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Hebe

1 “Remanescentes das Comunidades dos Quilombos”: memória do cativeiro e políticas de reparação no Brasil. Hebe Mattos – Departamento de História – Universidade Federal Fluminense. (Publicado em Revista USP, n. 68. dez. jan. fev. 2005 e 2006, p. 104-111) O presente artigo propõe uma interpretação, ainda que preliminar, para a história da aprovação e dos desdobramentos legais do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Brasileira de 1988 que reconheceu direitos territoriais aos “remanescentes das comunidades dos quilombos”, garantindo-lhes a titulação definitiva pelo Estado Brasileiro1. Para entender a redação do artigo e sua inclusão nas disposições transitórias da constituição é preciso levar em consideração, primeiramente, o fortalecimento dos movimentos negros no país, ao longo da década de 1980, e a revisão por eles proposta em relação à memória pública da escravidão e da abolição. À imagem da princesinha branca, libertando por decreto escravos submissos e bem tratados, que durante décadas se difundiu nos livros didáticos brasileiros, passou-se a opor a imagem de um sistema cruel e violento, ao qual o escravo negro resistia, especialmente pela fuga e formação de quilombos 2. A pesquisa acadêmica em história social da escravidão foi também tocada por esta conjuntura. A partir de uma perspectiva que propunha pensar o escravo como ator social relevante para a compreensão histórica da sociedade brasileira, uma revisão historiográfica 1 O texto integral do Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. 2 Cf. Soares, Mariza. “Nos atalhos da memória – Monumento a Zumbi”. In: Knauss, Paulo (org). Cidade 2 se produziu no país em relação ao tema. A demografia, a cultura, as relações familiares e a sociabilidade escrava passaram a ser estudadas por inúmeros pesquisadores. Cada vez mais as ações e opções dos africanos escravizados no Brasil foram percebidas como essenciais para a compreensão histórica da sociedade que os escravizava. Desde suas estratégias de organização de famílias, de formação de organizações religiosas para obtenção de alforria, até as diferentes formas de sua inserção no mundo do trabalho3. De fato, o avanço da pesquisa histórica colocara em relevo, também, a impressionante legitimidade da sociedade escravista no Brasil até pelo menos a primeira metade do século XIX, mesmo entre ex-escravos, o que não eliminava os episódios de resistência, que ocorriam, entretanto, nos limites do pensável e do possível no contexto da sociedade brasileira oitocentista. Muitas vezes os episódios de fuga ou rebeldia embutiam uma pauta de reivindicação e possibilidades de volta ao trabalho; as revoltas abertas de africanos recém-chegados foram mais comuns que as de escravos crioulos (nascidos no Brasil); as concentrações de escravos fugidos, chamadas mocambos ou quilombos, se eram efetivamente endêmicas, encontravam-se em estreita relação com o mundo das senzalas4. A conjunção desses dois movimentos resultou em significativo deslocamento nas imagens mais correntes em relação à escravidão e à abolição no país, fazendo emergir a figura do escravo como protagonista também do processo abolicionista, através de processos judiciais de ação de liberdade, de atos de rebeldia no dia a dia das senzalas e das Vaidosa. Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette letras, 1999, pp. 117-135. 3 Cf. “A historiografia recente da escravidão brasileira” IN: Schwartz, Stuart. Escravos, Roceiro e Rebeldes. Bauru, EDUSC, 2001, pp. 21-82. 4 Cf. Schwartz, Stuart. Segredos Internos. Escravos e engenhos na sociedade Colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 1988, especialmente caps. 16 e 17; Gomes, Flávio S. Histórias de Quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; A Hidra e os Pântanos. Mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVIIXIX). São Paulo, UNESP, 2005; e Reis, J.J. e Gomes, Flávio S. