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Curso pós-graduação Segundo semestre de 2018 Revolução Política, instauração estética Prof. Vladimir Safatle Departamento de Filosofia Universidade de São Paulo Revolução política, instauração estética Aula 1 Este curso parte de uma tese fundamental que talvez não devesse ser enunciada logo de início. Talvez fosse melhor deixa-la aparecer em filigrana, aos poucos no interior de um debate sobre a arqueologia do conceito moderno de revolução. No entanto, que me perdoem, mas eu gostaria de colocá-la logo no início, mesmo que ela talvez provoque uma sequência grande de mal-entendidos que só serão aos poucos redimidos no período de um semestre. Pois talvez seja o caso de apresenta-la em sua crueza, talvez essa crueza tenha mesmo uma razão de existência. Há coisas que só se mostram em sua crueza e é possível que essa seja uma delas. A tese a ser defendida diz que o conceito político de revolução tal como o entendemos atualmente é, sobretudo, o resultado de um contágio entre política e estética. Nossa ideia de revolução, esta ideia que aparece como tão decisiva para nossas concepções de transformação social e política é, antes de tudo, uma ideia estética. Uma maneira pouco producente de dizer isto seria afirmar que a revolução é simplesmente um conceito estético, um pouco como alguns que afirmam ser a revolução um conceito teológico, baseados em perspectivas messiânicas e em crenças a respeito da Providência no interior da história. Pois isto poderia parecer que seria o caso de afirmar que a revolução traz no seu bojo a possibilidade de alguma forma de estetização da existência. É certo que a instauração produzida por uma revolução efetiva não é sem consequências na mudança nas estruturas sociais da sensibilidade e da percepção. Há uma mutação das condições do visível e o do sensível, uma reinstauração do espaço e do tempo em toda revolução realiza. Não por acaso, uma das primeiras decisões motivadas pela Revolução Francesa foi a mudança no calendário, na forma de medir o tempo. Não por acaso a modernidade conhecerá aqueles que exigirão uma “revolução total em toda sua maneira de sentir” SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, p. 129, como diria Schiller em sua exigência de reinstaurar vínculos sociais renovados a partir de uma educação estética do homem. Mas, na verdade, a questão que gostaria de insistir está em outro lugar. Sabemos que uma revolução não é apenas uma mudança no governo ou na forma de governar. Não se trata de simplesmente descrever a modificação nas figuras que ocupam o poder, mas na própria definição do que “poder” realmente significa. A queda de um rei, a instauração de uma república: nada disto é necessariamente uma revolução. Por outro lado, mesmo que problemas como a pobreza e a radicalização de crises econômicas possam fazer parte das dinâmicas de desencadeamento de uma revolução, há de sempre lembrar que uma revolução não é apenas uma luta por redistribuição de bens e riquezas, ou antes, ela o é apenas na medida em que tal redistribuição aparece, de forma imanente, como a expressão da mutações estruturais na gramática do poder. Podemos pensar em processos bem sucedidos de redistribuição que não representam revolução alguma. Mas pode-se modificar tal gramática do poder a partir de dois eixos fundamentais, a saber, a partir do conceito de demos ou do conceito de kratos. Ou seja, pode-se pensar revoluções como a emergência do demos à cena do político, a presença, pela primeira vez, daqueles até então não-contados, aqueles aos quais não era dado existência política alguma. Neste sentido, o conceito de “povo” aparece como o conceito político central. Ou pode-se ainda pensar a revolução como a emergência de outro kratos. Insistamos neste segundo aspecto porque nem todas as formas de emergência do povo no interior da cena do político podem ser descritas como “revoluções”. Para ficarmos em apenas um exemplo, o povo é também o conceito central dentro das dinâmicas de consolidação do populismo em suas múltiplas vertentes. O populismo é a constituição do povo como conceito político fundamental a partir de uma plebe até então invisível no interior das dinâmicas do poder. Da mesma forma, o povo também é o eixo central de todas as lutas por nacionalidade e nacionalismos, pela constituição do Estado-nação em suas definições identitárias. Em nenhum destes casos podemos falar em emergência revolucionária do povo. Mas há algo que talvez possa servir de primeiro elemento de distinção da revolução como processo político, a saber, toda revolução será a emergência de um outro kratos, de uma outra concepção de força. Só uma revolução modifica a força que anima o exercício do poder, não porque ela instaure a força em outros agentes, mas porque ela desconstitui sua gramática. Ao modificar a força que define o exercício do poder, uma revolução abre as possibilidades efetivas para a instauração de novas formas de vida. Por isto, talvez a melhor maneira de começar um curso sobre o conceito de revolução seja lembrar mais uma vez do contexto do primeiro uso explicitamente moderno do termo. Tudo indica que teria sido na noite de 14 de julho de 1789 quando o duque de La Rochefoucauld-Liancourt informou a Luís XVI sobre queda da Bastilha, a libertação dos prisioneiros e a vitória das forças populares contra as tropas do rei. “É uma revolta!” teria dito o rei. “Não”, diz o duque, “É uma revolução”. Naquele momento “revolução” significava algo irresistível e para além de toda força humana, um pouco como os movimentos astronômicos. Pois sabemos como “revolução” significava até então o movimento astronômico de corpos celestes que giram em torno de um corpo de massa maior e voltam ao mesmo ponto, tal como em um círculo (para Copernico) ou uma elipse (para Kepler). Copérnico foi o primeiro a nomea-la assim através do seu “Da revolução das esferas celestes”, de 1543. Isto permitira a Hobbes falar da Revolução Inglesa de 1640 a 1660: “I have seen in this revolution a circular motion”. Como se o tempo histórico fosse fechado em si mesmo e passível de repetição. Mas naquele momento, a metáfora foi utilizada para falar de uma força que a todos tragava, que levava os sujeitos a fazerem ações que eles sequer julgavam capazes até então, que eles sequer haviam projetado como um horizonte próprio às suas representações conscientes. Em uma revolução, as sociedades seriam atravessadas pelo caráter incontrolável da força de algo que será chamado a partir de então de “história” e que não se reduziria à somatória dos sistemas de interesses do indivíduos ou da compreensão das consciência individuais. Tal como a força de atração do Sol colocaria a Terra em movimento, a força de atração da história colocaria os sujeitos em movimento à sua própria revelia. Não por outra razão, alguém para quem a Revolução Francesa será o fenômeno decisivo dirá a respeito do processo histórico: Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. 42. Ou seja, a história é feita por ações nas quais os sujeitos não se enxergam, nas quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que constitui o campo da história. Ou melhor dizendo, há um motor da história que para a consciência individual aparecerá necessariamente como algo da ordem do inconsciente. É a confiança neste involuntário, neste inconsciente que constitui os “sujeitos históricos”. Algo no mínimo estranho se continuarmos aceitando que há uma espécie de reconciliação entre consciência e tempo rememorado no interior da história. Reconciliação peculiar na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão daquilo que ela mesma não enxerga, pois se trata de reconciliação com aquilo com o qual ela não saberia como dispor, não saberia como colocar diante de si em um regime de disponibilidade. De certa forma, sujeitos históricos não estão sob a jurisdição de si mesmos, pois estão continuamente despossuídos por suas próprias ações. Não deveríamos falar de uma “consciência histórica”, mas talvez de um “inconsciente histórico”. A história seria pois o espaço da manifestação de uma força que destitui os indivíduos de seu próprio domínio e esta destituição se realiza da maneira mais acabada na eclosão de uma revolução. Por isto, esta força transmutaria os agentes, modificaria as estruturas das deliberações, destituiria os lugares do poder. Como dirá Reinhart Koselleck, estamos a falar de um “coletivo singular” que: Permitiu que se atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pode acreditar–se responsável ou mesmo em cujo nome pôde acreditar estar agindo KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado, p. 51. Mas poderíamos nos perguntar o que a noção de “plano” está a fazer aqui. Seria mesmo um plano aquilo que parece muito mais nos abrir à deriva e ao impredicado? Ou que há de plano e o que há de aposta em uma revolução? Se é verdade, como dizia Jules Michelet, que “Toda revolução é um lance de dados”, então o que há exatamente de “plano” em um lance de dados? Não deveríamos repensar os filosofemas da decisão, da agência, por fim, da consciência diante dos processos revolucionários? Neste sentido, é interessante lembrar neste contexto como alguém como Hannah Arendt verá nisto um certo paradoxo: Era como se uma força maior do que o homem interviesse no momento em que os homens começavam a afirmar sua grandeza e a defender sua honra (...) As várias metáforas que mostram a revolução não como uma obra dos homens, mas como um processo irresistível, as metáforas de ondas, torrentes e correntezas, ainda foram cunhadas pelos próprios atores, que, por mais que tivessem se inebriado com o vinho da liberdade em abstrato, visivelmente não acreditavam mais que fossem agentes livres ARENDT, Hannah; Sobre a revolução, p. 81. Como se vê, o paradoxo aqui ficaria por conta de um fenômeno, feito em nome da liberdade e da autonomia dos indivíduos, ser pensado como a submissão a uma força incontrolada, comparável a fenômenos naturais como ondas, correntezas e turbilhões. Sim, para Arendt os únicos fenômenos políticos de transformação seriam aqueles que confirmam a forma prévia dos indivíduos portadores de interesses e capazes de deliberar através da consolidação de sua vontade autônoma. Há uma psicologia na base desta avaliação política, há uma antropologia no fundamento normativo desta avaliação de processos históricos. É esta psicologia que talvez decaia quando uma revolução eclode. Por isto, talvez devamos levar a sério a possibilidade de que o espanto de Arendt venha do fato das revoluções serem exatamente a emergência de outra forma de kratos, de outra força cuja matriz mereceria uma análise mais detalhada. Isto nos coloca questões fundamentais a respeito do que significa, afinal, uma ação revolucionária. Quem age e, principalmente, como se age? Agimos como quem executa um plano a ser realizado ou como quem aceita entrar em um movimento incontrolado de deriva? Aqueles que produzem revoluções sabem que estão a faze-lo e o que estão a faze-lo ou são aqueles que aceitam ser suportes de um processo sem horizonte definido? Compreendamos a importância decisiva deste ponto. É possível dizer que somos ainda tributários de uma concepção de política na qual a noção mesma de força é indissociável de uma ipse. Trata-se de um krátos que é manifestação de uma ipse, de uma potência de realizar a condição de ser si mesmo. Poderíamos mesmo sugerir como definição: a democracia, tal como a conhecemos, procura aparecer como o espaço social de manifestação da força de ser si mesmo. Sua racionalidade baseia-se na crença de que sujeitos partilham um desejo fundamental: o desejo de dotar-se da força de ser si mesmos. O que é, na verdade, apenas o começo do problema, não sua solução. Pois lembremos esta colocação astuta de Jacques Derrida: Por ipseidade eu subentendo algo como um ‘Eu posso’ ou ao menos o poder que dá a si mesmo sua lei, sua força de lei, sua representação de si, a reapropriação de si na simultaneidade do estar juntos ou da assembleia, do viver junto, como se diz DERRIDA, Jacques; Voyous, p. 30. Ipseidade, ser si mesmo, aparece aqui em uma declinação bastante significativa. Ela aparece indissociável da capacidade de dar para si mesmo sua própria lei, de representar-se a si mesmo e de estar em assembleia na condição de quem conserva para si sua própria força. O que pressupõe uma identidade fundamental entre a lei e o caso, entre a representação e o representado, entre o estar junto e o estar em seu próprio domínio. Identidade esta que tem uma origem, que se origina na sobreposição não tematizada entre um fundamento metafísico e um exercício político. Tentemos entender melhor este ponto. Insistir que a democracia é o espaço social de manifestação da força de ser si mesmo significa entre outras coisas que, por mais que uma sociedade democrática seja uma sociedade antagônica, caracterizada pelo reconhecimento da produtividade de conflitos sociais, acreditamos normalmente que a multiplicidade das perspectivas pode se incorporar em um demos, em um povo, nem que seja expulsando parte da população da condição de povo. Esta multiplicidade pode se incorporar em um demos, porque o desdobramento da multiplicidade é a expressão de uma força que nunca sai de si mesmo. Em democracia, o povo é o nome deste movimento de atualizar o que nunca sai de si mesmo, de colocar em assembleia o que conserva sua própria determinação. Neste sentido, os conflitos sociais aparecem como modos de desdobramento de uma força convergente própria a sociedades que agem de forma imanente, como se tais sociedades fossem, ao mesmo tempo, causa e efeito, origem e produção. Lembremos, por exemplo, Tocqueville falando da América como uma sociedade democrática por excelência, já que seria uma sociedade que: “acts by itself and for itself. There are no authorities except within itself; one can hardly meet anybody who would dare to conceive, much less to suggest, seeking power elsewhere”. A colocação de Tocqueville é interessante por definir a democracia como um corpo político marcado por certa univocidade potencial imanente, univocidade esta que se manifesta e se atualiza através de uma multiplicidade de vozes. Neste sentido, dizer que a revolução é a emergência de um kratos, de certa forma, sem ipse, que coloca os sujeitos fora da jurisdição de si mesmos implica aceitar que ela coloca em questão os conceitos políticos reguladores de povo, de identidade, de decisão. Talvez por isto, para o pensamento liberal, uma verdadeira revolução é uma monstruosidade que sempre coloca em risco a democracia. Talvez porque uma verdadeira revolução sempre colocará em questão a metafísica imanente à democracia. Tempo em ruptura Notemos, antes de discutir diretamente este ponto, como o sentido de movimento do que volta ao mesmo ponto, presente na concepção astronômica de revolução, já se perdeu. O advento de uma força até então impredicada produziria consequências maiores e imprevistas na configuração da vida social. As sociedades ganhariam contornos nunca vistos, ou seja, o tempo entraria em um movimento de produção do novo, ele entraria em progressão e colapso. O tempo deixa em definitivo de ser uma historia magistra vitae na qual o presente deveria reproduzir os fatos notáveis do passados, como se estivéssemos em um continuum temporal ininterrupto, para ser um movimento sem modelo existente. Ou seja, um tempo em ruptura. Podemos seguir certas elaborações de Reinhart Koselleck a fim de lembrar como, a partir da Reforma protestante, o tempo parece entrar em aceleração. Era como se o tempo se acelerasse para encontrar a realização de seu destino. Algo disto estará presente na realização mesma do conceito moderno de revolução: Para Lutero, a abreviação do tempo é um sinal visível da vontade divina de permitir que sobrevenha o Juízo Final, o fim do mundo. Para Robespierre, a aceleração do tempo é uma tarefa do homem, que deverá introduzir os tempos da liberdade e da felicidade, o futuro dourado. Ambas as posições, assim como o fato de que a Revolução derivou da Reforma, marcam o início e fim do período aqui considerado KOSELLECK, Reinhart; Futuro passado, p. 25. O tempo rompe com as reproduções do passado, ele se projeta em progressão a fim de realizar aquilo que suspende o próprio tempo. Neste sentido, notemos como o conceito de Revolução reorganizará a experiência do tempo histórico, do tempo em ruptura. Ele se transformará no eixo fundamental da própria noção de política nos séculos XIX e XX. Mas percebamos a peculiaridade desta progressão. Inexiste revolução que não seja, ao mesmo tempo, um movimento para frente e para trás. Toda revolução é, ao mesmo tempo, um processo de ressonância e repetição. 1789, 1848, 1871, 1917, 1949: todas essas datas entram em profundo processo de ressonância, como se fosse questão de reinscreve-las constantemente. Elas atualizam as outras, ressuscitam seus atores, criando uma outra forma de continuidade processual. E a primeira dessas datas, 1789, só pode existir ao se ver como repetição da antiguidade grega e romana: A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de ‘agoras’, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de história, p. 230. Pode parecer um paradoxo que a produção do novo seja feita sempre com recurso à redenção do passado. Mas isto nos mostra como o tempo em ruptura da revolução não é nem nunca será a anulação do passado. Ele será sua contração, a contração do tempo em um tempo de atualização espectral que dá a cada gesto a densidade de um multiplicidade de momentos. O que nos permite colocar uma questão importante, a saber, o que significa um tempo, como o nosso, para o qual o conceito de revolução parece ter perdido toda relevância? Que tipo de tempo é o nosso no interior do qual esta contração produzida pelas revoluções parece não ter mais lugar? Pois lembremos como, a partir dos anos oitenta do nosso século, seu lugar central no processo de realização das expectativas de emancipação social será cada vez mais questionado. Este abandono foi feito, muitas vezes, em nome de análises históricas que apontavam para, em larga medida, três fatores, a saber: a transformação dos processos revolucionário do século XX em sociedades burocráticas, a inexistência atual de sujeitos políticos capazes de se colocar como agentes naturais da ação revolucionária desde a integração da classe trabalhadora do proletariado ao estado do bem-estar social; por fim, a dependência do conceito de revolução em relação a uma filosofia da história de cunho teleológico e necessitarista. Como se a revolução, como forma de insurgência, fosse indissociável da perda de seu élan transformador, a partir do momento em que passasse à condição de governo, ou indissociável de uma teleologia que destrói toda possibilidade de acontecimentos em prol de uma filosofia do progresso histórico. Mas argumentos historicamente situados desta natureza são limitados. Que as primeiras realizações do conceito de revolução tenham se esgotado não implica que estejamos diante de uma limitação imanente à potência do próprio conceito. Da mesma forma que as primeiras atualizações do conceito de república demonstraram-se falhas sem que o próprio conceito de república fosse, por isto, descartado. A revolução é um conceito a ser construído a partir de sua revisão interna. Para além do problema complexo da violência (até porque, há situações nas quais a insurreição revolucionária tem violência direta meramente residual), deveríamos insistir no fato de haver outra força que a revolução permite emergir e é isto que as teorias atuais da democracia tem dificuldade em aceitar, ou seja, que na esfera do político a primeira transformação necessária seja no conceito de “força”. Não se trata apenas de pensar a revolução como emergência da força de outros agentes que até então estavam em posição subalterna ou não-contada. Trata-se de compreender que a revolução é, inicialmente, processo de destituição da própria noção de agência que até agora imperou. Antes de ser uma ação ou um conjunto coordenado de ações, uma revolução é a destituição de certa agência, ela é o abandono de certa ideia de