Instituto Politécnico da Maia
ATUALIDADES NA
CIÊNCIA JURÍDICA:
INTERCÂMBIO IBERO-AMERICANO
Editores
Maria do Rosário Anjos
Patrícia Anjos Azevedo
Rubén Miranda Gonçalves
Fábio da Silva Veiga
INSTITUTO IBEROAMERICANO
DE ESTUDOS JURÍDICOS
ATUALIDADES NA CIÊNCIA
JURÍDICA:
INTERCÂMBIO IBEROAMERICANO
Editores
Maria do Rosário Anjos
Patrícia Anjos Azevedo
Rubén Miranda Gonçalves
Fábio da Silva Veiga
Instituto Politécnico da Maia – IPMAIA
Todos os direitos reservados aos editores da obra. Nenhuma parte
da obra poderá ser reproduzida sem o consentimento expresso dos
editores.
Os editores não são responsáveis pelas opiniões, comentários ou
manifestações dos autores representadas nos respectivos artigos.
©Maria do Rosário Anjos (Editora)
©Patrícia Anjos Azevedo (Editora)
© Rubén Miranda Gonçalves (Editor)
© Fábio da Silva Veiga (Editor)
©Instituto Politécnico da Maia
© Os autores, pelos capítulos
Ficha Técnica
Título
Atualidades na Ciência Jurídia: Intercâmbio Iberoamericano
Autores Vários
Editores Maria do Rosário Anjos; Patrícia Anjos Azevedo; Rubén
Miranda Gonçalves; Fábio da Silva Veiga
Edição Edições ISMAI
N2i – Núcleo de Investigação do Instituto Politécnico da Maia
1ª edição: 2018
ISBN 978-989-54271-2-3
CONSELHO CIENTÍFICO
Antonio Tirso Ester Sánchez (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria)
Armando Luiz Rovai (PUC-SP/Mackenzie)
Augusto Jobim do Amaral (P. Universidade Católica do Rio Grande do Sul)
Catarina Santos Botelho (Universidade Católica Portuguesa, Portugal)
Denise Fincato ((Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)
Emilia Santana Ramos (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria)
Érica Guerra da Silva (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro)
Fábio da Silva Veiga (IBEROJUR/Universidad Europea de Madrid /UAH)
Gabriel Martín Rodríguez (Universidad Europea de Madrid)
Gilberto Atencio Valladares (Universidad de Santiago de Compostela)
Heron Gordilho (Universidade Federal da Bahia)
Irene Patrícia Nohara (Universidade Presbiteriana Mackenzie)
Jaime Aneiros Pereira (Universidad de Vigo)
Jose Gabriel Assis de Almeida (UNIRIO, Brasil)
Julio Álvarez Rubio (Universidad de Cantabria)
Laura Miraut Martín (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria)
Lorenzo Mateo Bujosa (Universidad de Salamanca)
Lotario Vilaboy Lois (ISMAI/IPMAIA)
Marco Aurélio Gumieri Valério (Universidade de São Paulo)
Marcos Augusto Perez (Universidade de São Paulo)
Margareth Vetis Zaganelli (Universidade Federal do Espírito Santo)
Maria Cruz Barreiro Carril (Universidad de Vigo)
Maria João Mimoso (UPT/IPMAIA)
Maria do Rosário Anjos (IPMAIA)
Pablo Fernández Carballo-Calero (Universidad de Vigo)
Patrícia Anjos Azevedo (ISMAI/IPMAIA)
Pedro Avzaradel (Universidade Federal Fluminense)
Ricardo Gavilán (Universidad Nacional de Asunción)
Rodrigo Poyanco (U. de los Andes, Chile)
4
Conselho Científico
Rubén Miranda Gonçalves (Universidad de Santiago de Compostela)
Salvador Tomás Tomás (Universidad de Murcia)
Samuel Rodríguez Ferrández (Universidad de Murcia)
Sebastién Kiwonghi Bizawu (Escola de Direito Dom Helder)
Sónia de Carvalho (UPT/IPMAIA)
Vânia Aieta (Universidade do Estado do Rio de Janeir0)
Zélia Luiza Pierdoná (Universidade Presbiteriana Mackenzie)
5
SUMÁRIO
EL DERECHO A LA EDUCACIÓN COMO DERECHO HUMANO: ESPECIAL
REFERENCIA A LA JURISPRUDENCIA ESPAÑOLA ACTUAL
Rubén Miranda Gonçalves .............................................................................................. 11
BREVES NOTAS SOBRE A TRAMITAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Patrícia Anjos Azevedo ................................................................................................... 23
EXCLUÍDOS PELA GENÔMICA: TESTES GENÉTICOS E TUTELA DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE DO OBREIRO COMO EXPRESSÃO DA DIGNIDADE HUMANA
Vivianne Rodrigues de Melo .......................................................................................... 39
UM PROJETO INTERSÉMIÓTICO JURIDICO: SUGESTAO PARA A DEFESA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS INSTITUIÇÔES FRENTE ÀS NOVAS
TECNOLOGIAS
Maria Christina Napolitano .............................................................................................55
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA? CRIMES CONTRA A VIDA INTRA UTERINA: DA
DETERMINAÇÃO DO INÍCIO DO BEM JURÍDICO TUTELADO A SUA PROTEÇÃO
Caroline Buarque Leite de Oliveira ................................................................................. 75
O PATRIMÔNIO COMO ELEMENTO OBJETIVO DA INFRAÇÃO PENAL E A
INFLUÊNCIA DE SEU RESSARCIMENTO NOS BENEFÍCIOS DO SISTEMA PENAL
BRASILEIRO.
Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean ................................................... 87
O PAPEL DO MINISTERIO PÚBLICO E A DEFESA DO PLENO EMPREGO PARA
IMIGRANTES VULNERÁVEIS
Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho ..........................103
A ATUAÇÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS DE ENERGIA PARA O
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ANÁLISE COMPARADA ENTRE BRASIL E
PORTUGAL
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos ........................... 111
Sumário
DIREITOS E DEVERES DOS CONDÓMINOS DE UM PRÉDIO URBANO EM REGIME
DE PROPRIEDADE HORIZONTAL
Ana Rita Ferreira Araújo ............................................................................................... 131
BREVES NOTAS SOBRE A INSOLVÊNCIA E OS SEUS EFEITOS NAS AÇÕES
DECLARATIVAS, EXECUTIVAS E CONVENÇÕES DE ARBITRAGEM
Ricardo M. Oliveira ....................................................................................................... 143
A RELAÇÃO ENTRE A RENDA BÁSICA DE CIDADANIA E OS OBJETIVOS
FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Thiago Santos Rocha ..................................................................................................... 151
ACORDOS PARASSOCIAIS: INSTRUMENTOS DE GOVERNANÇA E INOVAÇÃO NO
SEU CONFRONTO COM OS ESTATUTOS
Rita Guimarães Fialho d’ Almeida ................................................................................ 161
DESIGUALDADE AMBIENTAL: MUDANÇAS CLIMÁTICAS E FLUXO MIGRATÓRIO
Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil ............................................................... 169
A REVERSÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL CONTRA GERENTES E
ADMINISTRADORES
Patrícia Anjos Azevedo .................................................................................................. 183
A BOA ADMINISTRAÇÃO COMO ELEMENTO DE EFETIVAÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Suzana Maria Fernandes Mendonça ............................................................................. 191
O MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO CONDICIONANTE PARA A
MANUTENÇÃO DA SUSTENTABILIDADE E DO PATRIMÔNIO CULTURAL
INDÍGENA: PERCEPÇÃO DE RISCOS AMBIENTAIS AO PATRIMÔNIO CULTURAL
DO POVO WAYÃPI
Fabrício V. Costa, Deilton R. Brasil e Elaine Aparecida Barbosa Gomes .................... 203
A ARBITRAGEM NA RECENTE REFORMA DO CÓDIGO DOS CONTRATOS
PÚBLICOS
Maria do Rosário Anjos ................................................................................................. 219
8
Sumário
NEOLIBERALISMO E PRECARIEDADE: O BRASIL NO CONTEXTO DAS LUTAS
GLOBAIS
Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler .......................................... 225
TESTAMENTO VITAL: SUA APLICABILIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente ..................................................237
JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E ACESSO À MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS E DE
ALTO CUSTO: PARÂMETROS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES PARA O
FORNECIMENTO DE FÁRMACOS
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia. ............................................ 253
O DIREITO À PRIVACIDADE E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA: A PROPÓSITO DA
PUBLICIDADE COM RECURSO AO RECONHECIMENTO FACIAL
Ana Clara Azevedo de Amorim ..................................................................................... 269
GOVERNANÇA CORPORATIVA: ADAPTAÇÃO AO SETOR PÚBLICO PARA UM
AMBIENTE ECONÔMICO E JURÍDICO SAUDÁVEL
Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio ....................................................... 277
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL: A PRESERVAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM MEIO À MODERNIDADE LÍQUIDA.
Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia ............................................ 287
RESPONSABILIDADE AMBIENTAL: O PRINCÍPO DO POLUIDOR PAGADOR
MEDIANTE UMA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO DO AMBIENTE
Roberta Fernandes de Faria ......................................................................................... 299
GOVERNANÇA NAS RELAÇÕES (LÍQUIDAS) DE TRABALHO: O DIREITO AO
ESQUECIMENTO COMO UM NOVO DESAFIO PROTETIVO
Denise Fincato e Cíntia Guimarães ............................................................................... 311
ANONIMATO DE DOAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO: PONDERAÇÃO ENTRE
DIREITO DE PERSONALIDADE E DIREITO À PRIVACIDADE
Juliana de Freitas Dornelas .......................................................................................... 323
9
Sumário
COMPLIANCE DIGITAL E A INFLUÊNCIA DO REGULAMENTO EUROPEU DE
PROTEÇÃO DE DADOS NAS EMPRESAS BRASILEIRAS
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz.............................................. 329
LEGADO DIGITAL
José Emiliano Paes Landim Neto ................................................................................. 345
DA IMPROPRIEDADE DOS EMBARGOS COMO MEIO DE DEFESA DO CÔNJUGE NO
ÂMBITO DA EXECUÇÃO FISCAL
Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo ................................................... 353
10
EL DERECHO A LA EDUCACIÓN COMO DERECHO
HUMANO:
ESPECIAL
REFERENCIA
A
LA
JURISPRUDENCIA ESPAÑOLA ACTUAL
Rubén Miranda Gonçalves1
1) Introducción
Que la educación sea un derecho humano no es una cuestión baladí. Sin duda,
estamos ante uno de los derechos humanos más importantes, sin desmerecer ninguno
de ellos. Reconocer el derecho a la educación como un derecho fundamental implica una
serie de obligaciones que deben ser respetadas tanto por el Estado como por los propios
ciudadanos.
Si atendemos a las palabras del pensador occidental Santo Tomás de Aquino, nos
encontramos con que escribió que “Excellit autem homo omnia animalia quantum ad
rationem et intellectum”2, es decir, que la inteligencia es uno de los rasgos que nos
diferencia de otros seres vivos, característica que, junto a la razón, hacen que el hombre
supere a todos los animales.
Era tan importante la educación para Santo Tomás que llegó a definirla como la
“Non enim intendit natura solum generationem prolis, sed traductionem et
promotionem usque ad perfectum statum hominis, inquantum horno est, qui est status
virtutis”, es decir, la conducción y promoción de la prole al estado perfecto de hombre en
cuanto hombre, que es el estado de virtud”3 y es precisamente lo que se busca con el
derecho humano a la educación, el medio para alcanzar el conocimiento y mejorar las
facultades del ser humano.
Por eso, a lo largo del presente capítulo se analizará la figura de la educación como
derecho humano, su protección y la actualidad jurisprudencial del Tribunal
Constitucional español, pues en España este derecho ha sido objeto de discusión en lo
que se refiere a la educación por sexos, en tanto en cuanto existen centros educativos
privados que separan la educación de hombres y mujeres, motivo que llevó a más de
diputados del grupo socialista a presentar un recurso ante el Tribunal Constitucional
alegando discriminación y vulneración de determinados preceptos de la Constitución
española.
1 Profesor en el Máster en Seguridad, Paz y Conflictos Internacionales de la Universidad de Santiago
de Compostela; profesor de Derecho Administrativo en el Máster Universitario de Abogacía de la
Universidad Europea de Madrid. Doctorando en Derecho Administrativo, Máster en Derecho de las
Administraciones e Instituciones Públicas y Licenciado en Derecho, con grado sobresaliente, por la
Universidad de Santiago de Compostela. E-mail: Ruben.miranda@usc.es
2 DE AQUINO, S. T., Summa Tehologiae, quaestio 3, art. 1.
3 DE AQUINO, S. T., Summa Theologiae Supplemento, q. 41, art. 1, c.
Rubén Miranda Gonçalves
2) La educación como derecho humano y su protección.
Nadie discute sobre la importancia de los derechos humanos para que una
sociedad sea libre, pues, como bien apunta ESTER SÁNCHEZ, “son en buena medida
elementos clave para poder garantizar dentro de los Estados el establecimiento de una
convivencia social pacífica, justa y tolerante por todos deseada y disminuir la intensidad
de los posibles conflictos y las vulneraciones a los derechos fundamentales que puedan
llegar a darse”4. No en vano, por eso consideramos que estamos ante uno de los derechos
humanos más importantes, opinión que compartimos con ESTER SÁNCHEZ, pues
“ayuda a la persona a tomar por sí misma decisiones cruciales para su realización
personal”5.
Hoy en día son numerosos los textos internacionales que prevén el derecho a la
educación. Tal y como afirma TOMASEVSKI, este derecho está previsto en los cinco
instrumentos internacionales de derechos humanos más importantes: Pacto
Internacional de Derechos Civiles y Políticos, Pacto Internacional de Derechos
Económicos, Sociales y Culturales, Convención sobre la eliminación de todas las formas
de discriminación racial, Convención sobre la eliminación de todas las formas de
discriminación contra la mujer y Convención sobre los derechos del niño6. A estos cinco
instrumentos debemos añadir un sexto, también fundamental a la hora de hablar de
derechos humanos y es la Declaración Universal de los Derechos Humanos.
Según la Declaración Universal de los Derechos Humanos, en su artículo 26, se
establece, primero, que “toda persona tiene derecho a la instrucción” y, segundo, que
“será gratuita, al menos la elemental y fundamental”. No obstante, el tenor literal del
artículo es más amplio y establece que:
1.
2.
3.
“Toda persona tiene derecho a la educación. La educación
debe ser gratuita, al menos en lo concerniente a la instrucción
elemental y fundamental. La instrucción elemental será
obligatoria. La instrucción técnica y profesional habrá de ser
generalizada; el acceso a los estudios superiores será igual
para todos, en función de los méritos respectivos.
La educación tendrá por objeto el pleno desarrollo de la
personalidad humana y el fortalecimiento del respeto a los
derechos humanos y a las libertades fundamentales;
favorecerá la comprensión, la tolerancia y la amistad entre
todas las naciones y todos los grupos étnicos o religiosos, y
promoverá el desarrollo de las actividades de las Naciones
Unidas para el mantenimiento de la paz.
Los padres tendrán derecho preferente a escoger el tipo de
4 ESTER SÁNCHEZ, A. T., “El sentido de la enseñanza de los derechos humanos en la sociedad
democrática”, Dikaiosyne, nº. 30, 2015, pp. 89.
5 ESTER SÁNCHEZ, A. T. “El pluralismo como fundamento de la educación multicultural”,
Quaestio Iurs, vol. 11, nº. 01, 2018, p. 399.
6 TOMASEVSKI, K. Manual on rights-based education: global human rights requirements made
simple, UNESCO Bangkok, Bangkok, 2004, p. 6.
12
El derecho a la educación como derecho humano…
educación que habrá de darse a sus hijos”.
Este artículo, redactado en 1948, hace referencia a la palabra instrucción, término
que según FALCADE-PEREIRA Y ASINELLI-LUZ, “significaba el proceso por el cual la
educación era ofertada, caracterizada por la obligatoriedad en la fase elemental,
voluntariedad en la formación técnica profesional y basada en la meritocracia en el nivel
superior”7. Al menos se garantiza que la educación elemental o fundamental, también
conocida como primaria, será gratuita, si bien numerosos Estados entre los más de 190
que componen la ONU, ofrecen de manera gratuita la matrícula en la educación
superior8. Este logro fue fruto de la incorporación de un derecho tan elemental y
necesario en la sociedad, pues la educación es, sin duda alguna, uno de los derechos
fundamentales y derechos humanos más importantes. Es imposible concebir una
sociedad igualitaria, desarrollada, tolerante y culta sin una buena educación.
El derecho humano a la educación, en palabras de SCIOSCIOLI, “debe orientarse
hacia el respeto de los derechos y libertades previstos en el instrumento, promoción de
los valores democráticos, de justicia y de paz y el desarrollo de la autonomía personal” 9,
permitiendo “a todas las personas la posibilidad de adquisición de los valores de los
derechos humanos, y el respeto por la dignidad, por la tolerancia y por la solidaridad”10.
En este sentido, es necesario traer a colación el artículo 13 del Pacto Internacional de
Derechos Económicos, Sociales y Culturales11, el cual en su apartado primero deja claro
7 FALCAED-PEREIRA, I. A. Y ASINELLI-LUZ, A., “La educación como derecho humano para
presos en Brasil”, Revista de Humanidades, nº. 21, 2014, p. 78.
8 Algunos de los Estados en los que la matrícula en la educación superior es gratuita son México,
Cuba, República Dominicana, Guatemala, Haití, Costa Rica, Venezuela, Brasil, República de Surinam, Perú,
Bolivia, Argentina, Uruguay, Islandia, Irlanda, Noruega, Suecia, Finlandia, Rusia, Estonia, Letonia, Lituania,
Bielorrusia, Polonia, República Checa, Italia, Grecia, Chipre, Rumanía, Ucrania, Armenia, Kazajistán,
Turkmenistán, Kirguizistán, Tayikistán, Afganistán, Georgia, Siria, Irak, Arabia Saudí, Qatar, Emiratos
Árabes, Omán, Sri Lanka, Malasia, Brunei, Madagascar, Uganda, Burundi, Angola, República del Congo,
República Centroafricana, Chad, Benín, Chana, Guinea, Mali, Senegal, Mauritania, Níger, Nigeria, Sudán,
Argelia,
Libia,
Egipto,
Eritrea,
Yibuti,
Túnez,
Yemen.
Consultado
en
https://www.worldpolicycenter.org/policies/is-education-tuition-free/is-higher-education-tuition-free, el
día 07/09/2018.
9 SCIOSCIOLI, S. “El derecho a la educación como derecho fundamental y sus alcances en el derecho
internacional de los derechos humanos”, Journal of supranational policies of education, nº. 2, 2014, p. 12.
10 NICOLETTI, J. A., “La educación superior de calidad como derecho humano”,
http://www.cyta.com.ar/ta1304/v13n4a3.htm, consultado el día 07/09/2018.
11 Artículo 13 PIDESC
1º. Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen el derecho de toda persona a la educación.
Convienen en que la educación debe orientarse hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del
sentido de su dignidad, y debe fortalecer el respeto por los derechos humanos y las libertades fundamentales.
Convienen asimismo en que la educación debe capacitar a todas las personas para participar efectivamente
en una sociedad libre, favorecer la comprensión, la tolerancia y la amistad entre todas las naciones y entre
todos los grupos raciales, étnicos o religiosos, y promover las actividades de las Naciones Unidas en pro del
mantenimiento de la paz.
2º. Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen que, con objeto de lograr el pleno
ejercicio de este derecho:
a) La enseñanza primaria debe ser obligatoria y asequible a todos gratuitamente;
b) La enseñanza secundaria, en sus diferentes formas, incluso la enseñanza secundaria
técnica y profesional, debe ser generalizada y hacerse accesible a todos, por cuantos
me dios sean apropiados, y en particular por la implantación progresiva de la
enseñanza gratuita;
c) La enseñanza superior debe hacerse igualmente accesible a todos, sobre la base de la
capacidad de cada uno, por cuantos medios sean apropiados, y en particular por la
implantación progresiva de la enseñanza gratuita;
13
Rubén Miranda Gonçalves
que la educación debe orientarse hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y
del sentido de su dignidad, y que ésta debe fortalecer el respeto por los derechos humanos
y también las libertades fundamentales.
El derecho humano a la educación, en lo que afecta a la educación elemental o
fundamental, está garantizado, como ya se ha señalado con anterioridad, por numerosos
textos internacionales y aparece recogido en la mayoría de las Constituciones de, al
menos, los países que forman parte de la ONU y la misma será gratuita, así lo establece
el artículo 13, apartado segundo, del Pacto Internacional de Derechos Económicos,
Sociales y Culturales. Lo que no se contempla como gratuita es la educación secundaria
o educación superior, algo que dificulta en muchos países que personas con rentas bajas
o con escasos recursos tengan acceso a una educación una vez concluyen los estudios
primarios. En este caso, el apartado segundo del artículo 13 del PIDESC establece que
debe ser generalizada y hacerse accesible por todos, por cuantos medios sean apropiados,
dejando al arbitrio de cada Estado si será gratuita o no.
Lo mismo ocurre con la educación superior. Si bien es cierto que el PIDESC hace
mención a ella en el apartado tercero del artículo 13, tampoco la contempla como
gratuita, debiendo los Estados hacerla accesible a todos, sobre la base de a capacidad de
cada uno, y también por cuantos medios sean apropiados.
3) Marco legal y evolución del derecho a la educación en
España
No todas las Constituciones españolas recogieron el derecho a la educación en sus
textos. Si nos remontamos al pasado, la primera que hizo alusión a él fue la Constitución
de Cádiz de 1812 la cual, en su título IX, se refería a una serie de elementos que, por
primera vez, asentaban lo que hoy conocemos como el derecho a la educación en España.
En el artículo 366 se garantizaban escuelas de primeras letras en todos los
pueblos de la Monarquía en las que se enseñaría a leer, escribir y contar a todos los niños.
En un plano superior, en el artículo 367 se contemplaba una mejor estructuración de la
instrucción secundaria y en el artículo 368 se reconocía que el plan general de enseñanza
sería uniforme en todo el reino, aunque en todas las Universidades y establecimientos
literarios en los que se enseñasen ciencias eclesiásticas y políticas, sería obligatorio
d)
Debe fomentarse o intensificarse, en la medida de lo posible, la educación fundamental
para aquellas personas que no hayan recibido o terminado el ciclo completo de
instrucción primaria;
e) Se debe proseguir activamente el desarrollo del sistema escolar en todos los ciclos de la
enseñanza, implantar un sistema adecuado de becas, y mejorar continuamente las
condiciones materiales del cuerpo docente».
3. Los Estados Partes en el presente Pacto se comprometen a respetar la libertad de los padres
y, en su caso, de los tutores legales, de escoger para sus hijos o pupilos escuelas distintas de las creadas
por las autoridades públicas, siempre que aquéllas satisfagan las normas mínimas que el Estado
prescriba o apruebe en materia de enseñanza, y de hacer que sus hijos o pupilos reciban la educación
religiosa o moral que esté de acuerdo con sus propias convicciones”.
14
El derecho a la educación como derecho humano…
explicar la Constitución política de la Monarquía.
La Constitución de 1812 fue pionera en la búsqueda de una profesionalización de
la Universidad y, por supuesto, la primera que contempló la gratuidad de la enseñanza,
pues en varios de sus artículos se hace referencia a la “enseñanza pública”.
Posteriormente fue la Constitución de 1931 la que, en palabras del profesor DE
PUELLES BENÍTEZ, vino a “resolver los problemas planteados por la modernidad”12,
pues va a ser la encargada de garantizar expresamente la gratuidad y obligatoriedad de
la enseñanza primaria, va a reconocer que maestros, profesores y catedráticos de la
enseñanza oficial serán funcionarios públicos y, también y muy importante, va a
reconocer y a garantizar constitucionalmente la libertad de cátedra y una enseñanza laica
(artículo 48).
En la Constitución de 1978, norma normarum del actual ordenamiento jurídico
español, el Derecho a la educación aparece protegido en el artículo 2713. Se trata de un
derecho contemplado en la sección primera del Capítulo segundo, que lleva como rúbrica
“de los derechos fundamentales y de las libertades públicas” y en el que se protegen dos
derechos, por un lado, el derecho a la educación y, por otro, la libertad de enseñanza,
aunque en el mismo precepto se integran varios derechos autónomos14.
Es importante traer a colación que este derecho abarca tanto a los nacionales
como a los extranjeros15 y así lo dejó patente el Tribunal Constitucional en la Sentencia
236/2007, pues nuestra Constitución al dar cobertura al derecho a la educación lo hace
también a los extranjeros que no dispongan de la correspondiente autorización de
estancia o residencia en España, llegando a afirmar el Tribunal Constitucional que “los
extranjeros disfrutarán no sólo de las libertades sino también de los derechos
12 DE PUELLES BENÍTEZ, M., “La educación en el constitucionalismo español”, Cuestiones
pedagógicas: Revista de ciencias de la educación, núm. 21, 2011-2012, p. 19.
13 “1. Todos tienen el derecho a la educación. Se reconoce la libertad de enseñanza.
2. La educación tendrá por objeto el pleno desarrollo de la personalidad humana en el respeto a los
principios democráticos de convivencia y a los derechos y libertades fundamentales.
3. Los poderes públicos garantizan el derecho que asiste a los padres para que sus hijos reciban la
formación religiosa y moral que esté de acuerdo con sus propias convicciones.
4. La enseñanza básica es obligatoria y gratuita.
5. Los poderes públicos garantizan el derecho de todos a la educación, mediante una programación
general de la enseñanza, con participación efectiva de todos los sectores afectados y la creación de centros
docentes.
6. Se reconoce a las personas físicas y jurídicas la libertad de creación de centros docentes, dentro
del respeto a los principios constitucionales.
7. Los profesores, los padres y, en su caso, los alumnos intervendrán en el control y gestión de todos
los centros sostenidos por la Administración con fondos públicos, en los términos que la ley establezca.
8. Los poderes públicos inspeccionarán y homologarán el sistema educativo para garantizar el
cumplimiento de las leyes.
9. Los poderes públicos ayudarán a los centros docentes que reúnan los requisitos que la ley
establezca.
10. Se reconoce la autonomía de las Universidades, en los términos que la ley establezca”.
14 COTINO HUESO, L., El derecho a la educación como derecho fundamental. Especial atención a
su dimensión social prestacional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2012, p. 16.
15 Sobre el derecho a la educación de los inmigrantes puede consultarse a ESTER SÁNCHEZ, A. T.
“Los objetivos declarados en el derecho a la educación. Especial consideración al menor inmigrante”,
Dikaiosyne, nº. 31, 2016, pp. 35-60 y ESTER SÁNCHEZ, A. T. “La educación intercultural como principal
modelo educativo para la integración social de los inmigrantes”, Cadernos de Dereito Actual, nº. 4, 2016,
pp. 139-151.
15
Rubén Miranda Gonçalves
reconocidos en el Título I de la Constitución”. Anteriormente tan sólo se garantizaba la
educación no obligatoria a los extranjeros que tenían permiso de residencia.
La Sentencia señala que “el derecho a la educación garantizado en el art. 27.1 CE
corresponde a “todos”, independientemente de su condición de nacional o extranjero, e
incluso de su situación legal en España”.
Para preservar esta igualdad entre nacionales y extranjeros, el máximo intérprete
de la Constitución se fundamenta en la interpretación de algunos textos internacionales
como por ejemplo la Declaración Universidad de Derechos Humanos y los Tratados y
otros acuerdos internacionales cuando usan expresiones como “toda persona tiene…” o
“a nadie se le puede negar…” el derecho a la educación. Se trae a colación lo dispuesto en
el artículo 1 de la Convenio Europeo de Derechos Humanos, pues en él las Altas Partes
Contratantes reconocen a todas las personas que estén bajo su jurisdicción, los derechos
y libertades del Título I, entre los cuales se encuentra el derecho a la educación16.
Este derecho no sólo abarcará la educación primaria o fundamental, sino que se
extiende también a la educación no obligatoria, tanto para nacionales españoles como
para extranjeros que se encuentren en España y carezcan de autorización de residencia.
a) Sentencia del Tribunal Constitucional 31/2018 de 10 de abril.
La presente sentencia proviene del recurso de inconstitucionalidad número 14062014, interpuesto por más de cincuenta diputados del PSOE contra una serie de
artículos17 de la Ley Orgánica 8/2013, de 9 de diciembre, para la mejora de la calidad
educativa, LOMCE, considerando que la misma vulnera varios artículos de la
Constitución Española entre los que destacan el artículo 14, 9.2 y 27.2 CE.
A modo de resumen, el grupo socialista denuncia que en el artículo 84.3 de la
Artículo 2. Convenio Europeo de Derechos Humanos:
“A nadie se le puede negar el derecho a la educación. El Estado, en el ejercicio de las funciones que
asuma en el campo de la educación y de la enseñanza, respetará el derecho de los padres a asegurar esta
educación y esta enseñanza conforme a sus convicciones religiosas y filosóficas”.
17 “El apartado noveno del artículo único, que da nueva redacción al artículo 18 de la Ley Orgánica
2/2006, de 3 de mayo, de educación, (en adelante, LOE); el apartado décimo quinto de su artículo único,
que da nueva redacción al artículo 24 LOE; el apartado décimo sexto de su artículo único, que da nueva
redacción al artículo 25 LOE; el apartado décimo octavo de su artículo único, que da nueva redacción al
artículo 27 LOE; el apartado décimo noveno de su artículo único, que da nueva redacción al artículo 28 LOE;
el apartado vigésimo primero del artículo único, que da nueva redacción al artículo 30 LOE; el apartado
trigésimo cuarto del artículo único, que da nueva redacción al artículo 41 LOE; el apartado trigésimo quinto
del artículo único, que da nueva redacción al artículo 42 LOE; el apartado sexagésimo, que da nueva
redacción al apartado segundo del artículo 84 LOE; el apartado sexagésimo primero de su artículo único,
que da nueva redacción a los párrafos segundo y tercero del apartado tercero del artículo 84 LOE; el apartado
octogésimo del artículo único, que da nueva redacción a las letras a), b), e), h), i) del artículo 127 LOE; el
apartado octogésimo primero del artículo único, que da nueva redacción a las letras de l), m), n), ñ) y o) del
artículo 132 LOE; la disposición transitoria segunda y la disposición final segunda, en cuanto a la nueva
redacción de las letras a), b), f), h), j), l) y m) del artículo 57 de la Ley Orgánica 8/1985, de 3 de julio,
reguladora del derecho a la educación (en adelante, LODE), en relación, respectivamente, con lo dispuesto
en el apartado cuarto por el que se da nueva redacción a los apartados primero y segundo del artículo 59
LODE y con el apartado quinto, por el que se da nueva redacción al artículo 60 LODE”.
16
16
El derecho a la educación como derecho humano…
LOE, en la nueva redacción que opera la LOMCE, en sus párrafos segundo y tercero18, se
establece que “no constituye discriminación la admisión de alumnos y alumnas o la
organización de la enseñanza diferenciada por sexos, siempre que la enseñanza que
impartan se desarrolle conforme a lo dispuesto en el artículo 2 de la Convención relativa
a la lucha contra las discriminaciones en la esfera de la enseñanza, aprobada por la
Conferencia General de la UNESCO el 14 de diciembre de 1960”19 y alegan que existe una
dudosa legitimidad constitucional de un sistema educativo que separa a los estudiantes
por razón de su sexo, resultando inconstitucional lo dispuesto en ese artículo, pidiendo
al Tribunal Constitucional que declare nula esa expresión.
Lo mismo ocurre con la disposición transitoria segunda20 de la LOMCE, que
también es impugnada al considerar que el actual modelo educativo está diferenciando
la admisión de los alumnos y la organización de la enseñanza, algo que para los
impugnantes resulta completamente discriminatorio en base al artículo 14 de la
Constitución española, reprochando que existe una diferencia de trato injustificada,
lesionándose el artículo 14 en relación con el 27 de la Constitución.
Para el fallo de la Sentencia, y en relación a la primera de las pretensiones de los
impugnantes, el Tribunal Constitucional se basa en jurisprudencia anterior21 y el análisis
de diferentes textos internacionales como son la Convención sobre la eliminación de
todas las formas de discriminación contra la mujer, de 18 de diciembre de 1979, Pacto
Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 1966, la Declaración
Universal de Derechos Humanos y la Convención relativa a la Lucha contra las
Discriminaciones en la Esfera de la Enseñanza, de 1960, entre otros.
Será la Convención relativa a la Lucha contra las Discriminaciones en la Esfera
de la Enseñanza la que marque la pauta de qué debe considerarse como discriminación,
pues en su artículo 1, se prohíbe cualquier tipo de discriminación por razón del sexo,
entendiendo por discriminación toda distinción, exclusión, limitación o preferencia
fundada en la raza, color, sexo, idioma, religión, opiniones políticas o de cualquier otra
18 El artículo 84.3 de la LOE, en la nueva redacción dada al mismo por la LOMCE establece que “En
ningún caso habrá discriminación por razón de nacimiento, raza, sexo, religión, opinión o cualquier otra
condición o circunstancia personal o social.
No constituye discriminación la admisión de alumnos y alumnas o la organización de la enseñanza
diferenciadas por sexos, siempre que la enseñanza que impartan se desarrolle conforme a lo dispuesto en el
artículo 2 de la Convención relativa a la lucha contra las discriminaciones en la esfera de la enseñanza,
aprobada por la Conferencia General de la UNESCO el 14 de diciembre de 1960.
En ningún caso la elección de la educación diferenciada por sexos podrá implicar para las familias,
alumnos y alumnas y centros correspondientes un trato menos favorable, ni una desventaja, a la hora de
suscribir conciertos con las Administraciones educativas o en cualquier otro aspecto. A estos efectos, los
centros deberán exponer en su proyecto educativo las razones educativas de la elección de dicho sistema, así
como las medidas académicas que desarrollan para favorecer la igualdad”.
19 Contenido de la STC 31/2018, de 10 de abril.
20 “Aplicación temporal del artículo 84.3 de la Ley Orgánica 2/2006, de 3 de mayo, de Educación”,
que tiene el siguiente contenido: “los centros privados a los que en 2013 se les haya denegado la renovación
del concierto educativo o reducido las unidades escolares concertadas por el único motivo de ofrecer
educación diferenciada por sexos podrán solicitar que se les aplique lo indicado en el artículo 84.3 de esta
Ley Orgánica para el resto del actual periodo de conciertos en el plazo de dos meses desde su entrada en
vigor”.
21 Por ejemplo, la STC 198/2012, de 6 de noviembre.
17
Rubén Miranda Gonçalves
índole, origen nacional o social, posición económica o nacimiento.
En este sentido, el artículo 2 del mismo instrumento legal, deja constancia de que
no será discriminación en el sentido del artículo 1, “la creación o mantenimiento de
sistemas o establecimientos de enseñanza separados para los alumnos del sexo
masculino y para los del sexo femenino, siempre que esos sistemas o establecimientos
ofrezcan facilidades equivalentes de acceso a la enseñanza, dispongan de un personal
docente igualmente calificado, así como de locales escolares y de un equipo de igual
calidad y permitan seguir los mismos programas de estudio o programas equivalentes”,
si el Estado lo permite.
El Tribunal Constitucional en la Sentencia afirma que en otros Estados de la
Unión Europea en los que existen centros educativos de carácter privado, la educación
separada por sexos está admitida, y pone como ejemplo países como Gran Bretaña, “cuya
Sex Discrimination (Amendment of Legislation) Regulations 2008, que excluye la
educación de su ámbito de aplicación (artículo 9, capítulo I), no impide la existencia de
escuelas de educación diferenciada, que existen en ese país en un número apreciable”.
Lo mismo ocurre en Francia, pues según el TC español “la Ley núm. 2008-496,
de 27 de mayo de 2008, tras incluir expresamente el principio de igualdad de trato entre
mujeres y hombres, señala más concretamente —por lo que ahora nos afecta— que este
principio «no es obstáculo (...) para la organización de las enseñanzas agrupando los
alumnos en función de su sexo» (artículo 2.4)”.
En la misma línea, el Tribunal Federal de lo Contencioso-Administrativo de
Alemania dictó una sentencia el 30 de enero de 2013 en la que se afirmaba la
compatibilidad de la educación diferenciada por sexos y la Constitución de la República
Federal de Alemania.
En todos los Estados anteriores, junto con Bélgica22, el Tribunal Constitucional
español deja patente que “el modelo pedagógico consistente en una educación
diferenciada por sexos no es considerado un caso de discriminación por razón de sexo”,
pues es una opción pedagógica.
En caso de que el Tribunal Constitucional no tuviera en consideración la nulidad
que se estaba solicitado, los impugnantes piden de manera subsidiaria que se declare la
nulidad del aserto “en ningún caso la elección de la educación diferenciada por sexos
podrá implicar para las familias, alumnos y alumnas y centros correspondientes un trato
menos favorable, ni una desventaja, a la hora de suscribir conciertos con las
Administraciones educativas o en cualquier otro aspecto”, por los mismos motivos de
vulneración de los artículos 14, 9.2 y 27.2 de la CE, entendiendo los impugnantes que los
centros privados no deberían recibir ayudas públicas.
El Tribunal Constitucional es claro contundente y, tanto a la primera como a la
segunda pretensión, les niega la razón a los impugnantes. En relación a los argumentos
22
Artículo 19 del Decreto de 12 de diciembre de 2008.
18
El derecho a la educación como derecho humano…
a la primera pretensión, el máximo intérprete de la Constitución defiende que, ya desde
la STC 128/198, de 16 de julio, en su fundamento jurídico número 7, vienen sosteniendo
que “no toda desigualdad de trato resulta contraria al principio de igualdad, sino aquella
que se funda en una diferencia de supuestos de hecho injustificados de acuerdo con
criterios o juicios de valor generalmente aceptados” y que “el tratamiento diverso de
situaciones distintas puede incluso venir exigido, en un Estado social y democrático de
Derecho, para la efectividad de los valores que la Constitución consagra con el carácter
de superiores del ordenamiento, como son la justicia y la igualdad (art. 1), a cuyo efecto
atribuye además a los Poderes Públicos el que promuevan las condiciones para que la
igualdad sea real y efectiva23".
La redacción del artículo 84 en su apartado 3 de la LOE presenta el mismo
contenido y el mismo sentido que el artículo 2 de la Convención relativa a la lucha contra
las discriminaciones en la esfera de la enseñanza, aprobada por la Conferencia General
de la Unesco en 1960. Teniendo en cuenta que se trata de una opción pedagógica de
voluntaria adopción por los centros y de libre elección por los padres o, en su caso, por
los alumnos, bajo ningún concepto habría discriminación alguna por razón de sexo.
Tal modelo pedagógico, como bien apunta el Tribunal Constitucional, no puede
ser valorado por él, pues no es su competencia, por lo que el sistema de educación
diferenciada por sexos, en tanto en cuanto es una opción pedagógica, no puede ser
considerada como discriminatoria.
En relación a la segunda pretensión, y en relación a la “gratuidad” de la educación
en los centros privados, la respuesta del TC vuelve a ser negativa para los impugnantes y
deja patente en la Sentencia que no se vulnera ninguno de los derechos que se aducen.
Atendiendo a la normativa vigente, afirma el TC que no se “desprende en modo alguno
una prohibición de ayuda a los centros docentes que utilicen como método pedagógico
la educación diferenciada” y que “los centros de educación diferenciada podrán acceder
al sistema de financiación pública en condiciones de igualdad con el resto de los centros
educativos”.
Las ayudas públicas, según establece el artículo 27.9 de la CE, deben ser
configuradas atendiendo al principio de igualdad, precepto que establece, a su vez que
“los poderes públicos ayudarán a los centros docentes que reúnan los requisitos que la
Ley establezca”, pues “la enseñanza básica es obligatoria y gratuita”, por lo que la
“gratuidad” no se aplica sólo a la escuela pública, pues se estaría impidiendo la
posibilidad real de elegir la enseñanza básica en los centros privados y las ayudas
públicas, a las que se refiere el artículo 27 en su apartado 9 de la Constitución, serán
configuradas en el respeto al principio de igualdad, sin la posibilidad de establecer un
tratamiento diferente entre ambos modelos pedagógicos tal y como se dejó patente en la
STC 86/1985, fundamento jurídico número 3.
23
STC 34/1987, de 19 de noviembre, en su fundamento jurídico número 3.
19
Rubén Miranda Gonçalves
4) Conclusiones
El derecho a la educación es un derecho humano que aparece recogido en la
mayor parte de textos internacionales, garantizándose la gratuidad de la educación
primaria, si bien es cierto que son muchos los países que ofrecen la gratuidad incluyendo
la educación superior. No obstante, en base a la legislación internacional, todos los
Estados que forman parte de la ONU están obligados a ofrecer una educación primaria
gratuita, sin ningún tipo de discriminación, contribuyendo así a que la sociedad será más
inteligente y más igualitaria, características que ayudarán a prosperar un país,
orientándose hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su
dignidad.
Este derecho debe fortalecer el respeto por los derechos humanos y las libertades
fundamentales, capacitando a todas las personas para participar en una sociedad libre,
favoreciendo la tolerancia, comprensión, amistad y respeto sin discriminación de ningún
tipo.
El Tribunal Constitucional español tuvo que pronunciarse si la segregación de los
alumnos por razón de sexo en los colegios privados era discriminatoria, fallando que no
atentaba de forma alguna al derecho recogido en el artículo 14 de la Constitución
española y que, además, el Estado podría financiar la educación primaria en los colegios
privados que cumplan los requisitos estipulados por la legislación vigente, pues de lo
contrario, sí habría discriminación.
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20
El derecho a la educación como derecho humano…
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TOMASEVSKI, K. Manual on rights-based education: global human rights
requirements made simple, UNESCO Bangkok, Bangkok, 2004, p. 6.
21
BREVES NOTAS SOBRE A TRAMITAÇÃO DO
PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Patrícia Anjos Azevedo1
1) Introdução; generalidades
A obrigatoriedade de pagamento do imposto (ou de outros tributos) não depende
da vontade do particular (que constitui o sujeito passivo da relação jurídica tributária),
sendo que o imposto é exigido pelo Estado (enquanto sujeito ativo dessa relação),
independentemente da vontade do contribuinte (nisto consiste o princípio da
indisponibilidade da relação jurídica tributária – cfr. art.º 36.º, n.º 2 da Lei Geral
Tributária).
Mais concretamente, quando o sujeito passivo originário (ou outro responsável
tributário – cfr. art.ºs 22.º e seguintes da Lei Geral Tributária) não pague o tributo dentro
do prazo legal, será desencadeado, por parte Autoridade Tributária e Aduaneira (AT),
um processo próprio, para efeitos da respetiva cobrança coerciva, que terá como base
num título executivo, que se trata – fundamentalmente – de um documento que atesta a
existência da dívida (cfr. art.º 88.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário).
Ora, na falta de pagamento voluntário, o credor (sujeito ativo) tem o direito de
exigir judicialmente do devedor (sujeito passivo) o cumprimento da obrigação tributária,
requerendo, para tal, a execução do património do devedor.
Destarte, a AT pode, nos termos dos artigos 148.º e seguintes do Código de
Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) português, instaurar um processo de
execução fiscal com vista a obter o pagamento coercivo das dívidas tributárias, podendo
então recorrer à alienação dos bens ou direitos do devedor, por forma a obter
coercivamente o montante em dívida, ao qual acrescem juros de mora, eventuais coimas,
custas e outros2.
Face ao exposto, convém ainda esclarecer que o objetivo deste nosso contributo
será essencialmente apresentar a tramitação do complexo processo de execução fiscal,
tendo em conta que, neste processo, concorrem uma fase administrativa (ou pré1 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Auxiliar
Convidada no ISMAI. Professora Adjunta Convidada no IPMAIA. Membro da Comissão Científica do N2i –
Núcleo de Investigação do IPMAIA. Investigadora do I2J (Instituto de Investigação Jurídica) da Faculdade
de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Membro efetivo do CEOS.PP (Centro de
Estudos Organizacionais e Sociais do Politécnico do Porto). Advogada. Juiz-Árbitro CAAD (Direito
Administrativo).
2 Para maiores desenvolvimentos sobre o processo de execução fiscal, cfr. os seguintes contributos:
CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013;
FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015;
MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena
Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017; ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de
Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de
Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011.
Patrícia Anjos Azevedo
jurisdicional) e uma fase jurisdicional, das quais resultam atos de natureza
administrativa (praticados pelos órgãos da AT) e atos de natureza jurisdicional
(praticados pelo Tribunal). São exemplos de atos praticados pelo Tribunal os seguintes:
a decisão da oposição à execução; os incidentes e os embargos de terceiro. Os atos
praticados pelos órgãos da administração tributária consistem, por exemplo, na
instauração da execução; na citação do executado; na autorização para pagamento em
prestações; ou, ainda, na reversão da execução, que consiste na imputação de
responsabilidade tributária, no âmbito do processo, ao responsável subsidiário.
2) Instauração da execução e citação do executado
A instauração da execução é efetuada via eletrónica, pelo órgão da execução fiscal,
que ordenará a citação do executado [art.ºs 10.°, n.° 1, alínea f) e 188.º, ambos do CPPT].
O processo de execução deve ser instaurado na área do domicílio ou sede do devedor, da
situação dos bens ou da liquidação, salvo tratando-se de coima fiscal e respetivas custas,
caso em que é competente o órgão periférico local da área onde tiver corrido o processo
da sua aplicação (art.º 150.º, n.º 3 do CPPT).
Se estiverem pendentes, no órgão da execução fiscal, várias certidões de dívida do
mesmo devedor, estas deverão ser autuadas conjuntamente e dar lugar a um único
processo de execução fiscal.
Instaurada a execução mediante despacho a lavrar no(s) respetivo(s) título(s)
executivo(s), no prazo de 24 horas após o recebimento e efetuado o registo, o órgão da
execução fiscal ordena a citação do executado (n.º 1 do art.º 188.º do CPPT). Se o
processo for instaurado por via eletrónica, serão de imediato efetuadas citações, nos
termos do n.º 3 do art.º 188.º do CPPT.
A citação é o ato destinado a dar conhecimento ao executado de que foi proposta
contra si determinada execução ou a chamar a esta, pela primeira vez, os responsáveis
subsidiários. O ato de citação é ordenado pelo órgão da execução fiscal e tem de ser
sempre acompanhado de uma nota indicativa quanto aos meios e prazos de que o
executado dispõe para tutela e defesa dos seus direitos legalmente protegidos. A citação
deve conter o prazo para que o executado possa deduzir oposição à execução, bem com o
prazo para requerer o pagamento em prestações (que pode ser requerido até à marcação
da venda) ou a dação em pagamento (art.º 189.º do CPPT).
As citações via postal previstas no art.º 191.º do CPPT podem ser efetuadas por
transmissão eletrónica de dados, valendo como citação pessoal – art.º 191.º, n.º 4 do
CPPT. A citação efetuada por transmissão eletrónica de dados considera-se realizada no
momento em que o destinatário acede à caixa postal eletrónica. Caso o contribuinte não
aceda à caixa postal eletrónica, a citação considera-se efetuada no 25.º dia posterior ao
seu envio – n.º 6 do art.º 191.º do CPPT. A presunção de citação pode ser ilidida pelo
citando quando ocorra em data posterior à presumida e o contribuinte comprove que
24
Breves notas sobre a tramitação do processo...
comunicou a alteração da caixa postal eletrónica, nos termos do art.º 43.º do CPPT – cfr.
n.º 7 do art.º 191.º do CPPT.
Sendo o executado ou o responsável subsidiário citados, estes poderão deduzir
oposição à execução (cfr. art.ºs 203.º e ss do CPPT), requerer o pagamento em prestações
ou requerer a dação em pagamento (art.º 189.°, n.º 1 do CPPT).
A citação interrompe o prazo de prescrição dos tributos (art.º 49.°, n.° 1 da LGT). A falta
de citação constitui uma nulidade insanável no processo [art.º 165.°, n.° 1, alínea
a) do CPPT].
Quanto às exigências formais da citação, esta pode ser pessoal, postal ou edital.
A citação mediante via postal simples verifica-se em todos os processos cuja
quantia exequenda não exceda 500 unidades de conta3 (art.º 191.°, n.° 1 do CPPT),
exceto: (a) nos casos de responsabilidade subsidiária ou solidária, (b) nos casos em que
haja necessidade de proceder à venda de bens e (c) nos casos em que o órgão da execução
fiscal a considerar mais eficaz para a cobrança da dívida, em que a citação será sempre
pessoal (art.º 191.°, n.º 3 do CPPT).
A citação via postal será registada quando a dívida exequenda for superior a 50
vezes a unidade de conta (cfr. art.º 191.º, n.º 2 do CPPT).
A citação pessoal é feita mediante (cfr. art.º 225.º, n.º 2 do Código de Processo
Civil – CPC): (a) transmissão eletrónica de dados; (b) entrega ao citando de carta
registada com aviso de receção, seu depósito nos termos do n.º 5 do art.º 229.º do CPC,
ou certificação da recusa de recebimento, nos termos do n.º 3 do art.º 229.º do CPC; (c)
contacto pessoal do agente de execução ou do funcionário judicial com o citando.
As pessoas coletivas são citadas através da sua caixa postal eletrónica ou na
pessoa de um dos seus administradores ou gerentes, na sua sede, na residência destes ou
em qualquer lugar onde se encontrem. No caso de não se efetuar a citação na pessoa do
representante, a citação realizar-se-á na pessoa de qualquer funcionário, capaz de
transmitir a citação, que se encontre na sede ou em qualquer dependência da pessoa
coletiva – cfr. art.º 41.º do CPPT e art.º 223.º, n.º 3 do CPC. A citação deve ser feita na
pessoa de um funcionário apenas caso não seja possível realizar a citação por transmissão
eletrónica de dados ou por via postal – cfr. art.º 191.º do CPPT. A citação das pessoas
coletivas através de carta registada com aviso de receção é endereçada para a sede da
citanda, inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas
Coletivas, nos termos do art.º 246.º, n.º 2 do CPC. Se for recusada a assinatura do aviso
de receção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda,
o distribuidor postal lavra nota do incidente antes de a devolver e a citação considera-se
efetuada face à certificação da ocorrência – n.º 3 do art.º 246.º do CPC. Nos casos de
devolução, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à
citanda e advertindo-a de que a citação considera-se efetuada na data certificada pelo
3
Uma unidade de conta corresponde, atualmente, a 102 euros.
25
Patrícia Anjos Azevedo
distribuidor do serviço postal ou, no caso de ter sido deixado o aviso, no oitavo dia
posterior a essa data, presumindo-se que o destinatário teve conhecimento da citação –
art.ºs 246.º, n.º 4 e 230.º, n.º 2, ambos do CPC. Se a pessoa coletiva se encontrar em fase
de liquidação ou de insolvência, a citação tem de ser efetuada na pessoa do liquidatário
judicial – cfr. art.ºs 181.º e 41.º, n.º 3, ambos do CPPT. A citação deve conter os
elementos previstos no art.º 163.º, n.º 1 do CPPT.
Nos casos de citação postal ou por transmissão eletrónica de dados, conforme
previsto no art.º 191.º do CPPT, se o postal não vier devolvido ou, sendo devolvido, não
se conhecer a nova morada do executado, e ainda em caso de não acesso à caixa postal
eletrónica, proceder-se-á logo à penhora (art.º 193.°, n.° 1 do CPPT), podendo ainda
citar-se o executado pessoalmente, com a indicação de que se não efetuar o pagamento
ou se não deduzir oposição no prazo de 30 dias, será designado dia para a venda (n.°s 2
e 4 do art.º 193.º do CPPT).
Se a citação por via postal não for efetuada, procede-se à extração de carta
precatória para que o órgão da execução fiscal deprecado proceda à citação e/ou à
penhora dos bens (cfr. art.ºs 185.º e 186.º, ambos do CPPT). A carta precatória pode ser
emitida no caso de citação, penhora que não seja de dinheiro ou outros valores
depositados à ordem de qualquer autoridade, inquirição ou declarações (art.º 185.º, n.º
1 do CPPT). A carta precatória deve ser cumprida no prazo de 60 dias posteriores ao da
sua entrada no órgão de execução fiscal deprecado (n.º 8 do art.º 24.º do CPPT). Na carta
precatória indicar-se-á a proveniência e o montante da dívida, incluindo juros de mora e
custas (n.º 1 do art.º 186.º do CPPT). Poderá não ter lugar o envio de carta precatória se
for mais vantajoso para a execução e o órgão da execução fiscal a ser deprecado fizer
parte da área do órgão regional em que se integra o órgão da execução fiscal deprecante
(n.º 3 do art.º 186.º do CPPT). Caso não seja conhecida a nova morada do executado,
proceder-se-á à citação edital, devendo constar dos éditos a natureza dos bens
penhorados, o prazo de pagamento e oposição, bem como a data e o local designados
para venda dos bens (cfr. n.º 8 do art.º 192.º do CPPT).
A citação pode ainda ser feita na pessoa do legal representante do executado, nos
termos do art.º 190.º, n.º 5 do CPPT, ou na pessoa do mandatário constituído pelo
citando, com poderes especiais, mediante procuração passada há menos de 4 anos, nos
termos do art.º 225.º, n.º 5 do CPC. A citação que seja realizada em pessoa diversa do
citando é equiparada à citação pessoal, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o
citando dela teve conhecimento – cfr. n.º 4 do art.º 225.º do CPC. Quando a citação tenha
sido efetuada em pessoa diversa do citando, este beneficia de um prazo de dilação de 5
dias. Tal situação ocorre quando a citação tenha sido feita em nome de uma qualquer
pessoa que se encontre na residência ou no local de trabalho do citando e aquele declare
estar em condições de a entregar prontamente ao citando – cfr. art.º 228.º, n.º 2 do CPC.
Esta situação também ocorre no caso de a citação ser feita na pessoa de um terceiro capaz
de a transmitir ao citando ou, não sendo possível obter a colaboração de terceiros, a
citação é feita mediante afixação no local mais adequado e na presença de duas
26
Breves notas sobre a tramitação do processo...
testemunhas da nota de citação, declarando-se que o duplicado da citação e os
documentos anexos ficam à disposição do citando na secretaria judicial – art.º 232.º,
n.ºs 2 e 4 do CPC. Quando o executado se recuse a assinar a certidão ou a receber o
duplicado, o agente de execução dá-lhe conhecimento de que o mesmo fica à sua
disposição na secretaria judicial. A secretaria também notifica o citando, enviando-lhe
carta registada com a indicação de que o duplicado da citação se encontra à sua
disposição naqueles serviços – n.ºs 4 e 5 do art.º 231.º do CPC.
Quando a citação seja efetuada em pessoa diversa do citando ou tenha sido feita
mediante a fixação da nota de citação no local mais adequado e na presença de duas
testemunhas, sempre que não seja possível obter a colaboração de terceiros, é ainda
enviada pelo órgão da execução fiscal, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao
citando, comunicando-lhe: (a) a data e o modo por que o ato se considera realizado; (b)
o prazo para a defesa e as cominações aplicáveis à falta desta; (c) o destino dado ao
duplicado (da citação); e (d) a identidade da pessoa em quem a citação foi realizada –
cfr. art.º 233.º do CPC.
Por sua vez, a citação edital, de caráter excecional, terá lugar nos casos de
desconhecimento da residência, pessoa em parte incerta e devolução de carta ou postal
(art.º 192.°, n.° 4 do CPPT) e não depende do valor da dívida exequenda, sendo efetuada
através de éditos afixados no órgão da execução fiscal da residência do citando e
publicados em dois números seguidos de um dos jornais mais lidos nesse local ou no
portal das finanças (art.º 192.º, n.ºs 7 e 8 do CPPT). Esta citação não depende do valor
da dívida exequenda, mas do facto de não ser conhecida a residência do executado ou
este se encontrar em parte incerta. Quanto ao conteúdo dos editais, estes devem conter
a natureza dos bens penhorados, o prazo de pagamento e de oposição, bem como a data
e o local designados para a venda, sendo estes afixados na porta da última residência ou
sede do citando – cfr. art.º 192.º, n.º 8 do CPPT. A publicação dos editais ou anúncios é
feita a expensas do executado, entrando as despesas em regras de custas – cfr. art.º 31.º,
n.º 1 do CPPT. Os editais e anúncios publicados são juntos aos restantes documentos do
processo de execução fiscal, com indicação da data e custo da publicação – cfr. art.º 31.º,
n.º 2 do CPPT. A citação considera-se realizada no dia da publicação do anúncio ou, na
falta de anúncio, no dia em que seja afixado o edital – art.ºs 241.º e 242.º do CPC.
Quando a citação é efetuada através de edital, acresce um prazo de dilação de 30 dias,
nos termos do art.º 245.º, n.º 3 do CPC, findo o qual começa a contar o prazo para
deduzir oposição à execução.
Relativamente às exigências substanciais, a citação deverá conter os seguintes
elementos: (i) menção do órgão da execução fiscal; (ii) data em que foi emitido o título;
(iii) nome e domicílio do(s) devedor(es); (iv) natureza, montante e proveniência da
dívida – cfr. alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do art.º 163.º do CPPT. Em alternativa, a citação
deve ser acompanhada de cópia do título executivo (cfr. art.º 190.º, n.º 1 do CPPT) e
deverá ainda conter a nota indicativa do prazo para oposição, para pagamento em
prestações ou para dação em pagamento, bem como a indicação de que a suspensão da
27
Patrícia Anjos Azevedo
execução e a regularização da situação tributária dependem da efetiva existência de
garantia idónea (art.º 189.°, n.° 1 do CPPT e art.º 190.º, n.º 2 do CPPT).
Se correrem contra o mesmo executado várias execuções fiscais, estas poderão
ser apensadas, desde que tal não comprometa a eficácia da execução. Esta apensação
pode ser feita oficiosamente ou a pedido dos interessados, sendo cada vez mais frequente
que os executados requeiram a apensação, com vista ao pagamento da dívida em
prestações. A apensação pode verificar-se na fase da instauração, da citação ou da
penhora dos bens. O órgão de execução fiscal deverá desapensar os processos sempre
que se verifique um prejuízo para o andamento do processo, tal como sucede no caso de
oposição à execução, de reclamação graciosa ou de impugnação judicial. Neste caso,
desapensa-se o processo objeto de oposição à execução, de reclamação graciosa ou de
impugnação judicial, que deve ficar suspenso, mantendo-se apensados os restantes
processos.
3) A penhora
A penhora consiste num ato de apropriação de bens do património do executado
por parte do tribunal, o qual ocorre findo o prazo posterior à citação sem ter sido efetuado
o devido pagamento (n.º 1 do art.º 215.º do CPPT). Todos os bens do devedor, que sejam
suscetíveis de penhora, podem ser executados (cfr. art.º 735.º do CPC). Também podem
ser penhorados bens de terceiros, nos termos do art.º 747.º do CPC, que prevê que os
bens do executado que se encontrem em poder de terceiros podem ser apreendidos, “(…)
sem prejuízo, porém, dos direitos a que este seja lícito opor ao exequente.” (cfr. n.º 1 do
art.º 747.º do CPC). Existem regras relativas às penhoras, conforme exporemos adiante.
A penhora deve ser realizada logo que se torne possível a prática de tal ato,
devendo ser efetuada pela via mais célere e mais eficiente, como é o caso da penhora por
via eletrónica (n.º 2 do art.º 215.º do CPPT). A AT pode assim aceder, por via eletrónica,
a bens ou direitos de devedores suscetíveis de penhora, quer através de elementos
existentes nos seus registos, quer de elementos inscritos na contabilidade da empresa
(n.º 5 do art.º 215.º do CPPT). Com a penhora por via eletrónica, pretende-se introduzir
uma maior celeridade na efetivação da penhora.
Todavia, existem situações em que não é possível proceder à penhora dos bens
através de meios eletrónicos, em que se torna indispensável a apreensão dos bens pelo
próprio funcionário da AT. O funcionário incumbido de tais diligências deverá estar
devidamente credenciado, através de mandado de penhora. O funcionário terá de efetuar
diligências para identificar e localizar os bens a penhorar ao executado, os quais, sendo
bens móveis, deverão ser removidos para um depósito público ou para o órgão da
execução fiscal. No caso de não existirem instalações que permitam o armazenamento
dos bens, tal obriga a que o funcionário tenha de nomear um depositário, podendo a
escolha recair sobre o próprio executado.
28
Breves notas sobre a tramitação do processo...
Sempre que a penhora não seja efetuada nas instalações do órgão da execução
fiscal, a diligência considera-se efetuada na data em que for lavrado o respetivo auto, no
qual se regista o dia, hora e local da diligência, se indica o valor da execução, se
identificam dos bens por verbas, o seu estado de conservação e o seu valor aproximado,
bem como as obrigações e a responsabilidade a que está vinculado o depositário (cfr.
art.ºs 756.º e 766.º, ambos do CPC).
A penhora não recai sobre todo o património do executado, mas apenas sobre
bens determinados. Portanto, impõe-se que sejam nomeados bens à penhora (art.º 215.°,
n.° 4 do CPPT). O órgão da execução fiscal tem o direito de nomear e escolher os bens
sobre os quais deve incidir a penhora, podendo esta incidir sobre todos os bens do
devedor que sejam suscetíveis de penhora (cfr. art.º 601.º do Código Civil). O exequente
pode ainda admitir à penhora bens indicados pelo executado, desde que não resulte
prejuízo para a AT (art.º 215.º, n.º 4 do CPPT). Esta possibilidade de o executado nomear
bens à penhora processa-se nos termos do n.º 4 do art.º 199.º do CPPT. Sendo
penhorados os bens, não pode o executado dispor deles livremente. Podem também ser
penhorados bens de terceiros, nos termos do art.º 215.º, n.º 3 do CPPT e do art.º 747.º
do CPC, ou ainda bens do executado, que se encontrem e poder de terceiro (art.º 747.º,
n.º 1 do CPC). Assim, no ato de apreensão, importa verificar se o terceiro tem os bens em
seu poder por via de penhor ou de direito de retenção e, neste caso, poder proceder de
imediato à sua citação – cfr. n.º 2 do art.º 747.º do CPC.
Na realização da penhora, o funcionário da AT deve apenas penhorar os bens
suficientes para o pagamento da dívida (cfr. art.º 217.º do CPPT), de acordo com o
princípio da proporcionalidade. Deve ser considerado o valor dos bens penhorados,
podendo ser realizadas tantas penhoras quantas as necessárias, não sendo de excluir a
possibilidade da penhora de bens que tenham já sido penhorados noutras execuções.
Contudo, existem bens que são impenhoráveis e outros que o são apenas em
determinadas circunstâncias, de acordo com os art.ºs 736.º e ss do CPC.
Em cada momento, o órgão da execução fiscal deve decidir a suficiência dos bens
penhorados, considerar o valor dos bens penhorados, determinar o valor dos créditos
reclamados e as garantias do credor.
A penhora encontra-se sujeita a regras. Quanto aos limites quantitativos, refere o
art.º 217.° do CPPT, sobre a extensão da penhora, que é efetuada a penhora sobre os bens
suficientes para o pagamento da dívida. Contudo, quando o produto dos bens
penhorados for insuficiente para o pagamento da dívida, a execução prossegue em outros
bens.
Relativamente aos bens prioritariamente a penhorar, a penhora começa pelos
bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e sejam adequados ao montante
da dívida (n.º 1 do art.º 219.º do CPPT). No caso de dívida com privilégio e, na falta de
bens a penhorar, a penhora começa pelos bens a que o privilégio respeitar (n.º 2 do art.º
219.º do CPPT). Se a dívida tiver garantia real que onere bens do devedor, a penhora
começará por estes bens e só prosseguirá noutros bens quando sejam insuficientes os
29
Patrícia Anjos Azevedo
primeiros (n.º 4 do art.º 219.º do CPPT).
Finalmente, em termos de formalidades, existem regras específicas para: a
penhora de bens móveis em geral (art.º 221.° do CPPT), a penhora de bens móveis
sujeitos a registo (art.º 230.º do CPPT), a penhora de bens imóveis (art.º 231.° do CPPT),
a penhora de automóveis de aluguer (art.º 222.° do CPPT), a penhora de dinheiro ou
valores depositados (art.º 223.° do CPPT), a penhora de créditos (art.º 224.° do CPPT),
a penhora de partes sociais ou quotas (art.º 225.° do CPPT), a penhora de títulos de
crédito emitidos por entidades públicas (art.º 226.° do CPPT), a penhora de abonos,
vencimentos (funcionários públicos) ou salários (entidades privadas) (art.º 227.° do
CPPT), a penhora de outros rendimentos (art.ºs 228.° e 229.°, ambos do CPPT) e a
penhora do direito a bens indivisos (art.º 232.º do CPPT).
Relativamente à penhora de abonos, vencimentos ou salários, são impenhoráveis
dois terços da parte líquida destes valores (cfr. n.º 1 do art.º 738.º do CPC). Esta penhora
é determinada pelo órgão da execução fiscal que, para efeitos de apuramento da parte
líquida das prestações referidas, apenas considera os descontos legalmente obrigatórios
(art.º 738.º, n.º 2 do CPC). Esta impenhorabilidade tem como limite máximo o montante
equivalente a três salários mínimos nacionais, à data de cada apreensão e, como limite
mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito não seja de
alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional (cfr. art.º 738.º, n.ºs 3
e 4 do CPC).
4) Convocação de credores e verificação, graduação e
reclamação dos créditos
Após a penhora, segue-se a fase da convocação dos credores do executado (por
meio de citação) para que possam, se for caso disso, reclamar os seus créditos (cfr. art.º
245.º, n.º 2 do CPPT). Esta citação visa garantir o concurso de credores, nos termos do
art.º 604.º do Código Civil, que determina que, “não existindo causas legítimas de
preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos
bens do devedor, quando ele não chega para integral satisfação dos débitos.” (n.º 1 do
art.º 604.º do Código Civil). “São causas legítimas de preferência (…) o consignação de
rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção” (n.º 2 do art.º
604.º do Código Civil).
Para reclamar os seus créditos no processo de execução fiscal, o credor deve gozar
de garantia real sobre os bens penhorados e estar munido de um título exequível, como
prova da existência de um crédito (cfr. art.º 788.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Os credores
titulares de garantia real podem ser conhecidos ou desconhecidos, sendo os primeiros
citados através de carta registada com aviso de receção ou através de transmissão
eletrónica de dados, que vale como citação pessoal, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do art.º
191.º do CPPT. Quanto aos desconhecidos, estes são citados por éditos de dez dias, de
30
Breves notas sobre a tramitação do processo...
acordo com o previsto no n.º 2 do art.º 239.º do CPPT. A convocação dos credores
conhecidos ou desconhecidos só pode ter lugar quando exista, no processo de execução
fiscal, informação concreta sobre direito real de garantia a favor daqueles sobre os bens
penhorados, sem prejuízo de reclamação pelos credores, no prazo de 15 dias após a sua
citação, nos termos do n.º 1 do art.º 240.º do CPPT.
O órgão da execução fiscal só procede à convocação dos credores quando dos
autos conste a existência de direito real de garantia sobre os bens penhorados (art.º
240.º, n.º 3 do CPPT). Esta garantia real apenas inclui o penhor, a hipoteca e o direito
de retenção.
É também citado o cônjuge do executado na execução para cobrança de coimas
ou dívidas tributárias da responsabilidade tributária exclusiva de um dos cônjuges (art.º
220.º do CPPT) ou ainda quando a penhora incida sobre bens imóveis ou móveis sujeitos
a registo (art.º 239.º, n.º 1 do CPPT). O cônjuge é citado, nos termos do art.º 239.º, n.º
1 do CPPT, para pagar a dívida exequenda, requerer o pagamento em prestações, oferecer
bens em pagamento ou deduzir oposição à execução, beneficiando assim dos mesmos
direitos processuais que o devedor originário (cfr. art.º 787.º, n.º 1 do CPC). O cônjuge
passa assim a ser co-executado e, por isso, não pode deduzir embargos de terceiros, só
podendo deduzir oposição ou apresentação reclamação, nos termos do art.º 276.º do
CPPT. Na eventualidade de ter sido deduzido embargo, este pode ser convolado em
reclamação se tiver sido deduzido no prazo de 10 dias, previsto no n.º 1 do art.º 277.º do
CPPT.
Os credores que gozem de garantia real podem reclamar os seus créditos no prazo
de 15 dias após a citação – cfr. art.º 240.º, n.º 1 do CPPT. “Os chefes dos serviços
periféricos locais da área do domicílio fiscal da pessoa a quem foram penhorados os
bens e da situação dos imóveis ou do estabelecimento comercial ou industrial onde não
corra o processo” apresentam, no prazo de 15 dias a contar da citação, certidão de dívidas
que devam ser reclamadas – art.º 241.º, n.º 1 do CPPT. O chefe do serviço periférico local
onde correr o processo junta ao mesmo, no prazo de 10 dias a contar da penhora, a
certidão de dívidas. Por último, qualquer credor com garantia real pode reclamar
espontaneamente o seu crédito na execução até à transmissão dos bens penhorados –
cfr. n.º 4 do art.º 240.º do CPPT.
A reclamação, verificação e graduação de créditos deve processar-se por apenso
ao processo de execução fiscal (cfr. n.º 8 do art.º 788.º do CPC). Os credores podem
reclamar da verificação e graduação de créditos, nos termos do art.º 276.º do CPPT,
tendo esta reclamação efeitos suspensivos e subida imediata para o tribunal tributário de
primeira instância (n.º 4 do art.º 245.º do CPPT). Os processos que tenham subido ao
tribunal tributário de primeira instância, em virtude da reclamação da decisão do órgão
da execução fiscal, para decisão da verificação e graduação de créditos, são devolvidos ao
órgão da execução fiscal após o trânsito em julgado da decisão (art.º 247.º, n.º 1 do
CPPT). Esta reclamação encontra-se sujeita ao pagamento de uma taxa de justiça, nos
termos previstos no Regulamento das Custas dos Processos Tributários (RCPT),
31
Patrícia Anjos Azevedo
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 29/98, de 11 de fevereiro. A taxa de justiça é devida pelo
credor reclamante e é liquidada de acordo com os valores constantes da tabela a que se
refere o art.º 9.º, n.º 4 do RCPT. As custas a suportar pelo credor abrangem também os
encargos relativos ao reembolso das despesas referidas no art.º 20.º, n.º 1, alíneas a) a f)
do RCPT.
A reclamação de créditos é formulada por cada credor, sendo que o crédito
exequendo (que é exigido no processo de execução em que está a ser feita a venda dos
bens) não carece de ser reclamado – n.º 2 do art.º 240.º do CPPT. Os créditos
exequendos em sede de IRS e de IRC beneficiam de privilégio imobiliário sobre os bens
existentes no património do sujeito passivo à data da penhora. Todavia, estes créditos,
quando sejam em sede de IVA, não gozam de privilégio imobiliário, encontrando-se
apenas garantidos pela penhora do imóvel efetuada, o que lhes confere o direito de
preferência sobre qualquer outro credor que não detenha garantia real anterior – cfr. n.º
1 do art.º 822.º do Código Civil.
A verificação e graduação dos créditos é feita pelo órgão de execução fiscal, que
procede à notificação de todos os credores reclamantes (n.º 2 do art.º 245.º do CPPT).
Esta verificação e graduação é prévia à realização da venda dos bens penhorados,
apresentando “efeito suspensivo quanto ao seu objeto, sem prejuízo do andamento da
execução fiscal até à venda dos bens” – cfr. art.º 245.º, n.º 1 do CPPT. Depois de
realizada a venda, são efetuados os pagamentos de acordo com a graduação dos créditos
reclamados. Até ao momento da venda, o executado pode proceder ao pagamento da
dívida exequenda e acrescido, extinguindo-se o processo de execução fiscal e o
procedimento de verificação e graduação dos créditos.
Quanto à graduação dos créditos, esta deve ser feita em relação a cada um dos
bens penhorados pelo facto de a garantia atribuída a cada um deles poder ser diferente
de um bem para outro. Compete ao órgão da execução fiscal analisar os elementos
respeitantes ao crédito e à garantia real. No caso de insuficiência ou irregularidade, o
órgão da execução fiscal deve notificar o credor para que este, no prazo de 10 dias a contar
da notificação, supra a falta, sob pena de uma eventual reclamação não poder ser
admitida – cfr. art.º 23.º do CPPT. Na graduação de créditos não é admitida a reclamação
de créditos do credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário quando a
penhora tenha incidido sobre um bem apenas parcialmente penhorável, nos termos do
art.º 738.º do CPC, renda, outro rendimento periódico, veículo automóvel ou bens
móveis de valor inferior a 25 UC; ou, sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a
penhora tenha incidido sobre moeda corrente, nacional ou estrangeira, ou depósito
bancário em dinheiro; ou, sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, este requeira
a consignação de rendimentos ou a adjudicação, em dação em cumprimento, do direito
de crédito no qual a penhora tenha incidido, antes de convocados outros credores – cfr.
art.º 788.º, n.º 4, alíneas a), b) e c) do CPC.
Os créditos exequendos e outros créditos reconhecidos gozam de privilégios
gerais, de privilégios especiais, de hipoteca, de penhora, de penhor e outras garantias
32
Breves notas sobre a tramitação do processo...
reais, de acordo como o previsto nos art.os 735 e ss do Código Civil.
A decisão do órgão de execução fiscal quanto à graduação do crédito deve
notificado a todos os credores reclamantes e ao executado, com a indicação de que os
credores podem, no prazo de 10 dias, reclamar para o juiz do Tribunal Tributário no
prazo de 10 dias, nos termos do art.º 278.º, n.º 3, al. e) do CPPT. O tribunal pode ser
chamado, em sede de reclamação da decisão do órgão de execução fiscal, a verificar e
graduar os créditos reclamados (art.º 247.° do CPPT). Este processo de verificação e
graduação de créditos tem efeito suspensivo quanto ao seu objeto, sem prejuízo do
andamento da execução fiscal até à venda dos bens (art.º 245.°, n.° 1 do CPPT). Os
processos que tiverem subido para o tribunal tributário de 1ª instância são depois
devolvidos ao órgão da execução fiscal após o trânsito em julgado da decisão (art.º 247.º,
n.º 1 do CPPT). Na reclamação é observado as disposições do Código de Processo Civil,
sendo apenas admitido prova documental (art.º 246.°, n.º 1 e 2 do CPPT).
5) Venda dos bens penhorados
A decisão do órgão da execução fiscal que determine a venda dos bens
penhorados deve ser devidamente fundamentada, com a indicação dos motivos que
levaram a esta decisão, por forma a que o executado possa exercer a sua defesa, tendo
em conta os elementos produzidos na decisão. Os bens são vendidos para que o produto
da venda seja atribuído ao credor exequente.
A venda dos bens penhorados realizar-se-á após o termo do prazo de reclamação
de créditos (cfr. art.º 244.°, n.º 1 do CPPT), em função da graduação dos créditos e de
acordo com o mapa de liquidação elaborado pelo órgão da execução fiscal.
Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a
habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar quando o
mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim (art.º 244.º, n.º 2 do CPPT).
Esta proibição de venda não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se
enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio
urbano destinado a habitação própria e permanente em sede de IMT, cujo VPT não seja
superior a € 574.323 – cfr. art.º 17.º do CIMT – (art.º 244.º, n.º 3 do CPPT). A venda só
pode ocorrer no ano após o termo do prazo para pagamento voluntário da dívida mais
antiga (art.º 244.º, n.º 4 do CPPT).
A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não impede a prossecução da penhora
e venda dos demais bens do executado, tais como contas bancárias, automóveis e outros
bens (art.º 244.º, n.º 5 do CPPT).
O impedimento da venda pode cessar a pedido do executado, que pretenda que a
sua habitação seja vendida para satisfação do crédito à Fazenda Pública (art.º 244.º, n.º
6 do CPPT).
33
Patrícia Anjos Azevedo
A venda é feita preferencialmente por meio de leilão eletrónico ou, na sua
impossibilidade, por meio de propostas em carta fechada (art.º 248.° do CPPT),
cumprindo-se o disposto nos art.ºs 248.° e ss do CPPT quanto aos procedimentos no
âmbito da venda.
A venda por leilão eletrónico decorre durante 15 dias, sendo o valor base o
correspondente a 70% do determinado nos termos do art.º 250.º do CPPT (cfr. art.º
248.º, n.º 2 do CPPT), que determina que: nos imóveis urbanos, o valor base é o VPT –
alínea a) do n.º 1 do art.º 250.º do CPPT; nos imóveis rústicos, o valor patrimonial é
atualizado com base nos fatores de correção monetária – alínea b) do n.º 1 do art.º 250.º
do CPPT; nos bens móveis, pelo valor que lhes tenha sido atribuído no auto de penhora,
salvo se outro for apurado pelo órgão de execução fiscal – alínea c) do n.º 1 do art.º 250.º
do CPPT.
Na ausência de propostas, a venda é feita mediante propostas em carta fechada,
que decorre durante 15 a 20 dias, sendo o valor base reduzido para 50% do previsto no
art.º 250.º do CPPT (n.º 3 do art.º 248.º do CPPT). Não sendo apresentadas quaisquer
propostas, é aberto um novo leilão eletrónico durante 15 dias, sendo adjudicado o bem à
proposta de valor mais elevado (n.º 4 do art.º 248.º do CPPT). Os procedimentos da
venda dos bens por leilão eletrónico estão fixados na Portaria n.º 219/2011, de 1 de junho.
Os bens devem estar patentes no local indicado, pelo menos até ao dia e hora
limites para receção das propostas, sendo o depositário obrigado a mostrá-los a quem
pretende examiná-los (cfr. n.º 6 do art.º 249.º do CPPT).
Os titulares do direito de preferência na alienação dos bens devem ser notificados
do dia e hora da entrega dos bens ao proponente para poderem exercer o seu direito no
ato de adjudicação (n.º 7 do art.º 249.º do CPPT).
O órgão de execução fiscal pode determinar outras modalidades (extrajudiciais)
de venda dos bens penhorados. A modalidade de venda extrajudicial mais frequente é a
venda por negociação particular, que apenas deverá ocorrer nos casos previstos no art.º
252.º do CPPT, ou seja: (i) se no dia designado para a abertura de propostas se verificar
a inexistência de proponentes ou a existência de propostas de valor inferior ao valor-base
anunciado; (ii) se os bens a vender forem valores mobiliários admitidos a cotação em
bolsa; (iii) se for determinado pelo órgão de execução fiscal, que entenda que há
vantagem nesta negociação particular, dada a natureza dos bens penhorados; ou ainda
(iv) se existir urgência na venda dos bens ou estes serem de valor não superior a 40
unidades de conta (cfr. n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 252.º do CPPT).
A venda dos bens pode ser publicitada através da afixação de editais, publicação
de anúncios e divulgação na internet (cfr. Lei n.º 15/2001, de 5 de junho). A publicação
da venda através da internet está regulamentada na Portaria n.º 352/2002, de 3 de abril.
Os meios de publicação da venda devem incluir as seguintes indicações (cfr. art.º
249.º, n.º 5 do CPPT): designação do órgão por onde corre o processo; nome ou firma do
executado; identificação sumária dos bens; local, prazo e horas em que os bens podem
34
Breves notas sobre a tramitação do processo...
ser examinados; valor base da venda; designação e endereço do órgão a quem devem ser
entregues ou enviadas as propostas; data e hora limites para receção das propostas; data,
hora e local de abertura das propostas; qualquer condição prevista em lei especial para a
aquisição, detenção ou comercialização dos bens.
No momento da publicação da venda, devem ser notificados os titulares do direito
de preferência para poderem exercer o seu direito no ato da adjudicação, segundo
prescreve o n.º 7 do art.º 249.º do CPPT.
Os bens são adjudicados à proposta de valor mais elevado, tendo o adjudicado
que depositar a totalidade do preço à ordem do órgão da execução fiscal, no prazo de 15
dias a contar da decisão de adjudicação, sob pena das sanções previstas legalmente – cfr.
alínea e) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT. Nas aquisições de bens de valor superior a 500
vezes a unidade de conta, mediante requerimento fundamentado do adquirente,
entregue no prazo máximo de cinco dias a contar da decisão de adjudicação, pode ser
autorizado o depósito, no prazo referido anteriormente, de apenas parte do preço, não
inferior a um terço, obrigando-se à entrega da parte restante no prazo máximo de oito
meses – cfr. alínea f) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT.
O adquirente dos bens, ainda que demonstre a sua qualidade de credor, nunca
será dispensado do depósito do preço, nos termos da alínea h) do n.º 1 do art.º 256.º do
CPPT, salvo se se tratar do Estado, dos institutos públicos e das instituições de segurança
social, que não estão sujeitos à obrigação do depósito do preço, enquanto tal não for
necessário para pagamento de credores mais graduados no processo de reclamação de
créditos – cfr. alínea i) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT.
A venda dos bens só se torna efetiva após pagamento integral do preço e
satisfeitas as obrigações fiscais, tais como o pagamento do IMT e do IS, no caso dos bens
imóveis, ou do IVA, no caso dos bens móveis.
A venda dos bens transfere para o adquirente os direitos do executado, sobre a
coisa vendida, nos termos do n.º 1 do art.º 824.º do Código Civil. Além disso, “os bens
são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais
direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou
garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em
relação a terceiros independentemente de registo” – cfr. n.º 2 do art.º 824.º do Código
Civil.
No caso de pessoa singular, órgão da execução fiscal deve proceder à notificação
dos titulares do direito de remição, segundo o art.º 258.º do CPPT, para que possam
exercer os seus direitos. Este direito de remição é diferido ao cônjuge que não esteja
separado judicialmente de pessoas e bens, à pessoa que vive com o executado em união
de facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio), que tem o direito a adquirir os bens pelo preço
a que foram adjudicados, e aos descendentes ou ascendentes do executado – cfr. art.º
842.º do CPC – seguindo-se a ordem prevista no art.º 845.º do CPC. Este direito é
exclusivo das pessoas singulares, não assistindo este direito às pessoas coletivas, ao
35
Patrícia Anjos Azevedo
contrário do que sucede no direito de preferência.
Este direito de remição consiste, na prática, na possibilidade de remir todos os
bens adjudicados ou vendidos ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a
adjudicação ou a venda. Este direito de remição prevalece sobre o direito de preferência,
segundo o n.º 1 do art.º 844.º do CPC, garantindo assim que os bens não saiam da família
a que pertencem.
Este direito pode ser exercido nas condições seguintes (art.º 843.º, n.º 1 do CPC):
“a) No caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da
transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do artigo
825.º; b) Nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou
da assinatura do título que a documenta”. Quando o direito de remição seja exercido
depois do ato de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, o remidor deve
depositar integralmente o preço com o acréscimo de 5 % para indemnização do
proponente se este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 824.º, aplicandose, em qualquer caso, o disposto no artigo 827.º (n.º 2 do art.º 843.º do CPC). Caso
contrário, o seu direito poderá ser posto em causa.
Depois de adjudicados os bens, devem estes ser entregues ao adquirente, sendo
que este pode, com base no título de transmissão, requerer ao órgão de execução, contra
o detentor, e no próprio processo, a entrega dos bens – cfr. n.º 2 do art.º 256.º do CPPT.
Caso o órgão da execução fiscal esteja com dificuldades na entrega dos bens, pode
solicitar o auxílio das autoridades policiais para a entrega dos referidos bens ao
adquirente – cfr. n.º 3 do art.º 256.º do CPPT.
6) Conclusão; extinção da execução
O processo de execução fiscal extingue-se por (cfr. art.º 176.º, n.º 1 do CPPT):
pagamento voluntário ou coercivo da quantia exequenda e do acrescido (art.ºs 261.º a
271.º do CPPT); anulação da dívida ou do processo (art.ºs 270.º e 271.º do CPPT); ou
decurso do prazo de um ano contado da sua instauração (art.º 177.º do CPPT), o que
significa que a tramitação deve ser célere, não devendo ocorrer a prática de atos
desnecessários.
Nas execuções por coimas ou outras sanções pecuniárias, o processo executivo
extingue-se nos seguintes casos (cfr. art.º 176.º, n.º 2 do CPPT): morte do infrator;
amnistia da contraordenação; prescrição das coimas e sanções acessórias; ou anulação
da decisão condenatória.
O processo de execução fiscal só pode ser suspenso nos casos especialmente
previstos na lei, isto é, se existir uma reclamação graciosa, um recurso hierárquico, uma
impugnação judicial ou um recurso judicial que tenha por objeto a legalidade da dívida
exequenda ou ainda durante os procedimentos de resolução de diferendos no quadro da
36
Breves notas sobre a tramitação do processo...
Convenção de Arbitragem n.º 90/436/CE, de 23 de julho, relativa à eliminação da dupla
tributação em caso de correção de lucros entre empresas associadas (art.º 169.º do
CPPT). Esta suspensão requer a constituição de garantia idónea, nos termos dos art.ºs
195.º e 199.º do CPPT ou a suficiência dos bens penhorados para garantia da dívida
exequenda e acrescido.
Contudo, a execução ficará igualmente suspensa no caso de o executado estar
isento de prestar garantia, nos termos do n.º 4 do art.º 52.º da LGT, isto é, na
circunstância de a sua prestação poder causar um prejuízo irreparável ou existir falta de
meios económicos, desde que esta insuficiência ou inexistência de bens não seja da
responsabilidade do executado.
A garantia prestada para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal
caduca se a reclamação não estiver decidida no prazo de um ano a contar da data da sua
interposição (cfr. art.º 183.º-A, n.º 1 do CPPT), salvo se esse atraso resultar de motivo
imputável ao reclamante. A verificação da caducidade cabe ao órgão competente para
decidir a reclamação, devendo a decisão ser proferida no prazo de 30 dias (art.º 183.º-A,
n.º 3 do CPPT). Sempre que se verifique a caducidade da garantia por deferimento
expresso ou tácito, o órgão da execução fiscal tem de, no prazo de cinco dias, promover
o cancelamento da respetiva garantia (cfr. art.º 183.º-A, n.º 5 do CPPT).
O processo de execução fica ainda suspenso em caso de compensação de créditos
a efetuar nos termos dos art.ºs 90.º e 91.º-A do CPPT, a pedido do contribuinte ou da
AT.
Em caso de insolvência do executado, o processo de execução fiscal fica sustado
se for declarada a insolvência do executado ou encetadas negociações no âmbito do
processo especial de revitalização – cfr. art.º 180.º do CPPT.
REFERÊNCIAS
CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário,
Almedina, 2013.
FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição,
Almedina, 2015.
MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014.
NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017.
ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra
Editora, 2.ª Edição, 2008.
SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e
comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011.
Lei Geral Tributária – Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, com as posteriores
37
Patrícia Anjos Azevedo
alterações.
Código de Procedimento e de Processo Tributário – Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de
outubro, com as posteriores alterações.
Código Civil – Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, com as posteriores
alterações.
Código de Processo Civil – Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com as posteriores alterações
38
EXCLUÍDOS
PELA
GENÔMICA:
TESTES
GENÉTICOS E TUTELA DOS DIREITOS DA
PERSONALIDADE
DO
OBREIRO
COMO
EXPRESSÃO DA DIGNIDADE HUMANA
“Não somos determinados pelos nossos genes,
mas apenas influenciados por eles”
(Eliane S. Azevêdo)
Vivianne Rodrigues de Melo1
1) Introdução
O Projeto Genoma Humano, como patrimônio universal da humanidade,
resultou em uma mudança paradigmática sem precedentes, com avanços no campo da
biotecnologia em contínua expansão.
O paper é desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica e documental.
Consiste em breve estudo sobre os testes genéticos pré-admissionais e de controle, no
âmbito da relação trabalhista, e se tais avaliações podem ou não representar
discriminação e lesão aos direitos da personalidade do obreiro e consequente alijamento
dos postos de trabalho.
2) Discriminação genética
a) Avanços da Genômica na prevenção das doenças
O Projeto Genoma Humano foi concebido com o objetivo de desvendar os genes
dos seres humanos, para promover um verdadeiro mapeamento genético da espécie.
Alçado como patrimônio universal da humanidade, representa o clímax da revolução
biotecnológica, com um impacto sem precedentes, na esfera dos direitos, por buscar, de
maneira espetacular, a decodificação completa do código genético humano.
Ao longo do tempo, a moderna Genômica avança na detecção de possíveis
enfermidades, o que é considerado uma conquista científica de grande impacto na
Humanidade. O resultado dos testes genéticos do membro de uma só família pode
estampar a verdade genética de todo o resto do tronco familiar.
1 Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Especialista em Direito
Administrativo, Legislação Ambiental e em Direito Médico. Analista Judiciário do Tribunal Regional
Eleitoral de Minas Gerais
Vivianne Rodrigues de Melo
O século XX e os albores do século XXI testemunharam o avanço das pesquisas
em biotecnologia e na genética clínica, com a identificação de doenças e marcadores
genéticos. O desenvolvimento da engenharia genética possibilitou a chamada medicina
preditiva, viés mais moderno desta ciência, por significar um passo além da medicina
curativa e preventiva. Linhas gerais, a medicina preditiva centra-se na possibilidade de,
a partir de testes genéticos (nível de genótipo), avaliar a predisposição do sujeito testado
desenvolver doenças (nível fenotípico). Para LOCH (2014, p. 95) a Recomendação nº.
3/1992, do Conselho da Europa estabelece que os testes preditivos têm como objetivo:
[...] diagnosticar e classificar doenças genéticas; identificar os
portadores de genes defeituosos e proceder a um aconselhamento sobre
possível chance de terem filhos acometidos de enfermidades; fazer a detecção
de uma possível doença genética, antes mesmo de aparecerem os sintomas;
identificar pessoas com risco de adoecimento em razão de gene afetado.
Muitos estudiosos louvam os avanços da biomedicina como uma grande
conquista social, da qual não se pode abrir mão. No dizer de Nascimento (2008, s.p.) “a
predição pode trazer ao paciente a possibilidade de tratamento adequado antecipado,
pretendendo que esta enfermidade não venha a se desenvolver, ou mesmo se isto vier a
ocorrer, que aconteça de forma mais amena”.
Por outro lado, uma corrente de juristas que afirma que o Projeto Genoma
Humano e suas vertentes continuativas trouxeram um risco de discriminação genética,
visto que o indivíduo com a genética mapeada corre o risco de sofrer uma taxação
temerária. Bandeira e Scariot (2006, p. 57) alimentam um receio de “surgimento de uma
genetic under class (seres humanos de uma subclasse genética), considerada nãoempregável em razão do surgimento de uma nova forma de discriminação”.
A capacidade de diagnóstico de Engenharia Genética passa a ser refletida a partir
de critérios jurídicos e bioéticos, de forma a proteger o ser humano, contra abusos que
podem eventualmente ser perpetrados a partir da própria ciência, por equívocos ou má
interpretação, a exemplo da discriminação genética.
b) Conceito e reflexões bioéticas sobre a discriminação genética
O que se busca refletir, nesse ponto, é se a moderna genômica, a serviço da saúde
e da vida, não poderia culminar em alguma forma de discriminação genética. Tal
discrímen ocorre quando um ser humano sofre algum tipo de ação ou resposta
preconceituosa, depreciativa ou segregadora, em razão de sua identidade ou condição
genética irrepetível. Assim questiona Bú (2014, p. 241): “haverá uma rotulação e
marginalização dos indivíduos que estejam geneticamente predispostos a
comportamentos socialmente indesejáveis? Passaremos a julgar as pessoas pelos genes
que possuem e não por aquilo que são e fazem”?
O que releva considerar é que não existe uma causalidade determinante e
40
Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos...
inexorável entre genética e manifestação da doença, pois, na maioria das vezes, esta
depende de uma interação multifatorial complexa. O que não se pode deixar de ressalvar
é certa “corrida do ouro” de empresas e laboratórios para testes genéticos, dos mais
variados, com um apelo emocional profundo. Algumas delas oferecem testes genéticos
para crianças, para investigar a probabilidade de serem esportistas, com um layout
altamente apelativo, voltado para os pais, para “tornarem o filho um campeão”. Por um
ângulo, não seria uma coisificação do ser humano e uma estigmatização e discriminação
forçadas à própria criança, nos primeiros anos de sua vida, sem ter a capacidade de
escolha? Dessa forma, realidades como esta demonstram a necessidade de se aprofundar
uma reflexão bioética, para que o uso indiscriminado de testes genéticos não acabe por
tornar uma via discriminatória, sem aconselhamento médico, para atender a um
interesse econômico puro.
3) Tutela da personalidade x discriminação genética
A personalidade é um atributo que faz parte da condição humana, da natureza de
ser pessoa. Tal natureza concentra uma série de características que tornam o ser humano
titular de direitos e obrigações. O art. 11 do Código Civil brasileiro dispõe que “com
exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. O Enunciado
nº. 274 das Jornadas de Direito Civil, organizadas pelo Conselho Federal da Justiça
brasileira, prevê se tratar de “expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana,
contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana)”.
A identidade genética está atrelada à personalidade humana como fundamento
da própria condição biológica: “[...] está assentada na sua unicidade e exclusividade
biológicas, prerrogativas em que se funda o direito à identidade genética, parte
integrante dos direitos personalíssimos, imanentes a todos os indivíduos, com
importância inquestionável na conformação do ser humano em todos os planos”
(Bandeira e Scariot (2006, p. 47).
É possível invocar a salvaguarda da tutela da responsabilidade por prática
biomédica, em se tratando da condução e abordagem de testes genéticos. Desta feita, a
realização dos testes genéticos deve fundar-se nos clássicos princípios do jusnaturalismo:
“pacta sunt servanda, honeste vivere e suum cuique tribuere” (viver honestamente, não
lesar ninguém e dar a cada um o que é seu).
a) Direito à intimidade
O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de um arcabouço constitucional
essencialmente protetivo do direito à intimidade. O art. 1º, inciso III da Constituição
Federal apresenta o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da
41
Vivianne Rodrigues de Melo
República Federativa do Brasil- CF/88. O art. 5º, X da Constituição estabelece que “são
invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, sem
embargo de outros direitos que lhes possam acrescer. Na lição de Silva (2011, p. 51):
[..] o direito à intimidade genética consiste na faculdade que o
indivíduo possui de manter o Estado, bem como os particulares, afastados de
suas informações genéticas, sendo, portanto, como já salientado, um direito que
se evidencia a partir do desenvolvimento biotecnológico e da possibilidade de
se estudar e investigar os genes, mormente para se verificar a maior ou menor
propensão de uma pessoa a desenvolver determinada enfermidade, tal como a
diabetes, câncer, doença de Alzheimer, dentre outras.
Os dados genéticos devem ser contemplados pelo direito à intimidade, de forma
que o indivíduo testado tenha as suas informações protegidas. Nesta seara investigativa,
não se poderia deixar de levantar que faz parte do próprio direito à intimidade o direito
do paciente ou usuário de serviço de testagem não saber ou não querer conhecer os
resultados respectivos.
Para Morais (2003, p. 162) “liberdade significa, hoje, poder de realizar, sem
interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como
melhor convier”. A esfera do exercício da liberdade envolve, em regra, o indivíduo
escolher ou não se submeter os testes genéticos e também de exercer o direito de não
saber os resultados dos exames.
A tutela do direito à intimidade genética é de importância indiscutível. Está ligada
à proteção efetiva da vida privada, como explicado por Casabona (2002, p. 27), para
quem “é de sumo interesse não só para o sujeito de quem provém, isto é, para quem foi
submetido às análises genéticas, mas também para terceiros”.
Por envolver informações e direitos de terceiros não participantes dos testes os
resultados da moderna genômica podem culminar em conflitos de interesses os quais
devem ser equacionados de alguma forma, “quando um terceiro é um familiar afetado,
que solicita a informação pela possibilidade de ele apresentar um gene patológico”
(Casabona, 2002, p. 27).
b) Direito à autodeterminação
O Código de Nuremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964) são
paradigmas de soft law, na afirmação internacional dos Direitos Humanos,
notadamente, da Bioética, do Biodireito e do Direito Médico. Constituem bases
fundamentais para o conceito de autodeterminação, diante das experimentações
antiéticas com seres humanos na segunda grande guerra mundial.
Tais instrumentos correspondem ao conceito jusprivatístico de autonomia
privada e relacionam-se ao direito do ser humano construir seu próprio destino. A
42
Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos...
autonomia privada toca os planos dos direitos patrimonial e não patrimonial, integra o
estatuto jurídico de novos direitos e condiz com a autodeterminação informativa de
quem se submete a testes genéticos.
A submissão a exames genéticos diz respeito aos desígnios do próprio indivíduo,
de escolher ser testado ou não, e também em relação à informação e acesso aos resultados
de tais exames, como relativo controle pessoal do discrímen.
4) Discriminação genética no âmbito laboral
A discriminação genética opera-se na seara laboral quando, nesta relação
empregatícia, o obreiro sofre qualquer espécie de ação ou resposta preconceituosa,
depreciativa ou segregadora, praticada pelo empregador, em razão de sua identidade ou
condição genética, que lhe é irrepetível. O art. 1º. da Convenção nº. 111 da OIT,
promulgada no Brasil pelo Decreto nº 62.150/1968, define discriminação em matéria de
emprego e profissão como:
a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo,
religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em
matéria de emprego ou profissão;
b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por
efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em
matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro
interessado depois de consultadas as organizações representativas de
empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos
adequados.
Xavier (2005, p. 145) alerta que "a questão não se limita ao trabalhador, mas
prende-se com toda a pessoa – vida é dignidade pessoal. Aliás, na integridade do
patrimônio genético está a privacidade própria e alheia”. Dentre outros casos que se
popularizaram, destaca-se o episódio americano, nos anos 70, de proibição estabelecida
pela Academia da Força Aérea dos Estados Unidos, como forma de discriminação
genética, para boicotar a admissão de pilotos portadores do gene de anemia.
Por meio dos testes genéticos, o setor empregatício pretende elaborar um registro
cadastral do respectivo empregado, acervo no qual são lançadas as probabilidades do
obreiro desenvolver algum tipo de doença apontada no resultado do exame. Pode haver,
em regra, duas etapas relacionadas aos testes genéticos em trabalhadores: a etapa préadmissional, quando a empresa condiciona a contratação mediante prévia realização de
exames genéticos. A segunda etapa corresponde à exigibilidade dos testes genéticos de
controle, em razão de exposição a material supostamente nocivo.
Oliveira (2005, p. 155) defende a exclusão de “qualquer seleção baseada em
hipersusceptibilidade de origem genética”, ao menos até a Ciência avançar de forma a
garantir a segurança dos cidadãos obreiros, que têm direito de ser integrados a políticas
43
Vivianne Rodrigues de Melo
de prevenção altamente seguras e pautadas na transparência e boa-fé patronal.
Por outro viés, há quem possa defender a liceidade da empresa empreender testes
genéticos, em nome da segurança e da saúde de seus obreiros, em casos de exposição a
radiação e a produtos altamente nocivos.
Destaca-se a importância do
biomonitoramento realizado em bombeiros e em policiais militares que patrocinaram
socorro e segurança pública, na ocasião do acidente césio-137, no ano de 1987, em
Goiânia. Pesquisa realizada por Flores (2008, p. 47) foi concludente no sentido de avaliar
a incidência de mutações no DNA dos profissionais testados e outrora expostos à
radiação ionizante. Em complementação à hipótese trazida à colação, Ossege e Garrafa
(2015, p. 234) reconhecem que a testagem genética pode atuar na seleção dos obreiros
para fins de realocar a mão-de-obra e diminuir o absenteísmo em caso de doenças de
cunho laboral.
Reflete-se, nesta oportunidade, se há risco na exigência de testes genéticos em
concursos públicos, a exemplo de concursos para ingressos em carreiras militares. Ora,
se os exames de saúde, incluindo os psicotécnicos, já são altamente rigorosos, o que se
dirá sobre testes genéticos de condicionantes de personalidade, para averiguar potencial
comportamento agressivo ou risco de adoecimento? Haveria um risco de formação
intencional de um exército (super) homens sãos?
Há juristas que identificam, a partir dos conceitos de reducionismo e
determinismo genéticos, sério risco de se estigmatizar a classe trabalhadora. A propósito,
Nacif (1999, p. 109) versa sobre a alegoria do homem de cristal, como “aquele a respeito
de quem se pode obter informação sobre aspectos genéticos da sua personalidade,
condições de saúde e habilidades potenciais, ou seja, a respeito de quem se pode obter os
chamados dados sensíveis - aqueles que afetam a intimidade da pessoa [...]".
De fato, com o Projeto Genoma Humano e sua repercussão na seara trabalhista,
há estudiosos que apontam o risco de uma taxação temerária. Para Araújo (2000, s.p.) a
discriminação dá-se pelo fato de “sabendo o código genético do ser humano, será possível
prever as possíveis doenças que o empregado pode vir a ter e com isso se permitir a
escolha do funcionário geneticamente melhor para uma contratação ou uma promoção”.
Em razão dessas práticas, Castellanelli (2015, s.p.) rejeita o chamado
rastreamento genético pré-admissional, razão pela qual condiciona a aplicação do direito
à igualdade de acesso ao emprego no momento da admissão: “[...] para que não haja a
discriminação genética, numa lógica empresarial de rentabilidade econômica e
ponderação do risco, detectando nesta fase a existência de problemas genéticos
hereditários ou predisposições patológicas para vir a contrair certas doenças ou vir a
padecer de certa incapacidade”.
De igual modo, Myszczuk e Meirelles (2017, p. 12-13) defendem que a
excepcionalidade da exigência e emissão de atestados admissionais e demissionais que
envolvam capacidade laborativa baseada em testagem genética, desde que constituam a
“única fonte determinante para demonstrar a aptidão do trabalhador para aquela
44
Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos...
determinada função e sob a perspectiva de proteção do trabalhador ou outros
trabalhadores com quem dividirá suas funções”.
É bem verdade que o mercado de trabalho é altamente excludente e pela própria
natureza da exigência de capital humano na livre concorrência, pode colocar os
trabalhadores à prova e diante de parâmetros de contratação que podem soar
discriminatórios. A partir dessa ideia, Xavier (2005, p. 158) diz que “o interesse do
indivíduo em conservar a saúde — especialmente quando existem situações de crise no
mercado do trabalho — pode ser posto em perigo, se o emprego das análises genéticas do
genoma prejudicarem uma protecção objectiva no trabalho em benefício de critérios de
selecção subjectivos”.
5) Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos
direitos da personalidade do obreiro como expressão da
dignidade humana
A possibilidade de requerer exames genéticos pré-contratuais ou de controle na
relação trabalhista toca profundamente o plano dos direitos da personalidade do
trabalhador. Quanto custa a “certeza” da saúde do trabalhador para a empresa? Os dados
genéticos constituem direitos fundamentais do trabalhador, exatamente por registrarem
a sua codificação vital.
Na definição de Farias e Rosenvald (2009, p. 136-137) direitos da personalidade
são “[...] essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as
projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe
emprestar segura e avançada tutela jurídica”.
Valores juridicamente valiosos como a vida, a dignidade da pessoa, a igualdade,
a liberdade, a intimidade e a discriminação constituem direitos inatos à pessoa humana.
Em relação à preservação da intimidade do trabalhador, em se tratando do teor dos testes
genéticos, Campos (2011, p. 03) adverte que tais exames “não deverão ser obrigatórios
ou impostos por coerção, ou serem pressupostos para certas relações ou serviços
oferecidos, já que estariam ferindo a liberdade individual, a privacidade e o direito
individual de autodeterminação, todos objetos de proteção constitucional”.
Rios (1973, p. 480) defende o direito à proteção do trabalhador, contra a violação
de sua intimidade e vida privada, já na fase pré-admissional, devendo patrão respeitar a
“personalidade do empregado, direitos estes natos da pessoa, que protegem a integridade
física, moral e intelectual”.
