cada momento. Não se pretende esgotar – como se isso fosse possível
– as relações em tela. Ainda que tenhamos optado por tratá-las em separado, as
relações se sobrepõem, como se poderá perceber do texto.
O primeiro momento ou SIT0 (= Situação zero) trata da instanciação de um
esquema formal por noções semânticas e da organização de domínios nocionais; o
segundo, SIT1, trata da organização de posições que visam dar existência aos
termos do enunciado; o terceiro, SIT2, trata dos ajustamentos das situações
anteriores diante de um contexto discursivo.
Todo enunciado é um evento que nasce de uma relação semântica entre
domínios nocionais e aponta para uma certa direção de sentido, um lugar onde as
propriedades dos termos estão cultural e historicamente adequadas. Para fins de
manipulação do enunciado e explicitação da relação semântica que aqui se afigura,
comecemos por colocar uma situação zero, doravante SIT0, e um esquema de léxis.
SIT0: determinação da orientação semântica.
A léxis é um esquema formal de três lugares <ξ0, ξ1, π> que prevê uma
variável para o operador π e duas variáveis, ξ0 e ξ1, para os argumentos da
predicação. Os espaços formais da léxis são instanciados por noções semânticas e,
do ponto de vista cognitivo, asseguram a estruturação do conteúdo de pensamento
ou conteúdo proposicional. Trabalharemos com a seguinte léxis: <Pedro entregar
atestado-de-óbito>.
A “intuição criadora”8 (DUCARD, 2006, p16) projeta, para uma eventual
situação enunciativa (Sit*)9, que sejam ratificadas as propriedades 10 dos termos da
8
9
No original: intuition créatrice (DUCARD, 2006, p. 16).
O asterisco sempre representa um valor hipotético.
40
léxis, tais como estão relativamente estabilizadas na cultura: Pedro sendo aquele
que tem a propriedade de entregar, dentre outras coisas, um atestado de óbito, e
atestado de óbito sendo alguma coisa que pode ser entregue por alguém, dentre os
quais, Pedro. O enunciado a seguir traduz esses valores: Pedro me entregou um
atestado de óbito por ocasião da morte da sua esposa. Observa-se do enunciado
ausência de marcas que remetam a um possível bloqueio à construção dos termos,
algo que se traduz por um enunciado como Pedro não me entregou um atestado de
óbito porque estava desconsolado com a morte de sua esposa.
A confirmação das propriedades dos termos, numa eventual situação
enunciativa (Sit*), pode resultar na construção quer do ENTREGADOR (<( )
entregar atestado-de-óbito>) quer do ENTREGADO (<Pedro entregar ( )>) quer de
ambos os termos, através do predicado entregar. Os termos que vierem a se
construir, numa eventual situação enunciativa (Sit*), darão conta de quão
adequados estão os termos em relação às noções que os quer “encanar”
(REZENDE, 2000, p. 128). Os termos em construção, no nosso enunciado de
partida, são Pedro e atestado de óbito.
Colocadas em relação, as noções semânticas da léxis esboçam não só uma
orientação semântica, “uma grosseira direção de sentido” (REZENDE, 2011, p.
707), quer dizer, uma relação mais ou menos adequada entre os termos e as
noções semânticas que lhes quer encarnar, mas também um “projeto de existência”
(REZENDE, 2000, p. 280) da representação visada, no nosso caso: alguma coisa
entregue por Pedro, provisoriamente representada pelo termo atestado de óbito.
Com efeito, esse gesto que visa trazer à existência alguma coisa ainda pouco
determinada cuja determinação maior é ter sido introduzida num espaço
referenciável, através da associação da ocorrência de alguma coisa a um termo do
léxico, é o primeiro passo na direção da sua construção nesse espaço. Por certo,
não é um acaso a escolha do termo, resulta da analogia de alguma coisa com
ocorrências da noção /atestado de óbito/ 11, conhecidas do enunciador. São
operações de qualificação ulteriores que poderão validar a adequação na escolha
do termo. No enunciado Pedro nos entregou um atestado de óbito e tanto, é pena
que sua esposa esteja morta, as marcas de modalidade assertiva e de aspecto
perfectivo (ausência de obstáculo) do contexto encaixante contribuem para essa
confirmação. Outro enunciado por colocar a dúvida sobre a adequação, tal é o caso
de Pedro nos trouxe um atestado de óbito sem valor algum, será mesmo que sua
esposa está morta?
SIT1: determinação da direção dos termos.
A imersão da léxis num espaço referencial qualquer (abstrato ou físicocultural), impõe que os termos sejam ordenados numa sequência linear. A
ordenação, no entanto, esboça enunciáveis cuja existência dos termos pode não ser
conhecida dos sujeitos num espaço referenciável. O objetivo da relação predicativa
é a construção dessa existência dos enunciáveis. Vejamos as duas glosas a seguir:
(1) [Há] Um atestado de óbito [que] foi entregue por Pedro [nosso conhecido]
para alguém.
(2) Pedro [nosso conhecido] entregou um atestado de óbito [há alguma coisa]
para alguém.
Enquanto (2) está construindo a existência de um ENTREGÁVEL cujo
ENTREGADOR é conhecido dos sujeitos, em (1) está sendo construída a existência
do ENTREGADOR cujo ENTREGÁVEL ainda é pouco conhecido dos sujeitos.
Propriedades que estão relativamente estabilizadas nas culturas, tais como humano, animado, adulto, infantil,
inanimado, individuável, massivo, processo finalizado, iniciador, acidental, e assim por diante (CULIOLI, 1999a,
p. 100).
11 Os termos entre barras oblíquas sempre representam noções.
10
41
As posições dos termos refletem, em alguma medida, as posições dos
sujeitos no espaço referenciável. Em (1), glosamos a posição do enunciador (S0)
sobre co-enunciador (S2), antes mesmo que S0 se tenha feito locutor (S1), numa
situação enunciativa. S0 sabe que S2 não sabe alguma coisa de S0 sobre Pedro.
Colocar o enunciado no plano do dizível implica eliminar essa diferença. Aquilo que
S0 sabe de S2 se converte numa posição de S0 em relação a S2. S0 se sobrepõe a
S2 no espaço referenciável. Que é a projeção da imagem do enunciador (S0) sobre
o co-enunciador no enunciado (1). O enunciador (S0) está sustentando a posição de
alguém (um S com o qual S0 se identifica) que supõe ser o co-enunciador (S2). Tal
suposição se traduz pelo marcador de localização há. Trata-se de um operador que
visa introduzir alguma coisa no universo de discurso para que predicações ulteriores
que possam se efetivar sobre alguma coisa. Esse valor se traduz pela seguinte
glosa: Há alguma coisa, falemos dela. Com esse gesto, S0 constrói a existência
fictícia de um enunciável.
Em (2), também glosamos a posição do enunciador (S0) sobre o coenunciador (S2), antes mesmo que S0 se tenha feito locutor (S1). S0 sabe que S2
sabe alguma coisa de S0 sobre Pedro. Aquilo que S0 sabe de S2 converte-se, mais
uma vez, numa posição de S0 em relação a S2, qual seja a de que S0 e S2 ocupam
a mesma posição no espaço referenciável. Desse ponto de vista, uma eventual
diferença (S2 não sabe alguma coisa de S0 sobre Pedro) não se coloca ou fica em
segundo plano, pois, vindo a se colocar, pode construir algum bloqueio à trajetória
de determinação de um ENTREGADOR. Para tanto, não se questiona a identidade
de alguma coisa enquanto ENTREGADO. Ao nível das relações predicativas essa
diferença é pano de fundo. Presume-se de (2) um certo modo de existir do termo
atestado de óbito. Com efeito, (2) retoma uma ocorrência de alguma coisa cujo
modo de existir ainda pode ser questionado ao nível das relações enunciativas quer
para ser colocado em dúvida, como em O Pedro então nos entregou um atestado de
óbito? Conta outra. De onde ele tirou um atestado de óbito? quer para ser Foi
emitido com rapidez o atestado de óbito que Pedro nos entregou [um atestado de
óbito]. S0 constrói a existência do enunciável sob um gesto que abstrai dessas
posições.
A estrutura predicativa, embora seja um modo particular de apreensão do
mundo e resulte da apropriação da realidade psico-física e cultural por um sujeito
particular, configura uma construção de tal modo generalizada, porque distende a tal
ponto o tempo, o espaço e o mundo (sujeitos), que compreende o conteúdo
proposicional, sempre igual em si mesmo, onde toda diferença se apaga.
SIT2: determinação da estabilidade intersubjetiva.
Ainda que, através da ordenação, a relação predicativa esboce posições, ela
o faz no sentido da sua exclusão. Se essas posições podem ser retomadas na
relação enunciativa, entendemos que se deva ao fato de a intersubjetividade já estar
colocada enquanto projeto – mas ainda não construída – ao nível das relações
predicativas. A intersubjetividade é um projeto, e não está dada para o enunciado.
Por certo, a intersubjetividade ou as posições intersubjetivas – do modo como as
entendemos – são construto da atividade de linguagem, e não o seu o fundamento.
Estamos nos apoiando “na hipótese fundadora de que a atividade de linguagem é
produto de uma atividade simbólica por gestos” (DUCARD, 2009, p. 68) de
apropriação de relações predicativas, mas não só, que se esboçam numa certa
direção, mas que nem sempre se constroem como tal. A heterogeneidade do
discurso, assim como a sua transcendência, não pode ser tomada nem como
anterior nem como exterior às formas que permitem dela dizer, “ela lhes é inerente”
(VOGÜÉ; FRANCKEL; PAILLARD, 2011, p. 11).
A adequação nocional (SIT0) construída sobre uma eventual situação
42
enunciativa (SIT1) é uma disposição do enunciador (S0) que pode vir a se constituir
locutor (S1*). A possibilidade de deslocamentos está na base da apropriação dessa
invariante. Toda invariante não-ainda formalizada em relação a uma situação
singular (Sit), através de formas interpretáveis de uma língua dada, é suscetível de
deslocamentos dentro de um espaço referenciável. Por isso, há sempre o risco de
se dizer outra coisa, na passagem das representações abstratas para as
representações linguísticas. Nessa passagem, é o centro atrator que assegura
possíveis reorganizações do conteúdo proposicional frente às posições que
estavam colocadas enquanto projeto na relação predicativa, mas que, na relação
enunciativa, são posições de fato. A não coincidência dos modos de ser da
invariante de base é de princípio. A continuidade é resultado do investimento do
sujeito, e não um fundamento da atividade significante. A intuição de estabilidade
enquanto mesmice deve-se, muitas das vezes, às aproximações (analogia com a
memória enunciativa ou com projeções enunciativas) que uma disposição atual
convoca para a apropriação de formas interpretáveis, caminho de acesso que são a
uma “ambiguidade fundamental” 12 (CULIOLI, 1999a. p. 160). O trabalho do sujeito
para passar de uma disposição à outra interessa-nos mais do que as descrições
que podem ser feitas das aproximações em si.
FALSO é marca do trabalho do sujeito, uma disposição de S0, para passar
de um modo de ser de alguma coisa, esboçado em SIT0 e projetado em SIT1, para
um modo de ser outro-o mesmo que a SIT2 lhe assegura. O mesmo em razão da
identidade de forma que é localizada em relação a uma situação particular (Sit) e
outro em razão da reorganização nocional que essa localização implica. A
passagem de uma situação eventual (Sit*) para uma situação particular (Sit) não é
sem consequência. FALSO é, antes de tudo, marca da modalidade da dúvida sobre
a posição dos sujeitos da Sit a respeito de alguma coisa. FALSO é marca de
alteridade (dissociação) enunciativa. Em SIT2, S0 está dissociado da posição de um
eventual locutor (S1*), mas não da disposição de S0, projeta em SIT1, para uma
eventual situação enunciativa (Sit*).
No nosso enunciado de partida, é a alteridade enquanto o mesmo, mas em
outro tempo-espaço, que coloca em dúvida a possibilidade de que alguma coisa se
construa como uma ocorrência da noção /atestado de óbito/. FALSO é a marca da
dúvida de S1, excluída de SIT1, quanto à construção de alguma coisa como uma
ocorrência da noção /atestado de óbito/. A negação da existência de um atestado de
óbito que existe como tal é um pano de fundo que não se resolve com FALSO.
FALSO marca o bloqueio à trajetória de construção de atestado de óbito que se
esboçou em SIT0 e cuja existência se projetou SIT1. Esse bloqueio dá margem a
todo tipo de especulação – que não é nosso objetivo fomentar – sobre a trajetória da
representação a partir de Sit.
Em SIT2, S1 força a volta – como se isso fosse possível ou sem
consequência – à situação zero, passando pela situação um, como uma trajetória
possível. A volta, ou melhor, a sua tentativa, não é sem consequência para o
enunciado. FALSO é a marca dessa consequência no movimento (trabalho) de
construção da representação no contexto do enunciado, e não para o fragmento
atestado de óbito isolado.
5. Considerações finais
Depois de ter passado em revista um conjunto extenso de gramáticas
brasileiras de 11 diferentes autores – todos eles apoiados no conceito de aristotélico
12
No original: ambiguïté foncière (CULIOLI, 1999a, p. 160).
43
de classe – uma pesquisa concluiu: “Todos eles apontam que o adjetivo indica
“qualidade(s)”” (NEVES, 2011, p. 17). No avesso da tradição gramatical,
observamos, na prática de construção de significação, que FALSO é marca da
dúvida e do bloqueio à construção do termo atestado de óbito, na trajetória da
construção do enunciado.
A lógica já apostou na derivação de subtipos como alternativa ao tratamento
extensional (ILARI, 1993), que “falha” na descrição de adjetivos como FALSO.
Vimos aqui que uma possível razão para a “falha” é o bloqueio colocado por FALSO
à construção do nome e à construção da classe de predicados que poderiam ser
descritos pelo nome. Como a lógica trabalha com fragmentos de enunciado, fica
difícil perceber tanto o movimento construtor da representação quanto os obstáculos
que pode vir a encontrar. Buscamos aqui explicitar que esse movimento é muito
maior do que o conteúdo que uma construção possa encapsular.
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educacionais. 2000. 320 f. Tese (Livre docência) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP.
VOGÜÉ, S.; FRANCKEL. J-J.; PAILLARD, D. Prefácio. In: VOGÜÉ, S.; FRANCKEL.
J-J.; PAILLARD, D. (orgs.) Linguagem e enunciação: representação, referenciação
e regulação. Tradução de Marcia Romero e Milenne Biasotto. São Paulo: Contexto,
2011. p. 9-13.
45
POTENCIALIDADES PARA O ENSINO:
ANÁLISE E REFLEXÕES SOBRE O
DISCURSO PUBLICITÁRIO EM TRAILERS
FÍLMICOS NA PERSPECTIVA MULTIMODAL
ALINE GABRIELLE CORREIA DA COSTA, JINNY KELLY CENTENO RAMOS
Universidade Federal de Lavras – Departamento de Estudos da Linguagem
Av. Doutor Sylvio Menicucci, 1001 - Kennedy, Lavras – MG. CEP: 37200-000.
alinnegcosta@gmail.com, jinnykelly.centeno@gmail.com
Resumo. O presente estudo busca abordar como o discurso publicitário
se compõe em trailers fílmicos através das multissemioses, e discutir as
potencialidades de recursos linguísticos e imagéticos aliados ao processo
de ensino-aprendizagem. Para isso, admitiu-se como referencial teórico
Kress e Van Leeuwen (1996), Bakhtin (1997), Maingueneau (2006), etc.
Assim, constatou-se que o discurso publicitário se constitui como um
instrumento em potencial no processo de formação de leitores críticos
proficientes.
Palavras-Chave. Multimodalidade. Discurso Publicitário. Ensino. Trailer
Fílmico.
Abstract. The present study seeks to address how the advertising speech
is composed in film trailers through the multisemiosis, and discuss the
potentialities of linguistic and imagery resources allied to the teachinglearning process. For this, Kress and Van Leeuwen (1996), Bakhtin
(1997), Maingueneau (2006), and others were accepted as theoretical
references. Thus, it was found that the advertising discourse constitutes a
potential instrument in the process of training critical readers proficient.
Keywords. Multimodality. Advertising Speech. Teaching-learning. Film
Trailer.
1.
Introdução
Mediante a ascensão de novas propostas audiovisuais advindas do
crescimento da chamada era tecnológica, muito tem se discutido sobre o trabalho
com os textos e recursos multimodais nos gêneros textuais e discursivos.
Caracteriza-se por modos e meios multissemióticos a utilização de recursos
linguísticos e imagéticos (imagens, escrita, caligrafia e tipografia, som, música,
figuras cinéticas, linhas, cores, tamanho, ângulos, entonação, ritmos, efeitos e
metáforas visuais, etc.) socialmente modelados através do tempo para se tornarem
geradores de sentido, os quais articulam os significados (sociais,
individuais/afetivos) exigidos pelos requerimentos de diversas comunidades e
contextos.
Partindo desse pressuposto, é notável que o discurso publicitário, veiculado
as mais diferentes mídias e suportes, muito se utiliza desses recursos para cumprir
com o seu objetivo principal, que é vender ou promover uma ideia, produto, serviço
ou marca. Assim, quase sempre entrelaçados a arte e/ou ao entretenimento, os
trailers fílmicos, que se caracterizam por ser um tipo de anúncio publicitário, fazem
46
uso dos recursos multimodais geradores de sentido em seu discurso publicitário,
com o intuito de cumprirem seu(s) propósito(s).
Uma vez que o trailer fílmico tem se feito muito presente no cotidiano da
maioria dos sujeitos, salienta-se a importância do multiletramento e das formas de
conceber e reconhecer os recursos multissemióticos, a fim de que esses sujeitos
possam identificar como esses recursos atuam na construção de sentidos e também
nas estratégias de persuasão produzidas pela indústria publicitária. Dessa forma,
levar para o ensino as características do discurso midiático e seu impacto
sociocultural é considerar uma nova forma de conceber a linguagem, com a qual é
possível formar cidadãos com autonomia intelectual e pensamento crítico.
Partindo desse pressuposto, o presente trabalho, que foi realizado no âmbito
do PIBID/CAPES, pretende abordar como o discurso publicitário se constitui nos
trailers fílmicos através da multimodalidade, com vistas a discutir as potencialidades
do trabalho com os recursos linguísticos e imagéticos aliados ao processo de
ensino-aprendizagem. Para tanto, admitiu-se como referencial teórico Kress e Van
Leeuwen (1996), Dionísio (2014), Bakhtin (1997), Maingueneau (2006), Rojo (2009),
Vestergaard e Schroder (2000), entre outros autores.
A partir do estudo empreendido, foi possível constatar que o discurso
publicitário se constitui como um instrumento em potencial para os processos de
aprendizagem e formação de leitores críticos proficientes. Além disso, também foi
possível observar as concepções sociais e ideologias presentes nas formas verbais
e não verbais através dos discursos publicitários analisados.
2. Quadro teórico
2.1
O discurso publicitário
O discurso publicitário é um poderoso instrumento que influencia diretamente
na construção das representações dos papeis sociais. Diante disso, entender que
as diversas esferas da atividade humana estão relacionadas a linguagem é
fundamental para pensar o discurso, pois é somente através das relações sócio
discursivas que o sujeito atua sobre o mundo. Desse modo, esta pesquisa busca
entender como o discurso publicitário se constitui na esfera cinematográfica e quais
as estratégias para alcançar seu público-alvo.
É fato que em cada campo da vida social uso da língua ocorre de acordo com
a necessidade de utilização de gêneros do discurso específicos. Para tanto, é
necessário utiliza-la de acordo com a necessidade de comunicação de cada falante,
e logo, dominá-la, pois, de acordo com Bakhtin (1997, p. 302):
Se os gêneros do discurso não existissem e se nós não tivéssemos
o seu domínio e se fosse preciso cria-los pela primeira vez em cada
processo de fala, se nos fosse preciso construir cada um de nossos
enunciados, a troca verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 1997,
p. 302).
Dessa forma, a manifestação dos gêneros discursivos não acontece
aleatoriamente, eles se formam a partir de questões culturais e na medida em que a
sociedade avança. Logo, os gêneros atuam nas interações comunicativas. Além
disso, os gêneros sofrem, sim, alterações, pois o contexto social é o que determina
seu surgimento e transformação. Ou seja, os gêneros se constituem a partir de uma
necessidade interacional, dentro de um determinado espaço e tempo.
Sobre a relação dos gêneros textuais e a forma como eles atuam nas
interações comunicativas, podemos dizer que a maior liberdade na manipulação dos
47
gêneros está entrelaçada a uma relação direta com a audiência e com o meio físico
que o transmite, pois segundo Bazerman (1997, p. 14) apud Dionisio (2014)
Os gêneros textuais moldam os pensamentos que formamos e as
comunicações pelas quais interagimos. Gêneros são espaços
familiares nos quais criamos ações comunicativas inteligíveis uns
com os outros e são guias que usamos para explorar o não familiar.
(BAZERMAN, 1997, p. 14).
Segundo Sandmann (1997, p. 12), a linguagem da propaganda se distingue,
por exemplo, da linguagem literária, pela criatividade, pela busca de recursos
expressivos que chamem a atenção do leitor, que o faça parar e ler ou escutar a
mensagem que lhe é dirigida (...). Assim, a propaganda é produzida de forma que
sejam criados estímulos visuais para que captar a atenção do leitor. Tais estímulos
podem ser caracterizados, pelo uso de recursos multissemióticos, multimodais, além
de outros recursos linguísticos, afim de que um anúncio publicitário se destaque e
cumpra com seu objetivo. Em concordância, Vestergaard (1994, p.171) confirma
que
O anunciante quer dar ao seu produto uma imagem destinada a
funcionar como vantagem extra para ele no mercado, onde é preciso
diferenciá-lo um pouco dos produtos concorrentes, que são (quase)
iguais quanto ao seu valor de uso material. O problema, para ele,
consiste em conseguir que o leitor-consumidor associe o produto
com a desejada imagem ou qualidade. (VESTERGAARD, 1994,
p.171)
Os sentidos produzidos por meio de gêneros discursivos na esfera publicitária
se constroem de forma que o principal objetivo é o de convencer e/ou persuadir.
Segundo Reboul (1998), o convencimento é pautado no reforço do posicionamento
por meio da lógica, buscando associações e dados. Já a dimensão persuasiva
acontece no campo da emoção, assim os argumentos se fortalecem a partir da
compaixão, medo, amor e outros sentimentos de grande intensidade.
Diante disso, é possível perceber que o discurso publicitário age nos trailers
fílmicos de forma persuasiva, visto que a trilha sonora, as legendas e a cenas
escolhidas têm o propósito de atingir emocionalmente o espectador. São utilizados
mecanismos linguísticos e imagéticos que fazem com que o leitor/interlocutor crie
associações positivas com o filme ali promovido, e com isso, perceba-se com
vontade de consumir o lançamento.
Reconhecer a intenções implícitas no discurso publicitário midiático é, de fato,
essencial para a construção de um bom leitor, pois com o fácil acesso ao mundo
digital, os jovens e adolescentes veem com grande frequência trailers e outros
gêneros similares, e os recursos retóricos com os quais o discurso publicitário opera
tem um grande poder sobre a percepção social do sujeito. Dessa forma, é
importante que o ensino de língua portuguesa nas escolas ensine aos estudantes
diferentes formas explorar as linguagens presentes nesse gênero textual.
2.2 A multimodalidade e os recursos multissemióticos
Devido ao crescente aparecimento de textos vinculados às esferas
tecnológicas e de informação na sociedade, obteve-se uma demanda por diferentes
tipos de leitura, norteadas pelas mais diversas práticas comunicativas, uma vez que
o letramento visual está diretamente relacionado com a organização social das
comunidades, e consequentemente com a organização dos gêneros textuais.
48
Assim, o texto basicamente escrito e limitado aos aspectos discursivos escritos e
gramaticais, organizado de forma rígida, hierárquica e linear, e utilizando a
linguagem visual e imagética somente de forma acessória deixou de ser padrão e
recorrente. O texto, então, passa a ser multimodal, novas concepções, múltiplas
linguagens. A escrita passa, então, a ser ressignificada e, consequentemente, novos
meios de leitura são ampliados, requeridos e evidenciados.
Ainda sobre as definições de multimodalidade, podemos destacar os
conceitos apresentados por Jewitt (2009) apud Dionísio (2014, p. 48, 49) que
disserta que multimodalidade é uma abordagem interdisciplinar que entende a
comunicação e a representação como envolvendo mais que a língua. A autora ainda
postula três pressupostos teóricos que, interconectados, estão subjacentes à
multimodalidade:
Primeiro, a multimodalidade pressupõe que a representação e a
comunicação sempre se baseiam em uma multiplicidade de modos,
todos contribuindo para o significado. Em segundo lugar, a
multimodalidade pressupõe que os recursos são socialmente
modelados através do tempo para se tornarem geradores de
sentido,
os
quais
articulam
os
significados
(sociais,
individuais/afetivos) exigidos pelos requerimentos de diversas
comunidades. Finalmente, a multimodalidade pressupõe pessoas
orquestrando o sentido através de uma seleção e configuração
particular de modos, enfatizando a importância da interação entre
modos. (JEWITT, 2009).
De acordo com a teoria da semiótica social (KRESS e VAN LEEUWEN 1996
apud Dionísio 2006), um texto pode ser formado por um ou vários recursos
semióticos – palavras e imagens, por exemplo – resultando a noção de
multimodalidade. Tais elementos contribuem para a construção de sentido e se
constituem como recursos que devem ser considerados no processo de
interpretação de um texto. Em conformidade, Kress e van Leeuwen apud Gualberto
(1996; 2006) defendem que as estruturas visuais se assemelham as estruturas
linguísticas, visto que aquelas também expressam interpretações particulares da
experiência, além de se constituírem como formas de interação social. Desse modo,
as escolhas de composição de uma imagem também são escolhas de significado:
Significados pertencem à cultura, ao invés de modos semióticos
específicos [...]. Por exemplo, aquilo que é expresso na linguagem
através da escolha entre diferentes classes de palavras e estruturas
oracionais, pode, na comunicação visual, ser expresso através da
escolha entre os diferentes usos de cor ou diferentes estruturas
composicionais. E isso afetará o significado. (KRESS; VAN
LEEUWEN, 1996)
Além disso, os autores também entendem que as imagens e signos
articulam-se em composições visuais produzindo significados ideacionais,
interpessoais e textuais, aliados ao suporte em que circulam, e seu gênero textual.
Assim, um texto pode não se restringir apenas aos recursos linguísticos
escritos estáticos, ou seja, escolhas linguísticas discursivas ou verbais. Um texto
pode utilizar-se ricamente dos mais diversos recursos imagéticos e multissemióticos
disponíveis, como imagens, escrita, caligrafia e tipografia, som, música, figuras
cinéticas, linhas, cores, tamanho, ângulos, entonação, ritmos, efeitos e metáforas
visuais, melodia etc., caracterizando-o, assim, como um texto multimodal.
49
Esses recursos presentes nos textos multimodais estabelecem um modo
novo modo de contemplar, por exemplo, a autoria e a recepção de enunciados.
Assim, o processo de produção textual não é mais exclusivamente linguístico,
integra outros recursos além do texto estritamente verbal e discursivo. Com tudo, as
novas formas de leitura concebidas pelos mais variados textos multimodais
interagem com o leitor-receptor de forma cognitiva. Coscarelli (2012) e Ribeiro
(2012), dizem que os processos cognitivos realizados durante a leitura de um texto
digital, por exemplo, que geralmente apresenta linguagens diversas em sua
composição, são semelhantes aos da leitura de um texto impresso, no qual
normalmente predomina a linguagem verbal escrita. No entanto, segundo os
estudos multimodais propostos por e Kress e van Leeuwen (1998), esses recursos
multissemióticos presentes na composição de um texto agem em concordância com
suas convenções sociais e discursivas, além das redes sistêmicas e metafunções.
2.3 O trailer fílmico
O Trailer fílmico surge a partir do interesse das grandes produtoras
cinematográficas em chamar atenção para o filme a ser lançado. A ideia inicial era
de produzir uma pequena montagem com algumas das cenas do filme, mas com o
crescimento da indústria cinematográfica os produtores passaram a se preocupar
em mostrar, não só o resumo da história, como também apresentar o estilo, os
atores e o visual do filme. A ascensão da indústria cultural a partir do sec. XVII
penetra nos filmes uma nova visão de cinema. Por conseguinte, o lucro passou a
ser o principal objetivo das grandes produtoras, com as quais os filmes eram
vendidos como qualquer outro produto.
Assim sendo, o trailer se torna um instrumento de propaganda. Os estúdios
perceberam que expor uma prévia atraia mais público para a estreia do filme. E logo
surgiram as empresas especializadas apenas na produção de trailers, as quais
aplicam diversas estratégias de marketing para atrair o máximo possível de
pessoas. Hoje é o trailer fílmico o responsável em transmitir a essência do filme
através de recursos multissemióticos usados como estratégias persuasivas, com o
intuito de tocar emocionalmente o público. Assim, Sandmann (2000, p. 27) ressalta
que
Naturalmente vender um produto ou uma ideia é função de toda
linguagem da propaganda e não só quando a função apelativa se faz
presente com suas marcas linguísticas típicas [...]. De certo modo se
pode dizer, pois, que a função persuasiva ou apelativa pode estar
presente mesmo sem as marcas tradicionais [...]. É o caso de se
atingir, por exemplo, a vaidade do interlocutor ou leitor: “não basta
um bom shampoo para fazer a cabeça de uma mulher inteligente.
(SANDMANN, 2000, p.27).
O fato da prévia possuir marcas linguísticas mais suaves comparado a outros
gêneros publicitários muitas vezes não possibilita uma relação do trailer como um
gênero publicitário. As estratégias persuasivas são usadas de modo que o
espectador se sente convidado a ver o filme, a venda acontece de forma implícita.
São essas características do trailer que torna o gênero tão intrigante de ser
trabalhado. Por meio dele, é possível discutir questões sociais, ideológicas, culturais
e identificar como elas atuam linguisticamente. Desse modo, viabiliza um olhar
crítico sobre o mundo, entendendo as relações de poder acerca das estratégias
linguísticas e a importância desse conhecimento para construção de um cidadão
consciente.
50
3. Os recursos multimodais no discurso publicitário para a construção de
multiletramentos
Para Rojo (2011), o desenvolvimento das tecnologias da comunicação
juntamente com as práticas sociais específicas de leitura e escrita exige que a
escola foque seu trabalho nessa realidade e parta dela para ensinar. Ainda, sobre a
ascensão da tecnologia e consequentemente das novas práticas de leitura e escrita
multimodais, a autora salienta que
(...) ocorre que, se houve e se há essa mudança, as tecnologias e os
textos contemporâneos, deve haver também uma mudança na
maneira como a escola aborda os letramentos requeridos por essas
mudanças” (ROJO, 2011, p. 99).
Dessarte, os indivíduos devem estar preparados para lidar e decodificar os
textos multimodais em seus diferentes suportes e gêneros textuais. Para tanto,
devem ser multiletrados, ou seja, estarem aptos a reconhecer, decodificar, e
compreender textos multimodais e os recursos linguísticos e imagéticos presentes
nestes textos. Devem, portanto, adquirir os multiletramentos.
Rojo (2013, p.21) define multiletramentos como
práticas de trato com os textos multimodais ou multissemióticos
contemporâneos – majoritariamente digitais, mas também digitais
impressos – que incluem procedimentos (como gestos para ler, por
exemplo) e capacidades de leitura e produção que vão muito além
da compreensão e produção de textos escritos, pois incorporem a
leitura e (re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e
infográficos, vídeos, áudio etc. (ROJO, 2013, p.21)
Partindo dessa premissa, faz-se necessário inserir e dar importância para o
trabalho com os textos multimodais, a fim de desenvolver as capacidades de leitura
e produção desses textos, e, consequentemente, formar indivíduos mais críticos e
reflexivos. Sendo assim, DIONISIO (2014, p. 41) orienta que “Trazer para o espaço
escolar uma diversidade de gêneros textuais em que ocorra uma combinação de
recursos semióticos significa promover o desenvolvimento cognitivo de nossos
aprendizes.”
Considerando que as novas gerações já nascem conectadas e crescem sendo
bombardeadas de informações visuais é de extrema importância que a escola
acompanhe essa mudança e contribua para que os olhares possam ser educados
para diferentes leituras. Logo, preparar o estudante para ler o mundo, a fim de que
ele entenda que a interação se dá em diferentes níveis de linguagem é proporcionar
um ensino de língua portuguesa produtivo e eficaz. Para tanto, são utilizados os
mais diversos gêneros textuais. Para Dionisio (2014, p. 65, 66) “a compreensão
destes gêneros exige de seus leitores familiaridade com a tessitura entre as
linguagens utilizadas, com as convenções apresentadas, ou seja, as convenções do
design.” Esta competência se constrói (e também se revela) com base em nossas
experiências sociais mediadas por textos, pelas nossas práticas de letramento.
Dessa forma, estas práticas estabelecem a linguagem como
uma herança social, uma ‘realidade primeira’, que,
assimilada, envolve os indivíduos e faz com que as
mentais, emocionais e perceptivas sejam reguladas
simbolismo. (...) A linguagem permeia o conhecimento e
uma vez
estruturas
pelo seu
as formas
51
de conhecer, o pensamento e as formas de pensar, a comunicação
e os modos de comunicar, a ação e os modos de agir. Ela é a roda
inventada, que movimenta o homem e é movimentada pelo homem.
Produto e produção cultural, nascida por força das práticas sociais, a
linguagem é humana e, tal como o homem, destaca-se pelo seu
caráter criativo, contraditório, pluridimensional, múltiplo e singular, a
um só tempo. (BRASIL, 2000, p. 125).
Por meio de recursos multimodais o trailer fílmico, que se constitui e atua por
meio do gênero textual anúncio publicitário, por se tratar utilizar a linguagem
multimodal possibilita aos alunos uma experiência diferenciada por meio de uma
linguagem próxima a do público jovem em seu dia-a-dia, transformando a aula de
português não apenas em um ambiente de ensino e aprendizagem, mas também
em um ambiente onde o discente sinta-se pertencente e autônomo. Ele precisa
compreender de que forma as habilidades linguísticas são usadas para persuadir,
convencer, cativar e acionar diferentes reações no interlocutor. Assim, o aluno
passa a ser capaz de reconhecer diferentes estratégias e de se posicionar de uma
forma consciente perante a sociedade.
Para que se construa uma relação positiva e satisfatória com o ensino de
língua portuguesa é necessário, por parte docente, buscar atividades que façam
relação com o contexto sócio cultural do estudante. O trailer fílmico é uma excelente
ferramenta para trabalhar a visão sobre linguagem em sala de aula. Além disso, a
prévia de um filme pode ser escolhida pelos próprios alunos, o que desperta maior
interesse e proporciona discussões mais envolventes.
4. Análise de dados
A escolha das linguagens ocorre dentro do propósito comunicativo, dos
objetivos de comunicação, do tipo de público-alvo e do gênero. Esses são fatores
imprescindíveis e determinantes para as escolhas que serão feitas na produção do
texto. São eles que motivam, guiam e dão sentido a qualquer escolha de
composição do texto multimodal.
A prévia selecionada foi o trailer do filme “Mullher Maravilha (Wonder
Woman)” da produtora Warner Bros e do estudios DC Comics, lançado no ano de
2017. O trailer se inicia apresentando em letras chamativas os logos das empresas
desenvolvedoras. Assim como em qualquer propaganda ou anuncio, a marca
precisa ser visível para futuras associações do espectador. Tais logos são inseridos
já no começo, como uma primeira “visão” para que o espectador fixe a marca,
provavelmente já conhecida pelo público. Inicia-se uma música com ‘batidas’
intensas e logo nas primeiras cenas são mostrados os cenários onde será
desenvolvida a história do filme.
52
•
Logo das produtoras: é apresentado no começo do trailer;
•
Música (soundtrack), efeitos de sonoplastia;
•
Efeitos especiais de computador;
•
Narração;
•
Frames do cenário onde se passará a história (padrão hollywoodiano de
trailers).
•
Frames de chamada: abordagem onde é feito a persuasão para,
posteriormente o consumo do filme.
•
Os demais cortes de frames no decorrer do trailer também são
proposicionais.
Em seguida, a personagem principal, Diana, é filmada em um ângulo contraplongéè, dando a ideia de grandeza.
Na primeira cena, a personagem demonstra toda sua força e independência
para causar no espectador identificação ou desejo de ser, o plano “ideal”. O enfoque
em acessórios como corda e bracelete pode ser para futuras vendas de produtos
relacionados, como brinquedos, fantasias, etc. Plano “detalhe”. Outro aspecto
importante é o fato do filme ser direcionado a um certo público, ao mesmo tempo
que se utiliza de uma temática em alta nos últimos anos, que é o empoderamento
feminino. A personagem principal é uma das poucas mulheres poderosas, fortes, e
hábeis do universo dos super-heróis. A inclusão de uma personagem assim
aproxima o público feminino, onde ele se identifica, e, sentindo-se atraído, muito
53
provavelmente irá consumir o filme e os demais produtos advindos da marca
promovida.
As cenas seguintes apresentam os acessórios da personagem em um plano
detalhe, com a intenção de atrair o telespectador para a compra de produtos como
brinquedos, fantasias e outros. Por fim aparecem frames de chamada para
posteriormente consumir o filme que será lançado.
5. Considerações finais
A partir do estudo empreendido, foi possível constatar que o discurso
publicitário, mais especificamente o presente nos trailers fílmicos, utilizam-se de
recursos imagéticos e linguísticos para cumprir com seu objetivo de persuadir e
vender um filme. Assim, constitui-se como um instrumento em potencial para os
processos de aprendizagem, uma vez que requer que seus leitores sejam
multiletrados, ou seja, estejam aptos a reconhecer os recursos multimodais que se
constituem como meios de persuasão presentes neste gênero. Também foi possível
entender as atuais características do trailer fílmico e sua construção como gênero
publicitário, visto que a previa do filme carrega uma grande variedade de recursos
linguísticos, com os quais o docente pode trabalhar no ensino de língua portuguesa
a fim de contribuir para formação de leitores e cidadãos críticos e proficientes.
O trailer proporciona uma experiência audiovisual impactante para o
estudante, cooperando para que ele se engaje nas discussões acerca da metragem
e seja capaz de compreender a amplitude da linguagem e das estratégias
linguísticas que circulam no contexto em seu contexto. Desse modo, propor uma
reflexão acerca da análise do discurso é provocar questionamentos sobre as
estratégias de manipulação, e com isso resistir à padronização das ideias e
54
consumir de modo consciente e autônomo.
6.
Referencias
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DIONISIO, A. & Vasconcelos, L. Genres and Multimedia Learning: some
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Gaydeckza, Beatriz & Brito, Karim (org.) Gêneros Textuais: reflexões e ensino.
São Paulo, Parábola. 2011.
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ROJO, R. & Moura, e. Multiletramentos na Escola. São Paulo: Parábola, 2013.
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communication. in: P. Levine & R. scoLLon. Discourse & Technology: Multimodal
Discourse Analysis. Georgetown: Georgetown University Press, 2004.
VESTERGAARD, Torben; SCHRODER, Kim. A Linguagem da Propaganda.
55
Editora Martins Fontes, 1994.
56
UM ENSAIO REFLEXIVO SOBRE O LIVRE
ARBITRIO EXPOSTO NA OBRA DE
SÓFOCLES: TRILOIGA TEBANA
ALLAN J M SILVA13
Faculdade de Letras – FALE
Universidade Federal do Pará – UFPA
Rua Augusto Correa, 1 – Guamá, Belém – Pará, Espaço Universitário Mirante do
Rio, Cep. 66075-110.
allan.llp@outlook.com
Resumo. A Bíblia nos relata que nascemos livres e, que nos foi dado o
livre arbítrio de escolha ainda no Éden por Deus Todo Poderoso. Porém,
ao pensar no destino que cerca a vida humana, no propósito destinado
para todos no momento de seu nascimento, na onisciência divina e na
predestinação, é possível pensar que o homem não é senhor, total, de
seu destino, é neste momento que as questões passam a se desvelar. O
presente ensaio trata das seguintes questões: será que realmente somos
livres? Ou somos apenas peças de tabuleiro nas mãos dos "deuses"?
Perguntas como essas nos levam de encontro as Tragédias Gregas, isto
é, narrativas literárias que envolviam um mundo dominado pelos deuses
e pelos heróis dentro de um contexto mitológico e verossímil, a qual ao
destino era atribuído a causa de todos os males direcionados a
humanidade. Para embasar a proposta de reflexão descrito neste ensaio,
foi realizado uma análise da obra de Sófocles: Trilogia Tebana,
necessariamente "Édipo Rei" e "Édipo em Colono", em conjunto com
textos publicados por autores como Sartre (2002) e a Bíblia Sagrada que
tratam do assunto em questão
Palavras chave: livre arbítrio, determinismo, édipo rei, édipo em colono.
Abstract. The Bible tells us that we were born free and, which was given
us the free will of choice still in Eden by God Almighty. However, in
thinking of the destiny that surrounds human life, in the purpose destined
for all at the time of his birth, in the divine omniscience and in
predestination, it is possible to think that man is not the Lord, total, of his
destiny, is at this moment that the questions are revealed. This essay
deals with the following questions: Are we really free? Or are we just
board parts in the hands of the gods? Questions like these lead us against
the Greek tragedies, that is, literary narratives involving a world dominated
by the gods and the heroes within a mythological and believable context,
which the destiny was attributed to the cause of all evils directed to
mankind. To base the reflection proposal described in this essay, an
analysis of the work of Sophocles was conducted: Trilogy Theban,
necessarily "Oedipus King" and "Oedipus in Colono", together with texts
published by authors such as Sartre (2002) and the Sacred Bible that deal
with the subject in question.
Key words: Free will, determinism, Oedipus King, Oedipus in Colono.
1. Introdução
13
Graduando do Curso de Letras Hab. Língua Portuguesa e Bolsista do Programa de Educação
Tutorial do Curso de Letras (PET LETRAS) - UFPA
57
Pensar o livre arbítrio é por em debate um dos maiores tabus já criados pelo
homem. Desde a idade média a igreja vem alimentando tal teoria com o intuito de
que homem fosse responsabilizado pelos seus atos, sejam este de qualquer
natureza.
Não se pode discutir sobre livre arbítrio sem antes falar de determinismo,
predestinação, vontade divina, etc. A ideia de que Deus, ou os deuses, controlam o
universo inteiro dentro do campo da onisciência nos faz pensar que não somos
realmente livres, ou ainda, que todas as nossas escolhas nos levarão a um mesmo
destino e resultado, logo, estaríamos subjugados a uma vontade divina exterior.
Mas se tomarmos de posse da teoria de que o homem é senhor de si e capaz de
mudar seu destino, então, teríamos que admitir que Deus, ou os deuses, não
existem, ou ainda, que são indiferentes para com a humanidade e suas atividades,
não possuindo influência nenhuma nas escolhas dos mesmos.
2. Édipo e sua predestinação
Quando se fala em predestinação, também se fala em destino, determinismo,
em propósito. Há quem diga, os mais céticos, que tudo isso não passa de bobagem,
ou que se trata de uma crença sem fundamento, que contradiz a lógica e a razão,
pois, o homem se tornou sapiente, e junto com essa sapiência se desenvolveu a
arrogância e prepotência, se achando senhor de si, logo, negando a existência de
qualquer influência divina ou sobrenatural na criação, no ciclo constante que rege o
universo, acreditando apenas naquilo que é físico, material, inteligível.
Entretanto, o que o homem não consegue compreender, é o porquê que as
coisas ocorrem de forma diferente do que se planeja. Ora, com o advento da
tecnologia, com o avanço da ciência, robótica e nanotecnologia, ainda sim é
impossível, por exemplo, prever o futuro; ou ainda voltar no tempo; e mais,
impossível evitar tais tragédias e fatalidades que afligem pessoas inocentes todos
os dias neste mundo.
Na obra de Sófocles, o personagem principal era uma criança comum, como
todas as outras ao nascer, até então inocente se não fosse tamanho destino cruel
que fora lançado sobre ele. Ao nascer, foi dito que a criança cresceria, mataria o pai
e desposaria a própria mãe, dando origem a filhos/irmãos da mesma mãe que o
gerou, para a época não havia crime maior que este, sinônimo de tamanha
vergonha, desventura e escândalo.
“[...]. Agora ouve: o homem que vens procurando entre ameaças e
discursos incessantes sobre o crime contra o rei Laio, esse homem,
Édipo, está aqui em Tebas e se faz passar por estrangeiro, mas
todos verão bem cedo que ele nasceu aqui e essa revelação não há
de lhe proporcionar prazer algum; ele, que agora vê demais, ficará
cego; ele, que agora é rico, pedirá esmolas e arrastará seus passos
em terras de exílio, tateando o chão à sua frente com um bordão.
Dentro de pouco tempo saberão que ele ao mesmo tempo é irmão e
pai dos muitos filhos com quem vive, filho e consorte da mulher de
quem nasceu; e que ele fecundou a esposa do próprio pai depois de
havê-lo assassinado! [...]” ! – (Palavras de Tirésias fazendo
referência a Édipo, Trilogia Tebana, Édipo Rei, p. 38).
Um fato interessante, é que ele (Édipo14) sabia de seu destino, ou seja, ele
tinha total conhecimento do que ele iria cometer, logo, ele decide se afastar de
14
Personagem principal da obra Édipo Rei, primeira da Trilogia escrita por Sófocles.
58
Corinto, sua cidade, deixando seus pais para que em nenhuma circunstância ele
viesse a cometer tais crimes, porém, uma sequência de fatos faz com que tudo que
ele temia, viesse a acontecer do mesmo jeito como fora predito por Apolo por
intermédio do oráculo de Delfos.
“[...]. Sem o conhecimento de meus pais, um dia fui ao oráculo de
Delfos, mas Apolo não se dignou de desfazer as minhas dúvidas;
anunciou-me claramente, todavia, maiores infortúnios, trágicos,
terríveis; eu me uniria um dia à minha própria mãe e mostraria aos
homens descendência impura depois de assassinar o pai que me
deu vida. [...]”! – (Palavras de Édipo à Jocasta. Trilogia Tebana,
Édipo Rei, p. 57).
O que Édipo não sabia, era que seus supostos pais deixados em Corinto, não
eram de fato seus pais de sangue, o que torna a trama um tanto quanto
interessante, pois a cada escolha feita, a cada decisão tomada, Édipo se
aproximava mais e mais de seu destino cruel. Algumas religiões afirmam que
quando se é predestinado a algo, é impossível desfazê-lo. Era um fator
determinante na idade média, onde a igreja católica adotava a doutrina calvinista 15
que dizia que Deus escolhia e elegia previamente os seus, e isso era absoluto e
imutável. Mas, tal doutrina era usada para controle popular, ou seja, o Rei e os
Nobres queriam permanecer no poder, para isso se dizia que o Rei era divino e sua
autoridade era provida por Deus, e ninguém podia mudar isso. Também, era usado
como artificio de soberania e superioridade pelos nobres e pelo clero, por exemplo,
se você fosse pobre, você seria pobre para o resto da vida e isso valia para sua
descendência inteira, pois a mesma estava predestinada a isso.
As escolhas feitas pela seu verdadeiro pai o rei Laio, desencadearam um
efeito dominó irreversível. Laio, tentou lhe tirar a vida, entregando-o para um pastor
para ser lançado no precipício. Neste momento entra um detalhe muito importante
na história, perceba que cada personagem se deparou com um momento de
extrema tensão, onde tiveram que tomar uma decisão, e cada decisão tomada foi de
total relevância para o cumprimento dos presságios proferidos pelos oráculos, o que
nos remete a ideia de que, o destino pode, ou não, ser alterado de acordo com as
decisões que tomamos, tanto para o bem quanto para o mal.
A questão é, se Édipo soubesse de toda a verdade, tendo crescido na casa
do rei Laio, ele iria cometer tais crimes?
3. O livre arbítrio em contradição com o determinismo
Para o Cristianismo, Deus nos concedeu livre arbítrio de escolha, ou seja, o
que escolhemos ser, seguir, viver é de extrema responsabilidade nossa. Sartre
(2002), apresenta em seu livro “O Ser e o Nada” na seção dedicada a análise da
liberdade, uma teoria que aponta o ser humano como um ser que escapa a todo o
rígido determinismo exterior e interior, sendo este o único responsável pelas suas
ações.
Nietzsche (2006), afirma em seu livro Crepúsculo dos Ídolos que livre arbítrio
é um grande engano e que a única condição pela qual todas as coisas são regidas é
a necessidade, logo, acreditar no livre arbítrio não seria só um engano, mas também
uma superestima.
Para Sartre (2002), existe erros tanto na teoria determinista quanto na teoria
15
Doutrina criada por João Calvino, pai do calvinismo, personagem de grande influência na reforma
protestante.
59
do livre arbítrio, o determinismo apresenta um ponto correto que é o de considerar
que todo ato, ou ação, é regido pela necessidade, o problema está em não
questionar essa causa tal como ela é, ou seja, o que torna uma necessidade
necessária? O livre arbítrio por sua vez não apresenta argumentos profundos,
exceto o de que somos providos de capacidade de escolha, negar tal teoria seria
assumir um aspecto contra intuitivo.
Ao ler Édipo Rei é perceptível o quanto as pessoas daquela época eram
apegadas as suas crenças, ao amor e respeito para com os deuses, ao sagrado, a
valorização aos presságios relatados pelos oráculos, etc. Essa postura em crer
cegamente em algo, seria esta a razão e causa de tantos males ao homem? Até
certo ponto, não pela sua fé ou crença propriamente dita, mas por não se deixar
permitir, não se deixar conhecer. Os adeptos da teoria do livre arbítrio acreditam em
uma natureza humana em comum que deriva do pecado e de conhecimento dos
deuses, ou seja, somos todos diferentes um do outro, mas com uma natureza em
comum, logo, esta natureza é o que nos leva a fazer más escolhas, cometer crimes,
etc., para tanto devemos escolher se vamos ou não seguir tal caminho, se vamos ou
não nos entregar a esta natureza. Quando o homem não conhece a si mesmo, ele é
comparado como barco à deriva, solto, sem rumo no oceano. Afinal, por que o ser
humano sofre tanto? A resposta para isso, nada mais é que a falta de conhecimento
de si próprio e as más escolhas feitas por este e as consequências disso, é descrito
no trecho bíblico a seguir:
“Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque, tudo o que o
que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na
sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas o que semeia do
Espirito, do Espirito ceifará a vida eterna”. – (Bíblia Sagrada. Gálatas
6:7-8).
O livre arbítrio de escolha faz com que o homem pense ser o senhor de todas
as coisas, ele cria em sua mente a ideia falsa de que pode fazer o que quiser e que
não será responsável por isso. Ao ouvir uma profecia ou um presságio, os homens
da época tratavam de fazer algo para mudar a trajetória do que foi predito, por
medo, temor, e outros motivos, no entanto, será que tal atitude também não
contribui para a consumação de tais presságios?
Os deuses possuem o dom da onisciência, o que permite a eles saberem
todas as coisas, mas se os deuses sabem o que faremos, e as decisões que
tomaremos, como podemos ter o livre arbítrio? Uma explicação, aproximada, nos
mostra que, os deuses conhecem a tal natureza humana citada anteriormente, ou
seja, eles sabem como iremos proceder diante de determina situação de escolha,
sabem que somos corruptos e pecaminosos, é este conhecer que permite aos
deuses saberem o que de fato iremos escolher ou fazer antes mesmo de
decidirmos. O trecho da Bíblia Sagrada a seguir mostra Deus dizendo ao homem
que este possui o livre arbítrio para escolher e que isto influenciará no seu tempo de
vida, porém, Deus também sugere o que deve ser escolhido.
“Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te
tenho proposto a vida e a morte, a benção e a maldição; escolhe,
pois, a vida, para que vivas, tu e a tua semente, amando ao
SENHOR, teu Deus, dando ouvidos à sua voz e te achegando a ele;
pois ele é tua vida e a longura dos teus dias; para que fiques na terra
que o SENHOR jurou a teus pais, a Abraão, a Isaque e a Jacó, que
lhes havia de dar". – (Bíblia Sagrada. Deuteronômio 30:19-20).
O ponto principal está em conhecer a si mesmo, em descobrir sua natureza,
60
seus medos, seus desejos, seu caráter e seu eu16, pois, o ser humano sabendo
quem é, tomaria melhores decisões capazes de mudar seu destino, mas a sua
arrogância e o fato de ser livre o faz cometer erros que o penalizam eternamente,
talvez seja essa liberdade humana a culpada de tantos infortúnios.
A frase “O homem está condenado a ser livre”, de Sartre, quer dizer que o
homem já nasceu livre, ele não criou a si próprio, logo, a partir do momento em que
nasce, este será responsável por tudo quanto fizer. A liberdade em Sartre possui um
aspecto diferenciado, pois, esta não se apresenta como uma dádiva
necessariamente e sim como um fardo que o homem tem que carregar até o dia de
sua morte. Neste contexto é importante pensar de que forma o mundo é
transformado por nossas escolhas, por nossas ações, se é positivo ou negativo e
como isto afeta as pessoas e a nós mesmos.
O destino é caracterizado por ser absoluto, ou seja, seu futuro já está escrito,
você já foi predestinado a algo, a forma como você atinge este destino, ou alcança
seu propósito neste mundo é o que chamamos de determinismo. Se o destino é
absoluto, então não importa quais escolhas façamos, o fim será o mesmo, certo?
Em tese sim, por outro lado, temos o pensamento fantástico de que: não sabemos o
nosso destino ou a que fomos predestinados. Pois, isso é uma questão que precisa
ser desvelada por cada um de nós no decorrer de nossa vida, a única coisa
absoluta neste universo é a morte, afinal, todos morreremos um dia, mas como?
Quando? Onde? De quê? Isso é algo que será definido, por aquilo que escolhemos
fazer ou seguir.
A influência divina nessas questões nos remete à ideia de que estamos
possivelmente sendo controlados, ou manipulados a seguir opções que nos levarão
para aquilo que os deuses nos têm preparado. Se pensarmos assim, chegaremos à
conclusão de que é impossível fugir do destino que nos foi proposto. O intrigante em
tudo isso, é saber: qual o real propósito divino em submeter o homem a tais
provações e situações envolvendo opções e escolhas? Em tese, o objetivo principal
é que venhamos nos descobrir.
4. A Ascensão de Édipo
Édipo conseguiu mudar seu “destino”, pois passou a conhecer a si mesmo e
a entender sua missão nesta terra, o ato de furar os próprios olhos simboliza o
fechar da visão para o palpável, e ao mesmo tempo abri-la para as questões que
regiam o futuro, oculto para os olhos humanos, mas, desveladas para os olhos da
alma. Ao derrotar a esfinge e seu enigma, Édipo foi considerado o salvador de
Tebas, e detentor do conhecimento, mas algo lhe faltava; conhecer a si mesmo, foi
assim que ele descobriu quem ele realmente era, talvez um pouco tarde demais,
mas ainda sim no tempo da graça que lhe fora concedido. Sua missão não estava
ligada somente na desgraça que lhe ocorreu, mas sim na glória que viria após estes
acontecimentos, e nas vidas que seriam alcançadas por intermédio de seu
sacrifício.
“Venho para ofertar-te meu sofrido corpo; ele é desagradável para
quem o vê, mas o proveito que te poderá trazer torna-o mais valioso
que o corpo mais belo”. – (Palavras de Édipo ao rei de Atenas,
Teseu, na obra Édipo em Colono, p. 135).
A mudança de destino não se dá de uma hora para outra, exige
perseverança e fé naquilo que se acredita. Você pode nascer pobre, mas tem a
16
Grifo de destaque.
61
escolha de continuar pobre ou trabalhar duro e mudar sua história. Temos um
grande exemplo na história chamado Jesus Cristo, o filho de Deus criado na terra
com uma dolorosa missão a cumprir: o de morrer pela redenção da humanidade.
Jesus sabia de tudo quanto havia de passar, sabia da coroa de espinhos, das
chicotadas que levaria, da pesada cruz que teria de carregar pelo caminho do
Gólgota, mas também sabia da glória que o esperava no terceiro dia após sua
morte, a qual ressuscitaria dos mortos e subiria aos céus como Deus coroado. Ele
poderia muito bem ficar em casa, trabalhar normalmente até que chegasse o dia de
sua morte, porém, preferiu a ajudar, e servir a humanidade com seus milagres e
ensinamentos, para que ao morrer fosse eternizado para sempre.
Assim foi Édipo, viveu como mortal carregando sobre si um fardo pesado que
ninguém, senão ele, seria capaz de carregar, sofreu os piores males que um
homem poderia sofrer, mas, diante de tudo quando passou, não levantou a mão em
punição a ninguém, senão a si próprio, deste modo chegou ao fim de forma gloriosa,
tanto, que uma voz como de um deus o chamou para si dizendo: “Por que tardamos
tanto a pôr-nos a caminho, Édipo? Fazes-te esperar há muito tempo!17 ”
O verdadeiro propósito divino para Édipo não era de fato o sofrimento que lhe
foi proposto, mas, que em função desse sofrimento, o mesmo viesse a conhecer
seu interior, o seu eu, de tal modo a atingir a redenção pelos seus pecados e
desventuras, alcançando assim graça aos olhos dos deuses, além de proporcionar
para aqueles que o acolheram em tempos de má sorte: paz, segurança e
prosperidade. Pois, o lugar onde jaz, agora é sagrado e nenhum mortal tem
permissão de lhe perturbar em seu descanso eterno.
Assim morreu Édipo, como aquele que arrebatado foi pelos deuses, em um
imenso clarão de luz, eternizando para sempre sua história, presente nos cantos
heroicos daquela época e nos registros literários de onde para sempre será
lembrado.
5. Considerações Finais
Somos responsáveis por aquilo que escolhemos, nossas escolhas e
convicções é o que nos faz ser quem realmente somos. Édipo possuía
conhecimento sobre muitas coisas, mas não conhecia a si mesmo, sua história, sua
verdade, isto o fez tomar decisões que o levaram a ruína e a ser considerado o pior
dos homens. No entanto, ao buscar o conhecimento de si, a desnudar sua alma,
passando a entender muitas coisas das quais antes não compreendia, alcançando
assim redenção aos olhos dos deuses, adentrando no mais sagrado dos jardins se
tornando o mais sagrado dos homens.
6. Referências
Bíblia Sagrada. Versão Almeida Revista e Corrigida. Edição de 1995. Editora
CPAD.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos – Col. Clássicos de Ouro. 5 ed.
Editora Nova Fronteira, 2000.
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Editora Vozes. Edição 11, 2002.
SÓFOCLES. Trilogia Tebana – Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, Tradução:
17
Trecho referente a voz do deus que, insistente, chamou Édipo momentos antes de sua “morte”, descrita na
obra Édipo em Colono, p. 187
62
Mario da Gama Cury, Editora Zahar, Volume I, 15ª reimpressão.
63
SEMÂNTICA E ENSINO: UMA ABORDAGEM
CRÍTICA DO ENSINO DA SEMÂNTICA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA
ALLAN J M SILVA, BARBARA T S SILVA, BIANCA D GOES, BRENA R HOMEM,
PAULA C F FERREIRA
Faculdade de Letras – FALE
Universidade Federal do Pará – UFPA
Rua Augusto Correa, 1 – Guamá, Belém – Pará, Espaço Universitário Mirante do
Rio, Cep. 66075-110.
allan.llp@outlook.com, barbarasilvasantos15@gmail.com,
biancagoes123@gmail.com, brenareys.adry@gmail.com,
paulacristinaff30@gmail.com
Resumo. Atualmente o Brasil está entre os países com o pior sistema
educacional do mundo e, isso é reflexo do descaso, comodismo e falta de
investimentos que fomentem uma educação de qualidade que atendem
os padrões mínimos aceitáveis. É um efeito cascata que engloba desde a
participação do estado na educação até a posição do aluno em sala de
aula, isto é, não temos um único culpado nesse contexto. O presente
trabalho aborda uma questão bastante discutida entre educadores,
linguistas e semanticistas acerca do ensino da Semântica na educação
básica. Tal qual sua importância no desenvolvimento da aprendizagem e
compreensão do funcionamento da língua, isto é, dos aspectos
relacionados aos fenômenos semânticos. O objetivo deste é estabelecer
um debate reflexivo sobre os possíveis problemas que abarcam o ensino
da Semântica nas escolas e, o impacto desses problemas na formação
do aluno quanto cidadão crítico-reflexivo. Para sanar tal objetivo foi
desenvolvida uma pesquisa com base nos Parâmetros Curriculares
Nacionais – PCNs (1997) em comparação com estudos desenvolvidos
sobre esta temática por autores aqui citados, tais como: Ferrarezi (2008)
e Souza (2013).
Palavras chave: Ensino, Semântica, PCN.
Abstract. Currently Brazil is among the countries with the worst
educational system in the world and, this is reflection of the case,
convenience and lack of investments that promote a quality education that
meets the acceptable minimum standards. It is a cascade effect that
encompasses since the state's participation in education to the student's
position in the classroom, i.e. we do not have a single culprit in this
context. The present work addresses a fairly discussed issue between
educators, linguists and semanticists about the teaching of semantics in
basic education. such as its importance in the development of learning
and understanding the functioning of the language, i.e., aspects related to
semantic phenomena. The objective of this is to establish a reflective
debate on the possible problems that encompass the teaching of
semantics in schools and the impact of these problems in the formation of
the student as a critical-reflective citizen. To remedy such an objective, a
64
survey was developed based on the national Curricular parameters –
PCNs (1997) in comparison with studies developed on this thematic by
the authors cited herein, such as: Ferrarezi (2008) and Souza (2013).
Key words: Teaching, semantics, PCN.
1. Introdução
A educação do Brasil tem sido tópico de debates e, discussões a bastante
tempo, pois para um país que se diz estar em desenvolvimento a educação deveria
ser uma das prioridades de maior relevância, no entanto, não é isto que se observa.
Um dos principais problemas está diretamente relacionado com a leitura e
escrita dos alunos integrados ao sistema educacional brasileiro, e isto independe se
a educação é privada ou pública. Dados registrados por pesquisas e publicados nos
documentos oficiais, os PCNs, de 1997 e 1998 afirmam que a maior dificuldade gira
em tornos destes dois temas supracitados anteriormente.
Outro problema, apontado pelos PCNs, é a dificuldade que a escola tem em
desenvolver o ensino de língua de forma plena e satisfatória para os padrões de
qualidade pré-determinados por estes documentos. As escolas, em grande maioria,
ainda se detêm em padrões muito antigos e ultrapassados para o ensino de língua,
ainda voltados para gramaticalização, as metodologias não satisfazem as
competências a serem desenvolvidas pelos alunos previstas nos PCNs. Logo, é
possível atribuir esta deficiência a ação de dois personagens: o educador e/ou a
gestão escolar. Há situações em que ambos corroboram destes métodos arcaicos, e
há casos em que apenas um destes atua com tal impacto negativo no processo de
aprendizagem.
Quando se trata do educador a questão é mais complicada, pois não se trata
apenas de uma reformulação metodológica, mas também todos os problemas que o
envolvem como: baixa capacitação, desvalorização da categoria, salários baixos,
etc. e, não menos importante, o modo como este concebe a linguagem. Segundo
Geraldi (2011), sua postura ideológica de concepção da linguagem interfere de
forma direta no modo como este trabalha o ensino de língua, escolhe seus textos e
formula suas metodologias.
Quanto a gestão escolar o problema se apresenta de forma menos complexa,
pois, no geral este não interfere diretamente no ensino, no entanto, ainda existe
casos em que a gestão impõe ao educador regras e padrões de ensino a serem
seguidas, impedindo que este atue de forma autônoma no processo de ensinoaprendizagem.
Com o advento da linguística e dos diversos ramos de pesquisa emergentes
desta, o ensino de língua sofreu um processo de reformulação. A gramática
normativa não deixou de ser importante, no entanto, deixou de ser absoluta no
ensino dando lugar a outros estudos, tais como: a sociolinguística; análise do
discurso; psicolinguística, dentre outros.
2. O que diz os PCNs?
2.1. Formação plena do sujeito crítico
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) trabalham com o pressuposto
de que as escolas possuem estrutura suficientemente adequada para colocar em
prática aquilo que é descrito em seus textos. Tal estrutura aqui colocada não
envolve apenas acesso a tecnologias, ambiente de ensino adequado, etc., não
apenas o espaço, mas também a próprias metodologias empregadas para o ensino
65
nessas escolas.
O primeiro ponto de discussão é retirado logo no início do documento que diz
respeito aos objetivos indicados pelos PCNs para ensino fundamental. Neste é
salientado a questão do favorecimento da interação do aluno com a sociedade, de
modo que este possa desenvolver no decorrer de sua formação básica a
capacidade de compreensão e expressão em situações comunicativas.
2.2.
O Ensino da Língua Materna
Essa questão está evidenciada logo no primeiro tópico Caracterização da
área da Língua Portuguesa, a qual destaca o possível motivo para educação no
Brasil ser tão ruim e, tal motivo está relacionado com a dificuldade que as escolas
têm em ensinar a Ler e Escrever. Isto também está interligado com o advento da
linguística no ensino de língua portuguesa frente a gramática, influenciando assim
na reformulação do processo de ensino.
Segundo Ilari (2003), essa influência não chegou a modificar totalmente a
proposta pedagógica para o ensino de língua materna, uma vez que se acreditava
que a Linguística substituiria a Gramática e a Filologia, renovando, assim o ensino
da língua.
2.3.
O Ensino da Semântica
Para introduzir este tópico é necessário o conhecimento do que vem a ser
Semântica dentro de um contexto linguístico. Segundo Oliveira (2012), Semântica é
o estudo do “significado” das palavras e das sentenças, cujo objetivo é descrever a
capacidade que o falante tem de interpretar qualquer sentença de sua língua. Dessa
forma o aluno precisa não somente ler e escrever, mas compreender o sentido, o
significado daquilo que está lendo, desenvolvendo assim sua capacidade de
compreensão e reflexão quanto sujeito crítico social.
Olivan (2009), afirma:
“A proposta dos parâmetros não despreza o ensino da gramática
normativa, mas sim questiona a forma como esta vem sendo trabalhada e
propões um ensino de Língua Portuguesa com vistas na dimensão
semântica e/ou discursiva da língua, afinal, é através do estudo da
semântica, especificamente a semântica da enunciação, que se consegue,
a partir de situações concretas de comunicação, ampliar a abordagem
gramatical. Logo, a presença da semântica no ensino de Língua
Portuguesa tem como objetivo promover a reflexão sobre os recursos
semântico-expressivos da língua, desenvolvendo, consequentemente, a
competência linguística e comunicativa do aluno e esclarecendo os
mecanismos de funcionamento da língua.”
Ferreira (2014) afirma que “O significado é importante para os estudos
gramaticais, principalmente se o estudo se situa no nível da frase. Não se pode ter
uma gramática sem levar em conta o seu significado.”
Entretanto, a realidade escolar é bem diferente, o professor/educador carece
de metodologias capazes de compartilhar tal ensinamento de forma a ser entendido
e usado no contexto social pelos seus alunos. Muitos ainda ensinam a língua de
uma forma a favorecer a gramática e esquecendo todo o contexto semântico a qual
a mesma está inserida.
3. O ensino da semântica
3.1. O papel dos envolvidos
66
3.1.1. O Estado
O estado é o primeiro envolvido, este não faz referência ao governo
propriamente dito, mas, aos órgãos regentes da educação que manipulam a forma
de ensino da língua, e que têm por função a formulação e confecção dos materiais
didáticos que posteriormente serão utilizados pelo docente dentro de sala de aula.
Entretanto, órgãos como o Ministério da Educação (MEC) que é um órgão
voltado para as políticas de ensino no Brasil, atualmente, possui o papel de atender,
promover e desenvolver todas as esferas da educação no país. Tem-se também a
Secretaria Municipal de Educação (SEDUC) que por si só têm como papel principal,
executar a Política Municipal de Educação e o Plano Municipal de Educação,
responsabilizando-se pela Educação Básica nos níveis infantil e fundamental.
Ambos os órgãos são responsáveis, também, pela formulação, confecção e
distribuição dos materiais didáticos para todas as escolas do país. Estes materiais
acabam influenciando de forma indireta na escolha de metodologias utilizadas para
abordar determinados temas, amarrando assim a figura do educador o tornando, em
sua maioria, dependente do material didático.
Ë importante reconhecer também que tais materiais didáticos apresentam, de
fato, orientações interessantes sobre como proceder no ensino da língua, deste
modo, os livros didáticos:
"[...] não devem ser [tomados] como “receitas” ou “soluções” para os
problemas e os dilemas do ensino de Língua Portuguesa, e sim
como referenciais que, uma vez discutidas, compreendidas e
(re)significadas no contexto da ação docente, possam efetivamente
orientar as abordagens a serem utilizadas nas práticas de ensino e
de aprendizagem” (BRASIL, 2006, p. 17).
No entanto, ainda, deixam a desejar no que diz respeito a seleção e
abordagem de conteúdo. Os livros didáticos possuem suas próprias metodologias
de ensino e seu conteúdo é restrito e escolhido pelo MEC. Logo, alguns temas
inerentes a semântica são pouco, ou quase nunca, são abordados dentro de um
plano que satisfaça a disciplina, ou que leve em consideração o contexto.
3.1.2. A escola
A escola é o segundo envolvido no sistema educacional brasileiro, esta por
sua vez, representada pela figura do gestor (diretor) é responsável pela organização
e regularização das leis que regem a educação dentro da escola, assim como
através de políticas educacionais trazer para a escola recursos que favoreçam o
ensino em sua forma plena.
No entanto, ainda que bem estruturada e organizada, a escola ainda
apresenta lacunas que atingem o ensino-aprendizagem de forma negativa. Tal
situação se caracteriza pela maneira como se estabelece a relação entre educador
e a gestão. Há instituições que garantem total autonomia ao educador para
elaboração de suas próprias metodologias e práticas pedagógicas voltadas para o
ensino, porém, há outras instituições que já possuem uma estrutura tradicional fixa,
logo, o educador se vê engessado e, impossibilitado de manipular, ou se apropriar
de ferramentas extras para desenvolver o conteúdo em sala de aula.
De que forma estas diferentes configurações de relação afetam
negativamente o aprendizado do aluno? No primeiro caso, o aluno apresentará
desenvolvimento crescente quanto ao conteúdo que está sendo ensinado, pois com
o educador livre para interagir, as dúvidas e dificuldades terão diversas maneiras de
67
serem sanadas, e consequentemente uma ampliação de conhecimento adquirido.
No segundo caso, é possível que o aluno consiga aprender o conteúdo de forma
eficaz, no entanto, na grande maioria dos casos o aluno se encontra em uma
posição de frustração e desinteresse, pois, o mesmo acaba tendo uma limitação de
sua capacidade de aquisição do conhecimento. Tal situação impossibilita que o
aluno atinja suas competências em sua plenitude, atrapalhando assim o seu
desenvolvimento não apenas em sala de aula, mas também na sua formação
quanto sujeito crítico.
3.1.3. O educador
O educador é o terceiro personagem envolvido no processo de ensino da
semântica em sala de aula. Este, por sua vez, atua como mediador entre o
conhecimento e o aluno, é por isso que seu papel é tão importante neste contexto.
O seu impacto na aprendizagem muito maior se comparado aos outros envolvidos
no processo, logo, a forma como este aluno aprende, assimila e recebe a
informação depende de como este professor concebe a linguagem18. Segundo
Geraldi (1999), toda prática pedagógica é influenciada por um posicionamento
político, isto é, a forma como este concebe a linguagem interfere não somente na
sua metodologia de ensino, mas também na seleção de conteúdos que serão
ensinados. Para ele, a forma de enxergar a sociedade influência diretamente na
forma como ensina.
No entanto, os problemas que envolvem o educador e sua participação no
ensino vão muito além do posicionamento político em sala. Sua situação é, de certo
modo, mais complicada que as anteriores supracitadas acima, pois, além dos
fatores internos (estrutura, autonomia, recursos, etc.) que prejudicam seu
desempenho, há também os fatores externos.
Os fatores externos são aqueles voltados para o contexto social do educador
quanto profissional pertencente a uma classe de trabalhadores vinculadas ao
estado. Dentre esses fatores podemos destacar a desvalorização da
profissão/classe, os salários baixos, as condições precárias de trabalho, a violência
crescente em sala de aula, dentre outros que afetam o desempenho deste
profissional no exercício da função.
Os fatores internos estão relacionados ao ambiente de trabalho do educador,
a infraestrutura, a disponibilidade de recursos e ferramentas que favoreçam seu
trabalho dentro da sala de aula. Outro fator interno de grande relevância é a própria
rede de ensino que ainda apresenta um pensamento tradicional quanto ao ensino
de língua.
Ao ingressarem nesse mercado, depararam-se com uma rede de
ensino enraizada na tradição e adepta às práticas repetitivas do
ensino gramatical, o que provocava – e ainda provoca – um bloqueio
no ímpeto de afrontar essa tradição e de suportar as pressões
sociais ante as mudanças. (OLIVAN, 2009)
Entretanto, com o advento da linguística o educador precisou se readaptar
em função das novas áreas de estudo da língua que foram surgindo, tais como, a
sociolinguística, a pragmática, a semântica, etc. As novas ideias, as novas formas
de pensar a linguagem tiveram de passar por processo de aceitação por parte dos
gramáticos e conservadores. Muitos, no início, apresentaram resistência aos novos
conceitos, outros reconheceram os benefícios que os estudos linguísticos
agregavam ao ensino.
18
As concepções de linguagem são teorias e métodos que foram criadas para orientar o ensino de
língua do Brasil
68
A Linguística vem contribuindo para o ensino de Língua Portuguesa
desde a década de 80, quando os estudos de Sociolinguística,
Psicolinguística, Linguística Textual, Pragmática e Análise do
Discurso passaram a ser “aplicados” ao ensino da língua materna
nas escolas (OLIVAN, 2009)
Tais mudanças no ensino também afetaram o aluno no seu processo de
aprendizagem, pois os temas abordados apresentavam outra roupagem que não
incluía somente a gramática normativa como base, mas também levava em
consideração o contexto de realização desses temas e suas diversas variações.
Logo, se verificou a necessidade de capacitação dos professores para que o ensino
pudesse fluir de modo satisfatório e, que o aluno desenvolvesse suas competências
de forma plena.
3.2.
Os temas de maior relevância/dificuldade de aprendizado
3.2.1. A sinonímia
O ensino de sinonímia nas escolas é algo que abrange desde o modo como é
conceituada até sua prática nas salas de aula. Porém, é perceptível o desacordo
dos livros didáticos com os principais manuais voltados para o assunto.
A primeira discrepância está na contextualização de sinonímia pelos livros
didáticos que não atende de forma satisfatória a uma abordagem devida do tema.
Não há qualquer preocupação com a forma de introduzir e retomar o tema nos livros
didáticos, pelo contrário, o que ocorre é uma abordagem superficial do conteúdo
com capítulos relacionados apenas a variação linguística. Um outro problema a ser
destacado é o processo de elaboração de atividades, estas deveriam ser capazes
de trabalhar o conteúdo de forma contextualizada, porém os livros didáticos
carecem de tais recursos, pois, as atividades presentes nestes livros não favorecem
uma reflexão por parte do aluno acerca do contexto de realização da língua. A
sinonímia é apontada a partir de palavras isoladas, no entanto, estudos recentes
mostram que não há sinônimos perfeitos ou integrais como os gramáticos
tradicionais abordavam. Com base nos estudos de Ilari e Geraldi (1987), Cançado
(2015, p.47) afirma que “para duas expressões serem sinônimas, não basta que
tenham a mesma referência no mundo”. Logo, para serem consideradas sinônimas
é necessário também considerar o seu contexto de realização.
Segundo Abrahão (s.d.) os manuais didáticos “não se detêm no ensino da
sinonímia”. Sua pesquisa de análise deste caso mostrou que alguns materiais
abordavam o contexto, no entanto, não discute as implicações envolvidas; e outros
apenas trabalham o tema com base em semelhança e sentido de palavras isoladas
sem se quer citar o conceito de sinonímia.
Abrahão ainda ressalta duas hipóteses, a primeira de que: ou a sinonímia é
abordada como um evento natural da língua, ou, em virtude de sua complexidade
tem-se preferido não abordar o assunto.
3.2.2. A antonímia
A partir dos estudos de Hurford e Heasley (1983), Cançado (2015, p. 52)
assume três tipos de antonímia: o primeiro sendo do tipo binário ou complementar, o
segundo chamado de inverso e o terceiro tipo conhecido como gradativo19. Tal
19
binário ou complementar refere-se aos pares de palavras que, quando uma é empregada, a outra
não pode ser; a antonímia do tipo inverso é quando uma palavra descreve a relação entre duas
69
classificação comprova que não basta apenas explicar ao aluno que o tema se trata
de palavras com significados opostos, mas sim a necessidade de esclarecer que a
oposição de sentido entre palavras pode se dar de variadas maneiras, ou que ainda
não existem sinônimos perfeitos, ou seja, palavras que não possuem um oposto
verdadeiro.
Se tratando de materiais didáticos esta temática não apresenta uma
abordagem sistemática satisfatória. Segundo Abrahão (s.d.), a antonímia é aplicada
por meio de exercícios pontuais em consonância com a interpretação de textos o
que torna o ensino deste tema deficiente.
3.2.3. A metáfora
A metáfora é considerada uma das principais figuras de linguagem estudadas
atualmente. Está presente nos poemas, textos literários, no cotidiano, nos discursos,
etc. É importante ressaltar que inicialmente tudo era metáfora, porém, com o passar
do tempo o conceito de metáfora foi revisto dando origem a um conjunto de teorias
com diferentes formas de abordar o fenômeno linguístico em questão, essas teorias
são elencadas da seguinte forma: clássica, substitutiva, comparativa, interativa,
pragmática e cognitiva.
Segundo Cruz (s.d.), a clássica faz referência aos estudos de Aristóteles
descritos em sua obra “A poética clássica e retórica”. O filósofo acreditava existir
quatro tipos de metáfora: do gênero para a espécie, da espécie para o gênero, de
uma espécie para outra e por analogia. A substitutiva consistia na substituição de
uma palavra por outra de caráter metafórico. A comparativa a grosso modo consistia
na comparação de dois termos com similaridades de sentido. A interativa propunha
que o sentido atribuído pela metáfora fosse resultado da interação de constituintes
diferentes. Na pragmática a metáfora ganhou uma nova percepção por meio dos
estudos de Paul Grice e sua Teoria das Implicaturas construindo uma relação entre
significado e intencionalidade. Na Linguística Cognitiva a metáfora ganha espaço
com os estudos de Lakoff e Johnson que ficou conhecida como a Teoria da
Metáfora Conceitual que de modo geral trata a metáfora não apenas como
fenômeno linguístico, mas também como parte do pensamento.
Cruz (s.d.) afirma que ao observar os materiais didáticos voltados para os
ensinos fundamental e médio, contatou os mesmos problemas de abordagem e
explicação do tema em questão, enfatizando que tais textos trabalham o conteúdo
somente com base nas quatro primeiras teorias das seis que foram citadas no
parágrafo anterior.
Abrahão (s.d.), sobre a recepção da metáfora pelos alunos, afirma:
“É importante fazê-los perceber a Metáfora como um processo
recorrente na língua. Sendo considerada inerente ao homem, a
metáfora se materializa na história por sujeitos que constroem
sentidos e isto implica em questões sociais e ideológicas. O ensino
de Metáfora a partir desta perspectiva integradora, trará
enriquecimento ao aluno na compreensão e interpretação de fatos
linguísticos das quais emanam as construções metafóricas, uma vez
que deixará de ser um agente passivo de recepção de significados
para atuar na imersão da história e na construção dos sentidos da
qual faz parte”.
coisas ou pessoas e uma outra palavra descreve essa mesma relação, mas em ordem invertida; a do
tipo gradativo é quando duas palavras antônimas se encontram em lados opostos de uma escala de
valores.
70
3.2.4. A paráfrase
Quanto ao ensino da paráfrase se observa dois problemas: o primeiro que
trata esta apenas como um recurso ativo na produção do efeito de sentido desejado
e o segundo que faz referência ao problema de clareza atribuído ao discurso. Tais
problemas possuem impacto significativo no processo de aprendizagem do aluno
impedindo que este desenvolva duas das principais competências citadas nos PCN
sendo, a produção e compreensão de textos.
Não há materiais didáticos que apresentam uma abordagem do tema que
consiga proporcionar ao aluno uma evolução no seu processo de aprendizagem da
língua, isso quando possui uma abordagem, pois, o que se percebe é uma ausência
do tema nestes textos.
Abrahão (s.d.) enfatiza que o fato de não se falar em paráfrase nos livros
recorrentes nas escolas de ensino regular se dá não somente pela pouca
importância dada ao tema, mas também pelo modo como a linguagem é tratada.
