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DESIGUALDADE AMBIENTAL: MUDANÇAS CLIMÁTICAS E FLUXO MIGRATÓRIO

2018, ATUALIDADES NA CIÊNCIA JURÍDICA: INTERCÂMBIO IBERO-AMERICANO

O método utilizado para a realização do trabalho foi dedutivo. Os procedimentos técnicos utilizados na pesquisa para coleta de dados foram a pesquisa bibliográfica e doutrinária. Partindo do pressuposto que a proteção jurídica é um direito humano, o objetivo principal deste estudo é demonstrar a importância do reconhecimento jurídico da desigualdade ambiental para proteção dos migrantes ambientais. Busca-se demonstrar a aplicação do princípio pro homine como mecanismo aplicável diante da ausência de um tratamento específico no cenário local, regional e internacional. A intensificação do fluxo migratório pode ser devida tanto à interferência antrópica no meio ambiente quanto aos efeitos das mudanças climáticas que independem do fator antropogênico. Sabe-se, também, que a mudança e a variabilidade climáticas têm causa direta não apenas nos ciclos naturais geofísicos como também são desencadeadas diretamente pelo uso indiscriminado de compostos químicos danosos à natureza que, consequentemente, acabam por dificultar ou impossibilitar a própria permanência humana em determinados locais do planeta. Da mesma forma, a crescente escassez de recursos naturais e a intensificação dos eventos climáticos extremos têm provocado situações das mais diversas sobre a sociedade e a natureza, incluindo a migração em massa de pessoas que, muitas vezes, se deslocam para fora do seu país de origem em busca de proteção contra esses eventos naturais extremos. PALAVRAS-CHAVE: Desigualdade ambiental; Mudanças climáticas; Fluxo migratório; Princípio pro homine; Migrantes ambientais.

Instituto Politécnico da Maia ATUALIDADES NA CIÊNCIA JURÍDICA: INTERCÂMBIO IBERO-AMERICANO Editores Maria do Rosário Anjos Patrícia Anjos Azevedo Rubén Miranda Gonçalves Fábio da Silva Veiga INSTITUTO IBEROAMERICANO DE ESTUDOS JURÍDICOS ATUALIDADES NA CIÊNCIA JURÍDICA: INTERCÂMBIO IBEROAMERICANO Editores Maria do Rosário Anjos Patrícia Anjos Azevedo Rubén Miranda Gonçalves Fábio da Silva Veiga Instituto Politécnico da Maia – IPMAIA Todos os direitos reservados aos editores da obra. Nenhuma parte da obra poderá ser reproduzida sem o consentimento expresso dos editores. Os editores não são responsáveis pelas opiniões, comentários ou manifestações dos autores representadas nos respectivos artigos. ©Maria do Rosário Anjos (Editora) ©Patrícia Anjos Azevedo (Editora) © Rubén Miranda Gonçalves (Editor) © Fábio da Silva Veiga (Editor) ©Instituto Politécnico da Maia © Os autores, pelos capítulos Ficha Técnica Título Atualidades na Ciência Jurídia: Intercâmbio Iberoamericano Autores Vários Editores Maria do Rosário Anjos; Patrícia Anjos Azevedo; Rubén Miranda Gonçalves; Fábio da Silva Veiga Edição Edições ISMAI N2i – Núcleo de Investigação do Instituto Politécnico da Maia 1ª edição: 2018 ISBN 978-989-54271-2-3 CONSELHO CIENTÍFICO Antonio Tirso Ester Sánchez (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria) Armando Luiz Rovai (PUC-SP/Mackenzie) Augusto Jobim do Amaral (P. Universidade Católica do Rio Grande do Sul) Catarina Santos Botelho (Universidade Católica Portuguesa, Portugal) Denise Fincato ((Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) Emilia Santana Ramos (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria) Érica Guerra da Silva (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Fábio da Silva Veiga (IBEROJUR/Universidad Europea de Madrid /UAH) Gabriel Martín Rodríguez (Universidad Europea de Madrid) Gilberto Atencio Valladares (Universidad de Santiago de Compostela) Heron Gordilho (Universidade Federal da Bahia) Irene Patrícia Nohara (Universidade Presbiteriana Mackenzie) Jaime Aneiros Pereira (Universidad de Vigo) Jose Gabriel Assis de Almeida (UNIRIO, Brasil) Julio Álvarez Rubio (Universidad de Cantabria) Laura Miraut Martín (Universidad de Las Palmas de Gran Canaria) Lorenzo Mateo Bujosa (Universidad de Salamanca) Lotario Vilaboy Lois (ISMAI/IPMAIA) Marco Aurélio Gumieri Valério (Universidade de São Paulo) Marcos Augusto Perez (Universidade de São Paulo) Margareth Vetis Zaganelli (Universidade Federal do Espírito Santo) Maria Cruz Barreiro Carril (Universidad de Vigo) Maria João Mimoso (UPT/IPMAIA) Maria do Rosário Anjos (IPMAIA) Pablo Fernández Carballo-Calero (Universidad de Vigo) Patrícia Anjos Azevedo (ISMAI/IPMAIA) Pedro Avzaradel (Universidade Federal Fluminense) Ricardo Gavilán (Universidad Nacional de Asunción) Rodrigo Poyanco (U. de los Andes, Chile) 4 Conselho Científico Rubén Miranda Gonçalves (Universidad de Santiago de Compostela) Salvador Tomás Tomás (Universidad de Murcia) Samuel Rodríguez Ferrández (Universidad de Murcia) Sebastién Kiwonghi Bizawu (Escola de Direito Dom Helder) Sónia de Carvalho (UPT/IPMAIA) Vânia Aieta (Universidade do Estado do Rio de Janeir0) Zélia Luiza Pierdoná (Universidade Presbiteriana Mackenzie) 5 SUMÁRIO EL DERECHO A LA EDUCACIÓN COMO DERECHO HUMANO: ESPECIAL REFERENCIA A LA JURISPRUDENCIA ESPAÑOLA ACTUAL Rubén Miranda Gonçalves .............................................................................................. 11 BREVES NOTAS SOBRE A TRAMITAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL Patrícia Anjos Azevedo ................................................................................................... 23 EXCLUÍDOS PELA GENÔMICA: TESTES GENÉTICOS E TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DO OBREIRO COMO EXPRESSÃO DA DIGNIDADE HUMANA Vivianne Rodrigues de Melo .......................................................................................... 39 UM PROJETO INTERSÉMIÓTICO JURIDICO: SUGESTAO PARA A DEFESA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS INSTITUIÇÔES FRENTE ÀS NOVAS TECNOLOGIAS Maria Christina Napolitano .............................................................................................55 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA? CRIMES CONTRA A VIDA INTRA UTERINA: DA DETERMINAÇÃO DO INÍCIO DO BEM JURÍDICO TUTELADO A SUA PROTEÇÃO Caroline Buarque Leite de Oliveira ................................................................................. 75 O PATRIMÔNIO COMO ELEMENTO OBJETIVO DA INFRAÇÃO PENAL E A INFLUÊNCIA DE SEU RESSARCIMENTO NOS BENEFÍCIOS DO SISTEMA PENAL BRASILEIRO. Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean ................................................... 87 O PAPEL DO MINISTERIO PÚBLICO E A DEFESA DO PLENO EMPREGO PARA IMIGRANTES VULNERÁVEIS Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho ..........................103 A ATUAÇÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS DE ENERGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ANÁLISE COMPARADA ENTRE BRASIL E PORTUGAL Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos ........................... 111 Sumário DIREITOS E DEVERES DOS CONDÓMINOS DE UM PRÉDIO URBANO EM REGIME DE PROPRIEDADE HORIZONTAL Ana Rita Ferreira Araújo ............................................................................................... 131 BREVES NOTAS SOBRE A INSOLVÊNCIA E OS SEUS EFEITOS NAS AÇÕES DECLARATIVAS, EXECUTIVAS E CONVENÇÕES DE ARBITRAGEM Ricardo M. Oliveira ....................................................................................................... 143 A RELAÇÃO ENTRE A RENDA BÁSICA DE CIDADANIA E OS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Thiago Santos Rocha ..................................................................................................... 151 ACORDOS PARASSOCIAIS: INSTRUMENTOS DE GOVERNANÇA E INOVAÇÃO NO SEU CONFRONTO COM OS ESTATUTOS Rita Guimarães Fialho d’ Almeida ................................................................................ 161 DESIGUALDADE AMBIENTAL: MUDANÇAS CLIMÁTICAS E FLUXO MIGRATÓRIO Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil ............................................................... 169 A REVERSÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL CONTRA GERENTES E ADMINISTRADORES Patrícia Anjos Azevedo .................................................................................................. 183 A BOA ADMINISTRAÇÃO COMO ELEMENTO DE EFETIVAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Suzana Maria Fernandes Mendonça ............................................................................. 191 O MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO CONDICIONANTE PARA A MANUTENÇÃO DA SUSTENTABILIDADE E DO PATRIMÔNIO CULTURAL INDÍGENA: PERCEPÇÃO DE RISCOS AMBIENTAIS AO PATRIMÔNIO CULTURAL DO POVO WAYÃPI Fabrício V. Costa, Deilton R. Brasil e Elaine Aparecida Barbosa Gomes .................... 203 A ARBITRAGEM NA RECENTE REFORMA DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS Maria do Rosário Anjos ................................................................................................. 219 8 Sumário NEOLIBERALISMO E PRECARIEDADE: O BRASIL NO CONTEXTO DAS LUTAS GLOBAIS Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler .......................................... 225 TESTAMENTO VITAL: SUA APLICABILIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente ..................................................237 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E ACESSO À MEDICAMENTOS EXCEPCIONAIS E DE ALTO CUSTO: PARÂMETROS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES PARA O FORNECIMENTO DE FÁRMACOS Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia. ............................................ 253 O DIREITO À PRIVACIDADE E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA: A PROPÓSITO DA PUBLICIDADE COM RECURSO AO RECONHECIMENTO FACIAL Ana Clara Azevedo de Amorim ..................................................................................... 269 GOVERNANÇA CORPORATIVA: ADAPTAÇÃO AO SETOR PÚBLICO PARA UM AMBIENTE ECONÔMICO E JURÍDICO SAUDÁVEL Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio ....................................................... 277 A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL: A PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM MEIO À MODERNIDADE LÍQUIDA. Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia ............................................ 287 RESPONSABILIDADE AMBIENTAL: O PRINCÍPO DO POLUIDOR PAGADOR MEDIANTE UMA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO DO AMBIENTE Roberta Fernandes de Faria ......................................................................................... 299 GOVERNANÇA NAS RELAÇÕES (LÍQUIDAS) DE TRABALHO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO UM NOVO DESAFIO PROTETIVO Denise Fincato e Cíntia Guimarães ............................................................................... 311 ANONIMATO DE DOAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO: PONDERAÇÃO ENTRE DIREITO DE PERSONALIDADE E DIREITO À PRIVACIDADE Juliana de Freitas Dornelas .......................................................................................... 323 9 Sumário COMPLIANCE DIGITAL E A INFLUÊNCIA DO REGULAMENTO EUROPEU DE PROTEÇÃO DE DADOS NAS EMPRESAS BRASILEIRAS Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz.............................................. 329 LEGADO DIGITAL José Emiliano Paes Landim Neto ................................................................................. 345 DA IMPROPRIEDADE DOS EMBARGOS COMO MEIO DE DEFESA DO CÔNJUGE NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO FISCAL Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo ................................................... 353 10 EL DERECHO A LA EDUCACIÓN COMO DERECHO HUMANO: ESPECIAL REFERENCIA A LA JURISPRUDENCIA ESPAÑOLA ACTUAL Rubén Miranda Gonçalves1 1) Introducción Que la educación sea un derecho humano no es una cuestión baladí. Sin duda, estamos ante uno de los derechos humanos más importantes, sin desmerecer ninguno de ellos. Reconocer el derecho a la educación como un derecho fundamental implica una serie de obligaciones que deben ser respetadas tanto por el Estado como por los propios ciudadanos. Si atendemos a las palabras del pensador occidental Santo Tomás de Aquino, nos encontramos con que escribió que “Excellit autem homo omnia animalia quantum ad rationem et intellectum”2, es decir, que la inteligencia es uno de los rasgos que nos diferencia de otros seres vivos, característica que, junto a la razón, hacen que el hombre supere a todos los animales. Era tan importante la educación para Santo Tomás que llegó a definirla como la “Non enim intendit natura solum generationem prolis, sed traductionem et promotionem usque ad perfectum statum hominis, inquantum horno est, qui est status virtutis”, es decir, la conducción y promoción de la prole al estado perfecto de hombre en cuanto hombre, que es el estado de virtud”3 y es precisamente lo que se busca con el derecho humano a la educación, el medio para alcanzar el conocimiento y mejorar las facultades del ser humano. Por eso, a lo largo del presente capítulo se analizará la figura de la educación como derecho humano, su protección y la actualidad jurisprudencial del Tribunal Constitucional español, pues en España este derecho ha sido objeto de discusión en lo que se refiere a la educación por sexos, en tanto en cuanto existen centros educativos privados que separan la educación de hombres y mujeres, motivo que llevó a más de diputados del grupo socialista a presentar un recurso ante el Tribunal Constitucional alegando discriminación y vulneración de determinados preceptos de la Constitución española. 1 Profesor en el Máster en Seguridad, Paz y Conflictos Internacionales de la Universidad de Santiago de Compostela; profesor de Derecho Administrativo en el Máster Universitario de Abogacía de la Universidad Europea de Madrid. Doctorando en Derecho Administrativo, Máster en Derecho de las Administraciones e Instituciones Públicas y Licenciado en Derecho, con grado sobresaliente, por la Universidad de Santiago de Compostela. E-mail: Ruben.miranda@usc.es 2 DE AQUINO, S. T., Summa Tehologiae, quaestio 3, art. 1. 3 DE AQUINO, S. T., Summa Theologiae Supplemento, q. 41, art. 1, c. Rubén Miranda Gonçalves 2) La educación como derecho humano y su protección. Nadie discute sobre la importancia de los derechos humanos para que una sociedad sea libre, pues, como bien apunta ESTER SÁNCHEZ, “son en buena medida elementos clave para poder garantizar dentro de los Estados el establecimiento de una convivencia social pacífica, justa y tolerante por todos deseada y disminuir la intensidad de los posibles conflictos y las vulneraciones a los derechos fundamentales que puedan llegar a darse”4. No en vano, por eso consideramos que estamos ante uno de los derechos humanos más importantes, opinión que compartimos con ESTER SÁNCHEZ, pues “ayuda a la persona a tomar por sí misma decisiones cruciales para su realización personal”5. Hoy en día son numerosos los textos internacionales que prevén el derecho a la educación. Tal y como afirma TOMASEVSKI, este derecho está previsto en los cinco instrumentos internacionales de derechos humanos más importantes: Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación racial, Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer y Convención sobre los derechos del niño6. A estos cinco instrumentos debemos añadir un sexto, también fundamental a la hora de hablar de derechos humanos y es la Declaración Universal de los Derechos Humanos. Según la Declaración Universal de los Derechos Humanos, en su artículo 26, se establece, primero, que “toda persona tiene derecho a la instrucción” y, segundo, que “será gratuita, al menos la elemental y fundamental”. No obstante, el tenor literal del artículo es más amplio y establece que: 1. 2. 3. “Toda persona tiene derecho a la educación. La educación debe ser gratuita, al menos en lo concerniente a la instrucción elemental y fundamental. La instrucción elemental será obligatoria. La instrucción técnica y profesional habrá de ser generalizada; el acceso a los estudios superiores será igual para todos, en función de los méritos respectivos. La educación tendrá por objeto el pleno desarrollo de la personalidad humana y el fortalecimiento del respeto a los derechos humanos y a las libertades fundamentales; favorecerá la comprensión, la tolerancia y la amistad entre todas las naciones y todos los grupos étnicos o religiosos, y promoverá el desarrollo de las actividades de las Naciones Unidas para el mantenimiento de la paz. Los padres tendrán derecho preferente a escoger el tipo de 4 ESTER SÁNCHEZ, A. T., “El sentido de la enseñanza de los derechos humanos en la sociedad democrática”, Dikaiosyne, nº. 30, 2015, pp. 89. 5 ESTER SÁNCHEZ, A. T. “El pluralismo como fundamento de la educación multicultural”, Quaestio Iurs, vol. 11, nº. 01, 2018, p. 399. 6 TOMASEVSKI, K. Manual on rights-based education: global human rights requirements made simple, UNESCO Bangkok, Bangkok, 2004, p. 6. 12 El derecho a la educación como derecho humano… educación que habrá de darse a sus hijos”. Este artículo, redactado en 1948, hace referencia a la palabra instrucción, término que según FALCADE-PEREIRA Y ASINELLI-LUZ, “significaba el proceso por el cual la educación era ofertada, caracterizada por la obligatoriedad en la fase elemental, voluntariedad en la formación técnica profesional y basada en la meritocracia en el nivel superior”7. Al menos se garantiza que la educación elemental o fundamental, también conocida como primaria, será gratuita, si bien numerosos Estados entre los más de 190 que componen la ONU, ofrecen de manera gratuita la matrícula en la educación superior8. Este logro fue fruto de la incorporación de un derecho tan elemental y necesario en la sociedad, pues la educación es, sin duda alguna, uno de los derechos fundamentales y derechos humanos más importantes. Es imposible concebir una sociedad igualitaria, desarrollada, tolerante y culta sin una buena educación. El derecho humano a la educación, en palabras de SCIOSCIOLI, “debe orientarse hacia el respeto de los derechos y libertades previstos en el instrumento, promoción de los valores democráticos, de justicia y de paz y el desarrollo de la autonomía personal” 9, permitiendo “a todas las personas la posibilidad de adquisición de los valores de los derechos humanos, y el respeto por la dignidad, por la tolerancia y por la solidaridad”10. En este sentido, es necesario traer a colación el artículo 13 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales11, el cual en su apartado primero deja claro 7 FALCAED-PEREIRA, I. A. Y ASINELLI-LUZ, A., “La educación como derecho humano para presos en Brasil”, Revista de Humanidades, nº. 21, 2014, p. 78. 8 Algunos de los Estados en los que la matrícula en la educación superior es gratuita son México, Cuba, República Dominicana, Guatemala, Haití, Costa Rica, Venezuela, Brasil, República de Surinam, Perú, Bolivia, Argentina, Uruguay, Islandia, Irlanda, Noruega, Suecia, Finlandia, Rusia, Estonia, Letonia, Lituania, Bielorrusia, Polonia, República Checa, Italia, Grecia, Chipre, Rumanía, Ucrania, Armenia, Kazajistán, Turkmenistán, Kirguizistán, Tayikistán, Afganistán, Georgia, Siria, Irak, Arabia Saudí, Qatar, Emiratos Árabes, Omán, Sri Lanka, Malasia, Brunei, Madagascar, Uganda, Burundi, Angola, República del Congo, República Centroafricana, Chad, Benín, Chana, Guinea, Mali, Senegal, Mauritania, Níger, Nigeria, Sudán, Argelia, Libia, Egipto, Eritrea, Yibuti, Túnez, Yemen. Consultado en https://www.worldpolicycenter.org/policies/is-education-tuition-free/is-higher-education-tuition-free, el día 07/09/2018. 9 SCIOSCIOLI, S. “El derecho a la educación como derecho fundamental y sus alcances en el derecho internacional de los derechos humanos”, Journal of supranational policies of education, nº. 2, 2014, p. 12. 10 NICOLETTI, J. A., “La educación superior de calidad como derecho humano”, http://www.cyta.com.ar/ta1304/v13n4a3.htm, consultado el día 07/09/2018. 11 Artículo 13 PIDESC 1º. Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen el derecho de toda persona a la educación. Convienen en que la educación debe orientarse hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su dignidad, y debe fortalecer el respeto por los derechos humanos y las libertades fundamentales. Convienen asimismo en que la educación debe capacitar a todas las personas para participar efectivamente en una sociedad libre, favorecer la comprensión, la tolerancia y la amistad entre todas las naciones y entre todos los grupos raciales, étnicos o religiosos, y promover las actividades de las Naciones Unidas en pro del mantenimiento de la paz. 2º. Los Estados Partes en el presente Pacto reconocen que, con objeto de lograr el pleno ejercicio de este derecho: a) La enseñanza primaria debe ser obligatoria y asequible a todos gratuitamente; b) La enseñanza secundaria, en sus diferentes formas, incluso la enseñanza secundaria técnica y profesional, debe ser generalizada y hacerse accesible a todos, por cuantos me dios sean apropiados, y en particular por la implantación progresiva de la enseñanza gratuita; c) La enseñanza superior debe hacerse igualmente accesible a todos, sobre la base de la capacidad de cada uno, por cuantos medios sean apropiados, y en particular por la implantación progresiva de la enseñanza gratuita; 13 Rubén Miranda Gonçalves que la educación debe orientarse hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su dignidad, y que ésta debe fortalecer el respeto por los derechos humanos y también las libertades fundamentales. El derecho humano a la educación, en lo que afecta a la educación elemental o fundamental, está garantizado, como ya se ha señalado con anterioridad, por numerosos textos internacionales y aparece recogido en la mayoría de las Constituciones de, al menos, los países que forman parte de la ONU y la misma será gratuita, así lo establece el artículo 13, apartado segundo, del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Lo que no se contempla como gratuita es la educación secundaria o educación superior, algo que dificulta en muchos países que personas con rentas bajas o con escasos recursos tengan acceso a una educación una vez concluyen los estudios primarios. En este caso, el apartado segundo del artículo 13 del PIDESC establece que debe ser generalizada y hacerse accesible por todos, por cuantos medios sean apropiados, dejando al arbitrio de cada Estado si será gratuita o no. Lo mismo ocurre con la educación superior. Si bien es cierto que el PIDESC hace mención a ella en el apartado tercero del artículo 13, tampoco la contempla como gratuita, debiendo los Estados hacerla accesible a todos, sobre la base de a capacidad de cada uno, y también por cuantos medios sean apropiados. 3) Marco legal y evolución del derecho a la educación en España No todas las Constituciones españolas recogieron el derecho a la educación en sus textos. Si nos remontamos al pasado, la primera que hizo alusión a él fue la Constitución de Cádiz de 1812 la cual, en su título IX, se refería a una serie de elementos que, por primera vez, asentaban lo que hoy conocemos como el derecho a la educación en España. En el artículo 366 se garantizaban escuelas de primeras letras en todos los pueblos de la Monarquía en las que se enseñaría a leer, escribir y contar a todos los niños. En un plano superior, en el artículo 367 se contemplaba una mejor estructuración de la instrucción secundaria y en el artículo 368 se reconocía que el plan general de enseñanza sería uniforme en todo el reino, aunque en todas las Universidades y establecimientos literarios en los que se enseñasen ciencias eclesiásticas y políticas, sería obligatorio d) Debe fomentarse o intensificarse, en la medida de lo posible, la educación fundamental para aquellas personas que no hayan recibido o terminado el ciclo completo de instrucción primaria; e) Se debe proseguir activamente el desarrollo del sistema escolar en todos los ciclos de la enseñanza, implantar un sistema adecuado de becas, y mejorar continuamente las condiciones materiales del cuerpo docente». 3. Los Estados Partes en el presente Pacto se comprometen a respetar la libertad de los padres y, en su caso, de los tutores legales, de escoger para sus hijos o pupilos escuelas distintas de las creadas por las autoridades públicas, siempre que aquéllas satisfagan las normas mínimas que el Estado prescriba o apruebe en materia de enseñanza, y de hacer que sus hijos o pupilos reciban la educación religiosa o moral que esté de acuerdo con sus propias convicciones”. 14 El derecho a la educación como derecho humano… explicar la Constitución política de la Monarquía. La Constitución de 1812 fue pionera en la búsqueda de una profesionalización de la Universidad y, por supuesto, la primera que contempló la gratuidad de la enseñanza, pues en varios de sus artículos se hace referencia a la “enseñanza pública”. Posteriormente fue la Constitución de 1931 la que, en palabras del profesor DE PUELLES BENÍTEZ, vino a “resolver los problemas planteados por la modernidad”12, pues va a ser la encargada de garantizar expresamente la gratuidad y obligatoriedad de la enseñanza primaria, va a reconocer que maestros, profesores y catedráticos de la enseñanza oficial serán funcionarios públicos y, también y muy importante, va a reconocer y a garantizar constitucionalmente la libertad de cátedra y una enseñanza laica (artículo 48). En la Constitución de 1978, norma normarum del actual ordenamiento jurídico español, el Derecho a la educación aparece protegido en el artículo 2713. Se trata de un derecho contemplado en la sección primera del Capítulo segundo, que lleva como rúbrica “de los derechos fundamentales y de las libertades públicas” y en el que se protegen dos derechos, por un lado, el derecho a la educación y, por otro, la libertad de enseñanza, aunque en el mismo precepto se integran varios derechos autónomos14. Es importante traer a colación que este derecho abarca tanto a los nacionales como a los extranjeros15 y así lo dejó patente el Tribunal Constitucional en la Sentencia 236/2007, pues nuestra Constitución al dar cobertura al derecho a la educación lo hace también a los extranjeros que no dispongan de la correspondiente autorización de estancia o residencia en España, llegando a afirmar el Tribunal Constitucional que “los extranjeros disfrutarán no sólo de las libertades sino también de los derechos 12 DE PUELLES BENÍTEZ, M., “La educación en el constitucionalismo español”, Cuestiones pedagógicas: Revista de ciencias de la educación, núm. 21, 2011-2012, p. 19. 13 “1. Todos tienen el derecho a la educación. Se reconoce la libertad de enseñanza. 2. La educación tendrá por objeto el pleno desarrollo de la personalidad humana en el respeto a los principios democráticos de convivencia y a los derechos y libertades fundamentales. 3. Los poderes públicos garantizan el derecho que asiste a los padres para que sus hijos reciban la formación religiosa y moral que esté de acuerdo con sus propias convicciones. 4. La enseñanza básica es obligatoria y gratuita. 5. Los poderes públicos garantizan el derecho de todos a la educación, mediante una programación general de la enseñanza, con participación efectiva de todos los sectores afectados y la creación de centros docentes. 6. Se reconoce a las personas físicas y jurídicas la libertad de creación de centros docentes, dentro del respeto a los principios constitucionales. 7. Los profesores, los padres y, en su caso, los alumnos intervendrán en el control y gestión de todos los centros sostenidos por la Administración con fondos públicos, en los términos que la ley establezca. 8. Los poderes públicos inspeccionarán y homologarán el sistema educativo para garantizar el cumplimiento de las leyes. 9. Los poderes públicos ayudarán a los centros docentes que reúnan los requisitos que la ley establezca. 10. Se reconoce la autonomía de las Universidades, en los términos que la ley establezca”. 14 COTINO HUESO, L., El derecho a la educación como derecho fundamental. Especial atención a su dimensión social prestacional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2012, p. 16. 15 Sobre el derecho a la educación de los inmigrantes puede consultarse a ESTER SÁNCHEZ, A. T. “Los objetivos declarados en el derecho a la educación. Especial consideración al menor inmigrante”, Dikaiosyne, nº. 31, 2016, pp. 35-60 y ESTER SÁNCHEZ, A. T. “La educación intercultural como principal modelo educativo para la integración social de los inmigrantes”, Cadernos de Dereito Actual, nº. 4, 2016, pp. 139-151. 15 Rubén Miranda Gonçalves reconocidos en el Título I de la Constitución”. Anteriormente tan sólo se garantizaba la educación no obligatoria a los extranjeros que tenían permiso de residencia. La Sentencia señala que “el derecho a la educación garantizado en el art. 27.1 CE corresponde a “todos”, independientemente de su condición de nacional o extranjero, e incluso de su situación legal en España”. Para preservar esta igualdad entre nacionales y extranjeros, el máximo intérprete de la Constitución se fundamenta en la interpretación de algunos textos internacionales como por ejemplo la Declaración Universidad de Derechos Humanos y los Tratados y otros acuerdos internacionales cuando usan expresiones como “toda persona tiene…” o “a nadie se le puede negar…” el derecho a la educación. Se trae a colación lo dispuesto en el artículo 1 de la Convenio Europeo de Derechos Humanos, pues en él las Altas Partes Contratantes reconocen a todas las personas que estén bajo su jurisdicción, los derechos y libertades del Título I, entre los cuales se encuentra el derecho a la educación16. Este derecho no sólo abarcará la educación primaria o fundamental, sino que se extiende también a la educación no obligatoria, tanto para nacionales españoles como para extranjeros que se encuentren en España y carezcan de autorización de residencia. a) Sentencia del Tribunal Constitucional 31/2018 de 10 de abril. La presente sentencia proviene del recurso de inconstitucionalidad número 14062014, interpuesto por más de cincuenta diputados del PSOE contra una serie de artículos17 de la Ley Orgánica 8/2013, de 9 de diciembre, para la mejora de la calidad educativa, LOMCE, considerando que la misma vulnera varios artículos de la Constitución Española entre los que destacan el artículo 14, 9.2 y 27.2 CE. A modo de resumen, el grupo socialista denuncia que en el artículo 84.3 de la Artículo 2. Convenio Europeo de Derechos Humanos: “A nadie se le puede negar el derecho a la educación. El Estado, en el ejercicio de las funciones que asuma en el campo de la educación y de la enseñanza, respetará el derecho de los padres a asegurar esta educación y esta enseñanza conforme a sus convicciones religiosas y filosóficas”. 17 “El apartado noveno del artículo único, que da nueva redacción al artículo 18 de la Ley Orgánica 2/2006, de 3 de mayo, de educación, (en adelante, LOE); el apartado décimo quinto de su artículo único, que da nueva redacción al artículo 24 LOE; el apartado décimo sexto de su artículo único, que da nueva redacción al artículo 25 LOE; el apartado décimo octavo de su artículo único, que da nueva redacción al artículo 27 LOE; el apartado décimo noveno de su artículo único, que da nueva redacción al artículo 28 LOE; el apartado vigésimo primero del artículo único, que da nueva redacción al artículo 30 LOE; el apartado trigésimo cuarto del artículo único, que da nueva redacción al artículo 41 LOE; el apartado trigésimo quinto del artículo único, que da nueva redacción al artículo 42 LOE; el apartado sexagésimo, que da nueva redacción al apartado segundo del artículo 84 LOE; el apartado sexagésimo primero de su artículo único, que da nueva redacción a los párrafos segundo y tercero del apartado tercero del artículo 84 LOE; el apartado octogésimo del artículo único, que da nueva redacción a las letras a), b), e), h), i) del artículo 127 LOE; el apartado octogésimo primero del artículo único, que da nueva redacción a las letras de l), m), n), ñ) y o) del artículo 132 LOE; la disposición transitoria segunda y la disposición final segunda, en cuanto a la nueva redacción de las letras a), b), f), h), j), l) y m) del artículo 57 de la Ley Orgánica 8/1985, de 3 de julio, reguladora del derecho a la educación (en adelante, LODE), en relación, respectivamente, con lo dispuesto en el apartado cuarto por el que se da nueva redacción a los apartados primero y segundo del artículo 59 LODE y con el apartado quinto, por el que se da nueva redacción al artículo 60 LODE”. 16 16 El derecho a la educación como derecho humano… LOE, en la nueva redacción que opera la LOMCE, en sus párrafos segundo y tercero18, se establece que “no constituye discriminación la admisión de alumnos y alumnas o la organización de la enseñanza diferenciada por sexos, siempre que la enseñanza que impartan se desarrolle conforme a lo dispuesto en el artículo 2 de la Convención relativa a la lucha contra las discriminaciones en la esfera de la enseñanza, aprobada por la Conferencia General de la UNESCO el 14 de diciembre de 1960”19 y alegan que existe una dudosa legitimidad constitucional de un sistema educativo que separa a los estudiantes por razón de su sexo, resultando inconstitucional lo dispuesto en ese artículo, pidiendo al Tribunal Constitucional que declare nula esa expresión. Lo mismo ocurre con la disposición transitoria segunda20 de la LOMCE, que también es impugnada al considerar que el actual modelo educativo está diferenciando la admisión de los alumnos y la organización de la enseñanza, algo que para los impugnantes resulta completamente discriminatorio en base al artículo 14 de la Constitución española, reprochando que existe una diferencia de trato injustificada, lesionándose el artículo 14 en relación con el 27 de la Constitución. Para el fallo de la Sentencia, y en relación a la primera de las pretensiones de los impugnantes, el Tribunal Constitucional se basa en jurisprudencia anterior21 y el análisis de diferentes textos internacionales como son la Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer, de 18 de diciembre de 1979, Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 1966, la Declaración Universal de Derechos Humanos y la Convención relativa a la Lucha contra las Discriminaciones en la Esfera de la Enseñanza, de 1960, entre otros. Será la Convención relativa a la Lucha contra las Discriminaciones en la Esfera de la Enseñanza la que marque la pauta de qué debe considerarse como discriminación, pues en su artículo 1, se prohíbe cualquier tipo de discriminación por razón del sexo, entendiendo por discriminación toda distinción, exclusión, limitación o preferencia fundada en la raza, color, sexo, idioma, religión, opiniones políticas o de cualquier otra 18 El artículo 84.3 de la LOE, en la nueva redacción dada al mismo por la LOMCE establece que “En ningún caso habrá discriminación por razón de nacimiento, raza, sexo, religión, opinión o cualquier otra condición o circunstancia personal o social. No constituye discriminación la admisión de alumnos y alumnas o la organización de la enseñanza diferenciadas por sexos, siempre que la enseñanza que impartan se desarrolle conforme a lo dispuesto en el artículo 2 de la Convención relativa a la lucha contra las discriminaciones en la esfera de la enseñanza, aprobada por la Conferencia General de la UNESCO el 14 de diciembre de 1960. En ningún caso la elección de la educación diferenciada por sexos podrá implicar para las familias, alumnos y alumnas y centros correspondientes un trato menos favorable, ni una desventaja, a la hora de suscribir conciertos con las Administraciones educativas o en cualquier otro aspecto. A estos efectos, los centros deberán exponer en su proyecto educativo las razones educativas de la elección de dicho sistema, así como las medidas académicas que desarrollan para favorecer la igualdad”. 19 Contenido de la STC 31/2018, de 10 de abril. 20 “Aplicación temporal del artículo 84.3 de la Ley Orgánica 2/2006, de 3 de mayo, de Educación”, que tiene el siguiente contenido: “los centros privados a los que en 2013 se les haya denegado la renovación del concierto educativo o reducido las unidades escolares concertadas por el único motivo de ofrecer educación diferenciada por sexos podrán solicitar que se les aplique lo indicado en el artículo 84.3 de esta Ley Orgánica para el resto del actual periodo de conciertos en el plazo de dos meses desde su entrada en vigor”. 21 Por ejemplo, la STC 198/2012, de 6 de noviembre. 17 Rubén Miranda Gonçalves índole, origen nacional o social, posición económica o nacimiento. En este sentido, el artículo 2 del mismo instrumento legal, deja constancia de que no será discriminación en el sentido del artículo 1, “la creación o mantenimiento de sistemas o establecimientos de enseñanza separados para los alumnos del sexo masculino y para los del sexo femenino, siempre que esos sistemas o establecimientos ofrezcan facilidades equivalentes de acceso a la enseñanza, dispongan de un personal docente igualmente calificado, así como de locales escolares y de un equipo de igual calidad y permitan seguir los mismos programas de estudio o programas equivalentes”, si el Estado lo permite. El Tribunal Constitucional en la Sentencia afirma que en otros Estados de la Unión Europea en los que existen centros educativos de carácter privado, la educación separada por sexos está admitida, y pone como ejemplo países como Gran Bretaña, “cuya Sex Discrimination (Amendment of Legislation) Regulations 2008, que excluye la educación de su ámbito de aplicación (artículo 9, capítulo I), no impide la existencia de escuelas de educación diferenciada, que existen en ese país en un número apreciable”. Lo mismo ocurre en Francia, pues según el TC español “la Ley núm. 2008-496, de 27 de mayo de 2008, tras incluir expresamente el principio de igualdad de trato entre mujeres y hombres, señala más concretamente —por lo que ahora nos afecta— que este principio «no es obstáculo (...) para la organización de las enseñanzas agrupando los alumnos en función de su sexo» (artículo 2.4)”. En la misma línea, el Tribunal Federal de lo Contencioso-Administrativo de Alemania dictó una sentencia el 30 de enero de 2013 en la que se afirmaba la compatibilidad de la educación diferenciada por sexos y la Constitución de la República Federal de Alemania. En todos los Estados anteriores, junto con Bélgica22, el Tribunal Constitucional español deja patente que “el modelo pedagógico consistente en una educación diferenciada por sexos no es considerado un caso de discriminación por razón de sexo”, pues es una opción pedagógica. En caso de que el Tribunal Constitucional no tuviera en consideración la nulidad que se estaba solicitado, los impugnantes piden de manera subsidiaria que se declare la nulidad del aserto “en ningún caso la elección de la educación diferenciada por sexos podrá implicar para las familias, alumnos y alumnas y centros correspondientes un trato menos favorable, ni una desventaja, a la hora de suscribir conciertos con las Administraciones educativas o en cualquier otro aspecto”, por los mismos motivos de vulneración de los artículos 14, 9.2 y 27.2 de la CE, entendiendo los impugnantes que los centros privados no deberían recibir ayudas públicas. El Tribunal Constitucional es claro contundente y, tanto a la primera como a la segunda pretensión, les niega la razón a los impugnantes. En relación a los argumentos 22 Artículo 19 del Decreto de 12 de diciembre de 2008. 18 El derecho a la educación como derecho humano… a la primera pretensión, el máximo intérprete de la Constitución defiende que, ya desde la STC 128/198, de 16 de julio, en su fundamento jurídico número 7, vienen sosteniendo que “no toda desigualdad de trato resulta contraria al principio de igualdad, sino aquella que se funda en una diferencia de supuestos de hecho injustificados de acuerdo con criterios o juicios de valor generalmente aceptados” y que “el tratamiento diverso de situaciones distintas puede incluso venir exigido, en un Estado social y democrático de Derecho, para la efectividad de los valores que la Constitución consagra con el carácter de superiores del ordenamiento, como son la justicia y la igualdad (art. 1), a cuyo efecto atribuye además a los Poderes Públicos el que promuevan las condiciones para que la igualdad sea real y efectiva23". La redacción del artículo 84 en su apartado 3 de la LOE presenta el mismo contenido y el mismo sentido que el artículo 2 de la Convención relativa a la lucha contra las discriminaciones en la esfera de la enseñanza, aprobada por la Conferencia General de la Unesco en 1960. Teniendo en cuenta que se trata de una opción pedagógica de voluntaria adopción por los centros y de libre elección por los padres o, en su caso, por los alumnos, bajo ningún concepto habría discriminación alguna por razón de sexo. Tal modelo pedagógico, como bien apunta el Tribunal Constitucional, no puede ser valorado por él, pues no es su competencia, por lo que el sistema de educación diferenciada por sexos, en tanto en cuanto es una opción pedagógica, no puede ser considerada como discriminatoria. En relación a la segunda pretensión, y en relación a la “gratuidad” de la educación en los centros privados, la respuesta del TC vuelve a ser negativa para los impugnantes y deja patente en la Sentencia que no se vulnera ninguno de los derechos que se aducen. Atendiendo a la normativa vigente, afirma el TC que no se “desprende en modo alguno una prohibición de ayuda a los centros docentes que utilicen como método pedagógico la educación diferenciada” y que “los centros de educación diferenciada podrán acceder al sistema de financiación pública en condiciones de igualdad con el resto de los centros educativos”. Las ayudas públicas, según establece el artículo 27.9 de la CE, deben ser configuradas atendiendo al principio de igualdad, precepto que establece, a su vez que “los poderes públicos ayudarán a los centros docentes que reúnan los requisitos que la Ley establezca”, pues “la enseñanza básica es obligatoria y gratuita”, por lo que la “gratuidad” no se aplica sólo a la escuela pública, pues se estaría impidiendo la posibilidad real de elegir la enseñanza básica en los centros privados y las ayudas públicas, a las que se refiere el artículo 27 en su apartado 9 de la Constitución, serán configuradas en el respeto al principio de igualdad, sin la posibilidad de establecer un tratamiento diferente entre ambos modelos pedagógicos tal y como se dejó patente en la STC 86/1985, fundamento jurídico número 3. 23 STC 34/1987, de 19 de noviembre, en su fundamento jurídico número 3. 19 Rubén Miranda Gonçalves 4) Conclusiones El derecho a la educación es un derecho humano que aparece recogido en la mayor parte de textos internacionales, garantizándose la gratuidad de la educación primaria, si bien es cierto que son muchos los países que ofrecen la gratuidad incluyendo la educación superior. No obstante, en base a la legislación internacional, todos los Estados que forman parte de la ONU están obligados a ofrecer una educación primaria gratuita, sin ningún tipo de discriminación, contribuyendo así a que la sociedad será más inteligente y más igualitaria, características que ayudarán a prosperar un país, orientándose hacia el pleno desarrollo de la personalidad humana y del sentido de su dignidad. Este derecho debe fortalecer el respeto por los derechos humanos y las libertades fundamentales, capacitando a todas las personas para participar en una sociedad libre, favoreciendo la tolerancia, comprensión, amistad y respeto sin discriminación de ningún tipo. El Tribunal Constitucional español tuvo que pronunciarse si la segregación de los alumnos por razón de sexo en los colegios privados era discriminatoria, fallando que no atentaba de forma alguna al derecho recogido en el artículo 14 de la Constitución española y que, además, el Estado podría financiar la educación primaria en los colegios privados que cumplan los requisitos estipulados por la legislación vigente, pues de lo contrario, sí habría discriminación. BIBLIOGRAFÍA COTINO HUESO, L., El derecho a la educación como derecho fundamental. Especial atención a su dimensión social prestacional, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid, 2012, p. 16. DE AQUINO, S. T., Summa Tehologiae, quaestio 3, art. 1. DE AQUINO, S. T., Summa Theologiae Supplemento, quaestio 41, art. 1, c. DE PUELLES BENÍTEZ, M., “La educación en el constitucionalismo español”, Cuestiones pedagógicas: Revista de ciencias de la educación, núm. 21, 20112012, pp. 15-35. ESTER SÁNCHEZ, A. T., “El sentido de la enseñanza de los derechos humanos en la sociedad democrática”, Dikaiosyne, nº. 30, 2015, pp. 81 – 96. ESTER SÁNCHEZ, A. T. “Los objetivos declarados en el derecho a la educación. Especial consideración al menor inmigrante”, Dikaiosyne, nº. 31, 2016, pp. 35-60. ESTER SÁNCHEZ, A. T. “La educación intercultural como principal modelo educativo para la integración social de los inmigrantes”, Cadernos de Dereito Actual, nº. 4, 20 El derecho a la educación como derecho humano… 2016, pp. 139-151. ESTER SÁNCHEZ, A. T. “El pluralismo como fundamento de la educación multicultural”, Quaestio Iuris, vol. 11, nº. 01, 2018, pp. 383-407. FALCAED-PEREIRA, I. A. Y ASINELLI-LUZ, A., “La educación como derecho humano para presos en Brasil”, Revista de Humanidades, nº. 21, 2014, pp. 71-90. NICOLETTI, J. A., “La educación superior de calidad como derecho humano”, http://www.cyta.com.ar/ta1304/v13n4a3.htm, consultado el día 07/09/2018. SCIOSCIOLI, S. “El derecho a la educación como derecho fundamental y sus alcances en el derecho internacional de los derechos humanos”, Journal of supranational policies of education, nº. 2, 2014, p. 6-24. TOMASEVSKI, K. Manual on rights-based education: global human rights requirements made simple, UNESCO Bangkok, Bangkok, 2004, p. 6. 21 BREVES NOTAS SOBRE A TRAMITAÇÃO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL Patrícia Anjos Azevedo1 1) Introdução; generalidades A obrigatoriedade de pagamento do imposto (ou de outros tributos) não depende da vontade do particular (que constitui o sujeito passivo da relação jurídica tributária), sendo que o imposto é exigido pelo Estado (enquanto sujeito ativo dessa relação), independentemente da vontade do contribuinte (nisto consiste o princípio da indisponibilidade da relação jurídica tributária – cfr. art.º 36.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária). Mais concretamente, quando o sujeito passivo originário (ou outro responsável tributário – cfr. art.ºs 22.º e seguintes da Lei Geral Tributária) não pague o tributo dentro do prazo legal, será desencadeado, por parte Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), um processo próprio, para efeitos da respetiva cobrança coerciva, que terá como base num título executivo, que se trata – fundamentalmente – de um documento que atesta a existência da dívida (cfr. art.º 88.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário). Ora, na falta de pagamento voluntário, o credor (sujeito ativo) tem o direito de exigir judicialmente do devedor (sujeito passivo) o cumprimento da obrigação tributária, requerendo, para tal, a execução do património do devedor. Destarte, a AT pode, nos termos dos artigos 148.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) português, instaurar um processo de execução fiscal com vista a obter o pagamento coercivo das dívidas tributárias, podendo então recorrer à alienação dos bens ou direitos do devedor, por forma a obter coercivamente o montante em dívida, ao qual acrescem juros de mora, eventuais coimas, custas e outros2. Face ao exposto, convém ainda esclarecer que o objetivo deste nosso contributo será essencialmente apresentar a tramitação do complexo processo de execução fiscal, tendo em conta que, neste processo, concorrem uma fase administrativa (ou pré1 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Auxiliar Convidada no ISMAI. Professora Adjunta Convidada no IPMAIA. Membro da Comissão Científica do N2i – Núcleo de Investigação do IPMAIA. Investigadora do I2J (Instituto de Investigação Jurídica) da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Membro efetivo do CEOS.PP (Centro de Estudos Organizacionais e Sociais do Politécnico do Porto). Advogada. Juiz-Árbitro CAAD (Direito Administrativo). 2 Para maiores desenvolvimentos sobre o processo de execução fiscal, cfr. os seguintes contributos: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017; ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011. Patrícia Anjos Azevedo jurisdicional) e uma fase jurisdicional, das quais resultam atos de natureza administrativa (praticados pelos órgãos da AT) e atos de natureza jurisdicional (praticados pelo Tribunal). São exemplos de atos praticados pelo Tribunal os seguintes: a decisão da oposição à execução; os incidentes e os embargos de terceiro. Os atos praticados pelos órgãos da administração tributária consistem, por exemplo, na instauração da execução; na citação do executado; na autorização para pagamento em prestações; ou, ainda, na reversão da execução, que consiste na imputação de responsabilidade tributária, no âmbito do processo, ao responsável subsidiário. 2) Instauração da execução e citação do executado A instauração da execução é efetuada via eletrónica, pelo órgão da execução fiscal, que ordenará a citação do executado [art.ºs 10.°, n.° 1, alínea f) e 188.º, ambos do CPPT]. O processo de execução deve ser instaurado na área do domicílio ou sede do devedor, da situação dos bens ou da liquidação, salvo tratando-se de coima fiscal e respetivas custas, caso em que é competente o órgão periférico local da área onde tiver corrido o processo da sua aplicação (art.º 150.º, n.º 3 do CPPT). Se estiverem pendentes, no órgão da execução fiscal, várias certidões de dívida do mesmo devedor, estas deverão ser autuadas conjuntamente e dar lugar a um único processo de execução fiscal. Instaurada a execução mediante despacho a lavrar no(s) respetivo(s) título(s) executivo(s), no prazo de 24 horas após o recebimento e efetuado o registo, o órgão da execução fiscal ordena a citação do executado (n.º 1 do art.º 188.º do CPPT). Se o processo for instaurado por via eletrónica, serão de imediato efetuadas citações, nos termos do n.º 3 do art.º 188.º do CPPT. A citação é o ato destinado a dar conhecimento ao executado de que foi proposta contra si determinada execução ou a chamar a esta, pela primeira vez, os responsáveis subsidiários. O ato de citação é ordenado pelo órgão da execução fiscal e tem de ser sempre acompanhado de uma nota indicativa quanto aos meios e prazos de que o executado dispõe para tutela e defesa dos seus direitos legalmente protegidos. A citação deve conter o prazo para que o executado possa deduzir oposição à execução, bem com o prazo para requerer o pagamento em prestações (que pode ser requerido até à marcação da venda) ou a dação em pagamento (art.º 189.º do CPPT). As citações via postal previstas no art.º 191.º do CPPT podem ser efetuadas por transmissão eletrónica de dados, valendo como citação pessoal – art.º 191.º, n.º 4 do CPPT. A citação efetuada por transmissão eletrónica de dados considera-se realizada no momento em que o destinatário acede à caixa postal eletrónica. Caso o contribuinte não aceda à caixa postal eletrónica, a citação considera-se efetuada no 25.º dia posterior ao seu envio – n.º 6 do art.º 191.º do CPPT. A presunção de citação pode ser ilidida pelo citando quando ocorra em data posterior à presumida e o contribuinte comprove que 24 Breves notas sobre a tramitação do processo... comunicou a alteração da caixa postal eletrónica, nos termos do art.º 43.º do CPPT – cfr. n.º 7 do art.º 191.º do CPPT. Sendo o executado ou o responsável subsidiário citados, estes poderão deduzir oposição à execução (cfr. art.ºs 203.º e ss do CPPT), requerer o pagamento em prestações ou requerer a dação em pagamento (art.º 189.°, n.º 1 do CPPT). A citação interrompe o prazo de prescrição dos tributos (art.º 49.°, n.° 1 da LGT). A falta de citação constitui uma nulidade insanável no processo [art.º 165.°, n.° 1, alínea a) do CPPT]. Quanto às exigências formais da citação, esta pode ser pessoal, postal ou edital. A citação mediante via postal simples verifica-se em todos os processos cuja quantia exequenda não exceda 500 unidades de conta3 (art.º 191.°, n.° 1 do CPPT), exceto: (a) nos casos de responsabilidade subsidiária ou solidária, (b) nos casos em que haja necessidade de proceder à venda de bens e (c) nos casos em que o órgão da execução fiscal a considerar mais eficaz para a cobrança da dívida, em que a citação será sempre pessoal (art.º 191.°, n.º 3 do CPPT). A citação via postal será registada quando a dívida exequenda for superior a 50 vezes a unidade de conta (cfr. art.º 191.º, n.º 2 do CPPT). A citação pessoal é feita mediante (cfr. art.º 225.º, n.º 2 do Código de Processo Civil – CPC): (a) transmissão eletrónica de dados; (b) entrega ao citando de carta registada com aviso de receção, seu depósito nos termos do n.º 5 do art.º 229.º do CPC, ou certificação da recusa de recebimento, nos termos do n.º 3 do art.º 229.º do CPC; (c) contacto pessoal do agente de execução ou do funcionário judicial com o citando. As pessoas coletivas são citadas através da sua caixa postal eletrónica ou na pessoa de um dos seus administradores ou gerentes, na sua sede, na residência destes ou em qualquer lugar onde se encontrem. No caso de não se efetuar a citação na pessoa do representante, a citação realizar-se-á na pessoa de qualquer funcionário, capaz de transmitir a citação, que se encontre na sede ou em qualquer dependência da pessoa coletiva – cfr. art.º 41.º do CPPT e art.º 223.º, n.º 3 do CPC. A citação deve ser feita na pessoa de um funcionário apenas caso não seja possível realizar a citação por transmissão eletrónica de dados ou por via postal – cfr. art.º 191.º do CPPT. A citação das pessoas coletivas através de carta registada com aviso de receção é endereçada para a sede da citanda, inscrita no ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, nos termos do art.º 246.º, n.º 2 do CPC. Se for recusada a assinatura do aviso de receção ou o recebimento da carta por representante legal ou funcionário da citanda, o distribuidor postal lavra nota do incidente antes de a devolver e a citação considera-se efetuada face à certificação da ocorrência – n.º 3 do art.º 246.º do CPC. Nos casos de devolução, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a de que a citação considera-se efetuada na data certificada pelo 3 Uma unidade de conta corresponde, atualmente, a 102 euros. 25 Patrícia Anjos Azevedo distribuidor do serviço postal ou, no caso de ter sido deixado o aviso, no oitavo dia posterior a essa data, presumindo-se que o destinatário teve conhecimento da citação – art.ºs 246.º, n.º 4 e 230.º, n.º 2, ambos do CPC. Se a pessoa coletiva se encontrar em fase de liquidação ou de insolvência, a citação tem de ser efetuada na pessoa do liquidatário judicial – cfr. art.ºs 181.º e 41.º, n.º 3, ambos do CPPT. A citação deve conter os elementos previstos no art.º 163.º, n.º 1 do CPPT. Nos casos de citação postal ou por transmissão eletrónica de dados, conforme previsto no art.º 191.º do CPPT, se o postal não vier devolvido ou, sendo devolvido, não se conhecer a nova morada do executado, e ainda em caso de não acesso à caixa postal eletrónica, proceder-se-á logo à penhora (art.º 193.°, n.° 1 do CPPT), podendo ainda citar-se o executado pessoalmente, com a indicação de que se não efetuar o pagamento ou se não deduzir oposição no prazo de 30 dias, será designado dia para a venda (n.°s 2 e 4 do art.º 193.º do CPPT). Se a citação por via postal não for efetuada, procede-se à extração de carta precatória para que o órgão da execução fiscal deprecado proceda à citação e/ou à penhora dos bens (cfr. art.ºs 185.º e 186.º, ambos do CPPT). A carta precatória pode ser emitida no caso de citação, penhora que não seja de dinheiro ou outros valores depositados à ordem de qualquer autoridade, inquirição ou declarações (art.º 185.º, n.º 1 do CPPT). A carta precatória deve ser cumprida no prazo de 60 dias posteriores ao da sua entrada no órgão de execução fiscal deprecado (n.º 8 do art.º 24.º do CPPT). Na carta precatória indicar-se-á a proveniência e o montante da dívida, incluindo juros de mora e custas (n.º 1 do art.º 186.º do CPPT). Poderá não ter lugar o envio de carta precatória se for mais vantajoso para a execução e o órgão da execução fiscal a ser deprecado fizer parte da área do órgão regional em que se integra o órgão da execução fiscal deprecante (n.º 3 do art.º 186.º do CPPT). Caso não seja conhecida a nova morada do executado, proceder-se-á à citação edital, devendo constar dos éditos a natureza dos bens penhorados, o prazo de pagamento e oposição, bem como a data e o local designados para venda dos bens (cfr. n.º 8 do art.º 192.º do CPPT). A citação pode ainda ser feita na pessoa do legal representante do executado, nos termos do art.º 190.º, n.º 5 do CPPT, ou na pessoa do mandatário constituído pelo citando, com poderes especiais, mediante procuração passada há menos de 4 anos, nos termos do art.º 225.º, n.º 5 do CPC. A citação que seja realizada em pessoa diversa do citando é equiparada à citação pessoal, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve conhecimento – cfr. n.º 4 do art.º 225.º do CPC. Quando a citação tenha sido efetuada em pessoa diversa do citando, este beneficia de um prazo de dilação de 5 dias. Tal situação ocorre quando a citação tenha sido feita em nome de uma qualquer pessoa que se encontre na residência ou no local de trabalho do citando e aquele declare estar em condições de a entregar prontamente ao citando – cfr. art.º 228.º, n.º 2 do CPC. Esta situação também ocorre no caso de a citação ser feita na pessoa de um terceiro capaz de a transmitir ao citando ou, não sendo possível obter a colaboração de terceiros, a citação é feita mediante afixação no local mais adequado e na presença de duas 26 Breves notas sobre a tramitação do processo... testemunhas da nota de citação, declarando-se que o duplicado da citação e os documentos anexos ficam à disposição do citando na secretaria judicial – art.º 232.º, n.ºs 2 e 4 do CPC. Quando o executado se recuse a assinar a certidão ou a receber o duplicado, o agente de execução dá-lhe conhecimento de que o mesmo fica à sua disposição na secretaria judicial. A secretaria também notifica o citando, enviando-lhe carta registada com a indicação de que o duplicado da citação se encontra à sua disposição naqueles serviços – n.ºs 4 e 5 do art.º 231.º do CPC. Quando a citação seja efetuada em pessoa diversa do citando ou tenha sido feita mediante a fixação da nota de citação no local mais adequado e na presença de duas testemunhas, sempre que não seja possível obter a colaboração de terceiros, é ainda enviada pelo órgão da execução fiscal, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao citando, comunicando-lhe: (a) a data e o modo por que o ato se considera realizado; (b) o prazo para a defesa e as cominações aplicáveis à falta desta; (c) o destino dado ao duplicado (da citação); e (d) a identidade da pessoa em quem a citação foi realizada – cfr. art.º 233.º do CPC. Por sua vez, a citação edital, de caráter excecional, terá lugar nos casos de desconhecimento da residência, pessoa em parte incerta e devolução de carta ou postal (art.º 192.°, n.° 4 do CPPT) e não depende do valor da dívida exequenda, sendo efetuada através de éditos afixados no órgão da execução fiscal da residência do citando e publicados em dois números seguidos de um dos jornais mais lidos nesse local ou no portal das finanças (art.º 192.º, n.ºs 7 e 8 do CPPT). Esta citação não depende do valor da dívida exequenda, mas do facto de não ser conhecida a residência do executado ou este se encontrar em parte incerta. Quanto ao conteúdo dos editais, estes devem conter a natureza dos bens penhorados, o prazo de pagamento e de oposição, bem como a data e o local designados para a venda, sendo estes afixados na porta da última residência ou sede do citando – cfr. art.º 192.º, n.º 8 do CPPT. A publicação dos editais ou anúncios é feita a expensas do executado, entrando as despesas em regras de custas – cfr. art.º 31.º, n.º 1 do CPPT. Os editais e anúncios publicados são juntos aos restantes documentos do processo de execução fiscal, com indicação da data e custo da publicação – cfr. art.º 31.º, n.º 2 do CPPT. A citação considera-se realizada no dia da publicação do anúncio ou, na falta de anúncio, no dia em que seja afixado o edital – art.ºs 241.º e 242.º do CPC. Quando a citação é efetuada através de edital, acresce um prazo de dilação de 30 dias, nos termos do art.º 245.º, n.º 3 do CPC, findo o qual começa a contar o prazo para deduzir oposição à execução. Relativamente às exigências substanciais, a citação deverá conter os seguintes elementos: (i) menção do órgão da execução fiscal; (ii) data em que foi emitido o título; (iii) nome e domicílio do(s) devedor(es); (iv) natureza, montante e proveniência da dívida – cfr. alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do art.º 163.º do CPPT. Em alternativa, a citação deve ser acompanhada de cópia do título executivo (cfr. art.º 190.º, n.º 1 do CPPT) e deverá ainda conter a nota indicativa do prazo para oposição, para pagamento em prestações ou para dação em pagamento, bem como a indicação de que a suspensão da 27 Patrícia Anjos Azevedo execução e a regularização da situação tributária dependem da efetiva existência de garantia idónea (art.º 189.°, n.° 1 do CPPT e art.º 190.º, n.º 2 do CPPT). Se correrem contra o mesmo executado várias execuções fiscais, estas poderão ser apensadas, desde que tal não comprometa a eficácia da execução. Esta apensação pode ser feita oficiosamente ou a pedido dos interessados, sendo cada vez mais frequente que os executados requeiram a apensação, com vista ao pagamento da dívida em prestações. A apensação pode verificar-se na fase da instauração, da citação ou da penhora dos bens. O órgão de execução fiscal deverá desapensar os processos sempre que se verifique um prejuízo para o andamento do processo, tal como sucede no caso de oposição à execução, de reclamação graciosa ou de impugnação judicial. Neste caso, desapensa-se o processo objeto de oposição à execução, de reclamação graciosa ou de impugnação judicial, que deve ficar suspenso, mantendo-se apensados os restantes processos. 3) A penhora A penhora consiste num ato de apropriação de bens do património do executado por parte do tribunal, o qual ocorre findo o prazo posterior à citação sem ter sido efetuado o devido pagamento (n.º 1 do art.º 215.º do CPPT). Todos os bens do devedor, que sejam suscetíveis de penhora, podem ser executados (cfr. art.º 735.º do CPC). Também podem ser penhorados bens de terceiros, nos termos do art.º 747.º do CPC, que prevê que os bens do executado que se encontrem em poder de terceiros podem ser apreendidos, “(…) sem prejuízo, porém, dos direitos a que este seja lícito opor ao exequente.” (cfr. n.º 1 do art.º 747.º do CPC). Existem regras relativas às penhoras, conforme exporemos adiante. A penhora deve ser realizada logo que se torne possível a prática de tal ato, devendo ser efetuada pela via mais célere e mais eficiente, como é o caso da penhora por via eletrónica (n.º 2 do art.º 215.º do CPPT). A AT pode assim aceder, por via eletrónica, a bens ou direitos de devedores suscetíveis de penhora, quer através de elementos existentes nos seus registos, quer de elementos inscritos na contabilidade da empresa (n.º 5 do art.º 215.º do CPPT). Com a penhora por via eletrónica, pretende-se introduzir uma maior celeridade na efetivação da penhora. Todavia, existem situações em que não é possível proceder à penhora dos bens através de meios eletrónicos, em que se torna indispensável a apreensão dos bens pelo próprio funcionário da AT. O funcionário incumbido de tais diligências deverá estar devidamente credenciado, através de mandado de penhora. O funcionário terá de efetuar diligências para identificar e localizar os bens a penhorar ao executado, os quais, sendo bens móveis, deverão ser removidos para um depósito público ou para o órgão da execução fiscal. No caso de não existirem instalações que permitam o armazenamento dos bens, tal obriga a que o funcionário tenha de nomear um depositário, podendo a escolha recair sobre o próprio executado. 28 Breves notas sobre a tramitação do processo... Sempre que a penhora não seja efetuada nas instalações do órgão da execução fiscal, a diligência considera-se efetuada na data em que for lavrado o respetivo auto, no qual se regista o dia, hora e local da diligência, se indica o valor da execução, se identificam dos bens por verbas, o seu estado de conservação e o seu valor aproximado, bem como as obrigações e a responsabilidade a que está vinculado o depositário (cfr. art.ºs 756.º e 766.º, ambos do CPC). A penhora não recai sobre todo o património do executado, mas apenas sobre bens determinados. Portanto, impõe-se que sejam nomeados bens à penhora (art.º 215.°, n.° 4 do CPPT). O órgão da execução fiscal tem o direito de nomear e escolher os bens sobre os quais deve incidir a penhora, podendo esta incidir sobre todos os bens do devedor que sejam suscetíveis de penhora (cfr. art.º 601.º do Código Civil). O exequente pode ainda admitir à penhora bens indicados pelo executado, desde que não resulte prejuízo para a AT (art.º 215.º, n.º 4 do CPPT). Esta possibilidade de o executado nomear bens à penhora processa-se nos termos do n.º 4 do art.º 199.º do CPPT. Sendo penhorados os bens, não pode o executado dispor deles livremente. Podem também ser penhorados bens de terceiros, nos termos do art.º 215.º, n.º 3 do CPPT e do art.º 747.º do CPC, ou ainda bens do executado, que se encontrem e poder de terceiro (art.º 747.º, n.º 1 do CPC). Assim, no ato de apreensão, importa verificar se o terceiro tem os bens em seu poder por via de penhor ou de direito de retenção e, neste caso, poder proceder de imediato à sua citação – cfr. n.º 2 do art.º 747.º do CPC. Na realização da penhora, o funcionário da AT deve apenas penhorar os bens suficientes para o pagamento da dívida (cfr. art.º 217.º do CPPT), de acordo com o princípio da proporcionalidade. Deve ser considerado o valor dos bens penhorados, podendo ser realizadas tantas penhoras quantas as necessárias, não sendo de excluir a possibilidade da penhora de bens que tenham já sido penhorados noutras execuções. Contudo, existem bens que são impenhoráveis e outros que o são apenas em determinadas circunstâncias, de acordo com os art.ºs 736.º e ss do CPC. Em cada momento, o órgão da execução fiscal deve decidir a suficiência dos bens penhorados, considerar o valor dos bens penhorados, determinar o valor dos créditos reclamados e as garantias do credor. A penhora encontra-se sujeita a regras. Quanto aos limites quantitativos, refere o art.º 217.° do CPPT, sobre a extensão da penhora, que é efetuada a penhora sobre os bens suficientes para o pagamento da dívida. Contudo, quando o produto dos bens penhorados for insuficiente para o pagamento da dívida, a execução prossegue em outros bens. Relativamente aos bens prioritariamente a penhorar, a penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e sejam adequados ao montante da dívida (n.º 1 do art.º 219.º do CPPT). No caso de dívida com privilégio e, na falta de bens a penhorar, a penhora começa pelos bens a que o privilégio respeitar (n.º 2 do art.º 219.º do CPPT). Se a dívida tiver garantia real que onere bens do devedor, a penhora começará por estes bens e só prosseguirá noutros bens quando sejam insuficientes os 29 Patrícia Anjos Azevedo primeiros (n.º 4 do art.º 219.º do CPPT). Finalmente, em termos de formalidades, existem regras específicas para: a penhora de bens móveis em geral (art.º 221.° do CPPT), a penhora de bens móveis sujeitos a registo (art.º 230.º do CPPT), a penhora de bens imóveis (art.º 231.° do CPPT), a penhora de automóveis de aluguer (art.º 222.° do CPPT), a penhora de dinheiro ou valores depositados (art.º 223.° do CPPT), a penhora de créditos (art.º 224.° do CPPT), a penhora de partes sociais ou quotas (art.º 225.° do CPPT), a penhora de títulos de crédito emitidos por entidades públicas (art.º 226.° do CPPT), a penhora de abonos, vencimentos (funcionários públicos) ou salários (entidades privadas) (art.º 227.° do CPPT), a penhora de outros rendimentos (art.ºs 228.° e 229.°, ambos do CPPT) e a penhora do direito a bens indivisos (art.º 232.º do CPPT). Relativamente à penhora de abonos, vencimentos ou salários, são impenhoráveis dois terços da parte líquida destes valores (cfr. n.º 1 do art.º 738.º do CPC). Esta penhora é determinada pelo órgão da execução fiscal que, para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas, apenas considera os descontos legalmente obrigatórios (art.º 738.º, n.º 2 do CPC). Esta impenhorabilidade tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais, à data de cada apreensão e, como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional (cfr. art.º 738.º, n.ºs 3 e 4 do CPC). 4) Convocação de credores e verificação, graduação e reclamação dos créditos Após a penhora, segue-se a fase da convocação dos credores do executado (por meio de citação) para que possam, se for caso disso, reclamar os seus créditos (cfr. art.º 245.º, n.º 2 do CPPT). Esta citação visa garantir o concurso de credores, nos termos do art.º 604.º do Código Civil, que determina que, “não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chega para integral satisfação dos débitos.” (n.º 1 do art.º 604.º do Código Civil). “São causas legítimas de preferência (…) o consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção” (n.º 2 do art.º 604.º do Código Civil). Para reclamar os seus créditos no processo de execução fiscal, o credor deve gozar de garantia real sobre os bens penhorados e estar munido de um título exequível, como prova da existência de um crédito (cfr. art.º 788.º, n.ºs 1 e 2 do CPC). Os credores titulares de garantia real podem ser conhecidos ou desconhecidos, sendo os primeiros citados através de carta registada com aviso de receção ou através de transmissão eletrónica de dados, que vale como citação pessoal, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do art.º 191.º do CPPT. Quanto aos desconhecidos, estes são citados por éditos de dez dias, de 30 Breves notas sobre a tramitação do processo... acordo com o previsto no n.º 2 do art.º 239.º do CPPT. A convocação dos credores conhecidos ou desconhecidos só pode ter lugar quando exista, no processo de execução fiscal, informação concreta sobre direito real de garantia a favor daqueles sobre os bens penhorados, sem prejuízo de reclamação pelos credores, no prazo de 15 dias após a sua citação, nos termos do n.º 1 do art.º 240.º do CPPT. O órgão da execução fiscal só procede à convocação dos credores quando dos autos conste a existência de direito real de garantia sobre os bens penhorados (art.º 240.º, n.º 3 do CPPT). Esta garantia real apenas inclui o penhor, a hipoteca e o direito de retenção. É também citado o cônjuge do executado na execução para cobrança de coimas ou dívidas tributárias da responsabilidade tributária exclusiva de um dos cônjuges (art.º 220.º do CPPT) ou ainda quando a penhora incida sobre bens imóveis ou móveis sujeitos a registo (art.º 239.º, n.º 1 do CPPT). O cônjuge é citado, nos termos do art.º 239.º, n.º 1 do CPPT, para pagar a dívida exequenda, requerer o pagamento em prestações, oferecer bens em pagamento ou deduzir oposição à execução, beneficiando assim dos mesmos direitos processuais que o devedor originário (cfr. art.º 787.º, n.º 1 do CPC). O cônjuge passa assim a ser co-executado e, por isso, não pode deduzir embargos de terceiros, só podendo deduzir oposição ou apresentação reclamação, nos termos do art.º 276.º do CPPT. Na eventualidade de ter sido deduzido embargo, este pode ser convolado em reclamação se tiver sido deduzido no prazo de 10 dias, previsto no n.º 1 do art.º 277.º do CPPT. Os credores que gozem de garantia real podem reclamar os seus créditos no prazo de 15 dias após a citação – cfr. art.º 240.º, n.º 1 do CPPT. “Os chefes dos serviços periféricos locais da área do domicílio fiscal da pessoa a quem foram penhorados os bens e da situação dos imóveis ou do estabelecimento comercial ou industrial onde não corra o processo” apresentam, no prazo de 15 dias a contar da citação, certidão de dívidas que devam ser reclamadas – art.º 241.º, n.º 1 do CPPT. O chefe do serviço periférico local onde correr o processo junta ao mesmo, no prazo de 10 dias a contar da penhora, a certidão de dívidas. Por último, qualquer credor com garantia real pode reclamar espontaneamente o seu crédito na execução até à transmissão dos bens penhorados – cfr. n.º 4 do art.º 240.º do CPPT. A reclamação, verificação e graduação de créditos deve processar-se por apenso ao processo de execução fiscal (cfr. n.º 8 do art.º 788.º do CPC). Os credores podem reclamar da verificação e graduação de créditos, nos termos do art.º 276.º do CPPT, tendo esta reclamação efeitos suspensivos e subida imediata para o tribunal tributário de primeira instância (n.º 4 do art.º 245.º do CPPT). Os processos que tenham subido ao tribunal tributário de primeira instância, em virtude da reclamação da decisão do órgão da execução fiscal, para decisão da verificação e graduação de créditos, são devolvidos ao órgão da execução fiscal após o trânsito em julgado da decisão (art.º 247.º, n.º 1 do CPPT). Esta reclamação encontra-se sujeita ao pagamento de uma taxa de justiça, nos termos previstos no Regulamento das Custas dos Processos Tributários (RCPT), 31 Patrícia Anjos Azevedo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 29/98, de 11 de fevereiro. A taxa de justiça é devida pelo credor reclamante e é liquidada de acordo com os valores constantes da tabela a que se refere o art.º 9.º, n.º 4 do RCPT. As custas a suportar pelo credor abrangem também os encargos relativos ao reembolso das despesas referidas no art.º 20.º, n.º 1, alíneas a) a f) do RCPT. A reclamação de créditos é formulada por cada credor, sendo que o crédito exequendo (que é exigido no processo de execução em que está a ser feita a venda dos bens) não carece de ser reclamado – n.º 2 do art.º 240.º do CPPT. Os créditos exequendos em sede de IRS e de IRC beneficiam de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora. Todavia, estes créditos, quando sejam em sede de IVA, não gozam de privilégio imobiliário, encontrando-se apenas garantidos pela penhora do imóvel efetuada, o que lhes confere o direito de preferência sobre qualquer outro credor que não detenha garantia real anterior – cfr. n.º 1 do art.º 822.º do Código Civil. A verificação e graduação dos créditos é feita pelo órgão de execução fiscal, que procede à notificação de todos os credores reclamantes (n.º 2 do art.º 245.º do CPPT). Esta verificação e graduação é prévia à realização da venda dos bens penhorados, apresentando “efeito suspensivo quanto ao seu objeto, sem prejuízo do andamento da execução fiscal até à venda dos bens” – cfr. art.º 245.º, n.º 1 do CPPT. Depois de realizada a venda, são efetuados os pagamentos de acordo com a graduação dos créditos reclamados. Até ao momento da venda, o executado pode proceder ao pagamento da dívida exequenda e acrescido, extinguindo-se o processo de execução fiscal e o procedimento de verificação e graduação dos créditos. Quanto à graduação dos créditos, esta deve ser feita em relação a cada um dos bens penhorados pelo facto de a garantia atribuída a cada um deles poder ser diferente de um bem para outro. Compete ao órgão da execução fiscal analisar os elementos respeitantes ao crédito e à garantia real. No caso de insuficiência ou irregularidade, o órgão da execução fiscal deve notificar o credor para que este, no prazo de 10 dias a contar da notificação, supra a falta, sob pena de uma eventual reclamação não poder ser admitida – cfr. art.º 23.º do CPPT. Na graduação de créditos não é admitida a reclamação de créditos do credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário quando a penhora tenha incidido sobre um bem apenas parcialmente penhorável, nos termos do art.º 738.º do CPC, renda, outro rendimento periódico, veículo automóvel ou bens móveis de valor inferior a 25 UC; ou, sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda corrente, nacional ou estrangeira, ou depósito bancário em dinheiro; ou, sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, este requeira a consignação de rendimentos ou a adjudicação, em dação em cumprimento, do direito de crédito no qual a penhora tenha incidido, antes de convocados outros credores – cfr. art.º 788.º, n.º 4, alíneas a), b) e c) do CPC. Os créditos exequendos e outros créditos reconhecidos gozam de privilégios gerais, de privilégios especiais, de hipoteca, de penhora, de penhor e outras garantias 32 Breves notas sobre a tramitação do processo... reais, de acordo como o previsto nos art.os 735 e ss do Código Civil. A decisão do órgão de execução fiscal quanto à graduação do crédito deve notificado a todos os credores reclamantes e ao executado, com a indicação de que os credores podem, no prazo de 10 dias, reclamar para o juiz do Tribunal Tributário no prazo de 10 dias, nos termos do art.º 278.º, n.º 3, al. e) do CPPT. O tribunal pode ser chamado, em sede de reclamação da decisão do órgão de execução fiscal, a verificar e graduar os créditos reclamados (art.º 247.° do CPPT). Este processo de verificação e graduação de créditos tem efeito suspensivo quanto ao seu objeto, sem prejuízo do andamento da execução fiscal até à venda dos bens (art.º 245.°, n.° 1 do CPPT). Os processos que tiverem subido para o tribunal tributário de 1ª instância são depois devolvidos ao órgão da execução fiscal após o trânsito em julgado da decisão (art.º 247.º, n.º 1 do CPPT). Na reclamação é observado as disposições do Código de Processo Civil, sendo apenas admitido prova documental (art.º 246.°, n.º 1 e 2 do CPPT). 5) Venda dos bens penhorados A decisão do órgão da execução fiscal que determine a venda dos bens penhorados deve ser devidamente fundamentada, com a indicação dos motivos que levaram a esta decisão, por forma a que o executado possa exercer a sua defesa, tendo em conta os elementos produzidos na decisão. Os bens são vendidos para que o produto da venda seja atribuído ao credor exequente. A venda dos bens penhorados realizar-se-á após o termo do prazo de reclamação de créditos (cfr. art.º 244.°, n.º 1 do CPPT), em função da graduação dos créditos e de acordo com o mapa de liquidação elaborado pelo órgão da execução fiscal. Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim (art.º 244.º, n.º 2 do CPPT). Esta proibição de venda não é aplicável aos imóveis cujo valor tributável se enquadre, no momento da penhora, na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano destinado a habitação própria e permanente em sede de IMT, cujo VPT não seja superior a € 574.323 – cfr. art.º 17.º do CIMT – (art.º 244.º, n.º 3 do CPPT). A venda só pode ocorrer no ano após o termo do prazo para pagamento voluntário da dívida mais antiga (art.º 244.º, n.º 4 do CPPT). A penhora do bem imóvel referido no n.º 2 não impede a prossecução da penhora e venda dos demais bens do executado, tais como contas bancárias, automóveis e outros bens (art.º 244.º, n.º 5 do CPPT). O impedimento da venda pode cessar a pedido do executado, que pretenda que a sua habitação seja vendida para satisfação do crédito à Fazenda Pública (art.º 244.º, n.º 6 do CPPT). 33 Patrícia Anjos Azevedo A venda é feita preferencialmente por meio de leilão eletrónico ou, na sua impossibilidade, por meio de propostas em carta fechada (art.º 248.° do CPPT), cumprindo-se o disposto nos art.ºs 248.° e ss do CPPT quanto aos procedimentos no âmbito da venda. A venda por leilão eletrónico decorre durante 15 dias, sendo o valor base o correspondente a 70% do determinado nos termos do art.º 250.º do CPPT (cfr. art.º 248.º, n.º 2 do CPPT), que determina que: nos imóveis urbanos, o valor base é o VPT – alínea a) do n.º 1 do art.º 250.º do CPPT; nos imóveis rústicos, o valor patrimonial é atualizado com base nos fatores de correção monetária – alínea b) do n.º 1 do art.º 250.º do CPPT; nos bens móveis, pelo valor que lhes tenha sido atribuído no auto de penhora, salvo se outro for apurado pelo órgão de execução fiscal – alínea c) do n.º 1 do art.º 250.º do CPPT. Na ausência de propostas, a venda é feita mediante propostas em carta fechada, que decorre durante 15 a 20 dias, sendo o valor base reduzido para 50% do previsto no art.º 250.º do CPPT (n.º 3 do art.º 248.º do CPPT). Não sendo apresentadas quaisquer propostas, é aberto um novo leilão eletrónico durante 15 dias, sendo adjudicado o bem à proposta de valor mais elevado (n.º 4 do art.º 248.º do CPPT). Os procedimentos da venda dos bens por leilão eletrónico estão fixados na Portaria n.º 219/2011, de 1 de junho. Os bens devem estar patentes no local indicado, pelo menos até ao dia e hora limites para receção das propostas, sendo o depositário obrigado a mostrá-los a quem pretende examiná-los (cfr. n.º 6 do art.º 249.º do CPPT). Os titulares do direito de preferência na alienação dos bens devem ser notificados do dia e hora da entrega dos bens ao proponente para poderem exercer o seu direito no ato de adjudicação (n.º 7 do art.º 249.º do CPPT). O órgão de execução fiscal pode determinar outras modalidades (extrajudiciais) de venda dos bens penhorados. A modalidade de venda extrajudicial mais frequente é a venda por negociação particular, que apenas deverá ocorrer nos casos previstos no art.º 252.º do CPPT, ou seja: (i) se no dia designado para a abertura de propostas se verificar a inexistência de proponentes ou a existência de propostas de valor inferior ao valor-base anunciado; (ii) se os bens a vender forem valores mobiliários admitidos a cotação em bolsa; (iii) se for determinado pelo órgão de execução fiscal, que entenda que há vantagem nesta negociação particular, dada a natureza dos bens penhorados; ou ainda (iv) se existir urgência na venda dos bens ou estes serem de valor não superior a 40 unidades de conta (cfr. n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 252.º do CPPT). A venda dos bens pode ser publicitada através da afixação de editais, publicação de anúncios e divulgação na internet (cfr. Lei n.º 15/2001, de 5 de junho). A publicação da venda através da internet está regulamentada na Portaria n.º 352/2002, de 3 de abril. Os meios de publicação da venda devem incluir as seguintes indicações (cfr. art.º 249.º, n.º 5 do CPPT): designação do órgão por onde corre o processo; nome ou firma do executado; identificação sumária dos bens; local, prazo e horas em que os bens podem 34 Breves notas sobre a tramitação do processo... ser examinados; valor base da venda; designação e endereço do órgão a quem devem ser entregues ou enviadas as propostas; data e hora limites para receção das propostas; data, hora e local de abertura das propostas; qualquer condição prevista em lei especial para a aquisição, detenção ou comercialização dos bens. No momento da publicação da venda, devem ser notificados os titulares do direito de preferência para poderem exercer o seu direito no ato da adjudicação, segundo prescreve o n.º 7 do art.º 249.º do CPPT. Os bens são adjudicados à proposta de valor mais elevado, tendo o adjudicado que depositar a totalidade do preço à ordem do órgão da execução fiscal, no prazo de 15 dias a contar da decisão de adjudicação, sob pena das sanções previstas legalmente – cfr. alínea e) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT. Nas aquisições de bens de valor superior a 500 vezes a unidade de conta, mediante requerimento fundamentado do adquirente, entregue no prazo máximo de cinco dias a contar da decisão de adjudicação, pode ser autorizado o depósito, no prazo referido anteriormente, de apenas parte do preço, não inferior a um terço, obrigando-se à entrega da parte restante no prazo máximo de oito meses – cfr. alínea f) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT. O adquirente dos bens, ainda que demonstre a sua qualidade de credor, nunca será dispensado do depósito do preço, nos termos da alínea h) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT, salvo se se tratar do Estado, dos institutos públicos e das instituições de segurança social, que não estão sujeitos à obrigação do depósito do preço, enquanto tal não for necessário para pagamento de credores mais graduados no processo de reclamação de créditos – cfr. alínea i) do n.º 1 do art.º 256.º do CPPT. A venda dos bens só se torna efetiva após pagamento integral do preço e satisfeitas as obrigações fiscais, tais como o pagamento do IMT e do IS, no caso dos bens imóveis, ou do IVA, no caso dos bens móveis. A venda dos bens transfere para o adquirente os direitos do executado, sobre a coisa vendida, nos termos do n.º 1 do art.º 824.º do Código Civil. Além disso, “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo” – cfr. n.º 2 do art.º 824.º do Código Civil. No caso de pessoa singular, órgão da execução fiscal deve proceder à notificação dos titulares do direito de remição, segundo o art.º 258.º do CPPT, para que possam exercer os seus direitos. Este direito de remição é diferido ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens, à pessoa que vive com o executado em união de facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio), que tem o direito a adquirir os bens pelo preço a que foram adjudicados, e aos descendentes ou ascendentes do executado – cfr. art.º 842.º do CPC – seguindo-se a ordem prevista no art.º 845.º do CPC. Este direito é exclusivo das pessoas singulares, não assistindo este direito às pessoas coletivas, ao 35 Patrícia Anjos Azevedo contrário do que sucede no direito de preferência. Este direito de remição consiste, na prática, na possibilidade de remir todos os bens adjudicados ou vendidos ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda. Este direito de remição prevalece sobre o direito de preferência, segundo o n.º 1 do art.º 844.º do CPC, garantindo assim que os bens não saiam da família a que pertencem. Este direito pode ser exercido nas condições seguintes (art.º 843.º, n.º 1 do CPC): “a) No caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do artigo 825.º; b) Nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta”. Quando o direito de remição seja exercido depois do ato de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, o remidor deve depositar integralmente o preço com o acréscimo de 5 % para indemnização do proponente se este já tiver feito o depósito referido no n.º 2 do artigo 824.º, aplicandose, em qualquer caso, o disposto no artigo 827.º (n.º 2 do art.º 843.º do CPC). Caso contrário, o seu direito poderá ser posto em causa. Depois de adjudicados os bens, devem estes ser entregues ao adquirente, sendo que este pode, com base no título de transmissão, requerer ao órgão de execução, contra o detentor, e no próprio processo, a entrega dos bens – cfr. n.º 2 do art.º 256.º do CPPT. Caso o órgão da execução fiscal esteja com dificuldades na entrega dos bens, pode solicitar o auxílio das autoridades policiais para a entrega dos referidos bens ao adquirente – cfr. n.º 3 do art.º 256.º do CPPT. 6) Conclusão; extinção da execução O processo de execução fiscal extingue-se por (cfr. art.º 176.º, n.º 1 do CPPT): pagamento voluntário ou coercivo da quantia exequenda e do acrescido (art.ºs 261.º a 271.º do CPPT); anulação da dívida ou do processo (art.ºs 270.º e 271.º do CPPT); ou decurso do prazo de um ano contado da sua instauração (art.º 177.º do CPPT), o que significa que a tramitação deve ser célere, não devendo ocorrer a prática de atos desnecessários. Nas execuções por coimas ou outras sanções pecuniárias, o processo executivo extingue-se nos seguintes casos (cfr. art.º 176.º, n.º 2 do CPPT): morte do infrator; amnistia da contraordenação; prescrição das coimas e sanções acessórias; ou anulação da decisão condenatória. O processo de execução fiscal só pode ser suspenso nos casos especialmente previstos na lei, isto é, se existir uma reclamação graciosa, um recurso hierárquico, uma impugnação judicial ou um recurso judicial que tenha por objeto a legalidade da dívida exequenda ou ainda durante os procedimentos de resolução de diferendos no quadro da 36 Breves notas sobre a tramitação do processo... Convenção de Arbitragem n.º 90/436/CE, de 23 de julho, relativa à eliminação da dupla tributação em caso de correção de lucros entre empresas associadas (art.º 169.º do CPPT). Esta suspensão requer a constituição de garantia idónea, nos termos dos art.ºs 195.º e 199.º do CPPT ou a suficiência dos bens penhorados para garantia da dívida exequenda e acrescido. Contudo, a execução ficará igualmente suspensa no caso de o executado estar isento de prestar garantia, nos termos do n.º 4 do art.º 52.º da LGT, isto é, na circunstância de a sua prestação poder causar um prejuízo irreparável ou existir falta de meios económicos, desde que esta insuficiência ou inexistência de bens não seja da responsabilidade do executado. A garantia prestada para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal caduca se a reclamação não estiver decidida no prazo de um ano a contar da data da sua interposição (cfr. art.º 183.º-A, n.º 1 do CPPT), salvo se esse atraso resultar de motivo imputável ao reclamante. A verificação da caducidade cabe ao órgão competente para decidir a reclamação, devendo a decisão ser proferida no prazo de 30 dias (art.º 183.º-A, n.º 3 do CPPT). Sempre que se verifique a caducidade da garantia por deferimento expresso ou tácito, o órgão da execução fiscal tem de, no prazo de cinco dias, promover o cancelamento da respetiva garantia (cfr. art.º 183.º-A, n.º 5 do CPPT). O processo de execução fica ainda suspenso em caso de compensação de créditos a efetuar nos termos dos art.ºs 90.º e 91.º-A do CPPT, a pedido do contribuinte ou da AT. Em caso de insolvência do executado, o processo de execução fiscal fica sustado se for declarada a insolvência do executado ou encetadas negociações no âmbito do processo especial de revitalização – cfr. art.º 180.º do CPPT. REFERÊNCIAS CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013. FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015. MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014. NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017. ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008. SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011. Lei Geral Tributária – Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, com as posteriores 37 Patrícia Anjos Azevedo alterações. Código de Procedimento e de Processo Tributário – Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de outubro, com as posteriores alterações. Código Civil – Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de novembro, com as posteriores alterações. Código de Processo Civil – Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, com as posteriores alterações 38 EXCLUÍDOS PELA GENÔMICA: TESTES GENÉTICOS E TUTELA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE DO OBREIRO COMO EXPRESSÃO DA DIGNIDADE HUMANA “Não somos determinados pelos nossos genes, mas apenas influenciados por eles” (Eliane S. Azevêdo) Vivianne Rodrigues de Melo1 1) Introdução O Projeto Genoma Humano, como patrimônio universal da humanidade, resultou em uma mudança paradigmática sem precedentes, com avanços no campo da biotecnologia em contínua expansão. O paper é desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica e documental. Consiste em breve estudo sobre os testes genéticos pré-admissionais e de controle, no âmbito da relação trabalhista, e se tais avaliações podem ou não representar discriminação e lesão aos direitos da personalidade do obreiro e consequente alijamento dos postos de trabalho. 2) Discriminação genética a) Avanços da Genômica na prevenção das doenças O Projeto Genoma Humano foi concebido com o objetivo de desvendar os genes dos seres humanos, para promover um verdadeiro mapeamento genético da espécie. Alçado como patrimônio universal da humanidade, representa o clímax da revolução biotecnológica, com um impacto sem precedentes, na esfera dos direitos, por buscar, de maneira espetacular, a decodificação completa do código genético humano. Ao longo do tempo, a moderna Genômica avança na detecção de possíveis enfermidades, o que é considerado uma conquista científica de grande impacto na Humanidade. O resultado dos testes genéticos do membro de uma só família pode estampar a verdade genética de todo o resto do tronco familiar. 1 Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Especialista em Direito Administrativo, Legislação Ambiental e em Direito Médico. Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais Vivianne Rodrigues de Melo O século XX e os albores do século XXI testemunharam o avanço das pesquisas em biotecnologia e na genética clínica, com a identificação de doenças e marcadores genéticos. O desenvolvimento da engenharia genética possibilitou a chamada medicina preditiva, viés mais moderno desta ciência, por significar um passo além da medicina curativa e preventiva. Linhas gerais, a medicina preditiva centra-se na possibilidade de, a partir de testes genéticos (nível de genótipo), avaliar a predisposição do sujeito testado desenvolver doenças (nível fenotípico). Para LOCH (2014, p. 95) a Recomendação nº. 3/1992, do Conselho da Europa estabelece que os testes preditivos têm como objetivo: [...] diagnosticar e classificar doenças genéticas; identificar os portadores de genes defeituosos e proceder a um aconselhamento sobre possível chance de terem filhos acometidos de enfermidades; fazer a detecção de uma possível doença genética, antes mesmo de aparecerem os sintomas; identificar pessoas com risco de adoecimento em razão de gene afetado. Muitos estudiosos louvam os avanços da biomedicina como uma grande conquista social, da qual não se pode abrir mão. No dizer de Nascimento (2008, s.p.) “a predição pode trazer ao paciente a possibilidade de tratamento adequado antecipado, pretendendo que esta enfermidade não venha a se desenvolver, ou mesmo se isto vier a ocorrer, que aconteça de forma mais amena”. Por outro lado, uma corrente de juristas que afirma que o Projeto Genoma Humano e suas vertentes continuativas trouxeram um risco de discriminação genética, visto que o indivíduo com a genética mapeada corre o risco de sofrer uma taxação temerária. Bandeira e Scariot (2006, p. 57) alimentam um receio de “surgimento de uma genetic under class (seres humanos de uma subclasse genética), considerada nãoempregável em razão do surgimento de uma nova forma de discriminação”. A capacidade de diagnóstico de Engenharia Genética passa a ser refletida a partir de critérios jurídicos e bioéticos, de forma a proteger o ser humano, contra abusos que podem eventualmente ser perpetrados a partir da própria ciência, por equívocos ou má interpretação, a exemplo da discriminação genética. b) Conceito e reflexões bioéticas sobre a discriminação genética O que se busca refletir, nesse ponto, é se a moderna genômica, a serviço da saúde e da vida, não poderia culminar em alguma forma de discriminação genética. Tal discrímen ocorre quando um ser humano sofre algum tipo de ação ou resposta preconceituosa, depreciativa ou segregadora, em razão de sua identidade ou condição genética irrepetível. Assim questiona Bú (2014, p. 241): “haverá uma rotulação e marginalização dos indivíduos que estejam geneticamente predispostos a comportamentos socialmente indesejáveis? Passaremos a julgar as pessoas pelos genes que possuem e não por aquilo que são e fazem”? O que releva considerar é que não existe uma causalidade determinante e 40 Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos... inexorável entre genética e manifestação da doença, pois, na maioria das vezes, esta depende de uma interação multifatorial complexa. O que não se pode deixar de ressalvar é certa “corrida do ouro” de empresas e laboratórios para testes genéticos, dos mais variados, com um apelo emocional profundo. Algumas delas oferecem testes genéticos para crianças, para investigar a probabilidade de serem esportistas, com um layout altamente apelativo, voltado para os pais, para “tornarem o filho um campeão”. Por um ângulo, não seria uma coisificação do ser humano e uma estigmatização e discriminação forçadas à própria criança, nos primeiros anos de sua vida, sem ter a capacidade de escolha? Dessa forma, realidades como esta demonstram a necessidade de se aprofundar uma reflexão bioética, para que o uso indiscriminado de testes genéticos não acabe por tornar uma via discriminatória, sem aconselhamento médico, para atender a um interesse econômico puro. 3) Tutela da personalidade x discriminação genética A personalidade é um atributo que faz parte da condição humana, da natureza de ser pessoa. Tal natureza concentra uma série de características que tornam o ser humano titular de direitos e obrigações. O art. 11 do Código Civil brasileiro dispõe que “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. O Enunciado nº. 274 das Jornadas de Direito Civil, organizadas pelo Conselho Federal da Justiça brasileira, prevê se tratar de “expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1º, III, da Constituição (princípio da dignidade da pessoa humana)”. A identidade genética está atrelada à personalidade humana como fundamento da própria condição biológica: “[...] está assentada na sua unicidade e exclusividade biológicas, prerrogativas em que se funda o direito à identidade genética, parte integrante dos direitos personalíssimos, imanentes a todos os indivíduos, com importância inquestionável na conformação do ser humano em todos os planos” (Bandeira e Scariot (2006, p. 47). É possível invocar a salvaguarda da tutela da responsabilidade por prática biomédica, em se tratando da condução e abordagem de testes genéticos. Desta feita, a realização dos testes genéticos deve fundar-se nos clássicos princípios do jusnaturalismo: “pacta sunt servanda, honeste vivere e suum cuique tribuere” (viver honestamente, não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu). a) Direito à intimidade O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de um arcabouço constitucional essencialmente protetivo do direito à intimidade. O art. 1º, inciso III da Constituição Federal apresenta o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da 41 Vivianne Rodrigues de Melo República Federativa do Brasil- CF/88. O art. 5º, X da Constituição estabelece que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, sem embargo de outros direitos que lhes possam acrescer. Na lição de Silva (2011, p. 51): [..] o direito à intimidade genética consiste na faculdade que o indivíduo possui de manter o Estado, bem como os particulares, afastados de suas informações genéticas, sendo, portanto, como já salientado, um direito que se evidencia a partir do desenvolvimento biotecnológico e da possibilidade de se estudar e investigar os genes, mormente para se verificar a maior ou menor propensão de uma pessoa a desenvolver determinada enfermidade, tal como a diabetes, câncer, doença de Alzheimer, dentre outras. Os dados genéticos devem ser contemplados pelo direito à intimidade, de forma que o indivíduo testado tenha as suas informações protegidas. Nesta seara investigativa, não se poderia deixar de levantar que faz parte do próprio direito à intimidade o direito do paciente ou usuário de serviço de testagem não saber ou não querer conhecer os resultados respectivos. Para Morais (2003, p. 162) “liberdade significa, hoje, poder de realizar, sem interferências de qualquer gênero, as próprias escolhas individuais, exercendo-as como melhor convier”. A esfera do exercício da liberdade envolve, em regra, o indivíduo escolher ou não se submeter os testes genéticos e também de exercer o direito de não saber os resultados dos exames. A tutela do direito à intimidade genética é de importância indiscutível. Está ligada à proteção efetiva da vida privada, como explicado por Casabona (2002, p. 27), para quem “é de sumo interesse não só para o sujeito de quem provém, isto é, para quem foi submetido às análises genéticas, mas também para terceiros”. Por envolver informações e direitos de terceiros não participantes dos testes os resultados da moderna genômica podem culminar em conflitos de interesses os quais devem ser equacionados de alguma forma, “quando um terceiro é um familiar afetado, que solicita a informação pela possibilidade de ele apresentar um gene patológico” (Casabona, 2002, p. 27). b) Direito à autodeterminação O Código de Nuremberg (1947) e a Declaração de Helsinque (1964) são paradigmas de soft law, na afirmação internacional dos Direitos Humanos, notadamente, da Bioética, do Biodireito e do Direito Médico. Constituem bases fundamentais para o conceito de autodeterminação, diante das experimentações antiéticas com seres humanos na segunda grande guerra mundial. Tais instrumentos correspondem ao conceito jusprivatístico de autonomia privada e relacionam-se ao direito do ser humano construir seu próprio destino. A 42 Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos... autonomia privada toca os planos dos direitos patrimonial e não patrimonial, integra o estatuto jurídico de novos direitos e condiz com a autodeterminação informativa de quem se submete a testes genéticos. A submissão a exames genéticos diz respeito aos desígnios do próprio indivíduo, de escolher ser testado ou não, e também em relação à informação e acesso aos resultados de tais exames, como relativo controle pessoal do discrímen. 4) Discriminação genética no âmbito laboral A discriminação genética opera-se na seara laboral quando, nesta relação empregatícia, o obreiro sofre qualquer espécie de ação ou resposta preconceituosa, depreciativa ou segregadora, praticada pelo empregador, em razão de sua identidade ou condição genética, que lhe é irrepetível. O art. 1º. da Convenção nº. 111 da OIT, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 62.150/1968, define discriminação em matéria de emprego e profissão como: a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou tratamento em matéria de emprego ou profissão, que poderá ser especificada pelo Membro interessado depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam e outros organismos adequados. Xavier (2005, p. 145) alerta que "a questão não se limita ao trabalhador, mas prende-se com toda a pessoa – vida é dignidade pessoal. Aliás, na integridade do patrimônio genético está a privacidade própria e alheia”. Dentre outros casos que se popularizaram, destaca-se o episódio americano, nos anos 70, de proibição estabelecida pela Academia da Força Aérea dos Estados Unidos, como forma de discriminação genética, para boicotar a admissão de pilotos portadores do gene de anemia. Por meio dos testes genéticos, o setor empregatício pretende elaborar um registro cadastral do respectivo empregado, acervo no qual são lançadas as probabilidades do obreiro desenvolver algum tipo de doença apontada no resultado do exame. Pode haver, em regra, duas etapas relacionadas aos testes genéticos em trabalhadores: a etapa préadmissional, quando a empresa condiciona a contratação mediante prévia realização de exames genéticos. A segunda etapa corresponde à exigibilidade dos testes genéticos de controle, em razão de exposição a material supostamente nocivo. Oliveira (2005, p. 155) defende a exclusão de “qualquer seleção baseada em hipersusceptibilidade de origem genética”, ao menos até a Ciência avançar de forma a garantir a segurança dos cidadãos obreiros, que têm direito de ser integrados a políticas 43 Vivianne Rodrigues de Melo de prevenção altamente seguras e pautadas na transparência e boa-fé patronal. Por outro viés, há quem possa defender a liceidade da empresa empreender testes genéticos, em nome da segurança e da saúde de seus obreiros, em casos de exposição a radiação e a produtos altamente nocivos. Destaca-se a importância do biomonitoramento realizado em bombeiros e em policiais militares que patrocinaram socorro e segurança pública, na ocasião do acidente césio-137, no ano de 1987, em Goiânia. Pesquisa realizada por Flores (2008, p. 47) foi concludente no sentido de avaliar a incidência de mutações no DNA dos profissionais testados e outrora expostos à radiação ionizante. Em complementação à hipótese trazida à colação, Ossege e Garrafa (2015, p. 234) reconhecem que a testagem genética pode atuar na seleção dos obreiros para fins de realocar a mão-de-obra e diminuir o absenteísmo em caso de doenças de cunho laboral. Reflete-se, nesta oportunidade, se há risco na exigência de testes genéticos em concursos públicos, a exemplo de concursos para ingressos em carreiras militares. Ora, se os exames de saúde, incluindo os psicotécnicos, já são altamente rigorosos, o que se dirá sobre testes genéticos de condicionantes de personalidade, para averiguar potencial comportamento agressivo ou risco de adoecimento? Haveria um risco de formação intencional de um exército (super) homens sãos? Há juristas que identificam, a partir dos conceitos de reducionismo e determinismo genéticos, sério risco de se estigmatizar a classe trabalhadora. A propósito, Nacif (1999, p. 109) versa sobre a alegoria do homem de cristal, como “aquele a respeito de quem se pode obter informação sobre aspectos genéticos da sua personalidade, condições de saúde e habilidades potenciais, ou seja, a respeito de quem se pode obter os chamados dados sensíveis - aqueles que afetam a intimidade da pessoa [...]". De fato, com o Projeto Genoma Humano e sua repercussão na seara trabalhista, há estudiosos que apontam o risco de uma taxação temerária. Para Araújo (2000, s.p.) a discriminação dá-se pelo fato de “sabendo o código genético do ser humano, será possível prever as possíveis doenças que o empregado pode vir a ter e com isso se permitir a escolha do funcionário geneticamente melhor para uma contratação ou uma promoção”. Em razão dessas práticas, Castellanelli (2015, s.p.) rejeita o chamado rastreamento genético pré-admissional, razão pela qual condiciona a aplicação do direito à igualdade de acesso ao emprego no momento da admissão: “[...] para que não haja a discriminação genética, numa lógica empresarial de rentabilidade econômica e ponderação do risco, detectando nesta fase a existência de problemas genéticos hereditários ou predisposições patológicas para vir a contrair certas doenças ou vir a padecer de certa incapacidade”. De igual modo, Myszczuk e Meirelles (2017, p. 12-13) defendem que a excepcionalidade da exigência e emissão de atestados admissionais e demissionais que envolvam capacidade laborativa baseada em testagem genética, desde que constituam a “única fonte determinante para demonstrar a aptidão do trabalhador para aquela 44 Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos... determinada função e sob a perspectiva de proteção do trabalhador ou outros trabalhadores com quem dividirá suas funções”. É bem verdade que o mercado de trabalho é altamente excludente e pela própria natureza da exigência de capital humano na livre concorrência, pode colocar os trabalhadores à prova e diante de parâmetros de contratação que podem soar discriminatórios. A partir dessa ideia, Xavier (2005, p. 158) diz que “o interesse do indivíduo em conservar a saúde — especialmente quando existem situações de crise no mercado do trabalho — pode ser posto em perigo, se o emprego das análises genéticas do genoma prejudicarem uma protecção objectiva no trabalho em benefício de critérios de selecção subjectivos”. 5) Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos da personalidade do obreiro como expressão da dignidade humana A possibilidade de requerer exames genéticos pré-contratuais ou de controle na relação trabalhista toca profundamente o plano dos direitos da personalidade do trabalhador. Quanto custa a “certeza” da saúde do trabalhador para a empresa? Os dados genéticos constituem direitos fundamentais do trabalhador, exatamente por registrarem a sua codificação vital. Na definição de Farias e Rosenvald (2009, p. 136-137) direitos da personalidade são “[...] essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela jurídica”. Valores juridicamente valiosos como a vida, a dignidade da pessoa, a igualdade, a liberdade, a intimidade e a discriminação constituem direitos inatos à pessoa humana. Em relação à preservação da intimidade do trabalhador, em se tratando do teor dos testes genéticos, Campos (2011, p. 03) adverte que tais exames “não deverão ser obrigatórios ou impostos por coerção, ou serem pressupostos para certas relações ou serviços oferecidos, já que estariam ferindo a liberdade individual, a privacidade e o direito individual de autodeterminação, todos objetos de proteção constitucional”. Rios (1973, p. 480) defende o direito à proteção do trabalhador, contra a violação de sua intimidade e vida privada, já na fase pré-admissional, devendo patrão respeitar a “personalidade do empregado, direitos estes natos da pessoa, que protegem a integridade física, moral e intelectual”. Na seara laboral é preciso ter redobrado cuidado nesta delicada matéria, sob pena de se rotular os empregados, com a criação de uma espécie de “etiquetamento genético”, conforme explicado por Barbas (1998, p. 47): “o conhecimento ou possibilidade de conhecimento de informações genéticas acarreta riscos extraordinários, antes mesmo 45 Vivianne Rodrigues de Melo que se chegue a revelar, e dessa forma configura um instrumento de ilegítima discriminação social, sobretudo, com as pessoas etiquetadas pelos genes”. A maioria dos juristas repudia a demissão indiscriminada de obreiros, simplesmente baseada em prognósticos genéticos. Moreira (2004, p. 199-200), por exemplo, invoca a tutela dos direitos da personalidade do trabalhador e a salvaguarda da reserva da vida privada, “que inclui o património genético duma pessoa e o direito à intimidade genética, e o princípio da boa-fé, os exames genéticos devem ser, como regra geral, proibidos”. Decerto poderá haver situações especiais, provavelmente com os trabalhadores em atividades perigosas ou insalubres, cuja exposição seja determinante para agravar qualquer risco de adoecimento do obreiro, comprometendo sua individualidade genética. Nestes casos, a doutrina recomenda uma intervenção, da parte dos empregadores, desde que seja respeitado o direito do consentimento informado. Considera-se que todas as ações envolvendo testes genéticos em relação de trabalho devem ser muito bem conduzidas e sempre pautadas nos princípios bioéticos, diante da situação de vulnerabilidade do obreiro. Conforme lição de Bertucci et al (2012, p. 42): A legislação Brasileira bem como a jurisprudência predominante tem se manifestado a favor do uso de tais recursos biométicos para utilização em exames pré admissionais cuja função a ser exercida pelo candidato é passível da necessidade de pre requisitos biológicos específicos, tais como mergulhadores, trabalhadores em altura e desnível de pressão atmosférica, sem comprometer seu direito ao sigilo. O empregador deve honrar a boa-fé contratual, nas situações de exigibilidade de testes genéticos: “[...] para ter o emprego, garantindo assim o seu patrimônio mínimo, não pode o candidato submeter-se à qualquer exigência do empregador, sem as garantias mínimas à sua dignidade humana e respeito aos direitos de personalidade”. (RIOS, 1973, p. 479). Silva (2003, p. 31) estabelece a importância social do Biodireito na promoção da vida humana e dos direitos do homem relacionados ao sobre-desenvolvimento pósmoderno, a exempplo da investigação do genoma humano. Pesquisa implementada com Kunrath (2016, p. 517-518) avalia que os direitos da personalidade, quando incorporados na legislação ordinária infraconstitucional, caracterizam-se como direitos fundamentais, desde que harmonizados com a Constituição da República Federativa do Brasil. Segundo a autora tal modelo é contemplado pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o que pensamos aplicarse perfeitamente às relações privadas dos obreiros. De igual modo, GOSDAL (2006, p. 36) assinala que os direitos fundamentais "não apenas fundamentam o sistema político, como também a estruturação e conteúdo das instituições jurídico-privadas". Basile (2009, p. 33) concebe o "Direito do Trabalho como instrumento de compensação jurídica pela assimetria e a desigualdade econômica entre trabalhador e 46 Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos... tomador de serviços deve encontrar limites nos fundamentos da dignidade e do valor social do trabalho", razão pela qual o autor reclama a necessidade de se reinventar a hermenêutica e a aplicação do direito neste campo. Brasileiro e Gaudência (2016, p. 264) compreendem que "o direito ao trabalho deriva, igualmente, do epicentro axiológico do ordenamento jurídico, qual seja, a dignidade da pessoa humana", verdadeiro núcleo dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República Federativa do Brasil, conforme inciso III do art. 1º da Constituição Federal. Na ordem constitucional brasileira, o trabalho é qualificado como um direito social fundamental (art. 6º, caput, CF/88) e a busca do pleno emprego constitui relevante princípio da ordem econômica, "fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, inciso VIII e caput, CF/88). Segundo Fonseca (2006, p. 128) "para grande parte da doutrina, o direito do trabalho é um direito vinculado ao direito à vida, pois sem trabalho as pessoas não têm como proporcionar uma vida digna para si e para sua família". Ao empreender estudo sobre o princípio da igualdade e não discriminação e sua aplicação na relação de trabalho, Gurgel (2010, p. 58) reconhece a aplicabilidade do conteúdo jurídico dos princípios da dignidade humana e da igualdade na esfera privada. Em defesa da dignidade do trabalhador testado e de sua integridade psicoemocional, invoca-se o direito de não saber, ao fundamento de que o empregado tem o direito de ignorar o resultado dos testes genéticos, quando estes não lhe interessarem. É um direito fundamental do obreiro querer ou não se inteirar do resultado de tais exames genéticos, seja por temer algum tipo de discriminação ou por qualquer outro motivo. A situação jurídica que lhe diz respeito pode, todavia, se esbarrar no interesse jurídico de pessoas do mesmo tronco familiar do obreiro, o que gera um outro tipo de discussão jurídica. De todo modo, a gestão das empresas deve sempre se pautar na premissa de que os testes genéticos não devem ser um veículo de estigmatização e discriminação dos trabalhadores, para se formar uma mão-de-obra ultra saudável. Isto porque, além de ferir a dignidade do próprio empregado, não apresenta compatibilidade científica, haja vista as limitações do histórico familiar, sendo que a manifestação de doenças é um complexo multifatorial, que depende também, para alguns, de processos metabólicos e bioquímicos, que variam conforme local e condições em que o homem vive. É importante ter em conta, portanto, que o exercício do diagnóstico na medicina preditiva é dividido em doenças monogênicas e de predisposição genética, sendo certo que nesta última hipótese inexiste 100% de risco de manifestação da doença (MATTE e GOLDIM, 1998, s.p.). Para Oliveira (2011, p. 32), “o conceito de dignidade deveria interpretar-se atendendo ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à decisão constitucional de 47 Vivianne Rodrigues de Melo proteger, nos mais amplos termos, a autonomia e a liberdade de cada indivíduo”. Do contrário, o poder econômico representado pelos empregadores arrisca impor, em manifesta violação aos princípios da bioética e do biodireito, a formação de um segmento de trabalhadores robotizados e geneticamente perfeitos, concretizando-se a experiência fictícia do filme Gattaca (1997), panorama também lembrado por Nassif (1999, p. 118). 6) Conclusão O breve estudo da discriminação genética nas relações laborais nos permite as seguintes conclusões: 1. A Medicina Preditiva, viés da moderna Genômica, avança no sentido de prever a possibilidade dos pacientes e dos obreiros virem a desenvolver algum tipo de doença, ao nível fenotípico. 2. Pondera-se, todavia, que a Medicina Preditiva deve ser bem avaliada e conduzida, para não passar constituir uma via de discriminação genética e o caminho para uma resposta preconceituosa, aos que se submetem aos exames. 3. A discriminação genética pela classe empregadora resulta, com rigor científico, em manifesta afronta aos direitos da personalidade dos obreiros, especialmente aos direitos à intimidade e à autodeterminação. Depreende-se que se a empresa exigir exames genéticos pré-admissionais como condição de contratação, a contragosto do obreiro, ocorre uma violação a sua autodeterminação. Tal violação também pode ocorrer em razão de exames de controle. Além disso, pontua-se que o obreiro pode ser lesado em sua intimidade genética, quando a empresa acessa seus dados e marcadores e, com base nisso, o demite ou quando deixa vazar tais informações, todas elas também ligadas ao tronco familiar do empregado. 4. Por outro lado, resta evidente que em situações excepcionais, já avaliadas inclusive pela OIT, os testes podem ser realizados. São situações nas quais o empregado testado ou os demais empregados podem correr risco em sua saúde pessoal. Nestas circunstâncias os exames genéticos se justificam, por uma questão de segurança e de proteção à integridade física, principalmente quando os trabalhadores possam estar expostos a substâncias perigosas, como a radiação ou a produtos químicos. É dizer: são casos nos quais os obreiros ficam mais expostos e por isso vulneráveis a sofrer riscos e danos consequentes. 5. Em todos os casos de condução de exames genéticos, adverte-se que estes devem ser muito bem conduzidos, em respeito aos direitos à informação e à reserva da privacidade de dados. Além disso, as empresas devem administrar de forma otimizada os resultados desse tipo de testes, por meio de setor médico competente, para que não se incorra no erro do reducionismo e determinismo genéticos, tão prejudiciais aos direitos personalíssimos do obreiro. 48 Excluídos pela genômica: testes genéticos e tutela dos direitos... 6. Uma política de transparência praticada pela empresa é a forma mais razoável para se garantir a própria segurança do obreiro. É preciso evitar a taxação temerária e a estigmatização dos trabalhadores, sob pena de violação da dignidade dos obreiros. 7. Tais questões envolvem a tutela dos direitos da personalidade como pura expressão da dignidade humana, razão pela qual é importante valorizar o caminho do meio e o exercício da ponderação nas relações sociais de trabalho que envolvem a moderna genômica. Defendemos, salvo melhor juízo, que, em regra, as empresas devem se abster de exigir os exames genéticos pré-admissionais e de controle e somente fazêlos em situações excepcionais de altíssima insalubridade ou periculosidade relacionadas a certas profissões. 8. Defendemos ainda o direito de não saber, em respeito à proteção ao patrimônio genético e ao direito à intimidade genética do obreiro. Por tais fundamentos, ao nosso ver, o obreiro possui o direito de recusar ou omitir informações as quais reputar indesejáveis a sua vida privada. O respeito à vontade do trabalhador é uma forma de conter o mau uso dos dados genéticos e uma indesejável seleção genética dos potencialmente saudáveis aos postos de trabalho como uma verdadeira afronta à dignidade humana. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Antônio Castro Alves de – Seleção pelo DNA. Discriminação genética é uma ameaça ao trabalhador. Consultor Jurídico. Publicado em 28/07/2010. ISSN 1809-2829. [Em linha]. [Consult. 07, Abr. 2017]. Disponível em www URL <http://www.conjur.com.br/2010-jul-28/discriminacao-genetica-ameacaintegridade-moral-trabalhador>. ASSOCIAÇÃO Médica Mundial - Declaração de Helsinki. VIII edição, elaborada pela Associação Médica Mundial (2013). [Em linha]. [Consult. 10 Jul. 2017]. Disponível em www URL <https://www.cometica.ufpr.br/Helsinque.htm>. AZEVEDO, Eliane S. – Ética e Genética. Bioética. Portal Médico, s.d. 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Disponível em www URL <http//www.bioetica.org.br/?siteAcao=DiretrizesDeclaracoesIntegra&id=2>. 53 UM PROJETO INTERSÉMIÓTICO JURIDICO: SUGESTAO PARA A DEFESA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DAS INSTITUIÇÔES FRENTE ÀS NOVAS TECNOLOGIAS Maria Christina Napolitano1 1) Introdução O Direito é linguagem, em tudo e por tudo, linguagem. Tal linguagem, para se tornar um texto ou um discurso jurídico (normativo, decisorio/jurisprudencial, burocrático, científico) ou um hipertexto, tem um percurso gerativo (processo semiótico ou de superposição sígnica) a seguir, em três plataformas, baseadas nas três matrizes da linguagem natural (sonora, visual e verba)l. A Semiótica, como disciplina, permitenos organizar o pensamento jurídico para o projetar-se do Direito no tempo e no espaço, a tornar-se um sistema semiótico jurídico, a favor e a cargo de uma comunidade linguística de sujeitos em interação. Outro ponto indispensável num projeto semiótico, como este - e coerente com o mesmo, é a transdisciplinaridade, assim que uma linha de pesquisa importante seria o “caos e a complexidade”. Como trazer tal preocupação ou tal abordagem científica transdisciplinar para a Cultura Jurídica? Propõe-se, aqui, que seja através de uma Acão Triádica ou de uma Tradução Intersemiótica (“triadepoiese”), que poderá ser permeabilizada e reforçada através do discurso jurídico cientíifco, em sua matriz verbal (Dogmática Jurídica). Este discurso jurídico científico para o qual se chama a atenção precisa estar aberto aos novos conhecimentos e tecnologias. Assim que, na plataforma de uma matriz verbal jurídica, a simultaneidade dos outros discursos normativo, decisorio/jurisprudencial e burocrático (ordenamento jurídico) pode encontrar seu aperfeiçoamento na continuidade e circularidade destas escalas. A Semiótica, como disciplina, ajuda-nos neste projeto, sendo que autores de diversas nacionalidades nos mostram este caminho. A começar do pesquisador norte-americano Charles Sanders Peirce, estudioso de varias disciplinas e conhecedor de muitos idiomas que, após tentar seguir outros caminhos, voltou a seu projeto original da Semiótica. Na mesma linha de pensamento, outros renomados juristas vem procurando o que há de lógico, formal e funcional no Direito. É chegada a oportunidade de nos unirmos neste projeto. Abandona-se, por exemplo, a ideia de que o discurso científico pretenda ser um discurso sobre a verdade, mas sim, um discurso fundado na persuasão, buscando o consentimento. É por meio de um exercício de linguagem, durante a experiencia jurídica, que se arquiteta o saber jurídico, dando-lhe Mestre em Direito e Doutora em “Direito das Relações Sociais”, pela Pontificia Universidade Católica de SãoPaulo (PUC/SP). Formação Acadêmica: Faculdade de Direito São Francisco, Universidade de São Paulo/USP/Turma de 1963. Especialização e Pós-Graduação em Direito Ambiental e em Ciencias Ambientais, na Universidade Estacio de Sá – UNESA/RJ. Brasil . E.Mail: christinapolitanoadv@yahoo.com.br 1 Maria Christina Napolitano expressividade, forma, exteriorização, envolvendo-o pelos aspectos culturais da comunidade semiótica à qual está destinado, axiologizando-o e ideologizando-o, a partir das demais condicionantes que participam da dinâmica dos saberes. Estaremos diante das Fontes do Direito, como expressão e condições de validade dos Modelos do Direito, seu conteúdo. O mais important é que se retenha, com relação à Ciencia Jurídica, o fato de que desta se destaca uma função social propria: a proteção dos direitos e a solução de conflitos. Então, as discussões sobre a verdade deixam de se colocar em primeiro plano, destacando-se em oposição a ela, esta outra noção de função social. O projeto de reconhecimento de uma significancia semiótica no seio da juridicidade só virá a acentuar a falencia de um modelo científico de tendencias estáticas, primando, ao contrario, pela acentuação dos diversos aspectos com os quais se pode visualizar uma realidade ou uma facticidade. Tudo o que o eminente jurista pátrio Reale, meu professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Faculdade São Francisco-Brasil) nos apontou, em sua vasta obra e longa experiencia jurídica, traduz esta orientação. Embora não se encontre, em sua obra, qualquer menção a Peirce, sua lógica é semelhante à tríade proposta por esse pesquisador, tendo sido o criador da teoria tridimencional do Direito: fatoxvalorxnorma. Reescrever e arquitetar semioticamente o Direito seria mais do que propor uma discursividade acerca da literalidade de palavras e signos em que se expressa a textualidade jurídica ou a discursividade jurídica..Observe-se que uma tríade veio continuamente aparecendo na lógica e nas ciencias especiais, primeiro na Psicologia, então na Fisiologia e na teoria das células, finalmente, na evolução biológica e, ainda, também, no cosmo físico. Estudos científicos mais recentes, como os da autopoiese (Maturana; Varella), trazidos através das ciencias da natureza, comprovam esta afirmação também para a área comunicacional do Direito (Niklas Luhman). Peirce, através de seu estudo das três categorias (primeiridade, secundidade, terceiridade) mostrou-nos que há possibilidades reais e contínuas, ou seja, possibilidades que podem não se atualizar nunca. Houve ainda outra descoberta importante e concomitante que lhe acrescentou confiança, precipitando os ajustamentos internos de sua obra: a descoberta das duas ações do universo, ação diádica – bruta, e ação triádica inteligente ou sígnica (aqui se propõe chamar triadpoiesis). Estas duas ações estão na base da divisão das ciencias especiais, no gigantesco sistema peirceano de classificação das ciencias, dentro do qual se insere a arquitetura de suas disciplinas filosóficas. Sua insistencia em generalizar a noção de signo, a ponto de não ter de referila apenas à mente humana, não mais soa como formalismo excêntrico, mas sim, como antecipação, visto que, com o advento da Cibernética, tal necessidade patenteou-se e revelou-se histórica e concretamente. Hoje, para falarmos dos processos da comunicação entre “máquinas”, não temos necessariamente de nos referirmos às peculiaridades da consciencia humana. Isto sem falar das descobertas da Biologia Molecular que estenderam a noção de signo (linguagem e informação) para o campo das configurações celulares. Em 1909, Peirce já chamara a atenção - que a tarefa para suprir estas necessidades deveria ser submetida ao teste da experiencia e ser tomada por um 56 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... grupo de investigadores. 2) Possibilidades iniciais, intersticiais e contínuas para a ciencia jurídica Com base nos princípios da Semiótica, como disciplina, propõe-se insistir nesta afirmação: O DIREITO É SIGNO, ou melhor, O DIREITO É UM SISTEMA DE SIGNIFICAÇÃO (SIGNIFICANTES e SIGNIFICADOS). Este é o caminho da descoberta, sem receitas, sem fórmulas, estrategicamente transformador: cada pesquisa constroi sua determinada ciencia, prescindindo de rótulos. No edificio argumentativo da pragmática peirceana, dedução e abdução andam juntas. Veja-se a atualidade de tal proposta, embora das primeiras décadas do século passado! Elementos e sua estrutura formam o sistema; e o que seja “estrutura”, neste ponto curiosamente importa saber que a etimologia pode dar-nos, com sucesso, a intelecção do que seja, da mesma maneira, uma estrutura linguística. Esta palavra provem do verbo latino “struere” que significa reunir, empilhar. A etimologia sugere, portanto, os pilares básicos sobre os quais se configura o conceito de estrutura: unidades elementares relacionam-se e são causa eficiente da construção que realiza a referida ordem. É possível admitir a existencia de um sistema jurídico, desde que se admita a existencia de criterios que definam a existencia e a sustentação de tal sistema: um repertorio de elementos e um modo peculiar de sua organização, distribuição e relação. Em outros termos, considerando-se o sistema como estrutura operante, infere-se que a todo sistema corresponde uma estrutura, e que o sistema nada mais é que a dinamização da estrutura, ou seja, o estático operacionalizado. Verifica-se, desde logo, a possibilidade de se visualizar o sistema jurídico, não como um conjunto esparso de discursos ilogicamente dispersos, desorientados e sem sentido. Sobre os objetos e os elementos de qualquer sistema atua uma ratio aedificandi, capaz de dotá-los de funcionalidade, disposição, organização, calibração e regulação. Mais para além desta discussão, podese mesmo identificar o sistema jurídico como um universo de discurso particular, em meio a inúmeras outras práticas textuais esparsas no mundo da cultura e distingui-lo em meio a outros universos de discurso, através do reconhecimento e do desvelamento de suas três matrizes de linguagem: matriz visual, matriz sonora, matriz verbal. Com efeito, se o universo jurídico é um grande conjunto de práticas textuais jurídicas, por outro lado, numa visão mais abrangente, é apenas uma constelação de sentido em meio a tantas outras. Este universo de linguagem, absolutamente particular, possui regras, conceitos, definições, injunções que o peculiarizam em meio a outros, de modo que se possa considerá-lo autônomo, mas não necessariamente independente, ou desligado dos demais sistemas, visto que preserva sua relação com os sistemas econômico, político, empresarial e, sobretudo, lembre-se – como aqui se afirma – com o universo da linguagem natural. São exatamente estes contatos que garantem a vivacidade e a plasticidade deste sistema, sempre sujeito à renovação, e não à estática, e sempre sujeito 57 Maria Christina Napolitano aos influxos advindos de outras linguagens técnicas, que não a sua propria. Isto é o que se poderia chamar “dialética intersistêmica”. É oportuno insistir que o sistema jurídico não é um sistema fechado (clausura), como pretenderam as escolas novecentistas, nem tampouco um sistema coerente de per si (acabamento lógicoarquitetônico), nem um sistema completo (totum). No entanto, não são quaisquer elementos que compõem o sistema jurídico e nem são quaisquer regras de calibração e de organização que ele pressupõe; entre seus principais elementos estão os discursos normativos que ele produz. E as regras de organização, distribuição e relacionamento destes discursos, por sua vez, são dadas por criterios hierárquicos e hermenêuticos. Se é do uso que deriva a significação dos signos, é do uso do sistema que se extrai também a sua propria significação. Consequentemente, cada ato de uso corresponde a uma dinamização do sistema, o que sempre se faz valendo-se o usuario de recursos de interpretação. Este é, portanto, um mister para a formação do proprio sistema jurídico. O proprio fato de ser lacunoso (modos de integração) e assimétrico (modos de calibração) não o destitui de seu papel primordial que é o funcionamento. Mesmo as chamadas “incoerencias” que ocorrem intra-sistemicamente surgem da propria vivencia dinâmica e dialética do sistema e da interação com inúmeras ocorrencias fenomênicas. Desta forma, se se modifica, vive modificando; e se é influenciado, vive influenciando; e se é capaz de engendrar, acaba sofrendo os efeitos do proprio engendramento. Pode-se mesmo dizer que, enquanto sistema aberto que é, o sistema jurídico não só admite a existencia de lacunas, e prevê os modos de sua integração e colmatação, mas necessita destas lacunas, pois a propria juridicidade requer a existencia de um vir a ser. Ora, este ser de devir opera-se por meio da incompletude, da polissemia e da realidade equívoca da semântica de seus termos, discursos e signos em geral. Desta forma, as lacunas passam a significar não um empecilho para a formação de um conceito de sistema, pois a juridicidade, o Direito como conjunto de práticas textuais, tem nas lacunas as formas de autopreenchimento e de auto-adequação – locus em que a pragmática tem condições de atuar. Isto porque a construção da significação jurídica, dos conceitos, valores e principios a ela pertinentes, constantes do amplo repertorio de elementos que compõem a juridicidade, depende da participação ativa de sujeitos responsaveis por sua atualização, em meio a práticas sociais. Lembre-se que a categoria de estrutura sempre desempenhou papel importante em varias disciplinas, e evidentemente, tambem, no campo do Direito, embora, neste último, sem a devida tomada de importancia. Talvez tenha sido o italiano Cesarini Sforza2 primeiro jusfilósofo a salientar em um estudo de 1918 - que não teve a devida continuidade - a importancia dos conceitos de estrutura e de função, concebendo-os como “unum et idem no fenômeno jurídico concreto”, em cuja evolução ambos “mantem o seu correlativo significado”. Não cabe nos limites do presente artigo reapresentar importantes teorias baseadas na noção de estrutura, mas sim, chamar a atenção para a relevancia do 2 In “Senso e condizione del progresso nella Scienza del Diritto”, na Rivista Italiana di Sociologia, fasc. 3-4, ora inserto em Vecchie e nuove pagine di Filosofia, Storia e Diritto, Milão, 1967, t. I, sobretudo p. 137 e segs.). Em 1959, Cesarini voltou ao assunto em um breve trabalho, “Regola, norma e struttura sociale”, op. cit., p. 375 e segs,: cf. Reale, in O Direito como experiencia, p. 148. 58 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... conceito de matriz, que poderia ajudar a diluir uma série de questões controversas, que sempre existiram com relação à estrutura, superestrutura, função e assim por diante. A tal querela “estruturalismo X historicismo” traduz, por si só, as perplexidades daqueles que vacilam entre posições abstratas, quando a tarefa que se impõe aos pensadores contemporaneos é bem outra: positividade sem positivismo e historicidade sem absolutização da historia, superando-se toda e qualquer mentalidade reducionista. Com certeza, a noção de matriz de linguagem, que a Semiótica e as ciencias cognitivas nos trazem, poderia ser um conceito-chave no sentido de uma concreta compreensão do fenômeno jurídico, como linguagem. A complexa e diversificada sucessão de figuras e modelos não surge nem se desenvolve por acaso, mas sim, em razão de causas ou motivos subjacentes, ordenando-se de modo temporal, funcional e hierárquico, refletindo o sentido da ordem que é imanente ao proprio “ato de pensar”. É claro que não se pode idealizar o ordenamento e o sistema jurídico como uma estrutura de tipo matemático, pois a sua é, antes, uma configuração na qual se situam corpos e discursos que correm paralelos uns aos outros, às vezes, se implicando e outras vezes se entrecruzando, todos, porem, se influenciando reciprocamente, por se acharem todos subordinados às mesmas razões finais de validade (valor). Esclarece-nos Reale: Costuma-se dizer que a lei é “obra do legislador”, dando-se, assim, ênfase a um determinado ato de decisão, mas na realidade, todo modelo legal envolve uma série de fatores, uns estudados pela Política do Direito, quando indaga, por exemplo, do significado da opinião pública, dos efeitos dos grupos de pressão ou expõe a técnica de legislar; outros fatores são de ordem sociológica, econômica, psicológica, linguística etc., o que tudo demonstra que a tarefa de legislar é de ordem arquitetônica ou de síntese. A mesma convergencia integrante de atos verifica-se, em escala maior ou menor, na constituição dos demais modelos jurídicos, pois eles, considerados no seu conjunto, cobrem toda a vida social, o que não significa que absorvam em si toda a vida social: ao contrario, o âmbito do não jurídico abrange todas as formas de vida, em função das quais o Direito existe, como instrumento essencial de garantia, seja no plano interno, seja internacional. Além disso, os modelos jurídicos tem o significado das formas de vida a que servem, não podendo ser convertidos em fins de si mesmos. Valem, tudo somado, em função e em razão do “não jurídico”3. Foi aqui dada ênfase à grandiosa obra do Prof. Reale porque, não só nos permite entrever a matriz visual do Direito, como também porque: 1º) Ao substituirmos a palavra “modelos jurídicos”, por “texto(s) das três matrizes da linguagem jurídica”, torna-se possível sobrepor ipsis litteris os ensinamentos do Mestre para a proposta deste trabalho, sem desvirtuá-los ou desprestigiá-los, ao contrario; 2º) Ao substituirmos a expressão “formas de vida” por “linguagens”, obtem-se o mesmo resultado; 3º) O ilustre jurista, ao empregar as expressões “significado da opinião pública”, “efeitos dos grupos de pressão”, permite-nos enxergar a complexidade da imagem de síntese do Direito 3 Cf. nota de rodapé na p. 179, in O direito como experiencia: Sobre o contraste das teorias que estendem ou não o direito a todas as formas de vida social, v. K. Engisch – El Ámbito del Non Jurídico, trad. de Ernesto Garzón, Valdés, Córdoba, 1960. 59 Maria Christina Napolitano – sua matriz predominantemente visual (lembre-se que a percepção visual constitui-se em cerca de 70% da percepção humana), cujo suporte é feito através da matriz sonora e destas para a matriz verbal e vice-versa, num jogo constante e circular de superposições, em busca de modulações ou modularidades jurídicas; 4º) Quando ele se refere a uma série de “fatores de ordem sociológica, econômica, psicológica, linguística etc.”, permitenos entrever que as matrizes da linguagem jurídica podem (e devem) encaixar-se às matrizes da linguagem natural e adequar-se às demais linguagens científicas; 5º) Quando ele se refere a “não jurídico”, permite-nos vislumbrar a abrangencia e a influencia da linguagem natural e das demais linguagens científicas, linguagens não jurídicas, sobre a linguagem jurídica; 6º) Quando ele se refere a uma “ordem arquitetônica”, permite-nos confirmar a existencia da estrutura de patamares, plataformas ou níveis (as três matrizes da linguagem jurídica). A questão da tridimensionalidade é tão relevante que, como afirma Reale, pode levar a distorções ou concessões finais a todos aqueles que proclamam a essencialidade do fato ou da norma no mundo do Direito4, sem a referencia a valor. Parece que a simples consideração das três matrizes da linguagem e pensamento, que a Semiótica nos proporciona e que as ciencias cognitivas nos confirmam, permite-nos compreender que, não obstante a natureza da linguagem do Direito ser predominantemente normativa, ela não é, nem exclusivamente normativa, nem está desvencilhada de tudo o que não seja normativo. Por não se darem fé desta base triádica, os juristas não perceberam que “somente pela linguagem – vista como condição de possibilidade e não como mero instrumento ou terceira coisa que se interpõe entre sujeito e objeto – é possível ter acesso ao mundo (do Direito e da vida)”, na feliz expressão do insigne professor brasileiro, Dr. Lenio Luiz Streck5. O importante – aqui parafraseando Castanheira Neves6 – não está em saber o que é o Direito em si (afinal, pretender ver o ente como o ente é, é “tarefa” da metafísica), mas sim, o importante é saber o que dizemos quando falamos do Direito, o que queremos dizer com, ou que significado tem as expressões linguísticas com que manifestamos e comunicamos este dizer o Direito e sobre o Direito. Dito de outro modo, o Direito não é tão simplesmente a Constituição, as leis, a jurisprudencia, a doutrina, ou qualquer outro conceito abstrato que lhe tenha sido dado pela Ciencia Jurídica. Não há um Direito “primevo-fundante”. Embora não se saiba como será o Direito no futuro, parece certo que ele possuirá esta mesma estrutura, ainda não totalmente descoberta, através da historia e no presente, por nós, operadores do Direito, e que as neurociencias nos ajudarão a descobrir e as ciencias da informação nos possibilitarão exprimir. Só a compreensão do conteúdo das Fontes do Direito - que são os Modelos do Direito é que tem a virtude de torná-lo susceptível de realizar-se ou efetivar-se na plenitude de sua potencial validade, não somente possibilitando que a regra jurídica seja vista como algo objetivo e válido de per si (independentemente da intenção originaria de quem a colocou In O direito como experiencia, p. 105 e segs.. In Hermenêutica jurídica e(m) crise, p. 167. 6 In Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, p. 89. Coimbra: Coimbra Editores, 1993, apud Lenio Luiz Streck, ibidem, p. 282, cuja leitura se recomenda. 4 5 60 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... in esse) e também que ela se efetive em todo o leque de suas virtualidades, até que surja imperiosa a revogação da norma vigente para dar lugar a novo processo legislativo ou a um novo paradigma. O conceito de modelo, em todas as ciencias, está sempre ligado à ideia de projeto, de planificação lógica e à representação simbólica e antecipada dos resultados a serem alcançados por meio de uma sequencia ordenada de medidas ou prescrições. Cada modelo expressa, portanto, uma ordenação lógica de meios a fins, constituindo, ao mesmo tempo, uma preordenação lógica, unitaria e sintética de relações sociais. Neste ponto, resulta que os modelos jurídicos não são meras criações da mente, mas sim, o resultado da ordenação racional do conteúdo das normas reveladas ou formalizadas pelas fontes do Direito, para atender aos pressupostos de validade objetiva autônoma e de atualização prospectiva destas mesmas normas. Segundo Reale 7, nada deve ser mais imerso no fluxo vital da experiencia do que a modelagem do Direito, muito embora a sua forma ou estrutura só seja possível com a abstração e o sacrificio do secundario e do residual, preservando-se as linhas essenciais da ação, num trabalho rigoroso de qualificação tipológica, que representa o cerne da pesquisa científica. Tarefa a ser continuada pelos jovens operadores do Direito da era digital. Não há que se falar, portanto, em afastamento ou em perda do real concreto na caracterização dos modelos jurídicos, pois, se algumas vezes eles são fruto de atos arbitrarios de autoridade, não é menos certo que, em tais casos, ou tem vigencia formal temporaria, ou não chegam a se converter em elementos operacionais, carecendo de adequada eficacia no plano da ação. As soluções normativas, não fundadas na experiencia, não são modelos jurídicos, no sentido rigoroso deste termo, que implica consonancia com a natureza tridimensional do Direito, a correspondente correlação entre fundamento, vigencia e eficacia. Além disso, quando as soluções normativas surgem divorciadas da realidade, a tendencia natural do jurista, no ato de interpretá-las, é no sentido de reconduzi-las ao leito da experiencia, recuperando-se, através da exegese e da aplicação prudente, os valores esquecidos de realizabilidade concreta. Elaborar um modelo jurídico é, portanto, um trabalho de aferição de dados da experiencia (e das matrizes da linguagem) para a determinação de um tipo de comportamento não só possível, mas considerado necessario à convivencia humana. Há, por certo, na instauração de um modelo jurídico, um ato volitivo superador dos nexos causais, para conferir valor paradigmático a uma dada estrutura normativa que, desta forma, não fica jungida ao plano das relações empíricas. Isto explicaria, segundo Reale, por que Hume tenha falado em “artifício” e Olivecrona em “imaginoso”, a propósito de regras jurídicas. O que há, porém, diz ele, é uma tomada de posição, de fundo necessariamente axiológico e volitivo, perante a realidade social e em função dela, de tal modo que entre o modelo jurídico, preferido ou reconhecido, e a experiencia deve haver uma correspondencia isomórfica8 (acrescentarse-ia, uma correspondencia entre as três matrizes) como condição de seu êxito operacional, ou de sua efetividade. De certo modo, por presumir-se que o modelo jurídico corresponda a um conjunto motivacional fundado na análise objetiva dos fatos sociais, In O direito como experiencia, pp. 164-167. Isomorfismo. Filosofia geral. 1. Identidade de forma ou de estrutura. 2. Igualdade estrutural, cf. M.H.Diniz, in Dicionario Jurídico, v. 2, p. 913. 7 8 61 Maria Christina Napolitano como paradigma de comportamentos normalmente previsíveis, proclama-se entre outras razões, a obrigatoriedade do Direito, não se admitindo, em regra, a ignorantia juris, como excusa de seu não cumprimento. É inegável que existe uma diferença essencial, ou melhor, uma distinção vetorial de sentido proprio de cada espécie de pesquisa do Direito, conforme se trate da pesquisa de um jurista, de um sociólogo do Direito ou de um filósofo do Direito. Assim que: O jurista busca a compreensão normativa de fatos, em função de valores. O sociólogo busca a compreensão fatual de normas em função de valores. E o filósofo busca a compreensão axiológica de fatos em função de normas. Distanciando-se um pouco deste ponto de vista, preleciona o jurista espanhol Robles Morchón9, autor da “teoria comunicacional do Direito”, ao tratar da questão da validade das regras jurídicas, que “o normativismo mantem um conceito que pretende ser intrínseco de validade, desligado de toda vinculação com a abordagem axiológica e empírica, de tal modo que por Direito válido haveria de entender-se nada mais que o Direito juridicamente obrigatorio”. O conceito empírico, diz o eminente professor espanhol, é o utilizado pelos sociólogos e por aqueles juristas que contemplam todo o fenômeno jurídico através da concepção empirista do conhecimento (sociologistas, psicologistas), para os quais Direito válido equivale a Direito efetivo, ou melhor implantado na realidade social. Quanto à terceira, diz ele, é propria de moralistas e de jusnaturalistas, que identificam o Direito válido com o Direito valioso e, portanto, a validade com o valor. Simplificando as coisas, diz o insigne jurista, pode dizer-se que estas três concepções da validade correspondem às três dimensões que costumam assinalar-se como características do Direito: a validade normativa fixa-se na dimensão da norma; a empírica no fato do Direito; a axiológica na dimensão do valor. No entanto, Robles Morchón segue afirmando que “o tridimensionalismo não resolve nada, porque estas três concepções seriam incompatíveis entre si”. E, diz ele, não é possível um conceito eclético da validade que harmonize estas três concepções, na medida em que cada uma reclama para si a pretensão absoluta de sua definição, com exclusão das demais. Segundo o jurista, isto sucede porque no fundo, a discussão sobre a validade constitui uma derivação imediata da discussão sobre o conceito de Direito. Para Robles, na medida em que normativismo, sociologismo e jusnaturalismo, diz ele, mantem concepções do Direito antagônicas e, portanto, irreconciliáveis, não pode esperar-se que, de sua combinação, provenha a solução do problema. E, em seguida, o jurista destaca que, das três concepções, a que aponta na direção correta é a do normativismo da Escola de Viena, aduzindo as razões para esta sua afirmação. Permite-se, aqui, distanciar-se um pouco da colocação reflexiva do eminente jurista. Até hoje, a tão criticada Jurisprudencia dos Conceitos deixou-nos um legado do mais alto alcance, que é o sentido normativo e sistemático do Direito, compreendido como lucidus ordo (ordem lúcida). O erro foi considerar-se imutável e intangível um sistema jurídico-político que, como se sabe, estava prestes a ser superado, sob o impacto de profundas inovações operadas na ciencia e na tecnologia, dando lugar a conhecidos conflitos sociais e ideológicos. E o erro volta a repetir-se, em nossos dias, até que se tomem iniciativas adequadas e competentes! É 9 In El Derecho como texto (Cuatro estudios de Teoría comunicacional del Derecho), p.156 e segs.. 62 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... importante enfatizar que, antes mesmo que ocorresse a ruptura das vigas mestras do Estado de Direito de tipo individualista, para a modelagem de um novo Estado de Direito fundado na justiça social, houve clara percepção, por parte dos juristas, sociólogos e filósofos da necessidade de abandonar soluções estereotipadas, incompatíveis com uma sociedade que parecia disposta a correr o risco - risco este ainda não superado, de comprometer a liberdade individual em prol de valores mais altos, como o da igualdade e da propria sobrevivencia (aqui, incluídas as questões ambientais) É claro que nesta procura de novos caminhos, visando atingir o Direito concreto, a questão da eficacia e da efetividade assumiu posição de primeiro plano, passando os juristas a se preocuparem com soluções obtidas, ao calor da experiencia social, ainda que com alguns sacrificios sobre a certeza e a segurança. Reale10 assim se expressa – quando, por exemplo, comenta o tempo no Direito (fazendo inclusive menção a Jean Ray – um jusfilósofo, pioneiro solitario, o verdadeiro precursor da Semiótica Jurídica no começo do século XX, um dos primeiros a focalizar a natureza e o papel do tempo no Direito sob o ângulo filosófico): o que interessa ao jurista não é o que possa haver nele de homogeneo e de indiferençado, mas sim as diferenciações que ele comporta, a começar por aquela que, a seu ver, constitui a natureza mesma do tempo no pensamento jurídico; a diferença irredutível de qualidade, e até mesmo a posição, entre o passado e o futuro, entre a regra que já esteve e a que está agora em vigor, significando, não uma separação absoluta, mas a descontinuidade do tempo jurídico. O tempo, a seu ver, não é apenas o quadro dos eventos, dos momentos, mas a base de uma articulação do pensamento “dans le successif”, redundando na determinação de certos períodos intersticiais, segundo tais ou quais caracteres jurídicos, períodos estes que são juridicamente qualificados ou servem de base a qualificações11. Haveria duas ideias fundamentais nesta exposição: a da descontinuidade do tempo jurídico e a da relação com a questão da qualificação dos períodos. Reale ainda nos faz observar mais claramente que tais aspectos são possíveis por ser o tempo, no Direito, uma trajetoria de valorações ou de “concretas situações de significados”, em função do conjunto variável de fatores que determinam o constituir-se das diversas estruturas normativas (a tríade: FATO X VALOR X NORMA : eficacia (validade empírica); fundamento (validade axiológica); vigencia (validade normativa). Para ele, a CIBERNÉTICA estaria apta a abrir novas perspectivas à compreensão do tempo social e histórico; a sincronização instantanea de numerosas operações, propria da automação, tornou sem sentido o modelo mecânico das operações em sequencia linear, conforme ele nos orienta, de acordo com o exposto pelo filósofo, educador e teórico da comunicação, o já citado, o conceituado canadense Marshall McLuhan12. E In O direito como experiencia, p. 246. Jean Ray – Essai sur la Structure Logique du Code Civil Français, Paris, 1926, cap. IV, seção I, “Du rôle de la notion du temps”, p. 146 e segs..Trata-se, segundo Reale (in O direito como experiencia, p. 222, em nota de rodapé) de obra quase esquecida, mas que talvez merecesse maior atenção por parte dos cultores de Filosofia do Direito e de Lógica Jurídica, inclusive por ter o seu autor estudado as proposições jurídicas como “proposições modais”, com base nos ensinamentos de Randelet (Theorie Logique des Propositions Modales, Paris, 1861) e de L. Brunschvigg (La Modalité du Jugement, Paris, 1897), correlacionado-as com os problemas da ação e do tempo (op. cit., p. 52 e passim). Cf, sobre o assunto, à luz da nova Lógica, Arthur N. Prior – Time and Modality, Oxford, 1957. 12 In Understanding Media, p. 301 e segs., cf. Reale, ibidem, p. 225. 10 11 63 Maria Christina Napolitano prossegue afirmando que o tempo vai perdendo sua “continuidade espacial”, atentandose mais para o sincrônico, o simultaneo ou o inter-relacionado. Assim como McLuhan – e Reale também enfatiza –que do mesmo modo que os objetos não se situam no espaço, mas geram seu proprio espaço, poder-se-ia dizer que cada experiencia jurídica gera seu proprio tempo, como “duração significativa”. Portanto, o que aparenta ser crise é, isto sim, a falta de exercício ou a falta conhecimento das categorias semióticas (pessoas, espaço e tempo) que até agora não tem sido suficientemente pensadas e desveladas, por nós, juristas, através das três matrizes da linguagem. Reale já sinalizara: 1. Acomodamo-nos numa posição restrita e secundaria de analistas e sistematizadores de um Direito posto por outrem (o legislador), sem situarmos a tarefa da linguagem do Direito, em função da totalidade da experiencia jurídica. 2. Afastamonos cada vez mais da vivencia dos institutos jurídicos, só possível em correlação com a imagem de síntese integral do Direito (fato x valor x norma), em seu perene evoluir. 3. Não nos demos conta das categorias semióticas, de modo a atender as novas exigencias do mundo contemporaneo, a tal ponto que ainda insistimos em aplicar esquemas ultrapassados da Dogmática Jurídica, inspirada pelo antigo Estado liberal individualista, e incompatível com o Estado da justiça social e das tarefas culturais reclamadas pelas forças criadoras da linguagem e do pensamento. 4. Esquecemo-nos de que o Direito surgiu e se alimenta da confiança depositada na vontade ordenadora, no poder de síntese superadora, inerente à propria concepção humanística do Direito. Confirmada, exaustivamente, a tridimensionalidade – sob qualquer dos ângulos do pensamento pelos quais se analise o Direito como linguagem - nada estranhável que esta nota característica seja considerada tanto pelo filósofo do Direito, como pelo téorico do Direito: de certo modo, a tridimensionalidade é o ponto comum de interseção ou de correlação existente entre as distintas indagações que tem o Direito como objeto, permitindo, pois, o superamento artificialmente levantado entre Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, que devem ser distintas, sim, como esferas autônomas de pesquisa - para se completarem reciprocamente, e não para se contraporem de maneira abstrata e indesejável. Não existe o reino das formas puras ou dos arquétipos eternos; existe, sim, algo que percebemos no processar-se da experiencia, mas que trazido à luz da consciencia teorética, desde logo se põe como condição previa, sob o ponto de vista lógico-transcendental (=ontognoseológico) da experiencia mesma: em se tratando de linguagem natural, temos as condições lógico-transcendentais que explicam a validade das leis que expressam as relações causais ou funcionais de caráter fático; em se tratando de linguagem jurídica, temos as condições axiológicotranscendentais que nos dão a compreensão das conexões de sentido que constituem e nos revelam os fenômenos de ordem ética. O Direito, enquanto linguagem, apresenta-se-nos como um processo comunicacional real que regula as condutas humanas sociais e se manifesta em textos cujas matrizes são: a visual, a sonora e a verbal. O Direito, enquanto metalinguagem, 64 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... apresenta-se-nos como um sistema comunicacional possível que regula modularmente (não necessariamente modelarmente) as condutas humanas sociais e se expressa em um hipertexto, cuja característica principal é a continuidade13 de sua linguagem. A especificidade do fazer semiótico não é apenas a aplicação de uma teoria dos signos – importante ainda sim - mas também, o exame da significação como processo que se realiza em textos e hipertextos, de onde emergem e onde interatuam sujeitos, agora, com a linguagem na era digital e no ciberespaço. Não há como aceitar uma interpretação econômica do Direito ou uma interpretação histórica do Direito, mecanismos espurios que ainda contaminam nossa cultura jurídica. Já se vê que a tal identidade auto-referencial do sistema jurídico impede qualquer esforço externo no sentido de seu conhecimento operacional, que somente será possível à medida que se considere o conjunto na complexidade de sua organização interior e no aporte de conhecimentos científicos de outras áreas, sobretudo, as das ciencias cognitivas (transdisciplinaridade). No decorrer do percurso gerativo de significação do texto, podemos ativar o “funcionamento das conexões”, com “modos de integração e de calibração do sistema” (indicadores autopoiéticos, cognitivos e outros) que vão ajudar na(s) devida(s) estabilização(ões) da jurisprudencia; na escolha e seleção da legislação; nos cortes burocráticos; na interpretação científica. Aguarda-se uma comunidade que funcione como ideal regulador para qualquer comunidade de investigadores efetivamente existente. Estas regras não serão, contudo, convenções arbitrarias, mas originadas historicamente a partir do uso das comunidades linguísticas; seriam, portanto, costumes que chegam a tornar-se fatos sociais reguladores, ou seja, instituições. Tantas são as formas de vida existentes, quanto são os contextos praxeológicos, tantos são, por consequencia, os modos de uso de linguagem, numa palavra, os “jogos de linguagem”. As palavras estão, pois, sempre inseridas numa situação global, que norma seu uso e é precisamente por esta razão que o problema semântico, o problema da significação das palavras, não se resolve sem a pragmática, ou seja, sem a consideração dos diversos contextos de uso. “Poder falar” significa ser capaz de inserir-se num processo de interação social simbólica, de acordo com os diferentes modos de sua realização14. Os juristas necessitam dar-se conta de que o Direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como linguagem; seja, o que quer que ele proponha e como quer que nos toque, o Direito o é numa linguagem e como linguagem – propõe-se sê-lo numa linguagem (nas significações linguísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através desta linguagem que é15. A hipótese inovadora é, exatamente, a de que há uma correspondencia básica 13 A continuidade, ou melhor, a circularidade é um fenômeno que se produz com nítida aparencia no universo jurídico como um todo, consistindo na sustentação recíproca de diversos tipos de discursos sobre premissas de outros discursos; nesta interação de discursos jurídicos, cria-se um verdadeiro mutualismo semiótico, onde um discurso se sustenta em um texto, e este, por sua vez, em outra prática textual... 14 Vide Lenio Luiz Streck, ibidem, p. 53, em nota de rodapé, que por sua vez, nesta nota, baseia-se em Manfredo Araújo Oliveira, Fundamentação. Porto Alegre: Edupucrs, 1993, pp. 53-54. 15 Cf. Castanheira Neves, p. 90, citado por Lenio Luiz Streck, ibidem, p. 54. 65 Maria Christina Napolitano entre, de um lado, estas categorias e, de outro lado, a percepção e linguagens humanas: a sonora pertenceria à matriz da primeiridade; a visual à secundidade e a verbal à terceiridade. Daí se segue a surpreendente reinterpretação do mundo sonoro como o domínio predominante do signo icônico; do mundo visual como o domínio predominante do signo indicial; e do mundo verbal como o domínio predominante do signo simbólico. O apoio para a tese das três matrizes está na propria teoria da modularidade da mente humana desenvolvida no quadro das ciencias cognitivas, que considera o verbal, o visual e o sonoro como os três módulos fundamentais da mente humana. O campo de aplicação desta teoria, repete-se, é amplo, abrangendo a música, a pintura, a arquitetura, mas também a televisão, vídeo, cinema, informática e linguagens da hipermídia, o que nos leva a afirmar que não só a cultura contemporânea é híbrida, mas todas as linguagens são híbridas, incluída aqui a linguagem jurídica! Toda a produção diferenciada de signos, com que convivemos a cada minuto, hora e dia de nossas vidas, é fruto destas misturas contínuas e de suas combinações imprevisiveis, que Peirce ajudou-nos a descobrir e que Santaella, eminente pesquisadora brasileira da obra de Peirce, fez chegar até nós. É ela que nos fala sobre o modelo da mente como um paradigma dominante nas ciencias cognitivas. E estaremos a um passo da CiberSemiótica. É assim que: 1) Sistemas informacionais, ainda que diferentes (como o sistema nervoso central, seres humanos, máquinas, animais e organizações) processam informações do mesmo modo; 2) Pensamentos lógicos conscientes são geralmente tomados como um modelo para os processos cognitivos; 3) O entendimento é visto como categorial; 4) Considera-se que os processos cognitivos podem ser quebrados como partes de um processo e que, finalmente, podem ser vistos como uma serie de escolha linear; 5) A percepção é vista primariamente como categorial e denotativa; 6) A aprendizagem é vista como acontecendo de acordo com regras e principios e é vista primariamente como a construção de estruturas do conhecimento; 7) Um sistema de linguagem é visto primariamente como um mecanismo formal para a transferencia de uma formação pela manipulação de símbolos entre humanos, máquinas e o homem-máquina; 8) Há uma clara tendencia em se ver o sujeito cognitivo como análogo a um computador; 9) A ênfase no aspecto sintático e estrutural da cognição, pensamento e comunicação conduz a uma falta de ênfase na função das dimensões histórica e cultural-societal implícitas no crescimento do significado comunicativo humano; 10) O mecanismo por trás da memoria do crescimento do significado e do entendimento de símbolos é visto como uma rede semântica. O significado é mantido numa rede de concepções mutuamente definidas: a chamada estrutura do conhecimento, o que representa uma entrada muito formal para a semântica. 3) Conclusões O pesquisador e operador do Direito ou mesmo o cidadão em busca de uma 66 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... “linguagem jurídica”, nos textos e hipertextos, na atual era digital, precisa estar “convencido” de que ela - linguagem jurídica também é uma “instituição”, que pode ser revelada e fortalecida em suas matrizes e com a ajuda das novas tecnologias. Esta constatação informa as alterações que se iniciaram internamente e se refletem para a sociedade, contribuindo não apenas para compreender a maneira como os magistrados realizam a jurisdição, mas se tornam vetores referenciais para medidas voltadas ao enfrentamento da governança e das disfuncionalidades ocasionadas no seio da sociedade. Pretende-se um aguçar dos estudiosos para o inicio de uma contribuição teórica para a área de estudos em organização da informação e do conhecimento operada por máquinas no ciberespaço. A efetividade do sistema jurídico, se administrado de modo claro, pode ser uma esperança para que a população mantenha a confiança ativa nas instituições públicas, no governo, nos agentes públicos e eventuais agentes particulares envolvidos nesta busca. Isto significararia concretizar o princípio da confiança na vida em sociedade, talvez o maior pilar da manutenção de si propria e, essencialmente, a atividade primordial do Direito. Ao depois, com formatos das informações dispostas na internet, e com emprego da linguagem digital, virá a categorização de mecanismos de busca, a partir da correspondencia das tais matrizes da linguagem com a indexação virtual e o modus análogo de busca etc., sob o criterio dos paradigmas semióticos e da linguagem. A utilização do termo “mecanismos de busca” sugere também toda a arquitetura de um search engine. Embora variadas, as arquiteturas contemplam três etapas principais que são a captura do conteúdo, a indexação e a própria busca. O desafio aos mais jovens operadores do Direito aqui fica: criar uma tipologia para mecanismos de busca, visando ilustrar as múltiplas sintaxes de organização e busca do conhecimento e informação no ciberespaço. O ciberespaço é “uma grande máquina abstrata, porque semiótica, mas também social, onde se realizam não somente trocas simbólicas, mas transações econômicas, comerciais, novas práticas comunicacionais, relações sociais, afetivas e, sobretudo, novos agenciamentos cognitivos {...} um espaço semântico semiótico, onde o signo se dá em varias semióticas, desterritorializado, nômade, em escrita espacializada e com a memoria em constante modificação”, como nos ensina Silvana Monteiro (2007, p.1;12). O ciberespaço sempre terá e trará o problema da taxonomia do conhecimento e da multiplicidade dos signos, seja em sua representação ou em sua organização. “Mecanismos de busca” são também os programas de computador utilizados para a indexação e modus análogo de busca dos recursos informacionais e de conhecimento no ciberespaço (search engine ou a captura de conteúdo, indexação e busca). Pode-se vislumbrar que, à medida que as matrizes de linguagem correspondam à indexação virtual dos estoques informacionais no ciberespaço, e à medida que seu modus análogo de busca, visem consolidar uma categorização baseada no paradigma semiótico das matrizes de linguagem, vai-se contribuir cada vez mais para uma linha de pesquisa, em nosso caso, a representação e organização do conhecimento e do pensamento jurídico, no ciberespaço, com a ajuda das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Se não ocorrer esta revolução do humanismo, da cidadania, da democracia das 67 Maria Christina Napolitano ideias, da arte de pensar e, mais, uma profunda evolução no processo educacional, o século XXI não será o século da formação de pensadores, o século da preservação dos direitos humanos, ao contrario, será o século das guerras, dos desentendimentos, do paradoxo das informações, pois haverá uma alta incorporação de informações com uma baixa capacidade de pensar criticamente. Precisaremos de homens e juristas bem informados, grandes especialistas que navegarão cada vez mais, com mais desenvoltura, pela intenet (enquanto existir como tal) que terão acesso às universidades virtuais e a uma rica gama de informações, como nunca ocorreu anteriormente na historia da humanidade, mas ao mesmo tempo homens que saibam pensar, duvidar, criticar as convenções do conhecimento, transformar o conhecimento vigente, interpretar criticamente os fenômenos, produzir ideias com originalidade, respeitar os direitos humanos e o meio ambiente, repensar a si proprios, reciclar o autoritarismo, a arrogancia e a rigidez intelectual. As escolas, principalmente as universidades, e, sobretudo, as de Direito deveriam se tornar academias de formação de pensadores especializados, de semioticistas. Viveríamos melhor, se buscássemos primeiro conhecer, para depois criticar e estar em paz. Implementar cultura nova e mudar hábitos exigem muito “investimento” - investimento em cultura. O digital é complexo. Requer disciplina, integração e recursos. São muitas variaveis e decisões em tempo real. E se já não resta dúvida de que o digital funciona, isso não quer dizer que possa ser absorvido com banalidade. É preciso empreender um esforço significativo para fazer valer e defender aquilo que John Stuart Mill definiu como “liberdade de espírito”. Uma vez perdida, aqueles que crescem na era digital poderão ter dificuldade de recuperá-la. Isso pode ter, também, consequencias políticas graves. Pessoas que não exerçam a liberdade de pensamento serão facilmente manipuladas. Não se trata de ameaça para o futuro. Seria aquela área em que nunca se falou tanto do futuro, tendo que se praticar tanto o que nos ensina o passado. Sócrates, o filósofo de Atenas, acreditava no conhecimento, sim, mas não na arrogancia dos presumidos conhecedores. Se é verdade que o discurso jurídico parece a todo instante contaminado por uma espécie de triplicidade, é porque ele se desenvolve sobre uma tríplice isotopia: a primeira é representada predominantemente pelo discurso normativo e pelo discurso decisorio (matriz verbal), feito de enunciados prescritivos e performativos, instaurando seres e coisas, instituindo as regras de comportamento lícitos e ilícitos, ao passo que as outras duas aparecem sob a forma de um discurso referencial que, embora subentenda uma elaboração ideológica e uma cobertura narrativa do mundo (matriz sonora), apresenta-se como a representação do proprio mundo social (matriz visual), anterior à propria fala que o articula. Isto demonstra o enraizamento do jurídico no social, que se pretendeu deixar destacado nesta investigação. É assim que o futuro do Direito parece oscilar entre a extensão de cada matriz e a integração entre estas mesmas matrizes, através de uma linguagem, por enquanto ou em seguida, digital. Este futuro é infinitamente exprimível no quadro de processos limitados de apreensão do universo dos signos. Nem se pretende forçar uma colocação definitiva, mas sim, uma possibilidade de escolha. Alguns juristas defendem que não há que se falar em uma nova área do Direito, já que a Informática 68 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... Jurídica está permeando praticamente todas as áreas tradicionais. Não merece confundir-se “Direito de Informática” com “Informática Jurídica”, pois enquanto esta se dedica ao estudo da tecnologia aplicada ao Direito, aquela, em verdade, busca regulamentar relações jurídicas ocorridas no âmbito ou através das tecnologias da informação e comunicação. Nem se deve confundir o Direito de Informática com o processo eletrônico, uma vez que este diz respeito ao uso da Informática no processo, enquanto aquele trata dos aspectos jurídicos referentes à Tecnologia da Informação. Precisamos de arquitetos de resolução de problemas, que busquem soluções de forma crítica, muito mais do que profissionais que apenas se atenham ao que está nos Códigos e nas Leis. A Semiótica tem sido incorporada em diversos programas de ensino. Ao lado da Sociedade Internacional de Semiótica, fundaram-se numerosas sociedades nacionais: a alemã, a austríaca, a norte-americana, a canadense e assim por diante. Esta disciplina já é aplicada à teoria do conhecimento e da ciencia, à pedagogia e à didática, à estética, ao design, à linguística, à literatura, ao cinema, ao teatro, às artes visuais (pintura, fotografia), à teoria do comercio, à Medicina, à Biologia, à imprensa e assim por diante. Por que não, ao Direito? Seja para principios e questões fundamentais, seja para melhor interpretação de questões atuais como: privacidade e proteção de dados pessoais, direito ao esquecimento, liberdade de expressão, comercio eletrônico, responsabilidade civil na internet, segurança da informação, e para assuntos como os novos enfoques do Direito Internacional aplicados ao Direito Digital, bitcoins e moeda digital, arranjos de pagamentos, deep web, as implicações na era dos aplicativos, diluição de marca e importação paralela na internet e tantos outros, como compliance e ética nas empresas, Instituições e Políticas Públicas e assim por diante. É chegado o momento de tentar desvendar a linguagem do Direito e a linguagem sobre a linguagem do Direito, para analisá-la, interpretá-la e compreendê-la, com mais lucidez e rapidez. Textos entre textos, os códigos, as compilações, as recolhas normativas, os trabalhos de exegese legislativa, as decisões jurisprudenciais representam unidades dotadas de vida propria a vida dos textos. E assim permanecerão. Estes formam um repertorio de elementos jurídicos sujeitos a uma reapreciação crítica contínua, tudo nos exatos termos de uma proposta semiótica. A linha entre o legal e o ilegal, o ético e o inoportuno, o certo e o errado torna-se cada vez mais tênue. O termo Direito possui uma dimensão de signo e sua operacionalidade encontra-se comprometida com sua faceta sígnica. Num momento de intensa “Economia Criativa”, onde novas tecnologias ditam as tendencias dos costumes e comportamentos dos indivíduos que não mais convivem apenas em territorios físicos, aprisionados em seus proprios ordenamentos jurídicos, e sim, em um ambiente plano, global e digital, em que contratos privados, como os termos de Uso e as Políticas de Privacidade dos serviços e aplicativos da internet regem a vidas das pessoas e determinam as regras do jogo para populações cada vez mais densas, multiculturais e multinacionais, é preciso iluminá-lo sob este aspecto. O conceito atual da “Sociedade Aberta” (Open society), segundo Don Tapscott, um dos maiores especialistas em Geração Digital, traz consigo quatro grandes principios: Colaboração (Collaboration), através de redes de inteligencia (networked 69 Maria Christina Napolitano intelligence); Transparencia (Transparency); Compartilhamento de Conteúdo e sua Propriedade Intelectual (Sharing); e Mobilização (Empowerment). Confirmando o que foi dito, a respeito da importancia do pensamento e de como trabalhar com ele, a jurista brasileira Patricia Peck (in Direito Digital, p.27) afirma: “Esta coesão de pensamento possibilita efetivamente alcançar resultados e preencher lacunas nunca antes resolvidas, tanto no âmbito real quanto no virtual, uma vez que é a manifestação de vontade humana em seus diversos formatos que une estes dois mundos dentro do contexto jurídico”. As características do “Direito Digital”, como ela afirma, são as seguintes: celeridade, dinamismo, autoregulamentação, poucas leis, base legal na prática costumeira, uso da analogia e solução por arbitragem. Os principios do Direito continuam os mesmos, indiscriminadamente: “suum cuique tribuere”; “neminem laedere” e “honeste vivere” (ou seja, “dar a cada um o que é seu”, “a ninguém lesar” e “viver honestamente”) - que, hoje, frente à velocidade dos avanços técnicos alcançados pela humanidade, poderiam ser transcritos como: “eficacia do provimento jurisdicional”; “proporcionalidade entre as pretensões das partes” e “potencial uso lícito da tecnologia”. E aconselha: “Saber estabelecer estrategias jurídicas eficientes no mundo cada vez mais digital e virtual é condição de sobrevivencia do profissional do Direito, uma vez que cada vez mais o tempo e a tecnologia atuam de modo a exigir celeridade e flexibilidade nas soluções jurídicas. A questão que se coloca é de eficacia. Para isso, o operador de direito tem que antever os acontecimentos, preparar contratos de modo flexível para que sobrevivam às mudanças rápidas que a sociedade atravessa. Tem de ser um estrategista. Dar os caminhos e as soluções viáveis, pensados no contexto competitivo e globalizado de um possível cliente virtual-real, convergente e multicultural. A complexidade da sociedade traz mais complexidade jurídica. Já não é mais suficiente conhecer apenas o Direito e as leis; devem-se conhecer os modelos que conduzem o mundo das relações entre pessoas, empresas, mercados, instituições e Estados”. Seria o momento de se pensar em como as Faculdades de Direito devem formar operadores jurídicos, exigindo que eles tenham, além de um conhecimento técnico, uma forte base teórica sobre os principios que regem a nova era digital e suas implicações. Aos atuais e atuantes jusidealistas, jusestrategistas e jusespecialistas fica esta contribuição: ter-se chamado a atenção para a existencia simultanea na mente e no ciberespaço, de três matrizes virtuais de organização e busca da informação e do conhecimento; para a necessidade de constante monitoramento técnico e intelectual, para que se acompanhe compreensivamente o avanço sociotécnico dos produtos de informação e de conhecimento, ou seja, os mecanismos de busca, pertinentes aos estudos da área da ciencia da informação, e ter-se chamado a atenção para a oportunidade da técnica de uma Semiótica Jurídica, mesmo porque nunca o novo precisou tanto do velho para atingir seus objetivos, se é que se pode dizer que esta disciplina estaria ultrapassada. Daí a necessidade de contarmos com operadores do Direito ou juristas semioticistas, como estrategistas, que saibam usar as novas tecnologia com segurança e agilidade e que tenham conhecimento sobre os processos de construção do pensamento, sobre o processo de interpretação e sobre os limites e o alcance de uma teoria. Nas últimas 70 Um projeto intersémiótico juridico: sugestao para a defesa... décadas, por toda parte, tem-se podido observar uma forte tendencia para modos de reflexão semióticos. Sua motivação externa pode detetar-se no desenvolvimento formal de muitas ciencias que pressupõem o conceito de signo, mas sem havê-lo investigado ou que empregam uma classe especial de signos e sistemas de signos, sem relacioná-los com uma Teoria Geral dos Signos (ou com uma Teoria da Informação). A Semiótica é uma disciplina pouco explorada e nem em toda a parte tem sido aceita como disciplina autônoma de ensino, em cursos, seminarios e coloquios. Não obstante, em muitos lugares, é estudada e aplicada intensivamente, pelo menos em grupos de trabalho de caráter interdisciplinar e transdiscipplinar. Que não se veja nesta “tentativa de persuasão” uma explosão de irracionalidade argumentativa; se continuarmos com uma visão prosaica, parcial ou incompleta do fenômeno jurídico, vamos continuar incapazes de impedir momentos de grave conflagração social e continuaremos a conduzir a resultados insatisfatorios no fortalecimento de nossos laços sociais e na legitimidade de nossa organização política. O momento atual está a refletir um amplo sistema, que prescinde de uma sólida coordenação de instituições públicas, de todas as instancias e de esferas da Administração Pública e algumas até de natureza privada, com conexões internacionais, cuja atuação fornece subsídios à atuação estatal, quer no trabalho de investigações e atividades ministeriais, quer no âmbito da atividade jurisdicional, ou seja, todos os integrantes do sistema são indispensáveis. A participação da sociedade civil é essencial, não só pela capacidade de oferecer informações e subsidios, que escapam às vezes de sofisticados sistemas de investigação, como garantir sua legitimidade e credibilidade. O esclarecimento da sociedade, por exemplo, a respeito do combate à corrupção, é essencial para que o discurso político não fique dissociado dos princípios estruturantes aqui apontados e orientados, ainda que seja de forma simbólica, visando o sucesso do sistema como um todo. Seja a doutrina ou discurso científico, seja a legislação ou discurso normativo precisam assimilar tais postulados oxigenadores do modo de agir do Estado, os quais se posicionam para a Administração Pública como vinculantes impositivos e internacionalmente reconhecidos e difundidos como as melhores práticas a serem adotadas pelas nações desenvolvidas, uma vez que só com ampla transparencia e efetiva participação dos cidadãos, os governos preocupados com a legitimidade decorrente da aprovação popular conseguirão atingir o patamar almejado pelo governo democrático, “o governo do poder público em público”, como se expressou Norberto Bobbio (in “O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo”). Compreender estes circuitos não é calar a razão e o agir comunicativos, mas transformálos e ampliá-los cada vez mais. Autores de extrema relevancia para a compreensão de nossa condição humana não nos deixam esquecer o mal estar que nos habita, lembrandonos que amar a existencia é enfrentar intensamente tudo o que há de belo e miserável, luminoso e sombrio, nas voltas, desvios e reviravoltas da vida. REFERENCIAS ABREU J.G. e MONTEIRO, Silvana Drumond. Maio/ago. 2010. Artigo: Matrizes da 71 Maria Christina Napolitano linguagem e da organização virtual do conhecimento, Ci.Inf., Brasilia, DF, v. 39 n.2, p.9-26 __________________Dez 2009. O pós-moderno e a organização do conhecimento no ciberespaço: agenciamentos maquínicos (The post-modern and the knowledge organization in the cyberspace: machinic assemblages), in Revista de Ciencia da Informação – v.10 n.6. BITTAR, Eduardo C. B.. 1997/2017. Linguagem jurídica Semiótica, Discurso e Direito, 7ed. São Paulo, Saraiva. CRAIATU, Aurelian. 2017. Faces of Moderation: The Art of Balance in Age of Extremes. 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A vida secreta da mente: o que acontece com nosso cérebro quando decidimos, sentimos e pensamos. Trad. Joana Angélica d’Ávila Melo. 1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva. STEVEN, Sloman, FERNBACH, Philip. The Knowledge Illusion, Pan Macmillan, em E.Book. STRECK, Lenio Luiz. 2000. Hermenêutica Jurídica em crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 2 ed. ver. e amp. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado. TEUBNER, Gunther. Law and social theory: three problems. Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt Alemanaha. VALENTINI, Carla Beatriz; BISOL, Claudia Alquati. 2008. Análise dos Processos Cognitivos e Autopoiéticos em um ambiente virtual de aprendizagem. Educar: Curitiba n.32 p.181-197, Editira UFPR. ZANATTA, Leonardo. 2010. O Direito Digital e as Implicações Cíveis Decorrrentes das Relações Virtuais. Artigo extraído do trabalho de Conclusão de Curso pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul –Br. 73 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA? CRIMES CONTRA A VIDA INTRA UTERINA: DA DETERMINAÇÃO DO INÍCIO DO BEM JURÍDICO TUTELADO A SUA PROTEÇÃO Caroline Buarque Leite de Oliveira1 1) Introdução Um dos crimes mais intrigantes a ser estudado na seara dos crimes contra a vida é sem dúvida o aborto. Justamente por ser uma temática polêmica, que envolve aspectos não apenas ligados ao Direito, mas também, a esfera política, religiosa, sociológica, filosófica, médica e outras correntes, a vida íntima da mulher, que aliadas, discutem ainda hoje sobre a descriminalização ou não do aborto nos mais diversos países. Sendo um tipo penal que sempre esteve ligado também às questões políticas, o aborto, dessa forma, servia de pauta para os legisladores, sucessivamente, discutirem sobre a sua descriminalização, levando-se em consideração o real momento do início da vida, para que tal tipo penal gerasse uma punição para quem o cometesse. Decidir sobre como a mulher iria dispor do seu corpo e da vida intra uterina que estava em seu ventre não é uma tarefa fácil. Tanto que em Portugal foram feitos dois referendos, um em 1998 e outro em 20072, e apenas no segundo, considerou-se a possibilidade de descriminalizar o aborto e conceder livre arbítrio à mulher a decidir levar a diante ou não a gestação, segundo critérios estabelecidos que serão vistos nos capítulos seguintes. Acreditava-se que com a permissão para a gestante tomar tal decisão, haveria uma diminuição do número de abortos clandestinos, gerando menos mortes para as mulheres que cometiam tal crime, e assim, daria mais dignidade e saúde a vida da mulher, que teria a liberdade em decidir sobre como dispor da vida intra uterina que estava em seu ventre. 1 Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa – Turma T13. Advogada. Autora de Livro. Mediadora Judicial e Extrajudicial de Conflitos por empresa autorizada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Conciliadora Voluntária da Seção Judiciária de Maceió da Justiça Federal de Alagoas. Pós Graduada em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ. Pós Graduada em Direito Constitucional pela Universidade UNIDERP-Anhanguera-MS. Membro Voluntário do Gespública – Programa de Qualidade do Governo Federal em parceira com a Fundação Nacional da Qualidade – FNQ. Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Tiradentes – Maceió/AL. Especialista em Engenharia de Software pela Fundação Educacional Jayme de Altavila – FEJAL; Bacharela em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. 2 No primeiro referendo não foi positiva a resposta da população sobre a descriminalização do aborto caso fosse realizado nas 10 primeiras semanas de gestação. Já no segundo, a resposta foi positiva, dando origem a Lei 16/2007. O aborto é considerado lícito se praticado voluntariamente dentro das 10 primeiras semanas de gestação, ou seja, até quando se tem fixação do ovo no útero (nidação), sendo este o bem jurídico tutelado ao falar em vida intra uterina. SILVA, Fernando - Direito penal especial: crimes contra as pessoas. p. 187-193. Caroline Buarque Leite de Oliveira Ou seja, a decisão de permitir o aborto até um determinado tempo por livre escolha da mulher gestante, seria uma forma de diminuir o número de mortes das pessoas desse grupo que se apresentava vulnerável, pensava o legislador. Porém, de fato, ainda com a descriminalização em determinados casos, a saúde e a vida das mulheres continuam em risco, e os abortos clandestinos acontecendo, gerando dúvidas sobre se o resultado do último referendo realmente trouxe eficácia para o que se propunha. Muitas questões surgem, e uma delas é justamente quando se considera o início do bem jurídico tutelado no crime de aborto, ou seja, qual o início da vida intra uterina? Qual a diferença da vida formada para a vida em formação? Que vida, em sentido geral, é tutelada pela constituição portuguesa? Até que ponto o aborto é descriminalizado? E quando passa a ser um crime suscetível de punição? Com o uso de uma metodologia dedutiva, pautado em pesquisas bibliográficas, legislação, jurisprudência, artigos científicos e materiais afins, o presente trabalho foi dividido sem o objetivo de exaurir todas as questões que surgem acerca do início da vida intra uterina e da tutela desse bem jurídico. Dessa forma, para contextualizar o assunto a ser discutido, o capítulo seguinte fará uma abordagem histórica acerca do aborto no cenário mundial, destacando especialmente o caso de Portugal. Já no segundo capítulo será analisada a formação da vida intra uterina. No terceiro capítulo, far-se-á um estudo do bem jurídico tutelado, bem como a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Concluindo-se no capítulo final, algumas questões inerentes ao assunto abordado. 2) Aborto: uma abordagem histórica O tão polêmico aborto já teve épocas em que fora permitido; seja como método de contracepção3, seja como método de controle de natalidade quando se precisava que nascessem mais homens para as guerras, ou ainda, que a taxa de natalidade diminuísse em virtude da falta de alimentos ou estrutura Estatal; o tema do aborto sempre circundou as mais diversas épocas da história. O aborto já foi permitido na Antiguidade. Na época, a limitação imposta era que a prática abortiva fosse consentida por uma figura masculina4. Filósofos como Platão, Sócrates e Aristóteles, defendiam o aborto. Na Grécia antiga, por exemplo, era fonte de controle populacional. Já em Roma, no período Republicano Romano, o aborto foi permitido, porém passou a ser considerado crime no período Imperial, haja vista a baixa taxa de natalidade 3 CAMPOS, Ana – Crime ou castigo: da perseguição contra as mulheres até à despenalização do aborto. p. 9; Coimbra: Editora Almedina, 2007. 4 TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível em:http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252012000200017. 76 Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina... no país. Com isso, uma legislação mais dura passou a reger àquela época, e o ato passou ser considerado criminoso.5 O que marcava a prática permissiva abortiva na antiguidade era justamente o interesse patriarcal; ferir o modelo em que o patriarca detinha o poder não fazia parte de interesses políticos. Sendo assim, a vida era “deixada de lado” em detrimento ao “poder político”. O que ficava mais marcado nesses períodos era que não só a vida intra uterina, mas especialmente, a vida da mulher, não era levada em consideração nas decisões das práticas abortivas, sejam elas para acontecerem ou não. A mulher parecia não ter “voz” nessas decisões, e muitas vezes o que ocorria era a morte dessas gestantes, que se submetiam aos mais diversos métodos para retirada da vida que estava em seu ventre, causando-lhes muitas vezes graves lesões, mutilações, além das consequências psicológicas, e levando muitas vezes a mulher à morte. Foi na época da Igreja Católica em que realmente o aborto passou a ganhar destaque como prática criminosa, e receber um sentido conotativo negativo. Porém o grande marco histórico mundial para criminalização do ato foi justamente a partir da Revolução Francesa6. Os ideais libertadores da Revolução levaram os países a diversas lutas e guerras, e com isso, o número de mortos aumentava significativamente, além do número de mortes causadas por epidemias, diminuindo muitas vezes a mão de obra necessária ao trabalho, e ainda, a continuidade da família patriarcal. Uma das consequências vistas de se proibir o aborto com o intuito de aumentar o número de nascimentos, foi justamente no período Pós Primeira Guerra. Cada vez mais os países participantes das batalhas precisavam de um exército mais numeroso, e o aumento da prole era de interesse do Estado. Essa prática de permitir ou não o aborto consoante interesses políticos foi permeando vários países no mundo, especialmente na Europa. Apenas com a participação da mulher na sociedade, entrando realmente no mercado de trabalho, e quando os movimentos feministas começaram a ganhara alguma força, foi que os países passaram a “dar voz e vez às mulheres”, ou seja, os países passaram a ter legislações7 que permitissem a mulher escolher sobre como dispor no seu corpo no caso do aborto. 5 TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200017 6 As primeiras legislações que consideravam o aborto crime surgiram na França. TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252012000200017 7 Na Alemanha ocidental, em 1974 foi permitido o aborto nos três primeriso meses de gestação. Em 1981 houve um referendo na Itália onde a mulher pode escolher como dispor de seu corpo, no caso do aborto, sendo esta a opção escolhida pela maioria. Uma Lei chamada Lei Veil, que legalizou a prática do aborto, foi aprovada na França em 1975. TORRES, José Henrique Rodrigues – Aborto e legislação comparada. [Em linha]. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252012000200017 77 Caroline Buarque Leite de Oliveira a) A situação histórica do aborto na perspectiva de Portugal No ordenamento jurídico Português, considerando-se, por exemplo, as Ordenações Filipinas, o aborto era considerado crime, porém, não autônomo. Isso significava que era punido conforme um crime de homicídio, pois assim era tratado, sendo as mulheres que o cometiam, perseguidas naquela época. Foi apenas com o Código Penal de 1852, que se estabeleceu o aborto como um crime autônomo, sendo punido de forma diferente do crime de homicídio, conforme previsto no seu artigo 358º. Entretanto, conforme ensina o Professor Fernando Silva, em virtude dessa autonomia entre o aborto e o crime de homicídio, havia uma “incriminação plena”8 para o tipo penal do aborto. Já no novo Código Penal de 1982, reiteraram-se as possibilidades de permissão para que o aborto pudesse ser realizado, vindo a Lei 6/84 trazer algumas circunstâncias para que o aborto fosse permitido sem que houvesse punição. Essa época coincidia justamente com o aparecer da Procuradoria Geral da República - PGR, num momento em que se discutia justamente sobre a proteção que a Constituição dava em seu artigo 24º à vida. A PGR justamente defendia que no artigo 25º não havia critérios decisivos para afastarem a dúvida relacionada á proteção constitucional dada no artigo anterior à vida, ou seja, se abrangia a vida já formada ou também a vida em formação. E dessa forma os procuradores optaram justamente por entender que a Constituição Portuguesa em seu artigo 24º apenas protegia a vida extra uterina. Foi a partir de então que surgiu toda a discursão em torno do que realmente tutelava o artigo 24º da Lei Maior de Portugal, gerando correntes a serem discutidas no próximo capítulo. Mas foi com revisão ocorrida no Código Penal Português no ano de 1995, que culminou em seguida com a edição da Lei 90/97, que o referido diploma legal passar a trazer circunstâncias de não punibilidade para o ato abortivo praticado sob determinadas circunstâncias. Sendo a maior alteração no Código Penal em relação à descriminalização do aborto, a ocorrida pela Lei 16/2007, que sacramentou o referendo de 2007, deixando de ser caracterizado como ato criminoso o aborto praticado dentro das 10 primeiras semanas de gravidez. 8 Artigo 358º “O Aquele que de proposito fizer abortar uma mulher pejada, empregando para este fim violências, ou bebidas, ou medicamentos, ou qualquer outro meio, se o crime for cometido sem o consentimento da mulher, será condenado na pena de prisão maior temporária com o trabalho. §1. Se for cometido o crime com o consentimento da mulher, será punido com a prisão maior temporária. §2. Será punida com a mesma peno a mulher, que consentir e fizer uso dos meios subministrados, ou que voluntariamente procurar o aborto a si mesma, seguindo-se efetivamente o mesmo aborto. §3. Se porém no caso do parágrafo antecedente, a mulher cometer o crime para ocultar a sua desonra, a penas será a prisão correcional. §4.O médico, ou cirurgião, ou farmacêutico, que, abusando da sua profissão, tiver voluntariamente concorrido para a execução d’este crime, indicando, ou subministrando os meios, incorrerá respectivamente nas penas, agravadas segundo as regras gerais.” CÓDIGO Penal Português de 1852, 6ª. ed. Editora: Universidade de Coimbra, 1881, p. 195. [Em linha] Disponível em: http://www.fd.unl.pt/anexos/investigacao/1267.pdf 78 Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina... 3) A formação da vida intra uterina Apesar de ser um assunto inerente à matéria penal, não há como falar no crime de aborto, sem antes discutir sobre a vida intra uterina, que é assunto muito mais ligado a área médica. É sabido que hoje, além da forma de concepção natural de reprodução de homem e mulheres, onde o espermatozoide fecunda um óvulo, formando um ovo, que dará origem a um embrião e mais na frente, a vida humana, existe ainda outras formas de reprodução que são realizadas em laboratórios, em que óvulos já fecundados são guardados, para depois serem implantados no útero de uma mulher, a fim de que haja o desenvolvimento de uma vida. Acerca desse tipo de reprodução artificial, não entraremos em detalhes no presente trabalho, pois envolve outras questões genéticas que não são objetos deste estudo. Mas então, a partir de quando se forma a vida? A Constituição Portuguesa garante em seu artigo 24º a proteção à vida humana. Mas e quando começa essa proteção? Será que a vida a que a Lei Maior Portuguesa faz referência, inclui a vida intra uterina? Essas questões são bastante discutíveis, até entendermos o que é realmente a vida intra uterina, e o bem jurídico que é tutelado no crime de aborto, tipificado no Código Penal de Portugal. Primeiro é preciso diferenciar a vida formada da vida em formação. Apesar de toda uma discursão e muitas vezes divergências entre direito, religião e ciência, para pautar os referendo de 1998 e 2007, e a lei 16/2007, o legislador considerou como início da vida o momento da nidação, ou seja, o momento em que o ovo (óvulo já fecundado) se fixa no útero materno, por entender que a partir desse momento, existiria maior possibilidade do desenvolvimento da vida intra uterina, que então, deveria ser protegida pelo Estado. Dessa forma, como a nidação ocorre normalmente entre o 10ª e a 13ª após a fecundação, segundo estudos das ciências na área médica, apesar de antes deste momento ocorrer várias divisões celulares que darão origem justamente a um ovo, e de poder existir, ainda que remota, a possibilidade de sobrevivência após ser fixado no útero, os legisladores entenderam não haver vida a ser tutelada antes da nidação. Este juízo levou justamente a decisão de descriminalizar o aborto voluntário ocorrido por decisão da mãe nas 10 primeiras semanas de gestação, sendo assim, considerado um ato lícito, não passível de nenhuma punição, pois sequer é considerado um crime. Para os legisladores, esse livre arbítrio, permitiria que a mulher gestante pudesse realizar a retirada da vida ainda em formação, de forma digna, dentro dos preceitos de saúde os quais possuem direito, evitando-se ainda os abortos clandestinos que eram realizados e deixavam essas mulheres correndo risco de vida, sendo realizado de qualquer jeito, sem a presença de um médico ou clínica especializada. Desde o referendo realizado em 2007, foi criada a Lei 16/2007, dando proteção 79 Caroline Buarque Leite de Oliveira às mulheres que interrompessem a gestação até as 10 primeiras semanas, e não considerando o aborto como crime, ou seja, havendo uma descriminalização, desde que atendido os requisitos desta Lei específica, porém, mantendo-se o tipo penal aborto com possibilidade de punição para os demais casos tipificados no Código Penal Português, tendo em vista o bem jurídico tutelado: a vida intra uterina, O aborto trata-se então, de um tipo penal que tem por bem jurídico tutelado a vida intra uterina. Dessa forma, desde a nidação, ocorrida entre o 10º e o 13º após a fecundação, até o início do parto, considerase, em regra, o crime de aborto. Após este período, o início do parto, o crime passa a ser considerado de homicídio. Torna-se complicado, especialmente para os mais religiosos aceitar a concepção de que a vida, tutelada inclusive na Constituição de Portugal, não é considerada desde o momento da concepção, haja vista que ocorre a fecundação e é gerado um ovo, que apesar de ainda não fixado no útero, está passando por transformações celulares, que darão origem a um embrião e depois feto, caso ocorra tudo bem até o final da gestação. Ou seja, é difícil descartar que a possibilidade de geração de vida. Não estamos falando em casos como o de uma gravidez tubária, em que o ovo fica nas trompas e se sabe que não existe cientificamente possibilidade de desenvolvimento. Mas estamos questionando um óvulo já fecundado pelo espermatozoide, que já é um ovo, e que tem probabilidades, ainda que não garantida de tornar-se uma vida intra uterina a ser protegida, bastando com que consiga se fixar no útero da mãe, e assim, poder desenvolver-se. Ainda hoje não há uma unanimidade nessa decisão, tanto é, que no primeiro referendo não houve aprovação. E como hoje, há muita fertilização in vitro, sendo congelados aqueles ovos para depois ser implantados, No Brasil, por exemplo, se sabe que não se pode jogá-los fora; tem que ser doados para pesquisa, para outros casais que assim desejem ter filhos, ou guardados pelo casal que o gerou, pagando por seu armazenamento, ainda que não vá utilizá-los. Pensando dessa forma, poderia entenderse que já existe então uma vida desde a fecundação, diferentemente do que defende a legislação portuguesa. E finalmente, o artigo 24º da Constituição de Portugal tutela que vida, a extra uterina ou a intra uterina? Se fosse responder essa pergunta com base no princípio da dignidade da pessoa humana e nas ponderações usadas por Robert Alexy, poderia dizer que “na dúvida, faça a interpretação que perfilhe maior eficácia aos direitos fundamentais”, e assim, ambas as formas de vida estariam tuteladas pela Lei Maior Portuguesa. Essa é a linha defendida por esta autora. Porém há outras correntes. Há a corrente defendida pela procuradoria Geral da República, já comentada amplamente no capítulo anterior. Existe ainda a corrente defendida Por Almeida Costa, que sustenta “a proteção à vida pré-natal e á vida já formada, acrescentando que a punição do aborto deve ser a regra no sistema penal português”9. Essa corrente está em consonância com a jurisprudência Constitucional dos 9 SILVA, Fernando - Direito penal especial: crimes contra as pessoas. p. 189. 80 Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina... Acórdãos 25/84 e 85/85 do Tribunal Constitucional, em que o entendimento é de que a Constituição Portuguesa considera ambas as formas de vida em seu artigo 24º, ou seja, não há que se fazer distinção entre vida formada e vida em formação para que haja uma tutela constitucional. Cumpre destacar que no Código Penal de 188610 no mesmo artigo 358º que tratava sobre o aborto, trouxe uma maior penalização para a sua prática, ou seja, após o Tribunal Constitucional concordar que o artigo 24º da Constituição de Portugal protegia ambas as formas de vida, extra e ultra uterina, as penas para quem cometesse o aborto passaram a ter maior gravidade. Por fim, uma terceira corrente não impõe a obrigação do Estado tutelar a vida intra e extra uterina, devendo haver uma ponderação na hora de verificar que lesões devem ser incriminatórias ou não. Seria uma corrente considerada “intermediária”. Nota-se que há uma preocupação em demonstrar que mesmo em relação à vida, não há esse direito absoluto. De fato, é o que ocorre com a vida intra uterina estudada neste capítulo e sua possibilidade de ser extinta de forma voluntária até as 10 primeiras semanas de gestação, conforme Lei 16/2007, não havendo criminalização, ou seja, tratase de um bem jurídico tutelado, mas não de um direito absoluto. Deve haver ponderação para que seja o aborto seja considerado um crime tipificado no Código Penal Português. 4) Bem jurídico protegido: a vida intra uterina e sua tutela jurídica Insta destacar, que por mais que falemos em vida intra uterina, é necessário entender o tipo penal do crime aborto, considerado pelo Código Penal de Portugal, pois é partir daí que será dado entendimento ao que deve ser tutelado pelo Estado e ser punível como crime, e o que é despenalizado e não passível de nenhuma sanção penal, e ainda, o que é descriminalizado. Apesar estudo do tipo penal em si não ser o objeto do presente trabalho é importante destacar o artigo 140º previsto no Código Penal Português, para que justamente, possamos chegar à conclusão do bem jurídico tutelado no crime de aborto. Transcrevamos o artigo supra: “Artigo 140.º Aborto11 1 - Quem, por qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de dois a oito anos. (grifo nosso) 2 - Quem, por qualquer meio e com consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão até três anos.(grifo nosso) [...]”. 10 Artigo 358º. CÓDIGO Penal Português de 1886, 7ª. ed. Editora: Universidade de Coimbra, 1886, p. 107. [Em linha] Disponível em http://www.fd.unl.pt/anexos/investigacao/1274.pdf 11 Artigo 140º. CÓDIGO Penal Português de 2007, p. 133. [Em linha] https://www.iebeib.org/nl/pdf/loi-portugal-euthanasie.pdf 81 Caroline Buarque Leite de Oliveira No decorrer do presente estudo ficou claro que o bem jurídico tutelado no crime de aborto era a vida intra uterina, sendo este inclusive o título do capítulo que trata sobre o assunto no Diploma Legal Português. Porém, conforme analisemos o artigo 140º, percebemos que o aborto trata-se de um crime pluriofensivo, ou seja, não há ofensa apenas a vida intra uterina. Isso fica claro no grifo feito no artigo acima, quando destacamos que o legislador previu uma pena maior para o crime de aborto sem o consentimento da mulher. Ora, a pena base parte em abstrato de dois anos no aborto sem consentimento da gestante, é praticamente a pena total de quando o aborto é consentido pela mulher, chegando até pena máxima de 8 anos. Isso só vem a demonstrar que o crime de aborto não tutela apenas a vida intra uterina, mas tutela também a vida da mulher gestante, pois se assim não o fosse, não haveria razão do legislador prever penas tão mais graves quando o aborto não fosse consentido pela mulher grávida, não tolerando a violação de direitos fundamentais e direitos humanos como o direito à vida, e dessa forma levou em consideração o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Além desse fato, desde o início do trabalho, vimos que a descriminalização do aborto ocorrida nas 10 primeiras semanas da gestação visava também proteger a vida da mulher, que na maioria dos casos, procurava clínicas clandestinas para realizar o aborto quando este não era permitido em Portugal até o período mencionado. O fato da escolha do marco do início da vida ser considerado a nidação deve-se ao fato de que a maioria dos ovos não sobrevive antes desse momento, ou seja, entre a 10ª e a 13ª após a fecundação. Há doutrinadores que chegam a dizer que apenas 50% sobrevivem, mas essa taxa segundo conceitos médicos é bem menor. Por isso esse foi o período escolhido para o início da vida no caso da legislação portuguesa, pois antes desse momento seria improvável ter-se expectativas de se gerar uma vida. Desataca-se que a proteção em relação à vida intra uterina vai desde à nidação até o início do parto. A título de curiosidade, em relação às questões que envolvem a personalidade jurídica da vida em formação, o Código Civil Português é muito claro em seu artigo 66º que diz: (Começo da personalidade) “1. A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida. 2. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.” Ora, é perceptível que pela leitura do artigo, que por lei, só se adquire personalidade jurídica com o nascimento com vida. Entretanto, não há como não mencionar que existem decisões Supremo Tribunal de Justiça de Portugal – STJ que já veio a conceder personalidade jurídica ao nascituro em caso de danos morais, 82 Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina... considerando a personalidade jurídica desde o momento da concepção12. Hodiernamente, em Portugal existem modelos de justificação para o aborto em determinados casos, e nesses modelos, no caso português, o modelo das indicações, a prática do aborto, apesar de criminosa torna-se justificada, havendo a chamada despenalização. As indicações são casos de excepcionalidade, pois em regra, pelo Código penal Português traz o aborto como tipo criminoso. 5) Conclusão Embora já tenham se passados décadas, o aborto é um tema que sempre está em discursão. É um assunto polêmico, e não estritamente jurídico; alias, o aborto é um assunto que abrange vários ramos e ciências, sejam elas médica, biológicas, religiosas, jurídicas, políticas, entre outras. 12 “O nascituro é um ser humano vivo com toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.” A afirmação é do estudioso Pedro Pais de Vasconcelos, professor na Faculdade de Direito de Lisboa, e foi usada como fundamento pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal para decidir que um bebê tem direito de receber indenização por danos morais porque seu pai morreu antes dele nascer. Nascituro tem personalidade jurídica, decide STJ português 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro https://www.conjur.com.br/2014-abr26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal?imprimir=1 2/5 No julgamento, o STJ reconheceu em Portugal que, desde o momento da concepção até a morte, existe vida com personalidade jurídica, que deve ser protegida pelo Estado. Pelo entendimento consolidado, não cabe à lei nenhuma retirar qualquer direito de um nascituro. O processo julgado trata do drama vivido por uma família: pai, mãe grávida e um filho de um ano e meio. O pai se envolveu em um acidente de trânsito e morreu. Era ele que sustentava toda a família, já que a mulher não trabalhava e ficava em casa para cuidar do filho. Dezoito dias depois da morte, nasceu a filha do casal. Diante d 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal?imprimir=1 3/5 nascimento completo e com vida. Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento”. Para o tribunal de segunda instância, o artigo deixa claro que o nascituro não tem personalidade jurídica e não pode, por isso, ter a sua dignidade ofendida. Os juízes do STJ, no entanto, entenderam de maneira diferente. Eles foram buscar na doutrina do Direito Civil uma interpretação menos literal ao dispositivo. Concluíram que a partir do momento da concepção, já existe um ser humano dotado de personalidade jurídica. Não cabe à lei retirar esse direito. Direito em potencial Assim, o que o artigo 66 do Código Civil estabelece é o momento que começa a capacidade jurídica, e não a personalidade. Isso significa que, enquanto ainda está no útero, o feto tem direito em potencial, que vai se consumar no momento em que nascer com vida. A partir daí, pode buscar reparação por danos vividos enquanto ainda estava no útero da mãe. Por esse entendimento, um bebê pode pedir indenização se for prejudicado por algo que a mãe fez durante a gestação. Por exemplo, se a gestante consome álcool e isso gera problemas ao feto, depois do nascimento, ele tem o direito de ser 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stjportugal?imprimir=1 4/5 reparado pelo dano sofrido. O assunto está sendo analisado pela Justiça da Inglaterra também, que vai decidir se mulheres que fumam ou ingerem álcool durante a gravidez podem ser condenadas criminalmente (clique aqui para ler mais). “O nascituro não é uma simples massa orgânica, uma parte do organismo da mãe ou, na clássica expressão latina, uma portio viscerum matris, mas um ser humano (ente humano) e, por isso, já com a dignidade da pessoa humana, independentemente de as ordens jurídicas de cada Estado lhe reconhecerem ou não personificação jurídica e da amplitude com que o conceito legal de personalidade jurídica possa ser perspectivado” , diz trecho da decisão do STJ português. O tribunal citou doutrinadores que afirmam que o nascimento é apenas mais um marco na vida de uma pessoa, e não o seu início. Por essa teoria, a vida começa na concepção. O nascimento significa apenas que o feto vai passar a se relacionar com outras pessoas, além da sua mãe, e continuar progredindo para se tornar, de fato, um ser humano independente. 29/03/2018 ConJur - STJ de Portugal reconhece personalidade jurídica de nascituro https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal?imprimir=1 5/5 Ao decidir, a corte ainda considerou que seria discriminação negar indenização para a filha que não tinha nascido quando o pai morreu, mas garantir ao outro filho. A Constituição de Portugal garante a igualdade entre todos os filhos de um casal.” INÍCIO DA VIDA 26 de abril de 2014, 9h36 Por Aline Pinheiro. [Em linha] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-abr-26/nascituro-personalidade-juridica-stj-portugal 83 Caroline Buarque Leite de Oliveira Não podemos tratar o aborto apenas como um problema jurídico ou de saúde; o aborto é um problema social, que possui várias questões intrínsecas envolvidas, inclusive questões éticas e morais, tanto que gera tanta desavença no mundo inteiro. Entretanto, no caso especificamente de Portugal, não se pode olvidar que muitos avanços e conquistas foram conseguidos, especialmente para as mulheres. Com a descriminalização do aborto até as 10 primeiras de gestação muitas mulheres passaram a ter o direito de dispor de seu corpo e escolher sua autonomia reprodutiva, já após uma gestação. Isso não significa dizer que o número de abortos clandestinos diminuiu significativamente no país, haja vista que muitas mulheres ainda sofrem com o preconceito de serem “mal vistas” em procurar uma clínica para cometer uma prática abortiva, ainda que protegida pela lei. Porém, hoje elas podem optar em ter essa prática abortiva até as 10 primeiras semanas de gestação, com maior segurança, assistência médica, sem correr tantos riscos como acontecia anteriormente, de chegarem até ao óbito. Ao longo do presente estudo não restou dúvidas que a legislação portuguesa escolheu como início da vida a nidação, ocorrida entre a 10ª e a 13ª após a fecundação, sendo o aborto tipificado como crime desde este momento até o inicio do parto. Resta claro destacar, que o tipo penal tutelado no crime de aborto não está exclusivamente ligado á vida intra uterina, haja vista o aborto tratar-se de um crime pluriofensivo. Insta ressaltar que o aborto tutela além da vida uterina, a vida da mulher gestante, punindo de forma severa àqueles que cometem o aborto sem o seu consentimento, e dessa forma, respeitando a dignidade da pessoa humana. Discutir essas questões relacionadas ao aborto são realmente muito importante para se compreender a proteção da vida, porém é um assunto um tanto quanto inesgotável, , e que cada vez mais, a população e o Estado têm tentado solucionar e entrar num consenso, não somente em Portugal, mas nos mais diversos países do mundo. REFERÊNCIAS 1. Geral a) Livro CÓDIGO Civil, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, ISBN 978-972-40-6639-4 CÓDIGO Penal, 7.ª ed. Coimbra: Almedina, 2016. ISBN 978-972-40-6839-8. b) Internet CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa. Diário da República. Série I. [Em linha]. Nº 86 (10-04-1976), pp. 738-775. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao84 Dignidade da pessoa humana? Crimes contra a vida intra uterina... consolidada//lc/337/201706182149/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_Le gislacaoConsolidada_WAR_drefrontofficeportlet_rp=indice 2. BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Ana - Crime ou castigo? Da perseguição contra as mulheres até à despenalização do aborto. Coimbra: Editora Almedina, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes - Direito constitucional e teoria da constituição. 7.ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003. ISBN 978-97-2402106-5. CAMPOS, Diogo Leite - Estudos sobre o direito das pessoas 3.ª ed. ver. e actualizada. Coimbra: Almedina, 2004. 378 p. ISBN 978-40-2155-6. BRITO, Tereza Quintela de; MATA, Paulo Saragoça da; NEVES, João Curado; MORÃO, Helena - Direito Penal – Parte Especial: lições, estudos e casos. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. ISBN 978-972-32-1476-5. GOIS, Luciene Casqueiro; Zackseski, Cristina - A Descriminalização do Aborto em Portugal Sob a Ótica da Criminologia Feminista [Em linha]. In. 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Além disso, outros crimes de cunho patrimonial também poderiam estar localizados na Lei dos Crimes Financeiros, lei esparsa, com relação imediata às fraudes bancárias. Com isso, identificamos que não há um sistema estanque no estudo do patrimônio inserido na esfera penal. Mas, além disso, temos que observar que o aspecto patrimonial e financeiro, retratado pelo Poder Econômico do réu ou da vítima, pode influenciar nas diversas naturezas dos aspectos criminais, quanto à tipificação delitiva, à concessão de benefícios e às indenizações e reparações de danos causados pela infração penal. Por isso, o interesse de explorar tais aspectos para um equacionamento mais próximo da realidade prática, diante dos resultados e das dificuldades de interpretação e de provas relacionadas ao tema. 2) Patrimônio como elemento objetivo do tipo penal. O estudo da estrutura do tipo penal é de fundamental importância para o posicionamento em relação à matéria. Em primeiro plano, salientamos que no tipo penal brasileiro identificamos três elementos essenciais: o subjetivo, o objetivo e o normativo 4. Iniciaremos a discussão sobre o elemento objetivo do tipo penal. O patrimônio está classificado como “objeto” que compõe a formação da infração penal. Neste ponto, Coordenador da Pós-Graduação da Universidade Presbiterana Mackenzie Doutorando e Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie 3“Peculato. Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa” (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 4 COSTA JUNIOR, Paulo José da; COSTA, Fernando José da. Curso de Direito Penal, 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 1 2 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean o patrimônio pode estar relacionado como “bem juridicamente tutelado”. Ou seja, constatamos a coisa com valor econômico para a vítima. Por isso, quando mencionamos o crime de furto, de roubo e de receptação, por exemplo, podemos observar facilmente a afronta ao patrimônio da vítima, que fora atacado pelo comportamento criminoso. Às vezes, todavia, observamos que o patrimônio pode estar afetado por via reflexa, no caso de um arrimo de família é assassinado, a família permanece sem suporte de subsistência. Nestes casos, observamos que o patrimônio é discutível após a apuração da responsabilidade penal dos fatos, não interferindo no mérito da demanda. Por isso, nestes casos, apenas figura como circunstância consequencial ao crime e não sobre sua constituição. Então, salientamos o primeiro questionamento sobre a constituição do tipo penal com elementos patrimoniais mínimos. A discussão sobre o valor do bem juridicamente tutelado gerou nos Tribunais Superiores e principalmente no Supremo Tribunal Federal (HC 84412)5 parâmetros de entendimento de relevância patrimonial para eventual aplicação do Princípio da Insignificância. Mencionamos, assim, por exemplo, circunstâncias de prisão em flagrante de delito do agente, onde a coisa foi restituída imediatamente, ou a coisa subtraída possui um valor até irrisório. É este fato que necessitamos analisar. Em primeiro plano, o Código Penal Brasileiro não acolheu o princípio da insignificância, em regra, para atipicidade da conduta delitiva. Ao contrário, considerou que as coisas de pequeno valor, por exemplo, poderiam ser utilizadas como critérios de fixação de penas mais brandas, como no caso de furto privilegiado, estelionato, dentre 5 “PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - IDENTIFICAÇÃO DOS VETORES CUJA PRESENÇA LEGITIMA O RECONHECIMENTO DESSE POSTULADO DE POLÍTICA CRIMINAL - CONSEQÜENTE DESCARACTERIZAÇÃO DA TIPICIDADE PENAL EM SEU ASPECTO MATERIAL - DELITO DE FURTO CONDENAÇÃO IMPOSTA A JOVEM DESEMPREGADO, COM APENAS 19 ANOS DE IDADE - "RES FURTIVA" NO VALOR DE R$ 25,00 (EQUIVALENTE A 9,61% DO SALÁRIO MÍNIMO ATUALMENTE EM VIGOR) - DOUTRINA - CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA JURISPRUDÊNCIA DO STF - PEDIDO DEFERIDO. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA QUALIFICA-SE COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO MATERIAL DA TIPICIDADE PENAL. - O princípio da insignificância - que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal - tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Doutrina. Tal postulado - que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada - apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público. O POSTULADO DA INSIGNIFICÂNCIA E A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL: "DE MINIMIS, NON CURAT PRAETOR". - O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (HC 84412, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 19/10/2004, DJ 19-11-2004 PP-00037 EMENT VOL-02173-02 PP-00229 RT v. 94, n. 834, 2005, p. 477-481 RTJ VOL-00192-03 PP-00963). Disponível em:<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2884412%2ENUME%2E +OU+84412%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/zzdyp6q>. Acesso em: 23 maio 2018. 88 O patrimônio como elemento objetivo da infração penal... outros, e não como fator para se alcançar a atipicidade da conduta. Para atipicidade da conduta a doutrina penal mais liberal postulou o reconhecimento do princípio para a atipicidade da conduta que foi reconhecido pelo julgado acima do Supremo Tribunal Federal em caso concreto. Todavia, em melhor entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal (RHC 152146), julgado recente, reconheceu que as circunstâncias pessoais do acusado, ou seja, contumaz na prática delitiva, como elemento de afastamento do princípio para o tipo penal patrimonial6. Assim, extraímos que o valor econômico, em si, da coisa não pode ser critério único para identificar a aplicação do direito penal nos delitos que envolvam patrimônio. Seja pela restituição da coisa, seja pelo valor pequeno, outras circunstâncias necessitam ser sopesadas para não se atingir o senso de impunidade que gera a reincidência desmedida. Mas, devemos observar, também, que o sistema penal não é homogêneo. Devemos observar o fato de que eventual devolução do bem, como “desistência” ou “arrependimento”, que serão abaixo analisadas, poderá ter um tratamento diferenciado (e desigual, portanto) na legislação penal, dependendo da regulamentação da matéria. É o caso, por exemplo, do crime de peculato culposo. O art. 312, §3.º, do Código Penal7, trata de forma diversa a ausência de prejuízo, quando o delito ocorre de forma culposa, permitindo que o agente repare o dano causado antes da sentença condenatória irrecorrível. Neste caso, por meio de lei, há o reconhecimento da descaracterização do delito com aspectos patrimoniais, por meio da extinção de punibilidade do agente, sem considerar que há outro bem jurídico a ser tutelado pelo tipo, qual seja a moralidade administrativa8. Ainda neste exemplo, caso a reparação do dano seja posterior (arrependimento posterior), a pena imposta poderá ser reduzida de metade. Constatamos, por fim, que o critério patrimonial, que fora restituído, somente 6 “Agravo regimental no recurso ordinário em habeas corpus. Penal. Receptação (CP, art. 180). Condenação. Pretendido reconhecimento do princípio da insignificância. Impossibilidade. Comprovada contumácia delitiva da agravante na prática de crimes contra o patrimônio. Precedentes. Agravo não provido. 1. Não se mostra possível acatar a tese de irrelevância material da conduta praticada pela agravante, pois, não obstante a inexpressividade do bem subtraído, as informações extraídas dos autos são inequívocas quanto a sua condição de contumaz na prática de crimes contra o patrimônio, o que desautoriza a aplicação do princípio da insignificância, na linha da jurisprudência da Corte. 2. O Tribunal Pleno, ao denegar o HC nº 123.108/MG, o HC nº 123.533/SP e o HC nº 123.734/MG (sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso), consolidou o entendimento de que a habitualidade delitiva específica ou a reincidência obstam o reconhecimento do princípio da insignificância (Informativo nº 793/STF). 3. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (RHC 152146 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 27/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-072 DIVULG 13-04-2018 PUBLIC 16-04-2018)”. Disponível em <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28PRINCIPIO+DA+INSIGNIFICA NCIA%29&base=baseAcordaos&uur=http://tinyurl.com/jx47teq>. Acesso em: 23 maio 2018. 7 “Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: [...] § 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem; §3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano, se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade a pena imposta”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 8 ESTEFAM, André. Direito Penal - Parte Especial 4, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 89 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean terá efeito de atipicidade delitiva na hipótese de crime culposo, afastando a intenção delitiva (dolo da conduta). 3) Patrimônio relacionado à desistência voluntária e ao arrependimento eficaz. Em prosseguimento à identificação do patrimônio na esfera do tipo penal, constatamos outros comportamentos que se agregam ao fato penalmente relevante para definição da conduta, quais sejam: a desistência voluntária e o arrependimento eficaz. Neste ponto, o nível de dolo alcançado pelo agente ou a atenuação da vontade delitiva são elementos que demonstram certa relevância penal. A Lei Penal reconhece benefício ao agente que “desiste”9, por sua decisão, do prosseguimento da infração penal. Neste caso, não há que se mencionar tipo penal tentado10, pois, neste, a interrupção ocorre por circunstância diversa do dolo do agente. Neste fenômeno de desistência, há alteração do dolo no decorrer da conduta (“iter criminis”) que evita seu esgotamento. Há estímulo ao agente para a desistência. A própria vontade interrompe a sequência de atos executórios, fazendo com que o resultado não aconteça, impedindo a afronta patrimonial. Quanto ao arrependimento eficaz, ainda no art. 15 do Código Penal, o agente não “desistiu” no momento do “iter criminis”. Os atos executórios ocorreram, mas o agente evita a violação ao bem juridicamente tutelado, ou seja, o patrimônio. No mesmo sentido, a doutrina aponta que, “no arrependimento eficaz, já foram esgotados os atos de execução, porém, o agente atua novamente para impedir que o resultado ocorra”11. Por isso, podemos mencionar exemplos. O primeiro, no caso de ausência de violação do bem. O agente pratica o crime de furto (art. 155 do Código Penal) 12 e, ao se aproximar do bem para o apossamento, desiste de praticar a infração penal (desistência voluntária). Como o agente somente responde pelos atos já praticados, não tendo afrontado qualquer bem, o fato será atípico. Nas hipóteses de arrependimento eficaz, duas situações poderiam ser observadas: a primeira, no sentido de que o agente viola o domicílio da vítima para a subtração. Todavia, com o arrependimento, o agente retorna ao local e devolve o bem. Restaria somente a violação de domicílio (fato não patrimonial). 