Na seara laboral é preciso ter redobrado cuidado nesta delicada matéria, sob pena
de se rotular os empregados, com a criação de uma espécie de “etiquetamento genético”,
conforme explicado por Barbas (1998, p. 47): “o conhecimento ou possibilidade de
conhecimento de informações genéticas acarreta riscos extraordinários, antes mesmo
45
Vivianne Rodrigues de Melo
que se chegue a revelar, e dessa forma configura um instrumento de ilegítima
discriminação social, sobretudo, com as pessoas etiquetadas pelos genes”.
A maioria dos juristas repudia a demissão indiscriminada de obreiros,
simplesmente baseada em prognósticos genéticos. Moreira (2004, p. 199-200), por
exemplo, invoca a tutela dos direitos da personalidade do trabalhador e a salvaguarda da
reserva da vida privada, “que inclui o património genético duma pessoa e o direito à
intimidade genética, e o princípio da boa-fé, os exames genéticos devem ser, como regra
geral, proibidos”.
Decerto poderá haver situações especiais, provavelmente com os trabalhadores
em atividades perigosas ou insalubres, cuja exposição seja determinante para agravar
qualquer risco de adoecimento do obreiro, comprometendo sua individualidade
genética. Nestes casos, a doutrina recomenda uma intervenção, da parte dos
empregadores, desde que seja respeitado o direito do consentimento informado.
Considera-se que todas as ações envolvendo testes genéticos em relação de trabalho
devem ser muito bem conduzidas e sempre pautadas nos princípios bioéticos, diante da
situação de vulnerabilidade do obreiro. Conforme lição de Bertucci et al (2012, p. 42):
A legislação Brasileira bem como a jurisprudência predominante tem
se manifestado a favor do uso de tais recursos biométicos para utilização em
exames pré admissionais cuja função a ser exercida pelo candidato é passível da
necessidade de pre requisitos biológicos específicos, tais como mergulhadores,
trabalhadores em altura e desnível de pressão atmosférica, sem comprometer
seu direito ao sigilo.
O empregador deve honrar a boa-fé contratual, nas situações de exigibilidade de
testes genéticos: “[...] para ter o emprego, garantindo assim o seu patrimônio mínimo,
não pode o candidato submeter-se à qualquer exigência do empregador, sem as garantias
mínimas à sua dignidade humana e respeito aos direitos de personalidade”. (RIOS, 1973,
p. 479).
Silva (2003, p. 31) estabelece a importância social do Biodireito na promoção da
vida humana e dos direitos do homem relacionados ao sobre-desenvolvimento pósmoderno, a exempplo da investigação do genoma humano.
Pesquisa implementada com Kunrath (2016, p. 517-518) avalia que os direitos da
personalidade, quando incorporados na legislação ordinária infraconstitucional,
caracterizam-se como direitos fundamentais, desde que harmonizados com a
Constituição da República Federativa do Brasil. Segundo a autora tal modelo é
contemplado pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o que pensamos aplicarse perfeitamente às relações privadas dos obreiros. De igual modo, GOSDAL (2006, p.
36) assinala que os direitos fundamentais "não apenas fundamentam o sistema político,
como também a estruturação e conteúdo das instituições jurídico-privadas".
Basile (2009, p. 33) concebe o "Direito do Trabalho como instrumento de
compensação jurídica pela assimetria e a desigualdade econômica entre trabalhador e
46
Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos...
tomador de serviços deve encontrar limites nos fundamentos da dignidade e do valor
social do trabalho", razão pela qual o autor reclama a necessidade de se reinventar a
hermenêutica e a aplicação do direito neste campo.
Brasileiro e Gaudência (2016, p. 264) compreendem que "o direito ao trabalho
deriva, igualmente, do epicentro axiológico do ordenamento jurídico, qual seja, a
dignidade da pessoa humana", verdadeiro núcleo dos direitos fundamentais. A dignidade
da pessoa humana constitui fundamento da República Federativa do Brasil, conforme
inciso III do art. 1º da Constituição Federal. Na ordem constitucional brasileira, o
trabalho é qualificado como um direito social fundamental (art. 6º, caput, CF/88) e a
busca do pleno emprego constitui relevante princípio da ordem econômica, "fundada na
valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, inciso VIII e caput,
CF/88).
Segundo Fonseca (2006, p. 128) "para grande parte da doutrina, o direito do
trabalho é um direito vinculado ao direito à vida, pois sem trabalho as pessoas não têm
como proporcionar uma vida digna para si e para sua família".
Ao empreender estudo sobre o princípio da igualdade e não discriminação e sua
aplicação na relação de trabalho, Gurgel (2010, p. 58) reconhece a aplicabilidade do
conteúdo jurídico dos princípios da dignidade humana e da igualdade na esfera privada.
Em defesa da dignidade do trabalhador testado e de sua integridade
psicoemocional, invoca-se o direito de não saber, ao fundamento de que o empregado
tem o direito de ignorar o resultado dos testes genéticos, quando estes não lhe
interessarem. É um direito fundamental do obreiro querer ou não se inteirar do resultado
de tais exames genéticos, seja por temer algum tipo de discriminação ou por qualquer
outro motivo. A situação jurídica que lhe diz respeito pode, todavia, se esbarrar no
interesse jurídico de pessoas do mesmo tronco familiar do obreiro, o que gera um outro
tipo de discussão jurídica.
De todo modo, a gestão das empresas deve sempre se pautar na premissa de que
os testes genéticos não devem ser um veículo de estigmatização e discriminação dos
trabalhadores, para se formar uma mão-de-obra ultra saudável. Isto porque, além de
ferir a dignidade do próprio empregado, não apresenta compatibilidade científica, haja
vista as limitações do histórico familiar, sendo que a manifestação de doenças é um
complexo multifatorial, que depende também, para alguns, de processos metabólicos e
bioquímicos, que variam conforme local e condições em que o homem vive. É importante
ter em conta, portanto, que o exercício do diagnóstico na medicina preditiva é dividido
em doenças monogênicas e de predisposição genética, sendo certo que nesta última
hipótese inexiste 100% de risco de manifestação da doença (MATTE e GOLDIM, 1998,
s.p.).
Para Oliveira (2011, p. 32), “o conceito de dignidade deveria interpretar-se atendendo ao
direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à decisão constitucional de
47
Vivianne Rodrigues de Melo
proteger, nos mais amplos termos, a autonomia e a liberdade de cada indivíduo”.
Do contrário, o poder econômico representado pelos empregadores arrisca
impor, em manifesta violação aos princípios da bioética e do biodireito, a
formação de um segmento de trabalhadores robotizados e geneticamente
perfeitos, concretizando-se a experiência fictícia do filme Gattaca (1997),
panorama também lembrado por Nassif (1999, p. 118).
6) Conclusão
O breve estudo da discriminação genética nas relações laborais nos permite as
seguintes conclusões:
1. A Medicina Preditiva, viés da moderna Genômica, avança no sentido de prever
a possibilidade dos pacientes e dos obreiros virem a desenvolver algum tipo de doença,
ao nível fenotípico.
2. Pondera-se, todavia, que a Medicina Preditiva deve ser bem avaliada e
conduzida, para não passar constituir uma via de discriminação genética e o caminho
para uma resposta preconceituosa, aos que se submetem aos exames.
3. A discriminação genética pela classe empregadora resulta, com rigor científico,
em manifesta afronta aos direitos da personalidade dos obreiros, especialmente aos
direitos à intimidade e à autodeterminação. Depreende-se que se a empresa exigir
exames genéticos pré-admissionais como condição de contratação, a contragosto do
obreiro, ocorre uma violação a sua autodeterminação. Tal violação também pode ocorrer
em razão de exames de controle. Além disso, pontua-se que o obreiro pode ser lesado em
sua intimidade genética, quando a empresa acessa seus dados e marcadores e, com base
nisso, o demite ou quando deixa vazar tais informações, todas elas também ligadas ao
tronco familiar do empregado.
4. Por outro lado, resta evidente que em situações excepcionais, já avaliadas
inclusive pela OIT, os testes podem ser realizados. São situações nas quais o empregado
testado ou os demais empregados podem correr risco em sua saúde pessoal. Nestas
circunstâncias os exames genéticos se justificam, por uma questão de segurança e de
proteção à integridade física, principalmente quando os trabalhadores possam estar
expostos a substâncias perigosas, como a radiação ou a produtos químicos. É dizer: são
casos nos quais os obreiros ficam mais expostos e por isso vulneráveis a sofrer riscos e
danos consequentes.
5. Em todos os casos de condução de exames genéticos, adverte-se que estes
devem ser muito bem conduzidos, em respeito aos direitos à informação e à reserva da
privacidade de dados. Além disso, as empresas devem administrar de forma otimizada
os resultados desse tipo de testes, por meio de setor médico competente, para que não se
incorra no erro do reducionismo e determinismo genéticos, tão prejudiciais aos direitos
personalíssimos do obreiro.
48
Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos...
6. Uma política de transparência praticada pela empresa é a forma mais razoável
para se garantir a própria segurança do obreiro. É preciso evitar a taxação temerária e a
estigmatização dos trabalhadores, sob pena de violação da dignidade dos obreiros.
7. Tais questões envolvem a tutela dos direitos da personalidade como pura
expressão da dignidade humana, razão pela qual é importante valorizar o caminho do
meio e o exercício da ponderação nas relações sociais de trabalho que envolvem a
moderna genômica. Defendemos, salvo melhor juízo, que, em regra, as empresas devem
se abster de exigir os exames genéticos pré-admissionais e de controle e somente fazêlos em situações excepcionais de altíssima insalubridade ou periculosidade relacionadas
a certas profissões.
8. Defendemos ainda o direito de não saber, em respeito à proteção ao patrimônio
genético e ao direito à intimidade genética do obreiro. Por tais fundamentos, ao nosso
ver, o obreiro possui o direito de recusar ou omitir informações as quais reputar
indesejáveis a sua vida privada. O respeito à vontade do trabalhador é uma forma de
conter o mau uso dos dados genéticos e uma indesejável seleção genética dos
potencialmente saudáveis aos postos de trabalho como uma verdadeira afronta à
dignidade humana.
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53
UM PROJETO INTERSÉMIÓTICO JURIDICO:
SUGESTAO PARA A DEFESA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E DAS INSTITUIÇÔES FRENTE
ÀS NOVAS TECNOLOGIAS
Maria Christina Napolitano1
1) Introdução
O Direito é linguagem, em tudo e por tudo, linguagem. Tal linguagem, para se
tornar um texto ou um discurso jurídico (normativo, decisorio/jurisprudencial,
burocrático, científico) ou um hipertexto, tem um percurso gerativo (processo semiótico
ou de superposição sígnica) a seguir, em três plataformas, baseadas nas três matrizes
da linguagem natural (sonora, visual e verba)l. A Semiótica, como disciplina, permitenos organizar o pensamento jurídico para o projetar-se do Direito no tempo e no espaço,
a tornar-se um sistema semiótico jurídico, a favor e a cargo de uma comunidade
linguística de sujeitos em interação. Outro ponto indispensável num projeto semiótico,
como este - e coerente com o mesmo, é a transdisciplinaridade, assim que uma linha
de pesquisa importante seria o “caos e a complexidade”. Como trazer tal preocupação ou
tal abordagem científica transdisciplinar para a Cultura Jurídica? Propõe-se, aqui, que
seja através de uma Acão Triádica ou de uma Tradução Intersemiótica
(“triadepoiese”), que poderá ser permeabilizada e reforçada através do discurso
jurídico cientíifco, em sua matriz verbal (Dogmática Jurídica). Este discurso jurídico
científico para o qual se chama a atenção precisa estar aberto aos novos conhecimentos
e tecnologias. Assim que, na plataforma de uma matriz verbal jurídica, a simultaneidade
dos outros discursos normativo, decisorio/jurisprudencial e burocrático (ordenamento
jurídico) pode encontrar seu aperfeiçoamento na continuidade e circularidade
destas escalas. A Semiótica, como disciplina, ajuda-nos neste projeto, sendo que
autores de diversas nacionalidades nos mostram este caminho. A começar do
pesquisador norte-americano Charles Sanders Peirce, estudioso de varias disciplinas e
conhecedor de muitos idiomas que, após tentar seguir outros caminhos, voltou a seu
projeto original da Semiótica. Na mesma linha de pensamento, outros renomados
juristas vem procurando o que há de lógico, formal e funcional no Direito. É chegada a
oportunidade de nos unirmos neste projeto. Abandona-se, por exemplo, a ideia de que o
discurso científico pretenda ser um discurso sobre a verdade, mas sim, um discurso
fundado na persuasão, buscando o consentimento. É por meio de um exercício de
linguagem, durante a experiencia jurídica, que se arquiteta o saber jurídico, dando-lhe
Mestre em Direito e Doutora em “Direito das Relações Sociais”, pela Pontificia Universidade
Católica de SãoPaulo (PUC/SP). Formação Acadêmica: Faculdade de Direito São Francisco, Universidade de
São Paulo/USP/Turma de 1963. Especialização e Pós-Graduação em Direito Ambiental e em Ciencias
Ambientais,
na
Universidade
Estacio
de
Sá
–
UNESA/RJ.
Brasil
.
E.Mail:
christinapolitanoadv@yahoo.com.br
1
Maria Christina Napolitano
expressividade, forma, exteriorização, envolvendo-o pelos aspectos culturais da
comunidade semiótica à qual está destinado, axiologizando-o e ideologizando-o, a partir
das demais condicionantes que participam da dinâmica dos saberes. Estaremos diante
das Fontes do Direito, como expressão e condições de validade dos Modelos do Direito,
seu conteúdo. O mais important é que se retenha, com relação à Ciencia Jurídica, o fato
de que desta se destaca uma função social propria: a proteção dos direitos e a solução de
conflitos. Então, as discussões sobre a verdade deixam de se colocar em primeiro plano,
destacando-se em oposição a ela, esta outra noção de função social. O projeto de
reconhecimento de uma significancia semiótica no seio da juridicidade só virá a acentuar
a falencia de um modelo científico de tendencias estáticas, primando, ao contrario, pela
acentuação dos diversos aspectos com os quais se pode visualizar uma realidade ou uma
facticidade.
Tudo o que o eminente jurista pátrio Reale, meu professor na Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (Faculdade São Francisco-Brasil) nos apontou, em
sua vasta obra e longa experiencia jurídica, traduz esta orientação. Embora não se
encontre, em sua obra, qualquer menção a Peirce, sua lógica é semelhante à tríade
proposta por esse pesquisador, tendo sido o criador da teoria tridimencional do Direito:
fatoxvalorxnorma. Reescrever e arquitetar semioticamente o Direito seria mais do que
propor uma discursividade acerca da literalidade de palavras e signos em que se expressa
a textualidade jurídica ou a discursividade jurídica..Observe-se que uma tríade veio
continuamente aparecendo na lógica e nas ciencias especiais, primeiro na Psicologia,
então na Fisiologia e na teoria das células, finalmente, na evolução biológica e, ainda,
também, no cosmo físico. Estudos científicos mais recentes, como os da autopoiese
(Maturana; Varella), trazidos através das ciencias da natureza, comprovam esta
afirmação também para a área comunicacional do Direito (Niklas Luhman). Peirce,
através de seu estudo das três categorias (primeiridade, secundidade, terceiridade)
mostrou-nos que há possibilidades reais e contínuas, ou seja, possibilidades que
podem não se atualizar nunca. Houve ainda outra descoberta importante e concomitante
que lhe acrescentou confiança, precipitando os ajustamentos internos de sua obra: a
descoberta das duas ações do universo, ação diádica – bruta, e ação triádica inteligente ou sígnica (aqui se propõe chamar triadpoiesis). Estas duas ações estão
na base da divisão das ciencias especiais, no gigantesco sistema peirceano de
classificação das ciencias, dentro do qual se insere a arquitetura de suas disciplinas
filosóficas. Sua insistencia em generalizar a noção de signo, a ponto de não ter de referila apenas à mente humana, não mais soa como formalismo excêntrico, mas sim, como
antecipação, visto que, com o advento da Cibernética, tal necessidade patenteou-se e
revelou-se histórica e concretamente. Hoje, para falarmos dos processos da comunicação
entre “máquinas”, não temos necessariamente de nos referirmos às peculiaridades da
consciencia humana. Isto sem falar das descobertas da Biologia Molecular que
estenderam a noção de signo (linguagem e informação) para o campo das
configurações celulares. Em 1909, Peirce já chamara a atenção - que a tarefa para suprir
estas necessidades deveria ser submetida ao teste da experiencia e ser tomada por um
56
Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
grupo de investigadores.
2) Possibilidades iniciais, intersticiais e contínuas para a
ciencia jurídica
Com base nos princípios da Semiótica, como disciplina, propõe-se insistir nesta
afirmação: O DIREITO É SIGNO, ou melhor, O DIREITO É UM SISTEMA DE
SIGNIFICAÇÃO (SIGNIFICANTES e SIGNIFICADOS). Este é o caminho da
descoberta, sem receitas, sem fórmulas, estrategicamente transformador: cada
pesquisa constroi sua determinada ciencia, prescindindo de rótulos. No edificio
argumentativo da pragmática peirceana, dedução e abdução andam juntas. Veja-se a
atualidade de tal proposta, embora das primeiras décadas do século passado! Elementos
e sua estrutura formam o sistema; e o que seja “estrutura”, neste ponto curiosamente
importa saber que a etimologia pode dar-nos, com sucesso, a intelecção do que seja, da
mesma maneira, uma estrutura linguística. Esta palavra provem do verbo latino
“struere” que significa reunir, empilhar. A etimologia sugere, portanto, os pilares básicos
sobre os quais se configura o conceito de estrutura: unidades elementares relacionam-se
e são causa eficiente da construção que realiza a referida ordem. É possível admitir a
existencia de um sistema jurídico, desde que se admita a existencia de criterios que
definam a existencia e a sustentação de tal sistema: um repertorio de elementos e
um modo peculiar de sua organização, distribuição e relação. Em outros
termos, considerando-se o sistema como estrutura operante, infere-se que a todo sistema
corresponde uma estrutura, e que o sistema nada mais é que a dinamização da
estrutura, ou seja, o estático operacionalizado. Verifica-se, desde logo, a possibilidade de
se visualizar o sistema jurídico, não como um conjunto esparso de discursos
ilogicamente dispersos, desorientados e sem sentido. Sobre os objetos e os elementos de
qualquer sistema atua uma ratio aedificandi, capaz de dotá-los de funcionalidade,
disposição, organização, calibração e regulação. Mais para além desta discussão, podese mesmo identificar o sistema jurídico como um universo de discurso particular, em
meio a inúmeras outras práticas textuais esparsas no mundo da cultura e distingui-lo em
meio a outros universos de discurso, através do reconhecimento e do desvelamento de
suas três matrizes de linguagem: matriz visual, matriz sonora, matriz verbal. Com
efeito, se o universo jurídico é um grande conjunto de práticas textuais jurídicas, por
outro lado, numa visão mais abrangente, é apenas uma constelação de sentido em meio
a tantas outras. Este universo de linguagem, absolutamente particular, possui regras,
conceitos, definições, injunções que o peculiarizam em meio a outros, de modo que se
possa considerá-lo autônomo, mas não necessariamente independente, ou desligado dos
demais sistemas, visto que preserva sua relação com os sistemas econômico, político,
empresarial e, sobretudo, lembre-se – como aqui se afirma – com o universo da
linguagem natural. São exatamente estes contatos que garantem a vivacidade e a
plasticidade deste sistema, sempre sujeito à renovação, e não à estática, e sempre sujeito
57
Maria Christina Napolitano
aos influxos advindos de outras linguagens técnicas, que não a sua propria. Isto é o que
se poderia chamar “dialética intersistêmica”. É oportuno insistir que o sistema
jurídico não é um sistema fechado (clausura), como pretenderam as escolas
novecentistas, nem tampouco um sistema coerente de per si (acabamento lógicoarquitetônico), nem um sistema completo (totum). No entanto, não são quaisquer
elementos que compõem o sistema jurídico e nem são quaisquer regras de calibração e
de organização que ele pressupõe; entre seus principais elementos estão os discursos
normativos que ele produz. E as regras de organização, distribuição e relacionamento
destes discursos, por sua vez, são dadas por criterios hierárquicos e hermenêuticos. Se é
do uso que deriva a significação dos signos, é do uso do sistema que se extrai também a
sua propria significação. Consequentemente, cada ato de uso corresponde a uma
dinamização do sistema, o que sempre se faz valendo-se o usuario de recursos de
interpretação. Este é, portanto, um mister para a formação do proprio sistema jurídico.
O proprio fato de ser lacunoso (modos de integração) e assimétrico (modos de
calibração) não o destitui de seu papel primordial que é o funcionamento. Mesmo as
chamadas “incoerencias” que ocorrem intra-sistemicamente surgem da propria vivencia
dinâmica e dialética do sistema e da interação com inúmeras ocorrencias fenomênicas.
Desta forma, se se modifica, vive modificando; e se é influenciado, vive influenciando; e
se é capaz de engendrar, acaba sofrendo os efeitos do proprio engendramento. Pode-se
mesmo dizer que, enquanto sistema aberto que é, o sistema jurídico não só admite a
existencia de lacunas, e prevê os modos de sua integração e colmatação, mas necessita
destas lacunas, pois a propria juridicidade requer a existencia de um vir a ser. Ora, este
ser de devir opera-se por meio da incompletude, da polissemia e da realidade equívoca
da semântica de seus termos, discursos e signos em geral. Desta forma, as lacunas
passam a significar não um empecilho para a formação de um conceito de sistema, pois
a juridicidade, o Direito como conjunto de práticas textuais, tem nas lacunas as formas
de autopreenchimento e de auto-adequação – locus em que a pragmática tem condições
de atuar. Isto porque a construção da significação jurídica, dos conceitos, valores e
principios a ela pertinentes, constantes do amplo repertorio de elementos que compõem
a juridicidade, depende da participação ativa de sujeitos responsaveis por sua
atualização, em meio a práticas sociais. Lembre-se que a categoria de estrutura sempre
desempenhou papel importante em varias disciplinas, e evidentemente, tambem, no
campo do Direito, embora, neste último, sem a devida tomada de importancia. Talvez
tenha sido o italiano Cesarini Sforza2 primeiro jusfilósofo a salientar em um estudo de
1918 - que não teve a devida continuidade - a importancia dos conceitos de estrutura e
de função, concebendo-os como “unum et idem no fenômeno jurídico concreto”, em
cuja evolução ambos “mantem o seu correlativo significado”.
Não cabe nos limites do presente artigo reapresentar importantes teorias
baseadas na noção de estrutura, mas sim, chamar a atenção para a relevancia do
2 In “Senso e condizione del progresso nella Scienza del Diritto”, na Rivista Italiana di Sociologia,
fasc. 3-4, ora inserto em Vecchie e nuove pagine di Filosofia, Storia e Diritto, Milão, 1967, t. I, sobretudo p.
137 e segs.). Em 1959, Cesarini voltou ao assunto em um breve trabalho, “Regola, norma e struttura sociale”,
op. cit., p. 375 e segs,: cf. Reale, in O Direito como experiencia, p. 148.
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Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
conceito de matriz, que poderia ajudar a diluir uma série de questões controversas,
que sempre existiram com relação à estrutura, superestrutura, função e assim por diante.
A tal querela “estruturalismo X historicismo” traduz, por si só, as perplexidades daqueles
que vacilam entre posições abstratas, quando a tarefa que se impõe aos pensadores
contemporaneos é bem outra: positividade sem positivismo e historicidade sem
absolutização da historia, superando-se toda e qualquer mentalidade reducionista. Com
certeza, a noção de matriz de linguagem, que a Semiótica e as ciencias cognitivas nos
trazem, poderia ser um conceito-chave no sentido de uma concreta
compreensão do fenômeno jurídico, como linguagem. A complexa e
diversificada sucessão de figuras e modelos não surge nem se desenvolve por acaso, mas
sim, em razão de causas ou motivos subjacentes, ordenando-se de modo temporal,
funcional e hierárquico, refletindo o sentido da ordem que é imanente ao proprio “ato de
pensar”. É claro que não se pode idealizar o ordenamento e o sistema jurídico como uma
estrutura de tipo matemático, pois a sua é, antes, uma configuração na qual se situam
corpos e discursos que correm paralelos uns aos outros, às vezes, se implicando e outras
vezes se entrecruzando, todos, porem, se influenciando reciprocamente, por se acharem
todos subordinados às mesmas razões finais de validade (valor). Esclarece-nos Reale:
Costuma-se dizer que a lei é “obra do legislador”, dando-se, assim, ênfase a um
determinado ato de decisão, mas na realidade, todo modelo legal envolve uma série de
fatores, uns estudados pela Política do Direito, quando indaga, por exemplo, do
significado da opinião pública, dos efeitos dos grupos de pressão ou expõe a técnica de
legislar; outros fatores são de ordem sociológica, econômica, psicológica, linguística etc.,
o que tudo demonstra que a tarefa de legislar é de ordem arquitetônica ou de
síntese. A mesma convergencia integrante de atos verifica-se, em escala maior ou
menor, na constituição dos demais modelos jurídicos, pois eles, considerados no seu
conjunto, cobrem toda a vida social, o que não significa que absorvam em si toda a vida
social: ao contrario, o âmbito do não jurídico abrange todas as formas de vida, em
função das quais o Direito existe, como instrumento essencial de garantia, seja no plano
interno, seja internacional. Além disso, os modelos jurídicos tem o significado das
formas de vida a que servem, não podendo ser convertidos em fins de si mesmos.
Valem, tudo somado, em função e em razão do “não jurídico”3.
Foi aqui dada ênfase à grandiosa obra do Prof. Reale porque, não só nos permite
entrever a matriz visual do Direito, como também porque: 1º) Ao substituirmos a palavra
“modelos jurídicos”, por “texto(s) das três matrizes da linguagem jurídica”, torna-se
possível sobrepor ipsis litteris os ensinamentos do Mestre para a proposta deste
trabalho, sem desvirtuá-los ou desprestigiá-los, ao contrario; 2º) Ao substituirmos a
expressão “formas de vida” por “linguagens”, obtem-se o mesmo resultado; 3º) O ilustre
jurista, ao empregar as expressões “significado da opinião pública”, “efeitos dos grupos
de pressão”, permite-nos enxergar a complexidade da imagem de síntese do Direito
3 Cf. nota de rodapé na p. 179, in O direito como experiencia: Sobre o contraste das teorias que
estendem ou não o direito a todas as formas de vida social, v. K. Engisch – El Ámbito del Non Jurídico, trad.
de Ernesto Garzón, Valdés, Córdoba, 1960.
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Maria Christina Napolitano
– sua matriz predominantemente visual (lembre-se que a percepção visual constitui-se
em cerca de 70% da percepção humana), cujo suporte é feito através da matriz sonora e
destas para a matriz verbal e vice-versa, num jogo constante e circular de superposições,
em busca de modulações ou modularidades jurídicas; 4º) Quando ele se refere a uma
série de “fatores de ordem sociológica, econômica, psicológica, linguística etc.”, permitenos entrever que as matrizes da linguagem jurídica podem (e devem) encaixar-se às
matrizes da linguagem natural e adequar-se às demais linguagens científicas; 5º)
Quando ele se refere a “não jurídico”, permite-nos vislumbrar a abrangencia e a
influencia da linguagem natural e das demais linguagens científicas, linguagens não
jurídicas, sobre a linguagem jurídica; 6º) Quando ele se refere a uma “ordem
arquitetônica”, permite-nos confirmar a existencia da estrutura de patamares,
plataformas ou níveis (as três matrizes da linguagem jurídica). A questão da
tridimensionalidade é tão relevante que, como afirma Reale, pode levar a distorções
ou concessões finais a todos aqueles que proclamam a essencialidade do fato ou da
norma no mundo do Direito4, sem a referencia a valor. Parece que a simples
consideração das três matrizes da linguagem e pensamento, que a Semiótica nos
proporciona e que as ciencias cognitivas nos confirmam, permite-nos compreender que,
não obstante a natureza da linguagem do Direito ser predominantemente normativa, ela
não é, nem exclusivamente normativa, nem está desvencilhada de tudo o que não seja
normativo. Por não se darem fé desta base triádica, os juristas não perceberam
que “somente pela linguagem – vista como condição de possibilidade e não
como mero instrumento ou terceira coisa que se interpõe entre sujeito e
objeto – é possível ter acesso ao mundo (do Direito e da vida)”, na feliz
expressão do insigne professor brasileiro, Dr. Lenio Luiz Streck5. O importante – aqui
parafraseando Castanheira Neves6 – não está em saber o que é o Direito em si (afinal,
pretender ver o ente como o ente é, é “tarefa” da metafísica), mas sim, o importante é
saber o que dizemos quando falamos do Direito, o que queremos dizer com, ou que
significado tem as expressões linguísticas com que manifestamos e comunicamos este
dizer o Direito e sobre o Direito. Dito de outro modo, o Direito não é tão simplesmente
a Constituição, as leis, a jurisprudencia, a doutrina, ou qualquer outro conceito abstrato
que lhe tenha sido dado pela Ciencia Jurídica. Não há um Direito “primevo-fundante”.
Embora não se saiba como será o Direito no futuro, parece certo que ele possuirá
esta mesma estrutura, ainda não totalmente descoberta, através da historia e no
presente, por nós, operadores do Direito, e que as neurociencias nos ajudarão a
descobrir e as ciencias da informação nos possibilitarão exprimir. Só a
compreensão do conteúdo das Fontes do Direito - que são os Modelos do Direito é que
tem a virtude de torná-lo susceptível de realizar-se ou efetivar-se na plenitude de sua
potencial validade, não somente possibilitando que a regra jurídica seja vista como algo
objetivo e válido de per si (independentemente da intenção originaria de quem a colocou
In O direito como experiencia, p. 105 e segs..
In Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 167.
6 In Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, p. 89. Coimbra: Coimbra Editores, 1993,
apud Lenio Luiz Streck, ibidem, p. 282, cuja leitura se recomenda.
4
5
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Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
in esse) e também que ela se efetive em todo o leque de suas virtualidades, até que surja
imperiosa a revogação da norma vigente para dar lugar a novo processo legislativo ou
a um novo paradigma. O conceito de modelo, em todas as ciencias, está sempre ligado
à ideia de projeto, de planificação lógica e à representação simbólica e antecipada dos
resultados a serem alcançados por meio de uma sequencia ordenada de medidas ou
prescrições. Cada modelo expressa, portanto, uma ordenação lógica de meios a fins,
constituindo, ao mesmo tempo, uma preordenação lógica, unitaria e sintética de relações
sociais. Neste ponto, resulta que os modelos jurídicos não são meras criações da mente,
mas sim, o resultado da ordenação racional do conteúdo das normas reveladas ou
formalizadas pelas fontes do Direito, para atender aos pressupostos de validade objetiva
autônoma e de atualização prospectiva destas mesmas normas. Segundo Reale 7, nada
deve ser mais imerso no fluxo vital da experiencia do que a modelagem do Direito, muito
embora a sua forma ou estrutura só seja possível com a abstração e o sacrificio do
secundario e do residual, preservando-se as linhas essenciais da ação, num trabalho
rigoroso de qualificação tipológica, que representa o cerne da pesquisa científica. Tarefa
a ser continuada pelos jovens operadores do Direito da era digital. Não há que se falar,
portanto, em afastamento ou em perda do real concreto na caracterização dos modelos
jurídicos, pois, se algumas vezes eles são fruto de atos arbitrarios de autoridade, não é
menos certo que, em tais casos, ou tem vigencia formal temporaria, ou não chegam a se
converter em elementos operacionais, carecendo de adequada eficacia no plano da ação.
As soluções normativas, não fundadas na experiencia, não são modelos jurídicos, no
sentido rigoroso deste termo, que implica consonancia com a natureza tridimensional do
Direito, a correspondente correlação entre fundamento, vigencia e eficacia. Além
disso, quando as soluções normativas surgem divorciadas da realidade, a tendencia
natural do jurista, no ato de interpretá-las, é no sentido de reconduzi-las ao leito da
experiencia, recuperando-se, através da exegese e da aplicação prudente, os valores
esquecidos de realizabilidade concreta. Elaborar um modelo jurídico é, portanto, um
trabalho de aferição de dados da experiencia (e das matrizes da linguagem) para a
determinação de um tipo de comportamento não só possível, mas considerado
necessario à convivencia humana. Há, por certo, na instauração de um modelo jurídico,
um ato volitivo superador dos nexos causais, para conferir valor paradigmático a uma
dada estrutura normativa que, desta forma, não fica jungida ao plano das relações
empíricas. Isto explicaria, segundo Reale, por que Hume tenha falado em “artifício” e
Olivecrona em “imaginoso”, a propósito de regras jurídicas. O que há, porém, diz ele, é
uma tomada de posição, de fundo necessariamente axiológico e volitivo, perante a
realidade social e em função dela, de tal modo que entre o modelo jurídico, preferido ou
reconhecido, e a experiencia deve haver uma correspondencia isomórfica8 (acrescentarse-ia, uma correspondencia entre as três matrizes) como condição de seu êxito
operacional, ou de sua efetividade. De certo modo, por presumir-se que o modelo jurídico
corresponda a um conjunto motivacional fundado na análise objetiva dos fatos sociais,
In O direito como experiencia, pp. 164-167.
Isomorfismo. Filosofia geral. 1. Identidade de forma ou de estrutura. 2. Igualdade estrutural, cf.
M.H.Diniz, in Dicionario Jurídico, v. 2, p. 913.
7
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Maria Christina Napolitano
como paradigma de comportamentos normalmente previsíveis, proclama-se entre
outras razões, a obrigatoriedade do Direito, não se admitindo, em regra, a ignorantia
juris, como excusa de seu não cumprimento. É inegável que existe uma diferença
essencial, ou melhor, uma distinção vetorial de sentido proprio de cada espécie de
pesquisa do Direito, conforme se trate da pesquisa de um jurista, de um sociólogo do
Direito ou de um filósofo do Direito. Assim que: O jurista busca a compreensão
normativa de fatos, em função de valores. O sociólogo busca a compreensão fatual de
normas em função de valores. E o filósofo busca a compreensão axiológica de fatos em
função de normas. Distanciando-se um pouco deste ponto de vista, preleciona o jurista
espanhol Robles Morchón9, autor da “teoria comunicacional do Direito”, ao tratar da
questão da validade das regras jurídicas, que “o normativismo mantem um conceito que
pretende ser intrínseco de validade, desligado de toda vinculação com a abordagem
axiológica e empírica, de tal modo que por Direito válido haveria de entender-se nada
mais que o Direito juridicamente obrigatorio”. O conceito empírico, diz o eminente
professor espanhol, é o utilizado pelos sociólogos e por aqueles juristas que contemplam
todo o fenômeno jurídico através da concepção empirista do conhecimento
(sociologistas, psicologistas), para os quais Direito válido equivale a Direito efetivo, ou
melhor implantado na realidade social. Quanto à terceira, diz ele, é propria de moralistas
e de jusnaturalistas, que identificam o Direito válido com o Direito valioso e, portanto, a
validade com o valor. Simplificando as coisas, diz o insigne jurista, pode dizer-se que
estas três concepções da validade correspondem às três dimensões que costumam
assinalar-se como características do Direito: a validade normativa fixa-se na dimensão
da norma; a empírica no fato do Direito; a axiológica na dimensão do valor. No entanto,
Robles Morchón segue afirmando que “o tridimensionalismo não resolve nada, porque
estas três concepções seriam incompatíveis entre si”. E, diz ele, não é possível um
conceito eclético da validade que harmonize estas três concepções, na medida em que
cada uma reclama para si a pretensão absoluta de sua definição, com exclusão das
demais. Segundo o jurista, isto sucede porque no fundo, a discussão sobre a validade
constitui uma derivação imediata da discussão sobre o conceito de Direito. Para Robles,
na medida em que normativismo, sociologismo e jusnaturalismo, diz ele, mantem
concepções do Direito antagônicas e, portanto, irreconciliáveis, não pode esperar-se que,
de sua combinação, provenha a solução do problema. E, em seguida, o jurista destaca
que, das três concepções, a que aponta na direção correta é a do normativismo da Escola
de Viena, aduzindo as razões para esta sua afirmação. Permite-se, aqui, distanciar-se um
pouco da colocação reflexiva do eminente jurista. Até hoje, a tão criticada Jurisprudencia
dos Conceitos deixou-nos um legado do mais alto alcance, que é o sentido normativo e
sistemático do Direito, compreendido como lucidus ordo (ordem lúcida). O erro foi
considerar-se imutável e intangível um sistema jurídico-político que, como se sabe,
estava prestes a ser superado, sob o impacto de profundas inovações operadas na ciencia
e na tecnologia, dando lugar a conhecidos conflitos sociais e ideológicos. E o erro volta a
repetir-se, em nossos dias, até que se tomem iniciativas adequadas e competentes! É
9
In El Derecho como texto (Cuatro estudios de Teoría comunicacional del Derecho), p.156 e segs..
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Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
importante enfatizar que, antes mesmo que ocorresse a ruptura das vigas mestras do
Estado de Direito de tipo individualista, para a modelagem de um novo Estado de Direito
fundado na justiça social, houve clara percepção, por parte dos juristas, sociólogos e
filósofos da necessidade de abandonar soluções estereotipadas, incompatíveis com uma
sociedade que parecia disposta a correr o risco - risco este ainda não superado, de
comprometer a liberdade individual em prol de valores mais altos, como o da igualdade
e da propria sobrevivencia (aqui, incluídas as questões ambientais) É claro que nesta
procura de novos caminhos, visando atingir o Direito concreto, a questão da eficacia e da
efetividade assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas a se preocuparem
com soluções obtidas, ao calor da experiencia social, ainda que com alguns sacrificios
sobre a certeza e a segurança. Reale10 assim se expressa – quando, por exemplo, comenta
o tempo no Direito (fazendo inclusive menção a Jean Ray – um jusfilósofo, pioneiro
solitario, o verdadeiro precursor da Semiótica Jurídica no começo do século XX, um dos
primeiros a focalizar a natureza e o papel do tempo no Direito sob o ângulo filosófico): o
que interessa ao jurista não é o que possa haver nele de homogeneo e de indiferençado,
mas sim as diferenciações que ele comporta, a começar por aquela que, a seu ver,
constitui a natureza mesma do tempo no pensamento jurídico; a diferença irredutível
de qualidade, e até mesmo a posição, entre o passado e o futuro, entre a regra que já
esteve e a que está agora em vigor, significando, não uma separação absoluta, mas a
descontinuidade do tempo jurídico. O tempo, a seu ver, não é apenas o quadro dos
eventos, dos momentos, mas a base de uma articulação do pensamento “dans le
successif”, redundando na determinação de certos períodos intersticiais, segundo tais ou
quais caracteres jurídicos, períodos estes que são juridicamente qualificados ou servem
de base a qualificações11. Haveria duas ideias fundamentais nesta exposição: a da
descontinuidade do tempo jurídico e a da relação com a questão da qualificação dos
períodos. Reale ainda nos faz observar mais claramente que tais aspectos são possíveis
por ser o tempo, no Direito, uma trajetoria de valorações ou de “concretas situações de
significados”, em função do conjunto variável de fatores que determinam o constituir-se
das diversas estruturas normativas (a tríade: FATO X VALOR X NORMA : eficacia
(validade empírica); fundamento (validade axiológica); vigencia (validade normativa).
Para ele, a CIBERNÉTICA estaria apta a abrir novas perspectivas à compreensão do
tempo social e histórico; a sincronização instantanea de numerosas operações, propria
da automação, tornou sem sentido o modelo mecânico das operações em sequencia
linear, conforme ele nos orienta, de acordo com o exposto pelo filósofo, educador e
teórico da comunicação, o já citado, o conceituado canadense Marshall McLuhan12. E
In O direito como experiencia, p. 246.
Jean Ray – Essai sur la Structure Logique du Code Civil Français, Paris, 1926, cap. IV, seção I,
“Du rôle de la notion du temps”, p. 146 e segs..Trata-se, segundo Reale (in O direito como experiencia, p.
222, em nota de rodapé) de obra quase esquecida, mas que talvez merecesse maior atenção por parte dos
cultores de Filosofia do Direito e de Lógica Jurídica, inclusive por ter o seu autor estudado as proposições
jurídicas como “proposições modais”, com base nos ensinamentos de Randelet (Theorie Logique des
Propositions Modales, Paris, 1861) e de L. Brunschvigg (La Modalité du Jugement, Paris, 1897),
correlacionado-as com os problemas da ação e do tempo (op. cit., p. 52 e passim). Cf, sobre o assunto, à luz
da nova Lógica, Arthur N. Prior – Time and Modality, Oxford, 1957.
12 In Understanding Media, p. 301 e segs., cf. Reale, ibidem, p. 225.
10
11
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Maria Christina Napolitano
prossegue afirmando que o tempo vai perdendo sua “continuidade espacial”, atentandose mais para o sincrônico, o simultaneo ou o inter-relacionado. Assim como McLuhan –
e Reale também enfatiza –que do mesmo modo que os objetos não se situam no espaço,
mas geram seu proprio espaço, poder-se-ia dizer que cada experiencia jurídica gera seu
proprio tempo, como “duração significativa”.
Portanto, o que aparenta ser crise é, isto sim, a falta de exercício ou a falta conhecimento
das categorias semióticas (pessoas, espaço e tempo) que até agora não tem sido
suficientemente pensadas e desveladas, por nós, juristas, através das três
matrizes da linguagem. Reale já sinalizara:
1. Acomodamo-nos numa posição restrita e secundaria de analistas e
sistematizadores de um Direito posto por outrem (o legislador), sem situarmos a tarefa
da linguagem do Direito, em função da totalidade da experiencia jurídica. 2. Afastamonos cada vez mais da vivencia dos institutos jurídicos, só possível em correlação com a
imagem de síntese integral do Direito (fato x valor x norma), em seu perene evoluir. 3.
Não nos demos conta das categorias semióticas, de modo a atender as novas exigencias
do mundo contemporaneo, a tal ponto que ainda insistimos em aplicar esquemas
ultrapassados da Dogmática Jurídica, inspirada pelo antigo Estado liberal individualista,
e incompatível com o Estado da justiça social e das tarefas culturais reclamadas pelas
forças criadoras da linguagem e do pensamento. 4. Esquecemo-nos de que o Direito
surgiu e se alimenta da confiança depositada na vontade ordenadora, no poder de síntese
superadora, inerente à propria concepção humanística do Direito.
Confirmada, exaustivamente, a tridimensionalidade – sob qualquer dos
ângulos do pensamento pelos quais se analise o Direito como linguagem - nada
estranhável que esta nota característica seja considerada tanto pelo filósofo do Direito,
como pelo téorico do Direito: de certo modo, a tridimensionalidade é o ponto comum de
interseção ou de correlação existente entre as distintas indagações que tem o Direito
como objeto, permitindo, pois, o superamento artificialmente levantado entre Filosofia
do Direito e Teoria Geral do Direito, que devem ser distintas, sim, como esferas
autônomas de pesquisa - para se completarem reciprocamente, e não para se
contraporem de maneira abstrata e indesejável. Não existe o reino das formas puras ou
dos arquétipos eternos; existe, sim, algo que percebemos no processar-se da experiencia,
mas que trazido à luz da consciencia teorética, desde logo se põe como condição previa,
sob o ponto de vista lógico-transcendental (=ontognoseológico) da experiencia mesma:
em se tratando de linguagem natural, temos as condições lógico-transcendentais que
explicam a validade das leis que expressam as relações causais ou funcionais de caráter
fático; em se tratando de linguagem jurídica, temos as condições axiológicotranscendentais que nos dão a compreensão das conexões de sentido que constituem e
nos revelam os fenômenos de ordem ética.
O Direito, enquanto linguagem, apresenta-se-nos como um processo
comunicacional real que regula as condutas humanas sociais e se manifesta em textos
cujas matrizes são: a visual, a sonora e a verbal. O Direito, enquanto metalinguagem,
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Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
apresenta-se-nos como um sistema comunicacional possível que regula modularmente
(não necessariamente modelarmente) as condutas humanas sociais e se expressa em um
hipertexto, cuja característica principal é a continuidade13 de sua linguagem. A
especificidade do fazer semiótico não é apenas a aplicação de uma teoria dos signos –
importante ainda sim - mas também, o exame da significação como processo que se
realiza em textos e hipertextos, de onde emergem e onde interatuam sujeitos, agora,
com a linguagem na era digital e no ciberespaço. Não há como aceitar uma
interpretação econômica do Direito ou uma interpretação histórica do Direito,
mecanismos espurios que ainda contaminam nossa cultura jurídica. Já se vê que a tal
identidade auto-referencial do sistema jurídico impede qualquer esforço externo no
sentido de seu conhecimento operacional, que somente será possível à medida que
se considere o conjunto na complexidade de sua organização interior e no aporte de
conhecimentos científicos de outras áreas, sobretudo, as das ciencias cognitivas
(transdisciplinaridade). No decorrer do percurso gerativo de significação do texto,
podemos ativar o “funcionamento das conexões”, com “modos de integração e de
calibração do sistema” (indicadores autopoiéticos, cognitivos e outros) que vão
ajudar na(s) devida(s) estabilização(ões) da jurisprudencia; na escolha e seleção da
legislação; nos cortes burocráticos; na interpretação científica. Aguarda-se uma
comunidade que funcione como ideal regulador para qualquer comunidade de
investigadores efetivamente existente. Estas regras não serão, contudo, convenções
arbitrarias, mas originadas historicamente a partir do uso das comunidades linguísticas;
seriam, portanto, costumes que chegam a tornar-se fatos sociais reguladores, ou seja,
instituições. Tantas são as formas de vida existentes, quanto são os contextos
praxeológicos, tantos são, por consequencia, os modos de uso de linguagem, numa
palavra, os “jogos de linguagem”. As palavras estão, pois, sempre inseridas numa
situação global, que norma seu uso e é precisamente por esta razão que o problema
semântico, o problema da significação das palavras, não se resolve sem a pragmática, ou
seja, sem a consideração dos diversos contextos de uso. “Poder falar” significa ser capaz
de inserir-se num processo de interação social simbólica, de acordo com os diferentes
modos de sua realização14. Os juristas necessitam dar-se conta de que o Direito
é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como linguagem;
seja, o que quer que ele proponha e como quer que nos toque, o Direito o é
numa linguagem e como linguagem – propõe-se sê-lo numa linguagem
(nas significações linguísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos
através desta linguagem que é15.
A hipótese inovadora é, exatamente, a de que há uma correspondencia básica
13 A continuidade, ou melhor, a circularidade é um fenômeno que se produz com nítida aparencia
no universo jurídico como um todo, consistindo na sustentação recíproca de diversos tipos de discursos
sobre premissas de outros discursos; nesta interação de discursos jurídicos, cria-se um verdadeiro
mutualismo semiótico, onde um discurso se sustenta em um texto, e este, por sua vez, em outra prática
textual...
14 Vide Lenio Luiz Streck, ibidem, p. 53, em nota de rodapé, que por sua vez, nesta nota, baseia-se
em Manfredo Araújo Oliveira, Fundamentação. Porto Alegre: Edupucrs, 1993, pp. 53-54.
15 Cf. Castanheira Neves, p. 90, citado por Lenio Luiz Streck, ibidem, p. 54.
65
Maria Christina Napolitano
entre, de um lado, estas categorias e, de outro lado, a percepção e linguagens humanas:
a sonora pertenceria à matriz da primeiridade; a visual à secundidade e a verbal à
terceiridade. Daí se segue a surpreendente reinterpretação do mundo sonoro como o
domínio predominante do signo icônico; do mundo visual como o domínio
predominante do signo indicial; e do mundo verbal como o domínio predominante do
signo simbólico. O apoio para a tese das três matrizes está na propria teoria da
modularidade da mente humana desenvolvida no quadro das ciencias cognitivas, que
considera o verbal, o visual e o sonoro como os três módulos fundamentais da mente
humana. O campo de aplicação desta teoria, repete-se, é amplo, abrangendo a música, a
pintura, a arquitetura, mas também a televisão, vídeo, cinema, informática e linguagens
da hipermídia, o que nos leva a afirmar que não só a cultura contemporânea é híbrida,
mas todas as linguagens são híbridas, incluída aqui a linguagem jurídica! Toda a
produção diferenciada de signos, com que convivemos a cada minuto, hora e dia de
nossas vidas, é fruto destas misturas contínuas e de suas combinações imprevisiveis, que
Peirce ajudou-nos a descobrir e que Santaella, eminente pesquisadora brasileira da obra
de Peirce, fez chegar até nós. É ela que nos fala sobre o modelo da mente como um
paradigma dominante nas ciencias cognitivas. E estaremos a um passo da
CiberSemiótica. É assim que:
1) Sistemas informacionais, ainda que diferentes (como o sistema nervoso
central, seres humanos, máquinas, animais e organizações) processam informações do
mesmo modo; 2) Pensamentos lógicos conscientes são geralmente tomados como um
modelo para os processos cognitivos; 3) O entendimento é visto como categorial; 4)
Considera-se que os processos cognitivos podem ser quebrados como partes de um
processo e que, finalmente, podem ser vistos como uma serie de escolha linear; 5) A
percepção é vista primariamente como categorial e denotativa; 6) A aprendizagem é vista
como acontecendo de acordo com regras e principios e é vista primariamente como a
construção de estruturas do conhecimento; 7) Um sistema de linguagem é visto
primariamente como um mecanismo formal para a transferencia de uma formação pela
manipulação de símbolos entre humanos, máquinas e o homem-máquina; 8) Há uma
clara tendencia em se ver o sujeito cognitivo como análogo a um computador; 9) A ênfase
no aspecto sintático e estrutural da cognição, pensamento e comunicação conduz a uma
falta de ênfase na função das dimensões histórica e cultural-societal implícitas no
crescimento do significado comunicativo humano; 10) O mecanismo por trás da
memoria do crescimento do significado e do entendimento de símbolos é visto como uma
rede semântica. O significado é mantido numa rede de concepções mutuamente
definidas: a chamada estrutura do conhecimento, o que representa uma entrada muito
formal para a semântica.
3) Conclusões
O pesquisador e operador do Direito ou mesmo o cidadão em busca de uma
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Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
“linguagem jurídica”, nos textos e hipertextos, na atual era digital, precisa estar
“convencido” de que ela - linguagem jurídica também é uma “instituição”, que pode ser
revelada e fortalecida em suas matrizes e com a ajuda das novas tecnologias. Esta
constatação informa as alterações que se iniciaram internamente e se refletem para a
sociedade, contribuindo não apenas para compreender a maneira como os magistrados
realizam a jurisdição, mas se tornam vetores referenciais para medidas voltadas ao
enfrentamento da governança e das disfuncionalidades ocasionadas no seio da
sociedade. Pretende-se um aguçar dos estudiosos para o inicio de uma contribuição
teórica para a área de estudos em organização da informação e do conhecimento operada
por máquinas no ciberespaço. A efetividade do sistema jurídico, se administrado de
modo claro, pode ser uma esperança para que a população mantenha a confiança ativa
nas instituições públicas, no governo, nos agentes públicos e eventuais agentes
particulares envolvidos nesta busca. Isto significararia concretizar o princípio da
confiança na vida em sociedade, talvez o maior pilar da manutenção de si propria e,
essencialmente, a atividade primordial do Direito. Ao depois, com formatos das
informações dispostas na internet, e com emprego da linguagem digital, virá a
categorização de mecanismos de busca, a partir da correspondencia das tais matrizes da
linguagem com a indexação virtual e o modus análogo de busca etc., sob o criterio dos
paradigmas semióticos e da linguagem. A utilização do termo “mecanismos de busca”
sugere também toda a arquitetura de um search engine. Embora variadas, as
arquiteturas contemplam três etapas principais que são a captura do conteúdo, a
indexação e a própria busca. O desafio aos mais jovens operadores do Direito aqui fica:
criar uma tipologia para mecanismos de busca, visando ilustrar as múltiplas sintaxes de
organização e busca do conhecimento e informação no ciberespaço. O ciberespaço é
“uma grande máquina abstrata, porque semiótica, mas também social, onde se realizam
não somente trocas simbólicas, mas transações econômicas, comerciais, novas práticas
comunicacionais, relações sociais, afetivas e, sobretudo, novos agenciamentos cognitivos
{...} um espaço semântico semiótico, onde o signo se dá em varias semióticas,
desterritorializado, nômade, em escrita espacializada e com a memoria em constante
modificação”, como nos ensina Silvana Monteiro (2007, p.1;12). O ciberespaço sempre
terá e trará o problema da taxonomia do conhecimento e da multiplicidade dos signos,
seja em sua representação ou em sua organização. “Mecanismos de busca” são também
os programas de computador utilizados para a indexação e modus análogo de busca dos
recursos informacionais e de conhecimento no ciberespaço (search engine ou a captura
de conteúdo, indexação e busca). Pode-se vislumbrar que, à medida que as matrizes de
linguagem correspondam à indexação virtual dos estoques informacionais no
ciberespaço, e à medida que seu modus análogo de busca, visem consolidar uma
categorização baseada no paradigma semiótico das matrizes de linguagem, vai-se
contribuir cada vez mais para uma linha de pesquisa, em nosso caso, a representação e
organização do conhecimento e do pensamento jurídico, no ciberespaço, com a ajuda das
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).
Se não ocorrer esta revolução do humanismo, da cidadania, da democracia das
67
Maria Christina Napolitano
ideias, da arte de pensar e, mais, uma profunda evolução no processo educacional, o
século XXI não será o século da formação de pensadores, o século da preservação dos
direitos humanos, ao contrario, será o século das guerras, dos desentendimentos, do
paradoxo das informações, pois haverá uma alta incorporação de informações com uma
baixa capacidade de pensar criticamente. Precisaremos de homens e juristas bem
informados, grandes especialistas que navegarão cada vez mais, com mais desenvoltura,
pela intenet (enquanto existir como tal) que terão acesso às universidades virtuais e a
uma rica gama de informações, como nunca ocorreu anteriormente na historia da
humanidade, mas ao mesmo tempo homens que saibam pensar, duvidar, criticar as
convenções do conhecimento, transformar o conhecimento vigente, interpretar
criticamente os fenômenos, produzir ideias com originalidade, respeitar os direitos
humanos e o meio ambiente, repensar a si proprios, reciclar o autoritarismo, a
arrogancia e a rigidez intelectual. As escolas, principalmente as universidades, e,
sobretudo, as de Direito deveriam se tornar academias de formação de pensadores
especializados, de semioticistas. Viveríamos melhor, se buscássemos primeiro conhecer,
para depois criticar e estar em paz. Implementar cultura nova e mudar hábitos exigem
muito “investimento” - investimento em cultura. O digital é complexo. Requer disciplina,
integração e recursos. São muitas variaveis e decisões em tempo real. E se já não resta
dúvida de que o digital funciona, isso não quer dizer que possa ser absorvido com
banalidade. É preciso empreender um esforço significativo para fazer valer e defender
aquilo que John Stuart Mill definiu como “liberdade de espírito”. Uma vez perdida,
aqueles que crescem na era digital poderão ter dificuldade de recuperá-la. Isso pode ter,
também, consequencias políticas graves. Pessoas que não exerçam a liberdade de
pensamento serão facilmente manipuladas. Não se trata de ameaça para o futuro. Seria
aquela área em que nunca se falou tanto do futuro, tendo que se praticar tanto o que nos
ensina o passado. Sócrates, o filósofo de Atenas, acreditava no conhecimento, sim, mas
não na arrogancia dos presumidos conhecedores. Se é verdade que o discurso jurídico
parece a todo instante contaminado por uma espécie de triplicidade, é porque ele se
desenvolve sobre uma tríplice isotopia: a primeira é representada predominantemente
pelo discurso normativo e pelo discurso decisorio (matriz verbal), feito de enunciados
prescritivos e performativos, instaurando seres e coisas, instituindo as regras de
comportamento lícitos e ilícitos, ao passo que as outras duas aparecem sob a forma de
um discurso referencial que, embora subentenda uma elaboração ideológica e uma
cobertura narrativa do mundo (matriz sonora), apresenta-se como a representação do
proprio mundo social (matriz visual), anterior à propria fala que o articula. Isto
demonstra o enraizamento do jurídico no social, que se pretendeu deixar destacado nesta
investigação. É assim que o futuro do Direito parece oscilar entre a extensão de cada
matriz e a integração entre estas mesmas matrizes, através de uma linguagem, por
enquanto ou em seguida, digital. Este futuro é infinitamente exprimível no quadro de
processos limitados de apreensão do universo dos signos. Nem se pretende forçar uma
colocação definitiva, mas sim, uma possibilidade de escolha. Alguns juristas
defendem que não há que se falar em uma nova área do Direito, já que a Informática
68
Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
Jurídica está permeando praticamente todas as áreas tradicionais. Não merece
confundir-se “Direito de Informática” com “Informática Jurídica”, pois enquanto esta se
dedica ao estudo da tecnologia aplicada ao Direito, aquela, em verdade, busca
regulamentar relações jurídicas ocorridas no âmbito ou através das tecnologias da
informação e comunicação. Nem se deve confundir o Direito de Informática com o
processo eletrônico, uma vez que este diz respeito ao uso da Informática no processo,
enquanto aquele trata dos aspectos jurídicos referentes à Tecnologia da Informação.
Precisamos de arquitetos de resolução de problemas, que busquem soluções de
forma crítica, muito mais do que profissionais que apenas se atenham ao que está nos
Códigos e nas Leis. A Semiótica tem sido incorporada em diversos programas de ensino.
Ao lado da Sociedade Internacional de Semiótica, fundaram-se numerosas sociedades
nacionais: a alemã, a austríaca, a norte-americana, a canadense e assim por diante. Esta
disciplina já é aplicada à teoria do conhecimento e da ciencia, à pedagogia e à didática, à
estética, ao design, à linguística, à literatura, ao cinema, ao teatro, às artes visuais
(pintura, fotografia), à teoria do comercio, à Medicina, à Biologia, à imprensa e assim por
diante. Por que não, ao Direito? Seja para principios e questões fundamentais, seja
para melhor interpretação de questões atuais como: privacidade e proteção de dados
pessoais, direito ao esquecimento, liberdade de expressão, comercio eletrônico,
responsabilidade civil na internet, segurança da informação, e para assuntos como os
novos enfoques do Direito Internacional aplicados ao Direito Digital, bitcoins e moeda
digital, arranjos de pagamentos, deep web, as implicações na era dos aplicativos, diluição
de marca e importação paralela na internet e tantos outros, como compliance e ética nas
empresas, Instituições e Políticas Públicas e assim por diante. É chegado o momento de
tentar desvendar a linguagem do Direito e a linguagem sobre a linguagem do Direito,
para analisá-la, interpretá-la e compreendê-la, com mais lucidez e rapidez. Textos entre
textos, os códigos, as compilações, as recolhas normativas, os trabalhos de exegese
legislativa, as decisões jurisprudenciais representam unidades dotadas de vida propria a vida dos textos. E assim permanecerão. Estes formam um repertorio de elementos
jurídicos sujeitos a uma reapreciação crítica contínua, tudo nos exatos termos de uma
proposta semiótica. A linha entre o legal e o ilegal, o ético e o inoportuno, o certo e o
errado torna-se cada vez mais tênue. O termo Direito possui uma dimensão de signo e
sua operacionalidade encontra-se comprometida com sua faceta sígnica. Num momento
de intensa “Economia Criativa”, onde novas tecnologias ditam as tendencias dos
costumes e comportamentos dos indivíduos que não mais convivem apenas em
territorios físicos, aprisionados em seus proprios ordenamentos jurídicos, e sim, em um
ambiente plano, global e digital, em que contratos privados, como os termos de Uso e as
Políticas de Privacidade dos serviços e aplicativos da internet regem a vidas das pessoas
e determinam as regras do jogo para populações cada vez mais densas, multiculturais e
multinacionais, é preciso iluminá-lo sob este aspecto.
O conceito atual da “Sociedade Aberta” (Open society), segundo Don Tapscott,
um dos maiores especialistas em Geração Digital, traz consigo quatro grandes principios:
Colaboração (Collaboration), através de redes de inteligencia (networked
69
Maria Christina Napolitano
intelligence); Transparencia (Transparency); Compartilhamento de Conteúdo e
sua Propriedade Intelectual (Sharing); e Mobilização (Empowerment).
Confirmando o que foi dito, a respeito da importancia do pensamento e de como
trabalhar com ele, a jurista brasileira Patricia Peck (in Direito Digital, p.27) afirma: “Esta
coesão de pensamento possibilita efetivamente alcançar resultados e preencher
lacunas nunca antes resolvidas, tanto no âmbito real quanto no virtual, uma vez que é a
manifestação de vontade humana em seus diversos formatos que une estes dois mundos
dentro do contexto jurídico”. As características do “Direito Digital”, como ela afirma, são
as seguintes: celeridade, dinamismo, autoregulamentação, poucas leis, base legal na
prática costumeira, uso da analogia e solução por arbitragem. Os principios do Direito
continuam os mesmos, indiscriminadamente: “suum cuique tribuere”; “neminem
laedere” e “honeste vivere” (ou seja, “dar a cada um o que é seu”, “a ninguém lesar” e
“viver honestamente”) - que, hoje, frente à velocidade dos avanços técnicos alcançados
pela humanidade, poderiam ser transcritos como: “eficacia do provimento
jurisdicional”; “proporcionalidade entre as pretensões das partes” e “potencial uso
lícito da tecnologia”. E aconselha: “Saber estabelecer estrategias jurídicas eficientes no
mundo cada vez mais digital e virtual é condição de sobrevivencia do profissional do
Direito, uma vez que cada vez mais o tempo e a tecnologia atuam de modo a exigir
celeridade e flexibilidade nas soluções jurídicas. A questão que se coloca é de eficacia.
Para isso, o operador de direito tem que antever os acontecimentos, preparar contratos
de modo flexível para que sobrevivam às mudanças rápidas que a sociedade atravessa.
Tem de ser um estrategista. Dar os caminhos e as soluções viáveis, pensados no contexto
competitivo e globalizado de um possível cliente virtual-real, convergente e
multicultural. A complexidade da sociedade traz mais complexidade jurídica. Já não é
mais suficiente conhecer apenas o Direito e as leis; devem-se conhecer os modelos que
conduzem o mundo das relações entre pessoas, empresas, mercados, instituições e
Estados”. Seria o momento de se pensar em como as Faculdades de Direito devem
formar operadores jurídicos, exigindo que eles tenham, além de um conhecimento
técnico, uma forte base teórica sobre os principios que regem a nova era digital e suas
implicações. Aos atuais e atuantes jusidealistas, jusestrategistas e jusespecialistas fica
esta contribuição: ter-se chamado a atenção para a existencia simultanea na mente e no
ciberespaço, de três matrizes virtuais de organização e busca da informação e do
conhecimento; para a necessidade de constante monitoramento técnico e intelectual,
para que se acompanhe compreensivamente o avanço sociotécnico dos produtos de
informação e de conhecimento, ou seja, os mecanismos de busca, pertinentes aos estudos
da área da ciencia da informação, e ter-se chamado a atenção para a oportunidade da
técnica de uma Semiótica Jurídica, mesmo porque nunca o novo precisou tanto do velho
para atingir seus objetivos, se é que se pode dizer que esta disciplina estaria ultrapassada.
Daí a necessidade de contarmos com operadores do Direito ou juristas semioticistas,
como estrategistas, que saibam usar as novas tecnologia com segurança e agilidade e
que tenham conhecimento sobre os processos de construção do pensamento, sobre o
processo de interpretação e sobre os limites e o alcance de uma teoria. Nas últimas
70
Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa...
décadas, por toda parte, tem-se podido observar uma forte tendencia para modos de
reflexão semióticos. Sua motivação externa pode detetar-se no desenvolvimento formal
de muitas ciencias que pressupõem o conceito de signo, mas sem havê-lo investigado ou
que empregam uma classe especial de signos e sistemas de signos, sem relacioná-los com
uma Teoria Geral dos Signos (ou com uma Teoria da Informação). A Semiótica é
uma disciplina pouco explorada e nem em toda a parte tem sido aceita como disciplina
autônoma de ensino, em cursos, seminarios e coloquios. Não obstante, em muitos
lugares, é estudada e aplicada intensivamente, pelo menos em grupos de trabalho de
caráter interdisciplinar e transdiscipplinar. Que não se veja nesta “tentativa de
persuasão” uma explosão de irracionalidade argumentativa; se continuarmos com uma
visão prosaica, parcial ou incompleta do fenômeno jurídico, vamos continuar incapazes
de impedir momentos de grave conflagração social e continuaremos a conduzir a
resultados insatisfatorios no fortalecimento de nossos laços sociais e na legitimidade de
nossa organização política. O momento atual está a refletir um amplo sistema, que
prescinde de uma sólida coordenação de instituições públicas, de todas as instancias e de
esferas da Administração Pública e algumas até de natureza privada, com conexões
internacionais, cuja atuação fornece subsídios à atuação estatal, quer no trabalho de
investigações e atividades ministeriais, quer no âmbito da atividade jurisdicional, ou
seja, todos os integrantes do sistema são indispensáveis. A participação da
sociedade civil é essencial, não só pela capacidade de oferecer informações e subsidios,
que escapam às vezes de sofisticados sistemas de investigação, como garantir sua
legitimidade e credibilidade. O esclarecimento da sociedade, por exemplo, a respeito do
combate à corrupção, é essencial para que o discurso político não fique dissociado dos
princípios estruturantes aqui apontados e orientados, ainda que seja de forma simbólica,
visando o sucesso do sistema como um todo. Seja a doutrina ou discurso científico, seja
a legislação ou discurso normativo precisam assimilar tais postulados oxigenadores do
modo de agir do Estado, os quais se posicionam para a Administração Pública como
vinculantes impositivos e internacionalmente reconhecidos e difundidos como as
melhores práticas a serem adotadas pelas nações desenvolvidas, uma vez que só com
ampla transparencia e efetiva participação dos cidadãos, os governos preocupados com
a legitimidade decorrente da aprovação popular conseguirão atingir o patamar almejado
pelo governo democrático, “o governo do poder público em público”, como se expressou
Norberto Bobbio (in “O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo”).
Compreender estes circuitos não é calar a razão e o agir comunicativos, mas transformálos e ampliá-los cada vez mais. Autores de extrema relevancia para a compreensão de
nossa condição humana não nos deixam esquecer o mal estar que nos habita, lembrandonos que amar a existencia é enfrentar intensamente tudo o que há de belo e miserável,
luminoso e sombrio, nas voltas, desvios e reviravoltas da vida.
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71
Maria Christina Napolitano
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73
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA? CRIMES
CONTRA
A
VIDA
INTRA
UTERINA:
DA
DETERMINAÇÃO DO INÍCIO DO BEM JURÍDICO
TUTELADO A SUA PROTEÇÃO
Caroline Buarque Leite de Oliveira1
1) Introdução
Um dos crimes mais intrigantes a ser estudado na seara dos crimes contra a vida
é sem dúvida o aborto. Justamente por ser uma temática polêmica, que envolve aspectos
não apenas ligados ao Direito, mas também, a esfera política, religiosa, sociológica,
filosófica, médica e outras correntes, a vida íntima da mulher, que aliadas, discutem
ainda hoje sobre a descriminalização ou não do aborto nos mais diversos países.
Sendo um tipo penal que sempre esteve ligado também às questões políticas, o
aborto, dessa forma, servia de pauta para os legisladores, sucessivamente, discutirem
sobre a sua descriminalização, levando-se em consideração o real momento do início da
vida, para que tal tipo penal gerasse uma punição para quem o cometesse.
Decidir sobre como a mulher iria dispor do seu corpo e da vida intra uterina que
estava em seu ventre não é uma tarefa fácil. Tanto que em Portugal foram feitos dois
referendos, um em 1998 e outro em 20072, e apenas no segundo, considerou-se a
possibilidade de descriminalizar o aborto e conceder livre arbítrio à mulher a decidir
levar a diante ou não a gestação, segundo critérios estabelecidos que serão vistos nos
capítulos seguintes.
Acreditava-se que com a permissão para a gestante tomar tal decisão, haveria
uma diminuição do número de abortos clandestinos, gerando menos mortes para as
mulheres que cometiam tal crime, e assim, daria mais dignidade e saúde a vida da
mulher, que teria a liberdade em decidir sobre como dispor da vida intra uterina que
estava em seu ventre.
1 Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa – Turma T13. Advogada.
Autora de Livro. Mediadora Judicial e Extrajudicial de Conflitos por empresa autorizada pelo Conselho
Nacional de Justiça – CNJ. Conciliadora Voluntária da Seção Judiciária de Maceió da Justiça Federal de
Alagoas. Pós Graduada em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ. Pós
Graduada em Direito Constitucional pela Universidade UNIDERP-Anhanguera-MS. Membro Voluntário do
Gespública – Programa de Qualidade do Governo Federal em parceira com a Fundação Nacional da
Qualidade – FNQ. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes – Maceió/AL. Especialista em
Engenharia de Software pela Fundação Educacional Jayme de Altavila – FEJAL; Bacharela em Ciência da
Computação pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL.
2 No primeiro referendo não foi positiva a resposta da população sobre a descriminalização do
aborto caso fosse realizado nas 10 primeiras semanas de gestação. Já no segundo, a resposta foi positiva,
dando origem a Lei 16/2007. O aborto é considerado lícito se praticado voluntariamente dentro das 10
primeiras semanas de gestação, ou seja, até quando se tem fixação do ovo no útero (nidação), sendo este o
bem jurídico tutelado ao falar em vida intra uterina. SILVA, Fernando - Direito penal especial: crimes
contra as pessoas. p. 187-193.
Caroline Buarque Leite de Oliveira
Ou seja, a decisão de permitir o aborto até um determinado tempo por livre
escolha da mulher gestante, seria uma forma de diminuir o número de mortes das
pessoas desse grupo que se apresentava vulnerável, pensava o legislador. Porém, de fato,
ainda com a descriminalização em determinados casos, a saúde e a vida das mulheres
continuam em risco, e os abortos clandestinos acontecendo, gerando dúvidas sobre se o
resultado do último referendo realmente trouxe eficácia para o que se propunha.
Muitas questões surgem, e uma delas é justamente quando se considera o início
do bem jurídico tutelado no crime de aborto, ou seja, qual o início da vida intra uterina?
Qual a diferença da vida formada para a vida em formação? Que vida, em sentido geral,
é tutelada pela constituição portuguesa? Até que ponto o aborto é descriminalizado? E
quando passa a ser um crime suscetível de punição?
Com o uso de uma metodologia dedutiva, pautado em pesquisas bibliográficas,
legislação, jurisprudência, artigos científicos e materiais afins, o presente trabalho foi
dividido sem o objetivo de exaurir todas as questões que surgem acerca do início da vida
intra uterina e da tutela desse bem jurídico.
Dessa forma, para contextualizar o assunto a ser discutido, o capítulo seguinte
fará uma abordagem histórica acerca do aborto no cenário mundial, destacando
especialmente o caso de Portugal. Já no segundo capítulo será analisada a formação da
vida intra uterina. No terceiro capítulo, far-se-á um estudo do bem jurídico tutelado, bem
como a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Concluindo-se no capítulo
final, algumas questões inerentes ao assunto abordado.
2) Aborto: uma abordagem histórica
O tão polêmico aborto já teve épocas em que fora permitido; seja como método
de contracepção3, seja como método de controle de natalidade quando se precisava que
nascessem mais homens para as guerras, ou ainda, que a taxa de natalidade diminuísse
em virtude da falta de alimentos ou estrutura Estatal; o tema do aborto sempre circundou
as mais diversas épocas da história.
O aborto já foi permitido na Antiguidade. Na época, a limitação imposta era que
a prática abortiva fosse consentida por uma figura masculina4. Filósofos como Platão,
Sócrates e Aristóteles, defendiam o aborto. Na Grécia antiga, por exemplo, era fonte de
controle populacional.
Já em Roma, no período Republicano Romano, o aborto foi permitido, porém
passou a ser considerado crime no período Imperial, haja vista a baixa taxa de natalidade
3 CAMPOS, Ana – Crime ou castigo: da perseguição contra as mulheres até à despenalização do
aborto. p. 9; Coimbra: Editora Almedina, 2007.
4 TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível
em:http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252012000200017.
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Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina...
no país. Com isso, uma legislação mais dura passou a reger àquela época, e o ato passou
ser considerado criminoso.5
O que marcava a prática permissiva abortiva na antiguidade era justamente o
interesse patriarcal; ferir o modelo em que o patriarca detinha o poder não fazia parte de
interesses políticos. Sendo assim, a vida era “deixada de lado” em detrimento ao “poder
político”.
O que ficava mais marcado nesses períodos era que não só a vida intra uterina,
mas especialmente, a vida da mulher, não era levada em consideração nas decisões das
práticas abortivas, sejam elas para acontecerem ou não. A mulher parecia não ter “voz”
nessas decisões, e muitas vezes o que ocorria era a morte dessas gestantes, que se
submetiam aos mais diversos métodos para retirada da vida que estava em seu ventre,
causando-lhes muitas vezes graves lesões, mutilações, além das consequências
psicológicas, e levando muitas vezes a mulher à morte.
Foi na época da Igreja Católica em que realmente o aborto passou a ganhar
destaque como prática criminosa, e receber um sentido conotativo negativo. Porém o
grande marco histórico mundial para criminalização do ato foi justamente a partir da
Revolução Francesa6. Os ideais libertadores da Revolução levaram os países a diversas
lutas e guerras, e com isso, o número de mortos aumentava significativamente, além do
número de mortes causadas por epidemias, diminuindo muitas vezes a mão de obra
necessária ao trabalho, e ainda, a continuidade da família patriarcal.
Uma das consequências vistas de se proibir o aborto com o intuito de aumentar o
número de nascimentos, foi justamente no período Pós Primeira Guerra. Cada vez mais
os países participantes das batalhas precisavam de um exército mais numeroso, e o
aumento da prole era de interesse do Estado. Essa prática de permitir ou não o aborto
consoante interesses políticos foi permeando vários países no mundo, especialmente na
Europa.
Apenas com a participação da mulher na sociedade, entrando realmente no
mercado de trabalho, e quando os movimentos feministas começaram a ganhara alguma
força, foi que os países passaram a “dar voz e vez às mulheres”, ou seja, os países
passaram a ter legislações7 que permitissem a mulher escolher sobre como dispor no seu
corpo no caso do aborto.
5 TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível em:
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200017
6 As primeiras legislações que consideravam o aborto crime surgiram na França. TORRES, José
Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível em:
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200017
7 Na Alemanha ocidental, em 1974 foi permitido o aborto nos três primeriso meses de gestação. Em
1981 houve um referendo na Itália onde a mulher pode escolher como dispor de seu corpo, no caso do aborto,
sendo esta a opção escolhida pela maioria. Uma Lei chamada Lei Veil, que legalizou a prática do aborto, foi
aprovada na França em 1975. TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada.
[Em linha]. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252012000200017
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Caroline Buarque Leite de Oliveira
a) A situação histórica do aborto na perspectiva de Portugal
No ordenamento jurídico Português, considerando-se, por exemplo, as
Ordenações Filipinas, o aborto era considerado crime, porém, não autônomo. Isso
significava que era punido conforme um crime de homicídio, pois assim era tratado,
sendo as mulheres que o cometiam, perseguidas naquela época.
Foi apenas com o Código Penal de 1852, que se estabeleceu o aborto como um
crime autônomo, sendo punido de forma diferente do crime de homicídio, conforme
previsto no seu artigo 358º. Entretanto, conforme ensina o Professor Fernando Silva, em
virtude dessa autonomia entre o aborto e o crime de homicídio, havia uma “incriminação
plena”8 para o tipo penal do aborto.
Já no novo Código Penal de 1982, reiteraram-se as possibilidades de permissão
para que o aborto pudesse ser realizado, vindo a Lei 6/84 trazer algumas circunstâncias
para que o aborto fosse permitido sem que houvesse punição. Essa época coincidia
justamente com o aparecer da Procuradoria Geral da República - PGR, num momento
em que se discutia justamente sobre a proteção que a Constituição dava em seu artigo
24º à vida.
A PGR justamente defendia que no artigo 25º não havia critérios decisivos para
afastarem a dúvida relacionada á proteção constitucional dada no artigo anterior à vida,
ou seja, se abrangia a vida já formada ou também a vida em formação. E dessa forma os
procuradores optaram justamente por entender que a Constituição Portuguesa em seu
artigo 24º apenas protegia a vida extra uterina. Foi a partir de então que surgiu toda a
discursão em torno do que realmente tutelava o artigo 24º da Lei Maior de Portugal,
gerando correntes a serem discutidas no próximo capítulo.
Mas foi com revisão ocorrida no Código Penal Português no ano de 1995, que
culminou em seguida com a edição da Lei 90/97, que o referido diploma legal passar a
trazer circunstâncias de não punibilidade para o ato abortivo praticado sob determinadas
circunstâncias. Sendo a maior alteração no Código Penal em relação à descriminalização
do aborto, a ocorrida pela Lei 16/2007, que sacramentou o referendo de 2007, deixando
de ser caracterizado como ato criminoso o aborto praticado dentro das 10 primeiras
semanas de gravidez.
8 Artigo 358º “O Aquele que de proposito fizer abortar uma mulher pejada, empregando para este
fim violências, ou bebidas, ou medicamentos, ou qualquer outro meio, se o crime for cometido sem o
consentimento da mulher, será condenado na pena de prisão maior temporária com o trabalho. §1. Se for
cometido o crime com o consentimento da mulher, será punido com a prisão maior temporária. §2. Será
punida com a mesma peno a mulher, que consentir e fizer uso dos meios subministrados, ou que
voluntariamente procurar o aborto a si mesma, seguindo-se efetivamente o mesmo aborto. §3. Se porém no
caso do parágrafo antecedente, a mulher cometer o crime para ocultar a sua desonra, a penas será a prisão
correcional. §4.O médico, ou cirurgião, ou farmacêutico, que, abusando da sua profissão, tiver
voluntariamente concorrido para a execução d’este crime, indicando, ou subministrando os meios, incorrerá
respectivamente nas penas, agravadas segundo as regras gerais.” CÓDIGO Penal Português de 1852, 6ª. ed.
Editora:
Universidade
de
Coimbra,
1881,
p.
195.
[Em
linha]
Disponível
em:
http://www.fd.unl.pt/anexos/investigacao/1267.pdf
78
Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina...
3) A formação da vida intra uterina
Apesar de ser um assunto inerente à matéria penal, não há como falar no crime
de aborto, sem antes discutir sobre a vida intra uterina, que é assunto muito mais ligado
a área médica.
É sabido que hoje, além da forma de concepção natural de reprodução de homem
e mulheres, onde o espermatozoide fecunda um óvulo, formando um ovo, que dará
origem a um embrião e mais na frente, a vida humana, existe ainda outras formas de
reprodução que são realizadas em laboratórios, em que óvulos já fecundados são
guardados, para depois serem implantados no útero de uma mulher, a fim de que haja o
desenvolvimento de uma vida. Acerca desse tipo de reprodução artificial, não entraremos
em detalhes no presente trabalho, pois envolve outras questões genéticas que não são
objetos deste estudo.
Mas então, a partir de quando se forma a vida? A Constituição Portuguesa
garante em seu artigo 24º a proteção à vida humana. Mas e quando começa essa
proteção? Será que a vida a que a Lei Maior Portuguesa faz referência, inclui a vida intra
uterina?
Essas questões são bastante discutíveis, até entendermos o que é realmente a vida
intra uterina, e o bem jurídico que é tutelado no crime de aborto, tipificado no Código
Penal de Portugal. Primeiro é preciso diferenciar a vida formada da vida em formação.
Apesar de toda uma discursão e muitas vezes divergências entre direito, religião
e ciência, para pautar os referendo de 1998 e 2007, e a lei 16/2007, o legislador
considerou como início da vida o momento da nidação, ou seja, o momento em que o ovo
(óvulo já fecundado) se fixa no útero materno, por entender que a partir desse momento,
existiria maior possibilidade do desenvolvimento da vida intra uterina, que então,
deveria ser protegida pelo Estado.
Dessa forma, como a nidação ocorre normalmente entre o 10ª e a 13ª após a
fecundação, segundo estudos das ciências na área médica, apesar de antes deste
momento ocorrer várias divisões celulares que darão origem justamente a um ovo, e de
poder existir, ainda que remota, a possibilidade de sobrevivência após ser fixado no
útero, os legisladores entenderam não haver vida a ser tutelada antes da nidação. Este
juízo levou justamente a decisão de descriminalizar o aborto voluntário ocorrido por
decisão da mãe nas 10 primeiras semanas de gestação, sendo assim, considerado um ato
lícito, não passível de nenhuma punição, pois sequer é considerado um crime.
Para os legisladores, esse livre arbítrio, permitiria que a mulher gestante pudesse
realizar a retirada da vida ainda em formação, de forma digna, dentro dos preceitos de
saúde os quais possuem direito, evitando-se ainda os abortos clandestinos que eram
realizados e deixavam essas mulheres correndo risco de vida, sendo realizado de
qualquer jeito, sem a presença de um médico ou clínica especializada.
Desde o referendo realizado em 2007, foi criada a Lei 16/2007, dando proteção
79
Caroline Buarque Leite de Oliveira
às mulheres que interrompessem a gestação até as 10 primeiras semanas, e não
considerando o aborto como crime, ou seja, havendo uma descriminalização, desde que
atendido os requisitos desta Lei específica, porém, mantendo-se o tipo penal aborto com
possibilidade de punição para os demais casos tipificados no Código Penal Português,
tendo em vista o bem jurídico tutelado: a vida intra uterina, O aborto trata-se então, de
um tipo penal que tem por bem jurídico tutelado a vida intra uterina. Dessa forma, desde
a nidação, ocorrida entre o 10º e o 13º após a fecundação, até o início do parto, considerase, em regra, o crime de aborto. Após este período, o início do parto, o crime passa a ser
considerado de homicídio.
Torna-se complicado, especialmente para os mais religiosos aceitar a concepção
de que a vida, tutelada inclusive na Constituição de Portugal, não é considerada desde o
momento da concepção, haja vista que ocorre a fecundação e é gerado um ovo, que apesar
de ainda não fixado no útero, está passando por transformações celulares, que darão
origem a um embrião e depois feto, caso ocorra tudo bem até o final da gestação. Ou seja,
é difícil descartar que a possibilidade de geração de vida. Não estamos falando em casos
como o de uma gravidez tubária, em que o ovo fica nas trompas e se sabe que não existe
cientificamente possibilidade de desenvolvimento.
Mas estamos questionando um óvulo já fecundado pelo espermatozoide, que já é
um ovo, e que tem probabilidades, ainda que não garantida de tornar-se uma vida intra
uterina a ser protegida, bastando com que consiga se fixar no útero da mãe, e assim,
poder desenvolver-se. Ainda hoje não há uma unanimidade nessa decisão, tanto é, que
no primeiro referendo não houve aprovação. E como hoje, há muita fertilização in vitro,
sendo congelados aqueles ovos para depois ser implantados, No Brasil, por exemplo, se
sabe que não se pode jogá-los fora; tem que ser doados para pesquisa, para outros casais
que assim desejem ter filhos, ou guardados pelo casal que o gerou, pagando por seu
armazenamento, ainda que não vá utilizá-los. Pensando dessa forma, poderia entenderse que já existe então uma vida desde a fecundação, diferentemente do que defende a
legislação portuguesa.
E finalmente, o artigo 24º da Constituição de Portugal tutela que vida, a extra
uterina ou a intra uterina? Se fosse responder essa pergunta com base no princípio da
dignidade da pessoa humana e nas ponderações usadas por Robert Alexy, poderia dizer
que “na dúvida, faça a interpretação que perfilhe maior eficácia aos direitos
fundamentais”, e assim, ambas as formas de vida estariam tuteladas pela Lei Maior
Portuguesa. Essa é a linha defendida por esta autora. Porém há outras correntes.
Há a corrente defendida pela procuradoria Geral da República, já comentada
amplamente no capítulo anterior. Existe ainda a corrente defendida Por Almeida Costa,
que sustenta “a proteção à vida pré-natal e á vida já formada, acrescentando que a
punição do aborto deve ser a regra no sistema penal português”9.
Essa corrente está em consonância com a jurisprudência Constitucional dos
9
SILVA, Fernando - Direito penal especial: crimes contra as pessoas. p. 189.
80
Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina...
Acórdãos 25/84 e 85/85 do Tribunal Constitucional, em que o entendimento é de que a
Constituição Portuguesa considera ambas as formas de vida em seu artigo 24º, ou seja,
não há que se fazer distinção entre vida formada e vida em formação para que haja uma
tutela constitucional. Cumpre destacar que no Código Penal de 188610 no mesmo artigo
358º que tratava sobre o aborto, trouxe uma maior penalização para a sua prática, ou
seja, após o Tribunal Constitucional concordar que o artigo 24º da Constituição de
Portugal protegia ambas as formas de vida, extra e ultra uterina, as penas para quem
cometesse o aborto passaram a ter maior gravidade.
Por fim, uma terceira corrente não impõe a obrigação do Estado tutelar a vida
intra e extra uterina, devendo haver uma ponderação na hora de verificar que lesões
devem ser incriminatórias ou não. Seria uma corrente considerada “intermediária”.
Nota-se que há uma preocupação em demonstrar que mesmo em relação à vida,
não há esse direito absoluto. De fato, é o que ocorre com a vida intra uterina estudada
neste capítulo e sua possibilidade de ser extinta de forma voluntária até as 10 primeiras
semanas de gestação, conforme Lei 16/2007, não havendo criminalização, ou seja, tratase de um bem jurídico tutelado, mas não de um direito absoluto. Deve haver ponderação
para que seja o aborto seja considerado um crime tipificado no Código Penal Português.
4) Bem jurídico protegido: a vida intra uterina e sua tutela
jurídica
Insta destacar, que por mais que falemos em vida intra uterina, é necessário
entender o tipo penal do crime aborto, considerado pelo Código Penal de Portugal, pois
é partir daí que será dado entendimento ao que deve ser tutelado pelo Estado e ser
punível como crime, e o que é despenalizado e não passível de nenhuma sanção penal, e
ainda, o que é descriminalizado.
Apesar estudo do tipo penal em si não ser o objeto do presente trabalho é
importante destacar o artigo 140º previsto no Código Penal Português, para que
justamente, possamos chegar à conclusão do bem jurídico tutelado no crime de aborto.
Transcrevamos o artigo supra:
“Artigo 140.º Aborto11
1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida,
a fizer abortar é punido com pena de prisão de dois a oito anos. (grifo nosso)
2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida,
a fizer abortar é punido com pena de prisão até três anos.(grifo nosso)
[...]”.
10 Artigo 358º. CÓDIGO Penal Português de 1886, 7ª. ed. Editora: Universidade de Coimbra, 1886,
p. 107. [Em linha] Disponível em http://www.fd.unl.pt/anexos/investigacao/1274.pdf
11 Artigo 140º. CÓDIGO Penal Português de 2007, p. 133. [Em linha] https://www.iebeib.org/nl/pdf/loi-portugal-euthanasie.pdf
81
Caroline Buarque Leite de Oliveira
No decorrer do presente estudo ficou claro que o bem jurídico tutelado no crime
de aborto era a vida intra uterina, sendo este inclusive o título do capítulo que trata sobre
o assunto no Diploma Legal Português. Porém, conforme analisemos o artigo 140º,
percebemos que o aborto trata-se de um crime pluriofensivo, ou seja, não há ofensa
apenas a vida intra uterina. Isso fica claro no grifo feito no artigo acima, quando
destacamos que o legislador previu uma pena maior para o crime de aborto sem o
consentimento da mulher.
Ora, a pena base parte em abstrato de dois anos no aborto sem consentimento da
gestante, é praticamente a pena total de quando o aborto é consentido pela mulher,
chegando até pena máxima de 8 anos. Isso só vem a demonstrar que o crime de aborto
não tutela apenas a vida intra uterina, mas tutela também a vida da mulher gestante, pois
se assim não o fosse, não haveria razão do legislador prever penas tão mais graves
quando o aborto não fosse consentido pela mulher grávida, não tolerando a violação de
direitos fundamentais e direitos humanos como o direito à vida, e dessa forma levou em
consideração o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Além desse fato, desde o início do trabalho, vimos que a descriminalização do
aborto ocorrida nas 10 primeiras semanas da gestação visava também proteger a vida da
mulher, que na maioria dos casos, procurava clínicas clandestinas para realizar o aborto
quando este não era permitido em Portugal até o período mencionado.
O fato da escolha do marco do início da vida ser considerado a nidação deve-se
ao fato de que a maioria dos ovos não sobrevive antes desse momento, ou seja, entre a
10ª e a 13ª após a fecundação. Há doutrinadores que chegam a dizer que apenas 50%
sobrevivem, mas essa taxa segundo conceitos médicos é bem menor. Por isso esse foi o
período escolhido para o início da vida no caso da legislação portuguesa, pois antes desse
momento seria improvável ter-se expectativas de se gerar uma vida. Desataca-se que a
proteção em relação à vida intra uterina vai desde à nidação até o início do parto.
A título de curiosidade, em relação às questões que envolvem a personalidade
jurídica da vida em formação, o Código Civil Português é muito claro em seu artigo 66º
que diz:
(Começo da personalidade)
“1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo
e com vida.
2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu
nascimento.”
Ora, é perceptível que pela leitura do artigo, que por lei, só se adquire
personalidade jurídica com o nascimento com vida. Entretanto, não há como não
mencionar que existem decisões Supremo Tribunal de Justiça de Portugal – STJ que já
veio a conceder personalidade jurídica ao nascituro em caso de danos morais,
82
Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina...
considerando a personalidade jurídica desde o momento da concepção12.
Hodiernamente, em Portugal existem modelos de justificação para o aborto em
determinados casos, e nesses modelos, no caso português, o modelo das indicações, a
prática do aborto, apesar de criminosa torna-se justificada, havendo a chamada
despenalização. As indicações são casos de excepcionalidade, pois em regra, pelo Código
penal Português traz o aborto como tipo criminoso.
5) Conclusão
Embora já tenham se passados décadas, o aborto é um tema que sempre está em
discursão. É um assunto polêmico, e não estritamente jurídico; alias, o aborto é um
assunto que abrange vários ramos e ciências, sejam elas médica, biológicas, religiosas,
jurídicas, políticas, entre outras.
12 “O nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é
uma coisa. Não é uma víscera da mãe.” A afirmação é do estudioso Pedro Pais de Vasconcelos, professor na
Faculdade de Direito de Lisboa, e foi usada como fundamento pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal
para decidir que um bebê tem direito de receber indenização por danos morais porque seu pai morreu antes
dele nascer. Nascituro tem personalidade jurídica, decide STJ português 29/03/2018 ConJur - STJ de
Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro https://www.conjur.com.br/2014-abr26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal?imprimir=1 2/5 No julgamento, o STJ reconheceu em
Portugal que, desde o momento da concepção até a morte, existe vida com personalidade jurídica, que deve
ser protegida pelo Estado. Pelo entendimento consolidado, não cabe à lei nenhuma retirar qualquer direito
de um nascituro. O processo julgado trata do drama vivido por uma família: pai, mãe grávida e um filho de
um ano e meio. O pai se envolveu em um acidente de trânsito e morreu. Era ele que sustentava toda a família,
já que a mulher não trabalhava e ficava em casa para cuidar do filho. Dezoito dias depois da morte, nasceu a
filha do casal. Diante d 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro
https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal?imprimir=1 3/5
nascimento completo e com vida. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu
nascimento”. Para o tribunal de segunda instância, o artigo deixa claro que o nascituro não tem
personalidade jurídica e não pode, por isso, ter a sua dignidade ofendida. Os juízes do STJ, no entanto,
entenderam de maneira diferente. Eles foram buscar na doutrina do Direito Civil uma interpretação menos
literal ao dispositivo. Concluíram que a partir do momento da concepção, já existe um ser humano dotado
de personalidade jurídica. Não cabe à lei retirar esse direito. Direito em potencial Assim, o que o artigo 66
do Código Civil estabelece é o momento que começa a capacidade jurídica, e não a personalidade. Isso
significa que, enquanto ainda está no útero, o feto tem direito em potencial, que vai se consumar no momento
em que nascer com vida. A partir daí, pode buscar reparação por danos vividos enquanto ainda estava no
útero da mãe. Por esse entendimento, um bebê pode pedir indenização se for prejudicado por algo que a mãe
fez durante a gestação. Por exemplo, se a gestante consome álcool e isso gera problemas ao feto, depois do
nascimento, ele tem o direito de ser 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica
de
nascituro
https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stjportugal?imprimir=1 4/5 reparado pelo dano sofrido. O assunto está sendo analisado pela Justiça da
Inglaterra também, que vai decidir se mulheres que fumam ou ingerem álcool durante a gravidez podem ser
condenadas criminalmente (clique aqui para ler mais). “O nascituro não é uma simples massa orgânica, uma
parte do organismo da mãe ou, na clássica expressão latina, uma portio viscerum matris, mas um ser humano
(ente humano) e, por isso, já com a dignidade da pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas
de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica e da amplitude com que o conceito legal de
personalidade jurídica possa ser perspectivado” , diz trecho da decisão do STJ português. O tribunal citou
doutrinadores que afirmam que o nascimento é apenas mais um marco na vida de uma pessoa, e não o seu
início. Por essa teoria, a vida começa na concepção. O nascimento significa apenas que o feto vai passar a se
relacionar com outras pessoas, além da sua mãe, e continuar progredindo para se tornar, de fato, um ser
humano independente. 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro
https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal?imprimir=1 5/5
Ao decidir, a corte ainda considerou que seria discriminação negar indenização para a filha que não tinha
nascido quando o pai morreu, mas garantir ao outro filho. A Constituição de Portugal garante a igualdade
entre todos os filhos de um casal.” INÍCIO DA VIDA 26 de abril de 2014, 9h36 Por Aline Pinheiro. [Em linha]
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal
83
Caroline Buarque Leite de Oliveira
Não podemos tratar o aborto apenas como um problema jurídico ou de saúde; o
aborto é um problema social, que possui várias questões intrínsecas envolvidas, inclusive
questões éticas e morais, tanto que gera tanta desavença no mundo inteiro.
Entretanto, no caso especificamente de Portugal, não se pode olvidar que muitos
avanços e conquistas foram conseguidos, especialmente para as mulheres. Com a
descriminalização do aborto até as 10 primeiras de gestação muitas mulheres passaram
a ter o direito de dispor de seu corpo e escolher sua autonomia reprodutiva, já após uma
gestação.
Isso não significa dizer que o número de abortos clandestinos diminuiu
significativamente no país, haja vista que muitas mulheres ainda sofrem com o
preconceito de serem “mal vistas” em procurar uma clínica para cometer uma prática
abortiva, ainda que protegida pela lei.
Porém, hoje elas podem optar em ter essa prática abortiva até as 10 primeiras
semanas de gestação, com maior segurança, assistência médica, sem correr tantos riscos
como acontecia anteriormente, de chegarem até ao óbito.
Ao longo do presente estudo não restou dúvidas que a legislação portuguesa
escolheu como início da vida a nidação, ocorrida entre a 10ª e a 13ª após a fecundação,
sendo o aborto tipificado como crime desde este momento até o inicio do parto.
Resta claro destacar, que o tipo penal tutelado no crime de aborto não está
exclusivamente ligado á vida intra uterina, haja vista o aborto tratar-se de um crime
pluriofensivo. Insta ressaltar que o aborto tutela além da vida uterina, a vida da mulher
gestante, punindo de forma severa àqueles que cometem o aborto sem o seu
consentimento, e dessa forma, respeitando a dignidade da pessoa humana.
Discutir essas questões relacionadas ao aborto são realmente muito importante
para se compreender a proteção da vida, porém é um assunto um tanto quanto
inesgotável, , e que cada vez mais, a população e o Estado têm tentado solucionar e entrar
num consenso, não somente em Portugal, mas nos mais diversos países do mundo.
REFERÊNCIAS
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a) Livro
CÓDIGO Civil, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, ISBN 978-972-40-6639-4
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b) Internet
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linha].
Nº
86
(10-04-1976),
pp.
738-775.
Disponível
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https://dre.pt/web/guest/legislacao84
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gislacaoConsolidada_WAR_drefrontofficeportlet_rp=indice
2. BIBLIOGRAFIA
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despenalização do aborto. Coimbra: Editora Almedina, 2007.
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constituição. 7.ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003. ISBN 978-97-2402106-5.
CAMPOS, Diogo Leite - Estudos sobre o direito das pessoas 3.ª ed. ver. e
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BRITO, Tereza Quintela de; MATA, Paulo Saragoça da; NEVES, João Curado; MORÃO,
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85
O PATRIMÔNIO COMO ELEMENTO OBJETIVO DA
INFRAÇÃO PENAL E A INFLUÊNCIA DE SEU
RESSARCIMENTO NOS BENEFÍCIOS DO SISTEMA
PENAL BRASILEIRO.
Gianpaolo Poggio Smanio1
Fabiano Augusto Petean2
1) Introdução.
No Direito Penal Brasileiro, observamos que o patrimônio do sujeito passivo
corresponde a um elemento objeto do tipo penal, que não se insere somente no Título II,
em seu Capítulo I, do Código Penal, mas também em outras infrações penais que, por
vezes, podem ter uma objetividade jurídica diversa, como a Administração Pública, no
caso do peculato, mas que implicitamente direciona a conduta para a apropriação de
valores, no caso do art. 312 do Código Penal3. Além disso, outros crimes de cunho
patrimonial também poderiam estar localizados na Lei dos Crimes Financeiros, lei
esparsa, com relação imediata às fraudes bancárias. Com isso, identificamos que não há
um sistema estanque no estudo do patrimônio inserido na esfera penal.
Mas, além disso, temos que observar que o aspecto patrimonial e financeiro,
retratado pelo Poder Econômico do réu ou da vítima, pode influenciar nas diversas
naturezas dos aspectos criminais, quanto à tipificação delitiva, à concessão de benefícios
e às indenizações e reparações de danos causados pela infração penal. Por isso, o
interesse de explorar tais aspectos para um equacionamento mais próximo da realidade
prática, diante dos resultados e das dificuldades de interpretação e de provas
relacionadas ao tema.
2) Patrimônio como elemento objetivo do tipo penal.
O estudo da estrutura do tipo penal é de fundamental importância para o
posicionamento em relação à matéria. Em primeiro plano, salientamos que no tipo penal
brasileiro identificamos três elementos essenciais: o subjetivo, o objetivo e o normativo 4.
Iniciaremos a discussão sobre o elemento objetivo do tipo penal. O patrimônio
está classificado como “objeto” que compõe a formação da infração penal. Neste ponto,
Coordenador da Pós-Graduação da Universidade Presbiterana Mackenzie
Doutorando e Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie
3“Peculato. Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem
móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou
alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa” (BRASIL. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
4 COSTA JUNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José da. Curso de Direito Penal, 12.ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.
1
2
Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
o patrimônio pode estar relacionado como “bem juridicamente tutelado”. Ou seja,
constatamos a coisa com valor econômico para a vítima. Por isso, quando mencionamos
o crime de furto, de roubo e de receptação, por exemplo, podemos observar facilmente a
afronta ao patrimônio da vítima, que fora atacado pelo comportamento criminoso.
Às vezes, todavia, observamos que o patrimônio pode estar afetado por via
reflexa, no caso de um arrimo de família é assassinado, a família permanece sem suporte
de subsistência. Nestes casos, observamos que o patrimônio é discutível após a apuração
da responsabilidade penal dos fatos, não interferindo no mérito da demanda. Por isso,
nestes casos, apenas figura como circunstância consequencial ao crime e não sobre sua
constituição.
Então, salientamos o primeiro questionamento sobre a constituição do tipo penal
com elementos patrimoniais mínimos. A discussão sobre o valor do bem juridicamente
tutelado gerou nos Tribunais Superiores e principalmente no Supremo Tribunal Federal
(HC 84412)5 parâmetros de entendimento de relevância patrimonial para eventual
aplicação do Princípio da Insignificância.
Mencionamos, assim, por exemplo, circunstâncias de prisão em flagrante de
delito do agente, onde a coisa foi restituída imediatamente, ou a coisa subtraída possui
um valor até irrisório. É este fato que necessitamos analisar.
Em primeiro plano, o Código Penal Brasileiro não acolheu o princípio da
insignificância, em regra, para atipicidade da conduta delitiva. Ao contrário, considerou
que as coisas de pequeno valor, por exemplo, poderiam ser utilizadas como critérios de
fixação de penas mais brandas, como no caso de furto privilegiado, estelionato, dentre
5 “PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA
LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE
DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES
FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM
VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO
DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE
DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve
ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em
matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva
de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material
da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente,
(b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento
e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no
reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios
objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA
E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de
considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo
somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de
outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente
tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal
não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão
significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular
do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (HC 84412, Relator(a): Min. CELSO
DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004, DJ 19-11-2004 PP-00037 EMENT VOL-02173-02
PP-00229 RT v. 94, n. 834, 2005, p. 477-481 RTJ VOL-00192-03 PP-00963). Disponível
em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2884412%2ENUME%2E
+OU+84412%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/zzdyp6q>. Acesso em: 23
maio 2018.
88
O patrimônio como elemento objetivo da infração penal...
outros, e não como fator para se alcançar a atipicidade da conduta.
Para atipicidade da conduta a doutrina penal mais liberal postulou o
reconhecimento do princípio para a atipicidade da conduta que foi reconhecido pelo
julgado acima do Supremo Tribunal Federal em caso concreto. Todavia, em melhor
entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal (RHC 152146), julgado recente,
reconheceu que as circunstâncias pessoais do acusado, ou seja, contumaz na prática
delitiva, como elemento de afastamento do princípio para o tipo penal patrimonial6.
Assim, extraímos que o valor econômico, em si, da coisa não pode ser critério
único para identificar a aplicação do direito penal nos delitos que envolvam patrimônio.
Seja pela restituição da coisa, seja pelo valor pequeno, outras circunstâncias necessitam
ser sopesadas para não se atingir o senso de impunidade que gera a reincidência
desmedida.
Mas, devemos observar, também, que o sistema penal não é homogêneo.
Devemos observar o fato de que eventual devolução do bem, como “desistência” ou
“arrependimento”, que serão abaixo analisadas, poderá ter um tratamento diferenciado
(e desigual, portanto) na legislação penal, dependendo da regulamentação da matéria. É
o caso, por exemplo, do crime de peculato culposo.
O art. 312, §3.º, do Código Penal7, trata de forma diversa a ausência de prejuízo,
quando o delito ocorre de forma culposa, permitindo que o agente repare o dano causado
antes da sentença condenatória irrecorrível. Neste caso, por meio de lei, há o
reconhecimento da descaracterização do delito com aspectos patrimoniais, por meio da
extinção de punibilidade do agente, sem considerar que há outro bem jurídico a ser
tutelado pelo tipo, qual seja a moralidade administrativa8. Ainda neste exemplo, caso a
reparação do dano seja posterior (arrependimento posterior), a pena imposta poderá ser
reduzida de metade.
Constatamos, por fim, que o critério patrimonial, que fora restituído, somente
6 “Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. Penal. Receptação (CP, art. 180).