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 3 fugas coletivas generalizadas na década de 1880, acontecimentos que precederam e balizaram o ato legal da abolição5. Neste contexto, algumas comunidades negras rurais isoladas alcançaram certa notoriedade como possíveis descendentes de antigos quilombolas. A aprovação do artigo sobre os direitos territoriais das comunidades dos quilombos culminou, assim, todo um processo de revisão histórica e mobilização política, que conjugava a afirmação de uma identidade negra no Brasil à difusão de uma memória da luta dos escravos contra a escravidão. No entanto, a maioria das muitas comunidades negras rurais espalhadas pelo país, em conflito pelo reconhecimento da posse tradicional de terras coletivas, então majoritariamente identificadas como “terras de preto”6, nem sempre se associava à idéia histórica clássica do quilombo. Muitos dos grupos referenciados à memória da escravidão e à posse coletiva da terra, em casos estudados por antropólogos ou historiadores nos anos 70 e 80, tinham seu mito de origem em doações senhoriais realizadas no contexto da abolição7. Apesar disso, além da referência étnica e da posse coletiva da terra, também os conflitos fundiários vivenciados no tempo presente aproximava o conjunto das “terras de preto”, habilitando-as a reivindicar enquadrar-se no novo dispositivo legal. Juristas, historiadores, antropólogos e, em especial, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), tiveram importante papel nessa discussão8. Tendo em vista o 5 Cf., entre as pesquisas desenvolvidas ainda nos anos 1980, Azevedo, Célia. Onda negra medo branco: o negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Chalhoub, S. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 6 Sobre o tema, cf. Almeida, Alfredo Wagner Berno de “Terras de Preto. Terras de Santo. Terra de Índio” IN: Habette, J. e Castro, E. M. (orgs.) Cadernos NAEA, UFPA, 1989. e Almeida, Alfredo Wagner Berno de (org.). Terras de Preto no Maranhão: Quebrando o mito do isolamento. São Luís: Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA) e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), 2002. 7 Cf. Soares, Luiz Eduardo. Campesinato: ideologia e política. Rio de Janeiro. Zahar Editores S.A., 1981; Slenes, Robert W. “Histórias do Cafundó”. In: VOGT, Carlos e FRY, Peter Cafundó. A África no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras e Editora da UNICAMP, 1996. 8 Sobre esta questão, cf. Richard Price “Reinventando a História dos Quilombos. Rasuras e Confabulações”. 4 crescimento do movimento quilombola, predominaram as interpretações que consideravam a ressemantização da palavra quilombo para efeitos da aplicação da provisão constitucional, valorizando o contexto de resistência cultural que permitiu a viabilização histórica de tais comunidades 9. Com abrangência nacional, o processo de emergência das novas comunidades quilombolas se apresenta hoje como uma realidade social inescapável. Segundo o decreto 4887, de 20/11/2003, que regulamenta o artigo constitucional, em termos legais, “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade”, entendo-as como “grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. Atualmente, cento e setenta e oito comunidades estão formalmente referidas como remanescentes das comunidades dos quilombos no Sistema de Informações das Comunidades afro-brasileiras (SICAB) na página da Fundação Cultural Palmares, setenta delas já tituladas10. Levantamento do Centro de Geografia e Cartografia Aplicada (Ciga) da IN: Afro-Ásia, 23 (1999), 239-265. Ver também, Cultural Survival Quartely - Volume 25 n. 4, Cambridge, 2002., dossiê Marrons in the Américas, especialmente o artigo de Jean François Verlan. 9 Cf. O’Dwyer, Eliane Cantarino (org) Terra de Quilombo. (Apresentação, 1-2). Publicação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Rio de Janeiro, 1995.. Sobre o conceito de ressemantização, ver também de Almeida, Alfredo Wagner B. de “Quilombos: sematologia face a novas identidades” IN: PVN (org.) Frechal: Terra de Preto - Quilombo Reconhecido como Reserva Extrativista. São Luís, SMDDH,CCN, 1996; Gomes, Flávio S. “Ainda sobre os quilombos: repensando a construção de símbolos de identidade étnica no Brasil” IN: Almeida, M.H.T. , Fry, P. e Reis, E. (orgs) Política e cultura: visões do passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo, ANPOCS/HICITEC, 1996 e ,ainda, O'Dwyer , Eliane Cantarino (org.) Quilombos. Identidade étnica e territorialidade, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. 10 Cf. Sistema de Informações das Comunidades afro-brasileiras (SICAB) na página da Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura (www.palmares.gov.br , acessada em 03/09/2005). 