4. Considerações Finais
A educação do Brasil ainda carece de muitas melhorias em seu sistema de
ensino. Entretanto, muitos dos educadores ainda não estão inseridos no contexto
atual evolutivo do ensino da língua no país, tal é que ainda é possível encontrar nas
escolas do país a existência de metodologias que trabalham as sentenças, os
processos comunicativos e os textos voltados apenas para a gramática, sem
considerar o contexto a qual estão inseridas. No entanto, devemos reconhecer que
o suporte prestado pela linguística, a criação dos PCNs e, as pesquisas
desenvolvidas na área do ensino tem contribuído para uma melhora relevante na
formação educacional do aluno.
5. Referências
ABRAHÃO, Virginia B. B. A Semântica no ensino de línguas. (s.d.)
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental.
Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, 1997.
Parâmetros
Curriculares
______. Secretaria de Educação Fundamental.
Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, 1998.
Parâmetros
Curriculares
______. Orientações curriculares para o Ensino Médio. Vol. 1 Linguagens,
códigos e suas tecnologias / Secretaria de Educação Básica. – Brasília: Ministério
da
Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.240 p. ().
CANÇADO, Márcia. Manual de semântica: noções básicas e exercícios. 1. Ed., 1°
reimpressão. São Paulo: Contexto, 2015.
CRUZ, Gabriela Fontana Abs da. Metáfora E Ensino: Definições E Atividades
Propostas No Livro Didático De Língua Portuguesa Para O Ensino Médio. (s.d.)
FERREIRA, Michelle de Chiara; GOMES, Nataniel dos Santos. A Semântica e os
PCNs: Observações Segundo a Teoria de Pottier nas Vozes Verbais. WEBRevista SOCIODIALETO. Campo Grande, 2015.
71
FERRAREZI JUNIOR, Celso. Semântica para a Educação Básica. 1 ed. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
FIORIN, José Luiz (orgs.). Introdução à Linguística II: princípios de análise. 5.
Ed., 2° reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014.
GERALDI, João Wanderley. et al. (orgs.). O texto na sala de aula. 3. ed. São
Paulo: Ática, 1999.
OLIVAN, Karen Neves. A semântica e o ensino de língua portuguesa.
Florianópolis, 2009.
SILVA, Eliuse Souza. Semântica e o Ensino do Português: reflexões acerca do
aspecto verbal. Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC.
72
SUJEITO E SENTIDOS E(M) REDE:
CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E
CIRCULAÇÃO
ATILIO CATOSSO SALLES20
(Univás-CAPES/PNPD)
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem - PPGCL
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli
Universidade do Vale do Sapucaí - Univás
Avenida Prefeito Tuany Toledo, 470 – Pouso Alegre – MG – CEP: 37550-000
atiliocs@gmail.com
Resumo. Na presente reflexão buscamos compreender de modo mais
forte a relação do sujeito com o sentido no espaço de um aplicativo de
relacionamento, o Tinder. Perguntando-nos, então: com o que o sujeito
contemporâneo está se comprometendo ao se filiar a um “app” como o
Tinder, e o que dessa filiação decorre? Como se enreda (se tece) a escrita
do sujeito contemporâneo no espaço material deste aplicativo? Antes de
alinhavarmos os primeiros apontamentos, destacamos que a perspectiva
teórica recortada para fazer trabalhar esta reflexão é a da Análise de
Discurso; teoria esta que toma a relação língua/sujeito/história e introduz o
objeto discurso como observatório de compreensão. Essa posição teórica
se relaciona com nossa questão à medida que nos oferece pistas para
compreendermos de modo consequente a relação do sujeito com os vários
sentidos contemporâneos de amor que se produzem na/pela língua em
nosso corpus
Palavras-chave: Tinder; Encontro amoroso; Sujeito; Escrita.
Abstract. In this reflection we seek to understand more strong the
relationship of the subject with the direction in the space of one application
of relationship, the Tinder. Asking us, then: with which the subject is
committing to contemporary join a "app" as the Tinder, and that such
affiliation arises? As if ensnares (is weaved) writing the contemporary
subject in space material of this application? Before the first alinhavarmos
notes, we emphasize that the theoretical perspective is cropped to make
working this reflection is the Discourse Analysis; theory this which takes the
relation language/subject/history and introduces the object discourse as the
observatory of understanding. This theoretical position relates to our
question to the extent that offers us clues to understand consistently the
relationship of the subject with the various senses contemporaries of love
that is producing in/by language in our corpus.
Keywords: Tinder; Loving dating; Subject; Writing.
1. Introdução
O Tinder é uma ferramenta, um aplicativo disponível para IOS e Androids
20
Bolsista de Pós-Doutorado - CAPES/PNPD, na Universidade do Vale do Sapucaí, sob supervisão
da Profa. Dra. Eni P. Orlandi.
73
que se baseia na geolocalização e nos interesses em comum de seus usuários.
Esta ferramenta utiliza como ‘base’ o perfil do usuário no Facebook para ‘linkar’,
“conectar” as pessoas. Este aplicativo pode ser baixado gratuitamente na App Store
e no Google Play.
2. Primeiro gesto de leitura
Como ponto de partida dessa nossa reflexão, trago uma breve descrição do
aplicativo.
Eis a primeira etapa: após baixar o aplicativo uma mensagem na tela de seu
celular indicará que para prosseguir, como procedimento padrão, os seus dados do
Facebook serão acessados. Esse link direto com o Facebook nos aponta para uma
questão: o sujeito contemporâneo está inscrito na rede, de modo que é a partir
dessa inscrição que se abre a possiblidade de migração de dados desse usuário “jáaí” para outro suporte como o Tinder. E aqui cabe nos perguntar: que subjetividade
contemporânea o app projeta na relação com essa memória metálica? Ou ainda,
qual subjetividade essa inscrição do sujeito na rede projeta?
De acordo com o tutorial do Tinder “o aplicativo não viola a privacidade do
usuário21, a não ser que ele “permita”, e também não revela no Facebook as
interações dos usuários dentro do sistema.” Aqui uma contradição se coloca. Afinal,
o cadastro não seria um modo de credenciamento (juridicamente legal) para o
sujeito se apresentar publicamente? O gesto de cadastrar é a ficha de entrada do
usuário na lógica do Tinder. Lógica esta que nos aproxima da lógica de mercado.
Há o cadastro e o usuário (aqui pensamos o usuário enquanto metáfora de produto)
passa a estar disponível no app, no mercado (do amor?). Funcionamento este que
nos rememora a ideia de cardápio. O usuário se apresenta como um produto
“disponível” em um cardápio. E aqui estamos compreendendo o “cardápio” como um
arquivo. Aqui que aponta para sempre há um a mais a se ver, que se prolonga no
movimento de um trajeto de ‘existência’ [de leitura] em redes de memória, de
lembranças, de narrativas. “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que já
se viu...” escreveu José Saramago. Parafrásticamente, formulamos: ler o que não foi
lido, ler outra vez o que já se leu. O gesto de leitura em rede ou na rede é que nos
toma neste texto, na relação com uma noção teórica da Análise de Discurso: o
arquivo – a leitura de arquivo.
A noção de ‘arquivo’, em Ler o Arquivo Hoje, é compreendida por Michel
Pêcheux (2010) enquanto um “campo de documentos pertinentes e disponíveis
sobre uma questão”. No entanto, conforme aponta Gallo (2003), não se pode evitar
ler tal noção a partir de certo deslocamento: “campo de documentos pertinentes e
disponíveis na rede, sobre uma questão”. Aliás, em seu texto, Pêcheux se refere
logo no início, a um interesse pelos bancos de dados. Esse banco de dados,
compreendemos, não se refere a documentos físicos ou ‘em nuvem’ (utilização
da memória e das capacidades de armazenamento interligados por meio
da Internet), mas às regiões do interdiscurso que o sujeito acessa, que faz retornar
numa relação de diferença um sempre já-la. E é aqui que nos apoiamos para pensar
o ‘cardápio’ que o Tinder nos oferece.
Em seguida, abre-se a possibilidade do preenchimento do perfil (espaço
possível de descrição de um produto). Dentre os itens disponíveis, é possível
‘definir’ sexo, idade, e sua localização.
21
Grifo nosso.
74
Esta localização georeferencial não necessariamente corresponde ao lugar
fixo onde o usuário se encontra. É possível recortar outro espaço geográfico,
diferente do atual. Neste momento ainda, em poucos caracteres, o usuário formula
uma breve descrição sobre si que constará abaixo de sua foto.
Agora, após o preenchimento do perfil, o usuário começa a ter acesso direto
aos demais usuários. É nessa etapa que se torna possível selecionar, curtir o perfil
dos outros usuários. Quanto mais perfis você curtir, mais aumenta a possibilidade
de acontecer o possível encontro em rede. Esse encontro somente acontece se o
usuário que você ‘curtiu’ te ‘curtir’ também, e a isso se dá o nome de “match”. No
Tinder duas pessoas se conectam pelo “match”, verbo que significa encontrar,
casar, corresponder, unir e quando substantivo significa jogo, partida, lembrando as
partidas de tênis. No jogo de tênis, o match point é o ponto que permite encerrar a
partida. Imaginemos uma situação: um jogador está ganhando por 2 sets a 0 [nesse
jogo são necessários 3 sets para ganhar]. No 3º set, o placar aponta 5 games a 3
para o jogador que está na frente por 2 sets [são necessários 6 games para fechar 1
set]. Ele está sacando e faz 40 à 30 nesse game. Agora temos um "match point",
pois caso esse jogador faça esse ponto, o jogo acaba; mas se o adversário fizer
esse ponto, o jogo continua por mais certo período. Será este o sentido de encontro
amoroso no app?
Outro movimento de leitura possível é pela via da fonética, que é a parte da
linguística que estuda os elementos mínimos da linguagem (sons da fala) em sua
realização. Se observarmos a construção fonética do enunciado “eu dei um match”,
a palavra match, em sua realização sonora, nos aproxima de outro sentido possível:
mete. “Eu dei uma mete”. Nessa direção, o enunciado, em nossa compreensão,
75
passa a produzir outro sentido, agora não mais na relação com a palavra em inglês,
mas com o verbo “meter”. Ouvir “mete” e não “match” aponta para um lugar outro de
produção de sentidos, um lugar que aciona sentidos de um espaço relacionado ao
sexo, abre o equívoco.
Uma coisa interessante a se observar nesta etapa é que em nenhum
momento o usuário consegue identificar se fora rejeitado por alguém. Essa é uma
das principais especificidades do Tinder: evitar o temido “fora” ou simplesmente “ser
ignorado”, já que o usuário terá a oportunidade de conversar somente com pessoas
que também gostaram e escolheram o seu perfil. Somente após o “match”, a ligação
direta entre os perfis, que se torna possível iniciar o chat na própria ferramenta. Já
se a situação for contrária e a pessoa não gostar do perfil sugerido, não haverá
nenhuma notificação e o perfil indesejado não será mais exibido. Todo o processo é
realizado anonimamente.
A ideia de anonimato vendido no Tinder desliza-se enquanto processo de
produção se sentidos para: evitar ser ignorado, evitar o temido fora, a desilusão,
gratuidade de uma desilusão amorosa. É a esse modo que a subjetividade
contemporânea vai se formulando na/pela especificidade do encontro amoroso no
Tinder. Mas aqui nos perguntamos, em que medida essa projeção, desejo de
“segurança” sobre-determina o sentido de encontro em rede? E de que modo o
sujeito lida com o não-realizado desse efeito de sentido? Isso, porque, sabemos que
a desilusão neste espaço metálico é tão irremediável quanto num encontro
presencial.
Como palco das mais diversas manifestações midiáticas contemporâneas, o
mundo tecnológico, e aqui especificamente pensamos o Tinder, abarca múltiplas
facetas de uso e modos de significar os encontros amorosos. Uma plataforma
tecnológica móvel que nos concede a possibilidade de estamos conectados e que
se conheçam por meio da fotografia, dos perfis e da geolocalização. O aplicativo
Tinder possibilita ao sujeito brifar22 o seu desejo por meio do preenchimento do seu
perfil e acesso à sua geolocalização. É um espaço móvel que aponta para o desejo
do sujeito (ou faz o sujeito desejar), criando como efeito um sentimento de
imediatismo que ultrapassa as barreiras de tempo e espaço.
Também, se acaso não curtir algum usuário, ou este te ignorar, há a
possibilidade de ‘desfazer’ o “match” mesmo depois de já ‘ligados’. Será aqui outra
formulação possível de encontro amoroso na contemporaneidade? Qual é essa
formulação? Nota-se como essa nova lógica midiática do Tinder acelera as
mudanças ocasionadas pela mobilidade do virtual e uma grande influência das
novas tecnologias na constituição da subjetividade pós-moderna. Nos entremeios
dessa pratica de busca por um par ideal, evidencia-se um forte movimento em rede
norteado por um sentimento de “estou à disposição”, ou conforme dissemos acima,
uma possível busca por “um amor à la carte”, e até mesmo uma cerveja ao
entardecer apenas. Por que não?
Em Elogio ao amor (2013), o filósofo Alain Badiou discute a tese de que o
amor na atualidade aparece como um “contrato de seguro social”, como tudo que
prevê segurança como norma; ou seja, o amor é um risco inútil.
Ainda de acordo com o filósofo, “o encontro amoroso é isso: você sai em
busca do outro para fazê-lo existir com você, tal como ele é” (BADIOU, 2013, p.18).
A busca do indivíduo pelo outro, para juntos formarem o dois e estabelecer o
contrato de seguro social é urgente no espaço dos aplicativos móveis como o
Tinder. No virtual, as características singulares de cada sujeito vêm atreladas ao
capitalismo afetivo. Notam-se relações sociais entre sujeitos cada vez mais
complexas, baseadas em uma disputa para saber quem será o mais notado, mais
22
Gesto ou ação de expor um briefing de alguma propaganda ou publicidade.
76
seguido, curtido com a finalidade, principalmente, de conquistar a tão importante
visibilidade ou até mesmo uma “alma-gêmea” (ou um “match”, como sugere o
Tinder).
É também pelo corpo móvel e tecnológico que o usuário convoca uns aos
outros. O Tinder passa, assim, a ocupar um lugar privilegiado de “canal de
comunicação” na sociedade capitalista atual. E a questão que fica é: a partir do
crescimento dessas novas mídias, a sociedade e a cidade se reconfiguram como e
para quem?
Da nossa posição, o comum dos sentidos sobre o amor não pode envolver
uma interpretação di-fusa de um sujeito pragmático. Menos ainda os claros limites
da argumentação amorosa que toca certo positivismo às vezes. O amor, como bem
formulou Beckett, não se encomenda, talvez somente os sentidos de amor se
encomendem. Estes sim circulam e fazem gancho conforme vemos no terceiro
bloco discursivo. O amor significa em sua forma material. É nisso que investimos
para pensá-lo como discurso, ligando sentido (linguagem), sujeito e história. Desse
modo, pode-se pensar o sujeito de amor “com o seu corpo não apenas deslocandose empiricamente no mundo, mas materialmente (na história e na sociedade), em
seus processos de significação/identificação, como sujeitos de sentido” (ORLANDI,
2012, p.92).
Fazemos questão de trazer uma crítica de Pêcheux sobre o sujeito
pragmático, justamente para me opor a essa leitura positivista de encontro amoroso
na atualidade. De acordo com Pêcheux (2008, p.92) “o sujeito pragmático – isto é,
cada um de nós, os “simples particulares” face às diversas urgências de sua vida –
tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica portáteis
que vão da gestão cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o
porta-notas, as chaves, a agenda, os papéis, etc) até as “grandes decisões” da vida
social e afetiva (eu decido fazer isto e não aquilo, de responder a X e não a Y, etc...)
passando por todo um contexto sócio-técnico dos “aparelhos domésticos” (isto é, a
série dos objetos que adquirimos a fazer funcionar, que jogamos e que perdemos,
que quebramos, que consertamos e que substituímos)...”.
Compreendemos, num efeito de fecho, que o sujeito não é anterior em
relação ao discurso. Está aí talvez a maior dificuldade dessa pesquisa: fazer
coincidir discursos sobre o amor (que por sua própria natureza engendram sentidos
diversos e até mesmo contraditórios) a um sujeito centrado. O sujeito do qual a
análise de discurso se ocupa é contemporâneo ao sentido, por conta disso, não
pode ser sua fonte. O sujeito não é o ponto de partida, ele é um efeito e um
resultado do processo de interpelação do indivíduo em sujeito. A respeito dessa
formulação emprestada de Althusser, Pêcheux (2009, p. 141), diz que “[...] evita
cuidadosamente a pressuposição da existência do sujeito sobre o qual se efetuaria
a operação e interpelação” – daí não se dizer: “o sujeito é interpelado pela
Ideologia”. “O discurso é o efeito de sentidos entre sujeitos interpelados pela
ideologia [...]”. O sujeito não antecede a interpelação. Daí o esquecimento número
01 estar relacionado à origem do sentido a partir do sujeito. Não se trata do sujeito
que engendra sentidos sobre o amor no Tinder, mas do surgimento contemporâneo
dos dois (sujeito e sentido).
3. Referências
ACHARD, P.; DAVALLON, J.; DURAND, J. L.; PÊCHEUX, M. ORLANDI, E. P.
Papel da Memória. Tradução de José H. Nunes. Campinas – SP: Pontes, 1999.
ALTHUSSER, Louis. A corrente subterrânea do materialismo aleatório.
77
Tradução de Monca Zoppi-Fontana. Revista Crítica Marxista, 2005.
BADIOU, Alain. Elogio ao amor; tradução Dorothée de Bruchard – Sâo Paulo:
Martins Fontes, 2013.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2001.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível. In: PÊCHEUX, Michel.
Análise de discurso, Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni Orlandi.
Campinas: Pontes, 2011 (pp. 93-105).
JAKOBSON, Roman. Linguística e Poética. In: ____. Linguística e comunicação.
Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1987.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Palavras de amor. Cad. Ling,. Campinas, (19): 75-95,
jul./dez. 1990.
_____. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 3. ed. Campinas-SP:
Editora da UNICAMP, [2007- 1997] 1995.
_____. Discurso em Análise: Sujeito, Sentido e Ideologia. Campinas-SP: Pontes,
2012.
PÊCHEUX, Michel. (1982) O mecanismo do desconhecimento ideológico. In:
ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
PÊCHEUX, Michel. Análise de discurso, Michel Pêcheux. Textos escolhidos por
Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 2011 (pp. 107-119).
______. Ideologia: aprisionamento ou campo paradoxal? [1982] In: PÊCHEUX,
Michel. Análise de discurso, Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni Orlandi.
Campinas: Pontes, 2011 (pp. 107-119).
______. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, E. (Org.). Gestos de leitura: da história
no discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1994. (p. 55-64).
______. 1978). Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de
uma retificação Em: Pêcheux, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do
óbvio, Campinas: Ed. Unicamp, 1997
PÊCHEUX, Michel. Lecture et Mémoire: Project de Recherche. In: L´inquiétude du
discours. Paris, Ed. Cendres, 1981; 1990.
_____. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. 3.
ed. Campinas-SP: Pontes, [1990-2002-2008].
_____. Delimitações, inversões, deslocamentos. Cad. Est. Ling., Campinas,
jul./dez. 1990.
Sites: https://www.gotinder.com/, acessado no dia 15 de julho, às 15:00.
78
CORPO E(M) PERFORMANCE 23
ATILIO CATOSSO SALLES24
(Univás-CAPES/PNPD)
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Eugênio Pacelli
Universidade do Vale do Sapucaí
Av. Pref. Tuany Toledo, 470
37550-000 - Pouso Alegre – MG
atiliocs@gmail.com
Resumo. Esta pesquisa, filiada ao domínio teórico da escola francesa da
Análise de Discurso, tem interesse em investigar a articulação
sujeito/corpo/arte. Para tanto, o corpus discursivo é constituído de uma
performance intitulada “The artist is present”, produzida pela artista
Marina Abramovic, no MoMa, em 2010. Interessa, pois, pensar como se
dá o trabalho de compreensão de uma performance, perguntando pelos
sentidos que tomam corpo e tomam o corpo do sujeito. Nas
discursividades analisadas, o movimento dos sentidos, do sujeito com o
seu olhar e o seu corpo, em um território (espaço-histórico-social),
determina sentidos possíveis, em posições discursivas possíveis,
funcionando como espessura material significante. Uma espessura
material que é estrutural, simbólica e formulada como linguagem.
Palavras-Chave: Quadro cênico; Corpo; Sujeito; Performance.
Résumé. Cette recherche, affiliées à la domaine théorique de l'école
française d'analyse du discours, a un intérêt dans l'enquête sur le lien
sujet/corps/arte. Pour les deux, le corpus discursif se compose d'une
performance intitulée "L'artiste est présent", produit par l'artiste Marina
Abramovic, au MoMa, en 2010. L'intérêt, par conséquent, de penser
comment le travail de compréhension d'une performance, de demander
des directions qui prennent corps et prendre le corps du sujet. Dans le
discursividades analysés, le mouvement des sens, le sujet avec votre
look et votre corps, dans un territoire (espace-historique-social),
détermine les significations possibles, dans des positions discursives que
possible, travaillant comme significative de l'épaisseur du matériau. Une
épaisseur de matériel qui est structurel, symbolique et formulé comme
une langue.
Mots-clés: Oac ; Corps ; Sujet ; Les performances.
1. Introdução
Para efeito de um trabalho analítico/teórico em Análise de Discurso, invisto
primeiro em pensar que “aos homens enquanto seres históricos e simbólicos que
23
Agradeço a Profa. Eni P. Orlandi por toda sensibilidade de escuta no gesto de orientação. Com a
Eni compreendi que a força do afeto toca a espessura da reflexão, o que fundou, na teoria, um lugar
apaixonado para o meu dizer sobre o corpo e(m) performance.
24
Bolsista de Pós-Doutorado - CAPES/PNPD, na Universidade do Vale do Sapucaí, sob supervisão
da Profa. Dra. Eni P. Orlandi.
79
somos não nos basta falar para significar e nos significarmos” Orlandi (2001, p.154).
De acordo com a autora, além de “falarmos”, também, escrevemos poemas,
cantamos, dançamos, fazemos literatura, cinema [...] entre outras diferentes formas
de significação.
Nessa direção, estranhar os sentidos e os modos pelo quais o sujeito de diz e
é dito é do que me ocupo aqui no início desta reflexão. De acordo com Orlandi
(2002) “o corpo do sujeito e corpo da linguagem não são transparentes”. Sujeitos
com/e seus corpos estão ligados ao corpo social (Orlandi, 2001), e isso também não
é da ordem da transparência.
Meu interesse pelos processos de significação do sujeito com o seu corpo
tomou forma com a pesquisa realizada sobre a cidade em minha dissertação de
mestrado. Considerei, a partir da análise do documentário “Território Vermelho”
(2004) do cineasta Kiko Koifman, o modo como o sujeito com o seu corpo atravessa
o espaço público em uma faixa de pedestre. Um dos princípios desse meu trabalho,
com a questão urbana, é que o corpo do sujeito vai se mostrando, sendo mostrado,
atado ao corpo da cidade. Ele vai assim ganhando existência a partir dessa ligação
com o espaço, com o que também está fora de seu corpo. Um modo do corpo
(r)existir e assim se significar e, esse gesto de ocupar a faixa de pedestre (seja para
atravessar, trabalhar, produzir arte) aponta, ao meu ver, para uma resistência que
remete à questão da identificação no funcionamento próprio da ideologia que fal(h)a
ao sujeito.
Este percurso no mestrado é constitutivo da minha relação com as questões
de pesquisa (e, diria, de vida) que ora proponho compreender. Questões estas que
giram, dançam, produzem volteios em torno da relação do sujeito, com seu corpo,
em um espaço.
Articulando sujeito/corpo/linguagem, busco compreender como o corpo,
recortado pela materialidade do sujeito, sua historicidade, se significa e produz
significação em um espaço de existência; tomando os homens como seres
simbólicos e históricos-sociais, pensando o interdiscurso e sua relação com o
espaço. A esse respeito, Rolnik (2006) formula que nos significamos ao nos
filiarmos a um território. Território aqui compreendido enquanto lugar de
pertencimento pelo próprio de nossa existência, não como mero espaço físico com
suas delimitações/divisas geográficas, mas sim espaço que também significa.
Finalmente, penso que a questão aqui é: qual a relação do corpo com a
ideologia, como, em sua especificidade, em sua espessura material, o sujeito
textualiza seu corpo (e se textualiza) pela maneira mesma como está nele (já)
significado. O corpo normatizado, o corpo em movimento, o corpo fora de lugar, o
corpo “instalado” de um sujeito que interpreta e é interpretação sem cessar.
Como material de pesquisa recorto uma performance intitulada “The artist is
present”, produzida pela artista Marina Abramovic, em 2010, no MoMa. Nessa
performance, Marina Abramovi, no átrio do museu, em um espaço quadrado
recortado por uma fita, dispõe uma mesa e duas cadeiras, sendo uma dessas
cadeiras ocupada por ela, a outra ficou à disposição para as pessoas que
estivessem visitando a exposição (organizada pelo MoMa para homenageá-la)
pudessem se sentar e dividir um tempo indeterminado de silêncio com a artista.
Assim se iniciou a performance.
M. Pêcheux (1990) considera que não só a língua, mas também a história
tem seu real. A partir do texto “Processos de significação, corpo e sujeito”, Orlandi
(2012) propõe uma reflexão sobre o corpo, articulando as instâncias do inconsciente
e da ideologia. De acordo com a autora:
80
“Embora se trabalhe, na análise de discurso, sobejamente, a
materialidade da história e da língua, pouco se tem dito a respeito da
materialidade do sujeito, mesmo que se afirme sua não
transparência, fazendo intervir a questão da ideologia e do
inconsciente” (ORLANDI, 2012, p. 84).
Neste trabalho, proponho, tal como Orlandi (2001, 2002, 2012), tomar o
corpo, o corpo de um sujeito, não enquanto um corpo empírico, constituído de
carne. O que interessa é a materialidade do sujeito na relação do sujeito com o seu
corpo, pois como afirma a autora, tratar da materialidade do corpo na relação com
um sujeito é considerar a ideologia, a história e os processos de vida social
intervindo sobre a produção da significação e é, nesse sentido, que se pode apontar
que a relação do sujeito com o seu corpo aparece como transparente, mas não é.
Para introduzir, através dos elementos do discurso, o modo como estou
compreendendo a performance, traço agora alguns apontamentos que considero
importante investir sobre o trabalho do corpo e do olhar em/na arte.
A performance é uma arte de fronteira, podendo ser definida por alguns como
uma arte híbrida. Já o termo performance act sugere eventos realizados por artistas,
no bojo das ‘experiências’ vanguardistas europeias.
Richard Shechner (2003, p.39) propõe oito situações em que a linguagem
artística pode se dar a ver:
1. na vida diária, cozinhando, socializando-se;
2. nas artes;
3. nos esportes e outros entretenimentos populares;
4. nos negócios;
5. na tecnologia;
6. no sexo;
7. nos rituais sagrados e seculares;
8. na brincadeira;
Tais situações empíricas em que a arte pode se dar a ver, num primeiro
momento dessa reflexão, se colocam para mim como importantes, na medida
mesma em que possibilitam jogar com a aproximação do corpo do artista, o público
e a obra num só momento. E é nesse enlace do corpo numa relação forte com as
artes, com o sexo, com a tecnologia... que corpo e sujeito – em relação a - são
convocados não mais para uma mera ou simples contemplação em performance.
É o corpo, o corpo em movimento que faz deslizar sentidos pelo espaço.
Como é que durante esse processo de produzir uma performance é o próprio corpo
que (se) produz – isto é, se torna isso ou aquilo que se percebeu – enquanto efeito
no movimento de sua realização mesma? E, ainda, da realização do corpo em
performance, o que fica para a arte que não seja só a marca da passagem de um
corpo? E, em que lugar nós ficamos, os observadores, que afinal temos nosso
próprio corpo?
Uma pista primeira para estas perguntas nos é oferecida por Phelan ao
formular: “tentar escrever sobre o evento indocumentável da performance é invocar
as regras do documento escrito e, logo, alterar o evento em si mesmo” (PHELAN,
1997, p.173).
E, nesse sentido, é consequente de minha posição tomar a arte não como
um evento interpretável. A efemeridade da performance é a sua condição. Em
movimento o que é registrado em uma performance não é a verdade, talvez o que
se produza é um efeito de verdade. “A ação é verdade. Nada do que foi registrado é
81
verdade. Nada do que foi dito é verdade. Somente a ação” (Jack Bowman, flyer
distribuído no Cleveland Performance Art Festival25. Até porque nem é esse o
esforço que anseio empreender. Mas sim considerar a performance como um
recorte de um processo discursivo de significação que faz furo (ou não) no evento
(nos termos de Badiou, 2013).
Ou, ainda, como melhor observa Orlandi sobre o papel da Análise de
Discurso:
...aquela que não explica, nem serve para tornar inteligível ou
interpretar o sentido, mas que nos leva a melhor compreender os
processos de significação, o modo de funcionamento de qualquer
exemplar de linguagem para significar. Com efeito, a relação que a
análise do discurso estabelece com o texto não é para dele extrair
um sentido mas sim para problematizar essa relação, ou seja, para
tornar visível sua historicidade e observar a relação de sentidos que
aí se estabelece, em função do efeito de unidade. (2007, p. 173)
Para Pêcheux (1997: 161) “a expressão processo discursivo passará a
designar o sistema de relações de substituições, paráfrases, sinonímias, etc., que
funcionam entre elementos linguísticos – “significantes”- em uma formação
discursiva dada.” Desse modo, nesta pesquisa, proponho me voltar para a
compreensão do(s) processo(s) de significação do objeto arte [dotado de
discursividade] na relação com o trabalho da formulação, da constituição e da
circulação (ORLANDI, 2001).
O objeto arte, observo, não está em somente um espaço de significação, este
se formula na/pela sua re-significação, o que, por contraste, nos remete sempre a
outros dizeres possíveis em jogo. Dito de outro modo, o sentido da matéria
significante de nosso material está em seu lugar mesmo de inscrição, e, não apenas
em seu constructo (constituição) físico ou formal (forma). Isso, pois, a matéria
significante, costurada pelo social e histórico, produz efeitos de sentido, e não a
matéria em si mesma. Orlandi (1999) ensina que “a linguagem é linguagem porque
faz sentido. E a linguagem só faz sentido porque se inscreve na história”. E é por
essa via que penso a performance.
Sendo linguagem, a performance produz sentido(s). Pensando deste lugar, a
performance é tomada, em sua imbricação material, como um complexo de
significação envolto de dizeres contemporâneos que instala diferentes gestos de
leitura determinados pela sua condição específica de produção, pondo em
movimento o espaço da incompletude, da polissemia, do sentido outro possível. O
movimento instala-se.
Tal tomada de posição discursiva colocou, desde o início, o conflituoso
desafio de compreender o caráter material do corpo (e também do olhar) instalados
- não de modo fixo, estático - na performance “The artist is present”, mas sim no
modo como esse corpo por uma dupla subordinação – de um lado a subordinação
do corpo ao roteiro previsto formalmente na performance, subordinado à “regra” de
ocupar um espaço determinado e de um modo determinado, e de outro lado o corpo
investido da relação forte sujeito/ sentido/mundo produzindo a marca de uma
passagem que faz furo na falha do ritual ideológico, possível lugar de resistência
(PÊCHEUX, 2009). Ou seja, interessa-me ler as condições reais de produção e
circulação, tendo como pedra de toque a noção de ideologia tal qual essa fora
25
No original: “The Act is TRUTH. Nothing that was ever recorded is truth. Nothing that was ever said is truth.
Only the ACT”. Cleveland Performance Art Festival. Disponível em: <http://www.performance-art.org>. Acesso
em: 10 set. 2016.
82
formulada por Pêcheux26 (2009).
Um adendo se faz importante neste percurso da pesquisa. Apesar de alguns
pesquisadores elegerem um ou outro termo/expressão na análise da performance,
jogando com palavras como Art charnel; Art corporel; Specimen art; Hardship art ou
Ordeal arts, não proponho optar por um conceito ou outro aqui. No livro L’art
corporel (1983), François Pluchart formulou: “Se a expressão ‘arte corporal’ tem o
mérito de manter a questão do corpo no interior do domínio da arte, a palavra
‘performance’ gerou os piores mal-entendidos”. Concordo com Pluchart, visto que
em minha compreensão, o corpo é o próprio do sujeito e também o objeto da arte da
performance. Eis um ponto de deslocamento.
A performance pode se dar na rua ou em espaço in situ. O quadro cênico da
performance não se desenha ou se dá em um lugar específico senão em todos os
que, à volta de nós, formam a cena. Pensemos na ideia de fluxo para pensarmos o
espaço da performance; sendo fluxo, fluido, o espaço do quadro cênico pode se dar
a ver em todos os espaços: espaço ´público’, a rua, lá onde você caminha, lá onde
paro para ler na praça, no espaço institucionalizado, em um museu, em uma galeria
de arte, em uma escola. Nessa direção, compreendo que lugar, o lugar da
performance, é o espaço praticado, espaço dotado de sentido.
2. Corpo e(m) performance no trabalho da significação
De que modo o corpo comparece na situação de uma performance? De
início, diria: o corpo comparece pela via da fala, mas não me refiro aqui a uma fala
do corpo ou sobre o corpo, mas é o corpo enquanto ele fala, corpo que significa. É o
corpo do sujeito, da linguagem, constituídos pelo “confronto do simbólico com o
político” (Orlandi, 2002, p.91).
Corpo e sujeito, que em performance, se dão enquanto um processo de
significação atravessados de memória. Isto quer dizer,
...assim como as palavras já vem significando antes mesmo que as
tomemos como nossas palavras, nosso corpo já vem sendo
significado mesmo que não o tenhamos, conscientemente,
significado. Não há corpo que não esteja investido de sentido, e que
não seja o corpo de um sujeito que se constitui por processos de
subjetivação nos quais as instituições e suas práticas são
fundamentais para a forma com que ele se individualiza, assim como
o modo pelo qual, ideologicamente, somos interpelados em sujeitos,
enquanto forma histórica. (ORLANDI, 2002, p.91-92)
Nesse sentido, é possível afirmar que há maneiras e espaços do corpo (se)
significar. Numa discursividade sobre o humano, existem historicamente formas e
lugares para que o sentido seja possível ao sujeito que interpreta.
Nesse lugar de pensar, a performance é sentido; constitui espaço de
interpretação; é um movimento (de significação) que liga (estrutura) corpo, espaço e
sujeito; constitui uma forma específica de produção dos sentidos.
Em meio a toda profusão, (des)instalação dos sentidos postos em jogo na
produção de um modo de significação, provoca-me o fato de, ao tematizar a
performance , a relação entre performance e movimento (de significação) aí insistir.
Indício, talvez, de uma especificidade do domínio de significação da performance.
Em cena, pensei, temos um corpo (um corpo qualquer?) que forma a base de
26
A primeira edição de “Les Vérités de La Palice” publicada em francês em 1975. Em 1988, a
primeira tradução brasileira com o título “Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio”.
Retomo neste trabalho uma edição recente publicada em 2009.
83
compreensão de algo cenicamente instalado.
Entre as inúmeras possibilidades de articular corpo/performance interessa
lidar com a performance como um espaço de produção e estabilização de sentidos
de movimentos, configurando memória (Pêcheux, 1990).
O que proponho é pensar a performance como um, entre outros, espaço
discursivo fluido de memória em movimento. Espaço de diferentes movimentos,
recortado por esquecimentos, recobrimentos, deslocamentos e tensões de sentidos.
Espaço, portanto, que se estrutura entre outras formas, ritualizadas ou não, mas
sempre políticas de subjetivação dos sujeitos.
Performance como espaço discursivo, mobiliza, como indiquei, a noção de
memória. Para além dos limites entre um espaço subjetivo ao sujeito e uma
exterioridade, que se elabora, por exemplo, como memória histórica, direi que a
memória a qual a performance remete se apresenta “como estruturação da
repetição e da regularização” (Pêcheux, 1999, p.52). A repetição, de acordo com
Pêcheux, é “um efeito material que funda comutações e variações, e assegura (...) o
espaço da estabilidade de uma vulgata parafrástica produzida por recorrência, quer
dizer, por repetição literal dessa identidade material” (Pêcheux, 1999, p. 53).
Repetição e regularização dos sentidos como condição de estruturação de
um espaço discursivo. É dessa forma que proponho tomar a performance como
espaço discursivo fluido de memória do movimento. Tomo como base o que
Pêcheux (1999, p., 56) formulou a respeito:
Ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam
transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido
homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e retomadas, de conflitos de regularização... um
espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.
A repetição formal de um movimento ou gesto no nível da realização
(espetáculo) de uma performance – pensando aqui que espetáculo pode ser
compreendido como a textualização da performance – é um mecanismo de
constituição da performance como memória.
Como formula Orlandi (2004), os espaços são organizados de forma política.
Na performance não seria diferente. Enquanto hipótese, infiro que há uma espécie
de interconstitutividade entre espaço e corpo.
Nesse trajeto, é possível tomar a performance como um objeto simbólico que
inscreve, ou seja, formula sentidos – em seu modo mesmo de ganhar existência –
na relação contingencial27 do sujeito com o Real e também com o real do espaço. A
performance é desse modo uma forma de textualização do político, um modo de dar
a ver interpretações (jogo forte com a re-divisão de algo do Real).
O gesto de produção de uma performance se dá enquanto necessidade de
tornar algo do Real discernível, diria “organizado”. A performance se produz,
discursivamente, na relação entre o(s) sujeito(s), é linguagem em suas diferentes
formas e história. Enquanto especificidade, observo que o corpo do sujeito em
performance se diz numa certa relação histórica com múltiplas formas materiais.
Entra em cena no átrio do MoMa sujeitos em um estado específico: o da
performance. E nesse caso, no modo mesmo como tais corpos em performance se
dão a ver, é que penso sujeitos (no plural) instalados (instalando sentidos) em cena.
Parece haver nesse lugar, o da performance, possibilidade “de identificação
com outros sentidos que tornam possível ao sujeito fazer sentido, muitas vezes a
27
Leio o contingencial aqui como algo que é da ordem do constitutivo, do estruturante dos sentidos.
84
partir do não-sentido ou da falta de sentido” (Rodrigues, 2011, p.05). É, portanto,
nessa medida que a performance trabalha os diferentes modos de significar a
relação sujeito-espaço, corpo-espaço. Sua textualidade recorta o movimento
aparentemente trivial (de sentar-se em silêncio diante de outra pessoa por um
determinado tempo), produzindo o movimento de identificação de sujeitos.
(The Artist Is Present (A artista está presente), 2010)
Ao dispor em cena uma mesa e duas cadeiras e um conjunto de sujeitos
identificados com os sentidos que significam “arte”, a performance deixa ver que,
discursivamente, os sentidos se produzem em várias direções. Deixa instalar o
movimento próprio da significação, na história, jogando em cena com os recortes da
memória que tornam possíveis outros sentidos.
3. Conclusão
O inusitado dos sentidos, o inusitado do corpo-sujeito em relação a
performance acontecendo no espaço de um Museu, o MoMa, não
necessariamente se dá enquanto sua característica fundante, nem mesmo o
fato da performance acontecer sobre um espaço forjado, o átrio do museu.
Esse sempre é e sempre será palco de diversas formas que conformam
sentidos de arte.
É nessa medida, aposto, que na performance o trabalho com os
sentidos se dá pela via da formulação. E a performance como discurso se
textualiza no corpo do sujeito enquanto encadeamento (organização) de
múltiplas sequências discursivas.
Desse modo, com Orlandi (2001, p.159), penso:
“o sujeito (em performance28) não apenas deslocando-se
empiricamente no mundo mas materialmente ( na história e na
sociedade) em suas processos de significação/identificação, como
sujeitos de sentido.
28
Acréscimo nosso.
85
Na performance temos outas formas (diferentes da dança, da pintura, da
pichação, etc....) de atar o corpo do sujeito ao corpo social, uma forma singular
(Orlandi 2002) na produção de diferentes efeitos de sentidos. O corpo como
espessura material significante posiciona discursivamente o sujeito, no caso da
performance, coloca-o em cena numa sempre relação à produção dos sentidos.
4. Referências
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BADIOU, Alain. Elogio ao amor; tradução Dorothée de Bruchard – Sâo Paulo: Martins
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86
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Comissão Organizadora do V SEAD: Maria Cristina Leandro Ferreira, Freda Indursky e
Solange Mittmann. Organização dos Anais: Solange Mitimann e Dulce Beatriz Mendes
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SCHECHNER, Richard. O que é performance? Revista O Percevejo, Tradução Dandara,
Rio de Janeiro: UNI-RIO, ano 11, 2003, p.25-50.
87
OBSERVAÇÕES GERAIS SOBRE A PRÁTICA
DISCURSIVA DOS HACKERS
ALLAN STROTTMANN KERN
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
Universidade do Vale do Sapucaí
Av. Pref. Tuany Toledo, 470 – 37550-000 – Pouso Alegre – MG – Brasil
allan_kern@hotmail.com
Resumo. Tomando as práticas dos chamados “hackers” como o tema
desta reflexão, nosso objetivo é apontar e discutir algumas questões
suscitadas pela proposta de uma análise discursiva dessas práticas. A
partir da observação de diferentes sentidos relacionados à palavra “hacker”
em sua recente história, interrogamos um discurso que busca classificar e
categorizar hackers e suas práticas em “tipos”, a partir de critérios
empíricos que perdem de vista o movimento no (e do) discurso.
Palavras-chave. Discurso. Ideologia. Tecnologia. Sujeito.
Abstract. Taking the practices of so-called “hackers” as the theme of this
reflection, our objective is to point out and discuss some issues raised by
the proposition of a discursive analysis of these practices. From the
observation of different meanings related to the word “hacker” in its recent
history, we interrogated a discourse that seeks to classify and categorize
hackers and their practices into “types”, based on empirical criteria that lose
sight of the movement in (and of) discourse.
Keywords. Discourse. Ideology. Technology. Subject.
1. Introdução
Nesta breve apresentação, pontuamos algumas observações gerais sobre o
objeto temático de nossa pesquisa de doutorado: as práticas dos chamados
“hackers”, que procuramos compreender segundo a perspectiva teórica da análise
de discurso desenvolvida a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux e Eni Orlandi.
O discurso é definido por Pêcheux (1969, p. 81) como “efeito de sentidos”, e
concebido como aquilo que constitui a ligação material entre ideologia e linguagem.
Segundo essa perspectiva, é o funcionamento do discurso que determina como os
objetos simbólicos significam de acordo com as diferentes situações, e é esse
funcionamento que a análise do discurso procura compreender e explicitar. Ou seja,
o sentido aí não é tomado como algo que estaria “contido” nos objetos ou “colado”
nas palavras. É um efeito produzido a partir de uma posição, em uma dada
conjuntura, que para ser compreendido deve ser remetido às condições de
produção do discurso, que abrangem as relações entre língua, sujeito e história.
É, então, a partir dessa perspectiva que procuramos refletir sobre as práticas
dos hackers. Assim, primeiramente, trazemos um resumo da história dessas
práticas, tomando como referência os trabalhos de Steven Levy (1984) e André
Lemos (2002). A seguir, interrogamos algumas distinções que dividem hackers em
“tipos”, atribuindo rótulos que buscam classificá-los sem levar em conta o fato de
que cada prática se realiza em condições muito específicas no tempo e no espaço.
88
Por fim, buscamos levantar algumas questões teóricas mais específicas sobre o
nosso objeto, a fim de fomentar novas análises que façam avançar nossa pesquisa.
2. O que faz um hacker?
A palavra “hack” é um verbo da língua inglesa que pode ser traduzido para o
português como “cortar”, com um golpe rápido e preciso. Como cortar lenha. S.
Levy, em seu livro “Hackers: heroes of the computer revolution” (1984), conta que o
verbo começou a ser utilizado em meados da década de 1950 por estudantes de
engenharia do MIT, no âmbito de um trabalho desenvolvido pelos alunos do instituto
em paralelo às atividades acadêmicas. Conhecido como The Tech Model Railroad
Club, o grupo dedicava parte (às vezes grande parte) do seu tempo livre para
construir miniaturas de trens, que eram programados para percorrer miniaturas de
cidades em escalas automáticas que simulavam os fluxos de estações reais. O
grupo se dividia em duas partes, uma delas dedicada ao trabalho artístico de
construção das maquetes e miniaturas (a “parte de cima”) e a outra responsável por
fazer funcionar os sistemas elétricos automatizados que produziam todo o
movimento (a “parte de baixo”). Em contraste com a beleza da parte de cima, a
parte de baixo era uma massa caótica de fios e circuitos, conhecida como “O
Sistema”, onde se concentrava a maioria dos engenheiros. Quando alguém se
empenhava no desenvolvimento de algum projeto ou produto visando a não apenas
um objetivo construtivo, mas também certo prazer pessoal pelo mero envolvimento,
aquela prática era chamada de “hack”. Segundo Levy (idem, p. 10), “para se
qualificar como um ‘hack’, o trabalho devia estar imbuído de inovação, estilo e
virtuosidade técnica29”. Tratava-se, em geral, de artimanhas que ofereciam soluções
engenhosas a problemas técnicos complexos.
Nesse contexto, os primeiros indivíduos conhecidos como “hackers” eram,
em geral, jovens engenheiros que mostravam talento na área de programação, e
trabalhavam nos espaços fechados do MIT em máquinas de computação que
ocupavam salas inteiras. De acordo com Levy (idem), alguns deles passavam noites
explorando o funcionamento das máquinas, aproveitando a ociosidade do pósexpediente para estudá-las e aprimorá-las, tendo em mente suas próprias questões
e interesses teórico-práticos. Assim, deslizavam os sentidos possíveis dessas
máquinas na e para a sociedade.
Um exemplo significativo disso é o de um computador chamado TX-0,
desenvolvido pelas forças armadas com a finalidade de resolver problemas gerados
por outro computador, chamado TX-2. Quando tal objetivo foi atingido, o colossal
TX-0 foi cedido ao MIT em um empréstimo de longo prazo, e logo tornou-se
acessível aos entusiastas do “Sistema” do Tech Model Railroad Club. Segundo Levy
(1984, p. 27), “algo novo coalescia” em torno daquela máquina, posta à disposição
de uma dúzia de engenheiros que conduziam a programação para além de seus
limites técnicos. Nessas condições, começa a ganhar forma o que Levy (idem)
descreve como a “ética hacker”, um conjunto de conceitos, crenças e costumes que,
embora não chegassem a ser discutidos e debatidos, eram silenciosamente
compartilhados pelos hackers. Uma formação discursiva, determinando as
possibilidades de sentido(s) da computação na conjuntura das primeiras práticas de
hacking, no âmbito do MIT. Segundo pensavam os hackers, toda informação
deveria ser livre, e o acesso a computadores devera ser total. Além disso, havia um
sentimento de desconfiança em relação a autoridades, e predominava a ideia de
que os hackers deveriam ser julgados por suas práticas de hacking, e não por
critérios como diplomas, idade, raça, sexo, etc.
29
“(...) to qualify as a hack, the feat must be imbued with innovation, style and technical virtuosity”.
89
Levy (idem) conta que, até meados da década de 1960, a “ética hacker” se
constituiu em (e através de) práticas realizadas nos espaços fechados do MIT, de
modo que o impacto das práticas dessa primeira geração de hackers era limitado
por questões como a rotatividade de pessoal e as dificuldades práticas de se operar
computadores que eram máquinas de porte industrial. Assim, após uma primeira
geração de hackers formada nesse espaço universitário do MIT, houve uma
segunda geração que ganhou força na década de 1970. Enquanto os hackers do
MIT se dedicavam a procurar aplicações novas e impensadas para as grandes
máquinas, a geração chamada por Levy de “hardware hackers” tinha como
preocupação central a proliferação dos computadores. Desta forma, essa segunda
geração, que surgiu e se estabeleceu no norte da Califórnia, assumiu para si a
tarefa de transformar os computadores em máquinas menores e mais acessíveis.
Sob influência da contracultura que irrompe nos anos 1960, essa nova geração de
hackers levou ao espaço público as práticas de hacking, dando vazão à
discursividade (Levy fala em “ética” e “cultura”) que vinha do MIT.
Ainda no que toca os efeitos da contracultura na chamada “ética hacker”, os
chamados “phreakers” desempenharam um papel importante na história das
práticas de hacking, embora não estivessem diretamente ligados à computação.
Segundo Lemos (2002, p. 207), “a ação dos phreakers começa nos anos 1960 com
a apropriação do sistema de telecomunicações mundial, tendo como objetivo viajar
gratuitamente pelas redes”. Ainda de acordo com Lemos (idem), uma das figuras
mais importantes da história dos phreakers foi John Draper, que descobriu, por
acaso, que um apito que viera de brinde em uma caixa de cereal produzia a
frequência de 2600 Hz, e que esta tonalidade permitia a realização de chamadas
internacionais gratuitamente. Draper logo se tornou um phreaker conhecido como
Captain Crunch (o nome da marca de cereal), e sua descoberta “incitou outros
phreakers a produzirem equipamentos clandestinos” (ibidem).
Tanto os “phreakers” quanto os “hardware hackers” descritos por Levy
representam dois movimentos importantes da década de 1970, cuja confluência, a
partir dos anos 1980 e 1990, criou as condições para as práticas de hacking como
as conhecemos hoje30. Enquanto os primeiros (se) constituíram (em) redes de
resistência ao controle dos sistemas de telecomunicação pelo Estado, os últimos
criaram condições para o desenvolvimento dos computadores pessoais (PCs),
deslocando as práticas de hacking dos espaços institucionais fechados aos quais
estavam, até então, limitadas. Assim, se nas décadas de 1950 e 1960, a
discursividade ligada às práticas de hacking estava centralizada em um lugar
específico (o MIT), a partir dos anos 1970 os sentidos ligados à “ética hacker”
passaram a circular a partir de diferentes redes de comunicação.
No começo da década de 1980, surge aquela que seria definida por Levy
como a terceira geração de hackers, que se constituiu sob os efeitos da
popularização31 dos computadores pessoais (PCs). Se, por um lado, os PCs
ofereciam um grau de autonomia com o qual os hackers há tempos sonhavam, por
outro, a maior parte dos novos adeptos da “onda informática” dos anos 1980 não
era composta de “hackers” (entusiastas da programação), mas de pessoas que
queriam usar computadores sem precisar aprender a escrever programas, e
estavam dispostas a pagar por programas escritos por outros. É o começo da
indústria do software, que, conforme Levy, transformou as práticas dos hackers na
medida em que a disseminou. Segundo o autor, “a Ética Hacker, ao estilo dos
microcomputadores, não implicava mais, necessariamente, que a informação
30
Referimo-nos às práticas de hacking que se realizam no espaço da internet.
Segundo Levy (1984, p. 313), a popularização dos PCs foi impulsionada pela venda de
computadores pequenos e baratos, de marcas como Apple, Radio Shack, Commodore e Atari.
31
90
deveria ser livre32” (op. cit., p. 313). Ou seja, a popularização dos computadores,
que era um sonho de muitos hackers desde as primeiras gerações no MIT,
aconteceu a partir de uma popularização dos programas, e não da programação. Os
softwares, sobretudo jogos de computador, se tornaram objetos de consumo que
possibilitaram o enriquecimento de diversos programadores. Porém, se Levy vê aí
uma “transformação” do que ele define como a “ética hacker”, em nossa perspectiva
consideramos que há uma ruptura na (suposta) unidade discursiva dessas práticas,
isto é, no efeito imaginário de homogeneidade nelas projetada. A partir de então, há
uma divisão entre os hackers defensores do “código aberto” e os favoráveis à
criação de patentes em defesa da “propriedade intelectual”.
3. O imaginário dos “bons” e “maus” hackers
De modo geral, a década de 1980 foi um momento em que muitos hackers
começaram a ganhar dinheiro com as suas práticas, fosse através do comércio
ligado à informática ou dos chamados “crimes cibernéticos 33”. Ao mesmo tempo,
certas práticas de hacking apareceram como atos de cidadãos conscienciosos,
preocupados com a segurança de certos sistemas de informação que poderiam
estar expostos a outros hackers34. Tudo isso contribuiu para que se constituísse, a
partir dos anos 1980, uma representação imaginária das práticas de hacking que as
associava, de modo quase automático, a práticas criminosas.
Assim, tornou-se comum, nessa época, a projeção de certas imagens
(geralmente negativas) associadas aos hackers e suas práticas, e designações
formuladas a fim de diferenciar os “bons” e os “maus” hackers. Um exemplo disso é
a distinção entre “hackers” e “crackers”. De acordo com Lemos (2002, p. 226),
“cracker é a denominação dada pela geração de hackers para se diferenciar dos
criminosos do ciberespaço”. Ou seja, trata-se de um nome formulado por hackers
com o objetivo de deslocar um sentido pejorativo atribuído à palavra “hacker”, isto é,
o sentido de uma prática criminosa. Porém, como adverte o autor (idem), essa
divisão entre “hackers” e “crackers” não é exata, e nem unânime. Embora houvesse
determinados hackers que, influenciados pela radicalidade da cultura
punk/hardcore, não tivessem problema nenhum em se assumir como “crackers”, o
rótulo não funcionava por diferentes razões. Tratava-se de uma designação do
sujeito a partir de sua prática, mas não havia uma diferença suficientemente clara
entre os termos “hack” e “crack”, que explicasse as razões de a primeira prática ser
considerada “boa”, e a segunda, “má”. Além disso, parecia claro que muitos
“hackers” podiam assumir a postura de “crackers”, dependendo da situação.
Outra tentativa de distinguir hackers entre “bons” e “maus” aparece com os
termos “white hat” e “black hat”, respectivamente. Essas formulações fazem
referência a filmes de faroeste, produzidos entre as décadas de 1920 e 1950, nos
quais a cor do chapéu servia para diferenciar os cowboys, de modo que os que
usavam chapéu branco eram “heróis”, e os de chapéu preto eram “vilões” 35. Embora
32
“the Hacker Ethic, microcomputer-style, no longer necessarily implied that information was free”.
De acordo com Lemos (2002, p. 213), o primeiro caso em que uma prática de hacking resultou em
um processo penal ocorreu em 1983, quando um grupo de adolescentes norte-americanos invadiu o
banco de dados de uma empresa chamada Ciments Lafarge, no Canadá.
34
“Os hackers alemães do Chaos Computer Club de Hamburgo, por exemplo, penetraram o sistema
da Caixa Econômica local, retiraram em poucas horas milhares de marcos, e no dia seguinte foram à
agência devolver e mostrar as falhas do sistema” (LEMOS, 2002, p. 210).
35
Um aspecto interessante desse deslizamento de “hacker” para “cowboy” é que, a partir dele, os
sentidos do espaço virtual das redes digitais se filiam a sentidos do chamado “velho oeste” (território
conquistado no processo de expansão da fronteira dos Estados Unidos no século XIX, reinterpretado
pela indústria do cinema do século XX): uma terra a ser desbravada e conquistada, um lugar “sem
33
91
as expressões “white hat” e “black hat” se especifiquem por apontar para o trabalho
em “segurança” como contraponto às práticas criminosas de hacking, essa distinção
também produz uma divisão estanque das práticas em categorias préestabelecidas, que não levam em conta as particularidades da situação.
Nas definições apresentadas a seguir, podemos observar a equivocidade
dessas categorizações baseadas na separação estanque dos opostos.
Imagem 1: “Black Hats36” e “White Hats37” (Fonte: www.isoftdl.com)
Essas descrições são formuladas de modo a marcar uma diferença
entre as práticas, mas o efeito produzido é o de marcar as diferenças de propósitos:
“maliciosos ou destrutivos” no caso dos “black hats”, e “defensivos” no caso dos
“white hats”. Assim, são ainda as supostas intenções dos sujeitos que sustentam a
caracterização dos primeiros como criminosos (“crackers”) e dos últimos como
“analistas de segurança”. Então podemos observar, de partida, que as definições
acima não consideram essas práticas tendo em vista o funcionamento discursivo da
linguagem, mas apenas seu aspecto pragmático.
Vejamos mais de perto o modo como essas formulações procuram definir e
diferenciar os hackers segundo as suas “boas” ou “más” intenções.
Individuals with extraordinary computing skills, resorting to malicious or
destructive activities
Individuals professing hacker skills and using them for defensive purposes.
Destacamos em negrito os trechos que, em cada um desses enunciados,
especificam o sentido de “indivíduos” a partir de referências às suas habilidades: as
dos “black hats” aparecem como “habilidades computacionais extraordinárias” e as
dos “white hats” como “habilidades de hacker”. Embora seja fácil admitir que as
duas formulações tenham “o mesmo” sentido 38, o fato de que o termo ‘hacker’
aparece na descrição de “white hats” e é suprimido na descrição de “black hats”
aponta para uma tentativa de deslocar, do termo ‘hacker’, alguns sentidos
pejorativos a ele associados, a fim de assegurar determinados lugares legitimados
para os hackers na sociedade. Em outras palavras, tem-se aí uma perspectiva que
procura inscrever as práticas de hacking na discursividade jurídica que lega às
instituições o poder de organizar e controlar essas práticas. A partir daí, a diferença
entre os “bons” e os “maus” hackers se especifica em um deslizamento ligado à
palavra ‘habilidade’. Como podemos observar a partir dos mesmos recortes, se na
lei”, à espera do poder do (Capital assegurado pelo) Estado. Esse efeito de sentido se produz sobre
o apagamento de processos discursivos já colocados em curso nesse espaço pelos “nativos” que ali
estavam: no caso do velho oeste, as leis e códigos dos índios americanos; no das redes digitais, a
“ética hacker” descrita por S. Levy (1984).
36
“Black hats” (Chapéu preto): indivíduos com habilidades computacionais extraordinárias,
recorrendo a atividades destrutivas ou maliciosas. Também conhecidos como crackers”.
37
“White hats” (Chapéu branco): indivíduos que professam habilidades de hacker e as usam para
propósitos defensivos. Também conhecidos como analistas de segurança”.
38
Afinal, é senso comum todo hacker deve apresentar habilidades computacionais extraordinárias.
92
definição dos “black hats” a habilidade está simplesmente “com o sujeito39”, na
descrição dos “white hats” a habilidade é algo que o sujeito deve “professar”40, ou
seja, que o sujeito deve assumir e exercer publicamente nos espaços simbólicos
juridicamente administrados pelo Estado.
A partir desse processo de institucionalização da figura (ideologicamente)
criminalizada do hacker, surge a noção de “ethical hacker41” ou “hacker ético”, cuja
prática se realiza no âmbito de espaços institucionais e consiste em zelar pela
segurança de sistemas de informação de acesso restrito. Não podemos deixar de
notar a inversão que a noção de “hacker ético” produz em relação à “ética hacker”
descrita por Levy (1984), que tinha como uma de suas marcas a defesa radical de
que “a informação deveria ser livre”.
Podemos observar que, a partir da divisão entre “bons” e “maus” hackers
(marcada a partir de distinções como “hacker” e “cracker”, ou “white hat” e “black
hat”), há o movimento de significar as práticas de hacking sem pensá-las como tais,
isto é, considerando-as apenas a partir de classificações/rótulos para os hackers.
Essas categorizações que levam em conta apenas os lugares sociais empíricos do
indivíduo perdem de vista um aspecto crucial do funcionamento do discurso: os
sujeitos não se fixam nesses lugares, mas, ao contrário, estão sempre em
movimento.
4. A constituição do hacker como posição-sujeito
A equivocidade de distinções “preto-no-branco” como as que discutimos
acima aparece também na caracterização de um terceiro tipo de hacker: os “gray
hats”.
Imagem 2: “Gray Hats42” (Fonte: www.isoftdl.com)
Ao relativizar a oposição de “black hats” e “white hats”, a noção de “gray hats”
não funciona como uma espécie de meio-termo. Ela expõe a contradição produzida
pela tentativa de criar esses rótulos para os sujeitos a fim de diferenciar suas
práticas em “boas” ou “más”. Assim, se os “black hats” estão associados à
criminalidade e os “white hats” à segurança, qual é, então, o lugar dos “gray hats”?
Seriam esses hackers criminosos que ocasionalmente trabalham com segurança?
Ou analistas de sistemas que às vezes deslizam para o crime?
O fato é que a introdução da noção de “gray hats” faz ruir a proposta de
dividir “bons” e “maus” hackers em categorias opostas como as de “white hats” e
“black hats”. Ela mostra que, em termos de discurso, não se trata de lugares fixos,
mas de posições que se colocam em jogo nos diferentes processos de significação.
39
“Individuals with extraordinary computing skills”
“Individuals professing hacker skills”
41
Há, inclusive, instituições que fazem exames de qualificação e certificação de “hackers éticos” (cf.
https://en.wikipedia.org/wiki/Certified_Ethical_Hacker).
42
“Gray hats” (Chapéu cinza): indivíduos que trabalham ofensivamente e defensivamente em
variadas ocasiões”.
40
93
Assim, podemos tomar a constituição discursiva do hacker em posição-sujeito como
algo que se realiza em cada prática de hacking na qual ele (se) investe.
Consideremos um caso particular para dar corpo ao que estamos pontuando.
Em maio de 2013, o analista de sistemas norte-americano Edward Snowden,
que trabalhava em uma empresa chamada “Booz Allen Hamilton”, foi o responsável
pelo vazamento que revelou uma rede de vigilância mundial construída por agências
de inteligência governamentais (a começar pelas norte-americanas) com a ajuda de
empresas como aquela em que Snowden trabalhava.
Segue um trecho do relato de Snowden sobre o trabalho dos programadores
que atuam como “analistas de segurança” para o governo dos EUA.
When you’re in positions of privileged access like a Systems
Administrator for this sort of intelligence community agencies, you’re
exposed to a lot more information on a broader scale than the
average employee, and because of that you see things that may be
disturbing, but over the course of a normal person’s career you would
only see one or two of these instances. When you see “everything”,
you see them on a more frequent basis and you recognize that some
of these things are actually abuses, and when you talk to people
about them, in a place like this, where this is the normal state of
business, people tend to not to take them very seriously and, you
know, move on from them. But over time, that awareness of
wrongdoing sort of builds up and you feel compelled to talk about it,
and the more you talk about it, the more you’re told it’s not a
problem, until eventually you realize that these things need to be
determined by the public, not by somebody who is simply hired by
the government43 (SNOWDEN, 2013).
Quando solicitado, em outra entrevista, a dar um exemplo específico do
alcance dos sistemas de vigilância dessas agências de inteligência, Snowden
respondeu:
A simple example that everybody can relate to is you’ve got young
enlisted guys, 18 to 22 years old. They’ve suddenly been thrust into a
position of extraordinary responsibility where they now have access
to all of your private records. Now, in the course of their daily work,
they stumble across something that is completely unrelated to their
work in any sort of necessary sense. For example, an intimate nude
photo of someone in a sexually compromising situation, but they’re
extremely attractive, so what do they do, they turn around in their
chair and they show their co-worker. And their co-worker says “oh
hey, that’s great, send that to Bill down the way, and then Bill sends it
to George, George sends it to Tom, and sooner or later this person’s
whole life has been seen by all of this other people. It’s never
reported. Nobody ever knows about it because the auditing of these
43
“Quando você está em posições de acesso privilegiado, como administrador de sistemas, para
este tipo de agência das comunidades de inteligência, você é exposto a muito mais informação em
larga escala do que um empregado comum, e por causa disso você vê coisas que podem ser
perturbadoras, mas ao longo de uma carreira normal, isso acontece uma ou duas vezes. Quando
você vê “tudo”, você vê essas coisas com mais frequência e reconhece que algumas dessas coisas
são na verdade abusos, e quando você conversa com as pessoas sobre essas coisas, em um lugar
como esse, onde isso faz parte do trabalho cotidiano, as pessoas tendem a não levar a sério e, você
sabe, deixam passar. Mas com o tempo, o peso de saber dessas infrações vai se acumulando e você
se sente levado a falar sobre isso, e quanto mais você fala sobre isso, mais te dizem que isso não é
um problema, até você perceber que que essas coisas precisam ser determinadas pelo público, e
não por alguém que é um simples contratado do governo” (tradução nossa).
94
systems is incredibly weak. The fact that your private images,
records of your private lives, records of your intimate moments have
been taken from your private communication stream, from the
intended recipient, and given to the government without any specific
authorization, without any specific need, is itself a violation of your
rights. Why is that in a government database?44 (SNOWDEN, 2014).
Os relatos de Snowden ajudam a explicitar como, em um mesmo lugar social
(no caso, o dos “analistas de segurança” que trabalham para agências do governo),
há diferentes posições-sujeito possíveis diante de cada situação. No exemplo dado,
de uma foto pessoal que é secretamente acessada com a autoridade do governo,
Snowden (idem) afirma que isso é considerado uma espécie de “bônus” que vem
com esses lugares institucionais das práticas de vigilância45. Em outras palavras,
hackers contratados como “analistas de segurança”, ou seja, supostos “white hats”,
recorrem a “atividades maliciosas” como os chamados “black hats”. Eles ocupam o
lugar institucional legitimado do “hacker ético”, mas seus gestos podem, com
facilidade, deslizar secretamente para fora desse lugar, enquanto posição-sujeito.
O próprio Snowden é um exemplo interessante para pensarmos a
constituição do hacker como posição-sujeito. Quando ele começou a questionar as
práticas que considerava “abusivas”, sua posição foi gradativamente se deslocando
da formação discursiva que determina o que pode e deve ser dito e feito no
expediente de um analista de segurança que trabalha para a NSA: “quanto mais
você fala sobre isso, mais te dizem que isso não é um problema”. Snowden afirma,
na entrevista de 2014, que procurou conversar sobre esses problemas com colegas,
“primeiro lateralmente, depois verticalmente”. Até que a constituição de Snowden
como posição-sujeito produz uma ruptura ao dizer, nas entrevistas concedidas em
2013, tudo aquilo que não pode e não deve ser dito por alguém que trabalha como
analista de segurança para o governo dos EUA. Quando Snowden viajou de seu
local de trabalho no Havai a Hong Kong, onde seria entrevistado por Glen
Greenwald e Laura Poitras, um pedido de extradição foi imediatamente pedido. Sua
solução para escapar ao sistema jurídico norte-americano foi pedir asilo ao governo
russo, o que lhe foi rapidamente concedido.
4. Comentários finais (e algumas questões)
As entrevistas de Edward Snowden, sobretudo as primeiras, em maio de
2013, constituem um material relevante para a nossa proposta de pesquisa sobre as
práticas de hacking, e provavelmente serão objeto de novas análises que
desenvolveremos. Por ora, procuramos apenas os de mostrar diferentes (efeitos de)
44
“Um exemplo simples, com o qual todos podem se relacionar, é que você tem jovens contratados,
entre 18 e 22 anos. Eles de repente são colocados em uma posição de extraordinária
responsabilidade, a partir da qual eles passam a ter acesso a todos os seus registros pessoais
[Snowden aponta para o entrevistador]. Bem, no curso de um dia de trabalho, eles topam com algo
que não tem relação alguma com as necessidades do trabalho. Por exemplo, uma foto íntima nua, de
alguém em uma situação sexualmente comprometedora, mas essa pessoa é extremamente atraente,
então o que eles fazem, eles se viram em suas cadeiras e mostram para o colega. E aí o colega diz
‘ei, legal, mande isso para o Bill lá embaixo’, e o Bill manda para o George, George manda para o
Tom, e cedo ou tarde toda a vida dessa pessoa foi vista por todas essas outras pessoas. Nunca é
reportado. Ninguém nunca fica sabendo porque as auditorias desses sistemas são incrivelmente
fracas. O fato de que as suas imagens privadas, registro das suas vidas privadas, registros de seus
momentos íntimos, foram retirados do fluxo das suas comunicações privadas, do destinatário
pretendido, e dadas ao governo, sem qualquer autorização específica, e sem qualquer necessidade
específica, é uma violação dos seus direitos. Por que isso está em um banco de dados do governo?”
(tradução nossa).
45
No original: “(...) these are seen as a fringe benefit of the surveillance positions”.
95
sentidos ligados às práticas dos hackers e pontuar, teoricamente, a questão da
constituição do sujeito, no discurso, como posição entre outras.
De modo geral, também notamos que a distinção entre “bons” e “maus”
hackers diz respeito a um ponto fundamental da constituição do chamado “sujeito de
direito”: a responsabilidade, ou, mais especificamente, a responsabilização do
indivíduo pelo sistema jurídico, isto é, a imputação de sua responsabilidade46. Essa
relação entre a responsabilidade e a imputabilidade no discurso jurídico também
suscita questões para futuras análises.
Quais os sentidos de “ser responsável”, “ser irresponsável” e “ser imputável”
nas condições de produção do discurso estruturadas pelas redes digitais? O que as
práticas dos hackers têm a nos ensinar sobre o funcionamento da ideologia e as
possibilidades de resistência nessas condições? Como pensá-las enquanto práticas
sociais simbólicas que articulam, em diferentes processos discursivos, as chamadas
“línguas naturais” às “línguas artificiais”?
5. Referências
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea
(2002). 7ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2015.
LEVY, Steven. Hackers: heroes of the computer revolution (1984). Sebastopol:
O’Reilly, 2010.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (1969). In: Gadet, F. & Hak, T.
(orgs.) Por uma análise automática do discurso. 4ª ed. Campinas: Unicamp,
2010.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (1975).
3ª ed. Campinas: Unicamp, 1997.
SNOWDEN, Edward. Youtube. “NSA whistleblower Edward Snowden: 'I don't want
to live in a society that does these sort of things'”. Publicado em 9 de julho de 2013.
Disponível em: https://youtu.be/0hLjuVyIIrs. Acesso em 20/11/2017.
SNOWDEN, Edward. Youtube. “Edward Snowden: ‘If I end up in Guantánamo I can
live with that’ | Guardian Interviews”. Publicado em 18 de julho de 2014. Disponível
em: https://youtu.be/L_amBkYx_Fk. Acesso em 20/11/2017.
46
Como escreve Pêcheux (1975, p. 159), “a lei sempre encontra ‘um jeito de agarrar alguém’, uma
‘singularidade’ à qual aplicar sua ‘universalidade’”.
96
CINISMO: UM ESTUDO SOBRE O
FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA NO
DISCURSO
AMANDA BARBOSA XAVIER COTRIM
Instituto de Estudos da Linguagem
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
R. Sérgio Buarque de Holanda, 571 - Cidade Universitária, Campinas - SP, CEP:
13083-859
amandacotrim87@gmail.com
Resumo. Para esse trabalho, propomos pensar sobre o funcionamento do
cinismo nos discursos que dizem os processos migratórios
contemporâneos. Analisamos parte do discurso da Campanha da GrãBretanha contra os imigrantes-refugiados, que circulou na imprensa em
2014, na tentativa de refletir, pela Análise de Discurso, sobre a relação
discurso, cinismo e ideologia em seu processo de constituição, formulação
e circulação (ORLANDI, 2007).
Palavras-Chave. Discurso, Cinismo, Ideologia, Migrações, Análise de
Discurso
Abstrat: For this work, we propose to think about the functioning of
cynicism in the discourses that say the contemporary migratory processes.
We look at part of the speech of the British Campaign against refugeeimmigrants, circulated in the press, in 2014, in an attempt to reflect, through
Discourse Analysis, on the relation discourse, cynicism and ideology in its
process of constitution, formulation and circulation (ORLANDI, 2007).
Keywords: Discourse, Cynicism, Ideology, Migration, Speech Analysis
1. Apresentação
Este trabalho é um esboço de uma reflexão ainda muito inicial que está se
desenvolvendo no âmbito da pesquisa de doutorado. Na tese investigamos o
funcionamento do cinismo nos processos discursivos contemporâneos, mais
especificamente nos discursos institucionais e de governo que dizem os processos
migratórios no século XXI.
Algumas reflexões desenvolvidas por autores de áreas como Filosofia,
Psicanálise e, mais recentemente, Análise de Discurso de linha materialista, têm
insistido na ideia de que, para compreendermos a sociedade na
contemporaneidade, precisamos considerar o caráter cínico de seu funcionamento
(BALDINI e DI NIZO, 2015).
O filósofo Sloterdike (2012) em seu trabalho sobre o cinismo contemporâneo
recupera sua historicidade, desde Grécia Antiga, fazendo uma diferenciação entre o
cinismo grego (kynismo)47 e o cinismo atual. Na figura de Diógenes, os cínicos eram
descendentes de escravos, estrangeiros ou prostitutas e não possuíam cidadania
47
A noção de kynismo e cinismo é objeto de estudo da tese de doutorado de DI NIZO, em
desenvolvimento no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.
97
ateniense. Eles rejeitavam os valores instituídos, fama, dinheiro e não acreditavam
no poder (SLOTERDIK 2012). Os cínicos gregos partiam do pressuposto de que
não havia diálogo entre eles- os excluídos- e os poderosos. Como um cético
(SLOTERDIK 2012), o cínico não estava preocupado com os argumentos utilizados
pelos poderosos, mesmo sabendo sobre esses argumentos. Podemos dizer, de
modo não alongado, que o cinismo na Grécia funcionava como um trabalho de
resistência, em que os cínicos reconheciam o poder, mas se contrapunham a ele, o
ignorando, debochando dele. Ou seja, havia reconhecimento, mas não havia
identificação com o poder.
Na contemporaneidade, no entanto, a atividade cínica, nas palavras de
Sloterdik (2012), troca de lado e passa a ser a lógica do poder. O autor trabalha o
cinismo no sentido de uma impostura, “como se passássemos da célebre
formulação de Marx (eles não sabem, mas o fazem) para um eles sabem muito bem
o que estão fazendo e mesmo assim fazem (BALDINI, 2009). Esse cinismo, para
Zizek (1992, p. 313), não é uma postura direta da imoralidade, mas a própria moral
posta a serviço da imoralidade”. A partir dessa breve introdução teórica apresentada
acima, pretendemos nesse trabalho analisar o cinismo como uma prática discursiva
(BALDINI e DI NIZO, 2015) nas relações de poder. Desse modo, não adotaremos a
problemática centrada no sujeito falante e nem no poder como um lugar estático e
original, para que assim possamos formular questões em termos de representações.
A nossa pergunta consiste em saber como o cinismo funciona no discurso,
considerando o sujeito e a situação (condições de produção), na tentativa de pensar
a relação discurso, cinismo e ideologia em seu processo de constituição, formulação
e circulação48 (ORLANDI, 2007).
2. Cinismo e Ideologia
A ideologia para a Análise de Discurso materialista é compreendida, desde
Althusser (1985), como uma prática. Trata-se de um funcionamento que produz
evidências; uma operação em que a língua e a história estão em pleno movimento.
Essa perspectiva recusa o idealismo centrado no sujeito, a ilusão discursiva do
sujeito como origem (ORLANDI, 2017) e mobiliza a noção teórica e analítica de
interdiscurso, desenvolvida por Pêcheux (1975), o qual afirma que alguma coisa fala
antes em outro lugar independentemente. Ou seja, há a constituição do Outro (a
historicidade e o social) naquilo que se diz; uma voz sem nome, como escreve
Courtine (1982). Se o cinismo é uma marca da ideologia (BALDINI e DI NIZO,
2015), como seu funcionamento se dá no discurso?
Antes de renunciar, em 2016, o primeiro Ministro britânico, David Cameron,
estabeleceu uma Campanha contra a imigração europeia e o islamismo,
sustentando esta campanha sob o argumento da necessidade de proteção da GrãBretanha contra o terrorismo originado do exterior, enfatizando que os imigrantesrefugiados deveriam ser deportados. No dia 28 de novembro de 2014, o Jornal Hoje,
da Rede Globo, transmitiu o pronunciamento do primeiro ministro britânico sobre
esse tema com a seguinte manchete: “David Cameron anuncia medidas para
reduzir imigrantes no Reino Unido”. Logo abaixo do vídeo, o jornal continua: “O
primeiro ministro britânico começou o discurso reconhecendo a valiosa
contribuição dos imigrantes, mas depois disse que os serviços públicos não estão
dando conta de tantos estrangeiros”.
48
Aqui se faz necessário destacar o trabalho de Slouterki (2012) o qual faz uma diferenciação entre
cinismo e kynismo. O cinismo contemporâneo existe nas relações de poder. Já o kynismo tem
sentido de contravenção e resistência. São noções diferentes que produzem efeitos diferentes, face
ao real da história e da política na relação com o imaginário.
98
Notamos que a imprensa estabeleceu uma relação direta entre imigrantes e
estrangeiros, como sinônimos, concordando que estrangeiros são os imigrantes,
numa relação oposta com o que poderíamos pensar sobre o turista, que também é
estrangeiro. Mas não é desse estrangeiro que se trata. A seguir, recortamos parte
do pronunciamento do (ex) Ministro para a análise.
3. Análise
“Os imigrantes ajudaram a desenvolver a Grã-Bretanha, mas espero que a
União Europeia nos apoie na decisão de deportá-los”, referindo-se aos refugiados
do Oriente Médio49. A partir dessa formulação, faremos um deslizamento a fim de
melhor compreender esse funcionamento: “Os imigrantes ajudaram a
desenvolver a Grã-Bretanha [eu sei que os imigrantes ajudaram a desenvolver a
Grã-Bretanha], mas espero [eu espero/esperamos] que a União Europeia nos apoie
[me apoie] na decisão de deportá-los”.
O pronunciamento do Ministro, acompanhado pela mídia em vários países do
mundo, demonstrou que não são todos os imigrantes que devem ser deportados,
mas os refugiados, e mais especificamente os que são relacionados ao refúgio
proveniente da Síria, um implícito que funciona por causa da memória discursiva da
política governamental e institucional da Grã-Bretanha sobre o islamismo e sobre o
refúgio do século XXI, que teve suas representações mais transmitidas pela mídia
após 2011, com o início da guerra na Síria. E aí nos cabe perguntar: no que a
expulsão de imigrantes é transformada quando olhamos para o discurso da
Campanha?
3.1
Relação saber e crença
Apesar de saber que os imigrantes ajudaram no desenvolvimento da GrãBretanha, e que por isso, podemos dizer, eles não representariam uma ameaça ao país,
defende-se que os imigrantes devem ser deportados. O saber da formulação é da
ordem do reconhecimento. No entanto, esse saber é invalidado quando, em seu
discurso, a campanha estabelece uma oposição entre o saber/reconhecimento e a
decisão. O “sabemos, mas”, “a Grã-Bretanha sabe, mas” ou “eu sei, mas”, ou ainda
“reconhecemos, mas” funciona para apagar o que se sabia, reformulando a memória a
partir daquilo que vai ser dito. O saber sai de cena para o que o querer/desejo apareça:
Espero que a União Europeia nos apoie.
O Ministro, de sua posição-sujeito na Formação Discursiva contra imigração,
Britânico e Europeu, enunciou ancorado em uma defesa: a de que os imigrantes
precisam ser expulsos. Essa defesa se sustenta a partir de um discurso da necessidade
[espero que a União Europeia nos apoie/ necessitamos que a União Europeia nos
apoie/ queremos que a União Europeia nos apoie], que deixa ver uma crença, um
desejo: [eu sei, mas espero- um espero que desliza para quero-desejo-acredito] de que
não há outra decisão a ser tomada, que não há nada a ser feito como alternativa, a não
ser deportar os imigrantes.
Ao dizer que é preciso expulsar o outro, a insegurança e o risco- sentidos
impregnados na imagem desse imigrante-refugiado- tornam-se, pela ideologia, uma
evidência. Afinal, é “só” por isso- e por “tudo” isso- que os imigrantes devem ser
expulsos. A discursividade cínica, como marca da ideologia, traveste-se de como sendo
o bem comum aquilo que é da ordem dos próprios interesses do sujeito nas relações de
49
Formulação do (ex) Primeiro Ministro britânico, David Cameron, divulgada em 28 de novembro de 2014,
pela mídia televisiva (Jornal Hoje, da Rede Globo). Link: http://g1.globo.com/jornalhoje/videos/t/edicoes/v/david-cameron-anuncia-medidas-para-reduzir-imigrantes-no-reino-unido/3796408/
99
poder (ZIZEK, 1992), produzindo, pelas condições de produção, um efeito de consenso.
É importante destacar de que não se trata de consenso e nem de um bem comum, mas
de um efeito, que pelas condições objetivas de um pronunciamento/decisão institucional
divulgada em um aparato midiático, e pelas relações de poder (quem fala em uma
sociedade de classes), não concede abertura para uma visão outra.
Se o cínico na Grécia partia de um princípio de um não-diálogo entre ele (o
excluído) e os poderosos, e por ser cético em relação ao poder o cínico ria dele, na
contemporaneidade o cínico nas relações de poder simula o diálogo, mesmo não
acredita nele. Nesse caso que estamos analisando, podemos perceber que o cínico
radicaliza em seu discurso (GOLDEMBERG, 2002) ao produzir um efeito do “beco sem
saída” (SLOUTERDIK, 2012), fazendo crer que existiu, por parte do poder, um esforço
para equilibrar os conflitos, colocando em forças iguais governo e imigrantes, mesmo
sabendo que isso, de fato, não ocorreu.