Condenação. Pretendido reconhecimento do princípio da insignificância. Impossibilidade. Comprovada
contumácia delitiva da agravante na prática de crimes contra o patrimônio. Precedentes. Agravo não
provido. 1. Não se mostra possível acatar a tese de irrelevância material da conduta praticada pela agravante,
pois, não obstante a inexpressividade do bem subtraído, as informações extraídas dos autos são inequívocas
quanto a sua condição de contumaz na prática de crimes contra o patrimônio, o que desautoriza a aplicação
do princípio da insignificância, na linha da jurisprudência da Corte. 2. O Tribunal Pleno, ao denegar o HC
nº 123.108/MG, o HC nº 123.533/SP e o HC nº 123.734/MG (sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso),
consolidou o entendimento de que a habitualidade delitiva específica ou a reincidência obstam o
reconhecimento do princípio da insignificância (Informativo nº 793/STF). 3. Agravo regimental ao qual se
nega provimento. (RHC 152146 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em
27/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-072 DIVULG 13-04-2018 PUBLIC 16-04-2018)”. Disponível
em
<http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28PRINCIPIO+DA+INSIGNIFICA
NCIA%29&base=baseAcordaos&uur=http://tinyurl.com/jx47teq>. Acesso em: 23 maio 2018.
7 “Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel,
público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
[...] § 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem; §3º - No caso do parágrafo
anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior,
reduz
de
metade
a
pena
imposta”.
(BRASIL.
Código
Penal.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
8 ESTEFAM, André. Direito Penal - Parte Especial 4, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
89
Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
terá efeito de atipicidade delitiva na hipótese de crime culposo, afastando a intenção
delitiva (dolo da conduta).
3) Patrimônio relacionado à desistência voluntária e ao
arrependimento eficaz.
Em prosseguimento à identificação do patrimônio na esfera do tipo penal,
constatamos outros comportamentos que se agregam ao fato penalmente relevante para
definição da conduta, quais sejam: a desistência voluntária e o arrependimento eficaz.
Neste ponto, o nível de dolo alcançado pelo agente ou a atenuação da vontade delitiva
são elementos que demonstram certa relevância penal.
A Lei Penal reconhece benefício ao agente que “desiste”9, por sua decisão, do
prosseguimento da infração penal. Neste caso, não há que se mencionar tipo penal
tentado10, pois, neste, a interrupção ocorre por circunstância diversa do dolo do agente.
Neste fenômeno de desistência, há alteração do dolo no decorrer da conduta (“iter
criminis”) que evita seu esgotamento. Há estímulo ao agente para a desistência. A
própria vontade interrompe a sequência de atos executórios, fazendo com que o
resultado não aconteça, impedindo a afronta patrimonial.
Quanto ao arrependimento eficaz, ainda no art. 15 do Código Penal, o agente não
“desistiu” no momento do “iter criminis”. Os atos executórios ocorreram, mas o agente
evita a violação ao bem juridicamente tutelado, ou seja, o patrimônio. No mesmo sentido,
a doutrina aponta que, “no arrependimento eficaz, já foram esgotados os atos de
execução, porém, o agente atua novamente para impedir que o resultado ocorra”11.
Por isso, podemos mencionar exemplos. O primeiro, no caso de ausência de
violação do bem. O agente pratica o crime de furto (art. 155 do Código Penal) 12 e, ao se
aproximar do bem para o apossamento, desiste de praticar a infração penal (desistência
voluntária). Como o agente somente responde pelos atos já praticados, não tendo
afrontado qualquer bem, o fato será atípico.
Nas hipóteses de arrependimento eficaz, duas situações poderiam ser
observadas: a primeira, no sentido de que o agente viola o domicílio da vítima para a
subtração. Todavia, com o arrependimento, o agente retorna ao local e devolve o bem.
Restaria somente a violação de domicílio (fato não patrimonial).
9 “Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o
resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
10 “Art. 14 - Diz-se o crime: II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por
circunstâncias alheias à vontade do agente”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
11 BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral, (v.1), 2.ed. São Paulo: Atlas, 2015.
12 “Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. (BRASIL. Código Penal.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em:
23 maio. 2018).
90
O patrimônio como elemento objetivo da infração penal...
No caso de uma subtração com rompimento de obstáculo (furto qualificado),
mesmo com a devolução do bem, subsistiram os danos (fato patrimonial), que podem ser
objeto de ação penal e de ação civil de reparação se o caso, tendo em vista que o agente
responde pelos fatos já caracterizados.
4) Patrimônio relacionado ao arrependimento posterior.
Outra figura que está afeta à reparação dos danos é o arrependimento posterior13.
Trata-se de benefício de diminuição de pena do agente atrelado ao fato de que o agente,
com a reparação dos danos, está minimizando os efeitos da infração penal praticada.
Nesta seara, a reparação patrimonial não exclui o crime, uma vez que “demasiado tardio
para evitar a produção do resultado”14. Então, reduz-se a pena.
Na figura em análise, identificamos um critério temporal para o crime. Quanto
aos anteriores, o agente poderia ainda estar no processo criminoso. Neste caso, a conduta
se torna “posterior”, pois a ação criminosa atingiu sua plenitude de consumação. O
agente, então, age para diminuição ou eliminação do resultado atingido até o
recebimento da petição inicial (denúncia ou queixa-crime), ou seja, limitação temporal
para esta figura.
Questão importante é que tal figura possui outra limitação, posto que não tolera
crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa (caso do roubo15), haja vista a
afronta grave a bens juridicamente tutelados. Tais comportamentos agregados
demonstram a personalidade criminosa desvirtuada do agente.
O não afastamento da tipicidade do crime se justifica por uma razão. Vamos
imaginar um exemplo em que o agente pratique um crime patrimonial e não tenha a
intenção de reparar os danos causados, ainda mais se não for preso em flagrante delito.
Se estiver solto, o agente não contribui para a reparação dos danos, aguarda a
investigação se encerrar e o resultado das investigações, com o oferecimento da denúncia
ou não. Evidente que, se a autoria não for identificada, sairá impune da conduta, sem
qualquer outra consequência, sendo beneficiado pela falha do procedimento
investigatório, haja vista que o inquérito policial seria arquivado e não precisaria reparar
os danos.
Quanto ao benefício de redução de pena, a doutrina já se manifestou que, quanto
mais próxima da consumação do delito a reparação dos danos, maior seria o patamar de
13 “Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou
restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será
reduzida
de
um
a
dois
terços”.
(BRASIL.
Código
Penal.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
14 BUSATO, Paulo César, op. cit. p. 688.
15 “Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência
a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”. (BRASIL.
Código
Penal.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
91
Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
redução de pena diante dos parâmetros definidos pelo dispositivo legal. Ressalte‐se que
o Magistrado, ao definir o “quantum” da redução da pena (de um a dois terços), deverá
levar em conta a presteza na reparação do dano ou restituição do bem. Assim, quanto
mais adiantada a persecução penal menor deverá ser a fração aplicada16.
5) Patrimônio relacionado à causa atenuante de redução de
pena
Também em relação ao tempo em que a reparação dos danos possa ocorrer,
ainda há mais um fenômeno que permite a diminuição da pena. O art. 65, inciso III,
alínea “b”, do Código Penal17, demonstra que a influência do patrimônio ainda pode ser
causa atenuante de pena18. Nesta circunstância, não há confusão com os anteriores. A
primeira circunstância está relacionada ao fato de o agente “minorar”, ou seja, diminuir
as consequências do crime, sem vinculação temporal ao recebimento da denúncia.
A diminuição das consequências patrimoniais do crime mereceu acolhimento.
Caso o agente não tenha condições financeiras de sanar os danos, a lei não impediu que
atingisse algum benefício no caso de ressarcimento parcial. Salientamos, ademais, que a
jurisprudência diverge quanto ao tema, em relação à integralidade ou a parcialidade do
ressarcimento19.
Em relação ao tempo processual para a reparação dos danos, a lei fixou a
prolação da sentença como momento final para a espontaneidade do réu na conduta.
Assim, se o réu contar com uma absolvição pelos fatos praticados e não atingir seu desejo,
não teria, de igual forma, a possibilidade do benefício.
Neste ponto, não há como prestigiar o agente com isenção de pena ou redução
maior de pena, no caso de espera do processo para presumir um resultado e, na
iminência de ser condenado, repare o dano para alcançar a impunidade. Por isso, a
redução de pena em patamar não precisamente definido, mas com quantidade inferior
16 ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo. Esquematizado - Direito penal: parte
geral, 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 384.
17 “Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: III - ter o agente: b) procurado, por sua
espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter,
antes do julgamento, reparado o dano”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
18 ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo. op. cit. 384.
19 “PENAL E PROCESSUAL PENAL. DUPLICATA SIMULADA. ARTIGO 172 DO CÓDIGO PENAL.
MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO. DOSIMETRIA. PENA BASE. CULPABILIDADE.
ARREPENDIMENTO POSTERIOR. PAGAMENTO PARCIAL. CONTINUIDADE DELITIVA. PENA DE
MULTA. VALOR UNITÁRIO DO DIA-MULTA. ART. 60, CAPUT, DO CP. A emissão de duplicatas referentes
a transações mercantis inexistentes caracteriza o delito tipificado no artigo 172, caput, do Código Penal. Se a
culpabilidade, traduzida na reprovabilidade social da conduta, é normal à espécie, não se justifica a
exacerbação da pena-base sob essa circunstância. A diminuição da pena pelo arrependimento posterior (art.
16 do Código Penal) deve ser sopesada considerando a extensão da reparação do dano, antes do recebimento
da denúncia. O patamar de exacerbação decorrente da continuidade delitiva deve levar em conta o número
de oportunidades em que a conduta delituosa foi reiterada pelo agente. A fixação da pena de multa deve
considerar a situação econômica do réu. (artigo 60, caput, do Código Penal)”. (TRF4, ACR
2007.72.04.002999-3, SÉTIMA TURMA, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, D.E. 14/01/2011).
92
O patrimônio como elemento objetivo da infração penal...
àquela anterior ainda permite benefício antes do resultado final do processo.
Por isso, constatamos, até então, que o agente poderá reparar os danos desde a
ação criminosa até a prolação da sentença. Perguntamos como se posiciona a reparação
dos danos após a prolação da sentença.
6) Patrimônio quanto aos aspectos após prolação de
sentença condenatória.
O tratamento do patrimônio, como reparação dos danos, permaneceu na esfera
da espontaneidade do agente até a prolação da sentença pelas razões já evidenciadas. Se
o patrimônio lesado não foi reparado, com uma condenação do agente, a reparação
poderá atingir o patrimônio do agente de forma forçada.
Agora, o ponto de apreciação é a capacidade financeira do réu para suportar a
determinação para a reparação dos danos. O patrimônio do acusado assume fator
condicional à diminuição das consequências do crime. Por isso, ainda em relação às
medidas cautelares assecuratórias como arresto ou sequestro poderiam garantir o
sucesso ou não da reparação patrimonial após a prolação da sentença. Tais medidas,
apesar de não serem comuns na maioria dos processos criminais, podem auxiliar o
Estado na finalidade de reconstituição do patrimônio lesado.
Podemos observar, ainda, a fiança como medida que garantiria a liberdade do
indivíduo, mas que, ao mesmo tempo, poderia ser utilizada ao final do processo, no caso
de prolação de sentença condenatória, para a reparação dos danos.
Ainda como medida despenalizadora, a reparação dos danos afetas ao benefício
da suspensão condicional do processo, onde em seu art. 89 da Lei n.º 9.099/95 (Juizados
Especiais Criminais)20, em seus parágrafos, expõe que, quando possível, a reparação dos
danos será condição obrigatória para a fruição do benefício legal (art. 89, §1.º, inciso I)
e determina que o inadimplemento é causa de revogação obrigatória da benesse (art. 89,
§3.º)21. Assim, para que o agente atinja a extinção de punibilidade, deverá arcar com a
reparação para obtenção da sentença homologatória22.
20 “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas
ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo,
por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por
outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do
Código Penal): § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a
denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes
condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo”. (BRASIL. Lei dos Juizados Especiais
Cíveis e Criminais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso
em: 23 maio 2018).
21 “Art. 89, § 3º - A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser
processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano”. (BRASIL. Lei dos
Juizados
Especiais
Cíveis
e
Criminais.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
22 DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Teoria e Prática dos Juizados
Especiais Criminais. São Paulo: Forense, 2008. p. 133.
93
Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
Em acréscimo, o prazo para cumprimento da obrigação é o período de prova23. O
benefício e a coerção do réu são evidenciados no fato, pois, caso não ocorra a reparação,
o feito voltará a prosseguir, podendo o réu ser condenado. Seguiremos quanto às
sentenças condenatórias.
a) A afronta do patrimônio como resultado de uma condenação
penal.
Constatamos neste ponto a migração da indenização da esfera da voluntariedade
do réu para alteração da natureza jurídica, ou seja, para a esfera forçada por meio da
pena fixada na sentença. Neste ponto, não há mais benefícios a serem concedidos. Há
dever a ser cumprido coercitivamente. Todavia, temos um binômio onde o dano, muitas
vezes quantificado, confronta a capacidade econômica do réu.
Em relação à recomposição, temos a pena de multa, ou seja, aquela prevista nos
arts. 49 e seguintes do Código Penal24. A fixação de multa, sabemos, deve estar estipulada
no tipo penal em seu preceito secundário, para que possa ser exigida do réu em face de
uma condenação criminal25. Neste ponto, segue o mesmo critério de individualização das
penas privativas de liberdade.
Evidentemente que a forma de pagamento e de cumprimento da determinação
pode variar26. Todavia, não se trata de único requisito, pois as consequências do crime
podem ser utilizadas como critério para a definição do valor. A pena de multa, ainda,
contribui para o fundo patrimonial do Estado para implementação de estrutura penal de
cumprimento de pena27.
Em relação à fiança, como já dissemos, é uma garantia prestada pelo agente para
que este possa responder ao processo em liberdade28. Neste sentido, salientamos apenas
23 “PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO.
REPARAÇÃO DOS DANOS. A exigência referente à reparação dos danos não é requisito para concessão da
suspensão condicional do processo, mas sim, condição da extinção da punibilidade. Vale dizer, não há que
se falar, no que toca à suspensão condicional do processo, em reparação dos danos antes do período de prova
ao qual o acusado será submetido. Ordem concedida”. (HC 7.637/GO, Rel. Ministro FELIX FISCHER,
QUINTA TURMA, julgado em 22/09/1998, DJ 26/10/1998, p. 129).
24 MULTA “Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia
fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos
e
sessenta)
dias-multa”.
(BRASIL.
Código
Penal.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
25 JUNQUEIRA, Gustavo. Manual de direito penal: parte geral, 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
26 “HABEAS CORPUS. INTIMAÇÃO VIA EDITAL DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. AUSÊNCIA
DE RECURSO DO ADVOGADO DATIVO. PENA DE MULTA E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. CAPACIDADE
FINANCEIRA DO CONDENADO. - Não havendo nos autos elementos a permitir o exame dos fundamentos
da decisão que determinou a intimação via edital da sentença condenatória, prejudicado o exame da matéria.
- A ausência de recurso de apelação do defensor dativo não acarreta nulidade da ação penal (precedente). A pena de multa não se confunde com a prestação pecuniária, a qual constitui pena restritiva de direito, que
substitui, quando preenchidos os requisitos, a pena privativa de liberdade. - Na ausência de documentos que
permitam a análise da condição econômica do executado, incabível aferir a necessidade do pagamento da
pena de multa e da prestação pecuniária de forma parcelada” (TRF4, HC 2008.04.00.039659-9, OITAVA
TURMA, Relator LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, D.E. 03/12/2008).
27 JUNQUEIRA, Gustavo. Manual de direito penal: parte geral, op. cit.
28 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 25.ed. São Paulo: Atlas, 2017.
94
O patrimônio como elemento objetivo da infração penal...
alguns aspectos que podem atingir o patrimônio do agente. A possibilidade cobrir o
pagamento de custas processuais, de indenização do dano causado e da multa, é uma
finalidade garantidora e que será restituída, caso o réu seja contemplado pela sentença
absolutória29, nos termos do disposto no art. 336 do Código de Processo Penal30.
De igual forma, salientamos que a fiança possui maior potencialidade
acautelatória. Para que o agente obtenha a liberdade provisória, temos os critérios de
fixação da fiança proporcional ao patrimônio do acusado. Tais critérios podem ser
identificados para garantir de forma mais efetiva a reparação dos danos gerados pelo
crime e reconhecidos na sentença penal condenatória.
A amplitude dos patamares definidos pela legislação processual penal demonstra
que um réu, diante de capacidade financeira, poderia arcar com danos patrimoniais,
morais31 e alimentares da vítima e de sua família, por exemplo em um acidente de
trânsito, no caso de condenação, para a recomposição do bem juridicamente tutelado na
norma. A fiança, então, prevista em valoração no art. 325 do Código de Processo Penal32,
pode assumir tal função de relevância no papel processual.
Além da fiança, podemos identificar a substituição da pena privativa do acusado
por uma prestação pecuniária ao ofendido. Tal benefício estipulado em sentença está
inserido no art. 45, §1.º, do Código Penal33. Inicialmente, observamos que é um benefício
ao réu, tendo em vista que cumprirá pena alternativa à privação de liberdade, e que
contribuirá para reduzir os prejuízos patrimoniais da vítima. Tem caráter, portanto,
obrigatório da substituição da pena. Tal fenômeno, por via indireta, pode garantir o
patrimônio lesado da vítima.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, op. cit.
“Art. 336. O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento das custas, da
indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado” (BRASIL. Código de
Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>.
Acesso em: 23 maio 2018).
31 “PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO
DO ART. 387, IV, DO CPP. REPARAÇÃO CIVIL. PEDIDO EXPRESSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA
VÍTIMA. CABIMENTO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DESACORDO COM O ENTENDIMENTO
DOMINANTE DO STJ. SÚMULA 568/STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1.
Nos termos do entendimento desta Corte Superior a reparação civil dos danos sofridos pela vítima do fato
criminoso, prevista no artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, inclui também os danos de
natureza moral, e para que haja a fixação na sentença do valor mínimo devido a título de indenização, é
necessário pedido expresso, sob pena de afronta à ampla defesa. 2. Agravo regimental a que se nega
provimento” (AgRg no REsp 1666724/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA
TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017).
32 “Art. 325. O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder nos seguintes limites: I de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no
grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos; II - de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando
o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos. § 1.º - Se assim
recomendar a situação econômica do preso, a fiança poderá ser: I - dispensada, na forma do art. 350 deste
Código; II - reduzida até o máximo de 2/3 (dois terços); ou III - aumentada em até 1.000 (mil) vezes”
(BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del3689.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
33 “Art. 45, §1º A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus
dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não
inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago
será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os
beneficiários” (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
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Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
Outra oportunidade para reparação dos danos, se as demais não surtirem
cabimento e efeito no processo, é estar fixada como efeito da condenação (art. 91, inciso
I, do Código Penal)34. Identificamos um caráter complementar do dispositivo legal, pois
possui duplo significado. O primeiro, no sentido de fundamentar as medidas
patrimoniais constritivas para a reparação dos danos, dando-lhes efetividade. O
segundo, gerando um título executivo para a vítima, se o caso, ingressar na esfera
executiva cível própria para a recomposição, de acordo ainda com o art. 63 do Código de
Processo Penal35.
Além disso, como critério ressocializador da pena, o art. 91, inciso II, alínea “b”,
do Código Penal, ainda atinge frontalmente os produtos e os bens auferidos pelo agente
com a prática ilegal da infração. Por razões claras, todo e qualquer produto ou proveito
do crime está contaminado pela ilicitude, pois, do contrário, o delito compensaria ao
agente. Por isso, a medida constritiva definida na sentença agrega valor ao
restabelecimento da situação jurídica anterior. A reparação dos danos se torna obrigação
ao réu.
b) A afronta do patrimônio como resultado da esfera civil.
É possível, ainda, mesmo que em esfera não penal, a possibilidade de alcance ao
patrimônio do acusado. Em primeiro plano, a condenação penal se torna um título
executivo judicial. Neste ponto, caberia à vítima interposição a execução da obrigação.
O outro aspecto possível é o fato de a vítima, com o documento da sentença penal
condenatória, do qual não constou uma fixação de indenização expressa, poder ingressar
com tal documento na via de conhecimento na esfera civil para a busca da reparação de
seus danos.
7) Colaboração Premiada, Composição Civil e Transação
Penal como instrumentos impeditivos de ação penal.
Em primeiro plano, observamos o instituto da composição civil dos danos na
34 “Art. 91 - São efeitos da condenação: I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo
crime; II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: a) dos
instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção
constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido
pelo agente com a prática do fato criminoso. § 1.º Poderá ser decretada a perda de bens ou valores
equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem
no exterior; § 2.º Na hipótese do § 1.º, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão
abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda”
(BRASIL.
Código
Penal.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
35 DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal, op. cit. p.
166.
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O patrimônio como elemento objetivo da infração penal...
esfera das infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 74 da Lei n.º 9.099/95)36.
Nas hipóteses em que a vítima exercerá papel importante na repressão do criminoso
(ação penal pública condicionada e ação penal privada), ou seja, autoriza o Estado à
persecução penal ou é o próprio autor da ação, o acordo patrimonial efetivado e
homologado entre vítima e autor para a reparação dos danos acarreta renúncia ao direito
de ação e, ao mesmo tempo, torna-se título executivo para a esfera civil. Constata-se,
então, uma forma de disponibilidade de ação penal por parte da vítima.
No caso de impossibilidade em razão da ação penal, ainda nas infrações de menor
potencial lesivo, há possibilidade de um acordo efetivado com o Ministério Público,
convencionado transação penal, em que o agente se compromete a uma prestação, por
vezes, pecuniária, para o impedimento da ação penal (art. 76 da Lei n.º 9.099/9537).
Todavia, neste caso, duas observações são relevantes. A primeira, no sentido de
que o descumprimento da medida gera a retomada do andamento processual. A segunda,
no sentido de que o agente necessita fazer jus ao benefício, seja pelos antecedentes, seja
em razão de não ter usufruído do benefício em prazo regulado.
De forma recente, ainda, fomentado pelo patamar de desenvolvimento de
organizações criminosas, o legislador ainda previu nas Organizações Criminosas, no art.
4. º da Lei de nº 12.850/201338, o instituto do perdão judicial ou de redução de pena,
para a colaboração premiada, cada qual com sua finalidade específica e critérios
próprios.
Ainda nas investigações de tais feitos, dentre outras finalidades do acordo,
concentramo-nos na recomposição do patrimônio lesado com a conduta do criminoso.
Para estas modalidades criminosas, o agente, com tal contribuição patrimonial de
restituição, pode alcançar o benefício com o fornecimento de fatos, documentos e outras
circunstâncias, de forma efetiva e voluntariamente com a investigação criminal e com o
processo penal, desde que estes resultados sejam positivos, conforme o dispositivo
36 “Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante
sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único.
Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o
acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação (BRASIL. Lei dos Juizados
Especiais
Cíveis
e
Criminais.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
37 “Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada,
não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva
de direitos ou multas, a ser especificada na proposta” (BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio
2018).
38 “Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3
(dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa
colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e
partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura
hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais
decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do
proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima
com a sua integridade física preservada” (BRASIL. Lei das Organizações Criminosas. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 23 maio 2018).
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Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
legal39.
Trata-se de causa especial de recomposição patrimonial que afetará a repressão
do Estado, que serão sopesadas para o alcance dos benefícios, auxiliando o Estado na
persecução penal. Inclusive o Conselho Nacional do Ministério Público, na Resolução de
n.º 181/17 (CNMP)40 regulamentou os aspectos transacionais para a afetação processual.
Com isso, a ampliação as possibilidades de negociação poderiam gerar mais eficácia no
combate à criminalidade ou aos efeitos danosos advindo da infração penal.
O acordo de não-persecução penal, então, repousou em mais um instrumento
com características próximas as já vistas, com as ressalvas da Resolução n.º 181/17, nos
parágrafos e demais dispositivos, que permitirá obstar o início de uma ação penal, com
a obediência aos termos acordados, diante dos mecanismos reparatórios, por exemplo,
dos danos causados.
8) Condições e comportamentos da vítima na afetação das
infrações com aspectos patrimoniais.
Por fim, devemos identificar o papel da vítima na interferência dos delitos que
envolvam patrimônio. Em primeiro plano, quanto à qualidade da vítima, mencionamos
que as escusas absolutórias, descritas nos arts. 181 e 182 do Código Penal, afetam
sensivelmente a tipificação dos fatos.
O aspecto patrimonial do crime deixa de ser relevante para a preservação de
relações de parentesco próximas, evitando-se a punição do agente. Evidentemente, desde
que não seja praticada com violência ou grave ameaça à pessoa ou que o ascendente não
seja maior de 60 (sessenta) anos, há possibilidade de se atingir a imunidade,
desconsiderando o aspecto patrimonial. A vítima, no entanto, ainda pode propor as
medidas civis cabíveis para seu ressarcimento, não sendo extensível a imunidade para
terceiros que praticaram a infração penal. Há manutenção do crime, mas obstada a ação
GRECO FILHO, Vicente. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/13,
1. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 39.
40 “Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado
acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for
cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e
circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou
alternativamente: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo; II –
renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto
ou proveito do crime; III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente
à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério
Público; IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade
pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada
preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes
aos aparentemente lesados pelo delito; V – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde
que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada” (BRASIL. Resolução
CNMP n.º 181/17. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolução181.pdf>. Acesso em: 23 maio 2018).
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O patrimônio como elemento objetivo da infração penal...
penal41.
O grau de parentesco, ainda, apesar de não excluir a pena, transforma a natureza
da ação penal para deixar ao arbítrio da vítima a opção pela ação penal. Neste ponto, a
vítima assume sensível posicionamento da interferência do crime. Caso a vítima não
exerça a vontade de prosseguir na demanda está autorizado a não prosseguir, causando
obstáculo à persecução penal, nos termos do art. 182 do Código Penal42.
Em outro aspecto, nas ações penais públicas incondicionadas, a vítima, que não
tem instrumentos para impedir o Estado na persecução penal, ainda pode interferir com
seu comportamento “patrimonial”. A vítima de um crime patrimonial (inclusive, às
vezes, cometido com violência ou grave ameaça) pode interferir na produção probatória
fundamental, por vezes, para a condenação do agente, no caso do reconhecimento
pessoal. Se por qualquer razão tal prova se revista de fundamentalidade para a
condenação, a vítima pode não ter qualquer interesse em colaborar com a Justiça, pois
já teve seu patrimônio preservado com a restituição ou com o pagamento pela
seguradora, por exemplo, na subtração de seu veículo. Com isso, a vítima, ressalvados os
casos de coação no curso do processo ou de receio por qualquer motivo, não comparece
em audiência, muda seu endereço sem avisar, muda de cidade e pode mudar até de País,
deixando a prova da criminalidade sem fundamentação necessária para a condenação do
agente, fato que gera senso de impunidade.
Ainda que pensemos em uma condução coercitiva para prestar depoimento, a
vítima poderia diante do Magistrado apenas dizer que “não se recorda” sobre os fatos.
Por isso, a interferência no tipo penal em face de instrução do feito é sensível e
fundamental para a atuação profissional.
Consideramos, então, que, mesmo que a ação penal seja pública e
incondicionada, o comportamento da vítima pode, na prática, interferir a ponto de o
crime permanecer impune, somente pelo fato de que a vítima possa ter sido ressarcida,
quando dos fatos.
9) Conclusão.
Diante de breves pensamentos e estudos, sem qualquer pretensão de
esgotamento do tema, quando falamos em aspectos patrimoniais das infrações penais,
devemos nos ater aos diversos preceitos que podem contornar o tema, com enfoques
múltiplos de interpretação e com resultados diversos ligado à infração penal.
O comportamento do agente, representado pelo dolo na consecução do crime
(elemento subjetivo do tipo penal) e no aspecto temporal da reparação dos danos, é
DELMANTO, Celso, et all. Código Penal Comentado. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 663.
“Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido
em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; II - de irmão, legítimo ou ilegítimo; III de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita” (BRASIL. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018).
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Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
tratado do ponto de vista de concessão de benefícios proporcionais a esta
temporariedade.
Além disso, aspectos de integralidade da reparação ou de parcialidade da
reparação também interferem na consecução de tais benefícios, podendo reduzir
sensivelmente as sanções sofridas pelo agente, causando até atipicidade de conduta.
Aliado ao fato, os aspectos legais de permissão de tais atenuações ou isenções de
pena são fundamentais para a identificação de qual elemento do crime foi afetado. Em
prosseguimento, não podemos nos olvidar que o Estado possui instrumentos que podem
obrigar o agente à reparação de danos ou garantir a reparação de tais danos com medidas
aptas e proporcionais à sua condição pessoal.
Por fim, de forma não menos importante, concretizamos que a vítima possui
papel fundamental na contribuição da persecução penal, pois, mesmo em casos em que
não há liberalidade para paralisar a ação penal, caso ocorra a reparação de danos, poderá
não mais se socorrer da atuação do Estado para a solução do caso concreto, prejudicando
em demasia o caráter retributivo da pena e incentivando a impunidade.
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101
Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean
SÁNCHEZ, Jesús Maria Silva. A expansão do direito penal. Trad. Luiz Otávio de
Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
102
O PAPEL DO MINISTERIO PÚBLICO E A DEFESA
DO PLENO EMPREGO PARA IMIGRANTES
VULNERÁVEIS
Charles de Sousa Trigueiro1
José Raymundo Ribeiro Campos Filho2
1) Introdução
O estudo desenvolvido pelo jurista português Canotilho3 defende que os direitos
fundamentais são bidimensionais, por conta do tamanho jurídico-positivas e pelo
tamanho jurídico-subjetivas, as dimensões positivas tem por partida a continuação
saudável e cumprimento dos direitos fundamentais, já as dimensões negativas tem como
objetivo proteger e rodear a ordem jurídica do indivíduo.
È justamente baseado nesse estudo, que o autor em seu trabalho procurará
demonstrar a legitimidade do Ministério Público para a defesa do mercado de trabalho,
para imigrantes ou refugiados em situação de hiper vulnerabilidade (pessoas com
deficiência, afrodescendentes, etc), e também do acesso aos sistema educacional e
concursos públicos de ingresso em cargos públicos, com direito a políticas afirmativas de
cotas dos nacionais.
Para realização da presente investigação foi necessário aplicar o método
dogmático, como a hermenêutica dos textos normativos recomenda, mas também o
aporte à doutrina e à transversalidade foram necessários, desde que se trata de tema
interdisciplinar de elevado teor político e sociológico, tudo alinhavado por uma tradição
de pensamento racionalista igualitária.
Por fim, a investigação em mãos representa um convite ao leitor interessado em
saber mais sobre as reais possibilidades que o Estado pode oferecer aos imigrantes ou
refugiados em matéria de acesso a emprego, dignidade humana e justiça social.
2) O direito a nacionalidade no ordenamento jurídico
interno e internacional
1 Doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra - Portugal; Bacharel e Mestre em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB Brasil; Servidor Técnico
Administrativo em Educação na UFPB.
2 Graduado em Administração de Empresas pela Universidade de Pernambuco - Brasil, Mestre em
Administração de Empresas pela Universidade Federal de Pernambuco - Brasil e doutorando em
Administração Pública pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de
Lisboa.
3 CANOTILHO, J.J.G. Estudos sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2008.
Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho
Segundo Martha Nussbaum4 hoje há três problemas ainda não solucionados de
justiça social cuja omissão nas teorias existentes parece particularmente problemática.
Isabelle Santos e Fernando Bertoncello5 defendem que:
Migrar é um direito humano e, em diversos casos, parece ser a última
alternativa para que seres humanos possam viver vidas vivíveis. Sendo assim, é
necessário que se garanta a estes indivíduos proteções em âmbito global, tendo
em vista que a migração hodiernamente está cada vez mais dinâmica.
Existe atualmente, uma internacionalização do regime jurídico da nacionalidade,
a exemplo do art. XV “todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade” e art. XV2:
“ninguém pode ser arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de
mudar de nacionalidade”, ambos da Declaração Universal de 1948, com leitura parecida
o art. XX da Convenção Interamericana sobre direitos e deveres, o art. 5 “d” (iii) da
Convenção internacional para eliminação de todas as formas de discriminação racial, art.
9 Convenção internacional para a eliminação de todas as formas de discriminação contra
as mulheres. Além dos Protocolos adicionais sobre aquisição da nacionalidade, nas
Convenções de Viena sobre as relações diplomáticas (1961), e consulares (1963).
Portanto, a nacionalidade é um direito fundamental.6
Da mesma forma, a Convenção de Nova York da ONU sobres os direitos das
pessoas com deficiência, também assegura o direto a nacionalidade.7
Luiz Alberto David8 assegura que:
NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of justice: disability, nacionality, species membership. United
States of America: First Harvard University Press paperback edition, 2007, p. 11.
5 BERTONCELLO, Fernando Rodrigues da M.; SANTOS, Isabelle Dias Carneiro. Os Migrante e
Refugiados Deficientes e o Pacto Global para Migração Segura. In.: MAGALHÃES, Maria Manuela;
MIRANDA GONÇALVES, Rubén; VEIGA, Fábio da Silva (Eds). Derecho, gobernanza e innovación: dilemas
jurídicos de la contemporaneidad en perspectiva transdisciplinar. Porto: Universidade Portucalense, 2017,
p. 328.
6 CASELLA, P. B. Nacionalidade – direito fundamental, direito público interno e direito
internacional. Revista da Faculdade de Direito/Universidade de São Paulo. v 111, 2016. p. 301-309.
7 Artigo 18.º
Liberdade de circulação e nacionalidade
1 - Os Estados Partes reconhecem os direitos das pessoas com deficiência à liberdade de circulação,
à liberdade de escolha da sua residência e à nacionalidade, em condições de igualdade com as demais,
assegurando às pessoas com deficiência:
a) O direito a adquirir e mudar de nacionalidade e de não serem privadas da sua nacionalidade de
forma arbitrária ou com base na sua deficiência;
b) Que não são privadas, com base na deficiência, da sua capacidade de obter, possuir e utilizar
documentação da sua nacionalidade e outra documentação de identificação, ou de utilizar processos
relevantes tais como procedimentos de emigração, que possam ser necessários para facilitar o exercício do
direito à liberdade de circulação;
c) São livres de abandonar qualquer país, incluindo o seu;
d) Não são privadas, arbitrariamente ou com base na sua deficiência, do direito de entrar no seu
próprio país.
2 - As crianças com deficiência são registadas imediatamente após o nascimento e têm direito desde
o nascimento a nome, a aquisição de nacionalidade e, tanto quanto possível, o direito de conhecer e serem
tratadas pelos seus progenitores.
8 ARAÚJO, Luiz Alberto David; MAIA, Maurício. Refugiados com Deficiência: a dupla
vulnerabilidade e a sua proteção constitucional. In.: PINTO, Eduardo Vera-Cruz; PERAZZOLO, José
Rodolpho. BARROSO, Luís Roberto; SILVA, Marcos Antonio Marques da; CICCO, Maria Cristina de
(Coords.). Refugiados, Imigrantes e Igualdade dos Povos. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 870.
4
104
O papel do Ministerio Público e a defesa do pleno emprego...
Primeiramente, é de se notar que os refugiados com deficiência se
apresentam em situação de dupla vulnerabilidade, já que integram dois grupos
vulneráveis que são protegidos de forma especial pelo ordenamento jurídico
brasileiro, quais sejam, o grupo vulnerável das pessoas com deficiência e o
grupo vulnerável dos refugiados.
Organização das Nações Unidas (ONU), decidiu em 2016 criar um novo Pacto
Global para os Refugiados, denominado de Pacto Global para a Migração Segura,
Ordenada e Regular
No Brasil, a nacionalidade é matéria constitucional desde o império, constituição
de 1824, até todas as constituições da República.9
A jurisprudência dos tribunais brasileiros assegura direitos fundamentais aos
estrangeiros não residentes.10 Desta forma, tanto mais ou quanto mais, os mesmos
direitos são assegurados aos imigrantes e refugiados.
A nova Lei de migração n.º 13.445/07, de 24 de maio de 2007, in verbis:
Art. 3o A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes
princípios e diretrizes:
res;(...)
X - inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de
políticas públicas;
XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e
benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública,
trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social;(...)
XXI - promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício
profissional no Brasil, nos termos da lei; (...)
Art. 77. As políticas públicas para os emigrantes observarão os
seguintes princípios e diretrizes:(...)
II - promoção de condições de vida digna, por meio, entre outros, da
facilitação do registro consular e da prestação de serviços consulares relativos
às áreas de educação, saúde, trabalho, previdência social e cultura;
III - promoção de estudos e pesquisas sobre os emigrantes e as
comunidades de brasileiros no exterior, a fim de subsidiar a formulação de
políticas públicas;
A Constituição Portuguesa no artigo 15 º (estrangeiro, apátridas, cidadãos
europeus) consagra “1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em
Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”.
CASELLA, id, p. 307.
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TRANSPLANTE DE MEDULA. TRATAMENTO GRATUITO
PARA ESTRANGEIRO. ART. 5º DA CF. O art. 5º da Constituição Federal, quando assegura os direitos
garantias fundamentais a brasileiros e estrangeiros residente no País, não está a exigir o domicílio do
estrangeiro. O significado do dispositivo constitucional, que consagra a igualdade de tratamento entre
brasileiros e estrangeiros, exige que o estrangeiro esteja sob a ordem jurídico-constitucional brasileira, não
importa em que condição. Até mesmo o estrangeiro em situação irregular no País encontra-se protegido e a
ele são assegurados os direitos e garantias fundamentais. (TRF 4ª Região, AG 2005040132106/PR, j.
29/8/2006).
9
10
105
Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho
3) Legitimidade do Ministério Público para a defesa dos
imigrantes em situações de hiper vulnerabilidade serem
cotistas nos concursos públicos
O art. 129, II, da Constituição Federal de 1988 do Brasil, diz que uma das
principais funções do Ministério Público, juntamente com outros atos
infraconstitucionais, a exemplo da LC 75/93, art. 6º, VII, b; Lei n. 8.625/93, art. 25, IV,
b, Lei n. 8.247/92, art, 17, é a proteção ao patrimônio público e social. Neste contexto, a
realização do acesso a educação e princípio do pleno emprego com seu desenvolvimento
sem discriminação aos imigrantes e refugiados em situação de hiper vulnerabilidade tem
legitimidade, juntamente com defesa da ordem jurídica e o regime democrático.
A questão do direito difuso é que existe uma ligação em que se unem pessoas
indetermináveis. No concurso público, a ligação fática é determinada pela circunstância
de interligar um grupo de pessoas juridicamente aptas a se inscreverem no concurso e
com interesse na correta aplicação da concorrência. José Marcelo Menezes Vigliar 11 diz
que todos, têm interesse na correta aplicação do Direito.
Essa mudança de interesses, nas fases de pré e pós-inscrição, determinada pelo
grau de fortalecimento da ligação, passando de dados fáticos para dados jurídicos. Como
afirma Leonel:
Deste modo, os coletivos se distinguem dos difusos, ambos
indivisíveis, pela sua origem, na medida em que nestes o vinculo relaciona-se a
dados acidentais ou factuais, enquanto naqueles a ligação dos integrantes do
grupo, categoria ou classe decorre de uma relação jurídica.12
Assim, os imigrantes e refugiados, não podem ser discriminados na inscrição para
concursos públicos, e dentro desse grupo, os hiper vulneráveis (pessoas com deficiências
e negros) devem ter acesso a políticas afirmativas.
4) O Ministério Público e o Enforcement na defesa do pleno
emprego para imigrantes hiper vulneráveis
O enforcement pode ser conceituado como os mecanismos que estimulem e
imponham o respeito às leis. São muitos os meios usados na aplicação da lei:
A ideia de enforcement está intimamente relacionada a ideia de planejamento, de
estabelecimento de políticas de aplicação das leis em geral, ou, mais frequentemente, de
11
12
VIGLIAR.J.M.M. Ação civil pública, 5 e.d. São Paulo: Atlas. 2001.
LEONEL. Manual do processo coletivo, 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 106, 2002..
106
O papel do Ministerio Público e a defesa do pleno emprego...
determinadas leis, consideradas mais importantes num determinado momento.13
O enforcement seria um ótimo instrumento para o Parquet atuar nas questões
referentes ao princípio do pleno emprego. Na própria Constituição, art. 37, II, deve o
membro do Ministério Público zelar pela aplicação do princípio da obrigatoriedade do
concurso público para o provimento de cargo efetivo ou emprego público. Mas,
infelizmente, existem inúmeras formas de se descumprir esse princípio.
Nesse exemplo acima, ficando o Parquet sabendo ainda no período de inscrição.
Poderá o Ministério Público fazer uso do instrumento da recomendação, para
recomendar que a Administração Pública retire essa restrição abrindo um novo prazo de
inscrições para refugiados ou imigrantes em situações de hiper vulnerabilidade:
a) Pessoas com deficiências e afrodescendentes - participarem das políticas
afirmativas de “cotas” em pé de igualdade aos nacionais, nos concursos de
acesso aos cargos públicos;
b) Pessoas com deficiências, Afrodescendentes, Indígenas,
financeiramente, nos vestibulares de acesso ao ensino superior
Carentes
5) Instrumentos Extrajudiciais De Resolução De Conflito
Entre os diversos instrumentos extrajudiciais de resolução de conflitos, o
presente artigo, destaca a recomendação, o termo de ajustamento de conduta e o
inquérito civil público.
A recomendação é um instrumento legalizado pela Lei nº 8.625/93, que tem no
art. 6º da Lei Complementar nº 75/93 sua conceituação:
Art. 6º Compete ao Ministério Público da União:
(...)
XX – expedir recomendação, visando à melhoria dos serviços públicos
de relevância pública, bem como o respeitos aos interesses, direitos e bens cuja
defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção da providências
cabíveis.
Já o termo de ajustamento de conduta, tem regulamentação no parágrafo 6º, do
artigo 5, da Lei de Ação Civil Pública, objetivando prevenir ou reparar dano a interesse
difuso, coletivo ou individual homogêneo.
Consagrado no art. 129, III, da CF/88, teve início no ordenamento jurídico pátrio
a partir do art. 8º, § 1º, da Lei nº 7.347/85. Mas, também está previsto em outros
diplomas legislativos, como o art. 90 do Código de Defesa do Consumidor, art. 6º da Lei
de integração a Pessoa Portadora de Deficiência a 7.853/89, inciso I do art. 7º da Lei
complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), art. 201, V, do
13 FERRAZ, A. A.M.D.C.(Coord). Ministério Público: instituição e processo. São Paulo: Atlas, p. 119,
1999.
107
Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Apesar de existir alguns casos em que a própria Constituição dispensa a
realização de concurso para contratação temporária de excepcional interesse público,
como no exemplo de agente de pesquisa para fazer o censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, professor substituto de universidade ou agente de epidemia e
saúde. O concurso público, princípio constitucional especial, é obrigatório para admissão
de pessoas para ocuparem cargos de provimento efetivo, a não observância do princípio
do concurso público para esses cargos, segundo a própria Constituição (art. 37, § 2º),
implicará na nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, na forma da lei.
A Lei de Improbidade Administrativa, em obediência a própria constituição, diz
que a violação do princípio do concurso público, categoria dos atos de improbidade que
atentam contra os princípios da Administração Pública. O art. 11, V da LIA descreve como
ato de improbidade administrativa a conduta do agente público que ‘frustrar a licitude
de concurso público’.
A expressão “frustrar a licitude de concurso público” engloba não só as condutas
administrativas que dispensam ilegalmente no concurso, como também incidentes no
seu curso procedimental. Analisando o sentido dessa expressão, Marino Pazzaglini
Filho14 explica que:
A frustração da licitude do concurso público ocorre quando é quebrado
o princípio da igualdade entre os candidatos inscritos por inúmeras formas de
discriminação como, v.g., adoção de critério subjetivo de julgamento, restrições
indevidas para inscrição de candidatos, favorecimento de candidatos com a
quebra do sigilo de questões ou correção fraudulenta, aprovação suspeita de
parentes de membros da banca examinadora, indevida discriminação entre os
candidatos por idade, raça, sexo, religião, avaliação secreta da conduta e
antecedentes dos candidatos atc.
Numa situação em que membro de banca examinadora não reconhece um negro
imigrante como cotista racial, ou um refugiado com deficiência como cotista das vagas
reservadas. Assim, o membro da banca atentou contra os princípios da administração
pública em razão do exercício da função, conduta enquadrada no art. 9º da Lei que cuida
dos atos de improbidade que causa enriquecimento ilícito, sendo uma das sanções
previstas no art. 12, III, da Lei de Improbidade Administrativa, a devolução dos valores
ou bens acrescidos ilicitamente ao patrimônio do membro da banca.
Outro caso é o dano causado ao erário em razão da anulação do concurso público
por vício insanável produzido pelo agente público. Para realizar um concurso, a
administração tem muitos gastos, por isso, a sua anulação por culpa ou dolo do
administrador, partindo da imoralidade, enseja um ato de improbidade administrativa
de prejuízo ao erário, que tem entre outras sanções (LIA, art. 12, II), o ressarcimento
14 FILHO, M. P. Princípios Constitucionais Reguladores da Administração Pública. 3 Ed. São Paulo:
Atlas. p 81. 2008.
108
O papel do Ministerio Público e a defesa do pleno emprego...
integral do dano.
Se for o caso de delegação da execução do certame para entidade privada, os
particulares que conduzirão o concurso são considerados agentes públicos nos termos do
art. 2º, podendo se sujeitar aos rigores da lei de improbidade administrativa.
6) Conclusão
A América inteira é responsável pelo crescente número de violações dos direitos
humanos dos imigrantes, isso significa que essas garantias correm o risco de serem
rejeitadas pelos próprios Estados.15
Depois da guerra ao terror, Habermas afirma existir uma “dolorosa transição
para sociedades pós-coloniais de imigrantes”, neste contesto, faz-se necessário que “os
Ministérios Públicos precisam incluir nos seus planos estratégicos de atuação a questão
da migração como o fez o Ministério Público da Bahia no plano de 2011-2013 e trabalhar
para construir um projeto efetivo de proteção”.16
REFERÊNCIAS
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ministérios públicos estaduais para dar efetividade à nova lei de migração. In.:
BAENINGER, Rosana; et. al. (Orgs.). Migrações Sul-Sul. 2ª ed. Campinas:
Núcleo de Estudos de População ― “Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018
ARAÚJO, Luiz Alberto David; MAIA, Maurício. Refugiados com Deficiência: a dupla
vulnerabilidade e a sua proteção constitucional. In.: PINTO, Eduardo Vera-Cruz;
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Igualdade dos Povos. São Paulo: Quartier Latin, 2017,
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da Silva (Eds). Derecho, gobernanza e innovación: dilemas jurídicos de la
contemporaneidad en perspectiva transdisciplinar. Porto: Universidade
15
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dos migrantes pelo sistema interamericano de direitos humanos. In: Cadernos de dereito actual, nº 8,
2017, p. 439 -452
16 ANUNCIAÇÃO, Clodoaldo Silva. A necessidade de reestruturar as agendas dos
ministérios públicos estaduais para dar efetividade à nova lei de migração. In.: BAENINGER,
Rosana; et. al. (Orgs.). Migrações Sul-Sul. 2ª ed. Campinas: Núcleo de Estudos de População ― “Elza
Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018, p. 633.
109
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CASELLA, P. B. Nacionalidade – direito fundamental, direito público interno e direito
internacional. Revista da Faculdade de Direito/Universidade de São Paulo. v
111, 2016.
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NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of justice: disability, nacionality, species
membership. United States of America: First Harvard University Press paperback
edition, 2007
110
A ATUAÇÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS DE
ENERGIA
PARA
O
DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL: ANÁLISE COMPARADA ENTRE
BRASIL E PORTUGAL
Mariane Silva de Castro 1
Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos2
1) Introdução
O presente artigo tem como objeto de estudo as agências reguladoras do setor da
energia, um tema que ocupa interesse à medida em que esta tem sido tangenciada pela
problemática ambiental. Os novos paradigmas da sustentabilidade têm influenciado as
decisões do Estado no que concerne ao surgimento de um Direito Ambiental
comprometido com as necessidades das gerações futuras.
A importância da questão ambiental na área da energia está na pauta do dia,
ocupando sempre manchetes globais e forçando as principais potencias mundiais a se
unirem em prol de um objetivo comum: lutar contra o aquecimento global e garantir
níveis satisfatórios de qualidade de vida ao homem e a todo ecossistema, sem que ocorra
um colapso no desenvolvimento econômico.
Assim, entende-se que a sustentabilidade está no cerne da questão do
desenvolvimento econômico deste século, onde este, necessariamente, precisa estar
aliado a um modelo que priorize a responsabilidade da exploração dos recursos naturais,
de modo que não haja impactos danosos e irreversíveis para as próximas gerações.
Essas e outras preocupações foram exaustivamente debatidas pelas maiores
lideranças democráticas deste século e do anterior, as quais tiveram suas diretrizes
balizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) a fim de demarcar metas que
garantissem que os objetivos ambientais firmados pelos acordos internacionais
servissem de standarts para todos os países signatários, com o fulcro maior de alcançar
um nível de consciência ambiental global, não só entre os países desenvolvidos, mas
também entre os países em desenvolvimento.
Diante desta realidade de mudanças ambientais e acordos internacionais em
busca de parâmetros ecologicamente sustentáveis nasce, assim, um novo papel das
agências reguladoras da área de energia, as quais necessariamente perpassam por uma
busca por energias limpas e renováveis.
1
Advogada e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa.
2 Mestre em Administração pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduado em Direito
Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Atualmente é professor do Instituto Federal do
Maranhão.
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
É neste contexto que emergem a figura das agências reguladoras a propósito de
tornar a Administração Pública mais eficiente e autônoma, de modo que fomentem um
modelo econômico com menores riscos de mercado e falhas operacionais. Deste novo
movimento, onde as agências reguladoras têm papel primordial na manutenção e
desenvolvimento de setores estratégicos de um Estado, pretende-se analisar qual o
esforço desempenhado no setor da energia para a promoção do desenvolvimento
sustentável.
Desta forma, delimita-se como objeto de estudo a atuação das agências
reguladoras do setor de energia no Brasil e em Portugal, neste novo contexto de
sustentabilidade. Pretende-se analisar se as medidas de eficiência energética e objetivos
governamentais nos últimos anos têm sido voltados para a consolidação de uma política
energética sustentável, analisando quais foram os avanços ou retrocessos.
O presente artigo foi elaborado através de pesquisa bibliográfica e doutrinária
majoritariamente portuguesa e brasileira. Não obstante, foram analisados dados das
agências reguladoras da energia através dos sites oficiais dos governos português e
brasileiro.
Por fim, almeja-se que este trabalho contribua para uma discussão salutar sobre
os resultados das políticas regulatórias na área da energia sob o ponto de vista da
sustentabilidade.
2) O “novo” paradigma da sustentabilidade e as questões
energéticas
Nas páginas a seguir analisa-se o surgimento do conceito jurídico do princípio do
desenvolvimento sustentável e em paralelo será esmiuçado o contexto internacional que
circundou toda esta problemática ambiental. Este plano de fundo é necessário para que
seja compreendido o porquê da questão energética ter-se tornado uma preocupação
global.
Não é recente o pensamento de que os recursos naturais da terra são finitos. A
crise do petróleo em 1970 expôs a fragilidade de um modelo de exploração energético
baseado em um único recurso e como bem pontuou o doutrinador Vasco Pereira da Silva
(2005, p.18), esta crise fomentou o desenvolvimento de uma “consciência dos limites de
crescimento econômico e da esgotabilidade dos recursos naturais”.
Assim, os combustíveis fósseis se apresentaram como uma opção “finita, poluente
e cara” (SOARES, 2014, p. 13). Foi neste contexto que as tragédias de cunho ambiental
começaram a ser vistas com um outro olhar. Destaca-se a importância do relatório The
Limits of Growth, elaborado por cientistas do Massachussets Institut of Technology
(MIT) que revelou, pela primeira vez, que a degradação ambiental já havia se tornado
um problema global de sinais alarmantes. O prognóstico inicial certificou que o desgaste
112
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
do ecossistema global é fruto de uma exploração secular irresponsável em busca de
produção de riquezas, que é a mola propulsora do desenvolvimento econômico de toda
nação. Fez-se urgente repensar uma forma de desenvolvimento que não prejudicasse o
bem-estar ambiental das gerações futuras.
Neste aspecto, não se olvida que o surgimento da problemática ambiental
também resultou na garantia de um direito fundamental. Sobre esta discussão
doutrinária sobre a ciência jurídica ambiental, reconhece-se que a doutrina não é pacífica
quanto a classificação da geração de direitos humanos, a qual pertence o direito ao
ambiente.
Para doutrinador português Vasco Pereira da Silva (2005, p. 102), este direito
está inserido na terceira geração de direitos humanos pois este “apresenta em simultâneo
uma vertente negativa, que garante ao seu titular a defesa contra agressões ilegais no
domínio constitucionalmente garantido, e uma vertente positiva, que obriga à actuação
das entidades públicas para a sua efectivação”, contudo para o brasileiro Édis Milaré
(2009) e o espanhol Gregório Peces-Barba Martinez (1993) o direito do ambiente
pertence a uma quarta geração de direitos humanos, visto o seu caráter pós-moderno.
É dentro deste contexto de mudança de paradigmas ambientais que se pretende
analisar a questão energética.
Diante deste panorama sob o imperativo de preservação do ambiente, surgiu o
conceito de desenvolvimento sustentável como aquele capaz de suprir as necessidades
da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras
gerações. Contudo, cabe explicar que existiu toda uma agenda internacional (SANDS,
2017) por trás desse nível de conscientização ambiental que inaugurava o conceito de
sustentabilidade. (SARAIVA, 2017)
Neste estudo verificou-se que tanto Portugal quanto o Brasil, adotaram em suas
Cartas Magnas, o princípio constitucional do desenvolvimento sustentável.
Em Portugal, o princípio está expressamente consagrado no artigo 66º, número
2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que ratifica: “Para assegurar o direito
ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por
meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos”.
O doutrinador português Vasco Pereira da Silva (2005), afirma que o princípio
constitucional do desenvolvimento sustentável obriga a “fundamentação ecológica” das
decisões jurídicas de desenvolvimento econômico, estabelecendo a necessidade de
ponderar tanto os benefícios de natureza econômica, como os prejuízos de natureza
ecológica de uma determinada medida.
No Brasil, o artigo que se encontra explícito este princípio é o artigo 225 da
Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, (...) essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e
futuras gerações”.
113
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
Como já fora mencionado, a crise do petróleo de 1970 expôs o problema de uma
economia completamente dependente de combustíveis fósseis. Este modelo começou a
ser questionado por outro motivo: a emissão de dióxido de carbono proveniente da
queima deste recurso natural. (SOARES, 2014)
Antes de adentar especificamente ao assunto, se faz importante voltar um pouco
mais na história para que se possa compreender os elementos que corroboraram para a
eclosão da primeira grande crise energética mundial.
A problemática da exploração de recursos naturais para obtenção de energia não
é recente. Acredita-se que foi com o surgimento da máquina de vapor, ainda no século
XVIII, e com o advento do motor de combustão interna, no século XIX, que o mundo
presenciou o crescimento econômico potencialmente relevante. A revolução industrial
trouxe consigo uma nova forma de produzir e a exploração do carvão, do petróleo e seus
derivados se tornaram a mola-propulsora desse modelo.
Após o fim da primeira guerra mundial, o petróleo se tornou um produto
estratégico para o mundo, visto o seu uso refinado em diesel, o qual era utilizado em
combustível para submarinos e aviões. Logo, a versatilidade do petróleo foi o fator chave
para torná-lo em um produto comercial de alto valor no mercado mundial.
Foi justamente por conta desse alto valor de mercado, que os principais países
detentores da produção e exportação de petróleo criaram a Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP) em 1960, composta inicialmente pelo Iraque, Kuwait,
Arábia Saudita e Venezuela. Utilizando-se de controle sobre os recursos petrolíferos e
impondo uma nova relação de domínio no setor, a OPEP utilizou da teoria das leis de
mercado, forçando uma redução na produção, para que houvesse uma alta no preço do
petróleo comercializado. As consequências dessas medidas resultaram na primeira crise
do petróleo de 1973 e que foram acompanhadas subsequentemente por outras, em 1974
e 1979.
O efeito deste colapso forçou os países dependentes economicamente do petróleo
e a repensar novas formas de obter energia para o desenvolvimento das suas atividades
econômicas, desta forma, afirma-se que este evento desnudou a vulnerabilidade a que
está imposta uma nação cuja economia é dependente uma única matriz energética.
O nacionalismo aliado à tecnologia impulsionou o desenvolvimento de matrizes
energéticas ainda não exploradas. Em torno de um panorama onde pouco se falava sobre
sustentabilidade, não foi ao primeiro instante que foram privilegiadas as fontes de
energias renováveis, tais como a solar, eólica e de biomassa.
A consciência ambiental e a agravante descoberta do aquecimento global
exigiram uma mudança de paradigma com relação a exploração do petróleo e seus
derivados. Calcula-se que até a década anterior, por volta de 80% das fontes primárias
de energia eram provenientes de combustíveis fósseis: carvão, petróleo e gás natural.
(SANTOS, 2011)
Como fora exposto no tópico anterior, a ONU teve papel primordial na construção
114
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
de uma agenda internacional para o meio ambiente. Após a Conferência de Estocolmo
em 1972, outro evento de importância para a temática ambiental, e especialmente para a
área de energia, foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento (Rio 92). Na visão de Alexandre Kiss (1994), este evento superou o de
Estocolmo, pois consagrou os princípios fundamentais que se desenharam desde o fim
da década de 60 e enuncia outros, tais como os princípios da participação dos cidadãos,
da avaliação prévia dos efeitos sobre o ambiente e da prevenção. Deste evento surgiram
cinco documentos assinados pelas 185 nações presentes, quais foram: a Agenda 21, a
Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, a Convenção Combate à
Desertificação e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima
(CQNUMC).
Reconhece-se a importância da CQNUMC para surgimento do Protocolo de
Quioto em 1997, que teve como objetivo a redução das taxas de emissões de Gases com
Efeito Estufa (GEE), os quais foram diretamente associados com a problemática do
aquecimento global. Esta associação só fora possível devido a maior atenção aos
problemas ambientais.
Assim, constatou-se que a combustão dos derivados do petróleo, combinada a
devastação do solo, através da deflorestação, têm impactos diretos no desequilíbrio da
temperatura do planeta. Isto, pois a queima de combustíveis fósseis gera grandes
quantidades de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera3, sendo este um gás de efeito
estufa, pois absorve a radiação infravermelha.
Ao aumentar a concentração de gases de efeito estufa, o planeta sofre com as
alterações climáticas, visto que há um desequilíbrio ambiental atmosférico. Uma das
mais graves consequências de toda esta questão é a alteração do sistema climática e o
aumento da temperatura média global da troposfera.
Segundo relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas4 –
(IPCC, 2007) de 2007 de 1995 a 2006 foram registradas as mais altas temperaturas
médias globais desde 1850. Boa parte da energia climática do planeta tem sido absorvida
pelos oceanos, cuja temperatura aumentou em profundidades até três mil metros, o que
projeta cenários de aumento médio do mar de até 1,4 metro até o ano de 2100.
(RAHMSTORF, 2007)
Em esfera mundial, ficou patente o problema do aquecimento global e a
importância de descarbonização da economia mundial, emergindo a necessidade de se
repensar a menor dependência dos combustíveis fósseis e a maior utilização de
tecnologias capazes de contribuir para a equilíbrio dos gases de efeito estufa da
3 Mensura-se que a concentração atmosférica de CO 2 cresceu desde 280 ppmv (partes em milhão
em volume) antes da revolução industrial at´w 384 ppmv em 2007.
4 Intergovernmental Panel on Climate Change (em português: Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas). É uma organização científico-política criada em 1988 no âmbito das Nações Unidas
(ONU) pela iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). In: IPCC, 2007,
Intergovernmental Panel on Climate Change. Constributions of Working Group I, II and III to the IPCC
Fourth Assessment Report, Cambridge University Press.
115
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
atmosfera.
Assim, as Fontes de Energia Renováveis (FER) ganharam força no cenário
mundial devido seus vários benefícios, como bem demostrou os estudos de Cláudia Dias
Soares e Suzana Tavares da Silva (2014):
a) por ser um investimento estratégico, uma vez que promove a
diminuição da dependência energética em uma só fonte de energia;
b) por trazer consigo uma vertente social, culminando na geração de
emprego, fixação de populações e combate à desertificação;
c) promover o desenvolvimento sustentável, uma vez que comparado
aos combustíveis fósseis, são reduzidos os gases de efeito estufa;
d) e por fim, também trazem benefícios econômicos, vez que
promovem atividades de geração de riqueza através da redução da fatura
energética.
Contudo, apesar dos esforços para diversificação da matriz energética no mundo,
a indústria do petróleo ainda detém forte influência na economia global e a as tendências
gerais sobre energia não são das mais favoráveis. É o que se expõe a seguir através do
relatório compilado por Nicole Gnesotto e Giovanni Grevi (2008, p. 57-58):
Até 2025 a procura mundial de energia primária deverá crescer em
média aproximadamente 1,6 ao ano. Em 2030, as necessidades energéticas
poderão ser 50% superiores às necessidades atuais.
Os combustíveis fósseis petróleo gás e carvão continuaram a ser as
principais fontes de energia primária do planeta, representando 81% da
procura. O petróleo deverá continuar a ser a fonte de energia mais utilizada. O
carvão deverá continuar ocupa o segundo lugar devido a uma ligeira diminuição
da procura previsível de gás. A procura de carvão e gás deverá registrar
crescimento manuais bastante semelhantes (1,8% e 2% por ano,
respectivamente, neste período).
A parte da energia nuclear deverá diminuir na maioria dos países
industrializados e progredir nos países em desenvolvimento e nas economias
emergentes. As energias renováveis (à excepção da biomassa) registrar amo
crescimento mais rápido do que as outras fontes de energia, nos países da
OCDE, embora continuem a constituir apenas uma parte mínima da oferta
mundial.
Os países em desenvolvimento, por si só, representaram mais de dois
terços do aumento da procura energética. No entanto, as disparidades
regionais continuarão a ser importantes, com a Ásia, a registrar um crescimento
(em volume) muito superior ao de África. A procura também aumentar a na
zona da OCDE, mas a um ritmo inferior. A dependência das importações
energéticas por parte dos países desenvolvidos e emergentes intensificar-se-á
sensivelmente.
Os recursos energéticos estarão, muito provavelmente, em condições
de responder ao aumento da procura, mas a optimização da sua exploração
depende inteiramente de investimentos. Além disso, embora a oferta e a
procura energéticas devam crescer, a primeira poderá progredir mais devagar
que a segunda, o que provocar uma subida dos preços da energia.
Diante de um cenário catastrófico, defende-se que o desenvolvimento sustentável
116
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
com relação a área da energia, integre e racionalize os sistemas de produção de energia
renováveis e endógenas, como a: solar fotovoltaica, solar-térmica, biocombustíveis,
biogás, biomassa, geotérmica, oceanos, mini-hídrica e eólica. Por outro lado, não se deve
esquecer que é fundamental integrar os sistemas de eficiência energética, e também os
indicadores de consumo e racionalização. (CORREIA, 2009)
E é com base no entendimento que a energia é um bem econômico e por isso se
sujeita às regras de mercado (FERNANDES, 2011), que se pretende analisar os próximos
capítulos deste trabalho, relacionando a atuação das agências reguladoras da área de
energia, para a promoção do novo paradigma do desenvolvimento sustentável.
3) A regulação na administração pública
Neste capítulo, será estudado o papel das agências reguladoras no âmbito da
Administração Pública. Para tanto, será analisado um contexto histórico, o qual se
explicitará qual a necessidade que supre estas entidades. A seguir, será analisado o seu
conceito na atualidade e, por fim, será analisado o desempenho da função destas
entidades para a regulação da área energética.
A regulação nasce pela necessidade de transformar o serviço público essencial em
mais eficiente e mais acessível à sociedade, servindo-se de uma lógica mais técnica - o
que a difere da concepção usual dos serviços estatais comuns. Como bem conceituou Ana
Roque (2004, p. 11), a regulação é “uma solução de recurso para fazer face à
inevitabilidade das falhas de mercado”. Surge, portanto, como uma tentativa de tornar
setores estratégicos da economia com um tratamento diferenciado do que o restante dos
serviços públicos.
Deste modo, surge uma nova figura de Estado, o qual é denominado de regulador.
Este Estado Regulador tem como atributo a prioridade da competência regulatória, que
se dá pela excepcionalidade da prestação direta de atividades econômicas pelo próprio
Estado.
Para Marçal Justen Filho (2009) um Estado regulador caracteriza-se: pela
transferência para a iniciativa privada de atividades desenvolvidas pelo Estado (desde
que dotadas de forte cunho de racionalidade econômica); liberalização de atividades até
então monopolizadas pelo Estado, a fim de propiciar a disputa pelos particulares em
regime de mercado; a presença do Estado no domínio econômico, que privilegia a
competência regulatória; a atuação regulatória do Estado, que se norteia não apenas para
atenuar ou eliminar os defeitos do mercado, mas também para realizar certos valores de
natureza política ou social; e institucionalização de mecanismos de disciplina
permanente das atividades reguladas.
É fundamental aqui, destacar regulação econômica no ordenamento jurídico no
Brasil e em Portugal.
117
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
Iniciando pela Constituição brasileira, é notório que a CRFB permitiu a
intervenção direta e indireta na área econômica, estas são encontradas no Título VII da
Ordem Econômica e Financeira. De modo indireto pode, o Estado, explorar atividade
econômica por monopólio ou concorrência, como baliza o artigo 173 caput e parágrafo
1º da CRFB. No artigo 174 da CRFB, há previsão para a intervenção indireta onde se
refere: “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado
desempenhará, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento”.
Em Portugal, pode-se afirmar que a regulação foi inserida através art. 267.º, n. º
3 da CRP prescreve, sob a epígrafe "Estrutura da Administração" e sob o título IX relativo
à "Administração Pública" que "a lei pode criar entidades administrativas
independentes". Não obstante, o artigo 9º, alínea “d”, da CRP, onde constam as tarefas
fundamentais do Estado, explicitam que é dever do Estado “promover o bem-estar e a
qualidade de vida do povo (...) mediante a transformação e modernização das estruturas
económicas e sociais”.
Ana Roque (2004) defende que este último artigo deve ser interpretado segundo
o núcleo da intervenção indireta Estatal, de modo a ser assegurado pelo Estado a garantia
dos direitos e liberdades fundamentais, com respeito aos princípios democráticos do
Estado de Direito.
Desta forma, fica patente que tanto no Brasil quanto em Portugal está
disciplinada a existência da intervenção direta e indireta do Estado na ordem econômica.
Tornando constitucional a disciplina deste trabalho no que tange ao papel das agências
reguladoras para a exploração da energia.
Adentrando especificamente ao assunto das agências reguladoras para energia, é
sabido que estas foram criadas pelo Estado com o escopo de atender aos anseios de uma
ordem econômica mais moderna, onde era necessária a regulação de setores essenciais
ao desenvolvimento da nação.
Remete-se ao capítulo anterior onde foi debatida a crise do petróleo de 1970
desencadeada pelos países formadores da OPEP. As maiores nações do planeta
encontraram-se reféns de uma matriz energética dependente do petróleo e seus
derivados.
Desta forma, a busca por uma gestão energética mais eficiente teve como passo
primordial a diversificação das fontes e energia, de modo a evitar futuros colapsos ou as
chamadas falhas de mercado. (CONFRARIA, 2011)
A regulação da economia entrou, assim, para a área da energia segundo a
necessidade de controlar bens e serviços oferecidos pelo Estado, de modo a assegurar os
investimentos e o alinhamento com as necessidades dos consumidores.
Desta forma, superar a barreira das falhas de mercado para a área da energia
implica diretamente incentivar a competitividade entre empresas prestadoras de
serviços a aumentarem os seus níveis de eficiência energética.
118
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
De modo a problematizar essa questão, Gomes cita Herring, que afirma que as
políticas de eficiência energética acabam por incentivar um aumento de consumo, por
isso não pode ser entendida como uma política ambiental eficiente (HERRING, 2006
apud GOMES, 2016a). Da mesma forma relata a visão de Rudin, que a eficiência
energética incentiva uma crescente procura ao uso de recursos naturais. (RUDIN, 1999
apud GOMES, 2016b)
Neste estudo, entende-se que o novo paradigma da eficiência energética é
necessário para que implementem políticas de controle mais palpáveis sobre os planos
de ação das agências reguladoras. Isto, pois, sabe-se que a expansão da oferta de energia
não poderá mais ser programada de acordo apenas com as leis de mercado, é necessário
que se tenha mecanismos políticos a longo prazo que busquem a independência dos
combustíveis fósseis (que contribuem para o descontrole do aquecimento global), que
invistam na exploração de fontes de energias renováveis e que aumentem o controle
sobre o desperdício de energia. (GOMES, 2016a)
Desta forma, defende-se que a regulação pode sim, beneficiar os planos de
eficiência energética. Ocorre que ainda é difícil conciliar interesses entre as empresas
reguladas, o Estado e os consumidores. Portanto, defende-se como necessário um
impulso maior por parte do Estado, tanto para a conscientização da sociedade sobre a
importância do consumo sustentável da energia, quando para o incentivo de energias
limpas e a desburocratização legal no que tange aos novos regulamentos com relação a
implementação de políticas de eficiência energética às empresas reguladas. (GOMES,
2016b)
4) A atuação das agências reguladoras de energia para o
desenvolvimento sustentável: análise comparada entre
Brasil e Portugal
Neste capítulo pretende-se analisar propriamente a atuação das agências
reguladoras de energia no Brasil em Portugal no que tange a medidas de adequação que
privilegiem o desenvolvimento da sustentabilidade em ambos os países, expondo o
problema jurídico da regulação versus a busca pela sustentabilidade.
Antes de adentrar ao próximo tópicos, é necessário identificar que no Brasil a
agência reguladora para energia no Brasil é a Agência Nacional de Energia Elétrica
(ANEEL) e em Portugal, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE).
a) O papel das ANEEL e ERSE para a promoção da
sustentabilidade
Inicialmente cabe aqui comparar a função desempenhada pela ANEEL e pela
119
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
ERSE enquanto agências reguladoras para energia.
A ANEEL está localizada na Administração Pública indireta da Brasil, ocupando
o lugar de autarquia em regime especial, diretamente vinculada ao Ministério de Minas
e Energia. Tem como maior objetivo a regulação do setor elétrico brasileiro e encontrase balizada por meio da Lei nº 9.427/1996 e Decreto nº 2.335/1997 (BRASIL, 2017).
Em Portugal a ERSE5, tem a natureza jurídica de pessoa coletiva de direito
público dotada de autonomia administrativa e financeira, dispondo de patrimônio
próprio e asseguradas sua independência funcional. Fora criada pelo Decreto-Lei
número 187/95, de 27 de julho, e cujos Estatutos foram aprovados pelo Decreto-Lei
número 44/97, de 20 de fevereiro, passando a denominar-se por Entidade Reguladora
dos Serviços Energéticos.
É a entidade responsável pela regulação dos setores do gás natural e da
eletricidade, conservando a sigla ERSE e é disciplinada pelos seus Estatutos aprovados
pelo Decreto-Lei n. º 97/2002, de 12 de abril, alterados pelo Decreto-Lei n. º 212/2012,
de 25 de setembro, na redação do Decreto-Lei n. º 84/2013, de 25 de junho (PORTUGAL,
2017).
Neste primeiro critério, pode-se observar que ambos países adotaram agência
reguladoras independentes de forma certificar a autonomia destes organismos frente as
atividades regulatórias as quais são demandadas. Enquanto autarquias independentes,
estas foram criadas por lei. No Brasil, tal disposição está assegurada no art. 1º do DL
2.335/1997 e em Portugal no art. 1 º do DL 97/2002.
Assim, depreende-se os dispositivos legais para as agências reguladoras para
energia no Brasil e em Portugal são, respectivamente: Lei 8.987/95, Lei 9.427/1996 e o
Decreto nº 2.335 de 1997; e a Lei n. º 67/2013 e o Decreto-Lei nº. 97/2002. É com base
nessas normas legais que será feita a análise comparativa deste tópico.
Sob a primeira análise no quesito promoção de eficiência energética, foi
verificado que ambos os países destacaram na norma legal esta preocupação.
No Brasil, o dispositivo está localizado no Artigo 12, inciso III, do Decreto
2335/1997 que as diretrizes da ANEEL devem contemplar a “promoção do uso e da
ampla oferta de energia elétrica de forma eficaz e eficiente, com foco na viabilidade
técnica, econômica e ambiental das ações”.
Em Portugal, o diploma do Estatuto da Entidade Reguladora dos Serviços
Energéticos (ERSE) DL nº 97/2002, assegurou de forma mais enfática a eficiência
energética, nos artigos 2º e 3º do referido Decreto Lei. Isto, pois, foi verificada quatro
citações sobre a necessidade de se assegurar a eficiência energética na agência
5 A ERSE rege-se ainda pelas regras aplicáveis às entidades reguladoras, nos termos definidos pela
Lei-quadro das entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica
dos setores privado, público e cooperativo, aprovada pela Lei n. º 67/2013, de 28 de agosto, alterada pela Lei
n. º 12/2017, de 2 de maio. A Lei n. º 9/2013, de 28 de janeiro aprova o regime sancionatório do setor
energético, enquadrando as competências sancionatórias da ERSE no âmbito do Sistema Nacional de Gás
Natural e Sistema Elétrico Nacional.
120
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
reguladora, o que demonstra maior preocupação com o tema em questão quando
relacionado ao Brasil. A primeira citação se encontra no artigo 2º, nº 3 que dispõe sobre
Regime e Independência (o qual foi alterado mais recentemente pelo DL n. º 84/2013,
de 25/06), a segunda encontra-se no artigo 3º, nº 1, a terceira no artigo 3º, nº 2 “d” e a
quarta, no artigo 3º, nº 2 “y”. Como bem, fora explicitado no texto legal, houve um
cuidado em garantir não só a eficiência energética, mas também a sustentabilidade
ambiental e do Sistema Elétrico Nacional, não olvidando a eficiência para a promoção da
qualidade e da gestão do serviço prestado para a sociedade.
Desta forma, ratifica-se que em Portugal a eficiência energética e a
sustentabilidade têm tratamento mais adequado pelo legislador, do que no Brasil.
Com relação à preocupação com a temática ambiental, no Brasil o DL 2.335/1997
afirmou que ANEEL tem como competência estimular e participar de ações ambientais,
bem como interagir com o Sistema Nacional de Meio Ambiente, atuando de forma
harmônica com a Política Nacional de Meio Ambiental, como dispõe o art. 4º, inciso
XXV, do referido texto legal.
Em Portugal, a preocupação ambiental foi demonstrada no DL 97/2002, como
bem citado anteriormente no artigo 2º, nº 3, no Artigo 3º, nº 2, “d”, e também no artigo
41º, nº 1, “c” e “h” - último artigo trata dos membros do Conselho Consultivo da ERSE
“órgão de consulta na definição das linhas gerais de atuação da ERSE e nas deliberações
adotadas pelo conselho de administração” o qual deve ser composto, entre outros, de
“um representante do membro do Governo responsável pela área do ambiente” e “um
representante da Agência Portuguesa do Ambiente”.
Em linhas gerais, também pode-se observar que a ERSE tem maior abrangência
no seu texto legal, do que ANEEL com relação à temática ambiental. Vale salientar, que
é de grande valia que o Conselho Consultivo de uma agência reguladora para a área da
energia se proponha a acatar as diretrizes de membros especialistas na área do ambiente.
Por fim, quando trata-se de estímulo a novas fontes de energias renováveis, não
se verificou nenhuma menção na legislação brasileira. Em Portugal, no DL 97/2002 no
artigo 41º, nº 1, “k”, garante uma vaga ao Conselho Consultivo da ERSE para “Um
representante das associações portuguesas de produtores de energia elétrica a partir de
fontes de energia renováveis”.
Desta forma chega-se ao fim deste tópico com análise que no quadro
comparativo, a legislação portuguesa está muito além da brasileira, quando se trata de
fomentar a sustentabilidade para a agência reguladora do setor de energia. Sem sombra
de dúvidas, a experiência legislativa portuguesa poderá ajudar o Brasil na construção de
normas legais que estejam mais próximas de uma regulação para a promoção do
desenvolvimento sustentável.
121
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
b) Análise dos programas de eficiência energética
Neste último tópico, pretende-se analisar os programas de eficiência energética
desenvolvidos pela ANEEL e ERSE, com o fulcro de acompanhar como, de fato, estas
agências reguladoras estão se adequando ao novo paradigma da sustentabilidade e se os
resultados dessas ações têm sido benéficos para o meio ambiente.
Antes de adentrar ao tema proposto, faz-se salientar que ambos países tiveram
em seu passado crises elétricas, por conta de baixa variabilidade da matriz energética.
Portugal tinha como matriz energética até 1960, preponderantemente centrais de
carvoarias e o petróleo. De um passado dependente de termoelétricas, o país Ibérico teve
como marco o ano de 1997 a inserção de gás natural na matriz energética do país
(DIRECÇÃO-GERAL DE ENERGIA, 1997), apresentado uma decrescente no índice de
dependência em fontes de energia primária a partir da primeira década dos anos 2000.
Como ressaltou o estudo de Cláudia Dias Soares e Suzana Tavares da Silva (2014) as
fontes de energia renováveis em Portugal nos anos 30 representavam cerca de 3% do
consumo energético, valor que aumentou para 95% em 1960, regrediu para 31% em 2000
e aumentou novamente para 35% em 2009, o destaque deste avanço vai para o incentivo
de centrais eólicas.
No Brasil, a matriz elétrica sempre fora dependente do petróleo e das centrais
hidrelétricas. Se de alguma forma o Brasil aparece com boa utilização de fontes de
energias renováveis, por trás dos números há um grande impacto ambiental causado pela
instalação e manutenção das centrais hidrelétricas, motivo que impulsionou a busca por
novas matrizes energéticas, como o biodiesel, a energia solar e a eólica.
Diante deste contexto, o papel dos planos de eficiência energética
desempenhados pela ANEEL e ERSE, tem como função o incentivo a diversificação da
matriz energética.
Começando por Portugal, a eficiência energética fora inserida por programas do
governo juntamente com as políticas regulatórias do setor elétrico, cita-se em ordem
cronológica os instrumentos:
i.
2004: O Programa Nacional para as Alterações Climáticas – PNAC
ii.
2007: O Plano de Promoção da Eficiência no Consumo - PPEC
iii.
2008: O Plano Nacional de Acção para a Eficiência Energética –
PNAEE
iv.
2010: Estratégia Nacional para a Energia – ENE 2020
v.
2010: Fundo de Eficiência Energética – FEE
Sem sombra de dúvidas, o PNAEE é o plano que possui maior peso, devido ter
122
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
surgido com base na Diretiva da União Europeia nº 2006/32/CE6 (GOMES, 2016a).
Inicialmente tinha como meta o ano de 2015, com a melhoria da eficiência energética
equivalentes a 10% do consumo final de energia e abrangia áreas distintas, quais sejam:
transporte, indústria, Estado e residencial e serviços.
Ocorre que, em 2012 a União Europeia através da Diretiva 2012/27/EU inseriu
uma nova meta para eficiência energética, aumentando esta para 20% em 2020, devido
ter deparando-se com resultados nada animadores através do levantamento do PNAE
2008-20157. (GOMES, 2016a)
As novas metas para Portugal, no que diz respeito à nova diretiva da União
Europeia para 2020, traduzem-se em objetivos concretos, quais sejam:
1. 20% de redução de gases de efeito de estufa;
2. 20% de incorporação de fontes de energias renováveis no consumo
de energia final;
3. 20% de redução do consumo de energia (GOMES, 2016, p. 25b).
Na intenção de superar o resultado não satisfatório anterior, o governo português
comprometeu-se em uma meta ainda mais ousada do que foi proposta pela União
Europeia, instituindo o Plano Nacional de Acção para as Energias Renováveis (PNAER)8
(GOMES, 2016a). Assim, declarou que aumento de:
1. 31% de FER no Consumo Final Bruto de Energia;
6 Como bem observou Carla Amado Gomes: “Pouco depois, na sequência da directiva 2006/32/CE,
foi aprovado, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 80/2008, de 20 de Maio, o primeiro Plano
Nacional de Acção para a Eficiência Energética (PNAEE) período de 2008-2015, no qual eram
contempladas quatro áreas específicas de actuação: Transportes; Residencial e Serviços; Indústria; e Estado,
além de três áreas designadas ‘transversais’: Comportamentos; Fiscalidade e Incentivos; e Financiamentos.
Nessa ocasião, foi também anunciada a criação do Fundo de Eficiência Energética, que tinha por objetivo
financiar os programas e as medidas previstos no PNAEE (que veio a ser criado pelo Decreto-Lei n.º
50/2010, de 20 de Maio).” In: GOMES, Carla Amado. Eficiência Energética em Portugal: uma panorâmica
geral. Revista e-Pública. Volume 3, Dezembro de 2016, p. 298.
7 Com efeito, e como se pode extrair dos considerandos da Resolução n.º 20/2013, “O diagnóstico
da execução do PNAEE 2008-2015 e do PNAER 2010 [Plano Nacional de Acção para as Energias
Renováveis] permitiu concluir que, relativamente ao indicador por excelência da eficiência energética da
economia, Portugal apresenta hoje uma intensidade energética da energia primária em linha com a União
Europeia (UE), mas que este valor oculta um resultado menos positivo quando medida a intensidade
energética da energia final. Na realidade, o elevado investimento feito por Portugal em energias renováveis
e o reduzido consumo energético no setor residencial, comparativamente com o resto da Europa, encobrem
uma intensidade energética da economia produtiva 27% superior à média da União Europeia. Este resultado
vem reforçar a necessidade de intensificar os esforços na atuação direta sobre a energia final, no âmbito do
PNAEE, em particular da economia produtiva, por oposição a um maior nível de investimento na oferta de
energia, sem pôr em causa o necessário cumprimento das metas de incorporação de energias renováveis no
âmbito do PNAER”. In: GOMES, Carla Amado. Eficiência Energética em Portugal: uma panorâmica geral.
Revista e-Pública. Volume 3, Dezembro de 2016, p. 299.
8 Um aspecto a realçar deste PNAEE, ainda em sede geral, é a sua associação ao Plano Nacional de
Acção para as Energias Renováveis (PNAER). O Governo entendeu revê-los em simultâneo, atualizando em
matéria de energias renováveis as diretrizes traçadas em 2010, uma vez que se pretende o “alinhamento dos
respetivos objetivos em função do consumo de energia primária e da necessária contribuição do setor
energético para a redução de emissões de gases com efeito de estufa”, com vista a facilitar “os processos de
decisão, nomeadamente os que envolvam opções entre investir na eficiência energética ou na promoção do
uso de energias renováveis, tornando-os mais claros e racionais”. In: GOMES, Carla Amado. Eficiência
Energética em Portugal: uma panorâmica geral. Revista e-Pública. Volume 3, Dezembro de 2016, p. 300.
123
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
2. 10% de FER nos Transportes;
3. 20% de redução do consumo de Energia Primária (GOMES, 2016, p.
300).
Assim, o PNAEE9 foi aprovado para o período de 2013-2016, através da Resolução
do Conselho de Ministros n.º 20/2013, de 10 de abril. (GOMES, 2016b)
Observou-se, que de fato, o governo português teve como preocupação colocar
em prática os plano de eficiência energética, como demonstram os programas de
transporte: Renove Carro, Mobilidade Urbana e Sistema de Eficiência Energética nos
Transportes; os programas residenciais e serviços: Renove Casa & Escritório, Sistema de
Eficiência Energética nos Edifícios e Renováveis na Hora e Programa Solar; Indústria:
Sistema de Eficiência Energética na Indústria; Estado: Eficiência Energética no Estado;
Comportamentos: Programa Mais e Operação E.; Agricultura: (o qual ainda não teve
programa por ter sido implementado por último).
Acredita-se que seja louvável a posição de Portugal em tentar retomar o tempo
perdido no quesito da eficiência energética. O fato deste país ser parte da União Europeia
talvez tenha sido fator crucial para que pudesse acompanhar os demais países europeus,
que há tempos já adotam medidas para implementar a sustentabilidade em suas políticas
públicas.
No mais, Luísa Schimidt (2016) aponta como tendências positivas: A redução da
taxa de dependência externa do país em energia (considerada no seu todo, incluindo o
grande <<peso>> dos transportes), atingindo em 2014 o valor mais baixo das últimas
duas décadas: 71%; e a aprovação dos Planos Nacionais de Ação para a Eficiência
Energética (PNAE 2008 e 2013-2016), que originaram algumas medidas de eficiência
energética, nomeadamente nos edifícios da Administração Pública.
Ressalta-se que é perceptível que a mobilidade urbana ainda consta como entrave
para Portugal, contudo o programa da União Europeia Sharing Cities, co-financiado pelo
Horizonte 2020 pretende colocar Lisboa na vanguarda da revolução tecnológica da
gestão urbana sustentável. O programa tem como objetivo solucionar problemas das
áreas de mobilidade, poluição e energia, contando com soluções de alta tecnologia para
9 O PNAEE é um instrumento de planeamento energético que estabelece o modo de alcançar as
metas e os compromissos internacionais assumidos por Portugal em matéria de eficiência energética que
comporta as seguintes linhas orientadoras:
• Aumentar a eficiência energética da economia e em particular no sector Estado, contribuindo para
a redução da despesa pública e a competitividade das empresas;
• Cumprir todos os compromissos assumidos por Portugal de forma economicamente mais
racional; • Reforçar a monitorização e acompanhamento das diversas medidas;
• Reavaliar medidas com investimentos elevados e fusão de atuais medidas;
• Lançar novas medidas a partir das existentes abrangendo novos sectores de actividade (ex.:
Agricultura);
• Aumento da eficiência energética no sector Estado, consubstanciado pelo programa Eco.AP, (O
caderno de encargos foi aprovado pela Portaria n.º 60/2013). ABREU ADVOGADOS .In: GOMES, Carla
Amado (coord.). O Direito da Energia em Portugal: cinco questões sobre “o estado da arte”. Edição ICJP.
Centro de Investigação de Direito Público. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: 2016, p.
25.
124
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
as cidades. (REVISTA SMART CITIES, 2017).
Outro entrave a Portugal, é, sem dúvidas, as tarifas empregadas pelas fontes de
energias renováveis, como a eólica. De fato, trata-se de energia limpa, porém os seus
custos para o oferecimento e implementação ainda são altos por se tratar de tecnologia
de ponta, por isso as tarifas advindas destas energias são mais dispendiosas.
É o que relata “o despacho 7087/2017, publicado em 14 de agosto, que determina
que nos procedimentos para autorização do sobreequipamento de centros
electroprodutores [eólicos], isto é, para aumento de produção, a Direcção-Geral de
Energia e Geologia (DGEG) tem que consultar a Entidade Reguladora dos Serviços
Energéticos (ERSE) sobre os impactos para a tarifa da autorização relativa ao
sobreequipamento em causa, sendo que "só deve ser autorizada desde que não tenha
efeitos negativos para o Sistema Eléctrico Nacional" (JORNAL ECONÔMICO, 2017).
No Brasil, os programas de eficiência energética também são parte antes mesmo
do surgimento da ANEEL (DOMINGUES, 2016). A saber:
1. O primeiro programa embrionário foi o Programa Brasileiro de
Etiquetagem (PBE), em 1984;
2. O Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (PROCEL),
em 1985;
3. E o Programa Nacional de Racionalização do Uso de Derivados do
Petróleo e Gás Natural (CONPET), em 1991.
Após a surgimento da ANEEL em 1997, o governo brasileiro sancionou a Lei
Eficiência Energética, Lei nº 10.295/2001, a qual dispõe em seu preâmbulo sobre
“Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia e dá outras providências”.
Composta de apenas seis artigos, esta lei trata essencialmente da necessidade de
mensuração do gasto energético de aparelhos consumidores de energia e um programa
de metas de progressiva evolução.
É de responsabilidade da ANEEL regulamentar os investimentos em Pesquisa e
Desenvolvimento (P&D) e Eficiência Energética (EE), as duas linhas de frente deste
programa são: a busca por inovações tecnológicas e o combate ao desperdício de energia.
No ano 2000 foi sancionada a Lei nº. 9.991/2000 com o fulcro de disponibilizar
a realização de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e em eficiência energética
por parte das empresas concessionárias, permissionárias e autorizadas do setor de
energia elétrica10.
Contudo este relatório irá se ater ao Programa de Eficiência Energética (PEE)
criado pela ANEEL. O início deste programa deu-se no ano de 1998 e consiste
basicamente em obrigar as permissionárias e concessionárias de serviços públicos na
10 Em 2004, surgiram as Leis nº 10.847 e 10.848. A primeira autoriza a criação da Empresa de
Pesquisa Energética – EPE e dá outras providências. A segunda, dispõe sobre a comercialização de energia
elétrica, e dá outras providências.
125
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
área de energia, para aplicar em programas de eficiência energética.
Atualmente a concessionária que acumular na Conta de Eficiência Energética
montante superior à obrigação legal dos últimos dois anos estará sujeita às penalidades
previstas na Resolução Normativa no 063, de 12 de maio de 2004. A ANEEL também
regulamentou a Resolução Normativa Nº 556, de 18 de junho De 2013 a qual aprova os
Procedimentos do Programa de Eficiência Energética – PROPEE.
Sobre os resultados obtidos pelo programa entre 1998 a 2015, um total de
Investimentos: 5,7 bilhões de reais; cerca de 4.000 projetos aprovados; uma economia
de Energia Acumulada no período em torno de 46 TWh; e a retirada de Demanda na
Ponta 2,3 GW. (RELATÓRIOS ANEEL, 2017).
É inquestionável que os resultados são benéficos, visto que no Brasil atualmente
conseguiu aumentar a abrangência da rede elétrica, em contrapartida assegurando que
o consumidor de baixa renda consiga pagar uma tarifa razoável e que possua
eletrodomésticos que tenham melhor custo benefício energético.
Por outro lado, vê-se o quanto ainda é incipiente a política pública brasileira para
o desenvolvimento da sustentabilidade através da eficiência energética. Os resultados
ainda que positivos, devem-se muito pela abundância de recursos naturais que o país
possui para a geração de energia limpa, porém não há nada ainda pensado para a
mobilidade urbana, como a menor utilização de automóveis particulares em detrimento
dos transportes públicos.
A Empresa de Pesquisa Energética – EPE, divulgou através do Plano Nacional de
Energia 2030 que as projeções são favoráveis a conservação potencial energético do país,
contudo não disponibiliza quais são as estratégicas políticas e tecnológicas para o alcance
das metas.
5) Considerações finais
Diante do que foi exposto neste trabalho, sem dúvidas, o princípio do
desenvolvimento sustentável é difundido tanto no Brasil, quanto em Portugal. Percebese que, de fato, não há mais espaço para teorias especulativas que questionam a real
necessidade de preservar o meio ambiente para as futuras gerações.
Deve-se muito ao papel desempenhado pelo Direito e seus operadores, que vem
divulgando esta realidade para além das cortes e das salas de aula. Hoje, há uma
percepção que a temática ambiental necessita do engajamento social para que resulte na
transformação que se espera para o mundo. Acredita-se que uma das formas mais
eficazes para que haja essa mudança de paradigma é a conscientização social aliada a
uma hard law que puna com rigor pessoas físicas e jurídicas que ponham seus interesses
à frente da proteção ambiental.
Quando fora exposto o problema sustentabilidade frente ao setor elétrico, ficou
126
A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento...
translúcido que tanto no Brasil, quanto em Portugal, existem leis completamente
alinhadas com o princípio do desenvolvimento sustentável. Sendo que estes são
defendidos de modo expresso em suas Cartas Magnas.
Porém, quando se adentra na questão específica da regulação para o setor
elétrico, vê-se que Portugal tem um olhar mais cuidadoso com as causas ambientais, que
o Brasil. As leis portuguesas, para além de estarem mais bem redigidas no que tange ao
novo paradigma da sustentabilidade, também estão mais alinhadas com o que se espera
sobre a eficiência energética no âmbito das agências reguladoras.
O Brasil, um gigante pela própria natureza, como bem afirma o hino pátrio, não
possui legisladores à altura do seu potencial. Embora, tenha leis suficientes que tratem
do problema da regulação para uma melhoria dos recursos energéticos em questão.
Neste caso, compara-se bem que em Portugal no Conselho da ERSE há representantes
especialistas em meio ambiente, para alinhar os interesses da entidade ao que prega os
novos interesses ambientais para área da energia, notadamente, o fomento de uma
política pública que assegure a eficiência energética.
Como mencionou Rui Pena, Portugal “acordou tarde para a eficiência energética”,
tal frase tem encaixe perfeito quando utilizada a sua ex-colônia, o Brasil. Ambas as
nações se encontram no início de uma jornada longa quando se objetiva a adequação dos
parâmetros da sustentabilidade com relação ao setor elétrico. (GOMES, 2016a)
Portugal apresenta resultados tímidos perto das demais maiores nações da União
Europeia, contudo os esforços das últimas décadas precisam ser reconhecidos. Com
políticas públicas de incentivo à variação da matriz energética em energias renováveis,
Portugal superou as expectativas no investimento de parques eólicos. Contudo, o
potencial para energia solar ainda não é bem aproveitado.
O Brasil, em índices de energia limpa continua com saldo positivo, mas esconde
que é praticamente dependente das hidrelétricas, mesmo tendo potencial para a melhor
exploração de outros tipos de energias renováveis como a eólica e a solar. O país continua
preso a políticas de expansão de malha elétrica e incentivo do uso da certificação de
eficiência energética, o que se julga muito incipiente perante os novos desafios do setor
elétrico.
Notadamente o PNAEE e PEE são os dois programas criados para a
implementação da eficiência energética em Portugal e no Brasil, com grande alcance.
Contudo, em linhas comparativas Portugal tem larga vantagem sobre o Brasil, pois
percebe-se que as áreas de atuação do PNAEE e os programas derivados deste, são
inigualavelmente mais abrangentes que o brasileiro.
Por fim, compreende-se que o caminho para a sustentabilidade no quesito
eficiência energética, é longo para ambos os países, mas há um otimismo maior no caso
português.
127
Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos
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129
DIREITOS E DEVERES DOS CONDÓMINOS DE UM
PRÉDIO URBANO EM REGIME DE PROPRIEDADE
HORIZONTAL
Ana Rita Ferreira Araújo1
1) Introdução
O presente contributo procura esclarecer em que consiste o regime jurídico da
propriedade horizontal, os seus requisitos e a sua incidência legal nos condomínios.
No que respeita aos condomínios, verificamos que existem dois órgãos
administrativos fundamentais, sendo um de caráter deliberativo (Assembleia de
Condóminos) e o outro de caráter executivo (Administrador do Condomínio).
Na prática, os condóminos associam com grande frequência os seus direitos
pessoais na condição de proprietário de uma determinada fração autónoma, com os
direitos adquiridos através do regime de propriedade horizontal, ou seja, por vezes as
fronteiras apresentam-se tão invisíveis, o que faz com que os condóminos transbordem
a sua legitimidade.
Destarte, a finalidade deste trabalho consiste em elucidar o leitor acerca das
soluções mais equilibradas para diversos problemas no âmbito dos condomínios e da
propriedade horizontal, especialmente sobre diversos aspetos da resolução de conflitos
entre os condóminos, dando-se assim a conhecer os direitos e deveres dos condóminos.
A metodologia utilizada passou essencialmente pelo recurso à pesquisa
epistemológica, que consiste numa pesquisa de cunho teórico, relacionada com a
propriedade horizontal, sendo definidos os principais conceitos relacionados com o tema
em questão. Por outro lado, recorreu-se à monografia dogmática, dado que se desenvolve
o tema a partir de várias pesquisas, relacionando legislação, doutrina e jurisprudência.
2) Evolução histórica
A propriedade horizontal alcançou bastante importância, em meados do Séc. XX,
após a segunda guerra mundial.
Este instituto tornou-se relevante, essencialmente dada a escassez de solo
disponíveis, e em face do crescimento das cidades provocado pelo aumento de população.
Assim, procedeu-se à construção de grandes edifícios destinados a alojar várias famílias.
A construção em altura acentuou-se em cidades onde existiam limites geográficos à
1 Licenciada em Solicitadoria pelo Instituto Politécnico da Maia. Mestranda em Solicitadoria (Ramo
Execução) no Instituto Politécnico da Maia.
Ana Rita Ferreira Araújo
expansão das cidades.2
Como consequência da construção em altura, produziu-se a necessidade de
atribuir a propriedade separada de uma fração a cada proprietário, pelo que este facto
constitui a base do surgimento do instituto da propriedade horizontal.
Por intermédio do Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 outubro, introduziu-se uma
nova redação dos art.ºs 1414.º a 1438.º-A do Código Civil, dando-se reconhecimento
cada vez mais vivo ao regime jurídico da propriedade horizontal, com grande
implementação nas sociedades modernas, o que se encontra ainda expresso no DecretoLei n.º 268/94 e no Decreto-Lei n.º 269/94, ambos de 25 de outubro.
3) Conceito de propriedade horizontal
a) Generalidades
A propriedade horizontal consiste no direito que se exerce sobre uma ou mais
frações de um prédio urbano, que tenham sido adquiridas por vários proprietários, de
forma separada, verificando-se ainda o facto de que os condóminos têm direitos e
deveres em comum.
A propriedade horizontal trata-se de um instituto jurídico vinculado à divisão e
organização dos imóveis resultantes da segregação de uma construção comum. Essa
propriedade regulamenta a forma como se divide o imóvel e a sua relação com os
restantes bens privados e comuns do prédio urbano.
Cada proprietário dispõe de uma ou mais frações autónomas, mas ninguém
possui o edifício na sua totalidade. O direito de propriedade horizontal pressupõe que o
proprietário de uma fração detenha uma percentagem (ou permilagem) sobre as partes
comuns.
b) Noção legal
A propriedade horizontal encontra-se prevista no Código Civil português, mais
concretamente nos seus art.ºs 1414.º a 1438.º-A. No referido Código, a combinação dos
art.ºs 1414.º, 1415.º e 1420.º consagra este instituto como o conjunto de poderes que
recaem sobre uma fração autónoma de um prédio urbano e sobre as partes comuns do
mesmo edifício.3
2 Temos o exemplo das cidades onde existia rio ou mar, nomeadamente, Nova Iorque ou Rio de
Janeiro, o que levou à construção de enormes arranha-céus. Cfr. – Menezes Leitão, L.M. (2013). Direitos
Reais. 4ª. Edição. Coimbra. Almedina, p. 280.
3 O titular de uma fração autónoma com acesso às partes comuns de um edifício denomina-se por
condómino. Cfr.- Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris,
p. 341.
132
Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano...
c) Requisitos do objeto da propriedade horizontal
Os requisitos do objeto da propriedade horizontal traduzem-se na necessidade
de, no edifício, as frações autónomas distintas e isoladas umas das outras conterem uma
saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (art.º 2415.º do
Código Civil).4 Ora, o objeto da propriedade horizontal são as próprias frações
autónomas.
Deste modo, estamos perante uma propriedade horizontal quando exista uma
autonomia estrutural das várias frações e, simultaneamente, uma utilização de coisa
comum.
d) O título constitutivo
O título constitutivo consiste num documento normativo, cujas indicações
apresentam caráter legal e eficácia para todos os condóminos. O título constitutivo tem
como principal função especificar e clarificar, com detalhe, as partes correspondentes de
cada fração, atribuindo-lhes o respetivo valor expresso em percentagem ou permilagem.
Este documento dá origem à propriedade horizontal e subsequentemente confere
fé pública à sua existência.
Nos termos do n.º 1 do art.º 1418.º do Código Civil, no título constitutivo serão
especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas
fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração,
expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.
Além dessas especificações, o título constitutivo pode ainda conter,
designadamente (cfr. n.º 2 do art.º 1418.º): (i) Menção do fim a que se destina cada
fração ou parte comum; (ii) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e
conservação, quer das partes comuns, quer das frações autónomas; (iii) Previsão do
compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de
condomínio.
Estas menções devem constar do conteúdo da inscrição registral do ato
constitutivo da propriedade horizontal.5
e) Consequências da falta de requisitos do objeto e de vícios do
título
Em conformidade com o art.º 1415.º do Código Civil, só podem ser objeto de
4 Para que os edifícios possam ser constituídos em propriedade horizontal, têm de ser preenchidos
os requisitos estabelecidos nos arts.º 1414.º e 1415.º do Código Civil. Cfr. – Pinto Duarte, R. (2007). Curso
de Direitos Reais. 2ª Edição. Lisboa. Principia, p. 109.
133
Ana Rita Ferreira Araújo
propriedade horizontal as frações autónomas que se revistam de certas características. A
relevância dos requisitos do objeto na propriedade horizontal é tal, que mesmo os vícios
relativos a menções facultativas do título podem interferir com a sua validade.
Assim, é necessário apurar quais as consequências da constituição da
propriedade horizontal. Segundo Luís A. Carvalho Fernandes (1997), os vícios que
podem surgir no título são a falta de requisitos legais do objeto, falta de menções
obrigatórias, discrepância entre o fim mencionado no título e o fim aprovado pelas
entidades competentes.5
Consequentemente, a falta de requisitos implica a sujeição do prédio urbano ao
regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da parte que lhe tiver sido
fixada, nos termos do art.º 1418.º do Código Civil, ou da quota correspondente ao valor
relativo da sua fração.
No caso de se verificar algum dos vícios no título, vícios esses que foram
mencionados anteriormente, o titulo constitutivo é declarado nulo.
Em alternativa6, poderá criar-se uma situação de posse adquirindo-se o prédio
urbano por usucapião7.
f) Modalidades de propriedade horizontal
Mediante a existência de partes do edifício a que no título constitutivo possa ser
atribuída a qualidade de fração autónoma ou de parte comum, nos termos do art.º 1421.º,
n.º 2 do Código Civil, pode modificar-se essa qualificação ou podem verificar-se
alterações quanto ao objeto por efeito da junção de várias frações ou da divisão de uma
fração.8
Via de regra, as modificações surgem nas alterações relativas a aspetos
arquitetónicos ou estéticos do prédio.
A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, por
usucapião ou por decisão judicial.
5 Estes vícios encontram-se enunciados nos art.ºs 1416.º e 1418.º, n.º 3, ambos do Código Civil.
6 A cominação da nulidade para o caso de falta de fixação do valor relativo de cada fração é
excessiva, porquanto o vício pode ser sanado, nos termos do art.º 59.º, n.º 3 do Código do Notariado.
Sustentamos, por isso, nesta medida uma interpretação corretiva da lei, no sentido de a nulidade só
prevalecer se o recurso àquele meio não vier a acontecer. - Cfr. Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de
Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris, p. 350.
7 Caso nenhum dos interessados demonstre interesse em requerer a conversão e a situação de uso
exclusivo das pretensas frações se mantenha. - Cfr. Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais.
2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris, p. 350.
8 Esta matéria obedece a critérios de regulamentação especifica, constantes no art.º 1422.º-A do
Código Civil. – Cfr. Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid
Juris, p. 351.
134
Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano...
g) Negócio jurídico
Na maioria dos casos, a aludida modificação é efetuada através de negócio
jurídico, sendo celebrada por escritura pública, sujeita a registo.
O referido negócio jurídico trata-se de um ato unilateral, que pode ser praticado
pelo administrador em nome do condomínio, se todos os condóminos estiverem de
acordo, e tal for expresso em ata assinada, conforme o disposto no art.º 1419.º, n.ºs 1 e 2
do Código Civil.
No entanto, podem ocorrer dois tipos de exceções, a saber: (i) pode dar-se a
aprovação por parte de dois terços dos condóminos (cfr. art.º 1407.º do Código Civil); b)
faz-se depender a alteração da falta de oposição, na divisão de frações (cfr. art.º 1422.ºA, n.º 3 do Código Civil).
h) Usucapião
A modificação da propriedade horizontal pode ainda ser efetuada através da
posse, aplicando-se aqui o instituto da usucapião, quando ocorra um determinado lapso
de tempo legalmente definido.