5 Universidade de Brasília (UNB), sob a direção do geógrafo Rafael Sanzio, registrou 848 ocorrências em 2000 e 2.228 territórios quilombolas em 200511. Os Novos Quilombos: Se não são necessariamente descendentes de antigos acampamentos de escravos fugidos, escondidos nas matas desde o tempo do Brasil monárquico, de onde afinal surgiram os novos quilombos? Como os mais críticos tendem a ressaltar, eles têm claramente uma origem recente nas demandas por garantia de direitos à posse coletiva de terras, apresentadas por colonos e posseiros negros tradicionais, a partir do apoio de novos aliados, nos quais a pastoral da terra da Igreja Católica, os movimentos negros, a Associação Brasileira de Antropologia e alguns outros atores da sociedade civil brasileira pós-redemocratização ocuparam papel especial12. Por outro lado, há claramente também uma origem remota, fortemente ancorada na formação de um campesinato formado por escravos libertos e seus descendentes no contexto da desagregação da escravidão e de sua abolição no Brasil, que permite tais grupos reivindicarem-se como comunidades tradicionais e reivindicarem-se como quilombolas. No Maranhão e no Pará encontra-se proporção expressiva das comunidades dos quilombos, São 34 no Pará e 35 no Maranhão registrados no SICAB da Fundação Palmares e 642 e 294, respectivamente, segundo o mapa dos territórios quilombolas da Universidade 11 Cf. Sanzio, Rafael. “O espaço geográfico dos remanescentes de antigos quilombos no Brasil” In: Terra Livre, 17, 2001, p. 139-154 e Território das Comunidades Quilombolas, 2.a. configuração espacial, Brasília, CIGA-UNB, 2005. Ver também Segundo Cadastro Municipal dos territórios Quilombolas do Brasil, http://www.unb.br/acs/unbagencia/ag0505-18.htm 12 Cf. Mattos, Hebe. Marcas da Escravidão. Biografia, racialização e memória do cativeiro na história do Brasil. Tese apresentada como requisito para concurso de professor titular em História do Brasil, Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2004, parte 1. 6 de Brasília. A proliferação de acampamentos de escravos fugidos, chamados mocambos, na fronteira entre Maranhão e Pará, bem como nas cachoeiras do alto do rio Trombetas, tornaram tais áreas alvos preferenciais da preocupação repressiva das autoridades provinciais do Pará, na segunda metade do século XIX, no contexto de desagregação da ordem escravista na região. Segundo Flávio Gomes, “quilombolas, grupos indígenas e depois colonos e camponeses fizeram ali suas próprias fronteiras, as quais foram marcadas por inúmeras experiências de lutas, de alianças e de conflitos”13. Tais territórios, que atraíam também camponeses livres, em geral libertos e seus descendentes, continuaram a servir como opção de sobrevivência para os últimos escravos da região após a abolição. Nas comunidades de quilombo do Alto Trombetas, a memória dos antigos mocambos mostrou-se, desde o início, constitutiva da identidade dos grupos e os territórios hoje reivindicados correspondem, de modo geral, às antigas áreas mocambeiras14. As áreas geográficas reivindicadas pelas comunidades dos quilombos no Maranhão têm maior amplitude e se estendem por praticamente todo o Estado. Antigas fazendas escravistas e suas comunidades de senzala estão historicamente na base da formação de muitas das chamadas “terras de preto” maranhenses, mas o papel da fronteira aberta na expansão dos mocambos tende hoje a predominar na memória pública das comunidades dos quilombos, sobre as narrativas de viés paternalista, que enfatizavam heranças, compras ou doações de terra por parte dos antigos senhores, antes predominantes15. De fato, a pesquisa 13 Cf. Gomes, Flávio S.Experiências Atlânticas. Ensaios e Pesquisas sobre a escravidão e o pósemancipação no Brasil. Passo Fundo, FPF, 2003, p. 89. 14 Cf. Funes, Eurípedes. Comunidades Remanescentes dos Mocambos do Alto Trombetas. Comissão Pro Índio de São Paulo, dezembro 2000. (http://www.quilombo.org.br/quilombo/doc/ComunidadesRemanescentes.doc), em 9/9/2005 e Funes, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor: história e memória dos mocambos do baixo Amazonas. Tese (Doutorado) – FFLCH/USP, São Paulo, 1995. 