3.2 Dissimulação e Simulação
Na Campanha da Grã-Bretanha, o cinismo é a expressão de algo mediante
palavras que se sobrepõe e se contradizem: “os imigrantes ajudaram a construir a GrãBretanha, mas”, algo que se estabelece na relação entre o institucional e o jogo. O
Ministro está convencido de sua causa, ou em outras palavras, de seu desejo- e
convencido de seu poder- e por isso transita pela contradição, deixando-a ser vista
mediante o contexto. Assim como na ironia (ORLANDI, 2012), no discurso cínico que
estamos analisando, há, ao mesmo tempo, uma simulação e uma dissimulação. A
simulação ocorre porque o Ministro, em sua posição sujeito, apresenta o seu querer
(deportar imigrantes) como sendo um querer coletivo (a Grã-Bretanha quer), ignorando
opiniões contrárias ou possibilidades outras. E a dissimulação se dá porque, ao dizer
que reconhece a contribuição dos imigrantes, esse reconhecimento oculta sua decisão
e seu projeto político de expulsá-los. Talvez esteja na simulação e na dissimulação a
força do cinismo que, neste caso, vem dar conta dessa contradição que fora amenizada:
“sabemos, mas”, funcionando como um efeito ideológico do discurso cínico; uma
reafirmação do poder pelo discurso.
A expulsão de imigrantes é sentenciada pelo governo britânico como sendo a
única alterativa que restou, materializando, na linguagem, o que Mariani (2014) chamou
de uma “possível perversão social contemporânea. “Eu sei que, mas” é uma formulação
dita em posições-sujeito nas quais “a submissão à Lei simbólica e às leis sociais
deram-se frouxamente” (MARIANI, 2014, p. 219) 50. A formulação “os imigrantes
ajudaram a construir a Grã-Bretanha, mas espero que a União Europeia nos apoia
na decisão de deporta-los” estanca, pelo discurso, qualquer forma de diálogo ou
produção de sentidos outros sobre a questão migratória, interditando qualquer
possibilidade de novos sentidos sobre o que é ser imigrante/refugiado na Europa,
pois a Campanha diz que reconhece o outro (imigrante-refugiado) negando-o. É um
reconhecimento “afrouxado” para usar as palavras de Mariani. Um reconhecimento
cínico.
Não há nada em comum entre o discurso de Diógenes, que depende
do discurso dominante para existir como tal, e o moderno discurso
do cínico, fechado em si próprio (...). Se o primeiro revela a
incidência do desejo de um só sobre os significantes-mestre (nomos)
de todos, o segundo se caracteriza precisamente por neutralizar a
incidência do desejo dos que entram em seu aparato.
50
A ideia de perversão, da psicanálise, pensada em relação ao cinismo é um dos temas da minha
pesquisa de doutorado. O tema não será desenvolvido nesse artigo, contudo.
100
(GOLDENBERG, 2002, p. 75)
Neste sentido, o cinismo é um certo modo de pertencimento do sujeito a uma
Formação Discursiva, “certo modo de relação com o saber, uma tomada de posição
desengajada, ou de uma subjetivação assumida apenas para ser parodiada”
(BALDINI, 2012, p. 110-111). O cínico grego (excluído) sabia que não haveria diálogo
com o poder; o cínico contemporâneo também sabe que não haverá diálogo com o
excluído, mas age como se não soubesse, numa espécie de teatralidade/simulação.
O cínico contemporâneo não é cético, mas, usando as palavras de Baldini
(2012), desengajado, pouco interessados nos argumentos que não os dele, mesmo
sabendo da existência de argumentos outros. Ou seja, há reconhecimento e há
identificação, no sentido de haver uma afirmação de pertencimento do sujeito à lógica
que instaura algo como verdade, mas ao se descomprometer em relação àquilo,
mantém-se em uma relação de poder: eu sei, eu reconheço, eu pertenço a esse
laço, e eu posso – tenho poder – me descomprometer com isso, sem perder meu
lugar, pelo contrário, meu lugar está garantido inclusive em função de minha força
em escancarar meu descomprometimento.
O cínico está tão iludido sobre a garantia de seu lugar nas relações de
poder, que, por isso, simula. Ele não está menos preso que o seu interlocutor na
trama que ele cria. Trata-se de “uma relação com o inconsciente tal qual ele só
existe para os outros, o que faz com que o interessado se imagine autônomo e livre
de qualquer outra determinação que não a sua boa ou má vontade”
(GOLDENBERG, p. 15, 2002). E é disso que se trata o discurso do governo
britânico, mesmo reconhecendo a importância dos imigrantes para a constituição
daqueles países, ignora seu saber, já que não existe espaço para esse outro nem no
território e nem no discurso. O cinismo, então, seria uma prática discursiva nas
relações de poder de dupla face: se reconhece uma coisa e apaga-a para impor
outra.
3.3
Cinismo e promessa
Em nossa análise, identificamos que há no funcionamento do discurso cínico
um sentido de promessa. Tentaremos elaborar essa afirmação a seguir. A
sequência discursiva que elegemos para esse trabalho pode ser deslizada51 para:
"vamos deportá-los" ou "a Grã-Bretanha vai deportá-los". Esse dizer produz um
compromisso, que por sua vez tem efeito de promessa (aquilo que o político fará em
favor de um grupo imaginário- os britânicos) em contraposição a um efeito de
ameaça (aquilo que o político fará contra um grupo também imaginário- os
imigrantes) (FELMAN, 1980). Ao realizar seu pronunciamento em cima de um
palanque, e estar sendo observado pela imprensa internacional, o Ministro seduz
com o corpo, o qual fala e se projeta numa posição sujeito de equalizador daquele
conflito. A promessa- e diríamos o cinismo- convoca o outro imaginário porque
necessita que sua farsa se constitua, se formule e circule. Parafraseando Felman
(1980), cínico não crê, mas faz crer, materializando na linguagem um efeito
significante de autoreferenciação: “eu-Ministro/governo - espero, logo todos devem
esperar”.
51
Trabalhamos teoricamente em nossa tese noções como efeito metafórico, deslize, deslocamento,
paráfrase, polissemia para pensar o cinismo. Consideramos dois processos fundamentais para o
discurso cínico: o perifrástico e o polissêmico. “São eles responsáveis pelo limite impreciso e instável
entre a pluralidade de sentidos possíveis e a permanência de um “mesmo” sentido em suas várias
formas. A tensão entre esses dois processos institui a diferença entre a produtividade -reiteração
(paráfrase) de processos cristalizados na linguagem - e a criatividade - a instituição do novo (polissemia)
pela ruptura do processo de produção dominante” (ORLANDI, 2012, s/p).
101
Se a política governamental é cínica, o cinismo já não estaria funcionando
como resistência, como na Grécia, mas como violência travestida de solução. Na
linguagem, o cinismo, como uma prática autoritária da política, antecipa o sentido
sobre determinado acontecimento, interditando-o, e o cínico se apresenta como se
não tivesse nada a ver com isso.
4.Considerações
Nesse brevíssimo ensaio, apresentamos que o cinismo, como marca da
ideologia, tem a ambiguidade materializada no discurso: se diz uma coisa para dizer
outra, ou melhor, se diz uma coisa para apagar outras, mas não quaisquer outras. Não
se trata simplesmente de uma ambiguidade, uma contradição, o que é da ordem de
qualquer discurso, mas de uma ambiguidade que está a serviço de um gozo52. Trata-se
de um dizer “x” para se fazer “y”. Mas, no cinismo, diferente da ironia (ORLANDI, 2012),
que depende do “entendimento” do interlocutor, o locutor ignora o interlocutor, mas se
comporta como se não o ignorasse.
No discurso da Campanha da Grã-Bretanha perceberemos que há duas
instituições agindo sobre esses dizeres: a política governamental e a mídia, condições
que interferem na interpretação do acontecimento. Os discursos de governo se
constituem sob a impossibilidade de confronto e de debate naquele espaço de
circulação. Nas relações de poder, o cinismo retira a responsabilidade do sujeito, em
sua posição social de poder, que pode se esconder de seu saber e se posicionar pela
sua crença, num processo de esvaziamento e desprendimento parcial daquilo que se
sabia antes (MANNONI, 1973).
A crença, que sustentaria o cinismo- "Eu sei que os imigrantes ajudaram a
desenvolver a Grão Bretanha, mas espero [acredito-desejo-quero] que a UE nos apoie
na decisão de deportá-los" não tem relação com o que precisa ser feito, mas com o que
se acredita que deve ser feito (MANNONI, 1973); é uma adesão, um posicionamento
político; por isso a crença não tem relação com um debate polêmico e interminável
sobre os direitos humanos, mas com a decisão-adesão- de um projeto que pretende
conservar um sentido que fora eleito como essencial, como é o caso do sentido de
segurança nacional, que deriva do discurso contra a imigração; conservando um estado
de poder que sustenta um ideal a ser fecundado (FOUCAULT, 2010).
Podemos refletir se o cinismo não funcionaria como uma espécie de blindagem
política, já constituída na linguagem, uma vez que sua formulação e circulação já impõe
o silenciamento do outro, da contra argumentação. A política (cínica), como lugar que
tem reconhecimento social, joga com a identificação dos sujeitos: "x é melhor do que y",
produzindo um sentido comum: "não ter imigrantes é melhor do que ter". Desse modo,
podemos pensar que o cinismo é uma forma de subjetivação política, um modo
particular de interpelação ideológica.53
O cinismo, como tentamos mostrar nesse trabalho, é uma noção que cria
laços com a história, tendo no campo da Filosofia uma espécie de “categoria
unificada”. Não apostamos que vamos descobrir nada muito além do que já foi
escrito sobre o cinismo, um objeto de estudo fecundo, intrigante e complexo.
Contudo, pensamos que o cinismo não é uma categoria fixa, não se trata de um
conjunto de enunciados que podem ser tidos como cínicos. O que acreditamos- e
pretendemos devolver isso em nossa tese - é que não há cinismo, há cinismos, e
que eles se manifestam de modos parecidos, mas não idênticos nas relações de
poder. Por isso, a análise sobre a enunciação é fundamental. E então poderíamos,
52
7
Pretendemos discutir melhor a noção de gozo para a Psicanálise em nossa tese.
Estamos trabalhando a noção de interpelação ideológica em nossa tese de doutorado.
102
no futuro, dizer se o cinismo é da ordem da constituição, da formulação ou de ambas.
7. Referências
BALDINI, L. Cinismo, discurso e ideologia. IV SEAD - SEMINÁRIO DE ESTUDOS
EM ANÁLISE DO DISCURSO 1969-2009: Memória e história na/da Análise do
Discurso Porto Alegre, de 10 a 13 de novembro de 2009
BALDINI, L. e DI NIZO, Patrícia. O Cinismo como prática ideológica. Estudos da
Língua(gem) Vitória da Conquista v. 13, n. 2 p. 131-158, dezembro de 2015.
BALDINI, L.J. Discurso e cinismo. In: MARIANI, B.;MEDEIROS, V. (orgs.).
Discurso e...Rio de Janeiro:7LetrasFaperj, 2012.
COURTINE, J.J. O Chapeu de Clementis. In: Indursky, E (org.) Os múltiplos
territtórios da análise de discurso, In: Philosophiques, vol. IX, Paris, 1982.
FELMAN, Sohshana. Le Scandale du corps parlant. Paris Ed. du Seuil, 1980.
FOUCAULT, Michel. Repensar a política, in Ditos e Escritos. Org. Manoel Barros
da Motta. Editora Forense Universitária. São Paulo, 2010.
GOLDENBERG, R. (2002) No Círculo Cínico ou Caro Lacan, por que negar
a Psicanálise aos canalhas?. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
HOJE, Jornal. TV Globo. David Cameron anuncia medidas para reduzir imigrantes no
Reino
Unido
Disponível
em
http://g1.globo.com/jornalhoje/videos/t/edicoes/v/david-cameron-anuncia-medidas-para-reduzirimigrantes-no-reino-unido/3796408/ Acesso em: 15 abr 2016. 12: 05: 05
MANNONI, O. Eu sei, mas mesmo assim, ...”. In: Chaves para o Imaginário. Trad.
Ligia Maria Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1973.
MARIANI, B. (2014) Uma proposta de arquivo sobre o sujeito da cidade do Rio
de Janeiro. In: CABRAL, A.; FARBIARZ, A.; TAVARES, D. Pesquisas em mídia e
cotidiano. Rio de Janeiro: EDUFF e Rio Bookks, 2014.
ORLANDI, E. P.
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Eu, Tu, Ele- Discurso e Real da História. Editora Pontes,
ORLANDI, E. P. Destruição e construção do sentido: um estudo da ironia. In:
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Disponível
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<http://www.discursividade.cepad.net.br/atual/Arquivos/eniorlandi.pdf>. Acesso em
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ORLANDI, Eni. As formas de silêncio. Campinas: Pontes, 2007.
PECHEUX, M. Les vérités de la Palice, Paris: Maspero, 1975. In: Orlandi, E. Eu,
Tu, Ele- Discurso e Real da História. Editora Pontes, Campinas, 2017.
SLOTERDIJK, P. Crítica da Razão Cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
103
ZIZEK, S. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. São
Paulo: Zahar, 1992.
104
OS MECANISMOS DE PRODUÇÃO DE
SENTIDO E O PROCESSO DE LEITURA DO
TEXTO PUBLICITÁRIO: UM ESTUDO À LUZ
DA TEORIA SEMÂNTICA
AMANDA CARVALHO SOUZA54; ÉRIKA DOURADO AMORELLI55
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Av. Dom José Gaspar, 500, prédio 20, CEP: 30535901
amandiinha123@hotmail.com; erikadourado@gmail.com
Resumo. Este artigo investiga o processo de leitura e os mecanismos de
produção de sentido, à luz do estudo da Teoria Semântica. Como
subsídios para esta pesquisa baseamos nos pressupostos teóricos de
Frege (1978) sob a perspectiva da referência, que é fundamentada no
texto “Sobre o sentido e a Referência” e nos pontos de percepção e
inferência da teoria de Umberto Eco (1998), mencionados na obra “Tipos
Cognitivos e Conteúdo Nuclear”. O corpus de análise deste estudo é uma
propaganda publicitária impressa de lingerie da marca Duloren, que
circulou no Rio de Janeiro, no ano de 2012.
Palavras-chave: Teoria Semântica. Processo de Leitura. Publicidade e
Propaganda. Textos Publicitários.
Abstract. This article investigates the reading process and the
mechanisms of meaning production, in the light of the study of Semantic
Theory. As support for this research we base it on the theoretical
assumptions of Frege (1978) from the perspective of reference, which is
based on the text "On the meaning and the Reference" and the points of
perception and inference of the theory of Umberto Eco (1998), mentioned
in the book "Cognitive Types and Nuclear Content". The corpus of
analysis of this study is a printed advertising advertisement of Duloren
brand lingerie, which circulated in Rio de Janeiro in the year 2012.
Keywords: Semantic Theory, Reading Process, Advertising and
Marketing, Advertising Texts.
1. Introdução
O tema deste artigo refere-se aos mecanismos de produção de sentido
envolvidos no ato da leitura e está inserido na área dos estudos linguísticos.
Partimos de uma concepção abrangente do processo de leitura, na qual
compreendemos que seja não só uma decodificação de símbolos, como também o
processo de produção de sentido entre o leitor e o texto.
A partir de estudos previamente realizados na disciplina de Teoria Semântica,
oferecida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
54
Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC Minas). Atua como bolsista FAPEMIG.
55
Mestranda em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC Minas). Atua como bolsista FAPEMIG.
105
Católica de Minas Gerais (PUC Minas) observamos que as discussões teóricas
embasadas em textos de renomados autores desta área do conhecimento podem
nos esclarecer, ainda mais, acerca do ato de ler. Neste sentido, o objetivo geral
desse estudo é entender o processo de leitura a partir de estudos e pressupostos
semânticos. Tal pesquisa justifica-se, uma vez que “dentre muitos dos instrumentos
de que as pessoas dispõem numa sociedade, como forma de dominar e de
processar o conhecimento, provavelmente a leitura é um dos mais importantes”
(MARI; MENDES, 2005, p.155, grifo nosso).
Em um primeiro momento, apresentaremos de que forma os estudos
linguísticos concebem a leitura. Por muito tempo, entendia-se que o ato de ler se
restringia à decodificação da língua, aos conhecimentos da gramática e à leitura das
sentenças que formam um texto. Existia assim uma preocupação excessiva com a
sintaxe, e o sujeito não era estimulado a interagir com o texto, nem muito menos, a
desenvolver sua competência analítica/discursiva. Entretanto, há décadas, uma
nova perspectiva de leitura vem sendo discutida e defendida por teóricos. As
autoras Coscarelli; Novais (2010) afirmam que leitura abarca a ação dinâmica de
vários campos de processamento. É um processo de assimilação de diferentes
operações.
Após essa discussão e fundamentação inicial, faremos uma associação entre
certos conceitos e o ato de ler. Para isso, selecionamos os estudos teóricos de
autores como Frege (1978) e Eco (1998). Recorremos, também, a outros autores
com escopo de elucidar/aprofundar as questões e conceitos debatidos por esses
dois teóricos.
Em um terceiro momento, o foco será o texto publicitário, sua linguagem e
especificações, relatando as características e estrutura deste tipo de gênero, que é
o nosso objeto de análise.
Por fim, realizaremos um diagnóstico da propaganda da empresa Duloren,
que circulou na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2012.
Almejamos, com esse estudo, mostrar a leitura do texto publicitário, a partir
dos conceitos e discussões propostas no decorrer do desenvolvimento desse artigo.
2. Desenvolvimento
2.1 O processo de leitura na construção do sentido, significação e
interpretação de mundo
Diversos estudos linguísticos vêm comprovando a importância de se
entender, efetivamente, o processo de leitura assim como os seus impactos, tanto
no aprendizado como no modo de significação e interpretação do mundo pelos
leitores.
Corrêa (2005) relata que, por muito tempo, a leitura foi considerada como a
ação de decodificar as palavras, na qual se convertiam apenas letras em sons.
Segundo a autora, o real ato de ler é um processo muito mais amplo, em que há a
atribuição de sentido ao texto, no qual o leitor, a partir de seus conhecimentos
prévios interage com o texto, estabelecendo significado. Corroborando com essa
ideia, os autores Mari; Mendes (2005) afirmam que a leitura é um método complexo,
que exige o desenvolvimento de vários conhecimentos: o conhecimento linguístico
(dimensão gramatical e lexical), o conhecimento de mundo e a interação leitor-texto.
A partir destas afirmações, compreendemos que o ato de ler não deve ser
concebido apenas como uma técnica, mas como um processo de formação e
estabelecimento de sentidos entre o leitor e o texto, se distanciando do conceito de
leitura linear, fragmentada e restrita ao conteúdo do texto. “Para ler necessitamos,
106
simultaneamente, manejar com destreza as habilidades de decodificação e aportar
aos textos nossos objetivos, ideias e experiências prévias”(SOLÉ, 1998, p.23).
Nesse viés, a decodificação de símbolos no texto constitui apenas um dos
métodos necessários para a leitura, mas não um todo. Ao discutirem sobre leitura,
as autoras Coscarelli e Novais apontam que:
cada ato de leitura é carregado de atos particulares, pois cada leitor
traz para sua leitura uma situação diferente, interesses diferentes,
assim como tem um olhar diferenciado para o texto e tudo isso vai
gerar um processamento diferenciado do texto. O processamento
como um todo vai fazer emergir sentidos diferentes(COSCARELLI;
NOVAIS, 2010, p. 38).
Desse modo, a multiplicidade de sentidos atribuídos a um texto é plausível e
advém, justamente, dos diferentes tipos de leitores/receptores e de suas relações
estabelecidas com ele. É no processo de leitura que o homem estabelece vínculos
entre o texto e a realidade, além de interpretar e atribuir sentido ao mundo. Neste
viés, a leitura é concebida como um caminho para o desenvolvimento da criticidade,
da reflexão e da autonomia, tendo em vista que, o leitor não deve se limitar à
significação superficial/mínima estabelecida pelos itens que compõem o texto.
Portanto, neste processo o leitor deve ter espaço para atribuir sentido ao
texto, para que possa realizar uma leitura produtiva. Entretanto, ressaltamos que
existem restrições relacionadas à interpretação. Os autores Mari; Mendes (2005) em
“Processos de Leitura: fator textual” discutem que o próprio funcionamento da
linguagem, as regras que a regem, assim como as estruturas/os gêneros textuais,
estabelecem restrições na compreensão dos textos e na atribuição de sentido. De
acordo com eles:
pensamos [..] que o reconhecimento de limites seja válido para
quaisquer atividades que desempenhamos e não apenas as de
reconhecimento de sentido de um texto. Existem limites que são
dados pelo meio- pela textualização- , existem limites do organismo
–aqueles que cada um de nós reconhecemos- que vão atuar nesse
meio” (MARI; MENDES, 2005, p. 159).
A partir do exposto acima, corroboramos com a ideia de que “para
compreender o ato da leitura temos que considerar então (a) o papel do leitor, (b) o
papel do texto, (c) e o processo de interação entre o leitor e o texto” (LEFFA, 1996,
p.17).
2.2 O processo de leitura sob a ótica da Teoria Semântica
Por meio da concepção de leitura discorrida na seção anterior, propomos
abordar a seguinte questão: de que forma os pressupostos da Teoria Semântica
ajudam a elucidar, ainda mais, o processo de leitura?
Como ponto de partida para essa discussão, selecionamos os estudos
teóricos de autores como Frege (1978) e Eco (1998). Frege (1978) discute, dentro
da filosofia da linguagem, o conceito de referência. Para tal, esse autor demonstra
que relacionado ao sinal56 tem-se três dimensões: a representação, o sentido e a
referência:
56
O termo sinal refere-se, segundo o autor, a nome, combinação de palavras, letra.
107
A referência de um nome próprio é o próprio objeto que por seu
intermédio designamos; a representação que dele temos é
inteiramente subjetiva, entre uma e outra está o sentido, que, na
verdade, não é tão subjetivo quanto à representação, mas que
também não é próprio do objeto (FREGE 1978, p. 65, grifo nosso).
Ainda, no decorrer de seu estudo, Frege (1978) apresenta que sentidos
diferentes podem ser atribuídos a uma única referência. O filósofo ilustra essa
questão defendendo que “a referência de “Estrela da tarde” e “Estrela da manhã”
seria mesma, mas não o sentido” (FREGE 1978, p. 62). O autor Machado (2012),
ao discorrer sobre essa obra, afirma que, segundo o filósofo é o sentido que define
a referência.
Consideramos que, especialmente, esse conceito de referência, discutido por
Frege (1978), traz importantes contribuições para o entendimento do processo de
leitura, para atribuição de sentido ao texto, se pensarmos na relação entre o texto e
o(s) seu(s) referente(s). Sabemos que o autor discute esse conceito no campo da
filosofia, a partir de um ponto de vista lógico, e, portanto, sem se ater a
especificidades da questão para a interpretação textual. Entretanto, a proposta
dessa pesquisa é pensarmos esse conceito dentro do âmbito da Linguística, a partir
dos estudos semânticos. Para tal, realizaremos uma extensão do conceito de
referência para referenciação, com o objetivo de proporcionarmos um maior alcance
para essa reflexão. Essa extensão se justifica pelo fato de estarmos discutindo
sobre questões relativas à interpretação textual, por meio de uma concepção de
leitura abrangente.
No que tange ao processo de leitura, a referenciação é um ponto relevante a
ser discutido, uma vez que segundo os autores Mari e Mendes (2005) para qualquer
texto é possível formular os seguintes questionamentos: (a) o que esse texto
significa no que refere-se aos signos nele dispostos? (b) o que esse texto refere, no
tocante a fatos de uma realidade que pode recobrir? Para os autores, qualquer texto
possui uma estrutura de significados elaborada a partir da correlação dos signos
nele dispostos (padrão mínimo de significação), sendo que, essa significação opera
como condição primeira para a referenciação. A partir do exposto, fica clara a
importância da referenciação (texto-realidade) na leitura.
Já Umberto Eco em ‘Tipos Cognitivos e Conteúdo Nuclear’ discute a
percepção no processo de significação:
qualquer fenômeno, para poder ser entendido como signo de algo
mais, e de um certo ponto de vista, deve ser antes de mais nada
percebido [..] quando a tradição fenomenológica fala de “significado
perceptivo” compreende algo que, em termos de direito, precede a
constituição do significado como conteúdo de uma expressão (ECO,
1998, p.111).
Nesse texto, ele trata a percepção como um antecedente de uma inferência
e da formação de um juízo perceptivo. Nesse viés, entendemos que a percepção
seria uma espécie de estágio inicial para a significação. Para retratar este
fenômeno, o autor discute, dentre vários conceitos, o de Tipo Cognitivo (doravante,
TC).
Segundo o filósofo, “TC é aquele algo que consente o reconhecimento [..] é
aquilo que nos permite unificar a multiplicidade da intuição” (ECO, 1998, p.115-116).
O autor explica que diante de um objeto desconhecido, elabora-se o TC (esquema)
do mesmo. Conforme evidenciado em seu texto, é possível perceber o objeto,
realizar inferências com aquilo que já se conhece e elaborar o TC desse. É esse TC
108
que permite, inclusive, incluir o objeto em questão em algum domínio e conceito.
Para Eco (1998) é o reconhecimento que conduz o leitor a falar em “tipo”. A
elaboração desse TC conduz a uma organização da percepção primária do objeto.
Tendo em vista que para retratar a significação, o autor abarca a percepção,
relacionaremos esse fenômeno ao processo de atribuição de sentido ao texto.
Dentro do processo de leitura, pensaremos nesse estágio primário da percepção,
assim como na formação posterior de um juízo perceptivo e de inferências. As
autoras Ferreira e Dias (2004) em “A leitura, a produção de sentidos e o processo
inferencial” defendem, justamente, a importância das inferências na construção do
sentido do texto por parte do leitor. Conforme, segue:
elas [inferências] possibilitam a construção de novos conhecimentos
a partir de dados previamente existentes na memória do interlocutor,
os quais são ativados e relacionados às informações veiculadas pelo
texto. Esse processo favorece a mudança e a transformação do
leitor, que por sua vez, modifica o texto (FERREIRA; DIAS, 2004, p.
439).
Após essa discussão teórica, analisaremos de que forma esses fenômenos
discutidos (referenciação, percepção e inferências) podem ser reconhecidos na
leitura de um texto publicitário na perspectiva da atribuição do sentido. Para tanto,
na próxima seção, faremos uma breve discussão acerca das características desse
tipo de texto, seguida por uma análise mais aprofundada da propaganda escolhida
como corpus deste estudo.
2.3 A leitura do texto publicitário
Uma vez que realizaremos a análise de uma propaganda, torna-se relevante,
mencionarmos, ainda que de forma breve, aspectos e características que permeiam
o texto publicitário e que diretamente influenciam na sua leitura. Segundo Pinto
(2011), com as facilidades propiciadas pelo avanço das tecnologias, recebemos um
grande número de informações transmitidas por diferentes meios de comunicação,
que empregam diversas linguagens no processamento do texto. A partir disso, de
acordo com a autora, precisamos conferir sentido a textos compostos por diferentes
linguagens, como: palavras, imagens, cores, gestos, entres outros, que se
relacionam na construção do sentido do texto. É neste cenário que se apresenta a
propaganda. Esse gênero textual vale-se da linguagem verbal e da não-verbal para
sua produção. Sabemos que o texto publicitário circula nos principais meios de
comunicação como revistas, televisão, rádio, jornal, outdoor, internet, entre outros, e
é produzido com o escopo principal de criar no leitor o desejo, a vontade de adquirir
o que está sendo anunciado ou, até mesmo, provocar uma mudança de
comportamento. Para isso, utiliza-se da linguagem verbal, por meio da qual se
constrói estruturas polissêmicas, argumentos de autoridade, adjetivações, como
também, da linguagem não-verbal, com uso e destaque de imagens, símbolos,
cores e sons. Sobre esse assunto, a autora Pinto(2011) afirma que a publicidade
estrutura seus textos, de preferência, por meio de imagens, sons e de palavras,
sendo que entre esses circulam sentidos determinados. É importante esclarecermos
que a junção dessas diferentes linguagens, em um só texto, é denominada pela
literatura de multimodalidade:
a multimodalidade é entendida, em termos gerais, como a copresença de vários modos de linguagem, sendo que os modos
interagem na construção dos significados da comunicação social. O
109
que é importante nessa visão de uso de linguagens é que os modos
funcionam em conjunto, sendo que cada modo contribui de acordo
com a sua capacidade de fazer significados. (HEMAIS, [2010?], p.1).
Dessa forma, entendemos que a linguagem verbal e não-verbal se
relacionam na construção de sentido do texto e que os diferentes modos de
linguagem influenciam diretamente na sua compreensão. Diante dessa realidade, a
leitura crítica por parte dos leitores assume um papel importante, exigindo que os
sujeitos desenvolvam novas formas de olhar para os textos. Portanto, torna-se ainda
mais evidente que a leitura não envolve apenas a decodificação de frases dentro de
um texto. Diante do contexto tecnológico em que vivemos, é necessário ir além da
linguagem verbal. Neste viés, “quando dominamos um gênero textual, não
dominamos uma forma linguística, e sim uma forma de realizar linguisticamente
objetivos específicos em situações sociais particulares” (MARCUSCHI, 2008,
p.154).
2.4 Análise da peça publicitária
O corpus de análise desse estudo é composto por uma peça publicitária (em
anexo) da empresa de lingerie Duloren, divulgada nos principais veículos impressos
da cidade do Rio de Janeiro, em março de 2012.
Conforme já mencionado nesse artigo, reforçamos que esta análise será
baseada no conceito de referenciação, e, nos aspectos relativos à percepção e à
inferência. Também procuramos enfocar e apontar questões relacionadas aos
diferentes recursos que constituem as propagandas, seja na sua materialidade
linguística (multimodalidade) ou nos aspectos discursivos envolvidos, ressaltando as
condições de produção e de circulação. Iniciando nosso diagnóstico, observamos
que, em um primeiro plano, a peça publicitária apresenta a seguinte estrutura: a
imagem de uma moradora, trabalhadora da Favela da Rocinha (a publicidade faz
referência à profissão de depiladora na peça publicitária), que está vestida apenas
com as lingeries Duloren.
Na cena enunciativa, a moça situa-se em uma laje à frente de um rapaz,
caracterizado como policial do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), que se
encontra fardado, desprotegido (sem o colete a prova de balas) e desacordado. A
mulher tem em sua mão o quepe do soldado, objeto em que consta o distintivo do
militar. A propaganda é composta pelo seguinte slogan: “Pacificar foi fácil, quero ver
dominar”. Como plano de fundo tem-se o cenário da favela Rocinha, considerada a
maior do Rio de Janeiro e uma das primeiras comunidades a receber a Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) na capital carioca. Também, verifica-se a presença da
logomarca da empresa, assinando e certificando a peça, seguida do seguinte slogan
institucional: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz”.
Consideramos que toda essa descrição realizada acima configura-se como
um momento inicial da significação, caracterizando o processo de percepção desse
objeto publicitário. Conforme Mari; Mendes (2005), todo texto deve seguir
determinadas regras para a construção do sentido, sejam elas referentes à língua,
sejam relacionadas aos padrões narrativos (tipos e gêneros textuais). Segundo
esses autores, a percepção demanda o domínio dos preceitos de textualidade que
se concretizam em um texto. Desse modo, identificamos na estrutura da
propaganda os seguintes fatos: a presença de slogans, da logomarca, do jogo na
peça publicitária, especialmente, com a linguagem não-verbal (neste caso a
imagem) Tudo isso configura-se como uma percepção inicial desse texto. Para tal, o
110
leitor precisa conhecer um conjunto de regras/preceitos que regem a construção
desse gênero textual.
Outro artifício relevante utilizado para a construção de sentido dessa peça
publicitária é a referenciação, permitindo identificar a que esse texto remete e/ou
recobre, em termos de realidade, conforme explicita os autores Mari; Mendes
(2005). Neste viés, consideramos que, por meio da propaganda de lingerie, a
empresa Duloren faz referência e ironiza o processo de pacificação das
comunidades do Rio de Janeiro, que receberam a UPP em 2011. Para tanto, utilizase de objetos de referência na construção/produção de sentidos com a intenção de
atingir o seu objetivo junto ao público alvo.
Neste caso, a empresa parece ter a intenção de ir além do interesse
comercial de vendas do produto, realizando uma crítica ao processo de pacificação
na favela da Rocinha.
Perante este cenário, identificamos três objetos de referência para
construção de sentido, sendo eles: a figura da “mulher”, do“policial” e do “cenário”,
onde a foto foi produzida.
No que se refere à mulher, ressaltamos que a produção de sentido está no
fato de ela significar no anúncio muito mais do que um símbolo sexual ou em
representar a questão sexista. No contexto apresentado, a moradora simboliza tanto
as minorias como a parte oprimida das comunidades, entre elas o público feminino,
os cidadãos, os trabalhadores e os negros. Já o policial personifica o poder do
estado, da lei e da autoridade, sendo considerado como um símbolo da opressão e
da coerção. Enquanto o cenário é identificado na cena enunciativa por uma
residência típica de aglomerados, sendo caracterizado na publicidade pela laje de
uma moradia no alto da comunidade. Na foto, é possível reconhecer a presença da
população da favela, representada na cena pela moradora que está de lingerie e
quepe na mão, e da autoridade policial, na figura do modelo fardado e desacordado.
A partir desses sentidos atribuídos à mulher, ao policial e ao cenário,
elencamos dois objetos de referenciação: o processo de Pacificação e o de
Dominação. O primeiro consiste na presença da polícia nas comunidades, com a
intenção de coibir o crime e restabelecer a ordem e a segurança, representando o
Poder do Estado versus Comunidade. Ao passo que o segundo pode ser
caracterizado pelo controle das comunidades, que na prática é realizado pelo tráfico
de drogas, através do domínio das facções criminosas nas comunidades cariocas.
Diante disso, constatamos que existe um jogo de comparações entre o
processo de pacificação relatado acima, que efetivamente ocorreu, e a dominação
do soldado pela moradora na cena relatada, descaracterizando assim, o poder do
BOPE. Todo esse jogo realiza-se já na composição da peça publicitária, por meio da
escolha dos itens lexicais (pacificar versus dominar) e do uso da linguagem nãoverbal, através da imagem e montagem da cena fotográfica. Nela, o soldado
encontra-se acuado, em uma situação de dominação, derrota e de desvantagem
perante a mulher. No momento em que ele aparece desacordado, está totalmente
sob o domínio da moradora. Este fato é reforçado pelo slogan da Duloren que diz:
“Você não imagina do que uma Duloren é capaz”, mostrando uma situação atípica,
em que o comum seria o policial dominar a moradora e não o contrário.
Portanto, neste momento, ao visualizar a cena, parece-nos que a propaganda
faz uma grande crítica e ironiza também outros aspectos sociais importantes dentro
da realidade das comunidades do Rio de Janeiro: não só à questão sexista do
gênero como também à violência, à condução do processo de pacificação e à
relação conflituosa entre a polícia, a população e o crime organizado do tráfico de
drogas.
Conforme Soulages, a publicidade tem esse poder de envolver e persuadir os
111
indivíduos, que assim como outras produções de cultura de massa “apresenta uma
série de enunciados críticos ou cínicos em relação a certos valores sociais, ainda
que frequentemente originados de um posicionamento lúdico” (SOULAGES, 2014,
p.256). Desse modo, entendemos que a leitura requer cada vez mais uma
maturidade e um olhar ainda mais apurado do texto por parte do leitor.
Diante do exposto acima, caracterizamos a construção de todo esse sentido
como um processo inferencial. Observamos que para realizar a leitura desse texto,
é importante associarmos os elementos textuais (verbais ou não) aos
conhecimentos prévios dos indivíduos, estabelecendo assim, as pontes/inferências,
que farão um diálogo com outros textos e contextos sociais, como o acontecimento
da pacificação nas comunidades. Provavelmente, um cidadão de outro estado, que
não esteja envolvido no contexto das pacificações ou não detenha informações
sobre o assunto, certamente, terá dificuldades para a realização da inferência
proposta nessa análise. “É lançando mão desse conhecimento (linguístico e de
mundo) que o leitor poderá garantir uma compreensão para além dos elementos
superficiais do texto, negociando com o autor os significados plausíveis e
permitidos” (FERREIRA; DIAS, 2004, p. 441).
Por fim, ao apresentar toda essa análise, iluminada por conceitos da Teoria
Semântica, podemos certificar a importância do processo de leitura na vida dos
indivíduos, utilizando de elementos como a percepção, a referenciação e a
inferência para produzirem sentidos ao texto e aumentarem o conhecimento sobre o
mundo. È necessário salientar ainda, que mesmo que os sujeitos apreendam um
mesmo sentido para esse texto, cada leitor criará uma imagem, uma representação
dessa peça publicitária, de acordo com as suas vivências, experiências, concepções
e até mesmo interesses.
3. Referências
COSCARELLI, C.V; NOVAIS, A.E. Leitura: um processo cada vez mais complexo.
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Monografia (Pós Graduação em Língua Portuguesa) – Universidade do Extremo
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ECO, U. Tipos cognitivos e conteúdo nuclear. In: Kant e o ornitorrinco. Rio de
Janeiro: Record, 1998, p. 109-141.
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência. In: Lógica e Filosofia da Linguagem.
São Paulo: Cultrix, 1978, p. 59-87.
FERREIRA, S.P. A; DIAS, M. G. B. B. A leitura, a produção de sentidos e o
processo inferencial. Psicologia em Estudo. Maringá, v.9, n.3, p.439-448,
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Disponível
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<http://www.letras.pucrio.br/unidades&nucleos/JaneladeIdeias/biblioteca/B_Multimo
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LEFFA, V. J. Aspectos da Leitura: Uma Perspectiva Psicolinguística. 1. ed. Porto
Alegre: Sagra/Luzzatto, 1996.
MARI, H; MENDES, P. H. A. Processos de Leitura: fator textual. In: MARI, H;
WALTY, Ivete; VERSIANI, Zélia (Orgs.). Ensaios sobre leitura. Belo Horizonte:
112
Editora Pucminas, 2005. p. 155-181.
MACHADO, M. A. Notas sobre a questão da referência: algumas contribuições da
reflexão filosófica para os estudos da linguagem. Via Litterae. Anápolis, v.4, n.2,
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MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
PINTO, C.S. Gênero multimodal e leitura: mobilizando novas estratégias de
letramento. Natal, RN. 2011.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
SOULAGES, J. C. O Gênero da Publicidade ou o culto das aparências. Trad.
Renato de Mello e Wander Emediato. In: EMEDIATO, Wander; LARA, Glaúcia
Muniz Proença (Orgs.). Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2014, v. 4, p.255-266.
113
ANEXO – PEÇA PUBLICITÁRIA
Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/03/campanha-polemicada-duloren-e-retirada-de-circulacao-pelo-conar.htm>. Acesso em: 04/10/2016.
114
REPRESENTAÇÕES DO SUJEITO-ALUNO
ACERCA DO PROCESSO DE ENSINO E
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA
AMANDA MARIA BICUDO DE SOUZA
Universidade do Vale do Sapucaí – UNIVÁS
amandamarya@yahoo.com.br
Resumo. Este estudo objetiva identificar e compreender, por meio de
representações imaginárias, os saberes do grupo de discentes de Língua Inglesa do
Curso de Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas (ADS), oferecido
pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) –
Câmpus Campos do Jordão (CJO), no que se refere às concepções que esses
alunos têm com relação ao processo de ensino e aprendizagem da língua
estrangeira. O referencial teórico da presente pesquisa se ancora na Análise do
Discurso de Linha Francesa (ADF) abordando, mais especificamente, os conceitos
de representações imaginárias, língua materna, língua estrangeira, sujeito e
formações discursivas. Para atender aos objetivos propostos na presente análise foi
feita a aplicação de questionários escritos aos discentes do IFSP-CJO, dos quais
selecionamos alguns depoimentos para análise das representações.
Palavras-chave: discentes, representações imaginárias, língua estrangeira
Abstract. This study aims to identify and understand, through imaginary
representations, the knowledge of the group of students of English Language of the
Course of Technology in Analysis and Development of Systems (ADS), offered by
the Federal Institute of Education, Science and Technology of São Paulo ( IFSP) Campus Campos do Jordão (CJO), with regard to the conceptions that these
students have with regard to the process of teaching and learning the foreign
language. The theoretical reference of the present research is anchored in the
Analysis of the French Line Discourse (ADF), addressing, more specifically, the
concepts of imaginary representations, mother tongue, foreign language, subject and
discursive formations. In order to meet the objectives proposed in the present
analysis, written questionnaires were applied to the students of the IFSP- from which
we selected some testimonials to analyze the representations.
Key-words: students, imaginary representations, foreign language
1. Fundamentação teórica
Segundo Orlandi (2009), a relação entre língua, discurso e ideologia é a base
da ADF. Sendo o discurso a materialidade da ideologia e a língua a materialidade
do discurso, pode-se concluir que o discurso é, de fato, o objeto de estudo dessa
perspectiva, pois nele a relação entre língua e ideologia pode ser observada,
visando compreender o modo como a língua produz sentido(s) para o sujeito.
No que se refere ao sujeito, Orlandi (2009) apresenta o sujeito de linguagem
como sendo um sujeito descentrado, afetado pela língua e pela história, embora não
tenha controle da influência de ambas em seu dizer. O sujeito da ADF é
“materialmente dividido desde a sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é
sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para se produzir sentidos, ele é
afetado por elas” (ORLANDI, 2009, p. 49). O sujeito que produz discurso, embora
115
acredite ser o produtor legítimo de seu discurso e se veja capaz de chegar a um
sentido único e verdadeiro, não o faz, já que essa é uma ilusão necessária para
enunciar.
Sendo o discurso e o sujeito constituídos pela ideologia, podemos afirmar
que ela também é a responsável por divulgar e construir as representações
imaginárias, que norteiam o modo como agimos no mundo.
De acordo com Orlandi (2009), os mecanismos de funcionamento da
linguagem se amparam nas representações imaginárias. Assim, não são os sujeitos
nem os lugares empíricos que funcionam no discurso, mas suas imagens que
resultam de projeções.
Determinadas pelo imaginário discursivo que se concretizam as práticas
escolares: o aluno enuncia, imaginando o que o professor espera dele, enquanto o
professor enuncia imaginando o que o aluno espera que ele fale, a partir do lugar
social que ocupa, e assim por diante.
1.2 O papel do professor de Inglês
Segundo Brown (2007), teórico da perspectiva cognitivista, é tarefa dos
professores fazer com que a sala de aula seja um ambiente no qual os alunos se
sintam confortáveis e motivados para falar em Língua Estrangeira, superando sua
ansiedade e seu medo de errar. O autor (Brown, 2007) afirma que um bom
professor de Inglês deve possuir conhecimento técnico, habilidades pedagógicas,
habilidades interpessoais e qualidades pessoais.
Para Harmer (2007), uma das mais importantes tarefas do professor é
organizar os alunos para que possam realizar diferentes atividades. Isso envolve
planejar as atividades a serem propostas, fornecer informações claras aos alunos,
orientá-los na realização das atividades, propor trabalhos individuais e em grupos e
prover “feedback” ao final das atividades. Além disso, é importante que o professor
busque interagir com seus alunos de maneira efetiva. Para que essa interação seja
bem sucedida o professor deverá estar atento a quatro fatores: deve reconhecer
seus alunos, ouvi-los, respeitá-los e tratar a todos igualmente. O professor precisa
despertar a confiança dos alunos, sendo reconhecido como um bom líder e um
profissional competente.
Harmer (2007) e Brown (2007) traçam o perfil do professor Ideal, aquele que,
como citado por Brown (2007), possui conhecimento técnico, habilidades
pedagógicas, habilidades interpessoais e qualidades pessoais. Além disso, domina
estratégias de ensino, desempenha diferentes funções, motiva e diminui a
ansiedade dos alunos. Em suma, é um profissional perfeito e completo.
No entanto, como percebemos na prática docente, esse modelo Ideal de
aprendizagem e de professor costuma falhar, porque ainda que o professor tente
ser coerente com tudo o que foi proposto pela teoria cognitivista, existe uma grande
lacuna entre o que ser quer fazer e o que de fato se consegue fazer. Trata-se do
equívoco que é sempre e inevitavelmente constitutivo do fazer-dizer, como
postulado pela perspectiva discursiva.
Para Cavallari (2014) tanto a incompletude quanto a falta são necessárias no
processo de construção do saber, permitindo que o mesmo seja reinventado
durante o processo de ensino-aprendizagem.
De acordo com Cavallari (2014, p.2) “se não há falta, não há desejo”, a falta
impulsiona o desejo de saber. Aqui se encontra uma diferença radical em relação à
falta no processo de ensino-aprendizagem da maioria dos métodos e abordagens
de ensino atuais que orientam os docentes. Como vimos na visão da perspectiva
116
cognitivista, o professor deve dar aos alunos todas as respostas de que ele precisa,
deve ter um conhecimento pronto e atualizado para ser transmitido, visando atender
a todas as expectativas dos alunos, evitando a falta.
Não pretendemos, com nossa análise, desqualificar as contribuições trazidas
pelos teóricos da perspectiva cognitivista. No entanto, ancorados na AD, vemos o
processo de aquisição de uma língua estrangeira (LE) como algo muito mais
complexo e até mesmo contraditório do que propõe a perspectiva cognitivista.
Guilherme de Castro (2004, p.197) explica que a complexidade desse
processo se dá, principalmente, pela “contradição inevitável entre o impulso em
direção ao novo e o receio do exílio dessas discursividades fundadoras enquanto
constitutivas de sua estruturação como sujeito”.
Para a autora, o sujeito aprende significativamente uma segunda língua
quando se abre para a experiência do próprio estranhamento e quando se inscreve
em formações discursivas da segunda língua.
De acordo com a referida autora, a aquisição de línguas requer/solicita a
instauração de uma relação do sujeito com o simbólico. “Essa relação é estruturante
do sujeito consigo mesmo, com os outros e com o conhecimento” (GUILHERME DE
CASTRO, 2004, p.199). Sendo assim, a aquisição de uma segunda língua estará
sempre perpassada pela relação já instaurada entre o sujeito e a língua materna.
Payer (2007), ao abordar os conceitos de língua nacional e língua materna,
aponta para a necessidade de se diferenciar a dimensão da língua nacional e da
língua materna na linguagem, considerando-se as condições sócio-históricas e os
efeitos de sentido da língua para os sujeitos, nas diversas condições de produção
em que eles se inscrevem. Estendendo sua abordagem para o ensino de LE,
podemos afirmar que assim como língua materna (LM) e língua nacional (LN) não
coincidem, LM e LE também constituem-se como memórias discursivas distintas.
Guilherme de Castro (2004) postula que aprender uma segunda língua
significa, de certa maneira, tornar-se um outro, e daí nascem as dificuldades
apresentadas pelos alunos, devido ao fato de terem de enfrentar, através de
rupturas e deslocamentos, um espaço de diferença.
Revuz (2010) destaca que, tradicionalmente, as abordagens de ensino de
língua estrangeira não levam em consideração o confronto estabelecido em língua
materna e língua estrangeira e tendem a privilegiar o ensino da habilidade oral em
detrimento da habilidade escrita, estando aquele em relação de primazia a este.
Muitos alunos, quando começam a estudar uma língua estrangeira, se colocam em
uma posição de não saber absoluto, retornando ao estágio de bebê que ainda não
fala, (re) fazendo a experiência da importância de se fazer compreender. “O
sentimento de regressão associado a essa situação é reforçado quando a
aprendizagem privilegia no início, como acontece, frequentemente, um trabalho
exclusivamente oral focalizando sons e ritmos”. (REVUZ 2010).
Outro aspecto importante apontado por Revuz (2010) é o fato de que nem
todo mundo está pronto para a experiência de aprender uma língua estrangeira.
Algumas pessoas evitam adentrar nesse processo, porque têm medo; outras
colocarão em uso o que a autora chamada de estratégia da peneira: aprendem, mas
não assimilam quase nada; outras, fazendo uso da estratégia do papagaio, serão
meras reprodutoras, repetindo estruturas sem autonomia. Há ainda aquelas
pessoas que adotarão a estratégia do caos, tendo o imaginário da língua
estrangeira povoado por um acúmulo de termos, sem organização gramatical ou
sintática; outros procurarão memorizar regras gramaticais, reduzindo a língua a
procedimentos lógicos e buscando equivalência de termos e expressões entre
língua estrangeira e língua materna. Por fim, há aqueles que terão o desejo de
anular completamente a língua materna, a primeira língua, para adentrar no
117
universo da língua do outro. Revuz (2010) afirma que o processo de aprendizagem
de uma língua estrangeira tem uma significação diferente para cada pessoa, mas
está sempre ligado à ruptura e ao exílio, numa tensão dolorosa entre dois universos.
2. Análise dos registros discursivos
Ao analisar as respostas fornecidas ao questionário de pesquisa,
observamos, em um primeiro movimento de análise, algumas regularidades
discursivas. Os eixos de análise foram propostos, a partir do olhar da pesquisadoraanalista, sem perder de vista os objetivos da análise. Os eixos propostos são:
2.1 O sujeito-aluno e sua representação de uma boa aula de Inglês
A pergunta do questionário escrito que fomentou as respostas abaixo foi:
Para você, o que é ter uma boa aula de Inglês?
A1: É uma aula onde todos conseguem aprender e se divertir ao
mesmo tempo com atividades de listening e speaking para aprimorar
o conhecimento da língua.
A2: É uma aula dinâmica,onde o aluno interaja junto a matéria para
desenvolver o estudo.
A3: Uma aula a qual se estimula a fala da língua, afim de se
conseguir produzir diálogos, Tão quanto das estratégias de escrita e
leitura, consequentemente se abordará o significado de várias
palavras, assim atualizando o vocabulário.
A4: Para mim uma boa aula de inglês é ter bastante conversação,
pois no curso usa-se muito a língua inglesa.
A5: Uma aula onde os alunos interajam com o professor e tenham
aula de escrita, escuta e fala em Inglês.
Retomando os dispositivos teórico-analíticos acima citados, vemos que os
dizeres de A1, A2, A3, A4 e A5 se inscrevem na mesma formação discursiva que,
como citado por Revuz (2010), colocam o ensino da habilidade oral como prioritário
em detrimento das demais habilidades. O imaginário dos sujeitos-alunos está
amparado na abordagem comunicativa de ensino de língua inglesa (LI) que propõe
o ensino e aprendizagem do idioma dentro de um contexto de fala e escuta, sendo
estas as habilidades primordiais para a aquisição da LE, aos moldes da aquisição
da língua materna, como apontado por Revuz (2010). Nesse sentido, ainda que
esse não seja o objetivo da disciplina, como é o caso da ementa de Inglês Técnico
do curso de ADS, contexto no qual os sujeitos-alunos estão inseridos, os alunos
esperam que as aulas de idiomas reproduzam os mesmos moldes de aulas de
curso de idiomas, por exemplo.
Observem que A1 cita que na aula de LI o aluno deve aprender, mas também
se divertir, o que é mais uma das características das aulas da abordagem
comunicativa. A2 também aponta a importância do dinamismo das aulas e
acrescenta a necessidade do aluno interagir com o conteúdo que está aprendendo.
A5 estende essa interação para a relação professor-aluno e acrescenta mais uma
habilidade que deve ser trabalhada nas aulas de LI: a escrita. Apenas A3 cita a
importância da leitura e da construção do vocabulário além da proposta de trabalho
com a habilidade oral, de compreensão auditiva e de escrita.
A ementa da disciplina de Inglês Técnico prevê o trabalho prioritário com a
habilidade de leitura, pois essa é a habilidade que os alunos de ADS mais precisam
118
dominar no contexto profissional de atuação. No entanto, os sujeitos-alunos não
parecem interessados nesse desenvolvimento. Estão mais focados nos desejos
(WANTS), como citado por Hutchinson and Waters (2010), do que nas
necessidades (NEEDS). Acreditamos, porém, que essa opção por uma habilidade e
não outra não se dá de maneira consciente. O sujeito-aluno não controla esses
desejos, mas sim se insere em uma formação discursiva que traz a tona o
interdiscurso. O que significa dizer que eles reproduzem outros dizeres, se ancoram
em uma memória discursiva de uma aula ideal de LI, baseados em pressupostos da
perspectiva cognitivista e no contexto sócio-histórico de ensino/aprendizagem de
inglês contemporâneo que enfatiza que todos devem ser capazes de se comunicar
em inglês para terem acesso ao mundo internacional do trabalho, do turismo, da
academia. O sujeito-aluno enuncia, acreditando que o que diz tem origem em seu
dizer, mas se esquece de que é afetado pela língua e pela ideologia.
Considerando, ainda, as considerações trazidas por Celada (2011) com
relação ao processo de ensino/aprendizagem de espanhol, podemos dizer que a
memória da língua portuguesa inscrito no funcionamento do fio discursivo da LI
produz o efeito de suscitar o imaginário de língua da comunicação, língua oral por
meio da qual o sujeito compreende e se faz compreender. A1, A2, A4 e A5 se
inscrevem nessa formação discursiva ocupando a posição-sujeito de oralidade. A3 e
A5 incluem a necessidade de trabalho com a habilidade escrita, ocupando a
posição-sujeito dividida entre escrita-oralidade, conforme designado por Celada
(2011).
2.2 O sujeito-aluno e sua representação de um bom professor de Inglês
A segunda pergunta do questionário destinado aos alunos pesquisados foi:
Qual seria o perfil de um bom professor de Inglês?
Passemos às respostas dos sujeitos participantes da pesquisa para, em
seguida, fazermos nossas considerações:
A1: O tipo que fala bastante assim como todo prof de letras.
A2: Um profissional que consiga “quebrar o gelo” entre o aluno
e a matéria estudada.
A3: Em minha opinião, muito amigável e bem didático.
Didático, porque é necessário apresentar os conceitos da
língua de uma forma básica e clara para não criar confusão
com o inglês. E amigável , pois isso irá incentivar muito mais a
participação dos alunos.
A4: Um professor dinâmico, atualizado, simpático
A5: Comunicativo e que faça a turma participar.
As respostas de A1, A2, A3, A4 e A5 estão amparadas na perspectiva
cognitivista de ensino que orienta, de modo geral, o processo de ensinoaprendizagem de línguas na atualidade. Como citamos no eixo 1, elas remetem a
representação imaginária de um sujeito-professor que na posição de professor de
inglês deve ser comunicativo e dinâmico. Brown (2007) aponta que o professor de
inglês deve tornar a sala de aula um ambiente no qual os alunos se sintam
confortáveis e motivados para falar em língua estrangeira, superando sua ansiedade
e seu medo de errar. Os dizeres de A2 e A5 vão encontro desse postulado de
Brown (2007) e apontam o professor com responsável por motivar os alunos e fazêlos participar das aulas. Esse professor é o que Harmer (2007) intitula como tutor,
119
aquele que orienta e guia seus alunos. Além disso, é facilitador do processo de
aprendizagem, responsável por atender a todas as necessidades e desejos dos
alunos, sendo capaz de identificar o que eles necessitam sem que eles,
necessariamente, tenham que verbaliza-las, buscando sanar suas dificuldades
através de propostas variadas, para que nada lhes falte.
A3 e A4 citam, ainda, características pessoas esperadas do professor: ele
deve ser amigável e simpático. Conforme destacado por Brown (2007) o professor
deve ter, além das habilidades pedagógicas, conhecimento técnico, habilidades
interpessoais e qualidades pessoais. Em suma, deve ser um professor perfeito o
que, de acordo com a perspectiva discursiva, não é possível, pois somos seres
incompletos, fadados à errância simbólica.
Outro aspecto a destacar é o dizer de A1 que produz um efeito de sentido
generalizado e estereotipado do profissional de letras. A afirmação “o tipo que fala
bastante assim como todo prof de letras” se inscreve em uma formação discursiva
diferente daquela que retoma os conceitos da perspectiva cognitivista, conforme
exposto acima. O dizer de A1 remete a uma memória discursiva popularizada, que
posiciona o sujeito-professor formado em Letras em um grupo de pessoas falantes,
porque são da área de humanas, porque ensinam línguas e ensinar línguas
pressupõe falar muito, ao contrário das aulas de exatas, por exemplo. Nessa
construção discursiva estereotipada se ancoram, também, as representações de
professor de LI como comunicativo e dinâmico, como citado por A4 e A5.
Percebe-se que as formulações dos sujeitos-alunos supracitados se mostram
esvaziadas de sentidos, visto que eles não singularizam ou (re)significam o que
estão dizendo, o que sugere que seus dizeres nada mais são do que a
materialização de representações sócio-historicamente compartilhadas, ou seja,
eles reproduzem discursos recorrentes na contemporaneidade e que ditam as
práticas docentes que devem ser seguidas.
3. Considerações finais
Tomando como base os pressupostos teóricos adotados nesta pesquisa e a
análise dos registros discursivos, podemos afirmar todos os alunos entrevistados
evocam o mesmo discurso acerca do ensino e do professor considerados como
Ideal que, por sua vez, evocam as mesmas representações da aula de LI como
ambiente dinâmico de aprendizagem oral e de escuta do idioma e do professor de LI
como dinâmico e comunicativo, facilitador da aprendizagem e responsável por
promover a interação entre os alunos. Tais representações estão ancoradas em
pressupostos da abordagem comunicativa de ensino de LI, que norteiam o modo
como o ensino da LE tem sido ensinado na atualidade.
6. Referências
BROWN, H. Douglas. Teaching by principles: an interactive approach to language
pedagogy. United States of America: Longman, 2007.
CAVALLARI, Juliana Santana. Falta, desejo e (trans)formação do saber. In: Guavira
Letras, n. 16, Jan/Jul 2014, p. 169 – 183.
CELADA, Maria Teresa; PAYER, Maria Onice. Relação sujeito língua(s) – materna,
nacional, estrangeira. In: As bordas da linguagem. Uberlândia: EDUFU, 2011.
GUILHERME DE CASTO, M. F. F. O discurso midiático institucional para o ensino
120
de segundas línguas. In: Fernandes, C. A. e Santos, J. B. C. (Org). Análise do
Discurso: unidade e dispersão. EntreMeios: Uberlândia, 2004, p.197 -209.
HARMER, Jeremy. The practice of English Language Teaching. United States of
America: Pearson Longman, 2007.
HUTCHINSON, T. & WATERS, A. English for specific purposes: a learningcentred approach. United Kingdom: Cambridge University Press, 2010.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas:
Pontes, 2009.
PAYER, Maria Onice. Processos de identificação sujeito/língua. In: Política
linguística no Brasil. Campinas: Pontes, 2007.
REVUZ, Christine. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do
exílio. In: Lingua(gem) e identidade: elementos para discussão no campo
aplicado. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
STREVENS, P. ESP after twenty years: a re-appraisal. In: M.L. TICKOO, (Org.)
ESP: state of the art. Anthology Series 21 SEAMEO Regional Language, 1988.
121
OS COMPLEMENTOS VERBAIS NO LIVRO
DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
ANDERSON VITOR DOS SANTOS MENDES
Departamento de Estudos da Linguagem (DEL)
Universidade Federal de Lavras (UFLA)
Av. Central UFLA, s/n, prédio DEL/DCH - Aquenta Sol, Lavras - MG, 37200-000
Graduando em Letras Português/Inglês – Bolsista Cnpq/UFLA
andersonvsmendes@hotmail.com
Resumo. Este trabalho discute o modo como o livro didático (LD) aborda
os conhecimentos sintáticos, mais especificamente os complementos
verbais, a partir da análise de um livro destinado ao 8º ano do ensino
fundamental. O objetivo desse trabalho é verificar como os
conhecimentos sintáticos sobre os complementos verbais são explorados
no livro didático “Projeto Teláris Português - 8º ano”. Na construção do
quadro teórico, foram utilizados os trabalhos de Duarte (2007), Perini
(2010), dentre outros.
Palavras-Chave. Sintaxe. Complementos verbais. Ensino. Livro didático.
Abstract. This work discusses the way in which the textbook (TB)
approaches the syntactic knowledge, more specifically the verbal
complements, starting from the analysis of a book focused on 8th grade of
elementary school.. Hence, the objective of this work is to verify how the
syntactic knowledge about verbal complements are explored in the
textbook "Projeto Teláris Português – 8º ano." In the construction of the
theoretical framework, the works by Duarte (2007), Perini (2010), among
others, were used.
Keywords: Syntax. Verbal complements. Teaching. textbook.
1. Introdução
A questão do ensino de gramática na escola, sempre pautado nas gramáticas
normativas, vem sendo discutido há décadas por diversos especialistas em
linguística, que acreditam haver um enorme distanciamento entre a gramática
normativa ensinada ao aluno, e a gramática realmente utilizada no contexto
comunicativo.
Este trabalho de pesquisa busca verificar como os conhecimentos sintáticos
sobre os complementos verbais são explorados no livro didático “Projeto Teláris
Português - 8º ano”. O tema central é o estudo dos complementos verbais,
contrapondo os preceitos da gramática tradicional 57 com os estudos linguísticos
sobre a sintaxe.
Qual a importância dos estudos sintáticos para que o aprendiz possa
desenvolver habilidades linguísticas necessárias à produção escrita? E por que
57
Segundo Azeredo (2015, p.197), a expressão gramática tradicional presente no discurso
acadêmico tem sentidos diferentes quando esse discurso tem caráter historiográfico- descritivo, e
quando tem por assunto a atividade pedagógica. No primeiro caso, ela diz respeito a um conjunto de
conhecimentos sobre a estrutura e o uso das línguas. Já no segundo, a expressão gramática
tradicional representa um conteúdo as ser aprendido nas escolas para o domínio e emprego das
formas corretas da linguagem falada e escrita.
122
ainda se aprende a sintaxe nos moldes e regras da Gramática Tradicional? Essas
são perguntas relevantes, pois exigem um olhar mais crítico e reflexivo acerca do
modo como a gramática tradicional é enxergada em sala de aula, e por isso
nortearão o presente trabalho.
Compreende-se que esse estudo poderá contribuir para que os leitores
possam entender melhor a sintaxe, e a perceber o quanto próxima ela está do
cotidiano linguístico dos falantes. Parte-se, também, do entendimento segundo o
qual as formas de conceituar e de classificar os termos da oração na Gramática
tradicional não contribuem para o entendimento das relações sintáticas que se
estabelecem entre esses termos e acabam por gerar controvérsias.
Para o desenvolvimento deste artigo realizou-se uma pesquisa bibliográfica,
com o intuito de analisar e verificar a importância que a sintaxe exerce na
construção da estrutura gramatical de um texto. Foram utilizados pressupostos
teóricos de diferentes estudiosos, tais como Duarte (2013), Perini (2007), Lima
(2010), dentre outros, para apresentar os vários conceitos relativos ao
conhecimento sintático da língua.
Após essa pesquisa bibliográfica, foi realizada uma análise das propostas de
ensino de sintaxe – mais especificamente a transitividade e complementos verbais encontradas na primeira edição do livro Didático (LD) “Projeto Teláris Português - 8º
ano” das autoras Ana Trinconi Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi. A
escolha deste livro didático se deu pelo fato de sua proposta parecer ser condizente
com as exigidas pelo PCN de língua portuguesa no que diz respeito às habilidades
de leitura e produção de textos, e à reflexão sobre aspectos linguísticos nos
contextos de produção e circulação de gêneros textuais.
Este trabalho está organizado em duas partes. Na primeira, apresenta-se o
referencial teórico que norteia a pesquisa e, na segunda, apresentam-se as análises
do livro didático selecionado.
2. Sintaxe e conhecimento sintático
Os estudos sobre a linguagem humana consolidaram-se no século XX,
quando a linguística tornou-se oficialmente uma ciência. Porém, de início, a sintaxe
não atraiu significativamente os olhares dos linguistas da época, que se
preocuparam mais com as pesquisas em fonologia e morfologia.
A sintaxe só ganhou relevância e começou a ocupar um lugar de destaque
nos estudos linguísticos a partir do momento em que foram desenvolvidas as
ciências formais durante a década de 1960, quando os linguistas conseguiram
aprofundar seus estudos em análises sintáticas, a partir dos estudos de Chomsky.
Para Othero e Kenedy (2015, p. 7) “o auge dessa fase da sintaxe como
locomotiva dentro da Linguística data da década de 1980 com a formulação do que
ficou conhecido como Teoria de Princípios e Parâmetros.” Esse modelo teórico,
desenvolvido pelo gerativista Noam Chomsky, colocou a sintaxe como o centro das
outras áreas da linguística. Desde então, os linguistas passassem a ter outro olhar
em relação ao conhecimento sintático das línguas, mesmo não concordando
inteiramente com a teoria gerativista.
O fato de o gerativismo ter avançado substancialmente nos estudos sobre
sintaxe, não quer dizer que essa teoria seja a única que contribuiu para evolução
dos estudos sintáticos atuais, mas, como afirmam Othero e Kenedy (2015, p.8) “O
sucesso da pesquisa em sintaxe a partir dos anos 1960 levou inevitavelmente a
vários debates acalorados e visões divergentes sobre a sobre a natureza do objeto
de estudo da sintaxe.”
123
Atualmente, o termo sintaxe alarga-se para as diversas áreas do
conhecimento linguístico, com inúmeras vertentes: Sintaxe Normativa tradicional,
Sintaxe Gerativa, Sintaxe Funcional, Sintaxe Lexical, Sintaxe Descritiva, dentre
outras. Isso prova que a Sintaxe é um campo da linguística com muito mais
perguntas do que respostas, tendo, assim, muito ainda a ser explorado.
Discutir o conhecimento sintático pode ser uma tarefa complexa, porém
fundamental, pois, por meio da sintaxe, relações estruturais de sentido são
estabelecidas, informações são avaliadas, significados podem ser inferidos, dentre
outros. Dessa maneira, a sintaxe contribui para uma análise da função social da
língua ao estabelecer relações que possibilitam a interação entre os falantes de uma
comunidade linguística.
A sintaxe estuda os processos de estruturação das sentenças, com o
objetivo de explicar e descrever as regras para a formação dessas sentenças. Com
isso, busca compreender a organização e o funcionamento das estruturas e dos
diversos fenômenos gramaticais característicos em uma língua natural. Perini (2010)
aponta que a estrutura de uma língua é muito mais complexa do que geralmente se
imagina, e que muitas das noções utilizadas na descrição gramatical estão ainda
mal definidas, e constituem assunto de discussões teóricas intensas e até tensas.
Talvez o primeiro passo para se compreender a estruturação de uma
determinada língua seja perceber que não existe um único modo de se estudar a
sintaxe. Um sintaticista funcional, por exemplo, pode se opor à teoria gerativista,
mas jamais irá descartá-la em seus estudos. Os estudos sintáticos atuais se
desenvolvem baseados em várias outras “sintaxes”, o que proporciona aos
linguistas muitos paradigmas para seus estudos e pesquisas.
Nesse sentido esse trabalho propõe discutir as questões sintáticas relativas à
estruturação dos complementos verbais, com base em alguns conceitos que serão
apresentados nas sessões seguintes.
3.Estrutura argumental – os argumentos e os predicadores na
organização da oração
A gramática tradicional (GT) apresenta uma análise muito simples e
desprovida de rigor conceitual em relação aos processos sintáticos que envolvem os
termos da oração e, assim, acaba por dividi-los em: sujeito + verbo + objeto
direto/indireto ou predicativo, por exemplo. Para Duarte (2007) uma das dificuldades
enfrentadas pelos que buscam entender a estrutura da oração com base nas
gramáticas tradicionais é a forma pela qual se distribuem os chamados termos da
oração. A autora discute o grande erro de se dividir esses termos em “essenciais”,
“integrantes” e “acessórios”, quando na verdade eles não devem ser divididos, mas
sim integrados pelas relações gramaticais que estabelecem uns com os outros.
Além disso, há o fato da GT, muitas vezes, apresentar, primeiro, uma análise
que privilegia o sujeito (argumento externo), em vez de analisá-lo em relação ao
predicador verbal, uma vez que a melhor maneira de se descrever a estrutura
oracional é partindo de seu núcleo, que é o predicador, pois é ele quem projeta a
estrutura argumental da oração.
As orações apresentam três tipos de predicadores: o verbal (o núcleo é um
verbo), o nominal (o núcleo é um adjetivo ou um substantivo), e o verbo nominal
(predicador verbal e nominal simultaneamente), no entanto o presente artigo explora
apenas as questões relativas aos predicadores verbais e seus complementos.
A noção de argumento tem sua origem na lógica de que um constituinte
central, o predicado, que não tem seu sentido completo, pede um determinado
número de argumentos que lhe completem o sentido.
124
Muitas literaturas definem os argumentos como uma noção estritamente
semântica ligada à noção de papéis temáticos 58, e os complementos e os adjuntos,
como noções estritamente sintáticas, que envolvem a posição estrutural e a
atribuição de casos. Percebe-se então que os argumentos são estabelecidos em
uma estrutura semântico-lexical e são associados, na estrutura sintática, às
posições de sujeito, de complementos e, também, de adjuntos.
Sendo assim, um argumento não se restringe às posições de sujeito e de
complemento, mas sobretudo às relações que se estabelecem estritamente na
sintaxe e obedecem a posições e a funções estabelecidas pela estruturação
sintática de uma determinada língua.
Assim, os argumentos internos (ou complementos verbais) se classificam em
função da presença ou ausência de uma preposição anteposta ao sintagma
selecionado pelo verbo: os argumentos preposicionados e os não-preposicionados.
Têm-se assim os objetos indiretos e os diretos das gramáticas tradicionais. A
abordagem tradicional apresenta uma divisão simplificadora e imprecisa em virtude
da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), instituída com vistas à didatizar o
ensino da sintaxe normativa tradicional. Enquanto os complementos diretos fazem
parte de uma classe relativamente homogênea, os complementos preposicionados
formam uma classe heterogênea, que pode ser subdividida em, pelo menos, três
grupos com características distintas.
4. A transitividade e os complementos verbais
A GT apresenta que existem verbos que, por natureza, têm sentido completo,
podendo por si mesmos constituir o predicado: são os verbos de predicação
completa, por exemplo, verbos como pular, murchar, inchar etc. Existem outros
verbos que precisam, para integrar o predicado, de outros termos (argumentos) são
os verbos de predicação incompleta. Os de predicação completa denominam-se,
tradicionalmente, como intransitivos, e os de predicação incompleta, como
transitivos.
Cunha e Cintra (2010) tratam a transitividade como não sendo algo inerente
ao verbo, mas sim à sentença. Assim, os autores afirmam que não se pode afirmar
que um verbo é transitivo direto ou intransitivo sem analisar o contexto sintático em
que ele ocorre.
Para Bechara (2010) a transitividade pode ter aplicações muito vagas, e
quando isso acontece cabe ao léxico determiná-la. O autor conclui que a oposição
entre transitivo e intransitivo não é absoluta, pertencendo mais ao léxico do que à
gramática.
Em entendimento oposto ao de Cunha e Cintra, Perini (2011) defende que é
um equívoco tratar a transitividade como propriedade de seu contexto, e não do
verbo. Para Perini, essa visão tem como consequência o esvaziamento da noção
de transitividade como propriedade dos verbos e que se constitui como um
fenômeno formal (sintático).
A transitividade verbal envolve, então, três aspectos importantes: o sintático,
o semântico e o contextual. O aspecto sintático se refere à estrutura formal da
língua; o aspecto semântico se relaciona ao significado desejado para que o ouvinte
depreenda a verdadeira intenção do falante; e o contextual sinaliza as
58
Papel temático é “a relação de significado que liga uma palavra que exprime ação, estado ou
evento com as unidades que exprimem os participantes dessa ação, estado ou evento”. Veja: a-[ O
gato] arranhou Toninho. b-[ Toninho] foi arranhado pelo gato. Nos dois exemplos, o gato é o agente,
aquele que pratica a ação de arranhar. Mas somente em a o termo o gato é o sujeito da oração.
(PERINI, 2006).
125
possibilidades de alguns verbos ocorrerem com ou sem complementos, indicando
também a possibilidade de alguns verbos transitivos diretos ocorrerem
complementados com um objeto direto ou com um complemento preposicionado.
A tabela 1, abaixo, resume os tipos de complementos verbais e suas
características.
Tabela 1. Os tipos de complementos verbais e suas características
Tipos
Objeto direto
Objeto indireto
Complemento relativo
Complemento
circunstancial
Complemento
nulo
Características
É representado por um
SN, desempenha o papel
semântico de tema e
pode ser substituído
pelos pronomes: a, o, os,
as.
É representado por um
SP, cujo papel semântico
é o de beneficiário, alvo
ou fonte de uma ação,
que, na maioria das
vezes, possui o traço
semântico [+animado] e
pode ser substituído
pelas formas pronominais
átonas “lhe” e “ lhes”.
É representado por um SP,
porém, tem características
sintáticas e semânticas
diferentes das do objeto
indireto, pois, não pode ser
substituído pelo pronome
oblíquo “lhe”, não tem o
papel semântico de
beneficiário, alvo ou fonte e
não tem o traço semântico
[+animado]
são complementos de
natureza adverbial,
indispensáveis à construção
do verbo, o que os diferencia
dos adjuntos adverbiais
complementos não
explícitos que
podem ocorrer por
redundância ou
generalidade, ou
quando a situação
e o contexto verbal
permitem que o
objeto seja
recuperado
A partir dessa discussão teórica, pretende-se, na próxima seção, apresentar
as análises sobre transitividade e complementos verbais em um livro didático
destinado ao 8º ano do ensino fundamental.
5. Analise do Livro didático
O Livro didático “Projeto Teláris Português - 8º ano” das autoras Ana Trinconi
Borgatto, Terezinha Bertin e Vera Marchezi , faz parte do Plano Nacional do Livro
Didático. A seguir, a capa do livro destinado ao 8º ano:
Figura 01 – Capa do Livro didático analisado. Fonte: Projeto Teláris - Português 8.
Segundo o Manual do Professor, as autoras propõem uma prática de análise
e reflexão sobre a língua que leve em conta as condições reais de comunicação
tendo como norteadores gêneros textuais de circulação social real. Pretendem
tornar concretos os fatos linguísticos para que se possa descrever e sistematizar as
ocorrências linguísticas em situações de uso formal ou informal. Percebe-se que a
proposta do LD procura se enquadrar nos parâmetros exigidos pelo PCN de língua
portuguesa do ensino fundamental que afirma ser preciso “permitir, por meio da
análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção
de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua
competência discursiva.” (BRASIL, 1998, p. 27).
De forma geral, o livro do 8º ano do ensino fundamental traz propostas
interessantes, mas o que se pretende nesse trabalho é verificar como são tratados
os estudos sintáticos sobre os complementos verbais. Veja a seguir algumas das
126
análises feitas.
Em relação ao tratamento dado à sintaxe, o capítulo apresenta como
proposta inicial uma discussão sobre o predicado, conforme se verifica na imagem a
seguir:
Figura 02 - Conceito de predicado. Fonte: Projeto Teláris - Português 8.
A seção “língua: usos e reflexão” deste capítulo introduz o conceito de
predicado a partir de fragmentos de um texto já trabalhado na unidade, para
relacionar o conceito às sequências discursivas. Percebe-se, então, que o livro
trabalha, na maioria das vezes, os estudos gramaticais dentro do contexto de
gêneros textuais, o que é um fator positivo, pois associa o ensino de sintaxe aos
textos e não a frases soltas.
Para abordar os tipos de predicado, o LD apresenta o seguinte conceito:
“predicado é o termo (parte da oração) que traz uma informação sobre o sujeito”
(BORGATO; BERTIN; MARCHEZI, 2013, p 111). Analisando conceitualmente esta
definição verifica-se uma falha nessa afirmação, pois nem sempre há um sujeito na
oração, mas mesmo assim há um predicado. O LD não parte da discussão sobre o
predicado/predicador como o item lexical que faz exigências sintáticas e
semânticas.
Continuando a análise agora serão analisados como são propostos os
exercícios relacionados à predicação verbal nessa sessão.
Figura 3 e 4 – Atividades sobre predicação. Fonte: Projeto Teláris - Português 8.
Observa-se que os exercícios, da página a esquerda, trabalham apenas a
identificação e a classificação dos predicados, deixando de propor de fato uma
análise mais reflexiva. As orações que aparecem no exercício são retiradas do texto
já trabalhado com os alunos, porém elas aparecem soltas e fora de contexto. Já na
pagina a direita, o LD traz uma informação interessante ao relacionar os tipos de
predicados com as sequências textuais (narrativas, descritivas, e expositivas), pois
com isso procura integrar a relação da sintaxe com o texto. Os exercícios desse
127
tópico são mais reflexivos e analíticos, não ficando só na identificação e
classificação, pois se baseiam em gêneros textuais para mostrar a relação entre as
sequências textuais e os tipos de predicados predominantes nelas.
Ao conceituar esses complementos, seguindo a NGB, as autoras dão conta
de explicar o objeto direto e o objeto bitransitivo, mas acabam por conceituar como
objeto indireto o que na verdade é um complemento relativo. Veja a figura 5.
Figura 5 e 6 – Conceituando os termos objetos Verbo intransitivo e complemento
circunstancial. Fonte: Projeto Teláris - Português 8.
Observa-se que no exemplo “Muitos habitantes do planeta dependem de
águas subterrâneas”, utilizado para conceituar o termo objeto indireto, o livro
apresenta o SP “de águas subterrâneas” como sendo um objeto indireto somente
com base no fato de o complemento estar ligado ao verbo pela preposição “de”. No
entanto, vale lembrar que existem mais dois complementos verbais que também se
ligam ao verbo por um SP: o complemento relativo e o complemento circunstancial,
(LIMA, 2010, p.252).
Na página 146, figura 6, o LD retoma o conceito de verbo intransitivo para
introduzir o conceito de complemento circunstancial, um passo considerável para os
conhecimentos sintáticos, não só por alertar o professor sobre a não distinção entre
adjunto adverbial e complemento circunstancial na NGB, mas também por
apresentar o complemento circunstancial efetivamente ao aluno.
Das atividades propostas sobre complementos, a maioria propõe exercícios
de identificação e classificação, como nos casos já analisados até então. Porém,
dessa vez o LD apresentou duas atividade de reflexão a partir de textos multimodais
mostradas nas figuras 07 e 08 abaixo.
Figura 07-08 – Piada de monstro / piada sobre pescaria. Fonte: Projeto Teláris - Português 8.
Pode-se ver na figura 07 que o exercício exige do aluno uma reflexão
linguística tanto sobre o gênero textual trabalhado, quando procura fazer com que o
aluno entenda a intenção do gênero piada pela contradição, como também quando
128
possibilita ao aluno perceber que ao trocar o verbo contar pelo verbo rir, a
transitividade verbal se modifica.
O exercício que aparece na figura 08 utiliza o gênero piada para trabalhar um
tipo de complemento ignorado em outros exercícios já analisados, o complemento
nulo, que o LD classifica como complemento subentendido. Esse é mais um
importante passo para o ensino por trabalhar a sintaxe no texto de forma
contextualizada.
Ao fim da análise sobre os complementos verbais no LD, verificou-se que
apesar do livro estar ainda preso aos preceitos da GT, ele faz avanços significativos
como apresentar o complemento circunstancial e nulo. Em nenhum momento o LD
citou o complemento relativo, apesar de o complemento ter aparecido como objeto
indireto.
6. Considerações finais
A partir do que foi exposto nesse trabalho, compreende-se que a sintaxe é
um campo da linguística que necessita de mais pesquisadores, que com seus
estudos sejam capazes de quebrar o preconceito de que sintaxe é só regra, e ponto.
Atualmente a sintaxe não é tida como única, e muitos estudiosos já utilizam o termo
sintaxes pelo fato de existirem diferentes teorias sintáticas se desenvolvendo no
mundo.
Precisa-se se pensar também no ensino da sintaxe e como o conhecimento
sintático está sendo transmitido nas escolas. Perceber que usar a GT com o
pretexto de que essa é maneira mais didática de se ensinar a língua, já não
funciona. Isso porque a sintaxe que aparece nos diferentes textos em circulação é
mais ampla do que as frases isoladas que muitas vezes são apresentadas nos
compêndios tradicionais.
O livro didático sempre foi, e é até hoje, a ferramenta mais utilizada pelos
professores em suas aulas. Sendo assim, o conteúdo do LD deve ser condizente
como o que os PCNs recomendam que seja ensinado aos alunos da educação
básica. Conforme o trabalho apresentou, a proposta do Livro analisado se presta a
esse papel na teoria, mas acaba por não segui-la efetivamente. O livro avança ao
tentar apresentar os conceitos contextualizando-os com os textos, porém na maioria
das vezes acaba por apresentar ao aluno somente formas de classificar e identificar
esses conceitos.
