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BOLETIM CEDES – OUTUBRO/DEZEMBRO 2011 – ISSN 1982-1522 Império da Constituição e atividade judicial: ecos do Caso Lüth sobre o novo constitucionalismo brasileiro Joana de Souza Machado 1 – Introdução Este artigo propõe uma reflexão sobre as conexões que podem ser estabelecidas entre o (Neo) Constitucionalismo brasileiro, latente ao tempo em que se totalizam duas décadas de experiência da Constituição brasileira de 1988; e o Caso Lüth, paradigmático episódio da jurisprudência constitucional alemã, cujos parâmetros foram fixados há mais de meio século atrás (1950-1958). O artigo trabalha com a hipótese de que há uma influência tardia e pouco deliberada desses parâmetros sobre o Direito Constitucional brasileiro contemporâneo, na maneira de compreender a atividade judicial face à supremacia da Constituição. Para tanto, foram analisados elementos do discurso judicial desenvolvido na ocasião do Caso Lüth, sintetizados no item 2; e elementos do discurso neoconstitucionalista, que tem se difundido no pensamento constitucional brasileiro, sintetizados no item 3. No quarto e último item desse artigo, são expostas as conclusões obtidas em torno da hipótese formulada. 2 – Há mais de 50 anos, o caso Lüth No dia 15 de janeiro de 1958, a Corte Constitucional alemã, Bundesverfassungsgericht, proferiu uma decisão acerca de um caso que se tornaria mundialmente conhecido como o “Caso Lüth” (SCHWAB, 2006: 381-395)1. Tratava-se de atribuir solução jurídica definitiva a uma longa disputa na Alemanha entre dois atores privados: (1) Erich Lüth, Diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo; e (2) Veit Harlan, famoso cineasta alemão.  Professora Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestre e Doutoranda em Direito pela PUC-Rio. 1 Na obra referida, encontra-se o inteiro teor da decisão, em português. 1 A disputa teve início em 1950, quando Erich Lüth, na condição de crítico de cinema e diretor do Clube de Imprensa na cidade de Hamburgo, resolveu fazer manifestações públicas incentivando a realização de um boicote ao filme “Unsterbliche Geliebte” (A Amante Imortal), dirigido naquele ano por Veit Harlan. Em verdade, as manifestações não atacavam propriamente o filme, um romance inofensivo; mas, sim, o histórico do cineasta, intimamente ligado ao movimento nazista. Veit Harlan havia produzido, durante o 3º Reich, o filme “Jud Süβ” (1941), que ficou conhecido como aquele que mais teria contribuído, na Alemanha, para a difusão do ideal nazista, do ódio ao povo judeu. Em razão desse fato, quando foi sinalizado o retorno de Harlan às telas do cinema alemão, por meio do já referido romance, houve reação enfurecida de algumas personalidades da imprensa, as quais passaram, então, a articular, em fóruns públicos, a necessidade de se promover um boicote a esse filme, ou, mais exatamente, à tentativa de retorno do cineasta. O movimento encontrou liderança em Erich Lüth que, na Semana do Filme Alemão, na condição de presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, disparou duras críticas ao cineasta, especialmente em carta aberta entregue à imprensa no dia 27 de outubro de 1950. [...] com efeito, a volta de Harlan irá abrir feridas que ainda não puderam sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível desconfiança de que se reverterá em prejuízo da reconstrução da Alemanha. Por causa de todos esses motivos, não corresponde somente ao direito do alemão honesto, mas até mesmo à sua obrigação, na luta contra este representante indigno do filme alemão, além do protesto, mostrar-se disposto também ao debate (SCHWAB, 2006: 384). Em seguida a esse episódio, produtores e distribuidores do filme “Unsterbliche Geliebte” (A Amante Imortal), com base em dispositivo do Código Civil alemão, § 826, BGB2, acionaram o Tribunal Estadual de Hamburgo, por meio de uma ação cautelar, com pedido de liminar, a fim de que Erich Lüth fosse obrigado a se abster imediatamente de conclamar o boicote ao filme. Ao longo da batalha judicial travada, as razões invocadas pelos autores, inspiradas no Código Civil, tiveram acolhida em todas as instâncias3, com exceção apenas do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), acionado pela via de uma reclamação constitucional impetrada por Erick Lüth. O 2 § 826 BGB – “Quem, de forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outrem, está obrigado a reparar os danos causados” (SCHWAB, 2006: 385). 