15 Cf. Soares, Luís Eduardo. Campesinato: ideologia e política...op. cit e “Os quilombos e as novas etnias” In: O’Dwyer, Eliane C. Quilombos identidade étnica e territorialidade... op. cit. 7 histórica tende a comprovar que ambos os fenômenos se entrecruzaram no processo de desagregação da sociedade escravista maranhense e continuaram a se misturar como opções para o campesinato negro depois da abolição16. Também no Sertão do Nordeste, encontra-se uma expressiva concentração das comunidades dos quilombos referidas à provisão constitucional e pelo menos a primeira delas assim identificada, o Quilombo do Rio das Rãs, na Bahia, já foi alvo de pesquisas históricas e antropológicas aprofundadas17. O mapa dos territórios das comunidades dos quilombos produzido pela Universidade de Brasília refere-se a 396 comunidades no estado, a maioria delas no sertão. Vinte seis delas encontram-se referidas no Sistema de Informações das Comunidades afro-brasileiras (SICAB) da Fundação Palmares. De fato, a pesquisa sobre o Quilombo do Rio das Rãs aponta para um campesinato negro, formado por libertos e seus descendentes desde o final do século XVIII, que se dirigiu para a região em busca de um projeto camponês em grande parte efetivado por diversas formas tradicionais de posse da terra, só ameaçadas a partir de meados do século XX. Não é por acaso que cerca de 2/3 dos quilombos ainda não titulados que participaram do Questionário Sócio Econômico produzido pela Fundação Palmares, em 2003, num total de 105 comunidades, declarem ter obtido suas terras por compra ou herança, mesmo que não consigam produzir títulos que o comprovem. No sudeste do Brasil, com relativo paralelismo nas áreas do sul do país, as pesquisas históricas e antropológicas mais aprofundadas sugerem fortemente que os novos quilombos estão diretamente ligados à última geração de cativos africanos, estimada em 16 Cf., especialmente, Gomes, Flávio S. Experiências Atlânticas... op. cit., cap 3 e 4. 17Por ângulos diferentes, o processo de mobilização política e de construção da identidade quilombola em Rio das Rãs aparece estudado em duas teses de doutorado: “A Formação da Identidade Quilombola dos Negros de Rio das Rãs” de René Marc , Doutorado em História, Salvador, UFBA, 1999 e “Rio das Rãs. Terre 8 cerca de um milhão de pessoas chegadas ao Brasil por força da demanda da expansão cafeeira, principal produto de exportação brasileiro no século XIX, espraiadas desde os portos clandestinos do litoral para as demais lavouras comerciais da região. É significativa a concentração de comunidades em zonas litorâneas, reconstituindo o mapa dos desembarques clandestinos de escravos após 183118, data da primeira lei brasileira de extinção do tráfico atlântico de escravos. Tais comunidades estão também presentes nas antigas áreas escravistas de exportação, muitas vezes disputando a propriedade das antigas fazendas onde seus antepassados serviram como escravos19. Encontram-se, ainda, em antigas áreas de fronteira agrícola aberta, onde por vezes existiam menções a antigos quilombos, mas para onde os últimos libertos também se dirigiram, imediatamente antes e após a abolição, em busca de um projeto camponês a ser vivido coletivamente. Este parece ser o caso, especialmente, das comunidades do Espírito Santo20. Em alguns casos também as comunidades são fruto de movimentos migratórios de famílias dos últimos libertos ao longo do século XX21. Em mais de uma das comunidades identificadas foi possível reconstituir genealogias até os africanos escravos chegados à região no século XIX22. de Noirs” de François Véran, Doutorado em Antropologia, EHESS, Paris, 2000. 18 É o caso, por exemplo, das comunidades de Manguinhos, Rasa, Marambaia, Bracuí e Campinho da Independência, no Rio de Janeiro, todas em áreas de antigos portos clandestinos de desembarque de escravos. Cf. Rios, Ana Lugão e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no PósAbolição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, parte II, cap 4. 19 É o caso das comunidades de São José da Serra e de Quatis, no Rio de Janeiro, de Cafundós, em São Paulo, e de Morro Alto, no Rio Grande do Sul, entre muitas outras. Cf. Rios, Ana Lugão e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro...op.cit., parte II, cap. 4 ; Slenes, Robert W. “Histórias do Cafundó”. In: VOGT, Carlos e FRY, Peter Cafundó. A África no Brasil. ...Op. Cit.; Barcellos, Daisy Macedo et alii. Comunidade Negra de Morro Alto. Historicidade, Identidade e Territorialidade. Porto Alegre, UFRGS Editora, 2004. 