9 “Art. 15 - O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 10 “Art. 14 - Diz-se o crime: II - tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 11 BUSATO, Paulo César. Direito Penal: Parte Geral, (v.1), 2.ed. São Paulo: Atlas, 2015. 12 “Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 90 O patrimônio como elemento objetivo da infração penal... No caso de uma subtração com rompimento de obstáculo (furto qualificado), mesmo com a devolução do bem, subsistiram os danos (fato patrimonial), que podem ser objeto de ação penal e de ação civil de reparação se o caso, tendo em vista que o agente responde pelos fatos já caracterizados. 4) Patrimônio relacionado ao arrependimento posterior. Outra figura que está afeta à reparação dos danos é o arrependimento posterior13. Trata-se de benefício de diminuição de pena do agente atrelado ao fato de que o agente, com a reparação dos danos, está minimizando os efeitos da infração penal praticada. Nesta seara, a reparação patrimonial não exclui o crime, uma vez que “demasiado tardio para evitar a produção do resultado”14. Então, reduz-se a pena. Na figura em análise, identificamos um critério temporal para o crime. Quanto aos anteriores, o agente poderia ainda estar no processo criminoso. Neste caso, a conduta se torna “posterior”, pois a ação criminosa atingiu sua plenitude de consumação. O agente, então, age para diminuição ou eliminação do resultado atingido até o recebimento da petição inicial (denúncia ou queixa-crime), ou seja, limitação temporal para esta figura. Questão importante é que tal figura possui outra limitação, posto que não tolera crimes praticados com violência ou grave ameaça à pessoa (caso do roubo15), haja vista a afronta grave a bens juridicamente tutelados. Tais comportamentos agregados demonstram a personalidade criminosa desvirtuada do agente. O não afastamento da tipicidade do crime se justifica por uma razão. Vamos imaginar um exemplo em que o agente pratique um crime patrimonial e não tenha a intenção de reparar os danos causados, ainda mais se não for preso em flagrante delito. Se estiver solto, o agente não contribui para a reparação dos danos, aguarda a investigação se encerrar e o resultado das investigações, com o oferecimento da denúncia ou não. Evidente que, se a autoria não for identificada, sairá impune da conduta, sem qualquer outra consequência, sendo beneficiado pela falha do procedimento investigatório, haja vista que o inquérito policial seria arquivado e não precisaria reparar os danos. Quanto ao benefício de redução de pena, a doutrina já se manifestou que, quanto mais próxima da consumação do delito a reparação dos danos, maior seria o patamar de 13 “Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 14 BUSATO, Paulo César, op. cit. p. 688. 15 “Art. 157 - Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 91 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean redução de pena diante dos parâmetros definidos pelo dispositivo legal. Ressalte‐se que o Magistrado, ao definir o “quantum” da redução da pena (de um a dois terços), deverá levar em conta a presteza na reparação do dano ou restituição do bem. Assim, quanto mais adiantada a persecução penal menor deverá ser a fração aplicada16. 5) Patrimônio relacionado à causa atenuante de redução de pena Também em relação ao tempo em que a reparação dos danos possa ocorrer, ainda há mais um fenômeno que permite a diminuição da pena. O art. 65, inciso III, alínea “b”, do Código Penal17, demonstra que a influência do patrimônio ainda pode ser causa atenuante de pena18. Nesta circunstância, não há confusão com os anteriores. A primeira circunstância está relacionada ao fato de o agente “minorar”, ou seja, diminuir as consequências do crime, sem vinculação temporal ao recebimento da denúncia. A diminuição das consequências patrimoniais do crime mereceu acolhimento. Caso o agente não tenha condições financeiras de sanar os danos, a lei não impediu que atingisse algum benefício no caso de ressarcimento parcial. Salientamos, ademais, que a jurisprudência diverge quanto ao tema, em relação à integralidade ou a parcialidade do ressarcimento19. Em relação ao tempo processual para a reparação dos danos, a lei fixou a prolação da sentença como momento final para a espontaneidade do réu na conduta. Assim, se o réu contar com uma absolvição pelos fatos praticados e não atingir seu desejo, não teria, de igual forma, a possibilidade do benefício. Neste ponto, não há como prestigiar o agente com isenção de pena ou redução maior de pena, no caso de espera do processo para presumir um resultado e, na iminência de ser condenado, repare o dano para alcançar a impunidade. Por isso, a redução de pena em patamar não precisamente definido, mas com quantidade inferior 16 ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo. Esquematizado - Direito penal: parte geral, 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 384. 17 “Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: III - ter o agente: b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 18 ESTEFAM, André; GONÇALVES, Victor Eduardo. op. cit. 384. 19 “PENAL E PROCESSUAL PENAL. DUPLICATA SIMULADA. ARTIGO 172 DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO. DOSIMETRIA. PENA BASE. CULPABILIDADE. ARREPENDIMENTO POSTERIOR. PAGAMENTO PARCIAL. CONTINUIDADE DELITIVA. PENA DE MULTA. VALOR UNITÁRIO DO DIA-MULTA. ART. 60, CAPUT, DO CP. A emissão de duplicatas referentes a transações mercantis inexistentes caracteriza o delito tipificado no artigo 172, caput, do Código Penal. Se a culpabilidade, traduzida na reprovabilidade social da conduta, é normal à espécie, não se justifica a exacerbação da pena-base sob essa circunstância. A diminuição da pena pelo arrependimento posterior (art. 16 do Código Penal) deve ser sopesada considerando a extensão da reparação do dano, antes do recebimento da denúncia. O patamar de exacerbação decorrente da continuidade delitiva deve levar em conta o número de oportunidades em que a conduta delituosa foi reiterada pelo agente. A fixação da pena de multa deve considerar a situação econômica do réu. (artigo 60, caput, do Código Penal)”. (TRF4, ACR 2007.72.04.002999-3, SÉTIMA TURMA, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, D.E. 14/01/2011). 92 O patrimônio como elemento objetivo da infração penal... àquela anterior ainda permite benefício antes do resultado final do processo. Por isso, constatamos, até então, que o agente poderá reparar os danos desde a ação criminosa até a prolação da sentença. Perguntamos como se posiciona a reparação dos danos após a prolação da sentença. 6) Patrimônio quanto aos aspectos após prolação de sentença condenatória. O tratamento do patrimônio, como reparação dos danos, permaneceu na esfera da espontaneidade do agente até a prolação da sentença pelas razões já evidenciadas. Se o patrimônio lesado não foi reparado, com uma condenação do agente, a reparação poderá atingir o patrimônio do agente de forma forçada. Agora, o ponto de apreciação é a capacidade financeira do réu para suportar a determinação para a reparação dos danos. O patrimônio do acusado assume fator condicional à diminuição das consequências do crime. Por isso, ainda em relação às medidas cautelares assecuratórias como arresto ou sequestro poderiam garantir o sucesso ou não da reparação patrimonial após a prolação da sentença. Tais medidas, apesar de não serem comuns na maioria dos processos criminais, podem auxiliar o Estado na finalidade de reconstituição do patrimônio lesado. Podemos observar, ainda, a fiança como medida que garantiria a liberdade do indivíduo, mas que, ao mesmo tempo, poderia ser utilizada ao final do processo, no caso de prolação de sentença condenatória, para a reparação dos danos. Ainda como medida despenalizadora, a reparação dos danos afetas ao benefício da suspensão condicional do processo, onde em seu art. 89 da Lei n.º 9.099/95 (Juizados Especiais Criminais)20, em seus parágrafos, expõe que, quando possível, a reparação dos danos será condição obrigatória para a fruição do benefício legal (art. 89, §1.º, inciso I) e determina que o inadimplemento é causa de revogação obrigatória da benesse (art. 89, §3.º)21. Assim, para que o agente atinja a extinção de punibilidade, deverá arcar com a reparação para obtenção da sentença homologatória22. 20 “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal): § 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições: I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo”. (BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 21 “Art. 89, § 3º - A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime ou não efetuar, sem motivo justificado, a reparação do dano”. (BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 22 DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Teoria e Prática dos Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Forense, 2008. p. 133. 93 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean Em acréscimo, o prazo para cumprimento da obrigação é o período de prova23. O benefício e a coerção do réu são evidenciados no fato, pois, caso não ocorra a reparação, o feito voltará a prosseguir, podendo o réu ser condenado. Seguiremos quanto às sentenças condenatórias. a) A afronta do patrimônio como resultado de uma condenação penal. Constatamos neste ponto a migração da indenização da esfera da voluntariedade do réu para alteração da natureza jurídica, ou seja, para a esfera forçada por meio da pena fixada na sentença. Neste ponto, não há mais benefícios a serem concedidos. Há dever a ser cumprido coercitivamente. Todavia, temos um binômio onde o dano, muitas vezes quantificado, confronta a capacidade econômica do réu. Em relação à recomposição, temos a pena de multa, ou seja, aquela prevista nos arts. 49 e seguintes do Código Penal24. A fixação de multa, sabemos, deve estar estipulada no tipo penal em seu preceito secundário, para que possa ser exigida do réu em face de uma condenação criminal25. Neste ponto, segue o mesmo critério de individualização das penas privativas de liberdade. Evidentemente que a forma de pagamento e de cumprimento da determinação pode variar26. Todavia, não se trata de único requisito, pois as consequências do crime podem ser utilizadas como critério para a definição do valor. A pena de multa, ainda, contribui para o fundo patrimonial do Estado para implementação de estrutura penal de cumprimento de pena27. Em relação à fiança, como já dissemos, é uma garantia prestada pelo agente para que este possa responder ao processo em liberdade28. Neste sentido, salientamos apenas 23 “PROCESSUAL PENAL. "HABEAS CORPUS". SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. REPARAÇÃO DOS DANOS. A exigência referente à reparação dos danos não é requisito para concessão da suspensão condicional do processo, mas sim, condição da extinção da punibilidade. Vale dizer, não há que se falar, no que toca à suspensão condicional do processo, em reparação dos danos antes do período de prova ao qual o acusado será submetido. Ordem concedida”. (HC 7.637/GO, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 22/09/1998, DJ 26/10/1998, p. 129). 24 MULTA “Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa. Será, no mínimo, de 10 (dez) e, no máximo, de 360 (trezentos e sessenta) dias-multa”. (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 25 JUNQUEIRA, Gustavo. Manual de direito penal: parte geral, 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 26 “HABEAS CORPUS. INTIMAÇÃO VIA EDITAL DA SENTENÇA CONDENATÓRIA. AUSÊNCIA DE RECURSO DO ADVOGADO DATIVO. PENA DE MULTA E PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. CAPACIDADE FINANCEIRA DO CONDENADO. - Não havendo nos autos elementos a permitir o exame dos fundamentos da decisão que determinou a intimação via edital da sentença condenatória, prejudicado o exame da matéria. - A ausência de recurso de apelação do defensor dativo não acarreta nulidade da ação penal (precedente). A pena de multa não se confunde com a prestação pecuniária, a qual constitui pena restritiva de direito, que substitui, quando preenchidos os requisitos, a pena privativa de liberdade. - Na ausência de documentos que permitam a análise da condição econômica do executado, incabível aferir a necessidade do pagamento da pena de multa e da prestação pecuniária de forma parcelada” (TRF4, HC 2008.04.00.039659-9, OITAVA TURMA, Relator LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADO, D.E. 03/12/2008). 27 JUNQUEIRA, Gustavo. Manual de direito penal: parte geral, op. cit. 28 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, 25.ed. São Paulo: Atlas, 2017. 94 O patrimônio como elemento objetivo da infração penal... alguns aspectos que podem atingir o patrimônio do agente. A possibilidade cobrir o pagamento de custas processuais, de indenização do dano causado e da multa, é uma finalidade garantidora e que será restituída, caso o réu seja contemplado pela sentença absolutória29, nos termos do disposto no art. 336 do Código de Processo Penal30. De igual forma, salientamos que a fiança possui maior potencialidade acautelatória. Para que o agente obtenha a liberdade provisória, temos os critérios de fixação da fiança proporcional ao patrimônio do acusado. Tais critérios podem ser identificados para garantir de forma mais efetiva a reparação dos danos gerados pelo crime e reconhecidos na sentença penal condenatória. A amplitude dos patamares definidos pela legislação processual penal demonstra que um réu, diante de capacidade financeira, poderia arcar com danos patrimoniais, morais31 e alimentares da vítima e de sua família, por exemplo em um acidente de trânsito, no caso de condenação, para a recomposição do bem juridicamente tutelado na norma. A fiança, então, prevista em valoração no art. 325 do Código de Processo Penal32, pode assumir tal função de relevância no papel processual. Além da fiança, podemos identificar a substituição da pena privativa do acusado por uma prestação pecuniária ao ofendido. Tal benefício estipulado em sentença está inserido no art. 45, §1.º, do Código Penal33. Inicialmente, observamos que é um benefício ao réu, tendo em vista que cumprirá pena alternativa à privação de liberdade, e que contribuirá para reduzir os prejuízos patrimoniais da vítima. Tem caráter, portanto, obrigatório da substituição da pena. Tal fenômeno, por via indireta, pode garantir o patrimônio lesado da vítima. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, op. cit. “Art. 336. O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado” (BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 31 “PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 387, IV, DO CPP. REPARAÇÃO CIVIL. PEDIDO EXPRESSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA VÍTIMA. CABIMENTO. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DESACORDO COM O ENTENDIMENTO DOMINANTE DO STJ. SÚMULA 568/STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Nos termos do entendimento desta Corte Superior a reparação civil dos danos sofridos pela vítima do fato criminoso, prevista no artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, inclui também os danos de natureza moral, e para que haja a fixação na sentença do valor mínimo devido a título de indenização, é necessário pedido expresso, sob pena de afronta à ampla defesa. 2. Agravo regimental a que se nega provimento” (AgRg no REsp 1666724/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017). 32 “Art. 325. O valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder nos seguintes limites: I de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos; II - de 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos. § 1.º - Se assim recomendar a situação econômica do preso, a fiança poderá ser: I - dispensada, na forma do art. 350 deste Código; II - reduzida até o máximo de 2/3 (dois terços); ou III - aumentada em até 1.000 (mil) vezes” (BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del3689.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 33 “Art. 45, §1º A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários” (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 29 30 95 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean Outra oportunidade para reparação dos danos, se as demais não surtirem cabimento e efeito no processo, é estar fixada como efeito da condenação (art. 91, inciso I, do Código Penal)34. Identificamos um caráter complementar do dispositivo legal, pois possui duplo significado. O primeiro, no sentido de fundamentar as medidas patrimoniais constritivas para a reparação dos danos, dando-lhes efetividade. O segundo, gerando um título executivo para a vítima, se o caso, ingressar na esfera executiva cível própria para a recomposição, de acordo ainda com o art. 63 do Código de Processo Penal35. Além disso, como critério ressocializador da pena, o art. 91, inciso II, alínea “b”, do Código Penal, ainda atinge frontalmente os produtos e os bens auferidos pelo agente com a prática ilegal da infração. Por razões claras, todo e qualquer produto ou proveito do crime está contaminado pela ilicitude, pois, do contrário, o delito compensaria ao agente. Por isso, a medida constritiva definida na sentença agrega valor ao restabelecimento da situação jurídica anterior. A reparação dos danos se torna obrigação ao réu. b) A afronta do patrimônio como resultado da esfera civil. É possível, ainda, mesmo que em esfera não penal, a possibilidade de alcance ao patrimônio do acusado. Em primeiro plano, a condenação penal se torna um título executivo judicial. Neste ponto, caberia à vítima interposição a execução da obrigação. O outro aspecto possível é o fato de a vítima, com o documento da sentença penal condenatória, do qual não constou uma fixação de indenização expressa, poder ingressar com tal documento na via de conhecimento na esfera civil para a busca da reparação de seus danos. 7) Colaboração Premiada, Composição Civil e Transação Penal como instrumentos impeditivos de ação penal. Em primeiro plano, observamos o instituto da composição civil dos danos na 34 “Art. 91 - São efeitos da condenação: I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime; II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito; b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso. § 1.º Poderá ser decretada a perda de bens ou valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior; § 2.º Na hipótese do § 1.º, as medidas assecuratórias previstas na legislação processual poderão abranger bens ou valores equivalentes do investigado ou acusado para posterior decretação de perda” (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 35 DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal, op. cit. p. 166. 96 O patrimônio como elemento objetivo da infração penal... esfera das infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 74 da Lei n.º 9.099/95)36. Nas hipóteses em que a vítima exercerá papel importante na repressão do criminoso (ação penal pública condicionada e ação penal privada), ou seja, autoriza o Estado à persecução penal ou é o próprio autor da ação, o acordo patrimonial efetivado e homologado entre vítima e autor para a reparação dos danos acarreta renúncia ao direito de ação e, ao mesmo tempo, torna-se título executivo para a esfera civil. Constata-se, então, uma forma de disponibilidade de ação penal por parte da vítima. No caso de impossibilidade em razão da ação penal, ainda nas infrações de menor potencial lesivo, há possibilidade de um acordo efetivado com o Ministério Público, convencionado transação penal, em que o agente se compromete a uma prestação, por vezes, pecuniária, para o impedimento da ação penal (art. 76 da Lei n.º 9.099/9537). Todavia, neste caso, duas observações são relevantes. A primeira, no sentido de que o descumprimento da medida gera a retomada do andamento processual. A segunda, no sentido de que o agente necessita fazer jus ao benefício, seja pelos antecedentes, seja em razão de não ter usufruído do benefício em prazo regulado. De forma recente, ainda, fomentado pelo patamar de desenvolvimento de organizações criminosas, o legislador ainda previu nas Organizações Criminosas, no art. 4. º da Lei de nº 12.850/201338, o instituto do perdão judicial ou de redução de pena, para a colaboração premiada, cada qual com sua finalidade específica e critérios próprios. Ainda nas investigações de tais feitos, dentre outras finalidades do acordo, concentramo-nos na recomposição do patrimônio lesado com a conduta do criminoso. Para estas modalidades criminosas, o agente, com tal contribuição patrimonial de restituição, pode alcançar o benefício com o fornecimento de fatos, documentos e outras circunstâncias, de forma efetiva e voluntariamente com a investigação criminal e com o processo penal, desde que estes resultados sejam positivos, conforme o dispositivo 36 “Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação (BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 37 “Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta” (BRASIL. Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 38 “Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada” (BRASIL. Lei das Organizações Criminosas. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>. Acesso em: 23 maio 2018). 97 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean legal39. Trata-se de causa especial de recomposição patrimonial que afetará a repressão do Estado, que serão sopesadas para o alcance dos benefícios, auxiliando o Estado na persecução penal. Inclusive o Conselho Nacional do Ministério Público, na Resolução de n.º 181/17 (CNMP)40 regulamentou os aspectos transacionais para a afetação processual. Com isso, a ampliação as possibilidades de negociação poderiam gerar mais eficácia no combate à criminalidade ou aos efeitos danosos advindo da infração penal. O acordo de não-persecução penal, então, repousou em mais um instrumento com características próximas as já vistas, com as ressalvas da Resolução n.º 181/17, nos parágrafos e demais dispositivos, que permitirá obstar o início de uma ação penal, com a obediência aos termos acordados, diante dos mecanismos reparatórios, por exemplo, dos danos causados. 8) Condições e comportamentos da vítima na afetação das infrações com aspectos patrimoniais. Por fim, devemos identificar o papel da vítima na interferência dos delitos que envolvam patrimônio. Em primeiro plano, quanto à qualidade da vítima, mencionamos que as escusas absolutórias, descritas nos arts. 181 e 182 do Código Penal, afetam sensivelmente a tipificação dos fatos. O aspecto patrimonial do crime deixa de ser relevante para a preservação de relações de parentesco próximas, evitando-se a punição do agente. Evidentemente, desde que não seja praticada com violência ou grave ameaça à pessoa ou que o ascendente não seja maior de 60 (sessenta) anos, há possibilidade de se atingir a imunidade, desconsiderando o aspecto patrimonial. A vítima, no entanto, ainda pode propor as medidas civis cabíveis para seu ressarcimento, não sendo extensível a imunidade para terceiros que praticaram a infração penal. Há manutenção do crime, mas obstada a ação GRECO FILHO, Vicente. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei n. 12.850/13, 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 39. 40 “Art. 18. Não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça a pessoa, o investigado tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público; IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; V – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada” (BRASIL. Resolução CNMP n.º 181/17. Disponível em: <http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resolução181.pdf>. Acesso em: 23 maio 2018). 39 98 O patrimônio como elemento objetivo da infração penal... penal41. O grau de parentesco, ainda, apesar de não excluir a pena, transforma a natureza da ação penal para deixar ao arbítrio da vítima a opção pela ação penal. Neste ponto, a vítima assume sensível posicionamento da interferência do crime. Caso a vítima não exerça a vontade de prosseguir na demanda está autorizado a não prosseguir, causando obstáculo à persecução penal, nos termos do art. 182 do Código Penal42. Em outro aspecto, nas ações penais públicas incondicionadas, a vítima, que não tem instrumentos para impedir o Estado na persecução penal, ainda pode interferir com seu comportamento “patrimonial”. A vítima de um crime patrimonial (inclusive, às vezes, cometido com violência ou grave ameaça) pode interferir na produção probatória fundamental, por vezes, para a condenação do agente, no caso do reconhecimento pessoal. Se por qualquer razão tal prova se revista de fundamentalidade para a condenação, a vítima pode não ter qualquer interesse em colaborar com a Justiça, pois já teve seu patrimônio preservado com a restituição ou com o pagamento pela seguradora, por exemplo, na subtração de seu veículo. Com isso, a vítima, ressalvados os casos de coação no curso do processo ou de receio por qualquer motivo, não comparece em audiência, muda seu endereço sem avisar, muda de cidade e pode mudar até de País, deixando a prova da criminalidade sem fundamentação necessária para a condenação do agente, fato que gera senso de impunidade. Ainda que pensemos em uma condução coercitiva para prestar depoimento, a vítima poderia diante do Magistrado apenas dizer que “não se recorda” sobre os fatos. Por isso, a interferência no tipo penal em face de instrução do feito é sensível e fundamental para a atuação profissional. Consideramos, então, que, mesmo que a ação penal seja pública e incondicionada, o comportamento da vítima pode, na prática, interferir a ponto de o crime permanecer impune, somente pelo fato de que a vítima possa ter sido ressarcida, quando dos fatos. 9) Conclusão. Diante de breves pensamentos e estudos, sem qualquer pretensão de esgotamento do tema, quando falamos em aspectos patrimoniais das infrações penais, devemos nos ater aos diversos preceitos que podem contornar o tema, com enfoques múltiplos de interpretação e com resultados diversos ligado à infração penal. O comportamento do agente, representado pelo dolo na consecução do crime (elemento subjetivo do tipo penal) e no aspecto temporal da reparação dos danos, é DELMANTO, Celso, et all. Código Penal Comentado. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 663. “Art. 182 - Somente se procede mediante representação, se o crime previsto neste título é cometido em prejuízo: I - do cônjuge desquitado ou judicialmente separado; II - de irmão, legítimo ou ilegítimo; III de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita” (BRASIL. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 23 maio. 2018). 41 42 99 Gianpaolo Poggio Smanio e Fabiano Augusto Petean tratado do ponto de vista de concessão de benefícios proporcionais a esta temporariedade. Além disso, aspectos de integralidade da reparação ou de parcialidade da reparação também interferem na consecução de tais benefícios, podendo reduzir sensivelmente as sanções sofridas pelo agente, causando até atipicidade de conduta. Aliado ao fato, os aspectos legais de permissão de tais atenuações ou isenções de pena são fundamentais para a identificação de qual elemento do crime foi afetado. Em prosseguimento, não podemos nos olvidar que o Estado possui instrumentos que podem obrigar o agente à reparação de danos ou garantir a reparação de tais danos com medidas aptas e proporcionais à sua condição pessoal. Por fim, de forma não menos importante, concretizamos que a vítima possui papel fundamental na contribuição da persecução penal, pois, mesmo em casos em que não há liberalidade para paralisar a ação penal, caso ocorra a reparação de danos, poderá não mais se socorrer da atuação do Estado para a solução do caso concreto, prejudicando em demasia o caráter retributivo da pena e incentivando a impunidade. BIBLIOGRAFIA BARROS, Flaviane de Magalhães. A participação da vítima do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2008. ______. Novas Penas Alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral, (v.1), 2.ed. São Paulo: Atlas, 2015. 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Luiz Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 102 O PAPEL DO MINISTERIO PÚBLICO E A DEFESA DO PLENO EMPREGO PARA IMIGRANTES VULNERÁVEIS Charles de Sousa Trigueiro1 José Raymundo Ribeiro Campos Filho2 1) Introdução O estudo desenvolvido pelo jurista português Canotilho3 defende que os direitos fundamentais são bidimensionais, por conta do tamanho jurídico-positivas e pelo tamanho jurídico-subjetivas, as dimensões positivas tem por partida a continuação saudável e cumprimento dos direitos fundamentais, já as dimensões negativas tem como objetivo proteger e rodear a ordem jurídica do indivíduo. È justamente baseado nesse estudo, que o autor em seu trabalho procurará demonstrar a legitimidade do Ministério Público para a defesa do mercado de trabalho, para imigrantes ou refugiados em situação de hiper vulnerabilidade (pessoas com deficiência, afrodescendentes, etc), e também do acesso aos sistema educacional e concursos públicos de ingresso em cargos públicos, com direito a políticas afirmativas de cotas dos nacionais. Para realização da presente investigação foi necessário aplicar o método dogmático, como a hermenêutica dos textos normativos recomenda, mas também o aporte à doutrina e à transversalidade foram necessários, desde que se trata de tema interdisciplinar de elevado teor político e sociológico, tudo alinhavado por uma tradição de pensamento racionalista igualitária. Por fim, a investigação em mãos representa um convite ao leitor interessado em saber mais sobre as reais possibilidades que o Estado pode oferecer aos imigrantes ou refugiados em matéria de acesso a emprego, dignidade humana e justiça social. 2) O direito a nacionalidade no ordenamento jurídico interno e internacional 1 Doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra - Portugal; Bacharel e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB Brasil; Servidor Técnico Administrativo em Educação na UFPB. 2 Graduado em Administração de Empresas pela Universidade de Pernambuco - Brasil, Mestre em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Pernambuco - Brasil e doutorando em Administração Pública pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa. 3 CANOTILHO, J.J.G. Estudos sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2008. Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho Segundo Martha Nussbaum4 hoje há três problemas ainda não solucionados de justiça social cuja omissão nas teorias existentes parece particularmente problemática. Isabelle Santos e Fernando Bertoncello5 defendem que: Migrar é um direito humano e, em diversos casos, parece ser a última alternativa para que seres humanos possam viver vidas vivíveis. Sendo assim, é necessário que se garanta a estes indivíduos proteções em âmbito global, tendo em vista que a migração hodiernamente está cada vez mais dinâmica. Existe atualmente, uma internacionalização do regime jurídico da nacionalidade, a exemplo do art. XV “todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade” e art. XV2: “ninguém pode ser arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”, ambos da Declaração Universal de 1948, com leitura parecida o art. XX da Convenção Interamericana sobre direitos e deveres, o art. 5 “d” (iii) da Convenção internacional para eliminação de todas as formas de discriminação racial, art. 9 Convenção internacional para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Além dos Protocolos adicionais sobre aquisição da nacionalidade, nas Convenções de Viena sobre as relações diplomáticas (1961), e consulares (1963). Portanto, a nacionalidade é um direito fundamental.6 Da mesma forma, a Convenção de Nova York da ONU sobres os direitos das pessoas com deficiência, também assegura o direto a nacionalidade.7 Luiz Alberto David8 assegura que: NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of justice: disability, nacionality, species membership. United States of America: First Harvard University Press paperback edition, 2007, p. 11. 5 BERTONCELLO, Fernando Rodrigues da M.; SANTOS, Isabelle Dias Carneiro. Os Migrante e Refugiados Deficientes e o Pacto Global para Migração Segura. In.: MAGALHÃES, Maria Manuela; MIRANDA GONÇALVES, Rubén; VEIGA, Fábio da Silva (Eds). Derecho, gobernanza e innovación: dilemas jurídicos de la contemporaneidad en perspectiva transdisciplinar. Porto: Universidade Portucalense, 2017, p. 328. 6 CASELLA, P. B. Nacionalidade – direito fundamental, direito público interno e direito internacional. Revista da Faculdade de Direito/Universidade de São Paulo. v 111, 2016. p. 301-309. 7 Artigo 18.º Liberdade de circulação e nacionalidade 1 - Os Estados Partes reconhecem os direitos das pessoas com deficiência à liberdade de circulação, à liberdade de escolha da sua residência e à nacionalidade, em condições de igualdade com as demais, assegurando às pessoas com deficiência: a) O direito a adquirir e mudar de nacionalidade e de não serem privadas da sua nacionalidade de forma arbitrária ou com base na sua deficiência; b) Que não são privadas, com base na deficiência, da sua capacidade de obter, possuir e utilizar documentação da sua nacionalidade e outra documentação de identificação, ou de utilizar processos relevantes tais como procedimentos de emigração, que possam ser necessários para facilitar o exercício do direito à liberdade de circulação; c) São livres de abandonar qualquer país, incluindo o seu; d) Não são privadas, arbitrariamente ou com base na sua deficiência, do direito de entrar no seu próprio país. 2 - As crianças com deficiência são registadas imediatamente após o nascimento e têm direito desde o nascimento a nome, a aquisição de nacionalidade e, tanto quanto possível, o direito de conhecer e serem tratadas pelos seus progenitores. 8 ARAÚJO, Luiz Alberto David; MAIA, Maurício. Refugiados com Deficiência: a dupla vulnerabilidade e a sua proteção constitucional. In.: PINTO, Eduardo Vera-Cruz; PERAZZOLO, José Rodolpho. BARROSO, Luís Roberto; SILVA, Marcos Antonio Marques da; CICCO, Maria Cristina de (Coords.). Refugiados, Imigrantes e Igualdade dos Povos. São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 870. 4 104 O papel do Ministerio Público e a defesa do pleno emprego... Primeiramente, é de se notar que os refugiados com deficiência se apresentam em situação de dupla vulnerabilidade, já que integram dois grupos vulneráveis que são protegidos de forma especial pelo ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, o grupo vulnerável das pessoas com deficiência e o grupo vulnerável dos refugiados. Organização das Nações Unidas (ONU), decidiu em 2016 criar um novo Pacto Global para os Refugiados, denominado de Pacto Global para a Migração Segura, Ordenada e Regular No Brasil, a nacionalidade é matéria constitucional desde o império, constituição de 1824, até todas as constituições da República.9 A jurisprudência dos tribunais brasileiros assegura direitos fundamentais aos estrangeiros não residentes.10 Desta forma, tanto mais ou quanto mais, os mesmos direitos são assegurados aos imigrantes e refugiados. A nova Lei de migração n.º 13.445/07, de 24 de maio de 2007, in verbis: Art. 3o A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes: res;(...) X - inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas; XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social;(...) XXI - promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil, nos termos da lei; (...) Art. 77. As políticas públicas para os emigrantes observarão os seguintes princípios e diretrizes:(...) II - promoção de condições de vida digna, por meio, entre outros, da facilitação do registro consular e da prestação de serviços consulares relativos às áreas de educação, saúde, trabalho, previdência social e cultura; III - promoção de estudos e pesquisas sobre os emigrantes e as comunidades de brasileiros no exterior, a fim de subsidiar a formulação de políticas públicas; A Constituição Portuguesa no artigo 15 º (estrangeiro, apátridas, cidadãos europeus) consagra “1. Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”. CASELLA, id, p. 307. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. TRANSPLANTE DE MEDULA. TRATAMENTO GRATUITO PARA ESTRANGEIRO. ART. 5º DA CF. O art. 5º da Constituição Federal, quando assegura os direitos garantias fundamentais a brasileiros e estrangeiros residente no País, não está a exigir o domicílio do estrangeiro. O significado do dispositivo constitucional, que consagra a igualdade de tratamento entre brasileiros e estrangeiros, exige que o estrangeiro esteja sob a ordem jurídico-constitucional brasileira, não importa em que condição. Até mesmo o estrangeiro em situação irregular no País encontra-se protegido e a ele são assegurados os direitos e garantias fundamentais. (TRF 4ª Região, AG 2005040132106/PR, j. 29/8/2006). 9 10 105 Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho 3) Legitimidade do Ministério Público para a defesa dos imigrantes em situações de hiper vulnerabilidade serem cotistas nos concursos públicos O art. 129, II, da Constituição Federal de 1988 do Brasil, diz que uma das principais funções do Ministério Público, juntamente com outros atos infraconstitucionais, a exemplo da LC 75/93, art. 6º, VII, b; Lei n. 8.625/93, art. 25, IV, b, Lei n. 8.247/92, art, 17, é a proteção ao patrimônio público e social. Neste contexto, a realização do acesso a educação e princípio do pleno emprego com seu desenvolvimento sem discriminação aos imigrantes e refugiados em situação de hiper vulnerabilidade tem legitimidade, juntamente com defesa da ordem jurídica e o regime democrático. A questão do direito difuso é que existe uma ligação em que se unem pessoas indetermináveis. No concurso público, a ligação fática é determinada pela circunstância de interligar um grupo de pessoas juridicamente aptas a se inscreverem no concurso e com interesse na correta aplicação da concorrência. José Marcelo Menezes Vigliar 11 diz que todos, têm interesse na correta aplicação do Direito. Essa mudança de interesses, nas fases de pré e pós-inscrição, determinada pelo grau de fortalecimento da ligação, passando de dados fáticos para dados jurídicos. Como afirma Leonel: Deste modo, os coletivos se distinguem dos difusos, ambos indivisíveis, pela sua origem, na medida em que nestes o vinculo relaciona-se a dados acidentais ou factuais, enquanto naqueles a ligação dos integrantes do grupo, categoria ou classe decorre de uma relação jurídica.12 Assim, os imigrantes e refugiados, não podem ser discriminados na inscrição para concursos públicos, e dentro desse grupo, os hiper vulneráveis (pessoas com deficiências e negros) devem ter acesso a políticas afirmativas. 4) O Ministério Público e o Enforcement na defesa do pleno emprego para imigrantes hiper vulneráveis O enforcement pode ser conceituado como os mecanismos que estimulem e imponham o respeito às leis. São muitos os meios usados na aplicação da lei: A ideia de enforcement está intimamente relacionada a ideia de planejamento, de estabelecimento de políticas de aplicação das leis em geral, ou, mais frequentemente, de 11 12 VIGLIAR.J.M.M. Ação civil pública, 5 e.d. São Paulo: Atlas. 2001. LEONEL. Manual do processo coletivo, 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 106, 2002.. 106 O papel do Ministerio Público e a defesa do pleno emprego... determinadas leis, consideradas mais importantes num determinado momento.13 O enforcement seria um ótimo instrumento para o Parquet atuar nas questões referentes ao princípio do pleno emprego. Na própria Constituição, art. 37, II, deve o membro do Ministério Público zelar pela aplicação do princípio da obrigatoriedade do concurso público para o provimento de cargo efetivo ou emprego público. Mas, infelizmente, existem inúmeras formas de se descumprir esse princípio. Nesse exemplo acima, ficando o Parquet sabendo ainda no período de inscrição. Poderá o Ministério Público fazer uso do instrumento da recomendação, para recomendar que a Administração Pública retire essa restrição abrindo um novo prazo de inscrições para refugiados ou imigrantes em situações de hiper vulnerabilidade: a) Pessoas com deficiências e afrodescendentes - participarem das políticas afirmativas de “cotas” em pé de igualdade aos nacionais, nos concursos de acesso aos cargos públicos; b) Pessoas com deficiências, Afrodescendentes, Indígenas, financeiramente, nos vestibulares de acesso ao ensino superior Carentes 5) Instrumentos Extrajudiciais De Resolução De Conflito Entre os diversos instrumentos extrajudiciais de resolução de conflitos, o presente artigo, destaca a recomendação, o termo de ajustamento de conduta e o inquérito civil público. A recomendação é um instrumento legalizado pela Lei nº 8.625/93, que tem no art. 6º da Lei Complementar nº 75/93 sua conceituação: Art. 6º Compete ao Ministério Público da União: (...) XX – expedir recomendação, visando à melhoria dos serviços públicos de relevância pública, bem como o respeitos aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção da providências cabíveis. Já o termo de ajustamento de conduta, tem regulamentação no parágrafo 6º, do artigo 5, da Lei de Ação Civil Pública, objetivando prevenir ou reparar dano a interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo. Consagrado no art. 129, III, da CF/88, teve início no ordenamento jurídico pátrio a partir do art. 8º, § 1º, da Lei nº 7.347/85. Mas, também está previsto em outros diplomas legislativos, como o art. 90 do Código de Defesa do Consumidor, art. 6º da Lei de integração a Pessoa Portadora de Deficiência a 7.853/89, inciso I do art. 7º da Lei complementar nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), art. 201, V, do 13 FERRAZ, A. A.M.D.C.(Coord). Ministério Público: instituição e processo. São Paulo: Atlas, p. 119, 1999. 107 Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho Estatuto da Criança e do Adolescente. Apesar de existir alguns casos em que a própria Constituição dispensa a realização de concurso para contratação temporária de excepcional interesse público, como no exemplo de agente de pesquisa para fazer o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, professor substituto de universidade ou agente de epidemia e saúde. O concurso público, princípio constitucional especial, é obrigatório para admissão de pessoas para ocuparem cargos de provimento efetivo, a não observância do princípio do concurso público para esses cargos, segundo a própria Constituição (art. 37, § 2º), implicará na nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, na forma da lei. A Lei de Improbidade Administrativa, em obediência a própria constituição, diz que a violação do princípio do concurso público, categoria dos atos de improbidade que atentam contra os princípios da Administração Pública. O art. 11, V da LIA descreve como ato de improbidade administrativa a conduta do agente público que ‘frustrar a licitude de concurso público’. A expressão “frustrar a licitude de concurso público” engloba não só as condutas administrativas que dispensam ilegalmente no concurso, como também incidentes no seu curso procedimental. Analisando o sentido dessa expressão, Marino Pazzaglini Filho14 explica que: A frustração da licitude do concurso público ocorre quando é quebrado o princípio da igualdade entre os candidatos inscritos por inúmeras formas de discriminação como, v.g., adoção de critério subjetivo de julgamento, restrições indevidas para inscrição de candidatos, favorecimento de candidatos com a quebra do sigilo de questões ou correção fraudulenta, aprovação suspeita de parentes de membros da banca examinadora, indevida discriminação entre os candidatos por idade, raça, sexo, religião, avaliação secreta da conduta e antecedentes dos candidatos atc. Numa situação em que membro de banca examinadora não reconhece um negro imigrante como cotista racial, ou um refugiado com deficiência como cotista das vagas reservadas. Assim, o membro da banca atentou contra os princípios da administração pública em razão do exercício da função, conduta enquadrada no art. 9º da Lei que cuida dos atos de improbidade que causa enriquecimento ilícito, sendo uma das sanções previstas no art. 12, III, da Lei de Improbidade Administrativa, a devolução dos valores ou bens acrescidos ilicitamente ao patrimônio do membro da banca. Outro caso é o dano causado ao erário em razão da anulação do concurso público por vício insanável produzido pelo agente público. Para realizar um concurso, a administração tem muitos gastos, por isso, a sua anulação por culpa ou dolo do administrador, partindo da imoralidade, enseja um ato de improbidade administrativa de prejuízo ao erário, que tem entre outras sanções (LIA, art. 12, II), o ressarcimento 14 FILHO, M. P. Princípios Constitucionais Reguladores da Administração Pública. 3 Ed. São Paulo: Atlas. p 81. 2008. 108 O papel do Ministerio Público e a defesa do pleno emprego... integral do dano. Se for o caso de delegação da execução do certame para entidade privada, os particulares que conduzirão o concurso são considerados agentes públicos nos termos do art. 2º, podendo se sujeitar aos rigores da lei de improbidade administrativa. 6) Conclusão A América inteira é responsável pelo crescente número de violações dos direitos humanos dos imigrantes, isso significa que essas garantias correm o risco de serem rejeitadas pelos próprios Estados.15 Depois da guerra ao terror, Habermas afirma existir uma “dolorosa transição para sociedades pós-coloniais de imigrantes”, neste contesto, faz-se necessário que “os Ministérios Públicos precisam incluir nos seus planos estratégicos de atuação a questão da migração como o fez o Ministério Público da Bahia no plano de 2011-2013 e trabalhar para construir um projeto efetivo de proteção”.16 REFERÊNCIAS ANUNCIAÇÃO, Clodoaldo Silva. A necessidade de reestruturar as agendas dos ministérios públicos estaduais para dar efetividade à nova lei de migração. In.: BAENINGER, Rosana; et. al. (Orgs.). Migrações Sul-Sul. 2ª ed. Campinas: Núcleo de Estudos de População ― “Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018 ARAÚJO, Luiz Alberto David; MAIA, Maurício. Refugiados com Deficiência: a dupla vulnerabilidade e a sua proteção constitucional. In.: PINTO, Eduardo Vera-Cruz; PERAZZOLO, José Rodolpho. BARROSO, Luís Roberto; SILVA, Marcos Antonio Marques da; CICCO, Maria Cristina de (Coords.). Refugiados, Imigrantes e Igualdade dos Povos. São Paulo: Quartier Latin, 2017, BERTONCELLO, Fernando Rodrigues da M.; SANTOS, Isabelle Dias Carneiro. Os Migrante e Refugiados Deficientes e o Pacto Global para Migração Segura. In.: MAGALHÃES, Maria Manuela; MIRANDA GONÇALVES, Rubén; VEIGA, Fábio da Silva (Eds). Derecho, gobernanza e innovación: dilemas jurídicos de la contemporaneidad en perspectiva transdisciplinar. Porto: Universidade 15 CORTEZ, Laura Maria Silva; MOREIRA, Thiago Oliveira. A tutela dos direitos humanos dos migrantes pelo sistema interamericano de direitos humanos. In: Cadernos de dereito actual, nº 8, 2017, p. 439 -452 16 ANUNCIAÇÃO, Clodoaldo Silva. A necessidade de reestruturar as agendas dos ministérios públicos estaduais para dar efetividade à nova lei de migração. In.: BAENINGER, Rosana; et. al. (Orgs.). Migrações Sul-Sul. 2ª ed. Campinas: Núcleo de Estudos de População ― “Elza Berquó” – Nepo/Unicamp, 2018, p. 633. 109 Charles de Sousa Trigueiro e José Raymundo Ribeiro Campos Filho Portucalense, 2017, p. 328. CANOTILHO, J.J.G. Estudos sobre direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2008. CASELLA, P. B. Nacionalidade – direito fundamental, direito público interno e direito internacional. Revista da Faculdade de Direito/Universidade de São Paulo. v 111, 2016. CORTEZ, Laura Maria Silva; MOREIRA, Thiago Oliveira. 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United States of America: First Harvard University Press paperback edition, 2007 110 A ATUAÇÃO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS DE ENERGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: ANÁLISE COMPARADA ENTRE BRASIL E PORTUGAL Mariane Silva de Castro 1 Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos2 1) Introdução O presente artigo tem como objeto de estudo as agências reguladoras do setor da energia, um tema que ocupa interesse à medida em que esta tem sido tangenciada pela problemática ambiental. Os novos paradigmas da sustentabilidade têm influenciado as decisões do Estado no que concerne ao surgimento de um Direito Ambiental comprometido com as necessidades das gerações futuras. A importância da questão ambiental na área da energia está na pauta do dia, ocupando sempre manchetes globais e forçando as principais potencias mundiais a se unirem em prol de um objetivo comum: lutar contra o aquecimento global e garantir níveis satisfatórios de qualidade de vida ao homem e a todo ecossistema, sem que ocorra um colapso no desenvolvimento econômico. Assim, entende-se que a sustentabilidade está no cerne da questão do desenvolvimento econômico deste século, onde este, necessariamente, precisa estar aliado a um modelo que priorize a responsabilidade da exploração dos recursos naturais, de modo que não haja impactos danosos e irreversíveis para as próximas gerações. Essas e outras preocupações foram exaustivamente debatidas pelas maiores lideranças democráticas deste século e do anterior, as quais tiveram suas diretrizes balizadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) a fim de demarcar metas que garantissem que os objetivos ambientais firmados pelos acordos internacionais servissem de standarts para todos os países signatários, com o fulcro maior de alcançar um nível de consciência ambiental global, não só entre os países desenvolvidos, mas também entre os países em desenvolvimento. Diante desta realidade de mudanças ambientais e acordos internacionais em busca de parâmetros ecologicamente sustentáveis nasce, assim, um novo papel das agências reguladoras da área de energia, as quais necessariamente perpassam por uma busca por energias limpas e renováveis. 1 Advogada e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. 2 Mestre em Administração pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduado em Direito Administrativo pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. Atualmente é professor do Instituto Federal do Maranhão. Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos É neste contexto que emergem a figura das agências reguladoras a propósito de tornar a Administração Pública mais eficiente e autônoma, de modo que fomentem um modelo econômico com menores riscos de mercado e falhas operacionais. Deste novo movimento, onde as agências reguladoras têm papel primordial na manutenção e desenvolvimento de setores estratégicos de um Estado, pretende-se analisar qual o esforço desempenhado no setor da energia para a promoção do desenvolvimento sustentável. Desta forma, delimita-se como objeto de estudo a atuação das agências reguladoras do setor de energia no Brasil e em Portugal, neste novo contexto de sustentabilidade. Pretende-se analisar se as medidas de eficiência energética e objetivos governamentais nos últimos anos têm sido voltados para a consolidação de uma política energética sustentável, analisando quais foram os avanços ou retrocessos. O presente artigo foi elaborado através de pesquisa bibliográfica e doutrinária majoritariamente portuguesa e brasileira. Não obstante, foram analisados dados das agências reguladoras da energia através dos sites oficiais dos governos português e brasileiro. Por fim, almeja-se que este trabalho contribua para uma discussão salutar sobre os resultados das políticas regulatórias na área da energia sob o ponto de vista da sustentabilidade. 2) O “novo” paradigma da sustentabilidade e as questões energéticas Nas páginas a seguir analisa-se o surgimento do conceito jurídico do princípio do desenvolvimento sustentável e em paralelo será esmiuçado o contexto internacional que circundou toda esta problemática ambiental. Este plano de fundo é necessário para que seja compreendido o porquê da questão energética ter-se tornado uma preocupação global. Não é recente o pensamento de que os recursos naturais da terra são finitos. A crise do petróleo em 1970 expôs a fragilidade de um modelo de exploração energético baseado em um único recurso e como bem pontuou o doutrinador Vasco Pereira da Silva (2005, p.18), esta crise fomentou o desenvolvimento de uma “consciência dos limites de crescimento econômico e da esgotabilidade dos recursos naturais”. Assim, os combustíveis fósseis se apresentaram como uma opção “finita, poluente e cara” (SOARES, 2014, p. 13). Foi neste contexto que as tragédias de cunho ambiental começaram a ser vistas com um outro olhar. Destaca-se a importância do relatório The Limits of Growth, elaborado por cientistas do Massachussets Institut of Technology (MIT) que revelou, pela primeira vez, que a degradação ambiental já havia se tornado um problema global de sinais alarmantes. O prognóstico inicial certificou que o desgaste 112 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... do ecossistema global é fruto de uma exploração secular irresponsável em busca de produção de riquezas, que é a mola propulsora do desenvolvimento econômico de toda nação. Fez-se urgente repensar uma forma de desenvolvimento que não prejudicasse o bem-estar ambiental das gerações futuras. Neste aspecto, não se olvida que o surgimento da problemática ambiental também resultou na garantia de um direito fundamental. Sobre esta discussão doutrinária sobre a ciência jurídica ambiental, reconhece-se que a doutrina não é pacífica quanto a classificação da geração de direitos humanos, a qual pertence o direito ao ambiente. Para doutrinador português Vasco Pereira da Silva (2005, p. 102), este direito está inserido na terceira geração de direitos humanos pois este “apresenta em simultâneo uma vertente negativa, que garante ao seu titular a defesa contra agressões ilegais no domínio constitucionalmente garantido, e uma vertente positiva, que obriga à actuação das entidades públicas para a sua efectivação”, contudo para o brasileiro Édis Milaré (2009) e o espanhol Gregório Peces-Barba Martinez (1993) o direito do ambiente pertence a uma quarta geração de direitos humanos, visto o seu caráter pós-moderno. É dentro deste contexto de mudança de paradigmas ambientais que se pretende analisar a questão energética. Diante deste panorama sob o imperativo de preservação do ambiente, surgiu o conceito de desenvolvimento sustentável como aquele capaz de suprir as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade de atender as necessidades das futuras gerações. Contudo, cabe explicar que existiu toda uma agenda internacional (SANDS, 2017) por trás desse nível de conscientização ambiental que inaugurava o conceito de sustentabilidade. (SARAIVA, 2017) Neste estudo verificou-se que tanto Portugal quanto o Brasil, adotaram em suas Cartas Magnas, o princípio constitucional do desenvolvimento sustentável. Em Portugal, o princípio está expressamente consagrado no artigo 66º, número 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que ratifica: “Para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos”. O doutrinador português Vasco Pereira da Silva (2005), afirma que o princípio constitucional do desenvolvimento sustentável obriga a “fundamentação ecológica” das decisões jurídicas de desenvolvimento econômico, estabelecendo a necessidade de ponderar tanto os benefícios de natureza econômica, como os prejuízos de natureza ecológica de uma determinada medida. No Brasil, o artigo que se encontra explícito este princípio é o artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, (...) essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 113 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos Como já fora mencionado, a crise do petróleo de 1970 expôs o problema de uma economia completamente dependente de combustíveis fósseis. Este modelo começou a ser questionado por outro motivo: a emissão de dióxido de carbono proveniente da queima deste recurso natural. (SOARES, 2014) Antes de adentar especificamente ao assunto, se faz importante voltar um pouco mais na história para que se possa compreender os elementos que corroboraram para a eclosão da primeira grande crise energética mundial. A problemática da exploração de recursos naturais para obtenção de energia não é recente. Acredita-se que foi com o surgimento da máquina de vapor, ainda no século XVIII, e com o advento do motor de combustão interna, no século XIX, que o mundo presenciou o crescimento econômico potencialmente relevante. A revolução industrial trouxe consigo uma nova forma de produzir e a exploração do carvão, do petróleo e seus derivados se tornaram a mola-propulsora desse modelo. Após o fim da primeira guerra mundial, o petróleo se tornou um produto estratégico para o mundo, visto o seu uso refinado em diesel, o qual era utilizado em combustível para submarinos e aviões. Logo, a versatilidade do petróleo foi o fator chave para torná-lo em um produto comercial de alto valor no mercado mundial. Foi justamente por conta desse alto valor de mercado, que os principais países detentores da produção e exportação de petróleo criaram a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em 1960, composta inicialmente pelo Iraque, Kuwait, Arábia Saudita e Venezuela. Utilizando-se de controle sobre os recursos petrolíferos e impondo uma nova relação de domínio no setor, a OPEP utilizou da teoria das leis de mercado, forçando uma redução na produção, para que houvesse uma alta no preço do petróleo comercializado. As consequências dessas medidas resultaram na primeira crise do petróleo de 1973 e que foram acompanhadas subsequentemente por outras, em 1974 e 1979. O efeito deste colapso forçou os países dependentes economicamente do petróleo e a repensar novas formas de obter energia para o desenvolvimento das suas atividades econômicas, desta forma, afirma-se que este evento desnudou a vulnerabilidade a que está imposta uma nação cuja economia é dependente uma única matriz energética. O nacionalismo aliado à tecnologia impulsionou o desenvolvimento de matrizes energéticas ainda não exploradas. Em torno de um panorama onde pouco se falava sobre sustentabilidade, não foi ao primeiro instante que foram privilegiadas as fontes de energias renováveis, tais como a solar, eólica e de biomassa. A consciência ambiental e a agravante descoberta do aquecimento global exigiram uma mudança de paradigma com relação a exploração do petróleo e seus derivados. Calcula-se que até a década anterior, por volta de 80% das fontes primárias de energia eram provenientes de combustíveis fósseis: carvão, petróleo e gás natural. (SANTOS, 2011) Como fora exposto no tópico anterior, a ONU teve papel primordial na construção 114 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... de uma agenda internacional para o meio ambiente. Após a Conferência de Estocolmo em 1972, outro evento de importância para a temática ambiental, e especialmente para a área de energia, foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio 92). Na visão de Alexandre Kiss (1994), este evento superou o de Estocolmo, pois consagrou os princípios fundamentais que se desenharam desde o fim da década de 60 e enuncia outros, tais como os princípios da participação dos cidadãos, da avaliação prévia dos efeitos sobre o ambiente e da prevenção. Deste evento surgiram cinco documentos assinados pelas 185 nações presentes, quais foram: a Agenda 21, a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, a Convenção Combate à Desertificação e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC). Reconhece-se a importância da CQNUMC para surgimento do Protocolo de Quioto em 1997, que teve como objetivo a redução das taxas de emissões de Gases com Efeito Estufa (GEE), os quais foram diretamente associados com a problemática do aquecimento global. Esta associação só fora possível devido a maior atenção aos problemas ambientais. Assim, constatou-se que a combustão dos derivados do petróleo, combinada a devastação do solo, através da deflorestação, têm impactos diretos no desequilíbrio da temperatura do planeta. Isto, pois a queima de combustíveis fósseis gera grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera3, sendo este um gás de efeito estufa, pois absorve a radiação infravermelha. Ao aumentar a concentração de gases de efeito estufa, o planeta sofre com as alterações climáticas, visto que há um desequilíbrio ambiental atmosférico. Uma das mais graves consequências de toda esta questão é a alteração do sistema climática e o aumento da temperatura média global da troposfera. Segundo relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas4 – (IPCC, 2007) de 2007 de 1995 a 2006 foram registradas as mais altas temperaturas médias globais desde 1850. Boa parte da energia climática do planeta tem sido absorvida pelos oceanos, cuja temperatura aumentou em profundidades até três mil metros, o que projeta cenários de aumento médio do mar de até 1,4 metro até o ano de 2100. (RAHMSTORF, 2007) Em esfera mundial, ficou patente o problema do aquecimento global e a importância de descarbonização da economia mundial, emergindo a necessidade de se repensar a menor dependência dos combustíveis fósseis e a maior utilização de tecnologias capazes de contribuir para a equilíbrio dos gases de efeito estufa da 3 Mensura-se que a concentração atmosférica de CO 2 cresceu desde 280 ppmv (partes em milhão em volume) antes da revolução industrial at´w 384 ppmv em 2007. 4 Intergovernmental Panel on Climate Change (em português: Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas). É uma organização científico-política criada em 1988 no âmbito das Nações Unidas (ONU) pela iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). In: IPCC, 2007, Intergovernmental Panel on Climate Change. Constributions of Working Group I, II and III to the IPCC Fourth Assessment Report, Cambridge University Press. 115 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos atmosfera. Assim, as Fontes de Energia Renováveis (FER) ganharam força no cenário mundial devido seus vários benefícios, como bem demostrou os estudos de Cláudia Dias Soares e Suzana Tavares da Silva (2014): a) por ser um investimento estratégico, uma vez que promove a diminuição da dependência energética em uma só fonte de energia; b) por trazer consigo uma vertente social, culminando na geração de emprego, fixação de populações e combate à desertificação; c) promover o desenvolvimento sustentável, uma vez que comparado aos combustíveis fósseis, são reduzidos os gases de efeito estufa; d) e por fim, também trazem benefícios econômicos, vez que promovem atividades de geração de riqueza através da redução da fatura energética. Contudo, apesar dos esforços para diversificação da matriz energética no mundo, a indústria do petróleo ainda detém forte influência na economia global e a as tendências gerais sobre energia não são das mais favoráveis. É o que se expõe a seguir através do relatório compilado por Nicole Gnesotto e Giovanni Grevi (2008, p. 57-58): Até 2025 a procura mundial de energia primária deverá crescer em média aproximadamente 1,6 ao ano. Em 2030, as necessidades energéticas poderão ser 50% superiores às necessidades atuais. Os combustíveis fósseis petróleo gás e carvão continuaram a ser as principais fontes de energia primária do planeta, representando 81% da procura. O petróleo deverá continuar a ser a fonte de energia mais utilizada. O carvão deverá continuar ocupa o segundo lugar devido a uma ligeira diminuição da procura previsível de gás. A procura de carvão e gás deverá registrar crescimento manuais bastante semelhantes (1,8% e 2% por ano, respectivamente, neste período). A parte da energia nuclear deverá diminuir na maioria dos países industrializados e progredir nos países em desenvolvimento e nas economias emergentes. As energias renováveis (à excepção da biomassa) registrar amo crescimento mais rápido do que as outras fontes de energia, nos países da OCDE, embora continuem a constituir apenas uma parte mínima da oferta mundial. Os países em desenvolvimento, por si só, representaram mais de dois terços do aumento da procura energética. No entanto, as disparidades regionais continuarão a ser importantes, com a Ásia, a registrar um crescimento (em volume) muito superior ao de África. A procura também aumentar a na zona da OCDE, mas a um ritmo inferior. A dependência das importações energéticas por parte dos países desenvolvidos e emergentes intensificar-se-á sensivelmente. Os recursos energéticos estarão, muito provavelmente, em condições de responder ao aumento da procura, mas a optimização da sua exploração depende inteiramente de investimentos. Além disso, embora a oferta e a procura energéticas devam crescer, a primeira poderá progredir mais devagar que a segunda, o que provocar uma subida dos preços da energia. Diante de um cenário catastrófico, defende-se que o desenvolvimento sustentável 116 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... com relação a área da energia, integre e racionalize os sistemas de produção de energia renováveis e endógenas, como a: solar fotovoltaica, solar-térmica, biocombustíveis, biogás, biomassa, geotérmica, oceanos, mini-hídrica e eólica. Por outro lado, não se deve esquecer que é fundamental integrar os sistemas de eficiência energética, e também os indicadores de consumo e racionalização. (CORREIA, 2009) E é com base no entendimento que a energia é um bem econômico e por isso se sujeita às regras de mercado (FERNANDES, 2011), que se pretende analisar os próximos capítulos deste trabalho, relacionando a atuação das agências reguladoras da área de energia, para a promoção do novo paradigma do desenvolvimento sustentável. 3) A regulação na administração pública Neste capítulo, será estudado o papel das agências reguladoras no âmbito da Administração Pública. Para tanto, será analisado um contexto histórico, o qual se explicitará qual a necessidade que supre estas entidades. A seguir, será analisado o seu conceito na atualidade e, por fim, será analisado o desempenho da função destas entidades para a regulação da área energética. A regulação nasce pela necessidade de transformar o serviço público essencial em mais eficiente e mais acessível à sociedade, servindo-se de uma lógica mais técnica - o que a difere da concepção usual dos serviços estatais comuns. Como bem conceituou Ana Roque (2004, p. 11), a regulação é “uma solução de recurso para fazer face à inevitabilidade das falhas de mercado”. Surge, portanto, como uma tentativa de tornar setores estratégicos da economia com um tratamento diferenciado do que o restante dos serviços públicos. Deste modo, surge uma nova figura de Estado, o qual é denominado de regulador. Este Estado Regulador tem como atributo a prioridade da competência regulatória, que se dá pela excepcionalidade da prestação direta de atividades econômicas pelo próprio Estado. Para Marçal Justen Filho (2009) um Estado regulador caracteriza-se: pela transferência para a iniciativa privada de atividades desenvolvidas pelo Estado (desde que dotadas de forte cunho de racionalidade econômica); liberalização de atividades até então monopolizadas pelo Estado, a fim de propiciar a disputa pelos particulares em regime de mercado; a presença do Estado no domínio econômico, que privilegia a competência regulatória; a atuação regulatória do Estado, que se norteia não apenas para atenuar ou eliminar os defeitos do mercado, mas também para realizar certos valores de natureza política ou social; e institucionalização de mecanismos de disciplina permanente das atividades reguladas. É fundamental aqui, destacar regulação econômica no ordenamento jurídico no Brasil e em Portugal. 117 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos Iniciando pela Constituição brasileira, é notório que a CRFB permitiu a intervenção direta e indireta na área econômica, estas são encontradas no Título VII da Ordem Econômica e Financeira. De modo indireto pode, o Estado, explorar atividade econômica por monopólio ou concorrência, como baliza o artigo 173 caput e parágrafo 1º da CRFB. No artigo 174 da CRFB, há previsão para a intervenção indireta onde se refere: “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado desempenhará, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento”. Em Portugal, pode-se afirmar que a regulação foi inserida através art. 267.º, n. º 3 da CRP prescreve, sob a epígrafe "Estrutura da Administração" e sob o título IX relativo à "Administração Pública" que "a lei pode criar entidades administrativas independentes". Não obstante, o artigo 9º, alínea “d”, da CRP, onde constam as tarefas fundamentais do Estado, explicitam que é dever do Estado “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo (...) mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”. Ana Roque (2004) defende que este último artigo deve ser interpretado segundo o núcleo da intervenção indireta Estatal, de modo a ser assegurado pelo Estado a garantia dos direitos e liberdades fundamentais, com respeito aos princípios democráticos do Estado de Direito. Desta forma, fica patente que tanto no Brasil quanto em Portugal está disciplinada a existência da intervenção direta e indireta do Estado na ordem econômica. Tornando constitucional a disciplina deste trabalho no que tange ao papel das agências reguladoras para a exploração da energia. Adentrando especificamente ao assunto das agências reguladoras para energia, é sabido que estas foram criadas pelo Estado com o escopo de atender aos anseios de uma ordem econômica mais moderna, onde era necessária a regulação de setores essenciais ao desenvolvimento da nação. Remete-se ao capítulo anterior onde foi debatida a crise do petróleo de 1970 desencadeada pelos países formadores da OPEP. As maiores nações do planeta encontraram-se reféns de uma matriz energética dependente do petróleo e seus derivados. Desta forma, a busca por uma gestão energética mais eficiente teve como passo primordial a diversificação das fontes e energia, de modo a evitar futuros colapsos ou as chamadas falhas de mercado. (CONFRARIA, 2011) A regulação da economia entrou, assim, para a área da energia segundo a necessidade de controlar bens e serviços oferecidos pelo Estado, de modo a assegurar os investimentos e o alinhamento com as necessidades dos consumidores. Desta forma, superar a barreira das falhas de mercado para a área da energia implica diretamente incentivar a competitividade entre empresas prestadoras de serviços a aumentarem os seus níveis de eficiência energética. 118 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... De modo a problematizar essa questão, Gomes cita Herring, que afirma que as políticas de eficiência energética acabam por incentivar um aumento de consumo, por isso não pode ser entendida como uma política ambiental eficiente (HERRING, 2006 apud GOMES, 2016a). Da mesma forma relata a visão de Rudin, que a eficiência energética incentiva uma crescente procura ao uso de recursos naturais. (RUDIN, 1999 apud GOMES, 2016b) Neste estudo, entende-se que o novo paradigma da eficiência energética é necessário para que implementem políticas de controle mais palpáveis sobre os planos de ação das agências reguladoras. Isto, pois, sabe-se que a expansão da oferta de energia não poderá mais ser programada de acordo apenas com as leis de mercado, é necessário que se tenha mecanismos políticos a longo prazo que busquem a independência dos combustíveis fósseis (que contribuem para o descontrole do aquecimento global), que invistam na exploração de fontes de energias renováveis e que aumentem o controle sobre o desperdício de energia. (GOMES, 2016a) Desta forma, defende-se que a regulação pode sim, beneficiar os planos de eficiência energética. Ocorre que ainda é difícil conciliar interesses entre as empresas reguladas, o Estado e os consumidores. Portanto, defende-se como necessário um impulso maior por parte do Estado, tanto para a conscientização da sociedade sobre a importância do consumo sustentável da energia, quando para o incentivo de energias limpas e a desburocratização legal no que tange aos novos regulamentos com relação a implementação de políticas de eficiência energética às empresas reguladas. (GOMES, 2016b) 4) A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento sustentável: análise comparada entre Brasil e Portugal Neste capítulo pretende-se analisar propriamente a atuação das agências reguladoras de energia no Brasil em Portugal no que tange a medidas de adequação que privilegiem o desenvolvimento da sustentabilidade em ambos os países, expondo o problema jurídico da regulação versus a busca pela sustentabilidade. Antes de adentrar ao próximo tópicos, é necessário identificar que no Brasil a agência reguladora para energia no Brasil é a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e em Portugal, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). a) O papel das ANEEL e ERSE para a promoção da sustentabilidade Inicialmente cabe aqui comparar a função desempenhada pela ANEEL e pela 119 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos ERSE enquanto agências reguladoras para energia. A ANEEL está localizada na Administração Pública indireta da Brasil, ocupando o lugar de autarquia em regime especial, diretamente vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Tem como maior objetivo a regulação do setor elétrico brasileiro e encontrase balizada por meio da Lei nº 9.427/1996 e Decreto nº 2.335/1997 (BRASIL, 2017). Em Portugal a ERSE5, tem a natureza jurídica de pessoa coletiva de direito público dotada de autonomia administrativa e financeira, dispondo de patrimônio próprio e asseguradas sua independência funcional. Fora criada pelo Decreto-Lei número 187/95, de 27 de julho, e cujos Estatutos foram aprovados pelo Decreto-Lei número 44/97, de 20 de fevereiro, passando a denominar-se por Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos. É a entidade responsável pela regulação dos setores do gás natural e da eletricidade, conservando a sigla ERSE e é disciplinada pelos seus Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n. º 97/2002, de 12 de abril, alterados pelo Decreto-Lei n. º 212/2012, de 25 de setembro, na redação do Decreto-Lei n. º 84/2013, de 25 de junho (PORTUGAL, 2017). Neste primeiro critério, pode-se observar que ambos países adotaram agência reguladoras independentes de forma certificar a autonomia destes organismos frente as atividades regulatórias as quais são demandadas. Enquanto autarquias independentes, estas foram criadas por lei. No Brasil, tal disposição está assegurada no art. 1º do DL 2.335/1997 e em Portugal no art. 1 º do DL 97/2002. Assim, depreende-se os dispositivos legais para as agências reguladoras para energia no Brasil e em Portugal são, respectivamente: Lei 8.987/95, Lei 9.427/1996 e o Decreto nº 2.335 de 1997; e a Lei n. º 67/2013 e o Decreto-Lei nº. 97/2002. É com base nessas normas legais que será feita a análise comparativa deste tópico. Sob a primeira análise no quesito promoção de eficiência energética, foi verificado que ambos os países destacaram na norma legal esta preocupação. No Brasil, o dispositivo está localizado no Artigo 12, inciso III, do Decreto 2335/1997 que as diretrizes da ANEEL devem contemplar a “promoção do uso e da ampla oferta de energia elétrica de forma eficaz e eficiente, com foco na viabilidade técnica, econômica e ambiental das ações”. Em Portugal, o diploma do Estatuto da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) DL nº 97/2002, assegurou de forma mais enfática a eficiência energética, nos artigos 2º e 3º do referido Decreto Lei. Isto, pois, foi verificada quatro citações sobre a necessidade de se assegurar a eficiência energética na agência 5 A ERSE rege-se ainda pelas regras aplicáveis às entidades reguladoras, nos termos definidos pela Lei-quadro das entidades administrativas independentes com funções de regulação da atividade económica dos setores privado, público e cooperativo, aprovada pela Lei n. º 67/2013, de 28 de agosto, alterada pela Lei n. º 12/2017, de 2 de maio. A Lei n. º 9/2013, de 28 de janeiro aprova o regime sancionatório do setor energético, enquadrando as competências sancionatórias da ERSE no âmbito do Sistema Nacional de Gás Natural e Sistema Elétrico Nacional. 120 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... reguladora, o que demonstra maior preocupação com o tema em questão quando relacionado ao Brasil. A primeira citação se encontra no artigo 2º, nº 3 que dispõe sobre Regime e Independência (o qual foi alterado mais recentemente pelo DL n. º 84/2013, de 25/06), a segunda encontra-se no artigo 3º, nº 1, a terceira no artigo 3º, nº 2 “d” e a quarta, no artigo 3º, nº 2 “y”. Como bem, fora explicitado no texto legal, houve um cuidado em garantir não só a eficiência energética, mas também a sustentabilidade ambiental e do Sistema Elétrico Nacional, não olvidando a eficiência para a promoção da qualidade e da gestão do serviço prestado para a sociedade. Desta forma, ratifica-se que em Portugal a eficiência energética e a sustentabilidade têm tratamento mais adequado pelo legislador, do que no Brasil. Com relação à preocupação com a temática ambiental, no Brasil o DL 2.335/1997 afirmou que ANEEL tem como competência estimular e participar de ações ambientais, bem como interagir com o Sistema Nacional de Meio Ambiente, atuando de forma harmônica com a Política Nacional de Meio Ambiental, como dispõe o art. 4º, inciso XXV, do referido texto legal. Em Portugal, a preocupação ambiental foi demonstrada no DL 97/2002, como bem citado anteriormente no artigo 2º, nº 3, no Artigo 3º, nº 2, “d”, e também no artigo 41º, nº 1, “c” e “h” - último artigo trata dos membros do Conselho Consultivo da ERSE “órgão de consulta na definição das linhas gerais de atuação da ERSE e nas deliberações adotadas pelo conselho de administração” o qual deve ser composto, entre outros, de “um representante do membro do Governo responsável pela área do ambiente” e “um representante da Agência Portuguesa do Ambiente”. Em linhas gerais, também pode-se observar que a ERSE tem maior abrangência no seu texto legal, do que ANEEL com relação à temática ambiental. Vale salientar, que é de grande valia que o Conselho Consultivo de uma agência reguladora para a área da energia se proponha a acatar as diretrizes de membros especialistas na área do ambiente. Por fim, quando trata-se de estímulo a novas fontes de energias renováveis, não se verificou nenhuma menção na legislação brasileira. Em Portugal, no DL 97/2002 no artigo 41º, nº 1, “k”, garante uma vaga ao Conselho Consultivo da ERSE para “Um representante das associações portuguesas de produtores de energia elétrica a partir de fontes de energia renováveis”. Desta forma chega-se ao fim deste tópico com análise que no quadro comparativo, a legislação portuguesa está muito além da brasileira, quando se trata de fomentar a sustentabilidade para a agência reguladora do setor de energia. Sem sombra de dúvidas, a experiência legislativa portuguesa poderá ajudar o Brasil na construção de normas legais que estejam mais próximas de uma regulação para a promoção do desenvolvimento sustentável. 121 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos b) Análise dos programas de eficiência energética Neste último tópico, pretende-se analisar os programas de eficiência energética desenvolvidos pela ANEEL e ERSE, com o fulcro de acompanhar como, de fato, estas agências reguladoras estão se adequando ao novo paradigma da sustentabilidade e se os resultados dessas ações têm sido benéficos para o meio ambiente. Antes de adentrar ao tema proposto, faz-se salientar que ambos países tiveram em seu passado crises elétricas, por conta de baixa variabilidade da matriz energética. Portugal tinha como matriz energética até 1960, preponderantemente centrais de carvoarias e o petróleo. De um passado dependente de termoelétricas, o país Ibérico teve como marco o ano de 1997 a inserção de gás natural na matriz energética do país (DIRECÇÃO-GERAL DE ENERGIA, 1997), apresentado uma decrescente no índice de dependência em fontes de energia primária a partir da primeira década dos anos 2000. Como ressaltou o estudo de Cláudia Dias Soares e Suzana Tavares da Silva (2014) as fontes de energia renováveis em Portugal nos anos 30 representavam cerca de 3% do consumo energético, valor que aumentou para 95% em 1960, regrediu para 31% em 2000 e aumentou novamente para 35% em 2009, o destaque deste avanço vai para o incentivo de centrais eólicas. No Brasil, a matriz elétrica sempre fora dependente do petróleo e das centrais hidrelétricas. Se de alguma forma o Brasil aparece com boa utilização de fontes de energias renováveis, por trás dos números há um grande impacto ambiental causado pela instalação e manutenção das centrais hidrelétricas, motivo que impulsionou a busca por novas matrizes energéticas, como o biodiesel, a energia solar e a eólica. Diante deste contexto, o papel dos planos de eficiência energética desempenhados pela ANEEL e ERSE, tem como função o incentivo a diversificação da matriz energética. Começando por Portugal, a eficiência energética fora inserida por programas do governo juntamente com as políticas regulatórias do setor elétrico, cita-se em ordem cronológica os instrumentos: i. 2004: O Programa Nacional para as Alterações Climáticas – PNAC ii. 2007: O Plano de Promoção da Eficiência no Consumo - PPEC iii. 2008: O Plano Nacional de Acção para a Eficiência Energética – PNAEE iv. 2010: Estratégia Nacional para a Energia – ENE 2020 v. 2010: Fundo de Eficiência Energética – FEE Sem sombra de dúvidas, o PNAEE é o plano que possui maior peso, devido ter 122 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... surgido com base na Diretiva da União Europeia nº 2006/32/CE6 (GOMES, 2016a). Inicialmente tinha como meta o ano de 2015, com a melhoria da eficiência energética equivalentes a 10% do consumo final de energia e abrangia áreas distintas, quais sejam: transporte, indústria, Estado e residencial e serviços. Ocorre que, em 2012 a União Europeia através da Diretiva 2012/27/EU inseriu uma nova meta para eficiência energética, aumentando esta para 20% em 2020, devido ter deparando-se com resultados nada animadores através do levantamento do PNAE 2008-20157. (GOMES, 2016a) As novas metas para Portugal, no que diz respeito à nova diretiva da União Europeia para 2020, traduzem-se em objetivos concretos, quais sejam: 1. 20% de redução de gases de efeito de estufa; 2. 20% de incorporação de fontes de energias renováveis no consumo de energia final; 3. 20% de redução do consumo de energia (GOMES, 2016, p. 25b). Na intenção de superar o resultado não satisfatório anterior, o governo português comprometeu-se em uma meta ainda mais ousada do que foi proposta pela União Europeia, instituindo o Plano Nacional de Acção para as Energias Renováveis (PNAER)8 (GOMES, 2016a). Assim, declarou que aumento de: 1. 31% de FER no Consumo Final Bruto de Energia; 6 Como bem observou Carla Amado Gomes: “Pouco depois, na sequência da directiva 2006/32/CE, foi aprovado, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 80/2008, de 20 de Maio, o primeiro Plano Nacional de Acção para a Eficiência Energética (PNAEE) período de 2008-2015, no qual eram contempladas quatro áreas específicas de actuação: Transportes; Residencial e Serviços; Indústria; e Estado, além de três áreas designadas ‘transversais’: Comportamentos; Fiscalidade e Incentivos; e Financiamentos. Nessa ocasião, foi também anunciada a criação do Fundo de Eficiência Energética, que tinha por objetivo financiar os programas e as medidas previstos no PNAEE (que veio a ser criado pelo Decreto-Lei n.º 50/2010, de 20 de Maio).” In: GOMES, Carla Amado. Eficiência Energética em Portugal: uma panorâmica geral. Revista e-Pública. Volume 3, Dezembro de 2016, p. 298. 7 Com efeito, e como se pode extrair dos considerandos da Resolução n.º 20/2013, “O diagnóstico da execução do PNAEE 2008-2015 e do PNAER 2010 [Plano Nacional de Acção para as Energias Renováveis] permitiu concluir que, relativamente ao indicador por excelência da eficiência energética da economia, Portugal apresenta hoje uma intensidade energética da energia primária em linha com a União Europeia (UE), mas que este valor oculta um resultado menos positivo quando medida a intensidade energética da energia final. Na realidade, o elevado investimento feito por Portugal em energias renováveis e o reduzido consumo energético no setor residencial, comparativamente com o resto da Europa, encobrem uma intensidade energética da economia produtiva 27% superior à média da União Europeia. Este resultado vem reforçar a necessidade de intensificar os esforços na atuação direta sobre a energia final, no âmbito do PNAEE, em particular da economia produtiva, por oposição a um maior nível de investimento na oferta de energia, sem pôr em causa o necessário cumprimento das metas de incorporação de energias renováveis no âmbito do PNAER”. In: GOMES, Carla Amado. Eficiência Energética em Portugal: uma panorâmica geral. Revista e-Pública. Volume 3, Dezembro de 2016, p. 299. 8 Um aspecto a realçar deste PNAEE, ainda em sede geral, é a sua associação ao Plano Nacional de Acção para as Energias Renováveis (PNAER). O Governo entendeu revê-los em simultâneo, atualizando em matéria de energias renováveis as diretrizes traçadas em 2010, uma vez que se pretende o “alinhamento dos respetivos objetivos em função do consumo de energia primária e da necessária contribuição do setor energético para a redução de emissões de gases com efeito de estufa”, com vista a facilitar “os processos de decisão, nomeadamente os que envolvam opções entre investir na eficiência energética ou na promoção do uso de energias renováveis, tornando-os mais claros e racionais”. In: GOMES, Carla Amado. Eficiência Energética em Portugal: uma panorâmica geral. Revista e-Pública. Volume 3, Dezembro de 2016, p. 300. 123 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos 2. 10% de FER nos Transportes; 3. 20% de redução do consumo de Energia Primária (GOMES, 2016, p. 300). Assim, o PNAEE9 foi aprovado para o período de 2013-2016, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 20/2013, de 10 de abril. (GOMES, 2016b) Observou-se, que de fato, o governo português teve como preocupação colocar em prática os plano de eficiência energética, como demonstram os programas de transporte: Renove Carro, Mobilidade Urbana e Sistema de Eficiência Energética nos Transportes; os programas residenciais e serviços: Renove Casa & Escritório, Sistema de Eficiência Energética nos Edifícios e Renováveis na Hora e Programa Solar; Indústria: Sistema de Eficiência Energética na Indústria; Estado: Eficiência Energética no Estado; Comportamentos: Programa Mais e Operação E.; Agricultura: (o qual ainda não teve programa por ter sido implementado por último). Acredita-se que seja louvável a posição de Portugal em tentar retomar o tempo perdido no quesito da eficiência energética. O fato deste país ser parte da União Europeia talvez tenha sido fator crucial para que pudesse acompanhar os demais países europeus, que há tempos já adotam medidas para implementar a sustentabilidade em suas políticas públicas. No mais, Luísa Schimidt (2016) aponta como tendências positivas: A redução da taxa de dependência externa do país em energia (considerada no seu todo, incluindo o grande <<peso>> dos transportes), atingindo em 2014 o valor mais baixo das últimas duas décadas: 71%; e a aprovação dos Planos Nacionais de Ação para a Eficiência Energética (PNAE 2008 e 2013-2016), que originaram algumas medidas de eficiência energética, nomeadamente nos edifícios da Administração Pública. Ressalta-se que é perceptível que a mobilidade urbana ainda consta como entrave para Portugal, contudo o programa da União Europeia Sharing Cities, co-financiado pelo Horizonte 2020 pretende colocar Lisboa na vanguarda da revolução tecnológica da gestão urbana sustentável. O programa tem como objetivo solucionar problemas das áreas de mobilidade, poluição e energia, contando com soluções de alta tecnologia para 9 O PNAEE é um instrumento de planeamento energético que estabelece o modo de alcançar as metas e os compromissos internacionais assumidos por Portugal em matéria de eficiência energética que comporta as seguintes linhas orientadoras: • Aumentar a eficiência energética da economia e em particular no sector Estado, contribuindo para a redução da despesa pública e a competitividade das empresas; • Cumprir todos os compromissos assumidos por Portugal de forma economicamente mais racional; • Reforçar a monitorização e acompanhamento das diversas medidas; • Reavaliar medidas com investimentos elevados e fusão de atuais medidas; • Lançar novas medidas a partir das existentes abrangendo novos sectores de actividade (ex.: Agricultura); • Aumento da eficiência energética no sector Estado, consubstanciado pelo programa Eco.AP, (O caderno de encargos foi aprovado pela Portaria n.º 60/2013). ABREU ADVOGADOS .In: GOMES, Carla Amado (coord.). O Direito da Energia em Portugal: cinco questões sobre “o estado da arte”. Edição ICJP. Centro de Investigação de Direito Público. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: 2016, p. 25. 124 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... as cidades. (REVISTA SMART CITIES, 2017). Outro entrave a Portugal, é, sem dúvidas, as tarifas empregadas pelas fontes de energias renováveis, como a eólica. De fato, trata-se de energia limpa, porém os seus custos para o oferecimento e implementação ainda são altos por se tratar de tecnologia de ponta, por isso as tarifas advindas destas energias são mais dispendiosas. É o que relata “o despacho 7087/2017, publicado em 14 de agosto, que determina que nos procedimentos para autorização do sobreequipamento de centros electroprodutores [eólicos], isto é, para aumento de produção, a Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) tem que consultar a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) sobre os impactos para a tarifa da autorização relativa ao sobreequipamento em causa, sendo que "só deve ser autorizada desde que não tenha efeitos negativos para o Sistema Eléctrico Nacional" (JORNAL ECONÔMICO, 2017). No Brasil, os programas de eficiência energética também são parte antes mesmo do surgimento da ANEEL (DOMINGUES, 2016). A saber: 1. O primeiro programa embrionário foi o Programa Brasileiro de Etiquetagem (PBE), em 1984; 2. O Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (PROCEL), em 1985; 3. E o Programa Nacional de Racionalização do Uso de Derivados do Petróleo e Gás Natural (CONPET), em 1991. Após a surgimento da ANEEL em 1997, o governo brasileiro sancionou a Lei Eficiência Energética, Lei nº 10.295/2001, a qual dispõe em seu preâmbulo sobre “Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia e dá outras providências”. Composta de apenas seis artigos, esta lei trata essencialmente da necessidade de mensuração do gasto energético de aparelhos consumidores de energia e um programa de metas de progressiva evolução. É de responsabilidade da ANEEL regulamentar os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e Eficiência Energética (EE), as duas linhas de frente deste programa são: a busca por inovações tecnológicas e o combate ao desperdício de energia. No ano 2000 foi sancionada a Lei nº. 9.991/2000 com o fulcro de disponibilizar a realização de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e em eficiência energética por parte das empresas concessionárias, permissionárias e autorizadas do setor de energia elétrica10. Contudo este relatório irá se ater ao Programa de Eficiência Energética (PEE) criado pela ANEEL. O início deste programa deu-se no ano de 1998 e consiste basicamente em obrigar as permissionárias e concessionárias de serviços públicos na 10 Em 2004, surgiram as Leis nº 10.847 e 10.848. A primeira autoriza a criação da Empresa de Pesquisa Energética – EPE e dá outras providências. A segunda, dispõe sobre a comercialização de energia elétrica, e dá outras providências. 125 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos área de energia, para aplicar em programas de eficiência energética. Atualmente a concessionária que acumular na Conta de Eficiência Energética montante superior à obrigação legal dos últimos dois anos estará sujeita às penalidades previstas na Resolução Normativa no 063, de 12 de maio de 2004. A ANEEL também regulamentou a Resolução Normativa Nº 556, de 18 de junho De 2013 a qual aprova os Procedimentos do Programa de Eficiência Energética – PROPEE. Sobre os resultados obtidos pelo programa entre 1998 a 2015, um total de Investimentos: 5,7 bilhões de reais; cerca de 4.000 projetos aprovados; uma economia de Energia Acumulada no período em torno de 46 TWh; e a retirada de Demanda na Ponta 2,3 GW. (RELATÓRIOS ANEEL, 2017). É inquestionável que os resultados são benéficos, visto que no Brasil atualmente conseguiu aumentar a abrangência da rede elétrica, em contrapartida assegurando que o consumidor de baixa renda consiga pagar uma tarifa razoável e que possua eletrodomésticos que tenham melhor custo benefício energético. Por outro lado, vê-se o quanto ainda é incipiente a política pública brasileira para o desenvolvimento da sustentabilidade através da eficiência energética. Os resultados ainda que positivos, devem-se muito pela abundância de recursos naturais que o país possui para a geração de energia limpa, porém não há nada ainda pensado para a mobilidade urbana, como a menor utilização de automóveis particulares em detrimento dos transportes públicos. A Empresa de Pesquisa Energética – EPE, divulgou através do Plano Nacional de Energia 2030 que as projeções são favoráveis a conservação potencial energético do país, contudo não disponibiliza quais são as estratégicas políticas e tecnológicas para o alcance das metas. 5) Considerações finais Diante do que foi exposto neste trabalho, sem dúvidas, o princípio do desenvolvimento sustentável é difundido tanto no Brasil, quanto em Portugal. Percebese que, de fato, não há mais espaço para teorias especulativas que questionam a real necessidade de preservar o meio ambiente para as futuras gerações. Deve-se muito ao papel desempenhado pelo Direito e seus operadores, que vem divulgando esta realidade para além das cortes e das salas de aula. Hoje, há uma percepção que a temática ambiental necessita do engajamento social para que resulte na transformação que se espera para o mundo. Acredita-se que uma das formas mais eficazes para que haja essa mudança de paradigma é a conscientização social aliada a uma hard law que puna com rigor pessoas físicas e jurídicas que ponham seus interesses à frente da proteção ambiental. Quando fora exposto o problema sustentabilidade frente ao setor elétrico, ficou 126 A atuação das agências reguladoras de energia para o desenvolvimento... translúcido que tanto no Brasil, quanto em Portugal, existem leis completamente alinhadas com o princípio do desenvolvimento sustentável. Sendo que estes são defendidos de modo expresso em suas Cartas Magnas. Porém, quando se adentra na questão específica da regulação para o setor elétrico, vê-se que Portugal tem um olhar mais cuidadoso com as causas ambientais, que o Brasil. As leis portuguesas, para além de estarem mais bem redigidas no que tange ao novo paradigma da sustentabilidade, também estão mais alinhadas com o que se espera sobre a eficiência energética no âmbito das agências reguladoras. O Brasil, um gigante pela própria natureza, como bem afirma o hino pátrio, não possui legisladores à altura do seu potencial. Embora, tenha leis suficientes que tratem do problema da regulação para uma melhoria dos recursos energéticos em questão. Neste caso, compara-se bem que em Portugal no Conselho da ERSE há representantes especialistas em meio ambiente, para alinhar os interesses da entidade ao que prega os novos interesses ambientais para área da energia, notadamente, o fomento de uma política pública que assegure a eficiência energética. Como mencionou Rui Pena, Portugal “acordou tarde para a eficiência energética”, tal frase tem encaixe perfeito quando utilizada a sua ex-colônia, o Brasil. Ambas as nações se encontram no início de uma jornada longa quando se objetiva a adequação dos parâmetros da sustentabilidade com relação ao setor elétrico. (GOMES, 2016a) Portugal apresenta resultados tímidos perto das demais maiores nações da União Europeia, contudo os esforços das últimas décadas precisam ser reconhecidos. Com políticas públicas de incentivo à variação da matriz energética em energias renováveis, Portugal superou as expectativas no investimento de parques eólicos. Contudo, o potencial para energia solar ainda não é bem aproveitado. O Brasil, em índices de energia limpa continua com saldo positivo, mas esconde que é praticamente dependente das hidrelétricas, mesmo tendo potencial para a melhor exploração de outros tipos de energias renováveis como a eólica e a solar. O país continua preso a políticas de expansão de malha elétrica e incentivo do uso da certificação de eficiência energética, o que se julga muito incipiente perante os novos desafios do setor elétrico. Notadamente o PNAEE e PEE são os dois programas criados para a implementação da eficiência energética em Portugal e no Brasil, com grande alcance. Contudo, em linhas comparativas Portugal tem larga vantagem sobre o Brasil, pois percebe-se que as áreas de atuação do PNAEE e os programas derivados deste, são inigualavelmente mais abrangentes que o brasileiro. Por fim, compreende-se que o caminho para a sustentabilidade no quesito eficiência energética, é longo para ambos os países, mas há um otimismo maior no caso português. 127 Mariane Silva de Castro e Veríssimo Nascimento Ramos dos Santos REFERÊNCIAS BRASIL. Agência Nacional de Energia Elétrica. Ministério de Minas e Energia. Disponível em: http://www.aneel.gov.br/a-aneel acesso em 01/09/2017 CONFRARIA, João. 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Na prática, os condóminos associam com grande frequência os seus direitos pessoais na condição de proprietário de uma determinada fração autónoma, com os direitos adquiridos através do regime de propriedade horizontal, ou seja, por vezes as fronteiras apresentam-se tão invisíveis, o que faz com que os condóminos transbordem a sua legitimidade. Destarte, a finalidade deste trabalho consiste em elucidar o leitor acerca das soluções mais equilibradas para diversos problemas no âmbito dos condomínios e da propriedade horizontal, especialmente sobre diversos aspetos da resolução de conflitos entre os condóminos, dando-se assim a conhecer os direitos e deveres dos condóminos. A metodologia utilizada passou essencialmente pelo recurso à pesquisa epistemológica, que consiste numa pesquisa de cunho teórico, relacionada com a propriedade horizontal, sendo definidos os principais conceitos relacionados com o tema em questão. Por outro lado, recorreu-se à monografia dogmática, dado que se desenvolve o tema a partir de várias pesquisas, relacionando legislação, doutrina e jurisprudência. 2) Evolução histórica A propriedade horizontal alcançou bastante importância, em meados do Séc. XX, após a segunda guerra mundial. Este instituto tornou-se relevante, essencialmente dada a escassez de solo disponíveis, e em face do crescimento das cidades provocado pelo aumento de população. Assim, procedeu-se à construção de grandes edifícios destinados a alojar várias famílias. A construção em altura acentuou-se em cidades onde existiam limites geográficos à 1 Licenciada em Solicitadoria pelo Instituto Politécnico da Maia. Mestranda em Solicitadoria (Ramo Execução) no Instituto Politécnico da Maia. Ana Rita Ferreira Araújo expansão das cidades.2 Como consequência da construção em altura, produziu-se a necessidade de atribuir a propriedade separada de uma fração a cada proprietário, pelo que este facto constitui a base do surgimento do instituto da propriedade horizontal. Por intermédio do Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 outubro, introduziu-se uma nova redação dos art.ºs 1414.º a 1438.º-A do Código Civil, dando-se reconhecimento cada vez mais vivo ao regime jurídico da propriedade horizontal, com grande implementação nas sociedades modernas, o que se encontra ainda expresso no DecretoLei n.º 268/94 e no Decreto-Lei n.º 269/94, ambos de 25 de outubro. 3) Conceito de propriedade horizontal a) Generalidades A propriedade horizontal consiste no direito que se exerce sobre uma ou mais frações de um prédio urbano, que tenham sido adquiridas por vários proprietários, de forma separada, verificando-se ainda o facto de que os condóminos têm direitos e deveres em comum. A propriedade horizontal trata-se de um instituto jurídico vinculado à divisão e organização dos imóveis resultantes da segregação de uma construção comum. Essa propriedade regulamenta a forma como se divide o imóvel e a sua relação com os restantes bens privados e comuns do prédio urbano. Cada proprietário dispõe de uma ou mais frações autónomas, mas ninguém possui o edifício na sua totalidade. O direito de propriedade horizontal pressupõe que o proprietário de uma fração detenha uma percentagem (ou permilagem) sobre as partes comuns. b) Noção legal A propriedade horizontal encontra-se prevista no Código Civil português, mais concretamente nos seus art.ºs 1414.º a 1438.º-A. No referido Código, a combinação dos art.ºs 1414.º, 1415.º e 1420.º consagra este instituto como o conjunto de poderes que recaem sobre uma fração autónoma de um prédio urbano e sobre as partes comuns do mesmo edifício.3 2 Temos o exemplo das cidades onde existia rio ou mar, nomeadamente, Nova Iorque ou Rio de Janeiro, o que levou à construção de enormes arranha-céus. Cfr. – Menezes Leitão, L.M. (2013). Direitos Reais. 4ª. Edição. Coimbra. Almedina, p. 280. 3 O titular de uma fração autónoma com acesso às partes comuns de um edifício denomina-se por condómino. Cfr.- Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris, p. 341. 132 Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano... c) Requisitos do objeto da propriedade horizontal Os requisitos do objeto da propriedade horizontal traduzem-se na necessidade de, no edifício, as frações autónomas distintas e isoladas umas das outras conterem uma saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (art.º 2415.º do Código Civil).4 Ora, o objeto da propriedade horizontal são as próprias frações autónomas. Deste modo, estamos perante uma propriedade horizontal quando exista uma autonomia estrutural das várias frações e, simultaneamente, uma utilização de coisa comum. d) O título constitutivo O título constitutivo consiste num documento normativo, cujas indicações apresentam caráter legal e eficácia para todos os condóminos. O título constitutivo tem como principal função especificar e clarificar, com detalhe, as partes correspondentes de cada fração, atribuindo-lhes o respetivo valor expresso em percentagem ou permilagem. Este documento dá origem à propriedade horizontal e subsequentemente confere fé pública à sua existência. Nos termos do n.º 1 do art.º 1418.º do Código Civil, no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio. Além dessas especificações, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente (cfr. n.º 2 do art.º 1418.º): (i) Menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum; (ii) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das frações autónomas; (iii) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio. Estas menções devem constar do conteúdo da inscrição registral do ato constitutivo da propriedade horizontal.5 e) Consequências da falta de requisitos do objeto e de vícios do título Em conformidade com o art.º 1415.º do Código Civil, só podem ser objeto de 4 Para que os edifícios possam ser constituídos em propriedade horizontal, têm de ser preenchidos os requisitos estabelecidos nos arts.º 1414.º e 1415.º do Código Civil. Cfr. – Pinto Duarte, R. (2007). Curso de Direitos Reais. 2ª Edição. Lisboa. Principia, p. 109. 133 Ana Rita Ferreira Araújo propriedade horizontal as frações autónomas que se revistam de certas características. A relevância dos requisitos do objeto na propriedade horizontal é tal, que mesmo os vícios relativos a menções facultativas do título podem interferir com a sua validade. Assim, é necessário apurar quais as consequências da constituição da propriedade horizontal. Segundo Luís A. Carvalho Fernandes (1997), os vícios que podem surgir no título são a falta de requisitos legais do objeto, falta de menções obrigatórias, discrepância entre o fim mencionado no título e o fim aprovado pelas entidades competentes.5 Consequentemente, a falta de requisitos implica a sujeição do prédio urbano ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da parte que lhe tiver sido fixada, nos termos do art.º 1418.º do Código Civil, ou da quota correspondente ao valor relativo da sua fração. No caso de se verificar algum dos vícios no título, vícios esses que foram mencionados anteriormente, o titulo constitutivo é declarado nulo. Em alternativa6, poderá criar-se uma situação de posse adquirindo-se o prédio urbano por usucapião7. f) Modalidades de propriedade horizontal Mediante a existência de partes do edifício a que no título constitutivo possa ser atribuída a qualidade de fração autónoma ou de parte comum, nos termos do art.º 1421.º, n.º 2 do Código Civil, pode modificar-se essa qualificação ou podem verificar-se alterações quanto ao objeto por efeito da junção de várias frações ou da divisão de uma fração.8 Via de regra, as modificações surgem nas alterações relativas a aspetos arquitetónicos ou estéticos do prédio. A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, por usucapião ou por decisão judicial. 5 Estes vícios encontram-se enunciados nos art.ºs 1416.º e 1418.º, n.º 3, ambos do Código Civil. 6 A cominação da nulidade para o caso de falta de fixação do valor relativo de cada fração é excessiva, porquanto o vício pode ser sanado, nos termos do art.º 59.º, n.º 3 do Código do Notariado. Sustentamos, por isso, nesta medida uma interpretação corretiva da lei, no sentido de a nulidade só prevalecer se o recurso àquele meio não vier a acontecer. - Cfr. Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris, p. 350. 7 Caso nenhum dos interessados demonstre interesse em requerer a conversão e a situação de uso exclusivo das pretensas frações se mantenha. - Cfr. Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris, p. 350. 8 Esta matéria obedece a critérios de regulamentação especifica, constantes no art.º 1422.º-A do Código Civil. – Cfr. Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris, p. 351. 134 Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano... g) Negócio jurídico Na maioria dos casos, a aludida modificação é efetuada através de negócio jurídico, sendo celebrada por escritura pública, sujeita a registo. O referido negócio jurídico trata-se de um ato unilateral, que pode ser praticado pelo administrador em nome do condomínio, se todos os condóminos estiverem de acordo, e tal for expresso em ata assinada, conforme o disposto no art.º 1419.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil. No entanto, podem ocorrer dois tipos de exceções, a saber: (i) pode dar-se a aprovação por parte de dois terços dos condóminos (cfr. art.º 1407.º do Código Civil); b) faz-se depender a alteração da falta de oposição, na divisão de frações (cfr. art.º 1422.ºA, n.º 3 do Código Civil). h) Usucapião A modificação da propriedade horizontal pode ainda ser efetuada através da posse, aplicando-se aqui o instituto da usucapião, quando ocorra um determinado lapso de tempo legalmente definido. A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (art. º s 1287.º e 1316.º, ambos do Código Civil), que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse; e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse. Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art.º 1288.º), adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse – art.º 1317.º, alínea c). i) Decisão Judicial Quando se trate de divisão de parte comum do prédio urbano, pode existir decisão judicial, a requerimento de qualquer comproprietário, desde que, no referido prédio, se verifiquem os requisitos do objeto elencados no art.º 1415.º do Código Civil.9 9 Cfr. art.º 1417.º, n.º 2 do Código Civil. 135 Ana Rita Ferreira Araújo 4) Condomínios a) Regulamento interno Via de regra, na constituição do regime jurídico da propriedade horizontal existe um regulamento interno do condomínio, a regulação da fruição das zonas comuns, bem como algumas situações da propriedade autónoma. Assim, nos termos do art.º 1429.º-A do Código Civil, aditado a este Código pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de outubro: havendo mais de quatro condóminos e caso não faça parte do título constitutivo (cfr. art.º 1418.º) deve ser elaborado um regulamento interno do condomínio, disciplinando o uso, a fruição e a conservação das partes comuns. Ademais, e sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 1418.º, a feitura do regulamento compete à Assembleia de Condóminos ou ao Administrador, se aquele não o houver elaborado. b) Órgãos do condomínio i) A administração das partes comuns A administração comum refere-se apenas às zonas comuns ou coletivas definidas no título constitutivo. Não existe, por isso, uma corresponsabilidade na administração das frações individuais ou autónomas. Neste contexto, o n.º 1 do art.º 1421.º do Código Civil refere o que são as partes comuns do edifício, a saber: a) o solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredesmestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; b) o telhado ou terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fração; c) as entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comuns a dois ou mais condóminos; d) as instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes. De acordo com a mesma disposição, presumem-se ainda comuns: a) os pátios e jardins anexos ao edifício; b) os ascensores; c) as dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro; d) as garagens e outros lugares de estacionamento; e) em geral, as coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos. Sem prescindir, verifica-se que o título constitutivo pode afetar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns. As partes comuns do condomínio podem distinguir-se de duas formas: por um lado, temos as coisas que, ou revestem a natureza de parte componente, ou integrante da unidade predial, ou seja, fazendo parte da estrutura do edifício, ou são indispensáveis ao gozo da propriedade singular ou individual para cada condómino; por outro lado, temos 136 Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano... as coisas que, não obstante serem dispensáveis à utilização normal de cada uma das frações autónomas, favorecem-nas, no sentido de melhorar o gozo da fração individual (exemplo: ascensores). Assim sendo, a primeira definição apresentada corresponde às partes comuns imperativamente de todos. Quanto à segunda definição, as coisas comuns são presuntivamente comuns, ou seja, nos termos do n.