ação e, assim, o fim de certo conceito de sujeito. Por isto, toda revolução é o campo de emergência de uma força até então impossível de passar a existência e de uma subjetividade até então impredicada. O contágio entre estética e política É neste ponto que podemos abordar a hipótese da revolução moderna como produção de um contágio entre política e estética. Primeiro, é claro que um dos eixos fundamentais sobre a noção de tempo em ruptura vem inicialmente da estética, em especial, da chamada Querelle des anciens e des modernes. É aqui que pela aparece primeira vez a noção de tempos modernos como horizonte de auto-certificação que não apela mais à repetição de tradições e autoridades estabelecidas. À arte cabe a repetição imemorial dos padrões dos antigos ou deve ela saber impor padrões próprios a singularidade do presente? Os padrões antigos são insuperáveis e exemplos sempre a imitar ou há um progresso dos materiais que faria a superioridade da arte do presente? Essas questões inauguravam a consciência da irredutibilidade dos tempos modernos, da ruptura própria ao moderno. Lembremos, por exemplo, de Charles Perrault, representante dos modernos ao dizer, em um texto de 1688-1692: Não digo que os séculos de Alexandre e de Augusto tenham sido bárbaros, eles foram tão polidos quanto puderam ser, mas pretendo que a vantagem que tem nosso século de ter vindo por último e de ter aproveitado os bons e maus exemplos dos séculos precedentes o fez mais o sábio, o mais polido e o mais delicado de todos. Os Antigos disseram boas coisas misturadas a coisas medíocres e ruins, mas os Modernos tiveram a felicidade de poder escolher, eles imitaram os Antigos no que estes tinham de bom, eles se dispensaram de segui-los no que estes tinham de ruim ou de medíocre PERRAULT, Charles; Parallèle des Anciens e des Modernes, p. 367. O último século tem a vantagem de progredir em relação aos demais, de aperfeiçoar o que recebe, pois a excelência ainda não foi alcançada em toda sua extensão. As artes nos mostrariam assim a possibilidade de formas em progressão. Como veremos, esta questão foi fundamental para a consolidação da consciência de um tempo histórico em ruptura e em progressão contínua que encontrará sua expressão política privilegiada sob a forma da revolução como destino. No entanto, há uma dialética que devermos saber como manobrar aqui. Como disse anteriormente, Robespierre via-se como alguém a ressuscitar os antigos: A revolução francesa não se queria moderna, ao contrário, ela gostaria de restabelecer uma ordem natural na sociedade que teria sido modificada pelos progressos das ciências e das artes. Arriscando confundir o antigo e o original, ela pensava encontrar nos gregos e romanos os exemplos os mais perfeitos MILNER, Jean-Claude; Relire la révolution, p. 11. Mais do que simplesmente romper com o passado, a verdadeira questão posta pela revolução é a capacidade de operar em um tempo plástico no qual nada está definitivamente morto. A consciência de modernidade não será apenas a consciência de um tempo que deve encontrar em si mesmo seus próprios critérios de auto-certificação. Ela será o advento da consciência da simultaneidade e da reversibilidade contínua. No entanto, há um elemento decisivo que fará da estética o campo de uma outra política e ele concerne exatamente o conceito de “força”. É importante insistir na matriz estética, neste contexto, para cortar curto uma forma de deslegitimar as ações revolucionárias como secularizações de pressuposições teológicas e messiânicas. Como se o tempo em ruptura que o conceito de revolução expressa fosse, ao fim e ao cabo, herdeiro direto de um necessitarismo que só se sustenta por basear-se na crença da Providência da história. Gostaria de mostrar, no entanto, como esta matriz de interpretação é mobilizada para desqualificar a revolução enquanto projeção messiânica. Contra ela, devemos lembrar como, ao contrário, revoluções são processos temporais marcados pela contingência, pela abertura e pela reconfiguração das dinâmicas da ação. Sua matriz não vem da teologia, ela vem da estética. Pois foram as artes que nos ensinaram a incorporar, no interior da vida social, a figura de uma força que é, ao mesmo tempo, produto da ação humana e superação do horizonte da ação guiada pela consciência. Ao que é a realização de nós mesmos para além de nós mesmos. Esta consciência de uma força que ultrapassa nosso horizonte de controle já estava presente no Ocidente ao menos desde os gregos. Lembremos, por exemplo, como na Grécia Antiga os modos musicais eram estritamente associados à produção de certos afetos. Assim, por exemplo, o modo mixolídio seria associado a afetos lamentosos, da mesma forma que o modo lídio produziria afetos mais próximos da embriaguez, da moleza e da preguiça. Lembremos, neste sentido, da razão pela qual Platão interdita certos modos serem executados no interior da República. Há uma relação profunda entre música e efeito moral que aparece, por exemplo, no seguinte diálogo entre Sócrates e Adimanto : - Logo o posto de guarda devem eles erigi-lo, ao que parece, nesse lugar : na música / - Não é por aí que a inobservância das leis facilmente se infiltra passando despercebida? / - É – confirmei eu – a modo de brincadeira, e como quem não faz nada de mal. / - Nada mais faz, na realidade, do que introduzir-se aos poucos, deslizando mansamente pelo meio dos costumes e usanças. Daí deriva, já maior, para as convenções sociais; das convenções passa às leis e às constituições com toda a insolência, ó Sócrates, até que, por último, subverte todas as coisas na ordem pública e na particular PLATAO, A República, Calouste Gulbenkian : Lisboa, 424c. Notemos um ponto importante neste trecho. A força dada por Platão à música, sua capacidade de deslizar por meio dos costumes até subverter todas as coisas na ordem pública e particular é indissociável do que poderíamos chamar de sua ação inconsciente. A música tem uma força de παρανομια, de estar fora do nomos, que se desenvolve de maneira λανθανει, sem se fazer perceber, de forma furtiva. Daí porque são as fronteiras da música que a polis deve primeiramente controlar se não quiser ser tomada por subversões. Muito mais do que limitar a circulação de certos efeitos morais na cidade, há um problema mais fundamental vinculado à música enquanto tal. Pois trata-se de impedir que ela se desenvolva como força do que não se controla. Se a educação precisa contrabalançar a música pela ginástica, operando pela neutralização de dois princípios antagônicos é porque, sem o exercício de auto-controle próprio à ginástica a música nos feminiza. Ela feminiza no sentido grego de nos colocar diante de paixões que nos assujeitam, no sentido (expressão da misoginia grega) de sujeitos que não são mais senhores de si. A música não nos leva a ser autônomos pois nos mostra, pelo seu próprio mecanismo, como deixamos de ser senhores de nossos afetos, como somos causados por afetos que nos são externos, como ficamos a mercê da heteronomia. Por isto, a comunidade política exige que a arte mais insidiosa, mais apta a subverter as coisas na ordem pública e particular, seja submetida de forma estrita a uma moral, seja limitada no desenvolvimento imanente de seus materiais, seja submetida a estereotipia de suas reproduções. Esta associação entre música, moral e política continuará praticamente intocada até Rousseau, um filósofo muitas vezes visto como precursor do romantismo mas com uma teoria musical, em larga medida, paradoxalmente anti-romântica devido ao seu naturalismo extremo. A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda fala) como fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo doador de sentido, como transparência e proximidade. Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da disseminação da representação devido ao ideal estético de clareza e comunicação (o que explica boa parte da luta de Rousseau contra uma música na qual a expressão melódica estaria submetida aos jogos e modulações harmônicas). Esse naturalismo musical, que submete a música ao “prazer moral da imitação” ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208 enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por vir (ou seja, há uma submissão completa entre música e moral em Rousseau, tal como houvera antes em Platão), faz da expressão do compositor o uso consciente de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressão do compositor a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Daí porque o compositor deve: “conhecer ou sentir o efeito de todos os caráteres a fim de levar exatamente este que ele escolheu ao grau que lhe convém” Idem, p. 207. Da mesma forma, os instrumentos terão sua expressão própria: a flauta é tenra, o trompete é guerreiro, a trompa é majestosa, etc. Ou seja, aqui também trata-se muito mais de representação de regimes gerais e estáveis de afecção do espírito, de uso objetivo de uma paleta de efeitos disponíveis, do que propriamente de expressão. Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música como horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e recuperação de dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de que a alienação social é indissociável da degradação da linguagem no espaço político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas: “toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas” Idem, Essai sur l’origine des langues,. Uma língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência, afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e comunicacional que os separa. A língua do povo em assembleia, ao contrário, é aquela mais próxima do canto e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem música. No entanto, mais uma vez, a força política da música exige a recusa de sua autonomia, a recusa do desenvolvimento imanente de seus materiais. Para preencher sua força política própria, a música deve se submeter a uma moral, ela não deve criar um ethos a partir do desenvolvimento imanente de seus materiais. Por isto, trata-se de exigir a fundamentação dos modos de expressão em um solo natural e originário pensado como horizonte normativo estrito. Em todos esses casos, fica clara a ideia de que, diante das artes, a sociedade encontra uma força que pode derivar ao descontrole. Por isto, o exercício político de regular através de sua submissão à uma moral que garanta a reprodução material das formas hegemônicas de vida. Uma arte liberada da moral, como a modernidade produzirá de forma paulatina, será a matriz para o redimensionamento da experiência política e sua transformação efetiva. A era das revoluções será também a era do sublime, da expressão desprovida de mimesis, da autonomia da forma estética que aponta para o advento de uma comunidade por vir. Estes dois processos são completamente interligados e incompreensíveis se não aceitamos suas relações. Estrutura do curso Neste sentido, a fim de levar a cabo o projeto de pensar os processos de contágio entre revolução política e instauração estética, proponho um curso que tem três módulos nos quais será questão de três momentos da relação entre revolução política e instauração estética: o iluminismo francês, o pensamento revolucionário marxista com seus vínculos com o romantismo e a relação entre modernismo e revolução no século XX. Cada um desses módulos deve durar algo em torno de quatro seminários. No primeiro módulo, será questão da relação entre estética e política no iluminismo francês. Acompanharemos a constituição da noção de “tempos modernos” desde a querela dos antigos e modernos e chegaremos às críticas de Rousseau à alienação da sociedade moderna (“Ensaios sobre a origem das línguas”), assim como a defesa do progresso feita por Condorcet (‘Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”). No segundo módulo, será questão das relações entre romantismo e revolução. Começaremos pela consolidação da filosofia da história em Hegel (“Curso sobre a filosofia da história- introdução”) e trabalharemos os Manuscritos econômicos-filosóficos e o 18 do Brumário, de Marx. A ideia fundamental é defender não apenas o paradigma estético como horizonte fundamental de crítica à alienação em Marx, um pouco como já se fez (Habermas, Alfred Schmidt), mas tentar expor as matrizes estéticas do conceito de sujeito revolucionário em Marx. Isto exigirá uma discussão a respeito da constituição da noção de proletariado, para além de sua descrição como classe sociológica dos trabalhadores que não tem nada mais que a possibilidade de venda de sua força de trabalho como mercadoria. Conto fazer isto através da operação a mais improvável possível, ou seja, recuperando o desenvolvimento de certos princípios formais de construção no romantismo musical e em suas categorias de expressão, de sublime e de autonomia. Por fim, o terceiro módulo será dedicado às relações entre modernismo e Revolução Russa. O texto a ser lido é “Estado e revolução”, de Lenin, além de discussões sobre o construtivismo e o suprematismo. Revolução política, instauração estética Aula 2 Em 1687, o escritor francês Charles Perrault lia, na Academia Francesa, um texto em verso intitulado: O século de Luís, o grande. Este texto era visto como o iniciador de uma querela que já mostrava indícios na renascença italiana e que ainda alcançará o Reino Unido e a Alemanha. A querela está bem anunciada já nas primeiras estrofes: A bela Antiguidade sempre foi venerável, Mas nunca acreditei que ela fosse adorável. Vejo os Antigos sem dobrar o joelhos, Eles são grandes, é verdade, mas homens como nós E podemos comparar sem temer ser injusto O século de Luís e o belo século de Augusto FUMAROLI (org.); La querelle des anciens et des modernes, p. 257. Ou seja, seriam nossos padrões estéticos uma mera repetição do que teria sido produzido na Antiguidade greco-romana ou a comparação entre o século de Luís XIV e o século do imperador romano Augusto nos permitiria colocar questões a respeito do progresso das técnicas e do aperfeiçoamento do juízo de gosto? Pois se o segundo caso for correto, então nada nos impede de avaliar as artes da antiguidade a partir de padrões de perfeição próprios ao presente, isto ao invés de perpetuar o caminho inverso: Mas se a arte da qual nunca podemos contenta-la Descobre defeito que podemos imputa-la Se do Laocoonte o tamanho venerável É deste dos filhos muito distanciado E se os muitos corpos de serpentes inumanas Ao invés de duas crianças agarram duas anãs Se o famoso Hércules tem diversas partes Nas quais músculos fortes em demasia são ressentidos Ainda que sábios da antiguidade empedernidos Elevem tais defeitos a grandes belezas Devem eles nos forçar a nada ver de raro Nas obras-primas que Versalhes se dá Que a todo homem que acredita em seus olhos Não acha ser menos belo por não ser mais velho? idem, p. 266 Não foram poucos os que perceberam que por trás desta questão apresentava-se pela primeira vez, de forma sistemática, a emergência de um tempo histórico que deveria retirar de si mesmo seus próprios padrões de validade e certificação. A querela não versava sobre a aparência de anãos dos filhos de Laocoonte, mas sobre a possibilidade de submeter o passado aos critérios de validade do presente. Ou antes, de compreender o presente como um tempo de ruptura em relação aos padrões de repetição do passado. Não mais um círculo, o tempo poderia ser visto como uma espécie de linha em progressão cujo horizonte destinal se desdobraria continuamente. Esta é uma compreensão que podemos encontrar de forma clara em Habermas: É no domínio da crítica estética que, pela primeira vez, se toma consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si mesma. Isso fica claro quando acompanhamos a história conceitual do termo ‘moderno’ (...) Embora o substantivo modernitas (junto com o par antitético de adjetivos antiqui/moderni) já fosse empregado em um sentido cronológico desde a Antiguidade tardia, nas línguas europeias da época moderna, o adjetivo ‘moderno’ foi substantivado só muito mais tarde, aproximadamente nos meados do século XIX e, pela primeira vez, ainda no domínio das belas-artes. Isso explica por que as expressões Moderne ou Modernität, modernité conservaram até hoje um núcleo de significado estético, marcado pela autocompreensão da arte de vanguarda HABERMAS, Jürgen; O discurso filosófico da modernidade, p. 14 . Poderíamos então começar por se perguntar pela razão pela qual será exatamente no campo da crítica estética que pela primeira vez as sociedades ocidentais tomaram consciência do problema de uma fundamentação da modernidade a partir de si mesma. Que tipo de exigência o campo da estética porta que lhe fez o mais apto, dentre os múltiplos setores da praxis social, a sentir as pressões de auto-fundamentação do presente? Ou seja, porque a estética desencadeia uma dinâmica de transformação da experiência social do tempo? Admitamos que esta consciência da modernidade está vinculada a uma articulação entre validade e reflexão. Se o tempo pode deixar de ser um continuum no interior do qual o passado define as coordenadas de validade do presente, no interior do qual a história não é outra coisa de historia magistra vitae, é porque não serão mais as tradições, os hábitos e as relações estabelecidas de autoridade que poderão ditar as coordenadas de validade do presente. Esta crise expressa a emergência paulatina da reflexão subjetiva como critério de validade. Só poderá ter validade aquilo que colocar-se como apreensível em sua necessidade no interior da auto-reflexão do sujeito. Uma certa noção de auto-legislação emerge como consciência da afirmação da liberdade em relação ao que aparece como conformação a determinações exteriores. Dai porque a tópica da autonomia será tão decisiva para a constituição da auto-consciência da modernidade. Uma autonomia cujo exercício terá como espaço inicial da produção artística. A assunção da autonomia redimensiona o tempo histórico ao produzir um sistema de rupturas com as estruturas sociais de repetição de padrões gerais de conduta e julgamento. Entendamos melhor este ponto. Podemos afirmar que o motor dos processos de consolidação da noção moderna de revolução está na transformação da exigência de liberdade como fator central de lutas sociais. Faz parte das tensões da modernidade a afirmação de uma dupla inscrição temporal da liberdade. Ou ela aparece no horizonte de uma recuperação de experiências originárias ligadas a laços sociais como as primeiras comunidades cristãs e a polis grega ou ela aparece como a projeção de um destino nunca antes realizado e que, por isto, pressiona o tempo em direção à sua aceleração. De fato, as Revoluções se compreenderão ou como a atualização de experiências originárias ou como projeção em direção ao não realizado. Neste caso, a exigência de liberdade tem a capacidade ser compreendida como traço distintivo da modernidade. No entanto, a história do conceito moderno de liberdade está em larga medida, para o bem o para o mal, associada à emergência da noção de autonomia. Mas é fato que esta reflexão autônoma que se manifesta no campo das artes encontrará, por sua vez, suas raízes em outro campo, a saber, a teologia. Neste sentido, é inegável a contribuição da Reforma protestante para este processo de reconfiguração do tempo histórico. Uma teologia da autonomia A primeira vez que encontramos o termo “autonomia” é em um texto grego: a peça de teatro Antígona (línea 917), de Sófocles (497/6 - 406/5 a.C.). No texto, o termo se refere à decisão de, por vontade própria, seguindo a sua própria lei, Antígona entrar viva no interior do Hades, pois ela desobedecera deliberadamente as leis da pólis, mesmo sabendo que tal desobediência significava a morte. Vemos assim como a autonomia aparece enquanto vontade disposta a não levar em conta a integridade física do agente para poder se realizar. Abre-se aqui a dimensão própria a algo como a “integridade moral”, ou seja, a decisão de realizar ações que podem, em certas circunstâncias, relativizar até mesmo as exigências próprias ao princípio de auto-conservação. Esta vontade que submete outras vontades, aparecendo como um