Contudo, percebe-se que muito ainda precisa ser feito para que o ensino da
sintaxe não seja pautado somente nas regras prescritas pela NGB, e que esse
ensino aconteça com base na linguagem em uso, ou seja, que se parta dos
diferentes textos em circulação, sejam eles orais ou escritos. Afinal, o conhecimento
sintático está na estrutura da linguagem, e aprende-lo só é possível quando se
entende que, assim como a linguagem, a sintaxe não é estática, e deve ser
entendida não como uma estrutura regrada e fechada, mas como uma estrutura que
se adéqua para atender às nuances de uma língua.
7. Referências
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OTHERO, Gabriel de Ávilla, KENEDY, Eduardo. (org). Sintaxe, Sintaxes: uma
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PERINI, Mario Alberto. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Editora
Ática, 2011.
PERINI, M. A. Princípios de linguística descritiva: introdução ao pensamento
gramatical. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
130
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA
CADETE DA ACADEMIA MILITAR DAS
AGULHAS NEGRAS SOB A PERSPECTIVA
DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS
INSTITUCIONAIS.
ANDRÉA LEMOS MALDONADO CRUZ
Academia Militar das Agulhas Negras
Rodovia Presidente Dutra, Km 306. Resende-RJ CEP 27534-970
andrea.maldonado@aman.ensino.eb.br
Resumo. A investigação das práticas discursivas no ambiente acadêmico
militar e de sua influência nas relações entre seus sujeitos históricos:
cadetes e instrutores, encontra-se alinhada com as pesquisas
desenvolvidas no campo da Teoria do Discurso. Os lugares sociais
determinados a homens e mulheres geram dificuldades e preconceitos
que as mulheres ainda sofrem quando inseridas em instituições
masculinizadas como as militares. Nesta perspectiva, é necessário
compreender a construção da identidade social militar das primeiras
cadetes da linha bélica do Exército Brasileiro à luz dos conceitos
socioconstrucionistas do discurso.
Palavras-Chave. Linguagem. Identidade. Práticas discursivas. Exército
Brasileiro.
Summary. The investigation of the discursive practices in the military
academic environment and its influence in the relations among its historic
subjects: cadets and instructors, is aligned with the researches done upon
the Discourse Theory. Social places, intended for men and women use,
cause difficulties and prejudice that women still suffer when they are
integrated in a masculine institution as military officers. From this point of
view, it is necessary to understand the construction of the social military
identity of the first group of female cadets in the belic line of the Brazilian
Army in the light of the socialconstructionist concepts of the discourse.
Key words. Language. Identity. Discursive practices. Brazilian Army.
1. Identidade e Linguagem
O termo identidade tem despertado, cada vez mais, o interesse dos cientistas
sociais, que ampliaram, ultimamente, os estudos sobre o assunto. Alguns autores
definem identidade analisando-a sob a perspectiva social e pessoal, como atributos
específicos do indivíduo e características que assinalam pertencimento a grupos ou
categorias. Outros teóricos partem de uma ideia de identidade concebida a partir de
sistemas culturais. Nesta perspectiva, a identidade é compreendida como
culturalmente formada num conjunto de significados partilhados por representação
coletiva.
Segundo Dubar (1997), a identidade não nasce com o indivíduo. Ela é
131
construída e sofre sucessivas reconstruções ao longo da vida, constituindo-se do
trabalho de diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os
indivíduos e definem as instituições. Dessa forma, a identidade possui caráter
relacional, pois é, ao mesmo tempo, uma estratégia de inclusão e um mecanismo de
exclusão, que situa o sujeito em um grupo e o distingue dos demais. A construção
da identidade é, então, um processo que está inserido no plano das relações
sociais.
Essas relações, no entanto, não são fixas. Em função das mudanças sofridas
pelas sociedades modernas no final do século XX e do fenômeno da globalização,
que modificou as estruturas sociais, surgiram novas formas de organização e de
relações entre as pessoas. Tais modificações transformaram, também, as noções
de identidade.
Stuart Hall, em sua obra intitulada A Identidade Cultural na Pós-Modernidade
(2001), afirma que a identidade do sujeito pós-moderno não é permanente, está
fragmentando-se por operar em um mundo sob constantes transformações. Assim,
longe de ser entendida como uma estrutura estável, atualmente, alguns cientistas
sociais e, principalmente, pesquisadores da área da linguagem, concebem
identidade segundo a visão socioconstrucionista.
Essa perspectiva surgiu com base na teoria do construcionismo social,
emergente do final do século XX e início do século XXI. Ligada à área da psicologia
clínica, seu foco eram os processos relacionais e discursivos por meio dos quais o
indivíduo constrói a si mesmo e dá significado ao que está ao seu redor. Segundo
essa teoria, o conhecimento sobre a realidade e os sentidos dados ao mundo são
construídos socialmente, situados historicamente e reforçados pelas práticas
sociais. Por analogia, o conhecimento sobre si mesmo e sobre sua identidade
também derivam dessa construção social e, portanto, são culturalmente situados, o
que nos faz retornar aos conceitos identitários do sujeito pós-moderno, de Hall
(2003).
A concepção socioconstrucionista da identidade a interpreta como:
“... um construto de natureza social – portanto, político –, isto é,
identidade social, compreendida como construída em práticas
discursivas, e que não tem nada a ver com uma visão de identidade
como parte da natureza da pessoa, ou seja, identidade pessoal...”
(MOITA LOPES, 2003, p. 20).
Portanto, através das práticas discursivas, as identidades sociais de seus
participantes são percebidas, ao mesmo tempo que, participando dessa relação
social, fazemos parte da construção e reconstrução dessas identidades.
2. As instituições militares e suas práticas discursivas
Inseridas no quadro das relações sociais, as instituições militares veem,
também, a identidade de seus atores sociais sujeitada às suas práticas discursivas
e passíveis de se moldar ou adaptar-se à nova ordem de transformações mundiais.
Há poucos trabalhos acadêmicos sobre as instituições militares como objeto
de estudo na área da linguagem. A maioria dos estudos aborda o papel dos
militares na política brasileira. O antropólogo Celso Castro foi um dos primeiros a
realizar uma pesquisa etnográfica sobre o processo de construção da identidade
social militar, realizada na Academia Militar das Agulhas Negras, estabelecimento
de ensino superior responsável pela formação do oficial da linha militar bélica do
132
Exército Brasileiro.
A proposta de Castro (1990) parte do processo de socialização escolar pelo
qual os cadetes da AMAN passam, como elemento articulador entre o mundo
institucional e a subjetividade, o que chamou “o espírito militar”, que seria resultado
dessas práticas discursivas e culturais notadamente institucionalizadas.
Segundo o autor, ao ingressar na Academia, o jovem é submetido a um
processo de construção da identidade militar num ambiente de internato, o que
facilita a absorção das práticas discursivas, combinando mecanismos de separação
do ambiente civil e de unificação ao novo grupo, que permitem a delimitação de
fronteiras simbólicas essenciais para a construção das identidades sociais.
No entanto, apesar dessa aparente reclusão e distanciamento aos quais
esses jovens são submetidos, e que facilitam a definição um ethos específico militar,
eles não estão isolados da sociedade, sendo, assim, influenciados por todas as
suas transformações. Uma dessas interferências pode ser desencadeada pelo
ingresso de mulheres na linha militar bélica do Exército Brasileiro, que teve início em
2017, com a implementação da Lei Nº 12.705, de 8 de agosto de 2012, da
Presidência da República. No concurso, realizado esse ano, foram abertas vagas
destinadas, inicialmente, ao Quadro de Material Bélico e de Intendência.
3. As mulheres e as Forças Armadas Brasileiras
No Brasil, a inserção feminina nas Forças Armadas não foi pautada por uma
política federal homogênea e cada instituição administrou de maneira independente
a questão em contextos e momentos particulares. Seu início oficial foi em 1943,
durante a Segunda Guerra Mundial, com o envio de 73 enfermeiras para servirem
em quatro hospitais do Exército Norte-Americano. Mas, após a guerra, elas foram
licenciadas do serviço ativo, passando para o quadro da reserva remunerada como
oficiais. Antes desse período, houve a participação pontual de brasileiras no
militarismo, fruto da necessidade, muitas vezes individual, de intervenções de
caráter regional. Foi o caso de Maria Quitéria de Jesus, baiana que, em 1823, lutou
pela manutenção da independência do Brasil, sendo a primeira mulher a assentar
praça em uma unidade militar, no Batalhão de D. Pedro I, com o nome de “guerra”
Medeiros e assumindo identidade masculina, pois de outra forma, não seria aceita
como voluntária.
Somente em 1980, com a criação do CAFRM – Corpo Auxiliar Feminino da
Reserva da Marinha do Brasil - Lei n. 6.807 –, a presença feminina foi
institucionalizada, sob influência das transformações ocorridas naquela década em
relação à abertura democrática e à crise econômica, social e cultural do período.
De acordo com Carreiras, a incorporação feminina nas Forças Armadas na
maioria dos países é resultado de um processo de modificações pelas quais a
sociedade passou, “... marcando, desde a II Guerra Mundial, tanto a gestão da
violência e a estrutura sócio-organizativa das instituições militares como as relações
intersexos e o padrão de participação social das mulheres” (CARREIRAS, 1997, p.
1). Vemos, então, que a incorporação das mulheres nesse campo profissional de
domínio eminentemente masculino não foi precedida pela percepção de igualdade
de papéis sociais destacados pelas políticas e teorias de gênero.
A Força érea Brasileira foi a primeira das três Forças Armadas a admitir
mulheres na Academia da Força Aérea, em 1996, na arma de Intendência, e em
2003 na Aviação. Somente em 2014, a Marinha abriu concurso oferecendo doze
vagas para mulheres na Escola Naval, e este ano, 2016, o Exército disponibilizou
vagas para a AMAN. Em abril de 2014, o Ministério da Defesa do Brasil criou sua
Comissão de Gênero, tendo como finalidade estudar e propor ações visando à
133
efetivação dos direitos das mulheres e da igualdade de gênero, procurando sempre
adequar as características de cada uma das Forças Armadas. Porém, antes de
tecermos considerações a respeito das questões de gênero no contexto da inserção
das mulheres nas Forças Armadas, precisamos ampliar nosso foco e verificar o
assunto no contexto das relações sociais.
As concepções dos papéis sociais das mulheres e dos homens na sociedade
também vêm sofrendo transformações nestes tempos de pós-modernidade. De
acordo com Marodin (1997), numa determinada estrutura social podemos encontrar
determinados papéis e funções tradicionalmente internalizados que são
considerados próprios ou naturais de seus respectivos gêneros. Esses papéis
sociais são exteriorizados através da linguagem, do comportamento e das atitudes
influenciados pelos estereótipos convencionados pelos grupos culturais aos quais
os indivíduos pertencem e que resultam de sua socialização e de sua posição
social. Podemos dizer, então, que esses papéis materializam-se em “modos de
ação”, em práticas que influenciam o mundo, o que, Norman Fairclough, define
como discursos: “... formas de representar aspectos do mundo – os processos,
relações e estruturas do mundo material, do mundo mental dos pensamentos,
sentimentos, crenças e assim por diante, e o mundo social” (FAIRCLOUGH, 2003,
p. 124).
Ao longo da história, verifica-se que as práticas discursivas, que nada mais
são do que um constructo social, delimitaram os conceitos de identidade feminina
na concepção de feminilidade interiorizada pela educação e pelas normas de
comportamento impostas pela sociedade.
Segundo Pierre Bourdieu (1999) as expressões masculinas ou femininas são:
produto de um trabalho social de nominação e inculcação, ao
término do qual uma identidade social instituída por uma dessas
linhas de demarcação mística, conhecidas e reconhecidas por todos,
que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza
biológica e se torna um habitus, lei social incorporada (BOURDIEU,
1999, p. 63-64).
O habitus militar, aquilo expressa seu ethos, é a administração da violência,
uma vez que a sua função é o combate armado bem-sucedido, com monopólio do
Estado. Ao exteriorizá-lo, as Forças Armadas reproduzem o modelo socialmente
dominante, cuja concepção da masculinidade, representada pela força física e
virilidade, contribui para a reprodução de estereótipos sexuais (CARREIRAS, 1997,
p. 45).
Sendo as instituições militares identificadas por espaços de virilidade, a
construção de gênero nesse ambiente identifica as mulheres como sensíveis e
frágeis e os homens como fortes e violentos. Essas características identificadoras
do feminino e do masculino acabam por limitar o acesso de mulheres nas Forças
Armadas de forma igualitária. Para Bourdieu (1999), um dos mecanismos de
mudança dessa reprodução de uma ordem masculina pode ser a escola:
os mais importantes [fatores de mudança] são os que estão
relacionados com a transformação decisiva da função da instituição
escolar na reprodução da diferença entre os gêneros, tais com o
aumento do acesso das mulheres à instrução e, correlativamente, à
independência econômica e à transformação das estruturas
familiares (BOURDIEU, 1999, p. 107).
Ao analisar o ambiente acadêmico militar, suas práticas discursivas, seu
habitus e o processo educacional pelo qual passam os militares da linha bélica do
134
Exército, verifica-se um reforço de características valorizadas no processo de
socialização masculina, tais como a força, a liderança, a capacidade de domínio.
Essas características, culturalmente percebidas como pertencentes ao universo
masculino, podem marcar uma segregação entre cadetes homens e mulheres,
influenciando, assim, a construção da identidade social desse novo grupo.
Os estabelecimentos de ensino militar devem estar atentos para que suas
práticas acadêmicas possam contribuir na formação de mulheres militares em
sentido pleno. Tais práticas, deveriam ser o resultado de uma mudança na
percepção de gênero da instituição militar, pois, ao ser inserida no ambiente militar
acadêmico, essa mulher passará por um processo de socialização comum a todos
os cadetes cujo objetivo é a formação de um profissional com os mesmos valores
institucionais.
Esses valores farão parte de um constructo social desenvolvidos pelas
práticas discursivas socializadas no ambiente escola e constituirão parte da
formação identitária dessas cadetes. Nesse aspecto, deve-se considerar o fator
interacional entre docentes e discentes. Em um ambiente acadêmico militar, assim
como em qualquer outro ambiente escolar, os docentes (no caso específico da
EsPCEx e da AMAN, campus do estudo desse projeto, os instrutores) constroem-se
como sujeitos constantemente. As práticas discursivas, a linguagem da qual se
utilizam, veiculam informações que refletem no comportamento discente e que vão
além de simples palavras, pois se constituem em mensagens simbólicas, em gestos
implícitos ou explícitos que também permitem que o cadete ocupe um espaço em
seu meio social, o qual poderá corresponder aos conceitos e/ou preconceitos que
podem existir no contexto militar, nas práticas institucionais.
Sendo assim, as atitudes implícitas ou explícitas e as palavras do educador
podem interferir intensamente na concepção identitária desses cadetes. No entanto,
até os dias atuais essas relações, na área combatente, eram restritas ao gênero
masculino. Cabe-nos considerar se tais práticas acadêmicas e relações sofreriam
mudanças com a inserção das mulheres nesse ambiente.
É necessário, então, aprofundar os estudos na esfera institucional do Exército
Brasileiro para que ele possa estar preparado para construir a identidade social de
seus militares de acordo com seu imperativo funcional social, que é a defesa da
Pátria, e ao, mesmo tempo, possa contribuir para ressignificar as concepções
militares sobre a maneira que eles percebem a mulher dentro da instituição militar,
dando a ela a possibilidade real de mostrar as suas capacidades.
4.Referências
BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
159p.
CARREIRAS, Helena. Mulheres nas Forças Armadas portuguesas. Lisboa:
Edições Cosmos, 1997.
CASTRO. Celso. O Espírito Militar. Um antropólogo na caserna. 2ª ed. Rio de
Janeiro: J.Zahar, 2004.
DUBAR, Claude. A socialização: construção das identidades sociais e
profissionais. Portugal: Porto Editora, 1997.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 2001.
135
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 10ª ed. DP&A: São
Paulo, 2001.
MARODIN, M. As relações entre o homem e a mulher na atualidade. In: STREY,
M.N. Mulher, estudos de gênero. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 1997.
MOITA LOPES, Luiz Paulo (org). Discursos de Identidades. Discurso como
espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e
na família. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
136
O IMAGINÁRIO COMO VIA DE
TRANSGRESSÃO DO REAL
ANDRÉA PORTOLOMEOS
Departamento de Estudos da Linguagem
Universidade Federal de Lavras
Av. Doutor Sylvio Menicucci, 1001 - Kennedy, Lavras - MG, 37200-000
andrea@del.ufla.br
Resumo. Este texto pretende mostrar uma parte do pensamento de Luiz
Costa Lima, na obra O controle do imaginário, que pensa sobre discursos
que determinaram o lugar de inverdade do discurso ficcional, invalidando
a ficção como via de construção de saberes, de relativização de verdades
social e culturalmente estabelecidas. Este trabalho tem a intenção de
provocar diálogos sobre a construção de um veto ao ficcional que é um
veto à nossa própria imaginação na interpretação do mundo e da
sociedade.
Palavras-Chave. Literatura. Imaginário. Controle.
Abstract. This text aims to show a part of Costa Lima’s thoughts, on O
controle do imaginário. It has thoughts about discourses that determined
the place of untrue of the fictional discourse, invalidating the fiction as a
way of build knowledge, as a way of relativization of socially established’s
trues.This work has the intention of encourage dialogues about the
construction of a veto to the fictional that is a veto to our own imagination
in the interpretation of the world and of the society.
Key-words. Literature. Imaginary. Control.
1. O controle do imaginário na perspectiva de Luiz Costa Lima
Este texto pretende mostrar uma pequena parte do pensamento de Luiz
Costa Lima, na sua incontornável obra, O controle do imaginário. Obra incontornável
porque pensa sobre discursos que historicamente determinaram o lugar de
inverdade, de mentira, do discurso ficcional, invalidando a ficção como via de
construção de saberes, como via de relativização de verdades social e
culturalmente estabelecidas. Este trabalho tem a intenção, então, de provocar
leituras, pesquisas e diálogos sobre a construção histórica de um veto ao ficcional
que é, em última instância, um veto à nossa própria imaginação - exercitada em
altíssimo grau pela literatura - na interpretação do mundo e da sociedade que
constituímos.
Vou destacar aqui e tentar desenvolver precária e basicamente, com o apoio
no texto de Luiz Costa Lima, 4 ideias propostas por ele no sentido da investigação
desse controle. 1)- Como a ideia de subjetividade surge historicamente?; 2)- Como
ela se manifesta na poesia quando do seu surgimento?; 3)- Como o discurso
subjetivo passa a ser orientado pelo discurso da Razão?; 4) Quais as
consequências desse controle da subjetividade?
Segundo Costa Lima, Hans Ulrich Gumbrecht, grande medievalista
contemporâneo, analisa a crise que sacudiu a Alta Idade como resultante da “pouca
flexibilidade da estrutura mental então dominante” (LIMA, 1989, p.12). Essa
137
estrutura mental pouco flexível era consequência, entre outras, “da cosmologia
cristã de então que apresentava para cada experiência uma única interpretação”
(idem, p.12). Por outro lado, no período da Baixa Idade Média, mais precisamente
nos séculos XIV e XV, podemos entrever uma “maturação da experiência da
subjetividade” (idem, ibidem) iniciada no século XII. Nesse sentido, deixa-se de crer
que a verdade foi inscrita nas coisas do mundo pela divindade que se revelava por
sinais inequívocos. “Cada fenômeno passa a admitir vários sentidos e ao sujeito
passa a caber a apreensão do sentido adequado” (idem, p.12). A subjetividade
adquiria, assim, uma função de acréscimo. Ou seja, a ordem cósmica tradicional,
teologicamente formulada, não era mais suficiente na explicação do mundo; então,
“ao sujeito individual cabia a descoberta da Razão orientadora” (idem, p.13) dessa
explicação.
Luiz Costa Lima lembra Block, outro medievalista, que avalia o movimento de
reconhecimento da subjetividade a partir do século XII. Esse autor discute, por
exemplo, as mudanças nos processos judiciais: “o direito na primeira Idade Média
não levava em conta os motivos ou intenções do ofensor, pois Deus, e não o
homem, era o único capaz de avaliar a intenção”. (idem, p.14) “Deus manifesta a
verdade do sucedido através de sinais visíveis e inequívocos, expressos no
resultado de um duelo.” (idem, p.14) Block avalia que essa forma de resolução
judicial começa a ser corrompida no século XII.
É ainda Costa Lima quem destaca que o século XII é o século da luta entre a
centralização do Estado e a aristocracia feudal; é o século de início de ascensão do
indivíduo e do realce de sua subjetividade contra os interesses da nobreza feudal. A
ascensão do indivíduo pode ser expressa em novas formas literárias em que a
subjetividade assume um papel relevante. Ainda de acordo com o teórico, a atenção
dedicada ao sujeito individual nos novos gêneros se relaciona também aos
interesses da centralização do Estado e da burguesia nascente, em contraposição
aos valores e princípios da aristocracia feudal (quais sejam: “preservação de uma
comunidade de sangue, da tradição e da ideia de uma justiça divina que manifestarse-ia por sinais externos” (idem, p. 15)).
É importante lembrar, como o faz Costa Lima, que Paul Zumthor, na
emblemática obra A letra e a voz, vai destacar a presença do eu na poesia
medieval. Entretanto para que esse eu não seja confundido como expressão de
uma individualidade, resta lembrar que o autor distingue duas situações básicas na
poesia medieval:
1) - um eu vazio enquanto referente, cuja presença se esgota no
entrelaçamento das peças do poema; 2)- uma literatura de papéis
fixos, obediente a topoi seculares e a uma tradição impessoalizada.”
(COSTA LIMA, 1989, p.16)
Dito de outra forma, importa observar que na poesia medieval “o eu
lexicalizado não corresponde ao eu da pessoa que escreve” (idem, p.16), ou seja, “a
experiência textual não integra a experiência pessoal; o eu é uma forma vicária,
flutuante, que declara apenas a voz que o pronuncia. Poesia quase totalmente
objetivada, diz Zumthor” (idem, p.16). Importa destacar aqui, o que Zumthor advertiu
em sua obra, isto é, ao longo do século XV, essa situação se transforma; a poesia
ganha, então, um “eu saturado de pessoalidade” (idem, p.17).
Ainda no século XV, a reprodução tipográfica desestabiliza o hermetismo que
marcava a cultura manuscrita; nesse sentido, pense nas condições materiais e
sociais dos manuscritos. Progressivamente, avalia Zumthor, a cultura perdia seu
caráter iniciático. Ou seja, “a forma escrita serve de base para o estabelecimento de
um novo conjunto de valores”. (idem, p 19).
138
Ao passo que na lírica dos séculos XII e XIII dominava a ligação da
poesia com a música, com a memória e com a oralidade, a poesia
dos séculos XIV e XV estava fundada no canto e “no sentimento do
eu”, assim como renunciava à memória confiando sua produção à
forma escrita. (idem, p.19)
Luiz Costa Lima, com base na leitura das crônicas de Fernão Lopes, nos
mostra que a subjetividade na primeira metade do século XV esboçava seus
empregos possíveis. Ela podia: 1)- ser utilizada como “desserviço da verdade”
(idem, p.21) na poesia 2)- “dar ensejo ao choque de opiniões” (idem, p.21) ou 3)“estar subordinada à verdade, condição só satisfeita quando canalizada em favor da
Razão” (idem, p.21), daí a legitimação do discurso historiográfico como um discurso
superior ao da ficção na medida em que ele é capaz de revelar, através de sua
objetividade, de sua racionalidade, a verdade inscrita nos fatos.
De acordo com Costa Lima, o entendimento do mundo pelo homem presume
uma prática de exercício da Razão e a extirpação de uma subjetividade associada
ao ato de recontar os fatos de maneira a favorecer quem conta ou de acordo com os
costumes do tempo em que se vive.
Curiosa e estranhamente, o historiador nega sua historicidade para
que se mostre como diáfano (límpido) servo da verdade;
intemporaliza a razão para que se tenha como por ela traspassado.
(idem, p.22)
O lugar da razão torna-se o “posto solar”; o lugar da opinião, inseguro. A
entrada da doxa no reino do historiador não é simples e só se dá pela
“desmundanização do historiador, isto é, por sua capacidade de resistir e vencer a
própria subjetividade” (idem, p.23), “no exame e na captura dos fatos, pela
indagação dos prós e contras relativos a certa posição, pelo desencavar afinal da
verdade” (idem, p.23). Segundo Costa Lima, a História começava se constituir como
discurso da razão, desdenhoso do discurso da ficção. A posição do discurso
histórico relativa à ficção será esta: as belas-letras (ou a poesia) se afastam do
caminho da verdade.
Em conformidade com o pensamento de Costa Lima, os caminhos possíveis
para a permanência da ficção entre nós serão: 1)- ou admitir o Império da Razão e
declarar sua inferioridade enquanto via de acesso ao conhecimento; 2)- ou procurar
um compromisso com a Razão. A segunda via será a opção escolhida e, para isso,
será decisiva a contribuição da Retórica. A Retórica, como representante do
discurso ficcional, se aliava então à História. A Retórica dava à História uma solução
para um de seus pontos fracos como discurso da Razão: o olhar individual do
historiador.
O vício (o olhar individualizado) do historiador era próprio do senso
comum, da gente comum; então, a solução estava em se conceber o
discurso historiográfico como parte de uma elite, o que se fez pela
aprendizagem da arte de falar e escrever bem, ou seja, da Retórica.
(idem, p.24)
Nesse movimento de necessário compromisso da ficção com o discurso da
Razão, cabe ainda citar o esforço das poéticas renascentistas em elaborar uma
compreensão própria da mimesis aristotélica (como imitação literal) para controlar
as expressões da individualidade que tendiam a se manifestar na poesia. “A
imitação estabelece a triagem entre os verdadeiros artistas e os que não o são”.
(idem, p.25) Segundo essas poéticas preceptísticas, sem o princípio do modelo a
139
ser imitado, “o eu-poético se tornaria uma entidade selvagem, incontrolável, incapaz
de respeitar hierarquias” (idem, p.26), impossibilitando assim a classificação de seus
textos em nobres ou vis.
Segundo Costa Lima, “o veto à ficção não é um veto à subjetividade em si
mesma” (idem, p.26). Abre-se historicamente uma possibilidade de legitimação para
a subjetividade, mas essa legitimação só será alcançável se a subjetividade abrigar
um modelo aceitável pelos estudiosos e eruditos da época: a nobreza da linguagem
(elegantia sermonis) nos moldes dos autores considerados modelares pelos
preceptistas das poéticas. Ou ainda, a subjetividade se conformava à objetividade
racional dos modelos a serem imitados.
2. Para concluir
Concluindo esse breve panorama que tem como objetivo predominante
fomentar novas incursões pela citada obra de Luiz Costa Lima, a recuperação da
subjetividade como elemento producente fora dos limites da Razão acontecerá
somente no século XVIII, mais especificamente com os movimentos das escolas
românticas. Entretanto, sabemos que o acesso ao conhecimento pela via da
intuição ou da emoção continuou historicamente superposto pela Razão, ainda que
muitas grandes obras da literatura evidenciem o quanto a arte, sem se subordinar a
essa verdade histórica e socialmente construída, se revela válida na investigação da
realidade. Resta-nos hoje uma importante tarefa: pensar quais discursos apagam,
na contemporaneidade, a importância do literário - mesmo que muitas vezes sob
uma forma camuflada de validação da literatura - como forma de libertação de
verdades pré-concebidas e de compreensão mais larga da vida e do mundo.
3. Referências
FRANCO, Moretti. O romance: história e teoria. In: Novos estudos. - CEBRAP
no.85. São Paulo. 2009. <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002009000300009>
Acesso em 01 de novembro de 2017.
LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário. Razão e Imaginação nos Tempos
Modernos. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
ZUMYHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das letras, 2001.
140
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO CAIPIRA NA
TELENOVELA ÊTA MUNDO BOM! DE
WALCYR CARRASCO
ANÍSIO BATISTA PEREIRA
Instituto de Letras e Linguística – ILEEL
Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Av. João Naves de Ávila, 2121, Santa Mônica, Bloco G, Uberlândia – Minas Gerais,
CEP: 38408-100.
pereira.anisiobatista@ufu.br
Resumo: O presente trabalho objetiva analisar a constituição do sujeito
caipira na telenovela Êta Mundo Bom!, de Walcyr Carrasco, exibida pela
rede Globo de televisão em 2016. Como suporte teórico metodológico,
tomaram-se como recorte algumas formulações da Análise do Discurso
de linha francesa, sobretudo de Michel Foucault, com ênfase aos
conceitos de sujeito, discurso e subjetividade. Conclui-se que o
protagonista, Candinho, se constitui a partir de suas práticas ligadas a
sua exterioridade imediata.
Palavras-chave: Sujeito. Discurso. Subjetividade. Êta Mundo Bom!.
Abstract: The present work aims to analyze the constitution of the caipira
subject in the telenovela Êta Mundo Bom !, by Walcyr Carrasco, shown by
Globo television network in 2016. As a theoretical and methodological
support, some formulations of the Discourse Analysis of the French line
were taken as a cut- especially Michel Foucault, with emphasis on the
concepts of subject, discourse and subjectivity. It is concluded that the
protagonist, Candinho, is constituted from its practices linked to its
immediate externality.
Keywords: Subject. Speech. Subjectivity. Good World!.
1. Introdução
O que eu visto não é linho
Ando até de pé no chão
E o cantar de um passarinho
É pra mim uma canção
Vivo com a poeira da enxada
Entranhada no nariz
Trago a roça bem plantada
Pra servir o meu país.
(Joel Marques/Maracaí,1998)
A constituição do sujeito pelas práticas discursivas nos remete a uma reflexão
cuidadosa, sobretudo, considerando-se que o sujeito não é fixo, mas que está
sempre em deslocamento e construção, na e pela história. Pensando nessa
141
questão, neste trabalho se propõe a problematizar a constituição do sujeito caipira
na telenovela Êta Mundo Bom!, de Walcyr Carrasco, exibida pela Rede Globo entre
janeiro e agosto de 2016, com destaque para o protagonista Candinho, vivido pelo
ator Sérgio Guizé. Ressalte-se que esse caráter caipira, especialmente do
protagonista, é uma influência de um conto que posteriormente se transformou em
filme, cuja roupagem é tomada para a novela. Trata-se de uma produção inspirada
no filme Candinho, de Abílio Almeida, produzido na década de 1950 e
protagonizado por Mazzaropi.
Nessa direção, este trabalho encontra-se dividido da seguinte maneira: em
um primeiro momento, foram discutidos os aspectos da Análise do Discurso de
vertente francesa, com ênfase aos aspectos sujeito e discurso, segundo as
formulações de Michel Foucault; posteriormente, foi realizada a análise do material
(imagens, trilha sonora e fala do sujeito protagonista) sobre a referida telenovela,
possibilitando obter os resultados sobre a constituição do sujeito caipira na
telenovela supracitada, direcionando as discussões para as considerações finais.
2. Sujeito e discurso em Michel Foucault: breves considerações
O discurso em Michel Foucault (2008) pode ser compreendido como o fator
responsável pela constituição do sujeito, que está impregnado no social, pela
aliança entre a materialidade linguística e o aspecto histórico. Este o torna um
acontecimento, tendo em vista que o enunciado, ainda que repetível, o momento
histórico o torna singular. Além disso, há no discurso um posicionamento de sujeito,
não fixo e constituído sempre por discursos diversos, bem como se percebe que um
enunciado retoma outros enunciados já ditos.
Nossa metodologia de análise se direciona aos postulados de Foucault no
que respeita, dentre outros fatores, a sujeito e discurso. Para efeito de análise desse
sujeito protagonista, as figuras colhidas na internet foram tomadas como
enunciados. Um enunciado, segundo a Arqueologia foucaultiana, deve ser
considerado pela dimensão de sua função enunciativa: apresenta um campo
associado, já que se relaciona com outros enunciados; um suporte, no caso a mídia;
uma data de emergência e um posicionamento de sujeito. Dentre outros fatores,
esses integrantes da função enunciativa são relevantes para as análises, sobretudo
pela questão do sujeito, não o autor das imagens ou aquele que as postou na
internet, mas o protagonista que se posiciona nas figuras, apresentando suas
subjetividades. Além disso, outro aspecto considerável, para leitura das letras
musicais e falas do personagem, é a materialidade repetível, isto é, as unidades
linguísticas que são passíveis de serem repetidas na construção de outros
enunciados, mas o momento histórico lhe dá a dimensão de acontecimento,
portanto, uma singularidade.
Considerando a história como aspecto fundamental nos processos
discursivos e na constituição do sujeito, de acordo com a linha teórico-metodológica
adotada, trata-se da nova história. Essa história apresenta uma dimensão não
condizente com a história tradicional, esta direciona para certa linearidade dos
acontecimentos. A nova história, também chamada de universal, sobrepõe a global,
uma vez que considera as várias histórias, isto é, as inúmeras microestruturas
sociais, não possuindo uma linearidade dos fatos, mas que caracteriza por uma
recorrência a fatos passados.
Nessa dimensão histórica, os discursos são sempre povoados de outros
discursos e servem de base para as práticas discursivas futuras. Essa característica
serve de base para o entendimento, também, da noção de temporalidades distintas
142
vivenciadas pelos sujeitos em um mesmo momento histórico, pelas diferenças nas
relações de saber e poder desses sujeitos. Um exemplo desse fator é a relação do
homem com a tecnologia que ainda nos tempos modernos se dá de forma
desequilibrada, já que dois sujeitos podem vivenciá-la de maneiras bastante
distintas, de acordo com suas vivências sociais.
Em cada momento histórico são produzidos seus discursos, de acordo com
suas condições históricas de possibilidade, autorizados a circularem ou interditados
condizentes com o momento. Os discursos são produzidos sob determinadas
condições históricas de possibilidade e passam por regularidades que os
determinam, atribuindo-lhes um caráter de unidade:
Chamaremos de regras de formação as condições a que estão
submetidos os elementos dessa repartição (objetos, modalidade de
enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de formação
são condições de existência (mas também de coexistência, de
manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada
repartição discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 43, grifo do autor).
Essas regras de formação dos discursos, ligadas ao momento
histórico, se enquadram na chamada dispersão, tendo em vista o caráter
descontínuo de um discurso e sua relação com outros já produzidos. A modalidade
de enunciação aponta para o sujeito do discurso, seu posicionamento e o que é
autorizado ou não esse sujeito dizer em determinadas circunstâncias.
Os discursos autorizados pela sociedade em geral se enquadram no dizível
de uma determinada época, aquilo que é tomado como verdadeiro, desejos de
verdade que seus sujeitos apresentam (FOUCAULT, 1996). A partir dessas
verdades legitimadas pela sociedade, os sujeitos acabam por se subjetivarem,
ligados, também, pelas relações de poder que os contornam.
O conceito de vontade de verdade é definido por Foucault ligado à noção de
conhecimento científico, sobretudo com o advento do positivismo. No entanto,
considera-se que em cada discurso, quer científico ou não, há ali uma verdade, uma
vontade de verdade que se manifesta e exerce o trabalho de subjetivação dos
sujeitos, estes como sendo seu efeito. Esses discursos não considerados científicos
são denominados de outras arqueologias. Porém, vale destacar que a verdade não
é algo absoluto, mas lugares criados pelos próprios sujeitos e que esses discursos,
uma vez produzidos e circulados, constituem sujeitos (FOUCAULT, 1993).
As práticas discursivas acabam por subjetivar os sujeitos, pelos
lugares de verdades legitimados socialmente e que produzem esses sujeitos a partir
de determinadas formações discursivas. Nesse âmbito, de acordo com Foucault
(1993, p. 205), vale considerar que “todas as práticas pelas quais o sujeito é
definido e transformado são acompanhadas pela formação de certos tipos de
conhecimento”.
Os discursos, tomados como verdadeiros, sobretudo em determinadas
épocas, são legitimados por meio dessa autorização de circulação do saber,
condizente com algumas ordens, a saber: o sujeito é autorizado ou não produzir
discursos de acordo com seu status de saber; em cada momento histórico são
produzidos e circulados seus discursos, legitimados ou não pela sociedade em
geral, isto é, por um número considerável de sujeitos. De acordo com Foucault
(1996, p. 9), "sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode
falar tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de
qualquer coisa”.
Considerando o sujeito como peça relevante na produção de um discurso,
recorremos às indagações sobre as modalidades enunciativas, abordadas por
143
Foucault (2008, p. 55):
Primeira questão: quem fala? Quem, no conjunto de todos os
sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de
linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dela sua
singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe, se não
sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é
o status dos indivíduos que têm - e apenas eles - o direito
regulamentar
ou
tradicional,
juridicamente
definido
ou
espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso?
Fica explícito a relação sujeito e discurso no que tange à produção e
circulação de determinado discurso, ligados àquele que o produz, pelo status de
verdade que pode ou não ser legitimado socialmente. Vale destacar as várias
posições de sujeitos que um mesmo indivíduo pode ocupar na esfera social, cujas
modalidades enunciativas revelam quem produz determinado discurso.
Nessa ordem discursiva, vale destacar que os discursos se constituem,
também, pela resistência, já que os sujeitos se inscrevem em determinadas
formações discursivas e não em outras. O que se percebe, então, é a existência de
contrastes discursivos, que os sujeitos, pelo seu poder, resistem a determinadas
formações discursivas nas quais não se inscrevem.
Por meio dos discursos, a concepção de sujeito, de acordo com o suporte
teórico-metodológico adotado, pode ser definido como constituído a partir de suas
relações de saber e poder. De acordo com Foucault (1981), os indivíduos estão em
constantes relações de poder umas com as outras, constituindo-se em sujeitos por
um processo de singularização que essas relações provocam.
A noção de relações de poder é um aspecto relevante na constituição dos
sujeitos pelas práticas discursivas, considerando que os sujeitos se relacionam
cotidianamente na sua vida social, constituindo-se em microfísicas de poder. Por
meio dessas relações, são produzidos sujeitos, promovidas individualizações,
processos de subjetivação que constitui os indivíduos em sujeitos, estes sempre em
caráter social, nunca individual, já que o sujeito é tomado como o reflexo social, de
acordo com suas relações de saber e de poder. O sujeito é definido, portanto,
socialmente, já que o fator histórico o constitui (na/pela história, pelas suas práticas
no presente e pela noção de memória, suas relações com discursos produzidos
anteriormente).
O poder não é algo dado, em que uma pessoa o detém e exerce sobre outro
indivíduo, mas significa exercício, funcionamento, embora existam poderes muito
bem cristalizados na sociedade de uns sobre outros, sobretudo de caráter
institucionais. Essa figuração institucional influencia essas relações de poder e nas
práticas discursivas no seio da sociedade, pois se tratam de estruturas
convencionais, já estabilizadas. Considerando esse exercício diário, entendem-se,
então, como relações de microfísicas do poder, de sujeitos, que, por meio de suas
relações sociais, acabam por se subjetivarem a partir de suas relações discursivas e
com outros sujeitos.
Fernandes (2012) ressalta que, por meio das subjetividades adquiridas, o
indivíduo se torna sujeito, a partir das quais se posiciona e se inscreve em
determinada identidade, a qual não é fixa, uma vez que esse sujeito é histórico e as
relações de saber e de poder estão em constantes mudanças. Essa não fixação do
sujeito, social, pode ser evidenciada na análise do sujeito protagonista Candinho, da
novela Êta Mundo Bom!, a qual segue no próximo tópico.
3. Uma leitura do sujeito protagonista Candinho
144
Sucesso de crítica e público, a telenovela supracitada, ambientada na década
de 1940, escrita por Walcyr Carrasco e dirigida por Jorge Fernando, foi exibida pela
rede globo em 2016, cujo protagonista, Candinho, interpretado pelo ator Sérgio
Guizé, foi tomado como nosso objeto de análise. Assim, este estudo se debruça na
constituição desse sujeito caipira, por meio de seus traços característicos, isto é,
suas subjetividades que o inscrevem nessa identidade caipira.
A logomarca da telenovela (ÊTA MUNDO BOM!) apresenta um acento
circunflexo na letra inicial da primeira palavra do título, inexistente de acordo com a
norma culta da Língua Portuguesa. Esse acento proposital cria um efeito de sentido
no que tange ao sujeito caipira, tanto no que diz respeito ao chapéu quanto ao
dialeto caipira (linguagem não consonante com a norma culta).
Em relação à abertura, são exibidas imagens de Candinho no seu “rancho”,
casa na zona rural, em meio aos seus afazeres domésticos (a lida com os animais e
plantas), ao som da música cuja letra remete para o local imediato onde reside o
personagem (“O baile lá na roça foi até o sol raiar”), na voz de Suricato. O termo
“roça” aponta para um sujeito roceiro, o qual possui um burro, Policarpo, seu animal
de estimação, típico de pessoas residentes no meio rural, bem como se percebe na
figura abaixo.
Quanto ao material de análise, além do discurso linguístico contido nas letras
de músicas e falas do personagem, o enunciado imagético proporciona uma nítida
caracterização desse sujeito e suas subjetividades, sendo o reflexo de sua
exterioridade que o cerca. Não se considera, aqui, o estereótipo que coloca esse
sujeito em um nível de inferioridade social, memória arraigada socialmente sobre
esse aspecto. Trazendo essas questões para o recorte teórico-metodológico
adotado para as análises, o saber e as relações de poder ganham destaque,
considerando que esse sujeito, a seu modo, possui um saber, não aquele
institucionalizado, mas de acordo com sua natureza ligada ao meio rural.
Figura 1: O sujeito Candinho e seu caráter caipira.
Disponível
em:
<http://www.purepeople.com.br/midia/candinho-sergio-guizetambem-resgata-p_m1316531>. Acesso em: 01 out. 2017.
145
Foucault (1993) destaca a relação entre verdade e subjetividade, fator que
pode ser observado nos aspectos tidos como verdadeiros em relação ao
protagonista, Candinho. Pela imagem, é possível perceber subjetividades mais
aparentes desse sujeito, constituindo-o em caipira, pelos trajes (chapéu e botinas de
couro e roupa desengonçada, sem requintes de elegância), atrelados pelo animal
rural e o ambiente à sua volta. Além disso, para complementar esse ambiente, a
letra musical interpretada por Chitãozinho e Xororó evidencia esse espaço caipira
do sujeito (“No rancho fundo / Bem pra lá do fim do mundo”), canção que embala as
imagens da fazenda onde esse protagonista é criado.
“Bem pra lá do fim do mundo” evidencia um distanciamento espacial e
sociocultural entre campo e cidade, cujas fronteiras são perceptíveis, refletindo nas
práticas discursivas que demarcam os sujeitos. Assim, o sujeito protagonista
apresenta esse caráter roceiro pelas suas práticas que diferenciam dos sujeitos
urbanos, pelos seus modos de vida. Traz consigo uma memória do autêntico
“roceiro”, sobretudo pela influência das pessoas com as quais mantém relações
discursivas e de poder. Foucault (1996) defende que todo discurso é marcado por uma
verdade que é tomada como um lugar construído e legitimado pelos sujeitos. Por essas
considerações, os regimes de verdade, bem instaurados nesse espaço rural, lhe
proporcionam uma constituição segundo os traços dessa exterioridade imediata.
Além disso, falas do sujeito Candinho podem ser tomadas para conferir a sua
constituição, revelando seu dialeto caipira e sua “ingenuidade”, dados tipicamente
pela sua relação com o ambiente imediato, retomando, inclusive, letra de música
integrante da trilha sonora da novela (“Tudo o que acontece de ruim na vida da gente
é pra miorá”), interpretada por Moska e o próprio título da novela (“Êta mundo bão!”) e
“medaião” (em referência a sua medalha), em que o personagem substitui o “melhorar”
por “miorá”, o “bom” por “bão” e “medalhão” por “medaião”. Dessa forma, esses saberes
dados pelas práticas discursivas constituem o sujeito, colocando-o em um lugar
socialmente demarcado e o lugar desse protagonista da novela é bem definido, dado
tanto pela exterioridade denunciada pela figura quanto pelas suas subjetividades que o
caracterizam como jovem caipira.
Ao direcionar suas considerações rumo ao sujeito que fala, Foucault (2008)
problematiza o lugar social de onde fala esse sujeito. Nessa perspectiva, o lugar de
onde Candinho fala é bem demarcado, possibilitando suas modalidades enunciativas a
partir desse ambiente socialmente fecundo para seus discursos, com linguagem
nitidamente marcada pelo dialeto caipira.
Esse sujeito caipira se constitui a partir de suas relações de saber e de poder
(conhecimentos passados de seus pais na fazenda na qual vive e o ambiente rural
no/com o qual convive), fazendo com que ele se subjetive dessa forma, a caráter
caipira, assumindo essa identidade, tomando as palavras de Foucault (1981). A figura
abaixo retrata essas relações de poder as quais Candinho vivencia e se constitui a partir
de suas práticas cotidianas.
Figura 2: O ambiente rural constituinte do sujeito Candinho.
146
Disponível em: <https://extra.globo.com/tv-e-lazer/novela-eta-mundo-bom/novelaeta-mundo-bom-resumos-de-15-21-de-maio-19253879.html>. Acesso em: 01 out.
2017.
A figura 2 mostra, então, o ambiente no qual o sujeito protagonista vive, apesar
de este não aparecer na fotografia. Observam-se tanto pessoas da família de Candinho,
residentes na fazenda, quanto outras, urbanas. Essas diferenças de subjetividades
demarcam lugares na constituição dos sujeitos, cujas relações de poder reforçam suas
individualidades, em que o caráter caipira fica mais evidente. Trata-se de saberes
distintos, práticas discursivas diferenciadas entre sujeitos de acordo com as
circunstâncias vivenciadas.
As relações de poder, tomando as considerações foucaultianas, se dão pelas
práticas cotidianas. Nessa direção, esse sujeito protagonista mantém relações de poder
a partir de suas vivências com os integrantes de sua família, influenciando-o no seu
processo de subjetivação, pelas verdades ali instauradas, esse sujeito se constitui a
partir do que é vivenciado no berço familiar, caracterizando-o como quem vive no meio
rural.
Frente a essa constituição, não podemos deixar de mencionar que não existe um
caipirismo uniforme no país, tendo em vista as diversidades brasileiras, e o estilo caipira
se constitui de diferentes formas pelas regiões do Brasil. No entanto, algumas
semelhanças podem se encaixar no conceito mais amplo de sujeito caipira, como a
linguagem de quem não possui um vocabulário rebuscado, isto é, não possui um
domínio sobre as letras; a exterioridade imediata do sertão; a simplicidade típica de
quem não convive rotineiramente com as práticas dos centros urbanos.
O sujeito Candinho, apesar de apresentar sua característica caipira, formada a
partir de suas vivências no ambiente familiar rural, apresenta suas subjetividades
particulares, as quais não são fixas, pois, de acordo com suas vivências discursivas na
história, sua constituição sofre deslocamentos. Essas alterações são evidentes a partir
do momento em que o sujeito protagonista deixa o campo e migra para o centro urbano,
alterando suas relações de saber e de poder, de acordo com a figura 3.
Figura 3: Candinho em um novo ambiente: urbano.
147
Disponível
em:
<https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/20
16/05/04/com-apoio-da-mae-candinho-pedesandra-em-namoro-em-eta-mundo-bom.htm>.
Acesso em: 01 out. 2017.
O choque entre as subjetividades típicas rurais e as urbanas demarcam os
lugares sociais entre os personagens, cujo protagonista é visto a partir de uma
inferioridade pelos personagens urbanos. Na figura, a antagonista Sandra faz uso desse
saber “ingênuo” de Candinho e o protagonista inicia um novo processo de relações de
poder e de saber, influenciando as suas subjetividades. Essas diferenças entre os dois
sujeitos apontam para as diferenças de temporalidades vivenciadas entre os sujeitos em
um mesmo momento histórico. No rancho (meio rural), o sujeito se constitui desprovido
do saber sistematizado, sem acesso às novas tecnologias e a um contexto urbano,
enquanto que o sujeito Sandra apresenta essa subjetividade ligada às modernidades
que o contexto urbano lhe proporciona.
Foucault (1996), quando discorre sobre a autorização ou não de certos
discursos em certos contextos, defende a interdição desses discursos não
autorizados a circularem em determinados lugares e momentos históricos. Nas
circunstâncias do meio urbano, o sujeito Candinho é colocado em outra ordem, cujas
subjetividades como dialeto caipira, trajes rurais, são interditadas por aqueles sujeitos
urbanos. Nesse contexto, a esse sujeito dominado, são impostas outras formas de
subjetividades, adequando-se àquele espaço o qual ele passa a pertencer.
O figurino não mais tipicamente caipira e aquele ambiente urbano lhe obriga a se
subjetivar a partir de suas novas práticas, já que suas próprias necessidades sociais o
levam a mudanças. Esse processo de transição remete às palavras de Foucault (2008)
sobre a descontinuidade do sujeito, uma vez que a história é dinâmica e as relações de
saber e poder variam, influenciando na constituição dos sujeitos.
Candinho então vai perdendo seu caráter caipira, cujo figurino é alterado
bruscamente e seu dialeto caipira de forma mais gradual. Aquela exterioridade
interiorana sede lugar para o espaço urbano e, por isso, a dinâmica histórica
proporciona essa mudança de subjetividades, constituindo esse sujeito protagonista de
acordo com as convenções urbanas. O contraste entre o rural e o urbano é evidenciado
a partir do contato inaugural desse protagonista, possibilitando traçar uma fronteira entre
campo e cidade. Os discursos são outros, cujas práticas, inclusive de linguagem,
148
apontam para um linguajar correto, em oposição ao dialeto caipira. Porém, faz-se
necessário considerar esse caráter caipira não como uma inferioridade em relação ao
urbano, mas uma espécie de saber típica do interior, como uma diferença, não como de
menor valor. Vale ressaltar que permanece uma memória, uma vez que traços sólidos
desse sujeito são mantidos, como o caráter de bom moço, frequência ao sítio onde fora
criado, sua paixão pelo primeiro amor e sua postura positiva frente aos contratempos
que se deparam na vida.
Levando em consideração que o sujeito está sempre em processo de
construção, vale destacar, ainda, que esses traços subjetivos não são fixos, bem como
se percebe a partir de sua mudança do “rancho” para a zona urbana, na qual ele se
transforma (mudança no visual, na linguagem e no comportamento), condizendo com as
considerações de Fernandes (2008), cujo sujeito é histórico e está sempre em processo
de deslocamento, dispersão, na ordem do (i)nacabado.
4. Considerações finais
Pela análise do material referente à telenovela Êta Mundo Bom!, de Walcyr
Carrasco, é possível afirmar que a constituição do sujeito caipira, Candinho, se dá
por meio de suas relações de saber e poder, tendo em vista o ambiente “roceiro” no
qual ele habita e as pessoas de sua família com as quais ele convive, que também
são caipiras. Esses traços caipiras são perceptíveis nas suas características mais
aparentes, como o modo de se vestir, de falar e traços comportamentais, como a
ingenuidade. Não se tratam se subjetividades tomadas como inferiores as de outro
sujeito, como urbano, por exemplo, mas de um sujeito com seu estilo próprio
relacionado a um saber específico, ligado à sua exterioridade imediata, o meio rural.
Pelo suporte teórico-metodológico adotado para a análise, outro fator que
merece destaque se refere à descontinuidade do sujeito, isto é, sua dispersão na
história, tomando como pano de fundo a mudança de ambiente de Candinho, sujeito
que deixa a zona rural (roça) e se muda para a cidade. Essa alteração nas relações
de saber e poder o transforma em um novo sujeito, possibilitando a compreensão de
que o sujeito não é fixo, mas que está sempre em processo de constituição por meio
da história.
5. Discografia
LÔBO, Haroldo; MEDEIROS, Geraldo. O sanfoneiro só tocava isso. Intérprete:
Suricato. In: ÊTA MUNDO BOM! VOL. 1. Rio de Janeiro: Som Livre, p2015. 1 CD.
Faixa 1.
BABO, Lamartine; BARROSO, Ary. No rancho fundo. Intérprete: Chitãozinho e
Xororó. In: ÊTA MUNDO BOM! VOL. 1. Rio de Janeiro: Som Livre, p2015. 1 CD.
Faixa 7.
CARVALHO, Mú; MOSKA, Paulinho. Tudo que acontece de ruim é para melhorar.
Intérprete: Paulinho Moska. In: ÊTA MUNDO BOM! VOL. 2. Rio de Janeiro: Som
Livre, p2016. 1 CD. Faixa 19.
6. Referências
FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São
Paulo: Intermeios, 2012.
149
FOUCAULT, Michel. [1969]. Arqueologia do Saber. 7. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta
Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
_____. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo:
Loyola, 1996.
_____. Microfísica do Poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1981.
_____. Verdade e Subjectividade (Howison Lectures). Revista de Comunicação e
linguagem. nº 19. Lisboa: Edições Cosmos, 1993. p. 203-223.
150
MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA OS
DISCURSOS DE IDENTIFICAÇÃO DO
SUJEITO PROFESSOR
ANTONIO JOSÉ DA SILVA
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos Linguísticos
Universidade do Estado de Mato Grosso
Avenida Santos Dumont, S/n, Bairro: DNER, Cáceres-MT CEP 78200-000
prof.antoniosilva@uol.com.br
Resumo. Este trabalho tem como objetivo analisar como se dá o
processo de identificação do sujeito professor. O corpus, significado
como objeto simbólico-ideológico constitui-se por meio de entrevista
através de questionário direcionado aos professores de Língua
Portuguesa. O movimento entre o mercado editorial, a ciência e o Estado,
lugares que funcionam como redes de sentidos imaginários, em um jogo,
projetados pelas Políticas Públicas para os professores na efetivação da
seleção do livro didático.
Palavras chaves: Identificação. Sujeito-professor. Sentidos.
Abstract. This study aims to analyze how the process of identification of
the subject teacher occurs. The corpus, meaning as a symbolicideological object, is constituted through an interview through a
questionnaire directed to the teachers of Portuguese Language. The
movement between the publishing market, science and the State, places
that function as networks of imaginary senses, in a game, designed by the
Public Policies for the teachers in the effectiveness of the selection of the
textbook.
Keywords: Identification. Subject-teacher. Senses.
Neste trabalho, queremos compreender o modo como o professor identificase com o livro didático enviado para as escolas pelo Plano Nacional do Livro
Didático (PNLD). As políticas públicas de ensino através do livro didático
fundamentam e orientam o processo educativo nas escolas brasileiras. O ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa nas escolas é objeto de discussão desde o
século XIX, período em que o livro didático tornou-se um instrumento para o
professor ministrar as aulas.
Nosso objetivo é compreender como se dá a identificação dos professores no
processo de seleção do livro didático do nono ano da disciplina de Língua
Portuguesa da Escola Estadual ¨13 de Maio¨, localizada no município de Porto
Esperidião/MT, município que faz fronteira com a Bolívia e fica a 340 km da capital
Cuiabá-MT.
Nesse sentido, observamos nos discursos o modo como a formação
discursiva posta em funcionamento revela as contradições e as relações de forças,
que funcionam na efetivação da seleção do livro didático pelos professores. Essas
discursividades constituem-se numa representação imaginária de política pública,
pelas regularidades no processo que institucionaliza a seleção do manual didático
significado pelo Estado.
151
Nossa inquietação é entender o processo de identificação nos discursos do
sujeito professor na seleção do livro didático na escola. Nessa seleção analisamos
os discursos dos professores sobre as políticas de ensino, ou seja, propomos um
percurso de reflexão para compreendermos os efeitos de sentidos produzidos pelas
políticas públicas de ensino relativas à política de distribuição e adoção do livro
didático no Brasil. Nessa direção, questionamos: Há movimentos de resistência
pelos professores na escolha do livro didático?
Nosso trabalho reflete sobre a identificação do sujeito professor com o
principal “instrumento linguístico” utilizado pelos professores para desenvolver o
processo ensino-aprendizagem na maioria das escolas públicas. Nas aulas de
Língua Portuguesa, observamos que o livro didático se destaca como a “ferramenta”
mais utilizada por professores e estudantes. O livro didático vem passando por
mudanças, sendo discutido por inúmeros estudiosos de diferentes filiações teóricas
para refletirem sobre esse material pedagógico disponibilizado pelo Estado, através
do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Sobre os instrumentos linguísticos, Auroux (2014) aponta que os conceitos
de gramatização e de instrumentos linguísticos estão muito ligados. Para o autor, a
gramatização é um “processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua”.
(idem, p. 65). Em nosso caso, tomamos o livro didático como instrumento linguístico
utilizado pelos professores para o trabalho com a língua em sala de aula.
Segundo Horta (2008) da perspectiva da História das Ideias Linguísticas, as
gramáticas e os dicionários são vistos como instrumentos linguísticos e têm sido
estudados também como objetos de conhecimento. Para o autor, o mesmo se pode
dizer a respeito dos manuais didáticos. (Idem, p.110).
Esse trabalho se inscreve na perspectiva da História das Ideias Linguísticas
(HIL) articulada à Análise do Discurso (AD) de linha materialista, formulada por
Pêcheux, na França e desenvolvida por Eni Orlandi, entre outros pesquisadores, no
Brasil. Em outras palavras, se insere na perspectiva discursiva da linguagem, que
considera a relação entre Língua e História.
Nessa perspectiva, a escola tem a função de preparar o aluno/cidadão para
viver em sociedade, é um lugar em que é propagado o saber sobre a língua, via livro
didático. Nesse sentido, Silva (2007, p. 141) afirma:
Ensinar-aprender uma língua escrita na Escola é, basicamente,
adquirir uma competência linguística escrita e um saber sobre uma
língua nacional em que se entrecruzam relações também complexas
entre conhecimentos científicos e saberes institucionais em um
espaço-tempo determinado.
A escola é, pois, fundamental para legitimar e instrumentalizar a língua. O
material didático, que fora pensado inicialmente para ser um complemento nas
aulas, ganhou um importante espaço dentro do ambiente escolar como organizador
dos conteúdos, da metodologia e do referencial teórico. Ainda, segundo Silva (2007.
p. 155),
Obscurecemos o fato de que a posição de sujeito-aluno se constitui
como sujeito de um discurso pedagógico em um processo histórico
de produção de linguagem e de conhecimento, em que as relações
de poder conformam as instituições de um Estado, como a Escola,
pelo apagamento do político que as determina.
A autora afirma que a prática de ensino ligada à transformação histórica do
processo de produção econômica, produz a normatização da força de trabalho e a
152
organização das relações sociais, sendo o aluno e o professor sujeitos das forças
produtivas dessa sociedade.
Muito se tem discutido sobre o material que orienta o processo educativo na
maioria das escolas brasileiras. Esses estudos são importantes porque contribuem
com o ensino no Brasil. Portanto, precisamos refletir sobre o material didático que é
produto de uma sociedade. Nesse sentido, questionamos: Até que ponto pode um
livro didático contribuir no processo de produção do conhecimento da língua?
Para responder esta questão, queremos compreender nas políticas públicas
de ensino de Língua, as contradições e as relações postas em funcionamento pelas
diferentes Formações Discursivas (FDs). As formações discursivas determinam o
que pode e deve ser dito (PÊCHEUX, 1988).
Um material didático que trata a língua enquanto sistema torna-se um objeto
que se dá em si mesmo, conforme Orlandi (1996, p.22),
o material didático, que tem esse caráter de mediação e cuja função
sofre o processo de apagamento (como toda mediação) e passa de
instrumento a objeto. Enquanto objeto, o material didático anula sua
condição de mediador. O que interessa, então, não é saber utilizar o
material didático para algo. Como objeto, ele se dá em si mesmo, e
o que interessa é saber o material didático (como preencher
espaços, fazer cruzinhas, ordenar sequências, etc). A reflexão é
substituída pelo automatismo, porque, na realidade, saber o material
didático é saber manipular.
A mediação do conhecimento científico pelo material didático pode passar
por um processo de apagamento caso seja empregado como um objeto que
comporta o conhecimento. Nesse sentido, o livro didático não é utilizado como um
instrumento, como um dos recursos no processo ensino aprendizagem, mas como a
principal fonte para transmitir conhecimento, trabalhando a língua como
transparente, distanciando de um trabalho na perspectiva discursiva que concebe a
língua na sua relação com a exterioridade, ou seja, como mediação necessária
entre o homem e a realidade que o cerca (ORLANDI, 2015).
Na constituição da AD, a língua, o texto, a interpretação, o sujeito e o sentido,
em suas inter-relações são fundamentais como campo de estudo. A língua para que
tenha sentido, é preciso que tenha história, para que o próprio sentido tenha
sentido, é preciso que haja interpretação, mas os sentidos só têm sentido quando
também se tem um sujeito.
Dentre essas perspectivas, destacamos que a AD considera as condições de
produção, exterioridade, processo histórico social, como constitutivos do discurso.
Não trabalha com a língua enquanto sistema abstrato, mas com a língua no mundo,
com homens expressando-se oralmente e por escrito, falando, produzindo sentidos,
enquanto sujeitos e enquanto membros da sociedade. Trata o discurso como
palavra em movimento, prática de linguagem. A língua deve fazer sentido enquanto
trabalho simbólico, que significa a partir do trabalho social, constitutivo do homem e
da sua história.
Pêcheux (1995) relata que o funcionamento da ideologia em geral como
interpelação dos indivíduos em sujeitos acontece por meio do complexo das
formações ideológicas e dá a cada sujeito a sua realidade, enquanto sistema de
evidências e de significações percebidas-experimentadas (p. 162). A interpelação do
indivíduo em sujeito do seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a
formação discursiva que o domina (que constitui como sujeito).
Para Pêcheux (1995), existem três modalidades de identificação do sujeito: a
1ª - É a superposição que revela uma identificação plena do sujeito do discurso com
153
a forma-sujeito da FD que o afeta, tendo-se aí o discurso do bom sujeito. A 2ª caracteriza o mau sujeito, pois o discurso do sujeito da enunciação se volta contra o
sujeito universal por meio de uma tomada de posição. O sujeito se contra-identifica
com a formação discursiva que lhe é imposta. A 3 ª - além da identificação plena e
da contra-identificação, Pêcheux acrescenta uma terceira modalidade, na qual o
sujeito ao desidentificar-se de uma formação discursiva, desloca sua identificação
para outra formação discursiva. Tendo assim um mau sujeito.
Análise
Analisamos o corpus constituído por discursos produzidos por meio de uma
entrevista direcionada aos professores de língua portuguesa do ensino fundamental
na escola pesquisada sobre o processo de seleção do livro didático.
Pelo viés da teoria discursiva, buscamos compreender o funcionamento
desses discursos, ou seja, realizamos gestos de interpretação, observando as
posições-sujeito ocupadas pelos professores, inscritos numa dada formação
discursiva com a qual se identificam quando participam do processo de seleção do
livro didático.
Organizamos a análise em recortes porque os discursos dos sujeitosprofessores se relacionam com as diferentes posições assumidas pelos próprios
sujeitos, inscritos numa dada formação discursiva, quando respondem ao
questionário. Consideramos que esses discursos indicam os efeitos de sentido
produzidos nas sequências discursivas (SD), que segundo Courtine (1981, p. 25),
são “sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase”.
Reunimos o material de análise e organizamos as sequências discursivas
que demonstram diferentes modos de identificação do sujeito-professor referente a
esse recorte.
SD1: As editoras enviam às escolas exemplares dos livros
didáticos pelos seus representantes para serem escolhidos
pelos professores. Há alguns anos estes exemplares eram
acompanhados de catálogos com algumas informações gerais sobre
os referidos livros. É comum a oferta de brindes por parte dos
representantes aos gestores escolares, como objetos (canetas,
bloquinhos de anotações, etc.) ou a oferta de conteúdos digitais
disponíveis na internet ou em CDs aos professores de algumas
disciplinas. Dependendo da área, a escolha é realizada sem
grandes conflitos. Em algumas áreas, há quase sempre um grupo
que toma a iniciativa e capricha nos argumentos para convencer os
colegas da importância de se escolher este e não aqueles livros.
Nem sempre esses argumentos possuem base na leitura e
análise completa dos livros. (Prof. 1)
SD2: Comecei a trabalhar como professora o ano passado e não
tenho muita experiência. Recente tive o prazer de participar da
escolha, ocorrendo da seguinte forma: os professores de linguagem
olharam, leram, consultaram as editoras e em seguida se reuniram
para escolherem juntos a melhor opção para se trabalhar com
seus alunos, escolhendo aquele que se encaixava melhor com a
proposta pedagógica da instituição. (Prof. 2)
SD3: Os professores da área de linguagem se reúnem para estarem
analisando o livro didático e o que trás de referência. (Prof.3)
Recortamos três sequências discursivas que respondem a pergunta que
154
fizemos aos professores sobre o processo de seleção do Livro didático. Podemos
perceber nas formulações em negrito algumas marcas linguísticas que vamos
analisar nos discursos dos sujeitos professores para observar os efeitos de sentidos
produzidos no processo de seleção do livro didático realizado na escola.
O sujeito-professor, na sd1, faz uma descrição de como as editoras tentam
influenciar no processo de seleção do livro. Afirma que as editoras ofertam brindes
aos gestores, bem como conteúdos digitais disponíveis na internet ou em CDs para
os professores. Desse modo, há uma denúncia, a professora relata que as editoras
querem fazer permuta: oferecem brindes para persuadir a escola a escolher os
livros da empresa. O capitalismo funcionando, o mercado se impondo na seleção
dos livros didáticos. Notamos que a professora faz inicialmente uma descrição do
processo e a seguir relata que a “escolha” quase sempre é realizada sem grandes
conflitos entre os docentes das áreas. No entanto, afirma que há situações em que
alguns grupos influenciam a escolha com argumentos fortes para convencer os
colegas da importância da escolha de um e não outro livro.
Nessa sequência discursiva, as marcas linguísticas “dependendo da área”;
“algumas áreas”; “um grupo” que poderia significar o trabalho feito em conjunto, tal
como prescreve o Guia do PNLD, toma outra direção. A professora se posiciona de
modo diferente apontando uma falha no processo. O pronome indefinido “algumas”
produz um efeito de sentido de negação ou dúvida no processo de seleção, ou seja,
outros “escolheram” o livro. Na formulação “escolher este ou aquele livro, nem
sempre esses argumentos possuem base na leitura e análise completa dos livros”, o
sujeito-professor dá a entender que discorda da forma como a “escolha” é feita,
sugerindo que deveriam se pautar na leitura e análise do livro. Quando emprega a
expressão “nem sempre”, o sujeito-professor deixa em suspenso em seu argumento
que a seleção possui pouca leitura para fundamentar a escolha do livro. Há uma
indeterminação quando o sujeito professor afirma que: “em algumas áreas, há
quase sempre um grupo que toma a iniciativa”. Ele participa da seleção, no entanto,
faz comentários sobre outras áreas, e não da área de linguagens da qual faz parte.
Compreendemos, conforme a sd1, que a escolha pode ocorrer pautando-se
na “oferta de brindes, por parte dos representantes, aos gestores escolares, como
objetos (canetas, bloquinhos de anotações, etc.)” ou na “oferta de conteúdos digitais
disponíveis na internet ou em CDs aos professores de algumas disciplinas”. Nesse
funcionamento, há um movimento de resistência. Se não optar pelo livro que a
maioria dos professores escolheu, se ela e os demais colegas escolherem outra
coleção, ainda assim, essa ação legitima a política do Estado, pois a “escolha” será
das obras selecionadas pelo PNLD.
Na formulação, da sd1, “editoras enviam às escolas exemplares dos livros
didáticos pelos seus representantes para serem escolhidos pelos professores”,
observamos que a professora faz uma crítica às editoras porque a seleção dever ser
feita com a utilização do Guia, no entanto, as editoras enviam as coleções
aprovadas aos docentes como estratégia de divulgação. O mercado editorial exige
ser conhecido para ser consumido/vendido. No entanto, conforme a Portaria
Normativa nº 7, de 05 de abril de 2007, que dispõe sobre as normas de conduta no
âmbito da execução dos Programas do Livro, no artigo 3º, parágrafo 3º, constituemse proibições aos Titulares de Direitos Autorais e seus representantes “I – Oferecer
vantagens de qualquer espécie a pessoas ou instituições vinculadas ao processo de
escolha, no âmbito dos Programas do Livro, a qualquer tempo, como contrapartida à
escolha de livros ou materiais de sua titularidade;”. As editoras e/ou seus
representantes, imersos na dinâmica do comércio, contrariamente à Lei oferece
brindes visando ao lucro com a venda das coleções.
Embora teça uma crítica ao modo como as editoras tentam influenciar os
155
professores no processo de “escolha” de obras pré-selecionadas pelo Estado, pois,
o MEC/PNLD já fez a pré-seleção, e qualquer que seja a coleção adotada, todas
passaram pela aprovação do Estado, posiciona-se favorável a “uma leitura e análise
completa dos livros”. A “leitura e análise” deverão ocorrer das obras enviadas para a
escola pelas editoras. O Estado disponibiliza para os professores o Guia com as
resenhas das coleções aprovadas para a seleção. Nesse discurso a professora
aponta como falha no processo de seleção, o fato de os professores não ter o livrearbítrio na seleção do livro para desenvolver as práticas pedagógicas. Nesse
processo, o professor uma vez interpelado pela ideologia do Estado, seleciona uma
coleção dentre as obras apontadas pelo Programa Nacional do Livro Didático, mas
pode trabalhar com o livro de forma diferenciada na sala de aula.
Na sd2, o sujeito-professor posiciona-se diferente do discurso da sd1, afirma
que é da área de linguagem. A professora se identifica com as políticas públicas do
Estado, que determina as normas para a realização da seleção, “recente tive o
prazer de participar da escolha”. Entendemos que o sujeito-professor está inscrito
numa formação discursiva específica, singular em relação aos demais professores,
pois considera um prazer participar de um processo em que os docentes fazem uma
“escolha” de obras previamente selecionadas pelo Estado.
O sujeito-professor afirma que durante o processo as obras selecionadas
foram as que apresentam “a melhor opção” para os alunos e “que se encaixava
melhor com a proposta pedagógica da instituição”. Essas formulações produzem
efeito de sentido de que o livro didático escolhido é a melhor opção entre tantos
outros apresentados. Segundo Pfeiffer (2003, p. 95), o livro didático “assume as
vestes do discurso científico da verdade unívoca” para o professor inscrito numa
formação discursiva que incorpora o já-dito nas políticas públicas em funcionamento
que regulamentam quais instrumentos linguísticos podem ser utilizados no processo
ensino-aprendizagem.
O discurso para Orlandi (2015), concordando com Pêcheux (1969), mais do
que transmissão (mensagem) é efeito de sentidos entre locutores
Dizer que o discurso é efeito de sentidos entre locutores significa
deslocar a análise de discurso do terreno da linguagem como
instrumento de comunicação... a propósito de um referente e
baseando-se em um código que seria a língua, o outro responde e
teríamos aí o circuito da comunicação. Não há essa relação linear
entre enunciador e destinatário. Ambos estão sempre já tocados
pelo simbólico... efeitos que resultam da relação de sujeitos
simbólicos que participam do discurso, dentro de circunstâncias
dadas. Os efeitos se dão porque são sujeitos dentro de certas
circunstâncias e afetados pelas suas memórias discursivas.
(ORLANDI, 2015, p. 17)
Assim, os discursos são mais que a relação entre locutores, relação como
estímulo e resposta, transmissão (mensagem). Para a análise de discurso, o
discurso é efeito de sentido entre locutores que está além da análise linguística.
Desse modo, para fazer análise é necessário compreendermos o sujeito e a
situação para relacionar o discurso com sua condição de produção, sua
exterioridade.
Podemos observar na sd3, que o sujeito-professor se posiciona que é da
área de linguagem e se identifica com os discursos que circulam na escola sobre as
propostas apresentadas no livro didático, pois faz a seleção “analisando o livro
didático e o que trás de referência” e se inscreve na mesma formação discursiva
dos autores do livro didático que foi escolhido, ou seja, concorda com o discurso dos
156
autores, porque são afetados pelas suas memórias discursivas. Conforme Orlandi
(2015, p. 52), “Ao invés de se fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos
lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em que sua memória não
reverbera. Estaciona. Só repete”.
Sobre a repetição, Orlandi (1996, p.70) distingue três tipos: a repetição
empírica ou mnemônica; a repetição formal que consiste na técnica de produzir
frases; e a repetição histórica “que inscreve o dizer no repetível enquanto memória
constitutiva”. (Idem).
Notamos nessa sequência discursiva que o discurso do professor é
atravessado pelo discurso do Estado, que impõe um processo de seleção do livro
didático, com apresentação de resenhas dos livros pré-selecionados. Interdita,
direciona apontando para um caminho, só uma possibilidade de o professor
selecionar livros que não sejam os já pré-selecionados pelo Estado, ou seja, o
professor reproduz o discurso disponível nas políticas, um discurso engessado,
configurando-se numa repetição mnemônica, que só repete o já-dito sobre processo
ou só diz aquilo que imagina que querem que ele diga.
Analisamos as marcas linguísticas nos discursos dos professores para
entendermos os efeitos de sentido e as formações discursivas, nas quais se
inscrevem seus discursos e pudemos observar que ao fazer a descrição do
processo de seleção do livro didático, os professores se inscrevem em diferentes
posição-sujeito: na sd1, o sujeito-professor aponta uma falha no processo de
seleção do livro didático, marcando um certo distanciamento da prática que se
realiza; na sd2, o sujeito-professor, interpelado pela ideologia, se identifica com as
políticas de Estado e concorda com o modo como escolhem o livro, ou seja, ele se
inclui no processo, defendendo a possibilidade de escolherem “juntos” a melhor
opção; na sd3, o sujeito-professor descreve que o processo se realiza tal como
prescreve a proposta do Estado, corroborando com o dizer da sd2, a ausência de
marcas linguísticas que marquem se está ou não de acordo com o processo
também significam, pois as condições de produção se dão numa relação em que as
políticas públicas determinam o que pode e deve ser dito.
Considerações
Neste trabalho, observamos nos discursos as formas de identificação dos
docentes de língua portuguesa. O professor da educação básica identifica-se com
as políticas públicas de ensino no processo de escolha do livro didático, nesse
processo, faz uma simulação, uma pseudo-seleção do livro didático, pois o Estado
disponibiliza as resenhas das coleções com uma lista de obras selecionadas e
aprovadas para que os professores adotem. Ou seja, o processo de seleção do livro
didático reflete a ideologia do Estado. No entanto, o professor pode resistir e
diversificar o material em sua prática pedagógica e desconstruir a imagem de
professor como incapaz de produzir conhecimento. Ressignificar sua prática
pedagógica e fortalecer os espaços de resistência, que Pfeiffer (1995, p.31) define
como “movimento de resistência e de afirmação de identidade”. Nessa resistência,
pode minimizar os efeitos de sentidos do Estado na seleção do livro didático.
No decorrer da pesquisa, notamos por meio dos discursos dos sujeitos que
no processo de seleção do livro didático o professor apenas atende ao que as
políticas públicas estabelecem. Analisamos que os sujeitos professores são
capturados e marcam suas posições em relação ao papel do Estado: identificam-se,
ora plenamente, ora parcial. Há um discurso engessado que não possibilita ao
professor romper o ritual de “escolha” do livro didático. As políticas públicas de
ensino através da distribuição gratuita do livro didático institucionalizaram um
157
processo rígido, fechado, estabelecendo ações para as instituições envolvidas: as
editoras, as universidades e as escolas.
O livro didático deve ser um meio, dentre os muitos, de que os professores
dispõem para aprimorar o trabalho pedagógico. Ele pode desenvolver caminhos
pelo fato de o sujeito não ser o mesmo e a língua não ser transparente. Dessa
maneira, para que haja troca de sentidos e de experiências nas aulas, é preciso que
o aluno e o professor estabeleçam relações entre o conteúdo abordado no livro e o
espaço histórico-social de sua produção, bem como as práticas sociais da
humanidade.
Referências
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FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O carácter singular da língua na análise do
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158
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http://periodicos.bc.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8636984. Acesso em:
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2007a. Disponível em:www.ucb.br/sites/100/165/ArtigoseComunica coes. Acesso
em: 11 de fev. de 2011.
159
OS DESAFIOS DA MULHER ASSURINÍ
PERANTE A VIOLENCIA DOMESTICA NA
ALDEIA INDÍGENA TROCARÁ, MUNICÍPIO
DE TUCURUÍ/PA
BÁRBARA DE NAZARÉ PANTOJA RIBEIRO; BENEDITA CELESTE DE
MORAES PINTO
PPGEDUC-UFPA/Cametá
Universidade Federal do Pará
Tv. Padre Antônio Franco, 2617 - Matinha, Cametá - PA, 68400-000
barbaracameta@gmail.com, celpinto18@gmail.com
Resumo. O presente trabalho tem como objetivo verificar os desafios
encontrados pelas mulheres indígenas Assuriní diante dos altos índices
de violência doméstica presente na aldeia Trocará, Município de
Tucuruí/Pará, e como tais mulheres buscam estratégias para diminuir as
agressões sofridas, modificando assim a realidade, que vivenciam. Para
atingir os objetivos propostos, buscamos apoio teórico-metodológico em
autores que trabalham a questão indígena e os diversos problemas que
estas populações enfrentam em decorrência da violência doméstica em
suas aldeias, entre os quais destaca-se, VERDUM (2008) KAXUYANA E
SILVA (2008), entre outros. Da mesma forma, realizou pesquisa de
campo na referida aldeia, quando, através das técnicas da observação
participante e da realização de entrevistas se estabeleceu relação mais
estreita com os habitantes da aldeia Trocará. Dados preliminares da
pesquisa apontaram altos índices de alcoolismo entre os indígenas
Assuriní, sendo um dos grandes responsável pelas crescentes violências
domesticas que as mulheres estão sendo submetidas na sua aldeia, haja
vista que os homens sob o efeito do álcool tornam-se muito agressivos,
fato gerador de atos de violência. Contudo, também se observou que as
mulheres Assuriní não se acomodam com a situação, desenvolvem
estratégias para se desvencilharem dos ataques de violência dos
homens, como, por exemplo, amarram os agressores embriagados até
recobrar a consciência, assim como, se organizam através de reuniões
para ajudarem umas às outras, através da exposição dos problemas
enfrentados, conversas, conselhos para como agir e auxílios diversos.
Palavras-Chave. Violência doméstica, Mulher Assuriní, Poder feminino
Abstract. The present study aims to verify the challenges faced by
indigenous Assuriní women in the face of the high rates of domestic
violence in the village of Trocará, in the municipality of Tucuruí / Pará, and
how these women seek strategies to reduce the aggression suffered, thus
modifying the reality that experience. In order to reach the proposed
objectives, we seek theoretical and methodological support in authors
who work on the indigenous issue and the various problems that these
populations face as a result of domestic violence in their villages, among
which we highlight, VERDUM (2008) KAXUYANA AND SILVA 2008),
among others. In the same way, he carried out field research in that
160
village, when, through the techniques of participant observation and
interviewing, a closer relationship was established with the inhabitants of
the Trocará village. Preliminary data from the survey showed high levels
of alcoholism among the Assuriní Indians, one of the main ones being
responsible for the increasing domestic violence that women are being
subjected to in their village, given that men under the influence of alcohol
become very aggressive, fact generator of acts of violence. However, it
has also been observed that the Assuriní women do not settle for the
situation, they develop strategies to get rid of the attacks of violence of the
men, for example, tie the drunk aggressors until regain the
consciousness, as well as, they organize themselves by means of
meetings to help each other by exposing the problems they face,
conversations, advice on how to act, and various aids.
Key words. Domestic Violence, Assuriní, Female Powe.
1. Consideraçoes iniciais
Muitas são as batalhas travadas pela mulher indígena, mas aos poucos estão
ganhando sua autonomia por meio de associações criadas no seio de suas
comunidades, para que assim tenham participação atuante diante da sociedade não
indígena e no interior de suas aldeias, muitas etnias, pela perseverança de suas
mulheres e com suas associações, estão constantemente saindo de suas
comunidades em busca de informações e apoio para lutar contra atos de violência
que infligem o cotidiano das aldeias indígenas de várias regiões do país,
aterrorizando o dia a dia de mães e crianças indígenas.
A violência doméstica é uma realidade presente, infelizmente no mundo todo,
e mesmo que haja uma lei de combate vigorando no país, a Lei Maria da Penha 59,
ainda é muito grande os índices da violência: agressões físicas, psicológicas,
verbais, que subjugam e inferiorizam as mulheres, as humilham e as agridem,
deixando marcas profundas não apenas na pele, mas também na alma.
Há uma constante batalha para a redução e finalização da violência
doméstica, mas muito ainda deve ser feito, pois só no Brasil, a cada uma 1h30, uma
mulher é morta em decorrência da violência doméstica, que parte na maioria das
vezes de seus próprios companheiros.