º 1 do art.º 1421.º do Código Civil, as partes comuns pertencem à estrutura da construção do edifício, ainda que o uso esteja afetado a um só condómino (exemplo: telhado de cobertura intermédio), como elemento fundamental de toda a construção que se estende a todos os condóminos. Porém, e de acordo com o n.º 2 do art.º supracitado, a definição de partes comuns é mais ou menos ampla, com a justificação da sua natureza de constituírem, de forma mais isolada ou conjunta, outros instrumentos do uso comum do condomínio (exemplo: lugar de parqueamento na cave). Por sua vez, o n.º 3 do artigo 1421.º prescreve que o título constitutivo pode afetar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns, sendo que, nesse caso, todas as despesas provenientes pela manutenção e reparações serão repartidas por todos os condóminos. ii) Assembleia de Condóminos – órgão deliberativo A Assembleia de Condóminos é composta por todos os proprietários de cada fração autónoma. Mais concretamente, e de acordo com o art.º 1431.º do Código Civil, a aludida Assembleia apresenta como principais funções, essencialmente, deliberar questões de fundo sobre a compropriedade; aprovar as contas e os orçamentos apresentados pelo administrador; fiscalizar, em geral, a atuação do administrador e abordar assuntos de interesse geral respetivamente ao condomínio. A Assembleia deverá reunir obrigatoriamente durante a primeira quinzena de janeiro para apreciação das contas do último ano e aprovação do orçamento. Cabe ao Administrador convocar todos os condóminos com, pelo menos, 10 dias de antecedência, através de carta registada com aviso de receção ou mediante aviso convocatório feito com a mesma antecedência, desde que haja recibo de receção assinado pelos condóminos. A convocatória deve indicar o dia, o local e a ordem de trabalhos da reunião, bem como os assuntos para cuja aprovação seja necessária a unanimidade dos votos. Além da aludida reunião, o administrador ou os condóminos que representem pelo menos 25% do valor do prédio, podem convocar reuniões extraordinárias. 137 Ana Rita Ferreira Araújo iii) Quórum Constitutivo Para que a Assembleia esteja legalmente constituída, é necessária a presença de condóminos que perfaçam a maioria absoluta dos votos. Se não estiver presente esta maioria, é necessário efetuar uma segunda convocatória, embora dessa vez só seja necessária a representação de um quarto dos condóminos. iv) Quórum deliberativo Via de regra, é suficiente o acordo da maioria absoluta dos votos para que a assembleia possa deliberar. No entanto, existem assuntos aos quais não se aplica esta regra como, por exemplo, a aprovação de obras que impliquem inovações no edifício ou reconstrução de um imóvel destruído em mais de dois terços do seu todo, as quais requerem, respetivamente, uma maioria de dois terços e a unanimidade. Os votos que cada condómino possui dependem diretamente do valor relativo da sua fração expresso no título constitutivo da propriedade horizontal. Cada condómino possui tantos votos quanto o número de unidades inteiras existentes na percentagem ou permilagem total das frações que possuir. Por exemplo, se um condómino for proprietário de uma fração cujo valor corresponda a 8,6% do valor total do prédio, ele terá 8 votos ou 86 votos, conforme se tenha adotado para o condomínio o sistema de percentagem ou da permilagem. Se for proprietário de 2 frações, correspondendo cada uma delas a 18,6% do valor total do prédio, possui 36 votos (no sistema de percentagem). c) Administrador do Condomínio – Órgão Executivo O Administrador do Condomínio é nomeado pela Assembleia de Condóminos, podendo ser um dos proprietários de fração autónoma ou até mesmo um terceiro, possuindo uma função essencialmente executiva. O respetivo cargo poderá ser, eventualmente, remunerado. Se nenhum dos condóminos manifestar a vontade de exercer o cargo, a lei dispõe que tal cargo caberá ao condómino cuja fração ou frações representem a maior percentagem do capital investido. Contudo, se existirem vários condóminos que pretendam exercer o cargo em causa, a escolha recairá sobre aquele a que corresponda a primeira letra na ordem alfabética utilizada na descrição das frações constantes no registo predial. 138 Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano... i) Funções do Administrador Em conformidade com o disposto no art.º 1435.º do Código Civil, o Administrador apresenta um conjunto de funções, a saber: convocar a assembleia de condóminos; elaborar os orçamentos anuais de receitas e despesas; cobrar as receitas e efetuar as despesas comuns; exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas pela assembleia; prestar contas à Assembleia; realizar atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns; regular o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum; efetuar e manter o seguro do edifício contra o risco de incêndio; executar as deliberações da assembleia; representar o conjunto dos condóminos perante as autoridades administrativas. ii) Cessação ou exoneração do cargo do Administrador Salvo disposição em sentido contrário, o mandato anual do administrador (cfr. art. 1435.º, n.º 4 do Código Civil), é renovável. O administrador não pode unilateralmente renunciar ao exercício do mandato, tal como não pode obstar à sua eleição. O administrador eleito, terá, assim, que cumprir as suas funções na íntegra, conforme o art.º 1436.º Código Civil. Se o administrador for uma empresa (ou seja, um terceiro), parece que também não pode unilateralmente revogar o contrato de mandato, sem o acordo do mandante, salvo ocorrendo justa causa (art.º 1170.º do Código Civil). Contudo, parece que deve ser sempre da assembleia dos condóminos a última palavra sobre a exoneração do administrador, já que, não existindo justa causa na revogação do contrato de mandato, poderá haver lugar a indemnização, pelo prejuízo que o mandante possa sofrer (cfr. art.º 1172.º do Código Civil). Porém, o administrador (ou a assembleia) podem renunciar ao cargo antes do termo do mandato (um ano, ou qualquer outro prazo), desde que, para tal, comunique a sua intenção à assembleia dos condóminos. Só esta última (ou o juiz) podem exonerar o administrador (cfr. art.º 1435.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Civil). d) A aprovação das deliberações Quanto à aprovação das deliberações, a maioria relativa ou simples serve para apurar a vontade do órgão, fazendo coincidi-la com a expressa pelos votantes que se pronunciaram no sentido que recolheu mais votos. Por seu turno, a maioria absoluta identifica a vontade do órgão com aquela que foi expressa por mais de metade dos votantes. A maioria qualificada faz corresponder a vontade do órgão àquele que foi expressa por uma certa fração dos votantes superiores à maioria absoluta (por exemplo, 139 Ana Rita Ferreira Araújo dois terços, três quartos, três quintos, etc.). Finalmente, a unanimidade exige, para formação da vontade do órgão, a totalidade dos votos favoráveis dos membros votantes.10 5) Direitos e deveres dos condóminos Cada condómino é considerado proprietário exclusivo da sua fração e comproprietário das partes comuns do prédio urbano, possuindo um conjunto dos direitos e deveres considerado como imprescindível. a) Direitos Nos termos do art.º 1420.º do Código Civil, os condóminos podem fazer uso da sua fração e das partes comuns do prédio; participar na gestão do prédio, ao assistir e votar nas reuniões de condomínio; pedir informações sobre assuntos do prédio ao administrador (solicitando a apresentação do livro de atas e outros documentos); quanto a animais domésticos, sempre que sejam respeitadas as condições de salubridade e de tranquilidade da vizinhança, podem ser alojados até três cães ou quatro gatos por apartamento. b) Deveres A propriedade horizontal impõe ainda várias obrigações aos condóminos. Deste modo, os condóminos, nas relações entre si, encontram-se sujeitos, de um modo geral, quanto às frações que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários de coisas imóveis. Com base no art.º 1422.º do Código Civil, os condóminos têm o dever de respeitar o regulamento do condomínio e cumprir as deliberações da assembleia; participar nas despesas com as partes comuns do prédio; não utilizar a sua fração para usos opostos aos bons costumes e dar-lhe uso de acordo com o fim a que se destina, autorizando ao administrador do condomínio o acesso à sua fração, se este o solicitar; não danificar o arranjo estético do edifício e a sua linha arquitetónica, ou a sua segurança, quer com obras novas, quer por falta de reparação; celebrar e atualizar o seguro contra os riscos de incêndio da sua fração e das partes comuns do edifício; cumprir devidamente o cargo de administrador de condomínio, ou administrador provisório, quando lhe competir por lei; comunicar, por escrito, ao administrador, o seu domicílio, ou do seu representante, caso 10 Cfr. Caupers, J. (2013) – Introdução ao Direito Administrativo. 11ª Edição. Lisboa. Âncora Editora, pp. 124 -125. 140 Direitos e deveres dos condóminos de um prédio urbano... não esteja a residir no prédio; não praticar atos que tenham sido proibidos pelo titulo constitutivo ou posteriormente por deliberação da assembleia de condóminos aprovada sem oposição; comunicar aos moradores do edifício as atividades ruidosas de remodelação, recuperação ou conservação feitas na sua fração. Os condóminos encontram-se ainda sujeitos aos encargos de uso de conservação e fruição, previstos no art.º 1424.º do Código Civil. Assim, e de acordo com os n.ºs 1 a 3 do referido artigo, o que conta é a destinação objetiva das coisas comuns, isto é, o uso que cada condómino faz ou pode fazer dessas coisas, medido em princípio pelo valor relativo da sua fração (ou seja, pela proporcionalidade) e não pelo uso que efetivamente faça delas. Ora, o art.º 1424.º, n.º 1 do Código Civil, estabelece, com caráter supletivo, que as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum, são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações (critério da proporcionalidade)11. 6) Conclusões Aqui chegados, podemos concluir que o regime da propriedade horizontal surge no nosso ordenamento jurídico sobretudo para tentar encontrar uma resposta jurídica a uma renovada forma de organização física, assente na construção dos prédios, com a partilha do mesmo espaço e a respetiva ocupação por diversos proprietários. Destarte, o regime da propriedade horizontal apresenta uma relação de interesse com o bem pessoal e pode tornar-se fortuito no proveito do gozo comum em que assume a sua plenitude. Por outras palavras, os bens comuns não adquirem caráter coletivo ou comum, por serem partes integrante e necessário do edifício ou pelo facto dos condóminos poderem utilizar esses bens ao mesmo tempo que os direitos da utilização ou satisfação da própria habitação. O administrador e a assembleia são órgãos do condomínio, de caráter obrigatório e necessário. Todos os condóminos em reunião formam uma vontade que será delegada no administrador, que executará essa vontade. Os órgãos possuem um conjunto de competências que se concentram numa pessoa física. A vontade manifestada pelos titulares desses órgãos, dentro dos limites da sua competência, é vinculativa para todos os membros do condomínio. Assim, o administrador é o órgão do condomínio que possui a tutela dos interesses comuns e não individuais. Portanto, entende-se que o conjunto de condóminos forma o substrato pessoal na 11 A quota-parte consiste na medida da participação de cada um dos proprietários, ou seja, no valor relativo de cada fração autónoma, expresso em permilagem ou percentagem do valor total do prédio. – Cfr. Menezes Leitão, L. (2013) – Direitos Reais. 4ª Edição. Coimbra. Almedina, p. 294. 141 Ana Rita Ferreira Araújo gestão da fruição e serviços das zonas comuns do edifício. Sem o regime da propriedade horizontal, a convivência dos proprietários do edifício seria o colapso e a permanente fonte de conflitos entre a vizinhança. Ora, estamos a crer que é fundamental determinar qual ou quais os princípios aptos para reger os conflitos de vizinhança. REFERÊNCIAS Carvalho Fernandes, L.A. (1997) Lições de Direitos Reais. 2ª. Edição. Coimbra. Quid Juris. Caupers, J. (2013) – Introdução ao Direito Administrativo. 11ª Edição. Lisboa. Âncora Editora. Menezes Leitão, L.M. (2013). Direitos Reais. 4ª. Edição. Coimbra. Almedina. Pinto Duarte, R. (2007). Curso de Direitos Reais. 2ª Edição. Lisboa. Principia. 142 BREVES NOTAS SOBRE A INSOLVÊNCIA E OS SEUS EFEITOS NAS AÇÕES DECLARATIVAS, EXECUTIVAS E CONVENÇÕES DE ARBITRAGEM Ricardo M. Oliveira1 1) Introdução O processo de insolvência, enquanto universal e concursal, interfere inequivocamente com outras ações em que uma das partes (seja ativa ou passiva) é o insolvente. O direito da insolvência tutela, portanto, a situação do devedor insolvente e a satisfação dos direitos dos seus credores2. É nesta exata medida que é necessário que nos debrucemos, no sentido de sabermos como poderá o processo de insolvência satisfazer as necessidades dos credores, devido, precisamente à sua essência concursal e universal. O processo é concursal porque a ele concorrem todos os credores do insolvente (art.º 1.º n.º 1 do CIRE3), independentemente do montante e da natureza do seu crédito, respeitando sempre as suas especificidades – tratamento pela natureza do crédito – por seu turno, e bem assim, a proporcionalidade das perdas no caso de insuficiência da massa insolvente (Cfr. Art.º 172.º e ss do CIRE). Por outro lado, não se trata apenas de uma possibilidade essa reclamação, como veremos mais adiante. Com a insolvência qualquer credor fica absolutamente impedido de ver recuperado o seu crédito, que não pela via do processo insolvencial. Mais, dispõe o art.º 90.º do CIRE que “os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os processos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”. É a consumação da essência concursal e universal do processo de insolvência, previsto no art.º 1.º do CIRE, que subjaz à natureza e função do processo de insolvência, na medida em que será este o meio que a Lei lhes faculta de, na medida do possível, obterem a satisfação dos seus interesses, no sentido de nele exercerem os direitos que lhes são consagrados, nomeadamente, os de reclamação de créditos, ainda que eles se encontrem reconhecidos noutras instâncias – art.º 98.º n.º 3 e art.º 87.º n.º 2 , ambos do CIRE. Quando falamos na universalidade do processo de insolvência, estamos a dizer que, de uma maneira geral, todos os bens, penhoráveis, do devedor insolvente são apreendidos e liquidados, podendo, ainda, ser apreendidos e liquidados bens relativamente penhoráveis, mediante a indicação nesse 1 Licenciado em Solicitadoria, pelo ISMAI – Instituto Superior da Maia. Especialista em Processo Executivo. Mestrando em Solicitadoria pelo IPMAIA – Instituto Politécnico da Maia. Solicitador e Agente de Execução 2 Leitão Cordeiro, M., (2005) Introdução ao Direito da Insolvência, in “O Direito”, 137, III, p. 467. 3 Este artigo é utilizado como definição e delimitação do processo de insolvência e da sua importância no nosso sistema judicial. Ricardo M. Oliveira sentido, por parte do insolvente (Cfr. art.º 46.º do CIRE)4. Entretanto, a insolvência tem no seu epicentro a satisfação dos interesses dos credores. Contudo, como perguntamo-nos como poderia o processo de insolvência satisfazer cabalmente esses interesses, isto é, como poderiam os credores acreditar num processo por modo a crer que no seu conjunto tentariam recuperar os seus créditos. Equacionamos se seriam todos, cada um a seu tempo, por seu meio, pela sua disponibilidade. Ainda se seria a qualquer momento processual, com ou sem garantias. É precisamente com base nos efeitos externos da declaração de insolvência que podemos atribuir confiança ao processo. A insolvência comporta efeitos em duas vertentes: a vertente externa e a vertente interna. Os efeitos externos são aqueles que versam sobre a relação jurídica em torno do insolvente. Os efeitos processuais externos da declaração de insolvência compreendem um conjunto de consequências sobre as ações a propor ou pendentes em que o insolvente seja parte, independentemente de ser sujeito ativo ou passivo do litígio já composto ou a compor. Destarte, o que se pretende é proceder à sistematização das consequências jurídico-processuais da declaração de insolvência – isto é, os efeitos externos sobre as ações, que decorrem do novo estatuto conferido ao devedor, o de insolvente. 2) Efeitos sobre as ações declarativas As ações declarativas pendentes em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou contra terceiro, mas que possa influenciar o valor da massa insolvente, poderão ser apensadas ao processo de insolvência, a pedido do Administrador de Insolvência, com conveniência para os fins do processo – art.º 85.º n.º 1 do CIRE. Esta é uma novidade trazida pelo novo código da insolvência, e que decorre da universalidade e concursalidade do processo de insolvência, ou seja, estamos perante um processo concentrador, na medida em que se lhe submetem as questões discutidas em outras instâncias, independentemente da matéria. Acrescenta-se ainda que esta previsão legal não é automática (contrariamente ao previsto o art.º 88.º do CIRE) impondo apenas a apensação das ações declarativas ao processo de insolvência, desde que concomitantemente se cumpram os requisitos enunciados pelo art.º 85.º do CIRE – isto é: ações que se debrucem sobre questões relativas aos bens constantes da massa insolvente; Que essas ações possam interferir com o valor da massa; o Administrador da insolência requeira a apensação; Esse requerimento de apensação seja devidamente fundamentado, expondo os motivos de preponderância para os fins da insolvência. Para que, no processo de insolvência, o credor possa beneficiar da repartição do produto da liquidação do património do devedor insolvente, terá de reclamar créditos, mesmo que haja uma sentença que reconheça o crédito, transitada em julgado – art.º 128.º n.º 3 e Nesse sentido vem também o art.º 737.º n.º 2 al a) do Código de Processo Civil. 144 Breves notas sobre a insolvência e os seus efeitos nas... n.º 5 do CIRE. Em contrapartida, não é necessária uma sentença com trânsito em julgado, para que se possam reclamar créditos no processo de insolvência. Em boa verdade, o art.º 129.º e ss do CIRE prevê um processo para reconhecimento e impugnação dos créditos reconhecidos. Contudo, e tendo em conta a existência de créditos, não comuns, em particular com origem na responsabilidade civil5, que podem ser incompatíveis com a essência urgente e célere do processo de insolvência, e cuja tramitação exigirá a ponderação de direitos litigiosos complexos ou especializados, aqueles poderão ter que ser reconhecidos num processo autónomo. Por este leque de situações, ver-se-á, portanto, que as ações declarativas pendentes nos tribunais, e que não verifiquem cumulativamente os requisitos do aludido art.º 85.º, prosseguirão os seus termos. Neste sentido vai Maria do Rosário Epifânio6 “(…) a reclamação de crédito não importa necessariamente a inutilidade superveniente da lide de natureza declarativa intentada contra o insolvente: a inutilidade superveniente da lide só ocorrerá a partir do momento em que, no processo de insolvência, é proferida a sentença de verificação de créditos, já que a partir desse momento, é essa sentença que reconhece e define os direitos dos credores”. Sendo esse crédito reconhecido sem impugnações, no processo de insolvência, as ações declarativas deverão ser extintas por inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no art.º 277.º al a) do Código de Processo Civil. 3) Efeitos sobre as ações executivas No que toca às ações executivas, o legislador foi ainda mais cuidadoso, ao deixar inequívoco que as aquelas, as diligências executivas ou providências ficam suspensas, automaticamente, podendo a suspensão ser requerida por qualquer credor no decurso do processo executivo, com fundamento no requerimento da declaração de insolvência – cfr art,º 793.º do CPC7. Esta suspensão aplica-se, portanto, às ações executivas comuns, às especiais e, até, às providências cautelares. Não faria sentido evitar-se a penhora dos bens, permitindo-se o arresto, quando em ambos os casos estamos perante um ataque ao património do insolvente, pese embora a estrutura preventiva do procedimento cautelar (como por exemplo o arresto), seria, porquanto um ato inútil. Este efeito aplica-se aos processos executivos pendentes, na sua plenitude e sem que seja necessário o trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência8. Daqui se entende, por conseguinte, que o processo de insolvência é de tal maneira estruturante que, para 5 Neste sentido vd Pereira de Almeida, A., (2007), Efeitos do processo de insolvência nas ações declarativas, in Revista de Direito Comercial, p. 149. 6 In Manual de Direito da Insolvência, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra 2016, p. 161. 7 Neste ponto, o agente de execução do processo executivo suspende a execução, tomando a respetiva decisão, notificando-a às partes, o qua aliás fará melhor sentido, dado o previsto no n.º 4 do art.º 88.º do CIRE, impondo a comunicação entre o administrador da insolvência e o agente de execução. Contudo, a prática não é comum em todos os tribunais, uma vez que, em alguns deles, o juiz da execução profere despacho e notifica as partes solicitando ao processo de insolvência certidão da sentença de declaração da insolvência. 8 Dionísio Oliveira, A., (2009), Efeitos externos da insolvência. As ações pendentes contra o insolvente, Julgar, página 176 e 177. 145 Ricardo M. Oliveira aplicação plena dos princípios da universalidade e da concursalidade, não poderia proceder-se de forma diversa, ainda mais, pela natureza urgente do processo. Há que ter em atenção que as ações executivas manter-se-ão suspensas pelo tempo necessário ao decurso do processo de insolvência, sendo subjugado por este e pelo seu desenrolar, bem como pelas decisões que ai se tomem, conforme ser verá mais à frente9. É, portanto, pacífico que, mesmo com a declaração da insolvência, e numa primeira fase, as ações executivas não se extinguem. Diferentemente acontecia na vigência do CPEREF, uma vez que, não se preocupando com a reestruturação do devedor, mas sim com a liquidação do seu património, e no caso das empresas, a sua extinção, não havia qualquer suspensão da instância executiva, mas antes, uma extinção da instância executiva, por inutilidade superveniente da lide10. Outrossim, como já vimos, a suspensão da instância deve perdurar até ao encerramento do processo de insolvência, uma vez que, os efeitos da declaração de insolvência terminam, tal como previsto no art.º 233.º do CIRE. Este encerramento da insolvência, não sendo uniforme, não dará o mesmo destino às execuções suspensas. Prescreve o n.º 3 do art.º 88.º do CIRE, que “as ações executivas suspensas nos termos no n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do art.º 230.º, salvo para efeitos de exercício do direito de reversão legalmente previsto.” Subentendese aqui, mais um efeito imediato da insolvência sobre outra ação, uma vez que parece ser automática a extinção das execuções suspensas – ope legis11. O Administrador da Insolvência deve comunicar ao Agente de Execução que tramita o processo executivo sustado em virtude da declaração de insolvência, a ocorrência do atrás previsto, tal como expressamente previsto no n.º 4 do referido art.º 88.º do CIRE. A extinção da instância executiva pode então acontecer com o encerramento do processo de insolvência, após rateio final. Tratando-se de pessoa singular, e tendo processo de insolvência encerrado de acordo com o art.º 230.º n.º 1, al a) do CIRE – isto é após rateio final – a instância executiva deverá ser declarada extinta por inutilidade superveniente da lide. Acresce a isto que, tendo sido pedida a exoneração do passivo restante e haja despacho inicial de cessão do rendimento disponível, nos termos do disposto no art.º 242.º n.º 1 do CIRE, é vedada a hipótese de se proceder à instauração de ações executivas que atinjam o património do devedor, que se destina à satisfação dos créditos sobre a insolvência. Com o encerramento do processo de insolvência, e sendo o devedor uma 9 Neste sentido vai Rosário Epifânio, M., (2016), Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, página 165, Coimbra, Almedina. 10 Dionísio Oliveira, A., (2009), Efeitos externos da insolvência. As ações pendentes contra o insolvente, Julgar, página 176 e 177. 11 Também neste sentido vai Rosário Epifânio, M., (2016), Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, página 165, Coimbra, Almedina. 146 Breves notas sobre a insolvência e os seus efeitos nas... sociedade comercial, nos termos do disposto no art.º 243.º n.º 3 do CIRE, a execução, entretanto suspensa, extinguir-se-á, uma vez que o devedor desaparecerá, pois, tal facto é comunicado à Conservatória do Registo Comercial, para efeitos de cancelamento da matrícula. As ações executivas, suspensas pelos efeitos da declaração de insolvência, extinguir-se-ão também, com o encerramento do processo de insolvência com o fundamento de insuficiência de bens da massa insolvente. Com o encerramento do processo o devedor recupera o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, art.º 233.º n.º 1 al a) do CIRE. Assim, encerrado o processo, os credores podem exercer os seus direitos contra o devedor, desde que estas não contrariem as restrições previstas no plano de insolvência, do plano de pagamentos e do art.º 242.º n.º 1 do CIRE e os credores da massa podem reclamar do devedor os direitos não satisfeitos – art.º 233.º n.º 1 al d) do CIRE. Significa, então, que na maioria das situações, podem ser instauradas novas execuções contra o insolvente, bem como ações declarativas, pelos credores que pretendam exercer os seus direitos12. Ante tudo o que foi dito, cumpre fazer uma ressalva no que toca à declaração da insolvência com caráter limitado. De facto, o juiz da insolvência pode concluir que o património do devedor não é suficiente para as custas processuais, nem sequer para as suas próprias dívidas, e caso disponha de elementos justificativos da abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente com caráter limitado – art.º 39.º n.º 1 do CIRE. De acordo com o n.º 7 daquele preceito, não sendo requerido o complemento da sentença (nos termos do n.º 2 al a) e com os requisitos do n.º 3): “O Devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste código.” Em suma, entre os efeitos que não se aplicam, estão os previstos no art.º 88.º do CIRE, pelo que, neste caso, as execuções prosseguirão os seus termos 4) Efeitos sobre as convenções arbitrais Uma vez mais, o legislador quis salvaguardar possíveis ataques ao património do devedor, consagrando, assim, no art.º 87.º do CIRE que “fica suspensa a eficácia das convenções arbitrais em que o insolvente seja parte, respeitantes a litígios cujo resultado possa influenciar o valor da massa, sem prejuízo do disposto em tratados 12 Nesse sentido vd Ac da Relação de Lisboa de 12-10-2016 (Maria Celina de Jesus da Nóbrega), in www.dgsi.pt. 147 Ricardo M. Oliveira internacionais aplicáveis” No entanto, e além da limitação da suspensão da convenção arbitral perante o previsto em tratados internacionais aplicáveis, há uma outra exceção. Assim, no n.º 2 do art.º 87.º do CIRE, não há lugar à suspensão se, à data da declaração da insolvência, o processo se encontrar pendente. Nestes casos, o insolvente é substituído pelo Administrador da Insolvência, de acordo com o mencionado no art.º 85.º n.º 3 do CIRE, não ficando o credor, todavia, impedido de reclamar o seu crédito nos termos do disposto no art.º 128.º n.º 3 do CIRE. Como diz Manuel Pereira Barrocas13, na insolvência estamos perante o interesse do devedor (submetido ao processo), dos seus sócios, credores e da economia nacional, não atribuíveis, portanto, a uma entidade privada como o árbitro. Acresce ainda o facto de esta entidade não possuir uma organização capaz de garantir a respetiva tramitação processual. 5) Conclusões A declaração de insolvência não determina automaticamente a apensação, suspensão ou extinção das ações declarativas. No entanto, sempre que estamos perante processos que apreciem questões relativas aos bens da massa insolvente, cujo valor dessa massa possa ser influenciado, o Administrador da Insolvência, fundamentando a conveniência para os fins processuais, pode requerer a sua apensação. O prosseguimento da ação declarativa não é incompatível com o princípio de igualdade dos credores – “par conditio creditorum”, tratando de forma diferente, o que é diferente. A declaração de insolvência determina a suspensão e extinção das ações executivas propostas contra o devedor insolvente, por beliscar o património integrado da massa insolvente, e por o processo de insolvência ser, naturalmente, uma execução universal. O desvio à regra geral é, como já vimos, a não conferência dos efeitos gerais e normais da insolvência, nos termos e limites conferidos no art.º 39.º do CIRE. Um pouco, e porque este processo alternativo de composição e resolução de litígios é declarativo, bebe da ratio prevista para as ações declarativas tradicionais, suspendendo-se quando o insolvente seja parte, respeitantes a litígios cujo resultado possa influenciar o valor da massa, sem prejuízo do disposto em tratados internacionais aplicáveis, todavia, prosseguem os processos pendentes à data da declaração de insolvência. E bem se percebe, dado o apanágio da Lei da Arbitragem Voluntária em evitar manobras dilatórias. 13 Pereira Barrocas, M., (2011) Manual de Arbitragem, 2.ª Edição, 2011, p. 380, Coimbra, Almedina. 148 Breves notas sobre a insolvência e os seus efeitos nas... REFERÊNCIAS Código de Processo Civil português. Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas português. AA.VV., (2016), O processo da insolvência Volume II, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários. Dionísio Oliveira, A., (2009) Efeitos externos da insolvência. As ações pendentes contra o insolvente, Julgar. Leitão Cordeiro, M., (2005) Introdução ao Direito da Insolvência, in “O Direito”, 137, III. Neto, A. (2015), Novo Código de Processo Civil Anotado, 3.ª Edição, Lisboa, Ediforum. Pereira de Almeida, A., Efeitos do processo de insolvência nas ações declarativas, in Revista de Direito Comercial, 17-05-2017. Pereira Barrocas, M. (2011), Manual de Arbitragem, 2.ª Edição, Coimbra, Almedina. Rosário Epifânio, M., (2016) Manual de Direito da Insolvência, 6.ª Edição, Coimbra, Almedina. 149 A RELAÇÃO ENTRE A RENDA BÁSICA DE CIDADANIA E OS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL Thiago Santos Rocha1 1) Introdução Nos termos da Lei Federal n. 10.835/2004, todo cidadão brasileiro residente no país, assim como os estrangeiros residentes no Brasil há pelo menos cinco anos, possuem o direito à Renda Básica de Cidadania (RBC), segundo o qual o indivíduo, independente de sua condição socioeconômica, pode receber da União um benefício monetário, de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde. Ocorre que, até a data de conclusão do presente estudo, tal Lei se encontra pendente de regulamentação por parte do Poder Executivo, o que implica a não implementação do direito à RBC. Assim, análises jurídicas sobre a natureza das previsões da Lei n. 10.835/2004 são necessárias para se ter clareza de quais os caminhos são cabíveis para a busca da efetividade de seus preceitos. O presente estudo visa analisar, sob a perspectiva da efetividade das normas constitucionais, se e em que medida, há relação do direito à RBC, instituído pela Lei Federal n. 10.835/2004, com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no artigo 3º da Constituição de 1988 (CR/88), em especial o de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (inciso III). Na análise da literatura sobre o tema, adotou-se o método dedutivo de abordagem, considerando o caráter normativo dos objetivos fundamentais constitucionais, as peculiaridades dos elementos que compõem o inciso III do artigo 3º da CR/88, os fundamentos jurídicos da RBC e a importância do respeito ao princípio da eficiência (artigo 37, caput) pelas políticas públicas que busquem cumprir os objetivos constitucionais fundamentais. 2) O direito à Renda Básica de Cidadania – Lei n. 10.835/2004 O artigo 1º da Lei n. 10.835/2004, consensualmente aprovada pelas duas casas do Congresso Nacional e indissociavelmente ligada ao árduo trabalho do então Senador Doutorando em Direito pela Universidade de Oviedo, linha de investigação “Os novos desafios do Direito em uma sociedade em transformação”. E-mail: tsrocha@gmail.com. 1 Thiago Santos Rocha Eduardo Suplicy, dispõe que: Art. 1º É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. Para se compreender as demais características assumidas pela RBC no ordenamento jurídico brasileiro, é também importante considerar o disposto nos §2º e §3º do referido artigo, segundo os quais: § 2º O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias. § 3º O pagamento deste benefício poderá ser feito em parcelas iguais e mensais. § 4º O benefício monetário previsto no caput deste artigo será considerado como renda não-tributável para fins de incidência do Imposto sobre a Renda de Pessoas Físicas. Ao mesmo tempo que consagra o direito à RBC, expressamente fixando prazo para início de implementação no exercício de 2005, o texto legal atribui ao Poder Executivo a regulamentação de determinados aspectos, tais como as etapas de implementação, o valor do benefício, a consignação dos valores no Orçamento-Geral da União para 2005 e as demais medidas necessárias para a execução do Programa. Eis a opção adotada pela Lei: Art. 1º (...) §1º A abrangência mencionada no caput deste artigo deverá ser alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população. Art. 2º Caberá ao Poder Executivo definir o valor do benefício, em estrita observância ao disposto nos arts. 16 e 17 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 - Lei de Responsabilidade Fiscal. Art. 3º O Poder Executivo consignará, no Orçamento-Geral da União para o exercício financeiro de 2005, dotação orçamentária suficiente para implementar a primeira etapa do projeto, observado o disposto no art. 2º desta Lei. Art. 4º A partir do exercício financeiro de 2005, os projetos de lei relativos aos planos plurianuais e às diretrizes orçamentárias deverão especificar os cancelamentos e as transferências de despesas, bem como outras medidas julgadas necessárias à execução do Programa. À data de conclusão do presente estudo, já se contam quase 14 anos em que a Lei n. 10.835/2004 fora publicada sem que o Poder Executivo a tenha regulamentado, ou mesmo designado grupo de trabalho para analisar os detalhes de sua implementação. Da mesma forma, não fora o Poder Judiciário instado a manifestar-se acerca de tal omissão. Perante um cenário social marcado pelo agravamento da pobreza e da concentração de riquezas, como se detalhará no próximo tópico deste trabalho, é 152 A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais... intelectualmente honesto analisar os atributos jurídicos que caracterizam a RBC no Brasil. Ou seja, faz-se necessário buscar melhor compreensão do funcionamento jurídico de um Estado que, ao mesmo tempo que verifica o aumento das mazelas causadas pela pobreza e pela desigualdade de sua população, permanece inerte perante o seu dever legal de regulamentar e implementar um direito concebido justamente como medida redistributiva de combate e, sobretudo, prevenção à pobreza. A RBC, considerada a perspectiva do Estado, trata-se de um programa de políticas públicas, posto que envolve conjunto de atos e fatos jurídicos, quais sejam, normas jurídicas abstratas, atos administrativos, habilitação orçamentária e fatos administrativos, cuja finalidade é a concretização de objetivos estatais pela Administração Pública.2 Tendo por referência o beneficiário, expressamente determinado como todo e qualquer cidadão brasileiro residente no país ou estrangeiro residente no Brasil há pelo menos 05 anos, o texto legal sobre a RBC permite identificar um direito subjetivo. A norma expressa na Lei 10.835/2004 caracteriza uma situação jurídica na qual o titular possui direito a determinado ato face ao destinatário, constituindo-se a relação trilateral entre o titular (beneficiário), o destinatário (União) e o objeto do direito (RBC). No que se refere ao objeto do direito, tem-se que a RBC compõe-se tanto de prestação normativa quanto de prestação material. Isto porque o primeiro dever que a Lei n. 10.835/2004 impõe à União é o de regulamentar as normas que se extraem de seus próprios dispositivos, de modo que, sem ferir o conteúdo do direito, tal qual delimitado pela própria Lei e pelos dispositivos constitucionalmente envolvidos, viabilize a sua implementação. O segundo dever é o de prestação material, ou seja, o pagamento do benefício aos beneficiários, a partir das especificações a serem publicadas pela regulamentação. Assim, claro está que há no ordenamento jurídico um direito subjetivo à RBC. Mais do que isto, a análise a partir da cláusula de abertura material prevista no § 2º do artigo 5º da Constituição da República de 1988 (CR/88), conjugada com os princípios da dignidade da pessoa humana e da cidadania, estabelecidos como fundamentos do Estado Brasileiro pelo artigo 1º da CR/88, permite afirmar que o instituto sob análise se trata de direito fundamental implícito.3 A exposição até agora feita é de suma importância para se ter tela que, ao menos no Brasil, a discussão em torno da RBC não se dá apenas no campo das ideias préjurídicas, mas sim como elemento do ordenamento jurídico positivo, com estreita relação com os alicerces da CR/88. É a partir destas considerações que ocorre a análise, nos próximos tópicos, da relevância jurídica dos objetivos fundamentais estabelecidos pela 2 Para fins deste trabalho, adota-se a conceituação de políticas públicas exposta por FONTE, Felipe de Melo, Políticas públicas e direitos fundamentais, 2a. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 57. 3 Para melhor desenvolvimento desta ideia, cf. ROCHA, Thiago Santos, Renda Básica de Cidadania: a não regulamentação da Lei n. 10.835/2004 sob a perspectiva do controle de constitucionalidade, in: I Congresso Ibero-Americano de Intervenção Social - Cidadania e Direitos Humanos, Carviçais: Lema D’Origem, 2017, v. 1, p. 105–107. 153 Thiago Santos Rocha CR/88, bem como a sua relação jurídica com o direito à RBC. 3) A relevância jurídica dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil Quando um estudo jurídico científico se propõe a analisar os objetivos fundamentais de determinado Estado, não se trata elaborar prospecções ou ilações a partir de correntes dogmáticas ou opções políticas discricionárias. Assim, o fio condutor do presente trabalho é o pacto social firmado pela sociedade ao elaborar a CR/88, na condição não apenas de ápice, mas de centro de irradiação de direitos fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.4 Expressamente, o artigo 3º da CR/88 trata dos objetivos fundamentais a serem perseguidos pelo Estado Brasileiro. Eis o texto: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda que, em última análise, seja plenamente factível afirmar a relação do direito à RBC com cada um dos objetivos fundamentais expressamente previstos na CR/88, o presente estudo se concentrará naquele que apresenta relação mais próxima com referido direito, qual seja, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução de desigualdades sociais e regionais. Há que se atentar para os verbos utilizados na redação o inciso III. A segunda parte trata da redução das desigualdades sociais e regionais, de modo que não se trata de igualar as riquezas das regiões e dos indivíduos, mas sim reduzi-las a níveis aceitáveis para a formação de uma sociedade que, nos termos do inciso I, seja pautada pela solidariedade e formada por indivíduos autônomos. Como bem aponta John Rawls, quando as desigualdades de riqueza excedem certo limite, colocam-se em perigo as instituições que asseguram possibilidades iguais de educação e cultura para pessoas com motivações idênticas, a liberdade política tende a perder o seu valor e o governo passa a ser apenas aparentemente representativo.5 Já a primeira parte do inciso III trata de erradicar a pobreza e a marginalização, Olsen defende que, no sistema imposto pela CR/88, a Constituição não mais é o vértice da pirâmide normativa, tal como concebida por Kelsen, mas sim o centro de irradiação do sistema jurídico, cf. OLSEN, Ana Carolina Lopes, Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade Frente à Reserva do Possível, 1. ed. Curitiba: Juruá, 2012, p. 176. 5 RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Presença, 1993, p. 223. 4 154 A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais... ou seja, livrar a sociedade de tais mazelas. Não se trata de reduzir os indicadores de pobreza e marginalização, mas sim erradica-los. Ademais, é importante ressaltar que, diferente dos princípios fundamentais da República, que compõem o alicerce de onde irradiam os valores fundantes do Estado Democrático de Direito Brasileiro, os objetivos fundamentais são como uma seta a apontar para onde deve se direcionar toda a estrutura da Administração Pública. Dessa maneira, qualquer orientação do Estado que priorize metas que, por mais louváveis que sejam, apresentem-se contrárias à consecução dos objetivos constitucionalmente definidos como fundamentais, ou mesmo se apresentem ineficientes para atingi-los, devem ter sua constitucionalidade questionada. Por sua força normativa, os objetivos fundamentais estão presentes nas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), como parâmetro para aferir a constitucionalidade de medidas infraconstitucionais. A título de exemplificação, cite-se: O art. 7º da Lei 6.194/1974, na redação que lhe deu o art. 1º da Lei 8.441/1992, ao ampliar as hipóteses de responsabilidade civil objetiva, em tema de acidentes de trânsito nas vias terrestres, causados por veículo automotor, não parece transgredir os princípios constitucionais que vedam a prática de confisco, protegem o direito de propriedade e asseguram o livre exercício da atividade econômica. A Constituição da República, ao fixar as diretrizes que regem a atividade econômica e que tutelam o direito de propriedade, proclama, como valores fundamentais a serem respeitados, a supremacia do interesse público, os ditames da justiça social, a redução das desigualdades sociais, dando especial ênfase, dentro dessa perspectiva, ao princípio da solidariedade, cuja realização parece haver sido implementada pelo Congresso Nacional ao editar o art. 1º da Lei 8.441/1992. (ADI 1.003 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-81994, P, DJ de 10-9-1999.) 4) A Renda Básica de Cidadania como meio eficiente para atingir os objetivos fundamentais Conforme estabelece o caput do artigo 37 da CR/88, a Administração Pública deve ser eficiente ao realizar as suas opções. Em se tratando de objetivos fundamentais constitucionalmente estabelecidos, dentre o leque de opções possíveis, cabe ao Estado o dever-poder de eleger aquela que se mostre hábil para consecução do expressamente enumerado no artigo 3º da CR/88, mormente quando se verifique conflito com outros valores e interesses. Sem entrar nos pormenores relativos às políticas públicas adotadas, nem à coloração política dos partidos governantes desde a redemocratização do Brasil, claro está que, em quase 30 anos de vigência da CR/88, não se pode afirmar que foram logrados os objetivos que justificam o pacto social em torno da Constituição, sobremaneira o disposto no inciso III do artigo 3º. 155 Thiago Santos Rocha Muito embora se possam apontar dois períodos de redução da pobreza e da extrema pobreza, um em 1995, atribuído à estabilização da moeda, e outro de 2003 a 2014, em grande parte devido à política de desenvolvimento com inclusão por meio de programas e ações focados em setores sociais mais vulneráveis, fato é que a pobreza encontra-se longe de ser erradicada do Brasil.6 Muito pelo contrário, como apontam recentes dados, mesmo com alta do Produto Interno Bruto (PIB) e baixa da inflação, a pobreza extrema aumentou 11,2% em 2017, atingindo 14,83 milhões de seres humanos, o que significa 7,2% da população brasileira vivendo com até R$ 136 mensais,7 o que equivale US$ 1,90 por dia, ajustados pela paridade do poder de compra, de acordo com critério internacionalmente adotado pelo Banco Mundial como linha de pobreza extrema.8 Se analisado o objetivo constitucional de redução das desigualdades sociais e regionais, os dados também não são animadores. Isto porque, do total da população em situação de extrema pobreza, 55% está na região Nordeste e 75% são negros ou pardos,9 números que não guardam relação proporcional direta com o que representa tais segmentos em relação ao total da população brasileira. Conforme demonstra o banco de dados World Inequality Database (WID), em 2015, os indivíduos que compunham o 1% mais rico da população brasileira detinham 28,3% da renda nacional. Destaque-se que a média mundial de renda do 1% mais rico, para o mesmo período, era de 20,6%. Isto atribui ao Brasil a característica de país com maior concentração de renda do mundo, de acordo com os dados colhidos por tal banco de dados que, dentre seus coordenadores, conta com o economista francês Thomas Piketty.10 Já estudo da OXFAM demonstra que, em 2017, o patrimônio dos bilionários brasileiros cresceu 13%, ao passo que, no mesmo período, os 50% mais pobres do país tiveram sua participação reduzida de 2,7% para 2,0% do total da renda nacional. O resultado disto é que, ao final de 2017, os cinco homens mais ricos do Brasil detinham o 6 Cf. MENEZES, Francisco; JANNUZZI, Paulo, Teoria e Debate | Com o aumento da extrema pobreza, Brasil retrocede dez anos em dois. 7 Dados obtidos por levantamento da LCA Consultores, a partir de números divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, relativos à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua). Cf. ROVAROTO, Isabela, Quem são e onde estão os brasileiros que vivem na pobreza extrema?, EXAME, disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/quemsao-e-onde-estao-os-brasileiros-que-vivem-na-pobreza-extrema/>, acesso em: 21 jul. 2018. 8 A nova classificação adotada pelo Banco Mundial, a partir de outubro de 2017, não mais analisa todos os países a partir da mesma linha de pobreza, de US$ 1,90 por dia, mas estabelece três linhas diferentes (US$ 1,90, US$ 3,20 e US$ 5,50), de acordo com a renda média do país. De acordo com esta nova classificação, a linha de pobreza adequada para análise no Brasil seria a de US$ 5,50. Cf. THE WORLD BANK, Country Poverty Brief - Brazil, Poverty & Equity Data Portal, disponível em: <http://databank.worldbank.org/data/Views/Reports/ReportWidgetCustom.aspx?Report_Name=pov_co u_1_2017&Id=c028ff64&wd=430&ht=390&tb=y&dd=n&pr=n&export=y&xlbl=y&ylbl=y&legend=y&ispo rtal=y&inf=n&exptypes=Excel&country=BRA&series=SI.POV.UMIC,SI.POV.UMIC.NO>, acesso em: 9 nov. 2017. 9 Cf. ROVAROTO, Quem são e onde estão os brasileiros que vivem na pobreza extrema? 10 Cf. WID.WORLD, WID – World Inequality Database, WID - World Inequality Database, disponível em: <https://wid.world>, acesso em: 21 jul. 2018. 156 A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais... mesmo patrimônio que a metade mais pobre da população.11 Mesmo rápida análise dos dados expostos permite verificar que, quaisquer que sejam suas motivações e os governos que as tenham capitaneado, as políticas públicas adotadas pelo Estado não foram eficientes para alcançar os objetivos constitucionalmente fixados. Mesmo a melhora em indicadores macroeconômicos observada em determinados momentos não se apresentou suficiente para erradicar a pobreza, e nem sequer a pobreza extrema. Por mais louváveis que sejam os resultados de políticas de transferência de renda condicionadas, tais como o Programa Bolsa Família (PBF), há de se reconhecer que não se demonstraram suficientes para atingir os objetivos constitucionais. Conforme previsto no Decreto n. 8.794/2016, é de R$ 85 o benefício básico mensal destinado a unidades familiares que apresentem renda familiar per capita de até R$ 85, sendo esta considerada a linha de extrema pobreza pelo Governo Federal segundo o mesmo Decreto. Isso significa que a renda auferida por pessoas que sobrevivem apenas com o PBF não chega aos R$ 136 mensais por membro da família, referência da linha de extrema pobreza conforme critério, acima exposto, adotado pelo Banco Mundial. Em uma estrutura de inserção social que tenha o emprego como seu principal eixo, mesmo melhoras em determinados índices macroeconômicos, como PIB, não significam que, necessariamente, houve mudanças positivas nas condições de vida daqueles indivíduos mais pobres. Isto porque o aumento no PIB pode não alcançar aqueles que estão fora do mercado de trabalho formal. Ademais, mesmo entre os que se encontram inseridos no mercado de trabalho formal, observam-se fenômenos como o precariado, grupo de trabalhadores com relações laborais instáveis e inseguras,12 e os trabalhadores pobres, que não conseguem romper a linha de pobreza mesmo com a remuneração de sua atividade formal. Tais condições são agravadas com as consequências das “flexibilizações” introduzidas pela reforma trabalhista (Lei n. 13.429/2017 e Lei n. 13.467/2017) no ordenamento jurídico brasileiro. Como demonstram os dados publicados pelo IBGE a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD Contínua), o número da população residente que possuía rendimento de trabalho baixou de 42,4%, em 2016, para 41,9% em 2017. Ademais, a renda média dos trabalhadores que estão entre os 5% mais pobres caiu de R$ 76, em 2016, para R$ 47, em 2017.13 É neste contexto que a RBC se apresenta como política pública alternativa às adotadas até então pelo Estado Brasileiro e potencialmente eficiente para a consecução dos objetivos constitucionais. Isto porque, em termos gerais, a RBC refere-se a um pagamento periódico em moeda corrente, em valor igual para todos, a título individual, 11 Cf. OXFAM BRASIL, Recompensem o trabalho, não a riqueza, Oxfam Brasil, disponível em: <https://www.oxfam.org.br/assim-nao-davos>, acesso em: 26 jun. 2017. 12 Para melhor compreensão da ideia de precariado, cf. STANDING, Guy, The precariat: the new dangerous class, London, UK ; New York, NY: Bloomsbury, 2014. 13 IBGE, Rendimento de todas as fontes 2017, Rio de Janeiro: IBGE, 2018, p. 6. 157 Thiago Santos Rocha sem exigência de comprovação de insuficiência de recursos ou cumprimento de quaisquer requisitos vinculados ao trabalho.14 Tal conceito expõe cinco importantes características da RBC: a) regularidade, e não um pagamento único em determinado momento da vida; b) em moeda corrente, e não pela entrega de bens ou prestação de serviços; c) individual, e não em bases de estruturas coletivas, tais como a família, o lar ou a unidade econômica; d) universal, a todos os indivíduos independente de sua condição socioeconômica; e e) incondicional, uma vez que não se exige daquele que a recebe que trabalhe ou comprove a busca de trabalho. A clareza destas características permite diferenciar a RBC de sistemas de rendas mínimas ou demais rendas condicionadas, tais como os benefícios do PBF. Mesmo que coincidam nas características “a” e “b” acima descritas, diferenciam-se em relação aos requisitos “c”, “d” e “e”. Ou seja, as rendas condicionadas, em regra, são concedidas em base coletiva (unidade familiar, ou outra), e não a título individual, em caráter seletivo, mediante a comprovação de insuficiência de recursos por meios próprios, e condicionadas a que os beneficiários assumam compromissos de busca de inserção no mercado laboral, de critérios de educação e/ou utilização do valor recebido exclusivamente em bens alimentícios. As características da RBC, especialmente seu caráter universal, fazem com que seja, antes de uma medida de combate à pobreza, uma ferramenta previne a ocorrência de tal mazela. Como bem expõem Arcarons, Torrens e Raventós, a fixação de uma renda básica universal em valor pelo menos igual ao da linha de pobreza tem como resultado imediato, já no primeiro dia de sua implementação, a erradicação da pobreza, tal qual medida pela quantidade de ingressos.15 Além disso, se o financiamento da RBC se der por meio de medidas fiscais que prezem pelos aspectos redistributivo e progressivo, o resultado não será outro senão uma distribuição menos desigual das riquezas produzidas na sociedade brasileira. Por óbvio que, para que seja viável, o projeto de financiamento da RBC deve ser socialmente discutido e considerar as peculiaridades da estrutura socioeconômica brasileira.16 Não obstante, de plano já se podem rechaçar propostas como a simples eliminação dos benefícios pecuniários existentes e distribuição igualitária a toda sociedade, a título de RBC, dos valores economizados com esta medida. Embora tal forma de financiamento possa gerar resultados redistributivos, eles não seriam progressivos e nem suficientes para a eliminação da pobreza.17 14 VAN PARIJS, Philippe; VANDERBORGHT, Yannick, Basic Income: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy, London: Harvard University Press, 2017, p. 1. 15 ARCARONS, Jordi; TORRENS, Lluís; RAVENTÓS, Daniel, Renta básica incondicional: una propuesta de financiación racional y justa, Barcelona: Ediciones del Serbal, 2017, p. 162. 16 Frise-se que os indicadores sociais, de pobreza e distribuição de renda no Brasil possuem intrínseca relação histórica com as estruturas econômicas. Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César, Concentração, estruturas e desigualdade. As origens coloniais da pobreza e da má-distribuição de renda, São Paulo: IDCID, 2008, p. 69–77. 17 Embora trate especificamente do cenário espanhol, interessante o estudo nesse sentido apresentado por BADENES PLÁ, Nuria; GAMBAU-SUELVES, Borja; NAVAS ROMÁN, María, Efectos 158 A relação entre a renda básica de cidadania e os objetivos fundamentais... 5) Considerações finais O estudo aponta que o direito à RBC, vigente no ordenamento jurídico brasileiro, mas pendente de regulamentação pelo Poder Executivo, possui intrínseca relação com os objetivos fundamentais de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais no Estado brasileiro. A regulamentação, e a consequente implementação, de tal direito em valores suficientes para colocar o indivíduo acima da linha de pobreza, seria forte ferramenta para eliminar a pobreza financeira. Ademais, a autonomia individual assegurada pela rede de proteção criada pela Renda Básica de Cidadania jogaria em favor da inclusão e contra a marginalização social. O caráter universal da RBC, uma vez que todos os cidadãos brasileiros receberiam igual valor, seria medida redistributiva de riquezas com vistas à redução das desigualdades sociais, notadamente se acompanhada de alterações na estrutura fiscal que aprofundem seu caráter progressivo. Tais características se posicionam em sentido que permite apontar a eficiência da RBC na consecução dos objetivos fundamentais, em aspecto notadamente mais favorável quando comparada às vigentes políticas de rendas condicionadas. REFERÊNCIAS ARCARONS, Jordi; TORRENS, Lluís; RAVENTÓS, Daniel. Renta básica incondicional: una propuesta de financiación racional y justa. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2017. BADENES PLÁ, Nuria; GAMBAU-SUELVES, Borja; NAVAS ROMÁN, María. Efectos redistributivos de la sustitución de prestaciones monetarias por Renta Básica Universal en España. Papeles de Trabajo. Instituto de Estudios Fiscales, v. 2/2018, p. 38, 2018. FONTE, Felipe de Melo. Políticas públicas e direitos fundamentais. 2a. São Paulo: Saraiva, 2015. IBGE. Rendimento de todas as fontes 2017. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua). MENEZES, Francisco; JANNUZZI, Paulo. Teoria e Debate | Com o aumento da extrema pobreza, Brasil retrocede dez anos em dois. Disponível em: <https://teoriaedebate.org.br/2018/03/07/com-o-aumento-da-extremapobreza-brasil-retrocede-dez-anos-em-dois/>. Acesso em: 21 jul. 2018. redistributivos de la sustitución de prestaciones monetarias por Renta Básica Universal en España, Papeles de Trabajo. Instituto de Estudios Fiscales, v. 2/2018, p. 38, 2018, p. 16. 159 Thiago Santos Rocha OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos Fundamentais Sociais. Efetividade Frente à Reserva do Possível. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2012. OXFAM BRASIL. Recompensem o trabalho, não a riqueza. Oxfam Brasil. Disponível em: <https://www.oxfam.org.br/assim-nao-davos>. Acesso em: 26 jun. 2017. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Carlos Pinto Correia. Lisboa: Presença, 1993. ROCHA, Thiago Santos. Renda Básica de Cidadania: a não regulamentação da Lei n. 10.835/2004 sob a perspectiva do controle de constitucionalidade. In: I Congresso Ibero-Americano de Intervenção Social - Cidadania e Direitos Humanos. Carviçais: Lema D’Origem, 2017, v. 1, p. 103–115. ROVAROTO, Isabela. Quem são e onde estão os brasileiros que vivem na pobreza extrema? EXAME. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/quem-sao-e-onde-estao-os-brasileirosque-vivem-na-pobreza-extrema/>. Acesso em: 21 jul. 2018. SALOMÃO FILHO, Calixto; FERRÃO, Brisa Lopes de Mello; RIBEIRO, Ivan César. Concentração, estruturas e desigualdade. As origens coloniais da pobreza e da má-distribuição de renda. São Paulo: IDCID, 2008. STANDING, Guy. 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Acesso em: 21 jul. 2018. 160 ACORDOS PARASSOCIAIS: INSTRUMENTOS DE GOVERNANÇA E INOVAÇÃO NO SEU CONFRONTO COM OS ESTATUTOS Rita Guimarães Fialho d’ Almeida1 1) Introdução Numa primeira aproximação ao conceito, os acordos parassociais são negócios jurídicos celebrados anteriormente ao acto constitutivo da sociedade, ou no seu seio, entre todos ou alguns sócios nessa mesma qualidade, o que equivale por dizer que os efeitos pretendidos por tais acordos se hão-de repercutir na dinâmica da sociedade em que se integram. E, se assim é, a parassocialidade apenas pode captar-se na plenitude do seu relevo jurídico se integrada no âmbito societário, atendendo a que os acordos parassociais pressupõem a existência actual ou futura de um contrato de sociedade e apresentam, em determinadas situações, conexões particulares com o último. Com a celebração de acordos parassociais alcançamos uma composição de interesses que pode ser meramente complementar às determinações da lei ou do contrato de sociedade. Como logo se vê, o sistema delimitado por aquelas não compreende, de modo exaustivo, todas as configurações relativas à vida e às relações sociais, impossíveis de antecipar, razão pela qual os acordos parassociais aparecem, não raras vezes, como sucedâneos dos normais instrumentos decisórios, aludindo-se, a propósito, à sua função complementadora face aos elementos estatutários. Neste contexto, a interrogação impõe-se: afinal de contas, como equacionar o problema da contraposição entre a socialidade e a parassocialidade ou, por outras palavras, o problema da contraposição entre o contrato de sociedade e os acordos parassociais? 2) Previsão em contrato de sociedade e/ou acordos parassociais? Um “mar” de possibilidades… Embora os acordos parassociais não estejam subtraídos à disciplina societária, não se pode afirmar que a aplicação do ordenamento societário tenha para aqueles as mesmas consequências previstas para as cláusulas estatutárias. Dito doutro modo, os acordos parassociais não podem ser valorados pelo mesmo critério do contrato de sociedade, já que os seus efeitos são diferentes e incidem em plano distinto do das normas societárias. 1 Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Assistente Convidada na Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria Rita Guimarães Fialho d’ Almeida Negócios existem que podem ser validamente concretizados por via parassocial, mas não licitamente por via estatutária, assim como há resultados negociais cuja realização é impedida pelo ordenamento societário e cuja relevância jurídica também não é susceptível de ser alcançada por via da celebração de acordos parassociais. Pode também suceder, e estes serão os casos mais frequentes, que a regulamentação negocial tanto possa ser introduzida por via estatutária como por via parassocial. Nestes casos, a opção pela segunda via é apenas sugerida por factores circunstanciais, como sejam o da maior facilidade procedimental de modificação ou revogação do acordo parassocial, ou a circunstância de este se destinar a reger apenas as relações entre parte dos sócios. 3) Limitações derivadas do contrato de sociedade? Cumpre agora saber se o conteúdo do contrato de sociedade pode ou não funcionar como limite à configuração dos acordos parassociais que, sem violar qualquer norma injuntiva, se afigurem contrários ao que ali esteja estipulado. Repare-se, desde logo, no seguinte: estando em causa duas obrigações de origem contratual, a consequência da contrariedade da vinculação parassocial em relação a cláusulas do pacto social não poderá ser a da nulidade, em razão de não estar em causa um problema que deva ser perspectivado no plano da invalidade. a) A ideia de subordinação normativa das regras parassociais às regras sociais Parte da doutrina tem entendido que o sócio deverá cumprir a obrigação emergente do pacto social, com base numa ideia de subordinação normativa das regras parassociais às regras sociais, resultante, por seu turno, da constatação de as vinculações parassocietária e societária não serem independentes uma da outra, existindo entre ambas uma conexão traduzida na circunstância de a dimensão parassocial estar funcionalmente ligada à dimensão social. Nesse sentido, e partindo da ideia de unilateralidade da coligação entre o contrato de sociedade e o contrato parassocial, M. LEITE SANTOS (1996, pp. 61 e 215) sustenta existir uma situação concreta de inexigibilidade da prestação. Quanto a nós, e salvo o devido respeito por opinião diversa, a categoria da inexigibilidade não se encontra, de per si, satisfatoriamente elaborada para constituir cabal auxílio na boa compreensão da problemática em análise. Por seu turno, M.ª GRAÇA TRIGO (2008, pp. 177-178; 2011, pp. 188-191) começa por assinalar que um entendimento possível seria o de considerar as duas vinculações de natureza contratual como inteiramente autónomas, tal como quaisquer outros casos de 162 Acordos parassociais: instrumentos de governança e... incompatibilidade entre compromissos contratuais assumidos por uma mesma pessoa, caso em que o devedor escolheria a prestação a cumprir, submetendo-se depois às consequências do incumprimento da obrigação por satisfazer. Mas logo se refere à circunstância de as vinculações parassocietária e societária não serem independentes uma da outra, existindo entre ambas uma “conexão natural que se traduz no facto de a especificidade da dimensão parassocial consistir precisamente na ligação com a dimensão social” (2011, p. 189) e embora recuse – e bem – aplicar analogicamente o art. 58.º, n.º 1, alínea a), do CSC, às situações de conflito entre as cláusulas do contrato de sociedade e as do contrato parassocial, com o argumento de a sanção aí prevista se dirigir concretamente aos casos de violação de regras estatutárias por deliberações dos sócios, a Autora extrai desta norma uma ideia geral de subordinação normativa das regras parassociais às regras sociais para concluir no sentido da prevalência das regras do contrato de sociedade sobre as do acordo parassocial em caso de conflito entre umas e outras (2011, p. 189). Na sua perspectiva, a problemática pode ser posicionada no âmbito da designada “colisão de deveres”, por vezes invocada como causa justificativa, a qual se refere à circunstância em que impendem sobre a mesma pessoa diversos deveres, que não suportam a realização, pelo menos absoluta, das respectivas condutas. Em regra, o critério para determinar qual o dever, cujo cumprimento justifica a inexecução do outro, é o do seu valor ou importância relativa, o qual se afere pelo valor do bem ou interesse que através daquele dever se prossegue, orientação que, aliás, se pode colher dos lugares paralelos do regime da colisão de direitos (art. 335, n.º 2, do CCiv.), da acção directa (art. 336.º, n.º 1, do CCiv.), da legítima defesa (art. 337.º do CCiv.) e do estado de necessidade (art. 339.º, n.º 1, do CCiv.). Partindo da premissa exposta, M.ª GRAÇA TRIGO (2011) pronuncia-se do modo que segue: Ora, é precisamente por a importância do bem ou interesse protegido pelo ordenamento estatutário ser superior à do bem ou interesse tutelado pela vinculação parassocial, que entendemos que esta última se deve sujeitar à vinculação social; e, por isso, se atribui relevância às cláusulas estatutárias para efeito de limitação do conteúdo das vinculações de voto (p. 190). Assim sendo, o sócio vinculado a obrigações conflituantes, deverá, no seu entendimento, respeitar a vinculação societária, invocando essa colisão como causa justificativa do incumprimento da vinculação parassocial, caso não seja, ele próprio, responsável pelo conflito (ou seja, se a vinculação parassocial não tiver logo surgido em contrariedade à vinculação societária) (2011, p. 190). Pelo contrário, diz-nos a mesma Autora (2011, p. 191), havendo culpa do sócio no aparecimento do conflito, existe, também aí, uma colisão de deveres, a qual, porém, não constitui causa justificativa para o incumprimento de um desses deveres. Neste caso, o devedor deverá cumprir, de idêntico modo, o dever mais forte, qual seja o da vinculação 163 Rita Guimarães Fialho d’ Almeida societária, mas será obrigado a indemnizar o credor da vinculação parassocial pelos prejuízos que sofra em razão daquele incumprimento. Se o devedor optar por cumprir o dever de menor importância, violando com isso o dever superior, então, acrescenta ainda a Autora (2011, p. 191), independentemente da sua culpa na existência do conflito, o credor poderá, caso a prestação correspondente ao dever principal seja ainda possível, intentar a acção de cumprimento, com sacrifício para a realização do dever mais fraco. Porém, terá de ressalvar-se a hipótese de, em relação ao dever de menor importância, existir sentença condenatória transitada em julgado, por ser aí de concluir pela impossibilidade jurídica de realização da prestação objecto do dever de maior importância. Finalmente, P. CÂMARA (1996) começa por assinalar que o problema se coloca apenas em relação às cláusulas materialmente estatutárias, por a oposição com as cláusulas formalmente estatutárias se solucionar mediante a aplicação das regras de direito contratual para, num segundo momento, concluir no sentido da invalidade do acordo parassocial que tenha por objecto a derrogação de uma estipulação estatutária (alteração contra contractus) e pela validade daquele que se limite a preencher ou a desenvolver um aspecto não regulado no contrato de sociedade (praeter contractus) (p. 261 e ss. e p. 463). b) Posição adoptada Na nossa opinião, recorde-se, o problema não deverá ser perspectivado no plano da invalidade. Porém, e em sentido contrário à posição adoptada pelos autores acima mencionados, entendemos não existir uma situação de desconformidade com um acto jurídico hierarquicamente superior, ressalvados naturalmente os casos em que as cláusulas do contrato de sociedade reproduzam normas injuntivas que sejam igualmente aplicáveis à vinculação parassocial. Assim sendo, em existindo contrariedade entre o conteúdo das cláusulas sociais e das cláusulas parassociais e só uma das obrigações puder ser cumprida, a solução – igualmente preconizada por A. FILIPA LEAL (2009, pp. 171-172) – é a de considerar as duas vinculações de fonte contratual como quaisquer outros casos de incompatibilidade entre compromissos contratuais assumidos pela mesma pessoa. Nestas circunstâncias, o devedor deverá optar pelo cumprimento de uma das estipulações, assumindo as consequências decorrentes do incumprimento da outra, como seja a da sujeição às pretensões ressarcitórias do credor parte num dos contratos. Questão interessante é, aliás, a de se configurar a hipótese como uma declaração tácita de não-cumprimento das vinculações previstas no pacto social por parte do sócio, interveniente em ambos os contratos. Por todo o exposto, rejeita-se a possibilidade de invocação do cumprimento de um dever como causa de justificação que exclui a ilicitude, atendendo a que a parte de 164 Acordos parassociais: instrumentos de governança e... um acordo parassocial se vincula, em princípio, voluntariamente, podendo assim antecipar o aparecimento de obrigações incompatíveis. 4) Cláusulas estatutárias em matéria de celebração de acordos parassociais Vejamos, por fim, algumas das possíveis situações em que o contrato de sociedade dispõe acerca da celebração de acordos parassociais. Uma das hipóteses refere-se às cláusulas permissivas da celebração desse tipo de contratos, as quais, evidentemente, se revelam despiciendas, tendo em conta que a permissão genérica decorre já da lei. Inúteis são também as cláusulas estatutárias que noticiem a inoponibilidade à sociedade, na medida em que a mesma resulta da natureza jurídica do acordo, além de estar prescrita no n.º 1 do art. 17.º do CSC, disposição essa que igualmente arreda cláusulas que pretendessem tornar os acordos parassociais oponíveis à sociedade, admitindo, designadamente, a impugnação de actos da sociedade ou dos sócios para com a sociedade. Outra modalidade será a de cláusulas que imponham a comunicação à sociedade de quaisquer acordos parassociais, as quais são, em regra, de admitir, se atendermos a que pode ser do interesse de todos o conhecimento dos vínculos de voto assumidos por alguns, embora a oponibilidade à sociedade e aos demais sócios dos acordos devidamente comunicados pareça estar, à partida, arredada, diante a norma do art. 17.º, n.º 1, do CSC. Maior atenção justificam as cláusulas proibitivas (ou simplesmente restritivas) de acordos parassociais. Para R. VENTURA (2003), tais cláusulas são lícitas, pois “se todos os accionistas se obrigam a não subscrever tais acordos, nenhuma regra legal é violada” (p. 37). Subscrevendo embora idêntico entendimento, cumpre assinalar que naquelas situações em que, no próprio pacto social, seja introduzida uma cláusula estipulando a nulidade de quaisquer acordos parassociais que possam ser celebrados, estaremos diante uma restrição inadmissível da autonomia privada, enquanto competência – hierarquicamente localizada num plano superior –, restringindo-se o poder de produção de efeitos jurídicos. Em consequência, e como nos ensina A. FILIPA LEAL (2009), Ao contrato social não é, assim, possível, ditar a invalidade dos acordos parassociais, na medida em que a autonomia privada é uma competência para produzir efeitos jurídicos – que permite, entre outros, criar obrigações ou produzir efeitos translativos – e não uma competência para alterar o conteúdo das regras legais – neste caso, o artigo 405.º CC. Uma cláusula com este teor inserida no contrato de sociedade seria, ela própria, nula – não por contrariedade à lei, dado que não existe aqui nenhuma norma directamente violada, mas sim por impossibilidade legal (artigo 280.º, n.º 1 CC) (p. 172). 165 Rita Guimarães Fialho d’ Almeida Diante uma tal constatação, poder-se-á então abrir caminho à discussão acerca da possibilidade de conversão da cláusula nula, observados os requisitos do art. 293.º do CCiv., numa obrigação de non contrahendo, esta sim admitida, enquanto norma de conduta (proibitiva ou impositiva). Note-se ainda que a violação da cláusula que proíba a celebração de acordos parassociais (um pacto de non contrahendo), sem que se comine com o desvalor de nulidade daqueles que sejam celebrados – admissível, como vimos – merece tratamento apenas no plano da responsabilidade contratual, devendo o sócio outorgante indemnizar a sociedade pelos danos a esta causados com tal incumprimento, nos termos gerais. Cumpre agora averiguar da relevância de eventuais cláusulas estatutárias para efeitos de limitação do conteúdo dos acordos de voto, pois, repare-se, a par das regras legais que delimitam o exercício do direito de voto dos sócios, também podem existir no contrato de sociedade cláusulas que disciplinem o mesmo exercício. Pense-se, em particular, naquelas situações em que o contrato de sociedade, que não pode preterir os casos de impedimento de voto legalmente fixados (cf. arts. 251.º, n.º 2, e 384.º, n.º 7), amplie esse leque de casos e um acordo parassocial não respeite esses impedimentos de voto, assim como naquelas outras situações em que, estando em causa uma sociedade anónima, o pacto social adopte um regime de limitação máxima do número de votos por cada accionista [art. 384.º, n.º 2, alínea b)] e seja celebrado um acordo de voto mediante o qual um accionista se vincule a votar no sentido indicado por outro accionista que pessoalmente já atingiu o limite de votos estatutariamente fixado. Quanto a este último aspecto, a doutrina alemã considera, por um lado, não dever admitir-se um acordo de voto mediante o qual um accionista se vincule a votar no sentido indicado por outro accionista que pessoalmente já atingiu o limite de votos estatutariamente fixado; e, por outro lado, em se tratando de um acordo de tipo sindical onde não foi incluída a regra do limite máximo de votos, propugna no sentido de não serem vinculativas aquelas deliberações internas do sindicato para cuja aprovação tenham sido determinantes votos de um accionista que, por ultrapassarem o limite estatutário, não seriam computados na votação das deliberações sociais. No fundo, pretende obstar-se a que, mediante a celebração de um acordo de voto, se transponham as limitações estatutárias e, por essa via, se atribua a um sócio a possibilidade de exercer uma influência indirecta sobre a formação da vontade social na assembleia geral, que lhe estava interditada pelo contrato de sociedade. Ora, a inobservância de impedimentos estatutários de voto ou de limites quantitativos ao mesmo através de vinculações de voto assumidas antes ou depois da previsão desses impedimentos ou limites remete-nos, uma vez mais, para a acareação entre duas obrigações de carácter contratual, concretamente a vinculação social ou societária e a vinculação parassocial ou parassocietária. Em consequência, e em conformidade com o anteriormente explanado, o resultado negativo da infracção de cláusulas estatutárias (que não constituam mera reprodução de regras legais), não poderá ser a nulidade, por então se não confrontarem actos de diferente valor 166 Acordos parassociais: instrumentos de governança e... hierárquico – a lei e o contrato –, mas antes duas obrigações de carácter contratual. Quanto a nós, a solução será a de considerar as duas vinculações de fonte contratual como quaisquer outros casos de incompatibilidade entre compromissos contratuais assumidos pela mesma pessoa, o que implica que o devedor deverá optar pelo cumprimento de uma das estipulações, assumindo as consequências decorrentes do incumprimento da outra, como seja a da sujeição às pretensões ressarcitórias do credor parte num dos contratos. Outra situação usualmente assinalada pela doutrina alemã como desencadeando um limite para as vinculações de voto é a que decorre da sujeição da transmissão das participações sociais ao consentimento da sociedade [participações vinculadas (vinkulierte Anteile)]. Entre nós, este é o regime vigente para a cessão de quotas (art. 228.º, n.º 2, do CSC), podendo ser acolhido quanto à transmissão de acções nominativas [cf. art. 328.º, n.º 2, alínea a), e art. 299.º, n.º 2, alínea b), do CSC]. Neste contexto, será de admitir a existência de um compromisso de voto do alienante diante o adquirente, no sentido de votar favoravelmente a autorização da transmissão quando a mesma seja da competência da assembleia geral (cf. art. 329.º, n.º 1). E pode mesmo entender-se que essa vinculação de voto não carece de expressa inclusão no acordo de transmissão, configurando um dever acessório daí resultante. O problema surge com uma eventual obrigação assumida pelo alienante de, caso recusado o consentimento da sociedade em relação à transmissão, exercer o direito de voto na assembleia segundo as instruções do pretenso adquirente. Entre nós, a questão reveste-se, em princípio, de reduzida importância prática, porquanto à recusa do consentimento se segue, em regra, a amortização da participação social ou a sua aquisição por outra pessoa, ou então a transmissão se torna livre, nos termos do art. 329.º, n.º 3, alínea c), para as acções, e art. 231.º, em relação às quotas de que se seja titular há mais de três anos (cf. n.º 3). Para R. VENTURA (2003), não se vislumbram motivos para invalidar convenções de voto daquele género, por existir nestas situações uma particularidade relevante: “a cessão é válida entre cedente e cessionário, pois a falta de consentimento apenas afecta a eficácia para com a sociedade; o cedente, votando segundo instruções do cessionário, exerce um direito que, nas relações inter partes, já a este pertence” (p. 89). Posição diferente é propugnada pela doutrina alemã, para quem esse tipo de convenções de voto é ineficaz, sob pena de se desviar do propósito da reserva de consentimento, qual seja o da possibilidade de se obstar à entrada de determinadas pessoas na sociedade. Os motivos que presidem à diferença de perspectivas têm de ser procurados na concepção acerca dos efeitos da recusa do consentimento da sociedade sobre o negócio de transmissão. Enquanto a doutrina germânica propende, na sua maioria, a acolher a tese da ineficácia absoluta da transmissão não autorizada, a doutrina portuguesa perfilha a solução da ineficácia meramente relativa, aliás, aceite pelo CSC (art. 228.º, n.º 2, e art. 230.º, n.º 5). Daí que, entre nós, seja de admitir uma vinculação de voto do alienante perante o adquirente de participações sociais cuja transmissão não foi consentida. 167 Rita Guimarães Fialho d’ Almeida Recorde-se novamente não ser este um problema que deva ser perspectivado no plano da invalidade, por então se não confrontarem actos de diferente valor hierárquico – a lei e o contrato –, mas antes duas obrigações de carácter contratual. 5) Conclusões Os acordos parassociais constituem instrumentos bem importantes para a condução dos destinos das sociedades comerciais, na medida em que possibilitam adaptar a excessiva rigidez dos tipos legais societários e dos estatutos em prol dos interesses dos sócios e das necessidades do tráfego mercantil, assim correspondendo a uma afinação dos mecanismos jurídicos, em resposta à crescente complexidade e exigência da vida negocial, não se olvidando, em correspondência, o papel dos acordos parassociais enquanto instrumentos de governança e inovação no seu confronto com os estatutos. Naturalmente, o estudo que se propôs empreender não esgota, certamente, todas as questões que poderiam e podem vir a ser suscitadas, reclamando a temática um contínuo aprofundamento dos dados que se almejaram lançar. Porém, se com a presente reflexão tivermos contribuído para a sensibilização quanto problema em apreço, e lançado alguns argumentos para o debate, sob o ponto de vista científico, então, temos o nosso objectivo por alcançado. REFERÊNCIAS CÂMARA, P. (1996). Parassocialidade e transmissão de valores mobiliários. Dissert. de Mestrado. Lisboa: FDUL. LEAL, A. Filipa. (2009). “Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito português”, RDS, ano I, n.º 1, pp. 135-183. SANTOS, M. Leite. (1996). Contratos parassociais e acordos de voto nas sociedades anónimas. Lisboa: Cosmos. TRIGO, M.ª Graça (2008). “Acordos parassociais: síntese das questões jurídicas mais relevantes. In: Alexandre Soveral Martins et al., Problemas do Direito das Sociedades, n.º 1, 2.ª reimp. Coimbra: Almedina, pp. 169-184. TRIGO, M.ª Graça (2011). Os acordos parassociais sobre o exercício do direito de voto, 2.ª ed. Lisboa: Universidade Católica Editora. VENTURA, Raúl. (2003). “Acordos de voto; algumas questões depois do Código das Sociedades Comerciais (CSC, art. 17.º). In: Comentário ao Código das Sociedades Comerciais: Estudos vários sobre sociedades anónimas, reimp. da ed. de 1992. Coimbra: Almedina, pp. 9-101. 168 DESIGUALDADE AMBIENTAL: MUDANÇAS CLIMÁTICAS E FLUXO MIGRATÓRIO Fabrício Veiga Costa1 Deilton Ribeiro Brasil2 1) Introdução A vulnerabilidade e o risco são categorias-chave para se identificar como as alterações ambientais, sejam elas locais ou globais, têm interferido na relação do homem com o meio em que vive. A problemática acrescenta-se ao amplo conjunto de desafios que tornam o tema desigualdade ambiental carecedor de reflexões, mas principalmente de uma concretude na proteção dos direitos humanos. O artigo será dividido em dois momentos. Primeiramente, será abordada a proteção jurídica dos migrantes ambientais em âmbito regional, o que se torna de fundamental para compreensão da problemática estabelecida, ressaltando a ausência de tratado especifico em âmbito global, fato que tem gerado debates quanto ao reconhecimento e proteção jurídica. Adentra-se na segunda parte do artigo que será analisado o tema desigualdade ambiental, abordando os principais desafios, propostas já existentes e possíveis soluções. Ao final, destaca-se como proposta a urgência no tratamento especifico da matéria no sentido de buscar o reconhecimento e proteção jurídica dos migrantes ambientais em face da aplicação do princípio internacional pro homine se mostra de fundamental importância. A pesquisa justifica-se pela atualidade do tema em relevância social diante dos desafios no cenário regional e internacional. 2) Contextualizando o conceito vulnerabilidade ambiental de desigualdade e O conceito de desigualdade ambiental permite apontar o fato de que, com a sua racionalidade específica, o capitalismo liberalizado faz com que os danos decorrentes de práticas poluentes recaiam predominantemente sobre grupos sociais vulneráveis, configurando uma distribuição desigual dos benefícios e malefícios do desenvolvimento econômico. Basicamente, os benefícios destinam-se às grandes interesses econômicos e os danos a grupos sociais despossuídos (ACSELRAD; ALMEIDA; BERMANN et al., 2012, p. 165). 1 Pós-doutor em Educação pela UFMG. Doutorado e Mestrado em Direito Processual pela PUCMINAS. Professor da pós-graduação stricto sensu em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna. E-mail: fvcufu@uol.com.br 2 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em Direito pela UGF/RJ. Professor da pós-graduação stricto sensu em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna e das Faculdades Santo Agostinho. E-mail: deilton.ribeiro@terra.com.br Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil Esta noção surgiu nos Estados Unidos (EUA), na década de 1980, quando se observou, empiricamente, através da elaboração de um mapa e de uma análise de indicadores sociodemográficos espacializados, o caráter discriminatório da destinação territorial de lixo químico. Verificou-se então que os locais de destinação dos resíduos, mesmo aqueles aprovados legalmente por seguidas gestões no governo dos EUA, coincidiam com territórios ocupados por grupos étnicos de baixa renda e tornados vulneráveis – negros, povos indígenas e latinos. A noção de desigualdade ambiental, ao contrário, procura evidenciar que o “planeta” não é compartilhado de forma igual entre todos e que para se construir um mundo efetivamente “comum” seria preciso que as iniquidades fossem devidamente enfrentadas (ACSELRAD; ALMEIDA; BERMANN et al., 2012, p. 166). Dessa forma, desigualdade ambiental pode ser definida como a exposição diferenciada de indivíduos e grupos sociais a amenidades e riscos ambientais. Ou seja, os indivíduos não são iguais do ponto de vista do acesso a bens e amenidades ambientais (tais como ar puro, áreas verdes e água limpa), assim como em relação à sua exposição a riscos ambientais (enchentes, deslizamentos e poluição). Dessa forma, fatores como localização do domicílio, qualidade da moradia e disponibilidade de meios de transporte podem limitar o acesso a bens ambientais, bem como aumentar a exposição a riscos ambientais (TORRES, 1997). Assim, as pessoas mais vulneráveis aos efeitos imediatos dos episódios climáticos extremos provocados pelo aquecimento global serão, na grande maioria das vezes, aquelas mais pobres, as quais já possuem uma condição de vida precária em termos de bem-estar, desprovidas do acesso aos seus direitos sociais básicos (moradia adequada e segura, saúde básica, saneamento básico e água potável, educação, alimentação adequada, etc.). A sujeição de tais indivíduos e grupos sociais aos efeitos negativos das mudanças climáticas irá agravar ainda mais a vulnerabilidade das suas condições existenciais, submetendo-as a um quadro de ainda maior indignidade (FENSTERSEIFER, 2011, p. 324). O enfrentamento do aquecimento global, de tal sorte, também deve englobar a garantia de acesso aos direitos sociais básicos das pessoas carentes, rumando para o horizonte normativo imposto pelo princípio constitucional do desenvolvimento sustentável (FENSTERSEIFER, 2011, p. 324). A Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, em seu relatório Nosso Futuro Comum (Our common future), no ano de 1987, cunhou o conceito de desenvolvimento sustentável, que seria aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: o conceito de ‘necessidades’, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras. 170 Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório Outro aspecto importante relacionado às mudanças climáticas e à questão da justiça ambiental diz respeito ao surgimento dos refugiados ambientais. Os episódios climáticos relatados acima, muitas vezes, em decorrência da sua intensidade e dos danos pessoais e materiais gerados, alteram o cotidiano de vida de inúmeras pessoas e grupos sociais, ocasionando, muitas vezes, o seu deslocamento para outras regiões, de modo a “fugirem” de tais desastres ecológicos e resguardarem as suas vidas (FENSTERSEIFER, 2011, p. 329). A Constituição Federal de 1988 traz de forma expressa nos incisos do § 1º do artigo 225 uma série de medidas protetivas do ambiente a serem levadas a efeito pelo Estado, consubstanciando projeções de um dever geral de proteção do Estado31 para com direito fundamental ao ambiente inscrito no caput do artigo 225. Entre as medidas de tutela ambiental atribuídas ao Estado, encontram-se: I) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II) preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente por meio de lei vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substanciais que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; e VII) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade. Por fim, deve-se destacar que o rol dos deveres de proteção ambiental do Estado traçado pelo §1º do artigo 225 é apenas exemplificativo, estando aberto a outros deveres necessários a uma tutela abrangente e integral do ambiente, especialmente em razão do surgimento permanente de novos riscos e ameaças à Natureza provocadas pelo avanço da técnica, como é o caso, por exemplo, do aquecimento global. (FENSTERSEIFER, 2011, p. 332). 3) O aumento do fluxo migratório de refugiados ambientais em decorrência de mudanças climáticas A migração e a proteção de refugiados são temas distintos, mas complementares. Contudo, não raro, acabam confundidos nos debates sobre migração irregular e, particularmente, na aplicação das medidas de controle para combatê-la. Muitas vezes, isso cria distorções e mal-entendidos tanto na opinião pública quanto nos políticos. 171 Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil Assim, em diversas oportunidades, as políticas de refúgio estão sendo substituídas por políticas migratórias, e as medidas de controle migratório são aplicadas indiscriminadamente aos solicitantes de refúgio e refugiados, considerados “migrantes” até que provem o contrário (MURILLO, 2008, p. 27). Migração pode ser definida como movimento de pessoas que se estabelecem temporária ou permanentemente, sendo internas quando dentro do próprio país ou internacionais quando de um país para outro. As causas para circulação de pessoas são variadas, podendo decorrer de desastres naturais, falta de alternativas econômicas ou condições de sobrevivência. Nestes casos, migrar para outro país se torna uma alternativa para recomeçar a vida, através da busca de oportunidades de trabalho, satisfação de necessidades básicas, como saúde, educação e segurança alimentar (ACNUR; IMDH; CDHM, 2007). Os refugiados ambientais sempre existiram na história da humanidade, pois as migrações devido a motivos ambientais sempre foram uma forma de adaptação do homem ao meio em que vive. No entanto, atualmente o tema tem ganhado grandes proporções em virtude do aumento e intensidade de desastres ambientais em diferentes partes do mundo, o que tem despertado na sociedade internacional a preocupação com a proteção efetiva diante da atual crise migratória relacionadas às causas ambientais. O termo “refugiado ambiental” foi cunhada pela primeira vez em 1970 por Lester Brown (ACNUR), mas foi em 1985 que a expressão ficou altamente conhecida por meio da publicação de um paper do professor Essam El-Hinnawi, do Egyptian National Research Centre, no Cairo. Neste mesmo ano, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Alto Comissariado das Nações Unidas Para Refugiados (ACNUR) definiram os “refugiados ambientais como pessoas que foram obrigadas a abandonar temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devido ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas), perturbando a sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo.” Refugiados ambientais (também conhecidos como refugiados climáticos, ecorefugiados e ecomigrantes) são pessoas ambientalmente forçados, interna ou internacionalmente, temporária ou permanentemente, por causas de início rápido ou lentamente. Portanto, os eventos que causam esse fenômeno podem ocorrer rapidamente e de forma inesperado, como maremotos, terremotos, tsunamis, vulcões, tufões, entre outros, ou lentamente como a desertificação, secas e processo erosivos do solo. Podem ocorrer por causas naturais, devido a ciclos ecológicos ou ciclos geofísicos da Terra, ou ainda antrópicos, antropogênicos, ou seja de causas em que há interferência humana no meio ambiente é determinante que ocasione a migração forçada. (CLARO, 2015) É um grande desafio quantificar exatamente o número de refugiados ambientais atualmente no mundo, tendo em vista a dificuldade no que diz respeito a nomenclatura e questões conceituais, pois conforme salientado muitos deles são considerados 172 Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório migrantes econômicos, principalmente pela dificuldade em estabelecer o nexo de causalidade entre a situação ambiental e a migração. Os números variam entre 200 milhões a 1 bilhão de refugiados pelo mundo até o ano de 2016 e esse número tende a aumentar consideravelmente nos próximos anos em virtude dos desastres ambientais que tem ocorrido com bastante frequência e intensidade (KING, 2010). Algumas estimativas demonstram que no ano de 2010 já existiam 250 milhões de pessoas em situação de refúgio relacionados com causas ambientais (CLARO, 2015). Com o aumento e intensidade dos desastres naturais, o fenômeno da migração por causas ambientais tem aumentado consideravelmente, e esse fato leva a conclusão de que é preciso tecer novas discussões sobre o tema, no sentido de estabelecer medidas mais eficazes de proteção. Portanto, como há um grande número de refugiados ambientais no mundo e tem-se a certeza de que esse número será maior ainda daqui algum tempo, é preciso que a sociedade internacional crie mecanismos capazes de atender a essa nova demanda, no sentido de estabelecer uma proteção efetiva a esse conjunto de pessoas. 4) O mínimo existencial vinculado à garantia da dignidade da pessoa humana no âmbito de uma justiça ambiental A vulnerabilidade dos grupos menos favorecidos no tocante aos impactos das mudanças climáticas também está presente no debate sobre Justiça Ambiental. A percepção sobre a desigualdade de impactos no que se refere aos impactos das mudanças climáticas, que se fortalece em amplos estudos sobre alterações no clima (IPCC, 2001, 2007b) é catalisadora do movimento internacional por Justiça Climática. Por Justiça Ambiental entenda-se o conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais políticas. Dito de outra forma trata-se da “espacialização da justiça distributiva, uma vez que diz respeito à distribuição do meio ambiente para os seres humanos” (LYNCH, 2001). Entende-se por Injustiça Ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis, que vivem ou circulam em áreas de risco ou de degradação ambiental (HERCULANO, 2002, p. 2). A aplicação do instituto do mínimo existencial vincula à garantia da dignidade da pessoa humana. O mínimo existencial representa o conjunto de condições elementares 173 Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil para a sobrevivência digna e o desenvolvimento da personalidade. A concepção é de garantir, ainda que em termos essenciais e não expansivos, mais que uma mera sobrevivência (HARTAMANN, 2010, p. 180). E, para efetivar a dignidade da pessoa humana, deve-se garantir um mínimo existencial, um núcleo material e social que não permita que os indivíduos se encontrem em situação indigna. Pois, a situação social e econômica de cada cidadão é diferente, e cabe ao Estado igualar as condições necessárias para a manutenção da dignidade dos seus. Neste sentido, seria de que certas liberdades e direitos básicos devem estar considerados no princípio da equidade, que só a partir da garantia do patamar mínimo de direitos, seria possível considerar a diferença entre os indivíduos (RAWLS, 2002, p. 64). Dessa forma, a garantia do mínimo existencial representa um patamar mínimo para a existência humana e condição mínima para que um indivíduo possa exercer a sua liberdade, pois aquém de certo nível de bem-estar, como a falta de acesso a bens materiais e sociais, as pessoas não tem condições de assumirem parte na sociedade como cidadãos iguais (CARVALHO; ADOLFO, 2012, p. 12). Assim, pode-se inferir que o mínimo existencial ecológico é aquele capaz de garantir condições mínimas de subsistência, sem riscos para a vida e saúde da população, ou de danos irreparáveis ao meio ambiente. Assim, compreende-se como condições mínimas de subsistência os direitos e garantias fundamentais elencados na Constituição Federal de 1988, junto ao seu rol de direitos fundamentais (STEIGLEDER, 2002). Esse direito à qualidade ambiental enquadra-se não apenas entre os direitos humanos fundamentais, mas também entre os direitos humanos personalíssimos, compreendidos como aquelas prerrogativas essenciais à realização plena, da capacidade e da potencialidade da pessoa, na busca da felicidade e manutenção da paz social. No direito concreto, o direito positivo e o direito natural fundem-se exemplarmente (MILARÉ, 2011, p. 136). As dimensões da dignidade humana são atualizadas em cada momento, podendo culminar em uma expansão do conteúdo dos direitos ou mesmo na criação de novos direitos fundamentais (HABERMAS, 2012, p. 14). Dessa forma, a mudança de perspectiva global no tratamento aos migrantes passa, necessariamente, pela mudança legislativa interna de países, como o Brasil, que consigam entender a problemática das migrações como uma realidade indiscutível e desafiadora, mas que, além das questões meramente controladoras, policiais e estatais, deve ser visto como uma questão social, sob o paradigma do respeito aos direitos humanos em sua totalidade. O fenômeno das migrações internacionais aponta para a necessidade de repensar-se o mundo não com base na competitividade econômica e o fechamento das fronteiras, mas, sim, na promoção da cidadania universal, da solidariedade e fraternidade e nas ações humanitárias (MILESI; MARINUCCI, 2005). Nessa perspectiva, a ideia de cidadania pressupõe três elementos básicos em sua 174 Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório constituição, a saber, o elemento civil que inclui as liberdades individuais, o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. O segundo elemento é o político, o qual supõe o direito de participar no exercício do poder político - direito de votar e ser votado (Instituições correspondentes ao parlamento e conselhos locais). Já o terceiro elemento, diz respeito à vida social dos cidadãos e isto significa que todos têm direito a um mínimo bem-estar social e econômico produzido por todos e que ninguém pode ser excluído da herança social de uma determinada sociedade. E isto se dá através do sistema educacional e dos serviços sociais (SILVA, 2017, p. 87), (MARSHALL, 1967, p. 63-64). Com o aumento da mobilidade humana em suas diferentes facetas, migrantes laborais, refugiados, retornados, desplazados, migração forçada, migração indocumentada, entre outras, cresce o debate em torno dos direitos dos Migrantes, mesmo em situações de indocumentação e de vulnerabilidade social, pois o direito à vida deve prevalecer sobre as normativas estabelecidas pelos Estados nacionais, em geral restritivas e discriminatórias. É nesse contexto de violações de direitos que a ideia de uma “cidadania transnacional” começa a ser discutida, seja no âmbito dos movimentos sociais ou das organizações internacionais (SILVA, 2017, p. 88). a) Dimensões críticas do princípio pro homine Diante de um arcabouço normativo ou até mesmo em virtude de sua ausência, os princípios internacionais exercem um papel importante na interpretação de normas e condutas pela sociedade internacional. Vários instrumentos internacionais, como a própria Carta da ONU, estabelecem claramente a importância dos princípios para o direito internacional. Apesar de algumas críticas no sentido de que os princípios possuem um caráter aberto, impreciso e abrangente, é indiscutível que muitos princípios têm-se sobressaído e exercendo, o seu verdadeiro papel de base na interpretação da disciplina jurídica do direito internacional. (CLARO, 2015). O que se pretende demonstrar nesse artigo é a necessidade de se realizar uma releitura dos desafios que permeiam o tema refugiados ambientais, tendo como paradigma o princípio internacional pro homine (ou in dubio pro libertate), no sentido de estabelecer entre conceitos, nomenclaturas e instrumentos normativos, um diálogo (para falar como Erick Jayme) com o objetivo principal de aplicar a melhor norma/proteção ao ser humano solicitante de refúgio. A aplicação do princípio pro homine reforça a ideia de que a solução contemporânea para os desafios que permeiam a proteção dos direitos humanos deve ser plural, onde várias fontes convivem, sem que uma exclua a outra, trata-se, portanto de aplicar a norma que mais proteja os direitos das pessoas humanas. Em resumo, o principio internacional pro homine, também conhecido como primazia da norma mais favorável (CANÇADO TRINDADE, 2003), é um princípio de interpretação obrigatória para todos os tratados de direitos humanos, que deve estar no centro do quadro 175 Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil estrutural do direito internacional dos direitos humanos, e no caso em análise, aplicado na proteção dos refugiados ambientais. Cabe destacar que tal regra interpretativa se encontra presente em inúmeros tratados de direitos humanos, tanto no sistema global como nos sistemas regionais. No plano global, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos no art. 5º, §2§. Nos contextos regionais a Convenção Europeia de Direitos humanos em seu art. 60, também, preceitua sobre o princípio pro homine. A Convenção Americana sobre Direitos humanos estabelece em seu artigo 29 no mesmo sentido. Esse aparato jurídico em âmbito global e regional demonstra a importância de aplicação do princípio aqui proposto como uma possível solução diante da problemática estabelecida no presente estudo. Nesse sentido, é preciso realizar uma releitura dos conceitos estabelecidos nos instrumentos, seja global, regional e interno, para que eles dialoguem e possa ser retirada uma conclusão no sentido de aplicar o que melhor proteja a pessoa humana. Assim, levando-se em conta o quadro global, regional e interno de proteção é preciso compreender, diante dos desafios atuais, que se faz necessário uma releitura no sentido de ampliar o conceito de refugiados, considerado refugiados as “pessoas que se encontram em situação de refúgio, deixando seu país de origem em razão de perseguições e violências iminentes por motivos religiosos, étnicos, de raça, crença, ideologia ou, até mesmo, por desastres naturais”(MAZZUOLI, 2016). A Convenção de 1951 estabeleceu em seu artigo 1º o conceito de refugiados e preceitua a seguinte frase: “para fins desta Convenção são refugiados”. Nota-se que a própria Convenção é muita clara quando estabelece que “para os fins desta convenção”, o que não significa que o termo refugiados não possa ser utilizado em outro âmbito. Por isso, muitos adotam o termo refugiados não-convencionais, por não serem contemplados no rol taxativo da Convenção, mas por ser, através de outros motivos considerados refugiados. Além disso, a própria etimologia da palavra refugiado significa buscar refúgio, abrigo, ou seja proteção. O que demonstra que a expressão não é exclusiva do referido documento. É preciso que esse debate seja superado e que a sociedade internacional busque cada vez mais estabelecer mecanismos de proteção a essas pessoas que migram em razão de fatores ambientais, independentemente da nomenclatura utilizada. O fato é que os refugiados ambientais não existem no sistema internacional de proteção jurídica como categoria migratória. Existem alguns avanços no contexto regional, como a Convenção de Campala dos deslocados internos do Continente Africano de 2009, que estabelece disposição específica sobre essas pessoas que se deslocam por motivos ambientais. Portanto diante desse tratado, os refugiados ambientais são reconhecidos e protegidos, ou seja, diante dessa convenção os refugiados ambientais deixam de ser refugiados não convencionais e passam a ser convencionais perante a convenção. 176 Desigualdade ambiental: mudanças climáticas e fluxo migratório Diante da ausência de um tratamento específico sobre a matéria, o presente estudo demonstrou que as reflexões sobre os desafios que permeiam o tema devem ser realizadas à luz de do princípio internacional pro homine, com o objetivo de realizar uma interpretação sempre no sentido de proteção da parte mais vulnerável, neste caso, os refugiados ambientais. Tendo em vista a proposta deste artigo, fazendo uma releitura do tema à luz do princípio invocado neste estudo, ou seja, de acordo com a essência do princípio pro homine, é preciso aplicar o que for mais favorável, e como os refugiados tem uma proteção mais efetiva se comparados à proteção de outros migrantes, deve-se aplicar às pessoas que migram em virtude de desastres naturais a proteção decorrente do Direito Internacional dos Refugiados. Assim, aqueles que são obrigados a se deslocarem por motivos ambientais podem sim ser considerados refugiados. Nesse sentido, é preciso que haja um diálogo entre o sistema internacional, sistemas regionais e interno para se alcançar uma efetiva proteção dos refugiados ambientais. Assim o Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional dos Refugiados, Direito das Mudanças Climáticas, Direito dos Desastres Ambientais, Direito Internacional do Meio Ambiente, entre outros âmbitos, devem proteger os refugiados ambientais em virtude da obrigação internacional de proteção a pessoa humana, como sujeito de direitos humanos. Portanto, conjugando essas normas, o que Erik Jayme chamou na Alemanha de diálogo das fontes, escutando esse diálogo deve-se aplicar a melhor norma (MAZZUOLI, 2016). Esse procedimento é resultado da observância do princípio internacional pro homine em favor dos refugiados ambientais, parte mais vulnerável, o que demanda, só por isso, uma interpretação mais favorável aos seus interesses, ou seja, ampliação do conceito de refugiados e aplicação das normas de proteção do Direito Internacional dos Refugiados. 5) Considerações finais A busca pela maior participação possível dos Estados, por meio da ratificação dos documentos internacionais e a elaboração de leis nacionais tem sido, ao longo de todo esse período até os dias atuais, indispensáveis para se alcançar a devida proteção, no entanto, o que se percebe na prática, é que há inúmeros desafios para que esses mecanismos sejam efetivamente implementados em âmbito interno. O tema refugiados ambientais não se escapa dessa regra, pois são pouquíssimos os países que estabelecem sobre essa proteção específica, mas de fato são bons exemplos já que não há nem mesmo uma regulamentação específica em âmbito global. Importante registrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ainda que seja considerada um instrumento soft law) garante a todo ser humano o direito de livre circulação entre os Estados, o direito a estabelecer sua residência dentro 177 Fabrício Veiga Costa e Deilton Ribeiro Brasil das fronteiras de cada Estado e o direito a sair e retornar do Estado natal, ou de onde se encontra, quando lhe convenha (artigo 13, incisos I e II), também é concebido como direito humano. Os Estados devem se adequar às exigências internacionais e, em se tratando da imigração, adaptar suas regras. À luz dos últimos acontecimentos no cenário internacional, constata-se uma evolução do direito internacional moderno, cujas normas tendem a garantir, cada vez mais, a mobilidade das pessoas, consubstanciando respostas às problemáticas relativas à proteção dos direitos de estrangeiros. Em todas essas situações, os Estados, inevitavelmente, devem cumprir os compromissos internacionais assumidos convencionalmente ou de forma não-convencional, respeitando o jus cogens (conjunto de normas jurídicas imperiosas e inderrogáveis, as quais vinculam a todos os sujeitos do direito internacional independentemente de sua vontade), procedendo às reformulações legislativas internas (BICHARA, 2015, p. 234). REFERÊNCIAS ACNUR. A missão do ACNUR. Disponível em:<www.acnur.org/portugues/informacao-geral/a-missao-do-acnur/>. Acesso em: 10 jun.2018. ACNUR. Convenção da União Africana sobre a proteção e assistência as pessoas deslocadas internamente em África. 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O processo de execução fiscal Na falta de pagamento voluntário (ou seja, dentro do prazo estipulado por lei), o credor (Estado e outros entes públicos ou que exerçam funções públicas) tem o direito de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação tributária e requerer, para tal, a execução do património do devedor. Destarte, nos termos dos art.ºs 148.º e seguintes do Código do Procedimento e Processo Tributário português (adiante abreviadamente designado por CPPT), é instaurado um processo de execução fiscal com vista ao pagamento coercivo das dívidas tributárias, designadamente através da alienação de bens ou direitos do devedor, por forma a obter – desse modo – o montante em dívida2. O processo de execução fiscal é um meio processual que tem por objetivo realizar coercivamente a cobrança de créditos tributários de qualquer natureza, não tendo por fim cobrar coercivamente impostos ilegalmente liquidados, mas sim impostos que sejam legalmente devidos. Este processo visa, por isso, a cobrança de dívidas, que têm de ser certas, líquidas e exigíveis, pelo que não se discutem aqui questões de legalidade. O processo de execução fiscal é instaurado com base num título executivo dotado de coatividade e definitividade, destinado a cobrar tributos, coimas e outras dívidas (cfr. art.º 162.º do CPPT sobre as espécies de títulos executivos). No processo de execução fiscal concorrem uma fase administrativa (ou préjurisdicional) e uma fase jurisdicional, das quais resultam atos de natureza administrativa (praticados pelos órgãos da AT) e atos de natureza jurisdicional (praticados pelo Tribunal). 1 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Auxiliar Convidada no ISMAI. Professora Adjunta Convidada no IPMAIA. Membro da Comissão Científica do N2i – Núcleo de Investigação do IPMAIA. Investigadora do I2J (Instituto de Investigação Jurídica) da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Membro efetivo do CEOS.PP (Centro de Estudos Organizacionais e Sociais do Politécnico do Porto). Advogada. Juiz-Árbitro CAAD (Direito Administrativo). Texto apresentado no II CIDIGIN, na qualidade de keynote speaker. 2 Para maiores desenvolvimentos sobre o processo de execução fiscal, vejam-se os seguintes contributos: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017; ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011. Patrícia Anjos Azevedo São exemplos de atos praticados pelo Tribunal: (i) a decisão da oposição à execução (art.ºs 203.° e ss do CPPT); (ii) os incidentes (art.ºs 127.° e ss do CPPT) ou (iii) os embargos de terceiro (cfr. art.º 237.° do CPPT). Os atos praticados pelos órgãos da administração tributária consistem, por exemplo: (i) na instauração da execução (art.º 150.° do CPPT); (ii) na citação do executado (art.º 188.° do CPPT); (iii) na autorização para pagamento em prestações (art.º 197.° do CPPT); ou na reversão da execução (cfr. art.º 23.º da Lei Geral Tributária – LGT). 2) Aproximação e contextualização responsabilidade tributária do tema da A responsabilidade tributária é uma figura patológica da relação jurídica tributária, de acordo com a qual o responsável tributário é chamado ao pagamento do imposto quando o devedor originário não paga (por falta ou insuficiência de património) ou quando, pelo seu comportamento, tenha comprometido a respetiva cobrança. Trata-se de uma exceção/derrogação ao regime da responsabilidade dos gerentes (nas sociedades por quotas) e administradores (nas sociedades anónimas) à luz do Direito Comercial, em que a respetiva responsabilidade (por exemplo, perante fornecedores e outros credores da sociedade, que não o fisco ou a segurança social) se afere tendo por limitação o valor da respetiva participação social (quota – nas sociedades por quotas; ou ação – nas sociedades anónimas). A responsabilidade tributária é, numa primeira linha, imputável ao sujeito passivo originário e abrange a totalidade da dívida tributária, os juros e demais encargos legais (art.º 22.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária – LGT). Contudo, para além do sujeito passivo originário, a responsabilidade tributária pode envolver outras pessoas, configurando uma relação de subsidiariedade em relação ao devedor principal e - eventualmente - de solidariedade entre os diversos responsáveis subsidiários, quando existam (art.º 22.º, n.º 2 da LGT). Destaque-se ainda, neste contexto, que a responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, a não ser que a lei determine em sentido contrário (como no caso do art.