3 O tribunal Estadual de Hamburgo deferiu o pedido dos autores da ação, avalizado depois pelo Superior Tribunal Estadual de Hamburgo, tanto em sede cautelar quanto na ação principal. 2 reclamante argüiu que a decisão favorável a Harlan violava seu direito fundamental à livre expressão do pensamento, previsto na Constituição alemã (art. 5 I 1 GG), e alegou que “os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos com dignidade constitucional, seriam para o direito civil ‘causas [normativas] superiores de justificação’” (SCHWAB, 2006: 386). O que até o momento não passava de uma disputa entre atores privados, a ser ou não encaixada em tipo previsto na legislação civil alemã, transformou-se, com a compreensão que lhe conferiu o Tribunal Constitucional Federal, no paradigmático “Caso Lüth”, no qual, como sugerido pelo apelido, foram acolhidas as alegações de Erich Lüth de ofensa a seu direito fundamental. A importância do caso, porém, não se deve às partes envolvidas; mas à linha de argumentação desenvolvida pela Corte Constitucional alemã para atribuir razão a Erich Lüth. De acordo com a Corte, para se afirmar que uma decisão judicial ofende um direito sediado na Constituição, é necessário antes afirmar a existência de um dever de observância desse direito quando da formação da convicção judicial. Como, no caso, a decisão judicial amparou-se em norma do direito civil, seria necessário, ainda, considerar que a norma de direito fundamental em alguma medida determinasse uma compreensão diferente do dispositivo do Código Civil alemão, de tal forma que este não mais servisse de justificativa para a decisão judicial questionada. Contra essa lógica, há o entendimento comum, fundado na construção histórica dos direitos fundamentais, de que os direitos previstos em uma Constituição constituem instrumentos de resistência do cidadão contra o Estado, a serem, portanto, invocados exclusivamente na hipótese de um conflito envolvendo o poder público. Nesta esteira, lembrou a Corte, a própria Reclamação Constitucional foi moldada pela legislação alemã como um remédio jurídico de proteção dos direitos fundamentais tão somente contra atos do poder público. No Caso Lüth, entretanto, a Corte Constitucional alemã, sem propriamente afastar essa concepção tradicional dos direitos fundamentais, construiu outra dimensão para esses direitos, fundada, sobretudo, na ideia de que a Constituição alemã, não tendo a pretensão de se fazer neutra, “estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo” (SCHWAB, 2006: 387). Em outras palavras, ao lado da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, a qual tradicionalmente ilumina a posição jurídica do titular do direito frente ao poder público; a Corte Constitucional alemã situou uma nova perspectiva, uma dimensão 3 objetiva, que, por sua vez, transparece a carga axiológica do direito, o sistema de valores que influencia na formação de todo o sistema jurídico e que, portanto, constitui parâmetro para todos os ramos do Direito, entre os quais se inclui o Direito Civil. Segundo a argumentação do Tribunal Constitucional alemão, a irradiação dessa carga axiológica dos direitos fundamentais para o direito privado é tanto mais visível na presença de normas de linguagem mais aberta no Direito Civil, ou “cláusulas gerais”, espécies de “porta de entrada” desses valores para o direito privado, as quais “remetem para o julgamento do comportamento humano a critérios extra-cíveis ou até critérios extrajurídicos, como os ‘bons costumes’” (SCHWAB, 2006: 388). Nessas hipóteses, para que o aplicador da norma identifique o que é exigível, a partir das cláusulas gerais, em um caso concreto, faz-se necessário que tome por