20 É o caso, entre outros, do quilombo do Laudêncio. Cf. Martins, Robson Luis M. Os Caminhos da Liberdade: abolicionistas, escravos e senhores na Província do Espírito Santo 1884-1888. História Universidade Estadual de Campinas, 1997 e Oliveira, Osvaldo Martins de. “Quilombo do Laudêncio, município de São Mateus (ES)” In: O’Dwyer, Eliane C. (org.) Quilombos identidade étnica e territorialidade. ...Op. Cit.. 21 É o caso do quilombo Silva, no Rio Grande do Sul. Cf. Relatório de Identificação de Ana Paula Comin de Carvalho e Rodrigo de Azevedo Weimer (Fundação Cultural Palmares, 2004). 22 Cf. Rios, Ana Lugão e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro. Trabalho, Família e Cidadania no PósAbolição.... Op. Cit. Parte II, cap. 4.; Slenes, Robert W. “Histórias do Cafundó”. ... Op Cit., e Barcellos, Daisy 9 A família como linhagem, os nomes próprios que se repetem em cada geração ou se transformam em sobrenomes, a parentela como referência de pertencimento à comunidade, práticas comuns às antigas comunidades de senzala do Brasil oitocentista, apresentam-se como regularidades em muitos dos grupos identificados23. Neste sentido, as comunidades de quilombo que emergem da aplicação do artigo constitucional emprestam visibilidade a um campesinato negro formado no processo de desagregação da escravidão no Brasil, que de certa maneira sobreviveu ao intenso processo de urbanização sofrido pela sociedade brasileira nos últimos 50 anos. Como é amplamente conhecido, o ato legal de abolição definitiva da escravidão no Brasil se fez por uma lei assinada pela princesa regente, que simplesmente declarava abolida a escravidão no Brasil e revogava as disposições em contrário, em 13 de maio de 1888 (Lei Áurea). Após a lei, e durante alguns anos, os ex-senhores continuaram a se organizar politicamente demandando indenização pela perda de sua propriedade em escravos. Quase não se discutiu formas de reparação aos ex-escravos, mas nos meses finais da monarquia, a questão da “democracia rural”, com a discussão de projetos que incluíssem algum tipo de acesso à terra aos recém libertos, foi postulada por setores abolicionistas como um complemento necessário da abolição da escravidão24. Com a regulamentação do artigo 68 dos ADCT da Constituição de 1988, com mais de cem anos de atraso, a Macedo et alii. Comunidade Negra de Morro Alto... Op Cit. 23 Sobre o papel do parentesco e dos nomes próprios, nas comunidades escravas brasileiras do século XIX, cf. Slenes, Robert. Na Senzala, uma flor. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998 e Rios, Ana Lugão. “Família e Transição. Famílias Negras em Paraíba do Sul, 1872-1920”. Dissertação de Mestrado em História, Niterói, UFF, 1990; sobre a noção de linhagem e o papel do nome nas comunidades de quilombo contemporâneas, cf., entre outros, Slenes, Robert W. “Histórias do Cafundó”. In: VOGT, Carlos e FRY, Peter Cafundó. A África no Brasil. ...Op. Cit.; Barcellos, Dayse Macedo et alii. Comunidade Negra de Morro Alto... Op. Cit.; Mattos, Hebe. “Marcas da Escravidão. .. Op. Cit. 24 Cf. Claudia Andrade dos Santos. “Projetos Sociais Abolicionistas. Rupturas ou Continuismo?” IN: Aarão Reis Filho, Daniel (org.). Intelectuais, História e Política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro, 7 Letras, 2000, pp. 54-74. 10 possibilidade de contemplar com terras os descendentes dos últimos escravos, libertos no século XIX, pode vir a se concretizar. Memórias do Cativeiro: Para reforçar este último ponto, passo a analisar algumas evidências produzidas pelo projeto Memórias do Cativeiro do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense, que reuniu e analisou entrevistas de descendentes de escravos das antigas áreas cafeeiras do centro-sul do país (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo), que concentravam a maioria dos escravos às vésperas da abolição definitiva do cativeiro. As entrevistas de história oral, que deram origem a um livro e um DVD, não guardavam qualquer preocupação inicial com o tema dos novos quilombos, mas diversos grupos visitados pelos pesquisadores do LABHOI passaram a identificar-se como comunidades quilombolas ao longo do desenvolvimento do projeto25. Assim, os resultados alcançados ilustram de maneira expressiva as possibilidades do trabalho histórico com a memória coletiva presente nas comunidades dos quilombos que emergiram a partir da aprovação da provisão constitucional. São os aspectos simbólicos da memória familiar da escravidão que mais se destacam nas narrativas, elaboradas e reelaboradas em função de relações tecidas no tempo presente, como em todo trabalho de produção de memória coletiva. No entanto, para o presente artigo, escolhi colocar em relevo outra dimensão do material produzido pelo projeto: os aspectos históricos referentes à escravidão oitocentista, isto é, referidos a experiências empiricamente comprováveis, existentes nos relatos reunidos. 