dever intransponível, dever que permite ao sujeito relativizar as exigências imediatas de auto-conservação, reaparecerá de maneira decisiva na constituição da noção moderna de autonomia, como veremos ao final deste capítulo. Claro que, no caso de Antígona, a vontade que expressa a autonomia não pode ser vista como individual, tal como na versão moderna de autonomia. Antes, ela é a expressão do vínculo do sujeito a uma lei que não se confunde com a lei da pólis, com suas determinações contextuais tendo em vista a preservação do laço social. A lei que Antígona sustenta é, como ela dirá em um importante momento da tragédia, a “lei dos deuses”, ou seja, lei incondicional capaz de fundar um dever que é marca de adesão do sujeito a modelos substancialmente determinados de ação, modelos não apenas formais, mas que prescrevem claramente o que deve ser feito, que ação deve ser realizada, que regra prática deve ser seguida. No caso da tragédia, temos, por exemplo, o dever de prestar o rito funerário a todo e qualquer sujeito. O que leva Antígona a enterrar seu irmão Polinices e enfrentar a proibição de Creonte. No entanto, é certo que tal descolamento em relação ao princípio de auto-conservação, próprio a essa noção de autonomia, reaparecerá, séculos depois, nos pressupostos de teses de teólogos protestantes como Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564). Esta é uma discussão importante, pois não é completamente verdade que a filosofia moral moderna rompe radicalmente com horizontes teológicos de justificação da ação, em especial aqueles presentes na Reforma Protestante. Uma dependência silenciosa permanecerá. É um lugar comum a afirmação de que o protestantismo foi decisivo para a constituição da noção moderna de indivíduo. Lembremos, por exemplo, de como diversas seitas protestantes entendiam que cada igreja era particular e deveria se fundar sobre um pacto ou uma aliança na qual cada membro se engaja a partir de sua vontade própria Ver EHRENBERG, Alain; La société du malaise, Paris : Odile Jacob, 2010. Ou seja, a igreja é uma aliança entre fieis, a todo momento renovada. Esta era uma conseqüência natural de duas ideias centrais de Lutero: a salvação é dada pela fé (e não pelas obras) e a afirmação da livre interpretação da Bíblia: “Pois isso fica evidente que um cristão é livre de todas as coisas e está acima delas, portanto, não necessita de boas obras para ser justo e bem aventurado, pois a fé lhe dará tudo em abundância” LUTERO, Martinho; Da liberdade do cristão, São Paulo : Unesp, p. 43. . Notemos como Lutero retoma um tema filosófico maior: a liberdade como libertação em relação às determinações empíricas do mundo (as obras) e retorno à interioridade (a fé). De toda forma, nestes dois casos, a mediação da Igreja perde importância e o exame individual de si e de suas motivações ganha força. Como percebeu Max Weber, aparece com isto uma interioridade marcada pelo sentimento de forte: solidão interior do indivíduo. No assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma – a bem-aventurança eterna- o ser humano se via relegado a traçar sozinho sua estrada ao encontro do destino fixado desde toda eternidade. Ninguém podia ajudá-lo” WEBER, Max; A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras, p. 95. No caso do pensamento reformado, em especial no calvinismo, esta solidão interior era aumentada devido ao dogma da predestinação. Segundo tal dogma, os salvos já estão predestinados por Deus. No entanto, não sabemos qual a vontade divina pois há uma incomensurabilidade entre sua vontade e a ciência do homem. Se há predestinação, se Deus já decidiu se serei ou não salvo antes de minhas próprias ações, então a verdadeira causa última das minhas ações (a vontade de Deus) não é acessível ao meu entendimento. Perspectiva esta que devemos chamar de “voluntarista” por insistir na incomensurabilidade entre o entendimento humano e a vontade de Deus. Assim, uma questão maior impunha-se a cada fiel individualmente: “Serei eu um dos eleitos? E como eu vou poder ter certeza dessa eleição?”. A resposta era apenas uma: devemos nos contentar em tomar conhecimento do decreto divino e perseverar na confiança em Cristo operada pela verdadeira fé. Tal perseverança traduzia-se na exigência de uma profunda unidade coerente das condutas mobilizada pelo exame contínuo de si, pela auto-inspeção sistemática em cada instante, além da recorrência compulsiva da certeza subjetiva da própria eleição. Como não havia para os protestantes sacramentos como a confissão, que servia como reparação de momentos de fraqueza e leviandade, a pressão de uma unidade coerente das condutas acabava sendo entificada em uma vida pensada como sistema: “Nem pensar no vaivém católico e autenticamente humano entre pecado, arrependimento, penitência, alívio e, de novo, pecado, nem pensar naquela espécie de saldo da vida inteira a ser quitado seja por penas temporais seja por intermédio da graça eclesial” WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, op. cit., p. 107. Temos assim uma situação religiosa que produz necessariamente a experiência da interioridade (apenas a certeza da minha fé individual é o caminho para minha salvação, apenas eu posso interpretar o sentido da escritura divina, o tribunal que avalia minhas condutas sou eu mesmo, ele está em mim) e da unidade coerente das condutas (apenas a perseverança de minha conduta é o sinal de minha predestinação, eu devo ser tão regular quanto uma norma). Estas duas experiências serão fundamentais para o desenvolvimento da noção moderna de autonomia. Para chegarmos a tal noção, basta, principalmente, recusar a perspectiva voluntarista. É tal incomensurabilidade entre consciência e causa da ação que Kant recusa ao constituir sua teoria da autonomia. Pois: “Uma moralidade composta de tirania e servilismo só pode ser evitada se Deus e o homem formarem uma comunidade moral cujos membros sejam mutuamente abrangentes por aceitarem os mesmos princípios. Assim, os oponentes do voluntarismo tinham de mostrar que a moralidade envolve princípios que são válidos tanto para Deus quanto para nós” SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia: uma história da filosofia moral moderna. Trad. Magda França Lopes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, pp. 554-555. Mas insistamos em outro ponto. Este isolamento interior do indivíduo é também produtor potencial de uma experiência renovada do tempo. O desamparo desta solidão interior do indivíduo é também decomposição dos vínculos orgânicos ao tempo das repetições da vida social e de seu sistema de necessidades. Neste sentido, tal desamparo pode se transformar em ímpeto de instauração de condições sociais de realização da liberdade. Pois o desamparo em relação às condições atuais de existência pode se transformar em impulso de instauração de um comunidade por vir. Neste sentido, lembremos da artificialidade da distinção entre Reforma e Revolução, entre a transformação na interioridade produzida pela subjetividade em emergência com a Reforma e processos revolucionários. Não serão poucos aqueles que afirmarão que a Revolução Francesa, paradigma da noção moderna de revolução, ocorreu porque não houve Reforma com seu alargamento do horizonte de liberdades sociais e de autonomia de decisão. No entanto, há de se lembrar como é possível afirmar que a primeira Revolução no Ocidente foram as revoltas camponesas de 1525, lideradas pelo reformador Thomas Müntzer. Ou seja, a Reforma produzirá a primeira revolução moderna. Lembremos do que diz Friedrich Engels a respeito em seu As guerras camponesas na Alemanha e notemos seu tom de prenúncio: Também o povo alemão tem sua tradição revolucionária. Houve um tempo em que a Alemanha produzia homens que poderiam ser comparados aos melhores revolucionários de outros países e no qual o povo alemão mostrava uma perseverança e energia que em uma nação centralizada teria dado os resultados mais grandiosos. Então os camponeses e plebeus alemães acariciavam projetos que muitas vezes causavam espanto a seus descendentes ENGELS, Friedrich, A guerra camponesa na Alemanha, p. . Como diria Engels, tudo se passa como se a Reforma tivesse uma dupla face. Lutero e Calvino significariam a consolidação de um quadro social de uma burguesia em ascensão contra o poder central do papado. Mas reformadores radicais como Thomas Müntzer seriam a vertente proto-proletária da Reforma. Daí porque poderíamos afirmar que tais revoltas exprimem a energia negativa das classes subalternas que recusam as estruturas prévias do poder a fim de estabelecer como princípio uma nova forma de existência, uma realização imediata do Reino de Deus na qual: “Toda propriedade deve ser comum e distribuída a cada um de acordo com suas necessidades, de acordo com o que a ocasião requeira” MÚNTZER, Thomas; Sermon to the princes, p. 96. As exigências camponesas de fim das relações feudais e de servidão, diminuição dos impostos sobre a terra e a liberdade para caçar nas florestas da nobreza exprimiam um horizonte claramente revolucionário de igualdade radical baseada na ressurgência do modelo das primeiras comunidades cristãs. O milenarismo de Müntzer com sua defesa da realização imediata do Reino dos céus na Terra implica uma aceleração do tempo em direção ao seu fim. Pelas mãos das revoltas camponesas, o tempo histórico de espera da redenção se esgota. O tempo se realiza através da revolta. Neste sentido, se é verdade, como dirá Reinhardt Koselleck, que o tempo na modernidade é caracterizado, principalmente, pelo descompasso entre conteúdo de experiência e horizonte de expectativa, entre a experiência tal como responde a condições de possibilidade historicamente determinadas e o horizonte de expectativas produzido pela propjeção dos sujeitos, então serão as revoltas e revoluções que procurarão aproximar os dois. Por outro lado, notemos como o princípio revolucionário existente na solidão interior provocada pela Reforma é o início histórico deste modelo de auto-reflexão no interior do qual as exigências de validade vindas do passado podem ser suspensas caso não se mostrem aos procedimentos de verificação da consciência. Ele inaugura um movimento irrefreável que ultrapassará o próprio quadro da subjetividade religiosa. Pois no caso da Reforma, as exigências de auto-reflexão da consciência ainda se justificam a partir do recurso à fidelidade à vontade divina e à sua palavra revelada. O acontecimento ligado à revelação é o fundamento do discernimento e força de julgamento da consciência. Sujeitos podem se auto-determinar e se auto-legislar porque não se trata mais de adequar-se às exigências próprias à autoridade secular, mas de se compreenderem como o guardião da lei divina. De certa forma, desde Antígona, este é o movimento inicial de afirmação da dissociação entre subjetividade e comunidade, por mais que, nesses casos, a subjetividade como princípio tenha seu campo de desenvolvimento restrito devido ao seu fundamento encontrar-se na fidelidade à lei divina. De certa forma, as artes serão a primeira dimensão da praxis social a secularizar tal disposição de ruptura temporal. É esta secularização que fundará aquilo que estaremos dispostos a contar como “tempos modernos”. Ela seculariza a partir do momento em que a arte paulatinamente afirmar sua autonomia em um processo que irá se desenrolar em mais de um século e que terá na música seu eixo principal. Ou seja, a arte não irá recusar a autoridade da antiguidade devido a alguma forma de novo imaginário teológico que deveria, a partir de agora, encontrar forma. Ela fará tal movimento por acreditar que o tempo se acelerava em direção O paradigma musical Em seu texto sobre o século de Luís XIV, Charles Perrault tece vários comentários a respeito das linguagens artísticas como o teatro, a poesia e a pintura. Em todos esses casos, sua defesa é de que os modelos modernos em nada tem a temer em relação aos antigos. No entanto, algo muda quando é questão da música: A Grécia, concedo, teve vozes sem igual Cuja doçura extrema encantava as orelhas Seus mestres cheios de espírito compuseram cantos Tais como os de Lully, naturais e tocantes Mais não tinham conhecimento algum da doçura incrível Que os acordes produzem com seu encontro agradável Apesar de todo grande ruído feito pela Grécia Nela tal arte foi uma arte imperfeita FUMAROLI (org.), La querelle des anciens et des modernes, p. 270 . Ou seja, a música é a arte reconhecida por Perrault na qual a antiguidade pode aparecer em sua maior imperfeição quando comparada à modernidade. Esta singularidade não é fruto de uma idiossincrasia. Ela expressava uma condição objetiva da linguagem musical em meados do século XVII. Pois a música expressava da maneira mais explícita o advento de uma ruptura radical de padrão de ordenamento com o advento do sistema tonal e suas regras de harmonia e progressão. Sua estrutura de ordenamento, definida de forma paradigmática a partir do Tratado de Harmonia, de Jean-Phillipe Rameau, exemplificava uma linguagem que parecia encontrar em si mesma seus próprios critérios de validade, sem precisar mais apelar a forma alguma de recurso à experiência estética dos antigos. O século XVII conhecerá a consolidação de uma ruptura instauradora representada pela consolidação do sistema tonal. Contrariamente aos sistemas modais da antiguidade baseados na circularidade a partir de um centro (como a música modal grega, o canto gregoriano ou as músicas pré-modernas), o sistema tonal era próprio a um tempo em progressão. Podemos dizer, de maneira esquemática para inicar nosso trajeto, que Weber identifica três características fundamentais para a especificidade da racionalização do material musical no Ocidente: Primeiro, Weber insistirá que a música ocidental é autônoma em relação a fins prático-finalistas externos, pois tanto sua audição quanto sua composição são desprovidas de função ritual. “temos que nos recordar do fato sociológico de que a música primitiva foi afastada, em grande parte, durante os estágios iniciais de seu desenvolvimento, do puro gozo estético, ficando subordinada a fins práticos, em primeiro lugar sobretudo mágicos”. Mas “Com o ultrapassamento do emprego meramente prático-finalista das fórmulas sonoras tradicionais e, por conseguinte, com o despertar das necessidades puramente estéticas inicia-se o despertar da verdadeira racionalização” (WEBER, Fundamentos..., p. 86. Ou seja, a um desencantamento do material musical que é resultado da crítica ao fetichismo mágio-religioso como pólo de produção do sentido do fato musical. Pois Weber sabe que esta subordinação ao fetichismo mágico-religioso atingia o próprio desenvolvimento do material musical, já que ela provocava a estereotipização de intervalos, de estruturas e de frases que adquirem significação mítica. Em suma, Há um encantamento do material musical que deve ser rompido através da autonomização da música em relação a toda função ritual. No entanto, o despertar das necessidades puramente estético não implica apenas em uma redefinição dos modos de audição derivada da modificação do lugar social da música. Ela abre a possibilidade de mutações estruturais na própria forma musical, isto primeiramente através da consolidação do sistema tonal com sua organização de intervalos, escalas e estruturação dos temperamentos. E este é, em última instância, o objeto central de Weber nos Fundamentos racionais e sociológicos da música; objeto que será paulatinamente apresentado neste módulo. Ele permitirá que a significação do fato musical não seja mais dependente de um elemento extra-musical. Weber traça um grande apanhado histórico que procura dar conta do lento processo de autonomização do julgamento estético na música. Ele começa através da retomada deste problema geral da estética musical que diz respeito à imbricação entre música e linguagem. Mas Weber aborda tal questão através da “ligação entre fala e melodia (Melos)” WEBER, idem, p. 82. A fala pode exercer uma influência direta e concreta sobre a formação do curso da melodia, principalmente nas chamadas línguas sonoras nas quais os significados das sílabas é variável de acordo com a altura do som em que são pronunciadas. Um exemplo aqui seria o chinês. Weber se serve de vários exemplos advindo de músicas sacras a fim de mostrar como a organização intervalar da música pode ser limitada devido à influência da dinâmica da fala e do recitativo. A “legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo mágico-religioso. Pois, enquanto estiver submetida a uma fins práticos-finalistas, a música estará impossibilitada de desenvolver-se a partir das exigências do material musical. Ao contrário, ao vincular-se a funções e textos sagrados: “a estereotipização dos intervalos sonoros, uma vez canonizados por alguma razão, será extraordinariamente intensa” WEBER, idem, p. 86 . A “legalidade própria” da esfera musical só pode se dar, assim, através do abandono de sua ligação, de um lado, com a linguagem prosáica e ,de outro, com o fetichismo mágico-religioso. Ou seja, a racionalização do material musical é solidária do abandono de todo princípio mimético na racionalidade do fato musical. Note-se que a música aparece como espaço privilegiado para a reflexão sobre este tipo de racionalização devido ao seu caráter eminentemente não-figurativo e resistente a processos de conceitualização Por outro lado, esta maneira de pensar a autonomização da esfera musical através da negação de todo vínculo com a linguagem prosaica provoca uma aproximação inusitada entre Weber e a temática romântica da música absoluta.. Mas para que a música conquiste sua esfera de legalidade própria (e esta é a segunda característica da racionalização do material musical no ocidente), ela deve trazer, na sua lógica interna das relações sonoras, o seu próprio critério de desenvolvimento e de julgamento. Para tanto, Weber precisa passar a um conceito positivo de racionalidade. O que significa expor como o material musical pode ser “dominado pelo cálculo”, ou seja, como ele pode ser racionalizado ao submeter a uma razão matemática. Isto Weber encontra ao analisar a estrutura do sistema tonal como sistema global de organização do material sonoro a partir de regras harmônicas de inspiração físico-matemática. O que interessa Weber é o fato de que, através de regras gerais de cálculo viabilizados pelo temperamento igual da escala cromática, a harmonia da música moderna estabelece procedimentos gerais de desenvolvimento, de progressão e de organização do material sonoro. Assim, se é verdade que uma esfera social de valor será mais racional na medida em que ela estabelecer seus processos de valoração através de um plano sistêmico de organização, plano que tira de si mesmo sua própria certificação, então é com a consolidação do sistema harmônico tonal que a música entra na modernidade. Este é um ponto fundamental: a racionalidade do fato musical, para Weber, é fundamentalmente vinculada à sua dimensão harmônica. O que significa um posicionamento, não sem conseqüências, em relação a um longo debate que teve lugar no interior da história da estética musical. De fato, vale para Weber o que Rameau já tinha afirmado em 1722: “Música é geralmente dividida em harmonia e melodia, mas a última é meramente uma parte da primeira e um conhecimento de harmonia é suficiente para um entendimento completo de todas as propriedades da música” RAMEAU, Traité de l’harmonie, capítulo um. Ou seja, a dimensão harmônica é a única a responder pela racionalidade do fato musical e de seus processos internos de criação de sentido. De fato, Weber admite que a dimensão harmônica é a única a responder pela racionalidade do fato musical e de seus processos internos de criação de sentido. No entanto, a especificidade da música ocidental não está na ausência de elementos irracionais, mas na possibilidade de antecipar e resolver tais elementos, integrando-os no interior da própria racionalidade da forma musical. Por isto, Weber pode atrelar a dimensão expressiva da melodia a um princípio de irracionalidade (resíduo mimético na música) sem que o protocolo geral de racionalização seja colocado em