parâmetro o “conjunto de concepções axiológicas, as quais um povo alcançou numa certa época de seu desenvolvimento cultural e que foram fixadas em sua Constituição” (SCHWAB, 2006: 388). No Caso Lüth, portanto, consagrou-se o entendimento de que se um juiz, em sua decisão, deixa de observar a influência da Constituição sobre as normas de direito privado, ofende, a um só tempo, a dimensão objetiva do direito fundamental e, porquanto manifestação do poder público, a dimensão subjetiva do direito. A dimensão objetiva não substitui, mas, sim, reforça a dimensão subjetiva, contribuindo para um verdadeiro império da Constituição sobre as relações jurídicas. Por conseguinte, fixou-se a ideia de que compete a uma Corte Constitucional avaliar se o “conteúdo axiológico” das prescrições constitucionais é observado nos mais diversos ramos jurídicos; de que uma Reclamação Constitucional pode levar à discussão de um Tribunal Constitucional uma decisão que não tenha, no caso concreto, ponderado corretamente o significado de um direito fundamental em face do valor do bem jurídico protegido pela lei geral aplicada. Aplicando essas premissas ao próprio caso em que foram elaboradas, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha entendeu que a decisão da instância ordinária, que enquadrou as manifestações de Lüth como ofensivas aos bons costumes, desconheceu o especial significado do direito fundamental à livre expressão do pensamento, também aplicável na situação em que entra em conflito com interesse privado, posicionando-se, derradeiramente, pela procedência da Reclamação impetrada por Erich Lüth. Os principais parâmetros fixados, há mais de cinqüenta anos, na oportunidade do Caso Lüth, podem ser, portanto, sintetizados da seguinte maneira: (1) é necessário 4 conceber a Constituição como uma ordem objetiva de valores; (2) dessa concepção, decorre a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, por meio da qual se pode chegar a uma eficácia desses direitos nas relações privadas; (3) novos métodos de interpretação constitucional se fazem necessários, como o da ponderação de direitos, tomados em seu aspecto axiológico ou como princípios, na hipótese de colisão. Com essa linha de raciocínio, o Caso Lüth se insurge como importante afirmação da influência da principiologia constitucional sobre as variadas esferas jurídicas, mediada por uma atividade judicial que tende, então, a necessário alargamento e centralidade (GRIMM, 2004: 21-23). 3 – Neoconstitucionalismo brasileiro e o caso Lüth Nesta terceira parte, como já anunciado, busca-se compreender a proposta de um novo constitucionalismo, seus principais elementos discursivos, a fim de se apurar a hipótese de que essa tendência, intensificada ao término da segunda década da Constituição brasileira de 1988, mantém conexões estreitas com os parâmetros fixados pelo Caso Lüth. O constitucionalismo, sem o prefixo “neo”, é comumente associado à noção de liberalismo moderno, de uma teoria que se coloca na trilha da limitação do poder do Estado. Essa perspectiva funda-se na suposição da capacidade de autopromoção da sociedade, em decorrência da qual reservam-se ao Estado tão-somente as tarefas que a sociedade não seja capaz de realizar por si só, isto é, a segurança externa e interna, como forma de garantir a liberdade individual. A liberdade, dentro desse modelo, adquire uma perspectiva negativa, que compreende a ausência de interferência na esfera de decisão do indivíduo (PETIT, 1999: 40). Dentro dessa lógica, preservada a autonomia individual, as eventuais desigualdades sociais que surjam serão frutos do exclusivo fracasso individual, e, assim, não poderão ser qualificadas como injustas. A função estatal restrita a atividades de defesa frente às ameaças à liberdade individual forja a separação entre Estado e sociedade. A Constituição assume especial significado neste modelo, pois cabe-lhe exatamente a tarefa de delimitar o âmbito dentro do qual a sociedade desfruta de sua autonomia, por meio da fixação de direitos fundamentais como elementos limitadores da atuação estatal (GRIMM, 2006: 183). 