Esse problema também é evidenciado nas diferentes comunidades indígenas
brasileiras, em que os índices significativos de violência sofrida pelas mulheres, por
parte de seus companheiros, maridos e filhos, são significativos, conforme
Kaxuyana e Silva (2008).
Tal questão é mais intensa, principalmente, entre aqueles que mantêm um
contato mais estreito com a sociedade não indígena, não que isso também não
ocorra entre os povos que têm uma interação menor, mas se percebe que o contato
maior dos homens indígenas com os não indígenas tem impactado fortemente, haja
vista o machismo, grande causador das formas de violência contra a mulher. Além
disso, o alcoolismo, que provoca grande desestruturação nas aldeias, gera violência
doméstica, vitimando principalmente as mulheres e as crianças indígenas. Fato
59
A Lei n. 11.340, ou Lei Maria da Penha, foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 7 de agosto de 2006, entrando em vigor no dia 22 de setembro de 2006.
Maria da Penha Maia Fernandes, que nomeia a lei, foi vítima de violência doméstica durante seus 23 anos de
casada. Em 1983, o marido por duas vezes, tentou assassiná-la. Na primeira vez, com arma de fogo, deixandoa paraplégica, e na segunda, por eletrocussão e afogamento. Após essa tentativa de homicídio, ela tomou
coragem e o denunciou, mas ele só foi punido depois de 19 anos de julgamento e ficou apenas dois anos em
cárcere no regime fechado. Fonte: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Maria_da_Penha>.
161
presente na comunidade indígena Assuriní do Trocará, localizada no município de
Tucuruí no sudeste paraense onde esse estudo centra-se. Pois em decorrência da
pesquisa de campo realizada em outubro de 2016, no qual foi realizada observação
in loco e entrevistas com os moradores sejam homens, mulheres, crianças e idosos,
verificou-se que a violência doméstica é um problema que vem assolando de forma
ativa essa população, provocando medo, instabilidade e estratégias para que haja
uma diminuição desse problema na aldeia Trocará.
2. Violência
doméstica na aldeia trocará
São diversos os fatores que levam a agressões sofridas pelas mulheres
Assuriní, como as brigas conjugais, conflitos entre sogros, genros e noras ou
mesmo entre pais e filhos, ocasionando com isso as formas de violência que não
apenas se restringem às verbais, mas extrapolam para a física, como se percebe na
fala da senhora Passavia Assuriní:
A minha sogra não gostava muito de mim, só que eu não ficava
contra ela, não brigava com ela. Mas se ela não gostava de mim e
eu falava pro meu marido, ele batia na mãe dele, não gostava que
brigasse comigo e batia nela. Aí eu falei pra ele: - Olha não pode
bater na mãe, não, se for assim a gente pode separar. Aí ele falou
não, aí ficou nisso, mãe dele foi ficou doente, aí quando ele foi ficou,
aí ele batia na mãe dele, aí. Como eu falo pro filho dele, olha meu
filho, teu pai batia muito na tua avó por causa de mim, aí ele pegou
falou assim: - Tá bom, mãe. Aí falei: - Mas não é bom bater na mãe,
não, tem que respeitar mãe da gente, viu? Então eu procuro tá
conversando com ele pra num fazer o que o pai dele fazia né, pra
num fazer comigo, com a mulher ou filha dele né? (Senhora
Passavia Assuriní, entrevista realizada em outubro de 2015).
Assim sendo, podemos perceber como as agressões físicas sofridas pelas
mulheres indígenas da Reserva Trocará estão relacionadas a diversos fatores,
como o exposto acima, ocasionado por conflitos familiares em que, se a situação
fosse o inverso, e a nora, que tivesse algum tipo de mal-estar com sua sogra,
possivelmente, a agressão seria acometida a ela, como se devesse punir aquela
que gera o conflito na família. Mas percebe-se que as mulheres buscam em meio a
esse problema vivenciado por elas, aconselhar seus filhos, netos e maridos sobre
quanto a violência é um problema que pode destruir ainda mais os laços familiares
e, assim, intencionam em meio aos diferentes episódios, acabar com as agressões
sofridas por elas, evitando, com isso, danos ainda maiores no futuro.
Porém, em meio aos diferentes motivos que levam aos abusos sofridos pelas
mulheres Assuriní, o principal e mais violento se desenvolve pelo consumo de
bebidas alcoólicas e usos de drogas, como a maconha, que os Assuriní não tinham
conhecimento prévio.
Na comunidade Assuriní, todos os habitantes são livres para andar, brincar e
viver em qualquer ambiente. As mães deixam seus filhos sem preocupação, pois
sabem que um cuida do outro e quando sentem alguma necessidade, como se
alimentar, por exemplo, a criança procurará por conta própria sua casa, no entanto,
quando há alguém bêbado na aldeia a preocupação é inevitável, pois sabem que
diante dos efeitos do álcool, os indígenas se tornam violentos e agressivos.
Segundo relatos dos Assuriní, o álcool é o maior causador da violência
doméstica, fazendo que os indígenas fiquem irreconhecíveis e passem a atacar não
apenas seus familiares, mas qualquer pessoa que estiver em seu caminho, fato
162
presenciado ainda no decorrer de minha primeira pesquisa de campo, em outubro
de 2015, pois em um momento de reunião ao redor do campo de futebol foi
anunciado que um homem bêbado se aproximava, então todos ficaram em alerta,
as mães pegaram seus filhos, pessoas se esconderam e todos alertando para sair
de perto o mais rápido possível, pois em qualquer gesto, ele poderia agredir
qualquer pessoa.
Diante disto, percebe-se o quanto a presença de bebidas alcoólicas assusta
a população Assuriní, e o quanto esse vício é sentido por toda a comunidade
principalmente, pelos familiares da pessoa, como mulheres, pais e filhos, já que
também, a partir do efeito das bebidas, é que a violência é sentida dentro e fora de
casa, como pode ser observado no relato de Puraké Assuriní:
Ontem mesmo a mulher teve que correr pra se salvar do marido, ela
e as criança, porque aqui há muito consumo de bebida e maconha,
que eles compram lá na cidade. Isso que é ruim porque maconha a
gente não conhece, eu já peguei dois pacote de maconha de dois
índio daqui, ai pequei e levei pro delegado e perguntei o que era
isso, ele me disse que era maconha (Puraké Assurini, liderança
indígena, entrevista realizada em outubro de 2015).
Percebe-se que a violência se agrava com a utilização pelos Assuriní de
drogas que vem de fora da comunidade, mesmo que as lideranças busquem formas
de diminuir o consumo de bebidas e drogas ilícitas dentro da aldeia, isso ainda é o
fator que mais implica em agressões no seio familiar. No qual muitas vezes são
causados danos irreparáveis, pois de acordo com estado que os homens ficam, as
agressões são variadas.
Já houve caso de filho cortar a mão do pai com terçado, por ter lhe chamado
a atenção, mas as maiores vítimas são as mulheres, mães e crianças, muitos
maridos correm atrás delas com faca ou espingarda, e estas têm que se esconder
em casas de parentes e vizinhos para se livrar das agressões. Os pretextos para
ocorrer a violência são os mais variados possíveis, desde falar algo que os
desagrade ou mesmo por ciúme, como é evidenciado na fala de Sunitá Assuriní:
Assim meu tio ele bebia muito né? Ele batia na minha irmã, eu era mais
menorzinho, ele batia na minha irmã, fica com ciúme dela, chamava o
nome de outro homem pra ela. Bebia, batia nela, jogava e empurrava ela
na parede, batia nela, ele mesmo matou um filho dele na barriga da minha
irmã. Ele deu um murro na barriga da minha irmã e ela desmaiou e perdeu
o bebê dela. As criança ficam com medo, minhas sobrinhas tudinho com
medo vão arrudiar ao redor da casa se esconder na casa dos outro
(Sunitá Assuriní, morador da aldeia, entrevista realizada em outubro de
2015).
Como pode ser verificado, as agressões são tão violentas que põem em risco
a vida de todos, mesmo daqueles que não vieram ao mundo, provocando medo,
pavor e revolta, a partir daí, as crianças que assistem, crescem revoltados e quando
já tem idade suficiente para enfrentar alguém, enfrentam e lutam contra os
agressores ou mesmo reproduzem os mesmos fatos que presenciavam quando
criança, surgindo a partir daí, mais violência nas famílias. Assim também como o
índice de violência se perpetua no seio familiar, provocando mais sofrimento e
preocupação, pois mesmo que as mulheres sofram as agressões, elas se
preocupam com os companheiros que agem de forma descontrolada, como fica
evidente na fala de Sunitá Assuriní.
163
Meu irmão é casado, ele é violento, ele, ele pega a espingarda, ele pega a
moto e vai embora com a moto não tá nem aí pra onde ele vai, a mulher
fica preocupada, tem dia que elas lutam com ele lá pra pegar a chave dele
da moto, e ele bate nela, empurra ela. É briga violenta, quando eles
brigam é murro, é chute, é tapa, não tão nem aí, se está pegando em
outra pessoa (Sunitá Assuriní, morador da aldeia Trocará, entrevistas
realizada em outubro de 2015).
Muitos, além de bater nas mulheres, destroem os bens de suas casas, como
móveis, eletrodomésticos e eletroeletrônicos. As brigas se restringem, na maior
parte das vezes, apenas as famílias, principalmente, entre o homem e a mulher,
mas se as mulheres pedirem ajuda ou alguém diferente adentrar no conflito, aí toda
a família e até mesmo a comunidade irá se envolver, como foi exposto em
entrevistas pelos moradores. Sem falar que os efeitos desses conflitos e agressões
são terríveis, pois as marcas deixadas são violentas e profundas, ainda mais que,
no momento da briga, usam todos os instrumentos e agressões possíveis, como
facões, facas, espingardas, se ferem, se cortam, causando, com isso, uma briga
familiar que abala as relações dentro da aldeia e amedronta cada vez mais as
crianças e mulheres que são as que mais sofrem nesses acontecimentos.
O efeito do álcool além de pôr em risco as relações da família, também causa
perigo para o próprio indígena que o consome, pois houve caso na aldeia, no qual
um indígena teve a vida tirada em decorrência das consequências do alcoolismo:
ele bebeu brigou com a esposa, saiu da comunidade e foi para a cidade de Tucuruí,
onde consumiu mais bebida e ficou transtornado, provocou não indígenas, pegando
suas bebidas que estavam em cima da mesa, e foi morto por eles, sendo que
jogaram seu corpo em um campo de um bairro da cidade de Tucuruí. Os Assuriní só
souberam no outro dia quando foram avisados que ele estava morto.
Sendo assim, diante do exposto, verifica-se o quanto o consumo de bebidas
alcoólicas e o uso de drogas ilícitas refletem negativamente dentro da aldeia
Trocará, lesionando a integridade de familiares, principalmente, os mais próximos,
que além de sofrerem com a violência são os que mais sentem emocionalmente a
cada gesto de horror e violência.
3. Considerações finais
Mas diante de tais problemáticas, é importante mencionar que muitas coisas
estão sendo feitas para que haja a diminuição no alto índice de alcoolismo nesta
comunidade. Assim como a respeito à Lei Maria da Penha, que muito ainda deve
ser feito no que diz respeito a beneficiar e amparar as populações indígenas, sendo
necessário, primeiramente, que se passe por uma reformulação visualizando as
especificidades desses povos. Da mesma forma, é preciso que sejam implantados
programas e ações destinadas as mulheres indígenas, como palestras que
evidenciem para que serve a lei e no que pode ajudá-las, proporcionando, assim,
maior esclarecimento sobre o assunto, uma vez que, muitas desconhecem a Lei
Maria da Penha e não tem noção que ela ampara vítimas de violência doméstica.
Além do mais, as aldeias ficam distantes das delegacias e postos policiais
para fazer as denúncias, fazendo com que as mulheres pensem se realmente
devem denunciar, pois além das agressões e violência, está em jogo os sentimentos
que elas têm por seus companheiros e os possíveis danos que isso pode ocasionar.
Sobre tal questão, Kaxuyana e Silva (2008) afirmam que mesmo as mulheres
indígenas admitindo que são atingidas pela violência doméstica, ainda questionam
os efeitos e consequências da lei dentro de suas comunidades, pois além de não
ser suficientemente bem-aplicada junto a elas, ainda questionam os impactos que
164
causará a seus maridos e filhos, afinal, tudo ainda é muito novo para as mulheres
indígenas em relação a isso.
Na maior parte das vezes, elas pensam se os homens terão que ficar presos
nas cidades pelo abuso que cometeram, e aí questionam os impactos de tal ato:
quem ajudará nas realizações das atividades familiares, como caça e pesca, nas
roças ou dentro de casa, já que no dia a dia os trabalhos são partilhados? Tudo isso
gera dúvidas e acaba silenciando estas mulheres, que precisam de maior
informação para poderem decidir se tais instrumentos servem para elas ou preferem
resolver a situação da violência de acordo com as limitações e termos estabelecidos
por seus povos (KAXUYANA; SILVA, 2008).
Isso também ocorre, de acordo como Verdum (2008), porque as mulheres
indígenas têm poucas oportunidades e falta de informações para denunciar seus
agressores, e quando fazem tais denúncias ainda sofrem com a incompreensão e
pressão no seu ambiente comunitário, fato que dificulta ainda mais que sejam
amparadas por esses procedimentos jurídicos (VERDUM, 2008).
Desta forma, é perceptível que, além da necessidade de possuírem maiores
informações, é preciso também uma reformulação em torno da Lei Maria da Penha,
pois mesmo que, de acordo com seus princípios, ela busque amparar todas as
mulheres, independente de etnia ou religião, ainda tem muito a se adequar no que
diz respeito ao princípio da autodeterminação dos povos indígenas, como forma de
garantir que essas mulheres sejam subsidiadas ao enfrentamento da violência de
acordo com os fundamentos dos direitos humanos, já que tal problema deve ser
tratado para além das relações culturais e religiosas, mas sim no bojo dos direitos
das mulheres indígenas em conseguir viver livres de violência.
Como a Lei ainda apresenta falhas em sua aplicabilidade, as mulheres
Assuriní por meio de estratégias, lutas e espírito de liderança encontram maneiras
para conseguir diminuir as agressões sofridas por elas em decorrência da utilização
de álcool por seus maridos e companheiros dentro da aldeia.
Para isso elas buscam conversar com seus esposos e filhos para que
possam parar de beber e, consequentemente, não agir com violência em suas
casas, percebe-se também que, nesse momento, os filhos são o elo que serve para
conscientizar os pais a pararem com o álcool em nome da família, pois dizem para
pensar neles e o quanto o álcool está provocando seu sofrimento. Elas também
agem em casos que eles não ouvem suas argumentações e continuam praticando
atos violentos, prendendo e amarrando-os como forma de detê-los enquanto durar o
efeito do álcool. Recentemente, na comunidade, foi elaborado e posto em prática o
projeto Bem Viver, contando com o apoio de psicólogos, assistente social e demais
profissionais para conscientizar os habitantes sobre as consequências que o
alcoolismo pode causar.
Neste sentido, evidencia-se que o índice de alcoolismo é um problema que
afeta em diversos sentidos a comunidade Assuriní, principalmente, as mulheres e
crianças, sejam esposas, mães e filhas, que sofrem com a violência atribuída por
aqueles que o consomem, mas estão atuantes buscando melhorias e maneiras para
acabar com esse problema e poderem viver em harmonia em meio a seu seio
familiar.
4. Referencias
KAXUYANA, V. P. P.; SILVA, S. E. S. A lei Maria da Penha e as mulheres
indígenas. In: VERDUM, R. (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas
públicas. Brasília: Inesc, 2008.
165
VERDUM, R. (Org.). Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília:
Inesc, 2008.
166
A SIGNIFICAÇÃO DA MULHER AGREDIDA:
ANÁLISE DE MANCHETES DO G1 DE MG
BÁRBARA DE OLIVEIRA SILVA
Curso de Letras
FEPI - Centro Universitário de Itajubá
Avenida Doutor Antônio Braga Filho, 687, Varginha, Itajubá – MG, 37.5001-002
barbaraoliveira.lts@gmail.com
Resumo. Neste trabalho, analisa-se, pelo domínio da Análise de
Discurso, como a mulher agredida é significada em uma manchete de um
site de notícias. Toma-se como corpus uma manchete que trata de
agressão à mulher, formulada no site de notícias G1, mantido pela Rede
Globo, que é uma empresa de comunicação de relevância no país. Essa
formulação ocorreu dentro do estado de Minas Gerais. Nela analisa-se as
relações de sentido produzidas pela formulação, considerando os sujeitos
envolvidos e os discursos que a atravessam. Por meio dessa análise,
pensa-se no modo como a mulher agredida é significada pela (e na)
manchete; Significação que pode ser estendida aos sentidos circulantes
pela (e na) sociedade em geral.
Palavras-Chave. Análise de Discurso. Mulher. Agressão. Manchetes.
Significação.
Resumo em segunda língua. Within the framework of the French
Discourse Analysis, this work aims at comprehending how a woman who
is a victim of physical assault is signified in the headline of a news
website. A corpus is taken as a headline that deals with aggression
against women, formulated in the G1 news site, maintained by Rede
Globo, which is a communication company of relevance in the country.
This formulation occurred within the state of Minas Gerais. It analyzes the
relations of meaning produced by the formulation, considering the
subjects involved and the discourses that cross it. Through this analysis,
one thinks of how the battered woman is signified by the (and the)
headline; Meaning that can be extended to the circulating senses by (and
in) society in general.
Palavras-Chave na segunda-língua escolhida. Discourse Analysis.
Woman. Aggression. Headlines. Signification.
1.Introdução
A mulher, a posição ocupada e as dificuldades enfrentadas. Discussões
acerca desse assunto têm conquistado espaço em diversas áreas, inclusive no
âmbito científico. Com a ascensão das mulheres no setor profissional e pessoal
criou-se uma imagem de que a almejada igualdade, buscada por séculos,
finalmente está sendo conquistada.
Ainda que a atuação feminina venha adquirindo espaço em diversas áreas,
casos de violência contra a mulher parecem aumentar. Em uma sociedade na qual
se parece ter tanta liberdade individual, a violência continua atingindo não somente
mulheres que se submetem ao controle do marido como homem da casa e
fornecedor de todo sustento, mas também algumas mulheres independentes, bemsucedidas.
167
Pensando em contribuir para os estudos de Análise de Discurso e para uma
maior visibilidade da causa feminista, é que se deu a escolha desse tema de
pesquisa. A escolha do corpus, por sua vez, ocorreu a partir de uma publicação do
site G1 a respeito dos dez anos de Lei Maria da Penha, em que foram reunidas
mais de 4 mil manchetes que tratam de violência contra a mulher em todo território
nacional. Dessas 4 mil notícias, dez foram selecionadas como corpus de análise,
entretanto, apenas uma foi escolhida para demonstrar por meio deste a pesquisa
que foi feita.
Com todo esse histórico de luta contra a violência doméstica que se
intensificou em todo país a partir da sanção da Lei Maria da Penha, este trabalho
tem como objetivo pensar sobre a significação da mulher em uma manchete que
trata dessa violência. De que forma essa mulher agredida é significada nessa (e por
essa) manchete?
Assim, tomando a significação da mulher como o centro da discussão, a
análise ocorrerá no domínio da Análise de Discurso (de linha francesa), cujo maior
expoente é Michel Pêcheux. Também serão utilizados como aporte teórico o
trabalho de Eni P. Orlandi, que avança continuamente as noções nesse campo.
2. Um olhar discursivo para a significação
A noção de condições de produção
Para facilitar o entendimento sobre a noção de condições de produção, é
necessário entender que no alicerce dos processos discursivos, há uma
materialidade histórica, constituída pelas relações sociais onde sujeitos históricos
atuam com a formulação dos dizeres, provocando transformações nas relações de
sentidos e gerando a prática discursiva. (FONSECA, 2010, p. 2). Portanto, não se
deve entender as condições de produção como exteriores a uma formulação, mas
determinantes delas.
Elas podem ser consideradas de dois modos: sendo elas “em sentido estrito,
é considerado o contexto imediato, e em sentido amplo, considera-se o contexto
sócio histórico e ideológico”. (ORLANDI, 2015, p. 28). Em sentido estrito, considerase a produção no momento em que ela se materializa; em sentido amplo, considerase a memória, todo sentido anterior e que de certa forma atravessa aquele discurso.
Observando o corpus de análise desta pesquisa, percebe-se que as
condições de produção em sentido amplo são aquelas que envolvem e afetam a
formulação de forma geral, ampla, histórica; é a memória que atravessa a
formulação. Ou seja, primeiramente em um jornal regional são esperados relatos de
acontecimentos cotidianos dos locais onde este circula. Sendo de circulação virtual,
esse jornal alcança um maior público e, assim, as notícias não são necessariamente
locais. É também considerada a imparcialidade esperada do jornal em relação às
notícias publicadas por ele. E, por fim, considera-se que todo relato de uma
manchete é tomado como verídico, uma vez que já está estabilizado na memória
discursiva que um jornal não pode relatar falsas notícias.
Esses apontamentos feitos em relação às condições de produção em sentido
amplo nas manchetes podem ser vistos não somente nesse corpus de análise como
em toda e qualquer manchete de jornal produzida, sendo ele de materialidade virtual
ou não. Pode-se pensar que já circulam ideias sobre uma manchete, que
antecedem uma formulação e atravessam o gesto de autoria, pois existe “o já
esperado” dessa formulação.
Em sentido estrito, que é o contexto imediato, temos a publicação do relato,
que no caso do corpus dessa pesquisa será o de uma agressão. Esse relato é feito
por determinado jornalista que é quem organiza, enquanto autor, os sentidos
168
ocorridos. Pode-se dizer que esse relato não é totalmente inédito. Para Pêcheux, a
relação de sentidos não tem um início, pois ela se constitui sempre de um discurso
antecedente. (ELICHIRIGOITY, 2007, p.8). Neste caso, o autor é visto como um
organizador, ele relaciona sentidos que já circulavam e dispõe em uma formulação
dele, sendo “a organização” inédita.
Considerando, então, “refletindo como a linguagem está materializada na
ideologia e como a ideologia se manifesta na língua” (ORLANDI, 2015, p. 16), que é
constitutiva da linguagem, torna-se de suma importância entender as condições de
produção das manchetes para que se busque uma significação da mulher agredida.
Para Medeiros (2008) as condições de produção são tão importantes que se tornam
um fundamento para o analista. Segundo a autora, Courtine (1982) afirma que as
condições de produção, são um recurso para constituição do processo discursivo.
Entretanto, além de compreender a noção de condições de produção, é preciso
também estar atento a outros fatores como a noção de mulher dentro da manchete.
A noção de mulher nas condições de produção das manchetes
Para compreender a análise, é necessário entender também a noção de
mulher nas condições de produção da manchete selecionada como corpus. Buscase, por meio deste trabalho, pensar sobre a significação da mulher na manchete, ou
seja, a forma como ela é representada na formulação.
A formulação em questão trata de uma situação em que a mulher (de modo
amplo) é violentada, agredida pelo marido. Dessa forma, pode-se inferir que essa
mulher se encontra em uma situação vulnerável. Pode-se presumir que essa mulher
está fragilizada devido à agressão sofrida.
Massman e Brasil (2017) dizem, sobre a seleção do corpus de análise, que:
Considerando o exposto, os sentidos que são produzidos em torno
de e sobre a mulher nos recortes selecionados para este estudo,
inscrevem-se em determinadas posições que, por sua vez, projetam
formações discursivas e formações ideológicas relacionadas ao
lugar ocupado por quem fala. Assim, a palavra mulher, quando
empregada nos recortes aqui analisados, retoma aquilo que já foi
dito sobre a mulher por alguém em outras situações e outros
textos/lugares.
Conforme analisam as autoras, a palavra, ao ser empregada em textos da
legislação brasileira, traz o que já foi dito sobre a mulher anteriormente. Esse
movimento do interdiscurso, em que uma palavra/um texto acaba por evocar outros
textos é constitutivo de todo e qualquer discursividade, jurídica ou não. Assim, uma
manchete de agressão contra a mulher retoma outros textos, não somente sobre
violência, mas também aqueles que parecem se significar em um viés oposto.
Os dizeres anteriores sobre a mulher em situação de violência diferem-se
muito de outras formulações que podem ser encontradas em revistas, tanto
virtualmente quanto em bancas de jornal, como em manchetes de revistas de moda,
de produtos de beleza ou de saúde da mulher, nas quais as mulheres são
mostradas com muito glamour, bem vestidas, suas belezas são exaltadas e seus
corpos, evidenciados.
Outra diferença, em relação a outros textos (atravessados por outros
discursos), é que há sempre uma imagem das mulheres envolvidas ou pelo menos
imagens ilustrativas de mulheres felizes e realizadas que somam ao imaginário
situações de prazer, de satisfação. No caso de notícias de agressão ou de qualquer
tipo de violência, quando a imagem existe, é de uma mulher com sinais de agressão
169
ou uma imagem de um momento feliz, mas que é apresentada somente para situar
o leitor sobre quem foi a vítima.
Conforme já dito, neste trabalho busca-se pensar em como ocorre a
significação da mulher agredida, na formulação/manchete do G1. Como será ela,
então, representada na manchete? Quais sentidos atravessam o imaginário do leitor
ao se deparar com uma manchete acerca deste assunto? Questões norteadoras da
análise que será desenvolvida a seguir.
2. A mulher agredida e significada
Figura 1. Mulher é morta em MG.
Fonte: Retirado do site G1 (G1, 2017)
As condições de produção que permitiram a formulação encontram-se, em
sentido amplo, primeiramente no ato de adultério cometido por parte da mulher. A
condenação por tal ato pode ser vista em diversas formações discursivas, por
exemplo, na religiosa e na machista.
Na formação discursiva religiosa, principalmente ao considerarmos os dizeres
de instituições cristãs, o casamento deve ser tratado como uma honra para todos e,
entre o casal, deve ser imaculado. Essa é uma das formulações que circulam na
bíblia, livro que os cristãos têm como de origem divina, como “manual” a ser seguido
para o caminho de Deus. Logo, o ato de adultério é considerado por instituições
religiosas cristãs como um pecado grave diante de Deus por ser uma violação ao
casamento.
Envolvendo ainda alguns princípios da formação discursiva religiosa, mas
com relação a moralidade, com àquilo que é aceitável (ou não) pela sociedade.
Mulheres que se relacionam com mais de um parceiro ou parceira, não são “bem
vistas”, pois está cristalizado na memória discursiva brasileira, seja em formulações
orais de pessoas mais velhas, seja em textos atuais jornalísticos, como
recentemente em publicação da Revista Veja (sobre a primeira-dama Marcela
Temer), que pareceu significar uma mulher de respeito como a que deve estar em
casa a serviço da família e do marido. Essa formação parece ter relação com a
formação discursiva machista, pois também já circula fortemente no interdiscurso
que o homem trai por necessidade física e que a mulher, por existir para servir,
cuidar da casa, do marido e dos filhos, não deve ter esse tipo de postura.
Pensando ainda sobre as condições de produção em sentido amplo, é válido
analisar como o adultério, na formulação da manchete, pôde ser significado como
uma permissão para o ato criminal. Costumava ser comum em tempos antigos que
a honra masculina fosse “lavada” com a morte caso a mulher cometesse adultério.
Então, pode-se entender que essa significação, ainda que passada, continua
atravessando um imaginário na sociedade. Na manchete, o encadeamento dos
fatos “morte após revelação” pode ser filiado a essa memória, pois o que foi dito
pela mulher significou-se como a possível causa de sua morte, mesmo sendo
formulado apenas como um adjunto adverbial de tempo (oracional).
Pensa-se em quais condições permitiram que esse crime fosse cometido
170
(para que pudesse compor a manchete). Entende-se que, se o imaginário da
sociedade ainda é fortemente atravessado por significações machistas, o fato de a
mulher ter engravidado de um relacionamento anterior ao que ela estava não só
permitiu esse acontecimento como agravou o ato adúltero que ela havia cometido.
Nota-se que não há especificação sobre a cidade em que o assassinato
aconteceu, é dito apenas que ele ocorreu no estado de Minas Gerais. Essa falta de
informação sobre o local do crime acontece, geralmente, em casos de crimes
hediondos, quando além de preservar a identidade das vítimas é necessário
preservar a integridade do suspeito. A referência ao estado, nesse caso, também
compreende as condições de produção em sentido estrito. Além disso, a omissão
da cidade ou de mais informações sobre o local pode ter ocorrido devido à extensão
da manchete, já que a causa da morte ocupou grande parte dos caracteres da
formulação.
Retornando, então, à questão da significação da mulher agredida, conclui-se
que na manchete a mulher é significada como esposa, amante e mãe. A inserção da
possível causa da morte indica que o gesto de traição cometido pela mulher está
cristalizado como contrário ao esperado de uma esposa, e que o relacionamento
adúltero originou um filho, o que, talvez, para o marido tenha motivado ainda mais
sua ação violenta.
Outras informações poderiam ter sido filiadas para a organização da
manchete: cidade, arma, idade da vítima; ou até mesmo a formulação poderia
conter somente “Mulher é morta por marido”. No entanto, se a informação “após
dizer ao marido que estava grávida de ex” foi recortada e articulada à formulação
(embora represente sintaticamente apenas o tempo da ação) é porque funciona
anteriormente, na memória discursiva, como algo relevante a ser dito, a ser
informado.
Não se fala aqui, assim como em todas as análises anteriores e posteriores,
em escolha proposital do autor da manchete, pois seu gesto é considerado, em um
viés discursivo, como uma organização de sentidos já circulantes, já inscritos em
textos anteriores como “o que é relevante”; logo, ele não “fez uma escolha”, mas
apresentou o que é esperado que fosse apresentado: a causa da morte. Causa que
pode levar a mulher a ser significada não somente como vítima, mas também como
adúltera, como aquela que “deu motivos” para que a sociedade, ou para que o
próprio marido a punisse.
3. Considerações Finais
A manchete em questão foi selecionada tomando como base de que é de
responsabilidade do analista a forma como se define o dispositivo analítico. Este,
por sua vez, deve considerar a natureza do corpus e o propósito do estudo. Para a
Análise de Discurso, o objeto simbólico é imbuído de significação, produzindo
sentidos que são organizados em textos (ORLANDI, 2015, p. 25). Esses textos são
organizados com sentidos diferentes e as diferenças não podem e não são
ignoradas por este estudo. A análise foi feita a partir da seleção do corpus, sem
ignorar que, enquanto analista de discurso, percebemos significações distintas sob
o mesmo objeto trabalhado.
Considerando todas as questões ditas, as afirmações feitas ao longo deste
trabalho foram percebidas considerando principalmente a memória discursiva que já
circula na sociedade, sem desconsiderar outras possibilidades de análise e de
significação não somente da mulher, mas também acerca das condições de
produção e do veículo de publicação.
Posterior a análise, verificam-se acerca da significação dessa mulher
171
agredida. Uma delas pode ser vista nas justificativas do acontecimento criminal; ao
dizer que uma mulher foi violentada ou assassinada após ter agido de forma “x”,
verifica-se um tempo funcionando como a causa da agressão. Ou seja, na
manchete analisada pode-se perceber que há um motivo para que essa agressão
tenha acontecido, como se essa mulher tivesse provocado esse acontecimento. Isso
pode ser apontado como um fato preocupante, pois nenhuma agressão deveria ser
justificável. Mesmo que tenha havido uma discussão ou uma traição, existem meios
pacíficos de se resolver problemas sem que haja necessidade de se agir com
violência.
Outra regularidade importante que foi verificada ao longo da análise é o fato
de a mulher provocar o acontecimento criminal. Percebe-se de várias formas, por
meio de sentidos já estabilizados na sociedade, que em qualquer posição em que a
mulher se encontre, ela poderá ser significada como responsável pela agressão que
sofreu. Assim como a postura da mulher justifica a agressão, a posição dessa
mulher também influencia a forma como ela é significada. Ainda que sua posição
seja “positiva” dentro da sociedade, a mulher sempre pode ser culpabilizada pela
violência sofrida. Afinal, há uma estabilização de sentidos que permite que sejam
criadas formulações a respeito de como uma mulher deve agir, se comportar.
Confirma-se, desse modo, a importância de trabalhos que deem visibilidade à
questão da significação da mulher, pois, apesar de ser evidente um funcionamento
de uma nova discursividade atravessada/sustentada por sentidos de liberdade,
igualdade, escolha, empoderamento... há formações discursivas (como a machista,
a patriarcal, a religiosa, a capitalista) que parecem funcionar em direção oposta, na
cristalização da inferioridade da mulher. Contudo, como o discurso é “curso”, é
movimento, dar espaço à questão é deslocar sentidos e criar a oportunidade da
escrita de uma nova – futura- manchete.
4. Referências
ELICHIRIGOITY, M. T. P. Análise do Discurso na área de Letras. Cadernos do IL,
Porto Alegre, n. 34, p. 169-199, jun. 2007. FERNANDES, C.A.Análise do discurso:
reflexões introdutórias. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2008.
FONSECA, R. O. Condições de produção do discurso e formações
discursivas: uma proposta de abordagem da práxis discursiva. Revista Icarahy,
Niterói, n. 4, p. 1-14, jun. 2007.
G1
MG,
2017.
Disponível
em:
<http://g1.globo.com/minasgerais/noticia/2015/10/mulher-e-morta-em-mg-aposdizer-ao-marido-que-estavagravida-de-ex.html>. Acesso em: 17 nov. 2017
MASSMANN, D; BRASIL, P. Mulher e Vulnerabilidade no Direito brasileiro: uma
questão de sentidos. In: BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins; ANDRADE, Denise
Almeida de; MACHADO, Monica Sapucaia. Mulher, Sociedade e Vulnerabilidade.
Erechim: Deviant, 2017. Cap. 3. p. 47-64.
MEDEIROS, C. As Condições de Produção e Discurso na Mídia: A Construção
de um Percurso de Análise. Revista Famecos, Porto Alegre, n. 20, dez. 2008.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4. ed.
Campinas: Pontes, 2015.
172
ORLANDI, Eni P. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.
5. ed. Campinas: Pontes Editores, 2007.
173
MEMÓRIA E EDUCAÇÃO: SABERES,
ENSINAMENTOS E APRENDIZAGENS
ENTRE CRIANÇAS INDÍGENAS DA REGIÃO
DO TOCANTINS, NO PARÁ
BENEDITA CELESTE DE MORAES PINTO60, MARIA DE FÁTIMA RODRIGUES
NUNES61
PPGEDUC/UFPA-Cametá
PPGEDUC/UFPA-Cametá
celpinto18@gmail.com, nunesfatima098@gmail.com
Resumo: O presente estudo objetiva identificar através de brincadeiras e
brinquedos utilizados por crianças indígenas da região do Tocantins, no
Pará, que saberes são transmitidos através dos modos de brincar e
confeccionar brinquedos no cotidiano das aldeias Anambé, no município
de Mojú e os Assuriní do Trocará, no município de Tucuruí. Para tanto, se
buscou apoio teórico- metodológico em obras de autores que se ocupam
da temática em questão, como: CARVALHO (1998), PEREIRA (2008),
RODRIGUES (2009), COHN (2000, 2005, 2010), CUNHA (2012), PINTO
(2014), entre outros. Assim como, foi realizada a pesquisa de campo,
mediante a observação participante, gravação de entrevistas e conversas
informais com moradores das aldeias em questão, acrescidas a utilização
de fontes imagéticas. Dados da pesquisa aponta que a aquisição de
saberes, aprendizados e conhecimentos das crianças indígenas se
concretiza por intermédio de brinquedos e das suas múltiplas
brincadeiras, executadas cotidianamente nos mais diversificados
espaços, e que estas possuem simbologias de suma importância para
tais crianças, visto que são impregnadas de valores, princípios,
conhecimentos e saberes, pois é mediante brinquedos e brincadeiras que
as crianças aprendem mergulhar, remar, plantar, cozinhar, lavar roupa,
pescar, caçar, trançar cestos, fazer farinha, artesanatos, entro outros.
Palavras-Chave: Memória, Educação, Brincadeiras, Saberes, Crianças
Indígenas.
1. Introdução
Abrir as portas do mundo infantil é uma grande dificuldade e
responsabilidade, é trilhar labirintos percorridos em diferentes tempos e espaço e
exige determinadas condutas (PIACENTINI, 2013),
Professora/pesquisadora da Universidade Federal do Pará, Coordenadora do Centro de
Pesquisa do Campus Universitário do Tocantins/UFPA-Cametá, docente permanente do
Programa de Pós-Graduação em Educação e Cultura e da Faculdade de História do
CUNTINS/UFPA-Cametá. É Líder dos Grupos de pesquisas QUIMOHRENA e HELRA e
coordenadora das Pesquisas História, Educação e Saberes Tradicionais na Amazônia &
Memoria, Cultura e Cidade: Vivencias de homens e mulheres na Cidade de Cametá, no
Pará – Séculos XVIII a XXI. E-mail: celpinto18@gmail.com.
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Professora de ensino Médio e graduação no Município de Cametá-Pará, participante do
Grupo de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (HELRA),
integrante das Pesquisas História, Educação e Saberes Tradicionais na Amazônia.
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Mesmo para se permitir ousadias, estas condutas precisam cercarse de procedimentos científico-metodológicos, que garantam um
mínimo de coerência e um máximo de observações que o universo
selecionado caracteriza e indica. O universo referido é o mundo da
criança, o especificamente infantil, numa amplitude cujo limite está
cercado pelo que o distingue: basicamente o mundo adulto. E, mais
ainda, este mundo infantil está caracterizado por um significado de
infância, enquanto conceito universal, expresso pelo fio condutor de
um sentimento de infância (PIACENTINI, 2013, p. 159).
Percebe-se pela historiografia da infância que ao longo dos séculos, a
criança vem assumindo diferentes papéis de acordo com a época e a sociedade em
que está inserida. A concepção de infância, assim como muitas concepções
existentes nas sociedades, é uma noção historicamente construída e como todas as
construções históricas, consequentemente, vêm sofrendo mudanças, não se
manifestando de maneira homogênea nem mesmo no interior de uma mesma
sociedade e época.
Para Rodrigues (2009), as visões sobre a infância são um conceito
construído socialmente e historicamente. A inserção concreta das crianças e seus
papéis variam com as formas de organização da sociedade no tempo e no espaço,
logo, a ideia de infância não existiu sempre e da mesma maneira.
A temática da infância e das crianças está rodeada de inúmeras concepções
e ideias, mas, na maioria das vezes, elas são criadas sem levar as diferenças
existentes dentro do termo tão abrangente que é criança e infância. Sendo assim,
essas concepções desconsideram, ou até mesmo, ignoram os vários contextos
onde se inserem as crianças, seja histórico, político, social, econômico e cultural
(RODRIGUES, 2009).
E o fato de desconsiderar esses contextos acarretou na construção de uma
ideia de criança e infância de forma universal, homogênea como se infância fosse
igual em todo lugar e sociedades, ou seja, descontextualizada que não leva em
consideração as especificidades das várias infâncias.
Esse artigo busca dar ênfase na infância das crianças indígenas da região do
Tocantins, analisando suas formas de brincar e confeccionar brinquedos no
cotidiano das aldeias. Aqui coube focarmos apenas em duas etnias da região
Tocantina, os Anambé, que estão localizados no município de Moju, e os Assuriní,
no município de Tucuruí, cada etnia se distingui nas suas histórias, culturas e
espaços. Mas nas duas aldeias o brincar se faz presente entre as crianças e o
aprender se dá experimentado, vivendo o dia a dia da aldeia e, acima de tudo,
acompanhando os mais velhos, criando, inventado e tendo liberdade para circular
nos diferente espaço dentro da aldeia. Para Cruz (2009), as crianças indígenas
aprendem vivendo o cotidiano de sua aldeia, que é sempre cheio de afazeres e
práticas, que fazem com que estas vivam explorando o mundo através de seu
corpo. Todas as suas ações se transformam em ferramentas para aprender e
expressar seus conhecimentos elaborados. Logo, o desenvolvimento dos sentidos é
fundamental para a capacidade de ver, ouvir e fazer, e as formas de apender, saber
e conhecer estão intimamente ligadas as capacidades sensoriais (CRUZ, 2009).
Ressalta-se que estudos a respeito da temática indígena é algo ainda
recente, apesar destes terem sido os primeiros habitantes do Brasil. Contudo, não
restam dúvidas de que, atualmente, se tem avançado em relação aos estudos
dessa temática. Entretanto, segundo Cohn, os trabalhos relacionados à infância e
aprendizado ainda são raros, mesmo havendo um esforço da Antropologia para
abordar a infância nas sociedades indígenas (COHN, 2002). Os poucos trabalhos
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relacionados à infância, ainda tratam o ser criança como imaturos, inacabados e
incompletos e, assim, a criança está à margem dos estudos antropológicos.
O mundo infantil é carregado de significado e aprendizado além de ser algo
desafiador, pois as crianças das comunidades indígenas estabelecem uma
participação direta nas atividades cotidianas nas aldeias, e isso faz com que a
assimilação do aprendizado, socialização e valores tradicionais ocorra de forma
rápida e prazerosa. Para Fernandes, a educação nas sociedades indígenas é
comunitária e igualitária gerando uma interação dos indivíduos gradual, participativa
e contínua (FERNANDES, 1976). Neste sentido, Zanella (2003), ao abordar a
aprendizagem infantil, conceitua o processo de aprendizagem e como o indivíduo se
transforma por meio dele:
Aprendizagem é um fenômeno do dia e não se aplica apenas a sala
de aula. A capacidade para aprender está presente desde o
nascimento e significa um potencial de desenvolvimento que ocorre
à medida que o ser humano amadurece suas estruturas celebrais e
seu sistema nervoso. Por processo entende-se tudo que ocorre
quando o indivíduo aprende. Como a pessoa está aprendendo pode
se afirmar que a aprendizagem é um processo contínuo, existente
ao longo da vida e enquanto houver vida, sendo que, conforme a
faixa etária, existem aprendizagem a realizar e desenvolvimento a
conquistar (ZANELLA, 2003, p. 30-31).
Percebe-se que a aprendizagem infantil é algo adquirido do meio em que se
vive, trazendo essa análise para a realidade das crianças, verifica-se que o
aprendizado ocorre no seu cotidiano, na sua experiência de vida, pois as crianças
indígenas são criadas de forma livre, o aprendizado é feito em uma simples
brincadeira ou ouvindo as histórias dos mais velhos, vendo um jovem praticando a
pintura corporal, ou seja, a todo momento há aprendizagem.
Para a composição do presente estudo foi utilizada a História Oral, cujo
objetivo é analisar a cultura e os saberes a partir das falas dos próprios indígenas,
principalmente, das crianças e dos mais velhos, sendo homens e mulheres. As
primeiras, por estarem em plena vivência das suas experiências de infância, e os
últimos, porque é pela oralidade que eles buscavam na memória recordações de
sua infância, assim como os saberes contidos em práticas culturais muito peculiares
das crianças é pela memória que as interpretações dos fatos cotidianos das
comunidades indígenas se constituem em conhecimento. Além de possibilitar as
análises das saudosas lembranças da infância e das práticas de brincadeira dos
mais velhos e do processo de ensino-aprendizagem contido nessas brincadeiras,
que foram fundamentais para se pensar a criança como sujeito completo e formador
de saberes e construtores de cultura, mostrando como essas crianças foram e estão
sendo atores sociais.
2. Os anambé: espaços, crianças e brincadeiras
A aldeia indígena Anambé se localiza no município de Moju Pará, tendo um
número considerável de crianças, que diariamente se relacionam e interagem entre
si nos mais diversos espaços desta aldeia, por meio de suas múltiplas brincadeiras
e brinquedos. Tais brincadeiras acontecem e se desenrolam em quaisquer
momentos e espaços, dado seu caráter de espontaneidade e o fato de a vida da
criança se confundir com a brincadeira. Não interessa para elas se é cedo ou tarde,
se é dia ou noite, se está chovendo ou fazendo sol. Ou ainda, se o local é o galho
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de uma árvore, o rio, o mato, sua casa, uma canoa, o que importa mesmo é que a
brincadeira aconteça. As crianças Anambé estão em todos os lugares da aldeia, não
tem quase nenhuma restrição a respeito de locais que não possam frequentar,
circulam livremente de local para local sem que sejam incomodadas ou
importunadas. Vale menciona que elas são sempre bem informadas do que
acontece na aldeia, e muitas vezes exercem a função de mensageiras e fazem isso
como muita alegria, como se pode observar na fala de Maria Valdeniza Anambé,
que nos relatou um pouco do o modo de vida dessas crianças,
“A vida deles é assim brincar, correr, banha no rio, aqui quando tá
com três anos de idade já sabe nadar, a gente ensinar a fazer tarefa
de dia a dia, aprendi a ler e a escrever, mas também os afazeres a
gente não obriga, incentiva a fazer, porque vai precisa mais tarde
fazer, ensinar a fazer porque é bom pra eles ter essa liberdade... O
dia todo eles vivem pelos espaços da aldeia e não se cansam do
que eles fazem, ai e o dia todinho eles brincando, correndo, saltando
ai na água e assim eles vão vivendo, vem almoça fica por ai depois
vai chama outra turma daí e vai de novo no mesmo... Ele só fica em
casa quando tá dodói que a gente não deixa sair pra não fica mais
doente, então é importante isso pra eles no crescimento, né” (Maria
Valdeniza Pantoja Anambé, 39 anos, moradora da aldeia).
As brincadeiras e brinquedos das crianças Anambé passam por mudanças e
transformações significativas, não sendo, portanto, as mesmas ou os mesmos do
tempo de seus pais e avôs, até porque a cultura é dinâmica. No caso dos
brinquedos a grande maioria já é comprada pronto, ou seja, é de origem industrial,
contudo, ainda se observa a confecção de brinquedos feitos artesanalmente, que
são fontes de saberes e conhecimentos, podemos tomar, como exemplos, a
fabricação de brinquedos feitos de forma artesanalmente, isso porque ao fazer um
barquinho de miriti ou madeira mole para brincar, a criança Anambé aprende todas
as técnicas e as etapas do preparo de um barco, e poderá muito bem aplicar todo
esse conhecimento mais tarde para produzir um barco de madeira em tamanho
normal. Aliás, esse é um meio de transporte muito usado pelos habitantes da aldeia
Anambé para navegar pelos rios que cortam sua reserva. O mesmo vale para o
preparo do arco e da flecha em miniatura, as crianças ao fazerem isso aprendem as
técnicas de seu preparo, e quando adultas, a técnica de construir arcos e flechas é
fundamental para obtenção de alimentos. Da mesma forma, a confecção deste
apetrecho de caça permite com que as crianças Anambé passem a desenvolver,
exercitar e aperfeiçoar a pontaria, que lhes será muito útil na caça e na pesca, uma
vez que estas atividades são muito importantes para os povos indígenas. Fazer
pratinhos ou tigelas de barro também lhes proporciona a aquisição de saberes, pois
quando confeccionam estes utensílios para fins de brincadeira aprendem a trabalhar
o barro e deixa-lo na textura correta para o preparo dos mesmos, assim, quando
adultas podem aplicar esses saberes para fazer não apenas tigelas ou pratos, mas
também outros utensílios de uso diário.
Embora existam mudanças na forma de brincar e nos brinquedos das
crianças Anambé em relação ao passado, observa-se que algumas práticas de
brincar ainda são muito parecidas com aquelas que os mais velhos brincavam na
infância, e as brincadeiras de maior preferência acontecem sempre em contato com
a natureza. As crianças da reserva Anambé nos relataram que atualmente gostam
de brincar de pira (pegador ou pega-pega) na água e na terra, de casinha, pular
corda, macaca, de cabo-de-guerra, de boneca, de bola, entre outras brincadeiras.
Todas essas brincadeiras nos levam a perceber um conjunto de ensino e
177
aprendizado fundamentais para a sobrevivência cultural e social, assim como
proporciona a afirmação étnica dessa etnia. Ao brincar na água de pira, ou de
qualquer outra brincadeira, as crianças aprendem múltiplos ensinamentos, como:
nadar, mergulhar, controlar a respiração de baixo d’água, remar uma canoa, visto
que, quando estão tomando banho sempre tem uma canoa por perto. No mesmo
sentido, o conhecimento também é adquirido ao brincar de subir nas árvores,
quando aprendem a respeitar a natureza, viver em harmonia com ela, sem que para
isso precise agredi-la e, sobretudo, entendem a importância que as árvores têm
para a manutenção da vida. Brincar de macaca (amarelinha) ensina a contar
números, assim como, pular com duas pernas ou com uma apenas, aprendem a
desenhar formas geométricas, como: quadrados e retângulos, comum nas suas
pinturas corporais.
Uma brincadeira bastante comum das crianças Anambé acontece na margem
do rio, quando meninas e meninos se juntam para brincar com a argila. As crianças
sabem que, além da brincadeira divertida, a argila pode funcionar muito bem como
uma espécie de bloqueador solar natural, sem falar que aprendem a conviver de
forma harmoniosa com o meio em que vivem, pois, o contato com a natureza é
constante e carregado de conhecimentos.
Portanto, o aprendizado das crianças Anambé se dá de forma espontânea,
assim elas tornam-se livre para aprender a qualquer momento e com que lhes
parece mais agradável. Essa liberdade de aprendizados também ocorre entre as
crianças Assuriní do Trocará como veremos adiante.
3. Brincando de aprender: criança assuriní, identidade, cultura e
saberes
A reserva Assuriní do Trocará está situada na margem esquerda do rio
Tocantins, a 18 km da cidade de Tucuruí, em plena BR-422, que liga os municípios
paraenses de Cametá e Tucuruí, e atravessa a reserva indígena, onde atuam vários
sujeitos, que juntos lutam a cada dia pela sua sobrevivência, sua cultura e pela sua
afirmação étnica. Pois, é importante mencionar que a aldeia Assuriní é um espaço
permeado de culturas, valores, crenças, costumes, tradições e saberes. E todos
esses fatores são facilmente assimilados pelas crianças através das brincadeiras,
brinquedos e jogos. Daí a sua importância, pois analisar os jogos, as brincadeiras e
os brinquedos torna-se de fundamental importância para se compreender como se
dá a organização social das crianças Assuriní. Sem falar, que é através das
brincadeiras, dos brinquedos e dos jogos que se constroem o ensino e a
aprendizado indígena.
Podemos observar uma brincadeira bastante conhecida e praticada na
aldeia, não só pelas crianças, mas também pelos adultos, principalmente, por ser
uma modalidade que faz parte dos jogos indígenas (que ocorre anualmente e reúne
diferentes etnias de várias regiões do Brasil e exterior), é o cabo de guerra, uma
brincadeira que exige força e união, cuja participação entre crianças não há
separação de gênero, entre adultos, os homens disputam com homens e as
mulheres entre si. Para Ângela Nunes a construção do brincar no cotidiano da
aldeia, é marcada pela relação das crianças com outras crianças maiores ou
menores que se alternam entre tarefas domésticas e brincadeiras desenvolvendo
suas habilidades, descobertas e modos de ser e pensar o que é ser criança. Além,
da relação entre crianças, é importante destacar a relação entre crianças e adultos.
No processo de construção das brincadeiras e dos brinquedos e qual a importância
do adulto nesse processo de interação social. Os adultos demonstram-se
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extremamente pacientes e ouvem as crianças com total atenção (NUNES, 2003).
Através da memória do Senhor Puraké Assuriní, uma das lideranças do povo
Assuriní, percebemos como os adultos contribuem e interagem diretamente nas
brincadeiras infantis, fazendo como que haja uma constante troca de saberes e
socialização envolvendo crianças e pessoas mais velhas:
No meu tempo nos brincava assim nos tinha o igarapé né tinha os
cachorro e as antas, ai a anta corria e caia na água ai o pessoal
matava ne. Então nos brincava o capitão inventou pra nós e falava
vocês ainda não vão brincar com a flecha não. Então ele fazia barro
igual uma peteca ai botava um bucado de criança, e os maiores
corria como se fosse uma anta, ai corria e caia na água e os
cachorros atrás, mas era criança que imaginava que era cachorro.
Quem fosse cachorro ficava latindo até os caçadores que estavam
com as petecas de barro chegar e quem era caçador jogava as
petecas na anta até acertar, quem acertasse matava ai nos puxava
ai nos fazia a comparação como era que cortava tirava o bucho só
de faz de conta só por cima ai trazia nas costas e trazia pra casa... ai
quando chegava o velho perguntava _ ta goda a anta? Nos dizia: _
ta goda_ então traz pra cá. Ai na imaginação nos ia dividir a carne
dava pra mulherada, pra criança até distribuir tudo. E assim que a
gente brincava (Puraké Assuriní, uma das lideranças da comunidade
Assuriní, entrevistado em 12 de outubro de 2015).
Atentamos para esse relato de Puraké Assuriní, no qual é evidenciado todo
um contexto cultural e social do povo Assuriní, traz que através da imaginação o
cotidiano vivenciado na aldeia. Como a caçada e todos os processos de
manutenção de alimentos, também aborda as relações de amizade, de gênero,
além da obediência e ensinamentos, valores que são transmitidos pelos mais velhos
e que são capitados pela criança, através do imaginário. Pois, conforme afirma
Dutra, a mente dos indivíduos tem a capacidade de inventar e criar situações a
partir das experiências vividas no seu cotidiano, um alimento, um gestos, um olhar,
uma palavra são carregado de símbolos servem como suporte para o imaginário
(DUTRA, 2013).
O imaginário não está preso a convenções sociais. Ele é fluido, uma
espécie de sedutor de imagens, um depositório do inconsciente, mas
que age “conscientemente”. Refaz se a todo o momento, utiliza
como força impulsionadora o símbolo, elemento que não somente
pode dar a entender, mas também pode expressar sua “existência”.
Nada passa despercebido ao imaginário, que depende da imagem
simbólica para se constituir existindo, e entre ambos há um
entrelaçamento uma profunda, obscura e ao mesmo tempo clara
relação. Toda ação do homem é produtora, mediadora e
impulsionadora de imaginários, estando em seu convívio diário
presentes os elementos naturais e culturais que subsidiam a
formação da mente. Esses elementos são considerados como
criadores de imaginários, uma vez que são grandiosos produtores e
reveladores de representações, uma via de mão dupla na
construção de representações simbólicas (DUTRA, 2013, p.58- 59).
Então o ato de brincar de faz de conta de imaginar algo, só é possível através
dos símbolos que as crianças Assuriní carregam consigo, todas essas
grandiosidades de detalhes contida na imaginação nada mais é que o reflexo de sua
cultural, do seu modo de vida. Através da imaginação se constroem ensinamentos
179
reais, significados que vão se refletir no dia a dia dessas crianças. É através do
imaginar que se aprende a pescar, a caçar, a dividir o alimento a se inserir na vida
social da comunidade.
Percebe-se que a criança Assuriní aprende através da prática das
brincadeiras a realidade do cotidiano, que prepara essas crianças para a vida
adulta. O lúdico está sempre relacionado com formas de sobrevivência aprende-se
a casar, a pintar, a dançar, a falar na língua materna, brincadeiras essas que são
vivenciada e praticada na natureza e no espaço da comunidade.
A aldeia Assuriní tem um contexto social fundado na tradição oral, e seu
conhecimento histórico está na memória dos mais velhos, pessoas sábias, que,
além da palavra oral, também, dominam as práticas, os valores e os costumes da
sua gente. Sendo assim, o saber é repassado pelos mais velhos, de uma criança
para outra, dos pais para os filhos, enfim é um constante aprendizado.
E as crianças socializam com o meio e adquirem conhecimento de vida, além
de absorverem as tradições da aldeia. Através das lembranças da infância do
senhor Puraké Assuriní, observa-se que, também, é na imaginação que constroem
aprendizado de uma vida real, e que as brincadeiras são sempre inspiradas e
motivadas pela natureza, o uso de elementos da natureza é unanimidade na hora
das brincadeiras. Pedras, sementes, folhas, galhos e muitos outros recursos viram
objetos para diversão nas brincadeiras das crianças, como ocorre também entre as
crianças Anambé.
Ângela Nunes menciona que nas comunidades indígenas também há
brinquedos que trazem representações das atividades cotidiana dos pais, há
brinquedos que são feitos a partir dessas práticas como, por exemplo, pequenas
varas de pescar, pequenas panelas de barros, pequenas armas, pequenas
máscaras de rituais entre outros objetos (NUNES, 2003).
Neste sentido, na comunidade Assuriní é comum os brinquedos e as
brincadeiras estarem ligadas aos serviços do dia-a-dia, e é esse brincar que leva ao
aprendizado de sua sobrevivência, de sua cultura e identidade. O brincar se torna
aprendizado importantíssimo, pois quando as crianças estão brincando de fazer
cerâmicas de barro, tendo com molde panelinhas de plástico, brinquedo muito
comum das crianças não indígenas, mas que na aldeia, entre as crianças Assuriní é
resinificado de forma diferente, já que faz com que essas crianças aprendam a
confeccionar a cerâmica Assuriní, tão importante da manutenção da cultura e
também da economia do seu povo. É importante frisar, conforme afirma Procópio,
que a fabricação das cerâmicas de barro é trabalho masculino, mas as crianças
sujeitos que tem atuação direta na cultura e saberes completos, não tem percepção
de divisão conforme o gênero, a diferença de gênero é uma construção que se dá
gradualmente pelos ensinamentos dos mais velhos (PROCÓPIO, 2015).
O brinquedo e brincadeira também levam as crianças Assuriní a fortalecerem
a identidade étnica, quando estas crianças resinificam o brinquedo de origem não
indígena transformando a boneca, com características não indígenas em um
Assuriní, através da pintura corporal, usando tinta de jenipapo para pintar a boneca,
assim como os Assuriní fazem. Isso nos levar a analisar o intenso processo de
globalização em que as comunidades indígenas vivenciam no decorrer do tempo.
Para Stuart Hall a globalização implica um movimento de distanciamento da
ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua
substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está
ordenada ao longo do tempo e do espaço, portanto as identidades são afetadas
pela globalização havendo uma frequentação e uma adaptação dos indivíduos com
o seu tempo, seus espaços e as ferramentas que o sujeito adquire nesse tempo e
nesse espaço. O pensamento de Hall amplia a compreensão de hibridismo,
180
sinalizando que as identidades culturais são híbridas, ou seja, movidas por
mudanças, encontros e desencontros. Dessa forma, reforça seu entendimento em
torno da identidade, alegando que não é possível afirmar que temos uma
“identidade”, mas que somos compostos por uma identificação, passível de
mudança e transformação (HALL, 2006).
Para Homi Bhabha a cultura é uma fronteira metaforicamente falando, pois
nos leva a entender que a cultura é um lugar que abriga certo perigo, para quem se
compromete e estuda-la, pois, é um lugar de conflitos de identidades. As
identidades não estão mais fixadas. Portanto, é preciso pensar a cultura desses
sujeitos cuja identidade se fragmentou como um espaço de coletividade de mescla e
não como fixa, mas busca analisar a cultura como dinâmica.
Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou
aflição, são produzidos performaticamente. A representação da
diferença não deve ser lida apressadamente como reflexo de traços
culturais ou étnico preestabelecidos, inscritos na lapides fixa da
tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da
minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura
conferir autoridade aos hibridismos culturais (BHABHA, 1998, p. 2021).
A boneca Assuriní, no momento que está sendo pintada como a mesma
pintura étnica, ganha uma ressignificação que nos leva a perceber esse hibridismo
cultural. Segundo Néstor Canclini, a modernidade é sinônimo de pluralidade, onde
se mesclam relações entre o hegemônico e subalterno, tradicional e o moderno.
Sendo assim, a modernização não serviu somente para separar nações, etnias e
classes, mas também para fazer um cruzamento sócio cultural que levam a misturar
o tradicional e moderno. A boneca pintada com a pintura corporal Assuriní é um
exemplo dessa mistura do tradicional e do moderno, que leva a uma ressignificação
da cultural tradicional local (CANCLINI, 1998). As crianças também aprendem a
afirmar sua identidade cultura e étnica a através de desenhos, onde pelo observar
os mais velhos a fazerem a pintura corporal, recriam essas pinturas primeiramente
no chão de terra e depois que aprendem pintam um aos outros.
4. Considerações finais
Desta forma, os estudos sobre a infância indígena proporcionam uma série
de aprendizados que são essenciais para entender a cultura e a identidade desse
povo. Como, por exemplo, as brincadeiras que estão inseridas no dia a dia desses
sujeitos, que são vistas como intenso processo de aprendizagem e socialização, já
que envolvem diferentes tipos de relações entre as crianças e os mais velhos. Uma
vez que essas brincadeiras são permeadas de cultura, oralidade e memória desses
sujeitos, e assim são formas de evidenciar a riqueza cultural e a identidade dos
povos estudados. Portanto, a memória foi indispensável para compreender e
analisar a cultura e as práticas e saberes tradicionais se fazem presente dentro das
aldeias é pela memória que as interpretações dos fatos cotidianos desta
comunidade indígena se constituem em conhecimento, além de possibilitar as
análises das saudosas lembranças da infância e das práticas de brincadeira dos
mais velhos e do processo de ensino-aprendizagem contido nessas brincadeiras.
Através das brincadeiras e brinquedos utilizados pelas crianças indígenas da
região do Tocantins, no Pará, das aldeias Anambé, no município de Mojú e Trocará,
no município de Tucuruí. Analisamos que as crianças são carregadas de saberes e,
ao socializarem-se nos mais diversos espaços, são consideradas membros
181
importantíssimos na aldeia, atuando tanto no que diz respeito à cultura,
religiosidade, educação, quanto na economia voltada para a sobrevivência do
grupo. E são sujeitos que se engajam ativamente na constituição de laços afetivos e
de relações sociais em todos os espaços da aldeia pelos quais circulam. Os
pequenos se destacam em diferentes espaços, estão sempre envolvidos nos
afazeres domésticos e nas etapas de feitura de adornos ou artesanatos, pois, são
os responsáveis pela coleta da matéria-prima, confecção, e também pela venda dos
artesanatos que os mais velhos fazem. Aprendem as técnicas brincando e
observando os pais, os avós, os tios e as outras crianças fazerem, as crianças
crescem livres para trilharem os diferentes espaços, caminhando sempre em grupo.
Na cultura as crianças se mostram com sujeitos ativos, de modo que elas
criam e recriam formas culturais, estabelecendo diálogos com a identidade do seu
povo, visto que no momento em que brincam com brinquedos de origem não
indígena a transformam, incorporando características das suas etnias. Sendo assim,
a aquisição de saberes, aprendizados e conhecimentos das crianças indígenas se
concretizam por intermédio de brinquedos e das suas múltiplas brincadeiras,
executadas cotidianamente nos mais diversificados espaços, e que estas possuem
simbologias de suma importância para tais crianças, visto que são impregnadas de
valores, princípios, conhecimentos e saberes, pois é mediante brinquedos e
brincadeiras que as crianças aprendem mergulhar, remar, plantar, cozinhar, lavar
roupa, pescar, caçar, trançar cestos, fazer farinha, artesanatos, entro outros.
5.
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183
AS BASES FILOSÓFICAS DO DISCURSO
PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE
BENEDITO FERNANDO PEREIRA
Universidade de Taubaté
UNITAU
Rua Quatro de Março, 432 – Taubaté – SP – Brasil
bferpereira@bol.com.br
Resumo. Propomos aqui retomar pensadores como Mounier, Hegel e
Marx, que serviram de base para a elaboração do pensamento de Paulo
Freire, e explicitar os conceitos usados pelo autor neste processo,
apontando desvios discursivos por ele efetuados no sentido de constituir
um corpo teórico se aproveitasse em uma práxis educacional libertadora
da consciência, sempre em contato com o real. Procura-se, com isso,
inserir Paulo Freire na tradição filosófica ocidental, sobretudo, no contexto
latino-americano.
Palavras-chave: Paulo Freire filósofo. Discurso pedagógico. Pedagogia
freireana.
Abstract. We propose in this paper retake some thinkers like Mounier,
Hegel and Marx, whose thought influenced Paulo Freire during the
elaboration of his own thought, in order to determine the concepts used by
this author, as well as to point the discursive deviations made by Freire
related to them in this process of building a pedagogical method of
consciousness formation in contact with the concrete reality. We aim also
to situate Paulo Freire in his place into the Western Philosophy, especially
in the Latin American context.
Key-words: Paulo Freire’s Philosophy. Pedagogic Discourse. Paulo
Freire’s Pedagogy.
1. Introdução
Paulo Freire é um dos pensadores brasileiros mais estudados e citados não
só no Brasil, mas em vários estudos realizados no âmbito educacional em muitos
países. Sua pedagogia é uma das mais influentes no pensamento educacional no
século XX. Ao longo de décadas de elaboração tanto teórica quanto prática, a práxis
freireana sofreu influência de várias correntes filosóficas, e em todos os momentos
de sua construção sempre teve como objeto a busca da independência crítica do
homem, a sua construção como sujeito livre e transformador da realidade. Neste
texto, procuramos identificar algumas das mais importantes bases de pensamento
nas quais se apoiou Paulo Freire ao longo da sua caminhada reflexiva que culminou
no seu pensamento pedagógico. Para isso, apontamos duas fases da obra de
Freire, marcadas, sobretudo, pelas ideias de Emmanuel Mounier, Georg Hegel e de
Karl Marx.
2. Paulo Freire, leitor de Mounier
O pensamento de Mounier é uma filosofia comunitária baseada na formação
184
da pessoa (daí o nome Personalismo), que se opõe vivamente ao individualismo,
em especial, ao espírito individualista burguês surgido com o capitalismo liberal.
Para o filósofo, o capitalismo tornou-se uma força tirânica que criou uma desordem
social que atenta contra o ser humano, despojando-o da sua humanidade, de tudo
que o possa constituir como pessoa. Mounier considera urgente uma revolução
espiritual do sujeito capaz de ações transformadoras da ordem material injusta da
modernidade liberal. A pessoa, para Mounier, é essencialmente um ser comunitário,
de modo que só se realiza em contato com os outros (MOUNIER, 2000), e a
educação cumpre um papel central nesse processo: ela “tem a missão de despertar
indivíduos que sejam capazes de viver e de se engajar como pessoas” (MOUNIER,
2003, p. 61).
O personalismo de Mounier associa a noção de consciência com a de
comunidade, sustentada por suas reflexões sobre comunicação interpessoal e
comunhão. Essa liberdade não é a da individualidade liberal (que para ele é
isolamento e solidão, e não liberdade), mas a da pessoa enquanto consciência
autônoma em comunicação com as outras. Da comunicação nasce a comunhão
que, fundada no amor, é um dos sustentáculos da idéia de revolução comunitária
proposta por Mounier. A revolução comunitária é um processo de conscientização
que deve se disseminar por toda a sociedade, prenunciando um socialismo utópico,
que substitua as opressões de direita e os totalitarismos de esquerda. E é pela
educação que as consciências se tornam críticas da realidade. Ela deve ser
pensada para além da tutela do Estado, devendo estar sob a tutela do povo. Isso dá
um tom libertário às reflexões pedagógicas de Mounier, o que também se encontra
em Paulo Freire.
A primeira fase da obra de Paulo Freire é a que mais se aproxima das ideias
de Mounier, quando o autor publica seus primeiros escritos. Nesta fase, a
antropologia de Freire é marcadamente personalista: o homem é “pessoa”, e não
um objeto; é sujeito capaz de atuar intencionalmente no mundo. O homem,
enquanto pessoa, não se reduz à sua condição animal (biológica) e nem às
condições impostas pela vida em sociedade, as determinações da cultura. Neste
sentido, o educador retoma o conceito personalista-fenomenológico de
transcendência: o homem, e somente ele, é capaz de transcender. Transcender é
refletir a si mesmo no sentido de ressignificar-se. Mas Freire vai além, e coloca que
a transcendência é mais que isso, é também uma consciência de finitude do
homem, “do ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu
Criador”. Posteriormente, o personalismo freireano assume maior engajamento
político: isso ocorre quando, no Chile e depois em Genebra, o autor conhece a
Filosofia e a Teologia da Libertação.
Nesse momento, as ideias de Paulo Freire são marcadas, sobretudo, por
uma perspectiva cristã que o autor utiliza para construir a sua concepção de Homem
e do processo de humanização do ser, em uma relação com o mundo natural e com
o mundo da cultura. O mundo natural é dado, mas o cultural é feito por homens: o
homem só se torna plenamente homem no contato com o outro, construindo-se
comunitariamente (BEISIEGEL, 2010, p.29).
Freire faz ver que esse processo de humanização se dá na medida em que o
homem age conscientemente no mundo. Ele encontra na educação a forma
privilegiada de tomada de consciência do ser humano a ser empreendida a partir do
mergulho existencial concreto na sua realidade vivida, problematizando essa
mesma realidade, num processo que, mais do que um letramento escolar, constituise num movimento de feitura subjetiva capaz de humanizar o homem, tornando-o
pleno por meio de uma auto- e uma recriação de si, e das condições de existência.
Tornar-se capaz de refletir sobre os determinantes sócio-históricos que afetam
185
direta e indiretamente a própria vida é o que constitui o cerne do despertar
consciencial crítico para Freire. Tanto Freire quanto Mounier apresentam um
acentuado anti-determinismo nas relações sociais que se traduz, em Mounier, em
uma filosofia centrada na formação da pessoa em comunidade, pensamento esse
que Paulo Freire toma e reelabora numa pedagogia que propõe um processo
educativo em que o sujeito se educa com o outro – portanto, em comunidade –,
tendo a realidade como meio comum.
Pensador cristão, Emmanuel Mounier foi uma das bases teóricas nas quais
se assentaram os pensadores da Filosofia e da Teologia da Libertação que
ganharam força nos anos 60 e 70 na América Latina, com filósofos e teólogos como
Enrique Dussel e Leonardo Boff, que também influíram sobejamente no pensamento
freireano. De fato, a primeira fase do pensamento de Paulo Freire é marcada por um
discurso profundamente cristão, que tem nas noções de liberdade e de
conscientização pela re-união com o Criador, para a mudança do mundo, um ponto
central: “Paulo Freire era um educador cristão militante, possuído por um sentimento
de missão que se exprime numa prática votada à modificação interior dos homens,
para que eles, por sua vez, pudessem participar como sujeitos, na transformação da
sociedade” (BEISIEGEL, 1989, p.43). Ambos colocam a necessidade de um
engajamento do sujeito no processo de transformação da sociedade classista numa
sociedade mais igualitária por meio da conscientização e do diálogo.
O diálogo aqui leva a um engajamento nas lutas de emancipação popular, e
não somente pessoal, como nos personalistas em geral. Seu personalismo visa a
tomada de consciência que promova ações que possibilitem a instauração das
condições sociais mínimas para que o indivíduo se veja como ser humano, para que
daí possa perceber-se como pessoa. Para os personalistas, a liberdade é definidora
do ser humano. De início Freire menciona a ligação com o Criador como sendo a
“unidade fundamental” e suprema liberdade. Retomando a ideia de comunhão de
Mounier, e ressignificando-a ao modo socialista, o autor, já na Pedagogia do
Oprimido privilegiará a noção de comunhão em lugar da ligação com a divindade,
trazendo o seu pensamento – e a sua ação – para a realidade concreta imediata.
Freire negou a ligação com a divindade (seu momento primeiro) para suprassumi-la
na noção da identidade à humanidade, que é também identidade com o divino, não
apenas com a divindade. Assim, a noção de unidade fundamental suprassume-se
de uma divindade para a plena humanidade que é a unidade suprema entre divino e
humano, realizando, então, como sucede para o espiritualismo-personalismo, a
plena liberdade.
N’A Pedagogia do Oprimido notamos o tom político da pedagogia proposta
baseando-se na proposta de uma Igreja politicamente engajada, libertadora, de
cunho marxista. Em escritos posteriores, Freire se afasta ainda mais de Mounier ao
colocar que a tomada de consciência, é o despertar desta para sua missão
emancipadora: a comunhão, cada vez mais, assume um tom de efetividade social,
descendo do céu espiritualista para o chão da igreja libertadora. Por fim, o exílio
aproxima Freire do marxismo histórico, afastando-o da tradição personalista, como
veremos. Contudo, foi criticado pelos marxistas ortodoxos, que identificavam traços
populistas em seu discurso pedagógico. Na fase pós-personalista, o diálogo deixa
de ser encontro de subjetividade para ser uma relação dialética de conscientização
mútua, e a tomada de consciência perde seu caráter subjetivo para inserir-se num
processo objetivo, histórico, de emancipação cultural.
3. Paulo Freire, leitor de Hegel
Menos evidente é a contribuição de Hegel para o pensamento de Paulo
186
Freire. Hegel não se ocupou diretamente de educação, porém, seu pensamento
está pontuado de elementos que induzem a uma leitura bastante frutífera no que
tange à formação da consciência. É preciso, pois, pensar Hegel para além da sua
filosofia puramente especulativa, procurando entrever a dimensão pedagógica do
seu entendimento do devir do homem e da história. A dialética crítica hegeliana é
um ponto de destaque para essa abordagem, uma vez que se funda na experiência
do real como motor do racional, e deste como constituinte daquele.
O conceito de substância, que em Hegel se confunde com o de sujeito como
absoluto verdadeiro, é consciência de si frente ao outro. É o inacabamento
constitutivo identitário desse sujeito que o faz reconhecer-se como ser em processo
de feitura que se abre ao ser-outro e, ao mesmo tempo em que se percebe como
um si-mesmo diferente, se faz com o outro, sendo, portanto, um ser que se torna
outro. Assim ele se efetiva ontologicamente na prática existencial (HEGEL, 2008).
Desse modo, o ser-em-si é prerrogativa para o indivíduo poder ser um ser-aí
(existencial), mas é na sua negação (o outro), e na tomada de consciência tanto de
si como dessa negação, que está a chave do tornar-se. É na alteridade que esse
ser vai se fazer como ser-mais, posto que é condição para tornar-se (ser o que não
é). Só então esse sujeito se torna verdadeiro e irredutível à determinação material.
Trata-se de um movimento dialético entre ser-em-si e ser-outro cuja síntese é o sermais, um tornar-se pela abertura à alteridade.
A retomada e o deslocamento discursivo de Freire em relação ao colocado
por Hegel ocorrem na consideração freireana da vida como experiência com o seroutro mediada pela realidade, sendo esta constituída pela cultura e pelo diálogo que
permitam a tomada de consciência do sujeito incompleto como construtor ativo da
realidade (e não como mero ser passivo), movimento necessário para a sua feitura
e ação autônoma. Um ser-em-si relacional mediado pela concretude do material, da
vivência e, por isso mesmo projeto de si, sempre aberto e em processo de tornar-se
mais, é a proposta de Paulo Freire visando à transformação da realidade por meio
dessa relação dialógica (mais do que dialética, neste caso). Tanto em Freire como
em Hegel temos, portanto, um sujeito de identidade aberta que se faz pela relação
que “absorve” o distinto-de-si: “estar com o mundo resulta de sua abertura à
realidade, que o faz ser o ente de relações que é” (FREIRE, 1982, p. 39). Mais
adiante, o autor destacará precisamente o ser na sua dimensão limite como
constitutiva e origem da sua busca pela transcendência, pelo encontro com o outropleno, na figura do divino:
[O homem] não é o resultado exclusivo da transitividade de sua
consciência que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí, reconhecer
órbitas existenciais diferentes, distinguir um “eu” de um “não eu”. A
sua transcendência está também, para nós, na raiz da sua finitude.
Na consciência que tem desta finitude (FREIRE, 1982, p. 40).
O pensamento de Freire caminha, como vemos, num sentido antropológico,
pelo encontro do ser com o outro, em seguida, num sentido transcendente pelo
encontro com o outro-divino e posteriormente, num sentido cosmológico, pelo
encontro com a terra. E é na Pedagogia da Esperança, texto posterior à Pedagogia
do Oprimido, que Freire retoma o conceito de comunhão e o expande de modo a
englobar o todo da natureza: a “unidade” é, agora, além da identidade homemdivino, a identidade homem-natureza. O universo da comunhão abrange homens,
mulheres, árvores, bichos, a terra mesma, os rios, os mares. Esta discussão abre
campo para uma ecopedagogia. A unidade é comunhão, é ser-com-outro, e
representa o rompimento da relação servil que se expressa em ser-para-outro, que
é a relação oprimido/opressor. É, pois, uma relação fundamentada na liberdade.
187
Comunhão é harmonia, e a noção de comunidade se insere nessa ordem
cósmica integrada e ordenada. A liberdade nessa perspectiva se manifesta num
jogo de forças no qual a ordem forma o homem e o homem constrói a ordem. Isso
leva à totalidade, que é a síntese desse jogo de forças. Percebemos aí a dialética
hegeliana e a noção de liberdade objetiva presentes no discurso de Paulo Freire.
Carlos Alberto Torres em seu livro Pedagogia da Luta fala da importância de
Hegel na formulação dos princípios básicos da Pedagogia do Oprimido. Segundo
ele, a Dialética do senhor e do escravo e o Reconhecimento têm relação direta com
a dialética opressor/oprimido da Pedagogia do Oprimido (TORRES, 1997). O próprio
Freire deixa clara essa relação:
Se o que caracteriza os oprimidos, como ‘consciência servil’ em
relação à consciência do senhor, é fazer-se quase ‘coisa’ e
transformar-se, como salienta Hegel [...], em ‘consciência para
outro’, a solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar
para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este ‘ser
para outro’ (FREIRE, 2005, p. 40).
Freire, porém, não aceita a noção hegeliana de “reconciliação e síntese”, e
abdica da noção de desenvolvimento positivo da história. A história perde qualquer
paradigma que garanta seu progresso positivo para a humanização e a
emancipação. A grande diferença entre Hegel e Freire será, justamente, a
superação da positividade da negação natural hegeliana na Pedagogia do Oprimido.
Esvaziada da noção de positividade, a humanidade só pode ser pensada enquanto
projeto coletivo. A relação opressor/oprimido em Freire aponta não só para a
libertação das injustiças decorrentes da exploração do trabalho, mas também para a
tarefa coletiva da construção do sentido que se dá ao processo de humanização.
Assim, Hegel está na base da sua noção de libertação enquanto comunhão: a
liberdade é o próprio processo de constituição da razão na relação
opressor/oprimido. É racional reconhecer o outro como igual, portanto livre. Livre o
oprimido da opressão, e livre o opressor do seu impulso dominador. O jogo de
forças, a relação dialética opressor/oprimido, constrói constantemente a ordem
social na qual um e outro se “formam”, educam suas mentes e sentimentos.
É desse modo que Freire bebe na fonte de Hegel, deslocando, contudo
conceitos do autor para o campo da formação da consciência e da ação social
concreta dela decorrente, não só reinterpretando a história como movimento
autônomo de eventos, mas assumindo-se como agente nesse processo de
reinvenção de si e do mundo.
4. Paulo Freire leitor de Marx
O processo de formação do sujeito em um ser-mais mediado pela realidade
concreta em Freire sofre uma transformação ao longo da sua história, e será
durante o seu exílio no Chile por ocasião da ditadura militar no Brasil que ficará mais
acentuado o discurso marxista nos escritos do autor:
A permanência de Paulo Freire no Chile, entre 1965 e 1979, foi
marcada por muito trabalho e grande dedicação ao estudo e à
reflexão [...]. Destacam-se entre os estudos publicados nesse
período, os livros Educação como prática da liberdade, de 1965, e
Pedagogia do oprimido, concluído em 1968 (BEISIEGEL, 2010, p.
77).
Mergulhado agora em nova e diferente realidade, [...] Paulo Freire
progressivamente desloca as análises para os desafios colocados
188
pela nova conjuntura (Idem, ibidem, p. 78).
É nesse momento que o discurso de Paulo Freire se afasta do idealismo
cristão do primeiro momento, para assumir um tom mais crítico da sociedade
burguesa. Sempre na mesma linha temática, a problemática da formação da
consciência “se realizava no âmbito daquele diálogo com numerosos outros
intelectuais de ‘esquerda’” (BEISIEGEL, 2010, p. 82). A formação da consciência
crítica do homem passa a ser vista então como uma ação política revolucionária e
transformadora de uma sociedade autoritária em uma sociedade verdadeiramente
democrática (BEISIEGEL, 2010, p. 34). Freire insiste no dialogismo como prática
transformadora, mas agora o seu discurso estará impregnado de conceitos
marxistas que lhe servem de instrumento para entender o processo de opressão na
sociedade de classe capitalista. Muito embora o discurso freireano tenha tido um
tom socialista desde o início (TORRES, 1976, p.70), é nessa fase que se explicita a
aproximação de autores como Marx, Marcuse, Althusser e Fromm, entre outros
(BEISIEGEL, 2010, p. 84).