25 O projeto resultou no livro Memórias do Cativeiro. Família, Trabalho e Cidadania no Pós-Abolição de autoria de Ana Lugão Rios e Hebe Mattos (Op. Cit) e em um DVD de mesmo título, com roteiro baseado no 11 Entre eles, destaco especialmente as referências à estrutura do tráfico atlântico clandestino (1831-1856) e também ao tráfico interno que lhe sucedeu. Os desembarques clandestinos estão referidos de modo surpreendente nos depoimentos, especialmente de moradores de comunidades negras litorâneas, situadas próximas de praias onde se tem registro de desembarque ilegal de escravos (como Marambaia, Bracuhy e Rasa), hoje identificadas como comunidades de quilombo. A identificação de origem na África Central dos antepassados, em especial na utilização das designações de procedência usuais no século XIX (Bento Monjola; Tio Congo, etc) é outra referência repetida, fortemente ancorada em evidências históricas. As referências à separação de famílias no tráfico interno (“minha avó dizia, nunca mais eu vi meus pais, foi ser escrava em outra fazenda”26) são também recorrentes, foram comprovadas empiricamente em mais de um dos casos registrados, e correspondem ao que a pesquisa histórica registra para o período27. Apesar das referências históricas ao trauma do tráfico negreiro na origem familiar, os personagens cativos com identidade própria nas narrativas são aqueles inseridos em uma comunidade escrava mais antiga e diferenciada, distinguindo-se dos demais. A memória genealógica referida a antigas comunidades de senzala está na base de constituição da nova identidade quilombola na maioria das comunidades negras da região, conforme já foi considerado. Neste sentido, são os padrões comuns de referência à escravidão, incrivelmente similares nos diversos conjuntos de entrevistas analisados, que merecem ser especialmente livro, com direção e montagem de Guilherme Fernandez e Isabel Castro. 26 Cf. Depoimento de D. Júlia, Labhoi-UFF, 1994. 27 Cf., entre outros, Mattos, Hebe. “Laços de Família e direitos no final da escravidão” In: Alencastro, Luiz Felipe (org). História da Vida Privada no Brasil, vol. II. São Paulo: Cia das Letras, 1998, pp 337-384. 12 ressaltados. De fato, uma certa periodização do processo de abolição do cativeiro, entrecruzando o tempo privado e geracional da memória familiar com o tempo público do processo abolicionista, apresentou-se como uma primeira linha de força a estruturar as coincidências narrativas encontradas. Via de regra, os antepassados dos depoentes apareceram classificados em três diferentes gerações: aqueles que chegaram ainda sob a vigência do tráfico transatlântico – os africanos; seus filhos nascidos no Brasil – ainda escravos ou “ventre-livres”; e seus netos nascidos já no tempo da liberdade. Destaca-se, neste caso, a relevância na memória familiar do impacto de medidas legais de profundo alcance na redefinição das relações cotidianas entre senhores e escravos e entre os cativos entre si no século XIX: a extinção do tráfico africano (1850) e a lei do Ventre Livre (1871); medidas que se apresentariam pouco presentes nas celebrações públicas relativas ao calendário abolicionista estruturadas após a Lei Áurea e o advento do período republicano. Por outro lado, apesar da maioria das entrevistas consideradas no projeto terem sido produzidas entre 1987 e 1994, a faixa etária dos narradores escolhidos fez emergir, inicialmente, uma memória que conjugava algumas leituras do processo abolicionista, construídas ainda durante o século XIX, com um determinado processo de enquadramento desta memória, que facilmente se identifica com os esforços pedagógicos e normatizadores da chamada Era Vargas, em especial do Estado Novo (1937-1945). Em dois pontos (política e trabalho), o marco de