questão. Depois de reconhecer que : “A melodia, no sentido geral do termo, é sem dúvida condicionada e ligada harmonicamente, mas não pode mesmo na música de acordes, ser deduzida harmonicamente” Weber afirma finalmente que: “Não haveria música moderna sem estas tensões derivadas da irracionalidade da melodia, já que elas constituem precisamente seus mais importantes meios de expressão” (Weber 29, p. 60). Pois é racional um sistema que aceita um elemento que o negue, desde que tal elemento possa ser antecipado, preparado e resolvido. Como dirá Schoenberg em seu Tratado de Harmonia: “introduzir cautelosamento [a dissonânica] e resolver sonoramente: eis aqui o sistema! Preparação e resolução são, portanto, as duas cobertas protetoras que vai cuidadosamente empacotada a dissonância para que não recebe nem ocasione danos” SCHOENBERG, Tratado de Harmonia, p. 96. Revolução política, instauração estética Aula 3 “O homem nasceu para a felicidade e para a liberdade e em todos os lugares ele é escravo e infeliz” ROBESPIERRE, Maximilian; Pour le bonheur et pour la liberté: discours, p. 8. A frase é de Robespierre, enunciada em um discurso no dia 10 de maio de 1793. Ela claramente retoma uma das primeiras afirmações do Contrato Social, de Rousseau: “O homem nasceu livre e em todos os lugares ele está sob grilhões” ROUSSEAU, Jean-Jacques; Du contrat social, Pleiade vol. III, p. 351. Tal relação não era um mero acaso: a influência de Rousseau sobre os revolucionários franceses é conhecida e assumida, principalmente pelos jacobinos. Saint-Just dirá, por exemplo: “Jean-Jacques Rousseau era revolucionário”. Este viés rousseauista da Revolução Francesa não é apenas uma referência filosófica mais ou menos utilizada para legitimar ações políticas a partir de um autor que usa o termo “revolução” normalmente de maneira pejorativa, como alguma forma de degradação a ser evitada. Ela expressa as consequência práticas de uma modificação estrutural na compreensão dos horizontes próprios à política que tem em Rousseau um momento decisivo. Este horizonte tem relações profundas com a generalização do paradigma da liberdade como autonomia cujas raízes estéticas vimos na aula passada. Ele ainda implica uma filosofia da história que, ao mesmo tempo, vê o progresso como queda e vê todo retorno à origem como impossível. No que a experiência será marcada, ao mesmo tempo, por um tempo de ruptura e por uma suplementaridade em relação a uma origem perdida, mas que ainda insiste no interior de nossos horizontes de expectativas. Sobre a generalização do paradigma da liberdade como autonomia, lembremos inicialmente como ela implica a consciência da instauração de um sujeito político dotado de soberania e cujo nome será “povo”. Há uma instituição do povo que, ao menos para uma grande parte da sensibilidade do final do século XVIII, parece só poder se realizar como Revolução. Temos aqui a equação da revolução como emergência do povo à cena do político em uma situação de ausência de representação e mediação. A Revolução é aquilo que permite a imanência do povo ao poder, uma imanência que precisa da construção do conceito de vontade geral para ganhar realidade. Vejamos então os passos em direção a tal resultado. Primeiro, lembremos da centralidade e da radicalidade de uma afirmação como esta de Rousseau, a respeito da instituição das leis: Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a constituição do homem para reforça-la; de substituir uma existência física e independente que todos recebemos da natureza por uma existência parcial e moral idem, p. 381. A radicalidade das afirmações é explícita. Primeiro, notemos como Rousseau afirma ser um povo o resultado de uma instituição. Ou seja, ele é uma criação, cria-se um povo através de uma forma de instauração institucional. De certa forma, é possível dizer que a instituição não é uma emanação do povo. Há uma invenção política do povo que equivale a uma transformação na própria natureza de cada indivíduo, a uma alteração da constituição humana e à criação de uma outra forma de existência. A emergência do povo é uma criação política. Na verdade, é a criação política por excelência. Ela faz da sociedade não uma associação de indivíduos, como gostariam os pensadores liberais, nem um pacto entre soberano e a população que ele governa. Pois a soberania é um pacto que o povo passa consigo mesmo, não com outro. A sociedade será um corpo. Para ser mais preciso, ela será um corpo político. Este corpo será o suplemento possível a relações perdidas no estado de natureza. Ele é um artifício, por isto só poderá ser fruto de um tempo de ruptura. Por isto, como veremos, esta invenção do povo não é resultado da simples recusa do fato natural devido a uma teoria do progresso e da perfectibilidade humana. Seu tempo não é o da ruptura linear. Ela é fruto de um suplemento a uma perda, de um retorno impossível mas cuja impossibilidade, longe de paralisar a ação, é condição para a criação de uma ação política possível. Para entender a estrutura de tal tempo, e por consequência entender como a noção moderna de Revolução encontrará em Rousseau uma de suas principais fontes, precisamos voltar a sua teoria do estado de natureza e do processo de alienação vinculado à emergência da socialidade. Isolamento e compaixão no estado de natureza Guardemos de confundir o homem selvagem como os homens que temos diante de nossas olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a seus cuidados com uma predileção tal que parece assim mostrar como ela é ciumenta deste direito ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade, p. 139. Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo Rousseau, a saber, a ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de natureza como estado de penúria no interior do qual seria necessário lutar para sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da vida. De certa maneira, não seria errado dizer que a experiência da falta é uma criação da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos animais e aos humanos o espaço potencial de realização de seus desejos e necessidades, então a falta não pode ser uma condição contínua de um desejo que está sempre a procura de novos objetos. Rousseau traz algo do cinismo grego em sua descrição do estado de natureza. Pois eram os cínicos que definiam a liberdade como uma liberação em relação às necessidades socialmente produzidas, a liberdade como uma restrição, pois quanto menos preciso mais livre sou, menos dependente sou de artifícios e engenhos para encontrar a satisfação. Retornar a uma certa condição de animalidade é, de certa forma, o horizonte da realização da liberdade. Assim: Não é uma grande infelicidade a estes primeiros homens, nem mesmo um grande obstáculo à conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação de todas essas inutilidades que cremos necessárias. Se eles não tem a pele aveludada, não tem por outro lado nenhuma necessidade disto em países quentes, além de saberem muito bem, em países frios, apropriar-se desta das bestas que venceram Idem, p. 140. De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e estes que fazem parte da vida social, um traço de explica em larga medida como é possível que a falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem que isto seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a propriedade. Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas propriedades. Os humanos são sós, seus encontros são intermitentes, suas preocupações se vinculam a auto-conservação em um espaço natural vasto no interior do qual eles estão em contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem contar com sua força e habilidade. Por isto, os humanos aparecem inicialmente como nômades solitários. Notem que, se em Hobbes, o estado de natureza era composto de indivíduos em relação de concorrência e violência, era porque os desejos eram compreendidos inicialmente como miméticos. Deseja-se o mesmo que o outro, vejo como o outro deseja para saber como desejar, ou seja, há desde o início uma certa forma de dependência entre os seres humanos, mas esta racionalidade mimética não se traduz em empatia ou tendência à cooperação. Ela se traduz em rivalidade e violência direta. É a expressão do desejo que coloca os indivíduos na rota de uma luta de vida ou morte. Se este mimetismo próprio ao desejo se traduz em rivalidade e não em empatia é porque Hobbes naturaliza um modo de relação às coisas e a si mesmo que se expressa na forma de relações de propriedade. Não há uma história da emergência das relações de propriedade em Hobbes porque elas são naturais, elas estão lá desde o início da existência histórica dos seres humanos. Não há esta dimensão originariamente mimética do desejo em Rousseau, assim como não há uma naturalidade das relações de propriedade. Os humanos não conservam, eles consomem. Eles não se territorializam, mas estão em nomadismo. Estes indivíduos isolados não conhecem a desigualdade, a não ser esta produzida pela diferença de idade, de saúde, de força do corpo e de qualidade da alma, a saber, isto que Rousseau chama de “desigualdade física”. Mas esta desigualdade física não se traduz em “desigualdade política ou moral”. No entanto, mesmo estando em nomadismo, os humanos tem um sentimento que os vinculam, a saber, a piedade ou a compaixão. Esta piedade é, principalmente, a impossibilidade de sustentar uma posição de indiferença em relação ao sofrimento do outro. Ela não é uma forma de prática cooperativa, mas regime de implicação afetiva a partir da identificação do sofrimento, mesmo que seja uma implicação intermitente. Mesmo sendo isolados, os humanos em estado de natureza não são indiferentes a sorte de outros humanos. História da queda Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do estado de natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se serve de dois fenômenos para descrever a emergência da vida social e da corrupção desta relação imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se desenvolveriam apenas até os limites de seus próprios instintos. No entanto, se na aurora do iluminismo a perfectibilidade era vista como a fonte da criação e felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus males: Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condição originária na qual corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os séculos suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e ao cabo em tirano de si mesmo e da natureza Idem, p. 142. Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história da civilização como progresso da negação do dado natural” STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36. O primeiro destes temas consiste em dizer que o desenvolvimento não era apenas uma forma de conhecimento da natureza e de si, mas de uma dominação técnica de si e do mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condição originária que seria o espaço de afirmação da emergência do sentido. O advento da vida social é algo como uma queda: Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar suas invenções aos dons da natureza. E desde então s história universal, embaraçada pelo peso continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso orgulho, adquire o andamento de uma queda acelerada na corrupção: abrimos os olhos com horror para um mundo de máscaras e de ilusões mortais, e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele próprio seja poupado pela doença universal Idem, p. 23. Isto faz da história da técnica a história do afastamento do sentido, uma história da alienação no sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro, estar preso ao olhar de um outro. Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do estado de natureza, um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de perfectibilidade, a saber, a emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o trabalho cooperativo não é fonte de emancipação, mas uma das principais fontes de alienação. Pois o trabalho cooperativo é expressão de relações de dependência e com tais relações de dependência aparecem a necessidade do artifício, da conquista do olhar e da estima do outro: Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser realizadas por um e a artes que não necessitavam do concurso de várias mãos eles viveram livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser por sua própria natureza e continuaram a gozar entre eles das doçuras de um comércio independente. Mas desde que um homem teve necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu que seria útil a um ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade foi introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão germinar e crescer como musgos ROUSSEAU, Idem, p. 171. A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na cooperação dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta prévia contra situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra a imanência à natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relações de trabalho e produção se funda em tendências imanentes de exploração e dominação. Pois, com as relações de produção, não estamos apenas a falar do advento da propriedade, mas principalmente do reconhecimento da importância da sanção do outro, a necessidade de reconhecimento do outro como condição para a justificação de minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau, do avento de um ser-para-outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma profunda problema moral e problema econômico. Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda de si já que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da origem, isto devido à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida social implica dependência e esta dependência leva os homens a garantir a estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre preocupar-se com ela. Eles se tornam então: “enganadores e artificiais” Idem, p.173 ao submeterem seus desejos a demandas de reconhecimento. Notemos como Rousseau descreve a emergência do desejo de reconhecimento: Nós nos acostumamos a nos juntar diante de cabanas ou em volta de uma grande árvore. O canto e a dança, verdadeiras crianças do amor e do lazer, transformaram-se no divertimento ou ainda na ocupação dos homens e mulheres despreocupados e congregados. Cada um começou a olhar os outros e a querer ser olhado por eles, e a estima pública teve um preço. Este que cantava ou dançava melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais eloquente se transformou no mais considerado e este foi o primeiro passo para a desigualdade e, ao mesmo tempo, o primeiro passo em direção ao vício Idem, p. 169. Fica claro assim como Rousseau não distingue demandas de reconhecimento e processos de alienação. Pois o estabelecimento de relações sociais não é compreendido como constituição de um campo móvel de incorporação das singularidades. As relações sociais são solidárias de dinâmicas de alienação e contra tal sofrimento social haveria de se retornar à normatividade natural, se isto fosse possível. As modificações implicativas produzidas pelas demandas de reconhecimento são sempre compreendidas por Rousseau como alienação na dimensão da aparência, o olhar do outro não é a confirmação de si, mas uma forma de aprisionamento. Pois não é através do reconhecimento que o humano realizaria sua essência, mas através do retorno à voz da natureza, o que só é possível ainda na dimensão da experiência estética e, em especial, da expressão musical. Isto é resultado direto do ponto de partida de Rousseau. Rousseau aceita que a celular elementar da vida social são os indivíduos, no seu caso, indivíduos em relação de imanência à natureza. Ou seja, temos primeiro indivíduos isolados e, em um segundo momento, o artifício da criação de relações. Neste sentido, a liberdade natural implica certo modo de relação a si que podemos descrever como “relações de auto-pertencimento”, relações nas quais afirmamos o fato de se pertencer apenas a si mesmo, o que a vida social não pode realizar. No máximo, a vida social pode construir uma forma compensatória de autonomia baseada na emergência de uma vontade geral. É desta forma compensatória que fala O contrato social. Um corpo político Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um corpo que não tem a configuração de um Leviatã no qual o poder soberano se concentra, de maneira indivisível, nas mãos do detentor do poder executivo. Há uma soberania a animar o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma soberania popular que tem no espaço da assembleia popular sua expressão máxima. Esta assembleia é expressão de um princípio de igualdade moral ou política fundamental. Desta forma, Rousseau espera poder instaurar uma totalidade social baseada na igualdade como virtude que modera os apetites e nos afasta do caráter egoísta dos interesses. Como vimos, este corpo político é uma espécie de suplemento a um outro corpo perdido, a saber, a natureza como uma espécie de corpo nômade no qual os indivíduos podiam circular em imanência. Lembremos inicialmente como a condição fundamental para o advento de um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral não é a somatória de vontades particulares, ou seja, uma vontade de todos. Ela é a expressão de um desejo de liberdade e de igualdade baseado, inicialmente, na ideia de auto-legislação. A alienação dos interesses particulares na vontade geral permite a constituição de um Eu comum, de um corpo político unitário capaz de defender e proteger a pessoa e seus bens. Defender não apenas do outro, mas principalmente defender-se do próprio poder, defender-se dos efeitos de usurpação do poder quando alienamos a soberania popular a um outro, seja ele um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto, Rousseau dirá que o povo não obedece a um soberano, ele não passa alguma espécie de contrato com ele. Na verdade, o povo se manifesta através do exercício da soberania. Ele pode derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se reúne em assembleia, ele não tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe representa o povo, pois a soberania não é algo que possa ser representado sem ser perdido. Neste sentido, deputados e príncipes são apenas “comissários” do povo. O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que ele possui” ROUSSEAU, Jean-Jacques; Le contrat social, p. 364. Notemos a estrutura da retórica de Rousseau. Sabendo que não mais é possível fazer apelo a uma relação à physis soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau quer realizar uma liberdade que ainda signifique pertencimento de si apelando a uma lógica própria às individualidades proprietárias: veja quanto se perde e quanto se ganha; deixamos o caráter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da propriedade. Daí porque Hegel dirá, a respeito de Rousseau: No entanto, como ele apreendeu a vontade em sua forma determinada como vontade singular (como fez posteriormente Fichte) e como ele apreendeu a vontade geral não como o que a vontade tem de racional em si e para si, mas apenas como o elemento comum que surge desta vontade singular enquanto consciente, a reunião dos indivíduos singulares no Estado se transforma em um contrato Idem, . Hegel critica Rousseau por pensar a vontade a partir da noção de vontade individual, vontade que, ao menos em sua perspectiva, não advém exatamente vontade geral, mas vontade comum, ou seja, associação de diversas vontades que não desejam um objeto universal, mas que desejam as condições para a afirmação de seus sistemas particulares de interesses Isto talvez nos explique porque, na justificação do contrato social: “a linguagem de Rousseau com freqüência é tão abertamente utilitarista quanto a de Hobbes. Isto é o que você perde, mas avalie, em compensação, o que você ganha” (LEBRUN, Gerard; “Contrato social ou negócio de otário?” In: A filosofia e sua história, São Paulo: Cosac e Naify, 2006, p. 226). Por isto, se aceitamos entrar no contrato social: “é por ter lido, no segundo livro, que as “pessoas privadas” que compõem a “pessoa