Um dos pontos fortes da constante reelaboração da sua práxis é a tomada de
consciência de que a escola também pode servir à domesticação do homem quando
a educação que ali se faz é também opressora, e impede a formação da sua
consciência crítica transformadora, pois age autoritariamente tratando o educando
de modo passivo, de forma antidialógica, domesticando-o. Esse sujeito não se
humaniza, já que não pensa, mas é pensado, tornando-se um alienado social. O
discurso de Freire passa, nesse momento, a materializar o discurso igualitário
substituindo termos tradicionais como “sala de aula”, “professor” e “aluno” por “grupo
de discussão”, “coordenador de debate” e “participante de grupos de debates”,
sempre no espírito de que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os
homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005, p.78).
Apropriando-se do conceito de luta de classes, Freire fala de “alienação” para
descrever o sujeito produzido pela chamada educação bancária, e coloca a
necessidade do engajamento na luta contra essa forma de opressão. É também
marcante a ênfase nos conceitos de “opressor” e “oprimido”, sobretudo a partir da
Pedagogia do Oprimido, em substituição à terminologia anteriormente usada de
“consciência intransitiva” e “transitiva” (ou seja, ingênua e crítica); a temática da
liberdade torna-se uma obsessão (BEISIEGEL, 2010), a qual deve ser conquistada
de forma revolucionária. O materialismo histórico e dialético está na base de uma
ação exercida por sujeitos que já não são considerados abstratamente, mas
concretamente em relação com a realidade que se lhes apresenta como desafio.
5. Considerações finais
É interessante notar que o pensamento de Paulo Freire sempre se refez em
contato com a prática educativa em variados contextos históricos, de modo que o
autor se permitiu rever conceitos e se deixou influenciar por variadas correntes de
pensamento – podemos dizer, por variados discursos –, apropriando-se de
conceitos, deslocando-os, redizendo o já-dito e refazendo seu discurso sempre a
partir das condições de produção que vivenciava. Como afirma Torres (1976, p.71),
“utilizar um conceito de um autor não pressupõe assumir todo seu sistema teórico”;
e é isso que percebemos no discurso pedagógico do autor. Freire analisou
situações reais de vida a partir de linhas diversas de pensamento, e elaborou, mais
do que um método educativo, um corpo teórico genuinamente filosófico, tanto pela
consistência teórica, quanto pela sua originalidade de pensamento. Um método
pedagógico prático de eficácia testada e comprovada em muitos países do mundo.
189
Uma práxis que se permite mudar, adaptar-se e avançar rumo à efetiva formação do
ser como ser-mais, transformador do real e livre.
Assim, a obra de Paulo Freire é um conjunto sistemático constituído de dois
núcleos fundamentais, intimamente inter-relacionados e interdependentes: a
dimensão teorético-reflexiva, e a dimensão prática. Esta última é propriamente o seu
método pedagógico de alfabetização de jovens e adultos, cujas dimensões
filosóficas libertadoras radicam em uma construção teórica elaborada a partir de
várias fontes do pensamento filosófico ocidental que, deslocadas pelo contato com a
materialidade do real da história de sujeitos concretos, são continuamente
ressignificadas, e juntas, prática e reflexão, desembocam no que poderíamos
caracterizar como uma Filosofia Prática Libertária, que pode ser inserida tanto no
contexto latino-americano da Filosofia da Libertação, quanto no contexto global do
pensamento libertário.
Dito de outro modo, a sua filosofia é uma forma
contemporânea de humanismo crítico.
No contexto histórico do Brasil dessa época, tal projeto de hominização se
traduziria em uma práxis educativa cujo sujeito seria, sobretudo, a massa oprimida,
mas que não excluía também, a elite opressora. A práxis educacional freireana
deve, portanto, ser entendida como uma teoria que se nutre da realidade para ser
elaborada por meio da reflexão, e, ato contínuo, se volta para a realidade como
prática transformadora da consciência e da materialidade histórica mesma.
6. Referências
BEISIEGEL, C. de R. Paulo Freire. Coleção Educadores. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
BEISIEGEL, C. de R. Política e educação popular. São Paulo. Ática: 1989.
FREIRE. P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 46 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2008.
MOUNIER, E. Révolution personnaliste et communautaire. Paris. Éditions du
Seuil: 2000.
MOUNIER, E. Manifeste au service du personnalisme. Paris. Éditions du Seuil:
2003.
TORRES, C. A. A Dialética Hegeliana e o Pensamento Lógico-Estrutural de Paulo
Freire. Síntese: Revista de Filosofia. v.3, n.7, 1976. (on-line). FAJE – Faculdade
Jesuíta
de
Filosofia
e
Teologia.
Disponível
em:
<http://faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/2474/3036>. Acessado
em: 30/09/2017.
TORRES, C. A. Pedagogia da Luta: da pedagogia do oprimido à escola pública
popular. Campinas: Papirus, 1997.
190
MULTIFUNCIONALIDADE DO CONECTOR
MAS EM TIRINHAS: ASPECTOS TEXTUAIS,
INTERATIVOS E MULTIMODAIS
BOUGLEUX BONJARDIM DA SILVA CARMO
Mestrado Profissional em Letras - Profletras
Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC
Campus Soane Nazaré de Andrade, Rodovia Jorge Amado, Km 16, Bairro
Salobrinho
CEP 45662-900. Ilhéus-Bahia
bougleuxcpmatnre7@gmail.com
Resumo. Este artigo descreve as funções do conector mas em tirinhas e
sua expansão semântico-pragmática, conforme estudos pragmáticofuncionalistas. O corpus constitui-se de uma amostra de quatro tiras,
oriundas de diferentes contextos de circulação, temas e autores. A
análise, apoiada nas cenas multimodalmente representadas, verificou: (i)
produtividade das funções não prototípicas; (ii) as pistas interpretativas
fornecidas pela multimodalidade e (iii) que as tiras valem-se da língua em
uso no contínuo oral-escrito.
Palavras-Chave. Mas. Tira. Multifuncionalidade. Multimodalidade.
Interação.
Abstract. This article describes the functions of the connector but in strips
and its semantic-pragmatic expansion, according to pragmaticfunctionalist studies. The corpus consists of a sample of four strips from
different circulation contexts, themes and authors. The analysis, based on
the multimodally represented scenes, verified: (i) productivity of nonprototypical functions; (ii) the interpretative clues provided by
multimodality and (iii) the strips use the language in use in the oral-written
continuum.
Keywords. But. Comic strip. Multifunctionality. Multimodality. Interaction.
1. Introdução
Os estudos gramaticais tradicionais postulam determinados valores
semânticos para a conjunção mas centrados na adversatividade (BECHARA, 2009;
CUNHA; CINTRA, 2008). Em contrapartida, um número substancial de pesquisas
tem constatado o alargamento dos sentidos e dos usos dessa conjunção, em virtude
da dimensão enunciativa, pragmática, cognitiva e discursiva da análise e descrição
linguísticas. Nessa perspectiva, em relação à conjunção em discussão, é
concensual entre diversas linhas teóricas o fato da dinâmica do uso propiciar a
interveniência de funções não prototípicas (ALOMBA RIBEIRO, 2005; NEVES,
2000; URBANO, 1999).
Embora existam estudos que analisam a conjunção mas em diferentes
gêneros textuais (SANTANA; MESQUITA, 2008; SELLA, 2008), essa exploração da
expansão textual-interativa em registros ou em gêneros menos formais não têm se
191
efetivado com a mesma profundidade, como é o caso das tirinhas. Diante disso, o
objetivo deste trabalho é descrever a multifuncionalidade do conector mas em uma
amostra de tiras, a partir dos paradigmas da Pragmática Linguística, com a
determinação do papel da multimodalidade no processo de interpretação contextual.
2. O mas na descrição gramatical tradicional: breves considerações
Para Bechara (2009, p. 320), os termos conector e conjunção são sinônimos,
ou seja, “os conectores ou conjunções coordenadas são de três tipos, conforme o
significado com que envolvem a relação das unidades que unem: aditivas,
alternativas e adversativas”. Nessa acepção, a conjunção coordenativa adversativa
é um conector, pois “como sua missão é reunir unidades independentes, pode
também ‘conectar’ duas unidades menores que a oração, desde que do mesmo
valor funcional dentro de mesmo enunciado” (BECHARA, 2009, p. 319). Igualmente,
acentuando oposição e incompatibilidade, porém sem modificar o valor sintático das
orações reunidas. Cunha e Cintra (2013, p. 594), por sua vez, apresentam
posicionamentos teórico-descritivos semelhantes, já que as adversativas “ligam dois
termos ou duas orações de igual função, acrescentando-lhes, porém, uma ideia de
contraste: mas, porém, todavia, contudo, no entanto, entretanto”. Quanto à posição
dessas conjunções, asseveram que “apenas mas aparece obrigatoriamente no
começo da oração; porém, todavia, contudo, entretanto e no entanto podem vir no
início da oração ou após um dos seus termos” (CUNHA; CINTRA, 2013, p. 595).
Vale ressaltar que, ao contrário de Bechara (2009), Cunha e Cintra (2013)
apontam a possibilidade de outros valores para a conjunção mas, chamados por
esses gramáticos de afetivos. Mostram, portanto, alguns possíveis valores
semânticos além da ideia básica de oposição, a saber: valores de restrição,
retificação, atenuação, compensação e adição. Mencionam um interessante
emprego, que pode-se considerar relacionado às funções interativas da referida
conjunção, tal como seu uso em mudança de assunto e explanam que muitas
palavras não se encaixam na classificação tradicional, conforme a Nomenclatura
Gramatical Brasileira, recebendo a designação de palavras denotativas, (CUNHA e
CINTRA, 2013). Por conseguinte, o mas pode, por exemplo, denotar uma situação
ou algum desses valores particulares que a tradição atualmente aceita que se dá
em virtude da dimensão discursiva. Todavia, essas situações, não previstas pela
tradição, são colocadas como marcas expletivas. (CUNHA e CINTRA, 2013).
3. Os conectores contra-argumentativos e as funções não prototípicas
Os conectores contra-argumentativos (doravante CCA) formam um grupo
específico de partículas pertencentes a um fenômeno linguístico, qual seja, os
marcadores discursivos (daqui em diante MD). Para Portolés (2001), os MD são
definidos como unidades que tem o significado orientado a processar o discurso em
relação ao contexto e servindo-se, por meio de suas propriedades morfossintáticas
e semântico-pragmáticas, como guias às inferências que se realizam na
comunicação. Tais unidades atuam pragmaticamente no nível discursivo, ampliando
a ligação entre frases, relacionando membros do discurso e expandindo-se ao
contexto extraverbal.
A partir dessa conceituação, o referido autor estabelece cinco grupos de MD,
a saber: estruturadores da informação, conectores, reformuladores, operadores
discursivos e marcadores de controle de contato. Cada um desses grupos possui
subcategorias. No caso do grupo dos conectores têm-se os aditivos, os
consecutivos e os contra-argumentativos. Os MD CCA são definidos por Portolés
192
(2001) como palavras que inferencialmente relacionam ou vinculam membros do
discurso e, nesse processo, o segundo membro suprime ou atenua as conclusões
pretendidas pelo primeiro, além de sua característica antiorientada (ALOMBA
RIBEIRO, 2005). A natureza da antiorientação, isto é, instruções argumentativas
que anulam inferências ou conclusões pretendidas, é patente nos contraargumentativos. Com efeito, Anscombre e Ducrot (1994) assim esquematizam o
movimento polifônico do conector aqui estudado: enunciar A, mas B supõe
concomitantemente: (i) apresentar A como um argumento para uma conclusão C; (ii)
apresentar B como um argumento contrário a C (não C); (iii) assinalar a B mais
força argumentativa a favor de não C da que tem A a favor de C; (iv) A, mas B
manifesta, pois, uma hierarquia argumentativa a favor da não C.
Para Alomba Ribeiro (2005) o mas é um conector contra-argumentativo
(CCA), em virtude da completude de seu movimento argumentativo. Isto é, em
acordo com argumento apresentado pelo adversário enunciativo, introduz um
argumento que o invalida. Com isso, o interlocutor no ato da contra-argumentação
constrói um raciocínio a favor ou contra uma determinada conclusão e, ao mesmo
tempo um argumento superposto a favor de uma conclusão oposta. Sob essa ótica,
pragmaticamente, o CCA em estudo pode assumir funções várias, tais como adição,
comparação, (des)compensação, função interativa conversacional, pragmática,
justificativa etc. Com o mas, o enunciador distribui a informação, estrutura a
argumentação, explicita restrições e desigualdade entre os argumentos lançados na
contraposição entre enunciados (ALOMBA RIBEIRO, 2005). Em suma, a contraargumentatividade se expressa em vários graus, com distintos movimentos de
desigualdade argumentativa.
Dentre as funções de ordem interativo-pragmáticas têm-se, a saber: (i) a
função interativa conversacional em que o conector “mas” além de ter funções
textuais, possui funções interacionais, dentre elas agir como um encadeador de
turnos conversacionais, organizando dando unidade à construção desses turnos;
(ii) função pragmática em que diversos elementos contextuais determinam o sentido
de seu uso. Geralmente, há a contraposição, no entanto, o enunciado anterior
embora admitido, é considerado insuficiente (ALOMBA RIBEIRO, 2005).
Além dessas funções, numa perspectiva funcionalista, Neves (2000)
apresenta outras especificações dos valores semânticos do mas, a saber: marcação
de compensação com ou sem gradação, marcação de restrição por acréscimo,
negação de inferência, contraposição por comparação, por eliminação, além de
outros usos que a autora explana, embora não rotule com terminologia específica.
Em geral, a conjunção coordenativa mas marca uma relação de desigualdade entre
os segmentos coordenados e, por essa característica, não há recursividade em
suas construções [...] (NEVES, 2000, p. 755). Dessa forma tem-se: (i) marcação de
eliminação: a oração iniciada pelo mas elimina o membro coordenado anterior; (ii)
marcação de início de turno: em construções interativas pode funcionar com
funções restritivas, inserção de argumento por meio de enunciado interrogativo
hipotético, mudança de foco da narrativa ou conversação, eliminação, introdução de
novo tema (NEVES, 2000). Por sua vez, Urbano (1999) destaca o caráter
retrospectivo e prospectivo estabelecido pelas relações inferenciais anafóricas,
catafóricas e capacidade digressiva marcadas pelo uso desse conector Além disso,
sinaliza o contexto pressuposicional apresentando características semânticas
orientadas tanto para o texto, quanto para a interação ao gerir tópicos ou
reorientando a tipologia discursiva (URBANO, 1999).
4. Multimodalidade e interpretação contextual
193
Nesta seção, importa situar em que medida os elementos e aspectos não
linguísticos relativos à natureza das tiras cômicas corroboram para a o estudo das
funções textuais-interativas do CCA mas. Portanto, assume-se a necessidade de ler
os textos multimodalmente pela disposição gráfica do material linguístico e
imagético intencionalmente elaborado, em virtude dos fins comunicacionais
(KRESS, 2010).
A partir disso, é preciso ter em conta duas perspectivas. A primeira é assumir
as história em quadrinhos como gênero textual secundário, conforme Bakhtin
(2000), porém constituindo-se num hipergênero textual (RAMOS, 2009), no qual a
tira livre é um subgênero, dada a sua capacidade de síntese, objetividade e
argumentatividade (RAMOS, 2014). A segunda concerne em considerar a cena
narrativo-descritiva construída pela linguagem quadrinística (EISNER, 1999). Tratase da figuratividade, na qual o uso de gestos, representações de som, movimentos
códigos, imagens, ações e configurações multimodais recriam, representam ou
simulam uma cena, em suma, uma encenação da interação, já que os sentidos
constroem-se e manifestam-se multimodalmente, posto que a figuratividade recria
sensações presentes na interação. Portanto, elementos chaves para a interpretação
contextual (TAVARES, 2010).
Diante disso, pode-se abordar a textualidade para além do enfoque sintático
semântico dos gêneros multimodais, ou seja, tratar os quadrinhos com o enfoque na
interação (LINS, 2008). Interagir pressupõe seleção e ordenação linguística postas
em ação pelos sujeitos para determinados fins comunicacionais (ELIAS; LINS;
SOUZA JR., 2011, p. 02). Além disso, a construção dessa interação, no contínuo
oral-escrito das tiras, favorece a emergência da língua em uso (LINS, 2008). Sob
essa perspectiva, a enunciação não se dá isoladamente e a compreensão do
conteúdo proposicional, presente nas tiras, depende da imbricação entre
modalidades na constituição dos referentes, isto é, na constituição do discurso
(SOUZA JÚNIOR, 2012).
5. Aspectos metodológicos
A presente pesquisa caracteriza-se como bibliográfica e de cunho qualitativo,
com análise descritiva da língua em uso em gênero textual (BAKHTIN, 2000). É
exploratória pela possibilidade de ampliação do corpus e verificação empírica da
análise. Como operacionalização, os taxionomias adotadas estabelecem-se como
parâmetros para descrição de cada exemplar. Com isso, constituiu-se uma amostra
de quatro tiras como corpus e, na descrição, três perspectivas são consideradas: (i)
a tira como simulacro de cena linguístico-interativa, no seu próprio material
multimodal; (ii) o diálogo com outras instâncias discursivas e enunciativas e (iii)
quais funções do mas se apresentam.
Os exemplares da amostra são de domínio público e disponíveis em
diferentes sites, como forma de determinar os usos feitos do conector mas em
diversos contextos e/ou eventos sociocomunicativos. Por apresentarem diferentes
registros linguísticos, cenários culturais e temas, tais questões não foram aqui
analisadas, a não ser em virtude da interpretação pragmática do conteúdo
proposicional expresso ou inferido nos enunciados verbais dispostos nas tiras,
conforme cada caso. Finalmente, o presente trabalho apresenta-se como recorte e
com resultados parciais da pesquisa iniciada por Carmo e Alomba Ribeiro (2014),
porém numa perspectiva teórico-analítica.
6. Análise das Tiras
194
Uma primeira característica não prototípica que o mas assume é seu
deslocamento sintático para além da coordenação, isto é, vincular enunciados no
mesmo nível sintático, tal como apresentado pelos gramáticos tradicionais. Na figura
1, é possível perceber que o conector não assinala sentido de oposição entre o
enunciado do segundo balão em relação ao terceiro balão da mesma personagem:
“quando ela inspirava, fazia o som de uma tuba, mas quando ela expirava...”. É
evidente a função de gerir o tópico conversacional representado pelos enunciados
da mesma personagem. Além de apresentar uma função aditiva não predominante
que poderia ser representada por “quando ela inspirava fazia o som de uma tuba e
quando ela expirava fazia o som de...”. A gestão de tópico conversacional se mostra
profícua na língua falada (URBANO, 1999) e, nesse caso, a função adversativa se
coloca em segundo plano, já que o jogo interacional da conversação e do ritmo
narrativo sinalizado e representado pelos balões e a divisão dos quadros denota
outro ritmo prosódico.
Figura 1: Tirinha do Garfield
Fonte: MAYER, 2012.
O contraste prototípico da conjunção é apresentado, de forma velada, na
relação das ideias de inspiração-expiração e, nesse sentido, há também uma
marcação de contraposição na mesma direção argumentativa (NEVES, 2000). Com
isso, tanto o fato da inspiração quanto expiração mencionados pela personagem
são vistos de forma negativa, porém em níveis distintos. Esses elementos estão
bastante marcados pela expressão facial da personagem, como se observa na
Figura 01. Tal fator, mostra que o elemento não linguístico da tira fornece pista para
a interpretação da direção argumentativa no mesmo sentido negativo. Igualmente, a
expressão “expirava” marcada em negrito e em tamanho maior são elementos
multimodais que indicam, ainda, que o segundo enunciado vinculado é mais
negativo que o primeiro.
O item mas pode assinalar funções expressivas e subjetivas (URBANO,
1999). Ainda na posição de introdutor tópico, na segunda tirinha a seguir, o conector
introduz um enunciado exclamativo. A ideia de introdução de novo tópico tem
relação com a pausa sinalizada pela pontuação do balão anterior e sua colocação
em novo quadro. Entretanto, é clara a posição de subjetividade marcada pelo
conector. Como afirma Urbano (1999), esse marcador pode sinalizar uma
entonação expressiva de cunho emotivo e subjetivo, como demonstrado no segundo
balão da tira anterior e presente no segundo balão da Figura 02 a seguir:
Figura 2: Amor à primeira vista
195
Fonte: SANTOS, 2015.
Ao introduzir o enunciado no segundo balão na tira acima, o conector
prepara um tópico retificativo da ideia apresentada no primeiro balão. Não há a
marcação de contraste prototípica na relação ideacional apresentada entre as
proposições de cada balão. Entretanto, o vínculo se dá na mesma direção
argumentativa, já que a proposição do primeiro balão apresenta uma ideia positiva e
o enunciado do segundo balão não se opõe ao conteúdo semântico em si, senão
rearticula expressiva e positivamente esse conteúdo adequando-o à situação, isto é,
à chegada da segunda personagem no segundo quadrinho da tira.
A figura 3 mostra uma tira, na qual a marcação do conector se dá frente à
cena da enunciação sem valor de contraste e/ou oposição, apenas com função
interativa, na qual o contexto extraverbal representado na imagem é aludido pelo
marcador (URBANO, 1999). Vale conjecturar o contraste tenuamente demonstrado
entre a condição contextual pressuposta, isto é, as personagens que são pinguins,
“conscientes” de sua condição de viver em locais muito frios, contrasta
enunciativamente com a expressão “mas que calor!”. Portanto, na tira a seguir,
contrasta-se interativamente um topos cognitivamente situado e figurativizado pelo
contexto, com outro linguisticamente enunciado, representado na “fala” das
personagens:
Figura 3: Tirinha sobre Carnaval
Fonte: SILVA, 2007.
Observa-se, nesse caso, que não há relação semântica ou pressuposicional
entre os conteúdos proposicionais mediados pelo conector, posto ainda que os
enunciados são retirados de uma marchinha de carnaval composta por Haroldo
Lobo e Nássara. Finalmente, na quarta figura observa-se o mas introduzindo um
enunciado interrogativo, típico de sua função interativa de iniciar turno (NEVES,
2000), marcando a inserção de argumento por meio de enunciado interrogativo
hipotético:
Figura 4: Tirinha sobre obesidade
196
Fonte: RODRIGUES, 2010.
Com efeito, a função contrastante prototípica está semanticamente mais
distanciada e assumindo uma posição mais interativa, como postulado por Neves
(2000). Conforme a Teoria da Relevância (SPERBER; WILSON, 2001), é preciso
buscar as pistas contextuais e as suposições mais relevantes para deduzir as
conclusões pretendidas pelo interlocutor.
Trata-se, pois, da atividade inferencial requerida pelo ouvinte - no caso do
segundo personagem da tira - e pelo leitor, de forma geral. Sob essa ótica, a tira
acima requer um esforço inferencial maior. Ao enunciar “mas será que esse
salgadinho de milho é realmente livre de colesterol?” pode-se: (i) supor aceitar
tacitamente que na embalagem esteja escrita a composição do salgadinho e sua
baixa taxa de colesterol, ainda que as pistas imagéticas não destaquem essa
possibilidade; (ii) Pressupor que o salgadinho é, de fato, de milho pela indicação do
dêitico “este” e que, portanto, salgadinhos de milho costumam ter taxa de colesterol
altas e que, especificamente, o salgadinho de posse da personagem está livre de
colesterol; (iii) Supor que a crença das pessoas, em geral, representada na voz da
personagem, diz que salgadinhos de milho são produtos com altas taxas de
colesterol.
Detalhar esse percurso inferencial é fundamental para entender como as
funções interativas constroem-se, ao menos em parte, sob um fundo cognitivo do
processamento textual, uma vez que, para Sperber e Wilson (2001), a expressão
linguística é pista para o processo cognitivo em busca da relevância, isto é, se fazer
entender ou exprimir as intenções comunicativas com o mínimo de esforço
cognitivo. Assim, pode-se interpretar o conteúdo proposicional da tira como um todo,
considerando a resposta da segunda personagem, pois juntos codificam uma
intenção comunicativa por meio da tira em si mesma. Contudo, destacadamente,
outras respostas poderiam ser levantadas a partir da interpretação da pergunta da
personagem no primeiro balão.
Diante disso, assumir a suposição (i) não é possível por falta de pistas
contextuais na cena representada na tira. Assumir a suposição (ii) é dizer que a
personagem crê que salgadinhos de milho são ricos em colesterol e duvida da
condição do produto que está em suas mãos, indicado pelo dêitico. No que tange à
posição (iii) emanada da segunda, entretanto cabe ao leitor adotar a crença geral da
condição nutricional dos salgadinhos, posicionando essa crença geral na voz da
personagem. Diante disso, a suposição (iii) se sobrepõe a todas e abarcando a
segunda, pelo fato do conector mas realizar um contraste, posto que se ele introduz
um enunciado interrogativo, que conota a dúvida da personagem quanto ao salgado
ser livre de colesterol, é porque subjaz a crença de que salgados como esses não
são livres desse tipo de valor nutricional.
7. Considerações finais
Este trabalho descreveu as funções pragmáticas e interativas do conector
mas em tirinhas. Contrastou a expansão textual-interativa da conjunção estudada
com a descrição gramatical tradicional que, por sua vez, precisa ser revisada com
constância, tendo em vista a dinamicidade da língua e as contribuições dos estudos
linguísticos para melhor entendimento dos fatos da linguagem e da interação verbal.
Demonstrou-se como a intepretação pragmática dos enunciados verbais, em
197
que vigora a atuação argumentativa do mas, depende dos elementos não verbais
como pistas contextuais para apreensão das relações textual e interativamente
construídas e simuladas na cena construída em cada tira. Além disso, a interação e
o contínuo oral-escrito, figurativizados nas tiras, favorecem a interveniência de
funções pragmáticas e menos prototípicas. Não obstante, importa a ampliação do
corpus para uma apreciação mais robusta da proposta aqui discutida.
Finalmente, este trabalho espera contribuir, em primeiro plano, para a
validação das descrições e modelos teóricos que analisam os conectores numa
perspectiva mais ampla, isto é, não restrita à dimensão estrutural da descrição. Em
segundo, ampliar os estudos descritivo-analíticos em textos multimodais,
concernentes ao uso das conjunções em contextos reais de uso, notadamente, nas
suas funções de marcadores do discurso.
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200
CONFIGURAÇÕES MULTIMODAIS NA
LITERATURA ADAPTADA A QUADRINHOS:
A TEXTUALIDADE DO CONTO
MACHADIANO
BOUGLEUX BONJARDIM DA SILVA CARMO
Mestrado Profissional em Letras - Profletras
Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC
Campus Soane Nazaré de Andrade, Rodovia Jorge Amado, Km 16, Bairro Salobrinho
CEP 45662-900. Ilhéus-Bahia
bougleuxcpmatnre7@gmail.com
RESUMO. Este trabalho caracteriza a Literatura adaptada a quadrinho, a
partir das categorias da textualidade e da multimodalidade. Para tanto,
analisa-se o conto O esqueleto, de Machado de Assis, adaptado.
Determinam-se as tipificações, processos referenciais na tradução intersemiótica e, como resultado, mostra-se: (i) a imbricação de linguagens na
constituição da textualidade; (ii) a reconstituição do processo de interação
narrativo; (iii) a rearticulação dos processos referenciais para a linguagem
em tela.
Palavras-Chave. Literatura adaptada. Multimodalidade. Textualidade.
Machado de Assis.
Abstract. This work characterizes Literature adapted to the comic from the
categories of textuality and multimodality. Then, we analyze the story O
Esqueleto, by Machado de Assis, adapted. The typifications, referential
process in inter-semiotic translation are determined and, as a result, are
shown: (i) imbrication of languages in the rearticulation of textuality; (ii)
reconstitution of the process of narrative interaction; (iii) rearticulation of the
referential process for the language on screen.
Keywords. Adapteded literary. Multimodality. Textuality. Machado de Assis.
1. Introdução
Este trabalho, a partir do escopo da Linguística Textual (doravante LT),
conforme Koch (2009), dialoga com os estudos da multimodalidade (KRESS, 2010)
e da Teoria dos Gêneros Textuais (BAKHTIN, 2000; MÜLLER, 2012) para
estabelecer um estudo62 exploratório quanto à questão da textualidade de gênero
multimodal. Diante disso, o presente trabalho objetiva caracterizar a Literatura
adaptada a quadrinhos, enquanto gênero textual híbrido, isto é, construído na
imbricação entre linguagem verbal e não-verbal. Trata-se, dessa maneira, de
explorar como essa inter-relação entre diferentes modalidades constitui o gênero
A investigação proposta nesta pesquisa insere-se na linha Análise de textos e discursos: leitura,
produção textual, textualidade e gêneros, no contexto do grupo de pesquisa Linguagem, Ensino e
Identidade, coordenado pela profa. Dra. Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro. Disponível em:
<dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2394297052517994>. Acesso em: 28 set. 2017, 10:24 h.
62
201
supracitado, tendo em vista os fatores de textualidade e a mesclagem genérica. Em
decorrência de tal problemática, é possível supor que as configurações da
textualidade se efetivem de forma peculiar, na qual a multimodalidade tem papel
fundamental, notadamente, em reconstituir tipificações da narrativa no processo de
adaptação e reconfigurar os objetos de discurso. Nesse contexto, numa abordagem
descritivo-qualitativa, tomou-se o conto O Esqueleto, de Machado de Assis,
adaptado por Molina e Koprowski (2015) como objeto de estudo. Todavia,
apresentam-se resultados parciais desse processo analítico exploratório.
A presente abordagem justifica-se pelo fato do gênero em questão já ser
discutido por uma série de linhas de pesquisa, inclusive com análises e descrições
das adaptações dos textos machadianos, notadamente, a partir dos estudos da
comunicação, dos estudos interartes, da linguagem dos quadrinhos, dentre outros
(DINIZ, 1998; LIMA, 2012; MIRANDA; PINHEIRO-MARIZ, 2014). Contudo, não se
aborda alguns fenômenos importantes relativos à constituição pictural da narrativa
do texto-fonte, a reconfiguração dos processos referenciais por vias não verbais,
além da lacuna existente relativa a uma descrição mais robusta da textualidade da
adaptação em suas funções textuais-comunicativas, tal como aqui pretendido.
Nessa direção, a caracterização do gênero pode situar outras investigações e
descrições importantes na centralidade da perspectiva linguística.
2. O fenômeno do texto e a multimodalidade: categorias norteadoras
Para fins deste trabalho, importa delinear as categorias oriundas da LT e da
Teoria da Multimodalidade para análise da adaptação do texto literário a quadrinhos.
Nesse sentido, coaduna-se com Koch (2001) a necessidade de centralizar o texto
como objeto de estudo, os fenômenos linguísticos e sócio-cognitivos relativos a sua
organização, funcionamento e compreensão, isto é, a teoria do texto concebe a
linguagem como lugar da interação social e como ação intersubjetiva e, por
conseguinte, o ato de construir objetos de discurso ocupa um espaço fundamental
nesse processo (KOCH, 2009).
No que tange aos fatores de textualidade, a LT tem investigado diversos
fenômenos que consideram como caracterizadores do objeto texto, ou seja,
estabelecer critérios para determinar o que faz do texto um texto (COSTA VAL,
1999). Segundo Costa Val (1999, p. 03) “pode-se definir texto ou discurso como
ocorrência linguística falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade
sociocomunicativa, semântica e formal”. Nessa acepção, deve-se assumir que: (i)
incorrem elementos pragmáticos relativos ao conjunto histórico, social, cultural e
comunicativo que se sobrepõem para a atuação do texto como espaço de
construção de sentidos; (ii) elementos semânticos cooperam para entrelaçar essa
atuação em termos de coerência; (iii) atuam recursos de coesão para a articulação
do plano formal e estrutural.
Além desses princípios, emerge-se a questão da (re) construção de objetos
de discurso ou processo de referenciação, como dimensão fundamental acerca do
fenômeno/objeto texto, isto é, os sujeitos intersubjetivamente estabelecem a
ativação e (re)categorização de referentes (MONDADA; DUBOIS, 2016). Numa
perspectiva complementar, advém-se a questão da multimodalidade. Souza Júnior
(2012) esclarece que não cabe à LT elaborar métodos de análise das modalidades
não verbais dos textos, mas cumpre dialogar com esses estudos, tendo em
consideração e presença de semioses não-verbais nos eventos comunicativos e
como esses processos contribuem para a construção do discurso e se configuram
nas ações de linguagem, isto é, permeiam a interação humana, bem como se
relacionam com os modos de processamento textual (DIONÍSIO, 2011).
202
Com efeito, para Dionísio (2011), em virtude das diferentes formas semióticas
e da interação humana, as pessoas precisam atribuir sentidos com múltiplas
linguagens. Assim, se a imagem também faz parte da organização social das
comunidades, isso implica organização dos gêneros textuais (DIONÍSIO, 2011).
Como o processo de interação social se materializa na linguagem, Kress (2010)
postula que os diferentes signos se motivam na busca pela construção das
significações, considerando as constrições culturais, o engajamento e princípios
comunicacionais. Com isso, pressupõe-se que os gêneros textuais, em suas
multimodalidades, estão atrelados às instanciações sociais, culturais e
comunicativas (KRESS, 2010).
3. A tradução inter-semiótica, a obra machadiana e gênero textual
O processo de adaptação não se dá sem conflitos conceituais, escolhas e
uma dimensão subjetiva de seu funcionamento. Tal realidade se mostra pelo
substancial número de investigações que tratam desses elementos sob diversos
enfoques teóricos. Vale salientar que a obra machadiana é tomada como objeto de
análise sob vários ângulos, de acordo a linha teórica adotada. Contudo, se mostra
consensual que a adaptação das obras do grande escritor brasileiro se efetiva por
duas razões centrais, a saber: (i) revalorizar o texto machadiano diante de um novo
público consumidor e leitor de HQ pouco habituado à leitura dos textos canônicos;
(ii) estabelecer a criação de uma nova obra que facilite ou sirva de estímulo à leitura
da obra original (RAMOS, 2009).
Tratam-se, portanto, de dois aspectos problemáticos e polêmicos, uma vez
que o primeiro pressupõe uma desvalorização da obra original e supervalorização
da linguagem quadrinística e a segunda razão pressupõe uma desvalorização da
HQ em relação ao texto literário canônico, tal como afirma Ramos (2009), razão que
busca-se dar ao texto em quadrinhos maior status por se tratar de obras literárias
canônicas e já socialmente valorizadas. No entanto, assume-se, consonante o
referido autor, a autonomia da linguagem quadrinística em relação à Literatura.
Todavia, do ponto de vista da textualidade, as razões acima mencionadas incorrem
em valores e discussões que saltam o valor de cada texto, gênero e modalidade,
enquanto fenômeno da interação verbal. Em outros termos, para a LT, Teoria dos
Gêneros e os estudos da multimodalidade não importam as valorações sociais e
ideológicas que possam ser atribuídas às manifestações textuais e, sim, o
fenômeno do texto em si, como objeto de investigação científica.
Em virtude dessas ponderações, adota-se a tradução inter-semiótica como
processo de recriação, já que um novo gênero se constitui como obra ao mesmo
tempo literária e quadrinística (NASCIMENTO, 2014; PINA, 2014). Nessa acepção,
a transcodificação requer subversão, conflito e reinterpretação semiótica, posto que
na relação signo-signo, em suas variadas dimensões, envolve uma reconfiguração
de sentidos. Em virtude disso, Descardeci (2002) postula que a leitura desses textos
também se dá de forma multimodal e esse processo relaciona-se, de forma direta,
aos fatores pragmáticos da textualização, por exemplo, a intencionalidade e a
aceitabilidade. A autonomia das diferentes semioses, linguagens e formas de arte,
em todo caso, estão sujeitas às diferentes composições da atividade e criatividade
linguística humana. Nesse aspecto, torna-se patente o diálogo entre linguagens
(PINA, 2014) e práticas de intertextualidade (BAKHTIN, 2000).
Nesse sentido, diversas forças transculturais perpassam os contextos de
circulação das adaptações, seja pela subversão, como releitura ou recriação.
Entretanto, é notório que esses eventos comunicativos multimodais estabelecem
novas dinâmicas de leitura, produção e circulação de obras (MARCUSCHI, 2011).
203
Mais ainda, configuram uma forma peculiar de ação social e que estabelece formas
próprias de organização sóciodiscursiva (MARCUSCHI, 2011; MÜLLER, 2012).
Nessa perspectiva, Pina (2014) defende que o texto de chegada sendo novo, não
apaga o antigo totalmente, já que não se trata de uma questão de fidelidade, mas
de ampliar espaços e formas de leitura, num relação dialógica. Dessa forma, na
condição de gênero textual a Literatura adaptada a quadrinhos não estabelece em si
mesmo um novo paradigma, mas diferentes possibilidades de recorrências,
tipificações, de (re)organização do discurso literário, de ações sociais específicas e
como parte das mesclagens e hibridizações inerentes às interações humanas via
linguagem (KRESS, 2010; MÜLLER, 2012).
4. Aspectos metodológicos
A presente pesquisa é de natureza qualitativa e insere-se no contexto da
análise de gênero textual, numa perspectiva indutiva considerando as categorias
norteadoras. Para tanto, procedeu-se com a seguintes etapas: (i) caracterização
geral da adaptação realizada por Molina e Koprowski (2015), com base na
terminologia quadrinística em Eisner (1999); (ii) descrição da construção referencial
dos objetos do discurso no texto-adaptado, fator central da textualidade, que precisa
ser rearticulada na interação sob a imbricação de várias modalidades de linguagens
(SOUZA JÚNIOR, 2012).
Não obstante, ambas etapas envolveram verificações comparativas e
indicações quanto aos aspectos composicionais e pragmáticos mais proeminentes.
A escolha de um conto machadiano para a presente investigação se efetiva por três
razões centrais: (i) o volume substancial de adaptações já realizadas da obra
machadiana, principalmente contos; (ii) o quantitativo de pesquisas, artigos e
publicações que analisam diversas obras de Machado de Assis adaptadas; (iii)
sendo uma adaptação literária e de texto narrativo, é possível estabelecer possíveis
generalizações quanto ao processo de adaptação, conforme as categorias que
ancoram a análise.
5. Textualidade e referenciação na adaptação: análise exploratória
Importa destacar que há uma relação dialógica entre os textos de partida e
chegada e, dessa maneira, não há autonomia total nesse processo (PINA, 2014).
Com isso, é possível destacar aspectos da releitura do discurso na transcodificação,
já que tratam-se de duas linguagens autônomas. Nessa ótica, a narratividade,
enquanto forma de organização do discurso e independente da configuração
semiótica, pode constituir-se como um elo de proximidade em termos de gênero
textual, com a ressalva de que tanto o texto literário, quanto o texto em quadrinhos
sofrem as devidas constrições quanto às práticas discursivas em que se inserem,
numa condição intersemiótica em diferentes graus (MAINGUENEAU, 2005). Para
efeitos da análise e da caracterização, a comparação se dá com o texto-fonte ou o
conto original, qual seja o conto O esqueleto, adaptado por Molina e Koprowski
(2015), colocado em paralelo com a narrativa original 63 de Machado de Assis,
publicado em 1875 no Jornal das Famílias.
A primeira dimensão é a enunciativa e diz respeito à composicionalidade,
estilo, conteúdo temático e plano textual geral. Nesses termos, o plano textual
Nesta pesquisa utilizou-se a versão em domínio público disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000189.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2017, 13:30 h.
63
204
concerne ao material linguístico que materializa o discurso ficcional. Na adaptação,
mostra-se que há alterações na estruturação do discurso, mas não na estrutura
retórica ou na sequência da história como um todo. De fato, toda a adaptação
realizada por Molina e Koprowski (2015) trabalha com a criatividade visual,
mediante o uso de uma ampla paleta de cores neutras e frias simulando o clima
noturno, tétrico e solitário sugerido pela narração, tais como o negro, sépia, graus
de cinza, azul e verdes escuros, alaranjado, cobre, dentre outras cores.
Imagem 1. Timing e disposição do material verbal
Fonte: Molina e Koprowski (2015).
Como se vê, a formatação dos tipos de quadrinhos e a disposição desses no
decurso da narrativa seguem diferentes padrões e formas, bem como, em geral,
cada quadro foi construído com uma cor predominante, fator que reforça o timing da
narrativa (EISNER, 1999). Dessa maneira, por exemplo, as descrições picturais
presentes na narrativa original não são alteradas significativamente. Não obstante,
as nuances e mudanças materializadas na descrição do narrador são reforçadas em
diferentes quadros que mostram visualmente os detalhes.
Além dos diferentes enquadramentos, Molina e Koprowski (2015), em dados
momentos, alteram a ordem “natural” da leitura - de esquerda para a direita - Eisner
(1999) ratifica que essas quebras de fluxo do olhar são parte da constituição da
leitura quadrinística. Outro elemento interessante são as diferentes perspectivas e
enquadramentos utilizadas na adaptação (EISNER, 1999). Isto é, toda a obra
mescla quadros com figuras inteiras, enquadramentos médios e posições
aproximadas em close-up. Além disso, cada capítulo é aberto com uma inscrição
construída com imagens ricamente adornadas com alusões fúnebres, figuras de
cadáveres, esqueletos, cemitérios, lugares lúgubres, pântanos e outros arquétipos
relativos à morte. Convém ressaltar a qualidade estética geral do texto-alvo com um
visual atrativo.
Conforme o recorte traçado para a análise, do ponto de vista da construção
referencial, alguns elementos interessantes podem ser destacados. Com efeito, há
uma relação de complementaridade entre os trechos descritivos e a representação
imagética da cena. Para Souza Júnior (2012) os elementos visuais são pistas
fundamentais para a (re) construção dos objetos de discurso, isto é, a construção
referencial se efetiva por diferentes vias ou modalidades semióticas. Por exemplo: a
expressão “à luz trêmula das velas...” (MOLINA; KOPROWSKI, 2015 s.p.), no
primeiro capítulo, é reconstruída com uma imagens da luz das velas com diferentes
sobreposições que simulam o movimento das chamas:
Imagem 2. Vela (complementaridade referencial)
205
Fonte: Molina e Koprowski (2015)
No capítulo quatro, por exemplo, um quadrinho mostra uma das personagens
solicitando uma explicação e utiliza a expressão dêitica “deste”. Porém, o seu
interlocutor não compreende a referência. No quadro seguinte, o referente é
recuperado visualmente com a primeira personagen apontando com o dedo - em
enquadramento close-up (EISNER, 1999) para um terceiro interlocutor, até então
em silêncio no trecho. Esse elemento mostra que a ausência da construção
referencial verbal é complementada e co-construída visualmente (SOUZA JÚNIOR,
2012). Assim, o referente mencionado no primeiro balão do quadro maior é
recuperado visualmente no segundo quadro com o dedo em primeiro plano
destacado:
Imagen 3. Close-up (Recuperação de referente)
Fonte: Molina e Koproswki (2015)
No quinto capítulo, um quadro reconstrói ou reconstitui uma referência posta pelo
narrador-personagem que contém os seguintes dizeres: “Um dia porém, recebi um
bilhete da mulher. Dizia-me que era eu a única pessoa estranha que lá ia; pedia-me
que não a abandonasse” (ASSIS, 1994, p. 12). Essa cena não fica à cargo da voz
do narrador, mas é transposta para um único quadro. Dessa forma, a enunciação
passa para a voz da personagem que envia o bilhete. Com isso, há uma
reconstituição referencial delegada ao visual no texto-alvo:
206
Imagem 4. O bilhete (Reconstituição referencial)
Fonte: Molina e Koproswki (2015).
Em outro trecho da narrativa a reconstituição referencial da adaptação valese do uso da função emocional do requadro (EISNER, 1999), isto é, as formas dos
contornos do quadrinho e a prese. nça de onomatopeia, que não existe no textofonte, senão mencionado como o grito da personagem
Imagem 5. O grito (Reconstituição referencial e inserções)
Fonte: Molina e Koproswki (2015).
Na adaptação, o grito da personagem dona Marcelina é reconstruído
imageticamente com o requadro, sua função emotiva e a onomatopeia. Dessa
forma, integrando elementos presentes no texto-fonte com outros novos condizentes
com a linguagem dos quadrinhos.
Fica evidente, pelo exposto, que a leitura da adaptação exige participação
ativa do leitor na construção dos sentidos construídos nessa intertextualidade e na
emergência da multimodalidade que reestruturam, em vários níveis, os movimentos
retóricos da sequência narrativa. Com efeito, signos são criados, transformados ou
descartados, conforme o projeto adaptativo, isto é, como um processo global,
conforme Nascimento (2014). Em outros termos, as especificidades da narratividade
quadrinística e os elementos não-verbais estruturais dessa linguagem propiciam o
surgimento de elementos novos na adaptação.
6. Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi caracterizar a literatura adaptada a quadrinhos,
207
consoante o escopo da LT e considerando aspectos da tradução realizada no conto
O esqueleto, de Machado de Assis, bem como a construção referencial. Embora a
tradução inter-semiótica de textos literários, dentre esses os machadianos, seja
investigada por várias linhas de pesquisa, consoante uma vasta literatura nessa
direção, a LT ainda não explorou esse fenômeno e esse gênero de forma mais
detida.
Além disso, o diálogo entre os estudos da textualidade e da multimodalidade
tem crescido como forma de melhor compreender o texto, como objeto de
investigação. A literatura e a análise sugerem que a adaptação de obras de
Machado de Assis, tanto romances como contos, bem como a adaptação de
quaisquer obra literária implica uma textualidade construída no intertexto e como
procura-se apontar, mediante a análise neste trabalho, como um gênero peculiar,
híbrido que emerge do processo de leitura e transcodificação da linguagem literária
para a quadrinística.
A análise apontou para a hibridização do gênero e que a adaptação não
altera significativamente as tipificações do discurso narrativo, ao passo que
estabelece uma dinâmica diferenciada, em razão da multimodalidade. No entanto,
não se pressupõe que outras adaptações não realizem maiores alterações nesse
processo. Como trata-se de um estudo exploratório, as etapas adotadas nesta
pesquisa estão esboçadas mais no sentido de problematização, de reflexão das
possibilidades e numa apreciação geral, do que na atribuição um escopo definitivo e
finalizado do processo. Espera-se, com isso, oportunizar a discussão acerca da
adaptação sob o viés da textualidade.
Este trabalho precisa desdobrar-se em algumas questões que aqui não
puderam ser aprofundadas, dentre elas, considerar quais elementos do texto-fonte
favorecem o processo de adaptação. Pensar quais elementos pictóricos estão
figurativizados na narrativa e que podem corroborar para a adaptação. No entanto,
fica evidente a complementaridade de modalidade semióticas na construção
referencial e a manutenção dos movimentos retóricos da narrativa, elementos que
contribuem para a hibridização e caracterização geral do gênero Literatura
Adaptada.
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210
A ARTE COMO DENUNCIADORA DAS
TENSÕES DO SOCIAL EM FELIZES PARA
SEMPRE?64
BRUNO ARNOLD PESCH65, RENATA MARCELLE LARA66
Universidade Estadual de Maringá
Av. Colombo, 5790, 87020-900 – Maringá – PR – Brasil
brunopesch@hotmail.com,renatamlara@gmail.com
Resumo. Nesta pesquisa em que se objetiva compreender, por uma
perspectiva discursiva, a maneira com que a arte denuncia as tensões do
familiar/religioso-desejos/impulsos
do(s)
sujeito(s)-profissional
no
relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise, debruça-se
analiticamente sobre a abertura do segundo episódio da minissérie. A
arte no jogo familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)profissional, in-visibiliza a tensão social/cultural de-marcada nos rituais da
vida cotidiana desses sujeitos.
Palavras-chave. Análise de Discurso. Social. Contradição. Arte.
Abstract. In this research in which it is objectively understood, from a
discursive perspective, the way in which art denounces the tensions of the
familiar/ religious-desires/impulses of the subject (s)-professional in the
relationship between Marília, Cláudio and Denise, analyzes the opening of
the second episode of the miniseries. Art in the family/ religious-desires/
impulses game of the subject (s) -professional, in-visibilizes the social /
cultural tension of-marked in the rituals of the daily life of these subjects.
Palavras-chave. Discourse Analysis. Social. Contradiction. Art.
1. Introdução
Este trabalho teórico-analítico-discursivo debruça-se sobre a minissérie
Felizes para sempre?, escrita por Euclydes Marinho, produzida pela O2 Filmes e
exibida na Rede Globo de Televisão entre os dias 26 de janeiro e 6 de fevereiro de
2015. Consideramos neste material audiovisual, que é constituído por diferentes
materialidades de composição discursiva, tal como Lagazzi (2011), as
especificidades de cada materialidade no batimento/alternância da descrição e
interpretação.
Neste batimento, descrição-interpretação, investimos analiticamente no
funcionamento da contradição constitutiva do social em Felizes para sempre?. A
categoria da contradição abordada por uma vertente que não privilegia a
contradição lógica, segundo Léon e Pêcheux (2014), leva em consideração sua
Este artigo é constitutivo do projeto de pesquisa docente proposto por Lara (2016-2019), “Imagensvisuais e projeções imaginárias de sujeitos em materiais artísticos e midiáticos”, em desenvolvimento
na Universidade Estadual de Maringá.
65
Licenciado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestrando em Letras
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da referida instituição. Membro do GPDISCMÍDIA –
CNPQ/UEM – Grupo de Pesquisa em Discursividades, Cultura, Mídia e Arte.
66
Doutora em Linguística pela Unicamp. Professora do Departamento de Fundamentos da
Educação e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEM. Líder do GPDISCMÍDIA–CNPq/
UEM.
64
211
tensão constitutiva, ou seja, a “[...] tensão contraditória entre a relação
paradigmática de substituição que tende em direção à estabilização da forma lógica
e a existência de relações de deriva e de alteração entre sequências [...]” (LÉON;
PÊCHEUX, 2014, p. 172). Nesse sentido, a análise é deslocada, conforme os
autores, em direção às “formas materiais discursivas de contradição ligadas à
alteração e à deriva”, reafirmando, assim, “que um uso materialista da noção de
contradição na análise do discurso supõe necessariamente, levar em consideração
os espaços de heterogeneidades nos quais funciona essa contradição” (LÉON;
PÊCHEUX, 2014, p. 173).
Felizes para sempre? apresenta em sua trama a arte (pictórica),
principalmente a arte pictórica brasileira da primeira metade do século XX, como
denunciante de um social/cultural marcada pela tensão do familiar/religiosodesejos/impulsos do(s) sujeito(s)-profissional. Neste jogo, o artístico (de)marca os
rituais cotidianos da minissérie.
Recortamos para esta análise o relacionamento de Marília (restauradora),
Cláudio (colecionador e marido de Marília) e Denise/Danny Bond (garota de
programa de luxo que figura, na minissérie, como alguém que entende de arte). O
objetivo é compreender, por uma perspectiva discursiva, a maneira com que a arte
denuncia as tensões do familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)profissional no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise. Nesse sentido, é que
nos interrogamos como nas relações entre Marília, Cláudio e Denise o artístico
denuncia a tensão social/cultural nas práticas desses sujeitos.
2. Tateando a cultura e o social
Para abordar sobre o jogo familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)profissional no funcionamento (discursivo) da minissérie Felizes para sempre?,
situamos a cultura, as aquisições culturais e o social, constitutivos desse jogo,
denunciados pelo artístico na minissérie.
Falar do social, conforme Lagazzi (2013, p. 313), “é falar de relações entre
sujeitos de linguagem”. Retomando “Delimitações, inversões, deslocamentos”
(1990) de Pêcheux, a autora afirma que “pensar ‘o invisível, o alhures, o nãorealizado, o impossível, as diferentes modalidades de ausência’ no social é ter que
se haver com sujeitos de linguagem, ter que se haver com a linguagem”! (LAGAZZI,
2013, p. 313). O social, nesse sentido, é espaço também do alhures, do invisível, do
não-realizado, de distintas modalidades de ausência, do que pode vir a ser do outra
forma, é espaço de linguagem, “do movimento de sujeitos na linguagem, do
movimento de sujeitos de linguagem”, nas palavras de Lagazzi (2013, p. 313).
No ensaio O mal-estar na civilização (1969 [1930]), Freud dedica-se a refletir
sobre cultura e as aquisições culturais do homem67, assim como a maneira que
estes funcionam na e pela cultura. A palavra civilização, nesse contexto, como
explica o psicanalista,
descreve a soma integral das realizações e regulamentos que
distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e
que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger o homem contra
as forças da natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos
(FREUD, 1969, p. 109 grifos nossos).
Baseado nos dois intuitos citados anteriormente, Freud (1969) apresenta
67
Termo empregado por Freud.
212
quatro aspectos das aquisições culturais do homem. São eles: as atividades e os
recursos que tornam a terra mais proveitosa e as atividades e os recursos que
protegem contra as forças da natureza; os instrumentos que o homem vai
desenvolvendo, mediante os quais recria seus órgãos motores e sensoriais ou
amplia os limites de funcionamento do corpo; a beleza, que leva o homem a buscar
sinais de asseio, de ordem e de limpeza; “as mais elevadas atividades mentais do
homem – suas realizações intelectuais, científicas e artísticas – e o papel
fundamental que atribui às ideias [sic] na vida humana” (FREUD, 1969, p. 114); a
forma como os relacionamentos recíprocos dos homens, “seus relacionamentos
sociais, são regulados – relacionamentos estes que afetam uma pessoa como
próximo, como fonte de auxílio, como objeto sexual de outra pessoa, como membro
de uma família e de um Estado” (FREUD, 1969, p. 115).
Como sinaliza Freud (1960), quando escreve o ensaio O mal-estar na
civilização – publicado pela primeira vez em 1930 – no processo de regular os
relacionamentos dos sujeitos, a civilização, nas palavras do autor,
tem que utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para
os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações
sobre controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o
emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a
identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua
finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o
mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo,
mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir
tão fortemente contra a natureza original do homem (FREUD, 1969,
p. 134).
Mariani (2009), ao partir de algumas pistas formuladas por Pêcheux em O
discurso: estrutura ou acontecimento, compreende cultura, na perspectiva
discursiva, como resultante da prática de (entre) sujeitos que remetem a um
determinado momento, lugar e formação histórica; prática estas ligadas às “formas
de ser e estar em sociedade” (MARIANI, 2009, p. 45). Essas práticas, como frisa a
autora, estão intrincadas aos modos de (re)produção, resistência e transformação
dos sentidos.
Deve-se destacar, em conformidade com Ferreira (2015), que a
resistência da cultura “é um lugar privilegiado de produção de sentidos e também de
estereótipos a provocarem danosos efeitos de homogeneidade nos fatos, condutas
e valores de ordem cultural”. Ao mesmo tempo em que a cultura, “em sua potência
de pluralidades”, é uma “matriz de diversidades”, ela “pode funcionar como anteparo
ideológico de dominação e opressão” (FERREIRA, 2015, p. 165-166).
Tanto na perspectiva discursiva como na psicanalítica, observa-se que a
cultura é da ordem do plural, do diverso, e que está relacionada a determinações
sócio-históricas e ideológicas que abrangem as práticas dos sujeitos (de linguagem)
em sociedade. Por vezes, imaginariamente, produz efeito de homogeneidade, como
expõe Ferreira (2015). No e pelo seu funcionamento, como explica Freud, as
aquisições culturais regulam/modelam as relações sociais.
As aquisições culturais abordadas por Freud (1969), que têm como finalidade
controlar as relações entre os sujeitos, assim como dominar a natureza,
materializam-se na trama de Felizes para sempre? no/pelo entrelaçar do legal e
ilegal, do permitido e não-permitido cultural e socialmente na constituição da família
Drummond, como também de sua casa decorada com obras de arte.
3. Em cena: os sujeitos Marília, Cláudio e Danny Bond
213
O cenário de Felizes para sempre? é a cidade de Brasília, no ano de 2013.
Para a construção do per-curso analítico deste trabalho, recortamos a arte como
denunciante das tensões do social/cultural, que é marcada pelo jogo
familiar/religioso-desejos/impulsos do(s) sujeito(s)-profissional. Para tanto, focamos
no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise/Danny Bond. A sequência de
frames selecionada para a análise é da abertura do segundo episódio da minissérie,
intitulado “Vale a pena sofrer por amor?”. Na abertura deste episódio, o casal Marília
e Cláudio recebem pela primeira vez (e única vez) em sua casa a garota de
programa de luxo (classe AA) Danny Bond, escolhida por eles ao final do primeiro
episódio no site Black Orchid. Pelos enquadramentos da câmera, que focam na
movimentação/no andar sensual de Danny Bond, adentrando a casa do casal e em
suas observações das obras pictóricas que compõem este espaço, nota-se a
personagem e atenta-se aos quadros de pintores brasileiros que produziram na
primeira metade do século XX, bem como a forma como tais quadros estão
dispostos, como se pode observar na sequência abaixo.
Figura 1: Sequência de frames da abertura do segundo episódio – Vale a pena sofrer por amor?”
Recorte verbal-oral da primeira sequência de frames
Danny: Posso? Nossa, que linda a casa de vocês! Olha, Portinari... e no chão!
Cláudio: Samanta [Marília] é restauradora. Danny: Linda profissão. Já vi que vocês gostam de
artistas brasileiros! Bonadei, Volpi. Marília: Meu marido é colecionador.
Na década de 1980, ao abordar sobre a casa e a rua, DaMatta (1986) afirma
que a casa ordena um mundo à parte. Neste universo, segundo o autor, o tempo
não é histórico, mas cíclico, “tempo que vive de durações que não se medem por
relógios, mas por retratos amarelados e corroídos pelas traças, como naquela
poesia de Drummond”. A duração do tempo e experiência podem ser revertidas pela
saudade dos dias em que a família estava reunida “em torno de alguma figura
importante para sua unidade e sobrevivência, enquanto grupo uno e integrado”
(DAMATTA, 1986, p. 24). Se considerarmos estas dimensões, conforme DaMatta,
observaremos que a casa e a rua são mais que espaços geográficos. Elas são
modos de ler, falar e explicar o mundo.
Em Felizes para sempre?, a casa de Cláudio e Marília é enfeitada/decorada
por obras de arte de artistas (re-conhecidos) como, por exemplo, Portinari, Bonadei
e Volpi, como diz Danny ao observar este espaço. Num primeiro momento, tais
obras (pictóricas) são apresentadas por Marília como acervo de um colecionador,
porém, elas são uma maneira do personagem Cláudio lavar dinheiro de sua
214
construtora, como nos é mostrado no decorrer da minissérie. O ato de colecionar,
como explica Benjamin (1987), ao abordar sobre o desempacotar de sua biblioteca,
é “[...] apenas um dique contra maré de água viva de recordações que chega
rolando na direção de todo colecionador ocupado do que é seu” (BENJAMIN, 1987,
p. 227). Nesse contexto, “quase toda paixão confina com um caos, mas a de
colecionar com o das lembranças. Contudo, direi mais ainda: o acaso e o destino
que tingem o passado diante de meus olhos se evidenciam simultaneamente na
desordem habitual desses livros” (BENJAMIN, 1987, p. 228). Conforme o autor, o
colecionador está nesta tensão entre a ordem e a desordem.
Esta tensão entre ordem e desordem, conforme Benjamin (1987), constrói o
colecionador, a coleção e as relações dessas com a lembrança. Em Felizes para
sempre?, tal tensão constitui o personagem Cláudio e suas relações com os outros
sujeitos da minissérie, num movimento constante de colecionar, não apenas obras
pictóricas, como também poder, amantes, sujeitos da política. O maior fascínio do
colecionador, segundo Benjamin (1987, p. 228), “é encerrar cada peça num círculo
mágico onde ela se fixa quando passa por ela a última excitação – a da compra.
Tudo o que é lembrado, pensado, conscientizado, torna-se alicerce, moldura,
pedestal, fecho de seus pertences”.
Justamente nesse emoldurar (das relações que atravessam discursivamente
a “Pinacoteca Marília Drummond”) que (in)conscientemente o colecionar funciona
na/pela relação com a profissão de Marília (restauradora), que é tida como alguém
que aprecia, entende de/sobre arte, que participa do processo de recuperação de
obras de arte. A restauração, segundo Carvalho (2008, p. 134), ao citar Viñas
(2004), é um conjunto de “atividades materiais, ou de processos técnicos,
destinados a melhorar a eficiência simbólica e historiográfica dos objetos, atuando
sobre os materiais que os compõem”. Nesse sentido, para o autor, ao citar Brandi
(2005), a restauração visa restabelecer a unidade potencial da obra, desde que “não
cometa um falso artístico e não remova as marcas que a obra adquiriu com a
passagem do tempo” (CARVALHO, 2008, p. 135).
Na minissérie, esse efeito de falseamento não está na restauração em si,
mas justamente naquilo que não é possível de se restaurar, ou seja, as fraudes (uso
de obras para lavagem de dinheiro por parte de Cláudio, no desconhecimento de
Marília), o sentido de lar, pois a casa é, de fato, uma fachada. Fachada porque
serve para depósito de obras envolvidas nessas ações ilegais quanto fachada no
sentido de que embelezam paredes de um cenário familiar forjado na/pela traição
múltipla de Cláudio com a esposa. A arte, para Freud, como argumenta Fuks
(2003), se distancia dos estetas que concebiam a arte com um modo de expressão
do belo, da harmonia, para afirmar que a força cultural da arte “encontra-se no
registro das pulsões e do desejo. Ou seja, o que ele introduz de novo no universo
das artes é o desvelar da íntima relação entre a produção artística e os processos
inconscientes” (FUKS, 2003, p. 18). Uma dessas vias impostas pela civilização ao
sujeito para assegurar o controle de suas pulsões é a sublimação. Na criação
artística, as pulsões e os desejos, encontram uma forma própria e subjetiva de
satisfação, transformando os restos pulsionais, “ajudando a minorar os poderes da
repressão e inibição sob a cultura, modificando-a. O impacto de determinadas obras
plásticas sobre a civilização, com seu eventual valor subversivo, testemunha o vigor
dos efeitos da sublimação sobre a vida social” (FUKS, 2003, p. 18). Esta função da
arte, apresentada pela autora, na minissérie assume o lugar de denunciante das
tensões do social que são construídas na/pela relação com os processos de “fugir”
da repressão social/cultural dos desejos e instintos dos personagens. O espaço
casa, composto por obras de arte, que emolduram e organizam tanto o espaço
físico como as relações entre os sujeitos, que (se) significam inicialmente como
215
lugar de uma família unida, perfeita, também é significado como um espaço de
atuação profissional, um espaço que, retomando as ideias de DaMatta (1986), já
expressas, está imbricado com a rua, mas que, ao mesmo tempo, se distancia de
seu fluxo, da maneira como os sujeitos relacionam-se entre si e com ela. Isto é, a
casa e suas relações com a arte pictórica, se constituem nessa relação com as
profissões e hobby de Marília e Cláudio, sendo também significada como um
espaço de atuação profissional (de uma profissão não-regulamentada) para Danny
Bond, prostituta de luxo68, de nível universitário, a qual figura como entendedora de
arte (pictórica), e toca piano69. Uma personagem que joga com os desejos 70
apresentados como sendo do casal, mas participa da “fantasia” de sexo a três de
Cláudio, como exibido numa fala da cena da terapia do casal no primeiro episódio.
Desejo este que não chega a ser realizado, mas que se realiza nas relações extraconjugais (Denise-Cláudio e Denise e Marília).
Retomamos aqui um trecho da análise do primeiro episódio da minissérie
Felizes para sempre?, realizada por Lara (2017), pois nela a autora sinaliza o jogo
de imagens constitutivo da família Drummond que o artístico denuncia. O
entrelaçamento de cenas que significam o adultério, para Lara (2017, p. 339), joga
“com as imagens que se querem ‘preservadas’ socialmente no mundo normatizado,
regrado e estável ou que requer o reestabelecimento da ordem”. Põe à visibilidade
um mundo de aparências que não desaparece sem deixar marcas. A “família feliz”,
ou ainda, “perfeita”, “se compõe de cacos, pedaços desestabilizados, in-visíveis,
que querem ser recompostos por terapia de casal, ou discursos moralizantes ou
mesmo desejosos de um ‘apimentar a relação’ na busca por satisfação dos desejos
ocultos e/ou reprimidos” (LARA, 2017, p. 339).
A casa de Cláudio e Marília Drummond, decorada com/por obras pictóricas,
considerando a contradição constitutiva do social, é denunciada (discursivamente)
pela arte no in-visibilizado de um mundo dividido, marcado pela tensão
social/cultural,
nas/pelas
práticas
não-institucionalizadas,
não-permitidas
empresarial e politicamente ou no casamento; o colecionar-restaurar vai sendo
significado por pinceladas que apontam para as im-perfeições que constituem estes
sujeitos e a família Drummond.
Tal tensão que compõe o cenário da minissérie, mais especificamente, as
relações dos sujeitos Cláudio, Marília e Danny Bond entre si e destes com a casa
enfeitada por obras de arte, nos fez lembrar o texto “Delimitações, inversões,
deslocamentos”, de Pêcheux (1990), mais precisamente, no ponto “A questão da
revolução socialista a partir do século XIX”, quando ao abordar sobre o irrealizado
no movimento popular, o autor afirma que a burguesia necessita que o ideal de
68
Para Cláudio (marido de Marília), segundo Lara (2017, p. 345), “produz sentido”,
inconscientemente, entender a prostituição como profissão, não por reconhecê-la como trabalho,
mas “como prestação de serviços como se fosse outro qualquer, selecionando o corpo-produto por
critérios qualificadores de mercado”, em que a designação “luxo”, pré-qualifica “o produto-serviço no
nível sócio-econômico-cultural em que o sujeito se situa em sociedade”.
69
O “tocar piano”, explica Lara (2017) baseada em estudo histórico de Vasconcelos (2004), é uma
formulação visual que atualiza um gesto histórico pertencente a um imaginário de sociedade na qual
mulheres de classe médio-alta eram submetidas a uma educação doméstica que lhes
possibilitassem ser mães, gestarem uma casa e terem um nível cultural considerado apropriado para
qualificá-las ao casamento. Aprender a tocar piano era uma das atividades da aprendizagem da
educação doméstica.
70
O desejo conforme Roudinesco, Plon (1998), é um termo utilizado na filosofia, psicanálise e
psicologia para designar propensão, anseio, necessidade, apetite, cobiça, ou seja, qualquer forma de
movimento em direção a determinado objeto cuja atração espiritual ou sexual é sentida pelo corpo e
pela alma. Na Psicanálise freudiana, esse conceito está no contexto do inconsciente, designando ao
mesmo tempo a propensão e a realização da propensão. Assim, o desejo é uma realização de um
anseio inconsciente.
216
igualdade permaneça irrealizado: “a dominação da ideologia jurídica introduz assim,
por meio de uma barreira política invisível, que se entrelaça sutilmente com as
fronteiras econômicas visíveis engendradas pela exploração capitalista” (PÊCHEUX,
1990, p. 11, grifos do autor). Essa barreira invisível, da qual nos fala o filósofo, não
separa dois “mundos”, mas divide um em dois;
[...] atravessa a sociedade como uma linha móvel, sensível às
relações de força, resistente e elástica, sendo que, de um e outro de
seus lados, as mesmas palavras, expressões e enunciados de uma
mesma língua, não têm o mesmo “sentido”, esta estratégia da
diferença sob a unidade formal culmina no discurso do Direito, que
constitui assim a nova língua de madeira da época moderna, na
medida em que ela representa, no interior da língua, a maneira
política de negar a política (PÊCHEUX, 1990, p. 11 grifos do autor).
Se pensarmos os sentidos possíveis do/para o artístico que atravessa e
constitui o relacionamento de Marília, Claúdio e Denise-Danny Bond, assim como o
relacionamento destes com a arte pictórica e com a música, essa linha móvel,
resistente e elástica, sobre a qual nos fala Pêcheux (1990), é que faz com que os
sentidos do colecionar, do restaurar-colecionar, do ser família, do que é nãopermitido, não-aceito socialmente, signifique de maneira diferente nos dizeres de
cada personagem sobre seus desejos, como também sobre o que seja a arte e a
maneira como ela se condensa em uma coleção.
4.Considerações Finais
Na busca por compreender, por uma perspectiva discursiva, a maneira com
que a arte denuncia as tensões do familiar/religioso-desejos/impulsos do(s)
sujeito(s)-profissional no relacionamento entre Marília, Cláudio e Denise na
minissérie Felizes para sempre?, interrogamo-nos, neste artigo, sobre como nas
relações entre Marília, Cláudio e Denise o artístico denuncia a tensão social/cultural
nas práticas desses sujeitos.
Para responder a esta indagação, durante o percurso de análise, debruçamonos sobre a materialidade casa, como espaço onde, pelo movimento dos
personagens de (tentar) burlar as regras socialmente aceitas ou, recuperando Freud
(1969), os limites estabelecidos culturalmente, sem que estes deixem de existir,
investimos no funcionamento da contradição constitutiva do social, na e pelas
relações entre os sujeitos Marília, Cláudio e Denise/Dany Bond. Nessa casa onde
as obras de arte compõem o espaço físico, como também o relacionamento desses
sujeitos entre si, e deles com o artístico, as obras de arte (pictórica) assumem o
papel de denunciante das atitudes de cada personagem que, na tentativa de
satisfazer seus desejos (in-conscientes), quebram as regras sociais e jurídicas, seja
para se satisfazer sexualmente, na vida profissional, ou, ainda, para colecionar
relacionamentos extra-conjugais e/ou poder (sobre outros sujeitos).
Nesse sentido, em Felizes para sempre? o emoldurar (do) pictórico, que
enquadra, organiza os ciclos de vivência dos sujeitos Marília, Cláudio e Danny
Bond, in-visibiliza a maneira como as regras sociais, empresariais/políticas demarcam os direitos, deveres, o aceito e o não aceito culturalmente no
relacionamento entre os próprios membros da família, da localidade geográfica onde
se passa a minissérie, Brasília. Como sinaliza Lara (2017), o que, de fato, fica como
discurso da minissérie é a ideia de resposta social como punição jurídica para os
sujeitos e a impossibilidade da felicidade eterna.
217
5.Referências
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única: obras escolhidas volume II. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 227-235.
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Campinas,
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p.113-142.
Disponível
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http://www.unicamp.br/chaa/eha/atas/2008/CARVALHO,%20Humberto%20Farias%
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DAMATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
FELIZES para sempre? Escrita por Euclydes Marinho et. al. Direção geral de
Fernando Meirelles. Produzida por O2 Filmes. Exibida pela Rede Globo de
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Indústria e Comércio Fonográfica S. A.
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MEDEIROS, Vanise (Orgs.). Discurso, resistência e... Cascavel: EDUNIOESTE,
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FUKS, Betty Bernardo. Freud e a cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
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LAGAZZI, Suzy. Análise de discurso: a materialidade significante na história. In: DI
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218
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ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998.
219
ANÁLISE DO DISCURSO E PORTAL
VERMELHO – IDENTIFICAÇÃO, SUJEITOS E
DISCURSO FUNDADOR
BRUNO DE AZEVEDO SANTANA GUIMARÃES
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC)
Campus Soane Nazaré de Andrade, Rodovia Jorge Amado, Km 16,
Bairro Salobrinho
CEP 45662-900. Ilhéus-Bahia
bruno.azevedo1985@gmail.com
Resumo. O presente trabalho tem como objetivo amarrar os fios
concordantes sobre ideologia, luta de classes e discurso ao analisar a
matéria "Enquanto o povo quer diretas, Fiesp quer manter Temer e fazer
reformas", publicada no dia 26 de junho de 2017, pelo Portal Vermelho.
Assim, antes de adentramos em nossa análise, percorreremos um
caminho teórico acerca de conceitos que auxiliarão no processo de
pesquisa. No primeiro momento, traremos as abordagens sobre
Aparelhos Ideológicos de Estados apresentados por Louis Althusser
(2008). No segundo momento, trataremos sobre a luta de classes e seus
ideais materiais ideológicos, através do texto de Michel Pêcheux (2014).
Em nossa análise, abordaremos a materialidade do Portal Vermelho que
se auto define como de ‘esquerda’ e analisaremos o Manifesto Vermelho
que é o norte do referido portal como discurso fundador (ORLANDI,
2001). Estudar tais conceitos em matérias jornalísticas é fazer uma
reflexão importante sobre a sociedade sob o viés da ideologia e
desmistificar a ideia do senso comum de que ela seja apenas uma mera
“ilusão”.
Palavras-Chave. Análise do Discurso. Ideologia. Internet. Mídia.
Abstract: The present work aims to tie the concordant threads on
ideology, class struggle and discourse in analyzing the matter "While the
people want direct, Fiesp wants to keep Temer and make reforms,"
published on June 26, 2017, by the Red Portal . Thus, before entering our
analysis, we will walk a theoretical path about concepts that will aid in the
research process. In the first moment, we will bring the approaches on
State Ideological Apparatus presented by Louis Althusser (2008). In the
second moment, we will deal with the class struggle and its ideological
ideals, through the text of Michel Pêcheux (2014). In our analysis, we will
approach the materiality of the Red Portal that defines itself as 'left' and
we will analyze the Red Manifesto that is the north of the portal as a
founding discourse (ORLANDI, 2001). In short, to study such concepts in
journalistic matters is to make an important reflection on society under the
bias of ideology and to demystify the idea of common sense that it is only
a mere "illusion".
Keywords. Speech. Ideology. Internet. Media.
1. Introdução
220
Os conceitos sobre ideologia e sua materialidade, ou as reflexões acerca
destes conceitos, nos foram retomados por Althusser ([1970] 2008) e Pêcheux
([1975] 2014. Cada um, a seu modo, teceu análises sobre o assunto e abordou
pontos importantes sobre a constituição da ideologia e seus respectivos sensos e
contrassensos.
Antes de adentramos em nossa análise, percorreremos um caminho teórico
acerca de conceitos que auxiliarão no processo de pesquisa. No primeiro momento,
traremos as abordagens sobre Aparelhos Ideológicos de Estados apresentados por
Louis Althursser ([1970] 2008). Em seguida, faremos associações entre os conceitos
apresentados pelo mesmo com os conceitos dos autores supracitados. No segundo
momento, trataremos sobre a luta de classes e seus ideais materiais ideológicos,
através do texto de Michel Pêcheux ([1975] 2014).
Em nossa análise, abordaremos a materialidade do Portal Vermelho que se
auto define como de ‘esquerda’ e analisaremos o Manifesto Vermelho que é o norte
do referido portal como discurso fundador (Orlandi, 2001). Em suma, estudar tais
conceitos em matérias jornalísticas é fazer uma reflexão importante sobre a
sociedade sob o viés da ideologia e desmistificar a ideia do senso comum de que
ela seja apenas uma mera “ilusão”.
2. Aspectos inerentes à Luta de Classes
Em Sobre a reprodução, o filósofo francês Louis Althusser nos apresenta
uma reflexão sobre os conceitos acerca dos Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE).
Em seu texto, Althusser retrata as lutas de classe e parâmetros conceituais
pertinentes sobre a ideologia dominante e dominada decorrente desta luta. Ao se
referir à ideologia dominante, o mesmo afirma que a mesma “não é a simples
repetição”, mas sim, uma renovação de elementos ideológicos anteriores. Desta
forma, podemos entender que esta ideologia sempre se reinventa e se torna,
basicamente, um elemento que é submetido à luta de classes (ALTHUSSER, 2008,
p. 240).
De acordo com este conceito, Michel Pêcheux (2014), afirma ainda que “[...]
os AIE não são, por outro lado, puros instrumentos da classe dominante, máquinas
ideológicas que reproduzem pura e simplesmente as relações de produções
existentes”. Ou seja, os AIE não são ferramentas, mas sim o “lugar” e o “meio” de
realização da ideologia da classe dominante.
Voltando-se novamente ao texto de Althusser (2008, p.251), o filósofo
aprofunda sua análise sobre os AIE e retoma uma reflexão feita pelo mesmo em
1970, quando dizia que:
Se é verdade que os AIE representam a forma na qual a ideologia
da classe dominante deve realizar-se (para ser politicamente ativa) e
a forma com a qual a ideologia da classe dominada deve,
necessariamente, medir forças e enfrentar, as ideologias não
‘nascem’ nos AIE, mas surgem das classes sociais envolvidas na
luta de classe: de suas condições de existência, de suas práticas, de
suas experiências de luta, etc.
Desmistifica-se a ideia que a ideologia da classe dominante nasce
diretamente nos AIE, e afirma que a mesma se origina no processo de luta classista
que tem como elementos as condições de existências e práticas, dentre outros
fatores. É importante ter essa ideia em mente, pois o senso comum atribui aos AIE a
responsabilidade da criação desta ideologia e esquece-se que a luta entre as
classes origina e reformula as ideologias dominantes e dominadas.
221
Antes que passemos a outros conceitos pertinentes a esta temática, faz-se
necessário conceituarmos o que são Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE).
Segundo Althusser, os AIE são instituições distintas especializadas, como a Igreja,
escola, família, jurídico, político, dentre outros.
Estes, os AIE, se diferem dos Aparelhos Repressivos de Estados (ARE) no
que tange ao funcionamento. Enquanto os AIE funcionam por meio da ideologia, os
ARE podem funcionar de forma repressora, violenta. No entanto, o próprio autor
afirma que não existe aparelho puramente repressor ou ideológico. Em primeira e
segunda instância, uma se assemelha à outra (ALTHUSSER, 2008, p.266).
Outra proposta de análise presente no texto faz referência a “história da
ideologia”. Althusser, ao refletir sobre as ideias de Marx no livro A ideologia alemã,
informa que a ideologia não tem história. Segundo o mesmo, Marx exprime essa
ideia através de bases positivistas, uma vez que “sua história lhe é exterior, ou seja,
situa-se onde existe a única história real, a dos indivíduos concretos,
etc.”(ALTHUSSER, 2008, p. 276). Para Marx, a ideologia se apresenta de forma
negativa, exterior. Pensamento que se difere de Althusser quando ele defende que
[...] as ideologias têm uma história própria (embora seja
determinada, em última instância, pela luta de classes); e, por outro,
creio poder defender, ao mesmo tempo, que a ideologia em geral
não tem história, não em um sentido negativo (o de que sua história
lhe é exterior), mas em um sentido absolutamente positivo
(ALTHUSSER, 2008, 277)
O sentido positivo proposto pelo autor, diz respeito ao pertencimento da
ideologia a uma estrutura de funcionamento que transforma uma realidade “nãohistórica” em uma estrutura histórica, como no caso da história da luta de classes.
Pêcheux (2014, p.6) ratifica essa ideia ao afirmar que “a luta de classes é o motor
da história, incluindo a história da luta ideológica de classes”.
Entendendo o papel importante da ideologia, Althusser refere-se ainda ao
sujeito e afirma que “toda ideologia existe pelo sujeito e para os sujeitos”. O autor se
refere a interpelação da ideologia nos indivíduos como sujeito. Em seu texto “Ousar
pensar, e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta de classes”, Michel Pêcheux,
aborda a interpelação através de três características: a identificação, a
contraidentificação e a desidentificação.
A primeira, identificação, é caracterizada através da relação sujeito/Sujeito.
Neste caso, o sujeito se assujeita livremente ao Sujeito. A segunda,
contraidentificação, não há “coincidência” entre sujeito e Sujeito. Já a
desidentificação, ocorre quando há um rompimento das matrizes ideológicas entre
sujeito e Sujeito.
3. Reflexo da Luta de Classes no manifesto do Portal Vermelho
O ciberespaço, segundo o filósofo e sociólogo, Pierre Lévy (2010, p.99),
define-se como “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial de
computadores e das memórias dos computadores”. E, como tal, proporcionou-se a
veiculação de conteúdos com periodicidade quase instantânea. Jornalistas,
pesquisadores e estudiosos lançaram-se à Internet utilizando-se do seu aparato
tecnológico para veicular notícias e abordar assuntos não discutidos pela mídia
tradicional (BORGES, 2010).
O ambiente virtual, portanto, torna-se um espaço onde os sujeitos podem se
identificar com os conteúdos produzidos e veiculados pelos blogs e portais de
222
notícias, se inscrevendo, desta forma, em uma dada posição ideológica. Esta prática
permite aos sujeitos uma interlocução com outros sujeitos que estão em diferentes
regiões, bem como o compartilhamento de conteúdo e ideias em comum. As
fanpages (páginas de fãs) presentes no Facebook e em outras redes sociais, são
exemplos desta interlocução entre diferentes sujeitos que se inscrevem em uma
mesma posição ideológica.
Destarte, propomos analisar o Portal Vermelho, que é uma página virtual que
tem como tema “A esquerda bem informada”. A partir deste tema, identificamos que
o referido portal se propõe a informar aos sujeitos que se identificam com a “política
de esquerda”, cujo ideal é a transformação social da sociedade capitalista para
comunista em seu sistema econômico (MARX E ENGELS, 1987).