A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de
outros direitos reais de gozo (art. º s 1287.º e 1316.º, ambos do Código Civil), que
depende apenas da verificação de dois elementos: a posse; e o decurso de certo lapso de
tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de
acordo com os caracteres da mesma posse.
Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art.º
1288.º), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse
– art.º 1317.º, alínea c).
i) Decisão Judicial
Quando se trate de divisão de parte comum do prédio urbano, pode existir decisão
judicial, a requerimento de qualquer comproprietário, desde que, no referido prédio, se
verifiquem os requisitos do objeto elencados no art.º 1415.º do Código Civil.9
9 Cfr. art.º 1417.º, n.º 2 do Código Civil.
135
Ana Rita Ferreira Araújo
4) Condomínios
a) Regulamento interno
Via de regra, na constituição do regime jurídico da propriedade horizontal existe
um regulamento interno do condomínio, a regulação da fruição das zonas comuns, bem
como algumas situações da propriedade autónoma.
Assim, nos termos do art.º 1429.º-A do Código Civil, aditado a este Código pelo
Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de outubro: havendo mais de quatro condóminos e caso
não faça parte do título constitutivo (cfr. art.º 1418.º) deve ser elaborado um
regulamento interno do condomínio, disciplinando o uso, a fruição e a conservação das
partes comuns. Ademais, e sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 1418.º,
a feitura do regulamento compete à Assembleia de Condóminos ou ao Administrador, se
aquele não o houver elaborado.
b) Órgãos do condomínio
i)
A administração das partes comuns
A administração comum refere-se apenas às zonas comuns ou coletivas definidas
no título constitutivo. Não existe, por isso, uma corresponsabilidade na administração
das frações individuais ou autónomas.
Neste contexto, o n.º 1 do art.º 1421.º do Código Civil refere o que são as partes
comuns do edifício, a saber: a) o solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredesmestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; b) o telhado ou
terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fração; c) as entradas,
vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comuns a dois ou mais condóminos;
d) as instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás,
comunicações e semelhantes.
De acordo com a mesma disposição, presumem-se ainda comuns: a) os pátios e
jardins anexos ao edifício; b) os ascensores; c) as dependências destinadas ao uso e
habitação do porteiro; d) as garagens e outros lugares de estacionamento; e) em geral, as
coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.
Sem prescindir, verifica-se que o título constitutivo pode afetar ao uso exclusivo
de um dos condóminos certas zonas das partes comuns.
As partes comuns do condomínio podem distinguir-se de duas formas: por um
lado, temos as coisas que, ou revestem a natureza de parte componente, ou integrante da
unidade predial, ou seja, fazendo parte da estrutura do edifício, ou são indispensáveis ao
gozo da propriedade singular ou individual para cada condómino; por outro lado, temos
136
Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano...
as coisas que, não obstante serem dispensáveis à utilização normal de cada uma das
frações autónomas, favorecem-nas, no sentido de melhorar o gozo da fração individual
(exemplo: ascensores).
Assim sendo, a primeira definição apresentada corresponde às partes comuns
imperativamente de todos. Quanto à segunda definição, as coisas comuns são
presuntivamente comuns, ou seja, nos termos do n.º 1 do art.º 1421.º do Código Civil, as
partes comuns pertencem à estrutura da construção do edifício, ainda que o uso esteja
afetado a um só condómino (exemplo: telhado de cobertura intermédio), como elemento
fundamental de toda a construção que se estende a todos os condóminos.
Porém, e de acordo com o n.º 2 do art.º supracitado, a definição de partes comuns
é mais ou menos ampla, com a justificação da sua natureza de constituírem, de forma
mais isolada ou conjunta, outros instrumentos do uso comum do condomínio (exemplo:
lugar de parqueamento na cave).
Por sua vez, o n.º 3 do artigo 1421.º prescreve que o título constitutivo pode afetar
ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns, sendo que,
nesse caso, todas as despesas provenientes pela manutenção e reparações serão
repartidas por todos os condóminos.
ii)
Assembleia de Condóminos – órgão deliberativo
A Assembleia de Condóminos é composta por todos os proprietários de cada
fração autónoma.
Mais concretamente, e de acordo com o art.º 1431.º do Código Civil, a aludida
Assembleia apresenta como principais funções, essencialmente, deliberar questões de
fundo sobre a compropriedade; aprovar as contas e os orçamentos apresentados pelo
administrador; fiscalizar, em geral, a atuação do administrador e abordar assuntos de
interesse geral respetivamente ao condomínio.
A Assembleia deverá reunir obrigatoriamente durante a primeira quinzena de
janeiro para apreciação das contas do último ano e aprovação do orçamento.
Cabe ao Administrador convocar todos os condóminos com, pelo menos, 10 dias
de antecedência, através de carta registada com aviso de receção ou mediante aviso
convocatório feito com a mesma antecedência, desde que haja recibo de receção assinado
pelos condóminos.
A convocatória deve indicar o dia, o local e a ordem de trabalhos da reunião, bem
como os assuntos para cuja aprovação seja necessária a unanimidade dos votos.
Além da aludida reunião, o administrador ou os condóminos que representem
pelo menos 25% do valor do prédio, podem convocar reuniões extraordinárias.
137
Ana Rita Ferreira Araújo
iii)
Quórum Constitutivo
Para que a Assembleia esteja legalmente constituída, é necessária a presença de
condóminos que perfaçam a maioria absoluta dos votos.
Se não estiver presente esta maioria, é necessário efetuar uma segunda
convocatória, embora dessa vez só seja necessária a representação de um quarto dos
condóminos.
iv)
Quórum deliberativo
Via de regra, é suficiente o acordo da maioria absoluta dos votos para que a
assembleia possa deliberar.
No entanto, existem assuntos aos quais não se aplica esta regra como, por
exemplo, a aprovação de obras que impliquem inovações no edifício ou reconstrução de
um imóvel destruído em mais de dois terços do seu todo, as quais requerem,
respetivamente, uma maioria de dois terços e a unanimidade.
Os votos que cada condómino possui dependem diretamente do valor relativo da
sua fração expresso no título constitutivo da propriedade horizontal. Cada condómino
possui tantos votos quanto o número de unidades inteiras existentes na percentagem ou
permilagem total das frações que possuir.
Por exemplo, se um condómino for proprietário de uma fração cujo valor
corresponda a 8,6% do valor total do prédio, ele terá 8 votos ou 86 votos, conforme se
tenha adotado para o condomínio o sistema de percentagem ou da permilagem. Se for
proprietário de 2 frações, correspondendo cada uma delas a 18,6% do valor total do
prédio, possui 36 votos (no sistema de percentagem).
c) Administrador do Condomínio – Órgão Executivo
O Administrador do Condomínio é nomeado pela Assembleia de Condóminos,
podendo ser um dos proprietários de fração autónoma ou até mesmo um terceiro,
possuindo uma função essencialmente executiva. O respetivo cargo poderá ser,
eventualmente, remunerado.
Se nenhum dos condóminos manifestar a vontade de exercer o cargo, a lei dispõe
que tal cargo caberá ao condómino cuja fração ou frações representem a maior
percentagem do capital investido.
Contudo, se existirem vários condóminos que pretendam exercer o cargo em
causa, a escolha recairá sobre aquele a que corresponda a primeira letra na ordem
alfabética utilizada na descrição das frações constantes no registo predial.
138
Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano...
i)
Funções do Administrador
Em conformidade com o disposto no art.º 1435.º do Código Civil, o
Administrador apresenta um conjunto de funções, a saber: convocar a assembleia de
condóminos; elaborar os orçamentos anuais de receitas e despesas; cobrar as receitas e
efetuar as despesas comuns; exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas
aprovadas pela assembleia; prestar contas à Assembleia; realizar atos conservatórios dos
direitos relativos aos bens comuns; regular o uso das coisas comuns e a prestação dos
serviços de interesse comum; efetuar e manter o seguro do edifício contra o risco de
incêndio; executar as deliberações da assembleia; representar o conjunto dos
condóminos perante as autoridades administrativas.
ii)
Cessação ou exoneração do cargo do Administrador
Salvo disposição em sentido contrário, o mandato anual do administrador (cfr.
art. 1435.º, n.º 4 do Código Civil), é renovável.
O administrador não pode unilateralmente renunciar ao exercício do mandato,
tal como não pode obstar à sua eleição. O administrador eleito, terá, assim, que cumprir
as suas funções na íntegra, conforme o art.º 1436.º Código Civil.
Se o administrador for uma empresa (ou seja, um terceiro), parece que também
não pode unilateralmente revogar o contrato de mandato, sem o acordo do mandante,
salvo ocorrendo justa causa (art.º 1170.º do Código Civil).
Contudo, parece que deve ser sempre da assembleia dos condóminos a última
palavra sobre a exoneração do administrador, já que, não existindo justa causa na
revogação do contrato de mandato, poderá haver lugar a indemnização, pelo prejuízo que
o mandante possa sofrer (cfr. art.º 1172.º do Código Civil).
Porém, o administrador (ou a assembleia) podem renunciar ao cargo antes do
termo do mandato (um ano, ou qualquer outro prazo), desde que, para tal, comunique a
sua intenção à assembleia dos condóminos. Só esta última (ou o juiz) podem exonerar o
administrador (cfr. art.º 1435.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Civil).
d) A aprovação das deliberações
Quanto à aprovação das deliberações, a maioria relativa ou simples serve para
apurar a vontade do órgão, fazendo coincidi-la com a expressa pelos votantes que se
pronunciaram no sentido que recolheu mais votos.
Por seu turno, a maioria absoluta identifica a vontade do órgão com aquela que
foi expressa por mais de metade dos votantes.
A maioria qualificada faz corresponder a vontade do órgão àquele que foi
expressa por uma certa fração dos votantes superiores à maioria absoluta (por exemplo,
139
Ana Rita Ferreira Araújo
dois terços, três quartos, três quintos, etc.).
Finalmente, a unanimidade exige, para formação da vontade do órgão, a
totalidade dos votos favoráveis dos membros votantes.10
5) Direitos e deveres dos condóminos
Cada condómino é considerado proprietário exclusivo da sua fração e
comproprietário das partes comuns do prédio urbano, possuindo um conjunto dos
direitos e deveres considerado como imprescindível.
a) Direitos
Nos termos do art.º 1420.º do Código Civil, os condóminos podem fazer uso da
sua fração e das partes comuns do prédio; participar na gestão do prédio, ao assistir e
votar nas reuniões de condomínio; pedir informações sobre assuntos do prédio ao
administrador (solicitando a apresentação do livro de atas e outros documentos); quanto
a animais domésticos, sempre que sejam respeitadas as condições de salubridade e de
tranquilidade da vizinhança, podem ser alojados até três cães ou quatro gatos por
apartamento.
b) Deveres
A propriedade horizontal impõe ainda várias obrigações aos condóminos.
Deste modo, os condóminos, nas relações entre si, encontram-se sujeitos, de um
modo geral, quanto às frações que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes
comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas
imóveis.
Com base no art.º 1422.º do Código Civil, os condóminos têm o dever de respeitar
o regulamento do condomínio e cumprir as deliberações da assembleia; participar nas
despesas com as partes comuns do prédio; não utilizar a sua fração para usos opostos aos
bons costumes e dar-lhe uso de acordo com o fim a que se destina, autorizando ao
administrador do condomínio o acesso à sua fração, se este o solicitar; não danificar o
arranjo estético do edifício e a sua linha arquitetónica, ou a sua segurança, quer com
obras novas, quer por falta de reparação; celebrar e atualizar o seguro contra os riscos de
incêndio da sua fração e das partes comuns do edifício; cumprir devidamente o cargo de
administrador de condomínio, ou administrador provisório, quando lhe competir por lei;
comunicar, por escrito, ao administrador, o seu domicílio, ou do seu representante, caso
10 Cfr. Caupers, J. (2013) – Introdução ao Direito Administrativo. 11ª Edição. Lisboa. Âncora
Editora, pp. 124 -125.
140
Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano...
não esteja a residir no prédio; não praticar atos que tenham sido proibidos pelo titulo
constitutivo ou posteriormente por deliberação da assembleia de condóminos aprovada
sem oposição; comunicar aos moradores do edifício as atividades ruidosas de
remodelação, recuperação ou conservação feitas na sua fração.
Os condóminos encontram-se ainda sujeitos aos encargos de uso de conservação
e fruição, previstos no art.º 1424.º do Código Civil. Assim, e de acordo com os n.ºs 1 a 3
do referido artigo, o que conta é a destinação objetiva das coisas comuns, isto é, o uso
que cada condómino faz ou pode fazer dessas coisas, medido em princípio pelo valor
relativo da sua fração (ou seja, pela proporcionalidade) e não pelo uso que efetivamente
faça delas.
Ora, o art.º 1424.º, n.º 1 do Código Civil, estabelece, com caráter supletivo, que
as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao
pagamento de serviços de interesse comum, são pagas pelos condóminos em proporção
do valor das suas frações (critério da proporcionalidade)11.
6) Conclusões
Aqui chegados, podemos concluir que o regime da propriedade horizontal surge
no nosso ordenamento jurídico sobretudo para tentar encontrar uma resposta jurídica a
uma renovada forma de organização física, assente na construção dos prédios, com a
partilha do mesmo espaço e a respetiva ocupação por diversos proprietários.
Destarte, o regime da propriedade horizontal apresenta uma relação de interesse
com o bem pessoal e pode tornar-se fortuito no proveito do gozo comum em que assume
a sua plenitude. Por outras palavras, os bens comuns não adquirem caráter coletivo ou
comum, por serem partes integrante e necessário do edifício ou pelo facto dos
condóminos poderem utilizar esses bens ao mesmo tempo que os direitos da utilização
ou satisfação da própria habitação.
O administrador e a assembleia são órgãos do condomínio, de caráter obrigatório
e necessário. Todos os condóminos em reunião formam uma vontade que será delegada
no administrador, que executará essa vontade.
Os órgãos possuem um conjunto de competências que se concentram numa
pessoa física. A vontade manifestada pelos titulares desses órgãos, dentro dos limites da
sua competência, é vinculativa para todos os membros do condomínio. Assim, o
administrador é o órgão do condomínio que possui a tutela dos interesses comuns e não
individuais.
Portanto, entende-se que o conjunto de condóminos forma o substrato pessoal na
11 A quota-parte consiste na medida da participação de cada um dos proprietários, ou seja, no valor
relativo de cada fração autónoma, expresso em permilagem ou percentagem do valor total do prédio. – Cfr.
Menezes Leitão, L. (2013) – Direitos Reais. 4ª Edição. Coimbra. Almedina, p. 294.
141
Ana Rita Ferreira Araújo
gestão da fruição e serviços das zonas comuns do edifício.
Sem o regime da propriedade horizontal, a convivência dos proprietários do
edifício seria o colapso e a permanente fonte de conflitos entre a vizinhança.
Ora, estamos a crer que é fundamental determinar qual ou quais os princípios
aptos para reger os conflitos de vizinhança.
REFERÊNCIAS
Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid
Juris.
Caupers, J. (2013) – Introdução ao Direito Administrativo. 11ª Edição. Lisboa. Âncora
Editora.
Menezes Leitão, L.M. (2013). Direitos Reais. 4ª. Edição. Coimbra. Almedina.
Pinto Duarte, R. (2007). Curso de Direitos Reais. 2ª Edição. Lisboa. Principia.
142
BREVES NOTAS SOBRE A INSOLVÊNCIA E OS
SEUS EFEITOS NAS AÇÕES DECLARATIVAS,
EXECUTIVAS E CONVENÇÕES DE ARBITRAGEM
Ricardo M. Oliveira1
1) Introdução
O processo de insolvência, enquanto universal e concursal, interfere
inequivocamente com outras ações em que uma das partes (seja ativa ou passiva) é o
insolvente.
O direito da insolvência tutela, portanto, a situação do devedor insolvente e a
satisfação dos direitos dos seus credores2. É nesta exata medida que é necessário que nos
debrucemos, no sentido de sabermos como poderá o processo de insolvência satisfazer
as necessidades dos credores, devido, precisamente à sua essência concursal e universal.
O processo é concursal porque a ele concorrem todos os credores do insolvente
(art.º 1.º n.º 1 do CIRE3), independentemente do montante e da natureza do seu crédito,
respeitando sempre as suas especificidades – tratamento pela natureza do crédito – por
seu turno, e bem assim, a proporcionalidade das perdas no caso de insuficiência da massa
insolvente (Cfr. Art.º 172.º e ss do CIRE). Por outro lado, não se trata apenas de uma
possibilidade essa reclamação, como veremos mais adiante. Com a insolvência qualquer
credor fica absolutamente impedido de ver recuperado o seu crédito, que não pela via do
processo insolvencial.
Mais, dispõe o art.º 90.º do CIRE que “os credores da insolvência apenas
poderão exercer os seus direitos em conformidade com os processos do presente
Código, durante a pendência do processo de insolvência”. É a consumação da essência
concursal e universal do processo de insolvência, previsto no art.º 1.º do CIRE, que
subjaz à natureza e função do processo de insolvência, na medida em que será este o meio
que a Lei lhes faculta de, na medida do possível, obterem a satisfação dos seus interesses,
no sentido de nele exercerem os direitos que lhes são consagrados, nomeadamente, os
de reclamação de créditos, ainda que eles se encontrem reconhecidos noutras instâncias
– art.º 98.º n.º 3 e art.º 87.º n.º 2 , ambos do CIRE. Quando falamos na universalidade
do processo de insolvência, estamos a dizer que, de uma maneira geral, todos os bens,
penhoráveis, do devedor insolvente são apreendidos e liquidados, podendo, ainda, ser
apreendidos e liquidados bens relativamente penhoráveis, mediante a indicação nesse
1 Licenciado em Solicitadoria, pelo ISMAI – Instituto Superior da Maia. Especialista em Processo
Executivo. Mestrando em Solicitadoria pelo IPMAIA – Instituto Politécnico da Maia. Solicitador e Agente de
Execução
2 Leitão Cordeiro, M., (2005) Introdução ao Direito da Insolvência, in “O Direito”, 137, III, p. 467.
3 Este artigo é utilizado como definição e delimitação do processo de insolvência e da sua
importância no nosso sistema judicial.
Ricardo M. Oliveira
sentido, por parte do insolvente (Cfr. art.º 46.º do CIRE)4. Entretanto, a insolvência tem
no seu epicentro a satisfação dos interesses dos credores.
Contudo, como perguntamo-nos como poderia o processo de insolvência
satisfazer cabalmente esses interesses, isto é, como poderiam os credores acreditar num
processo por modo a crer que no seu conjunto tentariam recuperar os seus créditos.
Equacionamos se seriam todos, cada um a seu tempo, por seu meio, pela sua
disponibilidade. Ainda se seria a qualquer momento processual, com ou sem garantias.
É precisamente com base nos efeitos externos da declaração de insolvência que
podemos atribuir confiança ao processo.
A insolvência comporta efeitos em duas vertentes: a vertente externa e a vertente
interna. Os efeitos externos são aqueles que versam sobre a relação jurídica em torno do
insolvente. Os efeitos processuais externos da declaração de insolvência compreendem
um conjunto de consequências sobre as ações a propor ou pendentes em que o insolvente
seja parte, independentemente de ser sujeito ativo ou passivo do litígio já composto ou a
compor. Destarte, o que se pretende é proceder à sistematização das consequências
jurídico-processuais da declaração de insolvência – isto é, os efeitos externos sobre as
ações, que decorrem do novo estatuto conferido ao devedor, o de insolvente.
2) Efeitos sobre as ações declarativas
As ações declarativas pendentes em que se apreciem questões relativas a bens
compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou contra terceiro,
mas que possa influenciar o valor da massa insolvente, poderão ser apensadas ao
processo de insolvência, a pedido do Administrador de Insolvência, com conveniência
para os fins do processo – art.º 85.º n.º 1 do CIRE. Esta é uma novidade trazida pelo
novo código da insolvência, e que decorre da universalidade e concursalidade do
processo de insolvência, ou seja, estamos perante um processo concentrador, na medida
em que se lhe submetem as questões discutidas em outras instâncias,
independentemente da matéria. Acrescenta-se ainda que esta previsão legal não é
automática (contrariamente ao previsto o art.º 88.º do CIRE) impondo apenas a
apensação das ações declarativas ao processo de insolvência, desde que
concomitantemente se cumpram os requisitos enunciados pelo art.º 85.º do CIRE – isto
é: ações que se debrucem sobre questões relativas aos bens constantes da massa
insolvente; Que essas ações possam interferir com o valor da massa; o Administrador da
insolência requeira a apensação; Esse requerimento de apensação seja devidamente
fundamentado, expondo os motivos de preponderância para os fins da insolvência. Para
que, no processo de insolvência, o credor possa beneficiar da repartição do produto da
liquidação do património do devedor insolvente, terá de reclamar créditos, mesmo que
haja uma sentença que reconheça o crédito, transitada em julgado – art.º 128.º n.º 3 e
Nesse sentido vem também o art.º 737.º n.º 2 al a) do Código de Processo Civil.
144
Breves notas sobre a insolvência e os seus efeitos nas...
n.º 5 do CIRE. Em contrapartida, não é necessária uma sentença com trânsito em
julgado, para que se possam reclamar créditos no processo de insolvência. Em boa
verdade, o art.º 129.º e ss do CIRE prevê um processo para reconhecimento e
impugnação dos créditos reconhecidos. Contudo, e tendo em conta a existência de
créditos, não comuns, em particular com origem na responsabilidade civil5, que podem
ser incompatíveis com a essência urgente e célere do processo de insolvência, e cuja
tramitação exigirá a ponderação de direitos litigiosos complexos ou especializados,
aqueles poderão ter que ser reconhecidos num processo autónomo. Por este leque de
situações, ver-se-á, portanto, que as ações declarativas pendentes nos tribunais, e que
não verifiquem cumulativamente os requisitos do aludido art.º 85.º, prosseguirão os
seus termos. Neste sentido vai Maria do Rosário Epifânio6 “(…) a reclamação de crédito
não importa necessariamente a inutilidade superveniente da lide de natureza
declarativa intentada contra o insolvente: a inutilidade superveniente da lide só
ocorrerá a partir do momento em que, no processo de insolvência, é proferida a
sentença de verificação de créditos, já que a partir desse momento, é essa sentença que
reconhece e define os direitos dos credores”. Sendo esse crédito reconhecido sem
impugnações, no processo de insolvência, as ações declarativas deverão ser extintas por
inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art.º 277.º al a) do Código
de Processo Civil.
3) Efeitos sobre as ações executivas
No que toca às ações executivas, o legislador foi ainda mais cuidadoso, ao deixar
inequívoco que as aquelas, as diligências executivas ou providências ficam suspensas,
automaticamente, podendo a suspensão ser requerida por qualquer credor no decurso
do processo executivo, com fundamento no requerimento da declaração de insolvência
– cfr art,º 793.º do CPC7. Esta suspensão aplica-se, portanto, às ações executivas comuns,
às especiais e, até, às providências cautelares. Não faria sentido evitar-se a penhora dos
bens, permitindo-se o arresto, quando em ambos os casos estamos perante um ataque ao
património do insolvente, pese embora a estrutura preventiva do procedimento cautelar
(como por exemplo o arresto), seria, porquanto um ato inútil. Este efeito aplica-se aos
processos executivos pendentes, na sua plenitude e sem que seja necessário o trânsito
em julgado da sentença de declaração de insolvência8. Daqui se entende, por
conseguinte, que o processo de insolvência é de tal maneira estruturante que, para
5 Neste sentido vd Pereira de Almeida, A., (2007), Efeitos do processo de insolvência nas ações
declarativas, in Revista de Direito Comercial, p. 149.
6 In Manual de Direito da Insolvência, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra 2016, p. 161.
7 Neste ponto, o agente de execução do processo executivo suspende a execução, tomando a
respetiva decisão, notificando-a às partes, o qua aliás fará melhor sentido, dado o previsto no n.º 4 do art.º
88.º do CIRE, impondo a comunicação entre o administrador da insolvência e o agente de execução.
Contudo, a prática não é comum em todos os tribunais, uma vez que, em alguns deles, o juiz da execução
profere despacho e notifica as partes solicitando ao processo de insolvência certidão da sentença de
declaração da insolvência.
8 Dionísio Oliveira, A., (2009), Efeitos externos da insolvência. As ações pendentes contra o
insolvente, Julgar, página 176 e 177.
145
Ricardo M. Oliveira
aplicação plena dos princípios da universalidade e da concursalidade, não poderia
proceder-se de forma diversa, ainda mais, pela natureza urgente do processo. Há que ter
em atenção que as ações executivas manter-se-ão suspensas pelo tempo necessário ao
decurso do processo de insolvência, sendo subjugado por este e pelo seu desenrolar, bem
como pelas decisões que ai se tomem, conforme ser verá mais à frente9.
É, portanto, pacífico que, mesmo com a declaração da insolvência, e numa
primeira fase, as ações executivas não se extinguem.
Diferentemente acontecia na vigência do CPEREF, uma vez que, não se
preocupando com a reestruturação do devedor, mas sim com a liquidação do seu
património, e no caso das empresas, a sua extinção, não havia qualquer suspensão da
instância executiva, mas antes, uma extinção da instância executiva, por inutilidade
superveniente da lide10.
Outrossim, como já vimos, a suspensão da instância deve perdurar até ao
encerramento do processo de insolvência, uma vez que, os efeitos da declaração de
insolvência terminam, tal como previsto no art.º 233.º do CIRE. Este encerramento da
insolvência, não sendo uniforme, não dará o mesmo destino às execuções suspensas.
Prescreve o n.º 3 do art.º 88.º do CIRE, que “as ações executivas suspensas nos
termos no n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente logo que o processo de
insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do art.º 230.º,
salvo para efeitos de exercício do direito de reversão legalmente previsto.” Subentendese aqui, mais um efeito imediato da insolvência sobre outra ação, uma vez que parece ser
automática a extinção das execuções suspensas – ope legis11.
O Administrador da Insolvência deve comunicar ao Agente de Execução que
tramita o processo executivo sustado em virtude da declaração de insolvência, a
ocorrência do atrás previsto, tal como expressamente previsto no n.º 4 do referido art.º
88.º do CIRE. A extinção da instância executiva pode então acontecer com o
encerramento do processo de insolvência, após rateio final.
Tratando-se de pessoa singular, e tendo processo de insolvência encerrado de
acordo com o art.º 230.º n.º 1, al a) do CIRE – isto é após rateio final – a instância
executiva deverá ser declarada extinta por inutilidade superveniente da lide. Acresce a
isto que, tendo sido pedida a exoneração do passivo restante e haja despacho inicial de
cessão do rendimento disponível, nos termos do disposto no art.º 242.º n.º 1 do CIRE, é
vedada a hipótese de se proceder à instauração de ações executivas que atinjam o
património do devedor, que se destina à satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Com o encerramento do processo de insolvência, e sendo o devedor uma
9 Neste sentido vai Rosário Epifânio, M., (2016), Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição,
página 165, Coimbra, Almedina.
10 Dionísio Oliveira, A., (2009), Efeitos externos da insolvência. As ações pendentes contra o
insolvente, Julgar, página 176 e 177.
11 Também neste sentido vai Rosário Epifânio, M., (2016), Manual de Direito da Insolvência, 6.ª
edição, página 165, Coimbra, Almedina.
146
Breves notas sobre a insolvência e os seus efeitos nas...
sociedade comercial, nos termos do disposto no art.º 243.º n.º 3 do CIRE, a execução,
entretanto suspensa, extinguir-se-á, uma vez que o devedor desaparecerá, pois, tal facto
é comunicado à Conservatória do Registo Comercial, para efeitos de cancelamento da
matrícula.
As ações executivas, suspensas pelos efeitos da declaração de insolvência,
extinguir-se-ão também, com o encerramento do processo de insolvência com o
fundamento de insuficiência de bens da massa insolvente.
Com o encerramento do processo o devedor recupera o direito de disposição dos
seus bens e a livre gestão dos seus negócios, art.º 233.º n.º 1 al a) do CIRE.
Assim, encerrado o processo, os credores podem exercer os seus direitos contra o
devedor, desde que estas não contrariem as restrições previstas no plano de insolvência,
do plano de pagamentos e do art.º 242.º n.º 1 do CIRE e os credores da massa podem
reclamar do devedor os direitos não satisfeitos – art.º 233.º n.º 1 al d) do CIRE.
Significa, então, que na maioria das situações, podem ser instauradas novas
execuções contra o insolvente, bem como ações declarativas, pelos credores que
pretendam exercer os seus direitos12.
Ante tudo o que foi dito, cumpre fazer uma ressalva no que toca à declaração da
insolvência com caráter limitado. De facto, o juiz da insolvência pode concluir que o
património do devedor não é suficiente para as custas processuais, nem sequer para as
suas próprias dívidas, e caso disponha de elementos justificativos da abertura do
incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente com caráter limitado
– art.º 39.º n.º 1 do CIRE.
De acordo com o n.º 7 daquele preceito, não sendo requerido o complemento da
sentença (nos termos do n.º 2 al a) e com os requisitos do n.º 3): “O Devedor não fica
privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se
produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de
insolvência, ao abrigo das normas deste código.”
Em suma, entre os efeitos que não se aplicam, estão os previstos no art.º 88.º do
CIRE, pelo que, neste caso, as execuções prosseguirão os seus termos
4) Efeitos sobre as convenções arbitrais
Uma vez mais, o legislador quis salvaguardar possíveis ataques ao património do
devedor, consagrando, assim, no art.º 87.º do CIRE que “fica suspensa a eficácia das
convenções arbitrais em que o insolvente seja parte, respeitantes a litígios cujo
resultado possa influenciar o valor da massa, sem prejuízo do disposto em tratados
12 Nesse sentido vd Ac da Relação de Lisboa de 12-10-2016 (Maria Celina de Jesus da Nóbrega), in
www.dgsi.pt.
147
Ricardo M. Oliveira
internacionais aplicáveis”
No entanto, e além da limitação da suspensão da convenção arbitral perante o
previsto em tratados internacionais aplicáveis, há uma outra exceção. Assim, no n.º 2 do
art.º 87.º do CIRE, não há lugar à suspensão se, à data da declaração da insolvência, o
processo se encontrar pendente.
Nestes casos, o insolvente é substituído pelo Administrador da Insolvência, de
acordo com o mencionado no art.º 85.º n.º 3 do CIRE, não ficando o credor, todavia,
impedido de reclamar o seu crédito nos termos do disposto no art.º 128.º n.º 3 do CIRE.
Como diz Manuel Pereira Barrocas13, na insolvência estamos perante o interesse
do devedor (submetido ao processo), dos seus sócios, credores e da economia nacional,
não atribuíveis, portanto, a uma entidade privada como o árbitro. Acresce ainda o facto
de esta entidade não possuir uma organização capaz de garantir a respetiva tramitação
processual.
5) Conclusões
A declaração de insolvência não determina automaticamente a apensação,
suspensão ou extinção das ações declarativas. No entanto, sempre que estamos perante
processos que apreciem questões relativas aos bens da massa insolvente, cujo valor dessa
massa possa ser influenciado, o Administrador da Insolvência, fundamentando a
conveniência para os fins processuais, pode requerer a sua apensação. O prosseguimento
da ação declarativa não é incompatível com o princípio de igualdade dos credores – “par
conditio creditorum”, tratando de forma diferente, o que é diferente.
A declaração de insolvência determina a suspensão e extinção das ações
executivas propostas contra o devedor insolvente, por beliscar o património integrado da
massa insolvente, e por o processo de insolvência ser, naturalmente, uma execução
universal. O desvio à regra geral é, como já vimos, a não conferência dos efeitos gerais e
normais da insolvência, nos termos e limites conferidos no art.º 39.º do CIRE.
Um pouco, e porque este processo alternativo de composição e resolução de
litígios é declarativo, bebe da ratio prevista para as ações declarativas tradicionais,
suspendendo-se quando o insolvente seja parte, respeitantes a litígios cujo resultado
possa influenciar o valor da massa, sem prejuízo do disposto em tratados internacionais
aplicáveis, todavia, prosseguem os processos pendentes à data da declaração de
insolvência.
E bem se percebe, dado o apanágio da Lei da Arbitragem Voluntária em evitar
manobras dilatórias.
13 Pereira
Barrocas, M., (2011) Manual de Arbitragem, 2.ª Edição, 2011, p. 380, Coimbra, Almedina.
148
Breves notas sobre a insolvência e os seus efeitos nas...
REFERÊNCIAS
Código de Processo Civil português.
Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas português.
AA.VV., (2016), O processo da insolvência Volume II, Lisboa, Centro de Estudos
Judiciários.
Dionísio Oliveira, A., (2009) Efeitos externos da insolvência. As ações pendentes contra
o insolvente, Julgar.
Leitão Cordeiro, M., (2005) Introdução ao Direito da Insolvência, in “O Direito”, 137,
III.
Neto, A. (2015), Novo Código de Processo Civil Anotado, 3.ª Edição, Lisboa, Ediforum.
Pereira de Almeida, A., Efeitos do processo de insolvência nas ações declarativas, in
Revista de Direito Comercial, 17-05-2017.
Pereira Barrocas, M. (2011), Manual de Arbitragem, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina.
Rosário Epifânio, M., (2016) Manual de Direito da Insolvência, 6.ª Edição, Coimbra,
Almedina.
149
A RELAÇÃO ENTRE A RENDA BÁSICA DE
CIDADANIA E OS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
Thiago Santos Rocha1
1) Introdução
Nos termos da Lei Federal n. 10.835/2004, todo cidadão brasileiro residente no
país, assim como os estrangeiros residentes no Brasil há pelo menos cinco anos, possuem
o direito à Renda Básica de Cidadania (RBC), segundo o qual o indivíduo, independente
de sua condição socioeconômica, pode receber da União um benefício monetário, de
igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com
alimentação, educação e saúde.
Ocorre que, até a data de conclusão do presente estudo, tal Lei se encontra
pendente de regulamentação por parte do Poder Executivo, o que implica a não
implementação do direito à RBC. Assim, análises jurídicas sobre a natureza das previsões
da Lei n. 10.835/2004 são necessárias para se ter clareza de quais os caminhos são
cabíveis para a busca da efetividade de seus preceitos.
O presente estudo visa analisar, sob a perspectiva da efetividade das normas
constitucionais, se e em que medida, há relação do direito à RBC, instituído pela Lei
Federal n. 10.835/2004, com os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, previstos no artigo 3º da Constituição de 1988 (CR/88), em especial o de erradicar
a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (inciso III).
Na análise da literatura sobre o tema, adotou-se o método dedutivo de
abordagem, considerando o caráter normativo dos objetivos fundamentais
constitucionais, as peculiaridades dos elementos que compõem o inciso III do artigo 3º
da CR/88, os fundamentos jurídicos da RBC e a importância do respeito ao princípio da
eficiência (artigo 37, caput) pelas políticas públicas que busquem cumprir os objetivos
constitucionais fundamentais.
2) O direito à Renda Básica de Cidadania – Lei n.
10.835/2004
O artigo 1º da Lei n. 10.835/2004, consensualmente aprovada pelas duas casas
do Congresso Nacional e indissociavelmente ligada ao árduo trabalho do então Senador
Doutorando em Direito pela Universidade de Oviedo, linha de investigação “Os novos desafios do Direito
em uma sociedade em transformação”. E-mail: tsrocha@gmail.com.
1
Thiago Santos Rocha
Eduardo Suplicy, dispõe que:
Art. 1º É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que
se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros
residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição
socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário.
Para se compreender as demais características assumidas pela RBC no
ordenamento jurídico brasileiro, é também importante considerar o disposto nos §2º e
§3º do referido artigo, segundo os quais:
§ 2º O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e
suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação,
educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e
as possibilidades orçamentárias.
§ 3º O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e
mensais.
§ 4º O benefício monetário previsto no caput deste artigo será
considerado como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto
sobre a Renda de Pessoas Físicas.
Ao mesmo tempo que consagra o direito à RBC, expressamente fixando prazo
para início de implementação no exercício de 2005, o texto legal atribui ao Poder
Executivo a regulamentação de determinados aspectos, tais como as etapas de
implementação, o valor do benefício, a consignação dos valores no Orçamento-Geral da
União para 2005 e as demais medidas necessárias para a execução do Programa. Eis a
opção adotada pela Lei:
Art. 1º (...) §1º A abrangência mencionada no caput deste artigo
deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se
as camadas mais necessitadas da população.
Art. 2º Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em
estrita observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar no 101,
de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal.
Art. 3º O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União
para o exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para
implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2º desta
Lei.
Art. 4º A partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei
relativos aos planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias deverão
especificar os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras
medidas julgadas necessárias à execução do Programa.
À data de conclusão do presente estudo, já se contam quase 14 anos em que a Lei
n. 10.835/2004 fora publicada sem que o Poder Executivo a tenha regulamentado, ou
mesmo designado grupo de trabalho para analisar os detalhes de sua implementação. Da
mesma forma, não fora o Poder Judiciário instado a manifestar-se acerca de tal omissão.
Perante um cenário social marcado pelo agravamento da pobreza e da
concentração de riquezas, como se detalhará no próximo tópico deste trabalho, é
152
A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais...
intelectualmente honesto analisar os atributos jurídicos que caracterizam a RBC no
Brasil. Ou seja, faz-se necessário buscar melhor compreensão do funcionamento jurídico
de um Estado que, ao mesmo tempo que verifica o aumento das mazelas causadas pela
pobreza e pela desigualdade de sua população, permanece inerte perante o seu dever
legal de regulamentar e implementar um direito concebido justamente como medida
redistributiva de combate e, sobretudo, prevenção à pobreza.
A RBC, considerada a perspectiva do Estado, trata-se de um programa de
políticas públicas, posto que envolve conjunto de atos e fatos jurídicos, quais sejam,
normas jurídicas abstratas, atos administrativos, habilitação orçamentária e fatos
administrativos, cuja finalidade é a concretização de objetivos estatais pela
Administração Pública.2
Tendo por referência o beneficiário, expressamente determinado como todo e
qualquer cidadão brasileiro residente no país ou estrangeiro residente no Brasil há pelo
menos 05 anos, o texto legal sobre a RBC permite identificar um direito subjetivo. A
norma expressa na Lei 10.835/2004 caracteriza uma situação jurídica na qual o titular
possui direito a determinado ato face ao destinatário, constituindo-se a relação trilateral
entre o titular (beneficiário), o destinatário (União) e o objeto do direito (RBC).
No que se refere ao objeto do direito, tem-se que a RBC compõe-se tanto de
prestação normativa quanto de prestação material. Isto porque o primeiro dever que a
Lei n. 10.835/2004 impõe à União é o de regulamentar as normas que se extraem de seus
próprios dispositivos, de modo que, sem ferir o conteúdo do direito, tal qual delimitado
pela própria Lei e pelos dispositivos constitucionalmente envolvidos, viabilize a sua
implementação. O segundo dever é o de prestação material, ou seja, o pagamento do
benefício aos beneficiários, a partir das especificações a serem publicadas pela
regulamentação.
Assim, claro está que há no ordenamento jurídico um direito subjetivo à RBC.
Mais do que isto, a análise a partir da cláusula de abertura material prevista no § 2º do
artigo 5º da Constituição da República de 1988 (CR/88), conjugada com os princípios da
dignidade da pessoa humana e da cidadania, estabelecidos como fundamentos do Estado
Brasileiro pelo artigo 1º da CR/88, permite afirmar que o instituto sob análise se trata de
direito fundamental implícito.3
A exposição até agora feita é de suma importância para se ter tela que, ao menos
no Brasil, a discussão em torno da RBC não se dá apenas no campo das ideias préjurídicas, mas sim como elemento do ordenamento jurídico positivo, com estreita relação
com os alicerces da CR/88. É a partir destas considerações que ocorre a análise, nos
próximos tópicos, da relevância jurídica dos objetivos fundamentais estabelecidos pela
2 Para fins deste trabalho, adota-se a conceituação de políticas públicas exposta por FONTE, Felipe
de Melo, Políticas públicas e direitos fundamentais, 2a. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 57.
3 Para melhor desenvolvimento desta ideia, cf. ROCHA, Thiago Santos, Renda Básica de Cidadania:
a não regulamentação da Lei n. 10.835/2004 sob a perspectiva do controle de constitucionalidade, in: I
Congresso Ibero-Americano de Intervenção Social - Cidadania e Direitos Humanos, Carviçais:
Lema D’Origem, 2017, v. 1, p. 105–107.
153
Thiago Santos Rocha
CR/88, bem como a sua relação jurídica com o direito à RBC.
3) A relevância jurídica dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil
Quando um estudo jurídico científico se propõe a analisar os objetivos
fundamentais de determinado Estado, não se trata elaborar prospecções ou ilações a
partir de correntes dogmáticas ou opções políticas discricionárias. Assim, o fio condutor
do presente trabalho é o pacto social firmado pela sociedade ao elaborar a CR/88, na
condição não apenas de ápice, mas de centro de irradiação de direitos fundamentais do
ordenamento jurídico brasileiro.4
Expressamente, o artigo 3º da CR/88 trata dos objetivos fundamentais a serem
perseguidos pelo Estado Brasileiro. Eis o texto:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ainda que, em última análise, seja plenamente factível afirmar a relação do
direito à RBC com cada um dos objetivos fundamentais expressamente previstos na
CR/88, o presente estudo se concentrará naquele que apresenta relação mais próxima
com referido direito, qual seja, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
de desigualdades sociais e regionais.
Há que se atentar para os verbos utilizados na redação o inciso III. A segunda
parte trata da redução das desigualdades sociais e regionais, de modo que não se trata de
igualar as riquezas das regiões e dos indivíduos, mas sim reduzi-las a níveis aceitáveis
para a formação de uma sociedade que, nos termos do inciso I, seja pautada pela
solidariedade e formada por indivíduos autônomos.
Como bem aponta John Rawls, quando as desigualdades de riqueza excedem
certo limite, colocam-se em perigo as instituições que asseguram possibilidades iguais
de educação e cultura para pessoas com motivações idênticas, a liberdade política tende
a perder o seu valor e o governo passa a ser apenas aparentemente representativo.5
Já a primeira parte do inciso III trata de erradicar a pobreza e a marginalização,
Olsen defende que, no sistema imposto pela CR/88, a Constituição não mais é o vértice da
pirâmide normativa, tal como concebida por Kelsen, mas sim o centro de irradiação do sistema jurídico, cf.
OLSEN, Ana Carolina Lopes, Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade Frente à Reserva do
Possível, 1. ed. Curitiba: Juruá, 2012, p. 176.
5 RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Presença, 1993, p. 223.
4
154
A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais...
ou seja, livrar a sociedade de tais mazelas. Não se trata de reduzir os indicadores de
pobreza e marginalização, mas sim erradica-los.
Ademais, é importante ressaltar que, diferente dos princípios fundamentais da
República, que compõem o alicerce de onde irradiam os valores fundantes do Estado
Democrático de Direito Brasileiro, os objetivos fundamentais são como uma seta a
apontar para onde deve se direcionar toda a estrutura da Administração Pública.
Dessa maneira, qualquer orientação do Estado que priorize metas que, por mais
louváveis que sejam, apresentem-se contrárias à consecução dos objetivos
constitucionalmente definidos como fundamentais, ou mesmo se apresentem
ineficientes para atingi-los, devem ter sua constitucionalidade questionada.
Por sua força normativa, os objetivos fundamentais estão presentes nas decisões
do Supremo Tribunal Federal (STF), como parâmetro para aferir a constitucionalidade
de medidas infraconstitucionais. A título de exemplificação, cite-se:
O art. 7º da Lei 6.194/1974, na redação que lhe deu o art. 1º da Lei
8.441/1992, ao ampliar as hipóteses de responsabilidade civil objetiva, em tema
de acidentes de trânsito nas vias terrestres, causados por veículo automotor,
não parece transgredir os princípios constitucionais que vedam a prática de
confisco, protegem o direito de propriedade e asseguram o livre exercício da
atividade econômica. A Constituição da República, ao fixar as diretrizes que
regem a atividade econômica e que tutelam o direito de propriedade, proclama,
como valores fundamentais a serem respeitados, a supremacia do interesse
público, os ditames da justiça social, a redução das desigualdades sociais, dando
especial ênfase, dentro dessa perspectiva, ao princípio da solidariedade, cuja
realização parece haver sido implementada pelo Congresso Nacional ao editar
o art. 1º da Lei 8.441/1992. (ADI 1.003 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-81994, P, DJ de 10-9-1999.)
4) A Renda Básica de Cidadania como meio eficiente para
atingir os objetivos fundamentais
Conforme estabelece o caput do artigo 37 da CR/88, a Administração Pública
deve ser eficiente ao realizar as suas opções. Em se tratando de objetivos fundamentais
constitucionalmente estabelecidos, dentre o leque de opções possíveis, cabe ao Estado o
dever-poder de eleger aquela que se mostre hábil para consecução do expressamente
enumerado no artigo 3º da CR/88, mormente quando se verifique conflito com outros
valores e interesses.
Sem entrar nos pormenores relativos às políticas públicas adotadas, nem à
coloração política dos partidos governantes desde a redemocratização do Brasil, claro
está que, em quase 30 anos de vigência da CR/88, não se pode afirmar que foram
logrados os objetivos que justificam o pacto social em torno da Constituição,
sobremaneira o disposto no inciso III do artigo 3º.
155
Thiago Santos Rocha
Muito embora se possam apontar dois períodos de redução da pobreza e da
extrema pobreza, um em 1995, atribuído à estabilização da moeda, e outro de 2003 a
2014, em grande parte devido à política de desenvolvimento com inclusão por meio de
programas e ações focados em setores sociais mais vulneráveis, fato é que a pobreza
encontra-se longe de ser erradicada do Brasil.6
Muito pelo contrário, como apontam recentes dados, mesmo com alta do Produto
Interno Bruto (PIB) e baixa da inflação, a pobreza extrema aumentou 11,2% em 2017,
atingindo 14,83 milhões de seres humanos, o que significa 7,2% da população brasileira
vivendo com até R$ 136 mensais,7 o que equivale US$ 1,90 por dia, ajustados pela
paridade do poder de compra, de acordo com critério internacionalmente adotado pelo
Banco Mundial como linha de pobreza extrema.8
Se analisado o objetivo constitucional de redução das desigualdades sociais e
regionais, os dados também não são animadores. Isto porque, do total da população em
situação de extrema pobreza, 55% está na região Nordeste e 75% são negros ou pardos,9
números que não guardam relação proporcional direta com o que representa tais
segmentos em relação ao total da população brasileira.
Conforme demonstra o banco de dados World Inequality Database (WID), em
2015, os indivíduos que compunham o 1% mais rico da população brasileira detinham
28,3% da renda nacional. Destaque-se que a média mundial de renda do 1% mais rico,
para o mesmo período, era de 20,6%. Isto atribui ao Brasil a característica de país com
maior concentração de renda do mundo, de acordo com os dados colhidos por tal banco
de dados que, dentre seus coordenadores, conta com o economista francês Thomas
Piketty.10
Já estudo da OXFAM demonstra que, em 2017, o patrimônio dos bilionários
brasileiros cresceu 13%, ao passo que, no mesmo período, os 50% mais pobres do país
tiveram sua participação reduzida de 2,7% para 2,0% do total da renda nacional. O
resultado disto é que, ao final de 2017, os cinco homens mais ricos do Brasil detinham o
6 Cf. MENEZES, Francisco; JANNUZZI, Paulo, Teoria e Debate | Com o aumento da extrema
pobreza, Brasil retrocede dez anos em dois.
7 Dados obtidos por levantamento da LCA Consultores, a partir de números divulgados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, relativos à Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (PNAD Contínua). Cf. ROVAROTO, Isabela, Quem são e onde estão os brasileiros que
vivem na pobreza extrema?, EXAME, disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/quemsao-e-onde-estao-os-brasileiros-que-vivem-na-pobreza-extrema/>, acesso em: 21 jul. 2018.
8 A nova classificação adotada pelo Banco Mundial, a partir de outubro de 2017, não mais analisa
todos os países a partir da mesma linha de pobreza, de US$ 1,90 por dia, mas estabelece três linhas diferentes
(US$ 1,90, US$ 3,20 e US$ 5,50), de acordo com a renda média do país. De acordo com esta nova
classificação, a linha de pobreza adequada para análise no Brasil seria a de US$ 5,50. Cf. THE WORLD
BANK, Country Poverty Brief - Brazil, Poverty & Equity Data Portal, disponível em:
<http://databank.worldbank.org/data/Views/Reports/ReportWidgetCustom.aspx?Report_Name=pov_co
u_1_2017&Id=c028ff64&wd=430&ht=390&tb=y&dd=n&pr=n&export=y&xlbl=y&ylbl=y&legend=y&ispo
rtal=y&inf=n&exptypes=Excel&country=BRA&series=SI.POV.UMIC,SI.POV.UMIC.NO>,
acesso
em:
9 nov. 2017.
9 Cf. ROVAROTO, Quem são e onde estão os brasileiros que vivem na pobreza extrema?
10 Cf. WID.WORLD, WID – World Inequality Database, WID - World Inequality Database,
disponível em: <https://wid.world>, acesso em: 21 jul. 2018.
156
A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais...
mesmo patrimônio que a metade mais pobre da população.11
Mesmo rápida análise dos dados expostos permite verificar que, quaisquer que
sejam suas motivações e os governos que as tenham capitaneado, as políticas públicas
adotadas pelo Estado não foram eficientes para alcançar os objetivos
constitucionalmente fixados. Mesmo a melhora em indicadores macroeconômicos
observada em determinados momentos não se apresentou suficiente para erradicar a
pobreza, e nem sequer a pobreza extrema.
Por mais louváveis que sejam os resultados de políticas de transferência de renda
condicionadas, tais como o Programa Bolsa Família (PBF), há de se reconhecer que não
se demonstraram suficientes para atingir os objetivos constitucionais. Conforme previsto
no Decreto n. 8.794/2016, é de R$ 85 o benefício básico mensal destinado a unidades
familiares que apresentem renda familiar per capita de até R$ 85, sendo esta considerada
a linha de extrema pobreza pelo Governo Federal segundo o mesmo Decreto. Isso
significa que a renda auferida por pessoas que sobrevivem apenas com o PBF não chega
aos R$ 136 mensais por membro da família, referência da linha de extrema pobreza
conforme critério, acima exposto, adotado pelo Banco Mundial.
Em uma estrutura de inserção social que tenha o emprego como seu principal
eixo, mesmo melhoras em determinados índices macroeconômicos, como PIB, não
significam que, necessariamente, houve mudanças positivas nas condições de vida
daqueles indivíduos mais pobres. Isto porque o aumento no PIB pode não alcançar
aqueles que estão fora do mercado de trabalho formal.
Ademais, mesmo entre os que se encontram inseridos no mercado de trabalho
formal, observam-se fenômenos como o precariado, grupo de trabalhadores com
relações laborais instáveis e inseguras,12 e os trabalhadores pobres, que não conseguem
romper a linha de pobreza mesmo com a remuneração de sua atividade formal.
Tais condições são agravadas com as consequências das “flexibilizações”
introduzidas pela reforma trabalhista (Lei n. 13.429/2017 e Lei n. 13.467/2017) no
ordenamento jurídico brasileiro. Como demonstram os dados publicados pelo IBGE a
partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), o número da
população residente que possuía rendimento de trabalho baixou de 42,4%, em 2016, para
41,9% em 2017. Ademais, a renda média dos trabalhadores que estão entre os 5% mais
pobres caiu de R$ 76, em 2016, para R$ 47, em 2017.13
É neste contexto que a RBC se apresenta como política pública alternativa às
adotadas até então pelo Estado Brasileiro e potencialmente eficiente para a consecução
dos objetivos constitucionais. Isto porque, em termos gerais, a RBC refere-se a um
pagamento periódico em moeda corrente, em valor igual para todos, a título individual,
11 Cf. OXFAM BRASIL, Recompensem o trabalho, não a riqueza, Oxfam Brasil, disponível
em: <https://www.oxfam.org.br/assim-nao-davos>, acesso em: 26 jun. 2017.
12 Para melhor compreensão da ideia de precariado, cf. STANDING, Guy, The precariat: the new
dangerous class, London, UK ; New York, NY: Bloomsbury, 2014.
13 IBGE, Rendimento de todas as fontes 2017, Rio de Janeiro: IBGE, 2018, p. 6.
157
Thiago Santos Rocha
sem exigência de comprovação de insuficiência de recursos ou cumprimento de
quaisquer requisitos vinculados ao trabalho.14 Tal conceito expõe cinco importantes
características da RBC: a) regularidade, e não um pagamento único em determinado
momento da vida; b) em moeda corrente, e não pela entrega de bens ou prestação de
serviços; c) individual, e não em bases de estruturas coletivas, tais como a família, o lar
ou a unidade econômica; d) universal, a todos os indivíduos independente de sua
condição socioeconômica; e e) incondicional, uma vez que não se exige daquele que a
recebe que trabalhe ou comprove a busca de trabalho.
A clareza destas características permite diferenciar a RBC de sistemas de rendas
mínimas ou demais rendas condicionadas, tais como os benefícios do PBF. Mesmo que
coincidam nas características “a” e “b” acima descritas, diferenciam-se em relação aos
requisitos “c”, “d” e “e”. Ou seja, as rendas condicionadas, em regra, são concedidas em
base coletiva (unidade familiar, ou outra), e não a título individual, em caráter seletivo,
mediante a comprovação de insuficiência de recursos por meios próprios, e
condicionadas a que os beneficiários assumam compromissos de busca de inserção no
mercado laboral, de critérios de educação e/ou utilização do valor recebido
exclusivamente em bens alimentícios.
As características da RBC, especialmente seu caráter universal, fazem com que
seja, antes de uma medida de combate à pobreza, uma ferramenta previne a ocorrência
de tal mazela. Como bem expõem Arcarons, Torrens e Raventós, a fixação de uma renda
básica universal em valor pelo menos igual ao da linha de pobreza tem como resultado
imediato, já no primeiro dia de sua implementação, a erradicação da pobreza, tal qual
medida pela quantidade de ingressos.15
Além disso, se o financiamento da RBC se der por meio de medidas fiscais que
prezem pelos aspectos redistributivo e progressivo, o resultado não será outro senão uma
distribuição menos desigual das riquezas produzidas na sociedade brasileira. Por óbvio
que, para que seja viável, o projeto de financiamento da RBC deve ser socialmente
discutido e considerar as peculiaridades da estrutura socioeconômica brasileira.16
Não obstante, de plano já se podem rechaçar propostas como a simples
eliminação dos benefícios pecuniários existentes e distribuição igualitária a toda
sociedade, a título de RBC, dos valores economizados com esta medida. Embora tal
forma de financiamento possa gerar resultados redistributivos, eles não seriam
progressivos e nem suficientes para a eliminação da pobreza.17
14 VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick, Basic Income: A Radical Proposal for
a Free Society and a Sane Economy, London: Harvard University Press, 2017, p. 1.
15 ARCARONS, Jordi; TORRENS, Lluís; RAVENTÓS, Daniel, Renta básica incondicional: una
propuesta de financiación racional y justa, Barcelona: Ediciones del Serbal, 2017, p. 162.
16 Frise-se que os indicadores sociais, de pobreza e distribuição de renda no Brasil possuem
intrínseca relação histórica com as estruturas econômicas. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa
Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César, Concentração, estruturas e desigualdade. As origens
coloniais da pobreza e da má-distribuição de renda, São Paulo: IDCID, 2008, p. 69–77.
17 Embora trate especificamente do cenário espanhol, interessante o estudo nesse sentido
apresentado por BADENES PLÁ, Nuria; GAMBAU-SUELVES, Borja; NAVAS ROMÁN, María, Efectos
158
A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais...
5) Considerações finais
O estudo aponta que o direito à RBC, vigente no ordenamento jurídico brasileiro,
mas pendente de regulamentação pelo Poder Executivo, possui intrínseca relação com
os objetivos fundamentais de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais no Estado brasileiro.
A regulamentação, e a consequente implementação, de tal direito em valores
suficientes para colocar o indivíduo acima da linha de pobreza, seria forte ferramenta
para eliminar a pobreza financeira. Ademais, a autonomia individual assegurada pela
rede de proteção criada pela Renda Básica de Cidadania jogaria em favor da inclusão e
contra a marginalização social.
O caráter universal da RBC, uma vez que todos os cidadãos brasileiros receberiam
igual valor, seria medida redistributiva de riquezas com vistas à redução das
desigualdades sociais, notadamente se acompanhada de alterações na estrutura fiscal
que aprofundem seu caráter progressivo.
Tais características se posicionam em sentido que permite apontar a eficiência da
RBC na consecução dos objetivos fundamentais, em aspecto notadamente mais favorável
quando comparada às vigentes políticas de rendas condicionadas.
REFERÊNCIAS
ARCARONS, Jordi; TORRENS, Lluís; RAVENTÓS, Daniel. Renta básica
incondicional: una propuesta de financiación racional y justa.
Barcelona: Ediciones del Serbal, 2017.
BADENES PLÁ, Nuria; GAMBAU-SUELVES, Borja; NAVAS ROMÁN, María. Efectos
redistributivos de la sustitución de prestaciones monetarias por Renta Básica
Universal en España. Papeles de Trabajo. Instituto de Estudios Fiscales,
v. 2/2018, p. 38, 2018.
FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais. 2a. São Paulo:
Saraiva, 2015.
IBGE. Rendimento de todas as fontes 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua).
MENEZES, Francisco; JANNUZZI, Paulo. Teoria e Debate | Com o aumento da extrema
pobreza, Brasil retrocede dez anos em dois. Disponível em:
<https://teoriaedebate.org.br/2018/03/07/com-o-aumento-da-extremapobreza-brasil-retrocede-dez-anos-em-dois/>. Acesso em: 21 jul. 2018.
redistributivos de la sustitución de prestaciones monetarias por Renta Básica Universal en España, Papeles
de Trabajo. Instituto de Estudios Fiscales, v. 2/2018, p. 38, 2018, p. 16.
159
Thiago Santos Rocha
OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade Frente à
Reserva do Possível. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2012.
OXFAM BRASIL. Recompensem o trabalho, não a riqueza. Oxfam Brasil.
Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/assim-nao-davos>. Acesso em:
26 jun. 2017.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Carlos Pinto Correia. Lisboa: Presença,
1993.
ROCHA, Thiago Santos. Renda Básica de Cidadania: a não regulamentação da Lei n.
10.835/2004 sob a perspectiva do controle de constitucionalidade. In: I
Congresso Ibero-Americano de Intervenção Social - Cidadania e
Direitos Humanos. Carviçais: Lema D’Origem, 2017, v. 1, p. 103–115.
ROVAROTO, Isabela. Quem são e onde estão os brasileiros que vivem na
pobreza
extrema?
EXAME.
Disponível
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<https://exame.abril.com.br/economia/quem-sao-e-onde-estao-os-brasileirosque-vivem-na-pobreza-extrema/>. Acesso em: 21 jul. 2018.
SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César.
Concentração, estruturas e desigualdade. As origens coloniais da pobreza e da
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Disponível
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<http://databank.worldbank.org/data/Views/Reports/ReportWidgetCustom.as
px?Report_Name=pov_cou_1_2017&Id=c028ff64&wd=430&ht=390&tb=y&d
d=n&pr=n&export=y&xlbl=y&ylbl=y&legend=y&isportal=y&inf=n&exptypes=E
xcel&country=BRA&series=SI.POV.UMIC,SI.POV.UMIC.NO>. Acesso em:
9 nov. 2017.
VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick. Basic Income: A Radical
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University Press, 2017.
WID.WORLD. WID – World Inequality Database. WID - World Inequality
Database. Disponível em: <https://wid.world>. Acesso em: 21 jul. 2018.
160
ACORDOS PARASSOCIAIS: INSTRUMENTOS DE
GOVERNANÇA E INOVAÇÃO NO SEU CONFRONTO
COM OS ESTATUTOS
Rita Guimarães Fialho d’ Almeida1
1) Introdução
Numa primeira aproximação ao conceito, os acordos parassociais são negócios
jurídicos celebrados anteriormente ao acto constitutivo da sociedade, ou no seu seio,
entre todos ou alguns sócios nessa mesma qualidade, o que equivale por dizer que os
efeitos pretendidos por tais acordos se hão-de repercutir na dinâmica da sociedade em
que se integram. E, se assim é, a parassocialidade apenas pode captar-se na plenitude do
seu relevo jurídico se integrada no âmbito societário, atendendo a que os acordos
parassociais pressupõem a existência actual ou futura de um contrato de sociedade e
apresentam, em determinadas situações, conexões particulares com o último.
Com a celebração de acordos parassociais alcançamos uma composição de
interesses que pode ser meramente complementar às determinações da lei ou do
contrato de sociedade. Como logo se vê, o sistema delimitado por aquelas não
compreende, de modo exaustivo, todas as configurações relativas à vida e às relações
sociais, impossíveis de antecipar, razão pela qual os acordos parassociais aparecem, não
raras vezes, como sucedâneos dos normais instrumentos decisórios, aludindo-se, a
propósito, à sua função complementadora face aos elementos estatutários.
Neste contexto, a interrogação impõe-se: afinal de contas, como equacionar o
problema da contraposição entre a socialidade e a parassocialidade ou, por outras
palavras, o problema da contraposição entre o contrato de sociedade e os acordos
parassociais?
2) Previsão em contrato de sociedade e/ou acordos
parassociais? Um “mar” de possibilidades…
Embora os acordos parassociais não estejam subtraídos à disciplina societária,
não se pode afirmar que a aplicação do ordenamento societário tenha para aqueles as
mesmas consequências previstas para as cláusulas estatutárias. Dito doutro modo, os
acordos parassociais não podem ser valorados pelo mesmo critério do contrato de
sociedade, já que os seus efeitos são diferentes e incidem em plano distinto do das
normas societárias.
1 Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Assistente Convidada na
Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria
Rita Guimarães Fialho d’ Almeida
Negócios existem que podem ser validamente concretizados por via parassocial,
mas não licitamente por via estatutária, assim como há resultados negociais cuja
realização é impedida pelo ordenamento societário e cuja relevância jurídica também
não é susceptível de ser alcançada por via da celebração de acordos parassociais.
Pode também suceder, e estes serão os casos mais frequentes, que a
regulamentação negocial tanto possa ser introduzida por via estatutária como por via
parassocial. Nestes casos, a opção pela segunda via é apenas sugerida por factores
circunstanciais, como sejam o da maior facilidade procedimental de modificação ou
revogação do acordo parassocial, ou a circunstância de este se destinar a reger apenas as
relações entre parte dos sócios.
3) Limitações derivadas do contrato de sociedade?
Cumpre agora saber se o conteúdo do contrato de sociedade pode ou não
funcionar como limite à configuração dos acordos parassociais que, sem violar qualquer
norma injuntiva, se afigurem contrários ao que ali esteja estipulado.
Repare-se, desde logo, no seguinte: estando em causa duas obrigações de origem
contratual, a consequência da contrariedade da vinculação parassocial em relação a
cláusulas do pacto social não poderá ser a da nulidade, em razão de não estar em causa
um problema que deva ser perspectivado no plano da invalidade.
a) A ideia de subordinação normativa das regras parassociais
às regras sociais
Parte da doutrina tem entendido que o sócio deverá cumprir a obrigação
emergente do pacto social, com base numa ideia de subordinação normativa das regras
parassociais às regras sociais, resultante, por seu turno, da constatação de as vinculações
parassocietária e societária não serem independentes uma da outra, existindo entre
ambas uma conexão traduzida na circunstância de a dimensão parassocial estar
funcionalmente ligada à dimensão social.
Nesse sentido, e partindo da ideia de unilateralidade da coligação entre o contrato
de sociedade e o contrato parassocial, M. LEITE SANTOS (1996, pp. 61 e 215) sustenta
existir uma situação concreta de inexigibilidade da prestação. Quanto a nós, e salvo o
devido respeito por opinião diversa, a categoria da inexigibilidade não se encontra, de
per si, satisfatoriamente elaborada para constituir cabal auxílio na boa compreensão da
problemática em análise.
Por seu turno, M.ª GRAÇA TRIGO (2008, pp. 177-178; 2011, pp. 188-191) começa
por assinalar que um entendimento possível seria o de considerar as duas vinculações de
natureza contratual como inteiramente autónomas, tal como quaisquer outros casos de
162
Acordos parassociais: instrumentos de governança e...
incompatibilidade entre compromissos contratuais assumidos por uma mesma pessoa,
caso em que o devedor escolheria a prestação a cumprir, submetendo-se depois às
consequências do incumprimento da obrigação por satisfazer. Mas logo se refere à
circunstância de as vinculações parassocietária e societária não serem independentes
uma da outra, existindo entre ambas uma “conexão natural que se traduz no facto de a
especificidade da dimensão parassocial consistir precisamente na ligação com a
dimensão social” (2011, p. 189) e embora recuse – e bem – aplicar analogicamente o art.
58.º, n.º 1, alínea a), do CSC, às situações de conflito entre as cláusulas do contrato de
sociedade e as do contrato parassocial, com o argumento de a sanção aí prevista se dirigir
concretamente aos casos de violação de regras estatutárias por deliberações dos sócios,
a Autora extrai desta norma uma ideia geral de subordinação normativa das regras
parassociais às regras sociais para concluir no sentido da prevalência das regras do
contrato de sociedade sobre as do acordo parassocial em caso de conflito entre umas e
outras (2011, p. 189).
Na sua perspectiva, a problemática pode ser posicionada no âmbito da designada
“colisão de deveres”, por vezes invocada como causa justificativa, a qual se refere à
circunstância em que impendem sobre a mesma pessoa diversos deveres, que não
suportam a realização, pelo menos absoluta, das respectivas condutas.
Em regra, o critério para determinar qual o dever, cujo cumprimento justifica a
inexecução do outro, é o do seu valor ou importância relativa, o qual se afere pelo valor
do bem ou interesse que através daquele dever se prossegue, orientação que, aliás, se
pode colher dos lugares paralelos do regime da colisão de direitos (art. 335, n.º 2, do
CCiv.), da acção directa (art. 336.º, n.º 1, do CCiv.), da legítima defesa (art. 337.º do
CCiv.) e do estado de necessidade (art. 339.º, n.º 1, do CCiv.).
Partindo da premissa exposta, M.ª GRAÇA TRIGO (2011) pronuncia-se do modo
que segue:
Ora, é precisamente por a importância do bem ou interesse protegido
pelo ordenamento estatutário ser superior à do bem ou interesse tutelado pela
vinculação parassocial, que entendemos que esta última se deve sujeitar à
vinculação social; e, por isso, se atribui relevância às cláusulas estatutárias para
efeito de limitação do conteúdo das vinculações de voto (p. 190).
Assim sendo, o sócio vinculado a obrigações conflituantes, deverá, no seu
entendimento, respeitar a vinculação societária, invocando essa colisão como causa
justificativa do incumprimento da vinculação parassocial, caso não seja, ele próprio,
responsável pelo conflito (ou seja, se a vinculação parassocial não tiver logo surgido em
contrariedade à vinculação societária) (2011, p. 190).
Pelo contrário, diz-nos a mesma Autora (2011, p. 191), havendo culpa do sócio no
aparecimento do conflito, existe, também aí, uma colisão de deveres, a qual, porém, não
constitui causa justificativa para o incumprimento de um desses deveres. Neste caso, o
devedor deverá cumprir, de idêntico modo, o dever mais forte, qual seja o da vinculação
163
Rita Guimarães Fialho d’ Almeida
societária, mas será obrigado a indemnizar o credor da vinculação parassocial pelos
prejuízos que sofra em razão daquele incumprimento.
Se o devedor optar por cumprir o dever de menor importância, violando com isso
o dever superior, então, acrescenta ainda a Autora (2011, p. 191), independentemente da
sua culpa na existência do conflito, o credor poderá, caso a prestação correspondente ao
dever principal seja ainda possível, intentar a acção de cumprimento, com sacrifício para
a realização do dever mais fraco. Porém, terá de ressalvar-se a hipótese de, em relação ao
dever de menor importância, existir sentença condenatória transitada em julgado, por
ser aí de concluir pela impossibilidade jurídica de realização da prestação objecto do
dever de maior importância.
Finalmente, P. CÂMARA (1996) começa por assinalar que o problema se coloca
apenas em relação às cláusulas materialmente estatutárias, por a oposição com as
cláusulas formalmente estatutárias se solucionar mediante a aplicação das regras de
direito contratual para, num segundo momento, concluir no sentido da invalidade do
acordo parassocial que tenha por objecto a derrogação de uma estipulação estatutária
(alteração contra contractus) e pela validade daquele que se limite a preencher ou a
desenvolver um aspecto não regulado no contrato de sociedade (praeter contractus) (p.
261 e ss. e p. 463).
b) Posição adoptada
Na nossa opinião, recorde-se, o problema não deverá ser perspectivado no plano
da invalidade. Porém, e em sentido contrário à posição adoptada pelos autores acima
mencionados, entendemos não existir uma situação de desconformidade com um acto
jurídico hierarquicamente superior, ressalvados naturalmente os casos em que as
cláusulas do contrato de sociedade reproduzam normas injuntivas que sejam igualmente
aplicáveis à vinculação parassocial.
Assim sendo, em existindo contrariedade entre o conteúdo das cláusulas sociais
e das cláusulas parassociais e só uma das obrigações puder ser cumprida, a solução –
igualmente preconizada por A. FILIPA LEAL (2009, pp. 171-172) – é a de considerar as
duas vinculações de fonte contratual como quaisquer outros casos de incompatibilidade
entre compromissos contratuais assumidos pela mesma pessoa. Nestas circunstâncias, o
devedor deverá optar pelo cumprimento de uma das estipulações, assumindo as
consequências decorrentes do incumprimento da outra, como seja a da sujeição às
pretensões ressarcitórias do credor parte num dos contratos. Questão interessante é,
aliás, a de se configurar a hipótese como uma declaração tácita de não-cumprimento das
vinculações previstas no pacto social por parte do sócio, interveniente em ambos os
contratos.
Por todo o exposto, rejeita-se a possibilidade de invocação do cumprimento de
um dever como causa de justificação que exclui a ilicitude, atendendo a que a parte de
164
Acordos parassociais: instrumentos de governança e...
um acordo parassocial se vincula, em princípio, voluntariamente, podendo assim
antecipar o aparecimento de obrigações incompatíveis.
4) Cláusulas estatutárias em matéria de celebração de
acordos parassociais
Vejamos, por fim, algumas das possíveis situações em que o contrato de sociedade
dispõe acerca da celebração de acordos parassociais.
Uma das hipóteses refere-se às cláusulas permissivas da celebração desse tipo de
contratos, as quais, evidentemente, se revelam despiciendas, tendo em conta que a
permissão genérica decorre já da lei. Inúteis são também as cláusulas estatutárias que
noticiem a inoponibilidade à sociedade, na medida em que a mesma resulta da natureza
jurídica do acordo, além de estar prescrita no n.º 1 do art. 17.º do CSC, disposição essa
que igualmente arreda cláusulas que pretendessem tornar os acordos parassociais
oponíveis à sociedade, admitindo, designadamente, a impugnação de actos da sociedade
ou dos sócios para com a sociedade.
Outra modalidade será a de cláusulas que imponham a comunicação à sociedade
de quaisquer acordos parassociais, as quais são, em regra, de admitir, se atendermos a
que pode ser do interesse de todos o conhecimento dos vínculos de voto assumidos por
alguns, embora a oponibilidade à sociedade e aos demais sócios dos acordos
devidamente comunicados pareça estar, à partida, arredada, diante a norma do art. 17.º,
n.º 1, do CSC.
Maior atenção justificam as cláusulas proibitivas (ou simplesmente restritivas)
de acordos parassociais. Para R. VENTURA (2003), tais cláusulas são lícitas, pois “se
todos os accionistas se obrigam a não subscrever tais acordos, nenhuma regra legal é
violada” (p. 37). Subscrevendo embora idêntico entendimento, cumpre assinalar que
naquelas situações em que, no próprio pacto social, seja introduzida uma cláusula
estipulando a nulidade de quaisquer acordos parassociais que possam ser celebrados,
estaremos diante uma restrição inadmissível da autonomia privada, enquanto
competência – hierarquicamente localizada num plano superior –, restringindo-se o
poder de produção de efeitos jurídicos. Em consequência, e como nos ensina A. FILIPA
LEAL (2009),
Ao contrato social não é, assim, possível, ditar a invalidade dos acordos
parassociais, na medida em que a autonomia privada é uma competência para
produzir efeitos jurídicos – que permite, entre outros, criar obrigações ou
produzir efeitos translativos – e não uma competência para alterar o conteúdo
das regras legais – neste caso, o artigo 405.º CC. Uma cláusula com este teor
inserida no contrato de sociedade seria, ela própria, nula – não por
contrariedade à lei, dado que não existe aqui nenhuma norma directamente
violada, mas sim por impossibilidade legal (artigo 280.º, n.º 1 CC) (p. 172).
165
Rita Guimarães Fialho d’ Almeida
Diante uma tal constatação, poder-se-á então abrir caminho à discussão acerca
da possibilidade de conversão da cláusula nula, observados os requisitos do art. 293.º do
CCiv., numa obrigação de non contrahendo, esta sim admitida, enquanto norma de
conduta (proibitiva ou impositiva).
Note-se ainda que a violação da cláusula que proíba a celebração de acordos
parassociais (um pacto de non contrahendo), sem que se comine com o desvalor de
nulidade daqueles que sejam celebrados – admissível, como vimos – merece tratamento
apenas no plano da responsabilidade contratual, devendo o sócio outorgante indemnizar
a sociedade pelos danos a esta causados com tal incumprimento, nos termos gerais.
Cumpre agora averiguar da relevância de eventuais cláusulas estatutárias para
efeitos de limitação do conteúdo dos acordos de voto, pois, repare-se, a par das regras
legais que delimitam o exercício do direito de voto dos sócios, também podem existir no
contrato de sociedade cláusulas que disciplinem o mesmo exercício.
Pense-se, em particular, naquelas situações em que o contrato de sociedade, que
não pode preterir os casos de impedimento de voto legalmente fixados (cf. arts. 251.º, n.º
2, e 384.º, n.º 7), amplie esse leque de casos e um acordo parassocial não respeite esses
impedimentos de voto, assim como naquelas outras situações em que, estando em causa
uma sociedade anónima, o pacto social adopte um regime de limitação máxima do
número de votos por cada accionista [art. 384.º, n.º 2, alínea b)] e seja celebrado um
acordo de voto mediante o qual um accionista se vincule a votar no sentido indicado por
outro accionista que pessoalmente já atingiu o limite de votos estatutariamente fixado.
Quanto a este último aspecto, a doutrina alemã considera, por um lado, não dever
admitir-se um acordo de voto mediante o qual um accionista se vincule a votar no sentido
indicado por outro accionista que pessoalmente já atingiu o limite de votos
estatutariamente fixado; e, por outro lado, em se tratando de um acordo de tipo sindical
onde não foi incluída a regra do limite máximo de votos, propugna no sentido de não
serem vinculativas aquelas deliberações internas do sindicato para cuja aprovação
tenham sido determinantes votos de um accionista que, por ultrapassarem o limite
estatutário, não seriam computados na votação das deliberações sociais.
No fundo, pretende obstar-se a que, mediante a celebração de um acordo de voto,
se transponham as limitações estatutárias e, por essa via, se atribua a um sócio a
possibilidade de exercer uma influência indirecta sobre a formação da vontade social na
assembleia geral, que lhe estava interditada pelo contrato de sociedade.
Ora, a inobservância de impedimentos estatutários de voto ou de limites
quantitativos ao mesmo através de vinculações de voto assumidas antes ou depois da
previsão desses impedimentos ou limites remete-nos, uma vez mais, para a acareação
entre duas obrigações de carácter contratual, concretamente a vinculação social ou
societária e a vinculação parassocial ou parassocietária. Em consequência, e em
conformidade com o anteriormente explanado, o resultado negativo da infracção de
cláusulas estatutárias (que não constituam mera reprodução de regras legais), não
poderá ser a nulidade, por então se não confrontarem actos de diferente valor
166
Acordos parassociais: instrumentos de governança e...
hierárquico – a lei e o contrato –, mas antes duas obrigações de carácter contratual.
Quanto a nós, a solução será a de considerar as duas vinculações de fonte contratual
como quaisquer outros casos de incompatibilidade entre compromissos contratuais
assumidos pela mesma pessoa, o que implica que o devedor deverá optar pelo
cumprimento de uma das estipulações, assumindo as consequências decorrentes do
incumprimento da outra, como seja a da sujeição às pretensões ressarcitórias do credor
parte num dos contratos.
Outra situação usualmente assinalada pela doutrina alemã como desencadeando
um limite para as vinculações de voto é a que decorre da sujeição da transmissão das
participações sociais ao consentimento da sociedade [participações vinculadas
(vinkulierte Anteile)]. Entre nós, este é o regime vigente para a cessão de quotas (art.
228.º, n.º 2, do CSC), podendo ser acolhido quanto à transmissão de acções nominativas
[cf. art. 328.º, n.º 2, alínea a), e art. 299.º, n.º 2, alínea b), do CSC].
Neste contexto, será de admitir a existência de um compromisso de voto do
alienante diante o adquirente, no sentido de votar favoravelmente a autorização da
transmissão quando a mesma seja da competência da assembleia geral (cf. art. 329.º, n.º
1). E pode mesmo entender-se que essa vinculação de voto não carece de expressa
inclusão no acordo de transmissão, configurando um dever acessório daí resultante.
O problema surge com uma eventual obrigação assumida pelo alienante de, caso
recusado o consentimento da sociedade em relação à transmissão, exercer o direito de
voto na assembleia segundo as instruções do pretenso adquirente. Entre nós, a questão
reveste-se, em princípio, de reduzida importância prática, porquanto à recusa do
consentimento se segue, em regra, a amortização da participação social ou a sua
aquisição por outra pessoa, ou então a transmissão se torna livre, nos termos do art.
329.º, n.º 3, alínea c), para as acções, e art. 231.º, em relação às quotas de que se seja
titular há mais de três anos (cf. n.º 3). Para R. VENTURA (2003), não se vislumbram
motivos para invalidar convenções de voto daquele género, por existir nestas situações
uma particularidade relevante: “a cessão é válida entre cedente e cessionário, pois a falta
de consentimento apenas afecta a eficácia para com a sociedade; o cedente, votando
segundo instruções do cessionário, exerce um direito que, nas relações inter partes, já a
este pertence” (p. 89). Posição diferente é propugnada pela doutrina alemã, para quem
esse tipo de convenções de voto é ineficaz, sob pena de se desviar do propósito da reserva
de consentimento, qual seja o da possibilidade de se obstar à entrada de determinadas
pessoas na sociedade.
Os motivos que presidem à diferença de perspectivas têm de ser procurados na
concepção acerca dos efeitos da recusa do consentimento da sociedade sobre o negócio
de transmissão. Enquanto a doutrina germânica propende, na sua maioria, a acolher a
tese da ineficácia absoluta da transmissão não autorizada, a doutrina portuguesa perfilha
a solução da ineficácia meramente relativa, aliás, aceite pelo CSC (art. 228.º, n.º 2, e art.
230.º, n.º 5). Daí que, entre nós, seja de admitir uma vinculação de voto do alienante
perante o adquirente de participações sociais cuja transmissão não foi consentida.
167
Rita Guimarães Fialho d’ Almeida
Recorde-se novamente não ser este um problema que deva ser perspectivado no
plano da invalidade, por então se não confrontarem actos de diferente valor hierárquico
– a lei e o contrato –, mas antes duas obrigações de carácter contratual.
5) Conclusões
Os acordos parassociais constituem instrumentos bem importantes para a
condução dos destinos das sociedades comerciais, na medida em que possibilitam
adaptar a excessiva rigidez dos tipos legais societários e dos estatutos em prol dos
interesses dos sócios e das necessidades do tráfego mercantil, assim correspondendo a
uma afinação dos mecanismos jurídicos, em resposta à crescente complexidade e
exigência da vida negocial, não se olvidando, em correspondência, o papel dos acordos
parassociais enquanto instrumentos de governança e inovação no seu confronto com os
estatutos.
Naturalmente, o estudo que se propôs empreender não esgota, certamente, todas
as questões que poderiam e podem vir a ser suscitadas, reclamando a temática um
contínuo aprofundamento dos dados que se almejaram lançar. Porém, se com a presente
reflexão tivermos contribuído para a sensibilização quanto problema em apreço, e
lançado alguns argumentos para o debate, sob o ponto de vista científico, então, temos o
nosso objectivo por alcançado.
REFERÊNCIAS
CÂMARA, P. (1996). Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários. Dissert. de
Mestrado. Lisboa: FDUL.
LEAL, A. Filipa. (2009). “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”,
RDS, ano I, n.º 1, pp. 135-183.
SANTOS, M. Leite. (1996). Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades
anónimas. Lisboa: Cosmos.
TRIGO, M.ª Graça (2008). “Acordos parassociais: síntese das questões jurídicas mais
relevantes. In: Alexandre Soveral Martins et al., Problemas do Direito das
Sociedades, n.º 1, 2.ª reimp. Coimbra: Almedina, pp. 169-184.
TRIGO, M.ª Graça (2011). Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto,
2.ª ed. Lisboa: Universidade Católica Editora.
VENTURA, Raúl. (2003). “Acordos de voto; algumas questões depois do Código das
Sociedades Comerciais (CSC, art. 17.º). In: Comentário ao Código das Sociedades
Comerciais: Estudos vários sobre sociedades anónimas, reimp. da ed. de 1992.
Coimbra: Almedina, pp. 9-101.
168
DESIGUALDADE
AMBIENTAL:
MUDANÇAS
CLIMÁTICAS E FLUXO MIGRATÓRIO
Fabrício Veiga Costa1
Deilton Ribeiro Brasil2
1) Introdução
A vulnerabilidade e o risco são categorias-chave para se identificar como as
alterações ambientais, sejam elas locais ou globais, têm interferido na relação do homem
com o meio em que vive. A problemática acrescenta-se ao amplo conjunto de desafios
que tornam o tema desigualdade ambiental carecedor de reflexões, mas principalmente
de uma concretude na proteção dos direitos humanos. O artigo será dividido em dois
momentos. Primeiramente, será abordada a proteção jurídica dos migrantes ambientais
em âmbito regional, o que se torna de fundamental para compreensão da problemática
estabelecida, ressaltando a ausência de tratado especifico em âmbito global, fato que tem
gerado debates quanto ao reconhecimento e proteção jurídica. Adentra-se na segunda
parte do artigo que será analisado o tema desigualdade ambiental, abordando os
principais desafios, propostas já existentes e possíveis soluções. Ao final, destaca-se
como proposta a urgência no tratamento especifico da matéria no sentido de buscar o
reconhecimento e proteção jurídica dos migrantes ambientais em face da aplicação do
princípio internacional pro homine se mostra de fundamental importância. A pesquisa
justifica-se pela atualidade do tema em relevância social diante dos desafios no cenário
regional e internacional.
2) Contextualizando o conceito
vulnerabilidade ambiental
de
desigualdade
e
O conceito de desigualdade ambiental permite apontar o fato de que, com a sua
racionalidade específica, o capitalismo liberalizado faz com que os danos decorrentes de
práticas poluentes recaiam predominantemente sobre grupos sociais vulneráveis,
configurando uma distribuição desigual dos benefícios e malefícios do desenvolvimento
econômico. Basicamente, os benefícios destinam-se às grandes interesses econômicos e
os danos a grupos sociais despossuídos (ACSELRAD; ALMEIDA; BERMANN et al.,
2012, p. 165).
1 Pós-doutor em Educação pela UFMG. Doutorado e Mestrado em Direito Processual pela
PUCMINAS. Professor da pós-graduação stricto sensu em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna. E-mail: fvcufu@uol.com.br
2 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela
UGF/RJ. Professor da pós-graduação stricto sensu em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade
de Itaúna e das Faculdades Santo Agostinho. E-mail: deilton.ribeiro@terra.com.br
Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil
Esta noção surgiu nos Estados Unidos (EUA), na década de 1980, quando se
observou, empiricamente, através da elaboração de um mapa e de uma análise de
indicadores sociodemográficos espacializados, o caráter discriminatório da destinação
territorial de lixo químico. Verificou-se então que os locais de destinação dos resíduos,
mesmo aqueles aprovados legalmente por seguidas gestões no governo dos EUA,
coincidiam com territórios ocupados por grupos étnicos de baixa renda e tornados
vulneráveis – negros, povos indígenas e latinos. A noção de desigualdade ambiental, ao
contrário, procura evidenciar que o “planeta” não é compartilhado de forma igual entre
todos e que para se construir um mundo efetivamente “comum” seria preciso que as
iniquidades fossem devidamente enfrentadas (ACSELRAD; ALMEIDA; BERMANN et
al., 2012, p. 166).
Dessa forma, desigualdade ambiental pode ser definida como a exposição
diferenciada de indivíduos e grupos sociais a amenidades e riscos ambientais. Ou seja,
os indivíduos não são iguais do ponto de vista do acesso a bens e amenidades ambientais
(tais como ar puro, áreas verdes e água limpa), assim como em relação à sua exposição a
riscos ambientais (enchentes, deslizamentos e poluição). Dessa forma, fatores como
localização do domicílio, qualidade da moradia e disponibilidade de meios de transporte
podem limitar o acesso a bens ambientais, bem como aumentar a exposição a riscos
ambientais (TORRES, 1997).
Assim, as pessoas mais vulneráveis aos efeitos imediatos dos episódios climáticos
extremos provocados pelo aquecimento global serão, na grande maioria das vezes,
aquelas mais pobres, as quais já possuem uma condição de vida precária em termos de
bem-estar, desprovidas do acesso aos seus direitos sociais básicos (moradia adequada e
segura, saúde básica, saneamento básico e água potável, educação, alimentação
adequada, etc.). A sujeição de tais indivíduos e grupos sociais aos efeitos negativos das
mudanças climáticas irá agravar ainda mais a vulnerabilidade das suas condições
existenciais, submetendo-as a um quadro de ainda maior indignidade
(FENSTERSEIFER, 2011, p. 324).
O enfrentamento do aquecimento global, de tal sorte, também deve englobar a
garantia de acesso aos direitos sociais básicos das pessoas carentes, rumando para o
horizonte normativo imposto pelo princípio constitucional do desenvolvimento
sustentável (FENSTERSEIFER, 2011, p. 324).
A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações
Unidas, em seu relatório Nosso Futuro Comum (Our common future), no ano de 1987,
cunhou o conceito de desenvolvimento sustentável, que seria aquele que atende às
necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras
atenderem a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: o conceito de
‘necessidades’, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem
receber a máxima prioridade; a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da
organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades
presentes e futuras.
170
Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório
Outro aspecto importante relacionado às mudanças climáticas e à questão da
justiça ambiental diz respeito ao surgimento dos refugiados ambientais. Os episódios
climáticos relatados acima, muitas vezes, em decorrência da sua intensidade e dos danos
pessoais e materiais gerados, alteram o cotidiano de vida de inúmeras pessoas e grupos
sociais, ocasionando, muitas vezes, o seu deslocamento para outras regiões, de modo a
“fugirem” de tais desastres ecológicos e resguardarem as suas vidas (FENSTERSEIFER,
2011, p. 329).
A Constituição Federal de 1988 traz de forma expressa nos incisos do § 1º do
artigo 225 uma série de medidas protetivas do ambiente a serem levadas a efeito pelo
Estado, consubstanciando projeções de um dever geral de proteção do Estado31 para
com direito fundamental ao ambiente inscrito no caput do artigo 225. Entre as medidas
de tutela ambiental atribuídas ao Estado, encontram-se: I) preservar e restaurar os
processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III) definir, em
todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente por meio
de lei vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que
justifiquem sua proteção; IV) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio
de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V) controlar a produção, a
comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substanciais que comportem risco
para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI) promover a educação ambiental
em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio
ambiente; e VII) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam
os animais à crueldade.
Por fim, deve-se destacar que o rol dos deveres de proteção ambiental do Estado
traçado pelo §1º do artigo 225 é apenas exemplificativo, estando aberto a outros deveres
necessários a uma tutela abrangente e integral do ambiente, especialmente em razão do
surgimento permanente de novos riscos e ameaças à Natureza provocadas pelo avanço
da técnica, como é o caso, por exemplo, do aquecimento global. (FENSTERSEIFER, 2011,
p. 332).
3) O aumento do fluxo migratório de refugiados ambientais
em decorrência de mudanças climáticas
A migração e a proteção de refugiados são temas distintos, mas complementares.
Contudo, não raro, acabam confundidos nos debates sobre migração irregular e,
particularmente, na aplicação das medidas de controle para combatê-la. Muitas vezes,
isso cria distorções e mal-entendidos tanto na opinião pública quanto nos políticos.
171
Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil
Assim, em diversas oportunidades, as políticas de refúgio estão sendo substituídas por
políticas migratórias, e as medidas de controle migratório são aplicadas
indiscriminadamente aos solicitantes de refúgio e refugiados, considerados “migrantes”
até que provem o contrário (MURILLO, 2008, p. 27).
Migração pode ser definida como movimento de pessoas que se estabelecem
temporária ou permanentemente, sendo internas quando dentro do próprio país ou
internacionais quando de um país para outro. As causas para circulação de pessoas são
variadas, podendo decorrer de desastres naturais, falta de alternativas econômicas ou
condições de sobrevivência. Nestes casos, migrar para outro país se torna uma
alternativa para recomeçar a vida, através da busca de oportunidades de trabalho,
satisfação de necessidades básicas, como saúde, educação e segurança alimentar
(ACNUR; IMDH; CDHM, 2007).
Os refugiados ambientais sempre existiram na história da humanidade, pois as
migrações devido a motivos ambientais sempre foram uma forma de adaptação do
homem ao meio em que vive. No entanto, atualmente o tema tem ganhado grandes
proporções em virtude do aumento e intensidade de desastres ambientais em diferentes
partes do mundo, o que tem despertado na sociedade internacional a preocupação com
a proteção efetiva diante da atual crise migratória relacionadas às causas ambientais.
O termo “refugiado ambiental” foi cunhada pela primeira vez em 1970 por Lester
Brown (ACNUR), mas foi em 1985 que a expressão ficou altamente conhecida por meio
da publicação de um paper do professor Essam El-Hinnawi, do Egyptian National
Research Centre, no Cairo. Neste mesmo ano, o Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente (PNUMA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados
(ACNUR) definiram os “refugiados ambientais como pessoas que foram obrigadas a
abandonar temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devido ao
visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas), perturbando a sua
existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas
entra em perigo.”
Refugiados ambientais (também conhecidos como refugiados climáticos,
ecorefugiados e ecomigrantes) são pessoas ambientalmente forçados, interna ou
internacionalmente, temporária ou permanentemente, por causas de início rápido ou
lentamente. Portanto, os eventos que causam esse fenômeno podem ocorrer
rapidamente e de forma inesperado, como maremotos, terremotos, tsunamis, vulcões,
tufões, entre outros, ou lentamente como a desertificação, secas e processo erosivos do
solo. Podem ocorrer por causas naturais, devido a ciclos ecológicos ou ciclos geofísicos
da Terra, ou ainda antrópicos, antropogênicos, ou seja de causas em que há interferência
humana no meio ambiente é determinante que ocasione a migração forçada. (CLARO,
2015)
É um grande desafio quantificar exatamente o número de refugiados ambientais
atualmente no mundo, tendo em vista a dificuldade no que diz respeito a nomenclatura
e questões conceituais, pois conforme salientado muitos deles são considerados
172
Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório
migrantes econômicos, principalmente pela dificuldade em estabelecer o nexo de
causalidade entre a situação ambiental e a migração.
Os números variam entre 200 milhões a 1 bilhão de refugiados pelo mundo até o
ano de 2016 e esse número tende a aumentar consideravelmente nos próximos anos em
virtude dos desastres ambientais que tem ocorrido com bastante frequência e
intensidade (KING, 2010). Algumas estimativas demonstram que no ano de 2010 já
existiam 250 milhões de pessoas em situação de refúgio relacionados com causas
ambientais (CLARO, 2015).
Com o aumento e intensidade dos desastres naturais, o fenômeno da migração
por causas ambientais tem aumentado consideravelmente, e esse fato leva a conclusão
de que é preciso tecer novas discussões sobre o tema, no sentido de estabelecer medidas
mais eficazes de proteção. Portanto, como há um grande número de refugiados
ambientais no mundo e tem-se a certeza de que esse número será maior ainda daqui
algum tempo, é preciso que a sociedade internacional crie mecanismos capazes de
atender a essa nova demanda, no sentido de estabelecer uma proteção efetiva a esse
conjunto de pessoas.
4) O mínimo existencial vinculado à garantia da dignidade
da pessoa humana no âmbito de uma justiça ambiental
A vulnerabilidade dos grupos menos favorecidos no tocante aos impactos das
mudanças climáticas também está presente no debate sobre Justiça Ambiental. A
percepção sobre a desigualdade de impactos no que se refere aos impactos das mudanças
climáticas, que se fortalece em amplos estudos sobre alterações no clima (IPCC, 2001,
2007b) é catalisadora do movimento internacional por Justiça Climática.
Por Justiça Ambiental entenda-se o conjunto de princípios que asseguram que
nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma
parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações
econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como resultantes
da ausência ou omissão de tais políticas. Dito de outra forma trata-se da “espacialização
da justiça distributiva, uma vez que diz respeito à distribuição do meio ambiente para os
seres humanos” (LYNCH, 2001).
Entende-se por Injustiça Ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais
destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de
trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações
marginalizadas e mais vulneráveis, que vivem ou circulam em áreas de risco ou de
degradação ambiental (HERCULANO, 2002, p. 2).
A aplicação do instituto do mínimo existencial vincula à garantia da dignidade da
pessoa humana. O mínimo existencial representa o conjunto de condições elementares
173
Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil
para a sobrevivência digna e o desenvolvimento da personalidade. A concepção é de
garantir, ainda que em termos essenciais e não expansivos, mais que uma mera
sobrevivência (HARTAMANN, 2010, p. 180).
E, para efetivar a dignidade da pessoa humana, deve-se garantir um mínimo
existencial, um núcleo material e social que não permita que os indivíduos se encontrem
em situação indigna. Pois, a situação social e econômica de cada cidadão é diferente, e
cabe ao Estado igualar as condições necessárias para a manutenção da dignidade dos
seus. Neste sentido, seria de que certas liberdades e direitos básicos devem estar
considerados no princípio da equidade, que só a partir da garantia do patamar mínimo
de direitos, seria possível considerar a diferença entre os indivíduos (RAWLS, 2002, p.
64).
Dessa forma, a garantia do mínimo existencial representa um patamar mínimo
para a existência humana e condição mínima para que um indivíduo possa exercer a sua
liberdade, pois aquém de certo nível de bem-estar, como a falta de acesso a bens
materiais e sociais, as pessoas não tem condições de assumirem parte na sociedade como
cidadãos iguais (CARVALHO; ADOLFO, 2012, p. 12).
Assim, pode-se inferir que o mínimo existencial ecológico é aquele capaz de
garantir condições mínimas de subsistência, sem riscos para a vida e saúde da população,
ou de danos irreparáveis ao meio ambiente. Assim, compreende-se como condições
mínimas de subsistência os direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição
Federal de 1988, junto ao seu rol de direitos fundamentais (STEIGLEDER, 2002).
Esse direito à qualidade ambiental enquadra-se não apenas entre os direitos
humanos fundamentais, mas também entre os direitos humanos personalíssimos,
compreendidos como aquelas prerrogativas essenciais à realização plena, da capacidade
e da potencialidade da pessoa, na busca da felicidade e manutenção da paz social. No
direito concreto, o direito positivo e o direito natural fundem-se exemplarmente
(MILARÉ, 2011, p. 136).
As dimensões da dignidade humana são atualizadas em cada momento, podendo
culminar em uma expansão do conteúdo dos direitos ou mesmo na criação de novos
direitos fundamentais (HABERMAS, 2012, p. 14). Dessa forma, a mudança de
perspectiva global no tratamento aos migrantes passa, necessariamente, pela mudança
legislativa interna de países, como o Brasil, que consigam entender a problemática das
migrações como uma realidade indiscutível e desafiadora, mas que, além das questões
meramente controladoras, policiais e estatais, deve ser visto como uma questão social,
sob o paradigma do respeito aos direitos humanos em sua totalidade. O fenômeno das
migrações internacionais aponta para a necessidade de repensar-se o mundo não com
base na competitividade econômica e o fechamento das fronteiras, mas, sim, na
promoção da cidadania universal, da solidariedade e fraternidade e nas ações
humanitárias (MILESI; MARINUCCI, 2005).
Nessa perspectiva, a ideia de cidadania pressupõe três elementos básicos em sua
174
Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório
constituição, a saber, o elemento civil que inclui as liberdades individuais, o direito de ir
e vir, a liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir
contratos válidos e o direito à justiça. O segundo elemento é o político, o qual supõe o
direito de participar no exercício do poder político - direito de votar e ser votado
(Instituições correspondentes ao parlamento e conselhos locais). Já o terceiro elemento,
diz respeito à vida social dos cidadãos e isto significa que todos têm direito a um mínimo
bem-estar social e econômico produzido por todos e que ninguém pode ser excluído da
herança social de uma determinada sociedade. E isto se dá através do sistema
educacional e dos serviços sociais (SILVA, 2017, p. 87), (MARSHALL, 1967, p. 63-64).
Com o aumento da mobilidade humana em suas diferentes facetas, migrantes
laborais, refugiados, retornados, desplazados, migração forçada, migração
indocumentada, entre outras, cresce o debate em torno dos direitos dos Migrantes,
mesmo em situações de indocumentação e de vulnerabilidade social, pois o direito à vida
deve prevalecer sobre as normativas estabelecidas pelos Estados nacionais, em geral
restritivas e discriminatórias. É nesse contexto de violações de direitos que a ideia de
uma “cidadania transnacional” começa a ser discutida, seja no âmbito dos movimentos
sociais ou das organizações internacionais (SILVA, 2017, p. 88).
a) Dimensões críticas do princípio pro homine
Diante de um arcabouço normativo ou até mesmo em virtude de sua ausência, os
princípios internacionais exercem um papel importante na interpretação de normas e
condutas pela sociedade internacional. Vários instrumentos internacionais, como a
própria Carta da ONU, estabelecem claramente a importância dos princípios para o
direito internacional. Apesar de algumas críticas no sentido de que os princípios
possuem um caráter aberto, impreciso e abrangente, é indiscutível que muitos princípios
têm-se sobressaído e exercendo, o seu verdadeiro papel de base na interpretação da
disciplina jurídica do direito internacional. (CLARO, 2015).
O que se pretende demonstrar nesse artigo é a necessidade de se realizar uma
releitura dos desafios que permeiam o tema refugiados ambientais, tendo como
paradigma o princípio internacional pro homine (ou in dubio pro libertate), no sentido
de estabelecer entre conceitos, nomenclaturas e instrumentos normativos, um diálogo
(para falar como Erick Jayme) com o objetivo principal de aplicar a melhor
norma/proteção ao ser humano solicitante de refúgio.
A aplicação do princípio pro homine reforça a ideia de que a solução
contemporânea para os desafios que permeiam a proteção dos direitos humanos deve ser
plural, onde várias fontes convivem, sem que uma exclua a outra, trata-se, portanto de
aplicar a norma que mais proteja os direitos das pessoas humanas. Em resumo, o
principio internacional pro homine, também conhecido como primazia da norma mais
favorável (CANÇADO TRINDADE, 2003), é um princípio de interpretação obrigatória
para todos os tratados de direitos humanos, que deve estar no centro do quadro
175
Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil
estrutural do direito internacional dos direitos humanos, e no caso em análise, aplicado
na proteção dos refugiados ambientais.
Cabe destacar que tal regra interpretativa se encontra presente em inúmeros
tratados de direitos humanos, tanto no sistema global como nos sistemas regionais. No
plano global, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos no art. 5º, §2§. Nos contextos
regionais a Convenção Europeia de Direitos humanos em seu art. 60, também, preceitua
sobre o princípio pro homine. A Convenção Americana sobre Direitos humanos
estabelece em seu artigo 29 no mesmo sentido. Esse aparato jurídico em âmbito global e
regional demonstra a importância de aplicação do princípio aqui proposto como uma
possível solução diante da problemática estabelecida no presente estudo.
Nesse sentido, é preciso realizar uma releitura dos conceitos estabelecidos nos
instrumentos, seja global, regional e interno, para que eles dialoguem e possa ser retirada
uma conclusão no sentido de aplicar o que melhor proteja a pessoa humana. Assim,
levando-se em conta o quadro global, regional e interno de proteção é preciso
compreender, diante dos desafios atuais, que se faz necessário uma releitura no sentido
de ampliar o conceito de refugiados, considerado refugiados as “pessoas que se
encontram em situação de refúgio, deixando seu país de origem em razão de perseguições
e violências iminentes por motivos religiosos, étnicos, de raça, crença, ideologia ou, até
mesmo, por desastres naturais”(MAZZUOLI, 2016).
A Convenção de 1951 estabeleceu em seu artigo 1º o conceito de refugiados e
preceitua a seguinte frase: “para fins desta Convenção são refugiados”. Nota-se que a
própria Convenção é muita clara quando estabelece que “para os fins desta convenção”,
o que não significa que o termo refugiados não possa ser utilizado em outro âmbito. Por
isso, muitos adotam o termo refugiados não-convencionais, por não serem contemplados
no rol taxativo da Convenção, mas por ser, através de outros motivos considerados
refugiados.
Além disso, a própria etimologia da palavra refugiado significa buscar refúgio,
abrigo, ou seja proteção. O que demonstra que a expressão não é exclusiva do referido
documento. É preciso que esse debate seja superado e que a sociedade internacional
busque cada vez mais estabelecer mecanismos de proteção a essas pessoas que migram
em razão de fatores ambientais, independentemente da nomenclatura utilizada.
O fato é que os refugiados ambientais não existem no sistema internacional de
proteção jurídica como categoria migratória. Existem alguns avanços no contexto
regional, como a Convenção de Campala dos deslocados internos do Continente Africano
de 2009, que estabelece disposição específica sobre essas pessoas que se deslocam por
motivos ambientais. Portanto diante desse tratado, os refugiados ambientais são
reconhecidos e protegidos, ou seja, diante dessa convenção os refugiados ambientais
deixam de ser refugiados não convencionais e passam a ser convencionais perante a
convenção.
176
Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório
Diante da ausência de um tratamento específico sobre a matéria, o presente
estudo demonstrou que as reflexões sobre os desafios que permeiam o tema devem ser
realizadas à luz de do princípio internacional pro homine, com o objetivo de realizar uma
interpretação sempre no sentido de proteção da parte mais vulnerável, neste caso, os
refugiados ambientais.
Tendo em vista a proposta deste artigo, fazendo uma releitura do tema à luz do
princípio invocado neste estudo, ou seja, de acordo com a essência do princípio pro
homine, é preciso aplicar o que for mais favorável, e como os refugiados tem uma
proteção mais efetiva se comparados à proteção de outros migrantes, deve-se aplicar às
pessoas que migram em virtude de desastres naturais a proteção decorrente do Direito
Internacional dos Refugiados. Assim, aqueles que são obrigados a se deslocarem por
motivos ambientais podem sim ser considerados refugiados.
Nesse sentido, é preciso que haja um diálogo entre o sistema internacional,
sistemas regionais e interno para se alcançar uma efetiva proteção dos refugiados
ambientais. Assim o Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional
dos Refugiados, Direito das Mudanças Climáticas, Direito dos Desastres Ambientais,
Direito Internacional do Meio Ambiente, entre outros âmbitos, devem proteger os
refugiados ambientais em virtude da obrigação internacional de proteção a pessoa
humana, como sujeito de direitos humanos.