º 27.º da LGT), apenas subsidiária (cfr. art.º 22.º, n.º 4 da LGT). Além disso, nos termos do n.º 5 do art.º 22.º da LGT, as pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis poderão reclamar (graciosamente) ou impugnar (judicialmente) a dívida cuja responsabilidade lhes seja atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais. Nisto consiste a previsão legal explícita da existência das garantias procedimentais e processuais dos responsáveis subsidiários. 184 A reversão do processo de execução fiscal contra gerentes... 3) A responsabilidade solidária A responsabilidade solidária opera "quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa", sendo neste caso todas as pessoas em causa solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária (art.º 21.º, n.º 1 da LGT). São também responsáveis solidários os sócios ou membros de sociedades de responsabilidade ilimitada em liquidação (art.º 21.º, n.º 2 da LGT); bem como os gestores de bens ou de direitos de não residentes em território português sem estabelecimento estável neste território (cfr. art.º 27.º, n.º 1 da LGT). Tal significa que a qualquer um deles pode ser exigido o pagamento da totalidade da dívida, sem prejuízo do direito de regresso, nos termos do art.º 524.º do Código Civil português, que determina que "o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete". 4) A responsabilidade subsidiária. Destaque para a situação dos gerentes e administradores A responsabilidade subsidiária é efetivada através de reversão do processo de execução fiscal (art.º 23.º, n.º 1 da LGT), no caso de "fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão" (art.º 23.º, n.º 2 da LGT)3. Caso não seja possível determinar a suficiência de bens penhorados, por não estar definido o montante a pagar pelo responsável subsidiário, o processo de execução fiscal fica suspenso desde o termo do prazo de oposição até à total excussão do património do executado (cfr. n.º 3 do art.º 23.º da LGT). Os casos de responsabilidade tributária mais significativos encontram-se elencados e regulados nos art.ºs 24.º a 28.º da LGT, a propósito, respetivamente, da responsabilidade dos administradores, diretores ou gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração nas pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados (responsabilidade subsidiária face a estas e solidária face aos demais administradores ou gerentes); da responsabilidade do titular do Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada (responsabilidade limitada aos bens afetos a este); da Para maiores desenvolvimentos, cfr.: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017; ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011. 3 185 Patrícia Anjos Azevedo responsabilidade dos liquidatários das sociedades; da responsabilidade dos gestores de bens ou direitos de não residentes; e da responsabilidade em caso de substituição tributária. Relativamente à responsabilidade dos administradores, diretores ou gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração nas pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados, estas pessoas são subsidiariamente responsáveis em relação às sociedades onde exerçam as suas funções e solidariamente entre si (cfr. art.º 24.º da LGT): (i) pelas dívidas tributárias verificadas no período do exercício das suas funções ou cujo prazo de pagamento ou entrega tenha terminado depois do período de exercício de funções, desde que, em qualquer uma das situações, tenha sido por culpa sua que o património da sociedade se tornou insuficiente para satisfazer a dívida - alínea a) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT. Aqui, impõe-se à AT provar a culpabilidade dos administradores ou gerentes em relação às dívidas tributárias verificadas no período de exercício dos respetivos cargos ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha findado após o referido prazo; (ii) pelas dívidas cujo prazo legal de pagamento tenha terminado no exercício das suas funções e desde que não seja feita a prova de que o não pagamento não lhes foi imputável - cfr. alínea b) do n.º 1 do art.º 24.º da LGT. Neste caso, o ónus da prova recai sobre os administradores ou gerentes quando o prazo de pagamento ou entrega tenha terminado no período de exercício do seu cargo. Neste caso, a culpa dos administradores ou gerentes presume-se pelo facto de a lei considerar que estes não podiam desconhecer a existência da dívida. A responsabilidade aqui em causa é, em certa medida, alargada (pelos n.ºs 2 e 3 do mesmo art.º 24.º da LGT) aos TOC (Técnicos Oficiais de Contas, hoje Contabilistas Certificados), ROC (Revisores Oficiais de Contas) e membros dos órgãos de fiscalização das pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados. No caso dos membros dos órgãos de fiscalização, a responsabilidade verifica-se desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários resultou do incumprimento das respetivas funções de fiscalização (art.º 24.º, n.º 2 da LGT). Quanto aos Contabilistas Certificados, a responsabilidade verifica-se sempre que se demonstre a violação dos seus deveres de regularização técnica nas áreas contabilística e fiscal (art.º 24.º, n.º 3 da LGT). 5) Outros casos de responsabilidade tributária Existem ainda outros casos de responsabilidade, conforme já enunciamos. No que concerne ao Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada (EIRL), apenas respondem pelas dívidas fiscais os bens a este afetos (art.º 25.º, n.º 1 da 186 A reversão do processo de execução fiscal contra gerentes... LGT). Verificando-se a insolvência do EIRL por causa relacionada com a atividade do respetivo titular, responderão todos os bens do mesmo, salvo se este provar que durante a gestão observou o princípio da separação patrimonial (n.º 2 do mesmo art.º 25.º). Serve esta disposição para limitar a responsabilidade do comerciante em nome individual pelas dívidas contraídas na gestão da sua empresa. No que toca à responsabilidade dos liquidatários das sociedades, prevê o art.º 26.º da LGT que devem os liquidatários começar por satisfazer as dívidas fiscais, sob pena de ficarem pessoal e solidariamente responsáveis pelas importâncias respetivas. Esta norma encontra-se em conformidade com os artigos 151.º e 152.º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos dos quais compete ao liquidatário, nomeadamente: cumprir as obrigações da sociedade; cobrar os créditos da sociedade; reduzir a dinheiro o seu património residual; propor a partilha dos haveres sociais; e ultimar os negócios pendentes da sociedade. Devem ainda os liquidatários satisfazer os débitos fiscais em conformidade com a ordem prescrita na sentença de verificação e graduação de créditos - n.ºs 1 e 3 do art.º 26.º da LGT. Caso a prioridade atribuída aos créditos fiscais não seja respeitada, opera-se a responsabilidade dos liquidatários das sociedades, sob pena de ficarem pessoal e solidariamente responsáveis pelas importâncias respetivas (n.º 1 do art.º 26.º da LGT). Quanto à responsabilidade dos gestores de bens ou direitos de não residentes sem estabelecimento estável em território português, vem o art.º 27.º da LGT prever que estes gestores são solidariamente responsáveis em relação a estes e entre si por todas as contribuições e impostos do não residente relativos ao exercício do seu cargo (n.º 1 do art.º 27.º da LGT). Nas situações de substituição tributária, determina o art.º 28.º n.º 1 da LGT que o substituto é responsável pelas importâncias retidas e não entregues nos cofres do Estado, ficando o substituído desonerado de qualquer responsabilidade no seu pagamento. Embora pareça existir aqui uma presunção legal de culpa, a culpabilidade do substituto deve ser aqui apurada relativamente à prática de um eventual crime ou contraordenação fiscal nos termos do RGIT. Quando a retenção tiver a natureza de pagamento por conta do imposto devido a final, cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária - art.º 28.º n.º 2 da LGT. Relativamente aos direitos dos responsáveis subsidiários, podemos destacar os seguintes: isenção de custas e de juros de mora, nos termos do art.º 23.º, n.º 5 da LGT; direito a reclamar ou impugnar em tribunal a dívida cuja responsabilidade lhes seja atribuída nos mesmos termos do devedor principal (art.º 22.º, n.º 5 da LGT); direito a ser citado e revertido, nos termos do art.º 23.º, n.º 1 da LGT; direito de audição prévia, conforme previsto no art.º 60.º da LGT; e finalmente, direito à apresentação de oposição à execução fiscal – art.ºs 203.º e ss do CPPT. 187 Patrícia Anjos Azevedo 6) A responsabilidade civil por multas e coimas no âmbito do RGIT Agora, aluda-se à questão da responsabilidade civil pelas multas e coimas, prevista no Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT). Neste contexto, os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam funções de administração em pessoas coletivas, ainda que irregularmente constituídas, são subsidiariamente responsáveis pelas multas ou coimas aplicadas a infrações por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa coletiva se tornou insuficiente para o seu pagamento - art.º 8.º, n.º 1, alínea a) do RGIT. Estas pessoas são ainda responsáveis pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento - art.º 8.º, n.º 1, alínea b) do RGIT. A responsabilidade em causa é solidária se forem várias pessoas a praticar os atos ou omissões culposos de que resulte a insuficiência do património das entidades em causa - n.º 2 do art.º 8.º do RGIT. As pessoas referidas no n.º 1, bem como os contabilistas certificados, são ainda subsidiariamente responsáveis, e solidariamente entre si, pelas coimas devidas pela falta ou atraso de quaisquer declarações que devam ser apresentadas no período de exercício de funções, quando não comuniquem, através do Portal das Finanças, até 30 dias após o termo do prazo de entrega da declaração, à Autoridade Tributária e Aduaneira as razões que impediram o cumprimento atempado da obrigação e o atraso ou a falta de entrega não lhes seja imputável a qualquer título - n.º 3 do art.º 8.º do RGIT. As pessoas a quem se achem subordinados aqueles que, por conta delas, cometerem infrações fiscais são solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas àqueles aplicadas, salvo se tiverem tomado as providências necessárias para os fazer observar a lei - n.º 4 do art.º 8.º do RGIT. Finalmente, de notar que a própria lei reforça que, sendo várias as pessoas responsáveis nos termos dos números anteriores, é solidária a sua responsabilidade - cfr. n.º 8 do art.º 8.º do RGIT. 7) Conclusões A responsabilidade tributária resulta da insuficiência do património do sujeito passivo originário para satisfazer o crédito tributário – cfr. art.ºs 22.º e ss da LGT. Esta responsabilidade tributária, de natureza subsidiária (cfr. art.º 22.°, n.° 2 da LGT), configura-se como sendo uma garantia pessoal, sob a forma de fiança legal. 188 A reversão do processo de execução fiscal contra gerentes... Para que opere a responsabilidade tributária, tem de existir um ato de reversão do processo de execução fiscal, que só poderá efetivar-se quando o património do devedor originário e dos seus sucessores não exista ou seja manifestamente insuficiente para satisfazer o crédito tributário (isto é, a dívida exequenda e o acrescido) – benefício da excussão prévia; art.º 23.º, n.ºs 1 e 2 da LGT. A reversão em causa opera mediante citação e depende de audição prévia do(s) responsável(eis) subsidiário(s), mediante carta registada, nos termos do art.º 60.º da LGT (cfr. art.º 23.°, n.° 4 e art.º 24.º da LGT). A responsabilidade solidária opera “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, sendo, neste caso, todos os responsáveis subsidiários em relação ao devedor principal, solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária perante a AT (cfr. art.º 21.º, n.º 1 da LGT). BIBLIOGRAFIA CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013. FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015. MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014. NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017. 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A consagração na Constituição consiste em um dos requisitos para que se constate a fundamentalidade de tais direitos, consequentemente, sua tutela deve receber maior atenção por parte do Estado. O contraste entre Estado e pessoa, especialmente quando se trata da relação de poder, originou a base dos direitos fundamentais. Estes, por configurarem posições jurídicas de amparo contra eventuais excessos do Poder Público, garantem aos indivíduos a preservação dos bens jurídicos de maior essencialidade para o alcance do seu bem-estar. A concretização de direitos fundamentais, isto é, a viabilização do seu pleno exercício, depende de atuações do Estado, sejam estas por meio de prestações positivas ou negativas. As prestações em caráter positivo, nomeadamente, demandam uma conduta estatal ativa para oferecer aos indivíduos os meios indispensáveis para a devida fruição de seus direitos. O pleno exercício de direitos fundamentais que dependem de prestações estatais positivas apenas é viabilizado por meio de políticas públicas, que são planejadas e executadas pela Administração Pública. Nesse sentido, a concretização de tais direitos depende da eficiência da atividade administrativa na entrega dos instrumentos necessários referentes à tutela dos bens jurídicos essenciais aos indivíduos. Nesse sentido, a boa administração enquadra-se perfeitamente ao contexto que envolve direitos fundamentais e a atividade administrativa, uma vez que seu conteúdo configura um mecanismo de notável valor capaz de auxiliar no processo de concretização de direitos. A essência da boa administração, assim, consiste em um elemento que conduz a atuação desenvolvida pela Administração, como forma de garantir aos indivíduos os melhores resultados na execução de prestações. 2) Breves Considerações sobre Direitos Fundamentais Considerados como aqueles mais essenciais para os indivíduos, os direitos fundamentais são decorrência positiva de momentos conturbados, registrados ao longo da história. O processo de consolidação da defesa e da proteção de determinados bens 1 Mestranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Suzana Maria Fernandes Mendonça jurídicos em nível constitucional não se mostrou de simples andamento, uma vez que percorreu diversos períodos, especialmente aqueles marcados por transições. A evolução do direitos fundamentais ocorreu de forma gradativa, de modo que seu reconhecimento perpassa pelas mais variadas revoluções, bem como regimes políticos, tendo como elemento característico duras batalhas sociais2, cujo objetivo era precisamente a busca por melhores condições. Tais lutas, embora árduas, resultaram em bons frutos, notadamente no sentido de proteção de bens jurídicos substanciais à sociedade. Os direitos fundamentais, dessa forma, passaram a expressar sua força máxima a partir do fim dos regimes totalitários, período em que houve violações de toda ordem e em diversos níveis. Nesse sentido, os direitos fundamentais são reconhecidos à todos os membros da sociedade meramente pela humanidade intrínseca3 aos indivíduos, de modo que o único requisito para a constituição de um sujeito de direitos fundamentais é tão puramente ser humano. Ademais, apresentam como fundamento a dignidade humana4, cujo conteúdo proporciona não somente o alicerce dos direitos fundamentais, mas também uma determinante ferramenta para que sejam exercidos em plenitude. A defesa dos bens jurídicos de maior importância para o bem-estar dos indivíduos, uma vez consagrada em âmbito constitucional, assume o calibre de direitos fundamentais. A partir do momento que passam a constar da Constituição, os direitos fundamentais carregam consigo o dever de amparo pelos valores que expressam, de maneira a transferir para o Estado a tarefa de efetivá-los devidamente. Como escudo que garante resguardo contra eventuais violações, os direitos fundamentais somente existem, portanto, em razão da distinção e da contraposição entre pessoa e Estado, refletida também no contraste entre liberdade e autoridade 5. Configuram, nesse sentido, instrumentos de preservação de determinados bens jurídicos, aqueles considerados de maior essencialidade para o alcance do bem-estar e até mesmo do conteúdo refletido pela dignidade humana. Assim, os direitos fundamentais asseguram uma posição de proteção em relação ao Estado e demandam, como consequência, determinado comportamento do Poder Público, que deve conduzir suas atividades de modo a evitar eventuais intervenções que possam ser desfavoráveis aos indivíduos em sua liberdade de exercício de direitos. Logo, a defesa e a promoção de bens jurídicos indispensáveis à existência digna, refletidas pelos direitos fundamentais, reputa-se pendente de ações de cunho estatal que ofereçam condições para o devido amparo dos valores emanados por tais direitos. 2 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, 2015, p. 37. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 20. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais (e-book), 9ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2011, p. 218. 5 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, 2015, p. 17. 3 192 A boa administração como elemento de efetivação de direitos... As atividades desempenhadas em âmbito estatal, portanto, devem observar as necessidades dos membros da sociedade, uma vez que a razão de ser das instituições públicas passa precisamente pelo atendimento dos interesses comuns6. Nesse perspectiva, as tarefas do Estado para com a sociedade, devidamente estabelecidas pelo texto constitucional como forma de efetivação de direitos fundamentais, podem constituir prestações em caráter positivo ou negativo. As prestações negativas impõem aos Poder Público ações de abstenção ou de omissão7, de maneira a não intervir na esfera pessoal, ou até mesmo de ser causa de violação de direitos. Nesse sentido, há uma certa forma de bloqueio negativo da atuação estatal8, repercutido pela supressão de eventuais ações de ingerência por parte do Estado em determinados bens jurídicos associados à liberdade das pessoas. Tais direitos, qualificados também como pertencentes a primeira dimensão de direitos fundamentais, são marcados por representar um campo de não intervenção do Estado, o que reflete, ademais, a esfera de autonomia9 que o indivíduo detém face eventual atuação estatal diversa. Alguns dos exemplos de direitos fundamentais que demandam tal atuação do Poder Público são precisamente os direitos à vida, à liberdade de expressão e à propriedade. Já as prestações positivas requerem do Estado uma atuação ativa no sentido de viabilizar o adequado e pleno exercício de direitos fundamentais. Estes são reconhecidos como direitos sociais, não somente pela estreita conexão com a coletividade, mas também por serem consequência direta de reivindicações por justiça social10. Configuram-se, portanto, na qualidade direitos individuais pendentes de prestações sociais de natureza estatal11, como pertencentes à uma segunda dimensão de direitos fundamentais. Alguns destes são os direitos à saúde, à educação e à assistência social. Novas reivindicações da sociedade, especialmente influenciadas pelos avanços tecnológicos e sociais, proporcionaram condições para que despontasse uma terceira dimensão de direitos fundamentais, associada à proteção de grupos12, isto é, direitos cuja titularidade desvenda-se como coletiva. Ademais, tais direitos estão associados ao valor refletido pela fraternidade, uma vez que o seu amparo também ocorre pela colaboração da comunidade no sentido de defender tais bens jurídicos. Os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao patrimônio histórico e cultural são alguns dos RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ. El Derecho a la Buena Administración en las Relaciones entre Ciudadanos y la Administración Pública, Revista AFDUC, n. 16, ISSN: 1138-039X, 2012, pp. 247-273. 7 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Elsevier, Rio de Janeiro, 2004, p. 14. 8 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direito à Saúde: Algumas Aproximações, 2007. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/DOUTRINA_9.pdf>. Acesso em: 23 maio 2018. 9 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2012, p. 106. 10 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional, 8ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2013, p. 137. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2012, p. 108. 12 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2012, p. 111. 6 193 Suzana Maria Fernandes Mendonça pertencentes à tal categoria. Nesse sentido, um dos fatores em comum entre os direitos de todas as dimensões constitui precisamente a relevância da atuação do Estado na sua devida proteção e promoção, seja de maneira comissiva ou até mesmo omissiva. Por outro lado, o desempenho de ações estatais voltadas para a efetivação de direitos sociais mostra-se mais incisiva do que aquelas referentes à demais categorias, na medida em que as condutas omissivas necessárias na primeira dimensão revelam-se de relativa simplicidade de execução, enquanto a atuação referente à terceira dimensão não é de exclusividade do Estado, uma vez que também tais direitos encontram abrigo na contribuição da sociedade. Ao Estado, nesse sentido, impõe-se especial atenção para a devida efetivação de direitos sociais, o que, para fins de esclarecimento, não isenta o Poder Público de uma atuação conforme referente também ao pleno exercício de direitos fundamentais constantes das demais dimensões. Assim, o Estado, por força de atribuições de natureza constitucional repercutidas por meio dos valores expressos por direitos fundamentais, deve desempenhar a sua atividade utilizando como instrumentos as mais diversas prestações, tendo em vista justamente a satisfação das demandas que se colocam no cotidiano social. 3) O Elo entre os Direitos Fundamentais e a Boa Administração Os direitos sociais são acompanhados de previsão legal que requerem tarefas de natureza legislativa cuja finalidade é a obtenção de instrumentos materiais e institucionais13 que sejam capazes de apoiar o seu devido cumprimento. Logo, para que seja possível a realização de direitos sociais, uma vez vinculados às prestações de natureza positiva, cabe ao legislador a determinação do modo como as ações deverão ser geridas e executadas. Nesse sentido, a efetivação de direitos sociais, como forma de conversão de uma norma em prática14, está ligada às incumbências constitucionais designadas ao Estado. Cabe ao Poder Público, nessa perspectiva, e conforme as regras estabelecidas em âmbito legislativo, organizar e implementar ações e metas coordenadas entre as entidades responsáveis como forma de tornar efetivos os direitos fundamentais, especialmente os que dependem necessariamente de execução pública. A prestação dos serviços públicos associados aos direitos sociais deve, portanto, ser estruturada e exercida de maneira adequada, particularmente considerando a sua 13 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 366. 14 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, p. 548. 194 A boa administração como elemento de efetivação de direitos... essencialidade, na medida em que a sua extrema relevância repercute diretamente na qualidade de vida dos membros da sociedade. A execução de tais prestações, ademais, deve atender às necessidades coletivas, de modo que os serviços não apenas sejam contínuos, mas também suficientemente seguros e eficientes. A devida entrega dos meios necessários à satisfação das demandas populares associadas aos direitos sociais pode ser um desafio para as entidades competentes, entretanto, as prestações devem ser realizadas de maneira a produzir bons resultados. Os serviços em caráter público consistem, portanto, em fatores indispensáveis para a proteção de direitos sociais, como forma de convertê-los em bens jurídicos prontos para serem plenamente exercidos. Os direitos sociais, assim, apenas terão a sua existência completamente preenchida, não somente no âmbito de previsibilidade constitucional e legal, mas também em termos práticos, quando o Poder Público prestar os serviços pertinentes para tanto. Tais ações advindas do Estado constituem políticas públicas, a partir das quais se dá a execução de medidas adequadas e aptas a proporcionar o exercício de direitos sociais. Nesse sentido, as políticas públicas caracterizam-se como programas de Estado cujo objetivo manifesta-se no cumprimento de tarefas que constam da Constituição, de modo a garantir a efetivação de direitos fundamentais15 por meio dos atores devidamente competentes e responsáveis. As políticas públicas consistem, portanto, em metas de caráter coletivo, e como tal, configuram, ainda, um assunto de direito público16. À Administração Pública, assim, como responsável pela execução de políticas públicas, cabe a formulação, a implementação e o controle de todas as ações dispendidas para a efetivação de direitos sociais, bem como pelo eficiente desempenho em todas as fases envolvidas até que se alcance o indivíduo. A tutela dos direitos fundamentais pendentes de prestações positivas por parte do Estado, portanto, ocorre por meio da adequada execução de toda a atividade como forma de se atingir certeiramente o objeto de proteção. A atividade administrativa, para que sejam satisfeitas as condições de exercício de direitos sociais, deve ser realizada adequadamente, em respeito, ainda, aos princípios regentes do Direito Administrativo. Nessa perspectiva, o princípio da boa administração pública revela-se como elemento extremamente útil na proteção de direitos fundamentais. A boa administração, dessa maneira, está intimamente associada à noção de efetivação de direitos fundamentais, uma vez que uma atuação eminentemente efetiva, em observância aos demais princípios norteadores da atividade desenvolvida pela Administração, tem como efeito direto e lógico a viabilização do pleno exercício de direitos, especialmente daqueles pendentes de ações de natureza positiva por parte do 15 FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ª ed., Editora Malheiros, São Paulo, 2014, p. 32. 16 LIBERTATI, Wilson Donizeti. Políticas Públicas no Estado Constitucional, Atlas, São Paulo, 2013, p. 86. 195 Suzana Maria Fernandes Mendonça Poder Público, sejam estas políticas públicas ou prestações de serviços públicos. Isto significa que até mesmo a discricionariedade administrativa, e, especificamente quando se trata do tema de políticas públicas associadas à execução de direitos sociais, deve ser exercida de modo a respeitar os limites impostos pela tutela de direitos fundamentais17. Ainda que não conste expressamente do texto constitucional, a boa administração configura-se como uma derivação do conteúdo expresso pela combinação de outros princípios explícitos e implícitos da atividade administrativa, como o interesse público, a eficiência, a imparcialidade e a razoabilidade. Muito embora seu valor seja melhor entendido dessa maneira, não deixa de apresentar significado autônomo, uma vez que sua essência diz respeito à atuação de maneira eficaz para que se atinja o objetivo visado pela atuação administrativa, conforme a disponibilidade de meios e instrumentos necessários para tanto. Por outro lado, a falta de estrutura indispensável ao adequado atendimento das demandas da população, a incongruência entre o número de profissionais e a corpulência da rede de serviços, bem como a limitação de recursos financeiros que viabilizem a proteção de direitos fundamentais são algumas das dificuldades que se armam frente a atuação da Administração na execução de políticas públicas. Muito embora tais obstáculos sejam de conhecimento geral e intensamente presentes no cotidiano administrativo, a efetivação de direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais, não deve ser completamente negada à sociedade sob alegação de inviabilidade na execução de serviços, uma vez que o pleno exercício de tais direitos depende justamente dessa prestação, o que deve conduzir a atividade administrativa a lidar com adversidades, de maneira a manejar suas atividades com os meios e os instrumentos que estão disponíveis. 4) A Importância da Boa Administração na Concretização de Direitos Fundamentais Como um vetor hábil a conduzir a atuação da Administração Pública por caminhos apropriados, a boa administração impulsiona os agentes públicos a desempenharem sua função de maneira pertinente. Nessa perspectiva, todas as ações empenhadas em âmbito administrativo devem prezar pela qualidade, não apenas quanto a forma de desempenho, mas também em relação ao alcance dos objetivos traçados. Logo, a boa administração não fica restrita somente ao interesse público, uma vez que demanda também outros fatores, de modo que a atuação seja eficiente e capaz de garantir a solução mais adequada, também considerando a economicidade, para que então seja possível se atingir um ponto ótimo de interesse público18. Fato certo é que a FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ª ed., Editora Malheiros, São Paulo, 2014, p. 34. 18 OTERO, Paulo. Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2016, p. 272. 17 196 A boa administração como elemento de efetivação de direitos... boa administração, por decorrer de diversos princípios e valores que orientam a atividade administrativa, tais como a imparcialidade, a eficiência, a transparência e a razoabilidade; é identificada precisamente quando tais conteúdos se incorporam à atuação da Administração Pública. Se a atividade desenvolvida pela Administração Pública dispusesse de todos os instrumentos necessários, sejam estes materiais, financeiros e humanos, os resultados tenderiam à condição de fornecimento de meios em integralidade e universalidade, conforme dita a demanda social no momento em questão. Como a perfeição é posição inalcançável, da boa administração emana o valor que apresenta maior proximidade. Isto significa que o conteúdo associado à boa administração preza pelo alcance do melhor resultado possível no exercício da função administrativa. Tal valor revela-se de extrema relevância especialmente na formulação e execução de políticas públicas, uma vez que o bom desempenho dos programas em questão atende às necessidades da população associadas aos direitos sociais, cuja efetivação depende precisamente da atuação comissiva do Estado. Nesse sentido, as políticas públicas, sejam estas relativas à educação, à saúde ou à assistência social, dependem da adequada execução das tarefas decorrentes do planejamento de programas, de modo a satisfazer as demandas sociais, até mesmo como forma de trazer à prática as normas referentes aos direitos fundamentais. A boa administração, portanto, adere às politicas públicas como elemento catalisador da eficiente conduta administrativa, de modo manter o foco da máquina pública na criação e no fornecimento dos meios indispensáveis à atividade prestacional, bem como na execução de serviços de qualidade para a adequada proteção e promoção de direitos fundamentais. Nesse sentido, a prática de uma boa administração demonstra atenção para com as necessidades da população, sempre em respeito aos princípios da Administração Pública envolvidos em cada uma das medidas de aplicação das normas relacionadas aos direitos sociais. Mostra-se relevante, assim, que a condução da atividade administrativa também seja socialmente sensível19, até mesmo como forma de aplicação prática de comandos constitucionais que dispõem sobre a apropriada prestação administrativa, uma vez sendo a Administração Pública a responsável pela força executória das políticas públicas. Assim, tanto a fase de planejamento, como a de execução, devem ser realizadas com elevado grau de cuidado e responsabilidade, o que reflete precisamente a relevância de uma boa administração pública, para que a consequência direta de tal conduta seja justamente a efetivação de direitos fundamentais. A atividade administrativa, nesse sentido, deve ser bem desempenhada para, consequentemente, lograr bons resultados. Um entendimento mais moderno sobre a Administração Pública e a sua função, sugere serem considerados como bons resultados 19 RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, Fórum, Belo Horizonte, 2012, p. 135. 197 Suzana Maria Fernandes Mendonça aqueles que perpassam pelo respeito e pela garantia de direitos dos indivíduos, especialmente, os direitos fundamentais. O conteúdo que se extrai da boa administração, de certa forma, é de que o poder que o Estado possui deve ser empregado com a finalidade de servir a pessoa, de maneira a garantir a concretização de direitos e a promoção do bem-estar comum20. A Administração, nessa perspectiva, não detém o domínio do interesse público, mas, em razão de se integrar a uma conjuntura de Estado Democrático de Direito21, deve ser responsável pelo desempenho do papel de intermediário entre as necessidades da coletividade e as medidas pertinentes a serem adotadas para atendê-las apropriadamente, em especial na seara de políticas públicas. Nesse sentido, toda a conduta administrativa deve carregar um certo nível de atenção e responsabilidade, do trato para com a pessoa ao fornecimento de meios que assegurem seus direitos fundamentais. A boa administração estimula que a tomada de decisão e a execução das tarefas referentes às políticas públicas sejam bem realizadas, de maneira a atingirem a sua finalidade com celeridade e eficácia. A boa administração constitui, portanto, instrumento para a redução da diferença entre administrados e Administração, bem como para tornar a atividade administrativa mais eficiente22, de modo a visar o melhor atendimento das demandas apresentadas pela população. A razão de existir das instituições perpassa justamente pela adequada satisfação dos interesses comuns. Nesse sentido, e para melhor corresponder com às necessidades da pessoas, individual e coletivamente consideradas, a Administração Pública deve nortear a sua atuação conforme determinados critérios23, especialmente a legislação pertinente e os princípios que regem a sua atividade, mas sempre em serviço do bem-estar comum, o que revela a essência da boa administração. Nesse sentido, o conteúdo da boa administração tangencia não apenas a ideia de uma atuação eficiente da Administração, mas também a garantia aos indivíduos de proteção dos seus direitos24, especialmente quanto à eventuais violações. Por outro lado, da eficiência da Administração depende a proteção dos direitos dos indivíduos, de modo que ambas as percepções acabam por encontrar um mesmo resultado. Ademais, os direitos sociais, por penderem de condutas positivas por parte do 20 VALLE, Jaime Andrés Villacreses. Bases Constitucionales del Derecho a una Buena Administración en el Ecuador, Disponível em: <https://jdaiberoamericanas.files.wordpress.com/2016/03/jaime_andres_villacreses_valle.pdf> Acesso em 9 de fev. de 2018. 21RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Gobernanza, Buena Administración y Gestión Publica, Disponível em: < http://aragonparticipa.aragon.es/sites/default/files/ponencia_jaime_rodriguez_arana.pdf > Acesso em 10 de abril de 2018. 22 CHESHMEDZHIEVA, Margarita. The Right to Good Administration, American International Journal of Contemporary Research, vol. 4, n. 8, 2014, pp. 64-67. 23 RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ. El Derecho a la Buena Administración en las Relaciones entre Ciudadanos y la Administración Pública, Revista AFDUC, n. 16, ISSN: 1138-039X, 2012, pp. 247-273. 24 HOFFMAN, Herwig C. H.; MIHAESCU, Bucura C.. The Relation between the Charter’s Fundamental Rights and the Unwritten General Principals of EU Law: Good Administration as the Test Case, European Constitutional Law Review, n. 9, 2013, pp. 73-101. 198 A boa administração como elemento de efetivação de direitos... Estado, exigem para a sua execução o dispêndio de recursos25. Apesar de caros26, os direitos sociais, devem ser preservados, o que confere à Administração Pública a incumbência de estabelecer planejamentos de atuação, manusear materiais disponíveis, executar serviços, bem como controlar e fiscalizar todas as fases da atividade de efetivação de direitos. Cabe à Administração, portanto, desempenhar todas as suas ações de maneira a equilibrar a disponibilidade financeira para tanto. Neste contexto, se insere a boa administração, uma vez que não apenas fundamenta e conduz um comportamento administrativo efetivo e razoável, em observância ao interesse público, mas também representa um motor que estimula os agentes públicos a empregarem os meios necessários e legais para oferecer à população os serviços indispensáveis para o devido atendimento das demandas da comunidade. A atividade administrativa eficiente e razoável compõe a essência da boa administração, que se mostra como uma rica ferramenta na contribuição para a garantia de direitos fundamentais. A efetivação de direitos pendentes de prestações positivas por parte do Estado ocorre apenas com a realização adequada das ações para tanto, de modo a viabilizar a fruição de direitos previstos no texto constitucional. A conduta administrativa, portanto, deve ser pautada nos princípios implícitos e explícitos referentes ao Direito Administrativo, de maneira a conferir à sua atividade um nível ótimo de eficiência, também em respeito ao interesse público, o que precisamente reflete o princípio da boa administração. Cabe à Administração, portanto, desempenhar o seu papel da melhor maneira possível, até mesmo como forma de se evitar eventuais excessos nas diversas fases de sua atuação, em observância ao interesse público e à razoabilidade, e como reprodução do conteúdo emitido pela boa administração. 5) Conclusão A viabilização da fruição de direitos fundamentais de maneira plena depende de determinado comportamento do Estado, seja este por meio de prestações omissivas ou comissivas. As prestações em caráter positivo, especialmente, configuram a proteção e a promoção de direitos sociais, de modo a converter as normas em prática através de políticas públicas. Como programas de Estado, as políticas públicas são de responsabilidade da Administração Pública, cuja competência envolve tanto a fase de planejamento, como as de execução e controle. Em razão de uma moderna perspectiva sobre o papel da 25BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas e Direito Administrativo. Disponível em: <http://www.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/politicas_publicas_e_direito_administrativo.pdf> Acesso em: 20 abril 2018. 26 CANOTILHO, J. J. Gomes. O Direito Constitucional como Ciência de Direcção in: Direitos Fundamentais Sociais, CANOTILHO. J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione; CORREIA, Érica Paula, Editora Saraiva, São Paulo, 2010, p. 19. 199 Suzana Maria Fernandes Mendonça Administração no Estado Democrático de Direito, toda a sua atividade deve ser pautada na atenção para com a pessoa, até mesmo como forma de se respeitar as previsões constitucionais referentes aos direitos fundamentais. Nesse sentido, à Administração Pública, sempre em observância aos princípios norteadores de sua atividade, cabe a execução adequada de políticas públicas, de modo a não permitir que a viabilização de meios indispensáveis ao exercícios de direitos seja negligenciada. A boa administração contém precisamente tal essência, uma vez que seu conteúdo preza pela realização adequada de todas as ações nas mais variadas fases até que se atinja devidamente a pessoa, cuja satisfação deve ser o principal objetivo. A boa administração, portanto, confere à atividade administrativa um senso apurado de eficiência, celeridade, razoabilidade, ainda conforme o interesse público. Nesse sentido, a Administração Pública deve efetuar bem aquilo que lhe foi designado, não apenas por ser sua atribuição, mas também por configurar meio necessário à concretização de direitos fundamentais. Embora haja obstáculos à atuação da Administração, especialmente de ordem financeira e estrutural, a execução de políticas públicas deve ocorrer de maneira ótima, para que se alcance os melhores resultados e, consequentemente, o próprio bem-estar comum. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Elsevier, Rio de Janeiro, 2004. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional, 8ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2013. BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas e Direito Administrativo. Disponível em: <http://www.unisc.br/portal/upload/com_arquivo/politicas_publicas_e_direi to_administrativo.pdf> Acesso em: 20 abril 2018. CANOTILHO, J. J. Gomes. O Direito Constitucional como Ciência de Direcção in: Direitos Fundamentais Sociais, CANOTILHO. J. J. Gomes; CORREIA, Marcus Orione; CORREIA, Érica Paula, Editora Saraiva, São Paulo, 2010. CHESHMEDZHIEVA, Margarita. The Right to Good Administration, American International Journal of Contemporary Research, vol. 4, n. 8, 2014, pp. 64-67. FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, 3ª ed., Editora Malheiros, São Paulo, 2014. HOFFMAN, Herwig C. H.; MIHAESCU, Bucura C.. The Relation between the Charter’s Fundamental Rights and the Unwritten General Principals of EU Law: Good Administration as the Test Case, European Constitutional Law Review, n. 9, 2013, pp. 73-101. LIBERTATI, Wilson Donizeti. Políticas Públicas no Estado Constitucional, Atlas, São 200 A boa administração como elemento de efetivação de direitos... Paulo, 2013. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 6ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015. OTERO, Paulo. Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2016. RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime. Direito Fundamental à Boa Administração Pública, Fórum, Belo Horizonte, 2012. RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ. El Derecho a la Buena Administración en las Relaciones entre Ciudadanos y la Administración Pública, Revista AFDUC, n. 16, ISSN: 1138-039X, 2012, pp. 247-273. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais (e-book), 11ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2012. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais (ebook), 9ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2011. SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direito à Saúde: Algumas Aproximações, 2007. Disponível em: <http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/DOUTRINA_9.pdf>. Acesso em: 23 maio 2018. VALLE, Jaime Andrés Villacreses. Bases Constitucionales del Derecho a una Buena Administración en el Ecuador, Disponível em: <https://jdaiberoamericanas.files.wordpress.com/2016/03/jaime_andres_villa creses_valle.pdf> Acesso em 9 de fev. de 2018. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2017. 201 O MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO COMO CONDICIONANTE PARA A MANUTENÇÃO DA SUSTENTABILIDADE E DO PATRIMÔNIO CULTURAL INDÍGENA: PERCEPÇÃO DE RISCOS AMBIENTAIS AO PATRIMÔNIO CULTURAL DO POVO WAYÃPI Fabrício Veiga Costa1 Deilton Ribeiro Brasil2 Elaine Aparecida Barbosa Gomes3 1) Introdução As discussões sobre os problemas ambientais torna-se algo corriqueiro nos dias atuais, a todo momento tem-se informações das mais diversas, seja para conscientizar a sociedade sobre os impactos socioambientais que a ação do homem tem provocado no espaço, ou para propor políticas de preservação ambiental em escala local e global. As questões ambientais deixaram de ser um assunto de natureza interna e tornou-se de interesse internacional, um problema global que gera graves alterações sociais, econômicas, políticas e ambientais. Na realidade mesmo sofrendo com as consequências pela falta de solidariedade e humanidade com o meio ambiente diuturnamente o homem continua a degradar, exaurindo os recursos minerais e naturais que a natureza tem a oferecer. Conforme esclarece o Papa Francisco (2015), o estilo atual baseado no consumismo exacerbado e no desperdício leva ao exaurimento dos recursos minerais e naturais no planeta, provocando alterações no meio ambiente de modo insustentável. Essa é a realidade que milhares de pessoas convivem todos os dias, desmatamento, queimadas, poluição dos rios, da atmosfera, extinção de animais silvestres, escassez de água, assoreamento dos rios, extração dos recursos minerais levando o solo ao exaurimento. A destruição do meio ambiente passou a ser uma preocupação constante para aqueles que procuram uma melhor qualidade de vida para a presente e as futuras gerações. Nesse passo, a exploração econômica passou a ser uma ameaça para o equilíbrio 1 Pós-doutor em Educação - UFMG. Doutorado e Mestrado em Direito Processual pela PUCMINAS. Professor da Graduação e do PPGD - Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna-MG E-mail: fvcufu@uol.com.br 2 Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Messina, Itália. Doutor em direito pela UGF/RJ. Professor da Graduação e do PPGD - Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna-MG. E-mail: deilton.ribeiro@terra.com.br 3 Mestranda do PPGD – Mestrado em Proteção dos Direitos Fundamentais da Universidade de Itaúna-MG. Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Itaúna-MG. Especialista em Geografia e História Contemporânea pelo Instituto Superior de Educação-Berlaar/Patrocínio MG. Graduada em Geografia pela Faculdade de Pará de Minas-FAPAM. E-mail: elainebarbosagomes@yahoo.com.br Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes cultural do povo Wayãpi, tendo em vista que, quando realizada de forma desproporcional, coloca em risco o equilíbrio da natureza, como, por exemplo, a partir da extinção da Reserva Nacional do Cobre e Associados (RENCA) liberando uma área de proteção ambiental, de aproximadamente 46 mil km quadrados, para a exploração de minério. O povo Wayãpi vem desenvolvendo suas tradições, costumes e suas práticas alimentares em consonância com a natureza, favorecendo a renovação dos recursos naturais, cultural, a manutenção da diversidade biológica e a sustentabilidade da Amazônia desde antes 1.500. Situação atual e lamentável é o exemplo concreto do povo Wayãpi que vive as margens da invisibilidade social sofrendo com as consequências das intervenções provocadas pela ganância do homem capitalista. Esse fato teve início em 22 de agosto de 2017 quando o governo brasileiro promulgou o Decreto n.º 9.142/174 extinguindo a Reserva Nacional do Cobre e Associados (RENCA), região onde habitam o povo Wayãpi mesmo antes do ano de 1.500, ainda que por um curto período, retirando a restrição e liberando a atividade mineradora na reserva, confirmando o retrocesso ambiental das políticas públicas de preservação ambiental no Brasil. Ocorre que a criação desse decreto trouxe o acirramento da desigualdade socioambiental para a população local, ameaçando o patrimônio cultural do povo Wayãpi. Com a liberação para exploração dos recursos minerais na RENCA o patrimônio cultural indígena será afetado, gerando uma perda histórica e cultural sem lastros para a sociedade. O que compromete o desenvolvimento socioambiental e econômico da região. Levando em consideração os desafios na busca pelo meio ambiente equilibrado, o conhecimento cultural do povo Wayãpi deve ser visto como uma possibilidade de alcançarmos o desenvolvimento sustentável para a presente e as futuras gerações. Assim, utilizando-se das reflexões produzidas acerca do tema proposto, intentase expor um questionamento central que norteará a pesquisa, qual seja: observando as situações de intervenção do homem no meio ambiente, é possível concluir que o meio ambiente equilibrado é condicionante para a manutenção do patrimônio cultural do povo Wayãpi? Portanto, ao propor a discussão sobre o patrimônio cultural do povo Wayãpi a ideia é de agregar importância a necessidade de termos um meio ambiente equilibrado para manutenção da biodiversidade e da identidade cultural de um povo. Nas tradições, nos saberes, na língua, nas festas tem-se a herança cultural de um povo que precisa ser protegida para que a memória e a sua história possa ser passada para outras gerações (UNESCO). A relevância dessa proteção pode ser evidenciada pela forma com que o povo 4Decreto nº 9.142, de 22 de Agosto de 2017: Artigo 1º Fica extinta a Reserva Nacional de Cobre e seus associados, constituída pelos Decretos nº 89.404, de 24 de fevereiro de 1984, localizada nos Estados do Pará e do Amapá. 204 O meio ambiente equilibrado como condicionante... Wayãpi se relaciona com a natureza, conseguem estabelecer uma relação de equilíbrio retirando apenas o necessário para sua subsistência. Manter a identidade cultural desse povo representa manter a manutenção da biodiversidade da Amazônia permitindo atender as futuras gerações. Estruturalmente, o artigo se divide em três seções temáticas, mais introdução e conclusão. Na primeira seção, intitulada O Direito Cultural enquanto Direito Fundamental, o foco do estudo foi compreender a conceituação de Direito Fundamental, apresentando, ainda que rapidamente, para do pressuposto de seu conhecimento entrelaçar a designação de Direito Fundamental ao meio ambiente equilibrado como condicionante para a manutenção do patrimônio cultural do povo Wayãpi. Importante ressaltar que o meio ambiente equilibrado é um Direito Fundamental, tanto na esfera do direito individual quanto no coletivo, permitindo que a população tenha acesso a diretos básicos para sua sobrevivência com um mínimo de dignidade. Na segunda sessão, intitulada A Sustentabilidade do meio ambiente como direito das presentes e futuras gerações, o intuito é de definir o conceito de sustentabilidade, em seguida, discutir sobre as questões ambientais juntamente com as questões sociais, pois o ser humano encontra-se imerso em uma crise socioambiental sem precedentes. Na última parte, intitulada A diversidade cultural do povo Wayãpi e sua importância para a manutenção da biodiversidade na Amazônia, será concluída a argumentação do estudo, com intuito de discutir sobre a riqueza e a diversidade dos conhecimentos tradicionais do povo indígena Wayãpi e a sua importância para a manutenção da biodiversidade. Isso, para, ao final, verificar a profunda articulação entre o patrimônio cultural, o meio ambiente equilibrado e a cultura do povo Wayãpi. Pois para o povo Wayãpi a cultura do seu povo reflete sua identidade e o passado histórico de seus ancestrais. Haja vista que os saberes desse povo são históricos, e vem sendo transmitidos de forma intergeracional, passando por um processo de aperfeiçoamento no decorrer do tempo e de acordo com o local habitado, e acima de tudo utilizando de forma sustentável os recursos que a natureza lhes oferece mantendo o meio ambiente em equilíbrio. Utilizou-se o referencial teórico de Paulo de Bessa Antunes na obra Direito Ambiental (2010), a partir de suas contribuições com o debate acerca das questões ambientais. Outras obras perpendiculares à análise de Bessa foram utilizadas para aprofundar o exame sobre as questões ambientais, como também a linha teórica sobre a sustentabilidade trabalhada por Juarez Freitas (2016) devido à sua contribuição para as discussões sobre a sustentabilidade enquanto caminho para alcançar o desenvolvimento das nações e ao mesmo tempo ter efetivado o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado. Deste modo, cabe ressaltar que outros autores e teorias aparecerão com centralidade ao longo deste estudo, sem os quais não seria possível um maior acesso a problemática. 205 Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes Quanto à metodologia, para a realização do estudo, utilizou-se da pesquisa teórico-bibliográfica, documental disponível, com a utilização de livros, textos e artigos doutrinários, além de leis que possuam relação direta ou indireta com o assunto em comento, tendo em vista que a construção do debate teórico se embasa, de maneira considerável, em doutrina. Tendo como base a atual visão constitucionalizada dos direitos fundamentais. No que tange ao procedimento metodológico, optou-se pelo método dedutivo, haja vista partir-se de uma concepção macro para uma concepção microanalítica, permitindo-se, portanto, a delimitação do problema teórico. Finalmente, no procedimento técnico, foram adotadas as análises interpretativas, comparativas, temáticas e históricas, para possibilitar uma discussão pautada sob o ponto de vista da crítica científica. Por fim, resta esclarecer que as conclusões tecidas durante o desenvolvimento deste trabalho de maneira alguma pretende esgotar a matéria, que discute temas afetos a diversidade cultural, sustentabilidade e meio ambiente equilibrado, ainda em construção e de relevante complexidade para a sociedade, merecendo discussões profundas e passíveis de aprimoramento. Apresentada a descrição minuciosa do objeto da pesquisa, analisar-se-á, nas seções subsequentes, o recorte do tema com base exclusivamente na esfera jurídica. Tendo na primeira seção desse artigo, como frisado, um estudo sobre o Direito a cultura enquanto Direito Fundamental consagrado pala Constituição da República Federativa de 1988. 2) O direito cultural enquanto direito fundamental Cumpre ressaltar, inicialmente, que nessa breve descrição, o objetivo não é discutir sobre todos os fatos correlatos ao surgimento dos Direitos Fundamentais, mas sim, partir do pressuposto de seu conhecimento para depois entrelaçar a designação de Direito Fundamental ao meio ambiente equilibrado como condicionante para o exercício da liberdade cultural do povo Wayãpi. Nesse sentido, ficar-se-á adstrito apenas a sua concepção atual, tentando explicitar o denominador comum entre os Direito Fundamental ao meio ambiente equilibrado e o patrimônio cultural. Algumas palavras sobre a conceituação de Direito Fundamental são necessárias em nome da adequada compreensão daquilo que eles representam no direito brasileiro resguardando direitos básicos como liberdade e dignidade para o indivíduo e a coletividade. Sendo o meio ambiente equilibrado um condicionante para que a humanidade possa ter acesso a todos os direitos básicos e viva com dignidade. Em conformidade com José Emílio Medauar Ommati (2018) tem-se que os direitos fundamentais são atribuídos ao homem a partir do nascimento e vão sofrendo modificações ao longo da evolução histórica das sociedades, o direito vem sendo 206 O meio ambiente equilibrado como condicionante... construído ao longo do desenvolvimento da sociedade e do enfrentamento dos seus conflitos sociais. Os direitos fundamentais servem de instrumento de diálogo dentro dessas sociedades complexas sem eles o caos se estabeleceria no seio social levando a sociedade ao retrocesso econômico, social e ambiental. É por meio desses direitos que se tem garantido o limite de interferência do Estado, das instituições e do outro nas relações intersubjetivas, por isso a fundamentalidade desses direitos, pois sem eles a sociedade ficaria estagnada (OMMATI, 2018, p. 33-37). São direitos que evoluem para acompanhar o contexto histórico da sociedade regendo as relações intersubjetivas e promovendo o desenvolvimento social. E a medida que a sociedade vem evoluindo e por consequência modificando o meio ambiente o direito ambiental surge com o objetivo de propor um diálogo na sociedade. O que chama atenção nesse contexto de alterações do meio ambiente é que o dano ambiental fruto da ação humana é de difícil mensuração e a prevenção é muita mais viável que a correção, pois é praticamente impossível por meio de uma ação judicial ou outro instrumento jurídico reverter a situação de degradação do meio ambiente para o seu estágio anterior. Nesse sentido, o Papa Francisco escreveu no ano de 2015, a “Laudato Si”, conhecida como a Encíclica Verde que possibilita ao leitor uma reflexão sobre as alterações na natureza provocadas pelo homem, “um alerta a deterioração global do ambiente dirigido a cada pessoa no planeta” (FRANCISCO, 2015, p. 4). O meio ambiente equilibrado é um condicionante para o exercício dos outros direitos fundamentais e deve ser visto como elemento integrante da vida. Nessa linha de raciocínio, nos moldes da Lei nº 6.938/1981, artigo 3º, inciso I, entende-se por meio ambiente “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (BRASIL, 1981). Ou seja, aquele que abrange não apenas os recursos naturais, artificiais e culturais, mas também todas as demais condições necessárias para existência de vida no planeta. Diante dessas discussões tem-se que o meio ambiente equilibrado é um Direito Fundamental, tanto na esfera do direito individual quanto no coletivo, permitindo que a população tenha acesso a diretos básicos para sua sobrevivência com um mínimo de dignidade. Uma vez que a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 no caput do artigo 2255 expõem que o meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida é um direito de todos, das presentes e futuras gerações, como esclarece Antunes (2012) “o direito ao desfrute de um ambiente sadio é uma condição para o exercício da dignidade humana”(ANTUNES, 2012, p. 21), (BRASIL, 1988). 5 Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 207 Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes Importante notar que toda atuação humana gera um impacto ambiental que tende a perpetua produzindo efeitos até as gerações futuras, mesmo que a mesma não tenha presenciado sofrerá com suas consequências, por isso é importante nos anteciparmos aos riscos ambientais. Por sua vez, o Papa Francisco (2015), analisando os impactos ambientais para as gerações futuras, salienta que “...exige-se ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo. Somos nós os primeiros interessados em deixar um planeta habitável para a humanidade que nos vai suceder” (FRANCISCO, 2015, p. 123). No tocante a viabilidade da prevenção aos danos ambientais, tem-se o Princípio da Precaução e sua importância contra as ameaças ao meio ambiente. Esse princípio deve ser entendido como instrumento antecipatório da proteção do meio ambiente e das interações do homem com o meio. Trata-se de um princípio que rege a ação humana e “...incorpora parte de outros conceitos como justiça, equidade, respeito, senso comum e prevenção” (MMA). Em sendo assim, Milaré (2011) define que “precaução é substantivo do verbo precaver-se (do latim prae = antes e cavere = tomar cuidado), e sugere cuidados antecipados, cautela para que uma atitude ou ação não venha resultar em efeitos indesejáveis” (MILARÉ, 2011, p. 1069). Sendo que tanto o risco eminente quanto um risco futuro fruto da ação do homem deve ser prevenido para evitar o comprometimento do desenvolvimento das futuras gerações. Para Antunes (2010) sua origem remonta ao direito alemão, que mantinha uma preocupação quanto à necessidade de avaliação prévia sobre atividades que possivelmente viessem a causar danos ao meio ambiente. Foi então que a partir da concepção alemã que esse princípio passou a ser incorporado pelo Direito brasileiro e de modo amplo pelo Direito Internacional. No sistema brasileiro a incorporação do princípio da precaução ocorreu em dois momentos, inicialmente com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 no artigo 225, parágrafo 1, inciso IV, vejamos: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: IV – Exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio do impacto ambiental (BRASIL, 1988). Em seguida foi incorporado por ocasião da Eco 92- a Declaração do Rio de 1992, elaborada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cujo princípio 15 dispõe: Princípio 15: Com a finalidade de proteger o meio ambiente, os Estados devem aplicar amplamente o critério da precaução conforme as suas 208 O meio ambiente equilibrado como condicionante... capacidades. Quando houver perigo de dano grave ou irreversível, a falta de uma certeza absoluta não deverá ser utilizada para postergar-se a adoção de medidas eficazes para prevenir a degradação ambiental (BRASIL, 1992). Sob uma ótica mais aprofundada, o Papa Francisco (2015) aponta o princípio da precaução como um instrumento de proteção dos mais fracos, ou seja, aqueles que “...dispõem de poucos meios para se defender e fornecer provas irrefutáveis” (FRANCISCO, 2015, p. 143). Em uma contexto amplo essa proteção abarca os grupos indígenas, uma minoria que vive a mercê da ganância humana. Conforme aponta Antunes (2010) cabe ao Estado se antecipar quanto a criação de medidas eficazes para prevenir a degradação do meio ambiente não podendo ausentar-se de tais responsabilidades. Tendo o princípio da precaução a finalidade de se antecipar ao riscos, permitido que a degradação ao meio ambiente seja evitada, uma vez que “...a proteção do meio ambiente se faz como uma das formas de promoção da dignidade humana” (ANTUNES, 2010, p. 36). Inicialmente, é imprescindível mencionar que o Direito Cultural está intimamente interligado com a noção de cultura, um assunto complexo e amplo, o qual comporta diversos ângulos e vieses em sua discussão e teorização. Sendo necessário buscarmos uma definição que estabeleça um viés jurídico para que possamos discutir o Direito cultural. Nichollas Alem (2017) comenta que “os direitos culturais foram previstos pela primeira vez, no plano internacional, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1948, que os qualificou como indispensáveis à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade” (ALEM, 2017, p. 1). Especificamente em três artigos, em especial, os artigos 22, 26 e o 27 que tratam, entre outras coisas, da participação da vida cultural da comunidade e da utilização do direitos culturais como instrumento na busca pelo desenvolvimento e a dignidade humana. Na seara do Direito brasileiro tem-se no texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, mais especificamente em seu artigo 215, inserido no Título VIII, capítulo III, seção II, que tem como título, “Da cultura”, e diz: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL, 1988). Assim, pode-se afirmar, inicialmente, que o Direito Cultural materializado na Constituição Federal de 1988, está relacionado as artes, a memória de um povo e no fluxo de saberes que perpassam por gerações formando a sua identidade cultural. Farida Shaheed (2011) em entrevista para a Revista Observatório Itaú Cultural com autoria de Teixeira Coelho (2011) define os direitos culturais como instrumento responsável pela proteção dos direitos de cada indivíduo, tanto na esfera individual quanto nas relações intersubjetivas, onde “...podem ser considerados como algo que protege o acesso ao patrimônio e aos recursos culturais que permitem a ocorrência desses processos de identificação e desenvolvimento” (SHAHEED, 2011, p. 19-20). 209 Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes Como cediço, a discussão sobre a cultura de um povo ainda é algo que merece muita atenção, pois requer superar as barreiras do preconceito e da intolerância com relação a cultura do “outro”. Assim, não se pode olhar a cultura do “outro” somente a partir do olhar, do ponto de vista daquele que a observa. Neste sentido, Gallois (2006) afirma que “...para a maior parte dos brasileiros, o “índio” continua sendo concebido como um “silvícola”, que para ser reconhecido como portador de “cultura indígena” deve viver “no mato”, morar em “ocas”, “fazer pajelança”, usar “cocar”, etc...” (GALLOIS, 2006, p.18). Faz-se fundamental combater essa visão distorcida sobre a cultura indígena, que impede a sociedade de valorizar o patrimônio cultural de um povo que busca na natureza apenas o necessário para sua sobrevivência e só tem a nos ensinar sobe o manejo sustentável do meio ambiente. Diante dessas considerações, resta evidente a importância de direcionarmos as atenções para a cultura local do povo Wayãpi, habitantes do Brasil desde antes 1.500, com uma cultura passada de pai para filho, vivenciada e mantida por toda a família, com saberes ancestrais que nos dias de hoje é reproduzida pelo grupo, mantendo uma relação de equilíbrio com o meio ambiente e que vem sendo ameaçada com a extinção da RENCA. Voltar o olhar para a história indígena, a cultura desse povo, possibilita a humanidade o conhecimento sobre seu estágio atual, se está em evolução ou em retrocesso, pois ao conhecer esse passado histórico de ensinamentos e aprendizagem têm-se possibilidades de uma mudança de atitude no presente com uma prospecção de desenvolvimento sustentável para as futuras gerações. Tema de grande relevância na atualidade é o debate das questões ambientais e de sua sustentabilidade frente aos avanços econômicos imposto pelo processo de globalização mundial, um desafio a ser enfrentado por todos. Neste sentido torna-se imperiosa a necessidade de implementação de medidas antecipatórias de proteção ambiental, passa-se, a seguir, a realizar uma explanação acerca da sustentabilidade do meio ambiente como direito das presentes e futuras gerações. 3) A sustentabilidade do meio ambiente como direito das presentes e futuras gerações Ao empreendermos uma análise a partir do conceito de sustentabilidade é necessário compreender o seu significado, para tanto Édis Milaré (2011) a define como “...um atributo necessário a ser respeitado no tratamento dos recursos ambientais, em especial dos recursos naturais” (MILARÉ, 2011, p. 82). Ainda para Milaré (2011, p. 82-83), a sustentabilidade, pela sua abrangência, deve ser compreendida sob dois vieses. O primeiro remete a compreensão da sustentabilidade como instrumento de perpetuação da vida no planeta, sob uma ótica 210 O meio ambiente equilibrado como condicionante... ecológica. Enquanto que do ponto de vista da política, a sustentabilidade representa a autossuficiência da sociedade, ambas integram a conceituação do termo sustentabilidade. Nos ensinamentos de Milaré (2011, p. 83): [...] existem duas precondições para o desenvolvimento da sustentabilidade: a capacidade natural de suporte (recursos naturais existentes) e a capacidade de sustentação (atividades sociais, políticas e econômicas geradas pela própria sociedade em seu próprio benéfico). Sabe-se também que a humanidade enfrentará um grande desafio na buscar pelo equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental, podendose, embasado no pensamento do Papa Francisco (2015, p.12-13), salientar ser um desafio urgente e que inclui a união e a colaboração de toda a humanidade na busca de um desenvolvimento sustentável e integral. Direcionando as atenções para a resolução das consequências da alteração do meio ambiente no cotidiano dos mais pobres, onde o caminho para construirmos um futuro mais digno passa pela percepção dos riscos ambientais aos excluídos pela invisibilidade social. Atualmente, discutem-se problemas ambientais de maneira frequente, e nota-se que cada vez mais estas discussões são importantes pois a humanidade vem enfrentando esses problemas na busca pelo desenvolvimento econômico. Situações que no passado eram incalculáveis e não faziam parte da nossa realidade tornou-se algo real e vem gerando uma destruição sistemática do meio ambiente, impossibilitando a vida com dignidade para a população mundial, principalmente uma parcela relevante que vive em condições de pobreza ou miséria extrema. Ulrich Beck (2017) consegue definir o momento pelo qual a humanidade tem vivido como sendo uma grande metamorfose, na qual as mudanças fazem parte do cotidiano de milhões de pessoas submetidas as mais diversas situações de readaptação e reinvenção social. Sendo necessário estabelecer sentimento de solidariedade e humanidade com a natureza, pois dependemos dela para sobreviver. Com base nessa problemática ambiental autores das mais diversas áreas discutem incansavelmente a maneira como estamos interferindo na natureza e como estamos construindo o planeta para as gerações futuras. Com o objetivo de despertar no ser humano a consciência e a responsabilidade pelas suas atitudes e escolhas no âmbito individual e na coletividade. Por sua vez, Juarez Freitas (2016) salienta que: [...] todos os seres possuem uma ligação intersubjetiva e natural, donde segue a empática solidariedade como dever universalizável de deixar o legado positivo na face da terra, com base na correta compreensão darwiniana de seleção natural, acima das limitações dos formalismos kantianos e rawlsianos” (FREITAS, 2016, p.64). 211 Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes O homem destrói o meio ambiente e na maioria dos casos quem sofre com as consequências é a camada mais vulnerável da população, geralmente aqueles que sobrevivem de modo sustentavel da natureza. A poluição das águas, a poluição no ar, o desmatamento das áreas florestais, a produção e o descarte do lixo de modo desregular, uma destruição em prol do desenvolvimento econômico que prejudica a vida de um número imensurável de pessoas, privilegia-se as demandas do presente em detrimento as necessidades das gerações futuras. Por sua vez, o Papa Francisco (2015), analisando uma das consequências da interferência do homem no meio ambiente para a população mais pobre, salienta que: [...] o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável (FRANCISCO, 2015, p. 26). Diante da maciça e devastadora ação do homem sobre o meio ambiente, a proposta da Encíclica Papal é discutir as questões ambientais juntamente com as questões sociais, pois o ser humano encontra-se imerso em uma crise socioambiental sem precedentes. Basta acompanhar os noticiários impresso, virtual, que consegue-se ter um panorama geral da crise. Muito se questiona sobre o que tem o homem feito para mudar essa realidade, a resposta é muito simples se escondido por detrás dos interesses econômicos e excluindo cada dia mais essa parcela da população que sofre com a crise ambiental. Hoje é muito mais fácil colocar a responsabilidade da miséria humana na sorte do que aceitar que as políticas públicas foram criadas para uma minoria. Como demonstra Ulrich Beck (2017) a desigualdade social até o século XX girava em torno da produção e distribuição de bens, hoje essa preocupação ganhou outra roupagem. A sociedade passou por uma metamorfose social com a introdução da questão ambiental dentro do conceito de desigualdade social. O maior problema na atualidade é saber como lidar com essa desigualdade ambiental que não respeita hierarquia das classes sociais e afeta a todos. E acrescenta, “o seu poder de metamorfose inclui a política da invisibilidade. Não vemos os males porque excluímos os excluídos. Deste modo, a metamorfose externaliza e negligencia os males” (BECK, 2017, p. 107). Ideia semelhante é defendida pelo Papa Francisco (2015), que ao tratar sobre as questão da desigualdade planetária a define como sendo o reflexo da destruição conjunta do meio ambiente humano e do ambiente natural. Ressalta também que os mais frágeis do planeta são aqueles que mais sofrem com a deterioração do meio ambiente, e exemplifica, nos casos do esgotamento dos recursos hídricos as pessoas mais prejudicadas são as que vivem da pesca artesanal e não tem como substituir essa atividade, ou aquela população que não tem condições de comprar água engarrafada (FRANCISCO, 2015, p. 37-38). 212 O meio ambiente equilibrado como condicionante... Apresentada uma discussão acerca da contribuição cultural indígena no viés da sustentabilidade ambiental, passa-se, na seção seguinte, à discussão da diversidade cultural do povo Wayãpi para destacar sua relevância quanto a manutenção da biodiversidade na Amazônia, haja vista que, para os Wayãpi a mineração nas terras indígenas afeta o equilíbrio socioambiental, pois a mineração compromete a sustentabilidade da Amazônia, a ponto de colocar em risco a sua sobrevivência e a das gerações futuras. 4) A diversidade cultural do povo Wayãpi e sua importância para a manutenção da biodiversidade na amazônia Entende-se que para compreender a relevância da diversidade cultural do povo Wayãpi e sua importância para a manutenção da biodiversidade na Amazônia tem-se que conhecer um pouco de sua origem e evolução histórica. Um povo detentor de expressões culturais particulares, que vem sofrendo profundas transformações devido as alterações do homem no meio ambiente refletindo e afetando a formação da sua identidade cultural. Segundo Carla Jiménez (2017), o povo Wayãpi vive na Amazônia desde antes do ano de 1500. Falantes da língua tupi-guarani, com um número restrito de falantes do idioma português, os Wayãpi, vivem de forma comunitária, cultivando alimentos, caça e pesca, tendo parte de seu território localizado dentro da Reserva Nacional de Cobre e Associados (RENCA) totalizam em torno de 3.000,00 índios. Ademais, desenvolvem suas tradições, objetos, costumes e suas práticas alimentares em consonância com a natureza, favorecendo a renovação dos recursos naturais e das tradições culturais, eis aqui a problemática da manutenção do patrimônio cultural indígena. Pode-se afirmar, em relação à diversidade cultural brasileira que o povo indígena sofre intensa discriminação, como aponta Dominique Tilkin Gallois (2006) por se encontrarem em situação de minoria étnicas e linguísticas, fato agravado devido ao “...próprio desconhecimento a respeito da diversidade desses povos” (GALLOIS, 2006, p. 58). Em relação as situações de discriminação, Teixeira Coelho (2011) observa que as discussões sobre o valor da cultura além de ser uma questão complexa é urgente, pois “...todo dia, em algum lugar, algum direito cultural é violado por uma pessoa individual, um coletivo ou um Estado, ou está na iminência de o ser” (COELHO, 2011, p. 11). Esse é o desafio que se coloca aos Wayãpi, por exemplo, na medida em que o avanço econômico adentra na reserva, onde estão localizadas as aldeias indígenas, o povo sofre com o processo de aculturação. Ainda segundo Gallois (2006) “...os jovens vêm questionando os saberes dos mais velhos, evitando inclusive exibir marcas materiais de seus costumes, para não enfrentar os preconceitos arraigados na população não-indígena com a qual mantêm contato cada vez mais intenso” (GALLOIS, 2006, p. 59). 213 Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes A preocupação é legítima, necessária e faz deste um tema central da pesquisa sob o risco de que a liberdade cultural do povo Wayãpi seja extremamente prejudicada com a liberação da atividade minerária na região da reserva. Assim, está evidenciada a importância dos povos indígenas e dos seus conhecimentos para a humanidade, seja quanto a utilização do meio ambiente de forma sustentável ou pelos ensinamentos que perpetuam por gerações. Neste momento é fundamental salientar a necessidade de conhecermos a cultura indígena respeitando seus conhecimentos e o seu modo de vida. Como expôs Gallois (2006) após questionar o líder da aldeia quanto a necessidade de valorização da cultura indígena “Se os não-índios não respeitam nossa cultura, até os nossos próprios jovens podem começar a desvalorizar nossos conhecimentos e modos de vida” (GALLOIS, 2006, p. 59) apesar de que, muitas pessoas, na realidade, preferem ignorar os riscos ambientais ao patrimônio cultural do povo Wayãpi e a invisibilidade social na qual essa minoria étnica tem sido submetida. E afirma: Na América Latina, inclusive no Brasil, a diversidade dos povos indígenas ainda é insuficientemente reconhecida. A relação que historicamente o estado mantêm com “os índios”, um rótulo genérico que persiste junto à desgastada tutela, continua mascarando as diferenças que existem entre os mais de 210 povos, cujos modos de vida e tradições culturais são dinamicamente atualizadas em acordo com suas próprias experiências de convivência com outros povos, indígenas ou não (GALLOIS, 2006, p. 61). Assim ciente da relevância dessa discussão é oportuno referenciarmos à Carta do Cacique Seattle (1855) que apesar de ter sido escrita há mais de 100 anos, é cada vez mais atual, ao afirmar que “Nós mesmos sabemos que o homem branco não entende nosso modo de ser. Para ele um pedaço de terra não se distingue de outro qualquer, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa” (SEATTLE, 1855, p.1). Fato é que “Todas as coisas estão relacionadas como o sangue que une uma família. Tudo está associado. O que fere a terra fere também aos filhos da terra” (SEATTLE, 1855, p.1), ou seja, percebe-se uma tendência em se considerar, desde há muito, a cultura indígena com seus ensinamentos, tradições e crenças um indiferente social, o que demonstra a ausência de respeito e principalmente de reconhecimento da diversidade cultural como um Direito Fundamental. Nestes termos, salienta Jesús Prieto de Pedro (2011) que a cultura é um elemento essencial para o desenvolvimento pessoal do indivíduo e o estabelecimento da igualdade e da solidariedade no seio social. E conclui: [...] proponho entender os direitos culturais como aqueles direitos fundamentais que garantem o desenvolvimento livre, igual e fraterno dos seres humanos em seus diferentes contextos de vida, valendo-nos dessa singular capacidade que temos, entre os seres vivos, de simbolizar e criar sentidos de vida que podemos comunicar aos outros (PEDRO, 2011, p. 47). 214 O meio ambiente equilibrado como condicionante... Essa breve explanação demonstra a profunda articulação entre o meio ambiente equilibrado e a liberdade cultural do povo Wayãpi evidenciando a importância do patrimônio cultural, tanto para a diversidade cultural como para o desenvolvimento sustentável e a manutenção da biodiversidade na Amazônia. Reconhecer e valorizar a liberdade cultural do povo Wayãpi, ou seja, suas tradições, rituais e os conhecimentos e práticas relacionados à natureza que mantém o equilíbrio sustentável na Renca e suas técnicas artesanais é a melhor forma de proteger a biodiversidade na Amazônia. Conforme conclui Dominique Tilkin Gallois (2006) a melhor forma de garantir a proteção da biodiversidade é por meio do incentivo e da valorização da diversidade cultural de um povo, “...a criatividade cultural é um elemento chave para o desenvolvimento humano” (GALLOIS, 2006, p.60). 5) Considerações finais O trabalho ora realizado escolheu como objeto de estudo o patrimônio cultural do povo Wayãpi, demonstrando a relevância do equilíbrio ambiental para a manutenção da sustentabilidade na Amazônia, bem como para a diversidade cultural desse povo, que desenvolve suas tradições, objetos, costumes e suas práticas alimentares em consonância com a natureza, favorecendo a renovação dos recursos naturais e das tradições culturais por gerações. Respondendo à questão exposta na introdução da pesquisa, qual seja: observando as situações de intervenção do homem no meio ambiente, é possível concluir que o meio ambiente equilibrado é condicionante para a manutenção do patrimônio cultural do povo Wayãpi? Têm-se a conclusão a seguir apresentada. A cultura indígena, seus ensinamentos, crenças, traições, tem muito à contribuir para o manejo sustentável do meio ambiente pelo homem. O povo Wayãpi busca na natureza apenas o necessário para sua sobrevivência, mantendo o equilíbrio ambiental como garantia de acesso a direitos fundamentais básicos, como saúde, educação, segurança e a perpetuação de seus ensinamentos atravessando gerações. Cabe destacar que a partir do momento que a liberdade cultural do povo Wayãpi não é respeitada, sendo violadapor meio de intervenções do homem no meio ambiente, perde-se a identidade de um povo que habita o Brasil antes mesmo de 1.500 e que mantém o equilíbrio na natureza e a sustentabilidade ambiental. Nesta perspectiva, o estudo permitiu compreender que o meio ambiente equilibrado é um condicionante para o exercício dos outros direitos fundamentais e deve ser visto como elemento integrante de uma vida com dignidade. E a melhor forma de garantir essa dignidade é nos anteciparmos aos impactos ambientais por meio de medidas de precaução, que garantirá a prevenção dos riscos iminentes e dos riscos futuros sem comprometer as futuras gerações. Conclui-se que existe uma profunda articulação entre o meio ambiente 215 Fabrício Veiga Costa, Deilton Ribeiro Brasil & Elaine Aparecida Barbosa Gomes equilibrado e a liberdade cultural do povo Wayãpi evidenciada pela importância do patrimônio cultural, tanto para a diversidade cultural como para o desenvolvimento sustentável e a manutenção da biodiversidade na Amazônia. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ALEM, Nichollas.O que são direitos culturais? 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Proteção do meio ambiente e sustentabilidade como caminhos para a efetivação do direito fundamental à qualidade de vida. In: XXVI Congresso Nacional do CONPEDI, 2017, São Luís-Maranhão, 2017. v. 21. p. 204-220. BRASIL. Direito cultural é um direito fundamental. Brasília: Ministério da Cultura, 2016. Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques//asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/direito-cultural-e-um-direitofundamental/10883>. Acesso em: 24 abr. 2018. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. em:<http://www.mma.gov.br/clima/protecao-da-camada-deozonio/item/7512>. Acesso em: 14 abr. 2018. Disponível COELHO, Teixeira. O novo papel dos direitos culturais: Entrevista com Farida Shaheed, da ONU. In: Revista Observatório Itaú Cultural. Direitos Culturais: um novo papel. Número 11, Jan./abr., 2011. São Paulo: Itaú Cultural, 2011. p. 15-26. Disponível em:<file:///C:/Users/elain/Downloads/REVISTA_OBSERVAT%C3%93RIO_I TA%C3%9A_CULTURAL_-_DIREITOS_CULTURAIS.pdf>. 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A solução não se afigura propriamente inovadora, no que toca à possibilidade de recurso à arbitragem, já que esta tem sido a via mais vulgar, desde há muitos anos, para a resolução de litígios (dos grandes litígios) relativos à contratação pública. A novidade tem a ver, outrossim, com as soluções concretas do regime jurídico agora introduzido, no artigo 476º do CCP revisto, a qual não está isenta de reparos e tem recebido algumas críticas contundentes, tecidas por autores apologistas da solução arbitral mas críticos do regime jurídico agora vertido na lei. Vejamos, pois, a questão que está na origem desta controvérsia. O recurso à arbitragem voluntária para resolução dos litígios emergentes de contratos públicos é uma realidade de longa data, em Portugal. Tradicionalmente, a resolução deste tipo de litígios recorria à arbitragem ad hoc, de acordo com as regras da Lei de Arbitragem Voluntária, caraterizada pela livre escolha dos árbitros, pela falta de publicidade e transparência das suas decisões (secretas, por natureza, à luz do regime jurídico resultante da LAV - Lei de Arbitragem Voluntária). Desde 1984 com o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), ficou clara a possibilidade de resolução de litígios por recurso à via arbitral, em matéria administrativa. O CPTA de 2003/2004 e o CCP de 2008 reforçou esta via de resolução dos litígios administrativos, com particular relevo na contratação pública. Esta maior amplitude ou abertura à arbitragem teve como principal razão a extrema morosidade dos tribunais administrativos, à qual se junta a preferência pelo recurso a árbitros especializados nas matérias em discussão, de particular complexidade, nomeadamente em sede de 1 Texto da Conferência proferida no II CIDIGIN, II CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE DIREITO, GOVERNANÇA E INOVAÇÃO, realizado no IPMAIA, em 9 junho de 2018 – Conferências Plenárias (Keynote speaker). 2 Doutora em Direito Público; Docente e Coordenadora do Mestrado em Solicitadoria do Instituto Politécnico da MAIA (IPMAIA); Presidente do Conselho Técnico-Científico do IPMAIA; Docente da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto (ULP); Advogada; Árbitro CAAD em matéria Tributária e Administrativa. Investigadora do IJP, N2i; I2J e Grupo de Investigación en Derecho Público Global – Universidade da Coruña. Maria do Rosário Anjos contratação pública. 2) A Arbitragem institucionalizada: a criação e implementação de centros de Arbitragem com competência em matéria administrativa O alargamento do âmbito de matérias administrativas arbitráveis, abriu caminho para a criação de centros de arbitragem institucionalizada. O primeiro centro de arbitragem com competência administrativa foi criado em 2006, pelo Conselho Regional da Ordem dos Advogados de Lisboa, designado por Centro de Arbitragem de Litígios Civis, Comerciais e Administrativos da Ordem dos Advogados (CAL). A Ordem dos Advogados esteve, sem dúvida, na origem deste novo meio de concretização do imperativo constitucional de acesso ao direito e a uma decisão justa em tempo útil. Mas, o reduzido número de processos, indicia que não tem sido um sucesso nesta matéria. Em 2009, o legislador português decidiu avançar com a criação do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), centro de arbitragem pública, sujeito a regras de transparência e publicidade das suas decisões, lista pública de árbitros e um conselho deontológico que garante a ética e isenção necessárias à função. Importará referir que o nascimento deste centro de arbitragem institucionalizada ocorreu após uma reforma administrativa profunda em sede de regime jurídico do emprego público, com a introdução da lei de vínculos e carreiras (LVCR) em 2008, acompanhada pelo novo regime jurídico de avaliação de desempenho (SIADAP) e pelo estatuto disciplinar dos trabalhadores que exercem funções públicas, introduzidos na ordem jurídica portuguesa e plena aplicação a partir de 2008. Ao tempo da criação do CAAD o número de processos pendentes nos tribunais administrativos e fiscais (TAF) era superior a 45.000 (quarenta e cinco mil) segundo números divulgados pela Direção Geral de Administração da Justiça. A situação era, pois, caótica, reconhecida por todos os agentes de realização da justiça, entre os quais, destacamos o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a ordem dos Advogados, o Sindicato dos Funcionários Judiciais, e muitas outras forças da sociedade civil que recorrentemente bradavam por maior celeridade e pela tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos, conforme decorre da Constituição da República Portuguesa. A tudo isto se juntou a crise económica devastadora, com início em 2008, recidiva em 2011 e a derrocada das finanças públicas do país com a necessidade de pedido de ajuda internacional. Esta “tempestade perfeita” associada á descredibilização da justiça determinou a impossibilidade de reclamar mais meios ou maior despesa para a concretização do acesso à justiça pública, estadual, dispendiosa e escassa de resultados. A reflexão sobre este tema, em si, determinaria uma outra conferência e outro plano de discussão. Será, realmente, impossível pôr os nossos tribunais a funcionar com celeridade? Valerá a pena refletir no que falhou e na melhor via de superar as deficiências 220 A arbitragem na recente reforma do código dos contratos... de um sistema pensado para uma época em que Chegados aqui, a verdade é que o alargamento da via arbitral parece irreversível. Dito isto, importa salientar que, da análise estatística do número de processos administrativos submetidos à apreciação destes centros de arbitragem nos últimos dez anos, resulta que o recurso à arbitragem institucionalizada está longe de ser impressionante. Na verdade, o CAL tem registado um número muito reduzido de processos, podendo referir que, no ano de 2017, os dados divulgados pelo centro apontam dois processos concluídos, 214 notificações expedidas, algumas diligências efetuadas, 10 processos transitados de 2016 e 9 processos em curso. O CAAD, em matéria de litígios administrativos, tem recebido em média 40 a 50 processos por ano, o que está muito aquém do elevado número de processos em matéria tributária. 3) A Arbitragem em matéria de contratos públicos: o artigo 476º do CCP revisto A recente revisão do regime jurídico dos contratos públicos em Portugal, para transposição das Diretivas Europeias nºs 2014/23/UE, 2014/24/UE, 2014/25/UE e 2014/55/UE, introduziu, no seu artigo 476º, nº 2, um regime algo inovador nesta matéria. Aditado ao Código dos Contratos Públicos (CCP) por intermédio do Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, o art.º 476.º vem, na mesma linha do CPTA, consagrar a possibilidade de recurso à arbitragem institucionalizada ou a outros meios de resolução alternativa de litígios, nos termos da lei, para a resolução de litígios emergentes de procedimentos ou contratos aos quais se aplique o CCP (isto é, litígios emergentes de procedimentos de contratação pública). Inclui-se, assim, a impugnação de atos administrativos adotados no contexto de procedimentos de contratação pública; pedidos de condenação à prática de ato devido; questões respeitantes à responsabilidade civil das entidades adjudicantes; e, ainda, a impugnação de normas administrativas contidas nas peças procedimentais. Contudo, esta norma não se encontra isenta de críticas. A título de exemplo, é de notar que, caso a entidade adjudicante opte pelo recurso à arbitragem, os interessados em participar no procedimento concursal em causa terão de aceitar essa condição, o que retira a natureza voluntária que caracteriza o recurso a este meio de resolução de litígios. Embora não se trate de uma arbitragem necessária (por não ser imposta por lei), também não podemos afirmar que se trata de uma arbitragem voluntária, uma vez que só é verdadeiramente voluntária para a entidade adjudicante. Tal implica que, para além dos impedimentos constantes no art.º 55.º do CCP, só poderão participar no procedimento os interessados que renunciem o recurso aos tribunais do Estado, 221 Maria do Rosário Anjos aceitando recorrer à arbitragem, nos termos estabelecidos pela entidade adjudicante. Só poderão participar no procedimento os interessados que renunciem ao recurso aos Tribunais do Estado, aceitando recorrer à arbitragem, nos termos estabelecidos pela entidade adjudicante., o que é, no mínimo polémico. Todavia, esta não é a única critica que podemos apontar á solução vertida no art.º 476.º do CCP3. A revisão do CCP, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto, passa a estabelecer, no novo artigo 476.º, n.º 5, que, “nos litígios de valor superior a 500.000 €, da decisão arbitral cabe recurso para o tribunal administrativo competente, nos termos da lei, com efeito meramente devolutivo”. Ora, como bem refere o Professor Doutor Rui de Medeiros (MEDEIROS, R.2018, pg. 3) “A maioria da doutrina tende a interpretar o novo preceito legal no sentido de que, para além da possibilidade de impugnação das decisões arbitrais prevista no artigo 185.º-A do CPTA na revisão de 2015 – revisão que expressamente revogou o anterior artigo 186.º, n.º 2, onde se lia que “as decisões proferidas por tribunal arbitral também podem ser objeto de recurso para o Tribunal Central Administrativo, nos moldes em que a lei sobre arbitragem voluntária prevê o recurso o para o Tribunal da Relação, quando o tribunal não tenha decidido segundo a equidade” –, se pretende reintroduzir a regra, eliminada na revisão do CPTA de 2015, do direito ao recurso. É certo que há quem advogue uma “interpretação bem diferente” segundo a qual “o recurso aí previsto é para ser exercido «nos termos da lei»”. Nesta leitura, “essa expressão referir-se-ia à possibilidade de recurso e não ao «tribunal administrativo competente». Ora, a ser assim, o recurso acima de 500.000 € só existe «nos termos da lei», ou seja, se as partes convencionarem a sua existência, tal como estipulam os artigos 185.º-A do CPTA e 39.º, n.º 4, e 46.º, n.º 1, da LAV. Já abaixo desse montante, resultaria a contrario que nunca haveria lugar a recurso”. Este Autor, bem assim como o Conselheiro Carlos Cadilha, entre outros que já se pronunciaram sobre esta questão, suscita sérias dúvidas sobre a constitucionalidade da solução. Este daria um bom tema para uma outra conferência. Para finalizar, uma nota breve para a criação recente de um outro centro de arbitragem, sob a égide da Associação Portuguesa de Mercados Públicos (APMEP), criado por Despacho nº 7534/2016, de 7 de junho de 2016, do Gabinete da Exma. Senhora Secretária de Estado da Justiça, o qual é talhado especificamente para este tipo de arbitragem institucionalizada (apesar de ao tempo já existir o CAAD, centro de arbitragem administrativa pública). Não deixa de surpreender que a criação deste Centro tenha mesmo antecipado a reforma do próprio CCP e, tanto quanto me foi possível 3 Para maiores desenvolvimentos, cfr., entre outros, MARTINS, A. G., “A arbitragem na contratação pública: algumas questões”, in RDA, Nº 1 – Janeiro-Abril 2018. No mesmo sentido, Vd. Medeiros, R. “Regime de recurso das decisões arbitrais no CCP revisto – uma reflexão constitucional”, in Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo e Arbitragem, #01.2018, pag. 3 – 22; e, ainda, Cadilha, C., “ A arbitragem no novo CCP, in Conferência proferida no CAAD, em 8 de fevereiro de2018, in www.caad.pt. 222 A arbitragem na recente reforma do código dos contratos... apurar, a recente Lista de árbitros foi constituída sem consulta pública para o efeito. De notar que, no caso do CAAD, a lista de árbitros obedece a concurso, ou seja, a consulta pública anual, permitindo um amplo acesso dos juristas com curriculum adequado aos pressupostos legais de recrutamento, cm total transparência. Estima-se para breve o alargamento da competência do CAAD em matéria administrativa de modo a abranger o contencioso de contratação pública, no novo formato, muito mais amplo, instituído pelo artigo 476º do CPP. Ficam, no essencial, expostas as nossas maiores dúvidas em torno do regime de recurso das decisões arbitrais no CCP revisto, que se traduzem, por um lado na natureza obrigatória que assumirá nos casos da entidade pública assim o desejar e no regime de recurso da decisão arbitral. Estas duas questões, atento o elevado valor que estes processos podem assumir, devem merecer uma particular atenção da comunidade jurídica. Neste contexto, seria urgente a elaboração de uma lei da arbitragem administrativa, já que o conjunto de normas que regulam esta matéria (v.g., art.ºs 180.º a 187.º do CPTA e 476.º do CCP, bem como a aplicação subsidiária da LAV) não se afigura suficientemente claro para responder a todas as especificidades que os litígios emergentes do Direito Público acarretam. Em conclusão, a nova solução introduzida no artigo 476º do CCP terá de ser cuidadosamente aferida á luz dos princípios jurídico constitucionais vigentes na nossa ordem jurídica. Não se pode aceitar sem alguma preocupação, que sejam afastados os nossos tribunais administrativos deste contencioso, que envolve processos de elevados montantes pagos pelo Estado ou outros entes públicos, sem que pelo menos, todos os Centros de Arbitragem institucionalizada gozem de igual transparência, publicidade e acessibilidade. A este propósito, espero que a arbitragem em contratação pública, tal como está configurada no atual artigo 476º do CPP não se assuma como uma via opaca ou menos transparente de realização da justiça administrativa, mormente, numa matéria em que deve imperar o princípio da prossecução do interesse público e a boa administração dos dinheiros públicos provenientes do colossal e por vezes desumano esforço dos contribuintes portugueses. Que o afastamento dos nossos Tribunais Administrativos e Fiscais destas matérias que envolvem valores elevados e manifesta repercussão social e económica não conduza ao desprestígio da arbitragem, pois daí resultaria uma dupla perda para a concretização da boa administração da Justiça. REFERÊNCIAS ANJOS, M. R., “O âmbito Material da Arbitragem Tributária à luz da Jurisprudência Arbitral”, revista Arbitragem tributária nº2 janeiro 2015, pág. 12 a 17 223 Maria do Rosário Anjos __Reenvio Prejudicial por tribunal arbitral tributário e Imposto de Selo sobre aumentos de capital - Comentário ao Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 12 de Junho de 2014 - «Acórdão Ascendi» -Artigo publicado na Revista de Direito da Universidade Lusófona do Porto – nº5 __O Âmbito material da Arbitragem Tributária à luz da jurisprudência arbitral, revista Arbitragem Tributária, nº2, 2015, pp12-19 CADILHA, C. “A arbitragem no novo Código de Contratos Públicos”, in Conferência CAAD, 08 de fevereiro de 2018, in www.caad.pt MARTINS, A. G., “A arbitragem na contratação pública: algumas questões”, in RDA, Nº 1 – Janeiro-Abril 2018. MEDEIROS, R., “Regime de recurso das decisões arbitrais no CCP revisto – uma reflexão constitucional”, in Cadernos Sérvulo de Contencioso Administrativo e Arbitragem, #01.2018 224 NEOLIBERALISMO E PRECARIEDADE: O BRASIL NO CONTEXTO DAS LUTAS GLOBAIS Augusto Jobim do Amaral1 Cássia Zimmermann Fiedler2 1) Introdução No ano de 2011, lutas sociais emergiram nas mais diversas partes do globo. Aquilo que aparentemente apontava um contexto de instabilidade, como crise do capitalismo global, teve seu início em meados de 2008. Porém, não se tratava de uma simples crise econômica, e sim, de ocorrências que destacavam algo muito mais profundo. Uma análise meticulosa das adversidades indicava fundamentalmente uma débâcle no modo de governo neoliberal. Em suma, um modo de governo que controla a economia e os indivíduos, buscando uma generalização do mercado e da concorrência.3 Assim, poderíamos apontar uma ligação nem sempre óbvia entre a crise de representatividade política e o esgotamento da democracia liberal, relacionando-as aos processos de neoliberalização da vida que são desencadeados ao redor do mundo. Desta forma, esta conjuntura, possivelmente, é capaz de expressar os rumos das sociedades no mundo globalizado e financeirizado que se sustenta por princípios de concorrência internalizados por pessoas e Estados. Nesse sentido, o movimento que aparece no Brasil em junho de 2013 não seria consequência de uma crise econômica, mas sim de um malestar que transparece no sistema global4. No Brasil, o movimento denominado “Jornadas de Junho”, que levou milhões de pessoas às ruas, carregou uma complexidade de fatores que constituiu sua expressão política. Em linhas gerais, pode-se dizer que o movimento teve início nas cidades de Porto Alegre e São Paulo, através da convocatória do “Bloco de Lutas” e do “Movimento Passe Livre”5. Os integrantes, preliminarmente, demandavam a diminuição no valor das passagens do transporte público. Assim, as particularidades do cenário nacional serão exploradas com a finalidade de exteriorizar as peculiaridades do movimento, em especial, através da análise do modelo “lulista”, visto como saldo final uma decomposição 1 Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra. Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul (PUCRS). 2 Graduanda em Direito e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul (PUCRS). Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa “Criminologia, Cultura Punitiva e Crítica Filosófica” (PUCRS). Bolsista de Iniciação Científica do projeto “Poder Punitivo e Criminalização de Movimentos Sociais: o caso das jornadas de junho de 2013 em Porto Alegre” 3 DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 27 4 BONFIGLI, Fiammetta. Jornadas de Junho?: movimentos sociais e direito nas ruas de Porto Alegre. Canoas: Unilasalle, 2017. p. 93. 5 MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler do corpo político brasileiro e o esgotamento da esquerda.6 2) Neoliberalismo e o ciclo global de lutas No ano de 2008 a crise econômica e financeira em termos mundiais, alavancada pela bolha imobiliária e representada simbolicamente pela falência do Banco de Investimentos Lehman Brothers, tomou desdobramentos inéditos ao menos desde 1929. Tal derrocada, em grande medida, é fruto de políticas neoliberais. Porém, longe de destruir a lógica concorrencial, como muitos anteciparam na Europa e Estados Unidos,7 causou sua rigorosa fortificação. Assim, estes efeitos não foram suficientes para apontar o esgotamento do neoliberalismo. Justamente o contrário. Em situações de desequilíbrio, o neoliberalismo possui uma colossal capacidade de ganhar força, na medida em que há a implantação de novas normas e instituições que fortalecem sua lógica concorrencial8. Não obstante, o ataque direciona-se para as classes subalternas. Vulnerabilizados passam a pagar pela crise por meio de planos de austeridade e da diminuição do padrão de vida9, medidas essas, em grande medida, centradas no ataque aos direitos sociais. Logo, natural que sindicatos e partidos trabalhistas tenham sido drasticamente enfraquecidos pelas mudanças econômicas e políticas que se construíram nesse contexto mundial. Consequentemente, é possível observar uma preliminar dessindicalização nos países capitalistas desenvolvidos, resultando na desindustrialização e uma deslocação de fábricas para países com salários baixos, sem tradição de movimentos sociais, ou até mesmo, com governos despóticos10. Em suma, há um deslocamento da estrutura industrial dos países do Norte global para os países do Sul global11, enfraquecimento da segurança ocupacional, gerado por uma retirada de direitos trabalhistas, e uma diminuição de apoio a partidos social-democratas. Assim, existe um declínio das forças sindicais, gerando uma queda da influência política dos trabalhadores em escala nacional12. SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 96-97. DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 13 8 Idem, p. 14. 9 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 23. 10 DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 221 11 “[...] “Sul Global” contém uma dimensão explicitamente política, atada aos protestos e às denúncias das relações de exploração, opressão e espoliação impostas pelo Norte Global à semiperiferia do sistema, os quais intensificaram as tensões entre a forma democrática da regulação política e a dimensão autoritária do regime de acumulação financeirizado.” (BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 30-32). 12 “Em escala global, a densidade sindical, apesar de alguns avanços e recuos sazonais, é declinante. Além disso, os sindicatos alternativos ao burocratismo fordista organizam apenas uma pequena parte dos trabalhadores, e a maioria de suas bases sociais vive em países relativamente ricos do Norte global, onde a participação das classes trabalhadoras na população economicamente ativa segue estagnada ou baixa”. Idem, p. 26. 6 7 226 Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das... Apesar das questões expostas, fica claro que a introdução de políticas neoliberais e a precarização do trabalho vieram conjuntamente com a intensificação da resistência e lutas sociais nas mais diversas áreas do planeta.13 Pode-se dizer que a possibilidade de negociação dos sindicatos enfraquecidos vai se dissipando, fazendo com que os protestos apareçam e, através deles, se façam exigências aos governos. De Seattle a Porto Alegre, movimentos emergem de forma “espontânea” no contexto da nova onda de mercantilização que surge em virtude da globalização14. Aquilo que demandavam os novíssimos movimentos sociais15, com marchas no Oriente Médio (Tunísia, Egito, Síria, Líbia etc.), poderia ser traduzido basicamente por dois gerais eixos: democracia e liberdade de expressão. Já na Europa, ambiente mais próximo da realidade brasileira, se apresenta uma resistência a reformas econômicas, desemprego e uma rejeição a políticos que botam em prática ações que não se alinham aos interesses da população. Basicamente, no cenário Europeu, teremos o levantamento de questões que se ligam a matérias socioeconômicas e políticas esquecidas desde 1960. As explicações para tal acontecimento se multiplicam cada vez mais, porém, a maioria perpassa pela aplicação de políticas socioeconômicas excludentes do capitalismo globalizado, que consequentemente aumentam a assimetria social16. Especificamente no Sul Global, o avanço do processo de acumulação econômica e a mercantilização do trabalho irá estimular a aparição de movimentos em proporções nacionais, como forma de resistência frente à tentativa de eliminação do modelo sindical. Logo, à medida em que se operacionalizam estratégias para reduzir direitos sociais e o custo do trabalho, há um crescimento do poder de organização do trabalhador e intensificação de lutas sociais. Tais processos podem ser compreendidos a partir do entendimento da transformação dos setores industriais no contexto da globalização capitalista. A modernização imposta pelo assíduo cenário da concorrência mundial implementa uma reestruturação empresarial que reinventa prioridades e abandona o mercado interno em benefício do mercado internacional. Os mais atingidos são trabalhadores com baixo grau de escolarização e que estão a mais tempo no meio industrial. Entre os mais antigos e a nova geração de trabalhadores tensões são presentes. Os mais jovens se adaptam com menos relutância a mudanças, por exemplo. O que não é muito aceito pelos trabalhadores mais experientes, pois essa conformidade dá uma ideia de conciliação entre o novo trabalhador e o discurso, teoricamente, desvantajoso da gerência. Tal situação pode ser constatada no cenário de Portugal, que tem uma marcante inserção de jovens em condições precárias de trabalho e também inserção, que começa ainda nos anos 1960, de mulheres no setor terciário do país. Por conseguinte, formas tradicionais de opressão a mulher são intensificadas pela inserção da mulher em ambientes de precarização do trabalho característica do pósIdem, p. 26-27. Idem, p. 29. 15 CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. 16 GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2014. p. 22-23 13 14 227 Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler fordismo financeirizado que se dá a partir de uma acumulação acelerada acompanhada por políticas de privatização do sistema bancário e liberalização do fluxo de capitais financeiros em Portugal.17 Em suma, tratamos aqui, segundo Dardot e Laval, de uma crise global do neoliberalismo como modo de governar os homens. Tal cenário estaria profundamente ligada a uma série de experimentações que se deram entre os anos 1930 até 1970. Experimentações essas que começaram uma série de introduções de políticas de desregulação da economia e privatizações. Em 1980, regras com relação ao setor financeiro, que antes se centravam na proteção dos efeitos da concorrência, já haviam se modificado no sentido da proteção da própria concorrência. Assim sendo, já poderíamos descrever regras de uma concorrência universal que obrigam os países a entrarem em um sistema disciplinar mundial. É possível observar que a exigência da competividade se torna geral, comandando reformas em todas as áreas. Tratamos, portanto, não apenas de uma mercantilização, mas da expansão de uma racionalidade do mercado que irá definir toda a existência humana, generalizando a concorrência e colocando-a como norma de conduta, assim como define o modelo de empresa como aspecto de subjetivação18. 3) O esgotamento da esquerda no Brasil Quando tratamos especificamente do contexto brasileiro, poderíamos apontar o desenvolvimento de um modelo fordista periférico que se comporta de diferentes maneiras ao longo da história. Porém, o principal ponto é a superação desse fordismo periférico por um regime de acumulação pós-fordista e financeirizado que se instala em 1994 e se perpetua até os dias atuais. É a vitória eleitoral de Fernando Collor em 1989 que assegura o ingresso do neoliberalismo no cenário brasileiro a partir de ajustes no modo de regulação e acumulação que garantem o nascimento do pós-fordismo financeirizado no país. Quando Lula assume a presidência há, de fato, um ajuste nesse modo de regulação, porém, pode-se constatar que a regime de acumulação se consolida facilmente ao longo dos anos 200019. A era Lula foi marcada pela fusão de movimento sociais ao aparelho do Estado e o efeito eleitoral de promessas redistributivas que garantiam a desconcentração de renda. Além disso, houve ampliação do programa Bolsa Família, aumento do salário mínimo e concessão subsídio ao crédito popular, o que resulta em um crescimento econômico e fortalece a formalização das pessoas no mercado de Idem, p. 50-60. DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 27- 32. 19 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 97. 17 18 228 Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das... trabalho20. [...] há uma espécie de aceitação tácita do capitalismo como insuperável numa vasta gama de movimentos e partidos, inclusive dentre muitos que se autoproclamam de esquerda. Desse ponto de vista, ser de esquerda parece significar certa devoção para “minorar” as difíceis condições de vida de alguns setores sociais. Esse tipo de atitude adota a postura da filantropia mercantilizada e banaliza a suposição do fim do trabalho e das classes sociais, supostamente substituídas pela pobreza, excluídos, vulneráveis etc.21 Entre os grupos que podem ser enfatizados durante essa etapa da formalização do trabalho poderíamos apontar principalmente os operadores de telemarketings. Esse grupo traduz os rumos do mercado no Brasil na última década: formalização, presença de mulheres e pessoas jovens não brancas, terceirização, baixos salários e aumento da taxa de rotatividade no trabalho22. Por conseguinte, a partir do exame desse enredo, se abre a possibilidade de visualizar as contradições dentro do modelo pós-fordista, visto que, apesar da ampliação da formalização, existem condições precárias de trabalho que proporcionam circunstâncias que perpetuam uma angústia social. Até a chegada da crise da globalização em 201523, os efeitos da inserção de políticas neoliberais no cenário brasileiro foram sendo retardadas pelos empregos formalizados. Dessa forma, o mercado de trabalho permanecia estável e a desconcentração de renda não sofria graves alterações. Entre 2003 e 2015 há, portanto, um modelo pós-fordista apoiado na formalização de empregos, desconcentração de renda, conjuntamente com a precarização do trabalho. Vale ressaltar, esses novos trabalhadores não tendem a poupar. A alta do consumo se relaciona intimamente com o baixo custo de mercadorias, o que proporciona cada vez mais um aumento do estilo de vida capitalista. O país se vê caracterizado por um padrão pós-fordista que acumula e multiplica bens, enquanto se apoia no endividamento de famílias trabalhadoras24. Quando falamos especificamente do trabalho no governo petista há duas tendências aparentemente contraditórias. No cenário pode ser observada a formalização do trabalho em larga escala, ao mesmo tempo que há um aumento da terceirização das atividades, o que acaba desenvolvendo uma precarização e diminuição dos salários. Assim, mesmo formalizadas as pessoas ocupavam posições sub-remuneradas. Os novos empregos formais produziam uma sensação de insegurança muito parecida com a sensação que a informalidade trazia, pois há, como descrito anteriormente, uma relação Idem, p. 99. FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Kallaikia – Revista de Estudos Galegos, n.2, p. 88-112, junho de 2017. p. 111. 22 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 99. 23“[...] as tensões mais ou menos latentes entre o regime de acumulação e o modo de regulação, amainadas durante o período de boom econômico, foram se intensificando com a chegada da crise da globalização ao país, a pronto de se transformar em uma contradição social aberta” Idem, p. 117. 24 Idem, p. 105-107. 