Segundo informado no Portal Vermelho, a página é mantida pela Associação
Vermelho, que é uma entidade sem fins lucrativos. Em sua política de utilização do
conteúdo,
O Vermelho autoriza e incentiva a utilização de qualquer texto,
imagem e arquivos de som e vídeo disponíveis no portal por
quaisquer pessoas em quaisquer meios de divulgação, desde que
esta utilização não seja contrária aos princípios definidos
no Manifesto Vermelho. Sugerimos que seja registrado, sempre que
possível, o nome do autor do texto (caso o mesmo esteja assinado),
da seguinte forma: Texto de fulano de tal, publicado originalmente no
Portal Vermelho. Alertamos que a maior parte das imagens e textos
publicados em nosso portal são reproduzidos de outras fontes.
<Disponível em
http://www.vermelho.org.br/interna.php?pagina=quemsomos.htm>
Acesso em 28 de julho de 2017.
Como podemos observar, o Portal Vermelho autoriza a veiculação de seu
conteúdo mediante o respeito ao crédito do autor do texto bem como ao próprio
portal. Essa é uma prática comum das agências de notícias que autorizam a
veiculação do seu conteúdo. Notamos, também, em suas diretrizes, que o portal
permite a divulgação “desde que esta utilização não seja contrária aos princípios
definidos no Manifesto Vermelho”, ao qual visualizaremos abaixo:
Figura 1 < Disponível em: http://www.vermelho.org.br/html/galomanifesto.gif> Acesso em 28
de julho de 2017.
Percebemos, assim, que a Formação Discursiva (FD) do portal, direciona seu
olhar à causa dos trabalhadores e ‘rejeita’, desta forma, a política neoliberal. O
excerto “treva neoliberal” não somente serve para ilustrar o pano de fundo da figura,
como também remete ao processo político de ‘direita’. Segundo Eni Orlandi (1999),
“se observarmos do ponto de vista da cromatografia política, o negro tem sido a cor
do fascismo, dos conservadores, da ‘direita’ em sua expressão política” (p.29).
Por outro lado, a cor vermelha que serve para ilustrar a figura do galo, o
223
nome do manifesto e a nomenclatura do próprio portal, mostra o efeito de revolução.
“A cor vermelha está ligada historicamente às posições revolucionárias,
transformadoras” (ibidem, p.29). Neste caso, sob o fundo preto, as palavras
“Manifesto Vermelho” e o próprio galo que ilustra a figura, fazem apelo à revolução
frente à tradição de direita e ratificam o ideal de “iluminar” as ideias das trevas que a
política neoliberal representa.
O próprio galo pintado de vermelho, confirma a ideia supracitada com a frase
“e toda aurora tem seus galos, clarinando no escuro o dia por nascer”, ou seja, o
referido portal pretender ser este “galo” na internet, que tem por objetivo “anunciar”
o novo dia (ideal revolucionário) em meio às trevas que o tradicionalismo neoliberal
impõe à sociedade capitalista.
Nesta análise, portanto, encontramos em si uma memória, isto é, o
interdiscurso. O linguista e teórico Jean-Jacquee Courtine (2016) retoma os
conceitos de Pêcheux acerca do interdiscurso ao informar que o mesmo “consiste
em um processo de reconfiguração incessante no qual uma FD é levada, em função
das posições ideológicas que essa FD represente em uma conjuntura determinada”
(p.40).
Assim, identificamos na análise do manifesto acima, a presença do
interdiscurso, à medida que podemos identificar o interdiscurso tanto através dos
efeitos de sentido possibilitados pelas cores utilizadas pelo manifesto, como no
símbolo que representa o ideal do portal, bem como nos dizeres inscritos na
declaração do Vermelho.
Outro aspecto referente ao Manifesto, é que o mesmo torna-se o discurso
fundador do Vermelho, pois, a partir de sentidos ideológicos propostos, remete a
uma significação do novo, ou seja, “busca a notoriedade e a possibilidade de criar
um lugar na história, um lugar particular [...] que confunde a realidade, a imaginação
(a ficção, a literatura) e o imaginário (a ideologia, o efeito de evidência construído
pela memória)” (ORLANDI, 2001, p.16-17).
Ainda segundo Orlandi, “o que define o discurso fundador, a nosso ver, não
são esses materiais, mas a historicidade tal como a enunciamos anteriormente”
(2001, p.23). Ou seja, o que a pesquisadora informa é que a historicidade dos
processos discursivos é o mais interessante, pois demonstram aspectos mais
relevantes dos enunciados, mitos, lendas, ordens dos discursos, e afins.
5. Considerações Finais
Este trabalho tratou sobre os conceitos de Ideologia e suas possíveis
reflexões presentes nos textos de Marx, Althusser, Pêcheux, Figueira e Dunker.
Assim, analisamos o caráter ideológico sob diferentes aspectos e elucidamos
conceitos e reflexões sobre as teorias que compõem a obra dos autores
supracitados.
Percebemos a importância em compreender tais reflexões, pois, as mesmas
compõem papel fundamental nos estudos da Análise do Discurso. A interpelação do
sujeito pela ideologia, o direciona ao sentido e este, só existe quando se remete a
História.
Analisamos o Portal Vermelho através do Manifesto Vermelho que ‘rege’ os
parâmetros ideológicos e constatamos que os sentidos atravessados através da
declaração analisada, a constitui como sendo uma Formação Discursiva de
esquerda e que tem como principal objetivo se contrapor ao sistema capitalista
vigente no Brasil.
A Análise do Discurso (AD) procura entender os sentidos da língua, enquanto
bem simbólico e que é constitutivo da história humana (Orlandi, 1999). Por isso, a
224
AD pretende compreender os objetos simbólicos que produzem sentidos e estão
inscritos nas diversas formações discursivas.
6. Referências
ALTHUSSER, Louis. Sobre a Reprodução. [1995] Tradução de Guilherme João de
Freitas Teixeira. Introdução de Jacques Bidet. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
CONEIN, B; COURTINE, J-J; GADET, F; MARADIN, J-M; PÊCHEUX, M.
Materialidades Discursivas. Trad. Eni Orlandi et al. Campinas: Ed Unicamp,
2016.
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 40, 2010.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista (10a. Ed., São
Paulo: Global, 2006 [1987])
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. 5.ed. Campinas: Ed.Unicamp. 2014.
______________. Ousar pensar e ousar se revoltar. Ideologia, marxismo, luta
de classes. Trad. Guilherme Adorno e Gracinda Ferreira. Décalages – an Althusser
Studies Journal, v. 1, n. 4, 2014.
ORLANDI, E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP:
Pontes, 1999.
____________. (Org.). Discurso Fundador. Campinas, SP: Pontes, 2001.
225
LETRAMENTO DIGITAL E ACADÊMICO NO
PROCESSO JUDICIAL ELETRÔNICO
BRUNO VIEGAS DOS SANTOS, ELLEN MAIRA DE ALCANTARA LAUDADRES,
PATRICIA PEIXOTO CARNEIRO VIEGAS
Universidade Autônoma de Lisboa (UAL) - Palácio Dos Condes Do Redondo
(Sede). Rua De Santa Marta 56 - 1169-023 Lisboa – Portugal
Universidade Federal de Lavras (UFLA) – Departamento de Educação -Câmpus
Universitário, Caixa Postal 3037, CEP 37200-000 • Lavras/MG
Universidade Federal de Lavras (UFLA) – Departamento de Educação -Câmpus
Universitário, Caixa Postal 3037, CEP 37200-000 • Lavras/MG
brunoviegas.santos@yahoo.com.br, ellenusp@yahoo.com.br, patypcr@hotmail.com,
Resum. O sujeito que ingressa em um curso de Direito precisa saber
que, se for exercer a profissões jurídicas, além de um letramento
acadêmico (STREET, 1999), também deve ser letrado digitalmente
(XAVIER, 2007;) (BUZATO, 2006). Diante da sociedade em rede
(CASTELLS, 2005) em que novos perfis são requeridos dos diversos
profissionais, também são exigidas diferentes habilidades dos bacharéis
em direito, vez que hoje existe nos Tribunais de Justiça o Sistema do
Processo Judicial Eletrônico. Constatou-se que, mesmo existindo o
letramento acadêmico, não é o suficiente para formação de um
profissional completo.
Palavra-Chave: letramento digital – letramento acadêmico – processo
judicial eletrônico
Abstract: The subject who enters a course of law needs to know that if he
is to exercise legal professions, in addition to academic literacy (STREET,
1999), must also be digitally literate (XAVIER, 2007;) (BUZATO, 2006). In
the face of the networked society (CASTELLS, 2005) in which new
profiles are required of the various professionals, differents skills of the
bachelors in law are also required, since today there is the Electronic
Process System. It was found that, even if academic literacy existed, it is
not enough to train a full professional
Key-words: digital literacy - academic literacy - electronic judicial process
1. Introdução
Vivemos em uma sociedade em rede (Castells, 2005) em que novos perfis
são requeridos dos diversos profissionais, também dos bacharéis em Direito são
exigidas novas habilidades.
Onde antes se exigia conhecimento técnico e uma boa oralidade, atualmente,
podemos acrescentar o letramento digital. Com a instauração do Sistema do
Processo Judicial Eletrônico nos Tribunais de Justiça e a possibilidade de acesso de
processos de diversas localidades sem sair do escritório, a necessidade de saber
fazer uso desse software torna-se imprescindível.
Assim, pretende-se tratar da necessidade de assimilação do Sistema do
226
Processo Judicial Eletrônico como uma forma de letramento digital, ainda dentro do
núcleo de formação de futuros advogados.
Foi notado que os estagiários do curso de Direito, em uma cidade das
vertentes de Minas Gerais, que estão em processo de aprendizagem de institutos
jurídicos (letramento acadêmico), não têm práticas de letramento digital, isto é,
alguns têm dificuldade na elaboração de petições ao usar uma tecnologia digital,
como, por exemplo, ao digitar ou ao justificar um texto e acesso ao sistema do
Processo Judicial Eletrônico (também intitulado de PJE), necessário para o
desenvolvimento de atividades com os clientes por eles atendidos no Núcleo de
Prática Jurídica.
Tem como objetivo, portanto, identificar as principais dificuldades dos alunos,
que frequentam o estágio supervisionado obrigatório do curso de Direito de uma
cidade das vertentes no estado mineiro.
2. O estágio em Direito e os letramentos
O sujeito que ingressa em um curso de Direito precisa ter consciência que, se
for exercer uma profissão jurídica, esse profissional, além de um letramento
acadêmico Street (1999), também deve ser letrado digitalmente Soares (2002),
Xavier (2007), Buzato (2006).
Pesquisadores do campo da linguística, antropólogos e historiadores
concebem o letramento como prática social e proclamam ser o letramento mais que
o conhecimento do código da língua per se, mas se refere aos usos e às funções da
escrita dentro das práticas sociais em que se insere (STREET, 2003).
O letramento não tem uma definição rígida, além de compreender diversas
classificações, mas, podemos inferir, que compreende o desenvolvimento de
algumas habilidades de escrita e de oralidade e o uso das multimodalidades textuais
para atender as atividades cotidianas.
Percebe-se, ainda, que são tímidos os estudos sobre o letramento acadêmico
nas universidades, já que o enfoque maior sobre o letramento é na Educação
Básica (MARINHO, 2010).
Nesse sentido, que preocupa-se com o letramento acadêmico. É na
universidade que a maioria dos alunos tem contato com os gêneros textuais
acadêmicos, que correspondem a gêneros de leitura e de escrita acadêmica, tais
como resenha crítica, artigos, teses, dissertações, monografias, etc.
Com o processo de escolarização, os gêneros tornam-se mais complexos,
seriam considerados por Bakhtin (2003) como os gêneros secundários. O que não
engessa os enunciados (MARINHO, 2010), apesar de existir uma forma, cada
indivíduo pode fazer uso da sua subjetividade, tanto na escrita, quanto na oralidade.
Assim, compreende-se que a universidade tem importante função em
desenvolver habilidades de escrita e de oralidade para as práticas sociais. O
estágio, portanto, é o momento de colocar em prática alguns aprendizados
adquiridos ao longo do curso de graduação.
Os alunos de Direito, ao ingressarem no 7º período, devem passar pelo
estágio obrigatório, que vai depender do currículo de cada universidade, que
estabelece suas modalidades. No caso em tela, os alunos tem opção de fazer
atendimento no Núcleo de Prática Jurídica, de acompanhar um escritório de
advocacia devidamente credenciado ou assistir uma carga horária de audiências.
Focamos, aqui, o estágio realizado no Núcleo de Prática Jurídica. Os alunos,
supervisionados por um professor da instituição, fazem atendimento a clientes de
baixa renda. Caso não consigam fazer a mediação entre as partes, elaboraram a
227
respectiva peça processual.
Acontece que essas peças processuais devem seguir uma certa formalidade.
Observar a formatação, além do conteúdo, seguindo os requisitos processuais.
É nesse momento que os alunos devem saber fazer uso de programas de
editor de texto e conhecer o processo eletrônico judicial, ou seja, a fusão do
letramento acadêmico e do letramento digital para a prática profissional.
Soares (2002, p. 151) define letramento digital como um “certo estado ou
condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem
práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do
letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel”.
3. Descrição da metodologia
Os alunos elaboram petições e as encaminham para peticionamento
eletrônico, supervisionado pelo professor da instituição.
O advogado responsável analisa as petições enviadas. O próprio advogado
protocola ou devolve para correções. Nesses casos podem ocorrer erros de: a)
estrutura/forma, b) conteúdo.
Assim, durante os meses de junho a setembro de 2017 foram analisados e
acompanhados o trâmite de peticionamento desses estagiários e quais têm sido as
recorrências mais comuns.
4. Análise de dados
A cada mês são submetidos um número variado de petições iniciais (aquela
que inicia o processo judicial) e cerda de 9 petições intercorrentes (petições de
algum processo já em andamento), além dos andamentos (marcações de
audiências).
Tabela 1 - Petições distribuídas e não distribuídas em 2017
Petições
distribuídas
Junho/2017
Petições
não
distribuídas
TOTAL
29
9
38
Junho
julho/2017
e
13
10
23
Agosto
setembro/2017
e
8
4
12
Fonte: Do autor
Diante da Tabela 1, verificamos que em junho/2017 houve um acúmulo de
petições, decorrente das atividades do 1º semestre de 2017. Enquanto os meses de
agosto e setembro referem-se ao início do 2º semestre de 2017, logo após o
228
recesso escolar; o que justifica a discrepância do número de petições elaboradas e
enviadas ao advogado responsável.
Gráfico 1 - Proporção das ações distribuídas e não distribuídas em 2017
Fonte: Do autor
Pelo Gráfico 1 nota-se que há uma equivalência nos meses de agostosetembro/2017 e junho-julho/2017 de petições distribuídas e não distribuídas.
Tabela 2 - Erro de forma e de conteúdo das ações não distribuídas
Erro de forma
Erro de conteúdo
TOTAL
4*
7*
9
e
4
6
10
Agosto
e
setembro/2017
2
2
4
Junho/2017
junho
julho/2017
*Erro de forma e de conteúdo
Fonte: Do autor
Na tabela 2, demonstra os erros das ações não distribuídas, que acontecem
por erro de forma, de conteúdo ou por ambas, conforme ocorreu no mês de junho.
Os erros de forma correspondem ao mal uso das ferramentas tecnológicas,
enquanto o erro de conteúdo está no âmbito do letramento digital.
Gráfico 2 - Proporção de erros de conteúdo e de forma de ações não distribuídas
229
Fonte: Do autor
As causas de erros em petições elaboradas pelos alunos são:
a)
Esquecer de anexar os documentos (todos ou alguns);
b)
Erro de digitação ou de grafia;
c)
Não observar as regras para envio de uma petição, ex.: falta timbre do
núcleo de prática jurídica da instituição de ensino superior, espaçamento etc.
Conclui-se que:
- alguns alunos têm dificuldades de estruturar suas petições no editor de
texto, ou não conseguem fazer conversão para extensão exigida;
- parte dos alunos desconhece o sistema do Processo Judicial Eletrônico.
5. Considerações Finais
Ao final, constatou-se que, mesmo existindo o letramento acadêmico, que
exige a leitura de artigos e produções científicas, o seu desenvolvimento para o
exercício da advocacia não é o suficiente para formação de um profissional
completo. A identificação dessas dificuldades permitiu a elaboração de um projeto
de extensão para o letramento digital com esses alunos.
Diversos concursos públicos ligados a candidatos com graduação em Direito
exigem conhecimento em informática. Além disso, os próprios operadores do
Direito, sejam eles Magistrados, Promotores, Defensores Públicos, Advogados e os
servidores do Poder Judiciário, precisam atuar diariamente com seus certificados
digitais, softwares, editores de texto e as mais variadas formas de tecnologia digital.
Propõe-se, assim, como tentativa de redução do analfabetismo digital, de
forma instrumental, a inclusão de práticas aos planos de curso que privilegiem o uso
de computadores e software (editor de texto, planilhas, apresentação...) que
proporcionem um letramento digital, além da possibilidade de no estágio ter acesso
ao PJE (processo judicial eletrônico).
6. Referências
BUZATO, M. E. K. Letramentos Digitais e Formação de Professores. EducaRede, p.
1–14, 2006.
230
CASTELLS, M. A sociedade em rede. A Sociedade em Rede p. 286 ,
2005.9788577530366
MARINHO, M. A escrita nas práticas de letramento acadêmico. RBLA, v. 10, n. 2, p.
363–386, 2010.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 4. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura.
Educação & Sociedade, v. 23, n. 81, p. 143–160, 2002.
SOUZA, V. V. S. Letramento digital contextualizado: uma experiência na
formação continuada de professores. UFU, 2007.
STREET, B. What´s in New Literacy Studies? Critical approaches to literacy in
theory and practice. Current Issues in Comparative Education. Teachers College,
Columbia, University, 2003
XAVIER, A. C. DOS S. Letramento digital e ensino. In: Alfabetização e letramento:
conceitos e relações. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. p. 152.
231
EFEITOS DE SENTIDO A PARTIR DE
CHARGES SOBRE O PROJETO ESCOLA
SEM PARTIDO
CARLA CASSIANO DE ALMEIDA, NÁDIA DOLORES FERNANDES BIAVATI
DELAC-Departamento de Letras, Artes e Cultura
Universidade Federal de São João del-Rei
Praça Dom Helvécio, 74 – Dom Bosco, São João del-Rei –MG, 36301-160
carla-cassiano2012@hotmail.com, nadiabiavati@ufsj.edu.com
Resumo. O presente artigo destaca aspectos inerentes à charge
favorável ao Programa Escola sem Partido, considerando ações e
práticas sobre o discurso ali veiculadas, em estudo de caso. Toma-se o
viés da Análise de Discurso de vertente francesa, bem como aspectos
voltados para interdiscursividade, para compreender aspectos que
rememoram certo modo de perceber a escola, o professor, e, outas
instituições, considerando os efeitos de sentido dessas representações.
Palavras-Chave. Escola sem Partido. Análise de Discurso,
Interdiscursividade, Charges.
Abstract. The present article highlights aspects inherent to the favorable
charter of the School without Party Program, considering actions and
practices on the discourse presented there, in a case study. We take the
bias of French Speech Analysis, as well as aspects directed at
interdiscursivity, to understand aspects that reflect a certain way of
perceiving the school, the teacher, and, as other institutions, considering
the meaning effects of these representations.
Key-works. School without Party. Discourse Analysis. Interdiscursivity.
Cartoons.
1. Introdução
O presente trabalho aborda o modo como professores e alunos são
representados em charges que apoiam o Movimento Escola sem Partido. Destacase especialmente o modo como tais charges representam os referidos atores sociais
considerando a rede de sentidos constituídos a partir do gênero em questão.
Para a análise, consideramos que a rede de sentidos que se dá na escola só
é válida quando transforma o sujeito rumo à cidadania, ou seja, quando o educando
reconstrói os ensinamentos trazidos pelo educador de modo crítico, questionando-o
e buscando aprimorar cada vez mais seus conhecimentos. Como dito por Freire
(1996, p. 26), “nas condições de verdadeira aprendizagem, os educandos vão se
transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber
ensinado, ao lado do educador igualmente sujeito do processo”. Sob esse ponto de
vista, temos uma troca de saberes, relações e atores sociais que se dão em um
determinado local criado e propiciado para o ensino e aprendizagem: a escola.
Segundo a Lei 9.494/90- que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira (LDB), é assegurado o direito à educação escolar em igualdade de
condições de entrada e permanência pela oferta de um ensino público e gratuito de
qualidade. Deseja-se e empenha-se que os sujeitos sejam formados para ação
232
social e para a interação orientadas para a atuação em sociedade.
Segundo Gelati (2009, p. 104),
A convivência do homem em grupo, em sociedade foi criando,
estabelecendo um conjunto de regras. Ao tornar-se um ser social,
consequentemente, surgiram necessidades, papéis sociais, enfim, a
divisão social do trabalho também ocupou papel de grande
relevância nesses novos tempos. “Toda conduta institucionalizada
envolve certo número de papéis. Assim, os papéis participam do
caráter controlador da institucionalização.” (apud BERGER;
LUCKMANN, 2007, 82 Roteiro, Joaçaba, v. 34, n. 1, p. 79-92,
jan./jun. 2009 Fábio Cesar Gelati p. 104)
No processo de institucionalização, o indivíduo deve atuar e produzir
discursos em diversas condições sociais voltadas para o bem comum. Esses
discursos, como ditos por Foucault (2000) apud Sommer (2007), são práticas
organizadoras da realidade.
Ainda que feitos de signos, "o que fazem é mais que utilizar esses
signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à
língua e ao ato da fala" (Foucault, 2000, p. 56, grifos do original). Os
discursos estabelecem hierarquias, distinções, articulam o visível e o
dizível. Quer dizer, o foco não estaria "no significado das palavras,
mas sim no papel do discurso nas práticas sociais" (idem, p.193,
tradução livre), no papel dos discursos na organização das relações
entre indivíduos, instituições e organizações sociais mais amplas.
(SOMMER, 2007, p 01)
O discurso escolar em questão deve antes de tudo ser diferenciado do
discurso pedagógico. Segundo Gvirtz (1999, p. 15, tradução livre apud Sommer,
2007) é preciso fazer uma distinção entre práticas escolares e práticas discursiva,
“as primeiras se distinguem destas últimas a medida que se considera que são
produções da escola, e as segundas seriam produções sobre a escola, ou seja,
conformariam metadiscursividades na medida em que seriam práticas discursivas
(as pedagógicas) que se referem a outras práticas discursivas". Interessa-nos,
portanto, os discursos escolares e os discursos sobre a escola, compreendendo-os
como caminhos para atuação social.
Discordante da ideia de que a escola tem propiciado uma boa formação, o
Movimento Escola Sem Partido compreende um conjunto de discursos sobre a
instituição escolar, em que se consolidam dizeres:
- De discordância sobre formas do fazer escolar, referendando a ideia de,
aparentemente, um discurso político sobre o modo como a manifestação da palavra
deve acontecer na escola.
- Da discordância de que a escola tem atuado efetivamente a favor dos
valores familiares. Com isso, parte-se da ideia de uma suposta neutralidade para
trazer críticas sobre práticas e as representações sobre uma boa aula, bem como o
comportamento requerido aos professores dentro de um conjunto de dizeres
normativos.
Segundo fontes da página de web do programa e da página do Wikipédia
(enciclopédia online), o Projeto/ Programa Sem Partido baseia-se em uma proposta
normativa que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino
fundamental e médio de um cartaz com o seguinte conteúdo:
No exercício de suas funções, o professor:
I – não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, para promover
233
os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências
ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;
II – não favorecerá nem prejudicará ou constrangerá os alunos em
razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou
religiosas, ou da falta delas;
III – não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem
incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e
passeatas;
IV – ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas,
apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões,
teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito;
V – respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos
recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as
suas próprias convicções;
VI – não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores
sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros, dentro da sala
de aula. (BRASIL, 2015)
Na tentativa de consolidar os regramentos para o professor, houve um
projeto de lei apresentado para apreciação em 23 de março de 2015, pelo deputado
Izalci Lucas (PSDB/DF). Conforme descrição do projeto de lei, inclui, entre as
diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Esse
projeto de lei (doravante PL) prevê que a “doutrinação política e ideológica em sala
de aula seja extinta”, bem como a “extinção da usurpação do direito dos pais a que
seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias
convicções”, citando os dizeres do projeto..
Cita-se, por exemplo, o Art. 1º, que apresenta os princípios educacionais
propostos pelo projeto, os quais visam a garantia do se nomeia como “educação
neutra, livre de pensamentos políticos, ideológicos e religiosos”.
Art. 1º. Fica criado, no âmbito do sistema estadual de ensino, o
"Programa Escola sem Partido", atendidos os seguintes princípios:
I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;
III - liberdade de consciência e de crença;
IV - liberdade de ensinar e de aprender;
V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte
mais fraca na relação de aprendizado;
VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos
compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral
que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na orientação
sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de
comprometer ou direcionar o natural desenvolvimento de sua
personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica
de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados
da ideologia de gênero. (BRASIL, 2015)
Desse modo, defende-se que haja na neutralidade política, ao mesmo tempo
em que se pretende uma orientação voltada para a formação moral do aluno,
entendendo que temas transversais voltados para a sexualidade devem ser
evitados, uma vez que aspectos da “ideologia de gêneros” suscitariam influência
negativa aos alunos.
234
O projeto de lei (doravante PL), bem como o Movimento Escola Sem Partido
provocam amplas discussões, pois, conforme o que se percebe da formação dos
sujeitos escolares, não existe neutralidade, e, nessa mesma direção, os assuntos
presentes na sociedade devem, sim, estar presentes na discussão escolar, uma vez
que a própria escola é uma instituição social. Ir contra isso invoca falha na
proposição de uma escola crítica, formadora de alunos reflexivos e constituída por
professores preocupados com a cidadania dos alunos.
O site de divulgação do programa/ projeto apresenta algumas justificativas e
posicionamentos favoráveis ao projeto. Além disso, a influência da rede social do
programa no Facebook contribui para a disseminação de inúmeros pensamentos
questionáveis à ideia de escola conforme se pensa na atualidade, ainda que seja
comprometida com os propósitos de uma educação voltada para a vivência em
sociedade. Nessa direção, o Movimento Escola sem Partido parte do processo que,
como se vê em charges analisadas, compreende o professor atual como “alienado e
doutrinador”, ao mesmo tempo em que compreende o aluno como “inocente
audiência cativa” Diante disso, é totalmente relevante que os comentários, bem
como os artigos, charges, vídeos, reportagens, notícias referentes à campanha
sejam problematizados e discutidos discursivamente.
2. Fundamentação Teórica – A importância da AD e proposta da
interdiscursividade para a análise de charges e textos virtuais em apoio
ao Escola Sem Partido
Para investigarmos gêneros textuais cuja temática aborda o Movimento
Escola Sem Partido, tomamos primeiramente a investigação sobre discursos que
perpassam o universo escolar. O termo Discurso, o qual é discutido e proposto em
várias esferas, é tomado na Análise de Discurso francesa como de efeitos de
sentido entre os sujeitos (PÊCHEUX,1990). O fundador da Análise de Discurso na
perspectiva francesa comenta
A Análise de Discurso – quer se a considere como um dispositivo de
análise ou como a instauração de novos gestos de leitura- se
apresenta com efeito como uma forma de conhecimento que se faz
no entremeio e que leva em conta o confronto, a contradição entre
sua teoria e sua prática de análise. E isto compreendendo-se o
entremeio seja no campo das disciplinas, no da desconstrução, ou
mais precisamente no contato do histórico com o linguístico, que
constitui a materialidade específica do discurso. (Pêcheux, 1990, p.
08)
Dessa forma, a Análise de Discurso se funda na arte no entremeio, no que “é
discutível e do que é interpretável” em um dado contexto sócio histórico, em
acontecimentos e ações sociais. Como postulado por Pêcheux (1990):
[...] a história “aparenta” o movimento da interpretação do homem
diante dos “fatos”. Por isso a história está “colocada” e a Análise de
Discurso trabalha justamente no lugar desse “aparentar”, criando um
espaço teórico em que se pode produzir o “deslocamento” dessa
relação, desterritorializando-a. (Pêcheux, 1990, p. 09)
Como dito por Orlandi (1990), Pêcheux vai além dos entremeios, e busca em
seu trabalho de análise percorrer um espaço de “múltiplas urgências do cotidiano”,
entrecruzando os três caminhos: o do acontecimento, o da estrutura e o da tensão
entre descrição e interpretação na análise.
235
Conforme dito por Maldidier (2003) apud Brasil (2001),
O discurso me parece, em Michel Pêcheux, um verdadeiro nó. Não é
jamais um objeto primeiro ou empírico. É o lugar teórico em que se
intricam, literalmente, todas as suas grandes questões sobre a
língua, a história, o sujeito. A originalidade da aventura teórica do
discurso prende-se ao fato que ela se desenvolve no duplo plano do
pensamento teórico e do dispositivo da análise de discurso, que é
seu instrumento (MALDIDIER, 2003, p. 15-16).
A análise se preocupa com sujeitos nos movimentos de história na língua.
Sendo assim, temos o discurso constituído pela tríade: língua, sujeito e história.
Trazemos, portanto, a ideia de Pêcheux em seu trabalho de (1990), Discurso:
estrutura ou Acontecimento, que trata o discurso como estrutura e acontecimento.
Isso implica considerar os efeitos de sentido a partir dos dizeres multimodais, em
gêneros, postos em interface com a história, na enunciação.
No trabalho da análise, materialidade e semioses são aspectos significativos
na construção e/ou veiculação de valores referendados em gêneros como a charge.
Nessa perspectiva, a ADF nos alerta que o mesmo discurso pode ser enunciado
diversas vezes, mas em cada uma delas invocará sentidos específicos do momento
(acontecimento) da enunciação.
Entendemos, portanto, que a linguagem nunca é neutra, pois os gêneros
fazem circular sentidos. Para o texto em questão, selecionamos uma charge em que
se enunciam dizeres sobre professores e alunos, representando-os em aspectos
que evocam discursos, investimentos de ideologias rememoradas pelos sujeitos que
produzem a charge, trazendo polêmicas sobre a instituição escolar. Ao ler a charge,
que geralmente carrega um caráter humorístico e/ou irônico, mostram-se vários
aspectos que se instauram na sociedade, traduzindo tomadas de posição e
construção de sentidos discordantes do modo como se coloca a identidade de
professores no espaço escolar. Como dito por Pêcheux (1990):
[...] todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações
sócio históricas de identificação, na medida em que filiações e um
trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não,
mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes)
de deslocamento no seu espaço: não há identificação plenamente
bem sucedida, isto é, ligação sócio histórica que não seja afetada,
de uma maneira ou de outra, por uma “infelicidade” no sentido
performativo do termo – isto é, no caso, por um “erro de pessoa”,
isto é, sobre o outro, objeto de identificação. (PÊCHEUX, 1990. p.
56)
Em seu processo de formulação, Orlandi (1991) rememora que todo
discurso é articulado por dois grandes e importantes processos: o parafrástico e o
polissêmico. Pelas trocas simbólicas, o refazer dizeres e a pluralidade de sentidos
são processos perceptíveis na produção, distribuição e circulação dos gêneros em
seus dizeres instituídos.
Dessa maneira não se mantém a noção de um sentido literal em
relação aos outros sentidos, isto é, os efeitos de sentido que se
constituiriam no uso da linguagem. Não há um centro, que é um
sentido literal, e suas margens, que são os efeitos de sentido. Só há
margens. Por definição, todos os sentidos são possíveis e, em
certas condições de produção, há a dominância de um deles. O
sentido literal é um efeito discursivo. (ORLANDI, 1991, p. 143/ 144)
236
O sentido produzido no momento da interlocução tem caráter dominante e se
constitui a partir da história e a cada interlocução é recolocada de forma única a se
institucionalizar. As escolhas linguísticas feitas são propícias para um determinado
momento de enunciação, entretanto, é necessário pensar que uma única escolha
linguística pode ser revisitada em diversos momentos da mesma forma e produzir
sentidos diferentes.
3. A Charge com o olhar voltado para o campo político- partidário
A charge é um gênero textual/discursivo que circula diariamente nos meios
midiáticos, principalmente após a ascensão das redes sociais. Nos últimos anos, a
circulação de charges tem crescido cada vez mais nessas redes, ampliando o
campo de circulação principalmente por se tratar de um texto atraente ao leitor, que
possibilita “viralizar” uma leitura rápida e direta no âmbito verbal/visual.
Para o presente trabalho, tomamos uma charge enunciada em um contexto
pró escola sem partido. Em geral, o movimento Escola sem Partido se baseia em
um discurso que tenta se posicionar contra aspectos políticos nomeados como
“doutrinadores” pelo movimento. Essa ideia acompanha o modo como discursos
políticos de ultra direita vêm emergindo em um momento em as práticas políticas
ditas de esquerda se enfraquecem. Há o fundamento de um caminho para um
“ideal social”, que parte dos dizeres “neutros”, pondo à mostra escolhas partidárias
nem sempre perceptíveis sobre as identidades no universo escolar. A charge
analisada aqui foi escolhida a partir de postagens favoráveis ao Movimento Escola
sem Partido no Facebook e que também partem de posicionamento pró- Programa
sem Partido. Para o momento, escolhemos a charge abaixo, cuja representação de
professor(a) e aluno se dão a partir do posicionamento polêmico.
(Fonte: Facebook)
A charge nos remete tanto a aspectos intertextuais quanto interdiscursivos
quando representa professor e aluno ao seu modo. Representa-se a denominação
“aluno inocente”, atribuída ao indivíduo que é interpelado por discursos trazidos pela
professora. A imagem desse “aluno inocente” é a de que uma identidade recorrente
de aluno é passível de receber toda e qualquer informação sem questioná-la.
Percebe-se um atravessamento do discurso partidário, que remete
metonimicamente à estrela símbolo petista afixada como botton na figura
representada pejorativamente, uma professora que vomita lixo na cabeça do aluno.
Tal figura, representada como professora de escola pública, pretensamente ensina
esse “lixo”, atitude que é criticada ao representar o ato da professora que vomita
ideias criticáveis, como “lixo” e “sexo”.
237
A professora se mostra uma figura monstruosa que “transmite” ideias sobre
sexo, outro elemento trazido como “conteúdo” difundido pela professora, ideia que,
no interdiscurso institucional, não condiz com o que se espera de tema a ser tratado
na escola sem partido. No movimento interdiscursivo na charge, remete-se ao fato
de que a Escola Sem Partido se manifesta contra a ideologia de gênero, temática
amplamente criticada pelo programa e proibitiva, conforme o projeto de lei proposto.
Nessa direção, o “lixo” é tomado como efeito de sentido que rememora ideias contra
religião e sobre sexo. Portanto, a figura monstruosa “professora” invoca discursos
antirreligiosos “imorais” fundamentados no sexo, que nos leva a compreender “sexo
e religião” como dizeres antagônicos no gênero em questão. Encontram-se aqui o
interdiscurso e o intertexto, que compreendemos ao mencionarmos o artigo 3º do
projeto Escola sem Partido, que defende
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação
política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a
realização de atividades que possam estar em conflito com as
convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos
estudantes. (BRASIL, 2015)’
A charge, no interdiscurso e intertextualmente, dialoga com o trecho do
Projeto de Lei citado acima. Segundo Maingueneau (1984 apud BRANDÃO, 2006),
“a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre
vários discursos convenientemente escolhidos”. Desse modo,
O interdiscurso passa a ser o espaço de regularidade pertinente, do
qual os diversos discursos não seriam senão componentes. Esses
discursos teriam a sua identidade estruturada a partir da relação
interdiscursiva e não independentemente uns dos outros para depois
serem colocados em relação. (BRANDÃO, 2006, p. 89)
A presença de um discurso conservador nos remonta à ideia de educação de
caráter supostamente neutro, que distancia os alunos de outras convicções e
valores trazidos pela ideologia familiar e conservadora, aspecto que parece ser
apregoado no movimento.
4. Considerações finais
Observando a charge escolhida, encontramos um aporte importante para
problematizar a visão da escola brasileira nos dias atuais, bem como o modo com o
Projeto Escola sem Partido é colocado em debate em páginas pró Projeto nas redes
sociais. A charge é um gênero muito utilizado para críticas, constituída em realidade
interdiscursiva repleta de cruzamentos que, no caso, satirizam, ao mesmo tempo
criticam o professor e o aluno atuais, pois desejam a identidade do professor e do
aluno voltadas para uma neutralidade utópica, visão equivocada. Nesse propósito
equivocado, referenda a ideia de professor, interpelado pelo construto partidário
como o “que vomita conhecimentos inúteis”, ao mesmo tempo em que o aluno
reforça a representação do sujeito passivo e inocente, “audiência cativa” que recebe
conhecimentos, sem avaliá-lo.
Comparando a charge e artigos do projeto de lei Escola Sem Partido,
percebemos um conjunto de representações que o movimento acredita permearam
a formação, as práticas e os valores trazidos pelas escolas brasileiras atualmente.
Tais representações colocam em cheque as identidades do professor e do aluno em
seus papéis, trazendo o conservadorismo em defesa de uma suposta “neutralidade”
requerida por universos partidários. A charge remete à interdiscursividade que
238
corrobora com a tendência de as charges serem colonizados por discursos políticopartidários, aspectos que definitivamente não são neutros, especialmente por se
situarem em um gênero interpelado por ideologias, constituindo sentidos nesse
processo.
5. Referências
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. Editora da
UNICAMP, 2002.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 867, de 2015. Inclui entre as
diretrizes e bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido”. Brasília,
2015.
Disponível
em:<
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idPropos> Acesso em
28 jun. 2017.
BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 193 de 2016. Inclui entre as diretrizes e
bases da educação nacional o “Programa Escola sem Partido”. Brasília, 2016.
Disponível
em:
<https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=12566>Acesso
em 28 jun. 2017.
BRASIL. Lei de diretrizes e Bases da educação Nacional. 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente.
São Paulo: Paz e Terra, p. 25, 1996.
GELATI, Fábio Cesar. A escola como instituição socialmente construída.
Roteiro, v. 34, n. 1, p. 79-92, 2009.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A Análise de Discurso em suas diferentes tradições
intelectuais: o Brasil. Seminário de Estudos em Análise de Discurso, v. 1, p. 8-18,
2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do
discurso. Pontes, 2001.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. In: O discurso:
estrutura ou acontecimento. Pontes, 2008.
SOMMER, Luís Henrique. The order of school discourse. Revista Brasileira de
Educação, v. 12, n. 34, p. 57-67, 2007.
Corpus:
Charge
1Disponível
em:<
ttps://www.google.com.br/search?tbs=sbi:AMhZZivqxfV9223RYDzDEFcZDqtCpVJd
ACkKlHl9i3JfDqG003yvWaLEhMk-tF0m3kWtgKLKXpgZ6MwY9KPYVdMTCvf4Qorrz3Pv3K6WLM_
239
LINGUÍSTICA FORENSE, NARRATIVA E
DISCURSO: PROPOSTA DE ANÁLISE DAS
ALEGAÇÕES DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA
EM UM PROCESSO CRIMINAL
CARLA LEILA OLIVEIRA CAMPOS
Instituto de Ciências Sociais Aplicadas
Universidade Federal de Alfenas – Campus Varginha
Avenida Celina Ferreira Ottoni, 4000 - Padre Vitor, Varginha - MG, 37048-395
carla.oliveira@unifal-mg.edu.br
Resumo. O objetivo do trabalho é analisar a construção conflitiva das
narrativas das alegações finais da acusação e defesa em um processo
criminal. Filiamo-nos à Análise do Discurso Forense, para compreender
como os modos de interação e os papéis sociais desempenhados pelos
sujeitos influenciam suas práticas linguísticas. Em nossa análise, vimos
como esses fatores influenciam as escolhas linguísticas operadas pelas
partes na construção de suas narrativas e no trabalho de valoração dos
eventos narrados.
Palavras-Chave. Narrativas forenses. Conteúdo ideacional. Relações
interpessoais. Alegações finais. Processo criminal.
Abstract. This paper aims at analyzing the narrative contrastive
representation in prosecution and defense closing speeches in a criminal
case. Within the theoretical framework of Forensic Discourse Analysis,
this study aims to understand how interaction patterns and social roles
played by subjects influence the discourse production in court. In our
analysis, we have seen how these factors influence the subject’s linguistic
choices in the construction of an in the valuation of narrated events.
Keywords. Forensic narratives. Ideational content. Interpersonal
relationships. Closing arguments. Criminal case.
1. Introdução
Segundo Gibbons (2003), os processos legais, as audiências judiciais, os
interrogatórios policiais desenrolam-se por meio da linguagem, permitindo-nos
concluir que a lei e sua linguagem permeiam nossas vidas.
Assim, considerando que os assuntos levados ao judiciário, na maioria das
vezes, são objeto de litígio, envolvendo, no mínimo, duas versões dos fatos,
podemos afirmar que a linguagem da lei não é isenta de disputas. Como, aliás,
qualquer forma de uso da língua não o é. Também não podemos deixar de
reconhecer as peculiaridades que envolvem o discurso legal, desde sua linguagem
pautada pela técnica e pelo conservadorismo até os procedimentos e as relações
sociais que subjazem à produção linguística forense.
Pensando nessas colocações, o presente trabalho tem por objetivo analisar
como se dá a construção das narrativas das alegações finais da acusação e da
defesa em um processo de falsificação de documento público, por meio do conteúdo
ideacional das peças e dos processos de negociação da imagem e dos
relacionamento interpessoais.
Para tanto, adotaremos como aporte teórico a linguística forense que,
240
segundo Gibbons (2003, p. 37), propõe “a aplicação da pesquisa linguística [...] a
diferentes questões associadas à lei”.
Para o desenvolvimento de nossa proposta tomaremos como categorias de
análise, conforme estudo realizado por Rosulek (2010), o conteúdo ideacional
dessas narrativas (HALLIDAY, 1998) e o processo de negociação de imagens e de
construção dos relacionamentos interpessoais.
Desse modo, objetivamos investigar como os modos de interação que
envolvem a produção do discurso nos tribunais e os papéis sociais desempenhados
pelos sujeitos influenciam as práticas linguísticas. Isso significa associar a análise
das propriedades internas do texto às condições de produção do discurso.
Considerando o contexto e as regras de interação nos tribunais, podemos
afirmar que os gêneros produzidos nesse espaço lançam mão, constantemente, das
narrativas como forma de reconstrução dos eventos sociais e enquanto estratégia
argumentativa a favor da naturalização de determinada versão dos fatos
(COULTHARD; JOHNSON, 2007, p. 68).
As narrativas das alegações finais se revestem de especial importância no
processo, pois, segundo Rosulek (2015, p. 3), elas constroem representações de
um mesmo evento, para o mesmo magistrado, e são elaboradas sempre em
oposição à voz do outro, buscando se afirmar como representação válida da
realidade.
Em relação ao corpus desta proposta, analisaremos um processo criminal de
falsificação de documento público, que tramitou na Justiça Federal, de acordo com
as categorias linguísticas acima apresentadas 71, mas sem perder de vista o
contexto mais amplo em que a comunicação se desenvolve, observando as
restrições legais ao ato de comunicação e como os papéis desempenhados pelos
sujeitos comunicantes perpassam os seus dizeres.
Com o intuito de apresentar os resultados de nossa pesquisa, o presente
artigo se subdividirá em três tópicos. No primeiro, apresentaremos o quadro teórico
e metodológico de abordagem do corpus e, nos dois seguintes, a análise do
processo com base na teoria e nas categorias linguísticas abaixo detalhadas.
2. Delineamentos teóricos e procedimentos metodológicos
Os trabalhos que buscam investigar o discurso legal lançam mão dos estudos
da análise do discurso e se enquadram na subdisciplina Análise do Discurso
Forense (ADF). Para Coulthard e Johnson (2007, p. 7), esse subdomínio da Análise
do Discurso e da Linguística Forense está voltado para a investigação de como as
funções institucionais específicas estão relacionadas aos usos da língua. Podemos
considerar, portanto, que esse ramo da linguística forense é marcado por dois
adjetivos: institucional e social, procurando compreender a interseção entre o
discurso institucional, a lei e os significados sociais.
Assim, ADF considera que a análise puramente textual é limitada, sendo
necessário o estudo de como as relações institucionais e sociais trabalham
mediante as práticas de linguagem e estruturas textuais. Em relação a este último
aspecto é interessante destacarmos que o discurso jurídico se constrói com
fundamento no sistema de leis de uma determinada sociedade. Segundo Gibbons
(2003, p. 53), a lei representa um sistema de valor social, impondo direitos e
deveres, prescrevendo e punindo comportamentos que forem de encontro às
normais sociais e é em torno desse sistema legal que os textos forenses precisam
71
Ressaltamos que, nesta versão do trabalho, devido ao limite do número de páginas destinado à
publicação dos artigos nos Anais, apresentaremos a análise de apenas algumas categorias que
ilustram o trabalho completo.
241
se construir. Além disso, eles não podem deixar de considerar os valores sociais
gerais que circulam em determinada sociedade e o sistema sociocultural dos
participantes da atividade comunicativa e as relações interacionais que a englobam.
Concordamos, portanto, com Gibbons (2003, p. 96) que, para
compreendermos a interação humana, precisamos entender os quadros nos quais
ela opera, as condições e regulações externas que a cercam e transmitem seu
significado.
Nesse sentido, é importante que entendamos como se desenrola um
processo penal no direito brasileiro.
O processo penal brasileiro é organizado nas seguintes fases: a) inquisitiva
ou postulatória: a polícia investiga o crime, elabora o inquérito apresentando as
provas e depoimentos do autor e das testemunhas e envia ao juiz; b) instrutória ou
probatória: após autorização do juiz, o Promotor de Justiça 72 analisa o processo e
decide se vai ou não oferecer a Denúncia contra o acusado. Oferecida a Denúncia,
o juiz decide se vai recebê-la ou rejeitá-la. Recebendo-a, o réu é citado para
apresentar Resposta Escrita à Acusação e dá-se prosseguimento ao processo por
meio da realização da(s) audiência(s) de instrução e julgamento, sendo produzidos
os Termos de Audiência. Ao fim da instrução processual, a acusação e a defesa
apresentam suas alegações finais e, após análise dessas peças, o juiz produz a
sentença; c) fase executória: execução da sentença com trânsito em julgado.
Em relação às alegações finais, Rosulek (2010) enumera diversos estudos
dessas peças, argumentando que eles se baseiam geralmente em dois aspectos: o
seu conteúdo ideacional, buscando compreender que informações são incluídas ou
excluídas de cada versão dos fatos e a negociação da própria imagem e dos
relacionamentos interpessoais, que tem como foco a construção da imagem do
advogado e de suas relações com os interlocutores, com o contexto e com o próprio
texto.
Nesses termos, observa-se que a proposta de Rosulek (2010) está
intimamente ligada à de Halliday (1976) acerca das três funções da linguagem. Para
o autor, o ato comunicacional é construído pelas relações entre o “nós”, os “outros”
e o “meio” em que a comunicação se desenvolve, de acordo com os papéis sociais
desempenhados no evento comunicativo. Nessa perspectiva, Halliday propõe três
funções básicas da comunicação (função ideacional, função interpessoal e função
textual). Para Halliday, essas três funções se combinam e se atualizam
simultaneamente nos enunciados, possibilitando o ato comunicacional.
No que tange ao conteúdo ideacional, adotaremos como categoria de análise
o modelo de narrativa de Labov (1972, p. 359-360). Para o autor, uma narrativa
pode ser definida como um método de recapitulação da experiência passada, por
meio de uma sequência verbal de orações ligada à sequência de eventos que
(infere-se) ocorreram de fato. Tais narrativas estruturam-se em torno de seis
propriedades (Sumário, orientação, ação complicadora, avaliação, resolução e
coda)73.
Segundo Heffer (2010), o modelo de Labov é interessante à análise das
narrativas forenses especialmente pela subdivisão feita na propriedade avaliação.
Esse modelo avaliativo é fundamental de ser considerado nas narrativas
forenses, já que elas exercem forte função argumentativa, pois é por meio delas que
se tem acesso aos fatos a serem julgados. Contudo, não podemos nos esquecer de
que as narrativas que chegam aos tribunais são valoradas (VALVERDE; FETZNER;
A Denúncia é a peça oferecida pelo Promotor de Justiça quando tratar-se de ação penal pública, que é o caso
de nosso trabalho.
72
73
Como já explicado na Nota 1, nesta versão, apresentaremos a análise apenas alguns enunciados
da avaliação.
242
TAVARES JÚNIOR, 2013, p. 49), ou seja, os fatos foram analisados e selecionados
de acordo com os interesses comunicativos das partes.
Metodologicamente, nosso trabalho de análise se desenvolverá a partir das
categorias abaixo propostas, considerando as três funções da linguagem de
Halliday (1976): a função textual, a interpessoal e a ideacional.
Ao descrever as propriedades formais dos textos (função textual),
procuraremos identificar e analisar os conteúdos e as escolhas lexicais adotados
pela acusação e pela defesa na construção de suas narrativas (função ideacional),
bem como as estratégias de construção da imagem e do relacionamento (função
interpessoal).
No que se refere à interpretação do texto enquanto objeto de interação, o
trabalho de análise deve se preocupar com o modo como as relações entre o sujeito
produtor do texto e os destinatários influenciam o dizer.
3. Análise do corpus
Para abordar o conteúdo ideacional das peças, elegemos como categorias de
análise a seleção e/ou reinterpretação dos fatos que compõem suas narrativas, a
partir das escolhas de determinadas unidades lexicais pelos locutores – verbos,
adjetivos e outros qualificadores.
Em termos de organização das análises, elaboramos um quadro dividindo os
textos de acordo as propriedades das narrativas propostas por Labov e, na
propriedade “avaliação encaixada”, apresentamos uma subdivisão a partir dos
temas em torno dos quais se organizam as peças e que se configuram nos
elementos constituintes do crime (materialidade, autoria, tipicidade e dolo 74).
Como dito, anteriormente, o processo em análise trata do crime de
falsificação de documento público, imputada ao réu E.M.75, pelo fato de, segundo a
acusação, ele ter inserido informações falsas na Carteira de Trabalho e Previdência
Social (CTPS) de um de seus funcionários.
Vejamos, a partir de agora, como esses mesmos fatos são valorados nas
narrativas das alegações da acusação e da defesa, procurando compreender o
conteúdo ideacional das peças a partir das marcas textuais acima expostas.
Propriedade Avaliação estrutural (externa à narrativa):
Acusação
Defesa
O réu é inocente.
O réu é culpado pelo crime de falsificação de
documento público.
Propriedade Avaliação encaixada (MATERIALIDADE DO CRIME)76
Acusação
Defesa
74
Nesta versão, apresentaremos a análise apenas dos enunciados relacionados à materialidade.
Por razões éticas, apresentaremos apenas as iniciais dos nomes das partes envolvidas no
processo.
76
“Conjunto de elementos e circunstâncias que evidenciam a criminalidade de um ato.” (HOUAISS,
Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009).
75
243
a) “Não existem indícios suficientes de
materialidade, não existem provas suficientes para a
a) “A materialidade do crime de falsificação de
condenação, devendo a absolvição ser reconhecida.”
documento público (art.297, §3°, II, do Código
Penal) encontra-se consubstanciada nos seguintes b) “A sentença trabalhista que condenou ao
pagamento de diferenças e retificação de CTPS foi
elementos: a) documento de fls.12 do anexo l.
equivocada quanto ao teor das provas deduzidas no
consistente em cópia da Carteira de Trabalho e
curso do processo, e não deve ser usada para
Previdência Social de E. de A. G., em cujo corpo
encontra-se assentada a anotação de remuneração condenar criminalmente o réu.
de R$650,00 (seiscentos e cinquenta reais), sendo c) “Também não se presta a comprovar o suposto
que o empregado percebia mensalmente o valor de prejuízo da Previdência Social o documento de
pagamento de contribuição previdenciária nos autos
R$850,00 (oitocentos e cinquenta reais), cuja
diferença remanescente era paga "por fora", como de processo trabalhista. Tal comando foi emitido
pelo juízo da Vara do Trabalho em absoluto
restou sobejamente comprovado durante a
desconhecimento da legislação aplicável à empresa
instrução, pela anexação aos autos do processo
trabalhista de n° XXX; b) cópias do comprovante de do réu, que é aderente AO SIMPLES NACIONAL. [...] A
guia foi apenas foi paga sem oposição para encerrar
recolhimento de contribuição previdenciária, [...]
o caso trabalhista. Não se tratou de reconhecimento
que corresponde à confissão de pagamento de
salário que sobejava o valor anotado em carteira de de culpa, mas sim de pagamento INDEVIDO,
CONSIDERANDO AS NORMAS DO SIMPLES NACIONAL
trabalho (fls.44/45). Tais provas estampam a
E DOCUMENTO DE FLS 15.”
incorreção da anotação lançada no documento
trabalhista do empregado, demonstrando a
ocorrência do ilícito (falsidade material).”
b) “Inequívoca a presença na espécie, portanto, das
elementares típicas "falsificar"' e "documento
público" aludidas no art.297, caput [...].”
c) “A autoria e a tipicidade penal da conduta [...]
avultam patentes das provas documentais [...]
prova indiciária e do próprio interrogatório judicial
do réu.”
Considerando os papéis sociais desempenhados pelas partes no processo,
na avaliação estrutural, a acusação, logicamente, considera o réu culpado, cabendo
a ela construir uma narrativa que demonstre essa culpabilidade. O inverso acontece
com a defesa. Passaremos à investigação da “avaliação encaixada”, considerada,
como vimos, por Heffer (2010), importante propriedade de análise por ter a
finalidade de construir gradualmente a culpa ou inocência do réu.
Vejamos portanto, como, a partir do elemento constituinte “Materialidade do
Crime”, as narrativas constroem suas avaliações encaixadas da conduta do réu e
dos fatos ocorridos durante a instrução processual.
No que tange a tal elemento, a acusação inicia sua narrativa (enunciado “a”)
fundamentada em provas documentais, buscando fundamentar a criminalidade do
ato praticado pelo réu por meio da cópia da CTPS do empregado, na qual o valor
anotado era menor do que a “diferença remanescente” “paga ‘por fora’” (segundo
palavras da acusação), reafirmando, mais uma vez, que esse ato “restou
sobejamente comprovado” nos autos da ação trabalhista; e por meio de cópia do
comprovante de recolhimento de contribuição previdenciária, pago pelo réu no
processo trabalhista, documento este que a acusação avalia corresponder “à
confissão de pagamento de salário que sobejava o valor anotado em carteira de
trabalho”. Como forma de avaliar tais provas documentais, a acusação utiliza-se dos
verbos “estampar” e “demonstrar” para evidenciar a validade e clareza desses
documentos como provas do “ilícito” praticado pelo réu.
Nos enunciados “b” e “c”, mais uma vez, a acusação valora tais provas,
utilizando-se dos adjetivos “inequívoca” e “patentes” e do verbo “avultar” para avaliar
que tais documentos demonstram a presença das elementares da tipicidade da
conduta prevista no artigo 297, § 3º, II, do Código Penal 77: “falsificar” e “documento
Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa. [...]
77
244
público”.
Como a acusação utiliza-se de provas documentais para comprovar a
materialidade do crime praticado pelo réu, cabe à defesa, já que, como vimos, sua
peça se constrói em reposta à peça acusatória, desqualificar essas provas. Vejamos
como se dá esse processo de (des)valoração dessas provas nos enunciados “a”, “b”
e “c”: no enunciado “a”, inicialmente, a defesa se refere a “indícios” e,
posteriormente a “provas”, afirmando que ambos não são suficientes para
comprovar a materialidade do crime e condenar o réu. Essa avaliação é justificada
nos enunciados “b” – que qualifica a sentença trabalhista como “equivocada” – e “c”
– que afirma que o recibo de pagamento à Previdência Social “não se presta a
comprovar o suposto prejuízo” a este órgão (destaque-se a utilização do adjetivo
“suposto”). Neste enunciado, a defesa avalia mais uma vez a sentença trabalhista,
declarando seu “absoluto desconhecimento da legislação” e traz um fato novo à
narrativa, ignorado totalmente pela acusação: a empresa do réu é aderente ao
Simples Nacional. Isso permite à defesa avaliar o pagamento à previdência como
indevido, não podendo ser, portanto, considerado como reconhecimento de culpa,
opondo-se, claramente, à versão apresentada pela acusação.
Considerando a partir de agora o caráter interpessoal dessas narrativas e
como ele contribui para a construção da imagem das partes, destacamos,
inicialmente que, buscando atender às próprias características dos gêneros
produzidos no âmbito forense, as peças são marcadas pelo alto grau de formalidade
tanto no tratamento entre as partes (que se referem uma à outra como “a defesa”, o
“Ministério Público Federal), quanto em relação às escolhas linguísticas, como
vimos nos trechos das narrativas acima apresentadas (sempre primando pelo uso
da linguagem técnica e formal). Outra característica da linguagem jurídica presente
nas peças é a utilização de estratégias linguísticas que procuram dar um caráter
objetivo às narrativas, buscando fundamentá-las em citações de textos legais, em
provas documentais ou no depoimento de testemunhas 78. Contudo, essas escolhas
são feitas sempre no intuito de demonstrar a credibilidade de uma versão parcial
dos fatos de acordo com os papéis sociais desempenhados pelas partes e seus
propósitos comunicativos.
Em relação à negociação do relacionamento com as testemunhas do
processo, vejamos como cada uma das partes reinterpreta, avalia ou silencia o
depoimento do réu, da testemunha de defesa e da testemunha de acusação.
Em relação ao depoimento do réu, tanto a acusação quanto a defesa fazem
menção a ele. A acusação, como se observa no enunciado abaixo, cita seu dizer
para confirmar a tipicidade de sua conduta, avaliando que o réu admitiu de forma
explícita que não anotava “com acuidade” os dados nas CTPS dos funcionários. Já
em relação à afirmação do réu de que os valores pagos a mais eram gratificações, a
acusação levanta dúvida ao adotar o verbo “alegando” para fazer menção a este
trecho.
Nesse sentido, a explícita admissão do fato pelo réu em seu
interrogatório judicial de que não anotava com acuidade os dados
nas carteiras de trabalho dos funcionários [...], embora alegando que
os valores pagos a maior seriam feitos a título de gratificações por
desempenho [...].
§ 3o Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000). [...]
II – na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito
perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita; (Incluído pela Lei nº
9.983, de 2000). (Grifos do original). (BRASIL, 1940).
78
Neste artigo, pela motivação já exposta, apresentaremos a análise desta última estratégia apenas.
245
Já a defesa, no intuito de contestar a versão da acusação e valorizar o
depoimento do réu, conferindo a ele um caráter de verdade, faz menção a seus
dizeres em dois momentos de sua narrativa, como se verifica nos enunciados
seguintes. Em um primeiro momento, o que foi construído como dúvida pela
acusação, pois era uma alegação, torna-se certeza na avaliação da defesa (“o réu
deixou claro”). Note-se, ainda, no mesmo enunciado, o destaque dado à palavra
“eventualmente”, o que procura afastar a recorrência dos pagamentos a mais dados
aos funcionários, o que os transformaria em salário. No segundo enunciado, a
defesa apenas nega o que qualifica como “alegações” do Ministério Público, dizendo
que o réu “declarou que anota corretamente o salário dos funcionários” e,
posteriormente avalia positivamente a conduta do réu, afirmando que o
oferecimento de gratificação aos funcionários intencionava agradecê-los pela
atuação, motivando-os.
O réu em seu depoimento deixou claro que, EVENTUALMENTE,
poderia conceder ao funcionário uma gratificação.
O RÉU, ao contrário das alegações do Ministério Público, declarou
que anota corretamente o salário de seus funcionários em CTPS. [...]
Com o oferecimento da gratificação a intenção do réu era de
agradecer ao funcionário por sua atuação, realizando a motivação
do funcionário.
Quanto ao depoimento das testemunhas, a acusação cita tanto o depoimento
da testemunha de defesa do réu (A.M.H.) quanto o da testemunha de acusação
(E.L.S.D.). Em relação à testemunha do réu, ao afirmar que A.M.H. “atualmente é
empregado do réu”, a acusação procura lançar dúvida sobre a credibilidade de sua
pessoa para testemunhar. Posteriormente, afirma que tal testemunha confirma a
versão do réu, mas avalia que “acaba por deixar transparecer [que] o era feito de
forma assídua, transvestido de verdadeiro salário”, não esclarecendo, porém, como
chegou a esta conclusão sobre a fala da testemunha. Com essa avaliação, a
acusação busca lançar dúvida sobre a credibilidade do dizer de A.M.H.
De modo diverso, em relação à testemunha de acusação, o que se busca, ao
qualificá-la como “testemunha compromissada, em juízo”, é conferir-lhe
credibilidade. Com isso, a acusação procura também se opor à afirmação da defesa
já levantada em outras fases do processo, de que E.L.S.D. era amigo do
reclamante. Em relação a seu dizer, a acusação busca destacar aquilo que confirma
sua versão dos fatos: “sempre trabalhava depois do horário”, “assinava folha de
ponto em branco”, “confirmando o depoimento na Justiça do Trabalho de que o valor
salarial anotado na CTPS era menor do que efetivamente recebia”. Note-se que os
verbos de dizer utilizados para fazer menção a sua fala são: afirmar e confirmar,
verbos que denotam certeza.
A.M.H., que atualmente é empregado do réu, também afirma que os
valores pagos a maior seriam a título de gratificação, o que de nada
afasta o crime, já que, conforme ele próprio acaba por deixar
transparecer, o pagamento era feito de forma assídua, transvestido
de verdadeiro salário.
E.L.S.D., testemunha compromissada, em juízo, afirma que sempre
trabalhava depois do horário e que assinava folha de ponto em
branco; que tentaram implantar o ponto digital, o que não funcionou,
porque os trabalhadores laboravam após as 18h, confirmando o
depoimento na Justiça do Trabalho de que o valor salarial anotado
na CTPS era menor do que efetivamente recebia.
246
A defesa, por sua vez, silencia o depoimento de A.M.H, testemunha de
defesa, provavelmente porque, durante a instrução processual, a acusação afirma
que ele mudou seu depoimento na Justiça do Trabalho (afirmando que as
gratificações não eram anotadas em folha) e também pelo fato de ele ser
comprometido com o réu, por ser seu funcionário atualmente. Nesse sentido, em
sua narrativa consta apenas o depoimento da testemunha de acusação, à qual a
defesa busca desqualificar, ao afirmar que tal testemunha “é amiga íntima” do
reclamante, tendo pescado juntos por 2 vezes, sendo a amizade de ambos
“incontestável e o interesse na causa também”, motivos pelos quais a defesa
qualifica seu depoimento como “imprestável”.
Finalmente, no último enunciado, ainda sobre o depoimento da mesma
testemunha, a defesa busca desqualificar seu dizer, ao avaliá-lo como
“contraditório”, não podendo, portanto, ser tomado como prova para “fundamentar a
condenação do réu”, como pretendeu a acusação. Assim como o fez a acusação em
relação à avaliação do depoimento da testemunha A.M.H., a defesa também não
esclarece quais os outros elementos do depoimento de E.L.S.D. – além do valor da
remuneração – a teriam levado a avaliá-lo como “contraditório”.
A referida testemunha [E.L.S.D.] é amiga íntima de E. de A.G.,
sendo seu depoimento imprestável nos termos da legislação vigente.
O depoente reconhece em depoimento [...] ter pescado com E. de
A.G. por 2 vezes, embora tenham trabalhado juntos na empresa do
réu por um período de 6 meses. A amizade deles, é incontestável e
o interesse na causa também.
Além do mais o depoimento da testemunha E.L.S.D. é contraditório
inclusive quanto ao valor da própria remuneração, não devendo ser
considerado para fundamentar a condenação do réu.
Como podemos observar, as partes, na construção de suas imagens e do
relacionamento com os demais sujeitos do processo, procuram atender às
características dos gêneros produzidos na esfera forense, primando pela
cordialidade no relacionamento e pela aparente objetividade de suas narrativas,
fundamentando os fatos narrados na Lei – estratégia que funciona também como
argumento de autoridade além de revestir a narrativa de caráter jurídico – em
evidências e no depoimento testemunhal.
Essa imagem de objetividade, cordialidade e credibilidade de sua versão dos
fatos objetiva criar uma imagem positiva das partes em relação ao magistrado,
mostrando que os fatos foram analisados e as análises fundamentadas,
funcionando como estratégia de persuasão.
Contudo, como verificamos, essa pretensa objetividade é apenas aparente, já
que, cada uma dessas estratégias é valorada de acordo com os propósitos
comunicativos dos locutores, revelando suas crenças e posicionamentos acerca dos
fatos por meio dos processos de avaliação, interpretação e silenciamento de
determinadas vozes.
3. Considerações finais
Como apresentado no quadro teórico em que se inscreve este trabalho, os
estudos desenvolvidos sob o viés da Análise do Discurso Forense buscam
compreender a interseção entre o discurso institucional, a lei e os significados
sociais.
Nesse sentido, em nossas análises, vimos como as regras de interação no
tribunal influenciam não só as escolhas linguísticas operadas pelas partes na
247
construção de suas narrativas, bem como o tratamento dado por elas à outra parte,
às testemunhas e ao magistrado, revelando um caráter de cordialidade e de
formalidade.
Todavia, os papéis sociais desempenhados pelas partes e seus propósitos
comunicativos seja na acusação ou na defesa do réu influenciam suas escolhas
linguísticas e também dos fatos que comporão suas narrativas, revelando o trabalho
de valoração dos eventos narrados. Esse trabalho de valoração das narrativas,
considerando as regras de interação nos tribunais, já é esperado de cada uma das
partes e é justamente o modo como constroem esse processo interpretativo dos
fatos que vai revelar a maior ou menor credibilidade de suas versões.
Por fim, considerando conforme Gibbons (2003) que a lei representa o
sistema de valores de determinada sociedade, impondo direitos e deveres e
punições a quem não a cumpre, vimos que os sujeitos discursivos, na construção
narrativa que fizeram do evento social em questão, revelam sua inscrição nesse
sistema de normas, não cabendo discussões acerca da licitude ou ilicitude do ato de
inserir informações falsas em documento público. O que eles buscam, de fato, é
construírem determinada representação do réu no intuito de inserir ou afastar sua
conduta do tipo penal em questão, já tomado como valor social incontestável, pois
previsto em lei.
4. Referências
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248
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routledge handbook of forensic linguistics. London and New York: Routledge,
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VALVERDE, A. da G. M.; FETZNER, Néli L. C.; TAVARES JÚNIOR, N. C. Lições
de linguagem jurídica: da interpretação à produção do texto. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2013.
249
O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO
CRIATIVA VI O ENSINO DE ESCRITA
CRIATIVA NAS AULAS DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA
CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO
Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 CEP: 05508-010 - Cidade Universitária São Paulo SP / Brasil
Doutorando em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
ceplacido@gmail.com
Resumo. O desenvolvimento do pensamento criativo vem recebendo
atenção tanto nas aulas de línguas estrangeiras. Na era da informação e
da Internet das coisas, a criatividade vem sendo revisada
constantemente. Entretanto, como os professores de segunda língua
podem abordar essa volatilidade? Por exemplo, eles deveriam usar o
Guia do Curso como seu único guia de método ou devem desenvolver as
habilidades cognitivas como o pensamento criativo, tão importante na era
pós-moderna (LYOTARD, 2013). Devido a isso, este artigo tem como
objetivo propor e discutir conceitos-chave para se entender melhor a
posição do professor de língua estrangeira e como eles podem lidar
substancialmente com as novas habilidades cognitivas, especialmente
acerca do desenvolvimento do pensamento criativo através da Escrita
criativa.
Palavras-chave. Pensamento criativo; criatividade; escrita criativa
Abstract. Creative thinking has become one of the most requested
features in foreign language classes as well as in many business circles.
In the information era and the Internet of things, teaching of second
languages have been revised and modified constantly. How should
second language teachers address this educational volatility? They have
found themselves in a quite obscure crossroad. For example, should they
use the Coursebook as their only method guide or should they develop
other students' skills, skills considered important for the postmodern era
(LYOTARD, 2013) such as creative thinking. Having total consciousness
of this hazy and shifting fork, this article aims to propose and discuss key
concepts to better understand the foreign language teacher position and
how they can deal substantially with the new ciberliterary skills, especially
with the development of creative thinking through Creative Writing (CW) in
foreign language classes.
Keywords. Creative thinking; Creativity; Creative Writing.
1. Introdução
Conceituar o termo criatividade não é uma tarefa muito fácil. Isso porque ele
250
pode apresentar diferentes definições dependendo do momento histórico o qual
decidimos analisar. E, mesmo assim, um mesmo período histórico pode apresentar
mais de uma definição ou, mesmo, diversas definições, definições essas até de
sentido contrário, oposto (POPE, 2005). Por isso, focarei aqui em apenas dois
grandes momentos os quais considero de extrema importância para se
compreender um pouco melhor algumas das diversas definições existentes do
termo criatividade na Modernidade (LYOTARD, 2013): 1) divino e/ou demiúrgico e o
2) cognitivista.
2. As divindades e os demiurgos da criatividade
Na Grécia Antiga, Platão acreditava que o poeta não conseguiria desenvolver
algo, criar algo do nada sem a ajuda direta das famosas musas, pois seriam elas
sua fonte de inspiração, ou melhor, seu meio na Terra para chegar a fonte
inspiratória: os Deuses do Olimpo. Esse conceito de criatividade ficou conhecido
como: divino e/ou demiúrgico (LUBART, 2007).
Entretanto, essa não é a única explicação teórica sobre o potencial criativo do
artesão, por exemplo. Platão também acreditava na existência do espírito humano
cuja composição se dava por dois tipos de divisões, de câmaras. Essas câmaras,
por sua vez, representavam um tipo de receptáculo onde uma determinada
divindade (Zeus, Atena, Hefesto, entre outros Deuses Olímpicos) as “enchia” de
inspiração. Já a segunda câmara funcionava como um meio de expressão dessa
inspiração, ou seja, era por onde o divino se expressava.
Em outras palavras, os Deuses “emprestavam” esse dom aos seus
escolhidos, os demiurgos (trabalhadores para o povo, em grego antigo) que, por sua
vez, produziam, ou melhor, reproduziam as mais diversas obras de arte (e de
ciência também, embora tal divisão ainda não fosse muito clara) na Terra.
É bom lembrar que a própria palavra criatividade teve sua cunhagem
relativamente recente frente à existência da humanidade. Segundo Lis Chamberlain
(2005), ela se deu a partir do verbo latino creare que, por sua vez, significa
começar, gerar e/ou formar algo. Etimologicamente falando, para Chamberlain
(2005), dentro do mundo lusófono, o adjetivo criativo surgiu no século XX, a partir da
junção do sufixo –ivo ao radical do particípio passado da forma alatinada criat- (de
creatus, particípio passado de creare). E em um dos poucos consensos sobre os
estudos terminológicos acerca do substantivo feminino criatividade, acredita-se que
esse termo tenha surgido da adição do sufixo –i-dade ao adjetivo criativo.
Rob Pope (2005) nos lembra de outro fator importantíssimo que
explica, e muito, a origem, ou melhor, a atribuição do caráter divino (ainda presente
atualmente, embora um pouco menos), no termo criatividade, e esse fator se inicia
com a seguinte pergunta: Quem criou o mundo? Deus, nas suas mais diversas
manifestações, pinturas, crenças, esculturas, conceitos, literaturas, religiões
(monoteístas ou politeístas), ou seja, foi a entidade Deus que criou tudo e todos.
Portanto, essa entidade (ou entidades) é responsável pela criação de tudo e todos,
reforçando assim sua característica ontológica (no sentido kantiano do termo) de
criação.
Pope (2005) ainda discorre em suas explicitações sobre a origem dos
sentidos constitutivos do termo criatividade indicando que seu foco de análise, ou
melhor, as observações iniciais feitas por filósofos gregos (especialmente Platão e
reconceituada mais tarde pelos neoplatônicos) desse elemento recaem no produto
acabado, ou seja, novamente em sua configuração integral.
Por exemplo, se o resultado criador é um vaso, as análises investigativas da
251
criatividade recaem sobre o vaso em si, no produto acabado e não sobre o artesão
criador deste vaso. Portanto, é um procedimento divino e não humanístico pela
perspectiva de Todd Lubart (2007). Tal pensamento cosmogônico (no sentido mais
geral, de criação) reforça ainda mais a ideia de completude e demiurgia presentes
no termo criação.
Em suma, de acordo com Rob Pope (2005) e Lubart (2007), há três
características principais atribuídas à ideia inicial de creare, que ainda são
persistentes nos dias atuais, e também são encontrados no termo criatividade:
divino, demiurgia e completude. Entretanto, segundo Pope (2005), a partir do século
XVIII, por meio dos ideários iluministas provenientes da Revolução Francesa, o
sentido desse termo muda substancialmente: “By the eighteenth century, however,
there was a much more positive link being forged between the power of the human
‘Mind’ and the capacity to ‘create’, productive mental images” (POPE, 2005, p. 35).79
3. Conceitos de criatividade por meio da linha da psicologia cognitivista
na Modernidade
Segundo Lev Vygotsky (2001), o ser criativo não é um ser demiurgo, muito
menos uma divindade olímpica. O ser criativo é o resultado direto de diversas
interações ocorridas desde a sua infância até a fase adulta. Interação essa
extremamente benéfica entre um ser menos inexperiente e um ser mais experiente.
Entretanto, tal interação mutual não ocorre apenas entre dois seres da mesma
espécie, mas ela também se consubstancia entre um ser e o seu ambiente
circundante. Portanto, para Vygotsky (2001), a criatividade é uma característica
cognitiva, pertencente às funções psicológicas superiores, primordialmente humana
e está, por conseguinte, interligada diretamente aos diferentes tipos de
desenvolvimento que esse ser humano pode apresentar onto e filogeneticamente.
Vygotsky (2001) não é o único pesquisador moderno a afirmar tais conceitos
sobre o ser criativo. Csikszentmihalyi (1995) também acreditam que a criatividade é
um fenômeno psicossocial. Sendo assim, ambos apreendem o ser criativo como
sendo um ser resultante tanto de características inerentes a ele, quero dizer,
intrapessoal, quanto das características de seu meio social, do ambiente onde eles
interagem uns com os outros, e entre eles e o ambiente, interpessoal.
Na mesma esteira, Mitján Martínez (2012) afirma que a criatividade é uma
área de resolução de problemas. Embora seja uma afirmação contundente, ela
parece nos prover com mais perguntas do que respostas. E uma dessas perguntas
seria exatamente a seguinte: O que seria uma área de resolução de problemas?
Martínez (2012) tenta definir melhor esse conceito ao afirmar que frente a
problemas aparentemente sem solução, o ser humano, por meio de diversas
atividades cognitivas, tende a buscar soluções úteis, frutíferas as quais possam ser
utilizadas para resolver o problema (ou problemas) em questão.
Em outras palavras, podemos afirmar que o ser criativo se utiliza de
processos cognitivos para tentar resolver ou, pelo menos, identificar uma solução
diferente para um problema aparentemente sem solução (ou de solução corrente
inviável, infrutífera ou custosa). Mas o que seriam esses processos cognitivos? Eles
são divididos em etapas? Eles ocorrem simultaneamente ou sequencialmente?
Jimmy Hayes (2005, p. 135) atesta que essas são perguntas difíceis de
serem respondidas monoliticamente. Entretanto, ele indica a existência de cinco
grandes processos cognitivos os quais podem nos auxiliar a entender um pouco
79
Por volta do século XVIII, no entanto, havia uma ligação muito mais positiva sendo forjada entre o poder da
"Mente" humana e a capacidade de "criar", produtivo de imagens mentais.
252
melhor tais perguntas, seus nomes são: 1) preparação, 2) Definir objetivos, 3)
Representação mental, 4) Busca de soluções e 5) Revisão.
Por preparação (preparation, em inglês), Hayes (1989) entende ser o
esforço, a energia, o estímulo proferido pelo ser criativo a fim de angariar
conhecimento e habilidades as quais são essenciais, fundamentais para o próprio
ato criativo em si. Com tal afirmação, Hayes (2005) se opõe claramente às
qualidades iniciais (divindade, demiurgia e completude) presentes no termo criação.
Para exemplificar melhor seu ponto-de-vista moderno, Hayes (2005) cita
diretamente grandes artistas como o compositor austríaco Wolfgang Amadeus
Mozart e o pintor pré-impressionista neerlandês Van Gogh e algumas de suas
principais obras artísticas.
Já por definir objetivos (goal setting, em inglês), Hayes (2005) atesta ser um
tipo de capacidade. E é exatamente por meio dessas capacidades que os seres
criativos conseguem mais adequadamente verificar, pontuar, ou seja, definir uma
oportunidade de resolução de um problema qualquer. Oportunidade essa que,
muitas vezes, pode passar despercebidas pelos olhares inexperientes ou, mesmo,
desatentos de um ser humano.
Por exemplo, um barqueiro irlandês necessita atravessar uma ovelha, um
lobo e um maço de capim para o outro lado do rio Shannon. Entretanto, no seu
simplório barco, cabem apenas dois desses itens por vez. Para dificultar ainda mais
essa historieta, o barqueiro irlandês sabe que o lobo não pode ficar sozinho com a
ovelha no barco, caso contrário, ele irá comê-la e, por sua vez, a ovelha também
não pode ficar sozinha com o maço de capim, já que ela também pode comê-lo.
Como esse problema pode ser resolvido?
Baseado em Hayes (2005), é pela identificação de uma oportunidade
resolutória que esse barqueiro irlandês conseguirá transportar todos os três itens
para o outro lado do rio Shannon. Ainda segundo Hayes (2005), essa capacidade
não é inata ao ser humano, ela deve ser incentivada, estimulada e seu
condicionamento ocorrerá através da junção de uma experiência prévia desse ser
humano e sua capacidade de avaliar as diferentes facetas de um mesmo problema.
No caso especifico de nossa historieta, o barqueiro irlandês já possui
experiência prévia (ele sabe conduzir um barco pelo rio Shannon) a qual será útil na
resolução do problema apresentado e o “novo” estímulo pode vir do ambiente (por
exemplo, o rio Shannon é um lugar inóspito o que dificulta ainda mais o trajeto do
barqueiro) e dos outros entes (ovelha, lobo e capim), pois dependendo da
combinação, um deles será comido, e o barqueiro terá falhado em concretizar seu
objetivo inicial, ou seja, transportar todos os três entes de um lado para o outro do
rio Shannon vivos.
O terceiro processo cognitivo indicado por Hayes (2005) se chama
representação mental (representation, em inglês), mas representação mental do
quê? Segundo esse autor, é a representação mental do problema a ser enfrentado,
resolvido. Com o intuito de poder resolver um problema em questão, o sujeito tem
que delinear mentalmente a representação desse problema. Essa representação
pode ser visual ou verbal, por exemplo.
Tendo essa delineação em mente, as escolhas ou, mesmo, as decisões a
serem tomadas se tornam mais palpáveis, mais viáveis de se concretizarem, pois o
esquema resolutório está em processo, em andamento na mente do sujeito. Hayes
(2005) compara esse processo com a profissão de arquiteto, pois segundo ele
quando um arquiteto projeta uma casa, um apartamento, ou seja, qualquer prédio,
ele deve decidir sobre várias oportunidades em mão.
Tais decisões terão que ser tomadas baseadas em suas representações
mentais em busca de respostas para perguntas como: Qual será a altura do prédio
253
a ser construído? Quantos andares esse prédio apresentará? Onde será sua
localização? Ele terá acesso a cadeirantes? Se sim, de qual forma? Por
conseguinte, para Hayes (2005), o ser criativo será aquele que conseguir
representar mentalmente possíveis respostas para o problema em destaque e, é
claro, chegar a soluções plausíveis, viáveis. Entretanto, isso só ocorrerá, se o ser
criativo passar por esse processo cognitivo.
O quarto processo cognitivo é denominado busca de soluções (searching
for solutions, em inglês). E como já percebemos nos parágrafos anteriores, esse
processo está ligado diretamente aos processos 1, 2 e 3. Todos os processos
prévios visam encontrar uma solução para um problema qualquer, portanto, o quarto
processo é também o processo objetivo, é aonde se quer chegar. Hayes (2005) o
chama também de pensamento divergente. E por que isso? Segundo esse autor,
durante todo o processo criativo, o sujeito se depara com várias possíveis soluções,
e todas essas soluções são alternativas para a resolução de um mesmo (em alguns
casos, até mais de um) problema.
O último processo cognitivo é a revisão (revision, em inglês). Esse processo
é de extrema importância para o próprio ato criativo em si, pois, segundo Hayes
(2005), a revisão é a consubstanciação de todos os processos cognitivos anteriores
(1, 2, 3 e 4). Os seres criativos conseguem revisitar com grande destreza seus
respectivos produtos em processo de acabamento. Embora Hayes (1989) veja a
perfeição como um tipo de utopia e de difícil, quiçá impossível, concretização, ele
afirma que ela é o objetivo final de qualquer ser criativo. Sendo assim, a cada ato
revisório, o ser criativo sobe um degrau na escada do perfeccionismo (termo mais
adequado, a meu ver, por indicar um processo gradual, incompleto ao invés de
estagnação e completude).