Portanto, conjugando essas normas, o que Erik Jayme chamou na Alemanha de
diálogo das fontes, escutando esse diálogo deve-se aplicar a melhor norma (MAZZUOLI,
2016). Esse procedimento é resultado da observância do princípio internacional pro
homine em favor dos refugiados ambientais, parte mais vulnerável, o que demanda, só
por isso, uma interpretação mais favorável aos seus interesses, ou seja, ampliação do
conceito de refugiados e aplicação das normas de proteção do Direito Internacional dos
Refugiados.
5) Considerações finais
A busca pela maior participação possível dos Estados, por meio da ratificação dos
documentos internacionais e a elaboração de leis nacionais tem sido, ao longo de todo
esse período até os dias atuais, indispensáveis para se alcançar a devida proteção, no
entanto, o que se percebe na prática, é que há inúmeros desafios para que esses
mecanismos sejam efetivamente implementados em âmbito interno. O tema refugiados
ambientais não se escapa dessa regra, pois são pouquíssimos os países que estabelecem
sobre essa proteção específica, mas de fato são bons exemplos já que não há nem mesmo
uma regulamentação específica em âmbito global.
Importante registrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
(ainda que seja considerada um instrumento soft law) garante a todo ser humano o
direito de livre circulação entre os Estados, o direito a estabelecer sua residência dentro
177
Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil
das fronteiras de cada Estado e o direito a sair e retornar do Estado natal, ou de onde se
encontra, quando lhe convenha (artigo 13, incisos I e II), também é concebido como
direito humano.
Os Estados devem se adequar às exigências internacionais e, em se tratando da
imigração, adaptar suas regras. À luz dos últimos acontecimentos no cenário
internacional, constata-se uma evolução do direito internacional moderno, cujas normas
tendem a garantir, cada vez mais, a mobilidade das pessoas, consubstanciando respostas
às problemáticas relativas à proteção dos direitos de estrangeiros. Em todas essas
situações, os Estados, inevitavelmente, devem cumprir os compromissos internacionais
assumidos convencionalmente ou de forma não-convencional, respeitando o jus cogens
(conjunto de normas jurídicas imperiosas e inderrogáveis, as quais vinculam a todos os
sujeitos do direito internacional independentemente de sua vontade), procedendo às
reformulações legislativas internas (BICHARA, 2015, p. 234).
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181
A REVERSÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO
FISCAL
CONTRA
GERENTES
E
ADMINISTRADORES
Patrícia Anjos Azevedo1
1) Introdução. O processo de execução fiscal
Na falta de pagamento voluntário (ou seja, dentro do prazo estipulado por lei), o
credor (Estado e outros entes públicos ou que exerçam funções públicas) tem o direito
de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação tributária e requerer, para tal, a
execução do património do devedor.
Destarte, nos termos dos art.ºs 148.º e seguintes do Código do Procedimento e
Processo Tributário português (adiante abreviadamente designado por CPPT), é
instaurado um processo de execução fiscal com vista ao pagamento coercivo das dívidas
tributárias, designadamente através da alienação de bens ou direitos do devedor, por
forma a obter – desse modo – o montante em dívida2.
O processo de execução fiscal é um meio processual que tem por objetivo realizar
coercivamente a cobrança de créditos tributários de qualquer natureza, não tendo por
fim cobrar coercivamente impostos ilegalmente liquidados, mas sim impostos que sejam
legalmente devidos.
Este processo visa, por isso, a cobrança de dívidas, que têm de ser certas, líquidas
e exigíveis, pelo que não se discutem aqui questões de legalidade.
O processo de execução fiscal é instaurado com base num título executivo dotado
de coatividade e definitividade, destinado a cobrar tributos, coimas e outras dívidas (cfr.
art.º 162.º do CPPT sobre as espécies de títulos executivos).
No processo de execução fiscal concorrem uma fase administrativa (ou préjurisdicional) e uma fase jurisdicional, das quais resultam atos de natureza
administrativa (praticados pelos órgãos da AT) e atos de natureza jurisdicional
(praticados pelo Tribunal).
1 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Auxiliar
Convidada no ISMAI. Professora Adjunta Convidada no IPMAIA. Membro da Comissão Científica do N2i –
Núcleo de Investigação do IPMAIA. Investigadora do I2J (Instituto de Investigação Jurídica) da Faculdade
de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Membro efetivo do CEOS.PP (Centro de
Estudos Organizacionais e Sociais do Politécnico do Porto). Advogada. Juiz-Árbitro CAAD (Direito
Administrativo). Texto apresentado no II CIDIGIN, na qualidade de keynote speaker.
2 Para maiores desenvolvimentos sobre o processo de execução fiscal, vejam-se os seguintes
contributos: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário,
Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição,
Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014;
NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017; ROCHA, Joaquim Freitas,
Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008; SOUSA, Jorge Lopes de,
Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011.
Patrícia Anjos Azevedo
São exemplos de atos praticados pelo Tribunal: (i) a decisão da oposição à
execução (art.ºs 203.° e ss do CPPT); (ii) os incidentes (art.ºs 127.° e ss do CPPT) ou (iii)
os embargos de terceiro (cfr. art.º 237.° do CPPT).
Os atos praticados pelos órgãos da administração tributária consistem, por
exemplo: (i) na instauração da execução (art.º 150.° do CPPT); (ii) na citação do
executado (art.º 188.° do CPPT); (iii) na autorização para pagamento em prestações
(art.º 197.° do CPPT); ou na reversão da execução (cfr. art.º 23.º da Lei Geral Tributária
– LGT).
2) Aproximação
e
contextualização
responsabilidade tributária
do
tema
da
A responsabilidade tributária é uma figura patológica da relação jurídica
tributária, de acordo com a qual o responsável tributário é chamado ao pagamento do
imposto quando o devedor originário não paga (por falta ou insuficiência de património)
ou quando, pelo seu comportamento, tenha comprometido a respetiva cobrança.
Trata-se de uma exceção/derrogação ao regime da responsabilidade dos gerentes
(nas sociedades por quotas) e administradores (nas sociedades anónimas) à luz do
Direito Comercial, em que a respetiva responsabilidade (por exemplo, perante
fornecedores e outros credores da sociedade, que não o fisco ou a segurança social) se
afere tendo por limitação o valor da respetiva participação social (quota – nas sociedades
por quotas; ou ação – nas sociedades anónimas).
A responsabilidade tributária é, numa primeira linha, imputável ao sujeito
passivo originário e abrange a totalidade da dívida tributária, os juros e demais encargos
legais (art.º 22.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária – LGT).
Contudo, para além do sujeito passivo originário, a responsabilidade tributária
pode envolver outras pessoas, configurando uma relação de subsidiariedade em relação
ao devedor principal e - eventualmente - de solidariedade entre os diversos responsáveis
subsidiários, quando existam (art.º 22.º, n.º 2 da LGT).
Destaque-se ainda, neste contexto, que a responsabilidade tributária por dívidas
de outrem é, a não ser que a lei determine em sentido contrário (como no caso do art.º
27.º da LGT), apenas subsidiária (cfr. art.º 22.º, n.º 4 da LGT).
Além disso, nos termos do n.º 5 do art.º 22.º da LGT, as pessoas solidária ou
subsidiariamente responsáveis poderão reclamar (graciosamente) ou impugnar
(judicialmente) a dívida cuja responsabilidade lhes seja atribuída nos mesmos termos do
devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos
essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais. Nisto
consiste a previsão legal explícita da existência das garantias procedimentais e
processuais dos responsáveis subsidiários.
184
A reversão do processo de execução fiscal contra gerentes...
3) A responsabilidade solidária
A responsabilidade solidária opera "quando os pressupostos do facto tributário
se verifiquem em relação a mais de uma pessoa", sendo neste caso todas as pessoas em
causa solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária (art.º 21.º, n.º
1 da LGT).
São também responsáveis solidários os sócios ou membros de sociedades de
responsabilidade ilimitada em liquidação (art.º 21.º, n.º 2 da LGT); bem como os
gestores de bens ou de direitos de não residentes em território português sem
estabelecimento estável neste território (cfr. art.º 27.º, n.º 1 da LGT).
Tal significa que a qualquer um deles pode ser exigido o pagamento da totalidade
da dívida, sem prejuízo do direito de regresso, nos termos do art.º 524.º do Código Civil
português, que determina que "o devedor que satisfizer o direito do credor além da
parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na
parte que a estes compete".
4) A responsabilidade subsidiária. Destaque para a situação
dos gerentes e administradores
A responsabilidade subsidiária é efetivada através de reversão do processo de
execução fiscal (art.º 23.º, n.º 1 da LGT), no caso de "fundada insuficiência dos bens
penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do
benefício da excussão" (art.º 23.º, n.º 2 da LGT)3.
Caso não seja possível determinar a suficiência de bens penhorados, por não estar
definido o montante a pagar pelo responsável subsidiário, o processo de execução fiscal
fica suspenso desde o termo do prazo de oposição até à total excussão do património do
executado (cfr. n.º 3 do art.º 23.º da LGT).
Os casos de responsabilidade tributária mais significativos encontram-se
elencados e regulados nos art.ºs 24.º a 28.º da LGT, a propósito, respetivamente, da
responsabilidade dos administradores, diretores ou gerentes e outras pessoas que
exerçam funções de administração nas pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados
(responsabilidade subsidiária face a estas e solidária face aos demais administradores ou
gerentes); da responsabilidade do titular do Estabelecimento Individual de
Responsabilidade Limitada (responsabilidade limitada aos bens afetos a este); da
Para maiores desenvolvimentos, cfr.: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito
do Procedimento Tributário, Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento
administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo
Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017;
ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição,
2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado,
Vol. I, Áreas Editora, 2011.
3
185
Patrícia Anjos Azevedo
responsabilidade dos liquidatários das sociedades; da responsabilidade dos gestores de
bens ou direitos de não residentes; e da responsabilidade em caso de substituição
tributária.
Relativamente à responsabilidade dos administradores, diretores ou gerentes e
outras pessoas que exerçam funções de administração nas pessoas coletivas e entes
fiscalmente equiparados, estas pessoas são subsidiariamente responsáveis em relação às
sociedades onde exerçam as suas funções e solidariamente entre si (cfr. art.º 24.º da
LGT):
(i) pelas dívidas tributárias verificadas no período do exercício das suas funções
ou cujo prazo de pagamento ou entrega tenha terminado depois do período de exercício
de funções, desde que, em qualquer uma das situações, tenha sido por culpa sua que o
património da sociedade se tornou insuficiente para satisfazer a dívida - alínea a) do n.º
1 do art.º 24.º da LGT. Aqui, impõe-se à AT provar a culpabilidade dos administradores
ou gerentes em relação às dívidas tributárias verificadas no período de exercício dos
respetivos cargos ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha findado após o
referido prazo;
(ii) pelas dívidas cujo prazo legal de pagamento tenha terminado no exercício das
suas funções e desde que não seja feita a prova de que o não pagamento não lhes foi
imputável - cfr. alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT. Neste caso, o ónus da prova recai
sobre os administradores ou gerentes quando o prazo de pagamento ou entrega tenha
terminado no período de exercício do seu cargo. Neste caso, a culpa dos administradores
ou gerentes presume-se pelo facto de a lei considerar que estes não podiam desconhecer
a existência da dívida.
A responsabilidade aqui em causa é, em certa medida, alargada (pelos n.ºs 2 e 3
do mesmo art.º 24.º da LGT) aos TOC (Técnicos Oficiais de Contas, hoje Contabilistas
Certificados), ROC (Revisores Oficiais de Contas) e membros dos órgãos de fiscalização
das pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados.
No caso dos membros dos órgãos de fiscalização, a responsabilidade verifica-se
desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários resultou do
incumprimento das respetivas funções de fiscalização (art.º 24.º, n.º 2 da LGT).
Quanto aos Contabilistas Certificados, a responsabilidade verifica-se sempre que
se demonstre a violação dos seus deveres de regularização técnica nas áreas contabilística
e fiscal (art.º 24.º, n.º 3 da LGT).
5) Outros casos de responsabilidade tributária
Existem ainda outros casos de responsabilidade, conforme já enunciamos.
No que concerne ao Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada
(EIRL), apenas respondem pelas dívidas fiscais os bens a este afetos (art.º 25.º, n.º 1 da
186
A reversão do processo de execução fiscal contra gerentes...
LGT). Verificando-se a insolvência do EIRL por causa relacionada com a atividade do
respetivo titular, responderão todos os bens do mesmo, salvo se este provar que durante
a gestão observou o princípio da separação patrimonial (n.º 2 do mesmo art.º 25.º).
Serve esta disposição para limitar a responsabilidade do comerciante em nome
individual pelas dívidas contraídas na gestão da sua empresa.
No que toca à responsabilidade dos liquidatários das sociedades, prevê o art.º
26.º da LGT que devem os liquidatários começar por satisfazer as dívidas fiscais, sob
pena de ficarem pessoal e solidariamente responsáveis pelas importâncias respetivas.
Esta norma encontra-se em conformidade com os artigos 151.º e 152.º do Código das
Sociedades Comerciais, nos termos dos quais compete ao liquidatário, nomeadamente:
cumprir as obrigações da sociedade; cobrar os créditos da sociedade; reduzir a dinheiro
o seu património residual; propor a partilha dos haveres sociais; e ultimar os negócios
pendentes da sociedade. Devem ainda os liquidatários satisfazer os débitos fiscais em
conformidade com a ordem prescrita na sentença de verificação e graduação de créditos
- n.ºs 1 e 3 do art.º 26.º da LGT. Caso a prioridade atribuída aos créditos fiscais não seja
respeitada, opera-se a responsabilidade dos liquidatários das sociedades, sob pena de
ficarem pessoal e solidariamente responsáveis pelas importâncias respetivas (n.º 1
do art.º 26.º da LGT).
Quanto à responsabilidade dos gestores de bens ou direitos de não residentes sem
estabelecimento estável em território português, vem o art.º 27.º da LGT prever que
estes gestores são solidariamente responsáveis em relação a estes e entre si por todas as
contribuições e impostos do não residente relativos ao exercício do seu cargo (n.º 1
do art.º 27.º da LGT).
Nas situações de substituição tributária, determina o art.º 28.º n.º 1 da LGT que
o substituto é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do
Estado, ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu
pagamento. Embora pareça existir aqui uma presunção legal de culpa, a culpabilidade
do substituto deve ser aqui apurada relativamente à prática de um eventual crime ou
contraordenação fiscal nos termos do RGIT. Quando a retenção tiver a natureza de
pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade
originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária - art.º
28.º n.º 2 da LGT.
Relativamente aos direitos dos responsáveis subsidiários, podemos destacar os
seguintes: isenção de custas e de juros de mora, nos termos do art.º 23.º, n.º 5 da LGT;
direito a reclamar ou impugnar em tribunal a dívida cuja responsabilidade lhes seja
atribuída nos mesmos termos do devedor principal (art.º 22.º, n.º 5 da LGT); direito a
ser citado e revertido, nos termos do art.º 23.º, n.º 1 da LGT; direito de audição prévia,
conforme previsto no art.º 60.º da LGT; e finalmente, direito à apresentação de oposição
à execução fiscal – art.ºs 203.º e ss do CPPT.
187
Patrícia Anjos Azevedo
6) A responsabilidade civil por multas e coimas no âmbito
do RGIT
Agora, aluda-se à questão da responsabilidade civil pelas multas e coimas,
prevista no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).
Neste contexto, os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam
funções de administração em pessoas coletivas, ainda que irregularmente constituídas,
são subsidiariamente responsáveis pelas multas ou coimas aplicadas a infrações por
factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando
tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou
insuficiente para o seu pagamento - art.º 8.º, n.º 1, alínea a) do RGIT.
Estas pessoas são ainda responsáveis pelas multas ou coimas devidas por factos
anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do
exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento - art.º 8.º, n.º 1, alínea
b) do RGIT.
A responsabilidade em causa é solidária se forem várias pessoas a praticar os atos
ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em
causa - n.º 2 do art.º 8.º do RGIT.
As pessoas referidas no n.º 1, bem como os contabilistas certificados, são ainda
subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta
ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício
de funções, quando não comuniquem, através do Portal das Finanças, até 30 dias após o
termo do prazo de entrega da declaração, à Autoridade Tributária e Aduaneira as razões
que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega
não lhes seja imputável a qualquer título - n.º 3 do art.º 8.º do RGIT.
As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas,
cometerem infrações fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas
ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para
os fazer observar a lei - n.º 4 do art.º 8.º do RGIT.
Finalmente, de notar que a própria lei reforça que, sendo várias as pessoas
responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade - cfr.
n.º 8 do art.º 8.º do RGIT.
7) Conclusões
A responsabilidade tributária resulta da insuficiência do património do sujeito
passivo originário para satisfazer o crédito tributário – cfr. art.ºs 22.º e ss da LGT. Esta
responsabilidade tributária, de natureza subsidiária (cfr. art.º 22.°, n.° 2 da LGT),
configura-se como sendo uma garantia pessoal, sob a forma de fiança legal.
188
A reversão do processo de execução fiscal contra gerentes...
Para que opere a responsabilidade tributária, tem de existir um ato de reversão
do processo de execução fiscal, que só poderá efetivar-se quando o património do
devedor originário e dos seus sucessores não exista ou seja manifestamente insuficiente
para satisfazer o crédito tributário (isto é, a dívida exequenda e o acrescido) – benefício
da excussão prévia; art.º 23.º, n.ºs 1 e 2 da LGT.
A reversão em causa opera mediante citação e depende de audição prévia do(s)
responsável(eis) subsidiário(s), mediante carta registada, nos termos do art.º 60.º da
LGT (cfr. art.º 23.°, n.° 4 e art.º 24.º da LGT).
A responsabilidade solidária opera “quando os pressupostos do facto tributário
se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, sendo, neste caso, todos os
responsáveis subsidiários em relação ao devedor principal, solidariamente responsáveis
pelo cumprimento da dívida tributária perante a AT (cfr. art.º 21.º, n.º 1 da LGT).
BIBLIOGRAFIA
CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário,
Almedina, 2013.
FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição,
Almedina, 2015.
MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014.
NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017.
ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra
Editora, 2.ª Edição, 2008.
SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e
comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011.
CPPT,
disponível
online
em:
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=256&tabela=leis
.
LGT,
disponível
online
em:
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=253&tabela=leis
.
Código
Civil,
disponível
online
em:
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis
.
RGIT,
disponível
online
em:
http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=259&tabela=leis
189
A BOA ADMINISTRAÇÃO COMO ELEMENTO DE
EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Suzana Maria Fernandes Mendonça1
1) Introdução
Os direitos fundamentais encontram abrigo no texto constitucional, o que garante
uma proteção diferenciada para os bens jurídicos em questão. A consagração na
Constituição consiste em um dos requisitos para que se constate a fundamentalidade de
tais direitos, consequentemente, sua tutela deve receber maior atenção por parte do
Estado. O contraste entre Estado e pessoa, especialmente quando se trata da relação de
poder, originou a base dos direitos fundamentais. Estes, por configurarem posições
jurídicas de amparo contra eventuais excessos do Poder Público, garantem aos
indivíduos a preservação dos bens jurídicos de maior essencialidade para o alcance do
seu bem-estar.
A concretização de direitos fundamentais, isto é, a viabilização do seu pleno
exercício, depende de atuações do Estado, sejam estas por meio de prestações positivas
ou negativas. As prestações em caráter positivo, nomeadamente, demandam uma
conduta estatal ativa para oferecer aos indivíduos os meios indispensáveis para a devida
fruição de seus direitos.
O pleno exercício de direitos fundamentais que dependem de prestações estatais
positivas apenas é viabilizado por meio de políticas públicas, que são planejadas e
executadas pela Administração Pública. Nesse sentido, a concretização de tais direitos
depende da eficiência da atividade administrativa na entrega dos instrumentos
necessários referentes à tutela dos bens jurídicos essenciais aos indivíduos.
Nesse sentido, a boa administração enquadra-se perfeitamente ao contexto que
envolve direitos fundamentais e a atividade administrativa, uma vez que seu conteúdo
configura um mecanismo de notável valor capaz de auxiliar no processo de concretização
de direitos. A essência da boa administração, assim, consiste em um elemento que
conduz a atuação desenvolvida pela Administração, como forma de garantir aos
indivíduos os melhores resultados na execução de prestações.
2) Breves Considerações sobre Direitos Fundamentais
Considerados como aqueles mais essenciais para os indivíduos, os direitos
fundamentais são decorrência positiva de momentos conturbados, registrados ao longo
da história. O processo de consolidação da defesa e da proteção de determinados bens
1
Mestranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Suzana Maria Fernandes Mendonça
jurídicos em nível constitucional não se mostrou de simples andamento, uma vez que
percorreu diversos períodos, especialmente aqueles marcados por transições.
A evolução do direitos fundamentais ocorreu de forma gradativa, de modo que
seu reconhecimento perpassa pelas mais variadas revoluções, bem como regimes
políticos, tendo como elemento característico duras batalhas sociais2, cujo objetivo era
precisamente a busca por melhores condições. Tais lutas, embora árduas, resultaram em
bons frutos, notadamente no sentido de proteção de bens jurídicos substanciais à
sociedade. Os direitos fundamentais, dessa forma, passaram a expressar sua força
máxima a partir do fim dos regimes totalitários, período em que houve violações de toda
ordem e em diversos níveis.
Nesse sentido, os direitos fundamentais são reconhecidos à todos os membros da
sociedade meramente pela humanidade intrínseca3 aos indivíduos, de modo que o único
requisito para a constituição de um sujeito de direitos fundamentais é tão puramente ser
humano. Ademais, apresentam como fundamento a dignidade humana4, cujo conteúdo
proporciona não somente o alicerce dos direitos fundamentais, mas também uma
determinante ferramenta para que sejam exercidos em plenitude.
A defesa dos bens jurídicos de maior importância para o bem-estar dos
indivíduos, uma vez consagrada em âmbito constitucional, assume o calibre de direitos
fundamentais. A partir do momento que passam a constar da Constituição, os direitos
fundamentais carregam consigo o dever de amparo pelos valores que expressam, de
maneira a transferir para o Estado a tarefa de efetivá-los devidamente.
Como escudo que garante resguardo contra eventuais violações, os direitos
fundamentais somente existem, portanto, em razão da distinção e da contraposição entre
pessoa e Estado, refletida também no contraste entre liberdade e autoridade 5.
Configuram, nesse sentido, instrumentos de preservação de determinados bens
jurídicos, aqueles considerados de maior essencialidade para o alcance do bem-estar e
até mesmo do conteúdo refletido pela dignidade humana.
Assim, os direitos fundamentais asseguram uma posição de proteção em relação
ao Estado e demandam, como consequência, determinado comportamento do Poder
Público, que deve conduzir suas atividades de modo a evitar eventuais intervenções que
possam ser desfavoráveis aos indivíduos em sua liberdade de exercício de direitos. Logo,
a defesa e a promoção de bens jurídicos indispensáveis à existência digna, refletidas pelos
direitos fundamentais, reputa-se pendente de ações de cunho estatal que ofereçam
condições para o devido amparo dos valores emanados por tais direitos.
2
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, 2015, p.
37.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 20.
4 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais (e-book), 9ª ed.,
Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2011, p. 218.
5 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, 2015, p.
17.
3
192
A boa administração como elemento de efetivação de direitos...
As atividades desempenhadas em âmbito estatal, portanto, devem observar as
necessidades dos membros da sociedade, uma vez que a razão de ser das instituições
públicas passa precisamente pelo atendimento dos interesses comuns6. Nesse
perspectiva, as tarefas do Estado para com a sociedade, devidamente estabelecidas pelo
texto constitucional como forma de efetivação de direitos fundamentais, podem
constituir prestações em caráter positivo ou negativo.
As prestações negativas impõem aos Poder Público ações de abstenção ou de
omissão7, de maneira a não intervir na esfera pessoal, ou até mesmo de ser causa de
violação de direitos. Nesse sentido, há uma certa forma de bloqueio negativo da atuação
estatal8, repercutido pela supressão de eventuais ações de ingerência por parte do Estado
em determinados bens jurídicos associados à liberdade das pessoas.
Tais direitos, qualificados também como pertencentes a primeira dimensão de
direitos fundamentais, são marcados por representar um campo de não intervenção do
Estado, o que reflete, ademais, a esfera de autonomia9 que o indivíduo detém face
eventual atuação estatal diversa. Alguns dos exemplos de direitos fundamentais que
demandam tal atuação do Poder Público são precisamente os direitos à vida, à liberdade
de expressão e à propriedade.
Já as prestações positivas requerem do Estado uma atuação ativa no sentido de
viabilizar o adequado e pleno exercício de direitos fundamentais. Estes são reconhecidos
como direitos sociais, não somente pela estreita conexão com a coletividade, mas
também por serem consequência direta de reivindicações por justiça social10.
Configuram-se, portanto, na qualidade direitos individuais pendentes de prestações
sociais de natureza estatal11, como pertencentes à uma segunda dimensão de direitos
fundamentais. Alguns destes são os direitos à saúde, à educação e à assistência social.
Novas reivindicações da sociedade, especialmente influenciadas pelos avanços
tecnológicos e sociais, proporcionaram condições para que despontasse uma terceira
dimensão de direitos fundamentais, associada à proteção de grupos12, isto é, direitos cuja
titularidade desvenda-se como coletiva. Ademais, tais direitos estão associados ao valor
refletido pela fraternidade, uma vez que o seu amparo também ocorre pela colaboração
da comunidade no sentido de defender tais bens jurídicos. Os direitos ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e ao patrimônio histórico e cultural são alguns dos
RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ. El Derecho a la Buena Administración en las Relaciones entre
Ciudadanos y la Administración Pública, Revista AFDUC, n. 16, ISSN: 1138-039X, 2012, pp. 247-273.
7 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Elsevier, Rio de Janeiro, 2004, p. 14.
8
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, Mínimo
Existencial
e
Direito
à
Saúde:
Algumas
Aproximações,
2007.
Disponível
em:
<http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/DOUTRINA_9.pdf>. Acesso em: 23 maio 2018.
9 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do
Advogado, Porto Alegre, 2012, p. 106.
10 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional, 8ª ed.,
Editora Saraiva, São Paulo, 2013, p. 137.
11 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do
Advogado, Porto Alegre, 2012, p. 108.
12 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do
Advogado, Porto Alegre, 2012, p. 111.
6
193
Suzana Maria Fernandes Mendonça
pertencentes à tal categoria.
Nesse sentido, um dos fatores em comum entre os direitos de todas as dimensões
constitui precisamente a relevância da atuação do Estado na sua devida proteção e
promoção, seja de maneira comissiva ou até mesmo omissiva. Por outro lado, o
desempenho de ações estatais voltadas para a efetivação de direitos sociais mostra-se
mais incisiva do que aquelas referentes à demais categorias, na medida em que as
condutas omissivas necessárias na primeira dimensão revelam-se de relativa
simplicidade de execução, enquanto a atuação referente à terceira dimensão não é de
exclusividade do Estado, uma vez que também tais direitos encontram abrigo na
contribuição da sociedade.
Ao Estado, nesse sentido, impõe-se especial atenção para a devida efetivação de
direitos sociais, o que, para fins de esclarecimento, não isenta o Poder Público de uma
atuação conforme referente também ao pleno exercício de direitos fundamentais
constantes das demais dimensões. Assim, o Estado, por força de atribuições de natureza
constitucional repercutidas por meio dos valores expressos por direitos fundamentais,
deve desempenhar a sua atividade utilizando como instrumentos as mais diversas
prestações, tendo em vista justamente a satisfação das demandas que se colocam no
cotidiano social.
3) O Elo entre os Direitos Fundamentais e a Boa
Administração
Os direitos sociais são acompanhados de previsão legal que requerem tarefas de
natureza legislativa cuja finalidade é a obtenção de instrumentos materiais e
institucionais13 que sejam capazes de apoiar o seu devido cumprimento. Logo, para que
seja possível a realização de direitos sociais, uma vez vinculados às prestações de
natureza positiva, cabe ao legislador a determinação do modo como as ações deverão ser
geridas e executadas.
Nesse sentido, a efetivação de direitos sociais, como forma de conversão de uma
norma em prática14, está ligada às incumbências constitucionais designadas ao Estado.
Cabe ao Poder Público, nessa perspectiva, e conforme as regras estabelecidas em âmbito
legislativo, organizar e implementar ações e metas coordenadas entre as entidades
responsáveis como forma de tornar efetivos os direitos fundamentais, especialmente os
que dependem necessariamente de execução pública.
A prestação dos serviços públicos associados aos direitos sociais deve, portanto,
ser estruturada e exercida de maneira adequada, particularmente considerando a sua
13 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 366.
14 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, Coimbra,
2015, p. 548.
194
A boa administração como elemento de efetivação de direitos...
essencialidade, na medida em que a sua extrema relevância repercute diretamente na
qualidade de vida dos membros da sociedade. A execução de tais prestações, ademais,
deve atender às necessidades coletivas, de modo que os serviços não apenas sejam
contínuos, mas também suficientemente seguros e eficientes.
A devida entrega dos meios necessários à satisfação das demandas populares
associadas aos direitos sociais pode ser um desafio para as entidades competentes,
entretanto, as prestações devem ser realizadas de maneira a produzir bons resultados.
Os serviços em caráter público consistem, portanto, em fatores indispensáveis para a
proteção de direitos sociais, como forma de convertê-los em bens jurídicos prontos para
serem plenamente exercidos.
Os direitos sociais, assim, apenas terão a sua existência completamente
preenchida, não somente no âmbito de previsibilidade constitucional e legal, mas
também em termos práticos, quando o Poder Público prestar os serviços pertinentes para
tanto. Tais ações advindas do Estado constituem políticas públicas, a partir das quais se
dá a execução de medidas adequadas e aptas a proporcionar o exercício de direitos
sociais. Nesse sentido, as políticas públicas caracterizam-se como programas de Estado
cujo objetivo manifesta-se no cumprimento de tarefas que constam da Constituição, de
modo a garantir a efetivação de direitos fundamentais15 por meio dos atores devidamente
competentes e responsáveis. As políticas públicas consistem, portanto, em metas de
caráter coletivo, e como tal, configuram, ainda, um assunto de direito público16.
À Administração Pública, assim, como responsável pela execução de políticas
públicas, cabe a formulação, a implementação e o controle de todas as ações dispendidas
para a efetivação de direitos sociais, bem como pelo eficiente desempenho em todas as
fases envolvidas até que se alcance o indivíduo. A tutela dos direitos fundamentais
pendentes de prestações positivas por parte do Estado, portanto, ocorre por meio da
adequada execução de toda a atividade como forma de se atingir certeiramente o objeto
de proteção.
A atividade administrativa, para que sejam satisfeitas as condições de exercício
de direitos sociais, deve ser realizada adequadamente, em respeito, ainda, aos princípios
regentes do Direito Administrativo. Nessa perspectiva, o princípio da boa administração
pública revela-se como elemento extremamente útil na proteção de direitos
fundamentais.
A boa administração, dessa maneira, está intimamente associada à noção de
efetivação de direitos fundamentais, uma vez que uma atuação eminentemente efetiva,
em observância aos demais princípios norteadores da atividade desenvolvida pela
Administração, tem como efeito direto e lógico a viabilização do pleno exercício de
direitos, especialmente daqueles pendentes de ações de natureza positiva por parte do
15 FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ª ed., Editora Malheiros,
São Paulo, 2014, p. 32.
16 LIBERTATI, Wilson Donizeti. Políticas Públicas no Estado Constitucional, Atlas, São Paulo, 2013,
p. 86.
195
Suzana Maria Fernandes Mendonça
Poder Público, sejam estas políticas públicas ou prestações de serviços públicos. Isto
significa que até mesmo a discricionariedade administrativa, e, especificamente quando
se trata do tema de políticas públicas associadas à execução de direitos sociais, deve ser
exercida de modo a respeitar os limites impostos pela tutela de direitos fundamentais17.
Ainda que não conste expressamente do texto constitucional, a boa administração
configura-se como uma derivação do conteúdo expresso pela combinação de outros
princípios explícitos e implícitos da atividade administrativa, como o interesse público,
a eficiência, a imparcialidade e a razoabilidade. Muito embora seu valor seja melhor
entendido dessa maneira, não deixa de apresentar significado autônomo, uma vez que
sua essência diz respeito à atuação de maneira eficaz para que se atinja o objetivo visado
pela atuação administrativa, conforme a disponibilidade de meios e instrumentos
necessários para tanto.
Por outro lado, a falta de estrutura indispensável ao adequado atendimento das
demandas da população, a incongruência entre o número de profissionais e a corpulência
da rede de serviços, bem como a limitação de recursos financeiros que viabilizem a
proteção de direitos fundamentais são algumas das dificuldades que se armam frente a
atuação da Administração na execução de políticas públicas. Muito embora tais
obstáculos sejam de conhecimento geral e intensamente presentes no cotidiano
administrativo, a efetivação de direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais,
não deve ser completamente negada à sociedade sob alegação de inviabilidade na
execução de serviços, uma vez que o pleno exercício de tais direitos depende justamente
dessa prestação, o que deve conduzir a atividade administrativa a lidar com
adversidades, de maneira a manejar suas atividades com os meios e os instrumentos que
estão disponíveis.
4) A Importância da Boa Administração na Concretização
de Direitos Fundamentais
Como um vetor hábil a conduzir a atuação da Administração Pública por
caminhos apropriados, a boa administração impulsiona os agentes públicos a
desempenharem sua função de maneira pertinente. Nessa perspectiva, todas as ações
empenhadas em âmbito administrativo devem prezar pela qualidade, não apenas quanto
a forma de desempenho, mas também em relação ao alcance dos objetivos traçados.
Logo, a boa administração não fica restrita somente ao interesse público, uma vez
que demanda também outros fatores, de modo que a atuação seja eficiente e capaz de
garantir a solução mais adequada, também considerando a economicidade, para que
então seja possível se atingir um ponto ótimo de interesse público18. Fato certo é que a
FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ª ed., Editora Malheiros,
São Paulo, 2014, p. 34.
18 OTERO, Paulo. Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2016, p. 272.
17
196
A boa administração como elemento de efetivação de direitos...
boa administração, por decorrer de diversos princípios e valores que orientam a
atividade administrativa, tais como a imparcialidade, a eficiência, a transparência e a
razoabilidade; é identificada precisamente quando tais conteúdos se incorporam à
atuação da Administração Pública.
Se a atividade desenvolvida pela Administração Pública dispusesse de todos os
instrumentos necessários, sejam estes materiais, financeiros e humanos, os resultados
tenderiam à condição de fornecimento de meios em integralidade e universalidade,
conforme dita a demanda social no momento em questão. Como a perfeição é posição
inalcançável, da boa administração emana o valor que apresenta maior proximidade. Isto
significa que o conteúdo associado à boa administração preza pelo alcance do melhor
resultado possível no exercício da função administrativa.
Tal valor revela-se de extrema relevância especialmente na formulação e
execução de políticas públicas, uma vez que o bom desempenho dos programas em
questão atende às necessidades da população associadas aos direitos sociais, cuja
efetivação depende precisamente da atuação comissiva do Estado. Nesse sentido, as
políticas públicas, sejam estas relativas à educação, à saúde ou à assistência social,
dependem da adequada execução das tarefas decorrentes do planejamento de
programas, de modo a satisfazer as demandas sociais, até mesmo como forma de trazer
à prática as normas referentes aos direitos fundamentais.
A boa administração, portanto, adere às politicas públicas como elemento
catalisador da eficiente conduta administrativa, de modo manter o foco da máquina
pública na criação e no fornecimento dos meios indispensáveis à atividade prestacional,
bem como na execução de serviços de qualidade para a adequada proteção e promoção
de direitos fundamentais. Nesse sentido, a prática de uma boa administração demonstra
atenção para com as necessidades da população, sempre em respeito aos princípios da
Administração Pública envolvidos em cada uma das medidas de aplicação das normas
relacionadas aos direitos sociais.
Mostra-se relevante, assim, que a condução da atividade administrativa também
seja socialmente sensível19, até mesmo como forma de aplicação prática de comandos
constitucionais que dispõem sobre a apropriada prestação administrativa, uma vez
sendo a Administração Pública a responsável pela força executória das políticas públicas.
Assim, tanto a fase de planejamento, como a de execução, devem ser realizadas com
elevado grau de cuidado e responsabilidade, o que reflete precisamente a relevância de
uma boa administração pública, para que a consequência direta de tal conduta seja
justamente a efetivação de direitos fundamentais.
A atividade administrativa, nesse sentido, deve ser bem desempenhada para,
consequentemente, lograr bons resultados. Um entendimento mais moderno sobre a
Administração Pública e a sua função, sugere serem considerados como bons resultados
19 RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Direito Fundamental à Boa Administração Pública,
Fórum, Belo Horizonte, 2012, p. 135.
197
Suzana Maria Fernandes Mendonça
aqueles que perpassam pelo respeito e pela garantia de direitos dos indivíduos,
especialmente, os direitos fundamentais.
O conteúdo que se extrai da boa administração, de certa forma, é de que o poder
que o Estado possui deve ser empregado com a finalidade de servir a pessoa, de maneira
a garantir a concretização de direitos e a promoção do bem-estar comum20. A
Administração, nessa perspectiva, não detém o domínio do interesse público, mas, em
razão de se integrar a uma conjuntura de Estado Democrático de Direito21, deve ser
responsável pelo desempenho do papel de intermediário entre as necessidades da
coletividade e as medidas pertinentes a serem adotadas para atendê-las
apropriadamente, em especial na seara de políticas públicas.
Nesse sentido, toda a conduta administrativa deve carregar um certo nível de
atenção e responsabilidade, do trato para com a pessoa ao fornecimento de meios que
assegurem seus direitos fundamentais. A boa administração estimula que a tomada de
decisão e a execução das tarefas referentes às políticas públicas sejam bem realizadas, de
maneira a atingirem a sua finalidade com celeridade e eficácia.
A boa administração constitui, portanto, instrumento para a redução da diferença
entre administrados e Administração, bem como para tornar a atividade administrativa
mais eficiente22, de modo a visar o melhor atendimento das demandas apresentadas pela
população. A razão de existir das instituições perpassa justamente pela adequada
satisfação dos interesses comuns. Nesse sentido, e para melhor corresponder com às
necessidades da pessoas, individual e coletivamente consideradas, a Administração
Pública deve nortear a sua atuação conforme determinados critérios23, especialmente a
legislação pertinente e os princípios que regem a sua atividade, mas sempre em serviço
do bem-estar comum, o que revela a essência da boa administração.
Nesse sentido, o conteúdo da boa administração tangencia não apenas a ideia de
uma atuação eficiente da Administração, mas também a garantia aos indivíduos de
proteção dos seus direitos24, especialmente quanto à eventuais violações. Por outro lado,
da eficiência da Administração depende a proteção dos direitos dos indivíduos, de modo
que ambas as percepções acabam por encontrar um mesmo resultado.
Ademais, os direitos sociais, por penderem de condutas positivas por parte do
20 VALLE, Jaime Andrés Villacreses. Bases Constitucionales del Derecho a una Buena
Administración
en
el
Ecuador,
Disponível
em:
<https://jdaiberoamericanas.files.wordpress.com/2016/03/jaime_andres_villacreses_valle.pdf> Acesso
em 9 de fev. de 2018.
21RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Gobernanza, Buena Administración y Gestión Publica,
Disponível
em:
<
http://aragonparticipa.aragon.es/sites/default/files/ponencia_jaime_rodriguez_arana.pdf > Acesso em 10
de abril de 2018.
22 CHESHMEDZHIEVA, Margarita. The Right to Good Administration, American International
Journal of Contemporary Research, vol. 4, n. 8, 2014, pp. 64-67.
23 RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ. El Derecho a la Buena Administración en las Relaciones entre
Ciudadanos y la Administración Pública, Revista AFDUC, n. 16, ISSN: 1138-039X, 2012, pp. 247-273.
24 HOFFMAN, Herwig C. H.; MIHAESCU, Bucura C.. The Relation between the Charter’s
Fundamental Rights and the Unwritten General Principals of EU Law: Good Administration as the Test
Case, European Constitutional Law Review, n. 9, 2013, pp. 73-101.
198
A boa administração como elemento de efetivação de direitos...
Estado, exigem para a sua execução o dispêndio de recursos25. Apesar de caros26, os
direitos sociais, devem ser preservados, o que confere à Administração Pública a
incumbência de estabelecer planejamentos de atuação, manusear materiais disponíveis,
executar serviços, bem como controlar e fiscalizar todas as fases da atividade de
efetivação de direitos.
Cabe à Administração, portanto, desempenhar todas as suas ações de maneira a
equilibrar a disponibilidade financeira para tanto. Neste contexto, se insere a boa
administração, uma vez que não apenas fundamenta e conduz um comportamento
administrativo efetivo e razoável, em observância ao interesse público, mas também
representa um motor que estimula os agentes públicos a empregarem os meios
necessários e legais para oferecer à população os serviços indispensáveis para o devido
atendimento das demandas da comunidade.
A atividade administrativa eficiente e razoável compõe a essência da boa
administração, que se mostra como uma rica ferramenta na contribuição para a garantia
de direitos fundamentais. A efetivação de direitos pendentes de prestações positivas por
parte do Estado ocorre apenas com a realização adequada das ações para tanto, de modo
a viabilizar a fruição de direitos previstos no texto constitucional.
A conduta administrativa, portanto, deve ser pautada nos princípios implícitos e
explícitos referentes ao Direito Administrativo, de maneira a conferir à sua atividade um
nível ótimo de eficiência, também em respeito ao interesse público, o que precisamente
reflete o princípio da boa administração. Cabe à Administração, portanto, desempenhar
o seu papel da melhor maneira possível, até mesmo como forma de se evitar eventuais
excessos nas diversas fases de sua atuação, em observância ao interesse público e à
razoabilidade, e como reprodução do conteúdo emitido pela boa administração.
5) Conclusão
A viabilização da fruição de direitos fundamentais de maneira plena depende de
determinado comportamento do Estado, seja este por meio de prestações omissivas ou
comissivas. As prestações em caráter positivo, especialmente, configuram a proteção e a
promoção de direitos sociais, de modo a converter as normas em prática através de
políticas públicas.
Como programas de Estado, as políticas públicas são de responsabilidade da
Administração Pública, cuja competência envolve tanto a fase de planejamento, como as
de execução e controle. Em razão de uma moderna perspectiva sobre o papel da
25BUCCI,
Maria Paula Dallari. Políticas Públicas e Direito Administrativo. Disponível em:
<http://www.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/politicas_publicas_e_direito_administrativo.pdf>
Acesso em: 20 abril 2018.
26 CANOTILHO, J. J. Gomes. O Direito Constitucional como Ciência de Direcção in: Direitos
Fundamentais Sociais, CANOTILHO. J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione; CORREIA, Érica Paula,
Editora Saraiva, São Paulo, 2010, p. 19.
199
Suzana Maria Fernandes Mendonça
Administração no Estado Democrático de Direito, toda a sua atividade deve ser pautada
na atenção para com a pessoa, até mesmo como forma de se respeitar as previsões
constitucionais referentes aos direitos fundamentais.
Nesse sentido, à Administração Pública, sempre em observância aos princípios
norteadores de sua atividade, cabe a execução adequada de políticas públicas, de modo
a não permitir que a viabilização de meios indispensáveis ao exercícios de direitos seja
negligenciada. A boa administração contém precisamente tal essência, uma vez que seu
conteúdo preza pela realização adequada de todas as ações nas mais variadas fases até
que se atinja devidamente a pessoa, cuja satisfação deve ser o principal objetivo.
A boa administração, portanto, confere à atividade administrativa um senso
apurado de eficiência, celeridade, razoabilidade, ainda conforme o interesse público.
Nesse sentido, a Administração Pública deve efetuar bem aquilo que lhe foi designado,
não apenas por ser sua atribuição, mas também por configurar meio necessário à
concretização de direitos fundamentais. Embora haja obstáculos à atuação da
Administração, especialmente de ordem financeira e estrutural, a execução de políticas
públicas deve ocorrer de maneira ótima, para que se alcance os melhores resultados e,
consequentemente, o próprio bem-estar comum.
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VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição
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201
O MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO
CONDICIONANTE PARA A MANUTENÇÃO DA
SUSTENTABILIDADE
E
DO
PATRIMÔNIO
CULTURAL INDÍGENA: PERCEPÇÃO DE RISCOS
AMBIENTAIS AO PATRIMÔNIO CULTURAL DO
POVO WAYÃPI
Fabrício Veiga Costa1
Deilton Ribeiro Brasil2
Elaine Aparecida Barbosa Gomes3
1) Introdução
As discussões sobre os problemas ambientais torna-se algo corriqueiro nos dias
atuais, a todo momento tem-se informações das mais diversas, seja para conscientizar a
sociedade sobre os impactos socioambientais que a ação do homem tem provocado no
espaço, ou para propor políticas de preservação ambiental em escala local e global. As
questões ambientais deixaram de ser um assunto de natureza interna e tornou-se de
interesse internacional, um problema global que gera graves alterações sociais,
econômicas, políticas e ambientais.
Na realidade mesmo sofrendo com as consequências pela falta de solidariedade e
humanidade com o meio ambiente diuturnamente o homem continua a degradar,
exaurindo os recursos minerais e naturais que a natureza tem a oferecer. Conforme
esclarece o Papa Francisco (2015), o estilo atual baseado no consumismo exacerbado e
no desperdício leva ao exaurimento dos recursos minerais e naturais no planeta,
provocando alterações no meio ambiente de modo insustentável.
Essa é a realidade que milhares de pessoas convivem todos os dias,
desmatamento, queimadas, poluição dos rios, da atmosfera, extinção de animais
silvestres, escassez de água, assoreamento dos rios, extração dos recursos minerais
levando o solo ao exaurimento. A destruição do meio ambiente passou a ser uma
preocupação constante para aqueles que procuram uma melhor qualidade de vida para
a presente e as futuras gerações.
Nesse passo, a exploração econômica passou a ser uma ameaça para o equilíbrio
1 Pós-doutor em Educação - UFMG. Doutorado e Mestrado em Direito Processual pela PUCMINAS.
Professor da Graduação e do PPGD - Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de
Itaúna-MG E-mail: fvcufu@uol.com.br
2 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em direito pela
UGF/RJ. Professor da Graduação e do PPGD - Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da
Universidade de Itaúna-MG. E-mail: deilton.ribeiro@terra.com.br
3 Mestranda do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de
Itaúna-MG. Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Itaúna-MG. Especialista em Geografia e
História Contemporânea pelo Instituto Superior de Educação-Berlaar/Patrocínio MG. Graduada em
Geografia pela Faculdade de Pará de Minas-FAPAM. E-mail: elainebarbosagomes@yahoo.com.br
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
cultural do povo Wayãpi, tendo em vista que, quando realizada de forma
desproporcional, coloca em risco o equilíbrio da natureza, como, por exemplo, a partir
da extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados (RENCA) liberando uma área de
proteção ambiental, de aproximadamente 46 mil km quadrados, para a exploração de
minério.
O povo Wayãpi vem desenvolvendo suas tradições, costumes e suas práticas
alimentares em consonância com a natureza, favorecendo a renovação dos recursos
naturais, cultural, a manutenção da diversidade biológica e a sustentabilidade da
Amazônia desde antes 1.500. Situação atual e lamentável é o exemplo concreto do povo
Wayãpi que vive as margens da invisibilidade social sofrendo com as consequências das
intervenções provocadas pela ganância do homem capitalista.
Esse fato teve início em 22 de agosto de 2017 quando o governo brasileiro
promulgou o Decreto n.º 9.142/174 extinguindo a Reserva Nacional do Cobre e
Associados (RENCA), região onde habitam o povo Wayãpi mesmo antes do ano de 1.500,
ainda que por um curto período, retirando a restrição e liberando a atividade mineradora
na reserva, confirmando o retrocesso ambiental das políticas públicas de preservação
ambiental no Brasil. Ocorre que a criação desse decreto trouxe o acirramento da
desigualdade socioambiental para a população local, ameaçando o patrimônio cultural
do povo Wayãpi.
Com a liberação para exploração dos recursos minerais na RENCA o patrimônio
cultural indígena será afetado, gerando uma perda histórica e cultural sem lastros para a
sociedade. O que compromete o desenvolvimento socioambiental e econômico da região.
Levando em consideração os desafios na busca pelo meio ambiente equilibrado, o
conhecimento cultural do povo Wayãpi deve ser visto como uma possibilidade de
alcançarmos o desenvolvimento sustentável para a presente e as futuras gerações.
Assim, utilizando-se das reflexões produzidas acerca do tema proposto, intentase expor um questionamento central que norteará a pesquisa, qual seja: observando as
situações de intervenção do homem no meio ambiente, é possível concluir que o meio
ambiente equilibrado é condicionante para a manutenção do patrimônio cultural do
povo Wayãpi?
Portanto, ao propor a discussão sobre o patrimônio cultural do povo Wayãpi a
ideia é de agregar importância a necessidade de termos um meio ambiente equilibrado
para manutenção da biodiversidade e da identidade cultural de um povo. Nas tradições,
nos saberes, na língua, nas festas tem-se a herança cultural de um povo que precisa ser
protegida para que a memória e a sua história possa ser passada para outras gerações
(UNESCO).
A relevância dessa proteção pode ser evidenciada pela forma com que o povo
4Decreto nº 9.142, de 22 de Agosto de 2017: Artigo 1º Fica extinta a Reserva Nacional de Cobre e
seus associados, constituída pelos Decretos nº 89.404, de 24 de fevereiro de 1984, localizada nos Estados do
Pará e do Amapá.
204
O meio ambiente equilibrado como condicionante...
Wayãpi se relaciona com a natureza, conseguem estabelecer uma relação de equilíbrio
retirando apenas o necessário para sua subsistência. Manter a identidade cultural desse
povo representa manter a manutenção da biodiversidade da Amazônia permitindo
atender as futuras gerações.
Estruturalmente, o artigo se divide em três seções temáticas, mais introdução e
conclusão. Na primeira seção, intitulada O Direito Cultural enquanto Direito
Fundamental, o foco do estudo foi compreender a conceituação de Direito Fundamental,
apresentando, ainda que rapidamente, para do pressuposto de seu conhecimento
entrelaçar a designação de Direito Fundamental ao meio ambiente equilibrado como
condicionante para a manutenção do patrimônio cultural do povo Wayãpi. Importante
ressaltar que o meio ambiente equilibrado é um Direito Fundamental, tanto na esfera do
direito individual quanto no coletivo, permitindo que a população tenha acesso a diretos
básicos para sua sobrevivência com um mínimo de dignidade.
Na segunda sessão, intitulada A Sustentabilidade do meio ambiente como direito
das presentes e futuras gerações, o intuito é de definir o conceito de sustentabilidade, em
seguida, discutir sobre as questões ambientais juntamente com as questões sociais, pois
o ser humano encontra-se imerso em uma crise socioambiental sem precedentes.
Na última parte, intitulada A diversidade cultural do povo Wayãpi e sua
importância para a manutenção da biodiversidade na Amazônia, será concluída a
argumentação do estudo, com intuito de discutir sobre a riqueza e a diversidade dos
conhecimentos tradicionais do povo indígena Wayãpi e a sua importância para a
manutenção da biodiversidade. Isso, para, ao final, verificar a profunda articulação entre
o patrimônio cultural, o meio ambiente equilibrado e a cultura do povo Wayãpi. Pois para
o povo Wayãpi a cultura do seu povo reflete sua identidade e o passado histórico de seus
ancestrais.
Haja vista que os saberes desse povo são históricos, e vem sendo transmitidos de
forma intergeracional, passando por um processo de aperfeiçoamento no decorrer do
tempo e de acordo com o local habitado, e acima de tudo utilizando de forma sustentável
os recursos que a natureza lhes oferece mantendo o meio ambiente em equilíbrio.
Utilizou-se o referencial teórico de Paulo de Bessa Antunes na obra Direito
Ambiental (2010), a partir de suas contribuições com o debate acerca das questões
ambientais.
Outras obras perpendiculares à análise de Bessa foram utilizadas para
aprofundar o exame sobre as questões ambientais, como também a linha teórica sobre a
sustentabilidade trabalhada por Juarez Freitas (2016) devido à sua contribuição para as
discussões sobre a sustentabilidade enquanto caminho para alcançar o desenvolvimento
das nações e ao mesmo tempo ter efetivado o direito fundamental ao meio ambiente
equilibrado. Deste modo, cabe ressaltar que outros autores e teorias aparecerão com
centralidade ao longo deste estudo, sem os quais não seria possível um maior acesso a
problemática.
205
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
Quanto à metodologia, para a realização do estudo, utilizou-se da pesquisa
teórico-bibliográfica, documental disponível, com a utilização de livros, textos e artigos
doutrinários, além de leis que possuam relação direta ou indireta com o assunto em
comento, tendo em vista que a construção do debate teórico se embasa, de maneira
considerável, em doutrina. Tendo como base a atual visão constitucionalizada dos
direitos fundamentais.
No que tange ao procedimento metodológico, optou-se pelo método dedutivo,
haja vista partir-se de uma concepção macro para uma concepção microanalítica,
permitindo-se, portanto, a delimitação do problema teórico. Finalmente, no
procedimento técnico, foram adotadas as análises interpretativas, comparativas,
temáticas e históricas, para possibilitar uma discussão pautada sob o ponto de vista da
crítica científica.
Por fim, resta esclarecer que as conclusões tecidas durante o desenvolvimento
deste trabalho de maneira alguma pretende esgotar a matéria, que discute temas afetos
a diversidade cultural, sustentabilidade e meio ambiente equilibrado, ainda em
construção e de relevante complexidade para a sociedade, merecendo discussões
profundas e passíveis de aprimoramento.
Apresentada a descrição minuciosa do objeto da pesquisa, analisar-se-á, nas
seções subsequentes, o recorte do tema com base exclusivamente na esfera jurídica.
Tendo na primeira seção desse artigo, como frisado, um estudo sobre o Direito a cultura
enquanto Direito Fundamental consagrado pala Constituição da República Federativa
de 1988.
2) O direito cultural enquanto direito fundamental
Cumpre ressaltar, inicialmente, que nessa breve descrição, o objetivo não é
discutir sobre todos os fatos correlatos ao surgimento dos Direitos Fundamentais, mas
sim, partir do pressuposto de seu conhecimento para depois entrelaçar a designação de
Direito Fundamental ao meio ambiente equilibrado como condicionante para o exercício
da liberdade cultural do povo Wayãpi. Nesse sentido, ficar-se-á adstrito apenas a sua
concepção atual, tentando explicitar o denominador comum entre os Direito
Fundamental ao meio ambiente equilibrado e o patrimônio cultural.
Algumas palavras sobre a conceituação de Direito Fundamental são necessárias
em nome da adequada compreensão daquilo que eles representam no direito brasileiro
resguardando direitos básicos como liberdade e dignidade para o indivíduo e a
coletividade. Sendo o meio ambiente equilibrado um condicionante para que a
humanidade possa ter acesso a todos os direitos básicos e viva com dignidade.
Em conformidade com José Emílio Medauar Ommati (2018) tem-se que os
direitos fundamentais são atribuídos ao homem a partir do nascimento e vão sofrendo
modificações ao longo da evolução histórica das sociedades, o direito vem sendo
206
O meio ambiente equilibrado como condicionante...
construído ao longo do desenvolvimento da sociedade e do enfrentamento dos seus
conflitos sociais.
Os direitos fundamentais servem de instrumento de diálogo dentro dessas
sociedades complexas sem eles o caos se estabeleceria no seio social levando a sociedade
ao retrocesso econômico, social e ambiental. É por meio desses direitos que se tem
garantido o limite de interferência do Estado, das instituições e do outro nas relações
intersubjetivas, por isso a fundamentalidade desses direitos, pois sem eles a sociedade
ficaria estagnada (OMMATI, 2018, p. 33-37).
São direitos que evoluem para acompanhar o contexto histórico da sociedade
regendo as relações intersubjetivas e promovendo o desenvolvimento social. E a medida
que a sociedade vem evoluindo e por consequência modificando o meio ambiente o
direito ambiental surge com o objetivo de propor um diálogo na sociedade.
O que chama atenção nesse contexto de alterações do meio ambiente é que o dano
ambiental fruto da ação humana é de difícil mensuração e a prevenção é muita mais
viável que a correção, pois é praticamente impossível por meio de uma ação judicial ou
outro instrumento jurídico reverter a situação de degradação do meio ambiente para o
seu estágio anterior.
Nesse sentido, o Papa Francisco escreveu no ano de 2015, a “Laudato Si”,
conhecida como a Encíclica Verde que possibilita ao leitor uma reflexão sobre as
alterações na natureza provocadas pelo homem, “um alerta a deterioração global do
ambiente dirigido a cada pessoa no planeta” (FRANCISCO, 2015, p. 4). O meio ambiente
equilibrado é um condicionante para o exercício dos outros direitos fundamentais e deve
ser visto como elemento integrante da vida.
Nessa linha de raciocínio, nos moldes da Lei nº 6.938/1981, artigo 3º, inciso I,
entende-se por meio ambiente “o conjunto de condições, leis, influências e interações de
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas” (BRASIL, 1981). Ou seja, aquele que abrange não apenas os recursos naturais,
artificiais e culturais, mas também todas as demais condições necessárias para existência
de vida no planeta.
Diante dessas discussões tem-se que o meio ambiente equilibrado é um Direito
Fundamental, tanto na esfera do direito individual quanto no coletivo, permitindo que a
população tenha acesso a diretos básicos para sua sobrevivência com um mínimo de
dignidade. Uma vez que a própria Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 no caput do artigo 2255 expõem que o meio ambiente ecologicamente equilibrado
e à sadia qualidade de vida é um direito de todos, das presentes e futuras gerações, como
esclarece Antunes (2012) “o direito ao desfrute de um ambiente sadio é uma condição
para o exercício da dignidade humana”(ANTUNES, 2012, p. 21), (BRASIL, 1988).
5 Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
207
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
Importante notar que toda atuação humana gera um impacto ambiental que
tende a perpetua produzindo efeitos até as gerações futuras, mesmo que a mesma não
tenha presenciado sofrerá com suas consequências, por isso é importante nos
anteciparmos aos riscos ambientais.
Por sua vez, o Papa Francisco (2015), analisando os impactos ambientais para as
gerações futuras, salienta que “...exige-se ter consciência de que é a nossa própria
dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta
habitável para a humanidade que nos vai suceder” (FRANCISCO, 2015, p. 123).
No tocante a viabilidade da prevenção aos danos ambientais, tem-se o Princípio
da Precaução e sua importância contra as ameaças ao meio ambiente. Esse princípio deve
ser entendido como instrumento antecipatório da proteção do meio ambiente e das
interações do homem com o meio. Trata-se de um princípio que rege a ação humana e
“...incorpora parte de outros conceitos como justiça, equidade, respeito, senso comum e
prevenção” (MMA).
Em sendo assim, Milaré (2011) define que “precaução é substantivo do verbo
precaver-se (do latim prae = antes e cavere = tomar cuidado), e sugere cuidados
antecipados, cautela para que uma atitude ou ação não venha resultar em efeitos
indesejáveis” (MILARÉ, 2011, p. 1069). Sendo que tanto o risco eminente quanto um
risco futuro fruto da ação do homem deve ser prevenido para evitar o comprometimento
do desenvolvimento das futuras gerações.
Para Antunes (2010) sua origem remonta ao direito alemão, que mantinha uma
preocupação quanto à necessidade de avaliação prévia sobre atividades que
possivelmente viessem a causar danos ao meio ambiente. Foi então que a partir da
concepção alemã que esse princípio passou a ser incorporado pelo Direito brasileiro e de
modo amplo pelo Direito Internacional.
No sistema brasileiro a incorporação do princípio da precaução ocorreu em dois
momentos, inicialmente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
no artigo 225, parágrafo 1, inciso IV, vejamos:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo para as presentes e futuras
gerações. § 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público: IV – Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade
potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,
estudo prévio do impacto ambiental (BRASIL, 1988).
Em seguida foi incorporado por ocasião da Eco 92- a Declaração do Rio de 1992,
elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
cujo princípio 15 dispõe:
Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os
Estados devem aplicar amplamente o critério da precaução conforme as suas
208
O meio ambiente equilibrado como condicionante...
capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de
uma certeza absoluta não deverá ser utilizada para postergar-se a adoção de
medidas eficazes para prevenir a degradação ambiental (BRASIL, 1992).
Sob uma ótica mais aprofundada, o Papa Francisco (2015) aponta o princípio da
precaução como um instrumento de proteção dos mais fracos, ou seja, aqueles que
“...dispõem de poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis”
(FRANCISCO, 2015, p. 143). Em uma contexto amplo essa proteção abarca os grupos
indígenas, uma minoria que vive a mercê da ganância humana.
Conforme aponta Antunes (2010) cabe ao Estado se antecipar quanto a criação
de medidas eficazes para prevenir a degradação do meio ambiente não podendo
ausentar-se de tais responsabilidades. Tendo o princípio da precaução a finalidade de se
antecipar ao riscos, permitido que a degradação ao meio ambiente seja evitada, uma vez
que “...a proteção do meio ambiente se faz como uma das formas de promoção da
dignidade humana” (ANTUNES, 2010, p. 36).
Inicialmente, é imprescindível mencionar que o Direito Cultural está
intimamente interligado com a noção de cultura, um assunto complexo e amplo, o qual
comporta diversos ângulos e vieses em sua discussão e teorização. Sendo necessário
buscarmos uma definição que estabeleça um viés jurídico para que possamos discutir o
Direito cultural. Nichollas Alem (2017) comenta que “os direitos culturais foram
previstos pela primeira vez, no plano internacional, na Declaração Universal dos Direitos
do Homem e do Cidadão em 1948, que os qualificou como indispensáveis à dignidade e
ao livre desenvolvimento da personalidade” (ALEM, 2017, p. 1). Especificamente em três
artigos, em especial, os artigos 22, 26 e o 27 que tratam, entre outras coisas, da
participação da vida cultural da comunidade e da utilização do direitos culturais como
instrumento na busca pelo desenvolvimento e a dignidade humana.
Na seara do Direito brasileiro tem-se no texto da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, mais especificamente em seu artigo 215, inserido no Título
VIII, capítulo III, seção II, que tem como título, “Da cultura”, e diz: “O Estado garantirá
a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL,
1988).
Assim, pode-se afirmar, inicialmente, que o Direito Cultural materializado na
Constituição Federal de 1988, está relacionado as artes, a memória de um povo e no fluxo
de saberes que perpassam por gerações formando a sua identidade cultural.
Farida Shaheed (2011) em entrevista para a Revista Observatório Itaú Cultural
com autoria de Teixeira Coelho (2011) define os direitos culturais como instrumento
responsável pela proteção dos direitos de cada indivíduo, tanto na esfera individual
quanto nas relações intersubjetivas, onde “...podem ser considerados como algo que
protege o acesso ao patrimônio e aos recursos culturais que permitem a ocorrência desses
processos de identificação e desenvolvimento” (SHAHEED, 2011, p. 19-20).
209
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
Como cediço, a discussão sobre a cultura de um povo ainda é algo que merece
muita atenção, pois requer superar as barreiras do preconceito e da intolerância com
relação a cultura do “outro”. Assim, não se pode olhar a cultura do “outro” somente a
partir do olhar, do ponto de vista daquele que a observa.
Neste sentido, Gallois (2006) afirma que “...para a maior parte dos brasileiros, o
“índio” continua sendo concebido como um “silvícola”, que para ser reconhecido como
portador de “cultura indígena” deve viver “no mato”, morar em “ocas”, “fazer pajelança”,
usar “cocar”, etc...” (GALLOIS, 2006, p.18). Faz-se fundamental combater essa visão
distorcida sobre a cultura indígena, que impede a sociedade de valorizar o patrimônio
cultural de um povo que busca na natureza apenas o necessário para sua sobrevivência e
só tem a nos ensinar sobe o manejo sustentável do meio ambiente.
Diante dessas considerações, resta evidente a importância de direcionarmos as
atenções para a cultura local do povo Wayãpi, habitantes do Brasil desde antes 1.500,
com uma cultura passada de pai para filho, vivenciada e mantida por toda a família, com
saberes ancestrais que nos dias de hoje é reproduzida pelo grupo, mantendo uma relação
de equilíbrio com o meio ambiente e que vem sendo ameaçada com a extinção da
RENCA.
Voltar o olhar para a história indígena, a cultura desse povo, possibilita a
humanidade o conhecimento sobre seu estágio atual, se está em evolução ou em
retrocesso, pois ao conhecer esse passado histórico de ensinamentos e aprendizagem
têm-se possibilidades de uma mudança de atitude no presente com uma prospecção de
desenvolvimento sustentável para as futuras gerações.
Tema de grande relevância na atualidade é o debate das questões ambientais e de
sua sustentabilidade frente aos avanços econômicos imposto pelo processo de
globalização mundial, um desafio a ser enfrentado por todos. Neste sentido torna-se
imperiosa a necessidade de implementação de medidas antecipatórias de proteção
ambiental, passa-se, a seguir, a realizar uma explanação acerca da sustentabilidade do
meio ambiente como direito das presentes e futuras gerações.
3) A sustentabilidade do meio ambiente como direito das
presentes e futuras gerações
Ao empreendermos uma análise a partir do conceito de sustentabilidade é
necessário compreender o seu significado, para tanto Édis Milaré (2011) a define como
“...um atributo necessário a ser respeitado no tratamento dos recursos ambientais, em
especial dos recursos naturais” (MILARÉ, 2011, p. 82).
Ainda para Milaré (2011, p. 82-83), a sustentabilidade, pela sua abrangência,
deve ser compreendida sob dois vieses. O primeiro remete a compreensão da
sustentabilidade como instrumento de perpetuação da vida no planeta, sob uma ótica
210
O meio ambiente equilibrado como condicionante...
ecológica. Enquanto que do ponto de vista da política, a sustentabilidade representa a
autossuficiência da sociedade, ambas integram a conceituação do termo
sustentabilidade.
Nos ensinamentos de Milaré (2011, p. 83):
[...] existem duas precondições para o desenvolvimento da
sustentabilidade: a capacidade natural de suporte (recursos naturais existentes)
e a capacidade de sustentação (atividades sociais, políticas e econômicas
geradas pela própria sociedade em seu próprio benéfico).
Sabe-se também que a humanidade enfrentará um grande desafio na buscar pelo
equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental, podendose, embasado no pensamento do Papa Francisco (2015, p.12-13), salientar ser um desafio
urgente e que inclui a união e a colaboração de toda a humanidade na busca de um
desenvolvimento sustentável e integral. Direcionando as atenções para a resolução das
consequências da alteração do meio ambiente no cotidiano dos mais pobres, onde o
caminho para construirmos um futuro mais digno passa pela percepção dos riscos
ambientais aos excluídos pela invisibilidade social.
Atualmente, discutem-se problemas ambientais de maneira frequente, e nota-se
que cada vez mais estas discussões são importantes pois a humanidade vem enfrentando
esses problemas na busca pelo desenvolvimento econômico. Situações que no passado
eram incalculáveis e não faziam parte da nossa realidade tornou-se algo real e vem
gerando uma destruição sistemática do meio ambiente, impossibilitando a vida com
dignidade para a população mundial, principalmente uma parcela relevante que vive em
condições de pobreza ou miséria extrema.
Ulrich Beck (2017) consegue definir o momento pelo qual a humanidade tem
vivido como sendo uma grande metamorfose, na qual as mudanças fazem parte do
cotidiano de milhões de pessoas submetidas as mais diversas situações de readaptação e
reinvenção social. Sendo necessário estabelecer sentimento de solidariedade e
humanidade com a natureza, pois dependemos dela para sobreviver.
Com base nessa problemática ambiental autores das mais diversas áreas
discutem incansavelmente a maneira como estamos interferindo na natureza e como
estamos construindo o planeta para as gerações futuras. Com o objetivo de despertar no
ser humano a consciência e a responsabilidade pelas suas atitudes e escolhas no âmbito
individual e na coletividade.
Por sua vez, Juarez Freitas (2016) salienta que:
[...] todos os seres possuem uma ligação intersubjetiva e natural,
donde segue a empática solidariedade como dever universalizável de deixar o
legado positivo na face da terra, com base na correta compreensão darwiniana
de seleção natural, acima das limitações dos formalismos kantianos e
rawlsianos” (FREITAS, 2016, p.64).
211
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
O homem destrói o meio ambiente e na maioria dos casos quem sofre com as
consequências é a camada mais vulnerável da população, geralmente aqueles que
sobrevivem de modo sustentavel da natureza. A poluição das águas, a poluição no ar, o
desmatamento das áreas florestais, a produção e o descarte do lixo de modo desregular,
uma destruição em prol do desenvolvimento econômico que prejudica a vida de um
número imensurável de pessoas, privilegia-se as demandas do presente em detrimento
as necessidades das gerações futuras.
Por sua vez, o Papa Francisco (2015), analisando uma das consequências da
interferência do homem no meio ambiente para a população mais pobre, salienta que:
[...] o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial,
fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e,
portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo
tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água
potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade
inalienável (FRANCISCO, 2015, p. 26).
Diante da maciça e devastadora ação do homem sobre o meio ambiente, a
proposta da Encíclica Papal é discutir as questões ambientais juntamente com as
questões sociais, pois o ser humano encontra-se imerso em uma crise socioambiental
sem precedentes. Basta acompanhar os noticiários impresso, virtual, que consegue-se ter
um panorama geral da crise.
Muito se questiona sobre o que tem o homem feito para mudar essa realidade, a
resposta é muito simples se escondido por detrás dos interesses econômicos e excluindo
cada dia mais essa parcela da população que sofre com a crise ambiental. Hoje é muito
mais fácil colocar a responsabilidade da miséria humana na sorte do que aceitar que as
políticas públicas foram criadas para uma minoria.
Como demonstra Ulrich Beck (2017) a desigualdade social até o século XX girava
em torno da produção e distribuição de bens, hoje essa preocupação ganhou outra
roupagem. A sociedade passou por uma metamorfose social com a introdução da questão
ambiental dentro do conceito de desigualdade social. O maior problema na atualidade é
saber como lidar com essa desigualdade ambiental que não respeita hierarquia das
classes sociais e afeta a todos. E acrescenta, “o seu poder de metamorfose inclui a política
da invisibilidade. Não vemos os males porque excluímos os excluídos. Deste modo, a
metamorfose externaliza e negligencia os males” (BECK, 2017, p. 107).
Ideia semelhante é defendida pelo Papa Francisco (2015), que ao tratar sobre as
questão da desigualdade planetária a define como sendo o reflexo da destruição conjunta
do meio ambiente humano e do ambiente natural. Ressalta também que os mais frágeis
do planeta são aqueles que mais sofrem com a deterioração do meio ambiente, e
exemplifica, nos casos do esgotamento dos recursos hídricos as pessoas mais
prejudicadas são as que vivem da pesca artesanal e não tem como substituir essa
atividade, ou aquela população que não tem condições de comprar água engarrafada
(FRANCISCO, 2015, p. 37-38).
212
O meio ambiente equilibrado como condicionante...
Apresentada uma discussão acerca da contribuição cultural indígena no viés da
sustentabilidade ambiental, passa-se, na seção seguinte, à discussão da diversidade
cultural do povo Wayãpi para destacar sua relevância quanto a manutenção da
biodiversidade na Amazônia, haja vista que, para os Wayãpi a mineração nas terras
indígenas afeta o equilíbrio socioambiental, pois a mineração compromete a
sustentabilidade da Amazônia, a ponto de colocar em risco a sua sobrevivência e a das
gerações futuras.
4) A diversidade cultural do povo Wayãpi e sua importância
para a manutenção da biodiversidade na amazônia
Entende-se que para compreender a relevância da diversidade cultural do povo
Wayãpi e sua importância para a manutenção da biodiversidade na Amazônia tem-se que
conhecer um pouco de sua origem e evolução histórica. Um povo detentor de expressões
culturais particulares, que vem sofrendo profundas transformações devido as alterações
do homem no meio ambiente refletindo e afetando a formação da sua identidade cultural.
Segundo Carla Jiménez (2017), o povo Wayãpi vive na Amazônia desde antes do
ano de 1500. Falantes da língua tupi-guarani, com um número restrito de falantes do
idioma português, os Wayãpi, vivem de forma comunitária, cultivando alimentos, caça e
pesca, tendo parte de seu território localizado dentro da Reserva Nacional de Cobre e
Associados (RENCA) totalizam em torno de 3.000,00 índios. Ademais, desenvolvem
suas tradições, objetos, costumes e suas práticas alimentares em consonância com a
natureza, favorecendo a renovação dos recursos naturais e das tradições culturais, eis
aqui a problemática da manutenção do patrimônio cultural indígena.
Pode-se afirmar, em relação à diversidade cultural brasileira que o povo indígena
sofre intensa discriminação, como aponta Dominique Tilkin Gallois (2006) por se
encontrarem em situação de minoria étnicas e linguísticas, fato agravado devido ao
“...próprio desconhecimento a respeito da diversidade desses povos” (GALLOIS, 2006,
p. 58).
Em relação as situações de discriminação, Teixeira Coelho (2011) observa que as
discussões sobre o valor da cultura além de ser uma questão complexa é urgente, pois
“...todo dia, em algum lugar, algum direito cultural é violado por uma pessoa individual,
um coletivo ou um Estado, ou está na iminência de o ser” (COELHO, 2011, p. 11).
Esse é o desafio que se coloca aos Wayãpi, por exemplo, na medida em que o
avanço econômico adentra na reserva, onde estão localizadas as aldeias indígenas, o povo
sofre com o processo de aculturação. Ainda segundo Gallois (2006) “...os jovens vêm
questionando os saberes dos mais velhos, evitando inclusive exibir marcas materiais de
seus costumes, para não enfrentar os preconceitos arraigados na população não-indígena
com a qual mantêm contato cada vez mais intenso” (GALLOIS, 2006, p. 59).
213
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
A preocupação é legítima, necessária e faz deste um tema central da pesquisa sob
o risco de que a liberdade cultural do povo Wayãpi seja extremamente prejudicada com
a liberação da atividade minerária na região da reserva. Assim, está evidenciada a
importância dos povos indígenas e dos seus conhecimentos para a humanidade, seja
quanto a utilização do meio ambiente de forma sustentável ou pelos ensinamentos que
perpetuam por gerações.
Neste momento é fundamental salientar a necessidade de conhecermos a cultura
indígena respeitando seus conhecimentos e o seu modo de vida. Como expôs Gallois
(2006) após questionar o líder da aldeia quanto a necessidade de valorização da cultura
indígena “Se os não-índios não respeitam nossa cultura, até os nossos próprios jovens
podem começar a desvalorizar nossos conhecimentos e modos de vida” (GALLOIS, 2006,
p. 59) apesar de que, muitas pessoas, na realidade, preferem ignorar os riscos ambientais
ao patrimônio cultural do povo Wayãpi e a invisibilidade social na qual essa minoria
étnica tem sido submetida.
E afirma:
Na América Latina, inclusive no Brasil, a diversidade dos povos
indígenas ainda é insuficientemente reconhecida. A relação que historicamente
o estado mantêm com “os índios”, um rótulo genérico que persiste junto à
desgastada tutela, continua mascarando as diferenças que existem entre os
mais de 210 povos, cujos modos de vida e tradições culturais são
dinamicamente atualizadas em acordo com suas próprias experiências de
convivência com outros povos, indígenas ou não (GALLOIS, 2006, p. 61).
Assim ciente da relevância dessa discussão é oportuno referenciarmos à Carta do
Cacique Seattle (1855) que apesar de ter sido escrita há mais de 100 anos, é cada vez mais
atual, ao afirmar que “Nós mesmos sabemos que o homem branco não entende nosso
modo de ser. Para ele um pedaço de terra não se distingue de outro qualquer, pois é um
estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa” (SEATTLE, 1855, p.1).
Fato é que “Todas as coisas estão relacionadas como o sangue que une uma família. Tudo
está associado. O que fere a terra fere também aos filhos da terra” (SEATTLE, 1855, p.1),
ou seja, percebe-se uma tendência em se considerar, desde há muito, a cultura indígena
com seus ensinamentos, tradições e crenças um indiferente social, o que demonstra a
ausência de respeito e principalmente de reconhecimento da diversidade cultural como
um Direito Fundamental.
Nestes termos, salienta Jesús Prieto de Pedro (2011) que a cultura é um elemento
essencial para o desenvolvimento pessoal do indivíduo e o estabelecimento da igualdade
e da solidariedade no seio social. E conclui:
[...] proponho entender os direitos culturais como aqueles direitos
fundamentais que garantem o desenvolvimento livre, igual e fraterno dos seres
humanos em seus diferentes contextos de vida, valendo-nos dessa singular
capacidade que temos, entre os seres vivos, de simbolizar e criar sentidos de
vida que podemos comunicar aos outros (PEDRO, 2011, p. 47).
214
O meio ambiente equilibrado como condicionante...
Essa breve explanação demonstra a profunda articulação entre o meio ambiente
equilibrado e a liberdade cultural do povo Wayãpi evidenciando a importância do
patrimônio cultural, tanto para a diversidade cultural como para o desenvolvimento
sustentável e a manutenção da biodiversidade na Amazônia. Reconhecer e valorizar a
liberdade cultural do povo Wayãpi, ou seja, suas tradições, rituais e os conhecimentos e
práticas relacionados à natureza que mantém o equilíbrio sustentável na Renca e suas
técnicas artesanais é a melhor forma de proteger a biodiversidade na Amazônia.
Conforme conclui Dominique Tilkin Gallois (2006) a melhor forma de garantir a
proteção da biodiversidade é por meio do incentivo e da valorização da diversidade
cultural de um povo, “...a criatividade cultural é um elemento chave para o
desenvolvimento humano” (GALLOIS, 2006, p.60).
5) Considerações finais
O trabalho ora realizado escolheu como objeto de estudo o patrimônio cultural
do povo Wayãpi, demonstrando a relevância do equilíbrio ambiental para a manutenção
da sustentabilidade na Amazônia, bem como para a diversidade cultural desse povo, que
desenvolve suas tradições, objetos, costumes e suas práticas alimentares em consonância
com a natureza, favorecendo a renovação dos recursos naturais e das tradições culturais
por gerações.
Respondendo à questão exposta na introdução da pesquisa, qual seja:
observando as situações de intervenção do homem no meio ambiente, é possível
concluir que o meio ambiente equilibrado é condicionante para a manutenção do
patrimônio cultural do povo Wayãpi? Têm-se a conclusão a seguir apresentada.
A cultura indígena, seus ensinamentos, crenças, traições, tem muito à contribuir
para o manejo sustentável do meio ambiente pelo homem. O povo Wayãpi busca na
natureza apenas o necessário para sua sobrevivência, mantendo o equilíbrio ambiental
como garantia de acesso a direitos fundamentais básicos, como saúde, educação,
segurança e a perpetuação de seus ensinamentos atravessando gerações.
Cabe destacar que a partir do momento que a liberdade cultural do povo Wayãpi
não é respeitada, sendo violadapor meio de intervenções do homem no meio ambiente,
perde-se a identidade de um povo que habita o Brasil antes mesmo de 1.500 e que
mantém o equilíbrio na natureza e a sustentabilidade ambiental.
Nesta perspectiva, o estudo permitiu compreender que o meio ambiente
equilibrado é um condicionante para o exercício dos outros direitos fundamentais e deve
ser visto como elemento integrante de uma vida com dignidade. E a melhor forma de
garantir essa dignidade é nos anteciparmos aos impactos ambientais por meio de
medidas de precaução, que garantirá a prevenção dos riscos iminentes e dos riscos
futuros sem comprometer as futuras gerações.
Conclui-se que existe uma profunda articulação entre o meio ambiente
215
Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes
equilibrado e a liberdade cultural do povo Wayãpi evidenciada pela importância do
patrimônio cultural, tanto para a diversidade cultural como para o desenvolvimento
sustentável e a manutenção da biodiversidade na Amazônia.
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218
A ARBITRAGEM NA RECENTE REFORMA DO
CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS1
Maria do Rosário Anjos2
1) Breves notas sobre a Arbitragem Administrativa em
Portugal
O presente contributo versa sobre a recente reforma do Código dos Contratos
Públicos em Portugal, e em concreto sobre a solução adotada pelo legislador português
em sede de resolução de litígios, por recurso à via arbitral.
A solução não se afigura propriamente inovadora, no que toca à possibilidade de
recurso à arbitragem, já que esta tem sido a via mais vulgar, desde há muitos anos, para
a resolução de litígios (dos grandes litígios) relativos à contratação pública. A novidade
tem a ver, outrossim, com as soluções concretas do regime jurídico agora introduzido, no
artigo 476º do CCP revisto, a qual não está isenta de reparos e tem recebido algumas
críticas contundentes, tecidas por autores apologistas da solução arbitral mas críticos do
regime jurídico agora vertido na lei. Vejamos, pois, a questão que está na origem desta
controvérsia.
O recurso à arbitragem voluntária para resolução dos litígios emergentes de
contratos públicos é uma realidade de longa data, em Portugal. Tradicionalmente, a
resolução deste tipo de litígios recorria à arbitragem ad hoc, de acordo com as regras da
Lei de Arbitragem Voluntária, caraterizada pela livre escolha dos árbitros, pela falta de
publicidade e transparência das suas decisões (secretas, por natureza, à luz do regime
jurídico resultante da LAV - Lei de Arbitragem Voluntária).
Desde 1984 com o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), ficou
clara a possibilidade de resolução de litígios por recurso à via arbitral, em matéria
administrativa.
O CPTA de 2003/2004 e o CCP de 2008 reforçou esta via de resolução dos litígios
administrativos, com particular relevo na contratação pública. Esta maior amplitude ou
abertura à arbitragem teve como principal razão a extrema morosidade dos tribunais
administrativos, à qual se junta a preferência pelo recurso a árbitros especializados nas
matérias em discussão, de particular complexidade, nomeadamente em sede de
1 Texto da Conferência proferida no II CIDIGIN, II CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE
DIREITO, GOVERNANÇA E INOVAÇÃO, realizado no IPMAIA, em 9 junho de 2018 – Conferências
Plenárias (Keynote speaker).
2 Doutora em Direito Público; Docente e Coordenadora do Mestrado em Solicitadoria do Instituto
Politécnico da MAIA (IPMAIA); Presidente do Conselho Técnico-Científico do IPMAIA; Docente da
Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto (ULP); Advogada; Árbitro CAAD em matéria
Tributária e Administrativa. Investigadora do IJP, N2i; I2J e Grupo de Investigación en Derecho Público
Global – Universidade da Coruña.
Maria do Rosário Anjos
contratação pública.
2) A
Arbitragem
institucionalizada:
a
criação
e
implementação de centros de Arbitragem com
competência em matéria administrativa
O alargamento do âmbito de matérias administrativas arbitráveis, abriu caminho
para a criação de centros de arbitragem institucionalizada. O primeiro centro de
arbitragem com competência administrativa foi criado em 2006, pelo Conselho Regional
da Ordem dos Advogados de Lisboa, designado por Centro de Arbitragem de Litígios
Civis, Comerciais e Administrativos da Ordem dos Advogados (CAL). A Ordem dos
Advogados esteve, sem dúvida, na origem deste novo meio de concretização do
imperativo constitucional de acesso ao direito e a uma decisão justa em tempo útil. Mas,
o reduzido número de processos, indicia que não tem sido um sucesso nesta matéria.
Em 2009, o legislador português decidiu avançar com a criação do Centro de
Arbitragem Administrativa (CAAD), centro de arbitragem pública, sujeito a regras de
transparência e publicidade das suas decisões, lista pública de árbitros e um conselho
deontológico que garante a ética e isenção necessárias à função. Importará referir que o
nascimento deste centro de arbitragem institucionalizada ocorreu após uma reforma
administrativa profunda em sede de regime jurídico do emprego público, com a
introdução da lei de vínculos e carreiras (LVCR) em 2008, acompanhada pelo novo
regime jurídico de avaliação de desempenho (SIADAP) e pelo estatuto disciplinar dos
trabalhadores que exercem funções públicas, introduzidos na ordem jurídica portuguesa
e plena aplicação a partir de 2008.
Ao tempo da criação do CAAD o número de processos pendentes nos tribunais
administrativos e fiscais (TAF) era superior a 45.000 (quarenta e cinco mil) segundo
números divulgados pela Direção Geral de Administração da Justiça. A situação era, pois,
caótica, reconhecida por todos os agentes de realização da justiça, entre os quais,
destacamos o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a ordem dos
Advogados, o Sindicato dos Funcionários Judiciais, e muitas outras forças da sociedade
civil que recorrentemente bradavam por maior celeridade e pela tutela jurisdicional
efetiva dos seus direitos, conforme decorre da Constituição da República Portuguesa.
A tudo isto se juntou a crise económica devastadora, com início em 2008, recidiva
em 2011 e a derrocada das finanças públicas do país com a necessidade de pedido de
ajuda internacional. Esta “tempestade perfeita” associada á descredibilização da justiça
determinou a impossibilidade de reclamar mais meios ou maior despesa para a
concretização do acesso à justiça pública, estadual, dispendiosa e escassa de resultados.
A reflexão sobre este tema, em si, determinaria uma outra conferência e outro plano de
discussão. Será, realmente, impossível pôr os nossos tribunais a funcionar com
celeridade? Valerá a pena refletir no que falhou e na melhor via de superar as deficiências
220
A arbitragem na recente reforma do código dos contratos...
de um sistema pensado para uma época em que
Chegados aqui, a verdade é que o alargamento da via arbitral parece irreversível.
Dito isto, importa salientar que, da análise estatística do número de processos
administrativos submetidos à apreciação destes centros de arbitragem nos últimos dez
anos, resulta que o recurso à arbitragem institucionalizada está longe de ser
impressionante. Na verdade, o CAL tem registado um número muito reduzido de
processos, podendo referir que, no ano de 2017, os dados divulgados pelo centro
apontam dois processos concluídos, 214 notificações expedidas, algumas diligências
efetuadas, 10 processos transitados de 2016 e 9 processos em curso.
O CAAD, em matéria de litígios administrativos, tem recebido em média 40 a 50
processos por ano, o que está muito aquém do elevado número de processos em matéria
tributária.
3) A Arbitragem em matéria de contratos públicos: o artigo
476º do CCP revisto
A recente revisão do regime jurídico dos contratos públicos em Portugal, para
transposição das Diretivas Europeias nºs 2014/23/UE, 2014/24/UE, 2014/25/UE e
2014/55/UE, introduziu, no seu artigo 476º, nº 2, um regime algo inovador nesta
matéria.
Aditado ao Código dos Contratos Públicos (CCP) por intermédio do Decreto-Lei
n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, o art.º 476.º vem, na mesma linha do CPTA, consagrar
a possibilidade de recurso à arbitragem institucionalizada ou a outros meios de resolução
alternativa de litígios, nos termos da lei, para a resolução de litígios emergentes de
procedimentos ou contratos aos quais se aplique o CCP (isto é, litígios emergentes de
procedimentos de contratação pública).
Inclui-se, assim, a impugnação de atos administrativos adotados no contexto de
procedimentos de contratação pública; pedidos de condenação à prática de ato devido;
questões respeitantes à responsabilidade civil das entidades adjudicantes; e, ainda, a
impugnação de normas administrativas contidas nas peças procedimentais.
Contudo, esta norma não se encontra isenta de críticas. A título de exemplo, é de
notar que, caso a entidade adjudicante opte pelo recurso à arbitragem, os interessados
em participar no procedimento concursal em causa terão de aceitar essa condição, o que
retira a natureza voluntária que caracteriza o recurso a este meio de resolução de litígios.
Embora não se trate de uma arbitragem necessária (por não ser imposta por lei),
também não podemos afirmar que se trata de uma arbitragem voluntária, uma vez que
só é verdadeiramente voluntária para a entidade adjudicante. Tal implica que, para além
dos impedimentos constantes no art.º 55.º do CCP, só poderão participar no
procedimento os interessados que renunciem o recurso aos tribunais do Estado,
221
Maria do Rosário Anjos
aceitando recorrer à arbitragem, nos termos estabelecidos pela entidade adjudicante. Só
poderão participar no procedimento os interessados que renunciem ao recurso aos
Tribunais do Estado, aceitando recorrer à arbitragem, nos termos estabelecidos pela
entidade adjudicante., o que é, no mínimo polémico.
Todavia, esta não é a única critica que podemos apontar á solução vertida no art.º
476.º do CCP3.
A revisão do CCP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto,
passa a estabelecer, no novo artigo 476.º, n.º 5, que, “nos litígios de valor superior a
500.000 €, da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal administrativo
competente, nos termos da lei, com efeito meramente devolutivo”.
Ora, como bem refere o Professor Doutor Rui de Medeiros (MEDEIROS, R.2018,
pg. 3) “A maioria da doutrina tende a interpretar o novo preceito legal no sentido de
que, para além da possibilidade de impugnação das decisões arbitrais prevista no
artigo 185.º-A do CPTA na revisão de 2015 – revisão que expressamente revogou o
anterior artigo 186.º, n.º 2, onde se lia que “as decisões proferidas por tribunal arbitral
também podem ser objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo, nos
moldes em que a lei sobre arbitragem voluntária prevê o recurso o para o Tribunal da
Relação, quando o tribunal não tenha decidido segundo a equidade” –, se pretende
reintroduzir a regra, eliminada na revisão do CPTA de 2015, do direito ao
recurso. É certo que há quem advogue uma “interpretação bem diferente” segundo a
qual “o recurso aí previsto é para ser exercido «nos termos da lei»”. Nesta leitura, “essa
expressão referir-se-ia à possibilidade de recurso e não ao «tribunal administrativo
competente». Ora, a ser assim, o recurso acima de 500.000 € só existe «nos termos da
lei», ou seja, se as partes convencionarem a sua existência, tal como estipulam os
artigos 185.º-A do CPTA e 39.º, n.º 4, e 46.º, n.º 1, da LAV. Já abaixo desse montante,
resultaria a contrario que nunca haveria lugar a recurso”.
Este Autor, bem assim como o Conselheiro Carlos Cadilha, entre outros que já se
pronunciaram sobre esta questão, suscita sérias dúvidas sobre a constitucionalidade da
solução. Este daria um bom tema para uma outra conferência.
Para finalizar, uma nota breve para a criação recente de um outro centro de
arbitragem, sob a égide da Associação Portuguesa de Mercados Públicos (APMEP),
criado por Despacho nº 7534/2016, de 7 de junho de 2016, do Gabinete da Exma.
Senhora Secretária de Estado da Justiça, o qual é talhado especificamente para este tipo
de arbitragem institucionalizada (apesar de ao tempo já existir o CAAD, centro de
arbitragem administrativa pública). Não deixa de surpreender que a criação deste Centro
tenha mesmo antecipado a reforma do próprio CCP e, tanto quanto me foi possível
3 Para
maiores desenvolvimentos, cfr., entre outros, MARTINS, A. G., “A arbitragem na contratação
pública: algumas questões”, in RDA, Nº 1 – Janeiro-Abril 2018. No mesmo sentido, Vd. Medeiros, R.
“Regime de recurso das decisões arbitrais no CCP revisto – uma reflexão constitucional”, in Cadernos
Sérvulo de Contencioso Administrativo e Arbitragem, #01.2018, pag. 3 – 22; e, ainda, Cadilha, C., “ A
arbitragem no novo CCP, in Conferência proferida no CAAD, em 8 de fevereiro de2018, in www.caad.pt.
222
A arbitragem na recente reforma do código dos contratos...
apurar, a recente Lista de árbitros foi constituída sem consulta pública para o efeito. De
notar que, no caso do CAAD, a lista de árbitros obedece a concurso, ou seja, a consulta
pública anual, permitindo um amplo acesso dos juristas com curriculum adequado aos
pressupostos legais de recrutamento, cm total transparência.
Estima-se para breve o alargamento da competência do CAAD em matéria
administrativa de modo a abranger o contencioso de contratação pública, no novo
formato, muito mais amplo, instituído pelo artigo 476º do CPP.
Ficam, no essencial, expostas as nossas maiores dúvidas em torno do regime de
recurso das decisões arbitrais no CCP revisto, que se traduzem, por um lado na natureza
obrigatória que assumirá nos casos da entidade pública assim o desejar e no regime de
recurso da decisão arbitral.
Estas duas questões, atento o elevado valor que estes processos podem assumir,
devem merecer uma particular atenção da comunidade jurídica.
Neste contexto, seria urgente a elaboração de uma lei da arbitragem
administrativa, já que o conjunto de normas que regulam esta matéria (v.g., art.ºs 180.º
a 187.º do CPTA e 476.º do CCP, bem como a aplicação subsidiária da LAV) não se afigura
suficientemente claro para responder a todas as especificidades que os litígios
emergentes do Direito Público acarretam.
Em conclusão, a nova solução introduzida no artigo 476º do CCP terá de ser
cuidadosamente aferida á luz dos princípios jurídico constitucionais vigentes na nossa
ordem jurídica. Não se pode aceitar sem alguma preocupação, que sejam afastados os
nossos tribunais administrativos deste contencioso, que envolve processos de elevados
montantes pagos pelo Estado ou outros entes públicos, sem que pelo menos, todos os
Centros de Arbitragem institucionalizada gozem de igual transparência, publicidade e
acessibilidade. A este propósito, espero que a arbitragem em contratação pública, tal
como está configurada no atual artigo 476º do CPP não se assuma como uma via opaca
ou menos transparente de realização da justiça administrativa, mormente, numa matéria
em que deve imperar o princípio da prossecução do interesse público e a boa
administração dos dinheiros públicos provenientes do colossal e por vezes desumano
esforço dos contribuintes portugueses.
Que o afastamento dos nossos Tribunais Administrativos e Fiscais destas
matérias que envolvem valores elevados e manifesta repercussão social e económica não
conduza ao desprestígio da arbitragem, pois daí resultaria uma dupla perda para a
concretização da boa administração da Justiça.
REFERÊNCIAS
ANJOS, M. R., “O âmbito Material da Arbitragem Tributária à luz da Jurisprudência
Arbitral”, revista Arbitragem tributária nº2 janeiro 2015, pág. 12 a 17
223
Maria do Rosário Anjos
__Reenvio Prejudicial por tribunal arbitral tributário e Imposto de Selo sobre aumentos
de capital - Comentário ao Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de
12 de Junho de 2014 - «Acórdão Ascendi» -Artigo publicado na Revista de Direito
da Universidade Lusófona do Porto – nº5
__O Âmbito material da Arbitragem Tributária à luz da jurisprudência arbitral, revista
Arbitragem Tributária, nº2, 2015, pp12-19
CADILHA, C. “A arbitragem no novo Código de Contratos Públicos”, in Conferência
CAAD, 08 de fevereiro de 2018, in www.caad.pt
MARTINS, A. G., “A arbitragem na contratação pública: algumas questões”, in RDA, Nº
1 – Janeiro-Abril 2018.
MEDEIROS, R., “Regime de recurso das decisões arbitrais no CCP revisto – uma reflexão
constitucional”, in Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo e
Arbitragem, #01.2018
224
NEOLIBERALISMO E PRECARIEDADE: O BRASIL
NO CONTEXTO DAS LUTAS GLOBAIS
Augusto Jobim do Amaral1
Cássia Zimmermann Fiedler2
1) Introdução
No ano de 2011, lutas sociais emergiram nas mais diversas partes do globo. Aquilo
que aparentemente apontava um contexto de instabilidade, como crise do capitalismo
global, teve seu início em meados de 2008. Porém, não se tratava de uma simples crise
econômica, e sim, de ocorrências que destacavam algo muito mais profundo. Uma
análise meticulosa das adversidades indicava fundamentalmente uma débâcle no modo
de governo neoliberal. Em suma, um modo de governo que controla a economia e os
indivíduos, buscando uma generalização do mercado e da concorrência.3 Assim,
poderíamos apontar uma ligação nem sempre óbvia entre a crise de representatividade
política e o esgotamento da democracia liberal, relacionando-as aos processos de
neoliberalização da vida que são desencadeados ao redor do mundo. Desta forma, esta
conjuntura, possivelmente, é capaz de expressar os rumos das sociedades no mundo
globalizado e financeirizado que se sustenta por princípios de concorrência
internalizados por pessoas e Estados. Nesse sentido, o movimento que aparece no Brasil
em junho de 2013 não seria consequência de uma crise econômica, mas sim de um malestar que transparece no sistema global4.
No Brasil, o movimento denominado “Jornadas de Junho”, que levou milhões de
pessoas às ruas, carregou uma complexidade de fatores que constituiu sua expressão
política. Em linhas gerais, pode-se dizer que o movimento teve início nas cidades de
Porto Alegre e São Paulo, através da convocatória do “Bloco de Lutas” e do “Movimento
Passe Livre”5. Os integrantes, preliminarmente, demandavam a diminuição no valor das
passagens do transporte público. Assim, as particularidades do cenário nacional serão
exploradas com a finalidade de exteriorizar as peculiaridades do movimento, em
especial, através da análise do modelo “lulista”, visto como saldo final uma decomposição
1 Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos
Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra. Doutor, Mestre e Especialista em Ciências
Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul (PUCRS).
2 Graduanda em Direito e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul
(PUCRS). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa “Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica”
(PUCRS). Bolsista de Iniciação Científica do projeto “Poder Punitivo e Criminalização de Movimentos
Sociais: o caso das jornadas de junho de 2013 em Porto Alegre”
3 DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade
Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 27
4 BONFIGLI, Fiammetta. Jornadas de Junho?: movimentos sociais e direito nas ruas de Porto
Alegre. Canoas: Unilasalle, 2017. p. 93.
5 MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler
do corpo político brasileiro e o esgotamento da esquerda.6
2) Neoliberalismo e o ciclo global de lutas
No ano de 2008 a crise econômica e financeira em termos mundiais, alavancada
pela bolha imobiliária e representada simbolicamente pela falência do Banco de
Investimentos Lehman Brothers, tomou desdobramentos inéditos ao menos desde 1929.
Tal derrocada, em grande medida, é fruto de políticas neoliberais. Porém, longe de
destruir a lógica concorrencial, como muitos anteciparam na Europa e Estados Unidos,7
causou sua rigorosa fortificação. Assim, estes efeitos não foram suficientes para apontar
o esgotamento do neoliberalismo. Justamente o contrário. Em situações de
desequilíbrio, o neoliberalismo possui uma colossal capacidade de ganhar força, na
medida em que há a implantação de novas normas e instituições que fortalecem sua
lógica concorrencial8.
Não obstante, o ataque direciona-se para as classes subalternas. Vulnerabilizados
passam a pagar pela crise por meio de planos de austeridade e da diminuição do padrão
de vida9, medidas essas, em grande medida, centradas no ataque aos direitos sociais.
Logo, natural que sindicatos e partidos trabalhistas tenham sido drasticamente
enfraquecidos pelas mudanças econômicas e políticas que se construíram nesse contexto
mundial. Consequentemente, é possível observar uma preliminar dessindicalização nos
países capitalistas desenvolvidos, resultando na desindustrialização e uma deslocação de
fábricas para países com salários baixos, sem tradição de movimentos sociais, ou até
mesmo, com governos despóticos10. Em suma, há um deslocamento da estrutura
industrial dos países do Norte global para os países do Sul global11, enfraquecimento da
segurança ocupacional, gerado por uma retirada de direitos trabalhistas, e uma
diminuição de apoio a partidos social-democratas. Assim, existe um declínio das forças
sindicais, gerando uma queda da influência política dos trabalhadores em escala
nacional12.
SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 96-97.
DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade
Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 13
8 Idem, p. 14.
9 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo:
Boitempo, 2017. p. 23.
10 DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade
Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 221
11 “[...] “Sul Global” contém uma dimensão explicitamente política, atada aos protestos e às
denúncias das relações de exploração, opressão e espoliação impostas pelo Norte Global à semiperiferia do
sistema, os quais intensificaram as tensões entre a forma democrática da regulação política e a dimensão
autoritária do regime de acumulação financeirizado.” (BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e
neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 30-32).
12 “Em escala global, a densidade sindical, apesar de alguns avanços e recuos sazonais, é declinante.
Além disso, os sindicatos alternativos ao burocratismo fordista organizam apenas uma pequena parte dos
trabalhadores, e a maioria de suas bases sociais vive em países relativamente ricos do Norte global, onde a
participação das classes trabalhadoras na população economicamente ativa segue estagnada ou baixa”.
Idem, p. 26.
6
7
226
Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das...
Apesar das questões expostas, fica claro que a introdução de políticas neoliberais
e a precarização do trabalho vieram conjuntamente com a intensificação da resistência e
lutas sociais nas mais diversas áreas do planeta.13 Pode-se dizer que a possibilidade de
negociação dos sindicatos enfraquecidos vai se dissipando, fazendo com que os protestos
apareçam e, através deles, se façam exigências aos governos. De Seattle a Porto Alegre,
movimentos emergem de forma “espontânea” no contexto da nova onda de
mercantilização que surge em virtude da globalização14.
Aquilo que demandavam os novíssimos movimentos sociais15, com marchas no
Oriente Médio (Tunísia, Egito, Síria, Líbia etc.), poderia ser traduzido basicamente por
dois gerais eixos: democracia e liberdade de expressão. Já na Europa, ambiente mais
próximo da realidade brasileira, se apresenta uma resistência a reformas econômicas,
desemprego e uma rejeição a políticos que botam em prática ações que não se alinham
aos interesses da população. Basicamente, no cenário Europeu, teremos o levantamento
de questões que se ligam a matérias socioeconômicas e políticas esquecidas desde 1960.
As explicações para tal acontecimento se multiplicam cada vez mais, porém, a maioria
perpassa pela aplicação de políticas socioeconômicas excludentes do capitalismo
globalizado, que consequentemente aumentam a assimetria social16.
Especificamente no Sul Global, o avanço do processo de acumulação econômica
e a mercantilização do trabalho irá estimular a aparição de movimentos em proporções
nacionais, como forma de resistência frente à tentativa de eliminação do modelo sindical.
Logo, à medida em que se operacionalizam estratégias para reduzir direitos sociais e o
custo do trabalho, há um crescimento do poder de organização do trabalhador e
intensificação de lutas sociais. Tais processos podem ser compreendidos a partir do
entendimento da transformação dos setores industriais no contexto da globalização
capitalista. A modernização imposta pelo assíduo cenário da concorrência mundial
implementa uma reestruturação empresarial que reinventa prioridades e abandona o
mercado interno em benefício do mercado internacional.
Os mais atingidos são trabalhadores com baixo grau de escolarização e que estão
a mais tempo no meio industrial. Entre os mais antigos e a nova geração de trabalhadores
tensões são presentes. Os mais jovens se adaptam com menos relutância a mudanças,
por exemplo. O que não é muito aceito pelos trabalhadores mais experientes, pois essa
conformidade dá uma ideia de conciliação entre o novo trabalhador e o discurso,
teoricamente, desvantajoso da gerência. Tal situação pode ser constatada no cenário de
Portugal, que tem uma marcante inserção de jovens em condições precárias de trabalho
e também inserção, que começa ainda nos anos 1960, de mulheres no setor terciário do
país. Por conseguinte, formas tradicionais de opressão a mulher são intensificadas pela
inserção da mulher em ambientes de precarização do trabalho característica do pósIdem, p. 26-27.
Idem, p. 29.