20 21 229 Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler íntima entre a terceirização e o regime de acumulação pós-fordista e financeirizado. Poderíamos dizer que existe uma melhora na situação brasileira, porém a lógica neoliberal não é rompida. Tratamos de um contexto em que há um enfraquecimento do modelo solidário fordista provocado por empresas reprodutoras da lógica neoliberal e pelo padrão de consumo que se estabelece no pós-fordismo. Avanços em relação a trabalhadores sindicalizados entram em choque com a precarização das classes subalternas. Ou seja, passa a existir uma relação complexa entre as demandas dos trabalhadores e políticas neoliberais que são postas em prática pelo Partido dos Trabalhadores. Apesar de parecer um partido predominantemente de esquerda, o governo pareceu ter consolidado um Estado incoerente. [...] Estado não existe fora e acima das contradições de classe concretamente existentes. Ele atua ex ante apoiando e ampliando as condições de expansão para o capital, aplainando os obstáculos legais. Atua também ex post, seja na legalização das práticas empresariais que ignoram as leis de maneira massiva, seja frente às reivindicações concretas dos trabalhadores, quando admite alguns freios às formas mais drásticas, introduzindo modalidades de amenização política das condições precárias de trabalho ou do desemprego25. Nesse sentido, poderíamos observar o surgimento de uma mercantilização do ativismo social que fortalece a burocratização do movimento sindical que se junta ao Estado. Trata-se do estabelecimento de uma intimidade entre empresários e sindicalistas que estabelece uma gestão competitiva nos moldes do liberalismo.26 Assim, a era Lula foi de extrema importância para o movimento sindical, contudo também foi uma era marcada pela absorção do próprio sindicalismo para dentro do Estado, transformando a elite sindicalista em uma administradora do investimento capitalista27. Existe, dessa forma, uma elite sindical que busca se fundir com o Estado para assegurar sua posição privilegiada. Vale ressaltar: acompanhando o momento pós-fordista, poderíamos constatar, como já foi dito, um maior acesso a direitos conjuntamente com a diminuição dos salários e o aumento das condições precárias de trabalho. Todo essa conjuntura que se constrói pressiona fortemente os sindicatos para que respondam às demandas. Os sindicalistas em um primeiro momento procuram diminuir a distância entre o trabalhador e a regulação, através do Estado. Quando essa tática parece perder efeito, os sindicatos passam a liderar greves28. Em suma, o aumento da constrição das bases sociais, impede um governo e sindicatos totalmente despreocupados que buscam atenuar a situação. Existe um movimento sindical, pressionado pela população FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Kallaikia – Revista de Estudos Galegos, n.2, p. 88-112, junho de 2017. p. 97 . 26 BRAGA, Ruy. A Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 171. 27 Idem, p. 105. 28 Idem, p. 117. 25 230 Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das... submetida a condições intoleráveis, que é obrigado a negociar com empresas e com governo para dar algum tipo de resposta ao povo. Historicamente o movimento sindical brasileiro exerce uma posição de agente que desempenha funções moderadoras com relação a demandas da população, na era Lula isso se mantém. Esse padrão, que não parecia verdadeiramente romper com as organizações tradicionais, pareceu estar ameaçado durante os anos de 1978 até 1980 quando se deu o clico grevista no chamado ABC paulista29. Lideranças políticas do sindicalismo, com Lula da Silva em posição de chefia, são presas pela ditadura civil-militar, e o sindicado dos Metalúrgicos, localizado em São Bernardo do Campo, passa a ser submetido a intervenções do regime antidemocrático. A princípio parecia acontecer uma ruptura entre o sindicalismo, subproduto do Estado brasileiro, e o movimento dos trabalhadores em si. Porém, em pouco tempo, São Bernardo do Campo volta a se conciliar com as estruturas de poder, isto é, com o aparelho do Estado Brasileiro do qual é fruto. Por aproximadamente duas décadas, Lula da Silva defendeu de forma prática ideias reformistas alimentadas por movimentos sociais que institucionalizam os direitos, ao mesmo tempo em que, a burocracia sindical que Lula liderava soube se alinhar a impulsos classistas que sustentavam greves e reproduziam logicas capitalistas. Em suma, o sindicalismo liderado por Lula aderiu perspectivas que são caracterizadas pela reprodução do capitalismo na semiperiferia. Por esses motivos, teremos a construção de uma importante figura que se apresenta como líder sindical e como político profissional, características essas que influenciam drasticamente a construção do PT e possibilitam a vitória na eleição presidencial em 200230. Assim, no contexto brasileiro, poderíamos apontar uma relação de dominação que se sustenta na dinâmica entre o consentimento passivo dos setores populares e o consentimento ativo das gerências dos movimentos sociais31. O sucesso desse governo, predominantemente de esquerda no Brasil, se deu basicamente por causa de um razoável momento econômico combinado com um reformismo debilitado, o que resultava em uma mínima desconcentração de renda que torna-se sedutora para as classes ditas desprivilegiadas. [...] a desconcentração de renda promovida pela tríade políticas públicas redistributivas, crescimento econômico e formalização do mercado de trabalho garantiu a absorção daquela massa de trabalhadores pobres incapaz de poupar e que transforma toda a entrada de dinheiro na base da pirâmide salarial em consumo.32 Em síntese, além de uma fadiga no suposto modelo de desenvolvimento, que se apoia no alto consumo das pessoas que são mão de obra barata, teremos o 29 ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho - o confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978/80. São Paulo: Unicamp, 1988. 30 Idem, p. 100-101. 31 Idem, p. 102. 32 Idem, p. 103. 231 Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler aprofundamento da crise da globalização que acompanha mudanças no regime de acumulação pós-fordista e financeirizado vigente no país, trazendo uma diminuição do crescimento da economia. Assim, é possível acompanhar um estado de inquietação social entre os anos de 2005 e 2010 que se transfigura em um indignação popular generalizada em 2013. Se trata basicamente de um processo histórico interno, mas também de uma dinamicidade estabelecida entre os países que se relacionam no contexto global neoliberal.33 4) Conclusão Movimentos sociais tem longa tradição na história do Brasil. Com o pretexto baseados nos mais diversos temas, em inúmeros momentos históricos, surgiram marchas ao redor do país. Porém, as marchas e protestos na atualidade carregam determinadas peculiaridades. Entre 1980 e 1990, teremos demandas como o retorno da democracia e reivindicações do meio rural, especificamente daqueles que se autoproclamam os “sem-terra”. 34 Atualmente, os protestos protagonizados tem expressam pedidos que poderiam ser descritos como “gerais e variados”, trata-se muito mais de uma rejeição daquilo que está posto do que um definição concreta de qual caminho se quer percorrer. “Os novos movimentos sociais, a princípio, não incorporam utopias grandiosas de emancipação social que exijam clareza político-ideológica. Pelo contrário, eles expressam, em sua diversidade e amplitude de expectativas políticas, uma variedade de consciência social crítica capaz de dizer “não” e mover-se contra o status quo.”35 Entre 2003 e 2014, o Brasil experimentou uma tentativa de implementação de um modelo de desenvolvimento socioeconômico que a princípio parecia bem-sucedido, não apenas para aqueles que integravam o governo, mas para os expectadores mundiais.36 No entanto, André Singer, cientista político, descreve o modelo como um “reformismo fraco”37, ou seja, um modelo que não traz uma reforma estrutural e não quebra com a ordem institucional. Assim esse modelo se mostrou como um empreendimento repleto de contradições, resultando em seu eventual esgotamento. O governo Dilma, que estava inserido dentro programa lulista, já apresentava, em seu segundo mandato, uma política econômica em direção a repercussões neoliberais que serão radicalizada por aqueles que irão tomar o poder38. A ilusão do lulismo é baseada na ideia de que seria possível se manter no poder Idem, p. 225. GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2014. p.64. 35 ALVES, Giovanni et al. Ocupar Wall Street e depois? Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 36. 36 SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p.79 37 SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 38 SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 79 -81. 33 34 232 Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das... apenas possibilitando um processo de ascensão social para a população. Porém, as contradições internas expunham uma fragilidade estrutural. Basicamente, existiu uma conservação de núcleos de poder e modelos de negociação que preservam sua estrutura oligárquica. Em mais de dez anos de governo nenhum passo foi dado para concretização de desfechos mais profundos como o aprimoramento de mecanismos de uma democracia direta. O preço que a esquerda paga por abraçar o “respeito à estabilidade da democracia” em detrimento de uma transformação de governabilidade, será a morte. A política foi abandonada, restou espaço apenas para uma deplorável gestão39. A Copa do Mundo de Futebol que encontrou-se no Brasil, contrastou com a fragilidade da vida nas cidades brasileiras e evidenciou os paradoxos do governo de esquerda. Dentro dos mesmos espaços foi possível observar o aparecimento de estádios milionários, ao lado de regiões com uma circulação de ônibus superlotados onde se encontravam trabalhadores, o que faz uma proposta de aumento de passagem, soar como no mínimo, contraditória. Basicamente, se tratava de uma vontade de lucrar derivada das empresas privadas de transporte, encoberta pelas explicações economicistas dos governos municipais e estaduais40. Tal atrevimento revela-se com uma natureza política que visa vantagem em detrimento de mínimas condições de vida para os trabalhadores. A compreensão dos fatos, se transmuta em uma luta política que toma corpo nas manifestações de junho no Brasil. Em junho de 2013, o Brasil experimentou protestos que, definitivamente, marcaram sua história. Milhões de pessoas ocuparam espaços físicos e digitais, manifestando sua imprevista indignação. Os prognósticos foram os mais diferenciados, desde reducionismos até analises banhadas em afetos e paixões, poucos perceberam que o cenário que se apresentava carregava uma complexidade dificilmente traduzível em palavras. Para alguns, como Vladimir Safatle, o movimento é considerado o mais importante da história recente, não pelo que foi construído, mas pelo que foi destruído. Basicamente, é possível visualizar o desmantelamento da esquerda brasileira41. O cenário estaria marcado por uma frustação social em relação aos representantes tradicionais, comprometidos com consórcios governistas. A estreita ligação entre o governo e a iniciativa privada facilita a ação do mercado, levando a população a sentir de forma rigorosa o esgotamento da democracia que se traduz, entre muitos aspectos, na higienização promovida pelo governo para sediar eventos mundiais42. Assim, surgem greves espontâneas e uma ascensão de estruturas autônomas. Dessa forma, mesmo o governo dito de esquerda não hesitou em responder a frustração popular com a criminalização. Ao se deparar com manifestações, aparentemente, sem líder definido, as organizações esquerdistas perceberam que estavam atrasadas. Em Idem, p. 85-87. Bruno. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho – outubro). São Paulo: Annablume, 2013, p. 115. 41 SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 107. 42 VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo, 2013, Boitempo. p. 33-40 39 40CAVA, 233 Augusto Jobim do Amaral e Cássia Zimmermann Fiedler síntese, a hierarquização e centralização típica desse tipo de organização era incapaz de se incorporar ao processo revoltoso43. A velha política, sem compreender o momento histórico que a estrangula, se pergunta “quem são os líderes”, “com quem devemos negociar?”44. Por esse motivo, 2013 foi inicialmente marcado, como já foi explicitado, por movimentos emancipados e sem partido. Por fim, poderíamos arriscar em dizer, que o motivo comum que pauta o momento revoltoso mundial é, em grande medida, marcado pelos efeitos diários do neoliberalismo. Ele transforma o capitalismo e as sociedades e influencia os contextos globais e individuais, disseminando uma lógica concorrencial, pautada no capital, para as relações humanas e comerciais. Levar o neoliberalismo a sério é observa-lo como um gestor de vidas. Só assim é possível questionar o status quo que o neoliberalismo mantém. Se quisermos, de fato, ter uma chance de resistir ao neoliberalismo, será necessário abrir uma alternativa positiva que se sustente em uma capacidade coletiva que use a imaginação para possibilitar novas experimentações e lutas.45 Muito conveniente seria, talvez, experiências e lutas que não aprisionam através da demanda pela determinação, independentemente daquilo que está por trás dos movimentos. É necessário a valorização dos momentos subversivos por eles mesmos, o que resulta, pelo menos de forma primária, no estilhaçamento das algemas da domesticação que aprisiona os pensamento e a ações, produzindo uma possibilidade totalmente inesperada de experiências verdadeiramente profundas. Dessa maneira, colocar o sistema em questão já se apresenta como uma conduta radicalmente subversiva.46 REFERÊNCIAS ALVES, Giovanni et al. Ocupar Wall Street e depois? Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, 2012. ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do trabalho - o confronto operário no ABC paulista: as greves de 1978/80. São Paulo: Unicamp, 1988. AMARAL, Augusto Jobim do. Polícia e democracia. O tempo que resta das jornadas de junho de 2013. Sistema Penal & Violência. Porto Alegre, v. 6, n. 2. jul.-dez. 2014. BONFIGLI, Fiammetta. Jornadas de Junho?: Movimentos sociais e direito nas ruas de Porto Alegre. Canoas: Unilasalle, 2017. BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São 43SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 107 -113. CARVALHO, Salo de. Contracultura e ativismo na web: os movimentos sociais, a “era das marchas” e a reinvenção da política. In: OLIVEIRA, Rafael Santos de. Direito e novas tecnologias da informação. Curitiba: Íthala, 2015. 45 DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 9 46 AMARAL, Augusto Jobim do. Polícia e democracia. O tempo que resta das jornadas de junho de 2013. Revista Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 6, n. 2, p. 174-195, julho-dezembro de 2014. 44 234 Neoliberalismo e precariedade: o Brasil no contexto das... Paulo: Boitempo, 2017. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. CAVA, Bruno. A multidão foi ao deserto: as manifestações no Brasil em 2013 (junho – outubro). São Paulo: Annablume, 2013. CARVALHO, Salo de. Contracultura e ativismo na web: os movimentos sociais, a “era das marchas” e a reinvenção da política. In: OLIVEIRA, Rafael Santos de. Direito e novas tecnologias da informação. Curitiba: Íthala, 2015. DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. GOHN, Maria da Glória. Sociologia dos movimentos sociais. São Paulo: Cortez, 2014. MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido!. In: Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. FONTES, Virgínia. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. Kallaikia – Revista de Estudos Galegos, n.2, p. 88-112, junho de 2017. SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017. VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013 235 TESTAMENTO VITAL: SUA APLICABILIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Margareth Vetis Zaganelli1 Larissa de Pizzol Vicente2 1) Introdução Com as recentes tecnologias torna-se possível estender a vida e evitar a morte. Entretanto, ao mesmo tempo que em este fato encontra respaldo positivo, surgem indagações se este paciente deseja se submeter ao tratamento a ele imposto, muitas vezes desgastante, invasivo e desproporcional. A bem da verdade, muitos indivíduos desejam uma morte natural e aceitam o fim da vida sem recorrer a métodos que prolongam a dor e o sofrimento, sem chances de obterem resultados satisfativos. O notável avanço médico vivenciado nos últimos tempos permitiu a inserção de novos métodos que permitem o prolongamento da vida, como técnicas de reanimação, transplantes e ventilação assistida. A moderna medicina que afasta a morte vem propiciando inúmeros debates sobre a adequação de recursos médicos em pacientes terminais. Seriam eles métodos invasivos, desproporcionais e extraordinários?3 A bioética surge para aplicar a ética e os princípios constitucionais em todo este progresso médico. O paciente terminal, amparado pela autonomia privada, possui o direito de optar pela realização ou não da técnica médica a ser aplicada quando já não possuir discernimento, ou seja, quando estiver incapaz irreversivelmente em decorrência de doença, acidente, etc. Para a manifestação desta autonomia, o indivíduo utilizará do testamento vital, ou também conhecido testamento biológico, documento que conterá a sua vontade de forma expressa e será utilizado pelo médico quando necessário. Ademais, o indivíduo possui a liberdade para se expressar e a autodeterminação asseguradas pela Constituição Federal. A partir de outra percepção, cria-se a dúvida de como conciliar esta autonomia garantida pelo Estado Democrático de Direito aos cidadãos com a indisponibilidade do direito à vida. Em suma, o testamento vital é gênero que - junto do mandato duradouro – faz parte das diretivas antecipadas da vontade, documentos em que se expressa a vontade pessoal a respeito de tratamento e técnica médica. As diretivas objetivam garantir a morte digna a pacientes que encontram-se em situações irreversíveis de doença, sem chances de obter a cura. 1 Doutora em Direito (UFMG); Mestre em Educação (UFES); Estágios Pós-doutorais na Università di Bologna (Unibo), na Università di Milano-Bicocca (Unimib) e na Università Degli Studi Del Sannio (Unisannio); Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do BIOETHIK - Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética (UFES). E-mail: mvestis@terra.com.br 2 Graduanda do Curso de Direito (UFES) e pesquisadora científica PIBIC 2017/2018. Membro do BIOETHIK – Grupo de Estudos e Pesquisas em Bioética (UFES). E-mail: larissadpvicente@gmail.com 3 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016, p. 106. Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente Embora o testamento vital tenha amparo constitucional garantido pela autodeterminação e pela dignidade da pessoa humana, o Brasil, diferentemente de diversos países ao redor do mundo, ainda não estabeleceu lei específica para regulamentar a matéria. O sistema brasileiro conta apenas com Resoluções do Conselho Federal de Medicina que, embora importantes, não possuem relevância jurídica e eficácia vinculativa de todos. O presente estudo tem por intencionalidade artigo abordar de forma pontual toda a problemática no entorno do testamento vital, por meio de metodologia qualitativa descritiva, com base em pesquisa bibliográfica e em documentos nacionais e internacionais, analisando os direitos e princípios envolvidos nas decisões dos pacientes, as características deste documento, sua forma e limites. Ademais, a regulamentação do testamento vital em diversos países, como Portugal, Espanha e Estados Unidos, será objetivo de estudo para uma maior compreensão acerca da necessidade de positivação deste documento no ordenamento jurídico brasileiro. 2) Diretivas antecipadas da vontade e testamento vital: definição destes mecanismos e aplicação na relação médico-paciente Diretivas antecipadas da vontade são documentos elaborados por indivíduos para encaminhar e delimitar o seu próprio tratamento médico, gerando seus efeitos a partir da incapacidade destas pessoas. Assim, as diretivas estão sempre relacionadas a danos irreversíveis ou à doenças terminais em enfermos. Estas instruções escritas contém duas modalidades: mandato duradouro e testamento vital. O mandato duradouro se relaciona à escolha de uma terceira pessoa para tomar as decisões. Com efeito, há delegação do poder de escolha para uma pessoa de confiança, ao contrário do testamento vital, em que o próprio paciente, expressa a sua vontade, por intermédio da autonomia privada. O objetivo deste trabalho é discorrer de forma crítica sobre este segundo gênero. Pois bem. Os debates travados no âmbito do testamento vital, documento conhecido também como testamento biológico, remetem à década de 1960 nos Estados Unidos, quando Luiz Kutner defendeu em um artigo a tomada de decisão do paciente a respeito de seu próprio cuidado médico, desde que já constasse a impossibilidade de cura da enfermidade. Desta forma, Kutner propôs o Living Will, espécie de documento que especificaria a recusa aos tratamentos médicos, era a base formal do testamento biológico que conhecemos. Este documento propõe que o paciente, em sua plena capacidade, determine os procedimentos médicos que anseia para o seu próprio cuidado, garantindo a autonomia de decisão ao paciente e o respaldo legal para o profissional da saúde tomar decisões face a existência de conflitos de interesses. O testamento vital deve, portanto, apresentar 238 Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico... duas características primordiais: facilitar o planejamento da morte e reforçar a autodeterminação dos doentes acerca das recusas aos tratamentos médicos que considera desproporcionais.4 No testamento vital a pessoa dispõe o seu desejo caso fique inconsciente em decorrência de cirurgias ou doença grave. Este desejo relaciona-se com a opção da pessoa de não aceitar a manutenção da vida de forma artificial ou, ainda, que “em situações em que venha a perder a consciência de modo prolongado, seus negócios sejam geridos por determinada pessoa e segundo determinadas instruções”.5 Assim, com a declaração de forma escrita e expressa surge o testamento vital, ato complexo que se resume como o desejo de última vontade. Embora o testamento vital não esteja regulamentado na legislação brasileira, a doutrina pátria tem discutido a necessidade de sua aplicação prática e de sua positivação no campo jurídico brasileiro, como observado em diversos países. O Conselho Federal de Medicina já adentrou à este âmbito com suas Resoluções a respeito do testamento vital, relacionando-o sobretudo à ética médica e à relação médico-paciente.6 Ademais, como ressalta Adriano Marteleto Godinho: o fato de inexistir previsão legal sobre o testamento vital no país não significa que se possa proclamar uma suposta incompatibilidade: em consonância com os princípios e normas que imperam ordenamento brasileiro, nada impede que se reconheça a validade daquele instrumento, que nada mais representa que uma relevante expressão da autonomia dos pacientes, com a particularidade, neste caso, de se tratar de um instrumento previamente elaborado, com o intuito de estabelecer diretrizes sobre intervenções médicas supervenientes.7 Hoje, com o desenvolvimento das novas tecnologias e dos diversos debates travados no âmbito dos princípios constitucionais e bioéticos da autonomia privada e da dignidade da pessoa humana, surge a reflexão sobre os direitos que se enquadram no âmbito do paciente terminal e da relação médico-paciente. Estaríamos falando de um direito de optar pela morte? Segundo Leo Pessini o que existe é um direito de “viver a própria morte”.8 4 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016, p. 109. LÔBO, Paulo. Direito Civil: Sucessões. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 237. Cleiton Francisco; STEFFANI, Jovani Antônio; BONAMIGO, Élcio Luiz; BORTOLUZZI, Marcelo Carlos; SCHLEMPER JR., Bruno Rodolfo. Testamento Vital na perspectiva de médicos, advogados e estudantes. Revista Bioethicos, São Paulo, v. 5, nº 4, p. 383-391, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A4.pdf> Acesso em: 26/05/2018, p. 385. 7 GODINHO, Adriano Marteleto. Diretivas antecipadas de vontade: testamento vital, mandato duradouro e sua admissibilidade no ordenamento brasileiro. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, nº 2, 2012, p. 945-978. Disponível em: <http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2012/02/2012_02_0945_0978.pdf>. Acesso em: 21/04/2018, p. 961-962. 8 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? Sao Paulo: Loyola, 2004. p. 75. 5 6PICCINI, 239 Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente 3) O testamento vital no direito comparado Embora o debate travado acerca do testamento vital seja recente no Brasil, o qual não possui ao menos legislação específica a respeito deste tema, diversos países ao redor do mundo se destacaram pelo pioneirismo no tratamento das diretivas antecipadas da vontade e, consequentemente, da proteção da autonomia privada, da dignidade humana e dos direitos dos doentes terminais.9 A análise da aplicação do testamento vital nos sistemas estrangeiros torna-se, pois, de suma importância para a compreensão da aplicabilidade do instituto no contexto jurídico brasileiro. Volta-se agora ao testamento vital, mas sob o enfoque da legislação estrangeira sobre o tema, com o direcionamento específico para a Itália e a Alemanha. a) O testamento vital no direito italiano Em dezembro de 2017 a Itália passou a tratar do testamento vital de forma expressa, ao inserir as disposições sobre a autonomia da vontade e o respeito à dignidade do paciente terminal em sua legislação pátria. A recente lei aborda basicamente oito pontos principais, são eles: o consentimento informado, a dignidade na fase final da vida, os menores e incapazes, os avanços do tratamento, o planejamento compartilhado do cuidado, padrão transitório, cláusulas financeiras e o relatório às Câmaras10. De forma geral, a lei italiana dispõe que qualquer pessoa capaz pode, por meio das diretivas antecipadas da vontade, expressar sua opção pelos tratamentos de saúde ou sua recusa em relação a eles. A decisão do paciente será então observada em uma possível situação de incapacidade futura, de modo que a sua vontade exteriorizada por meio do testamento vital ficará preservada. Nota-se que as disposições na recente lei permitiram a manifestação expressa tanto por escrito quando por vídeo, de modo que as disposições orais também são válidas. A legislação também permite a modificação, renovação e revogação do documento em caso de emergências a qualquer tempo. b) O testamento vital no direito alemão A Alemanha possui o instituto da Patientenverfügungen – Diretivas antecipadas da vontade - positivado no ordenamento jurídico alemão desde o ano de 2009, mais precisamente no Código Civil. A evolução da relação médico-paciente foi fundamental 9 BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito de família, São Paulo v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013, p. 112. 10 ITALIA, Senato della Repubblica - approvato dalla Camera dei deputati il 20 aprile 2017, in un testo risultante dall’unificazione dei disegni di legge. Disponível em: <http://www.senato.it/service/PDF/PDFServer/BGT/01013681.pdf>. Acesso em: 01/06/2018. 240 Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico... para que as discussões sobre a autonomia da vontade e o testamento vital se intensificassem na Alemanha. Tais mudanças são facilmente perceptíveis com a observância de alterações no Código Profissional da Associação Médica, o qual a partir da década de 80 já começou a tratar sobre a dignidade do paciente e o respeito a sua vontade.11 O projeto de lei das diretivas antecipadas da vontade, aprovado em 2009, permitiu a inclusão dos parágrafos 1901-A a 1904 no BGB, o Código Civil Alemão. Notase que a partir deste marco regulatório o testamento vital passou a conter requisitos formais que possibilitaram uma maior segurança jurídica aos pacientes. Além das disposições necessárias para se seguir à elaboração do documento, os artigos também trouxeram o conceito das DAV, qual sejam “as disposições de vontade escritas por um adulto maior de idade e capaz de consentir, para o caso de vir a se tornar incapaz de dar seu consentimento por um estado grave de saúde”.12 Embora sejam considerados grandes marcos regulatórios que preservam o direito à autodeterminação do paciente em estado terminal, o aditamento dos parágrafos no Código Civil deixou de tratar de matérias importantes quanto ao testamento vital, como por exemplo, o prazo de validade das diretivas antecipadas13. 4) Princípios relacionados ao testamento vital: a consagração da autonomia privada e da dignidade da pessoa humana Todos os debates travados ao redor do testamento vital e da possibilidade do paciente delimitar o seu tratamento médico leva à discussão sobre o direito à vida e, também, ao direito à morte digna. O direito à vida encontra-se consagrado na Constituição Federal, nos diversos tratados de direitos humanos e em todos os diplomas legais que vedam os crimes contra a vida. A dúvida que surge é: a nossa vida termina com a morte, mas ela também seria um direito? A morte muitas vezes é vislumbrada como doença e não como um fato da vida. Torna-se de suma importância distinguir a manutenção da vida com o método correto e a autorização da morte quando realmente não há opções. A ética e a sensibilidade dos direitos fundamentais devem ser vistos nesta perspectiva juntos à técnica e ao conhecimento científico, para assim, poder-se chegar a uma solução adequada no âmbito 11 LOHMANN, Ulrich. Patient Autonomy despite Inability to Give Consent – Legal Alternatives in Germany. Jounal of social policy and social work, Berlin, n. 14, p. 17-33, 2010. 12 GUSELLA, Gabriela Azeredo. ZAGANELLI, Margareth Vetis. Patientenverfügungen: direito à autodeterminação do paciente em final de vida no ordenamento jurídico alemão, p. 150-165. In: Diretivas Antecipadas da Vontade: autonomia e dignidade do paciente. Campos dos Goytacazes: Brasil Multicultural, 2017, p. 159. 13 STÜNKER, Joachim. Das Gesetz zur Patientenverfügung und wie es dazu kam. W. Kollhammer, Stuttgart, 2011. 241 Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente individual e social.14 É evidente que os médicos devem sempre prezar pela vida do paciente, todavia, a dignidade deste indivíduo e a sua autonomia privada devem restar asseguradas. Por tais motivos, o profissional da saúde não deve impor técnicas sem utilidade que causem um sofrimento desproporcional, quando não desejado pelo paciente. Na verdade, estes métodos considerados fúteis, invasivos e dolorosos não possuem como objetivo o prolongamento da vida, mas sim o prolongamento da espera pela morte. 15 De fato a autonomia privada encontra-se diretamente relacionada à possibilidade da pessoa tomar decisões e, assim, ajustar seus respectivos interesses pautados em uma liberdade constitucionalmente adquirida. Neste sentido, a partir da busca do testamento vital pelo cuidado com o sofrimento humano e com a opinião da própria pessoa, deve-se observar uma evidente garantia da dignidade da pessoa humana. 16 A dignidade da pessoa humana leva à concepção de que a vida digna é um direito de todos. Mas, além da discussão a respeito da dignidade em vida, o que se aborda diante do testamento vital é a escolha de morrer com esta dignidade. Como assinala Tartuce “trata-se de verdadeiro direito da personalidade, que deve ser reconhecido amplamente nas relações privadas existentes entre médicos e pacientes; e entre ambos e o hospital, seja ele público ou privado”. 17 Pois bem, a reflexão da existência de um direito subjetivo à morte digna encontra respaldo constitucional nos artigos 1º, inciso III e 5º, caput. A partir da análise destes artigos, observa-se que a dignidade da pessoa humana deve ser compreendida de modo sistêmico e dinâmico, a fim de trazer aos seus detentores o direito – e não o dever - de uma perspectiva de vida justa e sem sofrimentos. 18 Deve-se observar também que a autonomia privada, em especial a autonomia do paciente, encontra respaldo no art. 15 do Código Civil, preceituando que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”.19 Além do exposto, todos os princípios relacionados ao testamento vital convergem para o princípio bioético da beneficência. Este princípio impõe a obrigação de prezar em primeiro lugar pelo interesse do paciente, agindo sempre em favor deste e em acordo com as suas vontades e opções previamente definidas.20 É, seguindo estes valores, que as 14 BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. A dignidade no processo do morrer. In: PESSINI, Léo (Org.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2001, p. 283-296, p. 293. 15 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. 16 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. 6, p. 399. 17 Ibidem, p. 403. 18 SÁ, Maria de Fátima Freira de; MOUREIRA, Diogo Luna. Por uma proposta de efetivação do direito subjetivo a morrer com dignidade: o caso José Ovidio González e sua interface com o direito brasileiro. p.129-148. In: Medicina, direito, ética e justiça: Reflexões e conferências do VI Congresso Brasileiro de Direito Médico. Brasília: CFM, 2017, p. 143. 19 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 28/04/2018. 20 PICCINI, Cleiton Francisco; STEFFANI, Jovani Antônio; BONAMIGO, Élcio Luiz; BORTOLUZZI, Marcelo Carlos; SCHLEMPER JR., Bruno Rodolfo. Testamento Vital na perspectiva de médicos, advogados 242 Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico... diretivas antecipadas da vontade devem ser pautadas, bem como toda relação médicopaciente. Todavia, apesar da essência do testamento vital se relacionar à autonomia do paciente e sua capacidade de escolha, existem inúmeras barreiras na legislaçãoe, também, nos códigos dos profissionais da saúde que limitam a aplicabilidade integral deste documento.21 5) Requisitos formais para a validade do testamento vital Como já exposto, o testamento vital não é uma das formas de testamento civil, pois ocorre em ato inter vivos, caracterizando-se por ser um negócio jurídico não patrimonial. Ademais, sua forma é livre, contrariamente às formalidades impostas aos testamentos jurídicos do Código Civil. Devido à essa liberalidade formal basta que ocorra a comprovação, conforme o art. 107 do Código Civil22. Segundo Tartuce “trata-se, em regra, de um ato jurídico stricto sensu unilateral que pode, sim, produzir efeitos, uma vez que o seu conteúdo é perfeitamente lícito”. 23 Com efeito, o testamento biológico é evidentemente existente e válido, por possuir agente capaz, objeto lícito e não ser resultado de negócio jurídico defeituoso. O testamento vital se impõe, ainda, à condição suspensiva, pois torna-se necessário que o declarante esteja inconsciente.24 A utilização do testamento biológico ocorre diante da terminalidade da vida, considerando que os tratamentos médicos não foram capazes e suficientes para alterar o curso da doença25. A sua utilização está condicionada à certos requisitos formais de consentimento, como a aplicabilidade apenas nos casos de pessoas capazes, esclarecidas e informadas por profissional adequado.26 Além disso, a legalização deste documento exige: a confecção de formulário, com o intuito de padronizar os procedimentos; a possibilidade de revogação do testamento vital; a renovação da vontade em determinado prazo e a certificação para assegurar a autenticidade.27 Importante ressaltar que a capacidade civil atrelada ao testamento biológico é a relacionada ao discernimento, ou seja, é necessário que o indivíduo na época da elaboração do documento possa ter a consciência de que está exteriorizando sua real e estudantes. Revista Bioethicos, São Paulo, v. 5, nº 4, p. 383-391, out./dez. 2011. Disponível em: <http://www.saocamilo-sp.br/pdf/bioethikos/89/A4.pdf>. Acesso em: 26/05/2018, p. 385. 21 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas: efetivação para o paciente com segurança jurídica para o médico – é possível? In: Medicina, direito, ética e justiça: Reflexões e conferências do VI Congresso Brasileiro de Direito Médico. Brasília: CFM, 2017, p. 149-162, p. 155. 22 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. 6, p. 404. 23 Ibidem, p. 404. 24 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Sucessões. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 237. 25 Ibidem, p. 240. 26 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016, p. 110. 27 Ibidem, p. 110. 243 Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente vontade em relação aos tratamentos médicos.28 Ora, é evidente que o testamento vital somente pode ser utilizado por pessoas que detenham capacidade plena para entender e reconhecer os seus atos, por este motivo, torna-se difícil considerar que pessoas com alterações psíquicas possam redigir este documento. Nota-se que o testamento vital não será observado se ocorrer a modificação das circunstâncias que estavam presentes no momento da feitura do testamento, como por exemplo no avanço das tecnologias terapêuticas.29 Além disso, o testamento biológico não poderá ser contrário às disposições consagradas no ordenamento jurídico pátrio ou tratar de contraindicações às doenças.30 Um outro limite imposto ao testamento vital é a objeção de consciência do médico.31 A opção do profissional da saúde em não realizar determinados atos é bastante discutida e controversa, entretanto, encontra respaldo no artigo 28 do Código de Ética Médica brasileiro, o qual preceitua que é possível tal recusa segundo a sua consciência. Entretanto, faz-se necessário que essa objeção de consciência seja justificada e encaminhada para outro médico.32 O que se observa diante do testamento vital é a grande dificuldade em traduzir em um documento a complexidade dos procedimentos e técnicas médicas. Por este motivo, muitas legislações ao redor do mundo sobre o tema optaram por trazerem em seus formulários de testamento vital palavras e expressões genéricas que denotem apenas uma indicação sobre os princípios éticos a serem respeitados.33 Geralmente, esta generalidade está condicionada a não aceitação de métodos desproporcionais e invasivos de tratamento, sem contudo, especificar os atos médicos que poderão ser aplicados. Certo é que o ordenamento brasileiro ainda não possui Lei específica sobre o tema para delimitar todos estes aspectos primordiais na elaboração do testamento vital. Entretanto, como o sistema constitucional permite sua feitura, embasado na autonomia privada e na dignidade da pessoa humana, torna-se primordial discutir os requisitos formais e os limites impostos a este documento, o qual poderá estar cada vez mais presente em nossa sociedade. 6) O testamento vital no contexto brasileiro Após a análise dos conceitos e principais pontos referentes às diretivas antecipadas da vontade e a análise do direito comparado quanto ao tema, torna-se 28 BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito de família, São Paulo v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013, p. 99. 29 LÔBO, op. cit., p. 240, nota 26. 30 DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 3ª ed. São Paulo: Atlas S.A., 2015, p. 100. 31 Ibidem, p. 100. 32 Ibidem, p. 100. 33 NUNES, Rui. Diretivas antecipadas de vontade. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2016, p. 112. 244 Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico... primordial entender este mecanismo de autodeterminação dentro do ordenamento brasileiro. Como já ressaltado, o testamento vital não encontra-se de forma explícita na legislação pátria, apenas é vislumbrado no âmbito de princípios constitucionais ou, ainda, de Resoluções Médicas que vinculam profissionais da saúde. Como não é um testamento em essência, também não pode ser comparado aos testamentos do Código Civil, já que não dispõe de nenhum impacto sucessório, ou ainda, efeitos patrimoniais. Por tais motivos, diante das peculiaridades deste documento, evidencia-se a necessidade de intensificar as discussões sobre suas prováveis e possíveis bases teóricas e jurídicas. a) As resoluções do CFM - Conselho Federal de Medicina O testamento vital está inserido no contexto da relação médico-paciente. Este tipo de documento será útil ao profissional da saúde para resguarda-lo de possíveis responsabilidades diante do conflito entre utilizar ou não os tratamentos médicos disponíveis, considerando que existe uma decisão anterior do paciente quando este ainda possuía capacidade.34 No âmbito profissional existem as Resoluções do Conselho Federal de Medicina – CFM, entretanto, estas regras circunscritas às Resoluções médicas possuem uma eficácia restrita ao campo dos profissionais da saúde. Desta forma, os terceiros não encontram-se vinculados à determinação destas disposições. A Resolução 1.805/2006 foi a primeira Resolução do Conselho Federal de Medicina a tratar o procedimento da ortotanásia, reconhecendo-o como válido e permitindo ao médico a suspensão dos tratamentos que prolongam a vida de indivíduos em estado terminal.35 Destarte, nota-se que a Resolução 1.805/2006 abriu o caminho para a consagração da vontade do paciente terminal. Os médicos deveriam acatar a decisão dos indivíduos a respeito de realizar ou não determinados procedimentos e determinadas técnicas médicas consideradas invasivas.36 Todavia, desde 2009, com a entrada em vigor do Novo Código de Ética Médica, tal Resolução encontra-se derrogada. No ano de 2012, a Resolução 1.99537 consagrou que a vontade do paciente possui preferência em relação aos seus representantes legais, autorizando a decisão expressa e prévia dos indivíduos sobre as técnicas médicas que desejam em um momento de 34 BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito de família, São Paulo v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013, p. 105. 35 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.805/2006. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 28/04/2018. 36 FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento vital. Civilistica.com, Rio de Janeiro, a. 2, nº 2, abr./jun.2013. Disponível em: <http://civilistica.com/wpcontent/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf>. Acesso em: 28/04/2018, p. 14. 37 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.995/2012. Dispõe sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade dos Pacientes. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf>. Acesso em: 28/04/2018. 245 Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente incapacidade38. Observa-se com esta resolução um forte estímulo à autonomia privada e um maior suporte técnico ao testamento vital.39 A Resolução de 2012 ressalta que, diante da incapacidade dos pacientes, os médicos deverão sempre levar em consideração as diretivas antecipadas da vontade em relação aos desejos da família ou, ainda, pareceres não médicos. Entretanto, as diretivas precisam estar em consonância com o Código de Ética Médica.40 Embora possa ser considerado um avanço, não há como ignorar os aspectos polêmicos da Resolução do CFM, precipuamente, no que tange às contradições existentes com a legislação civil pátria. Como já exposto, não há regulamentação em lei específica no Brasil sobre o testamento vital, entretanto, Bárbara Rodrigues da Rocha 41 preceitua diversos pontos da Resolução que podem gerar questionamentos com a legislação civil. Em primeiro lugar, a Resolução de 2012 não trata de formalidades específicas, paradoxalmente às disposições testamentárias do Código Civil de 2002. Na Resolução 1.995/2012 o paciente estará autorizado a valer-se de sua vontade diante do médico, de forma direta, esta simplicidade poderá gerar diversas complicações interpretativas ou, também, conflitos de opiniões. Além disso, a Resolução nº 1995/2012 “falha quando estabelece a possibilidade de o médico descumprir a vontade do paciente, quando utiliza a expressão “velará em consideração”.42 Para o autor, esta expressão contida na supramencionada Resolução Médica não corrobora para a real finalidade do testamento vital, qual seja: possibilitar uma declaração de vontade do indivíduo sem vícios, assegurando que escolha a respeito de sua submissão no futuro à determinados procedimentos médicos. A capacidade do autor da declaração de vontade também é questão polêmica que merece atenção, uma vez que no testamento civil ela é comprovada na constância em que se realiza o ato, ou seja, no momento em que se escreve o testamento, contando ainda com a validação por duas testemunhas. Por outro lado, Bárbara Rocha argumento que não há aplicação desta exigência perante o testamento vital, pois As decisões dos médicos perante essa Resolução são passíveis de invalidade no plano civil fazendo que as diretivas antecipadas da vontade do paciente sejam contrárias as leis de acordo com o artigo 104 do Código Civil (para ser válido o ato, seu objeto deve ser lícito).43 38 ROCHA, Bárbara Rodrigues da. Autonomia em face do direito de morrer: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In: MEZZAROBA, Orides; FEITOSA, Raymundo Juliano Rego; SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SÉLLOS-KNOERR, Viviane Coêlho de (Org.). Biodireito - Coleção Conpedi/Unicuritiba. Curitiba: Clássica, 2014, vol. 3, p. 323-343, p. 339. 39 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Sucessões. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, v. 6, p. 401. 40 FURTADO, op. cit., p. 16, nota 38. 41 ROCHA, op. cit., p. 340, nota 40. 42 NEVES, Rodrigo Santos. O Testamento Vital: Autonomia Privada x Direito à Vida. Revista Síntese de Direito de Família, v.14, nº 80, p. 11-23, out./nov. 2013, p. 19. 43 ROCHA, Bárbara Rodrigues da. Autonomia em face do direito de morrer: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In: MEZZAROBA, Orides; FEITOSA, Raymundo Juliano Rego; 246 Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico... As Resoluções do CFM não estabelecem um liame definitivo entre as declarações expressas da vontade do paciente e a vinculação obrigatória do profissional da saúde. No entanto, caso o médico descumpra as disposições expostas pelo paciente determinando a submissão ou não à tratamentos médicos, violará princípios consagrados na Constituição Federal, como a autodeterminação.44 Pois bem. As Resoluções Médicas não são suficientes para evitar a responsabilização penal, civil e constitucional dos médicos. Torna-se necessária a regulamentação civil do testamento vital para solucionar as múltiplas controvérsias existentes e facilitar a relação médico-paciente. b) A problemática da regulamentação civil do testamento vital no Brasil Embora se verifique um gradativo avanço na discussão a respeito do testamento vital, influenciado pelas Resoluções do CFM, não há norma específica que o regulamente no Brasil, diferentemente de países como Estados Unidos, Argentina, Portugal, Uruguai e Espanha. A positivação das diretivas antecipadas da vontade no ordenamento estrangeiro leva à conclusão de que no Brasil ele também poderia seguir da mesma forma, consolidando-se na legislação pátria e servindo de instrumento de expressão da vontade de milhares de pacientes. Ainda que sem a devida regulamentação normativa, o testamento vital pode ser confeccionado no Brasil, pois os princípios inserido na Carta Magna, a exemplo da dignidade e da autonomia privada, servem de base para sua validação. Entretanto, o testamento vital não poderia ser contrário às regras vigentes no território brasileiro. O documento escrito expressa a decisão previamente manifestada pelo paciente terminal é a exteriorização da liberdade constitucional assegurada a todos os cidadãos brasileiros, “vez que este documento nada mais é do que um espaço que o indivíduo tem para tomar decisões pessoais, personalíssimas, que são – e devem continuar a ser – imunes a interferências externas”.45 Sobre o tema, ressalta Adriano Marteleto Godinho: A ausência de norma que regulamente as diretivas antecipadas no Brasil não serve como impedimento para o reconhecimento da sua validade, porquanto os testamentos vitais e os mandatos duradouros consistem apenas em antecipações das posições que seu autor adota quanto aos tratamentos SILVEIRA, Vladmir Oliveira da; SÉLLOS-KNOERR, Viviane Coêlho de (Org.). Biodireito - Coleção Conpedi/Unicuritiba. Curitiba: Clássica, 2014, vol. 3, p. 323-343, p. 340. 44 NEVES, op. cit., p. 22, nota 44. 45 DADALTO, Luciana. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Revista de Bioética y Derecho, Barcelona, nº 28, p. 61-71, maio 2013, p 66. 247 Margareth Vetis Zaganelli e Larissa de Pizzol Vicente médicos que, segundo seu juízo, são adequados. A edição de uma lei neste domínio, contudo, teria o duplo mérito de levar ao conhecimento da população a existência daquelas figuras, fomentando a sua celebração, e de eliminar diversas das controvérsias que ainda pendem sobre o tema.46 É efetivamente necessário que o testamento vital seja consagrado como normativa legal para garantir uma maior segurança jurídica aos pacientes que objetivam elaborar este documento, bem como aos médicos que também se inserem neste contexto e podem ser responsabilidades por suas decisões.47 Realmente, é preciso enfrentar as diversas dúvidas a respeito da efetiva regulamentação do documento testamento vital e, também, das diretivas antecipadas da vontade no sistema pátrio. As principais dúvidas existentes são: quem serão os legitimados a confeccionar este documento; quando será o melhor momento para a sua elaboração; qual a formalização para se obter validade e eficácia; como transmitir publicidade ao testamento e, também, se será possível a nomeação de procurador, como ocorre em alguns sistemas legislativos ao redor do mundo.48 Em suma, para responder a tais questionamentos a efetividade do testamento vital no Brasil precisa sair do Conselho Federal de Medicina e alcançar a normatização Nacional. A legislação específica será capaz de determinar contornos importantes deste documento, como capacidade, tempo adequado para a feitura do testamento e publicidade dos escritos. O Brasil deve espelhar-se no âmbito internacional e reconhecer a importância do tema, para que assim consolide uma melhor relação médico-paciente. 7) Considerações finais O testamento vital, principal gênero das diretivas antecipadas da vontade, é um importante documento que assegura a autonomia privada e a dignidade dos pacientes terminais. Utilizando-se do testamento vital os indivíduos podem manifestar a sua vontade de forma expressa e, assim, garantir que a sua decisão tenha efeitos quando estiver incapacitado e em estado terminal. Como visto alhures, o testamento vital atualmente não se encontra em nenhuma lei específica no direito brasileiro, entretanto, a falta de normatização não impede que este documento seja confeccionado no Brasil, uma vez que a ordem constitucional possibilita a feitura deste “testamento”. 46 GODINHO, Adriano Marteleto. Diretivas antecipadas de vontade: testamento vital, mandato duradouro e sua admissibilidade no ordenamento brasileiro. Revista do Instituto do Direito Brasileiro, nº 2, 2012, p. 945-978. Disponível em: <http://cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2012/02/2012_02_0945_0978.pdf>. Acesso em: 21/04/2018, p. 975. 47 DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas: efetivação para o paciente com segurança jurídica para o médico – é possível? In: Medicina, direito, ética e justiça: Reflexões e conferências do VI Congresso Brasileiro de Direito Médico. Brasília: CFM, 2017, p. 149-162, p. 158. 48 DADALTO, op. cit., p. 158-159, nota 47. 248 Testamento vital: sua aplicabilidade no ordenamento jurídico... A autonomia privada é evidentemente um direito de todos os cidadãos brasileiros. Por meio dela os indivíduos tem assegurada a liberdade de tomar decisões em consonância com as normas jurídicas pátrias, sem a restrição ou a influência de terceiros. Da mesma forma, o princípio da dignidade da pessoa humana, corolário do testamento vital, sempre deve ser visto em primeiro plano. Reitera-se, também, a consolidação do testamento vital em diversas doutrinas e sistemas alienígenas. Países como Itália e Alemanha já avançaram no âmbito das diretivas antecipadas da vontade, positivando em seus sistemas leis específicas que retratam a possibilidade da decisão do paciente prevalecer sobre a opinião médica, seguindo determinadas formas e limites. A relação médico-paciente ganha novos contornos no direito estrangeiro com preponderância da autodeterminação e da liberdade de dispor de suas próprias intenções. Pelo exposto, torna-se indiscutível a importância do testamento vital para futuros pacientes, seus familiares e médicos. Os debates travados no âmbito das diretivas antecipadas da vontade devem ser intensificados a fim de garantir segurança jurídica a todos os envolvidos nesta relação. É neste sentido que a elaboração de uma legislação única e específica sobre o testamento vital tem a sua mais profunda importância, versando sobre a autonomia privada do paciente em decidir se deseja passar por determinados procedimentos médicos ou não. REFERÊNCIAS BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. A dignidade no processo do morrer. In: PESSINI, Léo (Org.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Loyola, 2001, p. 283296. BOMTEMPO, Tiago Vieira. A aplicabilidade do testamento vital no Brasil. Revista Síntese: direito de família, São Paulo, v. 15, n. 77, p. 95-120, abr./maio 2013. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.805/2006. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 28/04/2018. ________. Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1.995/2012. Dispõe sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade dos Pacientes. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf>. 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Contudo, a previsão constitucional não encontra total sintonia com a realidade. Constatação dessa assertiva está no crescimento exponencial de demandas judiciais que buscam a tutela do Direito à Saúde, demonstrado nos relatórios anuais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em vista disso, tem se constatado no Brasil o fenômeno da Judicialização da Saúde de forma latente. Neste contexto, diversas são as hipóteses que o contencioso judicial brasileiro recebe no seu cotidiano, pleiteando-se que o Poder Judiciário determine ao Estado que cumpra com suas obrigações constitucionais. Dentre as distintas ações, destaca-se os requerimentos para o fornecimento de fármacos excepcionais e de alto custo, os quais não estão inseridos nos fornecimentos habituais do Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, grande é a dificuldade do julgador para ter uma decisão acertada sobre tais matérias. Por esse motivo, tem sido fomentado os Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (NAT-JUS), como subsídio profissional aos magistrados. No mesmo sentido, os Tribunais Superiores brasileiros têm consignado parâmetros gerais para os casos de determinação judicial outorgando a dispensa de medicamentos fora do rol preestabelecido pela Administração Pública. Observa-se, entretanto, que muitas das decisões e dos parâmetros fixadas, acabam por desconsiderar políticas já existentes e que se materializam em políticas em curso, como a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). Dessa forma, utilizando pesquisa descritiva por meio de método hipotético1 Doutora em Direito (UFMG). Mestre em Educação (UFES). Estágios Pós-doutorais na Università Degli Studi di Milano-Bicocca (UNIMIB-IT), na Alma Mater Studiorum Università di Bologna (UNIBO-IT) e na Università Degli Studi Del Sannio (UNISANNIO). Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Bioethik (UFES). Email: mvetis@terra.com.br. 2 Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Membro pesquisador do Bioethik. Membro do projeto de extensão Liga Universitária de Direito da UFES. Estagiário da Primeira Vara da Fazenda Pública Estadual de Vitória/ES. E-mail:jvgmesc@gmail.com. Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia dedutivo, com base em levantamento bibliográfico e jurisprudencial, busca-se nesse breve ensaio uma análise dos mecanismos substanciais para o tratamento das demandas sobre saúde e os impactos dos critérios fomentados pelos Tribunais Superiores em face das prestações já canalizadas pelo RENAME. 2) O Direito à Saúde no Brasil e a organização do Sistema Único de Saúde (SUS) Antes da promulgação da Carta Magna de 1988, o sistema de saúde no Brasil era contributivo e centralizado pela União, e gerenciado pelo INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social), uma extinta Autarquia Federal. O Ministério da Saúde atuava em diminutas políticas preventivas, como em campanhas de vacinação. Além disso, os tratamentos ambulatoriais destinados à população indigente eram de responsabilidade das instituições filantrópicas. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Direito à Saúde foi consagrado como um direito fundamental social, enunciado no art. 6º da Carta Magna. Ganha primordial relevo, quando se denota que o referido direito está atrelado a outros dois preceitos constitucionais: o direito à Dignidade Humana e o Direito à Vida. Com isso, seu âmbito de proteção e promoção ganha destaque, pois se tornou caminho para a eficácia de outros direitos fundamentais.3 Desse modo, o Direito à Saúde tem sido visualizado de forma mais ampla a partir da sua concretização, ou seja, na materialização da promoção da saúde nos diversos níveis e setores da sociedade. Nesta senda, além do enunciado trazido no art. 6º da CF/88, o constituinte prescreveu no art. 196 e ss. da Carta Maior as garantias para a efetivação do Direito à Saúde. O texto coloca o Estado como mantenedor das políticas públicas destinadas à prestação universal e igualitária da saúde aos cidadãos brasileiros. Além disso, previu o legislador no art. 200 da CF/88 o Sistema Único de Saúde e suas respectivas diretrizes, estabelecendo um modelo de organização básico à promoção da saúde pública. Estruturado de acordo com o modelo beveridgeano inglês, o atual Sistema Único de Saúde (SUS) representa um importante mecanismo 3de inclusão social 4. O sistema se organiza em uma rede regionalizada e hierarquizada, a qual tem como diretrizes a descentralização, com uma direção única em cada esfera de governo, o atendimento integral, priorizando as medidas preventivas e a participação da 3 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 647. 4 MENDES, Eugênio Vilaça. 25 anos do Sistema Único de Saúde: resultados e desafios. Estudos Avançados. vol. 27, no. 78, São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000200003>. Acesso em: 24 jun 2018. 254 Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais... comunidade ao entorno.5 Como subsídio infraconstitucional, a Lei 8.080 de 1990, conhecida também como Lei Orgânica da Saúde, estatui diretrizes para o funcionamento e a disposição do Sistema Único de Saúde do Brasil. Já a Lei 8.142 de 1990 se encarregou de dispor sobre os repasses financeiros para a composição das políticas públicas ligadas ao SUS. No que tange aos princípios norteadores do Sistema Único de Saúde são eles: a Universalização, que garante o atendimento a todos, sem a necessidade de se comprovar hipossuficiência de recursos para se ter acesso à gratuidade da saúde; a Equidade, que diz respeito às necessidades de cada região; a Integralidade, que corresponde a um conjunto de ações, preventivas, curativas e de reabilitação ao paciente; a Hierarquização e Regionalização, em que os serviços ofertados são divididos pelos entes federativos considerando os níveis de complexidade e características geográficas e populacionais, sendo, portanto, a competência material (administrativa) comum entre todos os entes federativos nos termos do artigo 23 da Magna Carta; a Resolubilidade, que diz respeito à capacidade do Estado em atender qualquer que seja o caso; e por fim, a Participação Popular, uma vez que devem existir Conselhos em todos os níveis de governo, compostos de representantes da sociedade.6 Na gestão farmacêutica, o Conselho Nacional de Saúde emitiu em 2004 a resolução 338, inaugurando, assim, a Política Nacional de Assistência Farmacêutica. Como fundamento, a diretriz mencionada busca, por meio da organização do fornecimento, do acesso e do uso de medicamentos, a promoção e a recuperação da saúde a todos.7 Assim, por conta da descentralização da gestão, fica no âmbito federal a elaboração e atualização da RENAME, a qual dispõe dos fármacos necessários para o tratamento e prevenção das doenças com maior abrangência nacional. Por outro lado, no plano estadual, concede-se os medicamentos incluídos no Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional, introduzido pela portaria 2.577/GM de 2006. Contempla as patologias tidas como raras ou que dependem de medicamento de alto custo.8 Na atualidade, embora reconhecido como uma conquista democrática e tendo uma substancial organização legal, o SUS ainda apresenta falhas estruturais, mormente no que diz respeito à Cobertura Universal, pois diversa da proposta, a realidade tem mostrado filas intermináveis de pessoas à espera por atendimento. Além disso, um outro Art. 198 da CF/88. CONOF/CD. A saúde no Brasil: História do Sistema Único de Saúde, arcabouço legal, organização, funcionamento, financiamento do SUS e as principais propostas de regulamentação da Emenda Constitucional nº 29, de 2000. Nota Técnica nº 10, de 2011 – CONOF/CD. p. 4. 2011. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/estudos/2011/nt10.pdf>. Acesso em: 24 de jun de 2018. 7 LOPES, Nairo; FRIAS, Lincoln. A política pública de medicamentos e sua judicialização. Caderno de Estudos Interdisciplinares, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 27-41, 2014. Disponível em: <https://publicacoes.unifalmg.edu.br/revistas/index.php/cei/article/viewFile/301/pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. p. 30. 8 Ibid., p. 30. 5 6 255 Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia problema é a Resolubilidade, a julgar tanto pela ausência de instrumentos necessários a certos procedimentos, como pelo atraso na incorporação de novos fármacos. Desde modo, embora reconhecido constitucionalmente como um direito fundamental, o sistema de saúde no país não tem sido capaz de efetivar a contento o direito à saúde a todos os cidadãos. Ante este fato, o Poder Judiciário surge como única via de muitos pacientes para a garantia de tratamento terapêutico ou obtenção de medicamento. Em breve perpasse nas minhas gerais sobre a organização do SUS com enfoque no tema aqui tratado, passa-se agora para a análise do fenômeno da Judicialização da Saúde no Brasil. 3) Judicialização da Saúde e os seus reflexos em números Como destacado no tópico anterior, o Direito à Saúde ganhou destaque imprescindível no sistema jurídico brasileiro. Assim, a universalização do acesso à saúde se fincou como uma diretriz primorosa, na qual tem por objetivo o atendimento igualitário, com promoção da saúde levando em consideração a necessidade da população e os limites impostos pelo sistema.9 Em tal contexto, observa-se o conteúdo subjetivo do Direito à Saúde, uma vez que o “leque de necessidades é de tal forma amplo, que dificilmente poderá ser abrangido por qualquer normatização constitucional ou infraconstitucional”.10 Desse modo, extensas são as possibilidades de o cidadão, individualmente, pleitear judicialmente a efetivação de determinada carência médica, tomando como base o Direito à Saúde. Nesta esteira, observa-se que a as políticas públicas desenvolvidas e fomentadas pelo Estado são a concretização do conteúdo jurídico dos direitos fundamentais, incluindo o Direito à Saúde. Em vista disso, o Poder Judiciário atua como interventor nos casos em que o Poder Público se omite ou atua morosamente na construção de medidas que tornem efetivos os direitos constitucionais.11 Com isso, surge a Judicialização da Saúde que consiste na busca dos indivíduos pela tutela jurisdicional em prol da concretização de seus direitos, uma vez que o Estado não deu a guarida pretendida. Tal fenômeno demonstra “a expansão do Poder Judiciário no processo decisório de um país democrático e contemporâneo”.12 Nesta senda, constata-se por meio dos últimos levantamentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que houve exponencial aumento das demandas referentes à 9 CORVINO, Juliana Diniz Fonseca. A Crise do Sistema Único de Saúde e o fenômeno da Judicialização da Saúde. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. p. 44-45. 10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 297. 11 CORVINO, Juliana Diniz Fonseca. A Crise do Sistema Único de Saúde e o fenômeno da Judicialização da Saúde. Rio de Janeiro: Gramma, 2017. p. 104. 12 Ibid., p. 112. 256 Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais... saúde. A pesquisa consiste em um levantamento dos dados de litigiosidade, estrutura judiciária, andamento processual, recursos financeiros e humanos, entre outras informações inerentes ao Poder Judiciário, tomando como base o ano de 2016.13 Em pesquisas preliminares, evidenciou-se que no fim do ano de 2017 o judiciário brasileiro encerrou suas atividades com cerca de 1,5 milhão de processos relacionados à saúde.14 Entre os temas de maior relevância no final do ano de 2016 estão: planos de Saúde evolvendo direito do consumidor (427.267 processos), fornecimento de medicamentos (312.147 processos), tratamento hospitalar e/ou fornecimento de medicamentos pelo SUS (214.947 processos), entre outros.15 Em perpasse comparativo com o relatório do CNJ do ano de 2016, tomando como base o ano de 2015, pode-se depreender que houve aumento nas demandas relacionadas à saúde. No que se refere aos litígios que tem por objeto a dispensa de medicamentos, os processos se alastraram em uma média de 56% de um ano para o outro.16 Ao se deparar com a gama de demandas voltadas à saúde, fica nítido que a discussão sobre o contencioso judicial nessa seara se faz necessária. Isso, pois, o Poder Judiciário não pode ser interventor permanente ou constante nas relações entre a Administração Pública e os administrados. Por isso, enfatiza-se o necessário debate no sentido de estabelecer diretrizes básicas e premissas gerais, para que não ocorra casuísmo, muito menos perdas para os titulares do Direito à Saúde. Após a observação sobre a realidade judicial das demandas sobre saúde no Brasil, explana-se no próximo tópico de discussão a utilização dos NAT-JUS como meio para decisões mais acertadas no entorno da matéria em questão. 4) NAT-JUS: Possibilidade subsidiária às decisões judiciais Como visto nas linhas anteriores, o fenômeno da Judicialização da Saúde cria inúmeros entraves no âmbito judicial e também no campo da gestão administrativa. Isso, pois, para uma acertada decisão judicial que envolva questões médicas é necessário que os magistrados tenham conhecimento da matéria que estão a decidir. Todavia, torna-se evidente que, pela impropriedade técnica e formação acadêmica do julgador, a referida determinação judicial tende a se estabelecer de forma inapropriada caso não tenha um subsídio qualificado. 13 CNJ. Justiça em Números 2017: Ano-base 2016. Brasília: CNJj, 2017. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/12/b60a659e5d5cb79337945c1dd137496c.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. p. 9. 14 MUNIZ, Mariana. Judicialização da saúde resultou em 1,5 milhão de processos em 2017. 2017. Disponível em: <https://www.jota.info/justica/processos-sobre-judicializacao-da-saude-chegam-15milhao-em-2017-12122017>. Acesso em: 24 ago. 2018. 15 SCHULZE, Clenio Jair. Números Atualizados da Judicialização da Saúde no Brasil. 2017. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/numeros-atualizados-da-judicializacao-dasaude-no-brasil-por-clenio-jair-schulze>. Acesso em: 24 jun. 2018. 16 SANTOS, Caroline Regina dos. Judicialização da saúde no Brasil em números. 2017. Disponível em: <https://blog.ipog.edu.br/saude/judicializacao-da-sade-em-numeros/>. Acesso em: 24 jun. 2018. 257 Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia Com esse cenário, no ano de 2016, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) reuniu-se com o Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de estabelecer um diálogo mais próximo entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, assim como para debater as problemáticas da gestão na área da saúde frente às excessivas demandas judiciais sobre saúde. Assentou-se na discussão a necessidades de os Tribunais de Justiça, estaduais e federais, terem núcleos de apoio técnico auxiliarem na atividade julgadora. Além disso, ficou evidente a necessidade de se estabelecer critérios mais objetivos para as resoluções das contendas aqui tratadas.17 Apesar de desde 2010 o CNJ ter resolvido sobre a formação de um Fórum Nacional para o monitoramento das demandas judiciais referentes ao Direito à Saúde, viu-se a necessidade de ampliar as medidas. Nessa toada, o Conselho emitiu em 2016 a Resolução nº 238 que instituiu Comitês para auxiliar os Tribunais de Justiça Estaduais e Regionais na formação dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS). Estes agrupamentos são formados por profissionais da área da medicina, com o propósito de emitirem pareceres específicos sobre questões médicas. Para tanto, os Comitês dos Tribunais devem observar o disposto no §2º do art. 156 do Código de Processo Civil Brasileiro, convocando a comunidade e seguimentos diversos para audiências públicas em prol da formação dos NAT-JUS. Assim, objetivou-se com a construção dos NAT-JUS, uma solidificação de subsídios técnicos para uma tomada de decisão dos julgadores e que possibilitasse um paralelo com os laudos apresentados nos autos dos processos judiciais. O primeiro aspecto permite ao juiz sanar a própria impossibilidade de julgar uma demanda complexa de saúde sem a devida orientação técnica. Os pareceres permitem que o julgador conheça a patologia, o tratamento ou o medicamento que está em discussão na demanda judicial e assim defina a tutela jurisdicional adequada. No segundo objetivo, visa-se contrapor os documentos médicos juntados no processo, evitando assim que o entendimento do profissional de saúde que viabilizou o laudo trazido pelo demandante, seja unânime e irredutível. O último aspecto levantado também evita que as indústrias farmacêuticas e os grupos de interesses médicos se beneficiem discricionariamente com a Judicialização da Saúde. Isso acontece, por exemplo, quando é determinado judicialmente um medicamento fora do rol da Anvisa ou um medicamento de alto custo, matéria central deste trabalho. Percebe-se que indiretamente, as empresas e grupos de médicos acabam conseguindo a inserção obrigatória de determinado remédio ou manobra médica pelas vias judiciais. Neste contexto o NAT-JUS vem sendo amplamente implementado e se tornando um auxiliador das decisões judiciais. Observa-se que os Tribunais têm se pautado nos 17 Cf. ROSA, Tatiane. CONASS e Conselho Nacional de Justiça debatem a questão das ações judiciais na saúde. Revista Consensus, Ano 6, n 19, abr, maio, jun 2016. Disponível em: http://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/revistaconsensus_19.pdf . Acesso em: 13 abr. 2017. 258 Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais... laudos advindo dos NAT-JUS, formando um juízo diverso, seja pela procedência18, seja pela improcedência19 dos pedidos, a depender dos casos concretos. Recentemente, o CNJ inaugurou o e-NAT-JUS, plataforma virtual que reúne os pareceres confeccionados nos microgrupos regionais. Esta é mais uma ferramenta fomentada para que os julgadores tenham real dimensão da matéria na qual se debruça e quais são os pontos controvertidos que cercam a demanda. Insta destacar, que a resolução 238/16 do CNJ dispôs que nas comarcas que tiverem mais de uma Vara da Fazenda Pública, dever-se-á estabelecer um juízo especializado em saúde pública. Após as reflexões supra, passa-se à análise dos parâmetros fixados pelos Superiores Tribunais às matérias referentes à saúde. 5) O fornecimento de fármacos excepcionais e os Tribunais Superiores do Brasil É amplamente divulgado que o Direito à Saúde tem sido objeto latente no contencioso judicial brasileiro. No contexto atual, no qual a Constituição Federal de 1988 é norma norteadora do sistema jurídico pátrio, não restam dúvidas que as prestações jurisdicionais têm se pautado, entre outras hipóteses, nos preceitos fundamentais contidos na Carta Maior. Como visto nas linhas anteriores, a judicialização da saúde e das políticas públicas no Brasil, têm ganhado destaque e se tornado objeto de amplos estudos. Desse modo, não é objetivo do presente trabalho exaurir as complexas questões envolvendo o tema, mas trazer pontos para discussões contínuas. 18AGRAVO DE INSTRUMENTO - TUTELA ANTECIPADA - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO PADRONIZADO E DE ALTO CUSTO - PREJUÍZO À COLETIVIDADE - VIOLAÇÃO À ISONOMIA - DECISÃO REFORMADA - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. [...] 2. O direito constitucional à saúde não pode ser invocado a fim de que o Estado forneça todo e qualquer tratamento ou medicamento pleiteado, sobretudo tratando-se de fármaco não padronizado em lista oficial de medicamentos para dispensação através do SUS ou contemplado em qualquer protocolo do Ministério da Saúde, como é o caso do pregabalina 75 mg. (segundo parecer do NAT), sob pena de haver uma interferência indevida do Poder Judiciário nas políticas públicas elaboradas pelo Executivo, comprometendo, desse modo, o sistema de saúde e o acesso igualitário a suas prestações. (...) (TJES, nº 0001031-07.2017.8.08.0052 Relator: Des. Sub. Victor Queiroz Schneider, Primeira Câmara Cível, Julgamento: 17/04/2017). 19 EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO COMINATÓRIA - TRATAMENTO DE SAÚDE - TESTE COM ELETRODO POR LAMINECTOMIA E REALIZAÇÃO DE CIRURGIA - RESPONSABILIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS E DO MUNICÍPIO DE DIVINÓPOLIS - LEGITIMIDADE PASSIVA COMPROVADA - SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERADOS - IMPRESCINDIBILIDADE DO TRATAMENTO ATESTADA EM RELATÓRIO MÉDICO - NOTA TÉCNICA N. 38/2017 EMITIDA PELO NATS - ADEQUAÇÃO DO PROCEDIMENTO ALMEJADO À SITUAÇÃO ESPECÍFICA DO CASO POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE MULTA EM FACE DO ENTE PÚBLICO - PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE RECURSO PROVIDO. [...] 3. Tratando-se de patologia inequivocamente comprovada por profissional médico especialista, bem como demonstrada a necessidade de realização do teste com eletrodo por laminectomia e a posterior cirurgia, tem-se como pertinente o tratamento prescrito por médico neurocirurgião para o paciente, considerando, ainda, a existência de nota técnica produzida pelo NATS, a qual atesta a eficácia do tratamento (...). (TJMG, nº 0618045-73.2017.8.13.0000 Relator: Des. Côrrea Júnior, Sexta Câmara Cível, Julgamento: 05/12/2017). 259 Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia Doutrinariamente vem se discutindo o conteúdo jurídico e de prestação do poder estatal, no que tange ao “acesso universal e igualitário” prescrito no art. 196 da CF/88. Quer-se, entre outras hipóteses, discutir que o Direito à Saúde não é absoluto e definitivo para todas e quaisquer hipóteses colocadas em judice. Ademais, analisa-se os pertinentes debates entre poder executivo e legislativo e o poder judiciário. Os primeiros destacam a impossibilidade de o judiciário ditar as formas e condições de aplicação dos recursos o erário, uma vez que o poder público é destinatário e entende não ter disponibilidade de ativos financeiros suficiente para arcar com a prestação dos direitos fundamentais, com fulcro na teoria da reserva do possível, tese essa já refutada pela Suprema Corte em algumas ocasiões.20 Já por outro lado, tem se compreendido que a saúde, como um direito humano de proteção ao bem da vida, é cerne para promoção de outros preceitos fundamentais e por isso exigível judicialmente.21 Do mesmo modo, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem consignado e influenciado os demais Tribunais no sentido de compreender o Direito à Saúde como um direito subjetivo, o qual pode ser requerido pela via judicial, afastando assim a ideia de que o Direito à Saúde está na ordem das normas programáticas da constituição.22 Passadas as premissas necessárias para localizar a complexidade do assunto aqui tratado, afunila-se a discussão para os modus operandi dos Tribunais Superiores na tutela dos Direitos à Saúde. No objeto tratado neste trabalho, destaca-se a construção de critérios para as decisões cujo cerne é a determinação do fornecimento de medicamentos aos pacientes. Primeiramente, destaca-se que não é recente a busca da Suprema Corte por um entendimento uno em relação ao Direito à Saúde. Já em 2009 o então presidente do STF, Ministro Gilmar Mendes, convocou Audiência Pública número 4, reunindo diversos seguimentos da sociedade e especialistas da área da saúde para debater sobre o tema da judicialização da saúde.23 No que se refere aos julgamentos na Suprema Corte, desde 2010, no julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada nº 175, o Tribunal fixou critérios que se tornaram pano de fundo para as posteriores decisões sobre o tema nos anos posteriores. O julgamento em tela se refere a um agravo regimental interposto pela União para interceptar acórdão do Tribunal Regional Federal da 5º Região, o qual determinou o 20 “Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerarse do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 45. Relator: Celso de Mello. Brasília, 4 maio 2004. 21 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 647. 22 Ibidi., p. 653. 23Cf. STF. Audiência Pública. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaSaude>. Acesso em 25 maio de 2018. 260 Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais... fornecimento específico a um paciente. O Ministro Relator Gilmar Mendes, elencou critérios ao longo do seu voto, os quais tomam como parâmetro de análise: 1) Investigação da existência de uma política pública voltada ao que se pleiteia, sendo que, havendo e o Estado se omitindo ou não viabilizando para o paciente, pode o judiciário determinar que o Poder Público torne eficaz o programa social existente; 2) Uma vez inexistente a política pública, analisa-se se o registro na Agência Nacional Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo esta uma condição necessária para a outorga judicial. Uma vez não havendo registro na agência regulamentadora e tratamentos substitutivos, observa-se se o medicamento pleiteado é novo ou experimental. No primeiro caso, o fármaco já foi clinicamente aprovado e comercializado. Para essa excepcionalidade, pode haver determinação judicial. Já no segundo caso, são os casos de remédios ainda no curso de análise sobre sua eficácia, não sendo possível, portanto, a imposição judicial para o fornecimento destes pela Administração Pública.24 O STF tem discutido em julgamentos recentes a matéria aqui aludida. São os Recursos Extraordinários (RE) 566.471/RN e 657.718/MG, ambos em sede de repercussão geral e sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio. No RE 566.471/RN, debate-se sobre a disponibilização de medicamento de alto custo fora da listagem do SUS para uma paciente hipossuficiente. Já o RE 657.718/MG, diz respeito à pretensão do poder judiciário determinar que a Administração Pública forneça medicamento não regularizado pela ANVISA. Ambos os RE perderam o interesse por fatos supervenientes, mas pela matéria de repercussão geral, o relator manteve o julgamento. Os votos já colhidos, do relator e de mais dois ministros, dão um norte para o entendimento que a Suprema corte tem consignado. No Recurso Extraordinário nº 566.471/RN, o Ministro Marco Aurélio assentou, retificando o entendimento anterior, que uma vez constatada a impossibilidade financeira do paciente e de sua família em arcar com os gastos com o tratamento e tendo em vista a imprescindibilidade do medicamento, torna-se plausível a interferência judicial e a imposição de disponibilidade do fármaco.25 Do mesmo modo o Ministro se guiou no relatório do RE 657.718/MG.26 A seu turno, o Ministro Luís Roberto Barroso, posicionou-se no RE nº 566.471/RN no sentido de que o Poder Judiciário só pode impor ao Estado efetivar políticas públicas já disponíveis, exceto nos casos que atendem determinados critérios. Dentre os cinco que elencou, destaca-se: “a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS; a propositura da demanda necessariamente em face da União, já 24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada nº 175. Relator: Gilmar Mendes. Brasília, 2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/sta175.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. 25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.471. Relator: Marco Aurélio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE566471.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2018. p. 19. 26 Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718. Relator: Marco Aurélio. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE657718.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2018. 261 Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia que a responsabilidade pela decisão final sobre a incorporação ou não de medicamentos no âmbito do SUS é, em regra, desse ente federativo.27 Em relação ao RE 657.718/MG o Ministro Barroso considerou que medicamentos fora do rol da Anvisa não podem ser determinados judicialmente, pois seria incorrer contra a proteção da saúde pública. Todavia, em casos excepcionais se pode impor o fornecimento de medicamentos sem registro da Anvisa, se for comprovado demora da agência regulamentadora na análise do pedido de registro do medicamento.28 O Ministro Edson Fachin consignou critérios no RE 566.471/RN parelhos aos Ministros que o antecederam, estabelecendo critérios para o fornecimento de medicamentos de alto custo em casos excepcionais. Destaca-se o entendimento do Ministro, o qual considera que a tutela jurisdicional relacionadas ao fornecimento de medicamentos fora do disposto pela rede pública, devem ser preferencialmente requeridas em ações coletivas, maximizando a eficácia da decisão.29 No RE 657.718/MG o Ministro Fachin observa que os medicamentos fora da listagem do SUS e que, consequentemente, não possuem registro na Anvisa, não podem ser objeto de imposição judicial, salvo casos excepcionais. Em tese, o magistrado colocou que: No âmbito da política de assistência à saúde, é possível ao Estado prever, como regra geral, a vedação da dispensação, do pagamento, do ressarcimento ou do reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa.30 A seu turno, o Superior Tribunal de Justiça (STJ do Brasil assentou recentemente o seu entendimento sobre a matéria em tela. Em abril deste ano a corte concluiu o julgamento do Recurso Especial 1.657.156/RJ, o qual estava sob a relatoria do Ministro Benedito Gonçalves. Em seu voto, o Ministro Relator concluiu critérios para a determinação judicial de fornecimento, pelo Estado, de medicamentos fora do rol do SUS. São eles: I - Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; II Incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e III - 27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.741. Voto: Luís Roberto Barroso. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/uploads/2016/10/RE-566471-Medicamentos-de-alto-custo-versão-final.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. p. 20. 28 STF. Pedido de vista adia julgamento sobre acesso a medicamentos de alto custo por via judicial. 2016. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326275>. Acesso em: 24 jun. 2018. 29 Ibidi. 30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718. Voto: Edson Fachin. Brasília, 2016. Disponível em: <https://www.jota.info/wp-content/uploads/2016/09/RE657718.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. p. 32. 262 Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais... Existência de registro na ANVISA do medicamento.31 Mesmo com uma diferenciação dos casos concretos em juízo no STF e STJ, percebe-se, numa perpasse geral, que os critérios das cortes superiores do Brasil têm estabelecido premissas basilares. Na verdade, os parâmetros fixados pelo Superior Tribunal mostram uma linha convergente e um alinhamento para a questão. Pode-se perceber que a excepcionalidade do fornecimento de medicamentos fora da listagem do SUS não pode ser provida sem conferir a hipossuficiência do cidadão, a comprovação expressa da imprescindibilidade do tratamento e, sobretudo, o registro do fármaco na Anvisa. Em face dos critérios das Cortes brasileiras, tem se inferido o nível de afetação as políticas já preexistentes, como verificado no tópico a seguir. 6) Os parâmetros dos Tribunais Superiores e as políticas de saúde existentes Em vista do que foi exposto nas linhas anteriores, percebe-se que tanto o STF, quanto o STJ, têm se debruçado em fomentar critérios básicos para as determinações judiciais relacionadas aos medicamentos. Nitidamente se pretende uma maior uniformidade para os tribunais e magistrados na jurisdição brasileira. Contudo, é preciso fazer uma análise mais detida sobre as implicações desses parâmetros em outras áreas que cercam a problemática. Na tentativa de diminuir o contencioso judicial em temáticas relacionadas à Judicialização da Saúde, verifica-se que em algumas situações os parâmetros fixados pelos Tribunais Superiores podem incorrer em déficits financeiros, prejudicando o fornecimento de medicamentos já previstos no Relação Nacional de Medicamentos Excepcionais. Mesmo com os Tribunais afunilando paulatinamente as hipóteses de determinação judicial para que o Poder Público dispense medicamento de alto custo ou fora da listagem do SUS, torna concreta essa situação em alguns casos. Consequência disto é a possível transferência de recursos destinados às políticas de fornecimento de fármacos em grande escala, para o cumprimento de uma decisão judicial. As críticas no entorno das decisões judiciais que impõem a Administração Pública fornecer medicamentos fora do RENAME se baseiam na interferência do Princípio da Universalização da Saúde. Isso, pois, noticia-se que cada médico possui sua visão sobre 31 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1657156. Relator: Benedito Gonçalves. Brasília, 2018. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=8286901 8&num_registro=201700256297&data=20180504&tipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 24 ago. 2018. p. 12. 263 Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia determinada patologia ou qual a melhor manobra terapêutica para o caso tratado. Nesse sentido, se o laudo médico for critério definitivo para a averiguação da necessidade de determinado tratamento, ficará altamente discricionária a concessão de fármacos pelas vias judiciais.32 Como bem se sabe, mesmo com as positivas mudanças institucionais no Brasil, o acesso à justiça não é pleno nem total no país. Partindo desse pressuposto, aqueles que por algum óbice não conseguem bater as portas da Justiça, não encontra a guarida que precisava nem por via judicial, nem pelas políticas públicas existentes no SUS. Neste sentido, é imprescindível que haja uma maior convergência entre os entendimentos dos Tribunais e as limitações do Poder Público. No próprio voto do Ministro Roberto Barroso no RE 566.471/RN, foi destacado a importância dos órgãos competentes que definem a entrada dos medicamentos no rol do SUS. Colocando como sugestão para a corte, o referido magistrado consignou um parâmetro processual para quando os julgadores tiverem sob sua égide a atribuição de decidir sobre o fornecimento de um medicamento excepcional. Assim propõe: a necessária realização de diálogo interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde (e.g., câmaras e núcleos de apoio técnico em saúde no âmbito dos tribunais, profissionais do SUS e CONITEC). Tal diálogo deverá ser exigido, em um primeiro momento, para aferir a presença dos requisitos de dispensação do medicamento. E, em um segundo momento, no caso de deferimento judicial do fármaco, para determinar que os órgãos competentes (CONITEC e Ministério da Saúde) avaliem a possibilidade de sua incorporação no âmbito do SUS, mediante manifestação fundamentada a esse respeito.33 Ao analisar o trecho acima, percebe-se que tal contato entre o Poder Judiciário e os setores administrativos do Estado podem propiciar uma decisão mais apurada do julgador. Assim como o NAT-JUS, o estreito relacionamento com as agências reguladoras faz com que as determinações judiciais cheguem em um contrassenso positivo. Ao passo que os Tribunais Superiores têm se movimentado no sentido de assentar o entendimento sobre o fornecimento, pela via judicial, de medicamentos, as agências administrativas de saúde do Brasil precisam avançar. A morosidade para implementação de tecnologias que possibilitem a RENAME avançar em seu rol, pode ser uma via alternativa para a diminuição das demandas de saúde. Isso, pois, com o estudo dos medicamentos novos e recém fomentados pela área médica, pode proporcionar um planejamento financeiro para a gestão pública fornecer 32 SANTOS, Lenir. Decisão do STJ sobre medicamento de alto custo deforma conceito do direito à saúde. Consultor Jurídico, maio de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-mai-05/lenirsantos-decisao-stj-medicamento-alto-custo#_ftn2>. Acesso em: 24 jun. 2018. 33 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.741. Voto: Luís Roberto Barroso. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wpcontent/uploads/2016/10/RE-566471-Medicamentos-de-alto-custo-versão-final.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. p. 20. 264 Judicialização da saúde e acesso à medicamentos excepcionais... devidamente tais medicamentos. Todavia, a demora no enquadramento e registro de fármacos e tratamentos já aprovados clinicamente acarreta a busca pela prestação judicial, a qual não pode se eximir de tutelar o Direito à Saúde dos cidadãos. 7) Conclusão Ao se constatar os números das demandas judiciais relacionados à saúde, verifica-se nítida necessidade de reflexão sobre a temática. Isso, pois, com a positivação da saúde pela Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental, deu-se ao seu titular a potencial exigibilidade de garantir em juízo o direito, quando não fomentado pelo poder público. Consequência disso são as inúmeras demandas judiciais nos tribunais brasileiros, substanciando cada dia mais a judicialização da saúde no Brasil. Nesse contencioso, os Poder Judiciário e Executivo têm dialogado sobre as possibilidades de determinações judiciais mais acertadas e coadunadas com as possibilidades do sistema. Nisto surge o NAT-JUS, como um dos meios para que magistrado tenha melhor clareza sobre os casos concretos e conhecimento para a atividade cognitiva. Neste mesmo sentido caminham os Tribunais Superiores na busca pelo aprimoramento dos parâmetros adotados nas determinações de dispensa de fármacos de alto custo e excepcionais fora do rol do SUS. Ao analisar os critérios levantados até agora no STF e no STJ em julgamentos com repercussões gerais, nota-se que hipossuficiência, a comprovação da necessidade do medicamento e o registro da Anvisa, salvo exceções, são premissas básicas para as determinações judiciais. Em contrapartida, a relação do Poder Judiciário com as instâncias administrativas reguladoras necessita de maior contato. As decisões judiciais não levam em conta as políticas públicas preexistentes e as disposições da RENAME ou do CMDE. Com isso, ao tutelar o direito de um, acaba por prejudicar outros que não possuem pleno acesso à justiça e que estão na dependência do Poder Executivo. Por esses motivos se destacam as premissas levantadas pelos Ministros Barroso e Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). O primeiro traçou parâmetro processual colocando como necessário o diálogo com as agências reguladoras e administrativas, para decisões condizentes com a realidade. Porém, é preciso ressalvar que a consulta ao órgão regulador deve ser feita anteriormente ao deferimento, para então ser verificada uma possível implementação no rol de medicamentos. O Ministro Fachin, por sua vez., orientou no sentido de que a comprovação da imprescindibilidade do tratamento deve advir de um médico da rede pública, já que se parte do pressuposto de que ele conhece a realidade das políticas públicas existentes. Além disso, em uma de suas falas o referido magistrado assentou em plenário a orientação já vinculada nos Tribunais e pela doutrina, referente as demandas relacionadas à saúde serem propostas coletivamente para um maior grau de 265 Margareth Vetis Zaganelli e João Victor Gomes Correia maximização. Por tudo o que foi exposto, pode-se arguir os aspectos relevantes e necessários para um debate doutrinário e acadêmico sobre a problemática em questão. Tendo em vista disso, parece primoroso que tais discussões possam permear o judiciário brasileiro, com a finalidade de guiar os litígios numa vertente que tutele os direitos dos cidadãos em sua integralidade e de forma equilibrada. REFERÊNCIAS BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 45. Relator: Celso de Mello. Brasília, 4 maio 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm>. Acesso em: 04 jun. 2018. _____. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1657156. Relator: Benedito Gonçalves. Brasília, 2018. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente= ATC&sequencial=82869018&num_registro=201700256297&data=20180504&t ipo=5&formato=PDF>. Acesso em: 24 ago. 2018. _____. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.741. Voto: Luís Roberto Barroso. Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2016/10/RE566471-Medicamentos-de-alto-custo-versão-final.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. _____. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 657.718. Voto: Edson Fachin. Brasília, 2016. Disponível em: <https://www.jota.info/wpcontent/uploads/2016/09/RE657718.pdf>. Acesso em: 24 jun. 2018. _____. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.471. Relator: Marco Aurélio. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE566471.pdf>. Acesso em: 24 ago. 2018. _____. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada nº 175. Relator: Gilmar Mendes. 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Acesso em: 24 jun. 2018. 268 O DIREITO À PRIVACIDADE E A EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA: A PROPÓSITO DA PUBLICIDADE COM RECURSO AO RECONHECIMENTO FACIAL Ana Clara Azevedo de Amorim1 1) Introdução No dia 18 de abril de 2018, entrou em funcionamento no metro de São Paulo um modelo inovador de portas digitais interativas com câmaras de reconhecimento facial que permitem identificar os estados emocionais dos utilizadores em tempo real. Resultado da acentuada evolução tecnológica verificada nos últimos anos, o tratamento de dados biométricos permite potenciar a eficácia da comunicação comercial através da difusão de anúncios personalizados. Apresentada como mais um instrumento disponível para os anunciantes num contexto de excesso de oferta, esta tecnologia suscita graves problemas ao nível do direito à privacidade dos destinatários, que se tornam um objeto da informação para efeitos comerciais. Importa analisar o recurso ao reconhecimento facial numa perspetiva de direito comparado, na medida em que ao contrário do que se verifica no Brasil e noutros ordenamentos jurídicos, o Regulamento Geral de Proteção de Dados aplicável nos Estados Membros da União Europeia desde 25 de maio de 2018 pode representar um entrave à evolução tecnológica. 2) A personalização da comunicação comercial e o direito à privacidade Enquanto instrumento do processo de comercialização de produtos e serviços, a personalização das mensagens publicitárias visa uma aproximação aos interesses concretos dos destinatários, devendo considerar-se genericamente admitida, dado que assenta na liberdade de expressão e na garantia da iniciativa económica privada dos anunciantes, cuja tutela se funda axiologicamente nos artigos 37.º e 61.º da Constituição da República Portuguesa, bem como nos artigos 5.º IX e 170.º da Constituição Federal do Brasil. No entanto, esta personalização resulta frequentemente do tratamento de dados pessoais sem o consentimento do respetivo titular, o que pode determinar a invalidade dos meios utilizados. Atenta a decadência da publicidade difundida nos meios de massas verificada a partir dos anos 70 e 80 do século XX, a personalização da comunicação comercial começou por estar associada às visitas ao domicílio, às chamadas telefónicas, à remessa 1 Professora Auxiliar da Universidade Portucalense Ana Clara Azevedo de Amorim de correspondência por via postal e por telecópia, que constituem as modalidades paradigmáticas de marketing direto. No ordenamento jurídico português, a Lei n.º 6/99, de 27 de janeiro resultou da necessidade de evitar intromissões na vida privada dos destinatários, garantindo precursoramente a proteção de interesses de natureza não económica no domínio da publicidade (Paulo Mota Pinto, 1998:279). A partir do final do século XX, a generalização do acesso às tecnologias digitais potenciou o surgimento de outros instrumentos publicitários, como as mensagens de correio eletrónico. Mas a Sociedade da Informação viria a caracterizar-se sobretudo pela ampla disponibilização de dados pessoais, relevantes para efeitos da construção do perfil individual dos internautas, que esteve na origem de um novo paradigma de comunicação comercial, resultante do desenvolvimento do marketing direto. Este novo paradigma começou por assentar na informação disponibilizada em rede pelos próprios internautas, relativa às suas necessidades e desejos de consumo mas também às suas motivações, personalidade e estilos de vida. Atualmente, na sequência da evolução tecnológica dos últimos anos, os profissionais recorrem sobretudo a sistemas automáticos de monitorização dos comportamentos de navegação na Internet, que permitem conhecer as preferências dos destinatários, aumentando a eficácia da promoção de produtos e serviços. Através dos testemunhos de conexão, que armazenam pequenos ficheiros de texto nos computadores dos usuários, possibilitando o seu reconhecimento em posteriores acessos, os anunciantes alcançam automaticamente milhões de células de mercado com mensagens publicitárias personalizadas em função dos seus interesses concretos. Passa então a ser possível distinguir a personalização explícita – em que os próprios usuários participam no processo através do fornecimento de informação – e a personalização implícita, realizada através de sistemas automáticos de monitorização (Roberto Torres, 2004:121). Num contexto de acentuada evolução tecnológica, o desenvolvimento dos sistemas de cookies conduziu ao aparecimento de técnicas progressivamente mais otimizadas de monitorização dos comportamentos. Também no domínio do mobile marketing, o envio de mensagens publicitárias relativas a estabelecimentos situados na proximidade dos utilizadores tem assentado no recurso à geolocalização. No Relatório sobre o impacto da publicidade no comportamento dos consumidores de 23 de novembro de 2010, o Parlamento Europeu manifestou uma preocupação com a personalização das mensagens publicitárias, que considerou constituir “um grave atentado à proteção da vida privada quando assenta no rastreio de características pessoais (testemunhos de conexão, constituição de perfis e geolocalização)”. Na sequência do recurso a sistemas automáticos de monitorização dos comportamentos de navegação na Internet e aos restantes instrumentos de personalização das mensagens publicitárias, começaram a desenvolver-se as tecnologias biométricas, cujas potencialidades têm sido reconhecidas para efeitos do processo de comercialização de produtos e serviços (José Luís Reis, 2013:226). Assim, por exemplo, o reconhecimento facial ou vocal, as impressões digitais e a análise da íris permitem 270 O direito à privacidade e a evolução tecnológica... identificar inequivocamente uma pessoa, verificando-se uma relação direta entre a fiabilidade dos dispositivos e o respetivo grau de intrusão. No Parecer 3/2012 sobre a evolução das tecnologias biométricas adotado em 27 de abril de 2012, o Grupo de Trabalho instituído pelo artigo 29.º da Diretiva 95/46/CE reconheceu que estas suscitam “fortes preocupações em diversos domínios, incluindo a privacidade e a proteção de dados”. Ora, mais do que a identificação inequívoca da pessoa, que resultava já também do tratamento de dados pessoais no marketing direto, as tecnologias biométricas representam um contributo decisivo para o reconhecimento de estados emocionais dos destinatários da comunicação comercial. Num contexto de proliferação de mensagens com finalidades promocionais e sobretudo face à prevalência da dimensão emocional das decisões de consumo, a avaliação da resposta a determinados estímulos pode influenciar a forma como os profissionais se dirigem individualmente a cada consumidor (Ana Clara Azevedo de Amorim, 2018:179). Ou seja, o recurso ao reconhecimento facial permite acentuar a transição para o apelo a sentimentos na comunicação comercial, em detrimento dos tradicionais argumentos técnicos e funcionais relativos aos produtos ou serviços, bem como a crescente valorização das experiências orientadas para estabelecer relações sensoriais, afetivas ou criativas com as marcas. Em suma, a privacidade constitui a principal preocupação nas relações de mercado na Sociedade da Informação, especialmente quando o conteúdo das mensagens publicitárias é determinado pelo reconhecimento de estados emocionais, que constituem o último reduto da personalidade individual. Na verdade, a comunicação comercial suscita agora maioritariamente um problema de tratamento de dados pessoais. 3) O regime jurídico da proteção de dados pessoais na atualidade Consagrado precursoramente no ordenamento constitucional português, o direito à autodeterminação informativa visa evitar que o indivíduo se torne um mero objeto da informação. Assim, nos termos do artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa, “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei” (n.º 1). Relativamente aos dados sensíveis, “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis” (n.º 3). Este direito à autodeterminação informativa tem sobretudo uma natureza negativa, que permite impedir o acesso aos dados pessoais por terceiros, traduzindo ainda uma garantia do direito à privacidade consagrado genericamente no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e no 271 Ana Clara Azevedo de Amorim artigo 5.º X da Constituição Federal do Brasil. a) Direito Europeu O Parlamento Europeu e o Conselho aprovaram o Regulamento (UE) 2016/679 relativo à proteção das pessoas singulares no que respeita ao tratamento e livre circulação de dados pessoais (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados – doravante abreviadamente RGPD), que revogou a Diretiva 95/46/CE e é aplicável nos Estados Membros desde 25 de maio de 2018. Nos termos do n.º 1 do artigo 4.º do RGPD, entende-se por dados pessoais a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável”, designadamente, por referência a “um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”. De acordo com uma opção anteriormente defendida pela doutrina, o conceito de dados pessoais abrange qualquer informação relativa aos interesses do utilizador, no pressuposto da sua identificabilidade. O artigo 5.º do RGPD enuncia um conjunto de princípios relativos ao tratamento de dados pessoais. Relevam, entre outros, o princípio da limitação das finalidades, segundo o qual os dados devem ser “recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas e não podendo ser tratados posteriormente de uma forma incompatível com essas finalidades” (alínea b) do n.º 1); o princípio da minimização dos dados, que determina a sua adequação, pertinência e limitação ao que for necessário relativamente às finalidades para as quais são tratados (alínea c) do n.º 1); e o princípio da limitação da conservação, estritamente em função do período de tempo necessário para aquelas finalidades (alínea e) do n.º 1). Acresce que o consentimento do titular dos dados pessoais constitui um pressuposto de licitude do seu tratamento, como resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD. Representa, assim, o elemento central da proteção, sendo particularmente relevante face à recolha de informação através de mecanismos independentes da intervenção do titular, como se verifica no recurso ao reconhecimento facial. Ora, segundo o disposto no n.º 11 do artigo 4.º do RGPD, o consentimento integra “uma manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento”. O consentimento deve então traduzir um comportamento ativo do utilizador, suscetível de manifestar inequivocamente a sua vontade relativa ao tratamento dos dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas. Segundo o Considerando 32 do RGPD, não constituem consentimento “o silêncio, as opções pré-validadas ou a omissão”, como a aceitação tácita de políticas de privacidade decorrente, por exemplo, do facto de a navegação num determinado sítio eletrónico não ser interrompida, sobretudo quando associada a informação redigida de 272 O direito à privacidade e a evolução tecnológica... forma pouco clara ou excessivamente técnica. Desta forma, o princípio da transparência consagrado no n.º 1 do artigo 12.º do RGPD reitera o carácter esclarecido do consentimento, ao postular que o responsável pelo tratamento deve tomar as medidas adequadas para fornecer ao titular dos dados pessoais as informações necessárias “de forma concisa, transparente, inteligível e de fácil acesso, utilizando uma linguagem clara e simples, em especial quando as informações são dirigidas especificamente a crianças”. Estas informações devem ser prestadas por escrito ou, mediante pedido do titular, oralmente. Consta dos artigos 13.º e 14.º do RGPD o elenco das informações a facultar ao titular dos dados pessoais. Acresce que o n.º 14 do artigo 4.º do RGPD prevê que os dados biométricos resultam “de um tratamento técnico específico relativo às características físicas, fisiológicas ou comportamentais de uma pessoa singular que permitam ou confirmem a identificação única dessa pessoa singular, nomeadamente imagens faciais ou dados dactiloscópicos”. Sendo enquadrada nas “categorias especiais de dados pessoais”, a informação resultante da biometria permite identificar uma pessoa de forma inequívoca, estando sujeita para efeitos do tratamento ao disposto no artigo 9.º do RGPD, que consagra já uma norma de proibição. Ora, atenta a gravidade da lesão da privacidade nestes casos concretos, e ao contrário do que se verifica na categoria genérica, os ordenamentos jurídicos dos Estados Membros podem inviabilizar que a proibição de tratamento destes dados seja afastada mediante consentimento do respetivo titular. Por fim, importa referir que o consentimento do titular suscita especiais dificuldades no reconhecimento facial, sobretudo quando o suporte pertence ao profissional, como se verifica no metro de São Paulo. O problema deve ser particularmente tido em consideração quando, no domínio do marketing, estiverem em causa estados emocionais, que integram dados sensíveis. b) Direito Brasileiro No ordenamento jurídico brasileiro vigora a Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014, que aprovou o Marco Civil da Internet e que estabelece um conjunto de princípios, garantias, direitos e deveres dos usuários. Nos termos dos artigos 2.º e 3.º o uso da Internet é regulado com fundamento no respeito pela liberdade de expressão e garantindo a proteção da privacidade e a proteção dos dados pessoais. Neste sentido, o artigo 7.º prevê que o acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania, sendo assegurado aos usuários o direito à “inviolabilidade da intimidade e da vida privada”, o direito a “informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de seus dados pessoais, que somente poderão ser utilizados para finalidades que: a) justifiquem sua coleta; b) não sejam vedadas pela legislação; e c) estejam especificadas nos contratos de prestação de serviços ou em termos de uso de aplicações de internet”, bem como o direito a “consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá ocorrer de forma destacada 273 Ana Clara Azevedo de Amorim das demais cláusulas contratuais”. A garantia do direito à privacidade é reiterada no artigo 8.º enquanto condição para o pleno acesso à Internet. Desta forma, o Marco Civil da Internet consagra um regime jurídico de proteção de dados pessoais e garantia do direito à privacidade em grande parte semelhante ao que vigora nos Estados Membros da União Europeia, nomeadamente, prevendo o consentimento como pressuposto de licitude do tratamento. Porém, ao contrário do que resulta do RGPD, que incide genericamente sobre o tratamento de dados pessoais, o Marco Civil da Internet em vigor no Direito Brasileiro não é aplicável às tecnologias implementadas com recurso à biometria. A ausência de uma lei geral de proteção de dados no Direito Brasileiro tem sido objeto de reflexão, sendo apresentados vários modelos regulatórios inspirados nos ordenamentos jurídicos europeu, norte-americano e uruguaio. A doutrina afirma que estes modelos regulatórios conduzem maioritariamente a um reforço da proteção dos dados pessoais, em detrimento dos interesses económicos, do incentivo à inovação e do desenvolvimento tecnológico (Guilherme Guidi, 2018:86). Centram-se também no consentimento do titular dos dados pessoais como pressuposto de licitude do tratamento, num quadro de transparência que vincula os agentes económicos. No entanto, os modelos regulatórios divergem no equilíbrio entre a intervenção do Estado e de outras entidades administrativas, por um lado, e no papel atribuído ao mercado, sobretudo através da prática contratual e da autorregulação, por outro lado. Apesar da ausência de uma lei geral de proteção de dados no Direito Brasileiro, importa referir que o Código de Defesa do Consumidor, aprovado pela Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, consagra entre as diretrizes do Plano Nacional de Consumo e Cidadania, “autodeterminação, privacidade, confidencialidade e segurança das informações e dados pessoais prestados ou coletados, inclusive por meio eletrónico”. Ou seja, o legislador reconheceu que o problema do tratamento de dados pessoais se suscita especialmente no contexto da proteção do consumidor, onde surge como complemento às dimensões tradicionais, decorrentes do reconhecimento da sua vulnerabilidade na relação com os profissionais. Neste sentido, o artigo 43.º consagra o direito de “acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados”, que devem “ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão”. Em suma, a tutela do consumidor – qualquer pessoa singular ou coletiva que adquire produtos ou serviços como destinatário final – abrange também o direito à privacidade e a proteção de dados pessoais, que são relevantes sobretudo no contexto do comércio eletrónico. 