descontinuidade nas falas analisadas se apresentava, de forma generalizada, referido à experiência de passagem do rural ao urbano nos anos 30 a 50 do século XX e/ou a uma experiência de quebra ou de fragilização do poder políticos dos fazendeiros no nível local, neste mesmo período. Ambas as experiências, em apenas alguns casos, porém de forma comum a todos os conjuntos analisados, aparecem 13 associadas diretamente às figuras da Princesa Isabel e de Getúlio Vargas. Ângela de Castro Gomes colocou em relevo, em artigo que escrevemos a quatro mãos, a “coincidência narrativa” entre essa formulação e alguns aspectos da política cultural divulgada pelo Estado Novo em relação às leituras históricas dos significados da abolição28. Neste mesmo artigo, eu procurei argumentar que versões como estas precisam ser analisadas para além de seu caráter de simples reprodução da política cultural divulgada pelo Estado. Elas ganham inteligibilidade na medida em que se referem a estruturas de periodização efetivamente generalizadas e referenciadas à vivência familiar dos narradores. Os contratos de trabalho e a vivência política do campesinato negro nas décadas que se seguiram imediatamente à abolição da escravidão são fundamentais para compreender esta apropriação específica de periodização da memória coletiva, na qual Isabel e Getúlio aparecem muitas vezes associados. Permitiram ressignificar a experiência pessoal e a tradição familiar referente à memória do cativeiro porque com elas foram capazes de dialogar. Na última década, o início dos processos de identificação e demarcação das chamadas “terras de preto” como remanescentes dos quilombos e as novas veiculações públicas, na escola e na mídia, dos significados da escravidão, impactaram significativamente a memória coletiva dos grupos estudados. Neste novo contexto, narrativas de fugas emergiram nos depoimentos, antes silenciadas. Na comunidade de São José da Serra, em uma série de depoimentos de um dos mais velhos moradores, após os contatos da Fundação Palmares e o reconhecimento do grupo como remanescente das comunidades dos quilombos, um avô que veio fugido de uma fazenda para a outra em busca da proteção do fazendeiro, antes pouco mencionado, ressurgiu como herói, e o 28 Cf. Mattos, Hebe e Gomes, Ângela de Castro. Sobre Apropriações e Circularidades: memória do cativeiro e política cultural na era Vargas. História Oral. São Paulo, vol. 1, no 1S, pp.121-144, 1998. 14 fazendeiro que o “acoitou”, como organizador de quilombos. A “Fazenda do Ferraz” era também o “Quilombo do Ferraz” 29. Mas foram os filhos e netos de nossos depoentes, os mais velhos deles nascidos em meados do século XX, que construíram a nova identidade quilombola. Recuperaram as narrativas de seus pais e avós, mas desenvolveram para elas novas interpretações. Neste novo contexto, práticas culturais com origem no tempo do cativeiro, como o jongo e o caxambu, por exemplo - canto e dança em roda ao som de tambores – foram transformadas em capital simbólico para afirmação da identidade quilombola 30. Políticas de Reparação e Cidadania. Negro no cativeiro/ Passou tanto trabalho/ Ganhou sua liberdade/ No dia 13 de maio. Essa é a letra de um jongo cantado ainda hoje em alguns dos novos quilombos do estado do Rio de Janeiro. Neles não é difícil encontrar entre os mais velhos aqueles que se dizem netos de um “Treze de Maio” e que são capazes de nos contar histórias do “tempo do cativeiro”, como os avós lhes contavam. Tal encontro ilustra de forma expressiva quão pouco significa, em uma perspectiva histórica, os pouco mais de cem anos que separam o Brasil do século XXI de uma época na qual os brasileiros se dividiam entre cidadãos livres (das mais diferentes origens e sobre os quais raramente se mencionava a cor) e escravos (todos eles descendentes de africanos, muitas vezes com a cor ou a origem colada no próprio nome – José Preto, Antônio Pardo, Maria crioula e assim por diante). Apesar disso, 29 Cf. entrevistas de Manoel Seabra, da Comunidade de São José da Serra, Catálogo de História Oral, Acervo Memórias do Cativeiro, LABHOI-UFF, 1998, 2003, 2004 e 2005 e DVD Memórias do Cativeiro (LABHOIUFF, 2005). 30 Cf. conferência e entrevista de Antônio Nascimento Fernandes, Comunidade de São José da Serra, Catálogo de História Oral, Projeto Memórias do Cativeiro, LABHOI-UFF, 2003; Rios, Ana Lugao e Mattos, Hebe. Memórias do Cativeiro...op.cit, parte II, cap. 4; DVD Memórias do Cativeiro, LABHOI-UFF, 2005. 