5 Em relação a esse sentido moderno de constitucionalismo, qual seria a particularidade do pensamento constitucional contemporâneo que avoca para si o rótulo de “neoconstitucionalismo”? Os estudos que procuram sistematizar esse discurso reconhecem que ainda se trata de um rótulo impreciso, eclético, ou em fase de construção (CARBONELL, 2007: 258). Começam a convergir, contudo, para a compreensão de que a novidade sugerida pelo título e a própria unidade do movimento está na adoção conjunta de pelo menos três fatores: (1) objeto de estudo diferenciado  Constituições contemporâneas, marcadas por uma grande e detalhada pauta material, como a brasileira de 1988; (2) pressuposição da necessidade de uma decorrente prática jurisprudencial diferenciada  fundada em parâmetros interpretativos de ordens distintas, como os valores ou princípios, e em novos métodos de interpretação, como a ponderação, a proporcionalidade, a máxima efetividade, a Constitucionalização do Direito, a eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas; (3) defesa de uma postura científica menos contemplativa e mais engajada (BARROSO, 2006:45; CARBONELL, 2007: 258; FERRAJOLI, 2006:33). De acordo com Carbonell (2007:11), as propostas de Dworkin, Alexy, Nino, Ferrajoli, Sanchís e Zagrebelsky têm cumprido esta missão epistemológica do neoconstitucionalismo, não se limitando à mera contemplação das novas Constituições ou práticas constitucionais, mas verdadeiramente instigando a própria existência dessa prática diferenciada. Como visto, os próprios neoconstitucionalistas explicam que para a invocação do rótulo que vestem não basta tomar os textos constitucionais mais recentes como objeto de estudo, em valorização do seu conteúdo. De outro lado, o desenvolvimento teórico menos contemplativo está presente em diversas áreas de produção do saber, não sendo nem de longe característica exclusiva do movimento em estudo. Entre os três fatores apontados como componentes do discurso neoconstitucionalista, parece mais determinante para a sua identificação a ideia de que, em face dos textos constitucionais contemporâneos, como a Constituição brasileira de 1988, seja necessária uma prática jurisprudencial diferenciada, fundada em parâmetros interpretativos de ordens distintas, orientada por valores extraídos a partir dos textos constitucionais, a serem ponderados em casos concretos. Nesse exato fator, determinante para a identificação do discurso neoconstitucionalista, reside a notória zona de contato com os argumentos fixados há 6 mais de cinquenta anos pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no já analisado Caso Lüth. O Neoconstitucionalismo propõe que a Constituição seja concebida como fonte de parâmetros interpretativos de ordens distintas, a exemplo dos valores e dos princípios, tal como proposto no Caso Lüth (CRUZ, 2005: 09). Para lidar com esses novos parâmetros, o Neoconstitucionalismo propõe algumas técnicas mais sofisticadas de aplicação do Direito, entre elas, a ponderação, a incidência de direitos fundamentais em relações privadas, interpretação das leis conforme a Constituição – todas utilizadas na decisão do Caso Lüth, em 1958. O discurso neoconstitucionalista, cujas linhas principais já foram explicadas nesse trabalho, recebeu uma versão brasileira, que vem se difundindo a passos largos, com o trabalho de divulgação de seus adeptos. Nesse ponto, merece destaque o estudo de Barroso, “Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito” (2006), pela ampla divulgação editorial que teve, determinante para a difusão do discurso neoconstitucionalista no Brasil4. Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional (BARROSO, 2006:57). A Constituição brasileira de 1988 é adotada como marco histórico do Neoconstitucionalismo no Brasil, justamente por corresponder a esse objeto de estudo diferenciado, com pauta material dilatada, tal como postulado pelo movimento, como visto no item anterior. A partir desse texto constitucional é que o sistema jurídico brasileiro teria se curvado a uma espécie de império da Constituição (BARROSO, 2006:47). No que se refere ao “marco filosófico”, o neoconstitucionalismo brasileiro situase como “pós-positivista”, no sentido de procurar uma síntese entre o que chama de pensamento positivista e o jusnaturalismo, nos seguintes termos: “busca ir além da 4 O texto foi reproduzido em sete revistas brasileiras entre 2005 e 2007, além de sua publicação em dois volumes coletivos e em vários sites da internet. Conferir, a título de exemplo: <http://biblioteca.senado.gov.br:8991/F/LI3XJGU261X1QHJ6PCL7X1RKNL6GPFYHBQRHKX1AN9 RXPI7Y74-01194?func=full-setset&set_number=015629&set_entry=000030&format=999>. 7 legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas” (BARROSO, 2006:47)5. Por fim, quanto ao “marco teórico”, são apontados três grandes diferenciais do Neoconstitucionalismo brasileiro: (1) consolidação da ideia de força normativa da Constituição; (2) superação da supremacia do Poder Legislativo em prol de uma supremacia da Constituição, via proteção da jurisdição constitucional; (3) reconhecimento da necessidade de uma nova interpretação constitucional (BARROSO, 2006: 50-52). Essa leitura encontra adesão na obra de outros autores e vai se colocando como uma espécie de voz uníssona no pensamento constitucional brasileiro6. A circunstância se deve principalmente à inexistência de um contra-discurso sistematizado na doutrina brasileira. Os autores que por ventura se oponham às premissas do Neoconstitucionalismo ou estão silentes ou se manifestam de modo tão disperso que a aparente homogeneidade do discurso neoconstitucionalista não chega a se abalar 7. 4 – Conclusão O discurso neoconstitucionalista, na concepção que tem recebido no Brasil, pretende se individualizar, como já abordado, a partir do seu objeto de estudo, ou “marco histórico” (as constituições oriundas do segundo pós-guerra); do seu “marco filosófico” (póspositivismo); e de suas propostas teóricas (valorização da Constituição enquanto norma, nova interpretação constitucional e papel alargado da jurisdição constitucional). No que tange ao objeto de estudo, já foi reconhecido, até mesmo por alguns neoconstitucionalistas, que a adoção das Constituições oriundas do segundo pós-guerra como objeto de estudo não é característica exclusiva dos autores que invocam para si o rótulo de neoconstitucionalistas (CARBONELL, 2007:11). Quanto ao “marco filosófico” do Neoconstitucionalismo, o caminho seguido por Barroso (2006:47) para explicar a ideia de pós-positivismo mostra-se, por vezes, 5 Barroso insere, assim, como característica do Neoconstitucionalismo, uma postura teórica que supera a positivista; mas há neoconstitucionalistas, como Carbonell, Ariza e Comanducci que se opõem apenas à postura positivista epistemológica. Essa observação se faz importante para comentários que virão após a exposição do estudo de Barroso. 6 A título indicativo: MOREIRA (2008); BARCELLOS (2007). 7 Conferir as críticas elaboradas à nova interpretação constitucional por Silva (2005: 116) e uma possível resposta de Barroso (2006: 53). 8 delicado. O autor não retrata a distinção importante que positivistas, como Kelsen (2003:89), realizam entre Direito e Ciência do Direito. Assim, ao articular frases como “em busca da objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça [...]” (BARROSO, 2006:47), dá ensejo a leituras caricatas do pensamento que pretende superar. O Neoconstitucionalismo de Carbonell (2007), por exemplo, afasta-se de uma rejeição mais rápida ao deixar claro que a postura positivista que pretende superar é a metodológica, pretensamente neutra, contemplativa; e não a teórica, tendo em vista que os positivistas incorporam uma noção bem alargada de criação do Direito, da conexão entre Direito, Moral e Política. A despeito dos reparos acima efetuados, a preocupação que esse trabalho pretende compartilhar sobre a rápida e recente difusão do Neoconstitucionalismo no Brasil não é propriamente relativa ao possível exagero em torno da construção do prefixo “neo”. Na linha que tem sido difundido no Brasil, o discurso neoconstitucionalista