pública” permanecem “naturalmente independentes dela”, que elas continuam portanto a desfrutar um direito natural enquanto homens e que “o Soberano não pode infligir aos súditos nenhuma que seja inútil à comunidade” (idem, p. 230).. De fato, como nos lembra Gérard Lebrun ao insistir na “raiz ultra-individualista do contrato”, no momento do Contrato social, o homem é ainda “aquele que olha para si mesmo”. Seu desejo de adquirir a liberdade civil provém de uma reivindicação que nasce no nível da sua independência natural. Sua entrada na união civil é feita unicamente em nome de seu amor por si mesmo. Ou seja, as condições de estabelecimento do contrato social não são recuperações da natureza reprimida, mas regulação da vida social a partir da realidade de uma alienação de base. Notemos ainda que este desejo de liberdade civil é também desejo de liberdade moral, de auto-legislação, já que vem de Rousseau a ideia de que liberdade é dar para si mesmo sua própria lei. No entanto, há de se conceder a Rousseau a crença em uma espécie de revolução. A instauração da vontade geral é fruto do desejo de ser parte de um corpo político, mas este desejo não é fruto apenas do medo da despossessão, como podemos encontrar em Hobbes. Ele não é fruto simplesmente da procura por segurança, mesmo que Rousseau mobilize tais argumentos por consciência de estar a falar com indivíduos alienados que precisarão ser também tocados em seus interesses individuais a fim de assumir a transformação de seus interesses individuais em vontade geral. Na verdade, o desejo de ser um corpo político é, acima de tudo, fruto do desejo de igualdade que pulsa como natureza primeira do humano. Em estado de natureza, os humanos são iguais, sua diferença é meramente física e, por isto, profundamente limitada. Por serem iguais, eles não se submetem uns aos outro, eles são livres. O corpo político é o suplemento que permite a produção de uma igualdade social que ressoa a igualdade natural. “Querem dar ao estado consistência?”, dirá Rousseau “aproximem os graus extremos o máximo possível: que não sofram nem de pessoas opulentas nem de mendigos” ROUSSEAU; Du contrat social, op. cit., p. 392. Este desejo de igualdade transmuta o sistema de interesses em vontade. Mas só ele cria a verdadeira autonomia enquanto auto-legislação. Daí porque: “melhor o estado é constituído, mais as questões públicas sobrepõem-se às privadas no espírito dos homens” ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429. Pois ele nos abre a estrutura de motivações que não são a expressão de uma natureza degradada sob a forma do egoísmo, da concorrência e do medo. Em Rousseau, tal vontade autônoma não é expressão de um conflito com a voz da natureza em nós, mas é condição para que a cristalização de uma falsa natureza seja deposta. Tal vontade será o predicado fundador da humanidade do humano, isto a ponto dela ser inalienável. Por isto, não é possível representar a vontade, não há governo a partir da representação. Quando um povo se dá representantes ele não é mais livre, ele deixa de ser um povo: A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que ela não pode ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ela é a mesma ou ela é outra, não há meio termo Idem, p. 429. Neste ponto, fica claro como o povo é simplesmente o nome que damos para a imanência da vontade consigo mesma no interior de um corpo. Já a metáfora do corpo político é instrutiva neste contexto. Um corpo nunca é “meu” no sentido que posso dizer que esta cadeira é minha o que este terreno é meu. Um corpo não se submete à minha vontade como esta cadeira se submete enquanto objeto. Mesmo sendo espaço da minha subjetividade, um corpo sempre me faz me confrontar com o que não controlo e com o que me constitui sem me ser imediatamente próprio. No entanto, esta exterioridade do corpo ao sistema de afirmações individuais é a instituição da aderência a uma generalidade que constitui outra forma de existência. Existir como um corpo é sempre existir como mais do que mim mesmo. Música e reconhecimento Mas voltemos a afirmação que abriu esta aula: Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em estado de mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada individuo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solitário em parte de um todo maior do qual os indivíduos receberão de certa maneira sua vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que todos nós recebemos da natureza por uma existência parcial e moral Idem, p. 381. O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos nos perguntar se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança da própria natureza humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A vida política parece não pode dar conta desta nostalgia. No máximo, ela transmuta a experiência de auto-pertencimento própria ao estado de natureza em desejo de igualdade (forma única de impedir a servidão) e de autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos marcados pela experiência do individualidade possessivo No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma linguagem de pura presença. A política procura uma linguagem da pura presença, ela procura dar à voz sua força de direito. Tal linguagem, Rousseau a encontra na música e no uso da música como paradigma para a reinstauração da ordem social. A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau, lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus caracterizou bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical de Rousseau” DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49. Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo que não se refere aos modos de imitação no interior da vida social, mas no vínculo exterior entre sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação entre música e a expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isto o permitia vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura. Lembremos do que diz Rousseau : Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma música e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando esta mistura agradável ; quando pensamos que o modo durou tantos séculos sem que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o uníssono ou outra músical que a melodia ; que as línguas orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte, cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta grande descoberta e definí-la como princípio a todas regras da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em consideração, é muito difícil não desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural  ROUSSEAU, Dictionnaire de musique. A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos da fala comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda fala) como fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo doador de sentido, como transparência e proximidade. Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um espaço político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da disseminação da representação devido ao ideal estético de clareza. Esse naturalismo musical, que submete a música ao “prazer moral da imitação” ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208 enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por vir (ou seja, há uma submissão completa entre música e moral em Rousseau, tal como houvera antes em Platão), faz da expressão do compositor o uso consciente de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressão do compositor a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música como horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e recuperação de dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de que a alienação social é indissociável da degradação da linguagem no espaço político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas: “toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas” Idem, Essai sur l’origine des langues,. Uma língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência, afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as necessidades ditaram os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras palavras” ROUSEEAU; Idem, p. 380. Ou seja, a fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma fala muda, mais próxima da pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os coloca em relação de concorrência e de defesa. Mas: a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas, mas no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição que torne visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza quando colabora com a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar” PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161. As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um, elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela que realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela mais próxima do canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias são algo raro. Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das paixões. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de expressão, fazer dela ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero espaço de afirmação de minhas propriedades, daquilo que me separa de outros sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem contra sua degradação, uma procura da linguagem em parar um processo descrito por Rousseau da seguinte forma: A medida que as necessidades crescem, que os negócios se confundem, que as luzem se estendem a linguagem muda de caráter, ela se torna mais ajustada e menos apaixonada; ela substitui os sentimentos por ideias, ela não fala mais ao coração, mas à razão. Por isto, o acento se apaga, a articulação se estende, a língua se torna mais exata, mais clara, mas mais surda e fria ROUSSEAU; Idem, p. 384. A recuperação da força expressiva da linguagem é assim a condição para a política pois ela permite a emergência da proximidade e o fim da separação. Neste sentido, podemos dizer que a forma fundamental de sujeição é a eliminação da força expressiva da linguagem (o que nos coloca uma questão importante e que não será de fácil resposta, a saber, o que significa “expressão” neste contexto). Pois o progresso natural das “línguas letradas” consiste em perder a força a fim de ganhar clareza, o que só pode significar para Rousseau uma forma de sujeição. Revolução política, instauração estética Aula 4 Vimos na aula passada, alguns aspectos centrais da filosofia política de Rousseau. Em especial, vimos a possibilidade da emergência de um corpo político fundado na transmutação dos interesses individuais em vontade geral. Uma vontade geral que, por sua vez, era a expressão fundamental do desejo de igualdade que os humanos traziam do estado de natureza. Vimos ainda como Rousseau trazia uma teoria da assembleia constituída na articulação cruzada entre política e estética. Lembremos mais uma vez de como termina seu Ensaio sobre a origem das línguas: “toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma língua servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas” Idem, Essai sur l’origine des langues,. Uma língua que o povo em assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência, afastada da persuasão por separar o povo, por ser apenas uma fala em nome próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de interesses. “A primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos devem permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as necessidades ditaram os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras palavras” ROUSEEAU; Idem, p. 380. Ou seja, a fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma fala muda, mais próxima da pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os coloca em relação de concorrência e de defesa. As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um, elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela que realmente produz laços. Daí porque a língua do povo em assembleia será aquela mais próxima do canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das estratégias. Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das paixões. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de expressão, fazer dela ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero espaço de afirmação de minhas propriedades, daquilo que me separa de outros sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem contra sua degradação, uma procura da linguagem em parar um processo descrito por Rousseau da seguinte forma: A medida que as necessidades crescem, que os negócios se confundem, que as luzem se estendem a linguagem muda de caráter, ela se torna mais ajustada e menos apaixonada; ela substitui os sentimentos por ideias, ela não fala mais ao coração, mas à razão. Por isto, o acento se apaga, a articulação se estende, a língua se torna mais exata, mais clara, mas mais surda e fria ROUSSEAU; Idem, p. 384. A recuperação da força expressiva da linguagem é assim a condição para a política pois ela permite a emergência da proximidade e o fim da separação. Neste sentido, podemos dizer que a forma fundamental de sujeição é a eliminação da força expressiva da linguagem (o que nos coloca uma questão importante e que não será de fácil resposta, a saber, o que significa “expressão” neste contexto). A política da virtude de Robespierre É inegável que este horizonte estará presente na política da virtude do jacobinismo francês. Ela seria a primeira tentativa de efetivamente realizar o que seria tal ruptura em direção à vontade geral. No entanto, isto significará também saber gerir um estado contínuo de guerra. Em 25 de dezembro de 1793, Robespierre sobe à tribuna da Assembleia para fazer um discurso a respeito do governo revolucionário. Nele, se lê: O governo constitucional se ocupa principalmente da liberdade civil, e o governo revolucionário, da liberdade pública. Sob o regime constitucional, quase basta proteger os indivíduos contra o abuso do poder público; sob o regime revolucionário, o próprio poder público é obrigado a defender-se de todas as facções que o atacam ROPESBIERRE, M.; Virtude e terror, p. 165. Desta forma, Robespierre à sua maneira submetia a teoria da revolução a uma teoria da guerra. Não apenas a uma discussão sobre as formas de mobilização e insurgência pensadas a partir de um paradigma da guerra, mas a uma compreensão do governo como guerra permanente. O governo revolucionário é aquele que se perpetua sob o horizonte de uma guerra contínua, na qual ele está sempre às voltas com uma luta contra todas as facções que o atacam, contra todas as traições que o cercam. Por estar em guerra permanente (e o governo revolucionário francês estava efetivamente em guerra contra as monarquias da Austria e da Prussia), o governo revolucionário deve ser mais ativo em sua marcha, mais livre em seus movimentos. Isto significa estar em condições de agir em regime de excepcionalidade, de operar no interior do uso público da violência. Nesta junção entre guerra, governo e revolução, aparecia uma equação potencialmente destrutiva ao conceito de liberdade: horizonte normativo com o qual a revolução deve necessariamente lidar. Daí a saída de Robespierre em distinguir a liberdade civil e a liberdade pública. A primeira diria respeito à defesa do horizonte de ação e de decisão dos indivíduos, a segunda diz respeito à defesa da soberania popular. Um conceito de soberania popular que tece relações profundas com a noção de “vontade geral”, tal como vimos na aula passada. Lembremos do que vimos na aula passada. Na ocasião, vimos como a instauração da vontade geral era fruto do desejo de ser parte de um corpo político, mas este desejo não era fruto apenas do medo da despossessão, como podemos encontrar em Hobbes. Ele não era fruto simplesmente da procura por segurança, mesmo que Rousseau mobilizasse tais argumentos por consciência de estar a falar com indivíduos alienados que precisarão ser também tocados em seus interesses individuais a fim de assumir a transformação de seus interesses individuais em vontade geral. Na verdade, o desejo de ser um corpo político era, acima de tudo, fruto do desejo de igualdade que pulsa como natureza primeira do humano. Em estado de natureza, os humanos são iguais, sua diferença é meramente física e, por isto, profundamente limitada. Por serem iguais, eles não se submetem uns aos outro, eles são livres. O corpo político é o suplemento que permite a produção de uma igualdade social que ressoa a igualdade natural. “Querem dar ao estado consistência?”, dirá Rousseau “aproximem os graus extremos o máximo possível: que não sofram nem de pessoas opulentas nem de mendigos” ROUSSEAU; Du contrat social, op. cit., p. 392. Este desejo de igualdade transmuta o sistema de interesses em vontade. Mas só ele cria a verdadeira autonomia enquanto auto-legislação. Daí porque: “melhor o estado é constituído, mais as questões públicas sobrepõem-se às privadas no espírito dos homens” ROUSSEAU; Du contrat social, p. 429. Pois ele nos abre a estrutura de motivações que não são a expressão de uma natureza degradada sob a forma do egoísmo, da concorrência e do medo. Isto explica muito da maneira com que Robespierre compreende a democracia: A democracia não é um Estado no qual o povo, continuamente reunido, regula ele mesmo todas as questões públicas: menos ainda aquele no qual cem mil frações do povo, por medidas isoladas, precipitadas e contraditórias, decidiriam a sorte de toda a sociedade: tal governo não existiu jamais e só poderia existir para levar o povo ao despotismo. A democracia é um Estado no qual o povo soberano, guiado por leis que são obra sua, faz por si mesmo tudo o que pode fazer bem, e por meio de delegados tudo o que não pode fazer ele mesmo ROBESPIERRE, Idem, p. 181. Note-se como Robespierre descarta a possibilidade da assembleia permanente em prol da abertura a dispositivos de delegação. Este problema voltará de forma repetida em outras revoluções. Veremos seu retorno, por exemplo, na revolução soviética e o problema dos sovietes. Será sempre questão de uma tensão entre imanência e representação, entre deriva e controle. Mas é fato que a delegação não eliminaria, para Robespierre, o princípio a seu ver fundamental, a saber, a democracia é o espaço de exercício da auto-legislação do próprio povo. Esta auto-legislação é possível porque o povo revolucionário, que se revolta contra sua própria submissão e exploração, seria animado pela virtude. “A virtude é natural ao povo”, dirá Robespierre. Notemos, no entanto, que esta virtude não é, como por exemplo em Aristóteles, o conjunto de disposições de conduta necessários para a perpetuação da polis. Por nascer de uma Revolução, estas virtudes dizem respeito a uma comunidade por vir, não a um comunidade já existente. São o motor de uma transformação social, não a garantia da estabilização de uma ordem já constituída. Daí porque Robespierre fale da política como a realização de uma ordem das coisas: “em que todas as paixões baixas e cruéis sejam encarceradas, todas as paixões benéficas e generosas sejam despertas pelas leis” Idem, p. 179. Ordem esta que cumpriria o desejo da natureza, realizaria os destinos da humanidade, que manteria as promessas da filosofia e que absolveria a providência do longo reinado do crime e da tirania. Neste contexto, a virtude é o elemento constituinte do povo e instaurador da república. É sua existência que cria o povo, e não o inverso. Pois estamos em um operação de produção. Trata-se da produção conjunta do povo e da pátria, pois a função do governo constitucional é preservar a república, já a do governo revolucionário é de fundá-la. De onde se segue a ideia de que as revoluções até então teriam sido apenas mudanças de dinastias ou passagens nas formas do governo. A revolução francesa teria sido a primeira fundada sobre “a teoria dos direitos da humanidade e sobre os princípios da justiça. As outras só exigiam ambição; a nossa impõe as virtudes” ROBESPIERRE, Virtude e terror, p. 200. No que fica claro como a política revolucionário é, para Robespierre, o processo de produção