4) Impacto do regime jurídico na evolução tecnológica 274 O direito à privacidade e a evolução tecnológica... A licitude do tratamento de dados pessoais depende do consentimento do respetivo titular, que traduz uma manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita. Estes mecanismos de garantia do direito à privacidade reforçados no Direito Europeu pelo RGPD e introduzidos no Direito Brasileiro pelo Marco Civil da Internet não inviabilizam o exercício da liberdade publicitária dos anunciantes, ao contrário do que se verifica nas restrições ao conteúdo e à forma das mensagens (Ana Clara Azevedo de Amorim, 2017:65). Na verdade, o tratamento de dados pessoais situa-se a montante da própria emissão de mensagens com finalidade promocional, pelo que o recurso ao reconhecimento facial para efeitos da personalização dos anúncios não pode justificarse ao abrigo da liberdade publicitária, cujo fundamento axiológico se encontra na liberdade de expressão e na garantia da iniciativa económica privada. Assim, neste conflito de direitos fundamentais, deve prevalecer sempre a tutela da privacidade dos destinatários, como se verificava já no domínio do marketing direto, em conformidade com o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 5.º X da Constituição Federal do Brasil. No entanto, em função do carácter mais ou menos liberal do modelo regulatório adotado, o desenvolvimento dos regimes jurídicos de proteção de dados pessoais é suscetível de provocar um impacto na evolução tecnológica. Neste sentido, a vigência do RGPD inviabiliza a implementação num Estado Membro da União Europeia de câmaras de reconhecimento facial semelhantes às que entraram em funcionamento no metro de São Paulo para difusão de anúncios personalizados, pelo menos sem que os utilizadores tenham a possibilidade de dar o seu consentimento para o tratamento dos respetivos dados pessoais. Este recurso ao reconhecimento facial parece conduzir a uma inaceitável instrumentalização da pessoa a finalidades comerciais, nomeadamente sempre que o cruzamento de dados permita a identificação do titular, associando-lhe estados emocionais, que constituem o último reduto da personalidade individual. De acordo com este entendimento, as exigências legislativas em matéria de consentimento restringem os instrumentos disponíveis para os anunciantes num contexto de excesso de oferta. Noutros sectores de atividade, o problema do impacto do regime jurídico na evolução tecnológica tem vindo a suscitar-se sobretudo face à necessidade de o consentimento traduzir a manifestação de vontade relativa ao tratamento dos dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, impedindo o aproveitamento posterior das informações, exceto nos casos de interesse público. Desta forma, a União Europeia tende a ficar numa situação de desvantagem concorrencial, determinada por um menor incentivo à inovação, face ao que se verifica no Brasil e noutros ordenamentos jurídicos, como o norte-americano. 5) Conclusão A publicidade com recurso ao reconhecimento facial suscita graves problemas ao 275 Ana Clara Azevedo de Amorim nível do direito à privacidade, sobretudo quando o suporte pertence ao profissional. Na medida em que permite identificar os estados emocionais dos destinatários, a biometria contribui para potenciar a eficácia da comunicação comercial através da difusão de anúncios personalizados. Considerando a decadência dos tradicionais meios de massas, bem como a acentuada evolução tecnológica verificada nos últimos anos, o tratamento de dados pessoais assume um papel central nas relações de mercado na Sociedade da Informação, sobretudo face à transição para o apelo a sentimentos na comunicação comercial. Da abordagem de direito comparado resulta que as Leis de Proteção de Dados colocam os ordenamentos jurídicos perante a tensão entre a garantia da privacidade, resultante diretamente dos textos constitucionais, e a suscetibilidade de entrave à evolução tecnológica. No domínio da publicidade, importa sobretudo evitar que os destinatários se tornem um objeto da informação para efeitos comerciais. De facto, a garantia da identidade da pessoa representa um elemento fundamental da dignidade humana, enunciada no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 1.º da Constituição Federal do Brasil. REFERÊNCIAS Amorim, Ana Clara Azevedo de (2017). “A personalização da comunicação comercial e o Regulamento Geral sobre a Protecção de Dados: perspetivas futuras”, AA.VV., Los desafíos jurídicos a la gobernanza global: una perspectiva para los próximos siglos. Brasília: Advocacia-Geral da União, 57-66. — (2018). Manual de Direito da Publicidade, Lisboa: Petrony. Guidi, Guilherme Berti de Campos (2018). “Modelos Regulatórios para Proteção de Dados Pessoais”, AA.VV., Privacidade em perspectivas, Rio de Janeiro: Lumen Juris. Pinto, Paulo Mota (1998). “Publicidade domiciliária não desejada (“junk mail”, “junk calls” e “junk faxes”)”. Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra LXXIV, 273-325. Reis, José Luís (2013). Personalização no Marketing. Sistemas e Tecnologias de Informação. Lisboa: Centro Atlântico. Torres, Roberto (2004). Personalização na Internet, São Paulo: Novatec Editora. 276 GOVERNANÇA CORPORATIVA: ADAPTAÇÃO AO SETOR PÚBLICO PARA UM AMBIENTE ECONÔMICO E JURÍDICO SAUDÁVEL Fernando R. M. Bertoncello1 Thaís Cíntia Cárnio2 1) Introdução Acontecimentos recentes têm afetado intensamente a credibilidade de importantes empresas no cenário econômico brasileiro. São companhias públicas e privadas. Em comum, o grande porte e o fato de todas terem expressão no mercado internacional, a ponto de serem relevantes emissoras de títulos internacionais com vistas à captação de recursos junto a investidores estrangeiros. Objetivo, esse, atingido de forma exitosa e lucrativa antes de serem implicadas em atividades escusas de frondosas proporções e enormes quantias de dinheiro. O maior impacto foi causado pela denominada “Operação Lava-Jato”, cujo início das investigações iniciadas pela Polícia Federal brasileira e Ministério Público Federal remonta março de 2014. Desde então, verificou-se um complexo esquema de lavagem de dinheiro e corrupção envolvendo nada menos do que a empresa petrolífera brasileira Petrobrás e as maiores e principais empreiteiras no Brasil, dentre elas, a Odebrecht, Camargo Correa, OAS, e mais sete nomes relevantes. Além das efetivas perdas causadas pelo pagamento indevido de vantagens, a credibilidade dessas empresas ficou fortemente abalada e notícias sobre os desmandos correram o mundo, causando surpresa e indignação tamanha a proporção de seus efeitos. O ponto que pretende ser analisado neste estudo refere-se justamente à possibilidade de aplicação da governança corporativa ao setor público, e se a adoção dessa medida poderia ser eficiente para sanear a administração dessas companhias, com vistas a evitar que novos desmandos pudessem contaminar tão profundamente o desenvolver de suas atividades. Para tanto, inicialmente serão examinados o conceito e a evolução da governança 1 Advogado, graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Público e também em Direito e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes. Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e também mestrando em Direito Internancional com ênfase em Direito Americano e Transacional pela University of Miami, Estados Unidos. Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (bolsista capes), com período de pesquisa (doutorado sanduíche) pela University of Miami, Estados Unidos. 2 Advogada, doutora em Direito Tributário e mestre em Direito das Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direito Privado e graduada pela Universidade de São Paulo, Especialista em Banking e graduada em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio corporativa, além de seus pilares e os modos como são exteriorizados. Serão abordadas as fontes nacionais informadoras sobre governança, com ênfase para a criação dos Níveis Diferenciados de Governança Corporativa, pela B3 (bolsa de valores brasileira) e o desenvolvimento do Código de Boas Práticas pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC na esfera nacional. Em nível internacional, serão estudadas as iniciativas do Banco Mundial com a elaboração do material “Governance and development”, bem como dos os trabalhos desenvolvidos tanto pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como também pelo International Federation of Accountants (IFAC), especialmente voltados para a aplicação da governança corporativa ao setor público. O principal objetivo é demonstrar como esses pilares da transparência e da conformidade legal podem contribuir para um ambiente jurídico e econômico mais saudável e probo, permitindo a expansão do mercado de capitais e a fidedignidade das empresas públicas e privadas. 2) Conceito de governança corporativa Governança de corporativa é um termo bastante abrangente, que engloba uma série de práticas, iniciativas e comportamentos adotados pela empresa objetivando dar transparência e confiabilidade para partes interessadas em suas atividades. Essa forma de agir envolve o modo como interage com seus sócios, elementos internos à administração da sociedade, como conselho, diretoria e afins, e externos também, como investidores, acionistas, fornecedores. Frequentemente, esses grupos são denominados pelo termo inglês “stakeholder” (sendo “stake” sinônimo de interesse, e “holder”, de detentor). O termo foi cunhado originalmente em 1963, pelo filósofo americano e professor de administração de empresas, Robert Edward Freeman, e comporta um sentido amplo e outro estrito (BEZERRA, 2018). No primeiro caso, estão abarcados todos os grupos ou indivíduos que, direta ou indiretamente, influenciam os objetivos da empresa ou são alcançados por eles, como fornecedores, sindicatos, dentre outros. Já em sua conotação estrita, adstringe-se àqueles sem os quais a empresa não existiria. Nessa gama estão inseridos os acionistas, órgãos da administração e fiscalização, por exemplo. Em qualquer hipótese, Robert Freeman realça que o ponto relevante repousa na necessidade de suprir cada um desses com a informação necessária à categoria que pertencem, além de propiciar ao gestor melhor compreensão do ambiente que envolve a companhia, permitindo que sejam tomadas decisões abalizadas e que efetivamente possam agregar valor à empresa (FREEMAN, 2010, pp. 289-290). 278 Governança corporativa: adaptação ao setor público para... Esse é um ponto crucial no qual retornaremos adiante: a adoção de práticas de governança e o balizamento das ações da companhia por seus princípios são capazes de resultar em reconhecimento de sua imagem e na apreciação de seu valor patrimonial. Voltado à formação conceitual, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBCG define-a como “o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo o relacionamento entre sócios, conselho de administração diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas” (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2018). O Instituto ainda esclarece que as boas práticas de governança propiciam a transformação de princípios básicos em recomendações de cunho objetivo, com vistas aprimorar a qualidade da organização, sua longevidade e bem de toda uma coletividade. De fato, é muito importante perceber a empresa como um elemento que contribui para toda a coletividade, e não um elemento que não transcende seus muros e existe como se fosse um fim em si mesma. Vejamos essa multiplicidade de efeitos. Para o mercado de consumidor é benéfica sua existência, pois se trata de mais um prestador de serviços ou fornecedor de bens, ensejando maior oferta, competição de preços e variedade de produtos ou serviços. Para os empregados e prestadores de serviços terceirizados, mais um originador de postos de trabalho. Considerando a economia nacional, há vários enfoques que podem ser considerados. O Estado terá mais um contribuinte para a arrecadação de tributos e, conforme a área de atuação, mais um exportador que auxiliará na composição do lastro do tesouro nacional em moeda forte. Quanto aos poupadores, a sociedade que apresenta boas práticas e transparência será um potencial destino para as reservas dos investidores, fortalecendo o mercado de capitais e possibilitando a captação de recursos a custo inferior aos juros praticados no âmbito do mercado financeiro. Quanto mais proba e confiável a empresa, melhor para uma ampla gama de partes interessadas, segundo o conceito mais amplo de Robert Freeman, já analisado anteriormente. Nesse sentido, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desenvolveu o OECD Principles of Corporte Governance, publicado em 2004, no qual esclarece que a estrutura da governança corporativa deve promover a transparência e a eficiência dos mercados, além de cumprir com a legislação que lhe seja aplicável e claramente organizar a divisão de responsabilidades entre as autoridades supervisoras, fiscalizatórias e executoras (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2018). A seguir, será abordada a evolução da governança corporativa e suas principais fontes nacionais e internacionais. 279 Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio 3) Evolução da governança corporativa O principal motivo que ensejou o desenvolvimento da governança corporativa foi a necessidade de aumentar a confiabilidade em companhias em um cenário de permanente transformação de pequenas sociedades em grandes companhias, com pulverização de capital e aumento da impessoalidade na gestão. Rossetti e Andrade (2012, pp. 69-71) atribuem essa expansão a cinco principais pontos: (i) constituição de grandes empresas como sociedades anônimas e novas subscrições de ações; (ii) aumento de abertura de capital e oferta pública inicial em ambiente bursátil; (iii) aumento de investidores e fracionamento da propriedade das companhias; (iv) profissionalização de gestão decorrente de processos sucessórios; e (v) fusão de grandes empresas, aumento o número de acionistas e fragmentando sua participação individual. Esse distanciamento entre os acionistas e a gestão efetiva da companhia pode gerar conflitos, que podem ser amainados com a transparência e das informações fornecidas aos acionistas, órgãos reguladores e investidores, além da observância a leis que protejam as partes interessadas. Fontes originadoras de boas práticas têm oferecido subsídios ricos para elaboração de um sistema íntegro de relação entre seus gestores e os stakeholders, conforme será exposto nos próximos tópicos. a) Fontes Nacionais No Brasil, a estabilização da moeda nacional e controle inflacionário após a implantação do Plano Real, na primeira metade da década de 90, apresenta um ambiente mais propício para o investimento empresarial no país, bem como para o incremento do mercado de capitais, além do impulso proveniente do ciclo de privatizações havidas no período. Nesse cenário, duas importantes instituições destacam-se como pioneiras na organização de práticas benéficas para a gestão responsável e equânime das empresas: o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC e a BMF&Bovespa. i) Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC Originalmente criado em 1995 como Instituto Brasileiro de Conselheiros de Administração - IBCA, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC passou a ser assim denominado em 1999, cujo propósito é contribuir para o desempenho sustentável das organizações, buscando maior transparência, justiça e responsabilidade nessa atividade (INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA, 2018). No mesmo ano, é publicada a primeira versão do Código das Melhores Práticas 280 Governança corporativa: adaptação ao setor público para... de Governança Corporativa, que sedimenta como princípios básicos da governança corporativa transparência, equidade, prestação de contas e responsabilidade corporativa (Ibid.). À luz do Código, a transparência materializa-se como a intenção de disponibilizar as informações que sejam pertinentes para as partes interessadas, não se limitando àquelas legalmente obrigatórias. Assim, devem abarcar inclusive informações que direcionam a tomada de decisão gerencial e que preservem e agreguem o valor à companhia. Equidade, por sua vez, refere-se ao tratamento justo e isonômico de todos os sócios e stakeholders, englobando tantos direitos, como deveres e expectativas. Prestação de contas, ou accountability, retrata o dever dos sócios, administradores, conselheiros, auditores e demais agentes de governança prestarem contas de sua atuação de maneira clara e tempestivo, esclarecendo dúvidas que por ventura subsistam e assumindo a responsabilidade por suas ações ou omissões na medida de suas atribuições. Por fim, responsabilidade corporativa implica no dever dos agentes de governança em zelar viabilidade econômico-financeira da companhia, reduzindo efeitos negativos que possam advir a terceiros como resultado de negócios e potencializar as consequências positivas, considerando nessa atividade várias naturezas de capital (financeiro, humano, social, etc.) ao longo do tempo que seja desenvolvida. Erigido sobres esses pilares, o Código desenvolvido pelo IBCG torna-se uma importante referência em para aqueles que pretendem diferenciar-se no mercado empresarial. Contribuindo ainda mais para essa distinção, a BMF&Bovespa inova ainda mais. ii) BMF&Bovespa (atual B3) Em 2000, a BMF&Bovespa cria os segmentos especiais de listagem com o objetivo de para desenvolver o mercado de capitais brasileiro, estabelecendo níveis adequados aos diferentes perfis de empresas (Ibid.). Cada um deles expressa um grupo de práticas que devem ser observadas e que ultrapassam as obrigações legais constantes da Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/76 e alterações posteriores). Iniciando no nível “Bovespa Mais” e culminando no “Novo Mercado”, cada patamar agrega mais práticas que, progressivamente, incrementam o sistema de governança da companhia, ampliando os direitos dos acionistas, seus mecanismos de controle e divulgação de informações, sempre com vistas a propiciar um perfil adequado à realização de grandes ofertas para investidores de variados perfis. Para que possam migrar de determinado segmento para outro, a empresa assume a obrigação de adequar-se a todos os requisitos constantes desse próximo nível. 281 Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio Importante salientar que tanto a adesão, como a progressão entre os segmentos é voluntária, e inicia-se com celebração de um contrato específico entre companhia interessada e a B3, atual denominação da BM&FBovespa. Com o decorrer dos anos, o Novo Mercado foi revisado em 2006, 2011 e, mais recentemente, em 2018. O novo regulamento é fruto de discussões entre a B3, participantes do mercado e companhias listadas, sua minuta foi aprovada em audiência restrita pelas companhias listadas em junho de 2017 e pelo Colegiado da Comissão de Valores Mobiliários em setembro de 2017 (BMF&BOVESPA, 2018). Alguns pontos especialmente interessantes relativos ao Novo Mercado são as seguintes: o capital deve ser composto exclusivamente por ações ordinárias com direito a voto; tag along 100%, ou seja, caso haja alienação do controle, todos os acionistas terão direito a vender suas ações pelo mesmo preço praticado pelo controlador; instalação de área de Auditoria Interna, função de Compliance e Comitê de Auditoria; além de realização de oferta pública de aquisição de ações por valor justo no caso de saída da empresa do Novo Mercado, dentre outras regras. Com a ampliação das informações e a garantia de direitos aos acionistas, objetivase maior valorização da empresa no mercado de capitais. Quanto mais confiável a empresa, maior a possibilidade de angariar recursos junto a investidores. 4) Relevância para o setor privado e público: e o papel do direito econômico nessa articulação Sabe-se que a Economia e o Direito andam juntos, talvez, desde sua criação. Nesse sentido, versa Fábio Nusdeo (2010, p. 31) que é íntima a relação entre Direito e Economia. Trata-se, na verdade, de profunda imbricação, pois os fatos econômicos são os que se apresentam de uma dada maneira em função direta de como se dá a organização ou normatização. Percebe-se uma relação intrínseca entre as duas ciências – que aparentemente não podem existir uma sem a outra –, e nos últimos tempos percebe-se, inclusive, a ampliação da presença do Estado no sistema econômico e o seu caráter difuso, com multiplicação de normas legais de toda a espécie para por em prática a política econômica (Ibid.). No Brasil, o modo de produção em que se vive, como sabido, é o capitalismo e, por isso, pode-se dizer que as relações humanas, sociais e jurídicas estão diretamente atreladas a ele, que, por sua vez, depende da Economia para funcionar. Sendo assim, verifica-se que vida social, cenário econômico (nacional e internacional), bem como relações jurídicas (litigiosas ou não) carecem de um mesmo alicerce: o desenvolvimento econômico. Igualmente, para Eros Grau (2010, p. 33) não somente a Economia e o Direito 282 Governança corporativa: adaptação ao setor público para... caminham em um mesmo sentido, mas, também, o próprio sistema capitalista, nos seguintes termos: a sociedade capitalista é essencialmente jurídica e nela o Direito atua como mediação específica; essas relações de produção não poderiam estabelecer-se, nem poderiam reproduzir-se sem a forma do Direito Positivo; este Direito posto pelo Estado surge para disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer que ele se presta a permitir a fluência da circulação mercantil, para domesticar os determinismos econômicos. Assim, a sociedade capitalista somente se mantém como é se for controlada pelo Direito positivado, o que também se aplica à Economia, que não pode ter um fim em si mesma, mas, sim, um objetivo social e comum para com a sociedade. Nesse sentido, Vicente Bagnoli (2007) expressa em sua obra a esperança do autor de um século XXI socialmente melhor e, para tanto, pressupõe mais igualdade entre os Estados e entre as pessoas de um mesmo Estado. Todavia, ressalta que para isso ocorra deve-se promover políticas econômicas mais preocupadas em desenvolver a economia das nações, principalmente a dos países pobres e em desenvolvimento, e não apenas buscar o crescimento econômico. Sendo assim, para o autor, desenvolver a economia deve significar desenvolver o país, a sociedade, que terá a contrapartida da melhora econômica. Isso porque o progresso meramente material não conduz a sociedade a um aprimoramento no bem-estar coletivo. O desenvolvimento econômico, portanto, embora propulsor do sistema capitalista, precisa de freios. E com o passar do tempo, a fim de que supostos freios fossem melhor engendrados, surgiu um ramo específico do Direito: o Direito Econômico. Embora não seja admitido constitucionalmente, o irrestrito intervencionismo do Estado para estabelecer monopólio no exercício de qualquer atividade econômica, ou mesmo um movimento estatizante, não convém concluir que a Constituição Federal de 1988 tenha estabelecido uma economia de mercado pura, o que não se encontra em qualquer país (TAVARES, 2010, p. 227). Nessa toada, defende-se que nos dias que correm, seria inadmissível entender uma sociedade na qual o Estado se abstivesse de intervir na economia. Cabe, portanto ao Direito daqui para frente articular novas formas de governança para que se possa estabelecer uma forma sustentável de se articular a atividade empresarial, estabelecendo boas práticas de governança corporativa, tanto no âmbito privado quanto no âmbito público. 5) Considerações finais Percebe-se, portanto, que a governança corporativa é uma prática que só tende a crescer em uma dinâmica empresarial, uma vez que a transparência, a ética corporativa 283 Fernando R. M. Bertoncello e Thaís Cíntia Cárnio e a sustentabilidade já integram modelos de negócio e compõem o valor agregado das empresas. Além disso, a governança corporativa é elemento basilar para que uma empresa traga para si o capital reputacional. A governança, por sua vez, não é somente um conceito que é um desafio para a esfera privada ou empresas de capital aberto, mas sim para qualquer atividade empresarial, sobretudo as públicas. As empresas públicas precisam necessariamente adotar esse conceito e perder aos poucos o seu viés político e, mais do que isso, o seu viés partidário. Verificou-se que as leis de mercado de capitais, bem como uma grande seara de iniciativas autorregulatórias podem ensejar boas práticas de governança, promovendo assim um ambiente salutar para a atividade empresarial e para os investimentos, sobretudo o investimento estrangeiro, que tanto precisa de segurança para acontecer. Todavia, esse ambiente autorregulatório, embora importante somente não basta. É preciso a atuação do Direito Econômico nessa seara. Verificou-se o quanto o Direito Econômico é importante para auxiliar na dinâmica financeira de um Estado Democrático de Direito a fim de promover o interesse público. Sendo assim, percebeu-se que são necessárias inicitaivas jurídicas a fim de desejar modelos legislativas que estimulem as boas práticas de governança corporativa estimulando políticas de transparência, accountability, compliance, inciativas anticorrupção e políticas que permitam que aquela atividade empresarial promova mais igualdade em um país ainda que é marcado por traços de bastante desigualdade entre as pessoas. A proposta de um Direito que viabilize essas práticas não inviabiliza atividades autorregulatórias desempenhadas até agora, mas as complementa a fim de transformar a atividade empresarial brasileira em uma prática sustentável e digna de investimento estrangeiro. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Adriana; ROSSETTI, José Paschoal. Governança Corporativa: fundamentos desenvolvimento e tendências. São Paulo: Atlas, 2012. BAGNOLI, Vicente. Direito e Poder Econômico. São Paulo: Atlas, 2005. BEZERRA, Filipe. Stakeholders: do significado à classificação. 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World Development Report 1997: The State in a Changing World, Washington, D.C., World Bank, 1997. ________. Reforming Public Institutions and Strengthening Governance: A World Bank Strategy, Implementation Update, Parts 1 and 2. Washington D.C.: World Bank, 2002. ________. Engagement on Governance & Anticorruption. Washington D.C.: World Bank, oct. 2007. 285 A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E O DIREITO CONSTITUCIONAL: A PRESERVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM MEIO À MODERNIDADE LÍQUIDA. Giovana Maria Naldi Marcondes1 Nara Furtado Lancia2 1) Introdução A velocidade com que as mudanças ocorrem no mundo é uma característica evidente do tempo atual, além disso, a capacidade de adaptação e flexibilização não fora vista de maneira tão exacerbada anteriormente. Mesmo com posicionamento de alguns mais conservadores, não há limitação: crianças, jovens e idosos das mais variadas classes sociais e zonas geográficas estão submetidos ao desenvolvimento tecnológico do último século, XXI, a pós-modernidade. Surgida nos Estados Unidos da América, na década de 1960, e propagada por toda a Europa por Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jean Baudrillard, o termo “pós-modernidade” tem como um de seus maiores defensores, o filósofo francês Jean-François Lyotard (1998). Ele afirma que tal marco seria o fenômeno da sociedade pós-industrial, o que poderia ser identificado com o fim da Segunda Guerra Mundial, de sorte que a pós-modernidade seria uma resposta ao nazismo, ao mesmo tempo em que caracterizaria esse momento o rompimento com as antigas verdades até então inquestionáveis do liberalismo e do marxismo. Nesse sentido, a visão de Marx e Engels (1988), no Manifesto Comunista, de que o mundo pode ser resumido na frase “Tudo que é sólido desmancha no ar”, torna-se ainda mais alarmante no século seguinte, quando acompanhado de maior desenvolvimento e sintetização da sociedade pós-moderna. Problematiza-se e importase, então, as características deste tempo em que as verdades absolutas foram soterradas, quando no século XXI, num ambiente em que as sociedades plurais e complexas deparam-se com mudanças tecnológicas que ocorrem permanentemente, tornando as relações e até as pessoas e as coisas voláteis e absolutamente efêmeras. A fluidez e a volatilidade das coisas, das relações e até mesmo das pessoas e das crises impressionam no contexto atual, em que as calmarias e também as tempestades ocorrem com enorme velocidade. Essa realidade questionou e ruiu todas as certezas antigas rapidamente, dentre elas, a característica de riqueza, pois ter riqueza não mais significa acumular bens materiais, o homo faber de Arendt (2010) foi substituído em grande parte por uma persona que anseia por serviços, por bens imateriais e em Direito – Centro Universitário Salesiano de São Paulo. E-mail: gi_naldi@hotmail.com 2Advogada; bacharel em direito pela Universidade de Taubaté; Mestranda em Ciências JurídicoCriminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com um período sanduiche pela Universidad de Murcia. E-mail: narafurlancia@hotmail.com 1Graduanda Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia principalmente, por acesso ao crédito, ser esse que, ademais, se encontra inserido num mundo em que o avanço da técnica em escala mundial abala todas as estruturas, modifica comportamentos e ideias, e torna as inovações de instantes antes ultrapassadas a partir de agora. No dia de hoje, todas as informações – relevantes ou não - sobre a vida de uma pessoa e seu patrimônio estão em uma “nuvem de dados” que podem, por acesso remoto, ser consultadas a qualquer momento, como o BlockChain. Diante deste contexto, a economia toma novos rumos, e o Direito, assim, precisa mudar e alcançar os fatos cotidianamente urgentes, promovendo, portanto, o encontro entre essas duas realidades, jurídica e tecnológica, sem perder de vista o princípio básico jurisdicional, qual seja, a mantença, promoção e preservação da dignidade humana. A sociedade pós-moderna é a transformação de uma sociedade de massa refletida por pensadores como os da Escola de Frankfurt, para uma sociedade da abundância, na qual os excluídos são todos aqueles que estão alheios à sociedade de consumo. Como explica Bauman (1998), ao assinalar a distinção da sociedade moderna, sólida, da sociedade pós-moderna, líquida, se anteriormente a sociedade dita moderna era vivida como sólida com projetos sociais e ideologias condutoras de rumos para os homens, na pós-modernidade não se tem mais isso. Na pós-modernidade vive-se, como ele denomina e solidifica o termo, uma espécie de modernidade líquida, ou seja, uma construção fluida, desapegada de promessas ideológicas, de compromissos sociais e políticos e, em contra partida, caracterizada por um consumismo exacerbado. O mundo atual, nessa perspectiva se importa exclusivamente com o estímulo de compulsões para necessidades criadas por ele mesmo. Essas que levam à exacerbada individualidade e ao isolamento afetivo como formas de proteção e até mesmo economia, provocada pela velocidade do desenvolvimento da tecnologia de hoje que devasta e torna obsoletas e insignificantes as inovações de ontem, fazendo, por exemplo, a proteção dos direitos da personalidade ainda mais fundamentados, uma vez que, com a velocidade da tecnologia, honras são questionadas, intimidades são violadas, expressão é confundida com opressão e tudo, em segundos, é apagado, excluído, fazendo da internet a vulgarmente chamada “terra de ninguém”. Trazendo direitos até então mantidos como absolutos e indisponíveis, volatizáveis. Diante do exposto, reconhece-se que a evolução tecnológica é fator indiscutível à realidade brasileira e mundial. A sociedade adaptável e flexível precisa ser acompanhada de atualizações e acompanhamento jurídico. A chamada mutação legislativa se faz indispensável frente a essa mudança de paradigma. Qualquer evolução que se desvincule dos valores e preceitos sociais defendidos e preservados fundamentalmente perde sua efetividade, uma vez que, o respeito aos direitos humanos, a mantença da dignidade e o respeito à história da nação são fundamentais mesmo quando, em contra partida, reproduz-se uma vida cada vez mais líquida. Pelo exposto, portanto, é que a discussão se justifica, a fim de entender, de maneira indutiva, a realidade brasileira e internacional e concluir a mais efetiva maneira de proporcionar o encontro das realidades retro 288 A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação... destacadas, quais sejam, os direitos fundamentais e à ponderação de valores frente ao avanço e desenvolvimento tecnológico. Para tanto, a presente pesquisa foi dividida em algumas etapas. Na primeira, serão explanados e explicados o conceito e as características da pós-modernidade, momento o qual se encontra o ápice do desenvolvimento tecnológico e o choque de princípios que ensejou a presente discussão. Em seguida, abordar-se-á, doutrinariamente, quanto aos direitos fundamentais, seu conceito, aplicação e efeito, o que tão logo será contraposto com a conceituação de Modernidade Líquida e a exposição de Bauman frente aos dois pontos anteriores. Por fim, tratar-se-á, através de análises jurisprudenciais da realidade fática brasileira e internacional frente a esses conflitos com crítica in casu¸como será concluído ao final, é o melhor modo de solucionar o conflito, através da hermenêutica factual, sem a possibilidade de existir lacunas de aplicações rígidas ou desequilibradas que a normatização pode provocar. 2) Os direitos fundamentais Os direitos fundamentais são fruto de construção histórica. Inicialmente, foram idealizados na dimensão subjetiva, frutos da correlação máxima do direito, ou seja, entre os aspectos fático, axiológico e normativa, na teoria tridimensional do direito, que Miguel Reale, 1994, dispõe: O Direito é uma realidade, digamos assim, trivalente ou, por outras palavras, tridimensional. Ele tem três sabores que não podem ser separados um dos outros. (Miguel Reale, 1994, p. 121) Nesse sentido, foram as revoluções Francesa e Industrial, ambas do século XVIII, e suas consequências e, mais adiante, as experiências dos Estados Totalitaristas, o nazismo e o fascismo, que fizeram aflorar a dimensão e, até mesmo, a necessidade dos direitos fundamentais, sendo os direitos à prestação por parte do Estado. Também quando os direitos fundamentais passaram a ser positivados e classificados conforme sua eficácia. Ao tratar de eficácia ou dimensão subjetiva das normas de direitos fundamentais, diz sobre o que é que essas normas de direito caracterizam e conferem aos seus titulares quanto ao poder jurídico de ação, ou seja, o de exigir algo, uma abstenção, implicando o reconhecimento de um poder dado ao titular no sentido de exigir algo e na hipótese de não cumprimento espontâneo pode ir, até mesmo, ao poder judiciário, quando, então, fará valer sua pretensão. Nessa dimensão, temos a ideia tradicional dos direitos fundamentais com direta relação aos direitos subjetivos. Nesse raciocínio, eles possuem característica individualista e são oponíveis ao Estado. Os direitos fundamentais são a expressão normativa do conjunto de valores básicos de uma sociedade. (VALE, 2009, p. 167) Contudo, enquanto na dimensão subjetiva o Estado é oponível, na dimensão 289 Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia objetiva, o Estado torna-se um protetor dos direitos fundamentais, pois, a eficácia ou dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que está ligada à sua efetivação, trata a respeito do fato de que certos valores que permeiam a ordem jurídica deixam condicionados à interpretação e aplicação de outras normas, ao que se denomina eficácia irradiante, e ainda criam o dever geral de proteção sobre aqueles bens jurídicos salvaguardados pelo ordenamento jurídico. A partir de então, faz-se necessário discutir os termos que a própria dimensão objetiva dos referidos direitos, quais sejam, os fundamentais, se relacionam: a eficácia irradiante, a eficácia horizontal e a vinculação positiva do Estado aos direitos fundamentais. Cumpre dizer que os direitos fundamentais emergem no procedimento de superação do estado absolutista pelo estado liberal e burguês. Contudo, a posteriori, o estado liberal também passou a ser contestado, uma vez que, por obviedade, fora incapaz de cumprir suas juras e de efetivar direitos fundamentais. Assim, logo no início do século XX, sobrevieram, as primeiras constituições que, pioneiramente, previram direitos sociais, a do México e a de Weimar. Diante do cenário, a discussão acerca da efetividade dos direitos fundamentais e de cunho social, foi sendo fortalecido cada vez mais. É nesse contexto que se entende a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que surge destacando o conteúdo axiológico dos direitos fundamentais, de sorte que esses norteiam a interpretação e a aplicação das normas jurídicas existentes no sistema jurídico (PEREZ LUÑO, 1998). Nesse sentido, portanto, entende-se que na dupla dimensão dos direitos, subjetiva e objetiva, os pilares do ordenamento jurídico brasileiro podem ser afetados pelo advento das inovações, frente a todas a novas mudanças de paradigma. E, como preconizado por Reale, anteriormente, o direito é diretamente dependente do fato e da realidade da sociedade em que está inserido, ou seja, o direito não pode ficar alheio e sendo imprescindível que esteja, a fim de acompanhar e fazer seu papel, aberto às inovações, e que não as iniba. Portanto, ao cumprir seu papel fundamental de direito deve, desse modo, ao tempo em que deve cumprir sua função de estabilizar, estar aberto à criação de uma estrutura que esteja igualmente aberta às inovações, às novas oportunidades, para que assim possa normatizar a nova realidade. Para tanto ratificar, Bauman, este que será, no próximo tópico tratado de maneira mais específica, em sua rotulação que melhor caracteriza a realidade pós-moderna: “A ausência, ou a mera falta de clareza das normas – anomia – é o pior que pode acontecer às pessoas em sua luta para dar conta dos afazeres da vida. As normas capacitam tanto quanto incapacitam; a anomia anuncia a pura e simples incapacitação” (BAUMAN, p. 28). 3) A modernidade líquida 290 A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação... Autor, dentre outras obras, do livro Modernidade Líquida, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman dirige uma reflexão sobre as reiteradas e aceleradas mudanças que tem ocorrido nas últimas décadas nos vários âmbitos da vida contemporânea. Dentre eles, na esfera jurídica. A flexibilização dos princípios constitucionais pode ser observada como fato característico da era contemporânea e ameaçador da estrutura do Estado Democrático de Direito. Hoje, no denominado por ele, Capitalismo leve, o capital viaja fluído, solto, propriamente, líquido, nas mãos dos que operam virtual e eletronicamente o sistema capitalista. Funcionários não ficam mais ancorados em gigantescos departamentos, haja vista as presentes atividades de home office, presos a um horário formal com obrigação de ponto e aos papéis que compõem a burocracia e estagnação do capitalismo pesado, aquele da Era Moderna. Circula-se o capitalismo, levemente, através de aparelhos de sofisticada tecnologia, negocia-se mercados e promove-se audiências, onde testemunhas são levadas a instrução, apresentando-se teses nos mesmos, através das chamadas de vídeo conferências, sem o gasto e o desgasto de passagens aéreas, perda de tempo, relação interpessoal e contato humano. Abrevia-se etapas e, assim, dá-se movimento e fluidez ao capital, à justiça, ao conhecimento e à discussão. A modernidade é afastada da predeterminação e da definição de conceitos estáticos ou irrevogáveis, contrariamente ao período precedente, onde a estagnação, a estrutura econômica pesada, era o paradigma. Defende que hoje temos derrotas que não são definitivas, mas também nenhuma vitória é final. As possibilidades devem continuar infinitas, permanecendo líquidas e fluídas, com “data de validade”, ou seja, um mundo repleto de sinais confusos propenso a mudar com rapidez e forma imprevisível, sem certeza (BAUMAN, 1994). Pessoas, relacionamentos, valores ou coisas, são regidos, igualmente, por “data de validade”. O futuro é inseguro e esse pensamento se expande, inclusive, para o direito. As normas e as fiscalizações não são o suficiente. No Brasil, o sistema judiciário é travado constantemente por uma necessidade de produzir uma falsa segurança. Promover Embargos de Embargos de Embargos afim de assegurar uma tutela jurídica que tal qual a sociedade atual já se foi, é não entender a realidade social. O sistema moroso, desde a Reforma do Código de Processo Civil de 2015, tenta reeducar toda uma sociedade do litígio e que tente a transformar em contencioso todo conflito pela necessidade de resolução. Porque a fluidez não aceita derrota e busca, em sua totalidade, o benefício e a valoração de si próprio e é onde, como afirma em entrevista ao Programa “Quem Somos Nós?” o professor Luiz Mauro Martino (2016), rupturas e continuidades continuam juntas em uma tensão constante. Concomitantemente a essas dificuldades já realidades na Modernidade Líquida, há as dificuldades em razão do difícil acompanhamento legislativo frente às mudanças tecnológicas, o que produz um crescente número de ataques aos direitos fundamentais personalíssimos. Como será concluído, através das análises jurisprudenciais presentes no próximo capítulo, a solução para o conflito retro citado está na hermenêutica factual 291 Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia e julgamento in casu. 4) O direito e a tecnologia: jurisprudências e análise in casu Por obviedade, o constante desenvolvimento tecnológico não foi preconizado ou sequer acompanhado pelas mudanças normativas, o que culminou na dificuldade de resolução dos conflitos da relação entre a evolução tecnológica e os direitos fundamentais. No Brasil, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Roberto Barroso ratifica o entendimento de que não existe hierarquia entre direitos e princípios constitucionais (Rcl 22328 MC, STF, 2015), ou seja, a busca pelo equilíbrio e a solução do embate deve ser feita in casu, sendo o judiciário elemento ponderador entre a realidade fática e legislativa. Conflito estes, tal qual a dicotomia entre o direito à privacidade e o direito autoral. Como em 1984, nos Estados Unidos, no conhecido caso Betamax. A discussão entre a Sony e a Universal Studios visava a esclarecer se a gravação de programas e filmes em fitas videocassetes representava violação aos direitos do estúdio e do autor. A decisão nesse questionamento foi a de que não houve violação ao direito autoral, mas uso legítimo da tecnologia ou fair use. Contudo, em contrapartida, no ano 2000, mesmo que se tratando do conflito entre os mesmos dois direitos, o programa de compartilhamento de músicas em computador Napster foi proibido. No Brasil, em 2013, inicia-se, então, o exame dos precedentes. Por exemplo, o REsp 1.512.647/MG, que tratou sobre a responsabilidade civil de site da internet. O referido caso se tratava da rede social Orkut e um curso preparatório para concursos públicos e exames que vendia aulas online e materiais virtuais. Ocorre que fora divulgado em “comunidades” e páginas virtuais do provedor algumas aulas de maneira gratuita o que fora entendido, pela empresa do curso preparatório como pirataria e foi movida uma ação contra a página. A discussão gerada e carregada foi quanto a responsabilidade civil da página e se havia participação da mesma no ato ilícito de pirataria com vantagem financeira ou pecuniária. A 2ª Seção do STJ entendeu e suscitou a exclusão da responsabilidade civil da rede social, por ela não disponibilizar de nenhuma ferramenta que facilitasse a pirataria, tampouco utilizar ou obter benefício, ainda que indiretamente. Por obviedade, este tipo de julgado abriu precedente e foi utilizado por qualquer outra rede social, site ou provedor de internet que sofresse no polo passivo de ação semelhante. Outro caso julgado no Supremo Tribunal Federal tratou sobre a constitucionalidade de uma lei estadual criada pelo Estado do Rio Grande do Sul. A referida lei estabelecia a preferência na aquisição de softwares livres ou sem restrições proprietárias no âmbito da administração pública regional, na modalidade de licitação pública da concorrência. Em matéria de liminar, o Ministro Ayres Britto decidiu contrariamente em relação ao software livre. Contudo, em fase decisória, na relatoria do Ministro Luiz Fux, a Suprema Corte estabeleceu que a legislação estadual é compatível com os princípios constitucionais da separação dos poderes e manteve a norma que deu 292 A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação... preferência para a aquisição de software livre (ADin 3.059) Outros precedentes que podem ser citados a fim de ilustrar a crescente demanda na área, o que justificaria uma reforma além do Marco Civil da Internet são o REsp 844.736/DF, por exemplo, que analisou e decidiu quanto a matéria de se o spam gera dano moral, o REsp 997.993/MG, no qual discutido se o fornecedor do serviço, ou seja, no caso, quem hospeda o site de classificados teria ou não corresponsabilidade por publicar falso anúncio erótico solicitado por uma pessoa para prejudicar outra ou o REsp 1.168.547/RJ, que tratou sobre a possibilidade de ajuizamento de ação indenizatória caso a pessoa sentir-se violada pela utilização de imagem na internet ainda que o site esteja hospedado no exterior, sendo a decisão do STJ afirmativa nesse caso. Quanto ao Marco Civil da Internet, vale salientar, por exemplo, a normatização de um dos casos tratados acima, qual seja, o da responsabilidade civil dos provedores de internet. A Lei nº 12.965/2014 em seu art. 19 exige ordem judicial específica para que obrigue a tornar indisponível qualquer conteúdo que seja gerado por terceiros e violador de direito, previsto ainda, contudo que, em caso de inércia, a responsabilidade pode e deve ser invocada. Cumpre dizer ainda, quanto ao art. 21 da citada lei: Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Além disso, está expressamente excepcionada de seu âmbito de incidência a violação de direitos autorais praticada por terceiros (art. 19, § 2º, e art. 31). Ademais, analisa-se também, no mesmo nexo textual a análise ao direito ao esquecimento. O Superior Tribunal de Justiça, em conjunto com o Conselho da Justiça Federal, tem buscado se posicionar e consolidar uma posição a fim de orientar e nortear o Direito Civil, o Direito Comercial, dentre outros temas. Nesse momento que criou-se a ideia da tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação, incluindo o direito ao esquecimento. Posteriormente, foram julgados na 4ª Turma do STJ dois casos com temas diferentes (REsp’s 1.334.097/RJ e 1.335.153/RJ), escolhidos cautelosamente para análise concomitante. Embora relacionados ao direito ao esquecimento e utilizando se técnica de distinção, em um caso, houve posicionamento que fora concedida a indenização (REsp 1.334.097/RJ), onde um cidadão indiciado na chacina da Candelária do Rio de Janeiro e, a posteriori, absolvido pelo júri a pedido do próprio promotor de justiça. Nesse caso, o acusado precisou mudar de identidade, mudar-se de cidade e procurar outro emprego pois fora perseguido em sua comunidade. Tempos depois, 293 Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia quando conseguiu se estabilizar na nova vida, uma emissora de televisão o procurou para gravar uma entrevista, mas ele se negou a participar dizendo apenas que já fora absolvido, contudo, ainda assim, o programa foi ao ar, o que ensejou a ação indenizatória, a qual sustentou em um dos seus argumentos, o direito de ser esquecido; e, no outro, o conhecido caso, também do Rio de Janeiro, da Aida Curi, que envolveu a alta sociedade carioca, quando a mesma emissora de TV ré no caso anterior, veiculou a reconstituição do crime mesmo com o não consentimento da família e seu pedido de direito de preservação da memória da falecida, fora negada (REsp 1.335.153/RJ). A justificativa para diferentes posicionamentos corroborou o entendimento uno que norteia o presente estudo e todo o sistema judiciário brasileiro: ocorreu de modo a afirmar que o resultado do julgamento vai depender de cada caso. Ou seja, não será em toda situação que vai ser aplicável o direito ao esquecimento. Assim, não poderá ser normatizado de maneira una e definitiva. O caso precedente da União Europeia que tratou do tema, fora o acórdão de 13 de maio de 2014, do Tribunal de Justiça da União Europeia, amplamente divulgado por todos os meios de comunicação, resultou da reclamação sobre o caso do Google Espanha contra a Agência Espanhola de Proteção de Dados e Mario Costeja González. A pretensão era a retirada do nome de Mario Costeja González do mecanismo de busca. Ainda se tratando da análise do direito internacional, vale dizer sobre o chamado actual malice, criado nos Estados Unidos, com o caso do New York Times, que questionou sobre a necessidade de efetivamente provar a má-fé do jornalista para caracterizar a invasão da privacidade quando são ultrapassados os limites da mera informação. Diferentemente, no direito brasileiro, existem vários precedentes que afastam a necessidade de prova da má-fé (REsp 706.769/RN). Como fora possível observar em cada um dos casos retro citados que fundamentam o presente estudo, numa análise indutiva, cada caso precisa ser julgado de acordo com seu contexto factual, ou seja, não foi possível, em nenhum deles, a normatização e imposição de uma lei sem lacunas. O Marco Civil da internet, que foi a maior tentativa de normatizar o desenvolvimento tecnológico, deixou vazios que precisaram ser preenchidos pela função judiciária. Como maior exemplo, pode ser citado os dois julgamentos sobre o direito ao esquecimento, estes que, apesar de tratar de assuntos semelhantes e pleito do mesmo direito, tiveram decisões distintas, pois a realidade factual assim o era.. 5) Conclusão Destarte, quanto à colisão de diversos direitos fundamentais, o desenvolvimento tecnológico, às mudanças de paradigma e à ponderação de valores em conflito, existem doutrinadores que defendem a preponderância de um dos princípios em relação ao 294 A revolução tecnológica e o direito constitucional: a preservação... outro, em uma espécie de hierarquia. Contudo, como uniformizado majoritariamente pelo direito brasileiro, a ordem é um sistema, o que pressupõe unidade, equilíbrio e harmonia. Como em todo ou qualquer sistema, suas engrenagens precisam coexistir. Na colisão de princípios constitucionais, emprega-se a técnica da ponderação. Diferente do que ocorre nas soluções de eventuais conflitos entre normas jurídicas infraconstitucionais, nas quais, utilizam-se, como já visto, os critérios tradicionais da hierarquia, da norma posterior e o da especialização. (SANTOS, 2006) Por força do princípio da unidade, abaixo explicitada pelo Professor Barroso, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete da lei, qual seja, o operador do direito, a busca da harmonização possível, in casu. A ponderação e a hermenêutica factual são instrumentos de regulação da engrenagem e de preservação do princípio da unidade, também conhecido como princípio da unidade hierárquiconormativa da Constituição. A ideia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural da ordem jurídica. É a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, e o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidem. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga “ o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador” (BARROSO, 2004, p. 196) Neste mesmo sentido, o americano Dworkin idealiza o Juiz Hércules, aquele que resolve os casos mais difíceis um a um. Ainda, cumpre citar mais uma vez o Ministro Luis Roberto Barroso: A impossibilidade de chegar-se à objetividade plena não minimiza a necessidade de se buscar a objetividade possível. A interpretação, não apenas no direito como em outros domínios, jamais será uma atividade inteiramente discricionária ou puramente mecânica. Ela será sempre o produto de uma interação entre o intérprete e o texto, e seu produto final conterá elementos objetivos e subjetivos. E é bom que seja assim. A objetividade traçará os parâmetros de atuação do intérprete e permitirá aferir o acerto de sua decisão à luz das possibilidades exegéticas do teto, das regras de interpretação (que o confinam a um espaço que, normalmente, não vai além da literalidade, da história, do sistema e da finalidade da norma) e do conteúdo dos princípios e conceitos de que não se pode afastar. A subjetividade traduzir-se-á na sensibilidade do intérprete, que humanizará a norma para afeiçoá-la à realidade, e permitirá que ele busque a solução justa, dentre as alternativas que o ordenamento lhe abriu. A objetividade máxima que se pode perseguir na interpretação jurídica e constitucional é a de estabelecer os balizamentos dentro dos quais o aplicador da lei exercitará sua criatividade, seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça do caso concreto. Por fim, a evolução tecnológica é fator indiscutível à realidade brasileira e mundial. A sociedade adaptável e flexível precisa ser acompanhada de atualizações e 295 Giovana Maria Naldi Marcondes e Nara Furtado Lancia acompanhamento jurídico. A chamada mutação legislativa se faz indispensável frente a essa mudança de paradigma. Qualquer evolução que se desvincule dos valores e preceitos sociais defendidos e preservados fundamentalmente perde sua efetividade, uma vez que, o respeito aos direitos humanos, a mantença da dignidade e o respeito à história da nação são fundamentais mesmo quando, em contrapartida, reproduz-se uma vida cada vez mais líquida. O presente estudo entende, portanto, que é dever do Poder Judiciário a promoção da hermenêutica factual, de modo que possa adequar a devida solução a cada caso concreto. A normatização de uma realidade que está em constante mudança possibilitar a promoção latente, a priori, de lacunas, ou seja, uma aplicação rígida e desequilibrada da legislação que culminará em injustiças e choques de princípios, como a hierarquização até mesmo dos direitos fundamentais. A análise e o julgamento in casu, que é a proposta pelo presente estudo, trará à prática jurídica o consolidado por Miguel Reale: a teoria tridimensional do direito, a qual busca convergir a norma, pelos direitos e princípios fundamentais, o valor, frente às mudanças sociais de paradigma e a realidade fática, quanto ao desenvolvimento tecnológico na pós-modernidade, que, em conformidade, promoverá a justiça e manterá como princípio básico jurisdicional a preservação da dignidade da pessoa humana, como ordena a Carta Magna Constitucional Brasileira e toda a legislação internacional. BIBLIOGRAFIA: AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12. ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 1996. 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Tratado de responsabilidade civil. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 297 RESPONSABILIDADE AMBIENTAL: O PRINCÍPO DO POLUIDOR PAGADOR MEDIANTE UMA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO DO AMBIENTE Roberta Fernandes de Faria1 1) Introdução O direito a um ambiente saudável, diante da sua natureza de direito fundamental, é alvo de interesse no que diz respeito à adoção de medidas tendentes a compatibilizar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental. Os danos ecológicos, consequência do desenvolvimento econômico, geram responsabilidade civil, que é, no campo do direito ambiental, aplicada mediante o princípio do poluidor-pagador. Este princípio relaciona as normas de direito econômico e de direito ambiental, em que o causador da poluição deve arcar com os custos necessários à diminuição, eliminação ou neutralização deste dano, podendo o causador do dano repassar tal custo para o preço do produto final, de acordo com a concorrência de mercado. Sob a ótica econômica, a existência de bens ambientais sem preço para a apuração do custo indenizatório cria falhas de mercado geradoras de externalidades2, que são internalizadas pelo princípio do poluidor-pagador, de modo a corrigir o custo adicionado à sociedade. Entretanto, há quem não concorde com esta transferência de valores, pois isso faria com que o consumidor final arcasse com o custo do risco de causar dano ao ambiente, ocasionando uma distribuição injusta de riqueza. Na situação em tela, o princípio do poluidor-pagador assume um viés econômico e de caráter retributivo injusto (a internalização dos custos das externalidades negativas). Assim, a conjugação das ciências econômiacas no sistema de responsabilidade civil por danos ao ambiente pode até ser eficaz na inibição das degradações ambientais, mas como a economia só se preocupa com mercado, sofre de carência de ética e justiça por não distribuir equitativamente os ônus sociais da depredação do ambiente, implicando em desigualdade. A partir da adoção de mecanismos econômicos que efetivam o princípio do poluidor-pagador e o viés menos ético desses mecanismos, deve-se compreender como as teorias da ciência econômica impactam no princípio do poluidor-pagador. 1 Mestre em Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente pela Universidade de Coimbra, Investigadora do CEIS20/UC, Doutoranda em Direito Público pela Universidade de Coimbra 2 Externalidades, em economia, são os efeitos sociais, econômicos, ambientais de uma decisão ou ato sobre quem não participa deles, sem compensação Roberta Fernandes de Faria 2) A crise ambiental no sistema económico Analisando os modelos de desenvolvimento econômico praticados desde a revolução industrial e durante todo o século XX, José Rubens Morato Leite explica que a crise ambiental traduz a incapacidade demonstrada por todos os modelos de aliar o desenvolvimento econômico à preservação de padrões de qualidade de vida para sociedade, padrões esses apenas possíveis se respeitados alguns limites do ambiente que se trabalha ou explora3. As constantes intervenções no ambiente natural4 provocadas pelas atividades de produção geram desequilíbrios do ecossistema, dando origem, de um lado, a um consumo excessivo de recursos naturais, e, do outro lado, descarga de materiais poluentes. A partir disso, pode-se levar em consideração que a crise ambiental advém de uma divergência entre economia e ambiente ecológico, pois as atividades empreendedoras dependem de bens naturais e não levam em conta os custos de tal utilização5, conforme posição de Ramón Martín Mateo, ao afirmar que a causa das atuais preocupações se origina da dissociação de dois enfoques que deveriam ser convergentes: o econômico e o ambiental6. A ciência econômica clássica propõe eficiência dos fatores de produção, quando o mercado impõe uma necessidade ilimitada de consumo com recursos limitados, de modo que os custos das transações mercadológicas sejam reduzidos para alcançar o ponto "ótimo de Pareto"7. Pode-se dizer que a natureza visa a manter o equilíbrio nos ecossistemas; o ser humano visa a melhorar o seu bem-estar e as atividades econômicas visam maximizar lucro. A economia também se preocupa com o bem estar e levanta questões sobre a forma de funcionamento dela mesma quando: quer saber o quão satisfatório é seu sistema social de distribuição, o que pode ser feito a respeito de uma melhora no bem estar total e o grau de anulação social dos resultados do laissez-faire para promover esse bem estar8. Para Pareto, de acordo com Miller9, uma alteração que faz com que pelo menos um indivíduo progrida e que nenhum piore de situação constitui uma melhora no bem estar social., porém, uma alteração que não causa nenhuma melhora mas que causa 3 LEITE, Jose Rubens Morato.Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial.São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002, p. 23 4 Segundo Guilherme Folarodi, "todos os problemas ambientais se referem a impactos humanos externos ao processo de produção no sentido estrito" - FOLADORI, Guillermo. Limites do Desenvolvimento Sustentável. Campinas: Unicamp, 2001, p. 103. 5 SILVA FILHO, Carlos da Costa. O Princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à realização da Justiça. in Revista de Direito da Cidade, vol.04, nº0, Rio de Janeiro, ISSN 2317-7721 p. 113 6 MATEO, Ramón Martín. Tratado de Derecho Ambiental. Madrid: Edisofer S.L., 2003, t. IV (actualización), p. 29 7 o "ótimo de Pareto" significa, em poucas palavras, que são utilizados os recursos escassos e os bens e serviços alocados de uma forma tão eficiente pelos participantes do mercado que é impossível uma nova distribuição de forma a melhorar a situação de alguns participantes sem prejudicar simultaneamente a de qualquer outro. 8 OSER, Jacob, BLANCHFIELD, William C., SANTOS, Terezinha Santoro dos, ROSSETTI, José Paschoal. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Atlas, 1983, p. 366 9 MILLER, Roger Leroy. Microeconomia: Teoria, Questões e Aplicações. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1981, p. 441 300 Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador... a piora da situação de uma pessoa resulta numa redução do bem estar social10. Os recursos naturais são, em sua maioria, considerados bens cujo uso ou consumo não pode ser realizado de forma exclusiva, em razão de impossibilidade física ou mesmo por serem bens difusos, de modo que todos possam usar ou consumir. Tal fato pode levar a uma disputa, ou não, por esses bens difusos e, consequentemente, a um dano ao ambiente: se não houver disputa por esses bens podem dar origem à escassez11 ou, caso o bem ambiental em abundância não seja disputado, pode gerar uma inércia12 por parte dos usuários e consumidores para sua preservação. Percebe-se, assim, que ao se deparar com recursos naturais, cujo acesso é livre e cujo uso ou consumo é ou não disputado, o mercado falha, uma vez que os referidos bens ambientais não possuem um preço, ou seu preço não traduz seu fiel valor no custo da produção. Essa falha de mercado, em razão da ausência ou distorção de preço da natureza, provoca uma "tragédia dos bens comuns"13, pois a sociedade passa a tomar uma postura individualista à procura de maximizar seu interesse à custa do outro. Essas falhas de mercado decorrentes da ausência de preço do bem ambiental ou da dificuldade de se valorar14 esse bem geram aquilo chamado de externalidades negativas, que são situações em que “terceiros ganham sem pagar por seus benefícios marginais ou perdem sem serem compensados por suportarem o malefício adicional" 15. Em outras palavras, as externalidades negativas ocorrem quando o uso de bens ambientais gratuitos pela sociedade transferem a essa mesma sociedade eventuais custos 10 Enrique LEFF levanta a hipótese de que não há um crescimento sustentável com a degradação do ambiente, sendo "necessário ajustar os ciclos econômicos, atribuindo preços de mercado à natureza, com a esperança de que as mercadorias poderão continuar circulando de maneira contínua em torno da esfera (perfeita) da ordem econômica - LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder / Enrique Feff; tradução de Lucia Mathilde Endlich Orth. 9. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p. 14 11 Cláudia Alexandra Dias Soares muito bem exemplifica esse problema: "A captura de recursos piscícolas constitui um bom exemplo deste tipo de situações em que o mercado falha ao não assinalar correctamente a escassez. Como uma maior quantidade de peixe capturado por um sujeito implica uma menor quantidade para os restantes, verificar-se-á um estímulo no sentido de cada um aumentar o seu esforço de captura até que o preço de cada peixe no mercado iguale o respectivo custo de obtenção, isto é, o custo médio suportado pelo pescador. A possibilidade de o recurso se esgotar é ignorada. Enquanto aquele ponto não for atingido, a extracção será intensificada a ritmos crescentes. A conseqüência será a exploração das espécies existentes até um nível insustentável, em que a auto-reprodução deixa de ser possível." SOARES, Cláudia Alexandra Dias. O imposto ecológico – contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, Stvdia Ivridica, n. 58, p. 82. 12 François Ost, apresenta o seguinte exemplo de dano ambiental decorrente da não disputa do bem ambiental: "Duas indústrias poluentes instaladas nas margens de um lago, no qual derramam as suas águas usadas. Se bem que o valor das suas instalações ganhasse consideravelmente com a instalação de dispositivos de filtragem das águas, nenhuma das duas indústrias tem qualquer interesse pessoal em proceder a essa operação. Colocada numa situação de “dilema de prisioneiro”, cada uma das duas sabe perfeitamente que, não sendo proprietária do lago, não poderá impedir a sua vizinha de usufruir, gratuitamente, do investimento que ela própria consentiu" - OST, François. A natureza à margem da lei. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 151 13 HARDIN, Garret. The Tragedy of Commons. Science, v. 162, 1968, p. 1243-1248. Disponível em http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.html 14 Valorar consiste na identificação e ponderação da importância relativa das diferentes funções desempenhadas por cada ecossistema, sendo a operação de valoração que permite a atribuição de preços.(ARAGÃO, Alexandra, A natureza não tem preço... mas devia, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, Coimbra, outubro 2011, p. 6) 15 MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 182. 301 Roberta Fernandes de Faria de prevenção e reparação do dano ambiental16. 3) O sistema jurídico de responsabilidade ambiental e as teorias económicas No que diz respeito ao sistema jurídico de responsabilidade ambiental, as teorias econômica são praticadas pelo princípio do poluidor-pagador, ou seja, quando se impõe ao poluidor a obrigação de recuperar/indenizar os danos causados ao ambiente conjugadas a uma obrigação ética e moral de todos pela preservação do bem comum. O princípio do pagador-poluidor17 também é chamado de princípio da responsabilidade e designa uma característica preventiva e sancionatória, tendo como explicação o fato de fazer com que o causador do dano ambiental passe a ter responsabilidade pela proteção do ambiente. Por este princípio, o causador do dano pode embutir no preço do produto final os custos da poluição18, porém há quem não concorde com esta transferência de valores, pois entendem que isto fará com que o consumidor final arque com o custo referente ao risco de causar dano ao ambiente, ocasionando uma distribuição injusta de riqueza19. Para estes últimos, o empresário deve arcar com o 16 Nicolas Sadeleer explica que quando as atividades econômicas causam danos ao ambiente, essas atividades levam à externalidades negativas quando seus custos não são levados em conta no preço de revenda do produto consumido ou do serviço prestado. Nesse caso, o preço do mercado é inferior ao que deveria ser, e os consumidores do bem ou do serviço, semelhantes a passageiros clandestinos, obtêm vantagens do fato de não dever pagar o “verdadeiro preço”. Do mesmo modo, a ausência desses custos se assemelharia, diz-se, a um enriquecimento sem causa (SADELEER, Nicolas de. Les principes du pollueurpayeur, de prévention et de précaution. Essai sur la genèse et la portée juridique de quelques principes du droit de l’environnement. Bruxelles : Bruylant, 1999, p. 50) 17 Em 26 de maio de 1972, durante uma reunião sobre a utilização dos recursos hídricos, os países membros do Conselho da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômicos (OCDE) aprovaram a "Recomendação sobre os princípios diretores relativos aos aspectos das políticas ambientais sobre o plano internacional", recomendação que deu origem ao princípio do poluidor-pagador. A referida recomendação objetivava que fosse controlado o uso e degradação do ambiente, além de defender que o Poder Público fiscalizasse as indústrias e implementasse medidas com o intuito de reduzir a poluição.de recursos naturais. Vinte anos depois, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 (ECO-92), o princípio do poluidor-pagador foi positivado pela Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento nos seguintes ditames: "As autoridades nacionais devem esforçar-se para promover a internalização dos custos de proteção do meio ambiente e o uso dos instrumentos econômicos, levando-se em conta o conceito de que o poluidor deve, em princípio, assumir o custo da poluição, tendo em vista o interesse público, sem desvirtuar o comércio e os investimentos internacionais" 18 Para Cristiane Derani, “pelo princípio do poluidor pagador, arca o causador da poluição com os custos necessários à diminuição, eliminação ou neutralização desse dano”. E acresce, “ele pode, desde que isso seja compatível com as condições na concorrência no mercado utilizar esses custos para o preço de seu produto final" DERANI, Cristiane “Direito Ambiental Econômico”. 2 Ed, , Editora Max Limonard , São Paulo, 2001, p. 162 19. Ricardo Carneiro explica que nas atividades empresárias são produzidas externalidades positivas e negativas, que é uma falha de mercado, quando no preço do bem colocado no mercado não estão incluídos os ganhos e as perdas sociais resultantes de sua produção ou consumo, respectivamente. "Externalidades, efeitos externos negativos ou deseconomias externas correspondem a custos econômicos que circulam externamente ao mercado e, portanto, não são compensados pecuniariamente, sendo transferidos sem preço. Não se referem a fatos ocorridos fora das unidades de produção, e sim a efeitos do processo econômico ocorridos fora ou em paralelo ao mercado (CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 64). Para melhor compreensão sugerimos o seguinte exemplo: quando uma empresa de recipientes plásticos coloca o seu produto no mercado, é de se perguntar se o preço final que foi dado ao seu produto levou em consideração o custo social da sua produção, ou seja, considerando que plástico é um material que, quando se transforma em resíduo, é um fator de degradação ambiental, é de se questionar se o valor do bem colocado no mercado tem em si o valor do 302 Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador... referido custo pelo fato de usar o ambiente em benefício próprio e em prejuízo da coletividade. Pelo princípio do poluidor-pagador, o Estado pode ser quem corrige as externalidades negativas ambientais geradas no mercado. Segundo Paulo Bessa Antunes20, o princípio do poluidor-pagador "parte da constatação de que os recursos ambientais são escassos e que seu uso na produção e no consumo acarreta-lhe redução e degradação". De acordo com mesmo autor, se o custo da redução dos recursos naturais não for considerado no sistema de preços, o mercado não será capaz de refletir a escassez e, por este motivo, são necessárias políticas públicas capazes de eliminar a falha de mercado, de forma a assegurar que os preços dos produtos reflitam os custos ambientais. Continua observando que, sob o enfoque jurídico, o fato de alguém ser responsável pela indenização de um dano causado a terceiros não apresenta qualquer novidade, sendo o elemento diferencial o princípio do poluidor-pagador, que busca afastar o ônus do custo econômico das costas da coletividade e dirigi-lo diretamente ao utilizador dos recursos ambientais, mesmo que inexista dano plenamente caracterizado. Por este raciocínio temos que o princípio do poluidor-pagador não está fundado no princípio da responsabilidade pura e simplesmente, mas sim na solidariedade social e na prevenção, mediante a imposição da carga pelos custos ambientais nos produtores e consumidores. A adoção do princípio do poluidor-pagador proporcionou teorias acerca da responsabilidade baseada no risco criado e sobre quem deve suportar os encargos. Assim, para Sinde Monteiro21, "o fundamento da responsabilidade não reside agora na prática de um ato culposo, mas sim na criação ou controle de um risco, ou, talvez com mais rigor, de uma fonte de riscos ou de potenciais danos, aliado ao princípio de justiça distributiva segundo o qual quem tira o lucro em todo o caso beneficia-se de uma certa coisa ou atividade que constitui para terceiros uma fonte potencial de prejuízos, ou da atuação de outras pessoas que estão sob a sua direção,devendo suportar os correspondentes encargos". No que respeita a efetividade do princípio do poluidor-pagador como fundamento das políticas de proteção ambiental, Maria Alexandra de Sousa Aragão destaca que a proteção ambiental não depende somente da existência de leis protecionistas, mas da eficiência destas no contexto ambiental. A "poluição normativa", segundo a autora, está presente quando as leis, a despeito de estarem em conformidade com os ditames das políticas de proteção ambiental, não são capazes de colocar em prática aquilo que enunciam22. Certo é que não estamos mais em tempo para belos discursos jurídicos em defesa do ambiente, políticas e leis teóricas, mas sem denominado custo social relacionado ao dano ao ambiente. A resposta é negativa, uma vez que, segundo a teoria econômica das externalidades, o efeito negativo ou positivo não pode ser agregado ao valor do produto por não se conseguir medir. 20 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 219-221 21 MONTEIRO, Jorge Sinde. Estudos Sobre a responsabilidade civil. Publicação do Centro Interdisciplinar de Estudos Jurídicos Econômicos. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1978, pag. 10 22 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor pagador: Pedra Angular da Política Comunitária do Meio Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora. 1997, p. 56 303 Roberta Fernandes de Faria funcionalidade, pois as normas de proteção do ambiente precisam caminhar para maior diligência prática. Com o fim de conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental de forma eficaz, faz-se necessária uma atuação interdisciplinar dos cientistas em busca de um fim comum, que é o desenvolvimento sustentável. Uma vez que as leis de proteção ambiental pecam na eficiência, a análise econômica, por apresentar capacidade de quantificar e qualificar objetivamente o problema, pode oferecer soluções mais eficiente na preservação do ambiente. Em resposta à necessidade de conexão científica em busca de efetiva proteção ambiental, destacam-se teorias pragmáticas que defendem a análise econômica do direito. Na economia, para superar o "problema ambiental", são utilizadas tentativas de disciplinar o uso dos recursos ambientais como se estes últimos fossem mais um elemento do sistema econômico que deve ser a ele incorporado, de modo a conduzir o seu uso racional, internalizando as externalidades negativas. A economia ambiental propõe duas teorias para tratar da questão internalização das externalidades negativas: uma é a teoria de Ronald Coase, que patrocina que, com o fim de equacionar o problema da escassez dos recursos naturais e da melhoria da qualidade de vida, mantendo a processo produtivo, procura a economia ambiental incorporar o ambiente ao mercado, adotando a teoria da extensão do mercado (atribuição de preços)23; a outra, defendida por Arthur C. Pigou, adota a via da correção do mercado, ou seja, aposta na revalorização das preferências individuais através do Estado (a preocupação central é na internalização dos recursos naturais)24. Ronald Coase25, sustentava a atribuição de direitos de propriedade aos bens difusos para que os respectivos titulares, mediante negociação direta, sem interferência do Estado, buscassem internalização eficiente dos efeitos externos de suas atividades com acordo entre as partes. Para tanto, seriam necessários direitos de propriedade bem definidos e custos de transação reduzidos. Criticando a Teoria de Coase, Carneiro26 diz que apesar da lógica atraente demonstrada através de modelos hipotéticos e calcados em simplificações da realidade, na prática social concreta, as situações geradoras de externalidades são muito complexas, envolvendo uma variedade de interesses em conflito e, por consequência, elevados custos de transação. Ainda segundo o mesmo, em havendo muitas partes interessadas envolvidas, os custos de coordenação da negociação 23 Adotando a internalização das externalidades negativas pelas regras do próprio mercado (Teoria de Coase), a Agência de Proteção Ambiental Norte-Americana – EPA utilizou desta teoria na Lei de Proteção Atmosférica e, mais tarde, estendeu para as normas de Proteção Hídrica e de disposição de resíduos sólidos. De acordo com o ordenamento norte-americano, cabe à EPA identificar quais são as substâncias poluidoras do ambiente, bem como quais os limites e concentrações dessas substâncias que podem ser lançados no ambiente. Uma vez definidos tais limites e concentrações, cabe aos Estados Federados definir as políticas para implementação desses, em seus territórios. DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limond, 1997, p. 111 24 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limond, 1997, p. 111 25 COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics. v. 3. Out. 1960. Disponível em: http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf Acesso em: 31 ago. 2007 26 CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense,2001, p. 90 304 Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador... são muito altos, o que dificultaria qualquer possibilidade de acordo. Carneiro usa como exemplos para refutar a adoção desta teoria a complexidade de negociações envolvendo problemas ambientais graves, como a poluição veicular nos grandes centros urbanos ou mesmo questões de reflexo global, como o aquecimento da atmosfera e a destruição da camada de ozônio, os quais demandariam grande articulação internacional que viabilizasse a harmonização de hábitos culturais de vários povos e a conjugação dos moldes de desenvolvimento econômico e social de países e blocos econômicos distintos27. Assim, os oponentes à Teoria de Coase defendem que não existe um direito de contaminar, mas sim uma proibição de o fazer, colocando a questão em mais termos morais do que em termos práticos. Entretanto a teoria de Coase tem encontrado aplicação prática, precisamente através dos certificados negociáveis de poluição, que consistem na alienação, por parte do Poder Público, de títulos transacionáveis no mercado, títulos esses que corporificam um direito a poluir até um determinado grau, ou de emitir uma determinada quantidade de poluentes, como é o exemplo do mercado de crédito de carbono. A Teoria formulada por Arthur Cecil Pigou28 na época da afirmação do welfare state, defendia a intervenção estatal para a correção das falhas de mercado, mediante a instituição de subsídios ou incentivos, no caso das externalidades positivas (por ele chamadas de economias externas), ou por meio da cobrança de uma prestação financeira ao agente econômico que se beneficia das externalidades negativas (deseconomias externas). Cristiane Derani29 explica que, por esta teoria, na existência de uma falha do mercado, coloca-se o Estado como instituição à parte para corrigir essas falhas, assegurando um nível ótimo do mecanismo de mercado. Neste caso, o Estado intervém para corrigir não só a distorção do mercado com relação ao uso dos recursos naturais, como também para agir subsidiariamente com os custos dos efeitos externos, tomando para si parte dos custos que seriam transmitidos ao causador. A Teoria de Pigou é criticada porque ignora aquilo que se convencionou chamar de falhas do Estado, pois as decisões da burocracia estatal são tomadas de forma compartimentada quando os problemas ecológicos devem ser tratados de forma integrada, além do fato de que o 27 Fundada nesta razões, grande parte da doutrina do Direito do Ambiente se posiciona contrariamente à criação de mercados de licenças de direitos de poluir, conforme os argumentos de François Ost: "O desacordo é profundo em relação a esta corrente de pensamento, que reduz simultaneamente o social e o ecológico aos fins restritos da troca mercantil. Tudo se passa aqui, como se a sociedade de reduzisse à justaposição de proprietários vizinhos trocando “propriedades” (utilidades económicas), num mercado livre e transparente, desprovido de qualquer tipo de constrangimentos. Como nos mais belos dias da teoria liberal, a igualdade é suposta caracterizar os negociadores, dotados de uma igual oportunidade de acesso à propriedade e de um mesmo poder de negociação. Nem uma palavra sobre as relações de força e as distorções de informação, que afectam, necessariamente, estas transacções; nem uma palavra ou quase nenhuma sobre o papel incontornável do poder público no enquadramento destes mercados e o equilíbrio dos interesses em presença" (OST, François. A natureza à margem da lei. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 161) 28 PIGOU, Arthen C. Economics of Welfare, 4. ed., Londres: Macmillan & Co, 1932. Disponível em: http://www.econlib.org/library/NPDBooks/Pigou/pgEW.html 29 DERANI, Cristiane. Direito ambiental Econômico. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 112113. 305 Roberta Fernandes de Faria Estado é, muitas vezes, o poluidor. Cláudia Alexandra Dias Soares30, sustentando esta crítica, entende que não são as falhas do Estado (ou seja, as incongruências à intervenção deste) que dão causa à degradação ambiental, mas sim a interação mal conseguida do Estado, pois o fato de este último recorrer ao mercado para realizar fins públicos, contratando com os particulares o fornecimento de determinados bens ou serviços, permite que estes introduzam os seus interesses no processo político, influenciando as decisões na resolução do problema ambiental. A teoria de Pigou também encontra aplicação prática quando da cobrança de obrigações pecuniárias feitas pela Administração Pública aos particulares por intermédio dos tributos ambientais. Desta forma, partindo de uma metodologia de valoração indireta de bens ambientais, em que o preço do recurso ecológico corresponderia aos custos efetuados para evitar a sua degradação, seriam criadas taxas ambientais pela prestação dos serviços de prevenção da poluição31. Independentemente da aplicação da teoria de Coase ou da teoria de Pigou, importante é referenciar que foi por meio da economia que se percebeu a necessidade de internalização dos custos sociais e ambientais que levou à adoção do princípio do poluidor-pagador pelo direito. 4) Justiça das normas ambientais e uma solidariedade pelo futuro O intuito maior das normas ambientais é assegurar um ambiente sadio e protegido. Neste passo, convém mostrar que estas normas de direito ambiental se apresentam em dois objetivos: a) a concretização da conduta prevista na lei e b) a sua justificação ética e justa. Um discurso prático e economicamente eficiente pode não ser ético e justo, e vice versa, impedindo que esse mesmo discurso possa receber o status de norma jurídica. Objetivamente, pretende-se dizer que a análise econômica do sistema jurídico de responsabilidade ambiental é um instrumento para o alcance eficiente do fim que se almeja (a proteção do ambiente), mas que isso não descarta a moral ética e o sentido de justiça da norma dentro do sistema jurídico. Esta ideia é o reflexo da análise econômica do direito que pontua a eficácia real da lei. Segundo Trujillo e Pardo, para a teoria da análise econômica, o critério de avaliação da lei é justamente se ela conseguiu modificar o comportamento dos 30 SOARES, Cláudia Alexandra Dias. O imposto ecológico – contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, Stvdia Ivridica, n. 58, p. 98 31 MOTTA, Ronaldo Seroa da. Economia Ambiental. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 10-30 306 Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador... destinatários da imposição legal3233. Reforçando o sentido pragmático da economia no direito e sem desconexão da ética moral e justa, Gonçalves e Stelzer34 defendem que a sociedade deve procurar um equilíbrio entre utopia e realidade, na medida em que não há espaço para uma ordem jurídica romântica e desconectada com a realidade, assim como, também não o há para o realismo cego e intolerante. No que diz respeito ao sistema jurídico de responsabilidade ambiental, as teorias econômica são praticadas pelo princípio do poluidor-pagador, como referido acima, quando se impõe ao poluidor a obrigação de recuperar/indenizar os danos causados ao ambiente conjugadas a uma obrigação ética e moral de todos pela preservação do bem comum. Deste modo, quer-se mostrar que a economia, quando atrelada ao direito ambiental, não desconsidera a ética e a justiça, pois em razão da solidariedade pela proteção do ambiente, todos (prejudicados e beneficiado com a exploração da natureza) devem arcar com o bônus e o ônus da proteção do ambiente. De forma a concretizar o entendimento de que a economia, quando se junta ao direito de ambiente, não menospreza o caráter ético e justo que a norma jurídica deve ter, faz-se importante trazer à baila o pensamento de Hans Jonas, quando este último afirma que o enraizamento ético de um dever ser abre caminhos de sustentabilidade ambiental do desenvolvimento econômico e social, pensando no futuro (responsabilidade ética pelo futuro). Devido à inquietação pelo destino da natureza, a ética está presente nos lugares onde o ser humano se encontra, desdobrada numa ética racional (ética dos fundamentos) 32 Como se dijo antes, una de las principales ideas que defiende el AED es que la ley opera como un modificador de incentivos de agentes racionales. El objetivo que persigue la ley es. mediante la generación de incentivos, modificar el comportamiento real de los individuos, de manera que se alcancen resultados deseables (tales como disminuir el crimen hasta su nivel óptimo o fomentar la negociación privada). Por esta razón, el AED da una gran importancia a la eficacia real de la ley; aún más, el criterio a partir del cual juzga si una ley es buena o mala es apelando a sus resultados, es decir, a qué tanto se modificó el comportamiento de los destinatarios de la ley. (TRUJILLO, Ana María Arjona; PARDO, Mauricio Rubio. El Análisis Económico del Derecho. 2002. Disponível em: https://www.icesi.edu.co/precedente/ediciones/2002/5AnaArjonaMauricioRubio.pdf. ) 33 Gonçalves e Stelzer fizeram uma investigação da análise econômica a partir de seus críticos, e destacaram outro aspecto importante da análise econômica do direito, que surge a partir da tentativa de minimizar os efeitos de uma análise de caráter subjetivo e aleatória. Os autores defendem que a análise econômica, através de seu instrumental, propicia uma análise de caráter objetivo, que a torna indispensável ao direito e às políticas públicas, ao processo decisório judicial e de produção normativa. Assim, "A Ciência Econômica, como instrumental metodológico delimitador e orientador tanto das políticas públicas, quanto da tomada de decisão privada, pode parametrizar o interesse jurídico que, a sua vez, deve ser justo sem descuidar do custo social. A Economia sendo intrinsecamente analítica é passível de aplicação ao ordenamento jurídico na medida em que lhe propicia os elementos necessários para quantificar interesses, analisar procedimentos e indicar soluções com tendências probabilísticas que levem à resolução dos conflitos e à satisfação das necessidades, sem se olvidar da produção legislativa. A partir daí emerge a tentativa de minimizar, no processo decisório e na produção normativa, o julgamento político-volitivo e aleatório de caráter subjetivo". (GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. A Análise Econômica do Direito e sua crítica. 2014. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=fc5e676f4e53d229) 34 "A sociedade compete perceber ideal de justiça necessariamente atrelado às condições reais da vida, na qual seja possível avaliar os benefícios e os custos advindos da tomada de decisão em ambiente (de mercado), sem se socorrer de um mundo utópico e idealizado. Em síntese, não há mais espaço para especulações, o sistema econômico precisa interagir com o sistema jurídico-institucional, mesmo em condições adversas. Sob tal contexto, o Estado e o Direito assumem papel defensor da ação dos indivíduos, segundo suficiente flexibilidade para a adjudicação de direitos e fixação de obrigações próprias da ação eficiente" (GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. A Análise Econômica do Direito e sua crítica. 2014. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=fc5e676f4e53d229) 307 Roberta Fernandes de Faria e numa ética interdisciplinar e argumentativa (ética do debate), em que ambas convergem para a justiça ambiental, tornando-se, cada um de nós, responsável, na sua existência, pela permanência da humanidade e, logo, pela permanência da vida35. A solidariedade pelo futuro modela a ação responsável de cada ser humano, dando à responsabilidade uma dimensão comunitária. Esta ação responsável é um pouco diferente da responsabilidade tradicional (ligada à culpa e à causalidade), pois deriva de uma responsabilidade ética do agir humano, gerando em cada pessoa deveres em razão dos outros ou em solidariedade para com eles, o que limita, de certa forma, a liberdade. Com isso, pode-se chegar a uma concepção mais ampla de justiça, que, no entender de Castanheira Neves, é uma justiça como "suprema axiologia da existência humana comunitária"36. A definição de Castanheira Neves à justiça encontra com o sentido de dignidade humana, porquanto a construção da pessoa como sujeito individual implica em abrir-se no grupo comunitário. Assim o equilíbrio entre a participação e a responsabilidade traduz uma relação justa de cada ser humano perante o grupo na coexistência de todos no propósito do bem coletivo. Desta forma, a responsabilidade do cidadão junta-se à responsabilidade do Estado que, de Estado de Direito, tende a evoluir para um Estado de Justiça Ambiental. REFERÊNCIAS ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000 ARAGÃO, Alexandra, A natureza não tem preço... mas devia, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Miranda, Coimbra, outubro 2011 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor pagador: Pedra Angular da Política Comunitária do Meio Ambiente. Coimbra: Coimbra Editora. 1997. CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2001 CASTANHEIRA NEVES, António. Coordenadas de uma reflexão sobre o problema universal do direito – ou as condições da emergência do direito como direito, in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Volume II, 2002 CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE RESPONSABILIDADE AMBIENTAL (comunicações) promovida, em 2002, pelo British Council e pela Ecosphere, em colaboração com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e com o 35 GARCIA, Maria da Glória Dias, O lugar do direito na proteção do ambiente, in: ESTUDOS DE DIREITO DO AMBIENTE E DE DIREITO DO URBANISMO - Selecção de intervenções no Curso de Pósgraduação de Especialização em Direito do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Urbanismo do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2011, p. 30 36 CASTANHEIRA NEVES. A. Digesta. Vol. 1, Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Edifício Coimbra Editora, 2010, p. 280-281 308 Responsabilidade ambiental: o princípo do poluidor pagador... Gabinete de Relações Internacionais do Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, reunidas no nº 10 da Revista de Direito do Ambiente e Ordenamento do Território, 2002 COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics. v. 3. Out. 1960. Disponível em: http://www.sfu.ca/~allen/CoaseJLE1960.pdf Acesso em: 31 ago. 2007 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limond, 1997 FOLADORI, Guillermo. Limites do Desenvolvimento Sustentável. Campinas: Unicamp, 2001. GARCIA, Maria da Glória Dias, O lugar do direito na proteção do ambiente, in: ESTUDOS DE DIREITO DO AMBIENTE E DE DIREITO DO URBANISMO Selecção de intervenções no Curso de Pós-graduação de Especialização em Direito do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Urbanismo do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2011 GONÇALVES, Everton das Neves; STELZER, Joana. A Análise Econômica do Direito e sua crítica. 2014. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=fc5e676f4e53d229. HARDIN, Garret. The Tragedy of Commons. Science, v. 162, 1968, p. 1243-1248. Disponível em http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_tragedy_of_the_commons.ht ml LEFF, Enrique. Saber Ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder / Enrique Feff; tradução de Lucia Mathilde Endlich Orth. 9. ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012 LEITE, Jose Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 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Bruxelles : Bruylant, 1999 SILVA FILHO, Carlos da Costa. O Princípio do poluidor-pagador: da eficiência econômica à realização da Justiça. in Revista de Direito da Cidade, vol.04, nº0, Rio de Janeiro, ISSN 2317-7721 SOARES, Cláudia Alexandra Dias. O imposto ecológico – contributo para o estudo dos instrumentos económicos de defesa do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, Stvdia Ivridica, n. 58 TRUJILLO, Ana María Arjona; PARDO, Mauricio Rubio. El Análisis Económico del Derecho. 2002. Disponível em: https://www.icesi.edu.co/precedente/ediciones/2002/5AnaArjonaMauricioRu bio.pdf. 310 GOVERNANÇA NAS RELAÇÕES (LÍQUIDAS) DE TRABALHO: O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO UM NOVO DESAFIO PROTETIVO Denise Fincato1 Cíntia Guimarães2 1) Introdução O estudo transita pelo cenário da Sociedade do Conhecimento e das tecnologias que lhe são próprias (informação e comunicação) para abordar as novas necessidades de proteção do ser humano trabalhador, especialmente decorrentes da exposição de sua intimidade e privacidade no meio digital, quer por conta própria, quer por ato de terceiros (entre eles o próprio Estado), indaga se é possível proteger juridicamente ao empregado (e, por consequência, ao empregador, por livra-lo de passivos trabalhistas) de possíveis violações ao chamado “Direito ao Esquecimento”? Objetiva, enfim, estudar o Direito ao Esquecimento como novo desafio protetivo nas relações (líquidas) de trabalho e propor alternativas que garantam empresas e empregados inseridos no cenário da sociedade do conhecimento. Pretende-se conduzir o estudo a partir do método de abordagem hipotéticodedutivo, com métodos de procedimento histórico, estruturalista e funcionalista. A interpretação ocorreu a partir de operações sistemáticas e a pesquisa foi eminentemente bibliográfico-documental. Debater novos temas na seara do Direito do Trabalho é de essencial importância, uma vez que a evolução tecnológica, por vezes, desafia princípios legais destinados à proteção da dignidade do trabalhador. Nas relações empregatícias, as ferramentas de informação e comunicação, além de dinamizarem as operações, se mal utilizadas, possibilitam a violação de direitos essenciais. Para tanto, é preciso primeiramente estudar os impactos advindos da inserção das tecnologias de automação e conexão no meio produtivo, analisando, por exemplo, possibilidades de o empregado ser substituído por máquinas ou de necessitar de maior qualificação para operá-las. Este cenário impõe a análise acerca da necessidade de acatamento dos princípios protetivos nas relações de trabalho subordinado, na tentativa de equalizar a relação, materialmente desigual, estabelecida entre empregado e empregador. Neste desiderato é que surge um direito que ainda não está posto no 1 Pós-Doutora em Direito do Trabalho pela Universidad Complutense de Madrid. Doutora pela Universidad de Burgos. Professora Pesquisadora no PPGD-PUCRS, coordenadora do Grupo de Pesquisas Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho (NTPRT – PUCRS/CNPq). Advogada e Consultora em Souto, Correa, Cesa, Lummertz e Amaral Advogados. E-mail: dpfincato1@gmail.com. 2 Mestre e Doutoranda em Ciências Sociais na PUCRS. Líder do eixo “Sociedade do Conhecimento e Transnacionalização”, no Grupo de Pesquisas Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho (NTPRT – PUCRS/CNPq). Advogada. E-mail: cisguimaraes@bol.com.br. Denise Fincato e Cíntia Guimarães ordenamento brasileiro: o “Direito ao Esquecimento”, sendo imperiosa sua aplicação às relações de trabalho. O denominado “Direito ao Esquecimento”, em suma, visa garantir ao cidadão (no caso desta pesquisa, o trabalhador) que uma informação sua disposta em redes sociais ou outros bancos de dados, não seja espargida ilimitadamente e/ou perpetuamente mantida na Internet, notoriamente se hábil a atingir danosamente sua intimidade e privacidade e, por consequência, sua empregabilidade. Refletir sobre soluções ponderáveis para equacionar os conflitos oriundos da utilização de sistemas digitais já é rotina entre juristas, pesquisadores, magistrados e legisladores. Porém, ainda são muitas as situações problemáticas não previstas em lei, pois a evolução tecnológica ocorre de forma mais célere que a reação legislativa. Na era digital, manter o Direito do Trabalho estático ou engessado, alheio aos impactos das tecnologias da informação e comunicação, traduz-se em risco a ser suportado especialmente pelos trabalhadores, normalmente não preparados para viver na sociedade em rede, embora lançados à mesma pelos apelos próprios da sociedade líquida (individualismo, autopromoção, etc.). Traça-se assim um novo desafio aos operadores do Direito: o de tutelar o trabalhador empregado em sua dimensão digital, estabelecendo construções teóricas e padronizações minimamente objetivas para as decisões dos conflitos em concreto. O confronto entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito à informação, faz perceber interesses em oposição, em razão disso, advoga-se a necessidade de uma uniformização geral acerca do tema, provavelmente advinda de legislação suficiente e pertinente, mas não somente. Daí, a inequívoca contribuição do presente estudo ao tema em debate. 2) Sistema de governança em rede e políticas públicas Com o processo de globalização no atual contexto foi amplifica o desenvolvimento de sistemas coadjuvantes das relações sociais, econômicas, culturais e políticas em busca da integração e da conexão em escala mundial. Intensificou-se a efetivação e a estruturação de soluções para problemas sistêmicos, de forma a assegurar a ordem global. Diante destes parâmetros e da complexidade em estruturar essa ordem, as conexões são instrumentalizadas por meio de bases de governança global […] constituído de normas, regras, princípios, procedimentos de tomadas de decisão, organismos intergovernamentais, organizações internacionais, ONGs, movimentos civis, empresas multinacionais, meios de comunicação de massa, agentes, instituições que existem em alguns dos muitos segmentos específicos que formam o sistema global de governabilidade: meio ambiente, comércio, finanças, cultura, direitos humanos, alimentação, saúde, habitação, etc. (DIAS; MATOS, 2012, p. 92) A governança, portanto, é formada por sistemas de estratégia, liderança, controle, 312 Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito... com instrumentos de avaliação, direcionamento e monitoramento na condução de políticas de interesse social. Seu maior objetivo é o alcance de resultados por meio de agentes que contribuem para reger sistemas e subsistemas mundiais geradas pela globalização e o avanço tecnológico, sem a existência de um governo, pois “(…) para fazer frente às crescentes complexidade e diversidade das sociedades contemporâneas, a governança constitui uma nova forma de governar própria dessa sociedade-rede” (DIAS, MATOS, 1992, p. 95). Existem inúmeras instituições de referência para cada área específica de atuação. Estas instituições propõem ações e deliberam condições com alcance em âmbito global, ocupando uma posição de coparticipante da administração pública. A partir da dimensão de política social, em especial na seara laboral, alguns alinhamentos são necessários para que os resultados coletivos sejam eficientes, eficazes e efetivos. Tais alinhamentos são concretizados por uma instituição atuante em nível global para manutenção da dignidade dos trabalhadores e garantia de equidade social de forma a viabilizar a continuidade do processo de globalização, equilibradamente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT)3. Além da salvaguarda nas relações entre empregado e empregador, sua principal função reside na formação de mecanismos especiais, para um fim específico, idealizado em âmbito global, cuja finalidade é uma fixação de ordem no sistema mundial, por meio de convenções, resoluções e recomendações, sempre no intuito de dirimir as injustiças. No Brasil, as políticas públicas estão relacionadas com o poder social, cuja finalidade é a de oferecer soluções específicas ao conduzir assuntos públicos, resultando em dignidade e justiça social. No campo do trabalho, os programas projetados e organizados no Brasil constituem-se em mecanismos de gestão das políticas públicas a serem implementadas de forma articulada, por todas as esferas de governo. De acordo com Matos e Dias (2012, pp 15), “as políticas públicas constituem um meio de concretização dos direitos que estão codificados nas leis de um país. Nesse sentido, a Constituição não contém políticas públicas, mas direitos cuja efetivação se dá por meio de políticas públicas”. Ainda, conforme redação do artigo 2034 da Constituição Federal Brasileira são assegurados alguns amparos assistenciais, sobretudo no inciso III que diz respeito ao 5 A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência multilateral ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), especializada nas questões do trabalho. Tem representação paritária de governos dos 178 estados membros e de organizações de empregadores e de trabalhadores. Com sede em Genebra, Suíça, desde a data de sua fundação, a OIT mantém uma rede de escritórios em todos os continentes. A OIT foi criada pela Conferência de Paz após a Primeira Guerra Mundial. A sua constituição converteu-se na Parte XIII do Tratado de Versalhes. A ideia de uma legislação trabalhista internacional surgiu como resultado das reflexões éticas e econômicas sobre o custo humano da revolução industrial. As raízes da OIT estão no início do século 19, quando os líderes industriais Robert Owen e Daniel le Grand apoiaram o desenvolvimento e harmonização da legislação trabalhista e melhorias nas relações de trabalho. Disponível em: http://www.institutoatkwhh.org.br/compendio/?q=node/17. Acesso em 22/11/2017. 4 Art. 203, CF/1988 - A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...] III - a promoção da integração ao mercado de trabalho; 313 Denise Fincato e Cíntia Guimarães mercado de trabalho. Nestes termos, assevera Luciano Martinez (2016, p 1194): Não há dúvidas de que todos os entes políticos podem licitamente assumir em seus orçamentos cargas assistenciais para atenuar a situação dos desempregados. Afinal, há autorização constitucional genérica para tanto diante da redação do art. 203 da Constituição da República. Nesses termos, desde que comprovada a necessidade, portanto, o legislador local, no interesse social, poderá suplementar a legislação nacional. Regra geral, o interesse social resulta de um processo de decisão indicado ao governo com participação da sociedade civil. Não existe um modelo ideal, os planos são constituídos por três partes, traçando as concepções da política necessária, fazendo um diagnóstico da situação no momento da articulação da política e por fim elabora-se a agenda para implementação, diagnóstico, supervisão e resultados de sua aplicação. Em suma “as políticas públicas funcionam como instrumentos de união e empenho, em torno de objetivos comuns, que passam a estruturar uma coletividade de interesses, se tornando um instrumento de planejamento, racionalização e participação popular” (ZANETTI). Ou seja, as políticas públicas estão relacionadas com o poder social, cuja finalidade é a de oferecer soluções específicas ao conduzir assuntos públicos, resultando em dignidade e justiça social. Portanto, o Estado, por dever legal e moral, avoca para si a responsabilidade em formular e executar políticas públicas econômicas e sociais, ou seja, é o principal responsável por oferecer respaldo às demandas oriundas da sociedade como um todo. Seu controle deve ser efetivo, uma vez que poderá envolver-se em conflitos de cunho social, pois diante deste cenário, haverá momentos em que poderá beneficiar alguns e prejudicar outros. Contudo, embora esses projetos tenham sido desenvolvidos, implementados e controlados por vários atores sociais, que participam do processo de solicitação, articulação e beneficiamento da demanda, em algumas situações podem enfrentar dificuldades de efetivação das políticas públicas, por impossibilidade das mais variadas. Existe um nexo de poder que sempre fez parte da relação entre patrão e empregado, esse se perpetua no tempo e é uma característica originária e inafastável. A relação de trabalho, conforme norte principiológico (RODRIGUEZ, 2004), deve oferecer proteção àquele que está em situação de hipossuficiência. É nesse momento que o Estado intervém para garantir o equilíbrio e a continuidade saudável da relação, tentando estabelecer a equalização entre os atores sociais nela envolvidos (igualdade material). Essa proteção, alcançada pelo Estado, é entregue na forma de Leis que visam garantir ao hipossuficiente o alcance de um protagonismo na relação laboral, que normalmente transcorre de forma desigual, eis que de sua essência. Para os fins deste estudo, aponta-se que merece destaque, na atualidade, o acesso pela entidade patronal às informações e dados dos trabalhadores, postados por estes ou 314 Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito... por terceiros na rede mundial de computadores, e seu uso para fins de contratação, alterações ou extinção do vínculo empregatício. Daí, uma das intervenções estatais esperadas contemporaneamente, atenderia à necessidade de regulamentar o chamado “Direito ao Esquecimento”. 3) A proteção de dados, privacidade do trabalhador e relações líquidas de labor O espaço virtual apresenta uma variada gama de possibilidades de interatividade, além de armazenar um grande número de informações que reclamam regulamentações, ainda inexistentes em nosso ordenamento. Uma das necessidades atuais é o denominado “direito ao esquecimento” que, em suma, viria garantir ao cidadão (no caso desta pesquisa, o trabalhador) que uma informação sua, considerada irrelevante aos demais, não seja perpetuada, espargida ilimitadamente e/ou perpetuamente mantida na Internet, notoriamente se hábil a atingir danosamente sua intimidade e privacidade. Atualmente, há princípios5 que norteiam estas necessidades (HAINZENREDER, 2011, p. 55), no entanto, tais condicionantes ainda não são suficientes para solucionar litígios nesta seara. São princípios protetores da dignidade da pessoa humana e que, no foco deste estudo, garantem ao trabalhador a manutenção do sigilo sobre sua vida privada, notoriamente ante seu empregador. Em ampliação, pode-se citar a existência de alguns documentos internacionais e protetivos acerca do tema: [...] Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de San José da Costa Rica), aprovada pela Organização dos Estados Americanos, assinada em 1969, que entrou em vigor em 1978. O Brasil está dentre os países que aderiram ao pacto (em 28.5.1992) e o ratificaram (em 25.9.1992). Com a ratificação ocorre o reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. [...] Na Convenção Americana de Direitos Humanos, anteriormente mencionada, o § 1º declara expressamente que ‘toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade’. [...] De acordo com Hainzenreder (2011, pp. 55), “(...), a vida privada compreenderia a esfera maior, onde se localizam os fatos que o indivíduo não deseja que se tornem públicos, ou seja, aqueles acontecimentos que não estariam ao alcance da coletividade em geral, englobando todas as notícias e situações que a pessoa deseja excluir do conhecimento de terceiros, a exemplo da imagem física e de comportamentos que só devem ser conhecidos por aqueles que integram regularmente com a pessoa. Dentro desse círculo, estaria a esfera íntima ou confidencial onde se encontram os fatos do conhecimento das pessoas que gozam da confiança do indivíduo. São as circunstâncias da sua vida que somente são compartilhadas com familiares, amigos e colaboradores. No centro está a esfera do secreto, objeto especial de proteção, em que se guardam os segredos revelados a poucas pessoas ou a ninguém, compreendendo assuntos extremamente reservados, como a vida sexual, por exemplo. Tal distinção possui um importante caráter prático, uma vez que quanto menor a esfera, maior o nível de proteção. Logo, o simples fato que envolve as situações de segredo já é o suficiente para caracterizar a violação da privacidade, enquanto que para se considerar violada a esfera da intimidade deve haver tanto o conhecimento como a divulgação da notícia para terceiros”. 5 315 Denise Fincato e Cíntia Guimarães Em 1993 foi assinada a ‘Carta de Viena’, como resultado da ‘Conferência Mundial de Direitos Humanos’, com sua declaração e programa de ação. Estes textos contemplam a promoção e proteção dos direitos humanos prioritariamente em relação à comunidade internacional, reconhecendo que os direitos humanos têm origem na dignidade humana. No âmbito da Comunidade Européia a ‘Declaração dos Direitos e Liberdades Fundamentais’, de 1989, prevê em seu art. 1º: ‘A dignidade humana é inviolável’. Posteriormente, em 2000, a ‘Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia’ estabelece em seu art. 1º: ‘a dignidade humana é inviolável. Ela deve ser respeitada e protegida (GOSDAL, 2007, p. 60-1). Cabe referir ainda, conforme Ruaro (2011, p. 190), que a Corte Europeia de Direitos Humanos, em um caso julgado em 16 de dezembro de 1992, ampliou o alcance do conceito sobre vida privada, passando a incluir o ambiente de trabalho como parte integrante da intimidade e privacidade pessoais, o que permitiria debater acerca do acesso e uso de conteúdos gerados, obtidos ou destinados ao âmbito de uma relação empregatícia. Em ritmo expansionista, o artigo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos6, ao ser ampliado, passou a abranger a denominada “vida privada social” que, certamente, inclui a laboral. A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 5º, inciso X7, a inviolabilidade dos indivíduos em âmbito particular, ou seja, abarca tanto a esfera familiar quanto a esfera de relações sociais, inclusive a de ordem profissional. De acordo com Hainzenreder (2011, pp. 56), “são direitos da personalidade inerentes ao indivíduo, que jamais desaparecem no tempo e que não se separam do seu titular. Por essa razão, são direitos existentes em qualquer relação jurídica. Portanto, à relação de emprego também são aplicáveis”. O objetivo é tratar da necessidade atual de regulamentação das disposições do empregado sobre situações de sua vida privada que eventualmente tenham sido registradas e/ou noticiadas por meio eletrônico (Internet) e, após armazenadas no meio virtual, não tenham sido apagadas, tornando-se públicas, de livre e amplo acesso. A regulamentação, advoga-se, deverá observar a proteção aos fatos da vida privada do cidadão, que não fazem parte do interesse público (sequer de seu 6 Art. 8° Direito ao respeito pela vida privada e familiar 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. Disponível em: https://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf, acessado em 04 maio 2018 7 Constituição Federal/1988, art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. 