15 apenas uma minoria dos brasileiros afrodescendentes ainda se encontrava cativa naquele treze de maio de 1888, não mais que 5% da população negra do país. Apesar da continuidade da escravidão, baseada no direito de propriedade, um pensamento universalista, anti-racista e antitráfico, desenvolveu-se no Brasil desde a época da independência. No Brasil “não há mais que escravos ou cidadãos” publicavam os jornais radicais do período, defendendo a igualdade “entre todas as cores” de cidadãos brasileiros31. Toda uma geração intelectual de “homens de cor” foi formada a partir desse liberalismo anti-racista e antitráfico, que só se tornaria abertamente abolicionista no final do século XIX. Ao aceitarem uma justificativa não racializada para a escravidão metiam-se, entretanto, num beco sem saída, pois a linguagem racial permanecia, na prática, como elemento de suspeição e hierarquização. Todo afrodescendente livre, mesmo se proprietário de escravos, encontrava-se dramaticamente dependente de um reconhecimento público da sua condição de livre, para não ser confundido com um escravo ou ex-escravo. A efetivação de uma ética do silêncio em relação às cores dos cidadãos, pelo menos em situações formais de igualdade, foi a resultante prática desses embates, como a homenagem que o vício presta à virtude. O silêncio sobre a cor como símbolo de cidadania foi uma experiência construída nas lutas anti-racistas do século XIX, que combatiam as hierarquias de cor entre a população livre até então vigentes na sociedade colonial. A legitimação não racial da continuidade da escravidão então afirmada no Brasil teve conseqüências. Embaralhou a “linha de cor” na sociedade brasileira, porém sem impedir a adoção pública de projetos racistas de “branqueamento”, numa época em que tais discursos tinham estatuto de 31 Cf., entre outros, na Biblioteca Nacional o jornal “O Mulato ou o Homem de Cor”, editado em 1833. Sobre o tema, cf. Mattos, Hebe. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 20-26. 16 conhecimento científico no pensamento ocidental32. Ao longo do século XX, nem a construção da noção de democracia racial, nem a crítica a ela desenvolvida pelos movimentos negros, conseguiram ainda reverter os sentidos hierarquizados das designações de cor desde longo tempo presentes na sociedade brasileira. Não modificaram também o recurso ao silêncio como a forma mais usual de conviver com elas em situações formais de igualdade. Como no século XIX, dizer-se negro ainda é basicamente assumir a memória da escravização inscrita na pele de milhões de brasileiros. Esta é a base que empresta consistência histórica à discussão sobre políticas de ação afirmativa no Brasil com base na auto-identificação como negro. No Brasil, nomear a cor ainda hierarquiza, pois implica quebrar o pacto de silêncio sobre o passado escravo, celebrado entre os cidadãos brasileiros livres em plena vigência da escravidão. Passados mais de cem anos da abolição, quebrar com a ética do silêncio apresenta-se paradoxalmente como caminho possível para reverter tal processo de hierarquização cristalizado no tempo e instaurar um universalismo almejado, mas não verdadeiramente atingido, desde o século retrasado. Foi rompendo com o princípio do silêncio que emergiram as “terras de preto”. Colonos e posseiros em luta pela terra ameaçada pelos processos de modernização do século XX, ao identificarem-se primeiro como “pretos” e depois como “quilombolas”, tornaram-se sujeitos políticos coletivos. As metamorfoses sociais possíveis a tais atores estiveram, entretanto, firmemente ancoradas na associação entre identidade camponesa e memória do cativeiro, seja como reminiscência familiar ou estigma. Como descendentes de escravos, reivindicam políticas de reparação do estado brasileiro. 32 Cf. Schwarcz, Lilia M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993. 17 A identificação coletiva é sempre processo e construção e só pode ser entendida levando em conta contextos históricos e políticos. Tanto o silêncio sobre a cor como ética social, quanto sua reivindicação, hoje, como bandeira de luta, são frutos diferentes da presença difusa do racismo na sociedade brasileira em suas complexas relações com a memória do cativeiro.