de um sujeito revolucionário dotado de universalidade (que lhe levará até a abolição da escravatura em 1794 e o empuxo constante em direção à universalização da condição de cidadão) capaz de governar a si mesmo. Seu motor de constituição é a virtude. Daí porque: Não somente a virtude é a alma da democracia, ela só pode existir nesse governo. Na monarquia, só conheço um indivíduo que possa amar a pátria e que, para isso, nem precisa da virtude: é o monarca. A razão é que, de todos os habitantes desse Estado, o monarca é o único que tem pátria. Não é ele o soberano, ao menos de fato? Não está no lugar do povo? E o que é a pátria senão o país onde se é cidadão e membro do poder soberano? ROBESPIERRE, Virtude e terror, p. 181 Da virtude ao terror Mas o elemento fundamental e complicador desta produção é a associação entre virtude e necessidade de imunidade. O povo criado pela virtude não se confunde com toda a população, nem com todos seus estamentos. Este povo é, acima de tudo, um chamado à transformação. Por isto, a virtude não deve apenas expressar a disposição natural do povo, ela é um princípio de repressão e de purificação. O corpo político produzido por uma revolução só pode sobreviver se for capaz de imunizar-se, por isto a lógica da guerra precisa ser transporta para dentro do governo: É preciso sufocar os inimigos internos e externos da República ou morrer com ela; ora, nessa situação, a primeira máxima de vossa política deve ser que se conduza o povo pela razão e os inimigos do povo pelo terror. Se a força moral do governo popular na paz é a virtude, a força moral do governo popular em revolução é ao mesmo tempo virtude e terror: a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele é, portanto, uma emanação da virtude. Mais que um princípio particular, é uma consequência do princípio geral da democracia aplicado às mais prementes necessidades da pátria Idem, p. 185. O que leva Robespierre a definir o governo revolucionário como “o despotismo da liberdade contra a tirania”. No que poderíamos nos perguntar se pode a liberdade servir do despotismo para se consolidar. Robespierre insiste que violência contra a Revolução, que o terror contra o povo, exige a expressão da força revolucionária, e ela se dá através de um terror do povo contra os que parecem querer matar o corpo político em formação da Revolução em suas aspirações igualitárias. Ele exige a constituição de tribunais revolucionários responsáveis pelos julgamentos e execuções de um número até hoje incerto. Normalmente, divide-se o terror em duas fases. A primeira iria de 10 de agosto de 1792, com a tomada do Palácio de Tulleries onde se encontrava Luis XVI e com o massacre de sua guarda, até setembro do mesmo ano, quando ocorrem os chamados “massacres de setembro”. Nesta fase, o terror é produto das insurreições populares. É a Comuna insurrecional comanda pelos sans-culottes que parece assumir a soberania e colocar em cheque a Assembleia Nacional. A segunda fase, chamada de Grande Terror , coincide com a Convenção da Montanha em junho de 1793 e vai até julho de 1794, com a decapitação de Robespierre. Ela é o momento no qual os assassinatos populares são substituídos pela execuções públicas. O número de mortos varia de acordo com a posição ideológica dos historiadores, mas sabemos da identidade de 16.594 pessoas. Não foram poucos os que se perguntaram que tipo de liberdade é esta que se manifesta inicialmente sob a forma do terror. Que liberdade é esta que necessita do terror? A crítica conservadora clássica foi fornecida, por exemplo, por Edmund Burke, para quem: “o que foi feito na França foi uma tentativa selvagem de metodizar a anarquia, de perpetuar e fixar a desordem” BURKE, Edmund; An appeal from the new to the old Whigs, p. 475. Ou seja, a irracionalidade de procurar fundar uma ordem a partir do zero só poderia ser a selvageria disforme da anarquia. Para Hannah Arendt, esta reversão da liberdade em terror vem do uso político da piedade: A piedade, tomada como fonte da virtude, mostrou que possuía uma capacidade para a crueldade maior do que a própria crueldade: “Par pitié, par amour pour l’humanité, soyez inhumain”: essas palavras, colhidas quase ao acaso numa petição de uma das seções da Comuna de Paris à Convenção Nacional, não são gratuitas nem exageradas; são a autêntica linguagem da piedade (...) Desde os tempos da Revolução Francesa, foi por causa deste caráter ilimitado dos sentimentos dos revolucionários que eles se tornaram tão curiosamente insensíveis à realidade em geral e à realidade das pessoas em particular, que eles não tinham nenhum escrúpulo a sacrificar a seus ‘princípios’, ao curso da história ou à causa da revolução enquanto tal (...) Em termos políticos, pode-se dizer que o mal da virtude de Robespierre consistia em não aceitar nenhum limite ARENDT, Hannah; Sobre a revolução, p. 128. Esta crítica baseia-se na crença de que a desconsideração pelos interesses dos indivíduos só pode nos levar à catástrofe. O amor pelo que pode ser acaba sempre por matar o que é. Certamente, todos vocês conhecem variantes deste raciocínio. Mesmo que possamos sempre lembrar que “insensibilidade à realidade em geral” é um argumento do qual nenhum governo passa incólume. Só os jacobinos foram sensíveis à escravidão, já que foi apenas graças a eles que ela foi abolida. Só os jacobinos recensearam os indigentes e forneceram a todos eles uma renda vinda dos confiscos de bens dos “traidores da pátria”. Só eles organizaram cuidados médicos aos pobres em domicílio. Poderíamos continuar a falar muito a respeito do que devemos entender por insensibilidade à realidade das pessoas. Mas haverá uma outra forma de crítica. Um forma que procura compreender, de certa forma, ao mesmo tempo, a verdade e a falsidade do terror jacobino. Ela colocará o terror no interior da história do Espírito em direção à realização institucional da liberdade e se encontra em Hegel. De fato: “a experiência do terror jacobino é criticada politicamente, em termos bastante severos, mas jamais é demonizada e reduzida a uma simples orgia de sangue (...) O líder jacobino não era a besta saguinária da qual falava certamente o publicismo da Restauração, mas, muitas vezes, também os publicistas liberais” LOSURDO, ibidem, p. 162. Hegel sabe que o terror é o resultado desastroso da primeira manifestação de um conceito de liberdade que tem no seu bojo o momento da liberdade negativa enunciada em nome da autenticidade do sentimento. Ele é a “liberdade absoluta” transformada em fúria da destruição pois liberdade que não reconhece nenhuma possibilidade de sua institucionalização, que vê todo direito como perda da espontaneidade livre do entusiasmo revolucionário e que, por isto, se volta contra tudo que procura determiná-la, contra todo governo. Como Hegel dirá na Fenomenologia do Espírito, para esta liberdade absoluta: “O que se chama governo é apenas a facção vitoriosa, e no fato mesmo de ser facção, reside a necessidade de sua queda, ou inversamente, o fato de ser governo o torna facção e culpado” HEGEL, Fenomenologia do Espírito, vol II, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 97. Como dirá Charles Taylor: “a maldição da vacuidade assombra também este projeto. Sua meta não é fundar a sociedade em nenhum interesse particular ou princípio positivo tradicional, mas fundá-la somente na liberdade. Isso, porém, sendo vazio, não proporciona uma base para uma nova estrutura articulada da sociedade. Apenas prescreve à destruição das articulações existentes e de quaisquer novas articulações que ameacem surgir” (TAYLOR, Charles; Hegel e a sociedade moderna, Belo Horizonte: Loyola, 2005, p. 103). Afinal, o terror jacobino nada tem a ver com a simples violência totalitária do Estado contra setores descontentes da sociedade civil. Na verdade, ela foi o movimento autofágico de destruição da sociedade e de auto-destruição do Estado, isto até o momento em que os próprios líderes jacobinos terminaram na guilhotina. O jacobinismo é a figura reflexiva do terror que se volta contra si mesmo. Neste sentido, ele se difere de outra figura do terror revolucionário: o stalinismo. Aqui, temos a constituição de um aparelho de violência estatal legitimado pela violência revolucionário e que se volta, de forma constante, contra a sociedade e setores do próprio Estado. No entanto, ele garante a perpetuação de um núcleo dirigente sustentado pela figura de um déspota, o que não é o caso no jacobinismo. No entanto, e isto se esquece muitas vezes, Hegel não deixa de salientar que este momento negativo da liberdade é um momento necessário da história do Espírito. Para compreender isto, devemos definir melhor o que Hegel entende por “liberdade negativa”. No parágrafo 5 da sua Filosofia do direito, Hegel faz a seguinte afirmação: A vontade contém ) o elemento da pura indeterminidade ou da pura reflexão do eu dentro de si, na qual estão dissolvidas toda restrição, todo conteúdo imediatamente aí-presente pela natureza, pelas carências, pelos desejos e impulsos, ou dados e determinados pelo que quer que seja; a infinitude irrestrita da abstração absoluta ou universalidade, o puro pensamento de si mesmo HEGEL, par. 5. A noção de “liberdade negativa”, enquanto primeiro momento da vontade, aparece pois como possibilidade de me liberar de toda determinidade, ser absolutamente para si, como vemos no famoso início da dialética do Senhor e do Escravo. Daí a noção de “abstração absoluta”, noção de posição de uma incondicionalidade que aparece como a primeira manifestação da universalidade. Incondicionalidade que, por sua vez, procura a todo momento reafirmar sua inadequação às determinações postas. Um pouco como se o jacobinismo fosse a realização política de um desejo pensado como pura negatividade. Por isto, a hipóstase desse momento negativo da liberdade é descrito por Hegel em termos bastantes duros: É a liberdade do vazio, que, erigida à figura efetiva ou à paixão, e permanecendo meramente teórica, torna-se, no domínio religioso, o fanatismo da contemplação pura dos hindus, mas, volvendo-se para a efetividade, torna-se, no domínio político, assim como no religioso, o fanatismo do destroçamento de toda ordem social subsistente, e a eliminação dos indivíduos suspeitos a uma determinada ordem, assim como, o aniquilamento de toda organização que queira novamente vir à tona. Somente quando ela destrói algo é que esta vontade negativa tem o sentimento de sua existência. No entanto, e este ponto deve ser salientado, Hegel lembra que é exclusivo do querer humano esta capacidade de abstrair-se de tudo, de transcender toda determinação posta. Por isto, ele deve insistir que : Esta liberdade negativa ou esta liberdade do entendimento é unilateral, mas esta unilateralidade sempre contém em si uma determinação essencial: portanto, não é de se rejeitá-la, mas a deficiência do entendimento está em que ele ergue uma determinação unilateral à condição de única e suprema. Devemos recompor o contexto histórico que leva Hegel a ver nesta liberdade negativa uma determinação essencial. Lembremos, como Hegel compreende a modernidade como o momento histórico no qual o espírito "perdeu" a imediatez da sua vida substancial, ou seja, nada lhe aparece mais como substancialmente fundamentado em um poder capaz de unificar as várias esferas sociais de valores. Ou seja, a modernidade aparece aqui como época na qual a liberdade levou à perda dos vínculos substanciais com formas partilhadas de vida. Daí a ideia de que ela produziria um tipo de sentimento onde a experiência subjetiva da indeterminação aparece como saldo dos processos de socialização. Não deixa de ser provido de interesse lembrar que a compreensão de que a liberdade moderna exige um momento de liberdade negativa pode ser encontrada já em Descartes, ao menos se nos fiarmos em Sartre. Como ele mesmo dirá, a respeito da transcendência cartesiana: “Reconhecemos neste poder de escapar, de se mover, de se retirar para trás, uma prefiguração da negatividade hegeliana. A dúvida alcança todas as proposições que afirmam algo fora de nosso pensamento, ou seja, posso colocar todos os existentes em parênteses, estou em pleno exercício de minha liberdade quando, eu mesmo vazio e nada, nadifico tudo o que existe”. Sendo assim, tudo se passa como se fosse questão de pensar a política e a continuidade dos ideais da Revolução Francesa após o impasse jacobino. Como dirá Ritter: “A Revolução pôs o problema que a época deve resolver (...) este da realização política concreta da liberdade” RITTER, Hegel et la révolution française, op. cit., p. 25. E, para tanto, uma reconciliação possível entre liberdade e direito estatal deve ser posta como tarefa para o pensamento Sabemos como, na Fenomenologia, o momento do impasse jacobino é ultrapassado pela liberdade da autonomia da consciência moral. Marcos Muller nos fornece uma descrição precisa deste processo: “Mas tudo se passa como se a experiência da efetivação política da liberdade absoluta e a sua autodestruição no experimento jacobino de promover, a partir da igualdade política e através da virtude republicana, imposta despoticamente, a igualdade social, fosse, na progressão fenomenológica das figuras, a condição indispensável do pleno acesso do espírito à consciência da liberdade como sendo o seu princípio fundamental e a sua destinação última. Tudo se passa portanto, na ordem de apresentação (Darstellung), como se, antes que a liberdade possa se desdobrar na interioridade moral, nessa “inefetividade” que, assume, então, “o valor do verdadeiro” (323, § 595), fosse preciso que ela passasse pela tentativa da sua realização política e pela experiência do seu impasse e da sua autodestruição no Terror”. (MÜLLER, Marcos; A liberdade absoluta entre a crítica à representação e o terror, mimeo). . Para não ter seu momento negativo hipostasiado, a liberdade deve ser capaz de determinar seus objetos no interior de uma vida social institucionalizada através de um Estado justo. Hegel tem a seu favor o fato do jacobinismo não ser apenas impulso negativo, mas também procura em definir as condições do pertencimento ao estado moderno a partir de exigências irrestritas de universalidade. Não é por outra razão que foi graças ao jacobinismo que ocorreu a inflexão igualitária da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, assim como a ampliação dos direitos do homem para as colônias e o fim da escravidão. Só a partir de tais exigências de universalidade concreta as bases igualitárias do Estado moderno puderam ser fundadas. Podemos dizer que, de uma certa forma, a enunciação da universalidade concreta só é possível após a experiência da negatividade, pois ela pressupõe uma capacidade de abstração e transcendência, uma indiferença às diferenças fundamental para a fundação da noção moderna de cidadão. Notemos um problema já indicado antes de nós. A “abstração” que encontra na Revolução Francesa seu solo pode se transformar em um destes “aspectos mórbidos de um estado de permanente descompromisso”, como dizia Paulo Arantes, que tem na formação desterritoralizada do intelectual moderno uma de suas figuras fundamentais A este respeito, ver os dois primeiros ensaios de ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996.. Dar a tal força de abstração um território é, no fundo, o desafio do Estado hegeliano. Revolução política, instauração estética Aula 5 Vimos, em aulas anteriores, como o conceito moderno de Revolução parecia solidário da emergência de um outro kratos, de uma outra concepção de força. Só uma revolução modifica a força que anima o exercício do poder, não porque ela instaure a força em outros agentes, mas porque ela desconstitui sua gramática. Neste sentido, o movimento astronômico das revoluções era usado para descrever processos históricos que pareciam animados por uma força irresistível que a todos tragava, que levava os sujeitos a fazerem ações que eles sequer julgavam capazes até então, que eles sequer haviam projetado como um horizonte próprio às suas representações conscientes. Em uma revolução, as sociedades seriam atravessadas pelo caráter incontrolável da força de algo que será chamado a partir de então de “história” e que não se reduziria à somatória dos sistemas de interesses do indivíduos ou da compreensão das consciência individuais. Tal como a força de atração do Sol colocaria a Terra em movimento, a força de atração da história colocaria os sujeitos em movimento à sua própria revelia. Mas notem como isto implicava a transformação estrutural do que até então entendíamos por “história”. Não mais a história como Historia magistra vitae, que garantia a intelecção da continuidade do tempo através do homogeneidade de exemplos a serem resgatados, mas a história como expressão da força de acontecimentos que levariam sujeitos para além das representações imediatas de suas consciências. Lembremos mais uma vez deste aparente paradoxo levantado por Hannah Arendt: Era como se uma força maior do que o homem interviesse no momento em que os homens começavam a afirmar sua grandeza e a defender sua honra (...) As várias metáforas que mostram a revolução não como uma obra dos homens, mas como um processo irresistível, as metáforas de ondas, torrentes e correntezas, ainda foram cunhadas pelos próprios atores, que, por mais que tivessem se inebriado com o vinho da liberdade em abstrato, visivelmente não acreditavam mais que fossem agentes livres ARENDT, Hannah; Sobre a revolução, p. 81. Como vimos anteriormente, o paradoxo aqui ficaria por conta de um fenômeno, feito em nome da liberdade e da autonomia dos indivíduos, ser pensado como a submissão a uma força incontrolada, comparável a fenômenos naturais como ondas, correntezas e turbilhões. Uma força cuja subjetivação possível coloca em questão o que entenderíamos até então por liberdade. Pois se liberdade estiver associado à atualização dos sistemas de interesses de agentes individuais, então de fato a dinâmica que anima as Revoluções só pode aparecer como uma submissão. Mas talvez as Revoluções nos coloquem diante de uma mutação necessária do conceito de liberdade, na qual este aparecerá como a transformação da agência a partir da confiança no que não se coloca como representação para uma consciência, mesmo que seja alguma forma de consciência coletiva. E é neste ponto que a Revolução se vincula a uma teoria da história. Durante o século XIX e boa parte do século XX a história foi a forma privilegiada de produção de corpos políticos. Para pensadores do porte de Hegel e Marx, a história aparecia como a destinação necessária da consciência não apenas por ela ser o campo no qual se daria a compreensão do sentido das ações dos indivíduos com suas determinações causais a serem reconstruídas, mas sobretudo por impedir o isolamento da consciência na figura do indivíduo atomizado, construindo identidades coletivas ao mostrar como a essência da consciência encontra-se na reconciliação de seu ser com um tempo social rememorado. Através da história, ser e tempo se reconciliariam no interior de uma memória social que deveria ser assumida reflexivamente por todo sujeito em suas ações. Memória que seria a essência orgânica do corpo político, condição para que ele existisse nas ações de cada indivíduo, como se tal corpo fosse sobretudo um modo de apropriação do tempo, de construção de relações de remissão no interior de um campo temporal contínuo, capaz de colocar momentos dispersos em sincronia a partir das pressões do presente. Deste momento em diante, a consciência não podia mais ser, como era para Descartes, simplesmente o nome do ato de reflexão através do qual posso apreender as operações de meu próprio pensamento. Ato através do qual poderia encontrar as operações de meu pensar quando me volto para mim mesmo no interior de um tempo sem história, tempo instantâneo e pontilhista que dura o momento de uma enunciação, como vemos na segunda meditação cartesiana Ver, a este propósito as relações entre criação contínua e tempo descontínuo em WAHL, Jean; Du rôle de l’idée d’instant dans la philosophie de Descartes, Paris: Alcan, 1920. . A partir de então, a consciência será fundamentalmente “consciência histórica”, ou seja, modo de atualização de um complexo de relações que parecem se articular a partir de uma unidade em progresso. No entanto, esta consciência histórica, como veremos, terá uma configuração bastante singular, pois ela não será marcada pela projeção prospectiva de um projeto, mas pela apropriação retroativa de acontecimentos. Ela será a expressão de um processo de subjetivação, e não do desdobramento de uma substância previamente assegurada. Isto nos colocará mais a frente questões importantes a respeito da pretensa dimensão teleológica de uma teoria da histórica marcada pelo advento das Revoluções. Mas lembremos como, no interior da história, a consistência do corpo político seria dada por este caráter vetorial de um tempo que dá a impressão de progredir e acelerar em direção a um encontro consigo mesmo. Pois esta era a forma da consciência reconciliar sua essência com uma destinação que parece se realizar como pulsação temporal capaz de unificar, em uma rede causal contínua, origem e destino, passado e futuro. Mesmo quando o caráter vetorial do tempo histórico for pensado sob o signo da Revolução e sua nova ordem do tempo, ele nunca deixará de operar como uma certa recuperação de dimensões esquecidas do passado, de promessas que haviam ficado à espera de outro tempo. Lênin se via como a ressureição dos communards, a Revolução Francesa não cansou de constituir seu imaginário através da rememoração da República romana. Ou seja, mesmo a descontinuidade será a efetivação de outra forma de continuidade. Ninguém melhor que Benjamin explorou tal característica de certo tempo revolucionário ao afirmar  que: O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso BENJAMIN, Walter; “Sobre o conceito de história”, in Obras Completas, v.1: Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 223.. Neste sentido, a tarefa política revolucionária será definida a partir de uma certa politização da temporalidade que obedecerá duas estratégias: a aceleração do tempo em direção a seu destino e a repetição das lutas que ficaram para trás à espera de uma recuperação liberadora. Aceleração e repetição como dois vetores indissociáveis de uma mesma estratégia que visa o advento de um “corpo social por vir”, ou seja, corpo social que promete uma unidade semanticamente distinta daquela que se impõe na atualidade. Corpo que recupera e projeta, que desterra e constrói. Neste sentido, gostaria de mostrar como podemos ler Hegel como um filósofo da Revolução, como é partir de operações próprias à sua filosofia que uma das mais influentes teorias da revolução, durante os séculos XIX e XX, se constituirá. Isto implica, entre outras coisas, compreender articulações fundamentais entre Revolução e temporalidade, sobre o modo específico de temporalidade que uma Revolução pressupõe. A crítica da duração Em suas Lições sobre a filosofia da história, Hegel termina por apresentar sua conhecida interpretação a respeito da Revolução Francesa. Segundo tal interpretação, o iluminismo teria produzido um princípio de emancipação ligado à força de abstração do pensamento em direção à apreensão da estrutura racional do mundo. Tal força permitiria a intelecção de princípios absolutos formais que, quando aplicados ao campo do político, nos levariam ao desvelamento da vontade como princípio fundador do poder. Ou seja, a vontade aparece como princípio social fundador. Uma vontade que, compreendida em si mesma, é vontade de liberdade: “A vontade absoluta é isso, querer ser livre” HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 524. A liberdade da vontade será vista como o único fundamento possível de todo direito. Neste sentido, lembremos como: “a vontade é o dispositivo que deve articular conjuntamente ser e ação” AGAMBEN, Giorgio; Le regne et la gloire, Paris: Seuil, p. 97. Uma vontade que deve unificar aquilo que aparece irremediavelmente cindido, que não parece ter uma relação imanente e que, por isto, será sempre vista como a manifestação potencial de um princípio negativo, sem arché, anárquico. Ao se perguntar sobre como a vontade livre poderia se determinar, Hegel indica dois caminhos. Esses dois caminhos lhe servem para explicar porque não teria havido Revolução política na Alemanha. O primeiro desses caminhos diz respeito ao impacto do protestantismo na remissão das leis, costumes e hábitos ao princípio de subjetividade. A remissão protestante da salvação à fé, a livre interpretação da Bíblia, a possibilidade de revelação da palavra à interioridade de cada crente são processos compreendidos por Hegel como dinâmicas de racionalização da vida social em direção a institucionalização social da vontade livre. Na Alemanha protestante, este caminho teria permitido a uma reconstrução da interioridade livre que elevaria a filosofia própria ao idealismo como a forma máxima da realização social da liberdade. Quando a reforma protestante não faz este trabalho, como no caso da França católica, vemos uma sociedade marcada por ser “um agregado de privilégios”, um “estado desprovido de sentido” que empurram o povo à uma Revolução política. Neste sentido, parece que Hegel está a dizer que seria possível evitar a Revolução caso a França tivesse conhecido a Reforma. No entanto, sabemos como a leitura de que a Alemanha estaria atrasada em relação a princípios de transformação social produzidos pela Revolução Francesa era uma perspectiva claramente adotada por Hegel. Isto a ponto de Hegel ver as vitórias de Napoleão contra a Prussia como a expressão do “espírito do mundo”. Devemos salientar este ponto porque, para Hegel, a Revolução é a realização fundamental da história. Uma das razões para tanto vem do fato dela permitir o advento de uma temporalidade no interior da qual o Espírito se realiza. E aqui podemos dizer : o Espírito é uma forma de tempo e um forma de força. Ele é um tempo marcado pela simultaneidade e pela intervenção contínua de planos simultâneos. Tal simultaneidade modifica a noção de agência pois permite aos sujeitos aparecerem como estruturas de ressonância de experiências temporais múltiplas. Colocações desta natureza são importantes para compreendermos melhor quem e como se age no interior de um processo revolucionário. A temporalidade concreta Tentemos iniciar nossa discussão a respeito deste ponto com a seguinte afirmação de Hegel: A eternidade não está nem antes nem depois do tempo, nem antes da criação do mundo, nem depois do mundo passar. A eternidade é o presente absoluto, o agora sem antes e depois HEGEL, G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 247. De fato, o tempo hegeliano, enquanto aquilo que não sendo, é, e enquanto aquilo que sendo, não é, ignora a presença absoluta, tal como poderíamos encontrá-la, por exemplo, no tempo instantaneísta cartesiano, este sim um tempo de pura presença por desconhecer potência e ser plenamente ato Como dirá Jean Wahl, a respeito do tempo em Descartes, nele não há nada que não esteja em ato, “pois a ideia de potência nada tem de claro e distinto; ela é nada. Tudo o que é, é dado em cada instante. O idealismo de Descartes é um atualismo” (WAHL, Jean; idem, p. 10). Mas uma eternidade que supera o tempo, conservando-o - ou seja, recusando uma negação simples do tempo e de suas latências -, também não poderá estabelecer o presente absoluto como presença absoluta. Presente absoluto é a expressão da temporalidade concreta, expressão de como “o presente concreto é resultado do passado e está prenhe de futuro” HEGEL,G.W.F.; Enzyklopädie, op. cit., par. 259. Podemos procurar compreender sua estrutura se partimos de uma importante afirmação de Hegel, segundo a qual A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado, permanecem justapostos (nebeneinander) e apenas por outro lado aparecem como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os tem em sua profundidade presente HEGEL, G.W.F.’ Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. `104. O presente como um círculo de degraus que aparecem, ao mesmo tempo, como justapostos e como passados. Momentos que estão, ao mesmo tempo, atrás e presentes. Como vemos, trata-se de uma experiência temporal contraditória para a perspectiva do entendimento, mas que pode ser compreendida se lembrarmos como o conceito, enquanto expressão da eternidade, é uma forma de movimento que faz todos os processos desconexos se transfigurarem em momentos de uma unidade que não existia até então, ou seja, que é criada a posteriori mas (e este é o ponto fundamental) só pode ser criada porque coloca radicalmente em cheque a forma da unidade e da ligação tal como até então vigorou. O que não poderia ser diferente já que o conceito não é expressão de uma substância ontologicamente assegurada em sua eternidade, mas um operador de adequação pragmática. Por ser um operador pragmático, ele pode produzir performativamente formas de síntese completamente novas, implodindo as impossibilidades da linguagem com a força da confissão de outra língua que nasce. O conceito obriga o mundo a falar outra língua. Nesta sua força de colocar em simultaneidade o que até então era radicalmente disjunto, de criar a contemporaneidade do não-contemporâneo, o conceito pode instaurar o tempo de um presente absoluto no qual não há mais nada a esperar. É isto que devemos ter em mente ao ler afirmações segundo as quais A história tem diante de si o objeto concreto que reúne em si todos os lados da existência: seu indivíduo é o espírito do mundo (…) Mas o universal é a concretude infinita que apreende tudo em si, que é em toda parte presente, porque o Espírito é eterno consigo, pois não tem passado, permanecendo sempre o mesmo em sua força e potência HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der Geschichte, Hamburgo : Felix Meiner, 1994, p. 33 . Mas o fato de não haver nada mais a esperar não significa que, a partir de agora, acontecimentos serão desprovidos de história ou a história será desprovida de acontecimentos. Não há nada mais a esperar porque os impossíveis podem agora se tornar possíveis, já que relações contraditórias foram reconstruídas no interior de um mesmo processo em curso. De certa forma, “a história chega por fim à sua essência propriamente dita” GADAMER, Hans-Gerg; Hegel, Husserl, Heidegger, Petrópolis: Vozes, 2012 transformando-se na cena da luta pela liberdade. Neste sentido, podemos lembrar do que está pressuposto na própria construção hegeliana do conceito de “história universal”, desta história que é o progresso na consciência da liberdade e que se realiza de forma tão acabada através da noção de Revolução. A aceitação de algo como uma “história universal” parece implicar que a multiplicidade de experiências históricas e temporais deva se submeter a uma medida única de tempo. Como dirá Koselleck, trata-se da consequência necessária da definição da história como “coletivo singular”. Definição que teria permitido que: se atribuísse à história aquela força que reside no interior de cada acontecimento que afeta a humanidade, aquele poder que a tudo reúne e impulsiona por meio de um plano, oculto ou manifesto, um poder frente ao qual o homem pôde acreditar-se responsável ou mesmo em cujo nome pôde acreditar estar agindo KOSELLECK, idem, p. 52. Parece ser de fato algo desta natureza que Hegel teria em mente ao falar do espírito do mundo como “alma interior de todos os indivíduos”, como um corpo social unificado na multiplicidade de seus espaços nacionais pela força da Providência. No entanto, a figura do círculo de degraus, ao mesmo tempo simultâneos e passados, não permite pensar unificações temporais redutíveis a um plano geral unívoco a partir do qual todos os devires se extrairiam. Melhor pensar no advento de um tempo definido como a relação entre tempos que são incomensuráveis sem ser indiferentes entre si. Tal concepção de tempo não é sem relação com o fato dos espaços nacionais animados pelo espírito do mundo não poderem, segundo Hegel, ser submetidos a um plano comum de paz eterna, já que o campo das relações entre os espaços nacionais está sempre sujeito a decisões soberanas marcadas pela contingência. Os espaços nacionais que compõem a história universal entram em relação sem garantia alguma de paz e estabilidade Cf. a conhecida crítica de Hegel à paz perpétua de Kant em HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Recht, Frankfurt: Suhrkamp, 1986, par. 333. Da mesma forma, tempos incomensuráveis mas não indiferentes interpenetram-se em um processo contínuo de mutação. Algo muito diferente da universalidade produzida pelo primado do tempo homogêneo, mensurável e abstrato da produção capitalista global, tão bem descrita por Marx. Neste sentido, falar em “história universal” implica simplesmente defender que temporalidades incomensuráveis não são indiferentes. Tal interpenetração de temporalidades incomensuráveis significa abertura constante àquilo que não se submete à forma previamente estabilizada do tempo, o que faz da totalidade representada pela história universal, do presente absoluto que ela instaura, uma processualidade em contínua reordenação, por acontecimentos contingentes, da forma das séries de elementos anteriormente postos em relação. Daí sua plasticidade cambiante. Glorificar o existente Mas lembremos ainda de outra dimensão da força do Espírito na história, a saber, esta força de “desfazer o acontecido”. Ela pode nos fornecer mais orientações sobre o que está em jogo no conceito de presente absoluto. Muitas vezes pareceu, com tal força, estarmos diante da defesa de uma teoria do fato consumado que transfigura as violências do passado em necessidades no caminho de realização da universalidade normativa de um Espírito que conta a história a partir da perspectiva de quem está a: “deificar aquilo que é” ADORNO, Theodor; Dialética negativa, op. cit., p. 252. A confiança no Espírito seria a senha para um certo quietismo em relação ao presente. Melhor seria definir o espírito do mundo como “objeto digno de definição, como catástrofe permanente” Idem, p. 266, ou seja, consciência desperta do que foi necessário perder, e do que ainda é necessário, no interior do processo histórico de racionalização social. Pois pode parecer que uma filosofia à procura de explicar como os “homens históricos” [geschichtlichen Menschen], ou ainda, os “indivíduos da história mundial” [welthistorischen Individuen] serão aqueles cujos fins particulares não são postos apenas como fins particulares, mas que submeteram tais fins à transfiguração, permitindo que eles contenham a “vontade do espírito do mundo” [Wille des weltgeistes], só poderia nos levar a alguma forma de justificação do curso do mundo, como temia Adorno em sua Dialética negativa, repetindo uma crítica já feita por Nietzsche em sua Segunda consideração intempestiva e por Marx quando acusa Hegel de “glorificar o existente”: Chamou-se, com escárnio, esta história compreendida hegelianamente o caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez através da história. Todavia este Deus se tornou transparente e compreensível para si mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus dialeticamente possíveis de seu vir a ser até a sua auto-revelação: de modo que, para Hegel, o ponto culminante e o ponto final do processo do mundo se confundiriam com a sua própria existência berlinense NIETZSCHE, Friedrich; Segunda consideração intempestiva, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 72 Pois sendo a vontade do Espírito do mundo aquilo que se manifesta através do querer dos homens históricos, então como escapar da impressão de que, retroativamente, a filosofia hegeliana da história constrói a universalidade a partir daquelas particularidades que conseguiram vencer as batalhas da história? Como dirá Nietzsche: “quem aprendeu inicialmente a se curvar e a inclinar a cabeça diante do ‘poder da história’ acaba, por último, dizendo ‘sim’ a todo poder” Idem, p. 73. Escapa-se desta impressão, entretanto, explorando melhor duas características fundamentais da ação histórica em Hegel, a saber, sua natureza inconsciente e sua força de recuperar o que parecia perdido, de reativar oportunidades que pareciam petrificadas, através da reabertura do que está em jogo no presente. Nesta recuperação, não se trata de simplesmente justificar a configuração atual do presente, mas de modificar suas potencialidades ao desrealizar o que parecia realidade completamente determinada. Essas duas características se vinculam, já que a compreensão da existência de uma dimensão inconsciente da ação quebra a ilusão do presente ser apenas aquilo que se determina sob a forma estabelecida de representação acessível à configuração histórica atual da consciência. Sobre o primeiro ponto, lembremos de afirmações tais como: Na história mundial, através das ações dos homens, é produzido em geral algo outro do que visam e alcançam, do que imediatamente sabem e querem. Eles realizam seus interesses, mas com isto é produzido algo outro que permanece no interior, algo não presente em sua consciência e em sua intenção HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, op. cit., p. 42. Ou seja, a história é feita por ações nas quais os homens não se enxergam, nas quais eles não se compreendem. Há uma dimensão aparentemente involuntária que constitui o campo da história. Ou, melhor dizendo, há um motor da história que para a consciência individual aparecerá necessariamente como algo da ordem do inconsciente. É a confiança neste involuntário, neste inconsciente que constitui os “homens históricos”. Algo no mínimo estranho se continuarmos aceitando que há uma espécie de reconciliação entre consciência e tempo rememorado no interior da história. Reconciliação peculiar na qual a consciência deve se reconhecer na dimensão daquilo que ela mesma não enxerga, pois se trata de reconciliação com aquilo com o qual ela não saberia como dispor, não saberia como colocar diante de si em um regime de disponibilidade. De certa forma, homens históricos não estão sob a jurisdição de si mesmos, pois estão continuamente despossuídos por suas próprias ações (e, a sua maneira, poderíamos dizer que Hegel leva ao extremo esta contradição: ser despossuído pelo que me é próprio). Ao levarmos isto em conta, podemos compreender, entre outras coisas, porque não são os indivíduos, aferrados na finitude de seus sistemas particulares de interesses, aqueles que fazem a história. Por isto, não são eles que podem narrá-la. Para Hegel, quem narra a história não são os homens, mas o Espírito. Sem entrar aqui no mérito do que descreve exatamente o conceito de “Espírito” (uma entidade metafísica, um conjunto de práticas de interação social apropriado reflexivamente e genealogicamente por sujeitos agentes), gostaria de salientar ainda outro ponto, a saber, no momento em que o Espírito sobe à cena e narra a história, sua prosa é radicalmente distinta da prosa dos indivíduos que testemunham fatos. Em primeiro lugar, porque o Espírito não testemunha; ele totaliza processos revendo o que se passou às costas da consciência. Ele é a coruja de Minerva que rememora, que só alcança voo depois do ocorrido. Uma totalização que não é mera recontagem, redescrição, mas construção performativa do que, até então, não existia. Pois um relato não é apenas um relato. Ele é uma decisão a respeito do que terá visibilidade e será percebido daqui para a frente, por isto as acusações que vem na filosofia hegeliana uma forma de “passadismo” erram completamente de alvo. Fenomenologia do Espírito, ou melhor, Fenomenologia dos Espectros Podemos compreender melhor esta força performativa da rememoração se explorarmos a maneira com que a narrativa da história em Hegel se assemelha, em certos pontos importantes, à elaboração de um trabalho de luto Sobre este tema ver, por exemplo, COMAY, Rebecca; Mourning sickness, op. cit.; ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, op. cit., e LEBRUN, Gérard; L’envers de la dialectique, op. cit.., fato difícil de negligenciar em alguém que descreve a sequência de experiências da consciência em direção ao saber absoluto como um “caminho do desespero”. Neste sentido, talvez não haja momento