15 CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.
Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
16 GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2014. p. 22-23
13
14
227
Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler
fordismo financeirizado que se dá a partir de uma acumulação acelerada acompanhada
por políticas de privatização do sistema bancário e liberalização do fluxo de capitais
financeiros em Portugal.17
Em suma, tratamos aqui, segundo Dardot e Laval, de uma crise global do
neoliberalismo como modo de governar os homens. Tal cenário estaria profundamente
ligada a uma série de experimentações que se deram entre os anos 1930 até 1970.
Experimentações essas que começaram uma série de introduções de políticas de
desregulação da economia e privatizações. Em 1980, regras com relação ao setor
financeiro, que antes se centravam na proteção dos efeitos da concorrência, já haviam se
modificado no sentido da proteção da própria concorrência. Assim sendo, já poderíamos
descrever regras de uma concorrência universal que obrigam os países a entrarem em
um sistema disciplinar mundial. É possível observar que a exigência da competividade
se torna geral, comandando reformas em todas as áreas. Tratamos, portanto, não apenas
de uma mercantilização, mas da expansão de uma racionalidade do mercado que irá
definir toda a existência humana, generalizando a concorrência e colocando-a como
norma de conduta, assim como define o modelo de empresa como aspecto de
subjetivação18.
3) O esgotamento da esquerda no Brasil
Quando tratamos especificamente do contexto brasileiro, poderíamos apontar o
desenvolvimento de um modelo fordista periférico que se comporta de diferentes
maneiras ao longo da história. Porém, o principal ponto é a superação desse fordismo
periférico por um regime de acumulação pós-fordista e financeirizado que se instala em
1994 e se perpetua até os dias atuais. É a vitória eleitoral de Fernando Collor em 1989
que assegura o ingresso do neoliberalismo no cenário brasileiro a partir de ajustes no
modo de regulação e acumulação que garantem o nascimento do pós-fordismo
financeirizado no país.
Quando Lula assume a presidência há, de fato, um ajuste nesse modo de
regulação, porém, pode-se constatar que a regime de acumulação se consolida facilmente
ao longo dos anos 200019. A era Lula foi marcada pela fusão de movimento sociais ao
aparelho do Estado e o efeito eleitoral de promessas redistributivas que garantiam a
desconcentração de renda. Além disso, houve ampliação do programa Bolsa Família,
aumento do salário mínimo e concessão subsídio ao crédito popular, o que resulta em
um crescimento econômico e fortalece a formalização das pessoas no mercado de
Idem, p. 50-60.
DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade
Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 27- 32.
19 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo:
Boitempo, 2017. p. 97.
17
18
228
Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das...
trabalho20.
[...] há uma espécie de aceitação tácita do capitalismo como
insuperável numa vasta gama de movimentos e partidos, inclusive dentre
muitos que se autoproclamam de esquerda. Desse ponto de vista, ser de
esquerda parece significar certa devoção para “minorar” as difíceis condições
de vida de alguns setores sociais. Esse tipo de atitude adota a postura da
filantropia mercantilizada e banaliza a suposição do fim do trabalho e das
classes sociais, supostamente substituídas pela pobreza, excluídos, vulneráveis
etc.21
Entre os grupos que podem ser enfatizados durante essa etapa da formalização
do trabalho poderíamos apontar principalmente os operadores de telemarketings. Esse
grupo traduz os rumos do mercado no Brasil na última década: formalização, presença
de mulheres e pessoas jovens não brancas, terceirização, baixos salários e aumento da
taxa de rotatividade no trabalho22. Por conseguinte, a partir do exame desse enredo, se
abre a possibilidade de visualizar as contradições dentro do modelo pós-fordista, visto
que, apesar da ampliação da formalização, existem condições precárias de trabalho que
proporcionam circunstâncias que perpetuam uma angústia social.
Até a chegada da crise da globalização em 201523, os efeitos da inserção de
políticas neoliberais no cenário brasileiro foram sendo retardadas pelos empregos
formalizados. Dessa forma, o mercado de trabalho permanecia estável e a
desconcentração de renda não sofria graves alterações. Entre 2003 e 2015 há, portanto,
um modelo pós-fordista apoiado na formalização de empregos, desconcentração de
renda, conjuntamente com a precarização do trabalho. Vale ressaltar, esses novos
trabalhadores não tendem a poupar. A alta do consumo se relaciona intimamente com o
baixo custo de mercadorias, o que proporciona cada vez mais um aumento do estilo de
vida capitalista. O país se vê caracterizado por um padrão pós-fordista que acumula e
multiplica bens, enquanto se apoia no endividamento de famílias trabalhadoras24.
Quando falamos especificamente do trabalho no governo petista há duas
tendências aparentemente contraditórias. No cenário pode ser observada a formalização
do trabalho em larga escala, ao mesmo tempo que há um aumento da terceirização das
atividades, o que acaba desenvolvendo uma precarização e diminuição dos salários.
Assim, mesmo formalizadas as pessoas ocupavam posições sub-remuneradas. Os novos
empregos formais produziam uma sensação de insegurança muito parecida com a
sensação que a informalidade trazia, pois há, como descrito anteriormente, uma relação
Idem, p. 99.
FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Kallaikia –
Revista de Estudos Galegos, n.2, p. 88-112, junho de 2017. p. 111.
22 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo:
Boitempo, 2017. p. 99.
23“[...] as tensões mais ou menos latentes entre o regime de acumulação e o modo de regulação,
amainadas durante o período de boom econômico, foram se intensificando com a chegada da crise da
globalização ao país, a pronto de se transformar em uma contradição social aberta” Idem, p. 117.
24 Idem, p. 105-107.
20
21
229
Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler
íntima entre a terceirização e o regime de acumulação pós-fordista e financeirizado.
Poderíamos dizer que existe uma melhora na situação brasileira, porém a lógica
neoliberal não é rompida. Tratamos de um contexto em que há um enfraquecimento do
modelo solidário fordista provocado por empresas reprodutoras da lógica neoliberal e
pelo padrão de consumo que se estabelece no pós-fordismo. Avanços em relação a
trabalhadores sindicalizados entram em choque com a precarização das classes
subalternas. Ou seja, passa a existir uma relação complexa entre as demandas dos
trabalhadores e políticas neoliberais que são postas em prática pelo Partido dos
Trabalhadores. Apesar de parecer um partido predominantemente de esquerda, o
governo pareceu ter consolidado um Estado incoerente.
[...] Estado não existe fora e acima das contradições de classe
concretamente existentes. Ele atua ex ante apoiando e ampliando as condições
de expansão para o capital, aplainando os obstáculos legais. Atua também ex
post, seja na legalização das práticas empresariais que ignoram as leis de
maneira massiva, seja frente às reivindicações concretas dos trabalhadores,
quando admite alguns freios às formas mais drásticas, introduzindo
modalidades de amenização política das condições precárias de trabalho ou do
desemprego25.
Nesse sentido, poderíamos observar o surgimento de uma mercantilização do
ativismo social que fortalece a burocratização do movimento sindical que se junta ao
Estado. Trata-se do estabelecimento de uma intimidade entre empresários e sindicalistas
que estabelece uma gestão competitiva nos moldes do liberalismo.26 Assim, a era Lula foi
de extrema importância para o movimento sindical, contudo também foi uma era
marcada pela absorção do próprio sindicalismo para dentro do Estado, transformando a
elite sindicalista em uma administradora do investimento capitalista27. Existe, dessa
forma, uma elite sindical que busca se fundir com o Estado para assegurar sua posição
privilegiada.
Vale ressaltar: acompanhando o momento pós-fordista, poderíamos constatar,
como já foi dito, um maior acesso a direitos conjuntamente com a diminuição dos
salários e o aumento das condições precárias de trabalho. Todo essa conjuntura que se
constrói pressiona fortemente os sindicatos para que respondam às demandas. Os
sindicalistas em um primeiro momento procuram diminuir a distância entre o
trabalhador e a regulação, através do Estado. Quando essa tática parece perder efeito, os
sindicatos passam a liderar greves28. Em suma, o aumento da constrição das bases
sociais, impede um governo e sindicatos totalmente despreocupados que buscam
atenuar a situação. Existe um movimento sindical, pressionado pela população
FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Kallaikia –
Revista de Estudos Galegos, n.2, p. 88-112, junho de 2017. p. 97 .
26 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo:
Boitempo, 2017. p. 171.
27 Idem, p. 105.
28 Idem, p. 117.
25
230
Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das...
submetida a condições intoleráveis, que é obrigado a negociar com empresas e com
governo para dar algum tipo de resposta ao povo. Historicamente o movimento sindical
brasileiro exerce uma posição de agente que desempenha funções moderadoras com
relação a demandas da população, na era Lula isso se mantém.
Esse padrão, que não parecia verdadeiramente romper com as organizações
tradicionais, pareceu estar ameaçado durante os anos de 1978 até 1980 quando se deu o
clico grevista no chamado ABC paulista29. Lideranças políticas do sindicalismo, com Lula
da Silva em posição de chefia, são presas pela ditadura civil-militar, e o sindicado dos
Metalúrgicos, localizado em São Bernardo do Campo, passa a ser submetido a
intervenções do regime antidemocrático. A princípio parecia acontecer uma ruptura
entre o sindicalismo, subproduto do Estado brasileiro, e o movimento dos trabalhadores
em si. Porém, em pouco tempo, São Bernardo do Campo volta a se conciliar com as
estruturas de poder, isto é, com o aparelho do Estado Brasileiro do qual é fruto.
Por aproximadamente duas décadas, Lula da Silva defendeu de forma prática
ideias reformistas alimentadas por movimentos sociais que institucionalizam os direitos,
ao mesmo tempo em que, a burocracia sindical que Lula liderava soube se alinhar a
impulsos classistas que sustentavam greves e reproduziam logicas capitalistas. Em suma,
o sindicalismo liderado por Lula aderiu perspectivas que são caracterizadas pela
reprodução do capitalismo na semiperiferia. Por esses motivos, teremos a construção de
uma importante figura que se apresenta como líder sindical e como político profissional,
características essas que influenciam drasticamente a construção do PT e possibilitam a
vitória na eleição presidencial em 200230.
Assim, no contexto brasileiro, poderíamos apontar uma relação de dominação
que se sustenta na dinâmica entre o consentimento passivo dos setores populares e o
consentimento ativo das gerências dos movimentos sociais31. O sucesso desse governo,
predominantemente de esquerda no Brasil, se deu basicamente por causa de um razoável
momento econômico combinado com um reformismo debilitado, o que resultava em
uma mínima desconcentração de renda que torna-se sedutora para as classes ditas
desprivilegiadas.
[...] a desconcentração de renda promovida pela tríade políticas
públicas redistributivas, crescimento econômico e formalização do mercado de
trabalho garantiu a absorção daquela massa de trabalhadores pobres incapaz
de poupar e que transforma toda a entrada de dinheiro na base da pirâmide
salarial em consumo.32
Em síntese, além de uma fadiga no suposto modelo de desenvolvimento, que se
apoia no alto consumo das pessoas que são mão de obra barata, teremos o
29 ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho - o confronto operário no ABC paulista: as greves de
1978/80. São Paulo: Unicamp, 1988.
30 Idem, p. 100-101.
31 Idem, p. 102.
32 Idem, p. 103.
231
Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler
aprofundamento da crise da globalização que acompanha mudanças no regime de
acumulação pós-fordista e financeirizado vigente no país, trazendo uma diminuição do
crescimento da economia. Assim, é possível acompanhar um estado de inquietação social
entre os anos de 2005 e 2010 que se transfigura em um indignação popular generalizada
em 2013. Se trata basicamente de um processo histórico interno, mas também de uma
dinamicidade estabelecida entre os países que se relacionam no contexto global
neoliberal.33
4) Conclusão
Movimentos sociais tem longa tradição na história do Brasil. Com o pretexto
baseados nos mais diversos temas, em inúmeros momentos históricos, surgiram
marchas ao redor do país. Porém, as marchas e protestos na atualidade carregam
determinadas peculiaridades. Entre 1980 e 1990, teremos demandas como o retorno da
democracia e reivindicações do meio rural, especificamente daqueles que se
autoproclamam os “sem-terra”. 34 Atualmente, os protestos protagonizados tem
expressam pedidos que poderiam ser descritos como “gerais e variados”, trata-se muito
mais de uma rejeição daquilo que está posto do que um definição concreta de qual
caminho se quer percorrer.
“Os novos movimentos sociais, a princípio, não incorporam utopias
grandiosas de emancipação social que exijam clareza político-ideológica. Pelo
contrário, eles expressam, em sua diversidade e amplitude de expectativas
políticas, uma variedade de consciência social crítica capaz de dizer “não” e
mover-se contra o status quo.”35
Entre 2003 e 2014, o Brasil experimentou uma tentativa de implementação de
um modelo de desenvolvimento socioeconômico que a princípio parecia bem-sucedido,
não apenas para aqueles que integravam o governo, mas para os expectadores
mundiais.36 No entanto, André Singer, cientista político, descreve o modelo como um
“reformismo fraco”37, ou seja, um modelo que não traz uma reforma estrutural e não
quebra com a ordem institucional. Assim esse modelo se mostrou como um
empreendimento repleto de contradições, resultando em seu eventual esgotamento. O
governo Dilma, que estava inserido dentro programa lulista, já apresentava, em seu
segundo mandato, uma política econômica em direção a repercussões neoliberais que
serão radicalizada por aqueles que irão tomar o poder38.
A ilusão do lulismo é baseada na ideia de que seria possível se manter no poder
Idem, p. 225.
GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2014. p.64.
35 ALVES, Giovanni et al. Ocupar Wall Street e depois? Occupy. Movimentos de protesto que
tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 36.
36 SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p.79
37 SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
38 SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 79 -81.
33
34
232
Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das...
apenas possibilitando um processo de ascensão social para a população. Porém, as
contradições internas expunham uma fragilidade estrutural. Basicamente, existiu uma
conservação de núcleos de poder e modelos de negociação que preservam sua estrutura
oligárquica. Em mais de dez anos de governo nenhum passo foi dado para concretização
de desfechos mais profundos como o aprimoramento de mecanismos de uma democracia
direta. O preço que a esquerda paga por abraçar o “respeito à estabilidade da democracia”
em detrimento de uma transformação de governabilidade, será a morte. A política foi
abandonada, restou espaço apenas para uma deplorável gestão39.
A Copa do Mundo de Futebol que encontrou-se no Brasil, contrastou com a
fragilidade da vida nas cidades brasileiras e evidenciou os paradoxos do governo de
esquerda. Dentro dos mesmos espaços foi possível observar o aparecimento de estádios
milionários, ao lado de regiões com uma circulação de ônibus superlotados onde se
encontravam trabalhadores, o que faz uma proposta de aumento de passagem, soar como
no mínimo, contraditória. Basicamente, se tratava de uma vontade de lucrar derivada
das empresas privadas de transporte, encoberta pelas explicações economicistas dos
governos municipais e estaduais40. Tal atrevimento revela-se com uma natureza política
que visa vantagem em detrimento de mínimas condições de vida para os trabalhadores.
A compreensão dos fatos, se transmuta em uma luta política que toma corpo nas
manifestações de junho no Brasil.
Em junho de 2013, o Brasil experimentou protestos que, definitivamente,
marcaram sua história. Milhões de pessoas ocuparam espaços físicos e digitais,
manifestando sua imprevista indignação. Os prognósticos foram os mais diferenciados,
desde reducionismos até analises banhadas em afetos e paixões, poucos perceberam que
o cenário que se apresentava carregava uma complexidade dificilmente traduzível em
palavras. Para alguns, como Vladimir Safatle, o movimento é considerado o mais
importante da história recente, não pelo que foi construído, mas pelo que foi destruído.
Basicamente, é possível visualizar o desmantelamento da esquerda brasileira41. O cenário
estaria marcado por uma frustação social em relação aos representantes tradicionais,
comprometidos com consórcios governistas. A estreita ligação entre o governo e a
iniciativa privada facilita a ação do mercado, levando a população a sentir de forma
rigorosa o esgotamento da democracia que se traduz, entre muitos aspectos, na
higienização promovida pelo governo para sediar eventos mundiais42.
Assim, surgem greves espontâneas e uma ascensão de estruturas autônomas.
Dessa forma, mesmo o governo dito de esquerda não hesitou em responder a frustração
popular com a criminalização. Ao se deparar com manifestações, aparentemente, sem
líder definido, as organizações esquerdistas perceberam que estavam atrasadas. Em
Idem, p. 85-87.
Bruno. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho – outubro).
São Paulo: Annablume, 2013, p. 115.
41 SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 107.
42 VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações
que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, 2013, Boitempo. p. 33-40
39
40CAVA,
233
Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler
síntese, a hierarquização e centralização típica desse tipo de organização era incapaz de
se incorporar ao processo revoltoso43. A velha política, sem compreender o momento
histórico que a estrangula, se pergunta “quem são os líderes”, “com quem devemos
negociar?”44. Por esse motivo, 2013 foi inicialmente marcado, como já foi explicitado, por
movimentos emancipados e sem partido.
Por fim, poderíamos arriscar em dizer, que o motivo comum que pauta o
momento revoltoso mundial é, em grande medida, marcado pelos efeitos diários do
neoliberalismo. Ele transforma o capitalismo e as sociedades e influencia os contextos
globais e individuais, disseminando uma lógica concorrencial, pautada no capital, para
as relações humanas e comerciais. Levar o neoliberalismo a sério é observa-lo como um
gestor de vidas. Só assim é possível questionar o status quo que o neoliberalismo
mantém. Se quisermos, de fato, ter uma chance de resistir ao neoliberalismo, será
necessário abrir uma alternativa positiva que se sustente em uma capacidade coletiva
que use a imaginação para possibilitar novas experimentações e lutas.45 Muito
conveniente seria, talvez, experiências e lutas que não aprisionam através da demanda
pela determinação, independentemente daquilo que está por trás dos movimentos. É
necessário a valorização dos momentos subversivos por eles mesmos, o que resulta, pelo
menos de forma primária, no estilhaçamento das algemas da domesticação que aprisiona
os pensamento e a ações, produzindo uma possibilidade totalmente inesperada de
experiências verdadeiramente profundas. Dessa maneira, colocar o sistema em questão
já se apresenta como uma conduta radicalmente subversiva.46
REFERÊNCIAS
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que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 2012.
ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho - o confronto operário no ABC paulista: as
greves de 1978/80. São Paulo: Unicamp, 1988.
AMARAL, Augusto Jobim do. Polícia e democracia. O tempo que resta das jornadas de
junho de 2013. Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, v. 6, n. 2. jul.-dez. 2014.
BONFIGLI, Fiammetta. Jornadas de Junho?: Movimentos sociais e direito nas ruas de
Porto Alegre. Canoas: Unilasalle, 2017.
BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São
43SAFATLE,
Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 107 -113.
CARVALHO, Salo de. Contracultura e ativismo na web: os movimentos sociais, a “era das
marchas” e a reinvenção da política. In: OLIVEIRA, Rafael Santos de. Direito e novas tecnologias da
informação. Curitiba: Íthala, 2015.
45 DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade
Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 9
46 AMARAL, Augusto Jobim do. Polícia e democracia. O tempo que resta das jornadas de junho de
2013. Revista Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 174-195, julho-dezembro de 2014.
44
234
Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das...
Paulo: Boitempo, 2017.
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da
internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
CAVA, Bruno. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho –
outubro). São Paulo: Annablume, 2013.
CARVALHO, Salo de. Contracultura e ativismo na web: os movimentos sociais, a “era das
marchas” e a reinvenção da política. In: OLIVEIRA, Rafael Santos de. Direito e
novas tecnologias da informação. Curitiba: Íthala, 2015.
DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a
Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2014.
MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre
e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho.
Kallaikia – Revista de Estudos Galegos, n.2, p. 88-112, junho de 2017.
SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017.
VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes: Passe livre e as
manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013
235
TESTAMENTO VITAL: SUA APLICABILIDADE NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Margareth Vetis Zaganelli1
Larissa de Pizzol Vicente2
1) Introdução
Com as recentes tecnologias torna-se possível estender a vida e evitar a morte.
Entretanto, ao mesmo tempo que em este fato encontra respaldo positivo, surgem
indagações se este paciente deseja se submeter ao tratamento a ele imposto, muitas vezes
desgastante, invasivo e desproporcional. A bem da verdade, muitos indivíduos desejam
uma morte natural e aceitam o fim da vida sem recorrer a métodos que prolongam a dor
e o sofrimento, sem chances de obterem resultados satisfativos.
O notável avanço médico vivenciado nos últimos tempos permitiu a inserção de
novos métodos que permitem o prolongamento da vida, como técnicas de reanimação,
transplantes e ventilação assistida. A moderna medicina que afasta a morte vem
propiciando inúmeros debates sobre a adequação de recursos médicos em pacientes
terminais. Seriam eles métodos invasivos, desproporcionais e extraordinários?3
A bioética surge para aplicar a ética e os princípios constitucionais em todo este
progresso médico. O paciente terminal, amparado pela autonomia privada, possui o
direito de optar pela realização ou não da técnica médica a ser aplicada quando já não
possuir discernimento, ou seja, quando estiver incapaz irreversivelmente em decorrência
de doença, acidente, etc. Para a manifestação desta autonomia, o indivíduo utilizará do
testamento vital, ou também conhecido testamento biológico, documento que conterá a
sua vontade de forma expressa e será utilizado pelo médico quando necessário.
Ademais, o indivíduo possui a liberdade para se expressar e a autodeterminação
asseguradas pela Constituição Federal. A partir de outra percepção, cria-se a dúvida de
como conciliar esta autonomia garantida pelo Estado Democrático de Direito aos
cidadãos com a indisponibilidade do direito à vida. Em suma, o testamento vital é gênero
que - junto do mandato duradouro – faz parte das diretivas antecipadas da vontade,
documentos em que se expressa a vontade pessoal a respeito de tratamento e técnica
médica. As diretivas objetivam garantir a morte digna a pacientes que encontram-se em
situações irreversíveis de doença, sem chances de obter a cura.
1 Doutora em Direito (UFMG); Mestre em Educação (UFES); Estágios Pós-doutorais na Università
di Bologna (Unibo), na Università di Milano-Bicocca (Unimib) e na Università Degli Studi Del Sannio
(Unisannio); Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora
do BIOETHIK - Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética (UFES). E-mail: mvestis@terra.com.br
2 Graduanda do Curso de Direito (UFES) e pesquisadora científica PIBIC 2017/2018. Membro do
BIOETHIK – Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética (UFES). E-mail: larissadpvicente@gmail.com
3 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016, p.
106.
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente
Embora o testamento vital tenha amparo constitucional garantido pela
autodeterminação e pela dignidade da pessoa humana, o Brasil, diferentemente de
diversos países ao redor do mundo, ainda não estabeleceu lei específica para
regulamentar a matéria. O sistema brasileiro conta apenas com Resoluções do Conselho
Federal de Medicina que, embora importantes, não possuem relevância jurídica e
eficácia vinculativa de todos.
O presente estudo tem por intencionalidade artigo abordar de forma pontual toda
a problemática no entorno do testamento vital, por meio de metodologia qualitativa
descritiva, com base em pesquisa bibliográfica e em documentos nacionais e
internacionais, analisando os direitos e princípios envolvidos nas decisões dos pacientes,
as características deste documento, sua forma e limites. Ademais, a regulamentação do
testamento vital em diversos países, como Portugal, Espanha e Estados Unidos, será
objetivo de estudo para uma maior compreensão acerca da necessidade de positivação
deste documento no ordenamento jurídico brasileiro.
2) Diretivas antecipadas da vontade e testamento vital:
definição destes mecanismos e aplicação na relação
médico-paciente
Diretivas antecipadas da vontade são documentos elaborados por indivíduos para
encaminhar e delimitar o seu próprio tratamento médico, gerando seus efeitos a partir
da incapacidade destas pessoas. Assim, as diretivas estão sempre relacionadas a danos
irreversíveis ou à doenças terminais em enfermos. Estas instruções escritas contém duas
modalidades: mandato duradouro e testamento vital.
O mandato duradouro se relaciona à escolha de uma terceira pessoa para tomar
as decisões. Com efeito, há delegação do poder de escolha para uma pessoa de confiança,
ao contrário do testamento vital, em que o próprio paciente, expressa a sua vontade, por
intermédio da autonomia privada. O objetivo deste trabalho é discorrer de forma crítica
sobre este segundo gênero.
Pois bem. Os debates travados no âmbito do testamento vital, documento
conhecido também como testamento biológico, remetem à década de 1960 nos Estados
Unidos, quando Luiz Kutner defendeu em um artigo a tomada de decisão do paciente a
respeito de seu próprio cuidado médico, desde que já constasse a impossibilidade de cura
da enfermidade. Desta forma, Kutner propôs o Living Will, espécie de documento que
especificaria a recusa aos tratamentos médicos, era a base formal do testamento
biológico que conhecemos.
Este documento propõe que o paciente, em sua plena capacidade, determine os
procedimentos médicos que anseia para o seu próprio cuidado, garantindo a autonomia
de decisão ao paciente e o respaldo legal para o profissional da saúde tomar decisões
face a existência de conflitos de interesses. O testamento vital deve, portanto, apresentar
238
Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico...
duas características primordiais: facilitar o planejamento da morte e reforçar a
autodeterminação dos doentes acerca das recusas aos tratamentos médicos que
considera desproporcionais.4
No testamento vital a pessoa dispõe o seu desejo caso fique inconsciente em
decorrência de cirurgias ou doença grave. Este desejo relaciona-se com a opção da pessoa
de não aceitar a manutenção da vida de forma artificial ou, ainda, que “em situações em
que venha a perder a consciência de modo prolongado, seus negócios sejam geridos por
determinada pessoa e segundo determinadas instruções”.5 Assim, com a declaração de
forma escrita e expressa surge o testamento vital, ato complexo que se resume como o
desejo de última vontade.
Embora o testamento vital não esteja regulamentado na legislação brasileira, a
doutrina pátria tem discutido a necessidade de sua aplicação prática e de sua positivação
no campo jurídico brasileiro, como observado em diversos países. O Conselho Federal de
Medicina já adentrou à este âmbito com suas Resoluções a respeito do testamento vital,
relacionando-o sobretudo à ética médica e à relação médico-paciente.6
Ademais, como ressalta Adriano Marteleto Godinho:
o fato de inexistir previsão legal sobre o testamento vital no país não
significa que se possa proclamar uma suposta incompatibilidade: em
consonância com os princípios e normas que imperam ordenamento brasileiro,
nada impede que se reconheça a validade daquele instrumento, que nada mais
representa que uma relevante expressão da autonomia dos pacientes, com a
particularidade, neste caso, de se tratar de um instrumento previamente
elaborado, com o intuito de estabelecer diretrizes sobre intervenções médicas
supervenientes.7
Hoje, com o desenvolvimento das novas tecnologias e dos diversos debates
travados no âmbito dos princípios constitucionais e bioéticos da autonomia privada e da
dignidade da pessoa humana, surge a reflexão sobre os direitos que se enquadram no
âmbito do paciente terminal e da relação médico-paciente. Estaríamos falando de um
direito de optar pela morte? Segundo Leo Pessini o que existe é um direito de “viver a
própria morte”.8
4
NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016, p.
109.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Sucessões. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 237.
Cleiton Francisco; STEFFANI, Jovani Antônio; BONAMIGO, Élcio Luiz; BORTOLUZZI,
Marcelo Carlos; SCHLEMPER JR., Bruno Rodolfo. Testamento Vital na perspectiva de médicos, advogados
e estudantes. Revista Bioethicos, São Paulo, v. 5, nº 4, p. 383-391, out./dez. 2011. Disponível em:
<http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A4.pdf> Acesso em: 26/05/2018, p. 385.
7 GODINHO, Adriano Marteleto. Diretivas antecipadas de vontade: testamento vital, mandato
duradouro e sua admissibilidade no ordenamento brasileiro. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, nº
2,
2012,
p.
945-978.
Disponível
em:
<http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2012/02/2012_02_0945_0978.pdf>. Acesso em: 21/04/2018,
p. 961-962.
8 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? Sao Paulo: Loyola, 2004. p. 75.
5
6PICCINI,
239
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente
3) O testamento vital no direito comparado
Embora o debate travado acerca do testamento vital seja recente no Brasil, o qual
não possui ao menos legislação específica a respeito deste tema, diversos países ao redor
do mundo se destacaram pelo pioneirismo no tratamento das diretivas antecipadas da
vontade e, consequentemente, da proteção da autonomia privada, da dignidade humana
e dos direitos dos doentes terminais.9 A análise da aplicação do testamento vital nos
sistemas estrangeiros torna-se, pois, de suma importância para a compreensão da
aplicabilidade do instituto no contexto jurídico brasileiro. Volta-se agora ao testamento
vital, mas sob o enfoque da legislação estrangeira sobre o tema, com o direcionamento
específico para a Itália e a Alemanha.
a) O testamento vital no direito italiano
Em dezembro de 2017 a Itália passou a tratar do testamento vital de forma
expressa, ao inserir as disposições sobre a autonomia da vontade e o respeito à dignidade
do paciente terminal em sua legislação pátria. A recente lei aborda basicamente oito
pontos principais, são eles: o consentimento informado, a dignidade na fase final da vida,
os menores e incapazes, os avanços do tratamento, o planejamento compartilhado do
cuidado, padrão transitório, cláusulas financeiras e o relatório às Câmaras10.
De forma geral, a lei italiana dispõe que qualquer pessoa capaz pode, por meio
das diretivas antecipadas da vontade, expressar sua opção pelos tratamentos de saúde
ou sua recusa em relação a eles. A decisão do paciente será então observada em uma
possível situação de incapacidade futura, de modo que a sua vontade exteriorizada por
meio do testamento vital ficará preservada.
Nota-se que as disposições na recente lei permitiram a manifestação expressa
tanto por escrito quando por vídeo, de modo que as disposições orais também são
válidas. A legislação também permite a modificação, renovação e revogação do
documento em caso de emergências a qualquer tempo.
b) O testamento vital no direito alemão
A Alemanha possui o instituto da Patientenverfügungen – Diretivas antecipadas
da vontade - positivado no ordenamento jurídico alemão desde o ano de 2009, mais
precisamente no Código Civil. A evolução da relação médico-paciente foi fundamental
9 BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito
de família, São Paulo v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013, p. 112.
10 ITALIA, Senato della Repubblica - approvato dalla Camera dei deputati il 20 aprile 2017, in un
testo
risultante
dall’unificazione
dei
disegni
di
legge.
Disponível
em:
<http://www.senato.it/service/PDF/PDFServer/BGT/01013681.pdf>. Acesso em: 01/06/2018.
240
Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico...
para que as discussões sobre a autonomia da vontade e o testamento vital se
intensificassem na Alemanha. Tais mudanças são facilmente perceptíveis com a
observância de alterações no Código Profissional da Associação Médica, o qual a partir
da década de 80 já começou a tratar sobre a dignidade do paciente e o respeito a sua
vontade.11
O projeto de lei das diretivas antecipadas da vontade, aprovado em 2009,
permitiu a inclusão dos parágrafos 1901-A a 1904 no BGB, o Código Civil Alemão. Notase que a partir deste marco regulatório o testamento vital passou a conter requisitos
formais que possibilitaram uma maior segurança jurídica aos pacientes. Além das
disposições necessárias para se seguir à elaboração do documento, os artigos também
trouxeram o conceito das DAV, qual sejam “as disposições de vontade escritas por um
adulto maior de idade e capaz de consentir, para o caso de vir a se tornar incapaz de dar
seu consentimento por um estado grave de saúde”.12
Embora sejam considerados grandes marcos regulatórios que preservam o direito
à autodeterminação do paciente em estado terminal, o aditamento dos parágrafos no
Código Civil deixou de tratar de matérias importantes quanto ao testamento vital, como
por exemplo, o prazo de validade das diretivas antecipadas13.
4) Princípios relacionados ao testamento vital: a
consagração da autonomia privada e da dignidade da
pessoa humana
Todos os debates travados ao redor do testamento vital e da possibilidade do
paciente delimitar o seu tratamento médico leva à discussão sobre o direito à vida e,
também, ao direito à morte digna. O direito à vida encontra-se consagrado na
Constituição Federal, nos diversos tratados de direitos humanos e em todos os diplomas
legais que vedam os crimes contra a vida. A dúvida que surge é: a nossa vida termina com
a morte, mas ela também seria um direito?
A morte muitas vezes é vislumbrada como doença e não como um fato da vida.
Torna-se de suma importância distinguir a manutenção da vida com o método correto e
a autorização da morte quando realmente não há opções. A ética e a sensibilidade dos
direitos fundamentais devem ser vistos nesta perspectiva juntos à técnica e ao
conhecimento científico, para assim, poder-se chegar a uma solução adequada no âmbito
11 LOHMANN, Ulrich. Patient Autonomy despite Inability to Give Consent – Legal Alternatives in
Germany. Jounal of social policy and social work, Berlin, n. 14, p. 17-33, 2010.
12 GUSELLA, Gabriela Azeredo. ZAGANELLI, Margareth Vetis. Patientenverfügungen: direito à
autodeterminação do paciente em final de vida no ordenamento jurídico alemão, p. 150-165. In: Diretivas
Antecipadas da Vontade: autonomia e dignidade do paciente. Campos dos Goytacazes: Brasil Multicultural,
2017, p. 159.
13 STÜNKER, Joachim. Das Gesetz zur Patientenverfügung und wie es dazu kam. W. Kollhammer,
Stuttgart, 2011.
241
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente
individual e social.14
É evidente que os médicos devem sempre prezar pela vida do paciente, todavia, a
dignidade deste indivíduo e a sua autonomia privada devem restar asseguradas. Por tais
motivos, o profissional da saúde não deve impor técnicas sem utilidade que causem um
sofrimento desproporcional, quando não desejado pelo paciente. Na verdade, estes
métodos considerados fúteis, invasivos e dolorosos não possuem como objetivo o
prolongamento da vida, mas sim o prolongamento da espera pela morte. 15
De fato a autonomia privada encontra-se diretamente relacionada à possibilidade
da pessoa tomar decisões e, assim, ajustar seus respectivos interesses pautados em uma
liberdade constitucionalmente adquirida. Neste sentido, a partir da busca do testamento
vital pelo cuidado com o sofrimento humano e com a opinião da própria pessoa, deve-se
observar uma evidente garantia da dignidade da pessoa humana. 16
A dignidade da pessoa humana leva à concepção de que a vida digna é um direito
de todos. Mas, além da discussão a respeito da dignidade em vida, o que se aborda diante
do testamento vital é a escolha de morrer com esta dignidade. Como assinala Tartuce
“trata-se de verdadeiro direito da personalidade, que deve ser reconhecido amplamente
nas relações privadas existentes entre médicos e pacientes; e entre ambos e o hospital,
seja ele público ou privado”. 17
Pois bem, a reflexão da existência de um direito subjetivo à morte digna encontra
respaldo constitucional nos artigos 1º, inciso III e 5º, caput. A partir da análise destes
artigos, observa-se que a dignidade da pessoa humana deve ser compreendida de modo
sistêmico e dinâmico, a fim de trazer aos seus detentores o direito – e não o dever - de
uma perspectiva de vida justa e sem sofrimentos. 18 Deve-se observar também que a
autonomia privada, em especial a autonomia do paciente, encontra respaldo no art. 15
do Código Civil, preceituando que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com
risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”.19
Além do exposto, todos os princípios relacionados ao testamento vital convergem
para o princípio bioético da beneficência. Este princípio impõe a obrigação de prezar em
primeiro lugar pelo interesse do paciente, agindo sempre em favor deste e em acordo
com as suas vontades e opções previamente definidas.20 É, seguindo estes valores, que as
14 BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. A dignidade no processo do morrer. In: PESSINI, Léo
(Org.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2001, p. 283-296, p. 293.
15 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
16 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v.
6, p. 399.
17 Ibidem, p. 403.
18 SÁ, Maria de Fátima Freira de; MOUREIRA, Diogo Luna. Por uma proposta de efetivação do
direito subjetivo a morrer com dignidade: o caso José Ovidio González e sua interface com o direito
brasileiro. p.129-148. In: Medicina, direito, ética e justiça: Reflexões e conferências do VI Congresso
Brasileiro de Direito Médico. Brasília: CFM, 2017, p. 143.
19 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 28/04/2018.
20 PICCINI, Cleiton Francisco; STEFFANI, Jovani Antônio; BONAMIGO, Élcio Luiz; BORTOLUZZI,
Marcelo Carlos; SCHLEMPER JR., Bruno Rodolfo. Testamento Vital na perspectiva de médicos, advogados
242
Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico...
diretivas antecipadas da vontade devem ser pautadas, bem como toda relação médicopaciente. Todavia, apesar da essência do testamento vital se relacionar à autonomia do
paciente e sua capacidade de escolha, existem inúmeras barreiras na legislaçãoe,
também, nos códigos dos profissionais da saúde que limitam a aplicabilidade integral
deste documento.21
5) Requisitos formais para a validade do testamento vital
Como já exposto, o testamento vital não é uma das formas de testamento civil,
pois ocorre em ato inter vivos, caracterizando-se por ser um negócio jurídico não
patrimonial. Ademais, sua forma é livre, contrariamente às formalidades impostas aos
testamentos jurídicos do Código Civil. Devido à essa liberalidade formal basta que ocorra
a comprovação, conforme o art. 107 do Código Civil22.
Segundo Tartuce “trata-se, em regra, de um ato jurídico stricto sensu unilateral
que pode, sim, produzir efeitos, uma vez que o seu conteúdo é perfeitamente lícito”. 23
Com efeito, o testamento biológico é evidentemente existente e válido, por possuir agente
capaz, objeto lícito e não ser resultado de negócio jurídico defeituoso. O testamento vital
se impõe, ainda, à condição suspensiva, pois torna-se necessário que o declarante esteja
inconsciente.24
A utilização do testamento biológico ocorre diante da terminalidade da vida,
considerando que os tratamentos médicos não foram capazes e suficientes para alterar o
curso da doença25. A sua utilização está condicionada à certos requisitos formais de
consentimento, como a aplicabilidade apenas nos casos de pessoas capazes, esclarecidas
e informadas por profissional adequado.26
Além disso, a legalização deste documento exige: a confecção de formulário, com
o intuito de padronizar os procedimentos; a possibilidade de revogação do testamento
vital; a renovação da vontade em determinado prazo e a certificação para assegurar a
autenticidade.27
Importante ressaltar que a capacidade civil atrelada ao testamento biológico é a
relacionada ao discernimento, ou seja, é necessário que o indivíduo na época da
elaboração do documento possa ter a consciência de que está exteriorizando sua real
e estudantes. Revista Bioethicos, São Paulo, v. 5, nº 4, p. 383-391, out./dez. 2011. Disponível em:
<http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A4.pdf>. Acesso em: 26/05/2018, p. 385.
21 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas: efetivação para o paciente com segurança jurídica
para o médico – é possível? In: Medicina, direito, ética e justiça: Reflexões e conferências do VI Congresso
Brasileiro de Direito Médico. Brasília: CFM, 2017, p. 149-162, p. 155.
22 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v.
6, p. 404.
23 Ibidem, p. 404.
24 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Sucessões. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 237.
25 Ibidem, p. 240.
26 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016,
p. 110.
27 Ibidem, p. 110.
243
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente
vontade em relação aos tratamentos médicos.28
Ora, é evidente que o testamento vital somente pode ser utilizado por pessoas que
detenham capacidade plena para entender e reconhecer os seus atos, por este motivo,
torna-se difícil considerar que pessoas com alterações psíquicas possam redigir este
documento.
Nota-se que o testamento vital não será observado se ocorrer a modificação das
circunstâncias que estavam presentes no momento da feitura do testamento, como por
exemplo no avanço das tecnologias terapêuticas.29 Além disso, o testamento biológico
não poderá ser contrário às disposições consagradas no ordenamento jurídico pátrio ou
tratar de contraindicações às doenças.30
Um outro limite imposto ao testamento vital é a objeção de consciência do
médico.31 A opção do profissional da saúde em não realizar determinados atos é bastante
discutida e controversa, entretanto, encontra respaldo no artigo 28 do Código de Ética
Médica brasileiro, o qual preceitua que é possível tal recusa segundo a sua consciência.
Entretanto, faz-se necessário que essa objeção de consciência seja justificada e
encaminhada para outro médico.32
O que se observa diante do testamento vital é a grande dificuldade em traduzir
em um documento a complexidade dos procedimentos e técnicas médicas. Por este
motivo, muitas legislações ao redor do mundo sobre o tema optaram por trazerem em
seus formulários de testamento vital palavras e expressões genéricas que denotem
apenas uma indicação sobre os princípios éticos a serem respeitados.33 Geralmente, esta
generalidade está condicionada a não aceitação de métodos desproporcionais e invasivos
de tratamento, sem contudo, especificar os atos médicos que poderão ser aplicados.
Certo é que o ordenamento brasileiro ainda não possui Lei específica sobre o tema
para delimitar todos estes aspectos primordiais na elaboração do testamento vital.
Entretanto, como o sistema constitucional permite sua feitura, embasado na autonomia
privada e na dignidade da pessoa humana, torna-se primordial discutir os requisitos
formais e os limites impostos a este documento, o qual poderá estar cada vez mais
presente em nossa sociedade.
6) O testamento vital no contexto brasileiro
Após a análise dos conceitos e principais pontos referentes às diretivas
antecipadas da vontade e a análise do direito comparado quanto ao tema, torna-se
28 BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito
de família, São Paulo v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013, p. 99.
29 LÔBO, op. cit., p. 240, nota 26.
30 DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 3ª ed. São Paulo: Atlas S.A., 2015, p. 100.
31 Ibidem, p. 100.
32 Ibidem, p. 100.
33 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016,
p. 112.
244
Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico...
primordial entender este mecanismo de autodeterminação dentro do ordenamento
brasileiro. Como já ressaltado, o testamento vital não encontra-se de forma explícita na
legislação pátria, apenas é vislumbrado no âmbito de princípios constitucionais ou,
ainda, de Resoluções Médicas que vinculam profissionais da saúde.
Como não é um testamento em essência, também não pode ser comparado aos
testamentos do Código Civil, já que não dispõe de nenhum impacto sucessório, ou ainda,
efeitos patrimoniais. Por tais motivos, diante das peculiaridades deste documento,
evidencia-se a necessidade de intensificar as discussões sobre suas prováveis e possíveis
bases teóricas e jurídicas.
a) As resoluções do CFM - Conselho Federal de Medicina
O testamento vital está inserido no contexto da relação médico-paciente. Este tipo
de documento será útil ao profissional da saúde para resguarda-lo de possíveis
responsabilidades diante do conflito entre utilizar ou não os tratamentos médicos
disponíveis, considerando que existe uma decisão anterior do paciente quando este ainda
possuía capacidade.34
No âmbito profissional existem as Resoluções do Conselho Federal de Medicina
– CFM, entretanto, estas regras circunscritas às Resoluções médicas possuem uma
eficácia restrita ao campo dos profissionais da saúde. Desta forma, os terceiros não
encontram-se vinculados à determinação destas disposições.
A Resolução 1.805/2006 foi a primeira Resolução do Conselho Federal de
Medicina a tratar o procedimento da ortotanásia, reconhecendo-o como válido e
permitindo ao médico a suspensão dos tratamentos que prolongam a vida de indivíduos
em estado terminal.35 Destarte, nota-se que a Resolução 1.805/2006 abriu o caminho
para a consagração da vontade do paciente terminal. Os médicos deveriam acatar a
decisão dos indivíduos a respeito de realizar ou não determinados procedimentos e
determinadas técnicas médicas consideradas invasivas.36 Todavia, desde 2009, com a
entrada em vigor do Novo Código de Ética Médica, tal Resolução encontra-se derrogada.
No ano de 2012, a Resolução 1.99537 consagrou que a vontade do paciente possui
preferência em relação aos seus representantes legais, autorizando a decisão expressa e
prévia dos indivíduos sobre as técnicas médicas que desejam em um momento de
34 BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito
de família, São Paulo v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013, p. 105.
35 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.805/2006. Disponível em:
<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm>.
Acesso
em:
28/04/2018.
36 FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento vital. Civilistica.com, Rio de
Janeiro,
a.
2,
nº
2,
abr./jun.2013.
Disponível
em:
<http://civilistica.com/wpcontent/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf>. Acesso em: 28/04/2018, p. 14.
37 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.995/2012. Dispõe sobre as Diretivas
Antecipadas
de
Vontade
dos
Pacientes.
Disponível
em:
<http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf>.
Acesso
em:
28/04/2018.
245
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente
incapacidade38. Observa-se com esta resolução um forte estímulo à autonomia privada e
um maior suporte técnico ao testamento vital.39
A Resolução de 2012 ressalta que, diante da incapacidade dos pacientes, os
médicos deverão sempre levar em consideração as diretivas antecipadas da vontade em
relação aos desejos da família ou, ainda, pareceres não médicos. Entretanto, as diretivas
precisam estar em consonância com o Código de Ética Médica.40
Embora possa ser considerado um avanço, não há como ignorar os aspectos
polêmicos da Resolução do CFM, precipuamente, no que tange às contradições existentes
com a legislação civil pátria. Como já exposto, não há regulamentação em lei específica
no Brasil sobre o testamento vital, entretanto, Bárbara Rodrigues da Rocha 41 preceitua
diversos pontos da Resolução que podem gerar questionamentos com a legislação civil.
Em primeiro lugar, a Resolução de 2012 não trata de formalidades específicas,
paradoxalmente às disposições testamentárias do Código Civil de 2002. Na Resolução
1.995/2012 o paciente estará autorizado a valer-se de sua vontade diante do médico, de
forma direta, esta simplicidade poderá gerar diversas complicações interpretativas ou,
também, conflitos de opiniões.
Além disso, a Resolução nº 1995/2012 “falha quando estabelece a possibilidade
de o médico descumprir a vontade do paciente, quando utiliza a expressão “velará em
consideração”.42 Para o autor, esta expressão contida na supramencionada Resolução
Médica não corrobora para a real finalidade do testamento vital, qual seja: possibilitar
uma declaração de vontade do indivíduo sem vícios, assegurando que escolha a respeito
de sua submissão no futuro à determinados procedimentos médicos.
A capacidade do autor da declaração de vontade também é questão polêmica que
merece atenção, uma vez que no testamento civil ela é comprovada na constância em que
se realiza o ato, ou seja, no momento em que se escreve o testamento, contando ainda
com a validação por duas testemunhas. Por outro lado, Bárbara Rocha argumento que
não há aplicação desta exigência perante o testamento vital, pois
As decisões dos médicos perante essa Resolução são passíveis de
invalidade no plano civil fazendo que as diretivas antecipadas da vontade do
paciente sejam contrárias as leis de acordo com o artigo 104 do Código Civil
(para ser válido o ato, seu objeto deve ser lícito).43
38 ROCHA, Bárbara Rodrigues da. Autonomia em face do direito de morrer: uma abordagem do
testamento vital no direito brasileiro. In: MEZZAROBA, Orides; FEITOSA, Raymundo Juliano Rego;
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SÉLLOS-KNOERR, Viviane Coêlho de (Org.). Biodireito - Coleção
Conpedi/Unicuritiba. Curitiba: Clássica, 2014, vol. 3, p. 323-343, p. 339.
39 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v.
6, p. 401.
40 FURTADO, op. cit., p. 16, nota 38.
41 ROCHA, op. cit., p. 340, nota 40.
42 NEVES, Rodrigo Santos. O Testamento Vital: Autonomia Privada x Direito à Vida. Revista Síntese
de Direito de Família, v.14, nº 80, p. 11-23, out./nov. 2013, p. 19.
43 ROCHA, Bárbara Rodrigues da. Autonomia em face do direito de morrer: uma abordagem do
testamento vital no direito brasileiro. In: MEZZAROBA, Orides; FEITOSA, Raymundo Juliano Rego;
246
Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico...
As Resoluções do CFM não estabelecem um liame definitivo entre as declarações
expressas da vontade do paciente e a vinculação obrigatória do profissional da saúde. No
entanto, caso o médico descumpra as disposições expostas pelo paciente determinando
a submissão ou não à tratamentos médicos, violará princípios consagrados na
Constituição Federal, como a autodeterminação.44
Pois bem. As Resoluções Médicas não são suficientes para evitar a
responsabilização penal, civil e constitucional dos médicos. Torna-se necessária a
regulamentação civil do testamento vital para solucionar as múltiplas controvérsias
existentes e facilitar a relação médico-paciente.
b) A problemática da regulamentação civil do testamento vital
no Brasil
Embora se verifique um gradativo avanço na discussão a respeito do testamento
vital, influenciado pelas Resoluções do CFM, não há norma específica que o regulamente
no Brasil, diferentemente de países como Estados Unidos, Argentina, Portugal, Uruguai
e Espanha.
A positivação das diretivas antecipadas da vontade no ordenamento estrangeiro
leva à conclusão de que no Brasil ele também poderia seguir da mesma forma,
consolidando-se na legislação pátria e servindo de instrumento de expressão da vontade
de milhares de pacientes.
Ainda que sem a devida regulamentação normativa, o testamento vital pode ser
confeccionado no Brasil, pois os princípios inserido na Carta Magna, a exemplo da
dignidade e da autonomia privada, servem de base para sua validação. Entretanto, o
testamento vital não poderia ser contrário às regras vigentes no território brasileiro.
O documento escrito expressa a decisão previamente manifestada pelo paciente
terminal é a exteriorização da liberdade constitucional assegurada a todos os cidadãos
brasileiros, “vez que este documento nada mais é do que um espaço que o indivíduo tem
para tomar decisões pessoais, personalíssimas, que são – e devem continuar a ser –
imunes a interferências externas”.45
Sobre o tema, ressalta Adriano Marteleto Godinho:
A ausência de norma que regulamente as diretivas antecipadas no
Brasil não serve como impedimento para o reconhecimento da sua validade,
porquanto os testamentos vitais e os mandatos duradouros consistem apenas
em antecipações das posições que seu autor adota quanto aos tratamentos
SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SÉLLOS-KNOERR, Viviane Coêlho de (Org.). Biodireito - Coleção
Conpedi/Unicuritiba. Curitiba: Clássica, 2014, vol. 3, p. 323-343, p. 340.
44 NEVES, op. cit., p. 22, nota 44.
45 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário
falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Revista de Bioética y Derecho,
Barcelona, nº 28, p. 61-71, maio 2013, p 66.
247
Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente
médicos que, segundo seu juízo, são adequados. A edição de uma lei neste
domínio, contudo, teria o duplo mérito de levar ao conhecimento da população
a existência daquelas figuras, fomentando a sua celebração, e de eliminar
diversas das controvérsias que ainda pendem sobre o tema.46
É efetivamente necessário que o testamento vital seja consagrado como
normativa legal para garantir uma maior segurança jurídica aos pacientes que objetivam
elaborar este documento, bem como aos médicos que também se inserem neste contexto
e podem ser responsabilidades por suas decisões.47
Realmente, é preciso enfrentar as diversas dúvidas a respeito da efetiva
regulamentação do documento testamento vital e, também, das diretivas antecipadas da
vontade no sistema pátrio. As principais dúvidas existentes são: quem serão os
legitimados a confeccionar este documento; quando será o melhor momento para a sua
elaboração; qual a formalização para se obter validade e eficácia; como transmitir
publicidade ao testamento e, também, se será possível a nomeação de procurador, como
ocorre em alguns sistemas legislativos ao redor do mundo.48
Em suma, para responder a tais questionamentos a efetividade do testamento
vital no Brasil precisa sair do Conselho Federal de Medicina e alcançar a normatização
Nacional. A legislação específica será capaz de determinar contornos importantes deste
documento, como capacidade, tempo adequado para a feitura do testamento e
publicidade dos escritos. O Brasil deve espelhar-se no âmbito internacional e reconhecer
a importância do tema, para que assim consolide uma melhor relação médico-paciente.
7) Considerações finais
O testamento vital, principal gênero das diretivas antecipadas da vontade, é um
importante documento que assegura a autonomia privada e a dignidade dos pacientes
terminais. Utilizando-se do testamento vital os indivíduos podem manifestar a sua
vontade de forma expressa e, assim, garantir que a sua decisão tenha efeitos quando
estiver incapacitado e em estado terminal.
Como visto alhures, o testamento vital atualmente não se encontra em nenhuma
lei específica no direito brasileiro, entretanto, a falta de normatização não impede que
este documento seja confeccionado no Brasil, uma vez que a ordem constitucional
possibilita a feitura deste “testamento”.
46 GODINHO, Adriano Marteleto. Diretivas antecipadas de vontade: testamento vital, mandato
duradouro e sua admissibilidade no ordenamento brasileiro. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, nº
2,
2012,
p.
945-978.
Disponível
em:
<http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2012/02/2012_02_0945_0978.pdf>. Acesso em: 21/04/2018,
p. 975.
47 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas: efetivação para o paciente com segurança jurídica
para o médico – é possível? In: Medicina, direito, ética e justiça: Reflexões e conferências do VI Congresso
Brasileiro de Direito Médico. Brasília: CFM, 2017, p. 149-162, p. 158.
48 DADALTO, op. cit., p. 158-159, nota 47.
248
Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico...
A autonomia privada é evidentemente um direito de todos os cidadãos
brasileiros. Por meio dela os indivíduos tem assegurada a liberdade de tomar decisões
em consonância com as normas jurídicas pátrias, sem a restrição ou a influência de
terceiros. Da mesma forma, o princípio da dignidade da pessoa humana, corolário do
testamento vital, sempre deve ser visto em primeiro plano.
Reitera-se, também, a consolidação do testamento vital em diversas doutrinas e
sistemas alienígenas. Países como Itália e Alemanha já avançaram no âmbito das
diretivas antecipadas da vontade, positivando em seus sistemas leis específicas que
retratam a possibilidade da decisão do paciente prevalecer sobre a opinião médica,
seguindo determinadas formas e limites. A relação médico-paciente ganha novos
contornos no direito estrangeiro com preponderância da autodeterminação e da
liberdade de dispor de suas próprias intenções.
Pelo exposto, torna-se indiscutível a importância do testamento vital para futuros
pacientes, seus familiares e médicos. Os debates travados no âmbito das diretivas
antecipadas da vontade devem ser intensificados a fim de garantir segurança jurídica a
todos os envolvidos nesta relação. É neste sentido que a elaboração de uma legislação
única e específica sobre o testamento vital tem a sua mais profunda importância,
versando sobre a autonomia privada do paciente em decidir se deseja passar por
determinados procedimentos médicos ou não.
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JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E ACESSO À
MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS E DE ALTO
CUSTO:
PARÂMETROS
DOS
TRIBUNAIS
SUPERIORES PARA O FORNECIMENTO DE
FÁRMACOS.
Margareth Vetis Zaganelli1
João Victor Gomes Correia2
1) Introdução
O direito à saúde, corolário do direito à vida e à dignidade da pessoa humana,
valor fundante do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República
Federativa do Brasil, é consagrado como direito fundamental a todos os cidadãos
brasileiros. Contudo, a previsão constitucional não encontra total sintonia com a
realidade. Constatação dessa assertiva está no crescimento exponencial de demandas
judiciais que buscam a tutela do Direito à Saúde, demonstrado nos relatórios anuais do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em vista disso, tem se constatado no Brasil o
fenômeno da Judicialização da Saúde de forma latente.
Neste contexto, diversas são as hipóteses que o contencioso judicial brasileiro
recebe no seu cotidiano, pleiteando-se que o Poder Judiciário determine ao Estado que
cumpra com suas obrigações constitucionais. Dentre as distintas ações, destaca-se os
requerimentos para o fornecimento de fármacos excepcionais e de alto custo, os quais
não estão inseridos nos fornecimentos habituais do Sistema Único de Saúde (SUS). Com
isso, grande é a dificuldade do julgador para ter uma decisão acertada sobre tais
matérias. Por esse motivo, tem sido fomentado os Núcleos de Apoio Técnico ao
Judiciário (NAT-JUS), como subsídio profissional aos magistrados.
No mesmo sentido, os Tribunais Superiores brasileiros têm consignado
parâmetros gerais para os casos de determinação judicial outorgando a dispensa de
medicamentos fora do rol preestabelecido pela Administração Pública. Observa-se,
entretanto, que muitas das decisões e dos parâmetros fixadas, acabam por desconsiderar
políticas já existentes e que se materializam em políticas em curso, como a Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).
Dessa forma, utilizando pesquisa descritiva por meio de método hipotético1 Doutora em Direito (UFMG). Mestre em Educação (UFES). Estágios Pós-doutorais na Università
Degli Studi di Milano-Bicocca (UNIMIB-IT), na Alma Mater Studiorum Università di Bologna (UNIBO-IT)
e na Università Degli Studi Del Sannio (UNISANNIO). Professora Titular da Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES). Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Bioethik (UFES). Email: mvetis@terra.com.br.
2 Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro pesquisador
do Bioethik. Membro do projeto de extensão Liga Universitária de Direito da UFES. Estagiário da Primeira
Vara da Fazenda Pública Estadual de Vitória/ES. E-mail:jvgmesc@gmail.com.
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
dedutivo, com base em levantamento bibliográfico e jurisprudencial, busca-se nesse
breve ensaio uma análise dos mecanismos substanciais para o tratamento das demandas
sobre saúde e os impactos dos critérios fomentados pelos Tribunais Superiores em face
das prestações já canalizadas pelo RENAME.
2) O Direito à Saúde no Brasil e a organização do Sistema
Único de Saúde (SUS)
Antes da promulgação da Carta Magna de 1988, o sistema de saúde no Brasil era
contributivo e centralizado pela União, e gerenciado pelo INAMPS (Instituto Nacional
de Assistência Médica da Previdência Social), uma extinta Autarquia Federal. O
Ministério da Saúde atuava em diminutas políticas preventivas, como em campanhas de
vacinação. Além disso, os tratamentos ambulatoriais destinados à população indigente
eram de responsabilidade das instituições filantrópicas.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Direito à Saúde foi
consagrado como um direito fundamental social, enunciado no art. 6º da Carta Magna.
Ganha primordial relevo, quando se denota que o referido direito está atrelado a outros
dois preceitos constitucionais: o direito à Dignidade Humana e o Direito à Vida. Com
isso, seu âmbito de proteção e promoção ganha destaque, pois se tornou caminho para a
eficácia de outros direitos fundamentais.3
Desse modo, o Direito à Saúde tem sido visualizado de forma mais ampla a partir
da sua concretização, ou seja, na materialização da promoção da saúde nos diversos
níveis e setores da sociedade.
Nesta senda, além do enunciado trazido no art. 6º da CF/88, o constituinte
prescreveu no art. 196 e ss. da Carta Maior as garantias para a efetivação do Direito à
Saúde. O texto coloca o Estado como mantenedor das políticas públicas destinadas à
prestação universal e igualitária da saúde aos cidadãos brasileiros.
Além disso, previu o legislador no art. 200 da CF/88 o Sistema Único de Saúde e
suas respectivas diretrizes, estabelecendo um modelo de organização básico à promoção
da saúde pública. Estruturado de acordo com o modelo beveridgeano inglês, o atual
Sistema Único de Saúde (SUS) representa um importante mecanismo 3de inclusão social
4. O sistema se organiza em uma rede regionalizada e hierarquizada, a qual tem como
diretrizes a descentralização, com uma direção única em cada esfera de governo, o
atendimento integral, priorizando as medidas preventivas e a participação da
3 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 647.
4 MENDES, Eugênio Vilaça. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos
Avançados. vol.
27, no.
78,
São
Paulo, 2013.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000200003>. Acesso em: 24
jun 2018.
254
Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais...
comunidade ao entorno.5
Como subsídio infraconstitucional, a Lei 8.080 de 1990, conhecida também como
Lei Orgânica da Saúde, estatui diretrizes para o funcionamento e a disposição do Sistema
Único de Saúde do Brasil. Já a Lei 8.142 de 1990 se encarregou de dispor sobre os
repasses financeiros para a composição das políticas públicas ligadas ao SUS.
No que tange aos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde são eles: a
Universalização, que garante o atendimento a todos, sem a necessidade de se comprovar
hipossuficiência de recursos para se ter acesso à gratuidade da saúde; a Equidade, que
diz respeito às necessidades de cada região; a Integralidade, que corresponde a um
conjunto de ações, preventivas, curativas e de reabilitação ao paciente; a Hierarquização
e Regionalização, em que os serviços ofertados são divididos pelos entes federativos
considerando os níveis de complexidade e características geográficas e populacionais,
sendo, portanto, a competência material (administrativa) comum entre todos os entes
federativos nos termos do artigo 23 da Magna Carta; a Resolubilidade, que diz respeito à
capacidade do Estado em atender qualquer que seja o caso; e por fim, a Participação
Popular, uma vez que devem existir Conselhos em todos os níveis de governo, compostos
de representantes da sociedade.6
Na gestão farmacêutica, o Conselho Nacional de Saúde emitiu em 2004 a
resolução 338, inaugurando, assim, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica.
Como fundamento, a diretriz mencionada busca, por meio da organização do
fornecimento, do acesso e do uso de medicamentos, a promoção e a recuperação da saúde
a todos.7
Assim, por conta da descentralização da gestão, fica no âmbito federal a
elaboração e atualização da RENAME, a qual dispõe dos fármacos necessários para o
tratamento e prevenção das doenças com maior abrangência nacional.
Por outro lado, no plano estadual, concede-se os medicamentos incluídos no
Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional, introduzido pela portaria
2.577/GM de 2006. Contempla as patologias tidas como raras ou que dependem de
medicamento de alto custo.8
Na atualidade, embora reconhecido como uma conquista democrática e tendo
uma substancial organização legal, o SUS ainda apresenta falhas estruturais, mormente
no que diz respeito à Cobertura Universal, pois diversa da proposta, a realidade tem
mostrado filas intermináveis de pessoas à espera por atendimento. Além disso, um outro
Art. 198 da CF/88.
CONOF/CD. A saúde no Brasil: História do Sistema Único de Saúde, arcabouço legal,
organização, funcionamento, financiamento do SUS e as principais propostas de regulamentação da Emenda
Constitucional nº 29, de 2000. Nota Técnica nº 10, de 2011 – CONOF/CD. p. 4. 2011. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/estudos/2011/nt10.pdf>. Acesso em: 24 de jun de
2018.
7 LOPES, Nairo; FRIAS, Lincoln. A política pública de medicamentos e sua judicialização. Caderno
de Estudos Interdisciplinares, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 27-41, 2014. Disponível em: <https://publicacoes.unifalmg.edu.br/revistas/index.php/cei/article/viewFile/301/pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. p. 30.
8 Ibid., p. 30.
5
6
255
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
problema é a Resolubilidade, a julgar tanto pela ausência de instrumentos necessários a
certos procedimentos, como pelo atraso na incorporação de novos fármacos.
Desde modo, embora reconhecido constitucionalmente como um direito
fundamental, o sistema de saúde no país não tem sido capaz de efetivar a contento o
direito à saúde a todos os cidadãos. Ante este fato, o Poder Judiciário surge como única
via de muitos pacientes para a garantia de tratamento terapêutico ou obtenção de
medicamento.
Em breve perpasse nas minhas gerais sobre a organização do SUS com enfoque
no tema aqui tratado, passa-se agora para a análise do fenômeno da Judicialização da
Saúde no Brasil.
3) Judicialização da Saúde e os seus reflexos em números
Como destacado no tópico anterior, o Direito à Saúde ganhou destaque
imprescindível no sistema jurídico brasileiro. Assim, a universalização do acesso à saúde
se fincou como uma diretriz primorosa, na qual tem por objetivo o atendimento
igualitário, com promoção da saúde levando em consideração a necessidade da
população e os limites impostos pelo sistema.9
Em tal contexto, observa-se o conteúdo subjetivo do Direito à Saúde, uma vez que
o “leque de necessidades é de tal forma amplo, que dificilmente poderá ser abrangido por
qualquer normatização constitucional ou infraconstitucional”.10 Desse modo, extensas
são as possibilidades de o cidadão, individualmente, pleitear judicialmente a efetivação
de determinada carência médica, tomando como base o Direito à Saúde.
Nesta esteira, observa-se que a as políticas públicas desenvolvidas e fomentadas
pelo Estado são a concretização do conteúdo jurídico dos direitos fundamentais,
incluindo o Direito à Saúde. Em vista disso, o Poder Judiciário atua como interventor
nos casos em que o Poder Público se omite ou atua morosamente na construção de
medidas que tornem efetivos os direitos constitucionais.11 Com isso, surge a
Judicialização da Saúde que consiste na busca dos indivíduos pela tutela jurisdicional em
prol da concretização de seus direitos, uma vez que o Estado não deu a guarida
pretendida. Tal fenômeno demonstra “a expansão do Poder Judiciário no processo
decisório de um país democrático e contemporâneo”.12
Nesta senda, constata-se por meio dos últimos levantamentos do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), que houve exponencial aumento das demandas referentes à
9 CORVINO, Juliana Diniz Fonseca. A Crise do Sistema Único de Saúde e o fenômeno da
Judicialização da Saúde. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. p. 44-45.
10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998. p. 297.
11 CORVINO, Juliana Diniz Fonseca. A Crise do Sistema Único de Saúde e o fenômeno da
Judicialização da Saúde. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. p. 104.
12 Ibid., p. 112.
256
Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais...
saúde. A pesquisa consiste em um levantamento dos dados de litigiosidade, estrutura
judiciária, andamento processual, recursos financeiros e humanos, entre outras
informações inerentes ao Poder Judiciário, tomando como base o ano de 2016.13
Em pesquisas preliminares, evidenciou-se que no fim do ano de 2017 o judiciário
brasileiro encerrou suas atividades com cerca de 1,5 milhão de processos relacionados à
saúde.14 Entre os temas de maior relevância no final do ano de 2016 estão: planos de
Saúde evolvendo direito do consumidor (427.267 processos), fornecimento de
medicamentos (312.147 processos), tratamento hospitalar e/ou fornecimento de
medicamentos pelo SUS (214.947 processos), entre outros.15
Em perpasse comparativo com o relatório do CNJ do ano de 2016, tomando como
base o ano de 2015, pode-se depreender que houve aumento nas demandas relacionadas
à saúde. No que se refere aos litígios que tem por objeto a dispensa de medicamentos, os
processos se alastraram em uma média de 56% de um ano para o outro.16
Ao se deparar com a gama de demandas voltadas à saúde, fica nítido que a
discussão sobre o contencioso judicial nessa seara se faz necessária. Isso, pois, o Poder
Judiciário não pode ser interventor permanente ou constante nas relações entre a
Administração Pública e os administrados. Por isso, enfatiza-se o necessário debate no
sentido de estabelecer diretrizes básicas e premissas gerais, para que não ocorra
casuísmo, muito menos perdas para os titulares do Direito à Saúde.
Após a observação sobre a realidade judicial das demandas sobre saúde no Brasil,
explana-se no próximo tópico de discussão a utilização dos NAT-JUS como meio para
decisões mais acertadas no entorno da matéria em questão.
4) NAT-JUS: Possibilidade subsidiária às decisões judiciais
Como visto nas linhas anteriores, o fenômeno da Judicialização da Saúde cria
inúmeros entraves no âmbito judicial e também no campo da gestão administrativa. Isso,
pois, para uma acertada decisão judicial que envolva questões médicas é necessário que
os magistrados tenham conhecimento da matéria que estão a decidir. Todavia, torna-se
evidente que, pela impropriedade técnica e formação acadêmica do julgador, a referida
determinação judicial tende a se estabelecer de forma inapropriada caso não tenha um
subsídio qualificado.
13 CNJ. Justiça em Números 2017: Ano-base 2016. Brasília: CNJj, 2017. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2018. p. 9.
14 MUNIZ, Mariana. Judicialização da saúde resultou em 1,5 milhão de processos em 2017. 2017.
Disponível
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<https://www.jota.info/justica/processos-sobre-judicializacao-da-saude-chegam-15milhao-em-2017-12122017>. Acesso em: 24 ago. 2018.
15 SCHULZE, Clenio Jair. Números Atualizados da Judicialização da Saúde no Brasil. 2017.
Disponível
em:
<http://emporiododireito.com.br/leitura/numeros-atualizados-da-judicializacao-dasaude-no-brasil-por-clenio-jair-schulze>. Acesso em: 24 jun. 2018.
16 SANTOS, Caroline Regina dos. Judicialização da saúde no Brasil em números. 2017. Disponível em:
<https://blog.ipog.edu.br/saude/judicializacao-da-sade-em-numeros/>. Acesso em: 24 jun. 2018.
257
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
Com esse cenário, no ano de 2016, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde
(CONASS) reuniu-se com o Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de estabelecer
um diálogo mais próximo entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, assim como para
debater as problemáticas da gestão na área da saúde frente às excessivas demandas
judiciais sobre saúde. Assentou-se na discussão a necessidades de os Tribunais de
Justiça, estaduais e federais, terem núcleos de apoio técnico auxiliarem na atividade
julgadora. Além disso, ficou evidente a necessidade de se estabelecer critérios mais
objetivos para as resoluções das contendas aqui tratadas.17
Apesar de desde 2010 o CNJ ter resolvido sobre a formação de um Fórum
Nacional para o monitoramento das demandas judiciais referentes ao Direito à Saúde,
viu-se a necessidade de ampliar as medidas. Nessa toada, o Conselho emitiu em 2016 a
Resolução nº 238 que instituiu Comitês para auxiliar os Tribunais de Justiça Estaduais
e Regionais na formação dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS).
Estes agrupamentos são formados por profissionais da área da medicina, com o
propósito de emitirem pareceres específicos sobre questões médicas. Para tanto, os
Comitês dos Tribunais devem observar o disposto no §2º do art. 156 do Código de
Processo Civil Brasileiro, convocando a comunidade e seguimentos diversos para
audiências públicas em prol da formação dos NAT-JUS.
Assim, objetivou-se com a construção dos NAT-JUS, uma solidificação de
subsídios técnicos para uma tomada de decisão dos julgadores e que possibilitasse um
paralelo com os laudos apresentados nos autos dos processos judiciais.
O primeiro aspecto permite ao juiz sanar a própria impossibilidade de julgar uma
demanda complexa de saúde sem a devida orientação técnica. Os pareceres permitem
que o julgador conheça a patologia, o tratamento ou o medicamento que está em
discussão na demanda judicial e assim defina a tutela jurisdicional adequada. No
segundo objetivo, visa-se contrapor os documentos médicos juntados no processo,
evitando assim que o entendimento do profissional de saúde que viabilizou o laudo
trazido pelo demandante, seja unânime e irredutível.
O último aspecto levantado também evita que as indústrias farmacêuticas e os
grupos de interesses médicos se beneficiem discricionariamente com a Judicialização da
Saúde. Isso acontece, por exemplo, quando é determinado judicialmente um
medicamento fora do rol da Anvisa ou um medicamento de alto custo, matéria central
deste trabalho. Percebe-se que indiretamente, as empresas e grupos de médicos acabam
conseguindo a inserção obrigatória de determinado remédio ou manobra médica pelas
vias judiciais.
Neste contexto o NAT-JUS vem sendo amplamente implementado e se tornando
um auxiliador das decisões judiciais. Observa-se que os Tribunais têm se pautado nos
17 Cf. ROSA, Tatiane. CONASS e Conselho Nacional de Justiça debatem a questão das ações judiciais
na saúde. Revista Consensus, Ano 6, n 19, abr, maio, jun 2016. Disponível em:
http://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/revistaconsensus_19.pdf . Acesso em: 13 abr. 2017.
258
Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais...
laudos advindo dos NAT-JUS, formando um juízo diverso, seja pela procedência18, seja
pela improcedência19 dos pedidos, a depender dos casos concretos.
Recentemente, o CNJ inaugurou o e-NAT-JUS, plataforma virtual que reúne os
pareceres confeccionados nos microgrupos regionais. Esta é mais uma ferramenta
fomentada para que os julgadores tenham real dimensão da matéria na qual se debruça
e quais são os pontos controvertidos que cercam a demanda. Insta destacar, que a
resolução 238/16 do CNJ dispôs que nas comarcas que tiverem mais de uma Vara da
Fazenda Pública, dever-se-á estabelecer um juízo especializado em saúde pública.
Após as reflexões supra, passa-se à análise dos parâmetros fixados pelos
Superiores Tribunais às matérias referentes à saúde.
5) O fornecimento de fármacos excepcionais e os Tribunais
Superiores do Brasil
É amplamente divulgado que o Direito à Saúde tem sido objeto latente no
contencioso judicial brasileiro. No contexto atual, no qual a Constituição Federal de 1988
é norma norteadora do sistema jurídico pátrio, não restam dúvidas que as prestações
jurisdicionais têm se pautado, entre outras hipóteses, nos preceitos fundamentais
contidos na Carta Maior.
Como visto nas linhas anteriores, a judicialização da saúde e das políticas públicas
no Brasil, têm ganhado destaque e se tornado objeto de amplos estudos. Desse modo,
não é objetivo do presente trabalho exaurir as complexas questões envolvendo o tema,
mas trazer pontos para discussões contínuas.
18AGRAVO
DE INSTRUMENTO - TUTELA ANTECIPADA - FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTO NÃO PADRONIZADO E DE ALTO CUSTO - PREJUÍZO À COLETIVIDADE - VIOLAÇÃO
À ISONOMIA - DECISÃO REFORMADA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
[...] 2. O direito constitucional à saúde não pode ser invocado a fim de que o Estado forneça todo e
qualquer tratamento ou medicamento pleiteado, sobretudo tratando-se de fármaco não padronizado em lista
oficial de medicamentos para dispensação através do SUS ou contemplado em qualquer protocolo do
Ministério da Saúde, como é o caso do pregabalina 75 mg. (segundo parecer do NAT), sob pena de haver
uma interferência indevida do Poder Judiciário nas políticas públicas elaboradas pelo Executivo,
comprometendo, desse modo, o sistema de saúde e o acesso igualitário a suas prestações. (...) (TJES, nº
0001031-07.2017.8.08.0052 Relator: Des. Sub. Victor Queiroz Schneider, Primeira Câmara Cível,
Julgamento: 17/04/2017).
19 EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO COMINATÓRIA - TRATAMENTO DE SAÚDE
- TESTE COM ELETRODO POR LAMINECTOMIA E REALIZAÇÃO DE CIRURGIA - RESPONSABILIDADE
DO ESTADO DE MINAS GERAIS E DO MUNICÍPIO DE DIVINÓPOLIS - LEGITIMIDADE PASSIVA
COMPROVADA - SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERADOS - IMPRESCINDIBILIDADE DO
TRATAMENTO ATESTADA EM RELATÓRIO MÉDICO - NOTA TÉCNICA N. 38/2017 EMITIDA PELO
NATS - ADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO ALMEJADO À SITUAÇÃO ESPECÍFICA DO CASO POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE MULTA EM FACE DO ENTE PÚBLICO - PRINCÍPIOS DA
PROPORCIONALIDADE
E
DA
RAZOABILIDADE
RECURSO
PROVIDO.
[...] 3. Tratando-se de patologia inequivocamente comprovada por profissional médico especialista, bem
como demonstrada a necessidade de realização do teste com eletrodo por laminectomia e a posterior
cirurgia, tem-se como pertinente o tratamento prescrito por médico neurocirurgião para o paciente,
considerando, ainda, a existência de nota técnica produzida pelo NATS, a qual atesta a eficácia do tratamento
(...). (TJMG, nº 0618045-73.2017.8.13.0000 Relator: Des. Côrrea Júnior, Sexta Câmara Cível, Julgamento:
05/12/2017).
259
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
Doutrinariamente vem se discutindo o conteúdo jurídico e de prestação do poder
estatal, no que tange ao “acesso universal e igualitário” prescrito no art. 196 da CF/88.
Quer-se, entre outras hipóteses, discutir que o Direito à Saúde não é absoluto e definitivo
para todas e quaisquer hipóteses colocadas em judice. Ademais, analisa-se os pertinentes
debates entre poder executivo e legislativo e o poder judiciário. Os primeiros destacam a
impossibilidade de o judiciário ditar as formas e condições de aplicação dos recursos o
erário, uma vez que o poder público é destinatário e entende não ter disponibilidade de
ativos financeiros suficiente para arcar com a prestação dos direitos fundamentais, com
fulcro na teoria da reserva do possível, tese essa já refutada pela Suprema Corte em
algumas ocasiões.20
Já por outro lado, tem se compreendido que a saúde, como um direito humano
de proteção ao bem da vida, é cerne para promoção de outros preceitos fundamentais e
por isso exigível judicialmente.21 Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal (STF)
tem consignado e influenciado os demais Tribunais no sentido de compreender o Direito
à Saúde como um direito subjetivo, o qual pode ser requerido pela via judicial, afastando
assim a ideia de que o Direito à Saúde está na ordem das normas programáticas da
constituição.22
Passadas as premissas necessárias para localizar a complexidade do assunto aqui
tratado, afunila-se a discussão para os modus operandi dos Tribunais Superiores na
tutela dos Direitos à Saúde. No objeto tratado neste trabalho, destaca-se a construção de
critérios para as decisões cujo cerne é a determinação do fornecimento de medicamentos
aos pacientes.
Primeiramente, destaca-se que não é recente a busca da Suprema Corte por um
entendimento uno em relação ao Direito à Saúde. Já em 2009 o então presidente do STF,
Ministro Gilmar Mendes, convocou Audiência Pública número 4, reunindo diversos
seguimentos da sociedade e especialistas da área da saúde para debater sobre o tema da
judicialização da saúde.23
No que se refere aos julgamentos na Suprema Corte, desde 2010, no julgamento
da Suspensão de Tutela Antecipada nº 175, o Tribunal fixou critérios que se tornaram
pano de fundo para as posteriores decisões sobre o tema nos anos posteriores.
O julgamento em tela se refere a um agravo regimental interposto pela União para
interceptar acórdão do Tribunal Regional Federal da 5º Região, o qual determinou o
20 “Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência
de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerarse do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental
negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de
um sentido de essencial fundamentalidade”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 45. Relator: Celso
de Mello. Brasília, 4 maio 2004.
21 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 647.
22 Ibidi., p. 653.
23Cf.
STF.
Audiência
Pública.
2009.
Disponível
em:
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maio de 2018.
260
Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais...
fornecimento específico a um paciente.
O Ministro Relator Gilmar Mendes, elencou critérios ao longo do seu voto, os
quais tomam como parâmetro de análise: 1) Investigação da existência de uma política
pública voltada ao que se pleiteia, sendo que, havendo e o Estado se omitindo ou não
viabilizando para o paciente, pode o judiciário determinar que o Poder Público torne
eficaz o programa social existente; 2) Uma vez inexistente a política pública, analisa-se
se o registro na Agência Nacional Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo esta uma
condição necessária para a outorga judicial. Uma vez não havendo registro na agência
regulamentadora e tratamentos substitutivos, observa-se se o medicamento pleiteado é
novo ou experimental. No primeiro caso, o fármaco já foi clinicamente aprovado e
comercializado. Para essa excepcionalidade, pode haver determinação judicial. Já no
segundo caso, são os casos de remédios ainda no curso de análise sobre sua eficácia, não
sendo possível, portanto, a imposição judicial para o fornecimento destes pela
Administração Pública.24
O STF tem discutido em julgamentos recentes a matéria aqui aludida. São os
Recursos Extraordinários (RE) 566.471/RN e 657.718/MG, ambos em sede de
repercussão geral e sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio. No RE 566.471/RN,
debate-se sobre a disponibilização de medicamento de alto custo fora da listagem do SUS
para uma paciente hipossuficiente. Já o RE 657.718/MG, diz respeito à pretensão do
poder judiciário determinar que a Administração Pública forneça medicamento não
regularizado pela ANVISA. Ambos os RE perderam o interesse por fatos supervenientes,
mas pela matéria de repercussão geral, o relator manteve o julgamento.
Os votos já colhidos, do relator e de mais dois ministros, dão um norte para o
entendimento que a Suprema corte tem consignado. No Recurso Extraordinário nº
566.471/RN, o Ministro Marco Aurélio assentou, retificando o entendimento anterior,
que uma vez constatada a impossibilidade financeira do paciente e de sua família em
arcar com os gastos com o tratamento e tendo em vista a imprescindibilidade do
medicamento, torna-se plausível a interferência judicial e a imposição de disponibilidade
do fármaco.25 Do mesmo modo o Ministro se guiou no relatório do RE 657.718/MG.26
A seu turno, o Ministro Luís Roberto Barroso, posicionou-se no RE nº
566.471/RN no sentido de que o Poder Judiciário só pode impor ao Estado efetivar
políticas públicas já disponíveis, exceto nos casos que atendem determinados critérios.
Dentre os cinco que elencou, destaca-se: “a inexistência de substituto terapêutico
incorporado pelo SUS; a propositura da demanda necessariamente em face da União, já
24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada nº 175. Relator: Gilmar
Mendes.
Brasília,
2010.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018.
25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.471. Relator: Marco Aurélio.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE566471.pdf>. Acesso em:
24 ago. 2018. p. 19.
26 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718. Relator: Marco
Aurélio. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE657718.pdf>.
Acesso em: 24 ago. 2018.
261
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
que a responsabilidade pela decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos
no âmbito do SUS é, em regra, desse ente federativo.27
Em relação ao RE 657.718/MG o Ministro Barroso considerou que medicamentos
fora do rol da Anvisa não podem ser determinados judicialmente, pois seria incorrer
contra a proteção da saúde pública. Todavia, em casos excepcionais se pode impor o
fornecimento de medicamentos sem registro da Anvisa, se for comprovado demora da
agência regulamentadora na análise do pedido de registro do medicamento.28
O Ministro Edson Fachin consignou critérios no RE 566.471/RN parelhos aos
Ministros que o antecederam, estabelecendo critérios para o fornecimento de
medicamentos de alto custo em casos excepcionais. Destaca-se o entendimento do
Ministro, o qual considera que a tutela jurisdicional relacionadas ao fornecimento de
medicamentos fora do disposto pela rede pública, devem ser preferencialmente
requeridas em ações coletivas, maximizando a eficácia da decisão.29
No RE 657.718/MG o Ministro Fachin observa que os medicamentos fora da
listagem do SUS e que, consequentemente, não possuem registro na Anvisa, não podem
ser objeto de imposição judicial, salvo casos excepcionais. Em tese, o magistrado colocou
que:
No âmbito da política de assistência à saúde, é possível ao Estado
prever, como regra geral, a vedação da dispensação, do pagamento, do
ressarcimento ou do reembolso de medicamento e produto, nacional ou
importado, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.30
A seu turno, o Superior Tribunal de Justiça (STJ do Brasil assentou recentemente
o seu entendimento sobre a matéria em tela. Em abril deste ano a corte concluiu o
julgamento do Recurso Especial 1.657.156/RJ, o qual estava sob a relatoria do Ministro
Benedito Gonçalves.
Em seu voto, o Ministro Relator concluiu critérios para a determinação judicial
de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos fora do rol do SUS. São eles:
I - Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e
circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da
imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia,
para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; II Incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e III -
27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.741. Voto: Luís Roberto
Barroso.
Brasília,
2016.
Disponível
em:
<http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/uploads/2016/10/RE-566471-Medicamentos-de-alto-custo-versão-final.pdf>. Acesso em: 24 jun.
2018. p. 20.
28 STF. Pedido de vista adia julgamento sobre acesso a medicamentos de alto custo por via
judicial. 2016.
Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275>. Acesso em: 24 jun. 2018.
29 Ibidi.
30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718. Voto: Edson Fachin.
Brasília, 2016. Disponível em: <https://www.jota.info/wp-content/uploads/2016/09/RE657718.pdf>.
Acesso em: 24 jun. 2018. p. 32.
262
Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais...
Existência de registro na ANVISA do medicamento.31
Mesmo com uma diferenciação dos casos concretos em juízo no STF e STJ,
percebe-se, numa perpasse geral, que os critérios das cortes superiores do Brasil têm
estabelecido premissas basilares.
Na verdade, os parâmetros fixados pelo Superior Tribunal mostram uma linha
convergente e um alinhamento para a questão. Pode-se perceber que a excepcionalidade
do fornecimento de medicamentos fora da listagem do SUS não pode ser provida sem
conferir a hipossuficiência do cidadão, a comprovação expressa da imprescindibilidade
do tratamento e, sobretudo, o registro do fármaco na Anvisa.
Em face dos critérios das Cortes brasileiras, tem se inferido o nível de afetação as
políticas já preexistentes, como verificado no tópico a seguir.
6) Os parâmetros dos Tribunais Superiores e as políticas de
saúde existentes
Em vista do que foi exposto nas linhas anteriores, percebe-se que tanto o STF,
quanto o STJ, têm se debruçado em fomentar critérios básicos para as determinações
judiciais relacionadas aos medicamentos.
Nitidamente se pretende uma maior uniformidade para os tribunais e
magistrados na jurisdição brasileira. Contudo, é preciso fazer uma análise mais detida
sobre as implicações desses parâmetros em outras áreas que cercam a problemática.
Na tentativa de diminuir o contencioso judicial em temáticas relacionadas à
Judicialização da Saúde, verifica-se que em algumas situações os parâmetros fixados
pelos Tribunais Superiores podem incorrer em déficits financeiros, prejudicando o
fornecimento de medicamentos já previstos no Relação Nacional de Medicamentos
Excepcionais.
Mesmo com os Tribunais afunilando paulatinamente as hipóteses de
determinação judicial para que o Poder Público dispense medicamento de alto custo ou
fora da listagem do SUS, torna concreta essa situação em alguns casos. Consequência
disto é a possível transferência de recursos destinados às políticas de fornecimento de
fármacos em grande escala, para o cumprimento de uma decisão judicial.
As críticas no entorno das decisões judiciais que impõem a Administração Pública
fornecer medicamentos fora do RENAME se baseiam na interferência do Princípio da
Universalização da Saúde. Isso, pois, noticia-se que cada médico possui sua visão sobre
31 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1657156. Relator: Benedito Gonçalves.
Brasília,
2018.
Disponível
em:
<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=8286901
8&num_registro=201700256297&data=20180504&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 24 ago. 2018. p. 12.
263
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
determinada patologia ou qual a melhor manobra terapêutica para o caso tratado. Nesse
sentido, se o laudo médico for critério definitivo para a averiguação da necessidade de
determinado tratamento, ficará altamente discricionária a concessão de fármacos pelas
vias judiciais.32
Como bem se sabe, mesmo com as positivas mudanças institucionais no Brasil, o
acesso à justiça não é pleno nem total no país. Partindo desse pressuposto, aqueles que
por algum óbice não conseguem bater as portas da Justiça, não encontra a guarida que
precisava nem por via judicial, nem pelas políticas públicas existentes no SUS.
Neste sentido, é imprescindível que haja uma maior convergência entre os
entendimentos dos Tribunais e as limitações do Poder Público. No próprio voto do
Ministro Roberto Barroso no RE 566.471/RN, foi destacado a importância dos órgãos
competentes que definem a entrada dos medicamentos no rol do SUS. Colocando como
sugestão para a corte, o referido magistrado consignou um parâmetro processual para
quando os julgadores tiverem sob sua égide a atribuição de decidir sobre o fornecimento
de um medicamento excepcional. Assim propõe:
a necessária realização de diálogo interinstitucional entre o Poder
Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde (e.g.,
câmaras e núcleos de apoio técnico em saúde no âmbito dos tribunais,
profissionais do SUS e CONITEC). Tal diálogo deverá ser exigido, em um
primeiro momento, para aferir a presença dos requisitos de dispensação do
medicamento. E, em um segundo momento, no caso de deferimento judicial do
fármaco, para determinar que os órgãos competentes (CONITEC e Ministério
da Saúde) avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS,
mediante manifestação fundamentada a esse respeito.33
Ao analisar o trecho acima, percebe-se que tal contato entre o Poder Judiciário e
os setores administrativos do Estado podem propiciar uma decisão mais apurada do
julgador. Assim como o NAT-JUS, o estreito relacionamento com as agências
reguladoras faz com que as determinações judiciais cheguem em um contrassenso
positivo.
Ao passo que os Tribunais Superiores têm se movimentado no sentido de assentar
o entendimento sobre o fornecimento, pela via judicial, de medicamentos, as agências
administrativas de saúde do Brasil precisam avançar. A morosidade para implementação
de tecnologias que possibilitem a RENAME avançar em seu rol, pode ser uma via
alternativa para a diminuição das demandas de saúde.
Isso, pois, com o estudo dos medicamentos novos e recém fomentados pela área
médica, pode proporcionar um planejamento financeiro para a gestão pública fornecer
32 SANTOS, Lenir. Decisão do STJ sobre medicamento de alto custo deforma conceito do direito à
saúde. Consultor Jurídico, maio de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-05/lenirsantos-decisao-stj-medicamento-alto-custo#_ftn2>. Acesso em: 24 jun. 2018.
33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.741. Voto: Luís Roberto
Barroso.
Brasília,
2016.
Disponível
em:
<http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/uploads/2016/10/RE-566471-Medicamentos-de-alto-custo-versão-final.pdf>. Acesso em: 24 jun.
2018. p. 20.
264
Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais...
devidamente tais medicamentos. Todavia, a demora no enquadramento e registro de
fármacos e tratamentos já aprovados clinicamente acarreta a busca pela prestação
judicial, a qual não pode se eximir de tutelar o Direito à Saúde dos cidadãos.
7) Conclusão
Ao se constatar os números das demandas judiciais relacionados à saúde,
verifica-se nítida necessidade de reflexão sobre a temática. Isso, pois, com a positivação
da saúde pela Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental, deu-se ao seu
titular a potencial exigibilidade de garantir em juízo o direito, quando não fomentado
pelo poder público.
Consequência disso são as inúmeras demandas judiciais nos tribunais brasileiros,
substanciando cada dia mais a judicialização da saúde no Brasil. Nesse contencioso, os
Poder Judiciário e Executivo têm dialogado sobre as possibilidades de determinações
judiciais mais acertadas e coadunadas com as possibilidades do sistema. Nisto surge o
NAT-JUS, como um dos meios para que magistrado tenha melhor clareza sobre os casos
concretos e conhecimento para a atividade cognitiva.
Neste mesmo sentido caminham os Tribunais Superiores na busca pelo
aprimoramento dos parâmetros adotados nas determinações de dispensa de fármacos de
alto custo e excepcionais fora do rol do SUS. Ao analisar os critérios levantados até agora
no STF e no STJ em julgamentos com repercussões gerais, nota-se que hipossuficiência,
a comprovação da necessidade do medicamento e o registro da Anvisa, salvo exceções,
são premissas básicas para as determinações judiciais.
Em contrapartida, a relação do Poder Judiciário com as instâncias
administrativas reguladoras necessita de maior contato. As decisões judiciais não levam
em conta as políticas públicas preexistentes e as disposições da RENAME ou do CMDE.
Com isso, ao tutelar o direito de um, acaba por prejudicar outros que não possuem pleno
acesso à justiça e que estão na dependência do Poder Executivo.
Por esses motivos se destacam as premissas levantadas pelos Ministros Barroso
e Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). O primeiro traçou parâmetro processual
colocando como necessário o diálogo com as agências reguladoras e administrativas,
para decisões condizentes com a realidade. Porém, é preciso ressalvar que a consulta ao
órgão regulador deve ser feita anteriormente ao deferimento, para então ser verificada
uma possível implementação no rol de medicamentos.
O Ministro Fachin, por sua vez., orientou no sentido de que a comprovação da
imprescindibilidade do tratamento deve advir de um médico da rede pública, já que se
parte do pressuposto de que ele conhece a realidade das políticas públicas existentes.
Além disso, em uma de suas falas o referido magistrado assentou em plenário a
orientação já vinculada nos Tribunais e pela doutrina, referente as demandas
relacionadas à saúde serem propostas coletivamente para um maior grau de
265
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
maximização.
Por tudo o que foi exposto, pode-se arguir os aspectos relevantes e necessários
para um debate doutrinário e acadêmico sobre a problemática em questão. Tendo em
vista disso, parece primoroso que tais discussões possam permear o judiciário brasileiro,
com a finalidade de guiar os litígios numa vertente que tutele os direitos dos cidadãos em
sua integralidade e de forma equilibrada.
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custo
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267
Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia
>. Acesso em: 24 jun. 2018.
268
O DIREITO À PRIVACIDADE E A EVOLUÇÃO
TECNOLÓGICA: A PROPÓSITO DA PUBLICIDADE
COM RECURSO AO RECONHECIMENTO FACIAL
Ana Clara Azevedo de Amorim1
1) Introdução
No dia 18 de abril de 2018, entrou em funcionamento no metro de São Paulo um
modelo inovador de portas digitais interativas com câmaras de reconhecimento facial
que permitem identificar os estados emocionais dos utilizadores em tempo real.
Resultado da acentuada evolução tecnológica verificada nos últimos anos, o tratamento
de dados biométricos permite potenciar a eficácia da comunicação comercial através da
difusão de anúncios personalizados. Apresentada como mais um instrumento disponível
para os anunciantes num contexto de excesso de oferta, esta tecnologia suscita graves
problemas ao nível do direito à privacidade dos destinatários, que se tornam um objeto
da informação para efeitos comerciais.
Importa analisar o recurso ao reconhecimento facial numa perspetiva de direito
comparado, na medida em que ao contrário do que se verifica no Brasil e noutros
ordenamentos jurídicos, o Regulamento Geral de Proteção de Dados aplicável nos
Estados Membros da União Europeia desde 25 de maio de 2018 pode representar um
entrave à evolução tecnológica.
2) A personalização da comunicação comercial e o direito à
privacidade
Enquanto instrumento do processo de comercialização de produtos e serviços, a
personalização das mensagens publicitárias visa uma aproximação aos interesses
concretos dos destinatários, devendo considerar-se genericamente admitida, dado que
assenta na liberdade de expressão e na garantia da iniciativa económica privada dos
anunciantes, cuja tutela se funda axiologicamente nos artigos 37.º e 61.º da Constituição
da República Portuguesa, bem como nos artigos 5.º IX e 170.º da Constituição Federal
do Brasil. No entanto, esta personalização resulta frequentemente do tratamento de
dados pessoais sem o consentimento do respetivo titular, o que pode determinar a
invalidade dos meios utilizados.
Atenta a decadência da publicidade difundida nos meios de massas verificada a
partir dos anos 70 e 80 do século XX, a personalização da comunicação comercial
começou por estar associada às visitas ao domicílio, às chamadas telefónicas, à remessa
1
Professora Auxiliar da Universidade Portucalense
Ana Clara Azevedo de Amorim
de correspondência por via postal e por telecópia, que constituem as modalidades
paradigmáticas de marketing direto. No ordenamento jurídico português, a Lei n.º 6/99,
de 27 de janeiro resultou da necessidade de evitar intromissões na vida privada dos
destinatários, garantindo precursoramente a proteção de interesses de natureza não
económica no domínio da publicidade (Paulo Mota Pinto, 1998:279).
A partir do final do século XX, a generalização do acesso às tecnologias digitais
potenciou o surgimento de outros instrumentos publicitários, como as mensagens de
correio eletrónico. Mas a Sociedade da Informação viria a caracterizar-se sobretudo pela
ampla disponibilização de dados pessoais, relevantes para efeitos da construção do perfil
individual dos internautas, que esteve na origem de um novo paradigma de comunicação
comercial, resultante do desenvolvimento do marketing direto. Este novo paradigma
começou por assentar na informação disponibilizada em rede pelos próprios internautas,
relativa às suas necessidades e desejos de consumo mas também às suas motivações,
personalidade e estilos de vida.
Atualmente, na sequência da evolução tecnológica dos últimos anos, os
profissionais recorrem sobretudo a sistemas automáticos de monitorização dos
comportamentos de navegação na Internet, que permitem conhecer as preferências dos
destinatários, aumentando a eficácia da promoção de produtos e serviços. Através dos
testemunhos de conexão, que armazenam pequenos ficheiros de texto nos computadores
dos usuários, possibilitando o seu reconhecimento em posteriores acessos, os
anunciantes alcançam automaticamente milhões de células de mercado com mensagens
publicitárias personalizadas em função dos seus interesses concretos. Passa então a ser
possível distinguir a personalização explícita – em que os próprios usuários participam
no processo através do fornecimento de informação – e a personalização implícita,
realizada através de sistemas automáticos de monitorização (Roberto Torres, 2004:121).
Num contexto de acentuada evolução tecnológica, o desenvolvimento dos
sistemas de cookies conduziu ao aparecimento de técnicas progressivamente mais
otimizadas de monitorização dos comportamentos. Também no domínio do mobile
marketing, o envio de mensagens publicitárias relativas a estabelecimentos situados na
proximidade dos utilizadores tem assentado no recurso à geolocalização. No Relatório
sobre o impacto da publicidade no comportamento dos consumidores de 23 de novembro
de 2010, o Parlamento Europeu manifestou uma preocupação com a personalização das
mensagens publicitárias, que considerou constituir “um grave atentado à proteção da
vida privada quando assenta no rastreio de características pessoais (testemunhos de
conexão, constituição de perfis e geolocalização)”.
Na sequência do recurso a sistemas automáticos de monitorização dos
comportamentos de navegação na Internet e aos restantes instrumentos de
personalização das mensagens publicitárias, começaram a desenvolver-se as tecnologias
biométricas, cujas potencialidades têm sido reconhecidas para efeitos do processo de
comercialização de produtos e serviços (José Luís Reis, 2013:226). Assim, por exemplo,
o reconhecimento facial ou vocal, as impressões digitais e a análise da íris permitem
270
O direito à privacidade e a evolução tecnológica...
identificar inequivocamente uma pessoa, verificando-se uma relação direta entre a
fiabilidade dos dispositivos e o respetivo grau de intrusão. No Parecer 3/2012 sobre a
evolução das tecnologias biométricas adotado em 27 de abril de 2012, o Grupo de
Trabalho instituído pelo artigo 29.º da Diretiva 95/46/CE reconheceu que estas suscitam
“fortes preocupações em diversos domínios, incluindo a privacidade e a proteção de
dados”.
Ora, mais do que a identificação inequívoca da pessoa, que resultava já também
do tratamento de dados pessoais no marketing direto, as tecnologias biométricas
representam um contributo decisivo para o reconhecimento de estados emocionais dos
destinatários da comunicação comercial. Num contexto de proliferação de mensagens
com finalidades promocionais e sobretudo face à prevalência da dimensão emocional das
decisões de consumo, a avaliação da resposta a determinados estímulos pode influenciar
a forma como os profissionais se dirigem individualmente a cada consumidor (Ana Clara
Azevedo de Amorim, 2018:179). Ou seja, o recurso ao reconhecimento facial permite
acentuar a transição para o apelo a sentimentos na comunicação comercial, em
detrimento dos tradicionais argumentos técnicos e funcionais relativos aos produtos ou
serviços, bem como a crescente valorização das experiências orientadas para estabelecer
relações sensoriais, afetivas ou criativas com as marcas.
Em suma, a privacidade constitui a principal preocupação nas relações de
mercado na Sociedade da Informação, especialmente quando o conteúdo das mensagens
publicitárias é determinado pelo reconhecimento de estados emocionais, que constituem
o último reduto da personalidade individual. Na verdade, a comunicação comercial
suscita agora maioritariamente um problema de tratamento de dados pessoais.
3) O regime jurídico da proteção de dados pessoais na
atualidade
Consagrado precursoramente no ordenamento constitucional português, o
direito à autodeterminação informativa visa evitar que o indivíduo se torne um mero
objeto da informação. Assim, nos termos do artigo 35.º da Constituição da República
Portuguesa, “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes
digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a
finalidade a que se destinam, nos termos da lei” (n.º 1). Relativamente aos dados
sensíveis, “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a
convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida
privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização
prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados
estatísticos não individualmente identificáveis” (n.º 3). Este direito à autodeterminação
informativa tem sobretudo uma natureza negativa, que permite impedir o acesso aos
dados pessoais por terceiros, traduzindo ainda uma garantia do direito à privacidade
consagrado genericamente no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e no
271
Ana Clara Azevedo de Amorim
artigo 5.º X da Constituição Federal do Brasil.
a) Direito Europeu
O Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram o Regulamento (UE) 2016/679
relativo à proteção das pessoas singulares no que respeita ao tratamento e livre
circulação de dados pessoais (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – doravante
abreviadamente RGPD), que revogou a Diretiva 95/46/CE e é aplicável nos Estados
Membros desde 25 de maio de 2018.
Nos termos do n.º 1 do artigo 4.º do RGPD, entende-se por dados pessoais a
“informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável”,
designadamente, por referência a “um nome, um número de identificação, dados de
localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da
identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa
singular”. De acordo com uma opção anteriormente defendida pela doutrina, o conceito
de dados pessoais abrange qualquer informação relativa aos interesses do utilizador, no
pressuposto da sua identificabilidade.
O artigo 5.º do RGPD enuncia um conjunto de princípios relativos ao tratamento
de dados pessoais. Relevam, entre outros, o princípio da limitação das finalidades,
segundo o qual os dados devem ser “recolhidos para finalidades determinadas, explícitas
e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com
essas finalidades” (alínea b) do n.º 1); o princípio da minimização dos dados, que
determina a sua adequação, pertinência e limitação ao que for necessário relativamente
às finalidades para as quais são tratados (alínea c) do n.º 1); e o princípio da limitação da
conservação, estritamente em função do período de tempo necessário para aquelas
finalidades (alínea e) do n.º 1).
Acresce que o consentimento do titular dos dados pessoais constitui um
pressuposto de licitude do seu tratamento, como resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo
6.º do RGPD. Representa, assim, o elemento central da proteção, sendo particularmente
relevante face à recolha de informação através de mecanismos independentes da
intervenção do titular, como se verifica no recurso ao reconhecimento facial. Ora,
segundo o disposto no n.º 11 do artigo 4.º do RGPD, o consentimento integra “uma
manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos
dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que
lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento”. O consentimento deve então traduzir
um comportamento ativo do utilizador, suscetível de manifestar inequivocamente a sua
vontade relativa ao tratamento dos dados pessoais para uma ou mais finalidades
específicas. Segundo o Considerando 32 do RGPD, não constituem consentimento “o
silêncio, as opções pré-validadas ou a omissão”, como a aceitação tácita de políticas de
privacidade decorrente, por exemplo, do facto de a navegação num determinado sítio
eletrónico não ser interrompida, sobretudo quando associada a informação redigida de
272
O direito à privacidade e a evolução tecnológica...
forma pouco clara ou excessivamente técnica.
Desta forma, o princípio da transparência consagrado no n.º 1 do artigo 12.º do
RGPD reitera o carácter esclarecido do consentimento, ao postular que o responsável
pelo tratamento deve tomar as medidas adequadas para fornecer ao titular dos dados
pessoais as informações necessárias “de forma concisa, transparente, inteligível e de fácil
acesso, utilizando uma linguagem clara e simples, em especial quando as informações
são dirigidas especificamente a crianças”. Estas informações devem ser prestadas por
escrito ou, mediante pedido do titular, oralmente. Consta dos artigos 13.º e 14.º do RGPD
o elenco das informações a facultar ao titular dos dados pessoais.
Acresce que o n.º 14 do artigo 4.º do RGPD prevê que os dados biométricos
resultam “de um tratamento técnico específico relativo às características físicas,
fisiológicas ou comportamentais de uma pessoa singular que permitam ou confirmem a
identificação única dessa pessoa singular, nomeadamente imagens faciais ou dados
dactiloscópicos”. Sendo enquadrada nas “categorias especiais de dados pessoais”, a
informação resultante da biometria permite identificar uma pessoa de forma inequívoca,
estando sujeita para efeitos do tratamento ao disposto no artigo 9.º do RGPD, que
consagra já uma norma de proibição. Ora, atenta a gravidade da lesão da privacidade
nestes casos concretos, e ao contrário do que se verifica na categoria genérica, os
ordenamentos jurídicos dos Estados Membros podem inviabilizar que a proibição de
tratamento destes dados seja afastada mediante consentimento do respetivo titular.