Além disso, ainda para Hayes (2005), o ser criativo apresenta uma
sensibilidade bem mais aguçada, bem mais flexível (termo usado pelo próprio autor)
sobre o seu produto. Isso ocorre, porquanto o ser criativo consegue detectar com
mais astúcia, mais escrutínio as possíveis “falhas” de suas obras e, por conseguinte,
eles também seriam mais suscetíveis às alterações, às mudanças necessárias para
a “correção” das falhas (ou melhor, das imperfeições, termo mais adequado, a meu
ver, por também denotar processo gradual e incompleto) de seus produtos. Todos
esses cinco processos cognitivos acabam por refletir diretamente na performance
do ser criativo assim como no seu produto.
Para finalizar, Hayes (2005) ainda adiciona o termo motivação. Segundo
esse autor, um ser motivado trabalha com mais afinco para solucionar um problema
em questão e, para isso, ele deve adquirir mais conhecimento, mais informação
para consubstanciar seu (s) objetivo (s). Com base em sua teoria, um ser criativo
também se diferencia de um ser não criativo, por meio de suas motivações, na
medida em que elas o tiram da inação, do ócio criativo. Portanto, saber quais são as
motivações que levam um sujeito a efetuar os processos cognitivos 1, 2, 3, 4 e 5
também condicionam suas diferenças cognitivas.
4. O desenvolvimento do pensamento criativo por meio do ensino da
Escrita Criativa (EC) nas aulas de língua estrangeira
Como você já deve ter percebido até esse momento, considero o
pensamento criativo como sendo uma qualidade essencial para a realização das
aptidões dos seres humanos nos dias atuais. Ao afirmar isso, você também deve ter
notado minha coadunação com a visão vygotskiana de criatividade, ou seja, a
qualidade de ser criativo pertence às funções mentais superiores, devido a sua
254
capacidade plástica de se moldar e ser moldada em contextos sócio, histórico e
culturais específicos, por meio da utilização de elementos mediadores (instrumentos
e signos) os quais o auxiliarão a se desenvolver e se comunicar com outros.
Entretanto, o segundo pergunta-problema deste artigo ainda se mantém: Como o
pensamento criativo se consubstancia e, por conseguinte, pode ser desenvolvido
nas aulas de língua estrangeira?
Uma forma eficaz para desenvolver o pensamento criativo do aluno de língua
estrangeira é por meio da confecção de textos considerados criativos, em outras
palavras, por meio da prática da Escrita Criativa (EC). Segundo Mancelos (p. 14,
2014), a EC “(...) é uma área do saber relativamente nova”, originária dos Estados
Unidos e depois se espalhou para diversos países europeus (Alemanha, França e
Inglaterra). Ainda segundo esse autor, embora a EC foque na construção formal e
conteudística dos mais diversos tipos de textos literários, podemos encontrar
atualmente workshops (e até mesmo telúricas) de EC com ênfase em textos
considerados nonfiction (de não ficção) como, por exemplo, relatos, diários,
biográficas, autobiografias, artigos jornalísticos, discursos políticos, etc.
Sendo assim, a área de EC deve ser apreendida como uma área de saber
interdisciplinar, pois várias correntes de pensamento se entrecruzam para a sua
realização (Teoria Literária, História da Literatura, Linguística Aplicada, Análise do
Discurso, Sociolinguística, entre muitas outras). Mancelos (2014) ainda comenta
que quando questionado se as aulas de EC funcionam, ele rebate com as seguintes
perguntas: Então você também não acredita nos conservatórios de música, nas
escolas de belas-artes ou de cinema? (MANCELOS, p. 15, 2014)
Além disso, a EC pode ser um exercício eficiente para desbloquear o
pensamento criativo, Murray (2006) comenta que a pressão para se escrever artigos
e publicá-los, principalmente em inglês, está se tornando cada vez mais intensa. Por
isso, a EC pode ser um recurso pedagógico poderoso para auxiliar os alunos de
graduação e pós-graduação a desenvolver seu pensamento criativo (qualidade
essencial para se escrever qualquer tipo de texto, a meu ver) e de até se
relacionarem melhor com o processo da escrita.
Esses não são os únicos motivos de se ensinar EC nas aulas de língua
estrangeira. Devido à sua capacidade de abstração e aceitação do novo (como a
quebra de regras gramaticais, rupturas com dos diversos gêneros literários,
incentivo à imaginação e ao próprio pensamento criativo), os alunos podem ser
beneficiados com a sensibilização de diversos temas de extrema importância para a
formação atual tanto de um leitor quanto de um escritor proficiente, temais tais
como: o multiculturalismo, o interculturalismo e o transculturalismo.
Sabendo-se que por multiculturalismo, devemos entendê-lo como a
coexistência de vários grupos sociais convivendo em um espaço, quer presencial,
quer desterritorializado, dentro de uma sociedade específica (CANDAU, 2005). Já
por interculturalismo, apreendido aqui pela visão francesa, é a inter-relação entre
diferentes culturas, com ênfase no sentido de troca e diversidade (CANDAU, 2005).
E, por fim, compreendo transculturalismo como um tipo de processo o qual um
indivíduo, por vários motivos, deve ou tem que assimilar outra cultura (ou culturas)
distinta da sua. Esse processo pode ser penoso, ou até mesmo prejudicial, na
medida em que essa assimilação pode resultar na perda parcial da cultura de
origem (CANAGARAJAH, 2007).
Outros pontos relevantes que podem ser trabalhados nas aulas de EC em
língua estrangeira é a questão da desautomatização da língua e o desenvolvimento
da consciência linguística do aluno. O primeiro é um termo cunhado pelos
formalistas russos em uma das tentativas de separar a “linguagem prosaica” da
“linguagem poética” (POPE, 2005). Para os formalistas russos, a desautomatização
255
deve ser considerada como uma das funções da criação artística, pois por meio do
estranhamento ou da singularização da estrutura proposta pelo artista, o leitor pode
contemplar melhor o mundo das artes e suas respectivas obras (POPE, 2005).
Por consciência linguística, devemos entender como sendo um tipo de
qualidade, capacidade existente no indivíduo com o intuito tanto de agir quanto de
descrever seus próprios conhecimentos da língua alvo, ou seja, da língua a qual ele
está aprendendo e/ou adicionando a sua cultura. Gomberg (1992) nos lembra aqui
de a consciência linguística é composta por outros dois fatores de extrema
relevância para a compreensão e aquisição de uma língua estrangeira:
metalinguagem e metacognição. O primeiro é a linguagem sobre a linguagem
enquanto o segundo é o “(....) conhecimento introspectivo e consciente que
indivíduos particulares possuem de seus próprios estados ou processos cognitivos e
a habilidade que esses indivíduos possuem de monitorar e planejar seus próprios
processos cognitivos” (GOMBERG, p. 13, 1992).
Embora a EC ainda seja uma área relativamente nova (MANCELOS, 2014),
acredito que ela possua um grande potencial para o ensino e desenvolvimento de
diferentes tipos de escrita, na medida em que ela lida diretamente com questões
que são consideradas barreiras para a elaboração de um texto qualquer (bloqueio
criativo, autonomia, autoconfiança, etc..), mesmo para um aluno da pós-graduação
(MURRAY, 2006). Por ser interdisciplinar (MANCELOS, 2014), ela ainda pode ser
utilizada não apenas nas aulas de língua estrangeira, como também nas aulas de
língua materna, história, matemática, biologia, entre muitas outras. E, como
investigado até esse momento, ela também apresenta um grande potencial no
desenvolvimento do pensamento criativo, pensamento esse de extrema importância
e de grande requisição tanto nos meios acadêmicos quanto empresariais.
5. Referências
CANDAU, Martin Sociedade, Educação e cultura(s): questões e propostas. Rio
de Janeiro: Vozes, 2005.
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Community and Competence. Clevedon: Multilingual Matters, 2007.
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GOMBERG, John. E. Atividades metalingüísticas e aprendizagem da leitura.
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LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.
MANCELOS, João. Um Pórtico para a Escrita Criativa. Pontes & Vírgulas: Revista
Municipal de Cultura, 2014.
256
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Brasília, DF: Liber, 2012.
MURRAY, Ray. 2006. Reconfiguring academic writing. Paper presented at the
Society for Research into Higher Education conference, December, in Brighton, UK.
POPE, Rope. Creativity: Theory, History and Practice. New York: Routledge,
2005.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
257
THE MEANING MAKING OF DIGITAL
MULTIMODAL TEXTS BY UNDERGRADUATE
STUDENTS
CARLOS EDUARDO DE ARAUJO PLACIDO
Universidade de São Paulo
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 CEP: 05508-010 - Cidade Universitária São Paulo SP / Brasil
Doutorando em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês
ceplacido@gmail.com
Resumo. O processo de significação de textos multimodais não vem
sendo extensivamente investigada no Brasil. Devido a este motivo, o
objetivo principal deste trabalho acadêmico foi o de investigar como os
graduandos de uma universidade pública compreendem e desenvolvem
(Glăveanu, 2011; John-Steiner, Connery & Marjanovic-Shane, 2015;
Sharpe, 2004; Shayer, 2008; Vygotsky, 2004, 2007; Wertsch, 2010)
textos multimodais. A coleta de dados ocorreu em um curso
extracurricular de escrita criativa em inglês. As análises preliminares
indicaram que todos os alunos participantes conseguiram desenvolver
suas respectivas compreensões acerca de textos multimodais.
Palavras-chave. significação; textos multimodais; escrita criativa
Abstract. The reading of digital multimodal texts has become increasingly
common in English as a second language classrooms. Although its
reading has become a customary practice between ESL teachers and
students, its production is still incipient. Based on the preliminary data of
this research, all the ESL undergraduate students interviewed from the
University of São Paulo, claimed they did not compose digital multimodal
texts on a regular basis, and 85% also stated they did not know how to
create digital multimodal texts. For these reasons, the main objective of
this research was to investigate the existing relationships between these
ESL undergraduate students’ cultural knowledge of digital multimodal
texts (here exemplified as fanfictions) and multimodality. Furthermore, we
also analyzed the effectiveness of using digital multimodal texts in an
extracurricular course entitled Fanfictional Creative Writing in English,
which took place in the same university. The pedagogical framework of
this course was the Vygotskian sociocultural theory. The results of this
research indicated that participating ESL undergraduate students could
not differentiate digital multimodal texts from non-digital multimodal texts.
In addition, they also exhibited great difficulties in producing digital
multimodal texts without the direct help of a more experienced partner,
and assessing their own texts as well.
Keywords. Digital multimodal texts; sociocultural theory; Creative Writing
1. Introduction
Creative Writing in English (CWE) has not been extensively researched in
Brazil. There are few courses on CWE in Brazilian Languages and Literature
258
universities, and even fewer available publications on this area as well (Myers, 2006;
Morley, 2007; Blythe and Sweet, 2008; Healey, 2009; Oberholzer, 2014). Therefore,
the aim of this research has been to identify the students’ concepts about creativity,
fanfictions and creative writing courses. Along with this identification, the other aims
have been the investigation of the students broadening of these concepts and the
development of their fanfictional creative writing.
2. The meaning making process based on Vygotskian sociocultural
theory
Meaning Making is one of the key concepts to understand the Vygotskian
sociocultural theory. Although meaning making is a crucial aspect of Vygotsky’s
research, it has not been extensively researched. For Vygotsky (2004, 2007),
meaning making is people’s construction of knowledge in their attempt to better
understand others with and across different contexts and codes. It is sometimes
referred to as a synonym of comprehending. If a person knows how to conceptualize
properly an idea, object or person, he will comprehend a command (or instruction)
more properly.
In relation to creative writing, some researchers (Earnshaw, 2007, Morley,
2007; Ramet, 2007) have demonstrated that the meaning making process in creative
writing classes have 1) made the students self-aware of what, why and how they
want to write a certain story, 2) made them self-mastered concepts, definitions and
literary genres and 3) made them more creative by motivating them transform the
creative writing content received.
In fact, learning how to write creatively has exponentially increased students’
awareness of the construction of several literary genres, assisting them interpret and
produce better structured texts. According to Morley (2007, p. 64), “(…) the major
challenge to any writer is the work itself: getting the book written; making characters
believable; allowing subject and form to work together; and creating verisimilitude”. If
aspiring fictional writers desire to become crafted writers, they should comprehend
very clearly the basic writing elements which compose a certain fictional text. He
(2007, p. 65) went further and asked: How can a writer compose a text, if he does
not understand the text itself?
Raising awareness of what you are writing should be part of the meaning
making process of any creative writing course. Morley (2007) discovered that many
students who come to creative writing courses have already written some fictional
piece of work. Additionally, he also discovered that they already have notions of
literary terms such as characters, setting, atmosphere, mood, and so on. Although
the students are aware of their existence, they usually do not know how to
conceptualize or define them, which make them produce very superficial stories.
After becoming aware of their limitations, they can, along with their teachers,
construct more substantial meanings for them. This is not a very easy task, and
requires lots of practice. For Ramet (2007, p. 01), “One of the first rules to remember
is that writers write. You should write something every day, even if all you do with the
finished piece is tear it up and throw it away”. She claimed that constant practice is
one of the keys for better understanding and developing the craft of writing.
Furthermore, she added that this is the path to any writer who desires to master a
certain literary genre.
In the same vein, Earnshaw (2007, p. 365) also claimed that self-mastery only
comes after years of practice: “Repeating the performance, having an ongoing
practice as a writer, just as a doctor or an engineer or a solicitor has a practice, is the
real difference between a professional and an amateur”. However, he attested that
259
self-mastery without the professional help of a creative writing teacher is a much
longer path. For Earnshaw (2007, p. 367), teachers are indispensable to assist their
students to make sense of the creative writing world.
For Vygotsky (2004, p. 12), “(…) the functional use of the sign or word is the
means through which the adolescent masters and subordinates his own mental
operations and directs their activity in the resolution of the tasks which face him”. In
other words, people should not only apprehend a sign or word, people should really
comprehend (master) it to apply it to different contexts. Moreover, it is quite typical of
students to attend their first creative writing courses with ‘fixed’ concepts or
definitions for basic writing elements, literary texts and even creativity. The
broadening of students’ concepts and definitions may be a challenge.
3. Preliminary analysis of data
The students’ concepts about creativity tended more to the I-paradigm than to
the We-paradigm approach to creativity (Glăveanu, 2011). Their answers were
mainly generated in three different research tools that I used to collect data in the
course. The three tools were: 1) the initial questionnaire, 2) the classroom
transcriptions and 3) the students’ classroom tasks. In the beginning of class 1,
students received the initial questionnaire. Their most relevant excerpts, collected
from this questionnaire, are illustrated as follows:
Students’ excerpts taken from the initial questionnaire
In relation to their initial questionnaire answers, students A, B and E claimed
that creativity is an ability, capacity which requires practice to be improved. This is
one of the main characteristics presented in the I-paradigm approach. According to
Glăveanu (2011), some of the I-paradigm theorists (Bridges, 2003; Carson, 2011)
believe that creativity is an ability which needs practice: “(…) creativity is marked by
the ability to create, bring into existence, to invent into a new form, to produce
through imaginative skill, to make to bring into existence something new” (Bridges,
2003, p. 14).
Carson (2011, p. 18) went even further. She ascertained that creativity is an
essential ability which should be extensively used “(…) to originate something
completely new, from the scratch, in some way original”. This characteristic was
present in both student C’s answer (“habilidade para se criar algo do nada”) and
student D’s answer (“criar, recriar e resolver problemas do zero”). Another relevant
factor which reinforced the students’ tendency to the I-paradigm approach refers to
260
the presence of the adjective new, which appeared in 4 (80%) of the students’
opinions.
According to Glăveanu (2011), the adjective new is a basic constitutive
characteristic of the I-paradigm approach to creativity. He attested that this adjective
is one of the most recurrent definitions connected with creativity, appearing in most
of the I-paradigm theorists. Nevertheless, for him, the adjective new does not only
entail the “(…) creation of something out of nothing”, but it also involves
transformation “(…) by combining, changing, or reapplying existing ideas”
(Glăveanu, 2011, p. 07). Vygotsky (2004, p. 7) also acknowledged novelty as a
characteristic of creativity: “(…) any human act that gives rise to something new is....
a creative act”.
In fact, the adjective new is not the only recurrent adjective used by the Iparadigm theorists to conceptualize creativity. Conforming to Carson (2011),
creativity encompasses several key adjectives which may help us better understand
its main constitutive particularities. These adjectives are usually: unique, achieving,
extraordinary and original. Some of these adjectives were identified in the classroom
transcriptions. After answering the initial questionnaire, students were asked to
discuss in groups the first set of key questions. In relation to the first question (What
is creativity?), only students B, D and E answered. Their answers are in the following
table:
Students
Students’ classroom transcriptions
B
We think creativity has something to do with fulfilling. We write to fulfil
something. We cannot say that everything we write is to fulfill something.
Sometimes we just write. We want to be like, we want to happen. We want to
express in some ways, many ways. But we write to fulfill ourselves, a wish we
have.
D
We also make something like originality. Because we cannot recreate
something if it wasn’t created before. Originality would be more like
uniqueness. It’s not something you come up out of the blue. It’s something
you can only live in your own way. It belongs to you. It’s a complete part of who
you are in this world.
E
I think extraordinary is the closest definition for creativity. Because this is
what we feel more close to writing. We create something that it wasn’t created
before. It’s is an extraordinary process, actually. If you see it.
Student D suggested that uniqueness is a synonym for original. According to
Glăveanu (2011, p. 09), creative people possess a “(…) need for uniqueness, which
reflects their desire to be unique. By uniqueness, he meant people’s contemporary
ever-lasting desire to be a different person from the others, to be singular, special,
one of a kind. For Glăveanu (2011), the innatist characteristic has been embraced by
the I-paradigm theorists unanimously. Vygotsky (2004, p. 33) also believes that all
human beings are creative: “(…) there is a widespread opinion that creativity is the
province of a select few. This is not true, (…) creation is the province of everyone to
one degree or another”.
Carson (2011) proposed that people’s creativity requires awakening.
However, she recognized that the awakening of creativity may sometimes happen
261
suddenly, out of the blue: “(…) creative ideas often come at a time when the person
appears to be thinking about something else, or not really thinking at all” (Carson,
2011, p. 35). To support her claims, she cited several writers such as Marcel Prost
and Samuel Taylor Coleridge. In relation to Marcel Proust, she attested that “(…) he
was engaged in the most trivial of pursuits – eating a cake – when he was overcome
by the recollections which led him to write his great novel” (Carson, 2011, p. 25).
She (2011) also inferred that creativity may be developed without much
practice. However, she clearly highlighted that creativity without practice (or apparent
efforts) are less often and more difficult to be concretized: “(…) it is true that some
brains are naturally more inclined toward creative ideation than others. However, this
is a skill that must be practiced and learned constantly. Although it may not make an
Einstein out of everyone, practice and exercise can definitely make any brain more
creative” (Carson, 2011, p. 23).
Another recurrent characteristic related to the I-paradigm approach to
creativity is originality (Glăveanu, 2011). Interestingly to notice, this word was used
twice by student D in her attempt to conceptualize creativity. However, they seem to
have different connotations. In her first answer, she apparently used it to refer to
something new, novel. According to Sternberg and Lubart (1999, p. 35), original as a
synonym of new is a quite common I-paradigm characteristic, because creativity can
be apprehended as an “(…) ability to produce ideas that are both novel (i.e., original)
and appropriate (i.e., useful)”.
On the other hand, in student D’s second answer, she used originality as a
synonym of uniqueness, singularity. As a matter of fact, she compared originality
with uniqueness (Originality would be more like uniqueness). In the same vein,
Thompson (2008, p. 226) also attested that uniqueness is a constitutive
characteristic of originality: “(…) originality entails uniqueness which involves thinking
‘without boundaries,’ or ‘outside the box’”. In turn, he acknowledged that originality is
also a fundamental characteristic of creativity.
One more adjective that is constantly linked with the I-paradigm
approach to creativity is extraordinary (Glăveanu, 2011). Conforming to Craft (2002,
p. 114), “Extraordinary creativity involves, then, the production of new knowledge
which has a major impact on an existing area of knowledge, the boundaries of which
are monitored by experts within that field”. In addition, she advocated that an
ordinary person can indeed produce an extraordinary piece of work, because the
concept of extraordinary is quite volatile. Still for Craft (2002), something (or
someone) which (who) was not previously considered extraordinary by its (their)
community may become extraordinary if it (they) receive experts’ validation.
The students’ tendency for the I-paradigm approach to creativity was also
identified in some of their classroom tasks. For example, in the middle of class 1,
after the discussion of the first question (What is creativity?), students were invited to
compose a visualization about their answers. I opted for doing that to provide the
students with a safe environment where they could convey their concepts about
creativity as free and comfortable as possible.
Based on the students’ first visualizations about the concept of creativity, we
can notice that most of them used imagination to reflect upon creativity. According to
Vygotsky (2004, p. 348) “(…) no accurate cognition of reality is possible without a
certain element of imagination, a certain flight from the immediate, concrete, solitary
impressions in which this reality is presented in the elementary acts of
consciousness”. Their imagination is sometimes represented as drawings,
sometimes as the use of distinctive colors. For example, student B and E drew
squares and circles. Student E even drew arrows and a star. Although student A also
used circles, she delineated them in distinct colors (light blue, dark blue, purple,
262
black and orange).
In addition, he also added that in today’s workplace, the necessity for creative
people have increased. Consequently, this has motivated ‘experts of creativity’ to
develop psychometrical tools (exams, machines, etc.) to identify people’s creative
stage and then find ways for improving them. The students also exhibited constant
desires for learning creative writing techniques. For example, by the end of class 1,
student A asked me if we were going to learn about foreshadowing. Student C
claimed that one of her motivations for doing this course was to learn more about
characterization. Students D inferred that she did not know how to use metaphors in
her fanfictions and then asked if there would be any classes about metaphorization
along the way.
At first, the Fanfictional Creative Writing course was not organized to deal with
creative writing techniques. To be honest, the main goals were to broaden students’
concepts about creativity, fanfictions and creative writing classes. Along with that, I
also expected to develop their fanfictional creative writing. However, due to students’
persistent demands, I had to reorganize the course and then included some of their
suggested creative writing techniques. For Glăveanu (2011, p. 05), “In the spirit of
the I-paradigm, psychometric tests were validated on and applied to non-eminent
persons” to identify people’s creativity. For this reason, many people start courses
expecting to be assessed.
4. References
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Understanding Enterprises: Entrepreneurship and Small
Business. New York: Palgrava MacMillan, 2003.
Blythe, Hay., & Sweet, Harry. Why creativity, why now? Tomorrow’s Professor,
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______. Imagination and creativity in childhood. Journal of Russian and East
European Psychology, 2007.
264
PSICANÁLISE E ANÁLISE DE DISCURSO: A
HOMOLOGIA DOS DISPOSITIVOS DE
INTERPRETAÇÃO
CAROLINA COSTA CARVALHO BIONDI
Departamento de Artes e Letras
UESC - Universidade Estadual de Santa Cruz
Campus Soane Nazaré de Andrade - Rod. Jorge Amado, km 16 - Salobrinho, Ilhéus
- BA, 45662-900
Resumo: Trata-se, no presente artigo, de conferir as relações de
homologia entre a interpretação na clínica psicanalítica freudiana e na
análise de discurso de linha francesa, fundada por Michel Pêcheux, para,
a partir de suas aproximações e divergências, verificar em que medida
pode-se afirmar que o psicanalista é um analista de discurso.
Palavras-Chave: psicanálise, clínica, interpretação, análise de discurso
francesa, Freud, Pêcheux.
Resume: In this article, it is a question of conferring the relations of
homology between the interpretation in the Freudian psychoanalytic clinic
and in the analysis of French line discourse, founded by Michel Pêcheux,
to, from its approximations and divergences, verify in which it can be said
that the psychoanalyst is a discourse analyst.
Keywords: psychoanalysis, clinical, interpretation, French discourse
analysis, Freud, Pêcheux.
1. Introdução
A Psicanálise é um método terapêutico criado por Sigmund Freud no século
XX para tratar sintomas mentais através da linguagem. Ela pressupõe a existência
de uma atividade psíquica inconsciente que nos determina por efeito estrutural de
um recalcamento. Consiste em uma teoria que advém de uma prática clínica.
Já a Análise de Discurso, disciplina fundada na França por Michel Pêcheux
na década de 1960, se ocupa, através de uma junção do materialismo histórico, da
linguística e da psicanálise, de estudos sobre o discurso, mais especificamente em
como se produz o campo do sentido e como a ideologia se manifesta na língua.
Observa-se que há uma relação de convergência entre o dispositivo de
interpretação psicanalítica e a da análise de discurso, sendo o psicanalista um
possível analista de discurso. Ambas as disciplinas trabalham a produção do sentido
a partir de regularidades discursivas, ou seja, de como o texto significa e não o que
ele significa, o que seria uma análise hermenêutica. Ambas também concebem uma
noção de verdade que se constrói como produto de um gesto de
descrição/interpretação, buscando o analista uma posição relativizada em face da
interpretação, a fim de não partir de hipóteses apriorísticas.
2. Justificativa
A proposta do presente projeto é de aproximar a psicanálise e a análise de
265
discurso como procedimentos de origem e estrutura semelhantes. O sentido de
estabelecer tal relação advém da necessidade de esclarecer questões
epistemológicas da interpretação na psicanálise, bem como sobre a pesquisa a
respeito dos fundamentos da técnica psicanalítica.
3. Problema
O psicanalista escuta um sujeito que sofre e narra seu sofrimento. Ele escuta
e intervém sobre um discurso com a finalidade de modificar ou reduzir o mal-estar e
sintomas de um indivíduo.
Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a interpretação em psicanálise possui
duas acepções: fazer emergir o sentido latente nas palavras e nos comportamentos
de um sujeito e, no tratamento, a comunicação feita ao sujeito, visando dar-lhe
acesso a esse sentido latente, segundo as regras determinadas pela direção do
tratamento.
Assim, vale perguntar, em que consiste este método de interpretação? Quais
são os seus critérios? A quê evidências responde? Trata-se, portanto, de um ensaio
que visa investigar os fundamentos teóricos de um discurso do método psicanalítico.
4. Desenvolvimento
Freud (1923) afirma que a psicanálise é, ao mesmo tempo, um método de
investigação e tratamento. Assim, coloca a linguagem tanto como método quanto
como objeto, produzindo um possível alinhamento epistemológico entre a
psicanálise e a análise de discurso. Tal fato fornece o critério necessário para a
homologia, uma vez que se trata de práticas interessadas em descrever discursos,
através de certos procedimentos.
Assim como a hipótese psicanalítica é a de que o sintoma é uma metáfora, o
significante de um significado recalcado da consciência do sujeito, sendo simbólico
e estando relacionada com a história desse sujeito, a Análise de Discurso
compreende o discurso a partir do confronto entre o dito com o não dito, e do que é
dito de um modo e não de outro, sendo a ausência igualmente constituinte do dizer
e do sentido (ORLANDI, 2009).
O psicanalista, pois, em seu ato, possui um conjunto de intervenções que
visam levar o sujeito à decifração de seu texto inconsciente, levando a um
reordenamento do gozo e redução do mal-estar. A tarefa de fazer saber do sentido
inconsciente consiste, portanto, em um trabalho de interpretação. Em que o
psicanalista fundamenta e orienta sua interpretação?
4.1 A Interpretação na Psicanálise
Apesar de, no início da psicanálise, Freud (1988) realizar intervenções de
caráter explicativo, incidindo sobre o sentido, na própria “Interpretação dos Sonhos”
(1900) ele já dava pistas sobre a impossibilidade de qualquer chave interpretativa,
afirmando a associação livre do sonhador como única via de acesso ao conteúdo
latente do sonho.
Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911),
Freud (p. 24) traz o exemplo do sonho de um homem que cuidou de seu pai por um
difícil período de doença ao que este veio a falecer e que, nos meses seguintes ao
ocorrido, sonhou repetidas vezes que o pai estava vivo e falava com ele como
antes, mas que ao mesmo tempo “lhe doía muito que o pai já tivesse morrido e
apenas não o soubesse” modo com que termina o sonho.
266
Analisando, Freud (p. 24) descreve que a chave de entendimento do sonho é
a inclusão da frase “conforme o desejo do sonhador”, que teria sido suprimida após
a frase “que o pai tivesse morrido”. Desse modo, conclui que a lembrança dolorosa
de ter desejado a morte do pai enquanto este ainda estava vivo e o medo de que
este tivesse suspeitado fez subtrair, através do recalque, o fragmento do
pensamento onírico. Assim, Freud afirma que o sonho é antes de tudo o seu relato,
tornado explícito no modo como o analisando o narra e quais fragmentos ele omite.
Em “Construções em análise” (1937) formula um conceito de interpretação a
partir da comparação do trabalho do analista com o do arqueólogo que, assim como
este reconstrói um fóssil a partir de seus restos, também o analista reconstrói os
elos de ligação inconscientes a partir das lacunas do discurso do consciente do
analisante (FREUD, 1977). Nesse artigo ele retoma um exemplo de interpretação de
sonho de Psicopatologia da vida cotidiana (1901) para ilustrar. (FREUD, 1977)
Trata-se de um analisante que relata sonhos nos quais se repete a palavra
Jauner, um sobrenome comum. O analisante conhece um Sr. Jauner, mas as
associações não se desenvolvem por aí. Freud, então, toma a palavra como lapso e
propõe ao analisante que ele poderia querer dizer Gauner, que significa velhaco,
vigarista. O analisante responde que se trata de um exagero de Freud, um genhardt.
Contudo, ao fazer o comentário, troca o “G” por “J”, dizendo Jenhardt, lapso que
para Freud confirma o acerto de sua interpretação.
Assim, Freud demonstra que o sentido não deve ser tomado na via do
significado (Jauner como sobrenome), mas, como se diria a partir da linguística,
como significante (imagem acústica do conceito saussuriano), ao substituir o
fonema “J” por “G”, o que produz efeito de sentido.
Lacan, contudo, introduziu o conceito de significante em sua concepção de
interpretação. Ali onde Freud utilizava o método da associação livre, Lacan em “A
carta roubada” (1956, p. 56) e “A instância da letra ou a razão desde Freud” (1957,
p. 179) formulou o conceito de cadeia significante e a hipótese do “inconsciente
estruturado como uma linguagem”.
Através dos estudos de Lévi-Strauss sobre as estruturas elementares de
parentesco, ancorado na linguística de Saussure, toma a estrutura da língua como
estrutura modelo, capaz de transposição metodológica para explicar os fatos
humanos. Assim, o simbólico passa a ser a função ordenadora da cultura, que
aliena o homem e faz dele um animal regido pela linguagem, esta determinante das
formas de vínculo social e escolhas sexuais (OCARIZ, 2003, p. 103).
Chemama (2002) afirma que a hipótese lacaniana do inconsciente
estruturado como uma linguagem tem efeitos sobre o conceito de interpretação
psicanalítico, pois a inversão realizada por Lacan do signo Saussuriano, colocando
o significante sobre o significado S/s e atribuindo um sentido à barra, produz uma
ideia de interpretação como revelação de um sentido oculto, conforme a noção de
sintoma que traz em “Função e Campo da Palavra e da Linguagem” (1953) “o
sintoma é o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito”
(LACAN, 1998, p. 282). A concepção de que o significante não significa o sujeito,
mas “representa o sujeito para outro significante”, contribui para um abandono da
busca pelo significado, fazendo com que o analista vá buscar na polissemia da
linguagem, o fundamento da interpretação (LACAN, 1998, p. 285). Desse modo, o
sentido do dito do paciente não é avaliado por sua organização frasal, mas na
sequencia acústica à cadeia significante (CHEMAMA, 1995, p. 110) e suas
correlações.
Desse modo, entende-se que a interpretação deve ter em vista deixar abertos
os efeitos de sentido do significante, a fim de abrir possibilidades para novas
significações.
267
Tal fato, contudo, abre margem para uma problemática: na falta de
significado fixo ao significante, como a interpretação garantiria sua eficácia, um
sentido ou direção? Sobre isso, Lacan (1979, p. 189) discorre em “Os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise”, acerca das garantias da interpretação:
[...] é falso dizer que a interpretação, como se escreveu,
está aberta a qualquer sentido, sob o pretexto de que só
se trata da ligação de um significante a um significante e,
consequentemente uma ligação louca. A interpretação não
está aberta a todos os sentidos. É conceder àqueles que
se levantam contra os caracteres incertos da interpretação
analítica dizer que todas as interpretações são possíveis,
o que é propriamente um absurdo. Não é porque eu disse
que o efeito da interpretação é isolar um coração, um kern,
para exprimir como Freud, de non sense, que a
interpretação ela mesma é um não senso.
A interpretação é uma significação não importa qual. Ela
vem aqui no lugar do s, e reverta a relação que faz com
que o significante tenha por efeito, na linguagem, o
significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante
irredutível. É preciso interpretar no nível do s, que não é
aberto a todos os sentidos, que não pode ser não importa
o quê, que é uma significação aproximada, sem dúvida.
[...]
A interpretação não é aberta a todos os sentidos. Ela não
é de modo algum não importa qual. É uma interpretação
significativa, e que não deve faltar. Isso não impede que
não seja essa significação que é, para o advento do
sujeito, essencial. O que é essencial é que ele veja, para
além dessa significação, a qual significante – não-senso,
irredutível, traumático – ele está como sujeito, assujeitado
(LACAN, 1979, p.189).
Assim, através do que o analisante diz em determinado momento, uma
palavra que pronunciou antes, fragmentos de discurso que tinha desenvolvido, uma
lembrança que faz relação com a que está referindo, estabelecem-se correlações
obrigatórias que fazem com que, em uma vida, sejam repetidos os mesmos termos,
as mesmas escolhas, o mesmo destino (CHEMAMA, 1995, p.111). Passemos ao
estudo da interpretação em análise de discurso.
3. 2 A Interpretação na Análise de Discurso
Existem muitas formas de estudar a linguagem: o estudo dos signos ou
sistemas de regras formais é objeto da linguística; as regras de bem dizer, objeto da
Gramática; a Análise de Discurso não trata nem da língua, nem da gramática, mas
do discurso, ou seja, o modo como os homens utilizam a língua para fazer sentido.
(ORLANDI, 2009, p.15.)
Michel Pêcheux (2014, p. 38), fundador dessa teoria, define discurso como
sendo “o efeito de sentido entre interlocutores”. Apesar de o campo do sentido aquilo que se interpreta do que se lê, se ouve e se diz - parecer algo posto e
aleatório, os estudos de análise de discurso desvelam que o sentido nada tem de
natural, sendo historicamente determinado e socialmente administrado.
Levando em conta o sujeito na história, a Análise de Discurso considera os
processos e condições de produção da linguagem, pela análise da relação da língua
com os sujeitos que a falam e com as situações em que o dizer se produz.
268
Assim Pêcheux, através tríplice aliança entre o materialismo histórico, a
linguística e a psicanálise, tenta mostrar como se produz sentido e como a ideologia
se manifesta na língua. O autor retoma o conceito de interpelação ideológica
proposto por Althusser em sua releitura de Marx, e constrói uma teoria nãosubjetivista do sentido e do sujeito (BALDINI, 2013).
Ele afirma que, ao se inscrever na língua, o indivíduo é interpelado a tornarse sujeito pela ideologia, resultando em uma forma-sujeito histórica. Desse modo, a
ordem da língua e da história determina, assim, a ordem do discurso. Já com a
psicanálise, Pêcheux relaciona que na operação de interpelação-assujeitamento,
ocorre um processo de identificação que produz uma formação imaginária,
constitutiva de um efeito sujeito que tem a ilusão de ser a fonte do sentido.
Isso ocorre porque o sujeito desconhece que o sentido se forma fora dele e
que, ao falar, reproduz as fronteiras do dito e não-dito. Desse modo, a teoria da
interpelação-assujeitamento e a dos dois esquecimentos, são tomadas de
empréstimo e análogas às teorias da identificação imaginária (assujeitamento ao
Outro e identificação ao outro) e do recalcamento lacaniano (MALDIDIER, 2003).
Nessa medida, para estudar as regularidades da linguagem em sua
produção, o analista de discurso relaciona a linguagem à sua exterioridade. Para o
autor (1938), essa maneira de trabalhar comporta algumas exigências.
Primeiramente, consiste em dar relevância aos gestos de descrição das
materialidades discursivas. Segundo o autor
Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensão
fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se
torna indiscernível de interpretar: Essa concepção da
descrição supõe, ao contrário, o reconhecimento de um
real específico sobre o qual ela se instala: o real da
língua. (PÊCHEUX, 2015, p. 50)
Este real da língua se refere às propriedades da linguagem como
equivocidade, mas também à elipse, à falta entre outros.
Em segundo lugar, o objeto da linguística encontra uma zona intermediária
de processos discursivos estáveis (derivados do jurídico, administrativo e das
convenções sociais) que suspendem relativamente às propriedades lógicas dos
objetos. Assim, o autor diz que
A consequência do que precede é que descrição [...] está
intimamente exposta ao equívoco da língua: todo
enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se
outro, diferente de si mesmo, se deslocar
discursivamente de seu sentido para derivar para um
outro. [...] Todo enunciado, toda sequencia de
enunciados é, pois, linguisticamente descritível como
uma série (léxico-sintaticamente determinada) de pontos
de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação.
(PÊCHEUX, 2015, p. 53)
Pêcheux (2015, p. 53) ainda diz que é neste ponto que se encontram as
disciplinas de interpretação:
É porque há o outro nas sociedades e na história,
correspondente a esse outro próprio ao linguajeiro
discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou
transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a
269
possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação
que as filiações históricas podem-se organizar em
memórias, e as relações sociais em redes de
significantes.
Assim, um dos problemas, de acordo com Pêcheux, é determinar nas
práticas de análise de discurso, o lugar e momento de interpretação, em relação aos
da descrição. Ele frisa que não se trata necessariamente de fases sucessivas, e
estas não estão condenadas a se entremisturar.
O autor ainda lembra que o fato de que toda descrição abre sobre a
interpretação, não significa que ela incida sobre qualquer coisa. Toda descrição de
um enunciado põe necessariamente em jogo, através da identificação dos espaços
vazios, de elipses, negações, interrogações e múltiplas formas do discurso relatado,
o discurso-outro, como espaço virtual de leitura desse enunciado ou sequencia.
Finalizando sobre a interpretação na análise de discurso, Pêcheux afirma que
Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na
materialidade descritível da sequencia, marca, no interior
dessa materialidade, a insistência do outro como lei do
espaço social e da memória histórica, logo como o
próprio princípio do real sócio-histórico. E é nisto que se
justifica o termo de disciplina de interpretação,
empregado aqui a propósito das disciplinas que
trabalham nesse registro. (PÊCHEUX, 2015, p. 54)
Para ilustrar o dispositivo de análise em AD, Orlandi (2009) traz o exemplo de
uma faixa colocada em um campus universitário em época de eleições. Trata-se de
uma faixa preta com a seguinte frase: “Vote sem medo!”. A autora analisa a cor e as
possíveis relações existentes sobre a frase. Retoma o fato de que a cor preta é
historicamente a expressão política da “direita” conservadora.
Já as palavras “sem medo”, trazem em si sentidos anexados relativos a
levantar suspeita sobre um dos candidatos, alertar sobre perigo à população e ainda
indiretamente, de que estão contra o possível candidato ameaçador, colocando-se
na posição de salvadores e rompendo com o principio de ético de neutralidade
política. Desse modo, demonstra que os sentidos não literais, estão apenas nas
palavras, mas na situação e condições em que foi produzido.
3.3 A Verdade na Interpretação
O exame dos procedimentos de interpretação, contudo, trazem consigo uma
segunda problemática: a da garantia sobre a interpretação, tanto na psicanálise
como no dispositivo de análise de discurso, fato que introduz o segundo ponto de
exame do projeto. Este diz respeito à convergência da noção de verdade do sentido
produzido em ambos os métodos de leitura-interpretação do texto.
Em psicanálise, existe uma ideia de que em toda formação inconsciente, uma
verdade está em suspenso, que se diz, na espera de ser parida. Contudo, ao se
compreender o “inconsciente estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1957, p.
179) abre-se para uma noção de um processo infinito de produção através das
relações intersubjetivas.
Nessa medida, não é possível conceber um processo analítico com uma
interpretação verdadeira em detrimento de outra falsa, uma vez que a verdade do
inconsciente e do sintoma não é algo que esteja pronto, sepultado e enterrado, e
que a análise irá desenterrar. Trata-se de algo futuro, um texto que vai se produzir,
270
se construir (OCARIZ, 2003, p. 105). A verdade, para Lacan, não é algo que se
descobre, mas algo que se constrói, retroativamente, no movimento de relacionar o
que se está dizendo, com a verdade singular de cada um (LACAN apud OCARIZ,
2003, p.105).
Assim, na psicanálise a finalidade da interpretação é se servir do equívoco do
significante para dividir o sujeito e abrir o campo do sentido, fazendo-o associar e
produzir novos significantes e significados, ao passo que a interpretação falsa, é a
que opera em nome do saber suposto, nomeando o objeto e fixando o campo do
sentido (SOLER, 1985).
Já no campo da análise de discurso, não há igualmente verificação de um
“sentido verdadeiro”, mas pelo real sentido em sua materialidade linguística e
histórica. A AD não está interessada em extrair sentidos, respondendo à questão “o
que este texto quer dizer?” A AD considera que a linguagem não é transparente, e
por isso não busca atravessar o texto para encontrar o sentido do outro lado. A
questão que ela coloca é “como” o texto significa e não “o quê” significa.
Ela não trabalha com textos como ilustração ou como documento de algo já
sabido em outro lugar e que o texto exemplifica. Ela visa produzir um conhecimento
a partir do próprio texto, por que o vê possuindo materialidade própria e significativa,
espessura semântica, discursividade (ORLANDI, 2009)
Assim, tal como o psicanalista, o analista de discurso lê para além das
evidências e acolhe a opacidade da linguagem, os sentidos históricos e a
constituição dos sujeitos pela ideologia e pelo inconsciente. Ele sabe que os
processos de identificação dos sujeitos constituem uma pluralidade contraditória de
filiações históricas.
O dispositivo de análise deve, portanto, explicar os gestos de interpretação
que se ligam aos processos de identificação dos sujeitos, suas filiações de sentido,
descrever a relação do sujeito com sua memória, correlacionando descrição e
interpretação (ORLANDI, 2009).
Assim, a interpretação é aqui objeto de análise. O sujeito que fala, interpreta,
e tanto o psicanalista, como o analista de discurso devem descrever o gesto de
interpretação do sujeito que constitui o sentido a ser analisado.
4. Referências
BALDINI, L. Sujeito e subjetividade: psicanálise e análise de discurso. In:
Análise do discurso em perspectiva: teoria, método e análise/Verli Petri e Cristiane
Dias orgs. – Santa Maria: Ed da UFSM, 2013.
CHEMAMA, R. Dicionário de Psicanálise. Trad.: Francisco Franke Settineri. –
Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995.
FREUD, S. [1923]. Dois artigos de enciclopédia: psicanálise e teoria da libido. In:
____Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorortu, 1988. V. 23.
MALDIDIER, D. A inquietação do discurso. – (Re)ler Michel Pêcheux Hoje. Trad
Eni P. Orlandi – Campinas: Pontes, 2003.
OCARIZ, M. C. O sintoma na clínica psicanalítica: o curável e o que não tem
cura. – São Paulo: Via Lettera Editora, 2003.
ORLANDI, E. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 8ª Ed. Campinas,
SP: Pontes, 2009.
271
PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Orlandi. 7ª Ed.
Campinas, SP: Pontes, 2015.
SOLER, C. As regras da interpretação. Analytica, vol. 41, Navarin editeur, Paris,
1985, p. 15-23.
272
CONCEPÇÕES DE FAMÍLIA CONSTRUÍDAS
A PARTIR DA LEI E DA LITERATURA
CAROLINA DO PRADO FRANCO
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
Universidade do Vale do Sapucaí. Avenida Prefeito Tuany Toledo, 470, Prédio
Central, Fátima, Pouso Alegre – MG – 37550.000.
carolinapfranco@outlook.com
Resumo. Neste estudo, analisamos as variações do discurso de família
ocorridas desde o primeiro Código Civil brasileiro de 1916, aos anos
atuais, com o último Código Civil de 2002. Pesquisamos também o modo
como as relações de família foram retratadas nas obras “Clara dos Anjos”
de Lima Barreto e “Leite Derramado” de Chico Buarque de Hollanda.
Desta forma, buscamos compreender os sentidos de família que circulam
na lei e na Literatura, sustentados na teoria e metodologia da Análise de
Discurso.
Palavras-Chave. 1. Família; 2. Lei; 3. Literatura; 4. Análise de Discurso;
5. Formações imaginárias.
Abstract. In this study, we analyze the variations of the family discourse
that occurred since the first Brazilian Civil Code of 1916, to the present
years, with the last Civil Code of 2002. We also investigate the way in
which family relations were portrayed in the works "Clara dos Anjos" of
Lima Barreto and "Spilt Milk" of Chico Buarque de Hollanda. In this way,
we seek to understand the family meanings that circulate in law and in
literature, based on the theory and methodology of the Discourse
Analysis.
Keywords. 1. Family; 2. Law; 3. Literature; 4. Discourse Analysis. 5.
Imaginary Formations.
1. Introdução
Neste trabalho, estudamos as variações do discurso de/sobre a família
ocorridas desde o primeiro Código Civil brasileiro, do ano de 1916 aos anos atuais,
com o último Código Civil, do ano de 2002. No entanto, não são somente as
mudanças jurídicas que nos interessam. As relações de família retratadas nas obras
literárias – “Clara dos Anjos” (concluída em 1922, mas publicada em 1948) de Lima
Barreto e “Leite Derramado” (2009) de Chico Buarque de Hollanda – são analisadas
também. Interessa-nos saber quais os discursos produzidos pela lei e pela
Literatura sobre a família, buscando mostrar uma possível articulação entre eles
nessas diferentes materialidades discursivas. De maneira que, para as análises,
questionamos que formações imaginárias acerca da família estão funcionando nos
textos tomados como corpus de análise.
A obra de Lima Barreto, além de abordar fatos que vão além das relações de
um núcleo familiar, foi concluída num período bastante próximo a do início da
vigência do primeiro Código Civil brasileiro (1916). A obra “Leite Derramado”
também não foi escolhida por acaso. Retrata a história de um senhor centenário
que, num leito de hospital do Rio de Janeiro dos dias atuais, relata aos parentes e
funcionários do local a decadente trajetória de sua família. Portanto, o critério mais
273
geral de nossa escolha dos romances em análise, foi a questão da protagonização
da família e do seu funcionamento. Desta forma, podemos compreender quais
relações e articulações se estabelecem entre Direito e Literatura, sustentando-nos
teoricamente na Análise de Discurso, pensando os processos discursivos em
diferentes materiais, ao tomar a relação entre língua e história na produção dos
sentidos. Mas, para pensar os conceitos de família que vêm sendo produzidos ao
longo dos anos, julgamos importante entender como algumas concepções são
formuladas e circulam no Direito e na literatura, procurando mostrar como estão
impressos aí os efeitos do imaginário.
2. A Lei e a Literatura
Segundo Miaille (2005), o Direito costuma ser definido como um conjunto de
normas que organizam as relações entre as pessoas de uma sociedade, mas ele
oculta, na verdade, as verdadeiras relações jurídicas. Estas relações se encontram
organizadas no que o autor chama de modo de produção (representação ideológica
de uma sociedade como um consenso de indivíduos separados e livres). Ao lutar
por direitos e deveres iguais (acreditando na viabilidade da justiça), luta-se por uma
igualdade que não reconhece as singularidades do sujeito.
Para Lagazzi (1998) a instância jurídica é uma ordem de sentidos
constitutiva da memória do dizer, portanto determinante das relações sociais e por
essas inserida no jogo contraditório da prática significante que move o interdiscurso.
A autora traz a preocupação de se falar em ‘instância jurídica’ e não ‘direito’.
Segundo ela, ‘direito’ desconsidera as diferentes épocas e sociedades, unificando
funcionamentos distintos. A instância jurídica é parte de um todo e só pode ser
entendida em relação a ele. Ou seja, por mais que o jurídico seja um dos espaços um dos que são fundamentais para o Estado - de estabilização dos discursos, de
apagamento da memória discursiva, de sustentação da evidência dos sentidos, não
se pode deixar de lado sua historicidade. Enquanto o Direito, na forma da Lei, regula
as relações do homem em sociedade, a Literatura congrega a relação da língua
com a ficção, é exercício de reflexão e de experiência com a escrita. Ela
compreende um modo próprio de materialização do discursivo. É uma das formas
mais iniciais de ligação do sujeito com a sua própria subjetividade. Desta forma, o
texto literário, em nossa perspectiva, é compreendido como materialidade
discursiva, como realização no plano da língua da relação do homem com o mundo
em seus efeitos de sentidos existentes, possíveis ou imaginados.
O discurso, enquanto prática de linguagem, priorizando-se o verbal, é
estudado com o intuito de compreender a língua produzindo sentido, seja no texto
jurídico ou literário. De acordo com Orlandi (2015), se o texto é unidade de análise,
só pode sê-lo porque representa uma contrapartida à unidade teórica, que é o
discurso, definido como efeito de sentidos entre os locutores. Para a Análise de
Discurso, o que interessa é a forma como o texto organiza a relação da língua com
a história no trabalho significante do sujeito em sua relação com o mundo.
A função social do texto jurídico é um princípio estruturante do ordenamento
jurídico e encontra sede ao longo da história do homem na terra, desde os tempos
mais remotos, assumindo em cada período, os contornos próprios do modelo
político, econômico, cultural e jurídico de cada sociedade. Desde o momento em
que a sociedade politicamente organizada criou a regra de Direito para ela se
submeter, essas mesmas regras objetivaram e objetivam alcançar uma finalidade,
uma função predisposta em suas estruturas dogmáticas.
Vale dizer, a respeito do Direito, que se está tratando de um “Direito
274
burguês” tal como se pode defini-lo a partir de uma compreensão do materialismo
histórico, considerando a forma-sujeito histórica atual, que é a do capitalismo em
que se tem o sujeito “livre”, isto é, com a ilusão de autonomia, o sujeito de deveres e
direitos. Althusser (1980) arrisca-se a dizer que o Direito não existe a não ser em
função das relações de produção existentes que, conjuntamente com as forças
produtivas, são os componentes básicos do modo de produção, a base material
da sociedade. Porém, apesar de o Direito exprimir as relações de produção, no
sistema de regras, ele não faz qualquer menção às citadas relações, pelo contrário,
pontua Engels (2012), ele as escamoteia.
O texto literário, por sua vez, desempenha o papel de instituição social, pois
pode ser concebido como o que “utiliza a linguagem” como meio específico de
comunicação, uma vez que a linguagem é uma criação social. Observa ainda que o
conteúdo social das obras em si próprias e a influência que a Literatura exerce no
leitor fazem dela um instrumento de mobilização social.
Em nossa perspectiva, não se trata de uma relação de utilização da
linguagem para um determinado fim, porque esta é uma posição teórica que é
conflitante com a nossa, a Análise de Discurso, a qual não toma a língua como
instrumento de comunicação.
3. Análises
Para iniciar as análises, apresentamos recortes da lei, com os Códigos Civis
de 1916 e 2002, que versam sobre a mesma temática: a questão matrimonial, entre
homem e mulher, o que nos leva a refletir sobre a desigualdade de gênero, e a
filiação.
Primeiramente segue um recorte (R1) de um artigo do Código de 1916, que
versa sobre direitos e deveres do cônjuge na relação matrimonial:
R1 - Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal.
Compete-lhe:
I. A representação legal da família.
II. A administração dos bens comuns e dos particulares da
mulher, que ao marido competir administrar em virtude do
regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts.
178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311).
III. O direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e
233, nº IV). (Vide Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de
1919).
IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua
residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII,
243 a 245, nº II, e 247, nº III).
V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do
art. 277.
Observemos agora outro recorte (R2) do Código de 2002, que aborda a
mesma temática:
R2 - Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal;
III - mútua assistência;
IV - sustento, guarda e educação dos filhos;
V - respeito e consideração mútuos.
275
Art. 1.567. A direção da sociedade conjugal será exercida, em
colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse
do casal e dos filhos.
A supremacia do homem pode ser sentida no dispositivo apresentado. Pelo
art. 233 do C.C. de 1916, ao marido incumbia a chefia da sociedade conjugal, tendo
a mulher função de colaboradora do marido no exercício dos encargos da família,
cabendo a ela velar pela direção material e moral (art. 240).
Segundo prescreve Orlando Gomes (2003), o casamento do menor de 21
anos necessitava do consentimento de ambos os pais, mas, havendo discordância,
prevalecia a vontade paterna. Posição privilegiada da figura masculina.
Além disso, uma das regras de maior discriminação, talvez a pior, era a que
considerava a mulher como relativamente incapaz (art. 6°, II do C.C. 1916), dandose margem ao entendimento de que o intuito do legislador era deixar a mulher
sempre sob o comando masculino. Muitas mulheres sequer chegaram a ser
“capazes” durante toda sua vida. Pois como poderiam se casar a partir dos 16 anos
e só adquiririam a ‘capacidade’ aos 21, aquelas que casaram antes dessa idade não
chegaram a possuir a ‘capacidade’ plena.
A Constituição de 1988 deu um novo enfoque aos institutos do direito de
família. A Lei 4.212/1962 deu à mulher casada a ‘capacidade’; a Lei 6.515/77
permitiu o divórcio, proibição contida no Código Civil revogado.
Hoje consta expressamente a igualdade entre homens e mulheres, como
também que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente por ambos.
Podemos observar que a construção do papel do homem no seio familiar,
segundo o Código Civil de 1916, está relacionada à administração e ao controle do
matrimônio, referenciado pela legislação como “sociedade”. Ao homem cabia: a
sociedade conjugal, legalidade da família, administração do domicílio e dos bens.
Diante deste contexto, apresentado pela legislação, podemos identificar os
conceitos de Althusser (1980) sobre os Aparelhos Ideológicos do Estado, através do
Aparelho Ideológico familiar, representado pela figura do marido.
As obras literárias, por sua vez, coadunam com os recortes jurídicos trazidos
do início do século XX. Em “Clara dos Anjos” de Lima Barreto, por exemplo, relatase a história de uma pobre mulata, filha de um carteiro do subúrbio do Rio de
Janeiro do início do século XX que, apesar das cautelas excessivas da família, é
iludida e, como tantas outras, desprezada por um rapaz de melhor condição social
do que a sua.
Ao descobrir a gravidez, a personagem Clara decide ir à casa da família de
Cassi, exigir que o moço se casasse com ela. O ato da menina revela que nem ela e
nem sua família se importavam com o caráter do rapaz. Para elas, importava
apenas que a filha se casasse para não se tornar motivo de vergonha perante a
sociedade.
D. Salustiana, mãe do rapaz, desde o princípio da história, mostra-se
preconceituosa e bastante preocupada com as aparências. Além disso, sempre
apoiou as ações do filho, mesmo tendo ciência de que ele tinha um mau caráter. E,
para fazer isso, responsabiliza unicamente a moça, com um discurso arraigado e
sustentado ainda nos dias de hoje, através da cultura do machismo: “- Por acaso,
meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é
delas, só delas...” (LIMA BARRETO, 1998, p. 76).
O pai de Cassi, que não concordava com as ações do filho, chega a casa no
momento da discussão e toma conhecimento da gravidez de Clara. A menina pede,
então, a ele, que obrigue seu filho a se casar com ela. O Sr. Azevedo, bastante
desgostoso, compadece da situação da garota, mas afirma não poder ajudá-la, pois
276
ele próprio não sabe do paradeiro de Cassi. A história de “Clara dos Anjos” encerrase de modo a fazer o leitor pensar sobre possíveis relações imaginárias produzidas.
Vejamos o próximo recorte (R3):
R3: “Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se
sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um
grande acento de desespero:
- Mamãe! Mamãe!
- Que é minha filha?
- Nós não somos nada nesta vida”. (LIMA BARRETO, 1998, p. 77)
Há
acima um diálogo entre duas mulheres, mãe e filha, que reflete a identificação entre
elas num momento de desamparo e dor. Clara fala em nome dela, da mãe e de
todas as mulheres em iguais condições. Lima Barreto mostra ao leitor um universo
conduzido pelo homem, branco, que cerrava as portas à população negra, negandolhe o direito de participar, de forma igualitária, da sociedade. Em várias passagens
da história, é notável que Cassi Jones contava com a silenciosa concordância das
autoridades, que viam o comportamento por ele perpetrado como algo sem
importância, uma vez que as vítimas eram sempre pessoas pobres e não detinham
influência na sociedade.
A segunda obra escolhida para a
composição do trabalho, “Leite Derramado” (2009), é uma narrativa escrita pelo
cantor e compositor Chico Buarque. É um monólogo, que transita entre a lucidez e
as lembranças do protagonista, pontuado por momentos de humor. A obra
condensa a história dos últimos dois séculos brasileiros.
Num leito de um hospital público da cidade do Rio de Janeiro dos dias atuais,
o centenário Eulálio Montenegro d’Assumpção, membro da aristocracia carioca,
relata a decadente trajetória de sua família. Como se trata de um monólogo, a
personagem mescla lembranças nítidas e digressões com conversas corriqueiras
com enfermeiros e parentes que vão visitá-lo. Ao longo da história, é possível
perceber que Eulálio confunde as pessoas, como também os episódios que narra,
em uma linguagem desconexa. Interessante notar que, em termos de formulação, o
autor (narrador) adota um estilo literário que conta os fatos de maneira bastante
própria: sem parágrafos nem pausas, deixando a narração mais próxima possível
das conversas cotidianas da personagem. Em termos ainda de formulação, há
elementos de indistinção marcados no texto. É uma espécie de reprodução do fluxo
da linguagem mesmo como ela é praticada pela personagem.
Observemos o trecho, a partir do recorte (R4) abaixo, em que o protagonista
conversa sobre a possibilidade de namorar uma das enfermeiras:
R4: quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa
cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos
conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes
talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa
e livros sérios para você ler. Sinto que você leva jeito porque é
aplicada, tem meigas mãos, não faz cara ruim nem quando me
lava, em suma, parece uma moça digna apesar da origem
humilde. (BUARQUE, 2009, p. 9)
O recorte acima evidencia a preocupação da personagem com bens
materiais e com o conforto, mas, principalmente, com as aparências de seu próximo
relacionamento: “escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler”.
No mesmo trecho, mas um pouco mais adiante, Eulálio deixa transparecer seu
preconceito ao dizer: “parece uma moça digna apesar da origem humilde”. A
277
conjunção “apesar de” indica uma concessão. Ao admiti-la, está se afirmando que
uma moça de origem humilde, em regra, não é ou não deveria ser digna.
A organização familiar reflete os modos de produção socioeconômica. Ou
seja, de acordo com Engels (2012), a cada modo de produção, encontram-se um ou
mais tipos de organização familiar. Desta forma, com a força do capitalismo, as
classes ricas acabam sendo mais favorecidas que outras e, consequentemente,
mais valorizadas em detrimento de outras, mais pobres, conforme evidencia a
proposta de Eulálio.
A Literatura assim como o Direito são instrumentos fortes de reflexão para
pensar a família. Através de suas personagens, a Literatura constrói e faz circular
sentidos sobre a condição da mulher e do homem na família e, consequemente, na
sociedade.
4. Considerações finais
Considerada a base da sociedade, a família vem sofrendo muitas
transformações ao longo do tempo, inclusive no modo de se significar. Por isso
acreditamos ser tão importante a discussão sobre o tema, de modo a nos fazer
refletir sobre as reais modificações da família, e/ou do imaginário de família,
conforme pode ser visto na legislação e seu funcionamento no meio social. Além
disso, pensar este modo de significação na literatura é necessário, porque se torna
possível relacioná-la à nossa vivência.
Como podemos ver, há diversas perspectivas e modos de se relacionar e de
compreender a família nos diferentes materiais de linguagem. Considerando minha
formação, que se dá tanto no Direito, quanto nas Letras, em termos de formação
acadêmica, esses autores trazidos estão em constante relação com o que venho
pensando a respeito da questão da família, agora discursivamente. Trata-se de um
trabalho ainda em desenvolvimento e uma das questões teórico-analíticas em que
estamos trabalhando é justamente em compreender a articulação que pode haver
entre esses dois objetos ideológicos: a Lei e a Literatura no que diz respeito ao
modo como funciona o imaginário de família que, certamente, não deixa de produzir
efeitos sobre o real.
5. Referências
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed. Lisboa:
Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo, SP: Editora Ática, 1998 [1948].
BRASIL. Código Civil. Lei n° 3.071 de 1° de janeiro de 1916.
BRASIL. Código Civil. Lei n° 10406, de 10 de janeiro de 2002.
ENGELS, Friedrich. [1884] A origem da família, da propriedade privada e do
Estado. Tradução de Leandro Konder. 3ª Ed., São Paulo, SP: Expressão Popular,
2012.
GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
278
HOLLANDA, Chico Buarque de. Leite derramado. São Paulo, SP: Companhia das
Letras, 2009.
LAGAZZI, Suzy. A Discussão do Sujeito no Movimento do Discurso. 1998, 121
p. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
MIAILLE, M. Uma Introdução Crítica ao Direito. Trad. Ana Prata, Lisboa: Editorial
Estampa, 2005.
ORLANDI, Eni. Análise de discurso: Princípios e procedimentos. 12ª Edição,
Campinas, SP: Pontes, 2015.
279
O SILENCIAMENTO DA CULTURA NEGRA E
INDÍGENA NOS LIVROS DIDÁTICOS DE
HISTÓRIA
CÁSSIO S. CASTANHEIRA
Universidade do Vale do Sapucaí – PPGCL/UNIVÁS
Av. prefeito Tuany Toledo, 470 – Fátima III – Pouso Alegre, CEP: 37550-000
cassio.castanheira@ig.com.br
Resumo. Neste trabalho buscamos compreender o funcionamento
discursivo da lei 11.645/08 em livros didáticos de história que são
utilizados nas últimas séries do ensino fundamental na cidade de Bom
Sucesso, Minas Gerais. Nosso ponto de partida para as análises desses
livros didáticos é o campo teórico da Análise de Discurso, a partir da qual
pudemos compreender a forte afetação de fundamentos da historiografia
positivista que promove, como efeito, o silenciamento da cultura indígena
e africana nesses materiais que têm sido tomados como suporte
pedagógico para o ensino de história no Brasil. Para nós, tal situação se
apresenta como um problema porque textualiza a fundação da história do
Brasil a partir de discursividades eurocêntricas, destinando a outros
grupos os feitos de fundação linguística e cultural do brasileiro, colocando
à margem negros e indígenas.
Palavras-Chave. Discurso histórico. Livro Didático. Lei 11.645/08.
Abstract. In this work we seek to understand the discursive functioning of
law 11,645/08 in history textbooks that are used in the latest series of
elementary school in the town of Bom Sucesso, Minas Gerais. Our
starting point for the analysis of these textbooks is the field of theoretical
analysis of Speech, from which we were able to understand the strong
fundamentals of the positivist historiography affectation that promotes, as
fact, the silencing of culture African indigenous and those materials that
have been taken as educational support for teaching history in Brazil. For
us, this is a problem because textualiza the Foundation of Brazil's history
from discursividades eurocêntricas, the other groups of Brazilian cultural
and linguistic Foundation, putting the black margin and indigenous.
Keywords. Historic speech. Textbook. Law 11,645/08.
1. Introdução
Neste trabalho, temos o resultado parcial de uma pesquisa que pretende
discutir como o livro didático silencia discursos da cultura negra e indígena no Brasil.
A partir do referencial teórico da Análise de Discurso, propomos problematizar o
livro didático como um material que simula a realidade, silenciando vozes,
encobrindo a história e excluindo, na sua textualidade, uma grande parcela da
população que é responsável pela formação social e cultural deste país.
Desde a invasão e conquista do território brasileiro, as visões e os discursos
sobre os índios estavam vinculados a um projeto de dominação que os portugueses
desejavam implantar. Desde então, negros e índios passaram a ser caracterizados
pelos europeus como selvagens e inferiores. Para solucionar o que os europeus
280
entendiam como problema, foi realizado um trabalho de catequização pelo ensino
dogmático religioso de cunho cristão. No entanto, tal situação que, para nós, é um
processo de aculturação de negros e indígenas, isto é, um processo de
desmerecimento de uma cultura em detrimento de outra, foi discursivizada a partir
de fundamentos de caráter universal e humanista. Tais fundamentos também
sustentaram a textualização da história do Brasil por muitos anos, sendo
reafirmadas pela historiografia positivista que assumiu uma posição de ser a
disciplina responsável por narrar objetivamente fatos históricos.
Nosso objetivo, então, é compreender o funcionamento discursivo da lei
11.645/08 em livros didáticos de história que são utilizados nas últimas séries do
ensino fundamental na cidade de Bom Sucesso, Minas Gerais. Vamos mobilizar
para o alcance desse objetivo o dispositivo teórico da Análise de Discurso, a partir
do qual podemos compreender a forte afetação de fundamentos da historiografia
positivista que promove, como efeito, o silenciamento da cultura indígena e africana
nesses materiais que têm sido tomados como principais suportes pedagógicos para
o ensino de história no Brasil.
A tradição narrativa da historiografia positivista é marcada pela cronologia
linear, político, unidimensional, homogêneo, econômico e com personagens que
ganham uma dimensão sobre-humana, reconhecendo-os como heróis que, em sua
grande maioria, significam uma fortaleza e superioridade étnica e cultural branca e
europeia sobre as demais etnias e culturas. Os negros e índios aparecem apenas
como grupos que deram algumas contribuições para a formação cultural do Brasil, e
nunca estão presentes como heróis ou como agentes históricos importantes. Este
silenciamento da cultura indígena e africana promove, como efeito, a construção de
sentidos que significam o grupo de negros e índios como inferiores aos demais
grupos, fortalecendo uma situação de preconceito e exclusão social ainda no século
XXI.
2. O livro didático e o mercado da mundialização
O livro didático e a educação não podem ser pensados fora da sociedade,
como muitas vezes nos vem sendo apresentados. São aspectos que influenciam e
são influenciados pela sociedade, isto é, pela situação política, econômica e social
de um determinado período histórico. Desde o século XIX, as políticas do livro
didático mantiveram conectados os interesses estatais aos interesses privados.
Editores e autores sempre se interessaram por este produto que circula no mercado
e produz lucro. Assim, editoras, buscando vender seus livros, seguem
determinações da classe social que possui o domínio do capital. Nesse sentido,
desde a segunda metade do século XIX, comissões, comitês e programas
governamentais determinam tanto os conteúdos a serem abordados, quanto a
organização do livro e, principalmente, os paradigmas a serem trabalhados em sala
de aula.
Com o tempo, o livro didático foi apresentado com diferentes configurações.
A história do Brasil, na metade do século XIX era apresentada como um apêndice
da história das civilizações. Somente no início do século XX o Brasil passa a ter
destaque sendo apresentado como uma disciplina independente a partir do Estado
Novo, com Getúlio Vargas, sendo textualizado, enfaticamente, o nacionalismo como
edificação de personagens emblemáticos para o desenvolvimento industrial. Com o
culto às personalidades, visam à construção de uma identidade nacional a partir de
elementos paradigmáticos que representavam o próprio governo getulista.
Atualmente, o que vem sendo difundido nos livros didáticos é o efeito do
fenômeno da mundialização, pelo qual os interesses internacionais estão voltados
281
para uma identidade global, em detrimento de uma identidade nacional. Bittencourt
(2009), explica que a própria condição do sistema capitalista articula a
modernização e a tecnologia num sentido global e, dessa forma, o nacional é
considerado ultrapassado uma vez que se preconiza o ideário de uma identidade
supranacional para que todos possam se sentir cidadãos do mundo.
Numa concepção em que se preconiza a mundialização, todos somos
convidados a nos adequarmos a um modelo único, que procura excluir as
diferenças sociais buscando uma nova homogeneização. É nesse sentido que se
pretende colocar o livro didático como espaço político-simbólico para a informação
de conhecimentos que sejam voltados a um único objetivo que, com um viés
mercadológico, pode alcançar uma padronização cultural.
3. Estabilização da historiografia positivista no livro didático
Nos séculos XIX e XX o Estado buscava, por meio dos livros didáticos de
História, fortalecer o espírito nacionalista e o amor à pátria brasileira. Seu uso
estava basicamente voltado a fazer com que, por meio do discurso dos professores,
os alunos apreendessem o conteúdo unicamente apresentado nos livros didáticos
distribuídos nas escolas públicas. No entanto, tal situação impetra o que, para nós,
se apresenta como um problema.
[...] de modo global, vemos que o livro didático de história tem
cumprido a função de veicular, reforçar ideias. Muitos deles veiculam
um conteúdo fragmentado, apresentado como fato, isto é, como
acontecimento único, estanque, sem relação com os demais fatos
anteriormente já apresentados ao aluno, ou com possíveis
encaminhamentos em processos sociais, políticos e econômicos.
Nesse modo de apresentação, inexiste a ideia de processo,
estrutura e temporalidade que não sejam a curta, episódica. Nesse
sentido, esses materiais podem ser vistos como um instrumento que
governam o ensino pelo mascaramento da história como
instrumentos para a alienação. (BARROS & MATSUDO, 2016,
p.163)
Nos discursos apresentados em livros didáticos, ainda conforme Barros e
Matsudo (2016), são apagados os preconceitos, as revoltas, havendo a insinuação
de uma convivência pacífica entre negros, índios e brancos ao longo das décadas.
A partir do século XIX, a História foi definida como disciplina, num repertório
de biografias de homens ilustres, datas e batalhas. Conforme Fonseca (1993), a
partir de 1940, no Estado Novo, o Ministério da Educação e Saúde Pública
estabeleceu o ensino de História do Brasil como disciplina autônoma,
desvinculando, assim a história do Brasil da História Universal, incitando a formação
moral e cívica dos alunos que se preparavam para o exercício do poder e para a
direção da sociedade. A História Nacional identificou-se com a História da Pátria,
cuja missão juntamente com a História da Civilização, era de integrar a população
brasileira a moderna civilização ocidental. A partir daí o livro didático de História tem
cumprido a função de homogeneizar o saber escolar e de veicular e reforçar o
“espírito” nacionalista e o amor à pátria brasileira. A maioria deles veiculam um
conteúdo fragmentado como fato, isto é, como acontecimento único, estanque, sem
relação com os demais fatos. Nesse modo de apresentação, esses materiais podem
ser vistos como um instrumento que governa o ensino pelo mascaramento da
História.
A educação, principalmente por meio da disciplina de História, conserva-se
282
privilegiando a formação da nacionalidade, tarefa assumida pelo Ministério da
Educação que não se descuidou do material didático distribuído no país (cf. op cit).
Ao longo dos tempos foram-se multiplicando as siglas de órgãos envolvidos direta e
indiretamente com a produção de livros didáticos e estes desempenharam
importante papel estratégico na difusão de valores que foram transmitidos às
sucessivas gerações de brasileiros.
No entanto, à revelia dessa situação, e sob a influência do Marxismo, da
Nova História e da Historiografia inglesa, muitos livros didáticos foram renovados,
outros surgiram, incorporando os avanços acadêmicos que contribuíram para a
retomada da disciplina de História como espaço crítico. O ensino de História hoje,
não se alicerça num passado pronto e acabado, numa verdade absoluta
caracterizada pelo discurso dos grandes homens e heróis. Neste novo cenário,
ensinar história significa impregnar de sentido a prática pedagógica cotidiana na
perspectiva uma escola cidadã.
Holanda (1936), afirmava que nos livros didáticos de história há a insinuação
de uma convivência pacífica entre as raças, sem “dissonâncias”, que se daria por
meios dos laços “sentimentais” que os aproximava. Observe:
O escravo das plantações e das minas não era um simples
manancial de energia, um carvão humano à espera de que a época
industrial o substituísse pelo combustível. Com frequência as suas
relações com os donos oscilavam da situação de dependente para a
de protegido, e até de solidário e afim. Sua influência penetrava
sinuosamente o recesso doméstico, agindo como dissolvente de
qualquer ideia de separação de castas ou raças, de qualquer
disciplina fundada em tal separação (Holanda, 1936, p. 55).
Os sentidos de uma narrativa que expressa a ideia de que portugueses,
negros e índios se relacionavam bem por conta da mistura e da convivência entre
eles mobiliza sentidos já estabilizados acerca de uma suposta superioridade de
brancos, de senhores feudais, indiciando ao leitor uma via de interpretação que
sustentará tal modo de compreensão acerca de negros e indígenas: a inferioridade
em relação às demais etnias.
Orlandi (2003) explica que “em relação à história de um país, os discursos
fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário
constitutivo desse país” (Orlandi, 2003, p.7), e vão se cristalizando na memória
nacional. Os enunciados que vão caracterizar os discursos fundadores são situados
como “lugares” em que a memória nacional se fixou. Para nós, estes discursos
estão em funcionamento nos livros didáticos de história.
O livro didático de História pioneiro na construção do discurso de uma
escravidão branda foi publicado em 1900 para ser utilizado no ensino secundário do
Colégio Pedro II. Ele descreve um quadro harmônico entre senhores e escravos:
Nas fazendas agrupavam-se em famílias, senão no sentido da lei, ao
menos no da religião. Usavam o sobrenome do senhor e eram por
eles estimados, sobretudo quando criados d’eles. Era frequente o
costume de alforriar em testamento, de todo ou sob condição os
bons escravos e recusar o dinheiro da alforria que o negro pouco a
pouco ajuntava para redimir o cativeiro. A emancipação não era,
pois entre nós, como os Estados Unidos, impedida ou regulada por
lei, era negócio particular entre o senhor e o escravo (...) (PINA apud
RIBEIRO, 2009, p. 127).
É importante destacar que no século XIX e princípios do século XX a relação
283
do professor e do aluno com o livro didático era limitada. O professor apresentava e
selecionava o que deveria ser lido e fazia sua interpretação. Caberia ao aluno ler o
texto, dominar as palavras escritas e repeti-las diante do professor e dos colegas
(BITTENCOURT, 1996). Esta tradição pedagógica ajudou a consolidar este discurso
na medida em que o professor se utilizava de um texto autorizado, já com a devida
interpretação e exigia do aluno uma leitura que se aproxima ao máximo de uma
interpretação já estabilizada. Portanto, aquele discurso não admitia réplicas, o que
estabelecia uma via de interpretação e de produção de sentidos acerca de um
recorte já estabelecido, medida que, segundo Orlandi (2003), promove a invenção
de um passado e elaboração de um futuro como se os sujeitos que passam, então,
a participar dessa interpretação unilateral participassem dessa história inventada,
tomando-a como verdade.
A historiografia e a metodologia da narrativa sobre a história do Brasil
privilegiaram o olhar europeu sobre os povos negros e indígenas. A presença do
português é tão decisiva, anulando o índio e colocando o negro em uma condição
de marginalidade. De acordo com Eni Orlandi:
O caso do contato cultural entre índios e brancos, o silenciamento
produzido pelo Estado não incide apenas sobre o que o índio,
enquanto sujeito faz, mas sobre a própria existência do sujeito índio.
E quando digo Estado brasileiro do branco. Estado que silencia a
existência do índio enquanto parte e componente da cultura brasileira.
Nesse Estado, o negro chega a ter uma participação. De segunda
classe é verdade, mas têm uma participação, à margem, o índio é
totalmente excluído. No que se refere à identidade cultural, o índio
não entra nem como estrangeiro, nem sequer como antepassado
(ORLANDI, 1990, p. 55).
É possível perceber que o discurso tradicional positivista que foi transferido
para os manuais escolares de História estabeleceu apagamentos e silenciamentos
locais em relação ao passado dos negros e índios. Negros e índios foram
esquecidos como sujeitos singulares e destacáveis, enquanto o homem branco foi
sempre lembrado em sua saga repleta de heróis.
Estes manuais escolares que, ao nosso ver, deveriam ser uma fonte
intermediária entre o saber científico e o saber escolar, oferecendo subsídios para
que o aluno construísse ao longo de sua trajetória escolar seu próprio ponto de
vista, vêm sendo elaborados e utilizados de modo a produzir a marginalização de
índios e negros, mantendo a trágica tradição de preconceitos e exclusão social.
O que vimos analisando é que o livro didático mobiliza um discurso imposto,
tanto no sentido de ser obrigatório quanto no sentido de ser um discurso oriundo de
“autoridade”. Frente a isso, convém compreender que a concepção de autoridade
está associada aos seus desdobramentos na produção de leitura, conforme
formulou Orlandi:
Pelo conceito de autoridade, há um deslize entre a função crítica e a
censura, ou melhor, desliza-se da crítica para a censura. O que
reverte em prejuízo do próprio papel do crítico – e,
consequentemente, impede a possibilidade de se instaurar o leitor
sujeito –, pois desloca-se a natureza da sua atividade: toma-se o
crítico como juiz, como censor, imobilizando-o em um momento
dado de sua história de leituras. Não se dá ao “modelo” um direito
elementar, que faz parte do cotidiano de qualquer leitor: o de ler o
mesmo texto de formas diferentes. Ele acaba por comprometer-se
com a leitura e a protegê-la institucionalmente. Por reflexo, tira-se
284
também do leitor o que se tirou do crítico, isto é, sua dinâmica: o
leitor fica obrigado a reproduzir o seu modelo de leitura, custe o que
custar. O que, em geral, custa a sua capacidade de reflexão
(ORLANDI, 1999, p. 45).
Orlandi nos faz compreender que um discurso feito por uma autoridade
dificulta a polissemia, dando margem para que pensemos este discurso como
performativo. Dessa maneira, é possível entender a força dos discursos fundadores,
positivistas, mobilizando os sentidos que mobilizam nos livros didáticos.
A permanência dos discursos fundadores está ligada também à falta de um
diálogo entre as recentes pesquisas acadêmicas e a produção da escrita didática da
história com os professores e gestores do ensino básico. Muitos professores de
história, ou talvez a maioria, estão distantes da produção do saber histórico. Não
buscam, em sua maioria (BARROS & MATSUDO, 2016), acompanhar os debates
em torno do conhecimento científico por meio de leituras de caráter teórico
submetendo-se, assim, acriticamente ao saber que foi condensado no livro didático.
4. Os efeitos do discurso de autoridade do livro didático
Em razão das deficiências de formação e das péssimas condições de
trabalho, as aulas do professor do ensino básico têm se transformado, há mais de
30 anos, num reforço do discurso contido no livro didático adotado, que é visto pelos
alunos como única fonte digna de confiança. Conforme Bittencourt (2002), nos
últimos anos o livro didático transformou-se em uma das principais ferramentas do
professor no processo de ensino aprendizagem, tendo gerado inclusive críticas por
parte de alguns que acreditam que o livro deve ser apenas um suporte pedagógico
do educador, e não uma fonte primária como muitos fazem uso, transformando-o
em único recurso pedagógico para ministrar as aulas.
As reformas educacionais nas décadas de 1960 e 1970, sobretudo a partir da
Lei 5692/71, mudou a relação entre o livro didático e o professor. Se antes o
professor tinha mais autonomia em relação ao uso do livro, na nova realidade
educacional os professores, especialmente aqueles que se formavam nos cursos de
Licenciaturas curtas (2 anos), passaram a depender cada vez mais dos livros para
suas aulas. Ao longo dos anos, os livros didáticos passaram a ser os portadores do
discurso competente a ser transmitido aos alunos.
A partir da abertura política e a reconstrução democrática, foi renovada
significativamente a produção historiográfica, trazendo novos discursos e
abordagens. Começaram a surgir debates educacionais e reformas curriculares que
expressam o desejo de romper com determinados discursos fundadores de
nacionalidade, rompendo com a tradição no ensino de História.
Toda essa renovação vai refletir nos livros didáticos, que passaram a ser
reescritos substituindo algumas narrativas vinculadas à educação patriótica pela
disseminação de valores que estimulam a convivência social, o respeito e a
liberdade. No entanto, estas novas correntes historiográficas que vêm sendo
inseridas no debate atual sobre o livro didático, a partir da ampliação das pesquisas
acadêmicas, não conseguirão renovar de modo significativo a elaboração desses
livros.
Com o discurso fundador da nacionalidade, que se dá especialmente pelo
“mito das três raças”, os livros didáticos continuam a apresentar uma visão
eurocêntrica da História de nosso país, perpetuando estereótipos e preconceitos. A
aprovação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira nas escolas de ensino básico, que foi substituída, e