316 Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito... empregador) e que, especialmente quando mal utilizados e/ou interpretados, podem macular a imagem e dignidade da pessoa (especialmente como trabalhador). Em suma, deve-se ofertar ao cidadão a possibilidade de fazer desaparecer informações (mesmo que em meio/suporte digital) existentes a seu respeito, quando assim o desejar. As informações podem ser integrantes das redes sociais (twitter, orkut, facebook, outros), dos sistemas de busca (google, youtube, outros) e, sobretudo, de sistemas que deveriam garantir sigilo como os “e-jus” trabalhistas8. Registra-se que a Espanha já deu o primeiro passo neste sentido. Por meio da Lei Orgânica 15/1999 de 13 de dezembro, o Estado garantiu aos seus cidadãos o direito fundamental à proteção de dados de caráter pessoal. Esta Lei, em seu artigo 4.5, determina que: Los datos de carácter personal serán cancelados cuando hayan dejado de ser necesarios o pertinentes para la finalidad para la cual hubieran sido recabados o registrados. No serán conservados en forma que permita la identificación del interesado durante un período superior al necesario para los fines en base a los cuales hubieran sido recabados o registrados. Reglamentariamente se determinará el procedimiento por el que, por excepción, atendidos los valores históricos, estadísticos o científicos de acuerdo con la legislación específica, se decida el mantenimiento íntegro de determinados datos”.9 Nos casos em que o cidadão considerar que teve sua reputação ou dignidade atingidas, sentindo-se ofendido em razão de ter seus fatos privados divulgados em rede, na Espanha, lhe é garantido solicitar seu cancelamento evitando a continuidade de sua propagação em âmbito mundial e sua eternização no meio virtual. Neste país, o cidadão possui ainda o direito de ser informado quando seus dados forem divulgados, note-se: El derecho de información previo al tratamiento de los datos de carácter personal es uno de los derechos básicos y principales contenidos en la Ley Orgánica 15/1999 de Protección de Datos de Carácter Personal; por tanto, si se van a registrar y tratar datos de carácter personal, será necesario informar a los interesados, a través del medio que se utilice para la recogida, del contenido del artículo 5,1 y 2 que regula el derecho de información de los afectados previo a la recogida de los datos. Con carácter general, cuando se recaban datos personales debe informarse a los interesados de lo expuesto anteriormente.10 Ou seja, pelo regramento espanhol, os interessados serão previamente informados e ficarão cientes do “local virtual” onde seus dados estarão armazenados, bem como receberão a previsão da quantidade de tempo que as informações 8 www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-direito-ao-esquecimento-na-internet (acesso em 30/04/2018). O termo e-jus significa o armazenamento eletrônico de informações judiciais. Eventualmente, por descuido, podem também estar disponíveis na Internet e em livre acesso. 9 http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/lo15-1999.t2.html#a4 (acesso em 30/04/2018). 10 http://noticias.juridicas.com/base_datos/Admin/lo15-1999.t2.html#a4 (acesso em 30/04/2018). 317 Denise Fincato e Cíntia Guimarães permanecerão disponíveis em rede. É inquestionável a segurança que estas regulamentações oferecem aos cidadãos, pois garantir o direito ao esquecimento implica em investir os indivíduos de prerrogativas sobre toda e qualquer informação da qual sejam titulares. Além disso, legitima o poder pessoal para decidir o que deve permanecer na rede mundial de computadores, ou não, evitando que a informação privada permaneça ad eternum na memória virtual coletiva, o que nem sempre é favorável. 4) Proteção à dignidade dos trabalhadores e a necessidade de um direito ao esquecimento Para o foco deste estudo, o grande desafio enfrentado pelos trabalhadores decorre da divulgação de suas subjetividades (por ato próprio ou de terceiros) via Internet e a possibilidade de tais inserções (ou sua má interpretação) gerarem prejuízos especialmente à sua inserção profissional. Este desafio vem aumentado nas últimas décadas, pois os sistemas informacionais conectados em rede mundial facilitam o acesso a informações de qualquer tipo, inclusive pessoais. O respeito à privacidade e à intimidade11 do trabalhador é limite imposto também às relações de trabalho subordinado. Entende-se ser tarefa do legislador proteger o cidadão, através de normas adequadas e suficientes, acerca de situações que poderão causar-lhe vexame, humilhação ou desprezo, afetando-lhe diretamente nos direitos de personalidade e desafiando os limites impostos pelo princípio da dignidade da pessoa humana, que está baseada na ideia de “personalidade moral” do sujeito, alcançando a este uma garantia fundamental com respaldo na Constituição Federal do Brasil. Assim e tendo em vista a cultura brasileira – que se pauta nas previsões minuciosas de documentos legislativos -, urge que legislação pontual seja acrescida ao arcabouço juslaboral brasileiro, prevendo a proteção que ora se aponta como necessária, de forma concreta e exauriente. A positivação do chamado Direito ao Esquecimento ofereceria uma segurança ainda maior ao trabalhador eis que, como lembra Ruaro (2011, pp. 191), “sob a ótica do empregado deve-se ter em mente a sua hipossuficiência, à relação de subordinação empregatícia, à satisfação de seu superior, e às regras a que é submetido, muitas vezes sem a possibilidade de proteção e defesa suficiente de sua intimidade”. Um dos casos apontados, veiculado em artigo publicado no periódico espanhol El País de 08/01/2011, relata o fato de um cidadão que teve notícia a seu respeito veiculada Nota das autoras: o direito à privacidade resguarda a moral pessoal tanto no âmbito familiar quanto no âmbito social e profissional e o direito à intimidade resguarda a personalidade e ambos são oriundos da proteção já garantida pelo princípio da dignidade da pessoa humana. 11 318 Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito... trinta anos antes, em jornal que circulava em sua região, contendo resultado condenatório a si inculcado por naquela época ter urinado em logradouro público. O jornal, ao digitalizar seus exemplares antigos, disponibilizou o acesso a tais exemplares por meio da ferramenta de busca “Google”. Sendo este cidadão atualmente um honrado professor, pode-se afirmar que o resgate a lume do fato pretérito afetou sua dignidade, eis que fora exposto algo que lhe era íntimo e que, com a sanção da multa a si imposta (há trinta anos, repise-se), já havia respondido pelo seu erro na forma e época próprias. O interesse reside em não permitir que uma informação - íntima, pessoal e passível de sepultamento pelo esquecimento público, no cenário físico – se torne perpétua e pública no meio (mundo) digital, em razão da capacidade ilimitada de armazenamento e divulgação do ciberespaço, permitindo reacender situações de vida que o próprio indivíduo já poderia ter esquecido e que não gostaria que viessem à tona. Adaptando o debate à moldura ora proposta, podem existir na rede mundial de computadores informações de que um trabalhador teria demandado na Justiça do Trabalho contra uma determinada empresa em que laborara em tempos passados. Ao candidatar-se à nova vaga de emprego, mesmo sendo extremamente qualificado, pode não ser selecionado em razão dessa informação. Embora os processos judiciais sejam públicos, há tempos já se retirou nos sítios de internet dos Tribunais Trabalhistas brasileiros a ferramenta de consulta “por nome da parte” evitando, com isto, que o próprio sítio web estatal se transformasse em “lista negra”, consultada por empregadores, desejosos de não ter entre seus colaboradores pessoas que já houvessem demandado na Justiça do Trabalho. Parte-se da ideia de que, nestas relações, tal informação faz parte do rol privativo e íntimo de dados do cidadão que, atualmente no Brasil, não possui um direito regulamentado/positivado que lhe permita escolher entre divulgar ou não determinados episódios de sua vida, ademais exigindo que fatos relacionados ao seu nome sejam preservados em sigilo ou excluídos dos meios digitais. Tem-se a certeza que, atualmente, apenas a não postagem garantiria eficácia e efetividade ao direito ao “esquecimento”. Regulamentar e proteger os dados do cidadão tornou-se necessário, pois, atualmente, o acesso à Internet permite pesquisar acerca da vida (inclusive íntima) de qualquer pessoa. Os empregadores naturalmente recorrem a sistemas de busca da internet e sites de relacionamento antes de contratar um empregado. Algumas empresas, sem pudores, solicitam ao candidato sua senha nos sites de relacionamento, quando da entrevista de seleção ao emprego (caso tal sítio seja protegido ou restrito). A tomada de decisão sobre a contratação (ou não), passará, então, por critérios que não perquirem apenas da habilidade e formação do candidato, podendo pautar-se em suas opções pessoais (partidárias, religiosas, de orientação sexual, entre outras). Se o dever de proteção ao hipossuficiente é imposto primeiramente ao legislador, informando sua atividade típica legislativa, a proteção ao cidadão, para ser efetiva, não 319 Denise Fincato e Cíntia Guimarães estanca na atuação estatal de mera criação de diplomas legais. Fiscalização constante das questões digitais e atuação admoestatória e inibitória concretas também devem ser inseridas na cultura das autoridades administrativas e judiciárias. De outro lado e a contribuir, singelas companhas de esclarecimento ou até mesmo políticas públicas de formação para a vivência digital revelam-se impostergáveis pois, sem dúvidas, num cenário complexo como o digital, ainda mais complicado pela ineficiência protetiva estatal, incumbe ao próprio cidadão, na medida do possível, a autoproteção de sua privacidade e intimidade, o que começa pela consciência das consequências de seu compartilhamento e exibição na rede mundial de computadores. 5) Conclusão A atuação da OIT tem sido primordial para estabelecer parâmetros de controle em relação à proteção do trabalhador frente às diversas situações hostis que se apresentam no atual cenário laboral. Mas não é suficiente. No âmbito do trabalho, as necessidades de tutela também evoluem, surgindo do progresso tecnológico e do aumento da complexidade do viver humano. A existência humana no espaço virtual têm diferentes contornos e dimensões, necessitando de diversos parâmetros e interpretações, de preferência normativas. Neste particular, embora cientes de que uma norma surge apenas após a constatação e valoração de um fato social, pensa-se que os tempos requerem maior velocidade legislativa ou, como alternativa, o início de uma caminhada para as chamadas “normas abertas”, principiológicas, porosas e flexíveis. Por meio de iniciativas conjuntas, com o envolvimento de diversos órgãos relacionados à proteção e à manutenção das garantias de direitos sociais dos trabalhadores, visando a implementação de políticas públicas é que se poderá oferecer alternativas de proteção dos direitos e garantias. O direito ao esquecimento, enquanto não totalmente eficiente, gera diversos embaraços à vida de trabalho. Desavisados ou não, trabalhadores prejudicam sua relação empregatícia (já líquida – no conceito de Bauman) expondo sua intimidade e vida privada. O mau uso destas informações pode não apenas atingir a relação em curso, como impedir novas (pois o dado se eternizará nas redes sociais). Governança corporativa eficiente, que primeiramente limite a investigação acerca das condições pessoais dos trabalhadores e, paralelamente, eduque para o bom convívio digital, é o que se apresenta como alternativa solidária e imediata. Em suma, recomendam-se condutas patronais precaucionais; elaboração de códigos de conduta e ética empresariais (governança) sobre uso e comportamento, especialmente dos empregados, em redes sociais digitais Entende-se que políticas públicas e educação para a vida no meio digital são ainda 320 Governança nas relações (líquidas) de trabalho: o direito... mais importantes que o regramento legal de condutas, cujos valores de influência cambiarão a cada ano, semestre ou mês. Entretanto, vislumbra-se que, quer a cultura para a vida digital, quer a legislação protetiva, não se implementarão de imediato, sequer a médio prazo. Por isto, é que se entende que a argumentação e poder comunicativo dos atores sociais e dos operadores jurídicos serão determinantes para bem conduzir as relações laborais de seres (empregadores e empregados) com dupla dimensão existencial: física e virtual. BIBLIOGRAFIA BARBOZA, Cícero e BENAKOUCHE, Rabah. Informática Social: a ameaça à privacidade, o desemprego. Petrópolis/ RJ: Vozes, 1987. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. BAUMGARTEN, Maíra. Tecnologia. In: CATTANI, Antônio David e HOLZMANN, Lorena. Dicionário de Trabalho e Tecnologia. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2006. BURCH, Sally. Sociedade da Informação / Sociedade do Conhecimento. Disponível em: http://dcc.ufrj.br/~jonathan/compsoc/Sally%20Burch.pdf acessado em 04 maio 2018. CASTELLS, Manuel. 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Diante dessa nova lei, um grupo de 30 deputados ajuizou, junto ao tribunal constitucional declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de vários artigos da referida lei, incluindo os números 1 e 4 do artigo 15º.2 O número 1 do artigo previa que todos os envolvidos no processo de Procriação Medicamente Assistida (PMA) estão obrigados a manter sigilo sobre a identidade dos doadores e sobre a própria técnica de PMA. O número 4 dispunha que sem prejuízo dos demais dispositivos legais, as informações da identidade dos doadores poderiam ser fornecidas, por razões ponderosas através de decisão judicial. Em que pese haver análise de outros dispositivos da lei, o presente trabalho tratará, tão somente, da confidencialidade da identidade do doador e sob a luz do conflito de normas. O acórdão 225/2018 de 24/04/2018 declarou, por maioria de votos, a inconstitucionalidade dos números 1 e 4 do artigo 15º da Lei 32/2006 alterada pela lei 58/2017 de 25/7/2017, sob o argumento, de que a ausência de acesso à identidade do doador impede a criança nascida a partir da técnica de PMA exerça o direito constitucionalmente estabelecido de identidade genética do ser humano. O acórdão faz remissão à Convenção sobre os Direitos da Criança que estabelece a todas as pessoas, mesmo menores, o direito de conhecer suas origens. O artigo 7º estabelece o direito de a criança conhecer sua ascendência biológica, sempre que 1 Mestranda em Direitos Fundamentais pela Universidade de Lisboa, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, servidora do Tribunal de Regional Eleitoral de Minas Gerais 2 Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do n.º 1, na parte em que impõe uma obrigação de sigilo absoluto relativamente às pessoas nascidas em consequência de processo de procriação medicamente assistida com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões, incluindo nas situações de gestação de substituição, sobre o recurso a tais processos ou à gestação de substituição e sobre a identidade dos participantes nos mesmos como dadores ou enquanto gestante de substituição, e do n.º 4 do artigo 15.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, por violação dos direitos à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade de tais pessoas em consequência de uma restrição desnecessária dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, com o artigo 26.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa; Juliana de Freitas Dornelas possível. A decisão traz também, a importância o disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Convenção Européia dos Direitos dos Homens (CEDH), uma vez que o conhecimento das origens genéticas é elemento essencial, do direito ao respeito pela vida privada e familiar e a asseverou que o conceito da vida privada e inclui o direito a conhecer a própria ascendência. O acórdão cita o art. 7º número 1 da Convenção sobre os direitos da criança que garante, sempre que possível, o direito de conhecer seus pais. 2) Sobre a paternidade do dador Os pais da criança são aqueles que buscaram a técnica de PMA para garantir a reprodução. Os dadores não podem ser tidos como progenitores da criança que vai nascer, nos termos do número 2 do art. 10º da Lei 23/2006.3 Tanto o é, que no acórdão 101/2009 analisa a possibilidade monoparentalidade, o que reforça a não paternidade do dador. Além disso, há que se considerar que os indivíduos que se submeteram à técnica de PMA, que são efetivamente os pais da criança. É a chamada paternidade socioafetiva. Essa paternidade é aquela classificada como a não-biológica. É juridicamente considerada, independente da origem genética. Com esse conceito Superou-se a equação simplista entre origem genética, de um lado, e deveres alimentares e participação hereditária, de outro. A paternidade é assumida voluntariamente, ou por imposição legal no interesse da formação integral da criança e do adolescente e que se consolida na convivência familiar duradoura4. Assim, conferir ao dador a paternidade é desprezar a existência da paternidade não-biológica, e, de certo modo impedir o exercício pleno da paternidade daqueles que efetivamente são os genitores da criança. 3) Ponderação entre as normas Mas, mesmo não sendo os pais, o artigo 265 da Constituição Portuguesa garante, 3 2 - Os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer. 4 LOBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real. 5 Outros direitos pessoais 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. 3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica. 4. A privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos. 324 Anonimato de doação de material genético: ponderação... de um lado, a identidade pessoal, reserva da intimidade da vida privada e familiar e, de outro lado, a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano. Assim, dentro do mesmo dispositivos legal pode-se depreender pelo menos duas normas jurídicas com diferentes beneficiários. A primeira norma tem o operador deôntico de permissão. Garante à qualquer pessoa, com especial atenção àquelas nascidas de utilização de técnicas decorrentes de desenvolvimento tecnológico, a possibilidade de conhecer sua origem genética. Deste modo, se pessoa, permite-se conhecer sua origem genética. De outro lado, há uma norma com operador deôntico de proibição que garante a preservação reserva da intimidade da vida privada. Assim, se pessoa, está proibida a violação da intimidade e vida privada. Os dadores de material genético só fizeram a referida doação sob o respaldo de que não seriam expostos aos conhecimento de outrem essa condição. Ao contrário, possui a garantia constitucional da inviolabilidade de sua privacidade. No entanto a criança nascida de técnicas de procriação medicamente assistida heterogénea tem o direito de conhecer sua origem e identidade genética. Depois de constatada a antinomia das normas, há que se ultrapassar três requisitos para resolver o conflito, quais sejam: verificar que ambas as normas pertencem ao mesmo ordenamento jurídico, se têm o mesmo âmbito de validade e se não há normas de conflitos que resolvam, por si, a antinomia. Quanto ao pertencimento no ordenamento jurídico não há que se traçar grandes considerações porque as duas normas decorrem de dispositivos legais incluídos na Constituição Portuguesa e pertencem ao mesmo ordenamento jurídico. Outro requisito importante para a resolução do conflito normativo é a verificação da validade da norma, aqui entendida no conceito forma ou técnico jurídico de validade, pois, para a teoria positivista, só é norma jurídica se a proposição por válida e se estiver incluída no contexto institucional da promulgação no ordenamento jurídico. É uma conexão conceitual necessária6. No caso em questão, as duas normas são princípios pertencentes ao ordenamento jurídico e podem ser válidas em situações fáticas possíveis, ainda que possam ser derrotadas em um determinado momento. 7 Tal derrotabilidade é a exclusão momentânea da aplicação da norma de forma total ou parcial, mas que não interfere a eventual aplicação futura. Deste modo, ainda que possa não ser aplicado no caso em análise, tanto a liberdade de expressão quanto a inviolabilidade da honra são princípios juridicamente válidos. O que será avaliado na resolução do conflito é o peso de cada princípio adequando à situação fática e jurídica posta. Essa avaliação deve ser feita por uma argumentação justificada baseada nas circunstâncias fáticas e normativas 6 ALEXY, Derecho y razoón practica. Méxito: Fontamara, 2002, p 48 7 ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais.p. 90 325 Juliana de Freitas Dornelas Por fim, há que se constatar não haver normas de conflito que apresentariam a resolução da antinomia, até por sua natureza normativa. Ambos são, portanto normas constitucionais que, embora sem reservas, passam a ser restringidos por necessidade de proteção de outros bens também importantes para o desenvolvimento da sociedade e para a defesa da dignidade da pessoa humana.8 No caso analisado no presente estudo, há dois princípios passíveis de aplicação, o que pode ser resolvido pelo sopesamento. Para resolução da antinomia há que se verificar a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. No que tange à adequação, a aplicação de qualquer das normas é meio adequados para o fim constitucionalmente legítimo. Assim, qualquer medida aplicada permitir a identidade genética ou preservar a intimidade e vida privada são medidas adequadas à luz da constituição, desde que cumpridas as demais fases da máxima proporcionalidade. Quanto à necessidade, há que se escolher, dentre os meios adequados para a realização do fim ligado aos princípios apresentados, deve ser preterido aquele mais intrusivo sobre o princípio que sofrerá a intervenção.9 Nesse teste, no caso em questão, não há como excluir a aplicação de qualquer dos princípios porque prescinde de uma ponderação, já que são igualmente adequados e necessários. As condições fáticas são analisadas na ponderação em sentido estrito que é a terceira condição da teoria da proporcionalidade. Já cumpridas as etapas dos testes de adequação e necessidade, resta a proporcionalidade em sentido estrito, que pode definida, na sua forma mais simples como “Quanto maior for o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro".10 Essa máxima da proporcionalidade em sentido estrito pode ser definida em três passos. No primeiro passo é avaliado o grau de não satisfação ou afetação de um dos princípios. No caso analisado, necessário é avaliar o grau de não satisfação ou afetação da preservação da vida privada e intimidade do dador. Na hipótese de permissão do conhecimento da identidade do dador tem-se a não satisfação integral preservação da sua intimidade, o que confere uma grave ofensa à norma. No segundo momento, há que se avaliar a importância da satisfação do princípio colidente. Deste modo, a importância da satisfação a permissão de conhecimento da origem genética no caso em questão deve ser avaliada. De fato, o direito de conhecer a sua origem e sua identidade genética é uma garantia de importância alta que pode refletir, inclusive, na construção da personalidade da criança. Afinal, o conhecimento da origem biológica pode ser muito importante para 8 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 409 9 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de Ponderação na Jurisdição Constitucional p. 174 10 ALEXY, Teoria dos Direitos Fundamentais p. 167 326 Anonimato de doação de material genético: ponderação... restabelecer a sua inserção na cadeia geracional. O direito à identidade genética não se bastar com a mera indicação anônima de dados genéticos. 11 No terceiro passo, há que se avaliar a importância da satisfação do princípio colidente justifica a afetação ou a não satisfação do outro princípio, ou seja, avalia-se se a satisfação do conhecimento da origem genética justifica a não satisfação da preservação da vida privada e intimidade do dador. Neste fato, há que se ressaltar que o legislador, aquele que possui a função de discricionariedade para sopesar incluiu na lei, que, por razões ponderosas e por decisão judicial, pode-se conhecer a identidade do dador. 4) Conclusão O legislador conferiu ao judiciário que se realizasse a ponderação, mas por opção legislativa tornou mais rigorosa a derrotabilidade da preservação da intimidade e vida privada. Nada mais fez que a ponderação em sentido abstrato. E, deixou ao cargo do aplicador do direito, que, ao analisar as situações circunstanciais de cada caso, possa ou não determinar a derrotabilidade da norma de preservação da intimidade e da vida privada do dador. Afinal, conforme a lei 32/2006 com as alterações da lei 25/2016, permite-se à criança nascida de PMA o conhecimento da sua origem genética, ressalvada a identidade do dador. Assim, mesmo com o anonimato dos dadores, a norma é parcialmente satisfeita com o acesso a toda conforme estabelecido nos números 2 e 3 do art. 15º da referida lei12, sem contudo, que a preservação da identidade do dador seja violada. Deste modo, defende-se neste trabalho que a o grau de interferência da vida privada do doador de material genético é seríssimo e a sua não satisfação apenas pode ser considerada se houver, razões tais que ultrapasse possui uma importância é uma afetação seríssima ao proporcional ou não à importância do direito à identidade da pessoa nascida através da técnica de procriação medicamente assistida e verificar a possibilidade de realizar um rol abstrato de situações em que possa haver ou não a identificação de doadores. A Legislação já contemplava, de forma satisfatória preservação de todos os direitos, e conferiu ao juiz, o qual tem a prerrogativa de analisar os princípios, de forma que garante a maior satisfação das normas e princípios constitucionais no caso concreto. Muito há que se discutir acerca da procriação medicamente assistida e os efeitos ASCENSÃO, José de Oliveira. A lei nº. 32/06 sobre procriação medicamente assistida 2 - As pessoas nascidas em consequência de processos de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões podem, junto dos competentes serviços de saúde, obter as informações de natureza genética que lhes digam respeito, excluindo a identificação do dador. 3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, as pessoas aí referidas podem obter informação sobre eventual existência de impedimento legal a projetado casamento, junto do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, mantendo-se a confidencialidade acerca da identidade do dador, exceto se este expressamente o permitir. 11 12 327 Juliana de Freitas Dornelas nos futuros adultos, mas resguardar os princípios constitucionais com uma visão progressista é o grande desafio que se apresenta agora. BIBLIOGRAFIA ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva Afonso da Silva, São Paulo: Malheiros, 2008. ALEXY, Derecho y razoón practica. Méxito: Fontamara, 2002. ASCENSÃO, José de Oliveira. A lei nº 32/06 sobre procriação medicamente assistida. Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, III (Dez), 2007. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de Ponderação na Jurisdição Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2009. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade socioafetiva e a verdade real, Revista CEJ, Brasília, n. 34, p. 15-21, jul./set. 2006. MIRANDA, Jorge, Manual de Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. 328 COMPLIANCE DIGITAL E A INFLUÊNCIA DO REGULAMENTO EUROPEU DE PROTEÇÃO DE DADOS NAS EMPRESAS BRASILEIRAS Caroline De Melo Lima Gularte1 Gabriela Coelho Glitz2 1) Introdução Com o incremento da internet, a possibilidade de armazenamento de megabases de dados trazem novas possibilidades de compreensão do mundo, a partir do Big Data. A tecnologia avançada, que favorece a produção de riquezas, vem acompanhada da produção social de riscos, trazendo ao Direito um novo paradigma: como podemos evitar danos e minimizar riscos, produzidos por este processo avançado de modernização, sem ultrapassar os limites do sustentável? A proteção da pessoa humana é o ideal máximo do ordenamento jurídico, sendo o direito fundamental à privacidade uma das facetas da dignidade da pessoa humana, reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. A tecnologia e as mudanças sociais traçam um novo cenário, no qual a informação pessoal e a privacidade dividem uma tênue linha. O direito fundamental à privacidade se vê diante dos mais variados desafios para a sua tutela, ainda mais quando analisado sob a ótica da proteção de dados pessoais. Em verdade, estamos diante de um sistema patrimonialista, no qual os dados pessoais podem se transformar em uma commodity nesta nova sociedade digital. Saber usar do consentimento e dar a este as vestes de um ato unilateral, não podem ser pressupostos de uma ausência de interesse na proteção de dados pessoais. Na tentativa de regularizar essa situação, o Parlamento Europeu e o Conselho emitiram o Regulamento 2016/679, que entrou em vigor em 25 de maio de 2018. O regulamento europeu de proteção de dados traz a necessidade de gestão responsável na proteção de dados, colocando a União Europeia a frente das discussões sobre o tema. Esse novo horizonte de sentido, pautado pela necessidade de prevenção de danos e precaução de riscos, reclama do operador jurídico uma atuação pautada numa ética de responsabilidade, que potencialize o acompanhamento das inovações tecnológicas, com a devida segurança jurídica, servindo o compliance digital para auxiliar nessa gestão. 1 Mestranda em Direito pela PUCRS. Especialista em Compliance e Direito Penal pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da Faculdade de Direito de Coimbra. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela UNISINOS. Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela UFRGS. Integrante do Grupo de Pesquisas “Novas Tecnologias, Processo e Relações de Trabalho” da PUCRS. Advogada. E-mail: c.melolima@gmail.com 2 Mestranda em Direito pela PUCRS. Bolsista vinculada ao CNPq. Pós-graduada em Ciências Penais pela PUCRS. MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Advogada. E-mail: gabipcoelho@yahoo.com.br Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz Nesse sentido, inicialmente, o presente trabalho analisa os aspectos gerais e a evolução conceitual do regulamento europeu de proteção de dados, bem como suas principais alterações e inovações. Na sequência, passa-se a aferir a importância da implementação de um programa de compliance digital, para a gestão eficiente da proteção de dados nas empresas brasileiras, em conformidade com o regulamento europeu e o ordenamento jurídico pátrio. 2) O Novo Regulamento Europeu a) Histórico e Evoluções Conceituais até a Publicação do RGPD O novo regulamento geral de proteção de dados, que entrou em vigor em 25 de maio do corrente ano, possui elementos diretamente aplicáveis a cada Estado da União Europeia. Conforme José Luis Piñar Mañas, passa-se de uma gestão de dados ao uso responsável da informação. Tal afirmativa vai muito mais além: as questões que envolvem a proteção de dados serão apreciadas pelo crivo do princípio de accountability (art. 24 do RGPD)3, ou seja, de responsabilidade proativa, com princípios que vão desde a privacidade por desenho e padrão (artigo 25 do RGPD)4, até a figura de um delegado 3 Artigo 24. Responsabilidade do responsável pelo tratamento 1. Tendo em conta a natureza, o âmbito, o contexto e as finalidades do tratamento dos dados, bem como os riscos para os direitos e liberdades das pessoas singulares, cuja probabilidade e gravidade podem ser variáveis, o responsável pelo tratamento aplica as medidas técnicas e organizativas que forem adequadas para assegurar e poder comprovar que o tratamento é realizado em conformidade com o presente regulamento. Essas medidas são revistas e atualizadas consoante as necessidades. 2 Caso sejam proporcionadas em relação às atividades de tratamento, as medidas a que se refere o n.° 1 incluem a aplicação de políticas adequadas em matéria de proteção de dados pelo responsável pelo tratamento. 3. O cumprimento de códigos de conduta aprovados conforme referido no artigo 40.o ou de procedimentos de certificação aprovados conforme referido no artigo 42.o pode ser utilizada como elemento para demonstrar o cumprimento das obrigações do responsável pelo tratamento. 4 Artigo 25. Proteção de dados desde a conceção e por defeito: 1. Tendo em conta as técnicas mais avançadas, os custos da sua aplicação, e a natureza, o âmbito, o contexto e as finalidades do tratamento dos dados, bem como os riscos decorrentes do tratamento para os direitos e liberdades das pessoas singulares, cuja probabilidade e gravidade podem ser variáveis, o responsável pelo tratamento aplica, tanto no momento de definição dos meios de tratamento como no momento do próprio tratamento, as medidas técnicas e organizativas adequadas, como a pseudonimização, destinadas a aplicar com eficácia os princípios da proteção de dados, tais como a minimização, e a incluir as garantias necessárias no tratamento, de uma forma que este cumpra os requisitos do presente regulamento e proteja os direitos dos titulares dos dados. 2. O responsável pelo tratamento aplica medidas técnicas e organizativas para assegurar que, por defeito, só sejam tratados os dados pessoais que forem necessários para cada finalidade específica do tratamento. Essa obrigação aplica-se à quantidade de dados pessoais recolhidos, à extensão do seu tratamento, ao seu prazo de conservação e à sua acessibilidade. Em especial, essas medidas asseguram que, por defeito, os dados pessoais não sejam disponibilizados sem intervenção humana a um número indeterminado de pessoas singulares. 3. Pode ser utilizado como elemento para demonstrar o cumprimento das obrigações estabelecidas nos n.os 1 e 2 do presente artigo, um procedimento de certificação aprovado nos termos do artigo 42.o. 330 Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção... de proteção de dados.5 A rápida evolução tecnológica e a globalização trouxeram novos paradigmas para a proteção de dados pessoais, tendo em vista a rápida circulação de dados entre os países membros, assim como entre outros países e organizações internacionais, não sendo necessário, para tanto, perder um nível mínimo de proteção desses dados.6 A base e avanço de toda a legislação europeia está calcada no artigo 8 o da Carta Europeia de Direitos Humanos, que reconhece o direito fundamental à proteção de dados. Esse direito foi elevado à categoria de direito fundamental autônomo, distinto do direito à intimidade, que está previsto no artigo 7o. Este grande avanço, ocorrido nos anos 2000, firmou a base do novo regulamento europeu de proteção de dados, buscando superar as dificuldades de uniformização e aplicação vivenciados durante a vigência da Diretiva 95/46/CE. O RGPD reforça que o tratamento de dados pessoais deve servir à humanidade, porém tal direito não é um direito absoluto, devendo ser considerado em relação à sua função para a sociedade, mantendo o equilíbrio com os demais direitos fundamentais, calcado no princípio da proporcionalidade.7 Outro ponto importante a ser considerado como conceito e fundamento do novo regulamento diz respeito a qual seria a definição do direito à proteção de dados. Tal definição não está prevista no regulamento, mas segundo Piñar Mañas, poderia ser entendida como o controle que as pessoas físicas devem ter sobre seus dados pessoais, sendo este controle o elemento central do direito.8 Assim, o objetivo final do novo regulamento está em regular o direito fundamental à proteção de dados, reconhecido no artigo 8o da Carta Europeia de Direitos Humanos, garantindo a livre circulação desses dados dentro da União Europeia. b) Principais Alterações do Regulamento 2016/679 da UE Um dos principais conceitos para estudar esta legislação está no que são dados pessoais. O conceito trazido pela Diretiva 95/46/CE foi mantido pelo novo regulamento, porém agregaram-se novos elementos e exemplos, pertinentes ao desenvolvimento de novos aplicativos e da internet das coisas. Assim, pode-se definir como dados pessoais toda informação sobre uma pessoa física identificada ou identificável, devendo considerar-se pessoa física identificável toda aquela que puder ser determinada, direta ou indiretamente. O RGPD especificou ainda mais tal conceito, mencionando que seriam considerados como dados identificáveis o nome, o número de identidade, dados de localização, dados em linha ou ainda vários elementos próprios de sua identidade física, 5 PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Reus, 2016. p. 16. 6 PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 51-52. 7 PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 57. 8 Ibidem, p. 57. 331 Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz fisiológica, genética, psíquica, econômica, cultural ou social.9 Contudo, o problema não está nos dados em si, mas no seu tratamento. O conceito de tratamento foi mantido no mesmo sentido previsto pela Diretiva 95/46/CE, entretanto, agregou o conceito de limitação, que faz referência a dados pessoais que são coletados, porém possuem uma limitação de tratamento. Outra significativa alteração feita pelo regulamento está no ato do consentimento, que incorporou ao seu conceito de livre manifestação de vontade, específica e informada, a manifestação de vontade inequívoca. Aqui, altera-se um parâmetro de consentimento “padrão”, que por muitas vezes era fornecido sem que o usuário tivesse de fato consentido, já que uma simples marcação em uma janela de sítio era tida como consentimento. Atualmente, exige-se um consentimento claro e inequívoco, com uma linguagem fácil e acessível, de compreensão rápida, não podendo conter cláusulas abusivas. Ainda, tendo o tratamento de dados mais de um fim, o consentimento deve ser dado de forma separada, para cada um dos fins projetados, e o responsável do tratamento deve ser capaz de demonstrar que foi dado o consentimento, por determinada pessoa, para determinado fim. A regra europeia traz, ainda, significativos avanços que passam desde uma ampliação dos chamados direitos ARCO (acesso, retificação, cancelamento e oposição), incluindo o direito ao esquecimento, direito à portabilidade de dados e decisões individuais automatizadas, como também novos conceitos como a “pseudonimização” de dados, o encarregado pela proteção de dados e a privacidade de dados desde a concepção e por defeito/padrão. Outro assunto de grande importância está na transferência de dados pessoais a terceiros países (fora da comunidade europeia), e organizações internacionais, matéria que está regulada pelo Capítulo V, artigos 44 à 50 do RGPD. O principal ponto em relação a esta questão é que as transferências de dados para fora da União Europeia não podem colocar em risco o nível de proteção já garantido às pessoas físicas, em relação aos seus dados pessoais. Para que seja viabilizada a transferência internacional a um terceiro país ou organização internacional, deverá haver adequação a garantias efetivas e notórias aos dados, ou, deverá estar enquadrada em uma das exceções previstas no artigo 49 do RGPD.10 O regulamento europeu atribui a competência para declarar “adequado” o grau de proteção fornecido por determinado país fora da União Europeia, ou organização 9 POU, Maria Arias. Definiciones a efecto del reglamento general de protección de datos. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reclamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Reus, 2016. p. 117. 10 PIÑAR MAÑAS, José Luis. Transferencias de datos personales a terceiros países u organizaciones internacionales. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 427-460. 332 Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção... internacional sobre o controle de dados pessoais, a uma comissão. Porém, com o objetivo de auxiliar o trabalho desta comissão, o regulamento prevê em seu artigo 70.1, que o comitê facilitará o trabalho da comissão, emitindo um parecer para avaliar o nível de proteção de onde se pretende autorizar a transferência internacional de dados. A consequência mais importante sobre esta decisão de adequação está na autorização para que a transferência seja feita a quem solicitou, não necessitando de nenhuma autorização específica. Além disso, tal decisão obriga o acompanhamento e supervisão pela comissão, de maneira contínua, sobre os acontecimentos e desdobramentos. Haverá uma revisão sobre a decisão a cada quatro anos, pelo menos, com o objetivo de constatar se os níveis de proteção seguem estando adequados aos parâmetros estabelecidos pela comissão.11 Não sendo constatada a manutenção da proteção dos dados pessoais nesses critérios, a comissão revogará, modificará ou suspenderá a decisão anterior, proibindo a transferência de dados pessoais, não havendo efeito retroativo. Na falta de uma decisão de adequação, de acordo com o artigo 46.1, o responsável ou o encarregado do tratamento só poderá transmitir dados pessoais a um terceiro país ou organização internacional, se estes oferecerem garantias adequadas e a condição de que os interessados contem com direitos exigidos e ações legais efetivas.12 O artigo 46.2 segue nesta linha, esclarecendo o que seriam garantias adequadas: instrumento juridicamente vinculante e exigível entre as autoridades e organismos públicos; normas corporativas vinculantes; cláusulas de proteção de dados adotadas pela comissão; cláusulas de proteção de dados adotadas por uma autoridade de controle e aprovadas pela comissão; código de conduta; e um mecanismo de certificação associado a compromissos vinculantes e exigíveis nos mesmos termos que os códigos de conduta. Todas estas alternativas possibilitam a transferência de dados pessoais para países fora da Comunidade Europeia, sem a necessidade de uma decisão de adequação expressa, responsabilizando o encarregado e o responsável do tratamento de dados por tudo que envolva esta transferência. Ainda sobre este tema, as normas corporativas vinculantes, também conhecidas como Binding Corporate Rules (BCR’s), requerem uma atenção especial. Estas normas são um elemento legitimador das transferências internacionais de dados dentro de um grupo empresarial, ou uma união de empresas, embasando políticas de proteção de dados pessoais sob a responsabilidade do encarregado de tratamento, que permitam sua proteção para além das fronteiras europeias.13 As BCR’s são consideradas fontes de obrigação para os responsáveis e encarregados da proteção de dados pessoais, e possuem caráter vinculante enquanto declaração unilateral de vontade. Contudo, justamente ciente de que tais regras PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 443-445. Ibdem, p. 447. 13 POU, op. cit., p. 131. 11 12 333 Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz poderiam gerar problemas de aplicação, o RGPD reconhece este regramento e prevê, em seu artigo 47.1, os seus requisitos, garantindo que a autoridade de controle competente aprovará normas corporativas vinculantes, sempre que forem juridicamente vinculantes e se apliquem e sejam cumpridas por todos os membros do grupo empresarial, inclusive seus empregados, confiram expressamente aos interessados direitos exigíveis em relação ao tratamento de seus dados pessoais, e cumpram o apartado 2, que regula o que é considerado conteúdo mínimo para as BCR’s.14 O objetivo do legislador europeu foi de que as BCR’s de fato garantissem o direito à proteção de dados pessoais. Em virtude disso, o legislador prevê no artigo 47.2 o que deve constar nestas normas corporativas vinculantes, não deixando espaço para subjetividade. Após elaboradas pelo responsável de dados do grupo econômico, este deve submeter à aprovação da autoridade de controle competente. Insta referir, também, que o RGPD trouxe o direito à portabilidade. Este direito reforça mais uma vez o poder de disposição de dados dos cidadãos e também fomenta a competência do mercado digital. Através da portabilidade será possível receber os dados pessoais armazenados em formato estruturado, de uso comum e de leitura mecânica, possibilitando sua transferência para outro responsável. O RGPD reforça que isso só será possível quando for tecnicamente viável, reiterando que o prazo para atendimento será de um mês, a partir do pedido, podendo ser prorrogado em certos casos. Este direito será exercido a título gratuito, excetuando-se os pedidos manifestamente infundados ou excessivos.15 As alterações acima trazidas sugerem o grande reforço à proteção de dados que o regulamento geral de proteção de dados pessoais 2016/679 trouxe para o mundo digital. Os princípios basilares da Diretiva 45/96/CE foram todos mantidos e ampliados neste grande avanço legislativo sobre o tema, enaltecendo o poder do cidadão sobre a gestão efetiva, clara e transparente de seus dados pessoais. 3) Compliance Digital e Regulamento Europeu de Proteção de Dados Examinadas as principais inovações do regulamento europeu de proteção de dados, passa-se a aferir a importância de um programa de compliance digital, que permita a implementação da proteção de dados no âmbito empresarial, de forma eficiente. PIÑAR MAÑAS, op. cit., p. 452. FERNÁNDEZ-SAMANIEGO, Javier; FERNÁNDES-LONGORIA, Paula. El derecho a la portabilidade de los datos. . In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 257-268. 14 15 334 Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção... a) Elementos do Programa de Compliance Os programas de compliance são utilizados para transmitir aos dirigentes e aos funcionários o conhecimento sobre as leis e demais normas regulamentares, sendo comum a utilização de uma monitoração sistêmica, baseada em padrões pré-definidos, utilizando-se de investigações internas e privadas para avaliação de eventuais irregularidades praticadas no âmbito empresarial. A modernidade avançada e a produção social de riquezas vieram acompanhadas da produção social de riscos, coincidindo num novo paradigma: como se poderia evitar/minimizar riscos e/ou perigos produzidos por um processo avançado de modernização, sem ultrapassar os limites do sustentável?16 A ruptura paradigmática com ideia de dano, mediante uma concepção preventiva e do papel do Direito na prevenção de ilícitos, reclama a participação dos operadores jurídicos em um novo horizonte de sentido, a partir de uma ética da responsabilidade.17 A palavra compliance vem do verbo em inglês to comply, que significa “cumprir”, “estar de acordo”. É uma prática empresarial que impõe padrões internos para o cumprimento de normas, observância de leis e diretrizes nacionais e internacionais. O sistema de autorregulação adotado por organizações empresariais, normalmente, é composto por um programa de compliance para detectar operações suspeitas e encaminhá-las à supervisão da empresa. Nesse passo, as principais normas sobre compliance são as seguintes : FCPA - FOREIGN CORRUPT PRACTICE ACT- 1977: Os EUA foram o primeiro país a se comprometer com o combate à corrupção. A FCPA é fruto do escândalo do pagamento de propina pela Empresa de Aeronaves Lockheed Aircraft Corporation a funcionários públicos de vários países, na época da Guerra Fria. A FCPA é aplicável às Empresas americanas e Empresas que queiram se relacionar com os EUA. LEI SARBANES-OXLEY (Sarbanes-Oxley Act - SOX ou SARBOX) - 2002: Lei americana que define práticas de boa governança corporativa e transparência na condução dos negócios. UK BRIBERY ACT - 2011: Responsabiliza a Empresa pela falha ao prevenir atos de corrupção, praticados por qualquer pessoa a ela associada, em qualquer lugar do mundo, tanto no setor público, quanto no privado. Há a possibilidade de isentar a empresa de responsabilidade pela existência de procedimentos adequados anteriores ao cometimento do ato ilícito (compliance). A lei inglesa é considerada mais agressiva que a lei americana, por possuir um caráter extraterritorial ainda mais amplo. CONVENÇÃO DA ONU DE MÉRIDA – 2003 e Decreto 5.687 - 2006: Tem por 16 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. p. 25-26. 17 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006. 335 Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz finalidade promover, facilitar e apoiar, em nível internacional, o controle da corrupção. A implantação de um programa de integridade impõe a observância de deveres de prevenção e análise de riscos, mediante uma cultura corporativa de transparência nas atividades empresariais. Para a implementação de um programa de integridade, utilizam-se alguns elementos, tais como: a) criação e informação de um código de conduta, que defina a postura ética empresarial; b) canal de denúncias, que possibilite aos stakeholders denunciar atos ilícitos, de forma anônima; c) contratação de um compliance officer, o profissional que será responsável pela informação e fiscalização no cumprimento do programa de integridade. O compliance officer é o responsável pela supervisão e gerenciamento do compliance na empresa, ou na administração pública. Pode ser contratado pela própria organização, ou ser profissional terceirizado, ou até mesmo empresa terceirizada para desempenhar tais funções. A exemplo da figura do data protection officer (encarregado pela proteção de dados), conforme se verá adiante, tem a difícil missão de garantir que todos os procedimentos realizados estejam de acordo com o ordenamento jurídico nacional e internacional, bem como, em conformidade com o código de ética e conduta implementado na organização. Nesta seara, tornou-se imprescindível, tanto para as empresas quanto para a própria administração pública, a implantação de um programa de integridade, o compliance, para que se adequassem às exigências de mercado nacional e internacional, criando boas práticas de governança corporativa, com impactos na gestão empresarial, sendo mister o estudo do impacto do programa de compliance no âmbito do direito à proteção de dados pessoais. Conforme vimos acima, as organizações empresariais que não estiverem em conformidade com o RGPD podem sujeitar-se a multas no valor de até 20.000.000,00 de euros, ou 4% do volume de negócios total anual da empresa. Essas sanções não trazem um impacto negativo apenas financeiro para as empresas. Sem dúvida, atuar em desconformidade com as normas sobre compliance e o regulamento europeu mancham sua imagem a nível internacional. Essa situação foi vivenciada, recentemente, pela Empresa Facebook, no escândalo de vazamento de dados para uso político, que fez com que a empresa perdesse 50 bilhões de dólares em valor de mercado, em apenas dois dias.18 Nas palavras de Aristóteles19, a escolha de nossas ações não será correta sem prudência, nem sem virtude moral, pois a virtude moral nos capacita a atingir o fim 18 JORNAL O GLOBO. Em dois dias, Facebook perde quase US$ 50 bilhões em valor de mercado. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/em-dois-dias-facebook-perde-quase-us-50bilhoes-em-valor-de-mercado.ghtml>. Acesso em: 20 abril 2018. 19 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 3ª edição. Bauru, SP: Edipro, 2009. p. 200. 336 Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção... desejado e a prudência é o que nos permite adotar o meio certo para atingi-lo. Vale lembrar: a prática da justiça requer o senso da medida. No âmbito administrativo, a eficácia dos programas de compliance está vinculada à governança pública, na perspectiva do princípio da condução responsável dos assuntos do Estado, o que pressupõe accountability (dever de cuidado dos poderes públicos e o dever de prestar contas) e a responsiveness (sintonia profunda da actuação dos poderes públicos com as aspirações dos cidadãos), no horizonte de uma concepção de cidadania activa e participativa, e não apenas da cidadania representativa.20 Nesse sentido, demanda-se a construção de uma cultura de transparência e accountability, com o devido acesso à informação e prestação de contas por parte dos gestores públicos. Partindo da ideia de mudança de paradigma do dano para o paradigma da prevenção de ilícitos, deve-se considerar a atuação do Direito a frente das contradições sociais, potencializando o acompanhamento das inovações tecnológicas, com a devida segurança jurídica. b) Encarregado pela Proteção de Dados: data protection officer O regulamento geral de proteção de dados europeu impacta profundamente o direito digital e o setor da inovação, prevendo direitos e deveres a usuários e prestadores de serviços. A exemplo do compliance officer, o data protection officer, que é o encarregado pela proteção de dados, é o responsável por supervisionar o cumprimento por quem trata dados pessoais, servindo, inclusive, para fomentar a efetivação do direito fundamental à proteção de dados. Para sua atuação, é de extrema importância que possua independência, seja no setor público, como no setor privado, para o exercício de suas funções. Pode ser tanto um empregado interno, quanto um consultor externo. A Diretiva 95/46/CE já previa, de forma limitada, a figura do encarregado pelo proteção de dados. Entretanto, o RGPD oferece uma exposição muito mais detalhada das funções do EPD (encarregado pela proteção de dados), incrementando suas obrigações.21 De acordo com o artigo 37 do RGPD, o “delegado de proteção de dados” será designado atendendo a suas qualidades profissionais e, em particular, os seus conhecimentos especializados em Direito e a prática em matéria de proteção de dados e CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 327. 21 GARCÍA, José Leandro Núñez. El Encargado del Tratamiento. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 322. 20 337 Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz a sua capacidade para desempenhar as funções.22 Além de ter de cumprir com os critérios previstos no RGPD, é essencial que se trate de uma pessoa com alto nível de experiência profissional, com profundo conhecimento em direito nacional e europeu sobre proteçao de dados pessoais, que conheça o setor do negócio ou atividade da organização na qual desempenhe suas funções, conheça as operações e tecnologia para tratamento e segurança dos dados.23 De acordo com o previsto no regulamento europeu, é importante considerar os seguintes itens para a designação do encarregado pela proteção de dados: 1) designação obrigatória quando se cumpram os critérios estabelecidos no regulamento, nos setores público e privado; 2) designação obrigatória em virtude do Direito da União Europeia, como por exemplo, a Diretiva sobre proteção de dados pessoais tratados com fins policiais e judiciais; 3) designação voluntária, sendo necessário neste caso, que o encarregado pela proteção de dados cumpra os requisitos e critérios do regulamento.24 Portanto, os encarregados de proteção de dados deverão conscientizar, de forma precisa, o que representa o RGPD, os seus contornos e o espírito das suas normas, estabelecendo as condições ideais para a conformidade com o Regulamento. c) Da Proteção de Dados desde a Concepção e por Padrão: privacy by design and by default O novo regulamento europeu prevê que, desde a conceção (privacy by design), de construção de bens, serviços, produtos, sistemas, sejam obedecidos os critérios de privacidade. De acordo com o artigo 25 do RGPD, o responsável pelo tratamento de dados necessita aplicar, tanto no momento de definição dos meios de tratamento, como no momento do próprio tratamento, medidas técnicas e organizativas adequadas, como a pseudonimização e a minimização.25 A pseudominimização é compreendida como o tratamento de dados pessoais de forma que deixem de poder ser atribuídos a um titular de dados específico e medidas técnicas e organizativas para assegurar que os dados pessoais não possam ser atribuídos a uma pessoa singular identificada ou identificável. A minimização é compreendida como a limitação ao que é necessário, relativamente às finalidades para as quais são tratados 22 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO. Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:32016R0679>. Acesso em: 20 abril 2018. 23 GAYO, Miguel Recio. El Delegado de Protección de Datos. In: PIÑAR MAÑAS, José Luis (Dir.). Reglamento General de Protección de Datos: hacia um nuevo modelo europeo de privacidade. Madrid: Editoral Reus, 2016. p. 377. 24 IDEM, p. 380. 25 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO. Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:32016R0679>. Acesso em: 20 abril 2018. 338 Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção... os dados.26 Essas técnicas são utilizadas para a aplicação e eficiência das garantias necessárias no tratamento, para cumprir os requisitos do RGPD, protegendo os direitos dos titulares dos dados. Ainda, informa o regulamento que, por padrão ou defeito (privacy by default), só sejam tratados os dados pessoais que forem necessários para finalidade específica de tratamento. Essa obrigação aplica-se, em especial, para assegurar que os dados pessoais não sejam disponibilizados sem intervenção humana a um número indeterminado de pessoas singulares.27 d) Implicações do RGPD nas Empresas Brasileiras Visto que o RGPD prevê a necessidade de que todas as empresas envolvidas com manipulação de dados pessoais dos cidadãos da comunidade europeia tenham de cumprir requisitos, a fim de estarem em compliance com o prescrito no regulamento, é de fundamental importância abordarmos a ressonância do RGPD nas empresas brasileiras. Empresas brasileiras que armazenem, manipulem ou tratem dados pessoais de titulares europeus deverão atentar-se ao RGPD, uma vez que ele se aplica a entidades que processam dados pessoais, mesmo quando o tratamento se dá fora da limitação geográfica da União Europeia, desde que sejam oferecidos bens ou serviços a titulares de dados que sejam cidadãos da comunidade europeia. É o que preceitua o artigo 3º do presente regulamento.28 No âmbito brasileiro, conforme informações da Câmara dos Deputados, o PL 5276/16 exigia que os dados só fossem usados e manipulados com autorização, além de estabelecer uma série de restrições em relação a informações consideradas sensíveis, como opção sexual e posição política. O texto também mencionava um órgão com competência para fiscalizar o setor, mas não explicava qual seria esse órgão. Já outra proposta, sugeria a autorregulamentação do setor no lugar de um órgão regulador centralizado (PL 4060/12). E um terceiro projeto, o PL 6291/16, muda o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), para deixar clara a proibição do compartilhamento de dados pessoais dos assinantes de aplicações de internet.29 Entretanto, é válido lembrar que o Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 53 de 2018, apensou os projetos nº 4060/2012 e 5276/2016, inspirado no RGPD, sendo este projeto de lei que IDEM. IDEM. 28 REGULAMENTO (UE) 2016/679 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO. Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=celex:32016R0679>. Acesso em: 20 abril 2018. 29 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão especial sobre proteção de dados pessoais reúne-se nesta tarde. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/CONSUMIDOR/555983-COMISSAO-ESPECIALSOBRE-PROTECAO-DE-DADOS-PESSOAIS-REUNE-SE-NESTA-TARDE.html>. Acesso em 20 abril 2018. 26 27 339 Caroline De Melo Lima Gularte e Gabriela Coelho Glitz regulamentará o tratamento e a proteção de dados pessoais no Brasil.30 No que tange ao Marco Civil da Internet, é importante mencionar que esta lei já previa, em seu capítulo III, a proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas. Em seu artigo 11, há a previsão da proteção de dados pessoais em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou comunicações privadas, ressaltando que o disposto neste artigo aplicase aos dados coletados em território nacional e ao conteúdo das comunicações, desde que pelo menos um dos terminais esteja localizado no Brasil, ou que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro, ou pelo menos que uma pessoa jurídica integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento do Brasil. 31 Por todo exposto, conclui-se que a matéria atinente à proteção de dados pessoais no Brasil é regrada, de forma superficial, pelo Marco Civil da Internet, sendo o PL nº 53 da Câmara dos Deputados que regulará, especificamente, a proteção de dados pessoais no Brasil. Todavia, tendo em vista a aplicação do RGPD europeu ao Brasil, conforme visto acima, é de fundamental importância que sejam estabelecidos padrões mínimos de conformidade a serem adotados pelas organizações empresariais e pela administração pública, a fim de estarem em compliance com o que fora regulamentado. Nesse sentido, torna-se imprescindível a implementação de um programa de compliance digital, direcionado às questões referentes ao tratamento de dados pessoais no Brasil, em consonância com o RGPD, bem como com o ordenamento jurídico pátrio e demais normas e regulamentos referentes ao tema. 4) Conclusão O novo regulamento europeu de proteção de dados constitui um grande avanço no âmbito do direito fundamental à proteção de dados, não apenas para a Europa, mas no mundo inteiro. A presente pesquisa pretendeu analisar as principais modificações e inovações trazidas pela regra europeia, bem como a influência do RGPD no âmbito brasileiro. Concluiu-se que o regulamento europeu de proteção de dados influencia não apenas a comunidade europeia, como também, ressona em todos os países que armazenarem, tratarem e/ou manipularem dados pessoais de cidadãos europeus. A atual quadra vivida exige o acompanhamento das empresas para que possam implementar padrões éticos em suas atividades, não apenas por uma questão moral, mas 30 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 53/2018. Dispõe sobre o sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133486>. Acesso em: 03 julho 2018. 31 BRASIL. LEI Nº 12.965 de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em 3 julho 2018. 340 Compliance digital e a influência do Regulamento Europeu de Proteção... sim, legal. A gestão de compliance empresarial abarca diversas áreas jurídicas, tendo sido o objetivo deste trabalho a análise da ressonância do compliance no direito digital, mais precisamente, no âmbito da proteção de dados, com a devida observância aos direitos e garantias fundamentais, em suas múltiplas dimensões. Vale ressaltar que a inobservância dos direitos fundamentais implica na ruptura das legítimas expectativas dos cidadãos e das empresas que pretendem agir com a devida eticidade, exigida no mercado atual. A eficácia dos direitos fundamentais, tanto nas relações públicas quanto privadas, atua como limite objetivo. O conteúdo da dignidade enuncia a compreensão de que o indivíduo é um fim em si mesmo, vedando-se a sua instrumentalização, o qual não pode ser tratado como meio para a consecução de objetivos ou metas de natureza coletiva. Por todo exposto, é imprescindível que as organizações empresariais brasileiras e a administração pública se atentem ao regulamento europeu de proteção de dados, que passou a viger em maio de 2018, de forma a estarem em compliance com o que fora ali previsto, evitando danos e prováveis riscos, que possam culminar na aplicação de multas gravíssimas e, principalmente, situações que possam ferir a sua reputação e credibilidade sociais. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 3ª edição. Bauru, SP: Edipro, 2009. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 53/2018. Dispõe sobre o sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias//materia/133486>. Acesso em: 03 julho 2018. BRASIL. LEI Nº 12.965 de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. 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Os relatórios digitais de 2018 da We Are Social e do Hootsuite concluíram que existem, hoje, mais de 4 (quatro) bilhões de pessoas em todo o mundo que utilizam a Internet. E no que se referem ao uso das mídias sociais estas continuam em crescente expansão. O número de usuários de mídia social em 2018 fora de 3,196 bilhões, 13% a mais que no ano de 2017.2 É dizer, então, que cada sujeito ativo das mídias sociais tem o seu respectivo acervo digital que necessitará, sim, ser protegido, porque em algum momento o usuário digital irá falecer, poderá manifestar causas de incapacidade ou sofrer violações aos bens digitais deixados na internet. a) Sociedade Virtual, O ser físico-digital A internet, assim, como as mídias sociais não são extensões únicas do nosso ser. A vida com o passar do tempo molda os nossos comportamentos e ações, tanto o é verdade que em cada momento de nossas vidas buscamos projetar-nos no mundo. Quando criança, aprendemos a engatinhar, andar, vamos crescendo e logo nos tornamos adultos, momento em que construímos carreiras profissionais com a tentativa de expressar as nossas sensibilidades pessoais e intelectuais. É aí, então, que surge o seguinte questionamento: O novo ser vive sobre a superfície de uma tela ou dentro desta? A distância estabelecida entre humanos e a internet está cada vez mais difícil de ser mantida. Basta perceber hoje: menos papel, mais digital, menos contato físico, mais presença virtual, menos conteúdos físicos e mais conteúdos on-line. Há aqui a virtualização do ser, alimentado cada vez mais nas mídias sociais (instagram, linkedin, facebook, snapchat, myspace, dentre outros) com fotos, vídeos, opiniões, e, obviamente, 1 Grau acadêmico: LL.M (Legal Master) em Direito Empresarial. Instituição: Fundação Getúlio Vargas, Brasília/DF (BRASIL) 2 Disponível em: <https://wearesocial.com/blog/2018/01/global-digital-report-2018>. Acesso em: 29 de março de 2018. José Emiliano Paes Landim Neto a interação com os demais atores sociais, afinal de que adianta estar só neste ambiente digital. Assim, a virtualização do ser e das informações faz com que as pessoas se tornem mais vulneráveis e com a consequente exposição dos seus direitos à privacidade e intimidade. As inúmeras revelações, por exemplo, do Wikileaks desde sua fundação em 2006 foram um alerta sobre o poder que as tecnologias digitais têm em impactar a transparência informacional quanto à privacidade. Após o Wikileaks, o mundo passou da imaginação para comprovação, por meio do vazamento, de documentos e informações que têm se tornado públicos, levantando discussões e interpretações cada vez mais complexas entre transparência informacional, direitos individuais, segredos, privacidade, intimidade, valores éticos, segurança, direitos sobre a personalidade.3 Esse novo “poder da internet” acaba por aumentar a vulnerabilidade do indivíduo, pois potencializa a disseminação rápida de grandes volumes informacionais, possibilitando, assim, a ampla divulgação na web, ocasionando e ampliando o poder social das informações, uma vez que os conteúdos disponibilizados web eliminam as barreiras geográficas, pois a internet é, por definição, global. É por isso que ao longo da vida, bilhões de pessoas irão manifestar pensamentos, opiniões, interagir por meio de mensagens, fotos, vídeos, adquirir bens corpóreos e incorpóreos4, contratar serviços, tudo por meio da rede mundial de computadores. Logo, no decorrer de nossa vida existencial se tornará cada vez mais presente e inerente ao ser humano depositar na rede mundial de computadores informações pessoais, profissionais, manifestações da personalidade e arquivos de valor econômico, todos esses ligados a um determinado sujeito. Cada usuário terá o seu próprio patrimônio digital que necessitará ser protegido, pois em algum momento como mencionado anteriormente ele irá falecer, manifestar alguma causa de incapacidade ou mesmo sofrer violações a este legado digital.5 A importância, portanto, do que é produzido no ambiente virtual, notadamente os ativos digitais se mostra evidente em pesquisa feita pela empresa McAfee, Inc, empresa esta americana de informática com a expertise em soluções de segurança6 na qual se constatou uma estimativa em valores de US$ 35.000 em média para os ativos digitais por usuário. E em escala de relevância estão às memórias pessoais insubstituíveis, como fotos e vídeos, com valores estimados de US$ 17.065 por usuário. Além disso, 55% (cinquenta e cinco por cento) dos entrevistados mencionaram que mantem ativos digitais em seus dispositivos impossíveis de recriar, fazer o download ou 3 GABRIEL, Martha. Você, eu e os robôs: pequeno manual do mundo digital. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2018. p. 19. 4 (Amaral, 2003) ”Bens corpóreos seriam aqueles que possuem existência concreta, podendo ser perceptíveis pelos sentidos, sendo então objetos materiais, ainda que não possuam a forma sólida, como o gás, a eletricidade e o vapor. Já os incorpóreos seriam aqueles que teriam existência abstrata, intelectual, como a honra, a liberdade, o nome, bem como certos direitos e certas obras do espírito”. 5 LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Idaiatuba, SP: Editora Foco Jurídico, 2017. p. 57. 6 Mais informações em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/McAfee> . Acesso em: 02 julho de 2018. 346 Legado digital comprar7, demonstrando, assim, a importância do que é produzido em ambiente virtual. Dessa forma, uma vez que a vida vai se virtualizando a cada dia, 02 (dois) são os fatores principais dos ativos digitais, são eles: ativo digital com valor emocional e/ou financeiro. E no que se refere ao valor econômico do bem digital8 pode se mencionar as músicas, vídeos, bibliotecas digitais, jogos on-line, moedas virtuais (bitcoins), milhas aéreas, bens estes que podem, sim, serem transmitidos aos herdeiros quando do falecimento do usuário, notadamente por possuírem características patrimoniais. E, aqui, por se tratar de ativo digital de natureza patrimonial este poderá ser administrado, bem como sofrer divisão, segundo as regras sucessórias (art. 617 e seguintes do Código de Processo Civil Brasileiro e art. 1.845 e seguintes do Código Civil Brasileiro), uma vez que possui valor econômico, que geram direitos hereditários e, porquanto compõem a herança a ser partilhada. E, ainda, em relação aos bens digitais patrimoniais, no momento de sua transmissão, quer seja pela sucessão legítima ou testamentária, polêmica que pode se haver é a quantificação dos bens digitais para se saber ao certo os valores a serem partilhados. E no caso do Direito Brasileiro podem as partes integrantes da relação processual solicitarem a convocação de um perito, nos termos dos arts. 156 a 158 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, Heloisa Korb Bondan e Luiz Marcelo Berger, dissertando sobre a Governança na Internet e suas consequências jurídicas e institucionais do poder tecnológico, afirmam que9: “A internet surgiu no final da década de 70. Apesar de existir há quase 50 anos, foi apenas entre os anos de 1995 a 1996,10 que efetivamente começou a tomar proporções globais, quando surgiram questionamentos sobre quem governava esse espaço geográfico, considerando a inexistência de padrões atribuídos por normas estatais.11 A resposta, à época, foi de que a internet era, em realidade, governada pela sua própria estrutura (códigos da estrutura da rede).12 No entanto, a evolução tecnológica criou novos caminhos e possibilidades antes impossíveis de serem contemplados, com impactos profundos na forma como os agentes se relacionam em todos os níveis. As consequências para os diversos ordenamentos jurídicos estão ainda em curso”. Certamente, os desafios jurídicos são muitos e será cada vez mais difícil ao Poder Mais informações em: <http://www.thedigitalbeyond.com/2014/07/how-much-are-yourdigital-assets-worth-about-35000/>. Acesso em: 02 julho de 2018. 7 8 Bem Digital é a informação armazenada ou acessível, sendo esta online, onde o detentor da informação possui razoável expectativa de ser o proprietário ou ter o seu controle. 9 BONDAN, Heloisa Korb; BERGER, Luiz Marcelo. Governança na internet: consequências jurídicas e institucionais do poder tecnológico. In: FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho; COSTA, Henrique Araújo; CARVALHO, Angelo Gamba Prata de (Coord.). Tecnologia jurídica e direito digital: I Congresso Internacional de Direito e Tecnologia – 2017. 1ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 10 LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. Nova York: Basic Books, 2011. p. 20. 11 SYLVAN. David. Global internet governance: governance without governors. In: RADU, Roxana; CHENOU, Jean-Marie; WEBER, Rolf H. (Ed.). The evolution of global internet governance: principles and policies in the making. Springer: Nova York; Londres, 2014. p. 29. 12 SYLVAN. David. Global internet governance: governance without governors. In: RADU, Roxana; CHENOU, Jean-Marie; WEBER, Rolf H. (Ed.). The evolution of global internet governance: principles and policies in the making. Springer: Nova York; Londres, 2014. p. 30. 347 José Emiliano Paes Landim Neto Judiciário arbitrar valores aos ativos digitais de caráter econômico, como nos exemplos já citados de milhas aéreas, musicoteca, videoteca ou biblioteca digital. É importante salientar que as discussões que existem sobre a partilha dos bens digitais dos usuários serão cada vez mais frequentes, ficando a cargo, portanto, dos órgãos judicantes a utilização de outras áreas do conhecimento na tentativa de acompanhar o incerto, desafiador e caótico ambiente tecnológico e, assim, aplicar, sempre, o Direito ao caso concreto, salvaguardando a partilha dos bens digitais patrimoniais aos que irão receber quer seja por meio da sucessão legítima e/ou testamentária. Por outro lado há, também, o aspecto sentimental dos ativos digitais. São as fotos que causam lembranças, saudade, emoção e os bons momentos vividos ao lado de amigos e familiares, as mensagens enviadas por e-mail, inbox (mensagens privadas) nas mídias sociais, conteúdos estes produzidos e dotados de valor sentimental para os usuários. O grande desafio, portanto, que o valor sentimental do ativo digital é capaz de gerar é a relevância do que foi produzido no mundo virtual para o usuário antes do seu falecimento, bem como para os seus amigos e familiares. Neste aspecto, importante destacar sobre a eficácia post mortem dos direitos da personalidade do usuário, sendo esta transmutada na possiblidade de um terceiro desfrutar de uma situação jurídica vantajosa, em decorrência de um direito de personalidade que fora titularizado por quem, agora, é morto. Assim, se manifestaram Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery: “É inconveniente afirmar-se, singelamente, que são intransmissíveis os direitos da personalidade. Serão, ou não, de acordo com a natureza do objeto do direito tutelado. A personalidade termina com a morte (CC 6.º) e, com isso, evidentemente finda o mais importante objeto do direito de personalidade, que é a vida. Mas as operações jurídicas criadas em virtude do exercício do chamado direito de personalidade do morto podem continuar gerando efeitos jurídicos passíveis, também, de tutela sob a rubrica do direito de personalidade, agora titularizado em alguém que, por sua condição especial, vive situação jurídica de vantagem em virtude de circunstâncias da vida pessoal de quem já é morto”.13 Sobre o tema, a lição de Heinrich Hubmann, a qual traduzida livremente por Nelson Nery Júnior: “Ele (o falecido) não pode mais ser sujeito de relações jurídicas, sua capacidade jurídica se extinguiu. No entanto, enquanto seus valores e suas obras perdurarem, o seu direito sobre eles, ou seja, seu direito de personalidade, também deve perdurar. Ele não pode mais ser o portador desse direito, ele não pode tampouco fazer uso dele. É o seu interesse, sua aspiração a certos valores, que perdurará como legado aos seus descendentes, amigos e parentes. Esse interesse do falecido não deve se confundir com o interesse pessoal dos seus parentes, que o une, depois da morte, a suas obras. Com 13 NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado, 8ª. Ed., São Paulo: Ed. RT, 2011, coment. 8 CC 11, p. 230. 348 Legado digital frequência os interesses dos parentes se encontram em conflito com os interesses do falecido. Portanto, o direito de personalidade do falecido deve ser diferenciado do direito de personalidade dos vivos, que estão ligados a ele”.14 Logo, ao contrário do que se imagina no tocante ao aspecto sentimental do ativo digital do usuário, ainda que se ocorra o evento morte daquele, alguns direitos têm proteção jurídica post mortem, incluídas, a privacidade e intimidade do usuário. Cabe, então, ao titular da conta digital definir ou não se determinada pessoa poderá ter acesso aos seus conteúdos produzidos e compartilhados ao longo dos anos. E aqui, o pensamento mais coerente em relação aos bens digitais sem valoração econômica é prestigiar e respeitar a expressão de última vontade do de cujus, caso contrário não poderão os herdeiros pleitear a posse dos arquivos pessoais deixados pelo de cujus, sob pena de violação à intimidade e privacidade daquele. Como será visto na sequência deste trabalho, caso específico dos variados e possíveis problemas vinculados aos ativos digitais quando o usuário/titular da conta virtual vier a falecer ou se tornar incapaz é o caso, por exemplo, da influenciadora digital Nara Almeida falecida no último dia 21 de maio de 2018 acometida por um câncer raro de estômago. b) Mídia Social Instagram – A eternização do ser físico Revista Veja em recente reportagem sobre a modelo Nara Almeida, assim anunciou: “Morte ao Vivo” – A bela modelo Nara Almeida virou fenômeno ao compartilhar no Instagram, por 9 meses, sua luta – perdida – contra um câncer.15 Nara recebeu o diagnóstico do tumor raro em agosto de 2017. À época como divulgadora de moda, influenciadora digital, somava 400.000 (quatrocentos mil) seguidores. O aumento do numero de seus seguidores se deu de forma exponencial (4,4M)16 quando esta compartilhava fotos e notícias sobre o seu tratamento contra o câncer. E com isso, os atores sociais sensibilizados reagiam com carinho e apoio a cada novo post publicado. Nara por sua vez se sentia acolhida com as mensagens de carinho, nunca, portanto, se sentido só. O caso da influenciadora digital Nara Almeida revelou a identidade física que se transformou em virtual, a coexistência entre o corpo físico e o digital. E aqui, importante destacar mais do que os aspectos econômicos das publicações (ativos digitais) da usuária Nara Almeida, já que esta faturava em média R$ 30.000 (trinta mil reais) por mês em contratos com confecções de São Paulo/SP, houvera, também, o aspecto sentimental de NERY JÚNIOR, Nelson. Soluções práticas de direito: Direito Civil – Parte Geral – Responsabilidade Civil / Nelson Nery Júnior. 2ª. Ed. Rev. Atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. – (Soluções práticas de direito; v. 6), Volume VI, p. 253. 15 BATISTA. João Júnior. A morte ao vivo. “Revista Veja”. Edição 2568. Editora ABRIL. 30 de maio de 2018. Acesso em 02 de julho de 2018. 16 Disponível em: <https://www.instagram.com/almeidanara/>. Acesso em 02 de julho de 2018. 14 349 José Emiliano Paes Landim Neto seus bens digitais. São as suas fotos que, hoje, ainda causam lembranças, saudades, emoções e os momentos de luta vividos ao lado de amigos, familiares e por que não, também, os relacionamentos virtuais construídos. Nessa perspectiva Bruno Zampier exemplifica o alcance dos ativos digitais sentimentais pelos familiares, vejamos: “Se o titular falece, ou se torna incapaz, sem manifestar sua vontade quanto ao destino dos bens digitais, entende-se que a regra deva ser a vedação ao acesso aos bens digitais existenciais. Será possível, entretanto, a sucessão daqueles com caráter patrimonial. Todavia, quanto aos primeiros, poderá ser permitido o acesso aos familiares, pontualmente, a partir da análise judicial que reconheça a presença de uma justificativa relevante, devendo a decisão evitar que a intimidade de terceiros seja igualmente aplicada”. Assim, as pessoas costumam ser lembradas pelo o que fizeram e não pelo o que acumularam. É o ativo digital sentimental cada vez mais presente e importante para não só os usuários que construíram os seus legados digitais, mas, também, para amigos e familiares. 2) Conclusões. O artigo visou apresentar um panorama geral dos novos desafios da sociedade da informação, notadamente os impactos jurídicos dos ativos digitais sentimentais e/ou econômicos. Não há como se definir atualmente, uma resposta sobre qual será o destino dos bens digitais no Brasil, mas obviamente uma legislação se faz necessária para regular direitos e obrigações para usuários, sucessores, inventariantes, curadores, provedores para se evitar e prevenir conflitos futuros. Por fim, é possível se concluir que tudo o que produzimos no contexto digital (bens digitais/ ativos digitais / digital assets/digital property) vão além de nossa existência. É por essa razão, que o destino dos bens digitais não deveria ser ignorado pelos titulares de contas virtuais. REFERÊNCIAS Disponível em: <https://wearesocial.com/blog/2018/01/global-digital-report-2018>. Acesso em: 29 de março de 2018. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/McAfee>. Acesso em: 02 julho de 2018. Disponível em: <http://www.thedigitalbeyond.com/2014/07/how-much-are-yourdigital-assets-worth-about-35000/>. Acesso em: 02 julho de 2018. Disponível em: <https://www.instagram.com/almeidanara/>. Acesso em 02 de julho de 2018. 350 Legado digital GABRIEL, Martha. Você, eu e os robôs: pequeno manual do mundo digital. 1ª edição. São Paulo: Atlas, 2018. AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 5ª. Ed. Rev. Atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Idaiatuba, São Paulo: Editora Foco Jurídico, 2017. BATISTA. João Júnior. A morte ao vivo. “Revista Veja”. Edição 2568. Editora ABRIL. 30 de maio de 2018. LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. Nova York: Basic Books, 2011. SYLVAN. David. Global internet governance: governance without governors. In: RADU, Roxana; CHENOU, Jean-Marie; WEBER, Rolf H. (Ed.). The evolution of global internet governance: principles and policies in the making. Springer: Nova York; Londres, 2014. BONDAN, Heloisa Korb; BERGER, Luiz Marcelo. Governança na internet: consequências jurídicas e institucionais do poder tecnológico. 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Auflage, Köln: Böhlau Verlag, 1967. 351 DA IMPROPRIEDADE DOS EMBARGOS COMO MEIO DE DEFESA DO CÔNJUGE NO ÂMBITO DA EXECUÇÃO FISCAL Miguel de Antas de Barros1 Patrícia Anjos Azevedo2 1) Introdução No âmbito do processo de execução fiscal, que é um processo de natureza judicial, cujos atos sem natureza jurisdicional são praticados pelos órgãos da administração tributária (art.º 103.º da Lei Geral Tributária - LGT), assume importância preponderante a salvaguarda dos direitos patrimoniais do cônjuge que não deva assumir o papel de executado. Os embargos de terceiro são um meio processual destinado à defesa dos direitos e bens de terceiros que não são partes na causa – art.º 342.º, n.º 1 do CPC (Código de Processo Civil). Através deste meio podem ser assegurados os direitos de quem for ofendido na sua posse ou de qualquer outro direito real sobre um bem, por um ato de arresto, penhora ou outro ato judicial de apreensão ou entrega de bens, que se traduza num ato de agressão patrimonial (art.ºs 167.° e 237.° e ss do CPPT – Código de Procedimento e de Processo Tributário). A tramitação do incidente dos embargos rege-se pelos preceitos relativos à oposição judicial, podendo o órgão da execução fiscal pronunciar-se sobre o mérito da oposição e revogar o ato que lhe tenha dado fundamento (art.º 208.º, n.º 2 do CPPT). A decisão proferida constitui caso julgado no processo de execução fiscal quanto à existência e titularidade dos direitos invocados por embargante e embargado (art.º 238.º do CPPT). Caberá aqui, também, salientar, porque muito relevante, que os embargos de terceiro têm efeito suspensivo da execução fiscal em relação aos bens que sejam alvo de incidente, sem prejuízo da sua prossecução na parte restante. Mas delimitando a análise a que nos dedicaremos, encontram-se em causa situações de dívidas fiscais incomunicáveis (art.ºs 22.º, n.º 3 da LGT e 1692.º do CC3), mas cujos atos da execução, nomeadamente a penhora, são suscetíveis de ofender a 1 Licenciado em Direito pela Universidade Católica do Porto.Pós-Graduado em Justiça Administrativa pelo CEDIPRE – Universidade de Coimbra.Assistente Convidado no IPMAIA.Advogado. 2 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Professora Auxiliar Convidada no ISMAI. Professora Adjunta Convidada no IPMAIA. Membro da Comissão Científica do N2i – Núcleo de Investigação do IPMAIA. Investigadora do I2J (Instituto de Investigação Jurídica) da Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Lusófona do Porto. Membro efetivo do CEOS.PP (Centro de Estudos Organizacionais e Sociais do Politécnico do Porto). Advogada. Juiz-Árbitro CAAD (Direito Administrativo). 3 Código Civil. Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo esfera patrimonial do cônjuge, particularmente no tocante a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo. Não estão, pois, em causa as situações em que a dívida fiscal dada à execução se trata de uma dívida comum dos cônjuges (art.ºs 22.º da LGT e 1691.º do CC), uma vez que nessas situações, o cônjuge há-de ser havido como executado e como tal citado para a execução, ainda que não figure do título executivo original. Porém, não assumindo o cônjuge a posição de executado, por se tratar de uma dívida própria do outro, não são poucas as situações em que é erradamente presumida a sua posição como de “terceiro” em face da execução, ilação que, contrariamente ao processo civil (art.º 343.º do CPC4) não encontra suporte na legislação adjetiva tributária. 2) A condição de terceiro – delimitação A posição de “terceiro” em sede de execução fiscal é uma condição preliminar para a dedução de embargos (art.ºs 167.º e 237.º do CPPT5). Uma condição de admissibilidade do recurso a este meio processual e, portanto, uma condição para o seu recebimento e já não para o seu deferimento, que há-de depender da prova de um conjunto mais alargado de factos que extravasam o alheamento do sujeito da causa, mormente factos que incidem sobre a relação substantiva entre este e os bens afetados pela diligência e cujo tratamento não encontra aqui utilidade. A lei tributária não nos faculta uma definição precisa de terceiro, tendo cabido à doutrina e à jurisprudência desempenhar esse papel. Como resultado, é abundante a jurisprudência dos tribunais comuns, bem como dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, de que não deve ser reconhecida a qualidade de terceiro a quem for parte na causa, pelo que todos os sujeitos que o forem carecem de legitimidade ativa para dedução de embargos de terceiro. Coloca-se assim a questão de saber quem é que, vendo o seu património afetado pela diligência de execução, não é parte na causa, sendo claro que a questão se coloca do lado do executado, que é o sujeito passivo uma vez que a parte ativa do processo de execução fiscal é correspondente à posição do exequente e, portanto, à administração tributária. Discorrendo sobre várias hipóteses, saltam à vista as situações em que pode ser afetado quem não figure no título como executado ou quem não foi citado para a execução. Porém, a resposta a qualquer destas duas hipóteses deverá ser negativa na determinação da qualificação como terceiro para afigurar a sua legitimidade ativa para a 4 5 Código de Processo Civil. Código de Procedimento e de Processo Tributário. 354 Da impropriedade dos embargos como meio de defesa... dedução de embargos. Logo à partida, porque o cônjuge devedor, no caso de dívidas fiscais comunicáveis, não figurando no título original, é sujeito passivo da execução fiscal, devendo ser citado para a execução como devedor solidário que é da obrigação tributária incumprida pelo sujeito passivo da relação tributária. A esta situação devemos acrescentar a dos devedores subsidiários que, não figurando igualmente no título, poderão chamados a responder pela dívida por meio do instrumento da reversão (cfr. art.ºs 157.º a 161.º do CPPT), que mais não é do que o mecanismo que determina a responsabilização de uma determinada pessoa, a título subsidiário, pelas dívidas tributárias de outrem, como é o caso dos gerentes e administradores em geral, que tenham concorrido com culpa factual (ainda que presumida) para a insuficiência dos bens do devedor original para garantia e pagamento da obrigação tributária em falta (art.º 24.º da LGT). Quanto aos que não foram citados para a execução, a análise há-de necessariamente passar pela apreciação de se tratar ou não da uma situação de omissão de um ato processual, que pode configurar uma irregularidade, mas também uma nulidade processual (art.º 165.º do CPPT).6 Aqui chegados, aviva-se-nos na memória um clássico de John Le Carré, no qual a trama se desenrola à volta da criação de uma lista de perguntas que, parecendo instrumental, se vem a revelar substancial, precisamente porque é dela que é possível retirar o sentido das respostas. Isso é, saber colocar a pergunta significa que o intérprete já está no caminho da resposta. Regressemos, então, ao que nos diz o código de processo civil sobre o assunto, visto tratar-se da legislação subsidiária processo judicial tributário – art.º 2.º, alínea e) do CPPT. Prescreve o já aludido art.º 342.º do CPC que o terceiro para efeito de dedução de embargos é “quem não for parte na causa”. Assim sendo e sempre sem perder de vista o que vem de se dizer, o conceito de terceiro deve ser integrado por exclusão, caminho que nos é indicado pelo legislador, ao definir o terceiro como aquele que não é. Vejamos, então, os conceitos de “parte” e de “causa” para efeito deste comando legal. Como o conceito de parte não é o mesmo em toda e qualquer causa, debrucemonos sobre qual é a “causa” que o legislador teve em mente na determinação do conceito de terceiro. Sempre com recurso à norma, “causa” aparenta ser aqui a relação jurídicoprocessual que serviu de base ao ordenamento da diligência ofensiva da posse ou de outro direito real, mormente a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens. Em regra, esta coincidirá com a relação jurídica executiva, mas também, como acabámos de ver, esta simplicidade esquemática é meramente aparente, ficando por 6 Acórdão STA de 24-05-2016, Proc. n.º 0365/16 355 Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo revelar as cores que dão forma a todo o quadro. Importa, então, ter presente que pode ser executado quem não figura no título, como pode a execução prosseguir contra quem não tenha sido citado, bastando para tanto reparar que, em execução fiscal, a falta de citação só constitui nulidade insanável quando possa prejudicar a defesa do citando – art.º 165.º, n.º 1, alínea a) do CPPT. Assim, cremos ser forçados a concluir que o conceito de “parte” e de “terceiro” não advém do título, nem advém necessariamente do ato de citação (quando não exista). Por outro lado, já vimos que não interessa propriamente quem (formalmente) foi nomeado como tal na execução, mas quem (materialmente) o deva ser em face dos atos executivos que culminaram na apreensão. Assim sendo, parece que o entendimento correto passará por que apenas integram o conceito de “terceiro” aqueles que não tendo sido citados como executado, também não deva ser citado como tal face a tais atos executivos. 3) A situação do cônjuge do executado Como decorre naturalmente do supra exposto, não é essa a situação do cônjuge do executado na esmagadora maioria das situações que se deparam ao intérprete, devendo, porém, salvaguardar-se aqui, por razões de rigor expositivo, que em certas circunstâncias o cônjuge (aquele que o é pelo menos formalmente) não sendo citado, nem devendo sê-lo, pode lançar mão dos embargos de terceiro.7 Mas sucede que o CPPT, por um lado, prevê a citação obrigatória do cônjuge do executado sempre que a penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo (art.º 239.º do CPPT), caso em que poderá passar a exercer, no processo, os direitos que a lei confere ao executado, e por outro, quando a penhora incida sobre bens comuns, apesar de a dívida ser da responsabilidade apenas de um dos cônjuges, o cônjuge deverá ser citado para intentar a ação de separação judicial de bens ou, caso já o tenha feito, fazer disso prova no processo (art.ºs 220.º do CPPT e 1767.º do CC). Pelo que, para aferir se tem a qualidade de terceiro, o cônjuge do executado deve começar por consultar o ato de apreensão e indagar sobre a natureza dos bens apreendidos: se estiver em causa imóvel ou móvel sujeito a registo, não pode embargar de terceiro, podendo reclamar do ato de penhora ou da falta de citação, recorrendo para o efeito ao meio processual a que aludem os art.ºs 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Daqui decorre que o cônjuge, porque citado, não assumirá a posição de terceiro (art.º 97.º da LGT), ficando, contudo, a sua situação a coberto do direito de reclamação (art.º 276.º do CPPT) para fazer face aos atos que ilegalmente ofendam o seu património 7 Como poderia ser o caso do cônjuge separado de pessoas e bens após a partilha do património conjugal (1795º-A do CC). Acórdão STA de 9-11-2016 Proc. n.º 0972/16 356 Da impropriedade dos embargos como meio de defesa... e não só, como demonstraremos em seguida. a) O cônjuge citado no âmbito do artigo 239.º do CPPT Prescreve o art.º 239º do CPPT que “feita a penhora e junta a certidão de ónus, serão citados os credores com garantia real, relativamente aos bens penhorados, e o cônjuge do executado no caso previsto no artigo 220.º ou quando a penhora incida sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo, sem o que a execução não prosseguirá” (destacado nosso)8. Esta citação destina-se a chamar o cônjuge do executado a intervir na própria execução fiscal, como se do executado se tratasse, passando aí exercer no processo os mesmos direitos que o executado poderia exercer, a par deste ou sem o seu consentimento. Portanto, a sua possibilidade de intervenção processual, na sequência desta modalidade de citação, não se encontra limitada à possibilidade de requerer a separação judicial de bens, mas antes confere ao cônjuge do executado os mesmos direitos e prerrogativas de que se poderia fazer valer o executado. 9 Com efeito, embora no caso previsto no art.º 220.º do CPPT (de cujo pormenor se tratará mais à frente) a citação se destine apenas e especificamente a possibilitar ao cônjuge requerer a separação de bens, já nos restantes casos (em que estejam em causa bens imóveis e bens móveis sujeitos a registo), a citação confere-lhe a qualidade de coexecutado, com acesso ao cardápio de direitos processuais que são atribuídos ao seu cônjuge e que passam pela possibilidade de reclamar das decisões do órgão de execução fiscal para o tribunal administrativo e fiscal de primeira instância. De acordo com o art.º 103.°, n.° 2 da LGT, é garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz dos atos praticados pelo órgão da execução fiscal. Esta reclamação encontra-se prevista no art.º 276.º do CPPT. As decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal que afetem os direitos e interesses legítimos do executado podem ser objeto de uma reclamação junto do tribunal tributário, nos termos do art.º 276.º do CPPT. Por exemplo, o cônjuge entende que foi afetado por excesso da penhora ou por terem sido penhorados bens que não o podiam ter sido (por serem seus bens próprios e a dívida não ser comum) ou entende que não pode ter sido considerado como citado no 8 Para maiores desenvolvimentos sobre as formalidades do processo de execução fiscal, entre outras especificidades, cfr. os seguintes contributos: CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013; FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, Almedina, 2015; MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014; NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017; ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008; SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011. 9 Acórdãos STA de 23-06-2004 Proc. n° 1786/03; 25-10-2007 Proc. n° 626/07; 29-11-2006 Proc. n° 174/06; 25.11.2009 Proc. n° 1123/09; 19-01-2011 Proc. n° 842/10 357 Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo processo de execução fiscal por ter sido citado um terceiro e assim não ter tido conhecimento do conteúdo da mesma10. O mesmo sucede no caso de omissões praticadas pela AT no âmbito do processo de execução fiscal, designadamente a omissão de citação. Estas reclamações são tramitadas de acordo com as regras aplicáveis aos processos urgentes, tendo a sua apreciação prioridade sobre quaisquer processos que devam ser apreciados no Tribunal e que não tenham esse caráter (cfr. n.º 6 do art.º 278.º do CPPT). A reclamação, embora seja dirigida ao tribunal tributário de primeira instância (que estão hoje agregados aos tribunais administrativos de círculo e assumem a designação de tribunais administrativos e fiscais), é apresentada no prazo de 10 dias após a notificação da decisão objeto de reclamação, no órgão da execução fiscal (serviço de finanças da área do domicílio ou sede do executado), que pode revogar o ato no mesmo prazo, sendo que a reclamação em causa deverá indicar expressamente os fundamentos e as conclusões (cfr. art.º 277.°, n.ºs 1 e 2 do CPPT). Esta reclamação segue a tramitação dos processos urgentes. A reclamação, depois de subir ao tribunal, deve ser decidida no prazo de 90 dias, nos termos do art.º 128.º, n.º 1 do CPA.11 Antes do conhecimento das reclamações, será notificado o representante da Fazenda Pública para responder no prazo de 8 dias, ouvido o representante do Ministério Público, que se pronunciará no mesmo prazo (art.º 278.º, n.° 2 do CPPT). Em princípio tal reclamação deverá subir ao tribunal, a final, após a realização das fases da penhora e venda (caso de subida diferida). Neste caso, a reclamação não se encontraria sujeita a qualquer efeito suspensivo (cfr. art.º 278.º, n.º 1 do CPPT). Diferentemente, nos casos de subida imediata, a reclamação adquire caráter de urgência (art.º 278.º, n.º 6 do CPPT). A decisão objeto de reclamação terá efeito suspensivo em caso de prejuízo irreparável, o que se verifica nas situações em que o cônjuge pretenda arguir a inadmissibilidade da penhora dos bens; a imediata penhora dos bens que apenas subsidiariamente respondam pela dívida exequenda; a incidência sobre bens que, não respondendo pela dívida exequenda, não deviam ter sido abrangidos pela diligência; prestação de garantia indevida ou superior à devida; e erro na verificação ou graduação de créditos – cfr. alíneas a) a e) do n.º 3 do art.º 278.º do CPPT. A subida da reclamação processa-se por apenso ao processo de execução fiscal [cfr. art.º 101.º, alínea d) da LGT e art.º 97.º, n.º 1, alínea n) do CPPT]. A reclamação da decisão do órgão da execução fiscal não se trata de um verdadeiro recurso jurisdicional, nem de um recurso contencioso, mas sim de um instrumento de controlo jurisdicional de um ato praticado por um órgão administrativo (daí reclamação), suscetível de afetar os direitos ou interesses do executado. A sentença proferida pelo juiz no âmbito desta reclamação é suscetível de recurso jurisdicional, nos 10 Cfr. MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014, p. 11 Código do Procedimento Administrativo. 346. 358 Da impropriedade dos embargos como meio de defesa... termos dos art.ºs 279.º e ss do CPPT. Após o trânsito em julgado da decisão da reclamação, o processo que tiver subido ao tribunal tributário de primeira instância em virtude da reclamação da decisão do órgão da execução fiscal para verificação e graduação de créditos, deve ser devolvido ao órgão de execução fiscal, nos termos do art.º 247.º do CPPT. Este meio processual é utilizado nos casos em que não seja adequado o recurso à oposição à execução (faculdade que presentemente o Supremo Tribunal Administrativo também vem reconhecendo ao cônjuge). Esta reclamação das decisões do órgão da execução fiscal ou de outra entidade da AT visa apreciar, nomeadamente, situações de indeferimento da arguição de nulidade por falta de citação, indeferimento do pedido de pagamento em prestações, indeferimento de dação em pagamento, indeferimento de compensação de créditos, indeferimento de isenção de garantia, decisão de determinação de garantia de valor superior ao devido, decisão da verificação e graduação de créditos, indeferimento da anulação da venda dos bens e indeferimento da prescrição da dívida12. A reclamação em causa é integrada no processo de execução fiscal, não dando origem a qualquer processo autónomo, salvo se subir de imediato para o tribunal tributário, em que a reclamação é apensada ao processo de execução fiscal, nos termos dos art.ºs 278.º, n.º 5 e 97.º, n.º 1, alínea n), ambos do CPPT. A subida imediata é acompanhada de cópia autenticada, pela AT, do processo principal – cfr. art.º 278.º, n.º 5 do CPPT. Compete ao órgão da execução fiscal decidir a subida imediata ou não da reclamação ao tribunal, em função do prejuízo irreparável ou da utilidade da decisão judicial. Este prejuízo deve ser invocado pelo reclamante, caso contrário compete ao órgão da execução fiscal decidir da subida imediata ao tribunal ou apenas a final, conforme dispõe o art.º 278.º, n.º 1 do CPPT. Esta reclamação não apresenta efeito suspensivo, salvo se o contribuinte prestar garantia, nos termos do art.º 199.º do CPPT, sendo que se estiver em causa a reclamação contra ao ato de penhora, pelas razões já apontadas, a reclamação terá efeito suspensivo relativamente aos bens abrangidos, pela razão do prejuízo irreparável das diligências de venda dos bens. Ademais, como se aflorou, dizer que esta modalidade de citação confere ao cônjuge os mesmos direitos processuais de que o executado pode lançar mão, significa que o mesmo poderá deduzir oposição à execução, desde que os factos que alegue se enquadrem nas previsões do artigo 204º, a que se dá particular destaque a possibilidade de arguir a sua própria ilegitimidade para ser sujeito da execução – n.º 1 alínea b).13 12 Neste sentido, MARTINS, Jesuíno Alcântara e ALVES, José Costa, Procedimento e Processo Tributário – Uma perspectiva prática, Almedina, 2015, pp. 388-389. 13 Acórdão STA 15-02-2017 Proc. n.º 0142/15; 27-06-2012 Proc. n.º 0316/12 – neste último acórdão foi admitida a convolação da petição erradamente enquadrada como de embargos de terceiro em oposição à execução, na qual o cônjuge, arguida a sua ilegitimidade para figurar na execução por a dívida tributárias ser própria do outro cônjuge e, portanto, incomunicável. 359 Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo A oposição deve ser deduzida em 30 dias a contar da citação pessoal ou, não a tendo havido, da primeira penhora ou, também, da data em que tiver ocorrido o facto superveniente ou do conhecimento pelo executado (203.º do CPPT). A oposição terá efeito suspensivo nos casos em que tenha sido prestada caução (210.º e 167.º do CPPT), para o que o cônjuge disporá de 15 dias após a dedução da oposição. A oposição é dirigida ao tribunal a primeira instância mas, como a reclamação remetida ao órgão da execução fiscal onde corre o processo, que disporá de 20 dias para a remeter ao tribunal, contados após a sua autuação (art.ºs 208.º a 210.º). Uma vez recebida pelo Tribunal, é a Fazenda notificada para se pronunciar em 30 dias. b) O cônjuge citado no âmbito do artigo 220.º do CPPT Estatui o art.º 220º do CPPT que “a execução para cobrança de coima fiscal ou com fundamento em responsabilidade tributária exclusiva de um dos cônjuges, podem ser imediatamente penhorados bens comuns, devendo, neste caso, citar-se o outro cônjuge para requerer a separação judicial de bens, prosseguindo a execução sobre os bens penhorados se a separação não for requerida no prazo de 30 dias ou se se suspender a instância por inércia ou negligência do requerente em promover os seus termos processuais.” O processo de separação judicial de bens ou de simples separação judicial de bens, como o define o Código Civil (art.º 1767.º), é um processo litigioso, intentado por um dos cônjuges contra o outro (art.º 1768º do CC) “quando estiver em perigo de perder o que é seu pela má administração do outro cônjuge”, especificamente neste caso, quando está na iminência de perder a sua parte nos bens comuns, por via das dívidas tributárias de que apenas é responsável o outro cônjuge. Não tem efeitos sobre o estado civil dos cônjuges, que permanecem no estado de casados e não separados de pessoas (que vem a ser um regime intermédio previsto no Código Civil de 1966 para dar resposta à impossibilidade de divórcio dos católicos prevista na Concordata de 1940, mas que se manteve em vigor após a reforma de 1977, e que pode terminar em divórcio ou na reconciliação dos cônjuges). A simples separação de pessoas apenas efeitos sobre o regime de bens do casamento, sendo que após o seu decretamento passará a vigorar entre os cônjuges o regime da separação de bens (art.ºs 1770.º e 1735.º, ambos do CC), sendo irrevogável (art.º 1771.º). Por não se incluir em nenhuma das previsões do n.º 1 do art.º 122.º da LOSJ 14, tratando-se de um processo de natureza patrimonial e não de um processo de jurisdição voluntária, deve ser intentado sob a forma de processo comum, num tribunal de jurisdição cível, carecendo os tribunais de família de competência para a sua 14 Lei da Organização do Sistema Judiciário 360 Da impropriedade dos embargos como meio de defesa... tramitação15. Por outro lado, o cônjuge afetado, de forma a dar cumprimento ao disposto no comando do art.º 220.º do CPPT e assim validamente proceder à separação do seu património, salvaguardando a sua meação no património comum da penhora ou outra diligência que o afete, deve imperativamente recorrer a esta forma, sendo insuficiente requerer o divórcio ou a separação de pessoas e bens pelas vias não litigiosas, nomeadamente junto da Conservatória do Registo Civil e procedendo a uma partilha amigável no meso ato ou, posteriormente, junto de um cartório notarial. Assim procedendo, não estão reunidos os pressupostos para o levantamento da penhora anterior ao registo da partilha amigável, devendo a execução prosseguir contra tais bens, até à venda.16 c) O cônjuge não citado A propósito da citação e da falta dela, para intervir como parte no processo de execução fiscal, diz o art.º 165.º do CPPT, que versa sobre o regime das nulidades no âmbito do processo judicial tributário: “1 - São nulidades insanáveis em processo de execução fiscal: a) A falta de citação, quando possa prejudicar a defesa do interessado; b) A falta de requisitos essenciais do título executivo, quando não puder ser suprida por prova documental. 2 - As nulidades dos actos têm por efeito a anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente, aproveitando-se as peças úteis ao apuramento dos factos. 3 - Se o respectivo representante tiver sido citado, a nulidade por falta de citação do inabilitado por prodigalidade só invalidará os actos posteriores à penhora. 4 - As nulidades mencionadas são de conhecimento oficioso e podem ser arguidas até ao trânsito em julgado da decisão final.” Destacando o comando ínsito na alínea a) do número 1, a citação apenas conduz à nulidade do ato quando prejudicar a defesa do interessado, pelo que a jurisprudência vem distinguindo as situações em que existe uma omissão formal da citação, as o cônjuge teve conhecimento efetivo da execução, dos seus termos ou de atos essenciais ao desenrolar do processo executivo, como da penhora, de outras situações em que a citação, devida nos termos do art.º 239.º, por a penhora ter incidido sobre bens imóveis ou bens moveis sujeitos a registo, ou nos termos do art.º 220.º, para que o cônjuge proceda à propositura da ação de separação judicial de bens, não foi efetivamente 15 16 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 13-07-2016, Proc. n.º 28733-15.0T8LSB.L1.-2 Acórdão STA 02-04-2014 Proc. n.º 0213/14 361 Miguel de Antas de Barros e Patrícia Anjos Azevedo dirigida ao cônjuge. Ora, enquanto num caso que se enquadra na primeira das hipóteses, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu que “a omissão da citação da Recorrente nos termos e para os efeitos do artº 302º do C.P.T. (actual 220º do C.P.P.T.) em nada prejudicou a defesa dos interesses da Recorrente, inexistindo a alegada nulidade prevista no artº 165º nº 1 al. a) do C.P.P.T.”17 salientando com veemência que a cônjuge havia tido conhecimento da penhora até porque era a fiel depositária do imóvel penhorado e depois objeto de venda, noutros em que estava em causa uma efetiva omissão de citação, fosse a prevista para a separação de património, fosse a referente ao art.º 239.º do CPPT , o mesmo tribunal vem decidindo pela declaração de nulidade de todo o processado após ao ato omitido, ordenado a sua repetição, uma vez que se perspetiva esta falta como violadora do núcleo essencial de direitos do cônjuge, tanto mais que no caso do art.º 239.º, a sua citação lhe permitiria vestir a pele de co-executado, exercendo no processo os mesmos direitos que o executado poderia exercer.18 4) Conclusão Este contributo não pretendeu tratar exaustivamente todas as possibilidade que se abrem através do chamamento (ou não) e em face das várias modalidades de intervenção do cônjuge no âmbito do processo executivo de natureza tributária, seja ele ou não co-devedor (mas sobretudo quando não o é), mas antes um constatar de perplexidades iniciais que se abriram perante o enquadramento que os tribunais superiores da jurisdição administrativa e fiscal vêm dando a esta matéria e dos alertas que suscitam algumas das subtilezas que a forma do processo tributário encerra, quando em confronto com mecanismos paralelos, mas de soluções diferentes que o legislador reservou para o direito civil adjetivo. A urgência da desambiguação proposta no presente contributo sobe de tom pela constatação da diferente medida de prazos facultados ao interessado para se socorrer dos mecanismos previstos, o que pode, quando acionados de forma desacertada tornar-se um fator impeditivo da convolação do processo no meio adequado (art.º 98.º, n.º 4 do CPPT). REFERÊNCIAS CAMPOS, Diogo Leite de e SOUTELINHO, Susana, Direito do Procedimento Tributário, Almedina, 2013. FONTES, José, Curso sobre o novo código do procedimento administrativo, 5.ª edição, 17 18 Acórdão STA de 02-12-2009, Proc. n.º 0143/09 Acórdão STA de 14-09-2016 Proc. n.º 0971/16 362 Da impropriedade dos embargos como meio de defesa... Almedina, 2015. MARTINS, Jesuíno Alcântara e ALVES, José Costa, Procedimento e Processo Tributário – Uma perspetiva prática, Almedina, 2015. MORAIS, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2014. NETO, Serena Cabrita e TRINDADE, Carla Castelo, Vols. I e II, Almedina, 2017. ROCHA, Joaquim Freitas, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008. SOUSA, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Vol. I, Áreas Editora, 2011. LGT, disponível online em:http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=253&tabela= leis . Código Civil, disponível online em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis . Código de Processo Civil, disponível online em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1959&tabela=lei s. CPPT, disponível online em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=256&tabela=leis . CPA, disponível online em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2248&tabela=lei s. Lei da organização do sistema judiciário, disponível online em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1974&tabela=lei s. 363