Por fim, importa referir que o consentimento do titular suscita especiais
dificuldades no reconhecimento facial, sobretudo quando o suporte pertence ao
profissional, como se verifica no metro de São Paulo. O problema deve ser
particularmente tido em consideração quando, no domínio do marketing, estiverem em
causa estados emocionais, que integram dados sensíveis.
b) Direito Brasileiro
No ordenamento jurídico brasileiro vigora a Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014,
que aprovou o Marco Civil da Internet e que estabelece um conjunto de princípios,
garantias, direitos e deveres dos usuários. Nos termos dos artigos 2.º e 3.º o uso da
Internet é regulado com fundamento no respeito pela liberdade de expressão e
garantindo a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais. Neste sentido, o
artigo 7.º prevê que o acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania, sendo
assegurado aos usuários o direito à “inviolabilidade da intimidade e da vida privada”, o
direito a “informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento
e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades
que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; e c) estejam
especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações
de internet”, bem como o direito a “consentimento expresso sobre coleta, uso,
armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada
273
Ana Clara Azevedo de Amorim
das demais cláusulas contratuais”. A garantia do direito à privacidade é reiterada no
artigo 8.º enquanto condição para o pleno acesso à Internet.
Desta forma, o Marco Civil da Internet consagra um regime jurídico de proteção
de dados pessoais e garantia do direito à privacidade em grande parte semelhante ao que
vigora nos Estados Membros da União Europeia, nomeadamente, prevendo o
consentimento como pressuposto de licitude do tratamento. Porém, ao contrário do que
resulta do RGPD, que incide genericamente sobre o tratamento de dados pessoais, o
Marco Civil da Internet em vigor no Direito Brasileiro não é aplicável às tecnologias
implementadas com recurso à biometria.
A ausência de uma lei geral de proteção de dados no Direito Brasileiro tem sido
objeto de reflexão, sendo apresentados vários modelos regulatórios inspirados nos
ordenamentos jurídicos europeu, norte-americano e uruguaio. A doutrina afirma que
estes modelos regulatórios conduzem maioritariamente a um reforço da proteção dos
dados pessoais, em detrimento dos interesses económicos, do incentivo à inovação e do
desenvolvimento tecnológico (Guilherme Guidi, 2018:86). Centram-se também no
consentimento do titular dos dados pessoais como pressuposto de licitude do
tratamento, num quadro de transparência que vincula os agentes económicos. No
entanto, os modelos regulatórios divergem no equilíbrio entre a intervenção do Estado e
de outras entidades administrativas, por um lado, e no papel atribuído ao mercado,
sobretudo através da prática contratual e da autorregulação, por outro lado.
Apesar da ausência de uma lei geral de proteção de dados no Direito Brasileiro,
importa referir que o Código de Defesa do Consumidor, aprovado pela Lei n.º 8.078, de
11 de setembro de 1990, consagra entre as diretrizes do Plano Nacional de Consumo e
Cidadania, “autodeterminação, privacidade, confidencialidade e segurança das
informações e dados pessoais prestados ou coletados, inclusive por meio eletrónico”. Ou
seja, o legislador reconheceu que o problema do tratamento de dados pessoais se suscita
especialmente no contexto da proteção do consumidor, onde surge como complemento
às dimensões tradicionais, decorrentes do reconhecimento da sua vulnerabilidade na
relação com os profissionais. Neste sentido, o artigo 43.º consagra o direito de “acesso às
informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo
arquivados”, que devem “ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil
compreensão”.
Em suma, a tutela do consumidor – qualquer pessoa singular ou coletiva que
adquire produtos ou serviços como destinatário final – abrange também o direito à
privacidade e a proteção de dados pessoais, que são relevantes sobretudo no contexto do
comércio eletrónico.
4) Impacto do regime jurídico na evolução tecnológica
274
O direito à privacidade e a evolução tecnológica...
A licitude do tratamento de dados pessoais depende do consentimento do
respetivo titular, que traduz uma manifestação de vontade, livre, específica, informada e
explícita. Estes mecanismos de garantia do direito à privacidade reforçados no Direito
Europeu pelo RGPD e introduzidos no Direito Brasileiro pelo Marco Civil da Internet
não inviabilizam o exercício da liberdade publicitária dos anunciantes, ao contrário do
que se verifica nas restrições ao conteúdo e à forma das mensagens (Ana Clara Azevedo
de Amorim, 2017:65). Na verdade, o tratamento de dados pessoais situa-se a montante
da própria emissão de mensagens com finalidade promocional, pelo que o recurso ao
reconhecimento facial para efeitos da personalização dos anúncios não pode justificarse ao abrigo da liberdade publicitária, cujo fundamento axiológico se encontra na
liberdade de expressão e na garantia da iniciativa económica privada. Assim, neste
conflito de direitos fundamentais, deve prevalecer sempre a tutela da privacidade dos
destinatários, como se verificava já no domínio do marketing direto, em conformidade
com o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 5.º X da
Constituição Federal do Brasil.
No entanto, em função do carácter mais ou menos liberal do modelo regulatório
adotado, o desenvolvimento dos regimes jurídicos de proteção de dados pessoais é
suscetível de provocar um impacto na evolução tecnológica. Neste sentido, a vigência do
RGPD inviabiliza a implementação num Estado Membro da União Europeia de câmaras
de reconhecimento facial semelhantes às que entraram em funcionamento no metro de
São Paulo para difusão de anúncios personalizados, pelo menos sem que os utilizadores
tenham a possibilidade de dar o seu consentimento para o tratamento dos respetivos
dados pessoais. Este recurso ao reconhecimento facial parece conduzir a uma inaceitável
instrumentalização da pessoa a finalidades comerciais, nomeadamente sempre que o
cruzamento de dados permita a identificação do titular, associando-lhe estados
emocionais, que constituem o último reduto da personalidade individual. De acordo com
este entendimento, as exigências legislativas em matéria de consentimento restringem
os instrumentos disponíveis para os anunciantes num contexto de excesso de oferta.
Noutros sectores de atividade, o problema do impacto do regime jurídico na
evolução tecnológica tem vindo a suscitar-se sobretudo face à necessidade de o
consentimento traduzir a manifestação de vontade relativa ao tratamento dos dados
pessoais para uma ou mais finalidades específicas, impedindo o aproveitamento
posterior das informações, exceto nos casos de interesse público. Desta forma, a União
Europeia tende a ficar numa situação de desvantagem concorrencial, determinada por
um menor incentivo à inovação, face ao que se verifica no Brasil e noutros ordenamentos
jurídicos, como o norte-americano.
5) Conclusão
A publicidade com recurso ao reconhecimento facial suscita graves problemas ao
275
Ana Clara Azevedo de Amorim
nível do direito à privacidade, sobretudo quando o suporte pertence ao profissional. Na
medida em que permite identificar os estados emocionais dos destinatários, a biometria
contribui para potenciar a eficácia da comunicação comercial através da difusão de
anúncios personalizados. Considerando a decadência dos tradicionais meios de massas,
bem como a acentuada evolução tecnológica verificada nos últimos anos, o tratamento
de dados pessoais assume um papel central nas relações de mercado na Sociedade da
Informação, sobretudo face à transição para o apelo a sentimentos na comunicação
comercial.
Da abordagem de direito comparado resulta que as Leis de Proteção de Dados
colocam os ordenamentos jurídicos perante a tensão entre a garantia da privacidade,
resultante diretamente dos textos constitucionais, e a suscetibilidade de entrave à
evolução tecnológica. No domínio da publicidade, importa sobretudo evitar que os
destinatários se tornem um objeto da informação para efeitos comerciais. De facto, a
garantia da identidade da pessoa representa um elemento fundamental da dignidade
humana, enunciada no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º
da Constituição Federal do Brasil.
REFERÊNCIAS
Amorim, Ana Clara Azevedo de (2017). “A personalização da comunicação comercial e o
Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados: perspetivas futuras”, AA.VV.,
Los desafíos jurídicos a la gobernanza global: una perspectiva para los
próximos siglos. Brasília: Advocacia-Geral da União, 57-66.
— (2018). Manual de Direito da Publicidade, Lisboa: Petrony.
Guidi, Guilherme Berti de Campos (2018). “Modelos Regulatórios para Proteção de
Dados Pessoais”, AA.VV., Privacidade em perspectivas, Rio de Janeiro: Lumen
Juris.
Pinto, Paulo Mota (1998). “Publicidade domiciliária não desejada (“junk mail”, “junk
calls” e “junk faxes”)”. Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de
Coimbra LXXIV, 273-325.
Reis, José Luís (2013). Personalização no Marketing. Sistemas e Tecnologias de
Informação. Lisboa: Centro Atlântico.
Torres, Roberto (2004). Personalização na Internet, São Paulo: Novatec Editora.
276
GOVERNANÇA CORPORATIVA: ADAPTAÇÃO AO
SETOR
PÚBLICO
PARA
UM
AMBIENTE
ECONÔMICO E JURÍDICO SAUDÁVEL
Fernando R. M. Bertoncello1
Thaís Cíntia Cárnio2
1) Introdução
Acontecimentos recentes têm afetado intensamente a credibilidade de
importantes empresas no cenário econômico brasileiro. São companhias públicas e
privadas. Em comum, o grande porte e o fato de todas terem expressão no mercado
internacional, a ponto de serem relevantes emissoras de títulos internacionais com vistas
à captação de recursos junto a investidores estrangeiros. Objetivo, esse, atingido de
forma exitosa e lucrativa antes de serem implicadas em atividades escusas de frondosas
proporções e enormes quantias de dinheiro.
O maior impacto foi causado pela denominada “Operação Lava-Jato”, cujo início
das investigações iniciadas pela Polícia Federal brasileira e Ministério Público Federal
remonta março de 2014. Desde então, verificou-se um complexo esquema de lavagem de
dinheiro e corrupção envolvendo nada menos do que a empresa petrolífera brasileira
Petrobrás e as maiores e principais empreiteiras no Brasil, dentre elas, a Odebrecht,
Camargo Correa, OAS, e mais sete nomes relevantes.
Além das efetivas perdas causadas pelo pagamento indevido de vantagens, a
credibilidade dessas empresas ficou fortemente abalada e notícias sobre os desmandos
correram o mundo, causando surpresa e indignação tamanha a proporção de seus
efeitos.
O ponto que pretende ser analisado neste estudo refere-se justamente à
possibilidade de aplicação da governança corporativa ao setor público, e se a adoção
dessa medida poderia ser eficiente para sanear a administração dessas companhias, com
vistas a evitar que novos desmandos pudessem contaminar tão profundamente o
desenvolver de suas atividades.
Para tanto, inicialmente serão examinados o conceito e a evolução da governança
1
Advogado, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em
Direito Público e também em Direito e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes. Mestre em Direito
Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e também mestrando em Direito
Internancional com ênfase em Direito Americano e Transacional pela University of Miami, Estados Unidos.
Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (bolsista capes),
com período de pesquisa (doutorado sanduíche) pela University of Miami, Estados Unidos.
2
Advogada, doutora em Direito Tributário e mestre em Direito das Relações Internacionais pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direito Privado e graduada pela Universidade
de São Paulo, Especialista em Banking e graduada em Administração de Empresas pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio
corporativa, além de seus pilares e os modos como são exteriorizados.
Serão abordadas as fontes nacionais informadoras sobre governança, com ênfase
para a criação dos Níveis Diferenciados de Governança Corporativa, pela B3 (bolsa de
valores brasileira) e o desenvolvimento do Código de Boas Práticas pelo Instituto
Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC na esfera nacional.
Em nível internacional, serão estudadas as iniciativas do Banco Mundial com a
elaboração do material “Governance and development”, bem como dos os trabalhos
desenvolvidos tanto pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), como também pelo International Federation of Accountants (IFAC),
especialmente voltados para a aplicação da governança corporativa ao setor público.
O principal objetivo é demonstrar como esses pilares da transparência e da
conformidade legal podem contribuir para um ambiente jurídico e econômico mais
saudável e probo, permitindo a expansão do mercado de capitais e a fidedignidade das
empresas públicas e privadas.
2) Conceito de governança corporativa
Governança de corporativa é um termo bastante abrangente, que engloba uma
série de práticas, iniciativas e comportamentos adotados pela empresa objetivando dar
transparência e confiabilidade para partes interessadas em suas atividades.
Essa forma de agir envolve o modo como interage com seus sócios, elementos
internos à administração da sociedade, como conselho, diretoria e afins, e externos
também, como investidores, acionistas, fornecedores.
Frequentemente, esses grupos são denominados pelo termo inglês “stakeholder”
(sendo “stake” sinônimo de interesse, e “holder”, de detentor). O termo foi cunhado
originalmente em 1963, pelo filósofo americano e professor de administração de
empresas, Robert Edward Freeman, e comporta um sentido amplo e outro estrito
(BEZERRA, 2018).
No primeiro caso, estão abarcados todos os grupos ou indivíduos que, direta ou
indiretamente, influenciam os objetivos da empresa ou são alcançados por eles, como
fornecedores, sindicatos, dentre outros.
Já em sua conotação estrita, adstringe-se àqueles sem os quais a empresa não
existiria. Nessa gama estão inseridos os acionistas, órgãos da administração e
fiscalização, por exemplo.
Em qualquer hipótese, Robert Freeman realça que o ponto relevante repousa na
necessidade de suprir cada um desses com a informação necessária à categoria que
pertencem, além de propiciar ao gestor melhor compreensão do ambiente que envolve a
companhia, permitindo que sejam tomadas decisões abalizadas e que efetivamente
possam agregar valor à empresa (FREEMAN, 2010, pp. 289-290).
278
Governança corporativa: adaptação ao setor público para...
Esse é um ponto crucial no qual retornaremos adiante: a adoção de práticas de
governança e o balizamento das ações da companhia por seus princípios são capazes de
resultar em reconhecimento de sua imagem e na apreciação de seu valor patrimonial.
Voltado à formação conceitual, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa
– IBCG define-a como “o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são
dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo o relacionamento entre sócios,
conselho de administração diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes
interessadas” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2018).
O Instituto ainda esclarece que as boas práticas de governança propiciam a
transformação de princípios básicos em recomendações de cunho objetivo, com vistas
aprimorar a qualidade da organização, sua longevidade e bem de toda uma coletividade.
De fato, é muito importante perceber a empresa como um elemento que contribui
para toda a coletividade, e não um elemento que não transcende seus muros e existe
como se fosse um fim em si mesma.
Vejamos essa multiplicidade de efeitos. Para o mercado de consumidor é benéfica
sua existência, pois se trata de mais um prestador de serviços ou fornecedor de bens,
ensejando maior oferta, competição de preços e variedade de produtos ou serviços.
Para os empregados e prestadores de serviços terceirizados, mais um originador
de postos de trabalho.
Considerando a economia nacional, há vários enfoques que podem ser
considerados. O Estado terá mais um contribuinte para a arrecadação de tributos e,
conforme a área de atuação, mais um exportador que auxiliará na composição do lastro
do tesouro nacional em moeda forte.
Quanto aos poupadores, a sociedade que apresenta boas práticas e transparência
será um potencial destino para as reservas dos investidores, fortalecendo o mercado de
capitais e possibilitando a captação de recursos a custo inferior aos juros praticados no
âmbito do mercado financeiro.
Quanto mais proba e confiável a empresa, melhor para uma ampla gama de partes
interessadas, segundo o conceito mais amplo de Robert Freeman, já analisado
anteriormente.
Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) desenvolveu o OECD Principles of Corporte Governance, publicado em 2004,
no qual esclarece que a estrutura da governança corporativa deve promover a
transparência e a eficiência dos mercados, além de cumprir com a legislação que lhe seja
aplicável e claramente organizar a divisão de responsabilidades entre as autoridades
supervisoras, fiscalizatórias e executoras (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2018).
A seguir, será abordada a evolução da governança corporativa e suas principais
fontes nacionais e internacionais.
279
Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio
3) Evolução da governança corporativa
O principal motivo que ensejou o desenvolvimento da governança corporativa foi
a necessidade de aumentar a confiabilidade em companhias em um cenário de
permanente transformação de pequenas sociedades em grandes companhias, com
pulverização de capital e aumento da impessoalidade na gestão.
Rossetti e Andrade (2012, pp. 69-71) atribuem essa expansão a cinco principais
pontos: (i) constituição de grandes empresas como sociedades anônimas e novas
subscrições de ações; (ii) aumento de abertura de capital e oferta pública inicial em
ambiente bursátil; (iii) aumento de investidores e fracionamento da propriedade das
companhias; (iv) profissionalização de gestão decorrente de processos sucessórios; e (v)
fusão de grandes empresas, aumento o número de acionistas e fragmentando sua
participação individual.
Esse distanciamento entre os acionistas e a gestão efetiva da companhia pode
gerar conflitos, que podem ser amainados com a transparência e das informações
fornecidas aos acionistas, órgãos reguladores e investidores, além da observância a leis
que protejam as partes interessadas.
Fontes originadoras de boas práticas têm oferecido subsídios ricos para
elaboração de um sistema íntegro de relação entre seus gestores e os stakeholders,
conforme será exposto nos próximos tópicos.
a) Fontes Nacionais
No Brasil, a estabilização da moeda nacional e controle inflacionário após a
implantação do Plano Real, na primeira metade da década de 90, apresenta um ambiente
mais propício para o investimento empresarial no país, bem como para o incremento do
mercado de capitais, além do impulso proveniente do ciclo de privatizações havidas no
período.
Nesse cenário, duas importantes instituições destacam-se como pioneiras na
organização de práticas benéficas para a gestão responsável e equânime das empresas: o
Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC e a BMF&Bovespa.
i)
Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC
Originalmente criado em 1995 como Instituto Brasileiro de Conselheiros de
Administração - IBCA, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC passou
a ser assim denominado em 1999, cujo propósito é contribuir para o desempenho
sustentável das organizações, buscando maior transparência, justiça e responsabilidade
nessa atividade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2018).
No mesmo ano, é publicada a primeira versão do Código das Melhores Práticas
280
Governança corporativa: adaptação ao setor público para...
de Governança Corporativa, que sedimenta como princípios básicos da governança
corporativa transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa
(Ibid.).
À luz do Código, a transparência materializa-se como a intenção de disponibilizar
as informações que sejam pertinentes para as partes interessadas, não se limitando
àquelas legalmente obrigatórias. Assim, devem abarcar inclusive informações que
direcionam a tomada de decisão gerencial e que preservem e agreguem o valor à
companhia.
Equidade, por sua vez, refere-se ao tratamento justo e isonômico de todos os
sócios e stakeholders, englobando tantos direitos, como deveres e expectativas.
Prestação de contas, ou accountability, retrata o dever dos sócios,
administradores, conselheiros, auditores e demais agentes de governança prestarem
contas de sua atuação de maneira clara e tempestivo, esclarecendo dúvidas que por
ventura subsistam e assumindo a responsabilidade por suas ações ou omissões na
medida de suas atribuições.
Por fim, responsabilidade corporativa implica no dever dos agentes de
governança em zelar viabilidade econômico-financeira da companhia, reduzindo efeitos
negativos que possam advir a terceiros como resultado de negócios e potencializar as
consequências positivas, considerando nessa atividade várias naturezas de capital
(financeiro, humano, social, etc.) ao longo do tempo que seja desenvolvida.
Erigido sobres esses pilares, o Código desenvolvido pelo IBCG torna-se uma
importante referência em para aqueles que pretendem diferenciar-se no mercado
empresarial.
Contribuindo ainda mais para essa distinção, a BMF&Bovespa inova ainda mais.
ii)
BMF&Bovespa (atual B3)
Em 2000, a BMF&Bovespa cria os segmentos especiais de listagem com o
objetivo de para desenvolver o mercado de capitais brasileiro, estabelecendo níveis
adequados aos diferentes perfis de empresas (Ibid.).
Cada um deles expressa um grupo de práticas que devem ser observadas e que
ultrapassam as obrigações legais constantes da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº
6.404/76 e alterações posteriores).
Iniciando no nível “Bovespa Mais” e culminando no “Novo Mercado”, cada
patamar agrega mais práticas que, progressivamente, incrementam o sistema de
governança da companhia, ampliando os direitos dos acionistas, seus mecanismos de
controle e divulgação de informações, sempre com vistas a propiciar um perfil adequado
à realização de grandes ofertas para investidores de variados perfis.
Para que possam migrar de determinado segmento para outro, a empresa assume
a obrigação de adequar-se a todos os requisitos constantes desse próximo nível.
281
Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio
Importante salientar que tanto a adesão, como a progressão entre os segmentos
é voluntária, e inicia-se com celebração de um contrato específico entre companhia
interessada e a B3, atual denominação da BM&FBovespa.
Com o decorrer dos anos, o Novo Mercado foi revisado em 2006, 2011 e, mais
recentemente, em 2018. O novo regulamento é fruto de discussões entre a B3,
participantes do mercado e companhias listadas, sua minuta foi aprovada em audiência
restrita pelas companhias listadas em junho de 2017 e pelo Colegiado da Comissão de
Valores Mobiliários em setembro de 2017 (BMF&BOVESPA, 2018).
Alguns pontos especialmente interessantes relativos ao Novo Mercado são as
seguintes: o capital deve ser composto exclusivamente por ações ordinárias com direito
a voto; tag along 100%, ou seja, caso haja alienação do controle, todos os acionistas terão
direito a vender suas ações pelo mesmo preço praticado pelo controlador; instalação de
área de Auditoria Interna, função de Compliance e Comitê de Auditoria; além de
realização de oferta pública de aquisição de ações por valor justo no caso de saída da
empresa do Novo Mercado, dentre outras regras.
Com a ampliação das informações e a garantia de direitos aos acionistas, objetivase maior valorização da empresa no mercado de capitais. Quanto mais confiável a
empresa, maior a possibilidade de angariar recursos junto a investidores.
4) Relevância para o setor privado e público: e o papel do
direito econômico nessa articulação
Sabe-se que a Economia e o Direito andam juntos, talvez, desde sua criação.
Nesse sentido, versa Fábio Nusdeo (2010, p. 31) que é íntima a relação entre Direito e
Economia. Trata-se, na verdade, de profunda imbricação, pois os fatos econômicos são
os que se apresentam de uma dada maneira em função direta de como se dá a
organização ou normatização.
Percebe-se uma relação intrínseca entre as duas ciências – que aparentemente
não podem existir uma sem a outra –, e nos últimos tempos percebe-se, inclusive, a
ampliação da presença do Estado no sistema econômico e o seu caráter difuso, com
multiplicação de normas legais de toda a espécie para por em prática a política econômica
(Ibid.).
No Brasil, o modo de produção em que se vive, como sabido, é o capitalismo e,
por isso, pode-se dizer que as relações humanas, sociais e jurídicas estão diretamente
atreladas a ele, que, por sua vez, depende da Economia para funcionar.
Sendo assim, verifica-se que vida social, cenário econômico (nacional e
internacional), bem como relações jurídicas (litigiosas ou não) carecem de um mesmo
alicerce: o desenvolvimento econômico.
Igualmente, para Eros Grau (2010, p. 33) não somente a Economia e o Direito
282
Governança corporativa: adaptação ao setor público para...
caminham em um mesmo sentido, mas, também, o próprio sistema capitalista, nos
seguintes termos: a sociedade capitalista é essencialmente jurídica e nela o Direito atua
como mediação específica; essas relações de produção não poderiam estabelecer-se, nem
poderiam reproduzir-se sem a forma do Direito Positivo; este Direito posto pelo Estado
surge para disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer que ele se presta a
permitir a fluência da circulação mercantil, para domesticar os determinismos
econômicos.
Assim, a sociedade capitalista somente se mantém como é se for controlada pelo
Direito positivado, o que também se aplica à Economia, que não pode ter um fim em si
mesma, mas, sim, um objetivo social e comum para com a sociedade.
Nesse sentido, Vicente Bagnoli (2007) expressa em sua obra a esperança do autor
de um século XXI socialmente melhor e, para tanto, pressupõe mais igualdade entre os
Estados e entre as pessoas de um mesmo Estado. Todavia, ressalta que para isso ocorra
deve-se promover políticas econômicas mais preocupadas em desenvolver a economia
das nações, principalmente a dos países pobres e em desenvolvimento, e não apenas
buscar o crescimento econômico. Sendo assim, para o autor, desenvolver a economia
deve significar desenvolver o país, a sociedade, que terá a contrapartida da melhora
econômica. Isso porque o progresso meramente material não conduz a sociedade a um
aprimoramento no bem-estar coletivo.
O desenvolvimento econômico, portanto, embora propulsor do sistema
capitalista, precisa de freios. E com o passar do tempo, a fim de que supostos freios
fossem melhor engendrados, surgiu um ramo específico do Direito: o Direito Econômico.
Embora não seja admitido constitucionalmente, o irrestrito intervencionismo do
Estado para estabelecer monopólio no exercício de qualquer atividade econômica, ou
mesmo um movimento estatizante, não convém concluir que a Constituição Federal de
1988 tenha estabelecido uma economia de mercado pura, o que não se encontra em
qualquer país (TAVARES, 2010, p. 227). Nessa toada, defende-se que nos dias que
correm, seria inadmissível entender uma sociedade na qual o Estado se abstivesse de
intervir na economia.
Cabe, portanto ao Direito daqui para frente articular novas formas de governança
para que se possa estabelecer uma forma sustentável de se articular a atividade
empresarial, estabelecendo boas práticas de governança corporativa, tanto no âmbito
privado quanto no âmbito público.
5) Considerações finais
Percebe-se, portanto, que a governança corporativa é uma prática que só tende a
crescer em uma dinâmica empresarial, uma vez que a transparência, a ética corporativa
283
Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio
e a sustentabilidade já integram modelos de negócio e compõem o valor agregado das
empresas. Além disso, a governança corporativa é elemento basilar para que uma
empresa traga para si o capital reputacional.
A governança, por sua vez, não é somente um conceito que é um desafio para a
esfera privada ou empresas de capital aberto, mas sim para qualquer atividade
empresarial, sobretudo as públicas. As empresas públicas precisam necessariamente
adotar esse conceito e perder aos poucos o seu viés político e, mais do que isso, o seu viés
partidário.
Verificou-se que as leis de mercado de capitais, bem como uma grande seara de
iniciativas autorregulatórias podem ensejar boas práticas de governança, promovendo
assim um ambiente salutar para a atividade empresarial e para os investimentos,
sobretudo o investimento estrangeiro, que tanto precisa de segurança para acontecer.
Todavia, esse ambiente autorregulatório, embora importante somente não basta. É
preciso a atuação do Direito Econômico nessa seara.
Verificou-se o quanto o Direito Econômico é importante para auxiliar na
dinâmica financeira de um Estado Democrático de Direito a fim de promover o interesse
público. Sendo assim, percebeu-se que são necessárias inicitaivas jurídicas a fim de
desejar modelos legislativas que estimulem as boas práticas de governança corporativa
estimulando políticas de transparência, accountability, compliance, inciativas
anticorrupção e políticas que permitam que aquela atividade empresarial promova mais
igualdade em um país ainda que é marcado por traços de bastante desigualdade entre as
pessoas.
A proposta de um Direito que viabilize essas práticas não inviabiliza atividades
autorregulatórias desempenhadas até agora, mas as complementa a fim de transformar
a atividade empresarial brasileira em uma prática sustentável e digna de investimento
estrangeiro.
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285
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E O DIREITO
CONSTITUCIONAL:
A
PRESERVAÇÃO
DOS
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
EM
MEIO
À
MODERNIDADE LÍQUIDA.
Giovana Maria Naldi Marcondes1
Nara Furtado Lancia2
1) Introdução
A velocidade com que as mudanças ocorrem no mundo é uma característica
evidente do tempo atual, além disso, a capacidade de adaptação e flexibilização não fora
vista de maneira tão exacerbada anteriormente. Mesmo com posicionamento de alguns
mais conservadores, não há limitação: crianças, jovens e idosos das mais variadas classes
sociais e zonas geográficas estão submetidos ao desenvolvimento tecnológico do último
século, XXI, a pós-modernidade. Surgida nos Estados Unidos da América, na década de
1960, e propagada por toda a Europa por Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel
Foucault, Jean Baudrillard, o termo “pós-modernidade” tem como um de seus maiores
defensores, o filósofo francês Jean-François Lyotard (1998). Ele afirma que tal marco
seria o fenômeno da sociedade pós-industrial, o que poderia ser identificado com o fim
da Segunda Guerra Mundial, de sorte que a pós-modernidade seria uma resposta ao
nazismo, ao mesmo tempo em que caracterizaria esse momento o rompimento com as
antigas verdades até então inquestionáveis do liberalismo e do marxismo.
Nesse sentido, a visão de Marx e Engels (1988), no Manifesto Comunista, de que
o mundo pode ser resumido na frase “Tudo que é sólido desmancha no ar”, torna-se
ainda mais alarmante no século seguinte, quando acompanhado de maior
desenvolvimento e sintetização da sociedade pós-moderna. Problematiza-se e importase, então, as características deste tempo em que as verdades absolutas foram soterradas,
quando no século XXI, num ambiente em que as sociedades plurais e complexas
deparam-se com mudanças tecnológicas que ocorrem permanentemente, tornando as
relações e até as pessoas e as coisas voláteis e absolutamente efêmeras.
A fluidez e a volatilidade das coisas, das relações e até mesmo das pessoas e das
crises impressionam no contexto atual, em que as calmarias e também as tempestades
ocorrem com enorme velocidade. Essa realidade questionou e ruiu todas as certezas
antigas rapidamente, dentre elas, a característica de riqueza, pois ter riqueza não mais
significa acumular bens materiais, o homo faber de Arendt (2010) foi substituído em
grande parte por uma persona que anseia por serviços, por bens imateriais e
em
Direito
–
Centro
Universitário
Salesiano
de
São
Paulo.
E-mail: gi_naldi@hotmail.com
2Advogada; bacharel em direito pela Universidade de Taubaté; Mestranda em Ciências JurídicoCriminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com um período sanduiche pela Universidad
de Murcia. E-mail: narafurlancia@hotmail.com
1Graduanda
Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia
principalmente, por acesso ao crédito, ser esse que, ademais, se encontra inserido num
mundo em que o avanço da técnica em escala mundial abala todas as estruturas, modifica
comportamentos e ideias, e torna as inovações de instantes antes ultrapassadas a partir
de agora.
No dia de hoje, todas as informações – relevantes ou não - sobre a vida de uma
pessoa e seu patrimônio estão em uma “nuvem de dados” que podem, por acesso remoto,
ser consultadas a qualquer momento, como o BlockChain. Diante deste contexto, a
economia toma novos rumos, e o Direito, assim, precisa mudar e alcançar os fatos
cotidianamente urgentes, promovendo, portanto, o encontro entre essas duas realidades,
jurídica e tecnológica, sem perder de vista o princípio básico jurisdicional, qual seja, a
mantença, promoção e preservação da dignidade humana.
A sociedade pós-moderna é a transformação de uma sociedade de massa refletida
por pensadores como os da Escola de Frankfurt, para uma sociedade da abundância, na
qual os excluídos são todos aqueles que estão alheios à sociedade de consumo. Como
explica Bauman (1998), ao assinalar a distinção da sociedade moderna, sólida, da
sociedade pós-moderna, líquida, se anteriormente a sociedade dita moderna era vivida
como sólida com projetos sociais e ideologias condutoras de rumos para os homens, na
pós-modernidade não se tem mais isso. Na pós-modernidade vive-se, como ele
denomina e solidifica o termo, uma espécie de modernidade líquida, ou seja, uma
construção fluida, desapegada de promessas ideológicas, de compromissos sociais e
políticos e, em contra partida, caracterizada por um consumismo exacerbado.
O mundo atual, nessa perspectiva se importa exclusivamente com o estímulo de
compulsões para necessidades criadas por ele mesmo. Essas que levam à exacerbada
individualidade e ao isolamento afetivo como formas de proteção e até mesmo economia,
provocada pela velocidade do desenvolvimento da tecnologia de hoje que devasta e torna
obsoletas e insignificantes as inovações de ontem, fazendo, por exemplo, a proteção dos
direitos da personalidade ainda mais fundamentados, uma vez que, com a velocidade da
tecnologia, honras são questionadas, intimidades são violadas, expressão é confundida
com opressão e tudo, em segundos, é apagado, excluído, fazendo da internet a
vulgarmente chamada “terra de ninguém”. Trazendo direitos até então mantidos como
absolutos e indisponíveis, volatizáveis.
Diante do exposto, reconhece-se que a evolução tecnológica é fator indiscutível à
realidade brasileira e mundial. A sociedade adaptável e flexível precisa ser acompanhada
de atualizações e acompanhamento jurídico. A chamada mutação legislativa se faz
indispensável frente a essa mudança de paradigma. Qualquer evolução que se desvincule
dos valores e preceitos sociais defendidos e preservados fundamentalmente perde sua
efetividade, uma vez que, o respeito aos direitos humanos, a mantença da dignidade e o
respeito à história da nação são fundamentais mesmo quando, em contra partida,
reproduz-se uma vida cada vez mais líquida. Pelo exposto, portanto, é que a discussão se
justifica, a fim de entender, de maneira indutiva, a realidade brasileira e internacional e
concluir a mais efetiva maneira de proporcionar o encontro das realidades retro
288
A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação...
destacadas, quais sejam, os direitos fundamentais e à ponderação de valores frente ao
avanço e desenvolvimento tecnológico. Para tanto, a presente pesquisa foi dividida em
algumas etapas. Na primeira, serão explanados e explicados o conceito e as
características da pós-modernidade, momento o qual se encontra o ápice do
desenvolvimento tecnológico e o choque de princípios que ensejou a presente discussão.
Em seguida, abordar-se-á, doutrinariamente, quanto aos direitos fundamentais, seu
conceito, aplicação e efeito, o que tão logo será contraposto com a conceituação de
Modernidade Líquida e a exposição de Bauman frente aos dois pontos anteriores. Por
fim, tratar-se-á, através de análises jurisprudenciais da realidade fática brasileira e
internacional frente a esses conflitos com crítica in casu¸como será concluído ao final, é
o melhor modo de solucionar o conflito, através da hermenêutica factual, sem a
possibilidade de existir lacunas de aplicações rígidas ou desequilibradas que a
normatização pode provocar.
2) Os direitos fundamentais
Os direitos fundamentais são fruto de construção histórica. Inicialmente, foram
idealizados na dimensão subjetiva, frutos da correlação máxima do direito, ou seja, entre
os aspectos fático, axiológico e normativa, na teoria tridimensional do direito, que Miguel
Reale, 1994, dispõe:
O Direito é uma realidade, digamos assim, trivalente ou, por outras
palavras, tridimensional. Ele tem três sabores que não podem ser separados um
dos outros. (Miguel Reale, 1994, p. 121)
Nesse sentido, foram as revoluções Francesa e Industrial, ambas do século XVIII,
e suas consequências e, mais adiante, as experiências dos Estados Totalitaristas, o
nazismo e o fascismo, que fizeram aflorar a dimensão e, até mesmo, a necessidade dos
direitos fundamentais, sendo os direitos à prestação por parte do Estado. Também
quando os direitos fundamentais passaram a ser positivados e classificados conforme sua
eficácia.
Ao tratar de eficácia ou dimensão subjetiva das normas de direitos fundamentais,
diz sobre o que é que essas normas de direito caracterizam e conferem aos seus titulares
quanto ao poder jurídico de ação, ou seja, o de exigir algo, uma abstenção, implicando o
reconhecimento de um poder dado ao titular no sentido de exigir algo e na hipótese de
não cumprimento espontâneo pode ir, até mesmo, ao poder judiciário, quando, então,
fará valer sua pretensão. Nessa dimensão, temos a ideia tradicional dos direitos
fundamentais com direta relação aos direitos subjetivos. Nesse raciocínio, eles possuem
característica individualista e são oponíveis ao Estado. Os direitos fundamentais são a
expressão normativa do conjunto de valores básicos de uma sociedade. (VALE, 2009, p.
167)
Contudo, enquanto na dimensão subjetiva o Estado é oponível, na dimensão
289
Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia
objetiva, o Estado torna-se um protetor dos direitos fundamentais, pois, a eficácia ou
dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que está ligada à sua efetivação, trata a
respeito do fato de que certos valores que permeiam a ordem jurídica deixam
condicionados à interpretação e aplicação de outras normas, ao que se denomina eficácia
irradiante, e ainda criam o dever geral de proteção sobre aqueles bens jurídicos
salvaguardados pelo ordenamento jurídico.
A partir de então, faz-se necessário discutir os termos que a própria dimensão
objetiva dos referidos direitos, quais sejam, os fundamentais, se relacionam: a eficácia
irradiante, a eficácia horizontal e a vinculação positiva do Estado aos direitos
fundamentais. Cumpre dizer que os direitos fundamentais emergem no procedimento de
superação do estado absolutista pelo estado liberal e burguês. Contudo, a posteriori, o
estado liberal também passou a ser contestado, uma vez que, por obviedade, fora incapaz
de cumprir suas juras e de efetivar direitos fundamentais. Assim, logo no início do século
XX, sobrevieram, as primeiras constituições que, pioneiramente, previram direitos
sociais, a do México e a de Weimar.
Diante do cenário, a discussão acerca da efetividade dos direitos fundamentais e
de cunho social, foi sendo fortalecido cada vez mais. É nesse contexto que se entende a
dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que surge destacando o conteúdo
axiológico dos direitos fundamentais, de sorte que esses norteiam a interpretação e a
aplicação das normas jurídicas existentes no sistema jurídico (PEREZ LUÑO, 1998).
Nesse sentido, portanto, entende-se que na dupla dimensão dos direitos,
subjetiva e objetiva, os pilares do ordenamento jurídico brasileiro podem ser afetados
pelo advento das inovações, frente a todas a novas mudanças de paradigma. E, como
preconizado por Reale, anteriormente, o direito é diretamente dependente do fato e da
realidade da sociedade em que está inserido, ou seja, o direito não pode ficar alheio e
sendo imprescindível que esteja, a fim de acompanhar e fazer seu papel, aberto às
inovações, e que não as iniba. Portanto, ao cumprir seu papel fundamental de direito
deve, desse modo, ao tempo em que deve cumprir sua função de estabilizar, estar aberto
à criação de uma estrutura que esteja igualmente aberta às inovações, às novas
oportunidades, para que assim possa normatizar a nova realidade. Para tanto ratificar,
Bauman, este que será, no próximo tópico tratado de maneira mais específica, em sua
rotulação que melhor caracteriza a realidade pós-moderna:
“A ausência, ou a mera falta de clareza das normas – anomia – é o pior
que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida.
As normas capacitam tanto quanto incapacitam; a anomia anuncia a pura e
simples incapacitação” (BAUMAN, p. 28).
3) A modernidade líquida
290
A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação...
Autor, dentre outras obras, do livro Modernidade Líquida, o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman dirige uma reflexão sobre as reiteradas e aceleradas mudanças que
tem ocorrido nas últimas décadas nos vários âmbitos da vida contemporânea. Dentre
eles, na esfera jurídica. A flexibilização dos princípios constitucionais pode ser observada
como fato característico da era contemporânea e ameaçador da estrutura do Estado
Democrático de Direito.
Hoje, no denominado por ele, Capitalismo leve, o capital viaja fluído, solto,
propriamente, líquido, nas mãos dos que operam virtual e eletronicamente o sistema
capitalista. Funcionários não ficam mais ancorados em gigantescos departamentos, haja
vista as presentes atividades de home office, presos a um horário formal com obrigação
de ponto e aos papéis que compõem a burocracia e estagnação do capitalismo pesado,
aquele da Era Moderna. Circula-se o capitalismo, levemente, através de aparelhos de
sofisticada tecnologia, negocia-se mercados e promove-se audiências, onde testemunhas
são levadas a instrução, apresentando-se teses nos mesmos, através das chamadas de
vídeo conferências, sem o gasto e o desgasto de passagens aéreas, perda de tempo,
relação interpessoal e contato humano. Abrevia-se etapas e, assim, dá-se movimento e
fluidez ao capital, à justiça, ao conhecimento e à discussão.
A modernidade é afastada da predeterminação e da definição de conceitos
estáticos ou irrevogáveis, contrariamente ao período precedente, onde a estagnação, a
estrutura econômica pesada, era o paradigma. Defende que hoje temos derrotas que não
são definitivas, mas também nenhuma vitória é final. As possibilidades devem continuar
infinitas, permanecendo líquidas e fluídas, com “data de validade”, ou seja, um mundo
repleto de sinais confusos propenso a mudar com rapidez e forma imprevisível, sem
certeza (BAUMAN, 1994). Pessoas, relacionamentos, valores ou coisas, são regidos,
igualmente, por “data de validade”.
O futuro é inseguro e esse pensamento se expande, inclusive, para o direito. As
normas e as fiscalizações não são o suficiente. No Brasil, o sistema judiciário é travado
constantemente por uma necessidade de produzir uma falsa segurança. Promover
Embargos de Embargos de Embargos afim de assegurar uma tutela jurídica que tal qual
a sociedade atual já se foi, é não entender a realidade social. O sistema moroso, desde a
Reforma do Código de Processo Civil de 2015, tenta reeducar toda uma sociedade do
litígio e que tente a transformar em contencioso todo conflito pela necessidade de
resolução. Porque a fluidez não aceita derrota e busca, em sua totalidade, o benefício e a
valoração de si próprio e é onde, como afirma em entrevista ao Programa “Quem Somos
Nós?” o professor Luiz Mauro Martino (2016), rupturas e continuidades continuam
juntas em uma tensão constante.
Concomitantemente a essas dificuldades já realidades na Modernidade Líquida,
há as dificuldades em razão do difícil acompanhamento legislativo frente às mudanças
tecnológicas, o que produz um crescente número de ataques aos direitos fundamentais
personalíssimos. Como será concluído, através das análises jurisprudenciais presentes
no próximo capítulo, a solução para o conflito retro citado está na hermenêutica factual
291
Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia
e julgamento in casu.
4) O direito e a tecnologia: jurisprudências e análise in casu
Por obviedade, o constante desenvolvimento tecnológico não foi preconizado ou
sequer acompanhado pelas mudanças normativas, o que culminou na dificuldade de
resolução dos conflitos da relação entre a evolução tecnológica e os direitos
fundamentais. No Brasil, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso
ratifica o entendimento de que não existe hierarquia entre direitos e princípios
constitucionais (Rcl 22328 MC, STF, 2015), ou seja, a busca pelo equilíbrio e a solução
do embate deve ser feita in casu, sendo o judiciário elemento ponderador entre a
realidade fática e legislativa.
Conflito estes, tal qual a dicotomia entre o direito à privacidade e o direito autoral.
Como em 1984, nos Estados Unidos, no conhecido caso Betamax. A discussão entre a
Sony e a Universal Studios visava a esclarecer se a gravação de programas e filmes em
fitas videocassetes representava violação aos direitos do estúdio e do autor. A decisão
nesse questionamento foi a de que não houve violação ao direito autoral, mas uso
legítimo da tecnologia ou fair use. Contudo, em contrapartida, no ano 2000, mesmo que
se tratando do conflito entre os mesmos dois direitos, o programa de compartilhamento
de músicas em computador Napster foi proibido.
No Brasil, em 2013, inicia-se, então, o exame dos precedentes. Por exemplo, o
REsp 1.512.647/MG, que tratou sobre a responsabilidade civil de site da internet. O
referido caso se tratava da rede social Orkut e um curso preparatório para concursos
públicos e exames que vendia aulas online e materiais virtuais. Ocorre que fora divulgado
em “comunidades” e páginas virtuais do provedor algumas aulas de maneira gratuita o
que fora entendido, pela empresa do curso preparatório como pirataria e foi movida uma
ação contra a página. A discussão gerada e carregada foi quanto a responsabilidade civil
da página e se havia participação da mesma no ato ilícito de pirataria com vantagem
financeira ou pecuniária. A 2ª Seção do STJ entendeu e suscitou a exclusão da
responsabilidade civil da rede social, por ela não disponibilizar de nenhuma ferramenta
que facilitasse a pirataria, tampouco utilizar ou obter benefício, ainda que indiretamente.
Por obviedade, este tipo de julgado abriu precedente e foi utilizado por qualquer outra
rede social, site ou provedor de internet que sofresse no polo passivo de ação semelhante.
Outro caso julgado no Supremo Tribunal Federal tratou sobre a
constitucionalidade de uma lei estadual criada pelo Estado do Rio Grande do Sul. A
referida lei estabelecia a preferência na aquisição de softwares livres ou sem restrições
proprietárias no âmbito da administração pública regional, na modalidade de licitação
pública da concorrência. Em matéria de liminar, o Ministro Ayres Britto decidiu
contrariamente em relação ao software livre. Contudo, em fase decisória, na relatoria do
Ministro Luiz Fux, a Suprema Corte estabeleceu que a legislação estadual é compatível
com os princípios constitucionais da separação dos poderes e manteve a norma que deu
292
A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação...
preferência para a aquisição de software livre (ADin 3.059)
Outros precedentes que podem ser citados a fim de ilustrar a crescente demanda
na área, o que justificaria uma reforma além do Marco Civil da Internet são o REsp
844.736/DF, por exemplo, que analisou e decidiu quanto a matéria de se o spam gera
dano moral, o REsp 997.993/MG, no qual discutido se o fornecedor do serviço, ou seja,
no caso, quem hospeda o site de classificados teria ou não corresponsabilidade por
publicar falso anúncio erótico solicitado por uma pessoa para prejudicar outra ou o REsp
1.168.547/RJ, que tratou sobre a possibilidade de ajuizamento de ação indenizatória caso
a pessoa sentir-se violada pela utilização de imagem na internet ainda que o site esteja
hospedado no exterior, sendo a decisão do STJ afirmativa nesse caso.
Quanto ao Marco Civil da Internet, vale salientar, por exemplo, a normatização
de um dos casos tratados acima, qual seja, o da responsabilidade civil dos provedores de
internet. A Lei nº 12.965/2014 em seu art. 19 exige ordem judicial específica para que
obrigue a tornar indisponível qualquer conteúdo que seja gerado por terceiros e violador
de direito, previsto ainda, contudo que, em caso de inércia, a responsabilidade pode e
deve ser invocada.
Cumpre dizer ainda, quanto ao art. 21 da citada lei:
Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize
conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela
violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus
participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de
nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de
notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de
forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a
indisponibilização desse conteúdo.
Além disso, está expressamente excepcionada de seu âmbito de incidência a
violação de direitos autorais praticada por terceiros (art. 19, § 2º, e art. 31).
Ademais, analisa-se também, no mesmo nexo textual a análise ao direito ao
esquecimento. O Superior Tribunal de Justiça, em conjunto com o Conselho da Justiça
Federal, tem buscado se posicionar e consolidar uma posição a fim de orientar e nortear
o Direito Civil, o Direito Comercial, dentre outros temas. Nesse momento que criou-se a
ideia da tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação, incluindo o
direito ao esquecimento.
Posteriormente, foram julgados na 4ª Turma do STJ dois casos com temas
diferentes (REsp’s 1.334.097/RJ e 1.335.153/RJ), escolhidos cautelosamente para
análise concomitante. Embora relacionados ao direito ao esquecimento e utilizando se
técnica de distinção, em um caso, houve posicionamento que fora concedida a
indenização (REsp 1.334.097/RJ), onde um cidadão indiciado na chacina da Candelária
do Rio de Janeiro e, a posteriori, absolvido pelo júri a pedido do próprio promotor de
justiça. Nesse caso, o acusado precisou mudar de identidade, mudar-se de cidade e
procurar outro emprego pois fora perseguido em sua comunidade. Tempos depois,
293
Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia
quando conseguiu se estabilizar na nova vida, uma emissora de televisão o procurou para
gravar uma entrevista, mas ele se negou a participar dizendo apenas que já fora
absolvido, contudo, ainda assim, o programa foi ao ar, o que ensejou a ação indenizatória,
a qual sustentou em um dos seus argumentos, o direito de ser esquecido; e, no outro, o
conhecido caso, também do Rio de Janeiro, da Aida Curi, que envolveu a alta sociedade
carioca, quando a mesma emissora de TV ré no caso anterior, veiculou a reconstituição
do crime mesmo com o não consentimento da família e seu pedido de direito de
preservação da memória da falecida, fora negada (REsp 1.335.153/RJ).
A justificativa para diferentes posicionamentos corroborou o entendimento uno
que norteia o presente estudo e todo o sistema judiciário brasileiro: ocorreu de modo a
afirmar que o resultado do julgamento vai depender de cada caso. Ou seja, não será em
toda situação que vai ser aplicável o direito ao esquecimento. Assim, não poderá ser
normatizado de maneira una e definitiva.
O caso precedente da União Europeia que tratou do tema, fora o acórdão de 13 de
maio de 2014, do Tribunal de Justiça da União Europeia, amplamente divulgado por
todos os meios de comunicação, resultou da reclamação sobre o caso do Google Espanha
contra a Agência Espanhola de Proteção de Dados e Mario Costeja González. A pretensão
era a retirada do nome de Mario Costeja González do mecanismo de busca.
Ainda se tratando da análise do direito internacional, vale dizer sobre o chamado
actual malice, criado nos Estados Unidos, com o caso do New York Times, que
questionou sobre a necessidade de efetivamente provar a má-fé do jornalista para
caracterizar a invasão da privacidade quando são ultrapassados os limites da mera
informação. Diferentemente, no direito brasileiro, existem vários precedentes que
afastam a necessidade de prova da má-fé (REsp 706.769/RN).
Como fora possível observar em cada um dos casos retro citados que
fundamentam o presente estudo, numa análise indutiva, cada caso precisa ser julgado de
acordo com seu contexto factual, ou seja, não foi possível, em nenhum deles, a
normatização e imposição de uma lei sem lacunas. O Marco Civil da internet, que foi a
maior tentativa de normatizar o desenvolvimento tecnológico, deixou vazios que
precisaram ser preenchidos pela função judiciária. Como maior exemplo, pode ser citado
os dois julgamentos sobre o direito ao esquecimento, estes que, apesar de tratar de
assuntos semelhantes e pleito do mesmo direito, tiveram decisões distintas, pois a
realidade factual assim o era..
5) Conclusão
Destarte, quanto à colisão de diversos direitos fundamentais, o desenvolvimento
tecnológico, às mudanças de paradigma e à ponderação de valores em conflito, existem
doutrinadores que defendem a preponderância de um dos princípios em relação ao
294
A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação...
outro, em uma espécie de hierarquia. Contudo, como uniformizado majoritariamente
pelo direito brasileiro, a ordem é um sistema, o que pressupõe unidade, equilíbrio e
harmonia. Como em todo ou qualquer sistema, suas engrenagens precisam coexistir. Na
colisão de princípios constitucionais, emprega-se a técnica da ponderação. Diferente do
que ocorre nas soluções de eventuais conflitos entre normas jurídicas
infraconstitucionais, nas quais, utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da
hierarquia, da norma posterior e o da especialização. (SANTOS, 2006)
Por força do princípio da unidade, abaixo explicitada pelo Professor Barroso,
inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete da lei, qual seja,
o operador do direito, a busca da harmonização possível, in casu. A ponderação e a
hermenêutica factual são instrumentos de regulação da engrenagem e de preservação do
princípio da unidade, também conhecido como princípio da unidade hierárquiconormativa da Constituição.
A ideia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição
e sobre ela também projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição
assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima
natureza do documento inaugural da ordem jurídica. É a Carta fundamental do
Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, e o produto
dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não
colidem. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados
princípios e normas, o fato é que isso não apaga “ o pluralismo e antagonismo
de idéias subjacentes ao pacto fundador” (BARROSO, 2004, p. 196)
Neste mesmo sentido, o americano Dworkin idealiza o Juiz Hércules, aquele que
resolve os casos mais difíceis um a um.
Ainda, cumpre citar mais uma vez o Ministro Luis Roberto Barroso:
A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a
necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas
no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente
discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma
interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos
objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os
parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão
à luz das possibilidades exegéticas do teto, das regras de interpretação (que o
confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da
história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e
conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na
sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à
realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que
o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na
interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro
dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e
sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto.
Por fim, a evolução tecnológica é fator indiscutível à realidade brasileira e
mundial. A sociedade adaptável e flexível precisa ser acompanhada de atualizações e
295
Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia
acompanhamento jurídico. A chamada mutação legislativa se faz indispensável frente a
essa mudança de paradigma. Qualquer evolução que se desvincule dos valores e preceitos
sociais defendidos e preservados fundamentalmente perde sua efetividade, uma vez que,
o respeito aos direitos humanos, a mantença da dignidade e o respeito à história da nação
são fundamentais mesmo quando, em contrapartida, reproduz-se uma vida cada vez
mais líquida.
O presente estudo entende, portanto, que é dever do Poder Judiciário a promoção
da hermenêutica factual, de modo que possa adequar a devida solução a cada caso
concreto. A normatização de uma realidade que está em constante mudança possibilitar
a promoção latente, a priori, de lacunas, ou seja, uma aplicação rígida e desequilibrada
da legislação que culminará em injustiças e choques de princípios, como a hierarquização
até mesmo dos direitos fundamentais. A análise e o julgamento in casu, que é a proposta
pelo presente estudo, trará à prática jurídica o consolidado por Miguel Reale: a teoria
tridimensional do direito, a qual busca convergir a norma, pelos direitos e princípios
fundamentais, o valor, frente às mudanças sociais de paradigma e a realidade fática,
quanto ao desenvolvimento tecnológico na pós-modernidade, que, em conformidade,
promoverá a justiça e manterá como princípio básico jurisdicional a preservação da
dignidade da pessoa humana, como ordena a Carta Magna Constitucional Brasileira e
toda a legislação internacional.
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297
RESPONSABILIDADE AMBIENTAL: O PRINCÍPO
DO POLUIDOR PAGADOR MEDIANTE UMA
ANÁLISE
ECONÔMICA
DO
DIREITO
DO
AMBIENTE
Roberta Fernandes de Faria1
1) Introdução
O direito a um ambiente saudável, diante da sua natureza de direito fundamental,
é alvo de interesse no que diz respeito à adoção de medidas tendentes a compatibilizar o
desenvolvimento econômico com a preservação ambiental.
Os danos ecológicos, consequência do desenvolvimento econômico, geram
responsabilidade civil, que é, no campo do direito ambiental, aplicada mediante o
princípio do poluidor-pagador. Este princípio relaciona as normas de direito econômico
e de direito ambiental, em que o causador da poluição deve arcar com os custos
necessários à diminuição, eliminação ou neutralização deste dano, podendo o causador
do dano repassar tal custo para o preço do produto final, de acordo com a concorrência
de mercado. Sob a ótica econômica, a existência de bens ambientais sem preço para a
apuração do custo indenizatório cria falhas de mercado geradoras de externalidades2,
que são internalizadas pelo princípio do poluidor-pagador, de modo a corrigir o custo
adicionado à sociedade. Entretanto, há quem não concorde com esta transferência de
valores, pois isso faria com que o consumidor final arcasse com o custo do risco de causar
dano ao ambiente, ocasionando uma distribuição injusta de riqueza.
Na situação em tela, o princípio do poluidor-pagador assume um viés econômico
e de caráter retributivo injusto (a internalização dos custos das externalidades
negativas). Assim, a conjugação das ciências econômiacas no sistema de
responsabilidade civil por danos ao ambiente pode até ser eficaz na inibição das
degradações ambientais, mas como a economia só se preocupa com mercado, sofre de
carência de ética e justiça por não distribuir equitativamente os ônus sociais da
depredação do ambiente, implicando em desigualdade. A partir da adoção de
mecanismos econômicos que efetivam o princípio do poluidor-pagador e o viés menos
ético desses mecanismos, deve-se compreender como as teorias da ciência econômica
impactam no princípio do poluidor-pagador.
1 Mestre em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra,
Investigadora do CEIS20/UC, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra
2 Externalidades, em economia, são os efeitos sociais, econômicos, ambientais de uma decisão ou
ato sobre quem não participa deles, sem compensação
Roberta Fernandes de Faria
2) A crise ambiental no sistema económico
Analisando os modelos de desenvolvimento econômico praticados desde a
revolução industrial e durante todo o século XX, José Rubens Morato Leite explica que
a crise ambiental traduz a incapacidade demonstrada por todos os modelos de aliar o
desenvolvimento econômico à preservação de padrões de qualidade de vida para
sociedade, padrões esses apenas possíveis se respeitados alguns limites do ambiente que
se trabalha ou explora3. As constantes intervenções no ambiente natural4 provocadas
pelas atividades de produção geram desequilíbrios do ecossistema, dando origem, de um
lado, a um consumo excessivo de recursos naturais, e, do outro lado, descarga de
materiais poluentes. A partir disso, pode-se levar em consideração que a crise ambiental
advém de uma divergência entre economia e ambiente ecológico, pois as atividades
empreendedoras dependem de bens naturais e não levam em conta os custos de tal
utilização5, conforme posição de Ramón Martín Mateo, ao afirmar que a causa das atuais
preocupações se origina da dissociação de dois enfoques que deveriam ser convergentes:
o econômico e o ambiental6. A ciência econômica clássica propõe eficiência dos fatores
de produção, quando o mercado impõe uma necessidade ilimitada de consumo com
recursos limitados, de modo que os custos das transações mercadológicas sejam
reduzidos para alcançar o ponto "ótimo de Pareto"7. Pode-se dizer que a natureza visa a
manter o equilíbrio nos ecossistemas; o ser humano visa a melhorar o seu bem-estar e as
atividades econômicas visam maximizar lucro.
A economia também se preocupa com o bem estar e levanta questões sobre a
forma de funcionamento dela mesma quando: quer saber o quão satisfatório é seu
sistema social de distribuição, o que pode ser feito a respeito de uma melhora no bem
estar total e o grau de anulação social dos resultados do laissez-faire para promover esse
bem estar8. Para Pareto, de acordo com Miller9, uma alteração que faz com que pelo
menos um indivíduo progrida e que nenhum piore de situação constitui uma melhora no
bem estar social., porém, uma alteração que não causa nenhuma melhora mas que causa
3 LEITE, Jose Rubens Morato.Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial.São
Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002, p. 23
4 Segundo Guilherme Folarodi, "todos os problemas ambientais se referem a impactos humanos
externos ao processo de produção no sentido estrito" - FOLADORI, Guillermo. Limites do Desenvolvimento
Sustentável. Campinas: Unicamp, 2001, p. 103.
5 SILVA FILHO, Carlos da Costa. O Princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à
realização da Justiça. in Revista de Direito da Cidade, vol.04, nº0, Rio de Janeiro, ISSN 2317-7721 p. 113
6 MATEO, Ramón Martín. Tratado de Derecho Ambiental. Madrid: Edisofer S.L., 2003, t. IV
(actualización), p. 29
7 o "ótimo de Pareto" significa, em poucas palavras, que são utilizados os recursos escassos e os bens
e serviços alocados de uma forma tão eficiente pelos participantes do mercado que é impossível uma nova
distribuição de forma a melhorar a situação de alguns participantes sem prejudicar simultaneamente a de
qualquer outro.
8 OSER, Jacob, BLANCHFIELD, William C., SANTOS, Terezinha Santoro dos, ROSSETTI, José
Paschoal. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1983, p. 366
9 MILLER, Roger Leroy. Microeconomia: Teoria, Questões e Aplicações. São Paulo: McGraw-Hill
do Brasil, 1981, p. 441
300
Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador...
a piora da situação de uma pessoa resulta numa redução do bem estar social10.
Os recursos naturais são, em sua maioria, considerados bens cujo uso ou
consumo não pode ser realizado de forma exclusiva, em razão de impossibilidade física
ou mesmo por serem bens difusos, de modo que todos possam usar ou consumir. Tal fato
pode levar a uma disputa, ou não, por esses bens difusos e, consequentemente, a um
dano ao ambiente: se não houver disputa por esses bens podem dar origem à escassez11
ou, caso o bem ambiental em abundância não seja disputado, pode gerar uma inércia12
por parte dos usuários e consumidores para sua preservação. Percebe-se, assim, que ao
se deparar com recursos naturais, cujo acesso é livre e cujo uso ou consumo é ou não
disputado, o mercado falha, uma vez que os referidos bens ambientais não possuem um
preço, ou seu preço não traduz seu fiel valor no custo da produção. Essa falha de
mercado, em razão da ausência ou distorção de preço da natureza, provoca uma "tragédia
dos bens comuns"13, pois a sociedade passa a tomar uma postura individualista à procura
de maximizar seu interesse à custa do outro.
Essas falhas de mercado decorrentes da ausência de preço do bem ambiental ou
da dificuldade de se valorar14 esse bem geram aquilo chamado de externalidades
negativas, que são situações em que “terceiros ganham sem pagar por seus benefícios
marginais ou perdem sem serem compensados por suportarem o malefício adicional" 15.
Em outras palavras, as externalidades negativas ocorrem quando o uso de bens
ambientais gratuitos pela sociedade transferem a essa mesma sociedade eventuais custos
10 Enrique LEFF levanta a hipótese de que não há um crescimento sustentável com a degradação do
ambiente, sendo "necessário ajustar os ciclos econômicos, atribuindo preços de mercado à natureza, com
a esperança de que as mercadorias poderão continuar circulando de maneira contínua em torno da esfera
(perfeita) da ordem econômica - LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade,
complexidade, poder / Enrique Feff; tradução de Lucia Mathilde Endlich Orth. 9. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes,
2012, p. 14
11 Cláudia Alexandra Dias Soares muito bem exemplifica esse problema: "A captura de recursos
piscícolas constitui um bom exemplo deste tipo de situações em que o mercado falha ao não assinalar
correctamente a escassez. Como uma maior quantidade de peixe capturado por um sujeito implica uma
menor quantidade para os restantes, verificar-se-á um estímulo no sentido de cada um aumentar o seu
esforço de captura até que o preço de cada peixe no mercado iguale o respectivo custo de obtenção, isto é, o
custo médio suportado pelo pescador. A possibilidade de o recurso se esgotar é ignorada. Enquanto aquele
ponto não for atingido, a extracção será intensificada a ritmos crescentes. A conseqüência será a exploração
das espécies existentes até um nível insustentável, em que a auto-reprodução deixa de ser possível."
SOARES, Cláudia Alexandra Dias. O imposto ecológico – contributo para o estudo dos instrumentos
económicos de defesa do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, Stvdia Ivridica, n. 58, p. 82.
12 François Ost, apresenta o seguinte exemplo de dano ambiental decorrente da não disputa do bem
ambiental: "Duas indústrias poluentes instaladas nas margens de um lago, no qual derramam as suas águas
usadas. Se bem que o valor das suas instalações ganhasse consideravelmente com a instalação de dispositivos
de filtragem das águas, nenhuma das duas indústrias tem qualquer interesse pessoal em proceder a essa
operação. Colocada numa situação de “dilema de prisioneiro”, cada uma das duas sabe perfeitamente que,
não sendo proprietária do lago, não poderá impedir a sua vizinha de usufruir, gratuitamente, do
investimento que ela própria consentiu" - OST, François. A natureza à margem da lei. Lisboa: Instituto
Piaget, 1995, p. 151
13 HARDIN, Garret. The Tragedy of Commons. Science, v. 162, 1968, p. 1243-1248. Disponível em
http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html
14 Valorar consiste na identificação e ponderação da importância relativa das diferentes funções
desempenhadas por cada ecossistema, sendo a operação de valoração que permite a atribuição de
preços.(ARAGÃO, Alexandra, A natureza não tem preço... mas devia, Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Jorge Miranda, Coimbra, outubro 2011, p. 6)
15 MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 182.
301
Roberta Fernandes de Faria
de prevenção e reparação do dano ambiental16.
3) O sistema jurídico de responsabilidade ambiental e as
teorias económicas
No que diz respeito ao sistema jurídico de responsabilidade ambiental, as teorias
econômica são praticadas pelo princípio do poluidor-pagador, ou seja, quando se impõe
ao poluidor a obrigação de recuperar/indenizar os danos causados ao ambiente
conjugadas a uma obrigação ética e moral de todos pela preservação do bem comum.
O princípio do pagador-poluidor17 também é chamado de princípio da
responsabilidade e designa uma característica preventiva e sancionatória, tendo como
explicação o fato de fazer com que o causador do dano ambiental passe a ter
responsabilidade pela proteção do ambiente. Por este princípio, o causador do dano pode
embutir no preço do produto final os custos da poluição18, porém há quem não concorde
com esta transferência de valores, pois entendem que isto fará com que o consumidor
final arque com o custo referente ao risco de causar dano ao ambiente, ocasionando uma
distribuição injusta de riqueza19. Para estes últimos, o empresário deve arcar com o
16 Nicolas Sadeleer explica que quando as atividades econômicas causam danos ao ambiente, essas
atividades levam à externalidades negativas quando seus custos não são levados em conta no preço de
revenda do produto consumido ou do serviço prestado. Nesse caso, o preço do mercado é inferior ao que
deveria ser, e os consumidores do bem ou do serviço, semelhantes a passageiros clandestinos, obtêm
vantagens do fato de não dever pagar o “verdadeiro preço”. Do mesmo modo, a ausência desses custos se
assemelharia, diz-se, a um enriquecimento sem causa (SADELEER, Nicolas de. Les principes du pollueurpayeur, de prévention et de précaution. Essai sur la genèse et la portée juridique de quelques principes du
droit de l’environnement. Bruxelles : Bruylant, 1999, p. 50)
17 Em 26 de maio de 1972, durante uma reunião sobre a utilização dos recursos hídricos, os países
membros do Conselho da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) aprovaram
a "Recomendação sobre os princípios diretores relativos aos aspectos das políticas ambientais sobre o plano
internacional", recomendação que deu origem ao princípio do poluidor-pagador. A referida recomendação
objetivava que fosse controlado o uso e degradação do ambiente, além de defender que o Poder Público
fiscalizasse as indústrias e implementasse medidas com o intuito de reduzir a poluição.de recursos naturais.
Vinte anos depois, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992
(ECO-92), o princípio do poluidor-pagador foi positivado pela Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento nos seguintes ditames: "As autoridades nacionais devem esforçar-se para promover a
internalização dos custos de proteção do meio ambiente e o uso dos instrumentos econômicos, levando-se
em conta o conceito de que o poluidor deve, em princípio, assumir o custo da poluição, tendo em vista o
interesse público, sem desvirtuar o comércio e os investimentos internacionais"
18 Para Cristiane Derani, “pelo princípio do poluidor pagador, arca o causador da poluição com os
custos necessários à diminuição, eliminação ou neutralização desse dano”. E acresce, “ele pode, desde que
isso seja compatível com as condições na concorrência no mercado utilizar esses custos para o preço de
seu produto final" DERANI, Cristiane “Direito Ambiental Econômico”. 2 Ed, , Editora Max Limonard , São
Paulo, 2001, p. 162
19. Ricardo Carneiro explica que nas atividades empresárias são produzidas externalidades positivas
e negativas, que é uma falha de mercado, quando no preço do bem colocado no mercado não estão incluídos
os ganhos e as perdas sociais resultantes de sua produção ou consumo, respectivamente. "Externalidades,
efeitos externos negativos ou deseconomias externas correspondem a custos econômicos que circulam
externamente ao mercado e, portanto, não são compensados pecuniariamente, sendo transferidos sem
preço. Não se referem a fatos ocorridos fora das unidades de produção, e sim a efeitos do processo
econômico ocorridos fora ou em paralelo ao mercado (CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma
abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 64). Para melhor compreensão sugerimos o
seguinte exemplo: quando uma empresa de recipientes plásticos coloca o seu produto no mercado, é de se
perguntar se o preço final que foi dado ao seu produto levou em consideração o custo social da sua produção,
ou seja, considerando que plástico é um material que, quando se transforma em resíduo, é um fator de
degradação ambiental, é de se questionar se o valor do bem colocado no mercado tem em si o valor do
302
Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador...
referido custo pelo fato de usar o ambiente em benefício próprio e em prejuízo da
coletividade.
Pelo princípio do poluidor-pagador, o Estado pode ser quem corrige as
externalidades negativas ambientais geradas no mercado. Segundo Paulo Bessa
Antunes20, o princípio do poluidor-pagador "parte da constatação de que os recursos
ambientais são escassos e que seu uso na produção e no consumo acarreta-lhe redução
e degradação". De acordo com mesmo autor, se o custo da redução dos recursos naturais
não for considerado no sistema de preços, o mercado não será capaz de refletir a escassez
e, por este motivo, são necessárias políticas públicas capazes de eliminar a falha de
mercado, de forma a assegurar que os preços dos produtos reflitam os custos ambientais.
Continua observando que, sob o enfoque jurídico, o fato de alguém ser responsável pela
indenização de um dano causado a terceiros não apresenta qualquer novidade, sendo o
elemento diferencial o princípio do poluidor-pagador, que busca afastar o ônus do custo
econômico das costas da coletividade e dirigi-lo diretamente ao utilizador dos recursos
ambientais, mesmo que inexista dano plenamente caracterizado. Por este raciocínio
temos que o princípio do poluidor-pagador não está fundado no princípio da
responsabilidade pura e simplesmente, mas sim na solidariedade social e na prevenção,
mediante a imposição da carga pelos custos ambientais nos produtores e consumidores.
A adoção do princípio do poluidor-pagador proporcionou teorias acerca da
responsabilidade baseada no risco criado e sobre quem deve suportar os encargos.
Assim, para Sinde Monteiro21, "o fundamento da responsabilidade não reside agora na
prática de um ato culposo, mas sim na criação ou controle de um risco, ou, talvez com
mais rigor, de uma fonte de riscos ou de potenciais danos, aliado ao princípio de justiça
distributiva segundo o qual quem tira o lucro em todo o caso beneficia-se de uma certa
coisa ou atividade que constitui para terceiros uma fonte potencial de prejuízos, ou da
atuação de outras pessoas que estão sob a sua direção,devendo suportar os
correspondentes encargos".
No que respeita a efetividade do princípio do poluidor-pagador como
fundamento das políticas de proteção ambiental, Maria Alexandra de Sousa Aragão
destaca que a proteção ambiental não depende somente da existência de leis
protecionistas, mas da eficiência destas no contexto ambiental. A "poluição normativa",
segundo a autora, está presente quando as leis, a despeito de estarem em conformidade
com os ditames das políticas de proteção ambiental, não são capazes de colocar em
prática aquilo que enunciam22. Certo é que não estamos mais em tempo para belos
discursos jurídicos em defesa do ambiente, políticas e leis teóricas, mas sem
denominado custo social relacionado ao dano ao ambiente. A resposta é negativa, uma vez que, segundo a
teoria econômica das externalidades, o efeito negativo ou positivo não pode ser agregado ao valor do produto
por não se conseguir medir.
20 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 219-221
21 MONTEIRO, Jorge Sinde. Estudos Sobre a responsabilidade civil.
Publicação do Centro
Interdisciplinar de Estudos Jurídicos Econômicos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1978, pag. 10
22 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor pagador: Pedra Angular da Política
Comunitária do Meio Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora. 1997, p. 56
303
Roberta Fernandes de Faria
funcionalidade, pois as normas de proteção do ambiente precisam caminhar para maior
diligência prática.
Com o fim de conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação
ambiental de forma eficaz, faz-se necessária uma atuação interdisciplinar dos cientistas
em busca de um fim comum, que é o desenvolvimento sustentável. Uma vez que as leis
de proteção ambiental pecam na eficiência, a análise econômica, por apresentar
capacidade de quantificar e qualificar objetivamente o problema, pode oferecer soluções
mais eficiente na preservação do ambiente.
Em resposta à necessidade de conexão científica em busca de efetiva proteção
ambiental, destacam-se teorias pragmáticas que defendem a análise econômica do
direito. Na economia, para superar o "problema ambiental", são utilizadas tentativas de
disciplinar o uso dos recursos ambientais como se estes últimos fossem mais um
elemento do sistema econômico que deve ser a ele incorporado, de modo a conduzir o
seu uso racional, internalizando as externalidades negativas. A economia ambiental
propõe duas teorias para tratar da questão internalização das externalidades negativas:
uma é a teoria de Ronald Coase, que patrocina que, com o fim de equacionar o problema
da escassez dos recursos naturais e da melhoria da qualidade de vida, mantendo a
processo produtivo, procura a economia ambiental incorporar o ambiente ao mercado,
adotando a teoria da extensão do mercado (atribuição de preços)23; a outra, defendida
por Arthur C. Pigou, adota a via da correção do mercado, ou seja, aposta na revalorização
das preferências individuais através do Estado (a preocupação central é na internalização
dos recursos naturais)24.
Ronald Coase25, sustentava a atribuição de direitos de propriedade aos bens
difusos para que os respectivos titulares, mediante negociação direta, sem interferência
do Estado, buscassem internalização eficiente dos efeitos externos de suas atividades
com acordo entre as partes. Para tanto, seriam necessários direitos de propriedade bem
definidos e custos de transação reduzidos. Criticando a Teoria de Coase, Carneiro26 diz
que apesar da lógica atraente demonstrada através de modelos hipotéticos e calcados em
simplificações da realidade, na prática social concreta, as situações geradoras de
externalidades são muito complexas, envolvendo uma variedade de interesses em
conflito e, por consequência, elevados custos de transação. Ainda segundo o mesmo, em
havendo muitas partes interessadas envolvidas, os custos de coordenação da negociação
23 Adotando a internalização das externalidades negativas pelas regras do próprio mercado (Teoria
de Coase), a Agência de Proteção Ambiental Norte-Americana – EPA utilizou desta teoria na Lei de Proteção
Atmosférica e, mais tarde, estendeu para as normas de Proteção Hídrica e de disposição de resíduos sólidos.
De acordo com o ordenamento norte-americano, cabe à EPA identificar quais são as substâncias poluidoras
do ambiente, bem como quais os limites e concentrações dessas substâncias que podem ser lançados no
ambiente. Uma vez definidos tais limites e concentrações, cabe aos Estados Federados definir as políticas
para implementação desses, em seus territórios. DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São
Paulo: Max Limond, 1997, p. 111
24 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limond, 1997, p. 111
25 COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics. v. 3. Out. 1960.
Disponível em: http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf Acesso em: 31 ago. 2007
26 CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Janeiro:
Forense,2001, p. 90
304
Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador...
são muito altos, o que dificultaria qualquer possibilidade de acordo. Carneiro usa como
exemplos para refutar a adoção desta teoria a complexidade de negociações envolvendo
problemas ambientais graves, como a poluição veicular nos grandes centros urbanos ou
mesmo questões de reflexo global, como o aquecimento da atmosfera e a destruição da
camada de ozônio, os quais demandariam grande articulação internacional que
viabilizasse a harmonização de hábitos culturais de vários povos e a conjugação dos
moldes de desenvolvimento econômico e social de países e blocos econômicos distintos27.
Assim, os oponentes à Teoria de Coase defendem que não existe um direito de
contaminar, mas sim uma proibição de o fazer, colocando a questão em mais termos
morais do que em termos práticos.
Entretanto a teoria de Coase tem encontrado aplicação prática, precisamente
através dos certificados negociáveis de poluição, que consistem na alienação, por parte
do Poder Público, de títulos transacionáveis no mercado, títulos esses que corporificam
um direito a poluir até um determinado grau, ou de emitir uma determinada quantidade
de poluentes, como é o exemplo do mercado de crédito de carbono.
A Teoria formulada por Arthur Cecil Pigou28 na época da afirmação do welfare
state, defendia a intervenção estatal para a correção das falhas de mercado, mediante a
instituição de subsídios ou incentivos, no caso das externalidades positivas (por ele
chamadas de economias externas), ou por meio da cobrança de uma prestação financeira
ao agente econômico que se beneficia das externalidades negativas (deseconomias
externas). Cristiane Derani29 explica que, por esta teoria, na existência de uma falha do
mercado, coloca-se o Estado como instituição à parte para corrigir essas falhas,
assegurando um nível ótimo do mecanismo de mercado. Neste caso, o Estado intervém
para corrigir não só a distorção do mercado com relação ao uso dos recursos naturais,
como também para agir subsidiariamente com os custos dos efeitos externos, tomando
para si parte dos custos que seriam transmitidos ao causador. A Teoria de Pigou é
criticada porque ignora aquilo que se convencionou chamar de falhas do Estado, pois as
decisões da burocracia estatal são tomadas de forma compartimentada quando os
problemas ecológicos devem ser tratados de forma integrada, além do fato de que o
27
Fundada nesta razões, grande parte da doutrina do Direito do Ambiente se posiciona
contrariamente à criação de mercados de licenças de direitos de poluir, conforme os argumentos de François
Ost: "O desacordo é profundo em relação a esta corrente de pensamento, que reduz simultaneamente o
social e o ecológico aos fins restritos da troca mercantil. Tudo se passa aqui, como se a sociedade de
reduzisse à justaposição de proprietários vizinhos trocando “propriedades” (utilidades económicas), num
mercado livre e transparente, desprovido de qualquer tipo de constrangimentos. Como nos mais belos dias
da teoria liberal, a igualdade é suposta caracterizar os negociadores, dotados de uma igual oportunidade
de acesso à propriedade e de um mesmo poder de negociação. Nem uma palavra sobre as relações de força
e as distorções de informação, que afectam, necessariamente, estas transacções; nem uma palavra ou
quase nenhuma sobre o papel incontornável do poder público no enquadramento destes mercados e o
equilíbrio dos interesses em presença" (OST, François. A natureza à margem da lei. Lisboa: Instituto Piaget,
1995, p. 161)
28 PIGOU, Arthen C. Economics of Welfare, 4. ed., Londres: Macmillan & Co, 1932. Disponível em:
http://www.econlib.org/library/NPDBooks/Pigou/pgEW.html
29 DERANI, Cristiane. Direito ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 112113.
305
Roberta Fernandes de Faria
Estado é, muitas vezes, o poluidor. Cláudia Alexandra Dias Soares30, sustentando esta
crítica, entende que não são as falhas do Estado (ou seja, as incongruências à intervenção
deste) que dão causa à degradação ambiental, mas sim a interação mal conseguida do
Estado, pois o fato de este último recorrer ao mercado para realizar fins públicos,
contratando com os particulares o fornecimento de determinados bens ou serviços,
permite que estes introduzam os seus interesses no processo político, influenciando as
decisões na resolução do problema ambiental.
A teoria de Pigou também encontra aplicação prática quando da cobrança de
obrigações pecuniárias feitas pela Administração Pública aos particulares por intermédio
dos tributos ambientais. Desta forma, partindo de uma metodologia de valoração
indireta de bens ambientais, em que o preço do recurso ecológico corresponderia aos
custos efetuados para evitar a sua degradação, seriam criadas taxas ambientais pela
prestação dos serviços de prevenção da poluição31.
Independentemente da aplicação da teoria de Coase ou da teoria de Pigou,
importante é referenciar que foi por meio da economia que se percebeu a necessidade de
internalização dos custos sociais e ambientais que levou à adoção do princípio do
poluidor-pagador pelo direito.
4) Justiça das normas ambientais e uma solidariedade pelo
futuro
O intuito maior das normas ambientais é assegurar um ambiente sadio e
protegido. Neste passo, convém mostrar que estas normas de direito ambiental se
apresentam em dois objetivos: a) a concretização da conduta prevista na lei e b) a sua
justificação ética e justa. Um discurso prático e economicamente eficiente pode não ser
ético e justo, e vice versa, impedindo que esse mesmo discurso possa receber o status de
norma jurídica. Objetivamente, pretende-se dizer que a análise econômica do sistema
jurídico de responsabilidade ambiental é um instrumento para o alcance eficiente do fim
que se almeja (a proteção do ambiente), mas que isso não descarta a moral ética e o
sentido de justiça da norma dentro do sistema jurídico. Esta ideia é o reflexo da análise
econômica do direito que pontua a eficácia real da lei.
Segundo Trujillo e Pardo, para a teoria da análise econômica, o critério de
avaliação da lei é justamente se ela conseguiu modificar o comportamento dos
30 SOARES, Cláudia Alexandra Dias. O imposto ecológico – contributo para o estudo dos
instrumentos económicos de defesa do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, Stvdia Ivridica, n. 58, p.
98
31 MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 10-30
306
Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador...
destinatários da imposição legal3233. Reforçando o sentido pragmático da economia no
direito e sem desconexão da ética moral e justa, Gonçalves e Stelzer34 defendem que a
sociedade deve procurar um equilíbrio entre utopia e realidade, na medida em que não
há espaço para uma ordem jurídica romântica e desconectada com a realidade, assim
como, também não o há para o realismo cego e intolerante.
No que diz respeito ao sistema jurídico de responsabilidade ambiental, as teorias
econômica são praticadas pelo princípio do poluidor-pagador, como referido acima,
quando se impõe ao poluidor a obrigação de recuperar/indenizar os danos causados ao
ambiente conjugadas a uma obrigação ética e moral de todos pela preservação do bem
comum. Deste modo, quer-se mostrar que a economia, quando atrelada ao direito
ambiental, não desconsidera a ética e a justiça, pois em razão da solidariedade pela
proteção do ambiente, todos (prejudicados e beneficiado com a exploração da natureza)
devem arcar com o bônus e o ônus da proteção do ambiente.
De forma a concretizar o entendimento de que a economia, quando se junta ao
direito de ambiente, não menospreza o caráter ético e justo que a norma jurídica deve
ter, faz-se importante trazer à baila o pensamento de Hans Jonas, quando este último
afirma que o enraizamento ético de um dever ser abre caminhos de sustentabilidade
ambiental do desenvolvimento econômico e social, pensando no futuro
(responsabilidade ética pelo futuro).
Devido à inquietação pelo destino da natureza, a ética está presente nos lugares
onde o ser humano se encontra, desdobrada numa ética racional (ética dos fundamentos)
32 Como se dijo antes, una de las principales ideas que defiende el AED es que la ley opera como un
modificador de incentivos de agentes racionales. El objetivo que persigue la ley es. mediante la generación
de incentivos, modificar el comportamiento real de los individuos, de manera que se alcancen resultados
deseables (tales como disminuir el crimen hasta su nivel óptimo o fomentar la negociación privada). Por esta
razón, el AED da una gran importancia a la eficacia real de la ley; aún más, el criterio a partir del cual juzga
si una ley es buena o mala es apelando a sus resultados, es decir, a qué tanto se modificó el comportamiento
de los destinatarios de la ley. (TRUJILLO, Ana María Arjona; PARDO, Mauricio Rubio. El Análisis
Económico
del
Derecho.
2002.
Disponível
em:
https://www.icesi.edu.co/precedente/ediciones/2002/5AnaArjonaMauricioRubio.pdf. )
33 Gonçalves e Stelzer fizeram uma investigação da análise econômica a partir de seus críticos, e
destacaram outro aspecto importante da análise econômica do direito, que surge a partir da tentativa de
minimizar os efeitos de uma análise de caráter subjetivo e aleatória. Os autores defendem que a análise
econômica, através de seu instrumental, propicia uma análise de caráter objetivo, que a torna indispensável
ao direito e às políticas públicas, ao processo decisório judicial e de produção normativa. Assim, "A Ciência
Econômica, como instrumental metodológico delimitador e orientador tanto das políticas públicas, quanto
da tomada de decisão privada, pode parametrizar o interesse jurídico que, a sua vez, deve ser justo sem
descuidar do custo social. A Economia sendo intrinsecamente analítica é passível de aplicação ao
ordenamento jurídico na medida em que lhe propicia os elementos necessários para quantificar interesses,
analisar procedimentos e indicar soluções com tendências probabilísticas que levem à resolução dos conflitos
e à satisfação das necessidades, sem se olvidar da produção legislativa. A partir daí emerge a tentativa de
minimizar, no processo decisório e na produção normativa, o julgamento político-volitivo e aleatório de
caráter subjetivo". (GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. A Análise Econômica do Direito e
sua crítica. 2014. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=fc5e676f4e53d229)
34 "A sociedade compete perceber ideal de justiça necessariamente atrelado às condições reais da
vida, na qual seja possível avaliar os benefícios e os custos advindos da tomada de decisão em ambiente (de
mercado), sem se socorrer de um mundo utópico e idealizado. Em síntese, não há mais espaço para
especulações, o sistema econômico precisa interagir com o sistema jurídico-institucional, mesmo em
condições adversas. Sob tal contexto, o Estado e o Direito assumem papel defensor da ação dos indivíduos,
segundo suficiente flexibilidade para a adjudicação de direitos e fixação de obrigações próprias da ação
eficiente" (GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. A Análise Econômica do Direito e sua crítica.
2014. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=fc5e676f4e53d229)
307
Roberta Fernandes de Faria
e numa ética interdisciplinar e argumentativa (ética do debate), em que ambas
convergem para a justiça ambiental, tornando-se, cada um de nós, responsável, na sua
existência, pela permanência da humanidade e, logo, pela permanência da vida35. A
solidariedade pelo futuro modela a ação responsável de cada ser humano, dando à
responsabilidade uma dimensão comunitária. Esta ação responsável é um pouco
diferente da responsabilidade tradicional (ligada à culpa e à causalidade), pois deriva de
uma responsabilidade ética do agir humano, gerando em cada pessoa deveres em razão
dos outros ou em solidariedade para com eles, o que limita, de certa forma, a liberdade.
Com isso, pode-se chegar a uma concepção mais ampla de justiça, que, no
entender de Castanheira Neves, é uma justiça como "suprema axiologia da existência
humana comunitária"36. A definição de Castanheira Neves à justiça encontra com o
sentido de dignidade humana, porquanto a construção da pessoa como sujeito individual
implica em abrir-se no grupo comunitário. Assim o equilíbrio entre a participação e a
responsabilidade traduz uma relação justa de cada ser humano perante o grupo na
coexistência de todos no propósito do bem coletivo.
Desta forma, a responsabilidade do cidadão junta-se à responsabilidade do
Estado que, de Estado de Direito, tende a evoluir para um Estado de Justiça Ambiental.
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36 CASTANHEIRA NEVES. A. Digesta. Vol. 1, Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico,
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310
GOVERNANÇA NAS RELAÇÕES (LÍQUIDAS) DE
TRABALHO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO
COMO UM NOVO DESAFIO PROTETIVO
Denise Fincato1
Cíntia Guimarães2
1) Introdução
O estudo transita pelo cenário da Sociedade do Conhecimento e das tecnologias
que lhe são próprias (informação e comunicação) para abordar as novas necessidades de
proteção do ser humano trabalhador, especialmente decorrentes da exposição de sua
intimidade e privacidade no meio digital, quer por conta própria, quer por ato de
terceiros (entre eles o próprio Estado), indaga se é possível proteger juridicamente ao
empregado (e, por consequência, ao empregador, por livra-lo de passivos trabalhistas)
de possíveis violações ao chamado “Direito ao Esquecimento”? Objetiva, enfim, estudar
o Direito ao Esquecimento como novo desafio protetivo nas relações (líquidas) de
trabalho e propor alternativas que garantam empresas e empregados inseridos no
cenário da sociedade do conhecimento.
Pretende-se conduzir o estudo a partir do método de abordagem hipotéticodedutivo, com métodos de procedimento histórico, estruturalista e funcionalista. A
interpretação ocorreu a partir de operações sistemáticas e a pesquisa foi eminentemente
bibliográfico-documental.
Debater novos temas na seara do Direito do Trabalho é de essencial importância,
uma vez que a evolução tecnológica, por vezes, desafia princípios legais destinados à
proteção da dignidade do trabalhador. Nas relações empregatícias, as ferramentas de
informação e comunicação, além de dinamizarem as operações, se mal utilizadas,
possibilitam a violação de direitos essenciais.
Para tanto, é preciso primeiramente estudar os impactos advindos da inserção
das tecnologias de automação e conexão no meio produtivo, analisando, por exemplo,
possibilidades de o empregado ser substituído por máquinas ou de necessitar de maior
qualificação para operá-las. Este cenário impõe a análise acerca da necessidade de
acatamento dos princípios protetivos nas relações de trabalho subordinado, na tentativa
de equalizar a relação, materialmente desigual, estabelecida entre empregado e
empregador. Neste desiderato é que surge um direito que ainda não está posto no
1 Pós-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidad Complutense de Madrid. Doutora pela
Universidad de Burgos. Professora Pesquisadora no PPGD-PUCRS, coordenadora do Grupo de Pesquisas
Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho (NTPRT – PUCRS/CNPq). Advogada e Consultora em
Souto, Correa, Cesa, Lummertz e Amaral Advogados. E-mail: dpfincato1@gmail.com.
2 Mestre e Doutoranda em Ciências Sociais na PUCRS. Líder do eixo “Sociedade do Conhecimento
e Transnacionalização”, no Grupo de Pesquisas Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho (NTPRT
– PUCRS/CNPq). Advogada. E-mail: cisguimaraes@bol.com.br.
Denise Fincato e Cíntia Guimarães
ordenamento brasileiro: o “Direito ao Esquecimento”, sendo imperiosa sua aplicação às
relações de trabalho. O denominado “Direito ao Esquecimento”, em suma, visa garantir
ao cidadão (no caso desta pesquisa, o trabalhador) que uma informação sua disposta em
redes sociais ou outros bancos de dados, não seja espargida ilimitadamente e/ou
perpetuamente mantida na Internet, notoriamente se hábil a atingir danosamente sua
intimidade e privacidade e, por consequência, sua empregabilidade.
Refletir sobre soluções ponderáveis para equacionar os conflitos oriundos da
utilização de sistemas digitais já é rotina entre juristas, pesquisadores, magistrados e
legisladores. Porém, ainda são muitas as situações problemáticas não previstas em lei,
pois a evolução tecnológica ocorre de forma mais célere que a reação legislativa.
Na era digital, manter o Direito do Trabalho estático ou engessado, alheio aos
impactos das tecnologias da informação e comunicação, traduz-se em risco a ser
suportado especialmente pelos trabalhadores, normalmente não preparados para viver
na sociedade em rede, embora lançados à mesma pelos apelos próprios da sociedade
líquida (individualismo, autopromoção, etc.). Traça-se assim um novo desafio aos
operadores do Direito: o de tutelar o trabalhador empregado em sua dimensão digital,
estabelecendo construções teóricas e padronizações minimamente objetivas para as
decisões dos conflitos em concreto. O confronto entre o princípio da dignidade da pessoa
humana e o direito à informação, faz perceber interesses em oposição, em razão disso,
advoga-se a necessidade de uma uniformização geral acerca do tema, provavelmente
advinda de legislação suficiente e pertinente, mas não somente. Daí, a inequívoca
contribuição do presente estudo ao tema em debate.
2) Sistema de governança em rede e políticas públicas
Com o processo de globalização no atual contexto foi amplifica o desenvolvimento
de sistemas coadjuvantes das relações sociais, econômicas, culturais e políticas em busca
da integração e da conexão em escala mundial. Intensificou-se a efetivação e a
estruturação de soluções para problemas sistêmicos, de forma a assegurar a ordem
global.
Diante destes parâmetros e da complexidade em estruturar essa ordem, as
conexões são instrumentalizadas por meio de bases de governança global
[…] constituído de normas, regras, princípios, procedimentos de
tomadas de decisão, organismos intergovernamentais, organizações
internacionais, ONGs, movimentos civis, empresas multinacionais, meios de
comunicação de massa, agentes, instituições que existem em alguns dos muitos
segmentos específicos que formam o sistema global de governabilidade: meio
ambiente, comércio, finanças, cultura, direitos humanos, alimentação, saúde,
habitação, etc. (DIAS; MATOS, 2012, p. 92)
A governança, portanto, é formada por sistemas de estratégia, liderança, controle,
312
Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito...
com instrumentos de avaliação, direcionamento e monitoramento na condução de
políticas de interesse social. Seu maior objetivo é o alcance de resultados por meio de
agentes que contribuem para reger sistemas e subsistemas mundiais geradas pela
globalização e o avanço tecnológico, sem a existência de um governo, pois “(…) para fazer
frente às crescentes complexidade e diversidade das sociedades contemporâneas, a
governança constitui uma nova forma de governar própria dessa sociedade-rede” (DIAS,
MATOS, 1992, p. 95).
Existem inúmeras instituições de referência para cada área específica de atuação.
Estas instituições propõem ações e deliberam condições com alcance em âmbito global,
ocupando uma posição de coparticipante da administração pública. A partir da dimensão
de política social, em especial na seara laboral, alguns alinhamentos são necessários para
que os resultados coletivos sejam eficientes, eficazes e efetivos. Tais alinhamentos são
concretizados por uma instituição atuante em nível global para manutenção da
dignidade dos trabalhadores e garantia de equidade social de forma a viabilizar a
continuidade do processo de globalização, equilibradamente, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT)3.
Além da salvaguarda nas relações entre empregado e empregador, sua principal
função reside na formação de mecanismos especiais, para um fim específico, idealizado
em âmbito global, cuja finalidade é uma fixação de ordem no sistema mundial, por meio
de convenções, resoluções e recomendações, sempre no intuito de dirimir as injustiças.
No Brasil, as políticas públicas estão relacionadas com o poder social, cuja
finalidade é a de oferecer soluções específicas ao conduzir assuntos públicos, resultando
em dignidade e justiça social.
No campo do trabalho, os programas projetados e organizados no Brasil
constituem-se em mecanismos de gestão das políticas públicas a serem implementadas
de forma articulada, por todas as esferas de governo. De acordo com Matos e Dias (2012,
pp 15), “as políticas públicas constituem um meio de concretização dos direitos que estão
codificados nas leis de um país. Nesse sentido, a Constituição não contém políticas
públicas, mas direitos cuja efetivação se dá por meio de políticas públicas”.
Ainda, conforme redação do artigo 2034 da Constituição Federal Brasileira são
assegurados alguns amparos assistenciais, sobretudo no inciso III que diz respeito ao
5 A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência multilateral ligada à Organização
das Nações Unidas (ONU), especializada nas questões do trabalho. Tem representação paritária de governos
dos 178 estados membros e de organizações de empregadores e de trabalhadores. Com sede em Genebra,
Suíça, desde a data de sua fundação, a OIT mantém uma rede de escritórios em todos os continentes. A OIT
foi criada pela Conferência de Paz após a Primeira Guerra Mundial. A sua constituição converteu-se na Parte
XIII do Tratado de Versalhes. A ideia de uma legislação trabalhista internacional surgiu como resultado das
reflexões éticas e econômicas sobre o custo humano da revolução industrial. As raízes da OIT estão no início
do século 19, quando os líderes industriais Robert Owen e Daniel le Grand apoiaram o desenvolvimento e
harmonização da legislação trabalhista e melhorias nas relações de trabalho. Disponível em:
http://www.institutoatkwhh.org.br/compendio/?q=node/17. Acesso em 22/11/2017.
4 Art. 203, CF/1988 - A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente
de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...] III - a promoção da integração ao mercado de
trabalho;
313
Denise Fincato e Cíntia Guimarães
mercado de trabalho. Nestes termos, assevera Luciano Martinez (2016, p 1194):
Não há dúvidas de que todos os entes políticos podem licitamente
assumir em seus orçamentos cargas assistenciais para atenuar a situação dos
desempregados. Afinal, há autorização constitucional genérica para tanto
diante da redação do art. 203 da Constituição da República. Nesses termos,
desde que comprovada a necessidade, portanto, o legislador local, no interesse
social, poderá suplementar a legislação nacional.
Regra geral, o interesse social resulta de um processo de decisão indicado ao
governo com participação da sociedade civil. Não existe um modelo ideal, os planos são
constituídos por três partes, traçando as concepções da política necessária, fazendo um
diagnóstico da situação no momento da articulação da política e por fim elabora-se a
agenda para implementação, diagnóstico, supervisão e resultados de sua aplicação. Em
suma “as políticas públicas funcionam como instrumentos de união e empenho, em torno
de objetivos comuns, que passam a estruturar uma coletividade de interesses, se
tornando um instrumento de planejamento, racionalização e participação popular”
(ZANETTI).
Ou seja, as políticas públicas estão relacionadas com o poder social, cuja
finalidade é a de oferecer soluções específicas ao conduzir assuntos públicos, resultando
em dignidade e justiça social.
Portanto, o Estado, por dever legal e moral, avoca para si a responsabilidade em
formular e executar políticas públicas econômicas e sociais, ou seja, é o principal
responsável por oferecer respaldo às demandas oriundas da sociedade como um todo.
Seu controle deve ser efetivo, uma vez que poderá envolver-se em conflitos de cunho
social, pois diante deste cenário, haverá momentos em que poderá beneficiar alguns e
prejudicar outros.
Contudo, embora esses projetos tenham sido desenvolvidos, implementados e
controlados por vários atores sociais, que participam do processo de solicitação,
articulação e beneficiamento da demanda, em algumas situações podem enfrentar
dificuldades de efetivação das políticas públicas, por impossibilidade das mais variadas.
Existe um nexo de poder que sempre fez parte da relação entre patrão e
empregado, esse se perpetua no tempo e é uma característica originária e inafastável. A
relação de trabalho, conforme norte principiológico (RODRIGUEZ, 2004), deve oferecer
proteção àquele que está em situação de hipossuficiência. É nesse momento que o Estado
intervém para garantir o equilíbrio e a continuidade saudável da relação, tentando
estabelecer a equalização entre os atores sociais nela envolvidos (igualdade material).
Essa proteção, alcançada pelo Estado, é entregue na forma de Leis que visam
garantir ao hipossuficiente o alcance de um protagonismo na relação laboral, que
normalmente transcorre de forma desigual, eis que de sua essência.
Para os fins deste estudo, aponta-se que merece destaque, na atualidade, o acesso
pela entidade patronal às informações e dados dos trabalhadores, postados por estes ou
314
Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito...
por terceiros na rede mundial de computadores, e seu uso para fins de contratação,
alterações ou extinção do vínculo empregatício.
Daí, uma das intervenções estatais esperadas contemporaneamente, atenderia à
necessidade de regulamentar o chamado “Direito ao Esquecimento”.
3) A proteção de dados, privacidade do trabalhador e
relações líquidas de labor
O espaço virtual apresenta uma variada gama de possibilidades de interatividade,
além de armazenar um grande número de informações que reclamam regulamentações,
ainda inexistentes em nosso ordenamento. Uma das necessidades atuais é o denominado
“direito ao esquecimento” que, em suma, viria garantir ao cidadão (no caso desta
pesquisa, o trabalhador) que uma informação sua, considerada irrelevante aos demais,
não seja perpetuada, espargida ilimitadamente e/ou perpetuamente mantida na
Internet, notoriamente se hábil a atingir danosamente sua intimidade e privacidade.
Atualmente, há princípios5 que norteiam estas necessidades (HAINZENREDER,
2011, p. 55), no entanto, tais condicionantes ainda não são suficientes para solucionar
litígios nesta seara. São princípios protetores da dignidade da pessoa humana e que, no
foco deste estudo, garantem ao trabalhador a manutenção do sigilo sobre sua vida
privada, notoriamente ante seu empregador. Em ampliação, pode-se citar a existência de
alguns documentos internacionais e protetivos acerca do tema:
[...] Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de San José da
Costa Rica), aprovada pela Organização dos Estados Americanos, assinada em
1969, que entrou em vigor em 1978. O Brasil está dentre os países que aderiram
ao pacto (em 28.5.1992) e o ratificaram (em 25.9.1992). Com a ratificação
ocorre o reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
[...]
Na Convenção Americana de Direitos Humanos, anteriormente
mencionada, o § 1º declara expressamente que ‘toda pessoa tem direito ao
respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade’.
[...]
De acordo com Hainzenreder (2011, pp. 55), “(...), a vida privada compreenderia a esfera maior,
onde se localizam os fatos que o indivíduo não deseja que se tornem públicos, ou seja, aqueles
acontecimentos que não estariam ao alcance da coletividade em geral, englobando todas as notícias e
situações que a pessoa deseja excluir do conhecimento de terceiros, a exemplo da imagem física e de
comportamentos que só devem ser conhecidos por aqueles que integram regularmente com a pessoa. Dentro
desse círculo, estaria a esfera íntima ou confidencial onde se encontram os fatos do conhecimento das
pessoas que gozam da confiança do indivíduo. São as circunstâncias da sua vida que somente são
compartilhadas com familiares, amigos e colaboradores. No centro está a esfera do secreto, objeto especial
de proteção, em que se guardam os segredos revelados a poucas pessoas ou a ninguém, compreendendo
assuntos extremamente reservados, como a vida sexual, por exemplo. Tal distinção possui um importante
caráter prático, uma vez que quanto menor a esfera, maior o nível de proteção. Logo, o simples fato que
envolve as situações de segredo já é o suficiente para caracterizar a violação da privacidade, enquanto que
para se considerar violada a esfera da intimidade deve haver tanto o conhecimento como a divulgação da
notícia para terceiros”.
5
315
Denise Fincato e Cíntia Guimarães
Em 1993 foi assinada a ‘Carta de Viena’, como resultado da
‘Conferência Mundial de Direitos Humanos’, com sua declaração e programa de
ação. Estes textos contemplam a promoção e proteção dos direitos humanos
prioritariamente em relação à comunidade internacional, reconhecendo que os
direitos humanos têm origem na dignidade humana.
No âmbito da Comunidade Européia a ‘Declaração dos Direitos e
Liberdades Fundamentais’, de 1989, prevê em seu art. 1º: ‘A dignidade humana
é inviolável’. Posteriormente, em 2000, a ‘Carta dos Direitos Fundamentais da
União Européia’ estabelece em seu art. 1º: ‘a dignidade humana é inviolável. Ela
deve ser respeitada e protegida (GOSDAL, 2007, p. 60-1).
Cabe referir ainda, conforme Ruaro (2011, p. 190), que a Corte Europeia de
Direitos Humanos, em um caso julgado em 16 de dezembro de 1992, ampliou o alcance
do conceito sobre vida privada, passando a incluir o ambiente de trabalho como parte
integrante da intimidade e privacidade pessoais, o que permitiria debater acerca do
acesso e uso de conteúdos gerados, obtidos ou destinados ao âmbito de uma relação
empregatícia.
Em ritmo expansionista, o artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos
Humanos6, ao ser ampliado, passou a abranger a denominada “vida privada social” que,
certamente, inclui a laboral.
A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 5º, inciso X7, a
inviolabilidade dos indivíduos em âmbito particular, ou seja, abarca tanto a esfera
familiar quanto a esfera de relações sociais, inclusive a de ordem profissional. De acordo
com Hainzenreder (2011, pp. 56), “são direitos da personalidade inerentes ao indivíduo,
que jamais desaparecem no tempo e que não se separam do seu titular. Por essa razão,
são direitos existentes em qualquer relação jurídica. Portanto, à relação de emprego
também são aplicáveis”.
O objetivo é tratar da necessidade atual de regulamentação das disposições do
empregado sobre situações de sua vida privada que eventualmente tenham sido
registradas e/ou noticiadas por meio eletrônico (Internet) e, após armazenadas no meio
virtual, não tenham sido apagadas, tornando-se públicas, de livre e amplo acesso.
A regulamentação, advoga-se, deverá observar a proteção aos fatos da vida
privada do cidadão, que não fazem parte do interesse público (sequer de seu
6 Art. 8° Direito ao respeito pela vida privada e familiar 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito
da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da
autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir
uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a
segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções
penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.
Disponível em: https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf, acessado em 04 maio
2018
7 Constituição Federal/1988, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X – são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”.
316
Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito...
empregador) e que, especialmente quando mal utilizados e/ou interpretados, podem
macular a imagem e dignidade da pessoa (especialmente como trabalhador). Em suma,
deve-se ofertar ao cidadão a possibilidade de fazer desaparecer informações (mesmo que
em meio/suporte digital) existentes a seu respeito, quando assim o desejar. As
informações podem ser integrantes das redes sociais (twitter, orkut, facebook, outros),
dos sistemas de busca (google, youtube, outros) e, sobretudo, de sistemas que deveriam
garantir sigilo como os “e-jus” trabalhistas8.