propugna pela presença de uma nova “onda constitucional”, que, além de novas Constituições, trouxe um novo modelo, centrado na supremacia da Constituição, cuja proteção se atribui ao Judiciário. O adjetivo “novo” sugere contraposição a um modelo antigo, que, segundo Barroso (2006:50), corresponde ao modelo de supremacia do Poder Legislativo (TAVARES, 2008). O antagonismo articulado entre <<supremacia do Poder Legislativo>> e <<supremacia da Constituição>>, aliado ao estabelecimento de uma conexão íntima entre <<supremacia da Constituição>> e Poder Judiciário revela algumas premissas que precisam ser problematizadas. Inicialmente, deve-se destacar das relações acima uma visão depreciativa do Poder Legislativo, cuja supremacia é tida como antagônica à supremacia Constitucional. Por que atribuir a última palavra a uma Corte Constitucional é fazer imperar a supremacia constitucional e não a supremacia judicial? Há, subjacente a essa conexão, a ideia de que o Poder Legislativo está mais sujeito, em suas deliberações, a comprometer a Constituição do que o Poder Judiciário, como alerta Waldron (2003:05). O Brasil está importando de modo acrítico, justamente sob o marco histórico de sua Constituição Cidadã, um discurso que inspira e naturaliza uma vivência constitucional deferente à leitura realizada pelo órgão de cúpula do poder Judiciário. 9 Até mesmo no contexto originário desse discurso, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, já não se verifica, há longa data, adesão incondicionada ao arranjo de que a Corte Constitucional deva proceder como principal guardiã de uma ordem objetiva de valores. Em 1975, por exemplo, antes da Constituição brasileira de 1988 sequer ser projetada, o Tribunal que fixou os parâmetros do discurso neconstitucionalista já questionava a lógica que viria a ser incorporada tão mais tarde no Brasil (CRUZ, 2005: 45). Não se trata de negar a importância da Jurisdição Constitucional, nem de negarlhe a possibilidade de realizar uma leitura valorativa da Constituição. Afinal de contas, no caso brasileiro, a própria Constituição, com a sua larga pauta material, abre espaço para uma atuação mais ampla da Jurisdição Constitucional. O propósito é apenas sinalizar que essa ordem de circunstâncias não requer, como sugere o neconstitucionalismo, nem autoriza, a colonização da Constituição pelo código sofisticado de uma Jurisdição Constitucional. No Brasil, mesmo fora do contexto das súmulas vinculantes, inaugurado com a EC 45 de 2004, assiste-se a uma ampla subordinação da comunidade jurídica ao Supremo Tribunal Federal, por vezes, estimulada pela própria Corte, como na relatoria do Recurso Extraordinário 203498 – AgR/DF, na qual se afirmou que o monopólio da última palavra sobre o texto constitucional ao STF garante a supremacia constitucional, raciocínio também presente na relatoria da Reclamação 2986 MC/SE (BRASIL, STF, 2005). Sobretudo, constrói-se um ambiente teórico que naturaliza as investidas do STF em direção a uma espécie de exclusivismo moral, supostamente necessário ao modelo de supremacia ou mesmo império da Constituição, em detrimento de um malfadado modelo de supremacia do Poder Legislativo. Se a linguagem aberta ou substantiva da Constituição permite que um Tribunal realize uma leitura valorativa desse texto, como sugerido há mais de cinquenta anos no Caso Lüth, e, agora, pelo Neoconstitucionalismo fortemente presente no Brasil, talvez fosse o caso de se estender essa leitura a todos os atores políticos de uma sociedade e não de torná-la monopólio da Jurisdição Constitucional. 10 Referências bibliográficas BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: Revista Diálogo Jurídico, nº 15, 2007. Disponível em: <<http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=ana%20paula%20de%20b arcellos>>. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, nº33, 2006. CARBONELL, Miguel, El neoconstitucionalismo en su laberinto.In: Teoría del neoconstitucionalismo. Madrid: Editorial Trotta, 2007. COMANDUCCI, Paolo. 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