Registra-se que a Espanha já deu o primeiro passo neste sentido. Por meio da Lei
Orgânica 15/1999 de 13 de dezembro, o Estado garantiu aos seus cidadãos o direito
fundamental à proteção de dados de caráter pessoal. Esta Lei, em seu artigo 4.5,
determina que:
Los datos de carácter personal serán cancelados cuando hayan
dejado de ser necesarios o pertinentes para la finalidad para la cual hubieran
sido recabados o registrados. No serán conservados en forma que permita la
identificación del interesado durante un período superior al necesario para
los fines en base a los cuales hubieran sido recabados o registrados.
Reglamentariamente se determinará el procedimiento por el que, por
excepción, atendidos los valores históricos, estadísticos o científicos de
acuerdo con la legislación específica, se decida el mantenimiento íntegro de
determinados datos”.9
Nos casos em que o cidadão considerar que teve sua reputação ou dignidade
atingidas, sentindo-se ofendido em razão de ter seus fatos privados divulgados em rede,
na Espanha, lhe é garantido solicitar seu cancelamento evitando a continuidade de sua
propagação em âmbito mundial e sua eternização no meio virtual. Neste país, o cidadão
possui ainda o direito de ser informado quando seus dados forem divulgados, note-se:
El derecho de información previo al tratamiento de los datos de
carácter personal es uno de los derechos básicos y principales contenidos en
la Ley Orgánica 15/1999 de Protección de Datos de Carácter Personal; por
tanto, si se van a registrar y tratar datos de carácter personal, será necesario
informar a los interesados, a través del medio que se utilice para la recogida,
del contenido del artículo 5,1 y 2 que regula el derecho de información de los
afectados previo a la recogida de los datos. Con carácter general, cuando se
recaban datos personales debe informarse a los interesados de lo expuesto
anteriormente.10
Ou seja, pelo regramento espanhol, os interessados serão previamente
informados e ficarão cientes do “local virtual” onde seus dados estarão armazenados,
bem como receberão a previsão da quantidade de tempo que as informações
8 www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-direito-ao-esquecimento-na-internet (acesso em
30/04/2018). O termo e-jus significa o armazenamento eletrônico de informações judiciais.
Eventualmente, por descuido, podem também estar disponíveis na Internet e em livre acesso.
9
http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/lo15-1999.t2.html#a4 (acesso em
30/04/2018).
10
http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/lo15-1999.t2.html#a4 (acesso em
30/04/2018).
317
Denise Fincato e Cíntia Guimarães
permanecerão disponíveis em rede.
É inquestionável a segurança que estas regulamentações oferecem aos cidadãos,
pois garantir o direito ao esquecimento implica em investir os indivíduos de
prerrogativas sobre toda e qualquer informação da qual sejam titulares. Além disso,
legitima o poder pessoal para decidir o que deve permanecer na rede mundial de
computadores, ou não, evitando que a informação privada permaneça ad eternum na
memória virtual coletiva, o que nem sempre é favorável.
4) Proteção à dignidade dos trabalhadores e a necessidade
de um direito ao esquecimento
Para o foco deste estudo, o grande desafio enfrentado pelos trabalhadores decorre
da divulgação de suas subjetividades (por ato próprio ou de terceiros) via Internet e a
possibilidade de tais inserções (ou sua má interpretação) gerarem prejuízos
especialmente à sua inserção profissional. Este desafio vem aumentado nas últimas
décadas, pois os sistemas informacionais conectados em rede mundial facilitam o acesso
a informações de qualquer tipo, inclusive pessoais. O respeito à privacidade e à
intimidade11 do trabalhador é limite imposto também às relações de trabalho
subordinado.
Entende-se ser tarefa do legislador proteger o cidadão, através de normas
adequadas e suficientes, acerca de situações que poderão causar-lhe vexame, humilhação
ou desprezo, afetando-lhe diretamente nos direitos de personalidade e desafiando os
limites impostos pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que está baseada na
ideia de “personalidade moral” do sujeito, alcançando a este uma garantia fundamental
com respaldo na Constituição Federal do Brasil.
Assim e tendo em vista a cultura brasileira – que se pauta nas previsões
minuciosas de documentos legislativos -, urge que legislação pontual seja acrescida ao
arcabouço juslaboral brasileiro, prevendo a proteção que ora se aponta como necessária,
de forma concreta e exauriente.
A positivação do chamado Direito ao Esquecimento ofereceria uma segurança
ainda maior ao trabalhador eis que, como lembra Ruaro (2011, pp. 191), “sob a ótica do
empregado deve-se ter em mente a sua hipossuficiência, à relação de subordinação
empregatícia, à satisfação de seu superior, e às regras a que é submetido, muitas vezes
sem a possibilidade de proteção e defesa suficiente de sua intimidade”.
Um dos casos apontados, veiculado em artigo publicado no periódico espanhol El
País de 08/01/2011, relata o fato de um cidadão que teve notícia a seu respeito veiculada
Nota das autoras: o direito à privacidade resguarda a moral pessoal tanto no âmbito familiar
quanto no âmbito social e profissional e o direito à intimidade resguarda a personalidade e ambos são
oriundos da proteção já garantida pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
11
318
Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito...
trinta anos antes, em jornal que circulava em sua região, contendo resultado
condenatório a si inculcado por naquela época ter urinado em logradouro público. O
jornal, ao digitalizar seus exemplares antigos, disponibilizou o acesso a tais exemplares
por meio da ferramenta de busca “Google”. Sendo este cidadão atualmente um honrado
professor, pode-se afirmar que o resgate a lume do fato pretérito afetou sua dignidade,
eis que fora exposto algo que lhe era íntimo e que, com a sanção da multa a si imposta
(há trinta anos, repise-se), já havia respondido pelo seu erro na forma e época próprias.
O interesse reside em não permitir que uma informação - íntima, pessoal e
passível de sepultamento pelo esquecimento público, no cenário físico – se torne
perpétua e pública no meio (mundo) digital, em razão da capacidade ilimitada de
armazenamento e divulgação do ciberespaço, permitindo reacender situações de vida
que o próprio indivíduo já poderia ter esquecido e que não gostaria que viessem à tona.
Adaptando o debate à moldura ora proposta, podem existir na rede mundial de
computadores informações de que um trabalhador teria demandado na Justiça do
Trabalho contra uma determinada empresa em que laborara em tempos passados. Ao
candidatar-se à nova vaga de emprego, mesmo sendo extremamente qualificado, pode
não ser selecionado em razão dessa informação. Embora os processos judiciais sejam
públicos, há tempos já se retirou nos sítios de internet dos Tribunais Trabalhistas
brasileiros a ferramenta de consulta “por nome da parte” evitando, com isto, que o
próprio sítio web estatal se transformasse em “lista negra”, consultada por
empregadores, desejosos de não ter entre seus colaboradores pessoas que já houvessem
demandado na Justiça do Trabalho.
Parte-se da ideia de que, nestas relações, tal informação faz parte do rol privativo
e íntimo de dados do cidadão que, atualmente no Brasil, não possui um direito
regulamentado/positivado que lhe permita escolher entre divulgar ou não determinados
episódios de sua vida, ademais exigindo que fatos relacionados ao seu nome sejam
preservados em sigilo ou excluídos dos meios digitais. Tem-se a certeza que, atualmente,
apenas a não postagem garantiria eficácia e efetividade ao direito ao “esquecimento”.
Regulamentar e proteger os dados do cidadão tornou-se necessário, pois,
atualmente, o acesso à Internet permite pesquisar acerca da vida (inclusive íntima) de
qualquer pessoa.
Os empregadores naturalmente recorrem a sistemas de busca da internet e sites
de relacionamento antes de contratar um empregado. Algumas empresas, sem pudores,
solicitam ao candidato sua senha nos sites de relacionamento, quando da entrevista de
seleção ao emprego (caso tal sítio seja protegido ou restrito). A tomada de decisão sobre
a contratação (ou não), passará, então, por critérios que não perquirem apenas da
habilidade e formação do candidato, podendo pautar-se em suas opções pessoais
(partidárias, religiosas, de orientação sexual, entre outras).
Se o dever de proteção ao hipossuficiente é imposto primeiramente ao legislador,
informando sua atividade típica legislativa, a proteção ao cidadão, para ser efetiva, não
319
Denise Fincato e Cíntia Guimarães
estanca na atuação estatal de mera criação de diplomas legais. Fiscalização constante das
questões digitais e atuação admoestatória e inibitória concretas também devem ser
inseridas na cultura das autoridades administrativas e judiciárias.
De outro lado e a contribuir, singelas companhas de esclarecimento ou até mesmo
políticas públicas de formação para a vivência digital revelam-se impostergáveis pois,
sem dúvidas, num cenário complexo como o digital, ainda mais complicado pela
ineficiência protetiva estatal, incumbe ao próprio cidadão, na medida do possível, a
autoproteção de sua privacidade e intimidade, o que começa pela consciência das
consequências de seu compartilhamento e exibição na rede mundial de computadores.
5) Conclusão
A atuação da OIT tem sido primordial para estabelecer parâmetros de controle
em relação à proteção do trabalhador frente às diversas situações hostis que se
apresentam no atual cenário laboral. Mas não é suficiente.
No âmbito do trabalho, as necessidades de tutela também evoluem, surgindo do
progresso tecnológico e do aumento da complexidade do viver humano. A existência
humana no espaço virtual têm diferentes contornos e dimensões, necessitando de
diversos parâmetros e interpretações, de preferência normativas. Neste particular,
embora cientes de que uma norma surge apenas após a constatação e valoração de um
fato social, pensa-se que os tempos requerem maior velocidade legislativa ou, como
alternativa, o início de uma caminhada para as chamadas “normas abertas”,
principiológicas, porosas e flexíveis.
Por meio de iniciativas conjuntas, com o envolvimento de diversos órgãos
relacionados à proteção e à manutenção das garantias de direitos sociais dos
trabalhadores, visando a implementação de políticas públicas é que se poderá oferecer
alternativas de proteção dos direitos e garantias.
O direito ao esquecimento, enquanto não totalmente eficiente, gera diversos
embaraços à vida de trabalho. Desavisados ou não, trabalhadores prejudicam sua relação
empregatícia (já líquida – no conceito de Bauman) expondo sua intimidade e vida
privada. O mau uso destas informações pode não apenas atingir a relação em curso, como
impedir novas (pois o dado se eternizará nas redes sociais).
Governança corporativa eficiente, que primeiramente limite a investigação acerca
das condições pessoais dos trabalhadores e, paralelamente, eduque para o bom convívio
digital, é o que se apresenta como alternativa solidária e imediata. Em suma,
recomendam-se condutas patronais precaucionais; elaboração de códigos de conduta e
ética empresariais (governança) sobre uso e comportamento, especialmente dos
empregados, em redes sociais digitais
Entende-se que políticas públicas e educação para a vida no meio digital são ainda
320
Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito...
mais importantes que o regramento legal de condutas, cujos valores de influência
cambiarão a cada ano, semestre ou mês. Entretanto, vislumbra-se que, quer a cultura
para a vida digital, quer a legislação protetiva, não se implementarão de imediato, sequer
a médio prazo. Por isto, é que se entende que a argumentação e poder comunicativo dos
atores sociais e dos operadores jurídicos serão determinantes para bem conduzir as
relações laborais de seres (empregadores e empregados) com dupla dimensão
existencial: física e virtual.
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322
ANONIMATO DE DOAÇÃO DE MATERIAL
GENÉTICO: PONDERAÇÃO ENTRE DIREITO DE
PERSONALIDADE E DIREITO À PRIVACIDADE
Juliana de Freitas Dornelas1
1) Introdução
A lei portuguesa 25/2016 alterou profundamente o a Lei 32/2006 que trata de
procriação medicamente assistida (PMA) e regulamentava diversos pontos que ensejam
grandes discussões jurítico-políticas.
Diante dessa nova lei, um grupo de 30 deputados ajuizou, junto ao tribunal
constitucional declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de
vários artigos da referida lei, incluindo os números 1 e 4 do artigo 15º.2
O número 1 do artigo previa que todos os envolvidos no processo de Procriação
Medicamente Assistida (PMA) estão obrigados a manter sigilo sobre a identidade dos
doadores e sobre a própria técnica de PMA.
O número 4 dispunha que sem prejuízo dos demais dispositivos legais, as
informações da identidade dos doadores poderiam ser fornecidas, por razões ponderosas
através de decisão judicial.
Em que pese haver análise de outros dispositivos da lei, o presente trabalho
tratará, tão somente, da confidencialidade da identidade do doador e sob a luz do conflito
de normas.
O acórdão 225/2018 de 24/04/2018 declarou, por maioria de votos, a
inconstitucionalidade dos números 1 e 4 do artigo 15º da Lei 32/2006 alterada pela lei
58/2017 de 25/7/2017, sob o argumento, de que a ausência de acesso à identidade do
doador impede a criança nascida a partir da técnica de PMA exerça o direito
constitucionalmente estabelecido de identidade genética do ser humano.
O acórdão faz remissão à Convenção sobre os Direitos da Criança que estabelece
a todas as pessoas, mesmo menores, o direito de conhecer suas origens. O artigo 7º
estabelece o direito de a criança conhecer sua ascendência biológica, sempre que
1 Mestranda em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa, bacharel em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, servidora do Tribunal de Regional Eleitoral de Minas
Gerais
2 Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do n.º 1, na parte em
que impõe uma obrigação de sigilo absoluto relativamente às pessoas nascidas em consequência de processo
de procriação medicamente assistida com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações
de gestação de substituição, sobre o recurso a tais processos ou à gestação de substituição e sobre a
identidade dos participantes nos mesmos como dadores ou enquanto gestante de substituição, e do n.º 4 do
artigo 15.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, por violação dos direitos à identidade pessoal e ao
desenvolvimento da personalidade de tais pessoas em consequência de uma restrição desnecessária dos
mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, com o artigo 26.º, n.º 1, ambos da
Constituição da República Portuguesa;
Juliana de Freitas Dornelas
possível.
A decisão traz também, a importância o disposto no artigo 8.º, n.º 1, da
Convenção Européia dos Direitos dos Homens (CEDH), uma vez que o conhecimento
das origens genéticas é elemento essencial, do direito ao respeito pela vida privada e
familiar e a asseverou que o conceito da vida privada e inclui o direito a conhecer a
própria ascendência.
O acórdão cita o art. 7º número 1 da Convenção sobre os direitos da criança que
garante, sempre que possível, o direito de conhecer seus pais.
2) Sobre a paternidade do dador
Os pais da criança são aqueles que buscaram a técnica de PMA para garantir a
reprodução. Os dadores não podem ser tidos como progenitores da criança que vai
nascer, nos termos do número 2 do art. 10º da Lei 23/2006.3
Tanto o é, que no acórdão 101/2009 analisa a possibilidade monoparentalidade,
o que reforça a não paternidade do dador.
Além disso, há que se considerar que os indivíduos que se submeteram à técnica
de PMA, que são efetivamente os pais da criança. É a chamada paternidade socioafetiva.
Essa paternidade é aquela classificada como a não-biológica. É juridicamente
considerada, independente da origem genética. Com esse conceito Superou-se a equação
simplista entre origem genética, de um lado, e deveres alimentares e participação
hereditária, de outro. A paternidade é assumida voluntariamente, ou por imposição legal
no interesse da formação integral da criança e do adolescente e que se consolida na
convivência familiar duradoura4.
Assim, conferir ao dador a paternidade é desprezar a existência da paternidade
não-biológica, e, de certo modo impedir o exercício pleno da paternidade daqueles que
efetivamente são os genitores da criança.
3) Ponderação entre as normas
Mas, mesmo não sendo os pais, o artigo 265 da Constituição Portuguesa garante,
3 2 - Os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer.
4 LOBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real.
5 Outros direitos pessoais 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao
desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à
palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de
discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias
à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. 3. A lei garantirá a dignidade pessoal e
a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das
tecnologias e na experimentação científica. 4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só
podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
324
Anonimato de doação de material genético: ponderação...
de um lado, a identidade pessoal, reserva da intimidade da vida privada e familiar e, de
outro lado, a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano.
Assim, dentro do mesmo dispositivos legal pode-se depreender pelo menos duas
normas jurídicas com diferentes beneficiários.
A primeira norma tem o operador deôntico de permissão. Garante à qualquer
pessoa, com especial atenção àquelas nascidas de utilização de técnicas decorrentes de
desenvolvimento tecnológico, a possibilidade de conhecer sua origem genética. Deste
modo, se pessoa, permite-se conhecer sua origem genética.
De outro lado, há uma norma com operador deôntico de proibição que garante a
preservação reserva da intimidade da vida privada. Assim, se pessoa, está proibida a
violação da intimidade e vida privada.
Os dadores de material genético só fizeram a referida doação sob o respaldo de
que não seriam expostos aos conhecimento de outrem essa condição. Ao contrário,
possui a garantia constitucional da inviolabilidade de sua privacidade. No entanto a
criança nascida de técnicas de procriação medicamente assistida heterogénea tem o
direito de conhecer sua origem e identidade genética.
Depois de constatada a antinomia das normas, há que se ultrapassar três
requisitos para resolver o conflito, quais sejam: verificar que ambas as normas
pertencem ao mesmo ordenamento jurídico, se têm o mesmo âmbito de validade e se não
há normas de conflitos que resolvam, por si, a antinomia.
Quanto ao pertencimento no ordenamento jurídico não há que se traçar grandes
considerações porque as duas normas decorrem de dispositivos legais incluídos na
Constituição Portuguesa e pertencem ao mesmo ordenamento jurídico.
Outro requisito importante para a resolução do conflito normativo é a verificação
da validade da norma, aqui entendida no conceito forma ou técnico jurídico de validade,
pois, para a teoria positivista, só é norma jurídica se a proposição por válida e se estiver
incluída no contexto institucional da promulgação no ordenamento jurídico. É uma
conexão conceitual necessária6.
No caso em questão, as duas normas são princípios pertencentes ao ordenamento
jurídico e podem ser válidas em situações fáticas possíveis, ainda que possam ser
derrotadas em um determinado momento. 7 Tal derrotabilidade é a exclusão
momentânea da aplicação da norma de forma total ou parcial, mas que não interfere a
eventual aplicação futura. Deste modo, ainda que possa não ser aplicado no caso em
análise, tanto a liberdade de expressão quanto a inviolabilidade da honra são princípios
juridicamente válidos. O que será avaliado na resolução do conflito é o peso de cada
princípio adequando à situação fática e jurídica posta. Essa avaliação deve ser feita por
uma argumentação justificada baseada nas circunstâncias fáticas e normativas
6 ALEXY, Derecho y razoón practica. Méxito: Fontamara, 2002, p 48
7 ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais.p. 90
325
Juliana de Freitas Dornelas
Por fim, há que se constatar não haver normas de conflito que apresentariam a
resolução da antinomia, até por sua natureza normativa.
Ambos são, portanto normas constitucionais que, embora sem reservas, passam
a ser restringidos por necessidade de proteção de outros bens também importantes para
o desenvolvimento da sociedade e para a defesa da dignidade da pessoa humana.8
No caso analisado no presente estudo, há dois princípios passíveis de aplicação,
o que pode ser resolvido pelo sopesamento. Para resolução da antinomia há que se
verificar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
No que tange à adequação, a aplicação de qualquer das normas é meio adequados
para o fim constitucionalmente legítimo. Assim, qualquer medida aplicada permitir a
identidade genética ou preservar a intimidade e vida privada são medidas adequadas à
luz da constituição, desde que cumpridas as demais fases da máxima proporcionalidade.
Quanto à necessidade, há que se escolher, dentre os meios adequados para a
realização do fim ligado aos princípios apresentados, deve ser preterido aquele mais
intrusivo sobre o princípio que sofrerá a intervenção.9
Nesse teste, no caso em questão, não há como excluir a aplicação de qualquer dos
princípios porque prescinde de uma ponderação, já que são igualmente adequados e
necessários. As condições fáticas são analisadas na ponderação em sentido estrito que é
a terceira condição da teoria da proporcionalidade.
Já cumpridas as etapas dos testes de adequação e necessidade, resta a
proporcionalidade em sentido estrito, que pode definida, na sua forma mais simples
como “Quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto
maior terá que ser a importância da satisfação do outro".10
Essa máxima da proporcionalidade em sentido estrito pode ser definida em três
passos. No primeiro passo é avaliado o grau de não satisfação ou afetação de um dos
princípios.
No caso analisado, necessário é avaliar o grau de não satisfação ou afetação da
preservação da vida privada e intimidade do dador. Na hipótese de permissão do
conhecimento da identidade do dador tem-se a não satisfação integral preservação da
sua intimidade, o que confere uma grave ofensa à norma.
No segundo momento, há que se avaliar a importância da satisfação do princípio
colidente. Deste modo, a importância da satisfação a permissão de conhecimento da
origem genética no caso em questão deve ser avaliada.
De fato, o direito de conhecer a sua origem e sua identidade genética é uma
garantia de importância alta que pode refletir, inclusive, na construção da personalidade
da criança. Afinal, o conhecimento da origem biológica pode ser muito importante para
8 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 409
9 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de Ponderação na Jurisdição Constitucional p. 174
10 ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais p. 167
326
Anonimato de doação de material genético: ponderação...
restabelecer a sua inserção na cadeia geracional. O direito à identidade genética não se
bastar com a mera indicação anônima de dados genéticos. 11
No terceiro passo, há que se avaliar a importância da satisfação do princípio
colidente justifica a afetação ou a não satisfação do outro princípio, ou seja, avalia-se se
a satisfação do conhecimento da origem genética justifica a não satisfação da preservação
da vida privada e intimidade do dador.
Neste fato, há que se ressaltar que o legislador, aquele que possui a função de
discricionariedade para sopesar incluiu na lei, que, por razões ponderosas e por decisão
judicial, pode-se conhecer a identidade do dador.
4) Conclusão
O legislador conferiu ao judiciário que se realizasse a ponderação, mas por opção
legislativa tornou mais rigorosa a derrotabilidade da preservação da intimidade e vida
privada. Nada mais fez que a ponderação em sentido abstrato. E, deixou ao cargo do
aplicador do direito, que, ao analisar as situações circunstanciais de cada caso, possa ou
não determinar a derrotabilidade da norma de preservação da intimidade e da vida
privada do dador.
Afinal, conforme a lei 32/2006 com as alterações da lei 25/2016, permite-se à
criança nascida de PMA o conhecimento da sua origem genética, ressalvada a identidade
do dador. Assim, mesmo com o anonimato dos dadores, a norma é parcialmente
satisfeita com o acesso a toda conforme estabelecido nos números 2 e 3 do art. 15º da
referida lei12, sem contudo, que a preservação da identidade do dador seja violada.
Deste modo, defende-se neste trabalho que a o grau de interferência da vida
privada do doador de material genético é seríssimo e a sua não satisfação apenas pode
ser considerada se houver, razões tais que ultrapasse possui uma importância é uma
afetação seríssima ao proporcional ou não à importância do direito à identidade da
pessoa nascida através da técnica de procriação medicamente assistida e verificar a
possibilidade de realizar um rol abstrato de situações em que possa haver ou não a
identificação de doadores.
A Legislação já contemplava, de forma satisfatória preservação de todos os
direitos, e conferiu ao juiz, o qual tem a prerrogativa de analisar os princípios, de forma
que garante a maior satisfação das normas e princípios constitucionais no caso concreto.
Muito há que se discutir acerca da procriação medicamente assistida e os efeitos
ASCENSÃO, José de Oliveira. A lei nº. 32/06 sobre procriação medicamente assistida
2 - As pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas
ou embriões podem, junto dos competentes serviços de saúde, obter as informações de natureza genética
que lhes digam respeito, excluindo a identificação do dador. 3 - Sem prejuízo do disposto no número
anterior, as pessoas aí referidas podem obter informação sobre eventual existência de impedimento legal a
projetado casamento, junto do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, mantendo-se a
confidencialidade acerca da identidade do dador, exceto se este expressamente o permitir.
11
12
327
Juliana de Freitas Dornelas
nos futuros adultos, mas resguardar os princípios constitucionais com uma visão
progressista é o grande desafio que se apresenta agora.
BIBLIOGRAFIA
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva
Afonso da Silva, São Paulo: Malheiros, 2008.
ALEXY, Derecho y razoón practica. Méxito: Fontamara, 2002.
ASCENSÃO, José de Oliveira. A lei nº 32/06 sobre procriação medicamente assistida.
Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, III (Dez), 2007.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de Ponderação na Jurisdição Constitucional, São
Paulo: Saraiva, 2009.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real, Revista CEJ,
Brasília, n. 34, p. 15-21, jul./set. 2006.
MIRANDA, Jorge, Manual de Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2009.
328
COMPLIANCE DIGITAL E A INFLUÊNCIA DO
REGULAMENTO EUROPEU DE PROTEÇÃO DE
DADOS NAS EMPRESAS BRASILEIRAS
Caroline De Melo Lima Gularte1
Gabriela Coelho Glitz2
1) Introdução
Com o incremento da internet, a possibilidade de armazenamento de megabases
de dados trazem novas possibilidades de compreensão do mundo, a partir do Big Data.
A tecnologia avançada, que favorece a produção de riquezas, vem acompanhada da
produção social de riscos, trazendo ao Direito um novo paradigma: como podemos evitar
danos e minimizar riscos, produzidos por este processo avançado de modernização, sem
ultrapassar os limites do sustentável?
A proteção da pessoa humana é o ideal máximo do ordenamento jurídico, sendo
o direito fundamental à privacidade uma das facetas da dignidade da pessoa humana,
reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
A tecnologia e as mudanças sociais traçam um novo cenário, no qual a informação
pessoal e a privacidade dividem uma tênue linha. O direito fundamental à privacidade se
vê diante dos mais variados desafios para a sua tutela, ainda mais quando analisado sob
a ótica da proteção de dados pessoais.
Em verdade, estamos diante de um sistema patrimonialista, no qual os dados
pessoais podem se transformar em uma commodity nesta nova sociedade digital. Saber
usar do consentimento e dar a este as vestes de um ato unilateral, não podem ser
pressupostos de uma ausência de interesse na proteção de dados pessoais.
Na tentativa de regularizar essa situação, o Parlamento Europeu e o Conselho
emitiram o Regulamento 2016/679, que entrou em vigor em 25 de maio de 2018. O
regulamento europeu de proteção de dados traz a necessidade de gestão responsável na
proteção de dados, colocando a União Europeia a frente das discussões sobre o tema.
Esse novo horizonte de sentido, pautado pela necessidade de prevenção de danos
e precaução de riscos, reclama do operador jurídico uma atuação pautada numa ética de
responsabilidade, que potencialize o acompanhamento das inovações tecnológicas, com
a devida segurança jurídica, servindo o compliance digital para auxiliar nessa gestão.
1 Mestranda em Direito pela PUCRS. Especialista em Compliance e Direito Penal pelo Instituto de
Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito de Coimbra. Especialista em Direito e Processo
do Trabalho pela UNISINOS. Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela UFRGS.
Integrante do Grupo de Pesquisas “Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho” da PUCRS.
Advogada. E-mail: c.melolima@gmail.com
2 Mestranda em Direito pela PUCRS. Bolsista vinculada ao CNPq. Pós-graduada em Ciências Penais
pela PUCRS. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Advogada. E-mail: gabipcoelho@yahoo.com.br
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz
Nesse sentido, inicialmente, o presente trabalho analisa os aspectos gerais e a
evolução conceitual do regulamento europeu de proteção de dados, bem como suas
principais alterações e inovações.
Na sequência, passa-se a aferir a importância da implementação de um programa
de compliance digital, para a gestão eficiente da proteção de dados nas empresas
brasileiras, em conformidade com o regulamento europeu e o ordenamento jurídico
pátrio.
2) O Novo Regulamento Europeu
a) Histórico e Evoluções Conceituais até a Publicação do RGPD
O novo regulamento geral de proteção de dados, que entrou em vigor em 25 de
maio do corrente ano, possui elementos diretamente aplicáveis a cada Estado da União
Europeia. Conforme José Luis Piñar Mañas, passa-se de uma gestão de dados ao uso
responsável da informação. Tal afirmativa vai muito mais além: as questões que
envolvem a proteção de dados serão apreciadas pelo crivo do princípio de accountability
(art. 24 do RGPD)3, ou seja, de responsabilidade proativa, com princípios que vão desde
a privacidade por desenho e padrão (artigo 25 do RGPD)4, até a figura de um delegado
3 Artigo 24. Responsabilidade do responsável pelo tratamento
1. Tendo em conta a natureza, o âmbito, o contexto e as finalidades do tratamento dos dados, bem
como os riscos para os direitos e liberdades das pessoas singulares, cuja probabilidade e gravidade podem
ser variáveis, o responsável pelo tratamento aplica as medidas técnicas e organizativas que forem adequadas
para assegurar e poder comprovar que o tratamento é realizado em conformidade com o presente
regulamento. Essas medidas são revistas e atualizadas consoante as necessidades.
2 Caso sejam proporcionadas em relação às atividades de tratamento, as medidas a que se refere o
n.° 1 incluem a aplicação de políticas adequadas em matéria de proteção de dados pelo responsável pelo
tratamento.
3. O cumprimento de códigos de conduta aprovados conforme referido no artigo 40.o ou de
procedimentos de certificação aprovados conforme referido no artigo 42.o pode ser utilizada como elemento
para demonstrar o cumprimento das obrigações do responsável pelo tratamento.
4 Artigo 25. Proteção de dados desde a conceção e por defeito:
1. Tendo em conta as técnicas mais avançadas, os custos da sua aplicação, e a natureza, o âmbito, o
contexto e as finalidades do tratamento dos dados, bem como os riscos decorrentes do tratamento para os
direitos e liberdades das pessoas singulares, cuja probabilidade e gravidade podem ser variáveis, o
responsável pelo tratamento aplica, tanto no momento de definição dos meios de tratamento como no
momento do próprio tratamento, as medidas técnicas e organizativas adequadas, como a pseudonimização,
destinadas a aplicar com eficácia os princípios da proteção de dados, tais como a minimização, e a incluir as
garantias necessárias no tratamento, de uma forma que este cumpra os requisitos do presente regulamento
e proteja os direitos dos titulares dos dados.
2. O responsável pelo tratamento aplica medidas técnicas e organizativas para assegurar que, por
defeito, só sejam tratados os dados pessoais que forem necessários para cada finalidade específica do
tratamento. Essa obrigação aplica-se à quantidade de dados pessoais recolhidos, à extensão do seu
tratamento, ao seu prazo de conservação e à sua acessibilidade. Em especial, essas medidas asseguram que,
por defeito, os dados pessoais não sejam disponibilizados sem intervenção humana a um número
indeterminado de pessoas singulares.
3. Pode ser utilizado como elemento para demonstrar o cumprimento das obrigações estabelecidas
nos n.os 1 e 2 do presente artigo, um procedimento de certificação aprovado nos termos do artigo 42.o.
330
Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção...
de proteção de dados.5
A rápida evolução tecnológica e a globalização trouxeram novos paradigmas para
a proteção de dados pessoais, tendo em vista a rápida circulação de dados entre os países
membros, assim como entre outros países e organizações internacionais, não sendo
necessário, para tanto, perder um nível mínimo de proteção desses dados.6
A base e avanço de toda a legislação europeia está calcada no artigo 8 o da Carta
Europeia de Direitos Humanos, que reconhece o direito fundamental à proteção de
dados. Esse direito foi elevado à categoria de direito fundamental autônomo, distinto do
direito à intimidade, que está previsto no artigo 7o. Este grande avanço, ocorrido nos anos
2000, firmou a base do novo regulamento europeu de proteção de dados, buscando
superar as dificuldades de uniformização e aplicação vivenciados durante a vigência da
Diretiva 95/46/CE.
O RGPD reforça que o tratamento de dados pessoais deve servir à humanidade,
porém tal direito não é um direito absoluto, devendo ser considerado em relação à sua
função para a sociedade, mantendo o equilíbrio com os demais direitos fundamentais,
calcado no princípio da proporcionalidade.7
Outro ponto importante a ser considerado como conceito e fundamento do novo
regulamento diz respeito a qual seria a definição do direito à proteção de dados. Tal
definição não está prevista no regulamento, mas segundo Piñar Mañas, poderia ser
entendida como o controle que as pessoas físicas devem ter sobre seus dados pessoais,
sendo este controle o elemento central do direito.8
Assim, o objetivo final do novo regulamento está em regular o direito
fundamental à proteção de dados, reconhecido no artigo 8o da Carta Europeia de Direitos
Humanos, garantindo a livre circulação desses dados dentro da União Europeia.
b) Principais Alterações do Regulamento 2016/679 da UE
Um dos principais conceitos para estudar esta legislação está no que são dados
pessoais. O conceito trazido pela Diretiva 95/46/CE foi mantido pelo novo regulamento,
porém agregaram-se novos elementos e exemplos, pertinentes ao desenvolvimento de
novos aplicativos e da internet das coisas. Assim, pode-se definir como dados pessoais
toda informação sobre uma pessoa física identificada ou identificável, devendo
considerar-se pessoa física identificável toda aquela que puder ser determinada, direta
ou indiretamente. O RGPD especificou ainda mais tal conceito, mencionando que seriam
considerados como dados identificáveis o nome, o número de identidade, dados de
localização, dados em linha ou ainda vários elementos próprios de sua identidade física,
5 PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo
modelo europeo de privacidade. Madrid: Reus, 2016. p. 16.
6 PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 51-52.
7 PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 57.
8 Ibidem, p. 57.
331
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz
fisiológica, genética, psíquica, econômica, cultural ou social.9
Contudo, o problema não está nos dados em si, mas no seu tratamento. O conceito
de tratamento foi mantido no mesmo sentido previsto pela Diretiva 95/46/CE,
entretanto, agregou o conceito de limitação, que faz referência a dados pessoais que são
coletados, porém possuem uma limitação de tratamento.
Outra significativa alteração feita pelo regulamento está no ato do consentimento,
que incorporou ao seu conceito de livre manifestação de vontade, específica e informada,
a manifestação de vontade inequívoca. Aqui, altera-se um parâmetro de consentimento
“padrão”, que por muitas vezes era fornecido sem que o usuário tivesse de fato
consentido, já que uma simples marcação em uma janela de sítio era tida como
consentimento.
Atualmente, exige-se um consentimento claro e inequívoco, com uma linguagem
fácil e acessível, de compreensão rápida, não podendo conter cláusulas abusivas. Ainda,
tendo o tratamento de dados mais de um fim, o consentimento deve ser dado de forma
separada, para cada um dos fins projetados, e o responsável do tratamento deve ser capaz
de demonstrar que foi dado o consentimento, por determinada pessoa, para determinado
fim.
A regra europeia traz, ainda, significativos avanços que passam desde uma
ampliação dos chamados direitos ARCO (acesso, retificação, cancelamento e oposição),
incluindo o direito ao esquecimento, direito à portabilidade de dados e decisões
individuais automatizadas, como também novos conceitos como a “pseudonimização” de
dados, o encarregado pela proteção de dados e a privacidade de dados desde a concepção
e por defeito/padrão.
Outro assunto de grande importância está na transferência de dados pessoais a
terceiros países (fora da comunidade europeia), e organizações internacionais, matéria
que está regulada pelo Capítulo V, artigos 44 à 50 do RGPD. O principal ponto em relação
a esta questão é que as transferências de dados para fora da União Europeia não podem
colocar em risco o nível de proteção já garantido às pessoas físicas, em relação aos seus
dados pessoais.
Para que seja viabilizada a transferência internacional a um terceiro país ou
organização internacional, deverá haver adequação a garantias efetivas e notórias aos
dados, ou, deverá estar enquadrada em uma das exceções previstas no artigo 49 do
RGPD.10
O regulamento europeu atribui a competência para declarar “adequado” o grau
de proteção fornecido por determinado país fora da União Europeia, ou organização
9 POU, Maria Arias. Definiciones a efecto del reglamento general de protección de datos. In: PIÑAR
MAÑAS, José Luis (Dir.). Reclamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de
privacidade. Madrid: Reus, 2016. p. 117.
10 PIÑAR MAÑAS, José Luis. Transferencias de datos personales a terceiros países u organizaciones
internacionales. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia
um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 427-460.
332
Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção...
internacional sobre o controle de dados pessoais, a uma comissão. Porém, com o objetivo
de auxiliar o trabalho desta comissão, o regulamento prevê em seu artigo 70.1, que o
comitê facilitará o trabalho da comissão, emitindo um parecer para avaliar o nível de
proteção de onde se pretende autorizar a transferência internacional de dados.
A consequência mais importante sobre esta decisão de adequação está na
autorização para que a transferência seja feita a quem solicitou, não necessitando de
nenhuma autorização específica. Além disso, tal decisão obriga o acompanhamento e
supervisão pela comissão, de maneira contínua, sobre os acontecimentos e
desdobramentos. Haverá uma revisão sobre a decisão a cada quatro anos, pelo menos,
com o objetivo de constatar se os níveis de proteção seguem estando adequados aos
parâmetros estabelecidos pela comissão.11
Não sendo constatada a manutenção da proteção dos dados pessoais nesses
critérios, a comissão revogará, modificará ou suspenderá a decisão anterior, proibindo a
transferência de dados pessoais, não havendo efeito retroativo.
Na falta de uma decisão de adequação, de acordo com o artigo 46.1, o responsável
ou o encarregado do tratamento só poderá transmitir dados pessoais a um terceiro país
ou organização internacional, se estes oferecerem garantias adequadas e a condição de
que os interessados contem com direitos exigidos e ações legais efetivas.12
O artigo 46.2 segue nesta linha, esclarecendo o que seriam garantias adequadas:
instrumento juridicamente vinculante e exigível entre as autoridades e organismos
públicos; normas corporativas vinculantes; cláusulas de proteção de dados adotadas pela
comissão; cláusulas de proteção de dados adotadas por uma autoridade de controle e
aprovadas pela comissão; código de conduta; e um mecanismo de certificação associado
a compromissos vinculantes e exigíveis nos mesmos termos que os códigos de conduta.
Todas estas alternativas possibilitam a transferência de dados pessoais para
países fora da Comunidade Europeia, sem a necessidade de uma decisão de adequação
expressa, responsabilizando o encarregado e o responsável do tratamento de dados por
tudo que envolva esta transferência.
Ainda sobre este tema, as normas corporativas vinculantes, também conhecidas
como Binding Corporate Rules (BCR’s), requerem uma atenção especial. Estas normas
são um elemento legitimador das transferências internacionais de dados dentro de um
grupo empresarial, ou uma união de empresas, embasando políticas de proteção de
dados pessoais sob a responsabilidade do encarregado de tratamento, que permitam sua
proteção para além das fronteiras europeias.13
As BCR’s são consideradas fontes de obrigação para os responsáveis e
encarregados da proteção de dados pessoais, e possuem caráter vinculante enquanto
declaração unilateral de vontade. Contudo, justamente ciente de que tais regras
PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 443-445.
Ibdem, p. 447.
13 POU, op. cit., p. 131.
11
12
333
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz
poderiam gerar problemas de aplicação, o RGPD reconhece este regramento e prevê, em
seu artigo 47.1, os seus requisitos, garantindo que a autoridade de controle competente
aprovará normas corporativas vinculantes, sempre que forem juridicamente vinculantes
e se apliquem e sejam cumpridas por todos os membros do grupo empresarial, inclusive
seus empregados, confiram expressamente aos interessados direitos exigíveis em relação
ao tratamento de seus dados pessoais, e cumpram o apartado 2, que regula o que é
considerado conteúdo mínimo para as BCR’s.14
O objetivo do legislador europeu foi de que as BCR’s de fato garantissem o direito
à proteção de dados pessoais. Em virtude disso, o legislador prevê no artigo 47.2 o que
deve constar nestas normas corporativas vinculantes, não deixando espaço para
subjetividade. Após elaboradas pelo responsável de dados do grupo econômico, este deve
submeter à aprovação da autoridade de controle competente.
Insta referir, também, que o RGPD trouxe o direito à portabilidade. Este direito
reforça mais uma vez o poder de disposição de dados dos cidadãos e também fomenta a
competência do mercado digital. Através da portabilidade será possível receber os dados
pessoais armazenados em formato estruturado, de uso comum e de leitura mecânica,
possibilitando sua transferência para outro responsável. O RGPD reforça que isso só será
possível quando for tecnicamente viável, reiterando que o prazo para atendimento será
de um mês, a partir do pedido, podendo ser prorrogado em certos casos. Este direito será
exercido a título gratuito, excetuando-se os pedidos manifestamente infundados ou
excessivos.15
As alterações acima trazidas sugerem o grande reforço à proteção de dados que o
regulamento geral de proteção de dados pessoais 2016/679 trouxe para o mundo digital.
Os princípios basilares da Diretiva 45/96/CE foram todos mantidos e ampliados neste
grande avanço legislativo sobre o tema, enaltecendo o poder do cidadão sobre a gestão
efetiva, clara e transparente de seus dados pessoais.
3) Compliance Digital e Regulamento Europeu de Proteção
de Dados
Examinadas as principais inovações do regulamento europeu de proteção de
dados, passa-se a aferir a importância de um programa de compliance digital, que
permita a implementação da proteção de dados no âmbito empresarial, de forma
eficiente.
PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 452.
FERNÁNDEZ-SAMANIEGO, Javier; FERNÁNDES-LONGORIA, Paula. El derecho a la
portabilidade de los datos. . In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de
Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 257-268.
14
15
334
Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção...
a) Elementos do Programa de Compliance
Os programas de compliance são utilizados para transmitir aos dirigentes e aos
funcionários o conhecimento sobre as leis e demais normas regulamentares, sendo
comum a utilização de uma monitoração sistêmica, baseada em padrões pré-definidos,
utilizando-se de investigações internas e privadas para avaliação de eventuais
irregularidades praticadas no âmbito empresarial.
A modernidade avançada e a produção social de riquezas vieram acompanhadas
da produção social de riscos, coincidindo num novo paradigma: como se poderia
evitar/minimizar riscos e/ou perigos produzidos por um processo avançado de
modernização, sem ultrapassar os limites do sustentável?16
A ruptura paradigmática com ideia de dano, mediante uma concepção preventiva
e do papel do Direito na prevenção de ilícitos, reclama a participação dos operadores
jurídicos em um novo horizonte de sentido, a partir de uma ética da responsabilidade.17
A palavra compliance vem do verbo em inglês to comply, que significa “cumprir”,
“estar de acordo”. É uma prática empresarial que impõe padrões internos para o
cumprimento de normas, observância de leis e diretrizes nacionais e internacionais. O
sistema de autorregulação adotado por organizações empresariais, normalmente, é
composto por um programa de compliance para detectar operações suspeitas e
encaminhá-las à supervisão da empresa.
Nesse passo, as principais normas sobre compliance são as seguintes :
FCPA - FOREIGN CORRUPT PRACTICE ACT- 1977: Os EUA foram o primeiro
país a se comprometer com o combate à corrupção. A FCPA é fruto do escândalo do
pagamento de propina pela Empresa de Aeronaves Lockheed Aircraft Corporation a
funcionários públicos de vários países, na época da Guerra Fria. A FCPA é aplicável às
Empresas americanas e Empresas que queiram se relacionar com os EUA.
LEI SARBANES-OXLEY (Sarbanes-Oxley Act - SOX ou SARBOX) - 2002: Lei
americana que define práticas de boa governança corporativa e transparência na
condução dos negócios.
UK BRIBERY ACT - 2011: Responsabiliza a Empresa pela falha ao prevenir atos
de corrupção, praticados por qualquer pessoa a ela associada, em qualquer lugar do
mundo, tanto no setor público, quanto no privado. Há a possibilidade de isentar a
empresa de responsabilidade pela existência de procedimentos adequados anteriores ao
cometimento do ato ilícito (compliance). A lei inglesa é considerada mais agressiva que
a lei americana, por possuir um caráter extraterritorial ainda mais amplo.
CONVENÇÃO DA ONU DE MÉRIDA – 2003 e Decreto 5.687 - 2006: Tem por
16
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. p.
25-26.
17 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.
Tradução Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006.
335
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz
finalidade promover, facilitar e apoiar, em nível internacional, o controle da corrupção.
A implantação de um programa de integridade impõe a observância de deveres
de prevenção e análise de riscos, mediante uma cultura corporativa de transparência nas
atividades empresariais.
Para a implementação de um programa de integridade, utilizam-se alguns
elementos, tais como: a) criação e informação de um código de conduta, que defina a
postura ética empresarial; b) canal de denúncias, que possibilite aos stakeholders
denunciar atos ilícitos, de forma anônima; c) contratação de um compliance officer, o
profissional que será responsável pela informação e fiscalização no cumprimento do
programa de integridade.
O compliance officer é o responsável pela supervisão e gerenciamento do
compliance na empresa, ou na administração pública. Pode ser contratado pela própria
organização, ou ser profissional terceirizado, ou até mesmo empresa terceirizada para
desempenhar tais funções.
A exemplo da figura do data protection officer (encarregado pela proteção de
dados), conforme se verá adiante, tem a difícil missão de garantir que todos os
procedimentos realizados estejam de acordo com o ordenamento jurídico nacional e
internacional, bem como, em conformidade com o código de ética e conduta
implementado na organização.
Nesta seara, tornou-se imprescindível, tanto para as empresas quanto para a
própria administração pública, a implantação de um programa de integridade, o
compliance, para que se adequassem às exigências de mercado nacional e internacional,
criando boas práticas de governança corporativa, com impactos na gestão empresarial,
sendo mister o estudo do impacto do programa de compliance no âmbito do direito à
proteção de dados pessoais.
Conforme vimos acima, as organizações empresariais que não estiverem em
conformidade com o RGPD podem sujeitar-se a multas no valor de até 20.000.000,00
de euros, ou 4% do volume de negócios total anual da empresa.
Essas sanções não trazem um impacto negativo apenas financeiro para as
empresas. Sem dúvida, atuar em desconformidade com as normas sobre compliance e o
regulamento europeu mancham sua imagem a nível internacional.
Essa situação foi vivenciada, recentemente, pela Empresa Facebook, no
escândalo de vazamento de dados para uso político, que fez com que a empresa perdesse
50 bilhões de dólares em valor de mercado, em apenas dois dias.18
Nas palavras de Aristóteles19, a escolha de nossas ações não será correta sem
prudência, nem sem virtude moral, pois a virtude moral nos capacita a atingir o fim
18 JORNAL O GLOBO. Em dois dias, Facebook perde quase US$ 50 bilhões em valor de mercado.
Disponível em:
<https://g1.globo.com/economia/noticia/em-dois-dias-facebook-perde-quase-us-50bilhoes-em-valor-de-mercado.ghtml>. Acesso em: 20 abril 2018.
19 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 3ª edição. Bauru, SP: Edipro, 2009. p. 200.
336
Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção...
desejado e a prudência é o que nos permite adotar o meio certo para atingi-lo. Vale
lembrar: a prática da justiça requer o senso da medida.
No âmbito administrativo, a eficácia dos programas de compliance está vinculada
à governança pública, na perspectiva do princípio da condução responsável dos assuntos
do Estado, o que pressupõe accountability (dever de cuidado dos poderes públicos e o
dever de prestar contas) e a responsiveness (sintonia profunda da actuação dos poderes
públicos com as aspirações dos cidadãos), no horizonte de uma concepção de cidadania
activa e participativa, e não apenas da cidadania representativa.20
Nesse sentido, demanda-se a construção de uma cultura de transparência e
accountability, com o devido acesso à informação e prestação de contas por parte dos
gestores públicos.
Partindo da ideia de mudança de paradigma do dano para o paradigma da
prevenção de ilícitos, deve-se considerar a atuação do Direito a frente das contradições
sociais, potencializando o acompanhamento das inovações tecnológicas, com a devida
segurança jurídica.
b) Encarregado pela Proteção de Dados: data protection officer
O regulamento geral de proteção de dados europeu impacta profundamente o
direito digital e o setor da inovação, prevendo direitos e deveres a usuários e prestadores
de serviços.
A exemplo do compliance officer, o data protection officer, que é o encarregado
pela proteção de dados, é o responsável por supervisionar o cumprimento por quem trata
dados pessoais, servindo, inclusive, para fomentar a efetivação do direito fundamental
à proteção de dados. Para sua atuação, é de extrema importância que possua
independência, seja no setor público, como no setor privado, para o exercício de suas
funções. Pode ser tanto um empregado interno, quanto um consultor externo.
A Diretiva 95/46/CE já previa, de forma limitada, a figura do encarregado pelo
proteção de dados. Entretanto, o RGPD oferece uma exposição muito mais detalhada das
funções do EPD (encarregado pela proteção de dados), incrementando suas obrigações.21
De acordo com o artigo 37 do RGPD, o “delegado de proteção de dados” será
designado atendendo a suas qualidades profissionais e, em particular, os seus
conhecimentos especializados em Direito e a prática em matéria de proteção de dados e
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos
discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 327.
21 GARCÍA, José Leandro Núñez. El Encargado del Tratamiento. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis
(Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade.
Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 322.
20
337
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz
a sua capacidade para desempenhar as funções.22
Além de ter de cumprir com os critérios previstos no RGPD, é essencial que se
trate de uma pessoa com alto nível de experiência profissional, com profundo
conhecimento em direito nacional e europeu sobre proteçao de dados pessoais, que
conheça o setor do negócio ou atividade da organização na qual desempenhe suas
funções, conheça as operações e tecnologia para tratamento e segurança dos dados.23
De acordo com o previsto no regulamento europeu, é importante considerar os
seguintes itens para a designação do encarregado pela proteção de dados: 1) designação
obrigatória quando se cumpram os critérios estabelecidos no regulamento, nos setores
público e privado; 2) designação obrigatória em virtude do Direito da União Europeia,
como por exemplo, a Diretiva sobre proteção de dados pessoais tratados com fins
policiais e judiciais; 3) designação voluntária, sendo necessário neste caso, que o
encarregado pela proteção de dados cumpra os requisitos e critérios do regulamento.24
Portanto, os encarregados de proteção de dados deverão conscientizar, de forma
precisa, o que representa o RGPD, os seus contornos e o espírito das suas normas,
estabelecendo as condições ideais para a conformidade com o Regulamento.
c) Da Proteção de Dados desde a Concepção e por Padrão:
privacy by design and by default
O novo regulamento europeu prevê que, desde a conceção (privacy by design),
de construção de bens, serviços, produtos, sistemas, sejam obedecidos os critérios de
privacidade.
De acordo com o artigo 25 do RGPD, o responsável pelo tratamento de dados
necessita aplicar, tanto no momento de definição dos meios de tratamento, como no
momento do próprio tratamento, medidas técnicas e organizativas adequadas, como a
pseudonimização e a minimização.25
A pseudominimização é compreendida como o tratamento de dados pessoais de
forma que deixem de poder ser atribuídos a um titular de dados específico e medidas
técnicas e organizativas para assegurar que os dados pessoais não possam ser atribuídos
a uma pessoa singular identificada ou identificável. A minimização é compreendida como
a limitação ao que é necessário, relativamente às finalidades para as quais são tratados
22 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:32016R0679>. Acesso em: 20 abril 2018.
23 GAYO, Miguel Recio. El Delegado de Protección de Datos. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.).
Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid:
Editoral Reus, 2016. p. 377.
24 IDEM, p. 380.
25 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:32016R0679>. Acesso em: 20 abril 2018.
338
Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção...
os dados.26
Essas técnicas são utilizadas para a aplicação e eficiência das garantias
necessárias no tratamento, para cumprir os requisitos do RGPD, protegendo os direitos
dos titulares dos dados.
Ainda, informa o regulamento que, por padrão ou defeito (privacy by default),
só sejam tratados os dados pessoais que forem necessários para finalidade específica de
tratamento. Essa obrigação aplica-se, em especial, para assegurar que os dados pessoais
não sejam disponibilizados sem intervenção humana a um número indeterminado de
pessoas singulares.27
d) Implicações do RGPD nas Empresas Brasileiras
Visto que o RGPD prevê a necessidade de que todas as empresas envolvidas com
manipulação de dados pessoais dos cidadãos da comunidade europeia tenham de
cumprir requisitos, a fim de estarem em compliance com o prescrito no regulamento, é
de fundamental importância abordarmos a ressonância do RGPD nas empresas
brasileiras.
Empresas brasileiras que armazenem, manipulem ou tratem dados pessoais de
titulares europeus deverão atentar-se ao RGPD, uma vez que ele se aplica a entidades
que processam dados pessoais, mesmo quando o tratamento se dá fora da limitação
geográfica da União Europeia, desde que sejam oferecidos bens ou serviços a titulares de
dados que sejam cidadãos da comunidade europeia. É o que preceitua o artigo 3º do
presente regulamento.28
No âmbito brasileiro, conforme informações da Câmara dos Deputados, o PL
5276/16 exigia que os dados só fossem usados e manipulados com autorização, além de
estabelecer uma série de restrições em relação a informações consideradas sensíveis,
como opção sexual e posição política. O texto também mencionava um órgão com
competência para fiscalizar o setor, mas não explicava qual seria esse órgão. Já outra
proposta, sugeria a autorregulamentação do setor no lugar de um órgão regulador
centralizado (PL 4060/12). E um terceiro projeto, o PL 6291/16, muda o Marco Civil da
Internet (Lei 12.965/14), para deixar clara a proibição do compartilhamento de dados
pessoais dos assinantes de aplicações de internet.29 Entretanto, é válido lembrar que o
Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 53 de 2018, apensou os projetos nº
4060/2012 e 5276/2016, inspirado no RGPD, sendo este projeto de lei que
IDEM.
IDEM.
28 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:32016R0679>. Acesso em: 20 abril 2018.
29 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão especial sobre proteção de dados pessoais reúne-se
nesta
tarde.
Disponível
em:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CONSUMIDOR/555983-COMISSAO-ESPECIALSOBRE-PROTECAO-DE-DADOS-PESSOAIS-REUNE-SE-NESTA-TARDE.html>. Acesso em 20 abril 2018.
26
27
339
Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz
regulamentará o tratamento e a proteção de dados pessoais no Brasil.30
No que tange ao Marco Civil da Internet, é importante mencionar que esta lei já
previa, em seu capítulo III, a proteção aos registros, aos dados pessoais e às
comunicações privadas. Em seu artigo 11, há a previsão da proteção de dados pessoais
em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de
dados pessoais ou comunicações privadas, ressaltando que o disposto neste artigo aplicase aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que
pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil, ou que as atividades sejam
realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público
brasileiro, ou pelo menos que uma pessoa jurídica integrante do mesmo grupo
econômico possua estabelecimento do Brasil. 31
Por todo exposto, conclui-se que a matéria atinente à proteção de dados pessoais
no Brasil é regrada, de forma superficial, pelo Marco Civil da Internet, sendo o PL nº 53
da Câmara dos Deputados que regulará, especificamente, a proteção de dados pessoais
no Brasil. Todavia, tendo em vista a aplicação do RGPD europeu ao Brasil, conforme
visto acima, é de fundamental importância que sejam estabelecidos padrões mínimos de
conformidade a serem adotados pelas organizações empresariais e pela administração
pública, a fim de estarem em compliance com o que fora regulamentado.
Nesse sentido, torna-se imprescindível a implementação de um programa de
compliance digital, direcionado às questões referentes ao tratamento de dados pessoais
no Brasil, em consonância com o RGPD, bem como com o ordenamento jurídico pátrio
e demais normas e regulamentos referentes ao tema.
4) Conclusão
O novo regulamento europeu de proteção de dados constitui um grande avanço
no âmbito do direito fundamental à proteção de dados, não apenas para a Europa, mas
no mundo inteiro.
A presente pesquisa pretendeu analisar as principais modificações e inovações
trazidas pela regra europeia, bem como a influência do RGPD no âmbito brasileiro.
Concluiu-se que o regulamento europeu de proteção de dados influencia não apenas a
comunidade europeia, como também, ressona em todos os países que armazenarem,
tratarem e/ou manipularem dados pessoais de cidadãos europeus.
A atual quadra vivida exige o acompanhamento das empresas para que possam
implementar padrões éticos em suas atividades, não apenas por uma questão moral, mas
30 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 53/2018. Dispõe sobre o sobre a proteção de
dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133486>. Acesso em: 03 julho 2018.
31 BRASIL. LEI Nº 12.965 de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso
da
Internet
no
Brasil.
Disponível
em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em 3 julho 2018.
340
Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção...
sim, legal.
A gestão de compliance empresarial abarca diversas áreas jurídicas, tendo sido o
objetivo deste trabalho a análise da ressonância do compliance no direito digital, mais
precisamente, no âmbito da proteção de dados, com a devida observância aos direitos e
garantias fundamentais, em suas múltiplas dimensões.
Vale ressaltar que a inobservância dos direitos fundamentais implica na ruptura
das legítimas expectativas dos cidadãos e das empresas que pretendem agir com a devida
eticidade, exigida no mercado atual.
A eficácia dos direitos fundamentais, tanto nas relações públicas quanto privadas,
atua como limite objetivo. O conteúdo da dignidade enuncia a compreensão de que o
indivíduo é um fim em si mesmo, vedando-se a sua instrumentalização, o qual não pode
ser tratado como meio para a consecução de objetivos ou metas de natureza coletiva.
Por todo exposto, é imprescindível que as organizações empresariais brasileiras
e a administração pública se atentem ao regulamento europeu de proteção de dados, que
passou a viger em maio de 2018, de forma a estarem em compliance com o que fora ali
previsto, evitando danos e prováveis riscos, que possam culminar na aplicação de multas
gravíssimas e, principalmente, situações que possam ferir a sua reputação e credibilidade
sociais.
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reúne-se
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343
LEGADO DIGITAL
José Emiliano Paes Landim Neto1
1) Introdução
A perspectiva que nos move é em grande parte virtual. As informações,
pensamentos, opiniões são compartilhados a todo instante no mundo digital. É um
processo instantâneo, dinâmico, veloz, exponencial em que há a interação e em tempo
real entre os mundos off-line e on-line de todas as manifestações de nossa personalidade.
Os números refletem a crescente utilização da rede mundial de computadores e,
também, das mídias sociais como forma de comunicação, divulgação e produção de
conteúdos construindo, assim, um verdadeiro patrimônio digital de cada usuário. Os
relatórios digitais de 2018 da We Are Social e do Hootsuite concluíram que existem, hoje,
mais de 4 (quatro) bilhões de pessoas em todo o mundo que utilizam a Internet.
E no que se referem ao uso das mídias sociais estas continuam em crescente
expansão. O número de usuários de mídia social em 2018 fora de 3,196 bilhões, 13% a
mais que no ano de 2017.2 É dizer, então, que cada sujeito ativo das mídias sociais tem o
seu respectivo acervo digital que necessitará, sim, ser protegido, porque em algum
momento o usuário digital irá falecer, poderá manifestar causas de incapacidade ou
sofrer violações aos bens digitais deixados na internet.
a) Sociedade Virtual, O ser físico-digital
A internet, assim, como as mídias sociais não são extensões únicas do nosso ser.
A vida com o passar do tempo molda os nossos comportamentos e ações, tanto o é
verdade que em cada momento de nossas vidas buscamos projetar-nos no mundo.
Quando criança, aprendemos a engatinhar, andar, vamos crescendo e logo nos tornamos
adultos, momento em que construímos carreiras profissionais com a tentativa de
expressar as nossas sensibilidades pessoais e intelectuais. É aí, então, que surge o
seguinte questionamento: O novo ser vive sobre a superfície de uma tela ou dentro desta?
A distância estabelecida entre humanos e a internet está cada vez mais difícil de
ser mantida. Basta perceber hoje: menos papel, mais digital, menos contato físico, mais
presença virtual, menos conteúdos físicos e mais conteúdos on-line. Há aqui a
virtualização do ser, alimentado cada vez mais nas mídias sociais (instagram, linkedin,
facebook, snapchat, myspace, dentre outros) com fotos, vídeos, opiniões, e, obviamente,
1 Grau acadêmico: LL.M (Legal Master) em Direito Empresarial. Instituição: Fundação Getúlio
Vargas, Brasília/DF (BRASIL)
2 Disponível em: <https://wearesocial.com/blog/2018/01/global-digital-report-2018>. Acesso em:
29 de março de 2018.
José Emiliano Paes Landim Neto
a interação com os demais atores sociais, afinal de que adianta estar só neste ambiente
digital.
Assim, a virtualização do ser e das informações faz com que as pessoas se tornem
mais vulneráveis e com a consequente exposição dos seus direitos à privacidade e
intimidade. As inúmeras revelações, por exemplo, do Wikileaks desde sua fundação em
2006 foram um alerta sobre o poder que as tecnologias digitais têm em impactar a
transparência informacional quanto à privacidade. Após o Wikileaks, o mundo passou
da imaginação para comprovação, por meio do vazamento, de documentos e informações
que têm se tornado públicos, levantando discussões e interpretações cada vez mais
complexas entre transparência informacional, direitos individuais, segredos,
privacidade, intimidade, valores éticos, segurança, direitos sobre a personalidade.3
Esse novo “poder da internet” acaba por aumentar a vulnerabilidade do
indivíduo, pois potencializa a disseminação rápida de grandes volumes informacionais,
possibilitando, assim, a ampla divulgação na web, ocasionando e ampliando o poder
social das informações, uma vez que os conteúdos disponibilizados web eliminam as
barreiras geográficas, pois a internet é, por definição, global.
É por isso que ao longo da vida, bilhões de pessoas irão manifestar pensamentos,
opiniões, interagir por meio de mensagens, fotos, vídeos, adquirir bens corpóreos e
incorpóreos4, contratar serviços, tudo por meio da rede mundial de computadores.
Logo, no decorrer de nossa vida existencial se tornará cada vez mais presente e
inerente ao ser humano depositar na rede mundial de computadores informações
pessoais, profissionais, manifestações da personalidade e arquivos de valor econômico,
todos esses ligados a um determinado sujeito. Cada usuário terá o seu próprio
patrimônio digital que necessitará ser protegido, pois em algum momento como
mencionado anteriormente ele irá falecer, manifestar alguma causa de incapacidade ou
mesmo sofrer violações a este legado digital.5
A importância, portanto, do que é produzido no ambiente virtual, notadamente
os ativos digitais se mostra evidente em pesquisa feita pela empresa McAfee, Inc,
empresa esta americana de informática com a expertise em soluções de segurança6 na
qual se constatou uma estimativa em valores de US$ 35.000 em média para os ativos
digitais por usuário. E em escala de relevância estão às memórias pessoais
insubstituíveis, como fotos e vídeos, com valores estimados de US$ 17.065 por usuário.
Além disso, 55% (cinquenta e cinco por cento) dos entrevistados mencionaram que
mantem ativos digitais em seus dispositivos impossíveis de recriar, fazer o download ou
3 GABRIEL, Martha. Você, eu e os robôs: pequeno manual do mundo digital. 1ª edição. São Paulo:
Atlas, 2018. p. 19.
4 (Amaral, 2003) ”Bens corpóreos seriam aqueles que possuem existência concreta, podendo ser
perceptíveis pelos sentidos, sendo então objetos materiais, ainda que não possuam a forma sólida, como o
gás, a eletricidade e o vapor. Já os incorpóreos seriam aqueles que teriam existência abstrata, intelectual,
como a honra, a liberdade, o nome, bem como certos direitos e certas obras do espírito”.
5 LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Idaiatuba, SP: Editora Foco Jurídico, 2017.
p. 57.
6 Mais informações em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/McAfee> . Acesso em: 02 julho de 2018.
346
Legado digital
comprar7, demonstrando, assim, a importância do que é produzido em ambiente virtual.
Dessa forma, uma vez que a vida vai se virtualizando a cada dia, 02 (dois) são os
fatores principais dos ativos digitais, são eles: ativo digital com valor emocional e/ou
financeiro. E no que se refere ao valor econômico do bem digital8 pode se mencionar as
músicas, vídeos, bibliotecas digitais, jogos on-line, moedas virtuais (bitcoins), milhas
aéreas, bens estes que podem, sim, serem transmitidos aos herdeiros quando do
falecimento do usuário, notadamente por possuírem características patrimoniais.
E, aqui, por se tratar de ativo digital de natureza patrimonial este poderá ser
administrado, bem como sofrer divisão, segundo as regras sucessórias (art. 617 e
seguintes do Código de Processo Civil Brasileiro e art. 1.845 e seguintes do Código Civil
Brasileiro), uma vez que possui valor econômico, que geram direitos hereditários e,
porquanto compõem a herança a ser partilhada.
E, ainda, em relação aos bens digitais patrimoniais, no momento de sua
transmissão, quer seja pela sucessão legítima ou testamentária, polêmica que pode se
haver é a quantificação dos bens digitais para se saber ao certo os valores a serem
partilhados. E no caso do Direito Brasileiro podem as partes integrantes da relação
processual solicitarem a convocação de um perito, nos termos dos arts. 156 a 158 do
Código de Processo Civil. Nesse sentido, Heloisa Korb Bondan e Luiz Marcelo Berger,
dissertando sobre a Governança na Internet e suas consequências jurídicas e
institucionais do poder tecnológico, afirmam que9:
“A internet surgiu no final da década de 70. Apesar de existir há quase 50 anos,
foi apenas entre os anos de 1995 a 1996,10 que efetivamente começou a tomar proporções
globais, quando surgiram questionamentos sobre quem governava esse espaço
geográfico, considerando a inexistência de padrões atribuídos por normas estatais.11 A
resposta, à época, foi de que a internet era, em realidade, governada pela sua própria
estrutura (códigos da estrutura da rede).12 No entanto, a evolução tecnológica criou novos
caminhos e possibilidades antes impossíveis de serem contemplados, com impactos
profundos na forma como os agentes se relacionam em todos os níveis. As consequências
para os diversos ordenamentos jurídicos estão ainda em curso”.
Certamente, os desafios jurídicos são muitos e será cada vez mais difícil ao Poder
Mais informações em: <http://www.thedigitalbeyond.com/2014/07/how-much-are-yourdigital-assets-worth-about-35000/>. Acesso em: 02 julho de 2018.
7
8 Bem Digital é a informação armazenada ou acessível, sendo esta online, onde o detentor da
informação possui razoável expectativa de ser o proprietário ou ter o seu controle.
9 BONDAN, Heloisa Korb; BERGER, Luiz Marcelo. Governança na internet: consequências
jurídicas e institucionais do poder tecnológico. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA,
Henrique Araújo; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (Coord.). Tecnologia jurídica e direito digital: I
Congresso Internacional de Direito e Tecnologia – 2017. 1ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
10 LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. Nova York: Basic Books, 2011. p. 20.
11 SYLVAN. David. Global internet governance: governance without governors. In: RADU, Roxana;
CHENOU, Jean-Marie; WEBER, Rolf H. (Ed.). The evolution of global internet governance: principles and
policies in the making. Springer: Nova York; Londres, 2014. p. 29.
12 SYLVAN. David. Global internet governance: governance without governors. In: RADU, Roxana;
CHENOU, Jean-Marie; WEBER, Rolf H. (Ed.). The evolution of global internet governance: principles and
policies in the making. Springer: Nova York; Londres, 2014. p. 30.
347
José Emiliano Paes Landim Neto
Judiciário arbitrar valores aos ativos digitais de caráter econômico, como nos exemplos
já citados de milhas aéreas, musicoteca, videoteca ou biblioteca digital. É importante
salientar que as discussões que existem sobre a partilha dos bens digitais dos usuários
serão cada vez mais frequentes, ficando a cargo, portanto, dos órgãos judicantes a
utilização de outras áreas do conhecimento na tentativa de acompanhar o incerto,
desafiador e caótico ambiente tecnológico e, assim, aplicar, sempre, o Direito ao caso
concreto, salvaguardando a partilha dos bens digitais patrimoniais aos que irão receber
quer seja por meio da sucessão legítima e/ou testamentária.
Por outro lado há, também, o aspecto sentimental dos ativos digitais. São as fotos
que causam lembranças, saudade, emoção e os bons momentos vividos ao lado de amigos
e familiares, as mensagens enviadas por e-mail, inbox (mensagens privadas) nas mídias
sociais, conteúdos estes produzidos e dotados de valor sentimental para os usuários. O
grande desafio, portanto, que o valor sentimental do ativo digital é capaz de gerar é a
relevância do que foi produzido no mundo virtual para o usuário antes do seu
falecimento, bem como para os seus amigos e familiares.
Neste aspecto, importante destacar sobre a eficácia post mortem dos direitos da
personalidade do usuário, sendo esta transmutada na possiblidade de um terceiro
desfrutar de uma situação jurídica vantajosa, em decorrência de um direito de
personalidade que fora titularizado por quem, agora, é morto. Assim, se manifestaram
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery:
“É inconveniente afirmar-se, singelamente, que são intransmissíveis os direitos
da personalidade. Serão, ou não, de acordo com a natureza do objeto do direito tutelado.
A personalidade termina com a morte (CC 6.º) e, com isso, evidentemente finda o mais
importante objeto do direito de personalidade, que é a vida. Mas as operações jurídicas
criadas em virtude do exercício do chamado direito de personalidade do morto podem
continuar gerando efeitos jurídicos passíveis, também, de tutela sob a rubrica do direito
de personalidade, agora titularizado em alguém que, por sua condição especial, vive
situação jurídica de vantagem em virtude de circunstâncias da vida pessoal de quem já é
morto”.13
Sobre o tema, a lição de Heinrich Hubmann, a qual traduzida livremente por
Nelson Nery Júnior:
“Ele (o falecido) não pode mais ser sujeito de relações jurídicas, sua capacidade
jurídica se extinguiu. No entanto, enquanto seus valores e suas obras perdurarem, o seu
direito sobre eles, ou seja, seu direito de personalidade, também deve perdurar. Ele não
pode mais ser o portador desse direito, ele não pode tampouco fazer uso dele. É o seu
interesse, sua aspiração a certos valores, que perdurará como legado aos seus
descendentes, amigos e parentes. Esse interesse do falecido não deve se confundir com
o interesse pessoal dos seus parentes, que o une, depois da morte, a suas obras. Com
13 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado, 8ª. Ed., São
Paulo: Ed. RT, 2011, coment. 8 CC 11, p. 230.
348
Legado digital
frequência os interesses dos parentes se encontram em conflito com os interesses do
falecido. Portanto, o direito de personalidade do falecido deve ser diferenciado do direito
de personalidade dos vivos, que estão ligados a ele”.14
Logo, ao contrário do que se imagina no tocante ao aspecto sentimental do ativo
digital do usuário, ainda que se ocorra o evento morte daquele, alguns direitos têm
proteção jurídica post mortem, incluídas, a privacidade e intimidade do usuário. Cabe,
então, ao titular da conta digital definir ou não se determinada pessoa poderá ter acesso
aos seus conteúdos produzidos e compartilhados ao longo dos anos. E aqui, o
pensamento mais coerente em relação aos bens digitais sem valoração econômica é
prestigiar e respeitar a expressão de última vontade do de cujus, caso contrário não
poderão os herdeiros pleitear a posse dos arquivos pessoais deixados pelo de cujus, sob
pena de violação à intimidade e privacidade daquele.
Como será visto na sequência deste trabalho, caso específico dos variados e
possíveis problemas vinculados aos ativos digitais quando o usuário/titular da conta
virtual vier a falecer ou se tornar incapaz é o caso, por exemplo, da influenciadora digital
Nara Almeida falecida no último dia 21 de maio de 2018 acometida por um câncer raro
de estômago.
b) Mídia Social Instagram – A eternização do ser físico
Revista Veja em recente reportagem sobre a modelo Nara Almeida, assim
anunciou: “Morte ao Vivo” – A bela modelo Nara Almeida virou fenômeno ao
compartilhar no Instagram, por 9 meses, sua luta – perdida – contra um câncer.15
Nara recebeu o diagnóstico do tumor raro em agosto de 2017. À época como
divulgadora de moda, influenciadora digital, somava 400.000 (quatrocentos mil)
seguidores. O aumento do numero de seus seguidores se deu de forma exponencial
(4,4M)16 quando esta compartilhava fotos e notícias sobre o seu tratamento contra o
câncer. E com isso, os atores sociais sensibilizados reagiam com carinho e apoio a cada
novo post publicado. Nara por sua vez se sentia acolhida com as mensagens de carinho,
nunca, portanto, se sentido só.
O caso da influenciadora digital Nara Almeida revelou a identidade física que se
transformou em virtual, a coexistência entre o corpo físico e o digital. E aqui, importante
destacar mais do que os aspectos econômicos das publicações (ativos digitais) da usuária
Nara Almeida, já que esta faturava em média R$ 30.000 (trinta mil reais) por mês em
contratos com confecções de São Paulo/SP, houvera, também, o aspecto sentimental de
NERY JÚNIOR, Nelson. Soluções práticas de direito: Direito Civil – Parte Geral –
Responsabilidade Civil / Nelson Nery Júnior. 2ª. Ed. Rev. Atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2014. – (Soluções práticas de direito; v. 6), Volume VI, p. 253.
15 BATISTA. João Júnior. A morte ao vivo. “Revista Veja”. Edição 2568. Editora ABRIL. 30 de maio
de 2018. Acesso em 02 de julho de 2018.
16 Disponível em: <https://www.instagram.com/almeidanara/>. Acesso em 02 de julho de 2018.
14
349
José Emiliano Paes Landim Neto
seus bens digitais. São as suas fotos que, hoje, ainda causam lembranças, saudades,
emoções e os momentos de luta vividos ao lado de amigos, familiares e por que não,
também, os relacionamentos virtuais construídos. Nessa perspectiva Bruno Zampier
exemplifica o alcance dos ativos digitais sentimentais pelos familiares, vejamos:
“Se o titular falece, ou se torna incapaz, sem manifestar sua vontade quanto ao
destino dos bens digitais, entende-se que a regra deva ser a vedação ao acesso aos bens
digitais existenciais. Será possível, entretanto, a sucessão daqueles com caráter
patrimonial. Todavia, quanto aos primeiros, poderá ser permitido o acesso aos
familiares, pontualmente, a partir da análise judicial que reconheça a presença de uma
justificativa relevante, devendo a decisão evitar que a intimidade de terceiros seja
igualmente aplicada”.
Assim, as pessoas costumam ser lembradas pelo o que fizeram e não pelo o que
acumularam. É o ativo digital sentimental cada vez mais presente e importante para não
só os usuários que construíram os seus legados digitais, mas, também, para amigos e
familiares.
2) Conclusões.
O artigo visou apresentar um panorama geral dos novos desafios da sociedade da
informação, notadamente os impactos jurídicos dos ativos digitais sentimentais e/ou
econômicos. Não há como se definir atualmente, uma resposta sobre qual será o destino
dos bens digitais no Brasil, mas obviamente uma legislação se faz necessária para regular
direitos e obrigações para usuários, sucessores, inventariantes, curadores, provedores
para se evitar e prevenir conflitos futuros.
Por fim, é possível se concluir que tudo o que produzimos no contexto digital
(bens digitais/ ativos digitais / digital assets/digital property) vão além de nossa
existência. É por essa razão, que o destino dos bens digitais não deveria ser ignorado
pelos titulares de contas virtuais.
REFERÊNCIAS
Disponível em: <https://wearesocial.com/blog/2018/01/global-digital-report-2018>.
Acesso em: 29 de março de 2018.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/McAfee>. Acesso em: 02 julho de 2018.
Disponível em: <http://www.thedigitalbeyond.com/2014/07/how-much-are-yourdigital-assets-worth-about-35000/>. Acesso em: 02 julho de 2018.
Disponível em: <https://www.instagram.com/almeidanara/>. Acesso em 02 de julho de
2018.
350
Legado digital
GABRIEL, Martha. Você, eu e os robôs: pequeno manual do mundo digital. 1ª edição.
São Paulo: Atlas, 2018.
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BONDAN, Heloisa Korb; BERGER, Luiz Marcelo. Governança na internet:
consequências jurídicas e institucionais do poder tecnológico. In: FERNANDES,
Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA, Henrique Araújo; CARVALHO, Angelo
Gamba Prata de (Coord.). Tecnologia jurídica e direito digital: I Congresso
Internacional de Direito e Tecnologia – 2017. 1ª edição. Belo Horizonte: Fórum,
2018.
NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado, 8ª.
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NERY JÚNIOR, Nelson. Soluções práticas de direito: Direito Civil – Parte Geral –
Responsabilidade Civil / Nelson Nery Júnior. 2ª. Ed. Rev. Atual. e ampl. – São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. – (Soluções práticas de direito; v. 6),
Volume VI, p. 253.
HUBMANN, Heinrich. Das Persönlichkeitsrecht, 2. Auflage, Köln: Böhlau Verlag, 1967.
351
DA IMPROPRIEDADE DOS EMBARGOS COMO
MEIO DE DEFESA DO CÔNJUGE NO ÂMBITO DA
EXECUÇÃO FISCAL
Miguel de Antas de Barros1
Patrícia Anjos Azevedo2
1) Introdução
No âmbito do processo de execução fiscal, que é um processo de natureza judicial,
cujos atos sem natureza jurisdicional são praticados pelos órgãos da administração
tributária (art.º 103.º da Lei Geral Tributária - LGT), assume importância preponderante
a salvaguarda dos direitos patrimoniais do cônjuge que não deva assumir o papel de
executado.
Os embargos de terceiro são um meio processual destinado à defesa dos direitos
e bens de terceiros que não são partes na causa – art.º 342.º, n.º 1 do CPC (Código de
Processo Civil). Através deste meio podem ser assegurados os direitos de quem for
ofendido na sua posse ou de qualquer outro direito real sobre um bem, por um ato de
arresto, penhora ou outro ato judicial de apreensão ou entrega de bens, que se traduza
num ato de agressão patrimonial (art.ºs 167.° e 237.° e ss do CPPT – Código de
Procedimento e de Processo Tributário).
A tramitação do incidente dos embargos rege-se pelos preceitos relativos à
oposição judicial, podendo o órgão da execução fiscal pronunciar-se sobre o mérito da
oposição e revogar o ato que lhe tenha dado fundamento (art.º 208.º, n.º 2 do CPPT). A
decisão proferida constitui caso julgado no processo de execução fiscal quanto à
existência e titularidade dos direitos invocados por embargante e embargado (art.º 238.º
do CPPT).
Caberá aqui, também, salientar, porque muito relevante, que os embargos de
terceiro têm efeito suspensivo da execução fiscal em relação aos bens que sejam alvo de
incidente, sem prejuízo da sua prossecução na parte restante.
Mas delimitando a análise a que nos dedicaremos, encontram-se em causa
situações de dívidas fiscais incomunicáveis (art.ºs 22.º, n.º 3 da LGT e 1692.º do CC3),
mas cujos atos da execução, nomeadamente a penhora, são suscetíveis de ofender a
1 Licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto.Pós-Graduado em Justiça
Administrativa pelo CEDIPRE – Universidade de Coimbra.Assistente Convidado no IPMAIA.Advogado.
2 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Auxiliar
Convidada no ISMAI. Professora Adjunta Convidada no IPMAIA. Membro da Comissão Científica do N2i –
Núcleo de Investigação do IPMAIA. Investigadora do I2J (Instituto de Investigação Jurídica) da Faculdade
de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Membro efetivo do CEOS.PP (Centro de
Estudos Organizacionais e Sociais do Politécnico do Porto). Advogada. Juiz-Árbitro CAAD (Direito
Administrativo).
3 Código Civil.
Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo
esfera patrimonial do cônjuge, particularmente no tocante a bens imóveis ou móveis
sujeitos a registo.
Não estão, pois, em causa as situações em que a dívida fiscal dada à execução se
trata de uma dívida comum dos cônjuges (art.ºs 22.º da LGT e 1691.º do CC), uma vez
que nessas situações, o cônjuge há-de ser havido como executado e como tal citado para
a execução, ainda que não figure do título executivo original.
Porém, não assumindo o cônjuge a posição de executado, por se tratar de uma
dívida própria do outro, não são poucas as situações em que é erradamente presumida a
sua posição como de “terceiro” em face da execução, ilação que, contrariamente ao
processo civil (art.º 343.º do CPC4) não encontra suporte na legislação adjetiva
tributária.
2) A condição de terceiro – delimitação
A posição de “terceiro” em sede de execução fiscal é uma condição preliminar
para a dedução de embargos (art.ºs 167.º e 237.º do CPPT5). Uma condição de
admissibilidade do recurso a este meio processual e, portanto, uma condição para o seu
recebimento e já não para o seu deferimento, que há-de depender da prova de um
conjunto mais alargado de factos que extravasam o alheamento do sujeito da causa,
mormente factos que incidem sobre a relação substantiva entre este e os bens afetados
pela diligência e cujo tratamento não encontra aqui utilidade.
A lei tributária não nos faculta uma definição precisa de terceiro, tendo cabido à
doutrina e à jurisprudência desempenhar esse papel. Como resultado, é abundante a
jurisprudência dos tribunais comuns, bem como dos tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal, de que não deve ser reconhecida a qualidade de terceiro a quem
for parte na causa, pelo que todos os sujeitos que o forem carecem de legitimidade ativa
para dedução de embargos de terceiro.
Coloca-se assim a questão de saber quem é que, vendo o seu património afetado
pela diligência de execução, não é parte na causa, sendo claro que a questão se coloca do
lado do executado, que é o sujeito passivo uma vez que a parte ativa do processo de
execução fiscal é correspondente à posição do exequente e, portanto, à administração
tributária.
Discorrendo sobre várias hipóteses, saltam à vista as situações em que pode ser
afetado quem não figure no título como executado ou quem não foi citado para a
execução.
Porém, a resposta a qualquer destas duas hipóteses deverá ser negativa na
determinação da qualificação como terceiro para afigurar a sua legitimidade ativa para a
4
5
Código de Processo Civil.
Código de Procedimento e de Processo Tributário.
354
Da impropriedade dos embargos como meio de defesa...
dedução de embargos. Logo à partida, porque o cônjuge devedor, no caso de dívidas
fiscais comunicáveis, não figurando no título original, é sujeito passivo da execução
fiscal, devendo ser citado para a execução como devedor solidário que é da obrigação
tributária incumprida pelo sujeito passivo da relação tributária. A esta situação devemos
acrescentar a dos devedores subsidiários que, não figurando igualmente no título,
poderão chamados a responder pela dívida por meio do instrumento da reversão (cfr.
art.ºs 157.º a 161.º do CPPT), que mais não é do que o mecanismo que determina a
responsabilização de uma determinada pessoa, a título subsidiário, pelas dívidas
tributárias de outrem, como é o caso dos gerentes e administradores em geral, que
tenham concorrido com culpa factual (ainda que presumida) para a insuficiência dos
bens do devedor original para garantia e pagamento da obrigação tributária em falta
(art.º 24.º da LGT).
Quanto aos que não foram citados para a execução, a análise há-de
necessariamente passar pela apreciação de se tratar ou não da uma situação de omissão
de um ato processual, que pode configurar uma irregularidade, mas também uma
nulidade processual (art.º 165.º do CPPT).6
Aqui chegados, aviva-se-nos na memória um clássico de John Le Carré, no qual
a trama se desenrola à volta da criação de uma lista de perguntas que, parecendo
instrumental, se vem a revelar substancial, precisamente porque é dela que é possível
retirar o sentido das respostas. Isso é, saber colocar a pergunta significa que o intérprete
já está no caminho da resposta.
Regressemos, então, ao que nos diz o código de processo civil sobre o assunto,
visto tratar-se da legislação subsidiária processo judicial tributário – art.º 2.º, alínea e)
do CPPT. Prescreve o já aludido art.º 342.º do CPC que o terceiro para efeito de dedução
de embargos é “quem não for parte na causa”.
Assim sendo e sempre sem perder de vista o que vem de se dizer, o conceito de
terceiro deve ser integrado por exclusão, caminho que nos é indicado pelo legislador, ao
definir o terceiro como aquele que não é.
Vejamos, então, os conceitos de “parte” e de “causa” para efeito deste comando
legal. Como o conceito de parte não é o mesmo em toda e qualquer causa, debrucemonos sobre qual é a “causa” que o legislador teve em mente na determinação do conceito
de terceiro.
Sempre com recurso à norma, “causa” aparenta ser aqui a relação jurídicoprocessual que serviu de base ao ordenamento da diligência ofensiva da posse ou de
outro direito real, mormente a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de
apreensão ou entrega de bens.
Em regra, esta coincidirá com a relação jurídica executiva, mas também, como
acabámos de ver, esta simplicidade esquemática é meramente aparente, ficando por
6
Acórdão STA de 24-05-2016, Proc. n.º 0365/16
355
Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo
revelar as cores que dão forma a todo o quadro.
Importa, então, ter presente que pode ser executado quem não figura no título,
como pode a execução prosseguir contra quem não tenha sido citado, bastando para
tanto reparar que, em execução fiscal, a falta de citação só constitui nulidade insanável
quando possa prejudicar a defesa do citando – art.º 165.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.
Assim, cremos ser forçados a concluir que o conceito de “parte” e de “terceiro”
não advém do título, nem advém necessariamente do ato de citação (quando não exista).
Por outro lado, já vimos que não interessa propriamente quem (formalmente) foi
nomeado como tal na execução, mas quem (materialmente) o deva ser em face dos atos
executivos que culminaram na apreensão. Assim sendo, parece que o entendimento
correto passará por que apenas integram o conceito de “terceiro” aqueles que não tendo
sido citados como executado, também não deva ser citado como tal face a tais atos
executivos.
3) A situação do cônjuge do executado
Como decorre naturalmente do supra exposto, não é essa a situação do cônjuge
do executado na esmagadora maioria das situações que se deparam ao intérprete,
devendo, porém, salvaguardar-se aqui, por razões de rigor expositivo, que em certas
circunstâncias o cônjuge (aquele que o é pelo menos formalmente) não sendo citado,
nem devendo sê-lo, pode lançar mão dos embargos de terceiro.7
Mas sucede que o CPPT, por um lado, prevê a citação obrigatória do cônjuge do
executado sempre que a penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a
registo (art.º 239.º do CPPT), caso em que poderá passar a exercer, no processo, os
direitos que a lei confere ao executado, e por outro, quando a penhora incida sobre bens
comuns, apesar de a dívida ser da responsabilidade apenas de um dos cônjuges, o
cônjuge deverá ser citado para intentar a ação de separação judicial de bens ou, caso já o
tenha feito, fazer disso prova no processo (art.ºs 220.º do CPPT e 1767.º do CC).
Pelo que, para aferir se tem a qualidade de terceiro, o cônjuge do executado deve
começar por consultar o ato de apreensão e indagar sobre a natureza dos bens
apreendidos: se estiver em causa imóvel ou móvel sujeito a registo, não pode embargar
de terceiro, podendo reclamar do ato de penhora ou da falta de citação, recorrendo para
o efeito ao meio processual a que aludem os art.ºs 276.º e seguintes do Código de
Procedimento e de Processo Tributário.
Daqui decorre que o cônjuge, porque citado, não assumirá a posição de terceiro
(art.º 97.º da LGT), ficando, contudo, a sua situação a coberto do direito de reclamação
(art.º 276.º do CPPT) para fazer face aos atos que ilegalmente ofendam o seu património
7 Como poderia ser o caso do cônjuge separado de pessoas e bens após a partilha do património
conjugal (1795º-A do CC). Acórdão STA de 9-11-2016 Proc. n.º 0972/16
356
Da impropriedade dos embargos como meio de defesa...
e não só, como demonstraremos em seguida.
a) O cônjuge citado no âmbito do artigo 239.º do CPPT
Prescreve o art.º 239º do CPPT que “feita a penhora e junta a certidão de ónus,
serão citados os credores com garantia real, relativamente aos bens penhorados, e o
cônjuge do executado no caso previsto no artigo 220.º ou quando a
penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, sem o
que a execução não prosseguirá” (destacado nosso)8.
Esta citação destina-se a chamar o cônjuge do executado a intervir na própria
execução fiscal, como se do executado se tratasse, passando aí exercer no processo os
mesmos direitos que o executado poderia exercer, a par deste ou sem o seu
consentimento.
Portanto, a sua possibilidade de intervenção processual, na sequência desta
modalidade de citação, não se encontra limitada à possibilidade de requerer a separação
judicial de bens, mas antes confere ao cônjuge do executado os mesmos direitos e
prerrogativas de que se poderia fazer valer o executado. 9
Com efeito, embora no caso previsto no art.º 220.º do CPPT (de cujo pormenor
se tratará mais à frente) a citação se destine apenas e especificamente a possibilitar ao
cônjuge requerer a separação de bens, já nos restantes casos (em que estejam em causa
bens imóveis e bens móveis sujeitos a registo), a citação confere-lhe a qualidade de coexecutado, com acesso ao cardápio de direitos processuais que são atribuídos ao seu
cônjuge e que passam pela possibilidade de reclamar das decisões do órgão de execução
fiscal para o tribunal administrativo e fiscal de primeira instância.
De acordo com o art.º 103.°, n.° 2 da LGT, é garantido aos interessados o direito
de reclamação para o juiz dos atos praticados pelo órgão da execução fiscal. Esta
reclamação encontra-se prevista no art.º 276.º do CPPT. As decisões proferidas pelo
órgão da execução fiscal que afetem os direitos e interesses legítimos do executado
podem ser objeto de uma reclamação junto do tribunal tributário, nos termos do art.º
276.º do CPPT.
Por exemplo, o cônjuge entende que foi afetado por excesso da penhora ou por
terem sido penhorados bens que não o podiam ter sido (por serem seus bens próprios e
a dívida não ser comum) ou entende que não pode ter sido considerado como citado no
8 Para maiores desenvolvimentos sobre as formalidades do processo de execução fiscal, entre outras
especificidades, cfr. os seguintes contributos: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do
Procedimento Tributário, Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento
administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo
Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017;
ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição,
2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado,
Vol. I, Áreas Editora, 2011.
9 Acórdãos STA de 23-06-2004 Proc. n° 1786/03; 25-10-2007 Proc. n° 626/07; 29-11-2006 Proc.
n° 174/06; 25.11.2009 Proc. n° 1123/09; 19-01-2011 Proc. n° 842/10
357
Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo
processo de execução fiscal por ter sido citado um terceiro e assim não ter tido
conhecimento do conteúdo da mesma10. O mesmo sucede no caso de omissões praticadas
pela AT no âmbito do processo de execução fiscal, designadamente a omissão de citação.
Estas reclamações são tramitadas de acordo com as regras aplicáveis aos
processos urgentes, tendo a sua apreciação prioridade sobre quaisquer processos que
devam ser apreciados no Tribunal e que não tenham esse caráter (cfr. n.º 6 do art.º 278.º
do CPPT).
A reclamação, embora seja dirigida ao tribunal tributário de primeira instância
(que estão hoje agregados aos tribunais administrativos de círculo e assumem a
designação de tribunais administrativos e fiscais), é apresentada no prazo de 10 dias após
a notificação da decisão objeto de reclamação, no órgão da execução fiscal (serviço de
finanças da área do domicílio ou sede do executado), que pode revogar o ato no mesmo
prazo, sendo que a reclamação em causa deverá indicar expressamente os fundamentos
e as conclusões (cfr. art.º 277.°, n.ºs 1 e 2 do CPPT). Esta reclamação segue a tramitação
dos processos urgentes. A reclamação, depois de subir ao tribunal, deve ser decidida no
prazo de 90 dias, nos termos do art.º 128.º, n.º 1 do CPA.11
Antes do conhecimento das reclamações, será notificado o representante da
Fazenda Pública para responder no prazo de 8 dias, ouvido o representante do Ministério
Público, que se pronunciará no mesmo prazo (art.º 278.º, n.° 2 do CPPT).
Em princípio tal reclamação deverá subir ao tribunal, a final, após a realização
das fases da penhora e venda (caso de subida diferida). Neste caso, a reclamação não se
encontraria sujeita a qualquer efeito suspensivo (cfr. art.º 278.º, n.º 1 do CPPT).
Diferentemente, nos casos de subida imediata, a reclamação adquire caráter de
urgência (art.º 278.º, n.º 6 do CPPT). A decisão objeto de reclamação terá efeito
suspensivo em caso de prejuízo irreparável, o que se verifica nas situações em que o
cônjuge pretenda arguir a inadmissibilidade da penhora dos bens; a imediata penhora
dos bens que apenas subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; a incidência
sobre bens que, não respondendo pela dívida exequenda, não deviam ter sido abrangidos
pela diligência; prestação de garantia indevida ou superior à devida; e erro na verificação
ou graduação de créditos – cfr. alíneas a) a e) do n.º 3 do art.º 278.º do CPPT.
A subida da reclamação processa-se por apenso ao processo de execução fiscal
[cfr. art.º 101.º, alínea d) da LGT e art.º 97.º, n.º 1, alínea n) do CPPT].
A reclamação da decisão do órgão da execução fiscal não se trata de um
verdadeiro recurso jurisdicional, nem de um recurso contencioso, mas sim de um
instrumento de controlo jurisdicional de um ato praticado por um órgão administrativo
(daí reclamação), suscetível de afetar os direitos ou interesses do executado. A sentença
proferida pelo juiz no âmbito desta reclamação é suscetível de recurso jurisdicional, nos
10
Cfr. MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014, p.
11
Código do Procedimento Administrativo.
346.
358
Da impropriedade dos embargos como meio de defesa...
termos dos art.ºs 279.º e ss do CPPT. Após o trânsito em julgado da decisão da
reclamação, o processo que tiver subido ao tribunal tributário de primeira instância em
virtude da reclamação da decisão do órgão da execução fiscal para verificação e
graduação de créditos, deve ser devolvido ao órgão de execução fiscal, nos termos do art.º
247.º do CPPT.
Este meio processual é utilizado nos casos em que não seja adequado o recurso à
oposição à execução (faculdade que presentemente o Supremo Tribunal Administrativo
também vem reconhecendo ao cônjuge). Esta reclamação das decisões do órgão da
execução fiscal ou de outra entidade da AT visa apreciar, nomeadamente, situações de
indeferimento da arguição de nulidade por falta de citação, indeferimento do pedido de
pagamento em prestações, indeferimento de dação em pagamento, indeferimento de
compensação de créditos, indeferimento de isenção de garantia, decisão de determinação
de garantia de valor superior ao devido, decisão da verificação e graduação de créditos,
indeferimento da anulação da venda dos bens e indeferimento da prescrição da dívida12.
A reclamação em causa é integrada no processo de execução fiscal, não dando
origem a qualquer processo autónomo, salvo se subir de imediato para o tribunal
tributário, em que a reclamação é apensada ao processo de execução fiscal, nos termos
dos art.ºs 278.º, n.º 5 e 97.º, n.º 1, alínea n), ambos do CPPT. A subida imediata é
acompanhada de cópia autenticada, pela AT, do processo principal – cfr. art.º 278.º, n.º
5 do CPPT.
Compete ao órgão da execução fiscal decidir a subida imediata ou não da
reclamação ao tribunal, em função do prejuízo irreparável ou da utilidade da decisão
judicial. Este prejuízo deve ser invocado pelo reclamante, caso contrário compete ao
órgão da execução fiscal decidir da subida imediata ao tribunal ou apenas a final,
conforme dispõe o art.º 278.º, n.º 1 do CPPT.
Esta reclamação não apresenta efeito suspensivo, salvo se o contribuinte prestar
garantia, nos termos do art.º 199.º do CPPT, sendo que se estiver em causa a reclamação
contra ao ato de penhora, pelas razões já apontadas, a reclamação terá efeito suspensivo
relativamente aos bens abrangidos, pela razão do prejuízo irreparável das diligências de
venda dos bens.
Ademais, como se aflorou, dizer que esta modalidade de citação confere ao
cônjuge os mesmos direitos processuais de que o executado pode lançar mão, significa
que o mesmo poderá deduzir oposição à execução, desde que os factos que alegue se
enquadrem nas previsões do artigo 204º, a que se dá particular destaque a possibilidade
de arguir a sua própria ilegitimidade para ser sujeito da execução – n.º 1 alínea b).13
12 Neste sentido, MARTINS, Jesuíno Alcântara e ALVES, José Costa, Procedimento e Processo
Tributário – Uma perspectiva prática, Almedina, 2015, pp. 388-389.
13 Acórdão STA 15-02-2017 Proc. n.º 0142/15; 27-06-2012 Proc. n.º 0316/12 – neste último acórdão
foi admitida a convolação da petição erradamente enquadrada como de embargos de terceiro em oposição à
execução, na qual o cônjuge, arguida a sua ilegitimidade para figurar na execução por a dívida tributárias ser
própria do outro cônjuge e, portanto, incomunicável.
359
Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo
A oposição deve ser deduzida em 30 dias a contar da citação pessoal ou, não a
tendo havido, da primeira penhora ou, também, da data em que tiver ocorrido o facto
superveniente ou do conhecimento pelo executado (203.º do CPPT). A oposição terá
efeito suspensivo nos casos em que tenha sido prestada caução (210.º e 167.º do CPPT),
para o que o cônjuge disporá de 15 dias após a dedução da oposição.
A oposição é dirigida ao tribunal a primeira instância mas, como a reclamação
remetida ao órgão da execução fiscal onde corre o processo, que disporá de 20 dias para
a remeter ao tribunal, contados após a sua autuação (art.ºs 208.º a 210.º). Uma vez
recebida pelo Tribunal, é a Fazenda notificada para se pronunciar em 30 dias.
b) O cônjuge citado no âmbito do artigo 220.º do CPPT
Estatui o art.º 220º do CPPT que “a execução para cobrança de coima fiscal ou
com fundamento em responsabilidade tributária exclusiva de um dos cônjuges, podem
ser imediatamente penhorados bens comuns, devendo, neste caso, citar-se o outro
cônjuge para requerer a separação judicial de bens, prosseguindo a execução sobre os
bens penhorados se a separação não for requerida no prazo de 30 dias ou se se
suspender a instância por inércia ou negligência do requerente em promover os seus
termos processuais.”
O processo de separação judicial de bens ou de simples separação judicial de bens,
como o define o Código Civil (art.º 1767.º), é um processo litigioso, intentado por um dos
cônjuges contra o outro (art.º 1768º do CC) “quando estiver em perigo de perder o que
é seu pela má administração do outro cônjuge”, especificamente neste caso, quando está
na iminência de perder a sua parte nos bens comuns, por via das dívidas tributárias de
que apenas é responsável o outro cônjuge.
Não tem efeitos sobre o estado civil dos cônjuges, que permanecem no estado de
casados e não separados de pessoas (que vem a ser um regime intermédio previsto no
Código Civil de 1966 para dar resposta à impossibilidade de divórcio dos católicos
prevista na Concordata de 1940, mas que se manteve em vigor após a reforma de 1977, e
que pode terminar em divórcio ou na reconciliação dos cônjuges).
A simples separação de pessoas apenas efeitos sobre o regime de bens do
casamento, sendo que após o seu decretamento passará a vigorar entre os cônjuges o
regime da separação de bens (art.ºs 1770.º e 1735.º, ambos do CC), sendo irrevogável
(art.º 1771.º).
Por não se incluir em nenhuma das previsões do n.º 1 do art.º 122.º da LOSJ 14,
tratando-se de um processo de natureza patrimonial e não de um processo de jurisdição
voluntária, deve ser intentado sob a forma de processo comum, num tribunal de
jurisdição cível, carecendo os tribunais de família de competência para a sua
14
Lei da Organização do Sistema Judiciário
360
Da impropriedade dos embargos como meio de defesa...
tramitação15.
Por outro lado, o cônjuge afetado, de forma a dar cumprimento ao disposto no
comando do art.º 220.º do CPPT e assim validamente proceder à separação do seu
património, salvaguardando a sua meação no património comum da penhora ou outra
diligência que o afete, deve imperativamente recorrer a esta forma, sendo insuficiente
requerer o divórcio ou a separação de pessoas e bens pelas vias não litigiosas,
nomeadamente junto da Conservatória do Registo Civil e procedendo a uma partilha
amigável no meso ato ou, posteriormente, junto de um cartório notarial. Assim
procedendo, não estão reunidos os pressupostos para o levantamento da penhora
anterior ao registo da partilha amigável, devendo a execução prosseguir contra tais bens,
até à venda.16
c) O cônjuge não citado
A propósito da citação e da falta dela, para intervir como parte no processo de
execução fiscal, diz o art.º 165.º do CPPT, que versa sobre o regime das nulidades no
âmbito do processo judicial tributário:
“1 - São nulidades insanáveis em processo de execução fiscal:
a) A falta de citação, quando possa prejudicar a defesa do interessado;
b) A falta de requisitos essenciais do título executivo, quando não puder ser
suprida por prova documental.
2 - As nulidades dos actos têm por efeito a anulação dos termos subsequentes do
processo que deles dependam absolutamente, aproveitando-se as peças úteis ao
apuramento dos factos.
3 - Se o respectivo representante tiver sido citado, a nulidade por falta de citação
do inabilitado por prodigalidade só invalidará os actos posteriores à penhora.
4 - As nulidades mencionadas são de conhecimento oficioso e podem ser
arguidas até ao trânsito em julgado da decisão final.”
Destacando o comando ínsito na alínea a) do número 1, a citação apenas conduz
à nulidade do ato quando prejudicar a defesa do interessado, pelo que a jurisprudência
vem distinguindo as situações em que existe uma omissão formal da citação, as o cônjuge
teve conhecimento efetivo da execução, dos seus termos ou de atos essenciais ao
desenrolar do processo executivo, como da penhora, de outras situações em que a
citação, devida nos termos do art.º 239.º, por a penhora ter incidido sobre bens imóveis
ou bens moveis sujeitos a registo, ou nos termos do art.º 220.º, para que o cônjuge
proceda à propositura da ação de separação judicial de bens, não foi efetivamente
15
16
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 13-07-2016, Proc. n.º 28733-15.0T8LSB.L1.-2
Acórdão STA 02-04-2014 Proc. n.º 0213/14
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Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo
dirigida ao cônjuge.
Ora, enquanto num caso que se enquadra na primeira das hipóteses, o Supremo
Tribunal Administrativo decidiu que “a omissão da citação da Recorrente nos termos e
para os efeitos do artº 302º do C.P.T. (actual 220º do C.P.P.T.) em nada prejudicou a
defesa dos interesses da Recorrente, inexistindo a alegada nulidade prevista no artº
165º nº 1 al. a) do C.P.P.T.”17 salientando com veemência que a cônjuge havia tido
conhecimento da penhora até porque era a fiel depositária do imóvel penhorado e depois
objeto de venda, noutros em que estava em causa uma efetiva omissão de citação, fosse
a prevista para a separação de património, fosse a referente ao art.º 239.º do CPPT , o
mesmo tribunal vem decidindo pela declaração de nulidade de todo o processado após
ao ato omitido, ordenado a sua repetição, uma vez que se perspetiva esta falta como
violadora do núcleo essencial de direitos do cônjuge, tanto mais que no caso do art.º
239.º, a sua citação lhe permitiria vestir a pele de co-executado, exercendo no processo
os mesmos direitos que o executado poderia exercer.18
4) Conclusão
Este contributo não pretendeu tratar exaustivamente todas as possibilidade que
se abrem através do chamamento (ou não) e em face das várias modalidades de
intervenção do cônjuge no âmbito do processo executivo de natureza tributária, seja ele
ou não co-devedor (mas sobretudo quando não o é), mas antes um constatar de
perplexidades iniciais que se abriram perante o enquadramento que os tribunais
superiores da jurisdição administrativa e fiscal vêm dando a esta matéria e dos alertas
que suscitam algumas das subtilezas que a forma do processo tributário encerra, quando
em confronto com mecanismos paralelos, mas de soluções diferentes que o legislador
reservou para o direito civil adjetivo.
A urgência da desambiguação proposta no presente contributo sobe de tom pela
constatação da diferente medida de prazos facultados ao interessado para se socorrer dos
mecanismos previstos, o que pode, quando acionados de forma desacertada tornar-se
um fator impeditivo da convolação do processo no meio adequado (art.º 98.º, n.º 4 do
CPPT).
REFERÊNCIAS
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Acórdão STA de 14-09-2016 Proc. n.º 0971/16
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