mais claro do que esta passagem canônica de A razão na história: Tudo parece passar, nada permanecer. Todo viajante já sentiu tal melancolia. Quem esteve diante das ruínas de Cartago, Palmira, Persépolis, Roma sem entregar-se a observações sobre a transitoriedade dos impérios e dos homens, sem cobrir-se de tristeza por uma vida passada, forte e rica? HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte – Band 1: Die Vernunft in der Geschchte, op. cit., p. 35. Ruínas, cuja descoberta aparece agora inicialmente como signo de melancolia. Uma melancolia que parece expressar fixação em um passado arruinado que aparentemente poderia ter sido outro, deveria ter permanecido em seu esplendor. Fixação que desqualifica o existente por pretensamente não estar à altura das promessas que as ruinas das grandes conquistas um dia enunciaram. O que poderia esta melancolia produzir além do circuito da perda e da reparação, além da crença de que a transitoriedade nos revela o sofrimento de nossa vulnerabilidade extrema diante da contingência e do gosto amargo do presente? Ainda mais se lembrarmos que “a história universal não é o lugar de felicidade”. Posição melancólica na qual a rejeição do existente (o que poderia ter sido o presente se Cartago, Palmira, Roma não tivessem tal destino?) pode facilmente se transmutar em acomodação conformista com o que é. Contudo, é para nos livrar da fixação melancólica no passado, abrindo uma processualidade retroativa, que o conceito trabalhará. Daí porque, no mesmo trecho, Hegel não deixará de dizer que “ a esta categoria da mudança liga-se igualmente a um outro lado, que da morte emerge nova vida”. Como lembrará Paulo Arantes: O trabalho conceitual de luto culmina, também, numa liberação que igualmente torna possível outros investimentos; liberta-nos da tristeza da finitude por uma ruptura da ligação com o objeto suprimido, mas esta ruptura assume aqui a forma da dupla negação, pois é o desaparecimento da desaparição ARANTES, Paulo; Hegel: a ordem do tempo, op. cit., p. 210. Sabemos que é este trabalho de luto que estará profundamente associado ao conceito de Revolução, ao menos se seguirmos as considerações de Benjamin: A história é o objeto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogêneo, mas por um tempo preenchido pelo Agora. Assim, para Robespierre, a Roma antiga era um passado carregado de Agora, que ele arrancou ao contínuo da história. E a Revolução Francesa foi entendida como uma Roma que regressa. Ele citava a velha Roma tal como a moda cita um traje antigo. A moda fareja o atual onde quer que se mova na selva de outrora. Ela é o salto do tigre para o passado. Acontece que ele se dá numa arena onde quem comanda é a classe dominante. O mesmo salto, mas sob o céu livre da história, é o salto dialético que Marx definiu a revolução BENJAMIN, Walter; O anjo da história, p. 19. Isto mostra como a Revolução é comparada a um certo trabalho de luto que não opera por mera substituição do objeto perdido, mas que é produção de uma certa forma de existência espectral. Uma existência espectral que, longe de ser um flerte com o irreal, é existência objetiva do que habita em um espaço que força as determinações presentes através de ressonâncias temporais Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo: Editora 34, 2014. Por não ser a mera história dos vencedores, mas por ser a ressureição dos vencidos. Daí porque: “a consciência de destruir o contínuo da história é própria das classes revolucionárias no momento de sua ação” BENJAMIN, Walter, idem, p. 18. Esta destruição do contínuo é a confirmação de uma outra forma de existência e de presente: “um presente que não é passagem, mas no qual o tempo se fixou e parou” porque ele contraiu todos os outros tempos em um só instante. Como Derrida compreendeu bem, a respeito de Marx: “A semântica do Gespenst assombra a semântica do Geist” DERRIDA, Jacques; Spectres de Marx, Paris: Galilée, 1993, p. 175. Esta proximidade, à sua maneira, vale também para Hegel. Pois a existência do Espírito é descritível apenas em uma linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma espessura espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado à desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma metamorfose contínua. Metamorfose que Hegel não temeu ao encontrar sua primeira elaboração imperfeita na representação oriental da transmigração das almas (Seelenwanderung) HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, op. cit., p. 35. Nada melhor que o Espírito hegeliano mostra, mesmo que Derrida não queira aceitar, como: Se há algo como a espectralidade, há razão para duvidar desta ordem asseguradora de presentes e sobretudo desta fronteira entre o presente, a realidade atual ou o presente do presente a tudo o que podemos lhe opor: a ausência, a não-presença, a inefetividade, a inatualidade, a virtualidade ou mesmo o simulacro em geral, etc. Há de se duvidar inicialmente da contemporaneidade a si do presente. Antes de saber se podemos diferenciar o espectro do passado e este do futuro, do presente passado e do presente futuro, faz-se necessário talvez perguntar se o efeito de espectralidade não consistiria em desmontar tal oposição, mesmo tal dialética, entre o presente efetivo e seu outro DERRIDA, Jacques; idem, p. 72. Derrida infelizmente não percebeu como, na obra de Hegel, é através deste efeito de espectralidade que desaparece a desaparição. É assim que o Espírito se afirma como processo de conversão absoluta da violência das perdas e separações em ampliação do presente. Pois esse espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma imagem privilegiada da linguagem de temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por isto, podemos dizer que o trabalho de luto não é uma construção de processos de substituição próprias a uma lógica compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se dispor em um presente absoluto, e esta é a realização maior de uma Revolução. Por isto, o trabalho de luto do conceito, trabalho capaz de construir tal corporeidade, nunca poderia ser compreendido como uma astuta operação de resignação, como várias vezes foi sugerido, de Marx até Deleuze. Ele é uso da força do desamparo na dissolução dos bloqueios do presente, na transformação concreta da experiência do tempo a fim de produzir uma forma inaudita de confiança e abertura. Tendo isto em vista, podemos compreender os parágrafos finais da Fenomenologia do Espírito, dedicados ao saber absoluto, estes que, ao falarem da história como devir do Espírito, afirmam: Este devir apresenta uma sucessão de espíritos e um movimento lento, uma galeria de imagens na qual cada uma é dotada com toda a riqueza do Espírito e ele se move de forma tão lenta para que o Si possa assimilar e penetrar toda riqueza de sua substância. Como a realização do Espírito consiste em saber integralmente o que ele é, saber sua substância, este saber é seu ir-para-si (In-sich-gehen) através do qual o Espírito deixa sua existência (Dasein) e transfere sua figura (Gestalt) à rememoração. Em seu ir-para-si, o Espírito é absorvido pela noite da consciência-de-si, mas sua existência desaparecida conserva-se nele, e sua existência superada (aufgehobne) – esta precedente, mas que renasceu pelo saber – é a nova existência, um novo mundo e uma nova figura do Espírito. Nela, o Espírito deve recomeçar desprevenido (unbefangen) em sua imediatez desde o início e daí recuperar novamente sua grandeza, como se todo precedente fosse para ele perdido e ele nada houvesse aprendido da experiência dos espíritos anteriores. Mas a rememoração (Erinnerung) lhes conservou; ela é o interior e, na verdade, a forma mais elevada da substância. Se este espírito recomeça sua formação desde o início, como se partisse apenas de si, é na verdade de um nível mais elevado que ele começa HEGEL, G.W.F.; Phänomenologie des Geistes, . Assim, a história é uma rememoração na qual as formações do Espírito passam como uma galeria de imagens diante das quais é necessário demorar-se, passar mais de uma vez, como quem está diante da perlaboração de um luto. Desta forma, o Espírito transfere a existência à rememoração. No entanto, tal transferência é bastante singular por parecer inicialmente um esquecimento, por nos fazer adentrar na noite da consciência de si. Pois o Espírito recomeça como se nada houvesse aprendido, como se houvesse tudo perdido, desamparado por ter tudo perdido. Mas tal perda total é uma necessidade, pois ela significa simplesmente que este “novo mundo”, que esta “nova existência” é resultado da força do Espírito em abrir novos começos com a naturalidade de quem nada tem mais a carregar nas costas, com a naturalidade de quem cura suas feridas sem deixar cicatrizes, desfazendo o acontecido No que é impossível não concordar com a colocação precisa de Rebbeca Comay, segundo a qual “Apagamento, não comemoração, é a última palavra da Fenomenologia do Espírito – ao mesmo tempo sua promessa iconoclasta e seu vazio (blank) repressivo. Tal vazio é ambíguo: ele testemunha tanto a abertura radical ao futuro quanto o apagamento das oportunidades perdidas do passado” (COMAY, idem, p. 149). Mas só se rompe tal ambiguidade apostando em um dos pólos. . Ao agir como se houvesse esquecido, o Espírito pode reencontrar as experiências passadas em uma forma mais elevada, retomá-las de um ponto mais avançado, pois ele perceberá que simplesmente deixou a profundidade inconsciente das experiências agir através de seus gestos, deixou seus espectros habitarem seus gestos. Nunca se perde nada, apenas se termina um mundo que já não pode mais ser sustentado, que já deu tudo o que podia dar, para que outro mundo comece, reconfigurando o tempo das experiências passadas em outro campo de existência, em outro modo de existência. Assim, o Espírito reencontra o destino produtivo das experiências que o desampararam. Nenhum passadismo, nenhuma glorificação do existente. Apenas a crença de que nenhum fato poderá nos fazer perder, de uma vez por todas, a possibilidade de recomeçar. Pois: O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se HERÁCLITO; Fragmentos contextualizados, Rio de Janeiro: Odysseu, 2012, p. 135. Revolução política, instauração estética Aula 6 Nós poderíamos começar falando das relações evidentes entre a música de Beethoven e o período revolucionário das primeiras décadas do século XIX. Haveria uma forma mais evidente de falar de tais relações. Ela passa pela identificação de temas derivados de músicas revolucionárias em composições de Beethoven, como o Hino do Panteão, de Luigi Cherubini, composto em 1794 e que fornece a base para a célula elementar do primeiro movimento da Quinta sinfonia. Mas a pressuposição de base deste curso consistia em mostrar como nossa concepção de Revolução é, em larga medida, uma ideia estética, e a partir de agora poderemos aprofundar de forma mais sistemática tal estratégia. Em nosso primeiro encontro, eu insistira que havia um elemento decisivo que fará da estética o campo de uma outra política e ele concerne exatamente o conceito de “força”. Insistir nessa matriz estética era uma forma de cortar curto uma maneira de deslegitimar as ações revolucionárias como secularizações de pressuposições teológicas e messiânicas. Como se o tempo em ruptura que o conceito de revolução expressa fosse, ao fim e ao cabo, herdeiro direto de um necessitarismo que só se sustenta por basear-se na crença da Providência da história. Contra ela, devemos lembrar como, ao contrário, revoluções são processos temporais marcados pela contingência, pela abertura e pela reconfiguração das dinâmicas da ação. Sua matriz não vem da teologia, ela vem da estética. Pois foram as artes que nos ensinaram a incorporar, no interior da vida social, a figura de uma força que é, ao mesmo tempo, produto da ação humana e superação do horizonte da ação guiada pela consciência. Força que não se deriva de um plano preconcebido, que não produz seus acontecimentos sob a forma de um necessitarismo estrito e que, por isto, pode se colocar como a expressão da experiência da liberdade. Na aula de hoje, eu gostaria de mostrar como tal força é pensada a partir de Beethoven como manifestação do sublime. Isto nos exige, inicialmente, contextualizar o conceito de sublime a fim de, posteriormente, compreender como ele pode fornecer uma chave explanatória importante para a compreensão de certos móbiles maiores dos processos construtivos da obra de Beethoven. Por outro lado, subentende-se que haverá uma relação inaudita entre sublime e revolução, principalmente a partir do começo do século XIX. Uma breve contextualização Compreendendo o sublime a partir da noção kantiana de “conceito indeterminado da razão” KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkraft, Hamburg: Felix Meiner, 1988 p. 154; ou seja, uma Ideia da razão que não é adequada a particularidade de nenhuma determinação sensível, mas que pode ser reavivada pelo espírito devido exatamente a esta inadequação, o romantismo alemão viu, na ausência de determinação sensível das representações próprias à música instrumental, o melhor veículo para a atualização de certa experiência da infinitude. Esta é a temática central do que devemos entender por “música absoluta” Sobre o conceito de música absoluta, ver o clássico DAHLHAUS, Carl; Die Idee der absoluten Musik, Bärenreiten, 1989; GOHER, Lydia; The imaginarian museum of musical works, Claredon Press, 1992 et KYVI, Peter; Aesthetical arts: on the ancient quarrel between music and literature, Oxford, 2009. Lembremos como “música absoluta” designa a ideia, profundamente romântica, segundo a qual a música instrumental, desprovida de textos, programas e funções específicas, distante da mimesis e da representação, realiza a essência absoluta da experiência musical. Trata-se, com isto, de vincular a racionalidade musical à autonomização da esfera da música em relação a uma origem na qual o sentido do fato musical não estaria em si mesmo, sentido advindo dos modos de organização funcional do material, mas seria dependente da função da música no interior de rituais ou na sua subordinação em relação a textos recitados ou cantados: subordinação da linguagem musical à palavra. Desta forma, a música instrumental seria um modo privilegiado de formalização daquilo que não se deixa expressar diretamente, que seria “qualitativamente contrário ao conceito”, já que a linguagem musical diria aquilo que a linguagem prosaica não saberia dizer sem produzir determinações particulares vinculadas à indexação do mundo dos objetos Esta dependência da estética musical em relação à metafísica do sublime permanecerá e poderá ser encontrada, entre outros, em Theodor Adorno, para quem: “É específico à música que seu caráter enigmático seja enfatizado pela sua distância em relação à determinação visual ou conceitual do mundo dos objetos” (ADORNO, Theodor; Quasi una fantasia, Frankfurt: Suhrkamp, 1988, p. 156) . Dentre várias questões produzidas por esta operação decisiva, notemos inicialmente a natureza política da decisão romântica em trazer o conceito de sublime para o centro da experiência estética. Não é um mero acaso que a temática tanto do sublime quanto da autonomia da forma musical ganhará força exatamente após a abertura do campo político na Europa pós-Revolução Francesa. A possibilidade de uma linguagem para além dos limites cognitivos da representação aparecerá como expressão maior de uma subjetividade capaz de deixar para trás as convenção, as estruturas de percepção ligadas ao senso comum e ao hábito. Neste contexto, a crítica da representação impulsionada pela reconfiguração da categoria do sublime demonstra sua função no interior de uma crítica claramente política. Pois ela marca o apelo feito pela forma estética à experiência do que violenta o esquematismo da imaginação, do que exige outra forma de estar no tempo e no espaço, do que suspende a imanência de uma ordem da percepção que é o fundamento não tematizado da ordem social. Neste sentido, ela é peça maior de uma estratégia de liberação do sensível das amarras do ordenamento naturalizado do espaço e do tempo, o que permite o advento de formas singulares de experiência do sensível. Notemos ainda como o conceito de sublime deve necessariamente reconfigurar a noção de expressão. Sabemos como Kant está interessado em mostrar como o sublime é modo de experiência de certo aspecto da autonomia moral, pois o prazer negativo no qual o sublime se assenta evidencia a existência de algo em nós que coloca entre parênteses nosso desejo de auto-conservação e quebra a capacidade de apreensão da imaginação. Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-se na disposição humana em acolher o que resiste aos interesses dos sentidos. Da mesma forma que o belo nos prepara a amar algo de maneira desinteressada, o sublime nos prepararia a estimar aquilo que vai contra nosso interesse sensível. Assim, tanto na autonomia moral quanto estética (e ao menos neste ponto tais campos convergem) o sublime apareceria como uma estratégia para a reconstrução das expectativas de emancipação do sujeito em relação ao peso normativo do que lhe apareceria como sua própria natureza. No interior do processos histórico de advento da sociedade dos indivíduos, o sublime aparece como promessa de experiência daquilo que, em nós, não porta a figura do indivíduo e de seu sistemas de interesses. Lida desta forma, a autonomia estética em sua relação à metafísica do sublime não pode ser o resultado de estratégias de purificação da linguagem visando constituir uma esfera de valores organizada a partir de exigências de “legalidade própria”. Antes, ela é a emergência de uma sensibilidade reconfigurada, ela é motor de uma “revolução na sensibilidade” SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, São Paulo: Iluminuras, 1997 capaz de fazer com que a potencialidade de novas formas da vida social, novas formas de imbricação e síntese possam realizar expectativas emancipatórias de produção de experiências singulares. Esta elaboração dos românticos representava uma importante modificação em relação à funcionalidade do conceito até então. Lembremos inicialmente como o uso do conceito de sublime no interior de um debate propriamente estético, e não apenas retórico, precisará esperar 1674, quando Nicolas Boileau traduz para o francês o tratado de Longino. Boileau foi uma das figuras-chaves da Querelle des anciens et des modernes. Representando a linha de frentes dos Anciens contra os modernos, Boileau recorre ao sublime para mostrar como a estética clássica não seria um formalismo estéril, mas a contínua construção de equilíbrio entre grandeza desmesurada e concisão, entre arrebatamento e simplicidade. Para Boileau, através da discussão sobre o sublime, os antigos teriam sido capazes de pensar o que provoca arrebatamento sem, com isto, precisar colocar em risco a harmonia da bela forma. Ou seja, neste momento, não há distinções estritas entre belo e sublime, como será o caso na estética romântica. Se no romantismo, tal distinção se consolida, vindo das reflexões de Edmund Burke BURKE, Edmund; A philosophical enquiry into the origin of our ideas of beauty and sublime, Oxford University Press, 2008 , é por ela ser o resultado mais visível da consciência da ruptura em relação ao classicismo das formas harmônicas e equilibradas, da regularidade dinâmica. Podemos mesmo dizer que a ruptura entre belo e sublime é o dispositivo central de consolidação da estética moderna. Uma ruptura que já se apresenta no romantismo e que chegará, como é o caso atualmente, à pura e simples eliminação do belo como categoria adequada para dar conta dos critérios de avaliação das obras de arte. Dentro do romantismo, é no campo da estética musical que o uso do conceito de “sublime” ganhará mais força, graças à concepção romântica de que a música instrumental, música desligada de textos, programas e funções sociais específicas, era a mais sublime das artes. Pois a música instrumental teria a força de produzir expressão sem representação, expressão sem aderência a sentimentos específicos e determinações empíricas, expressão do que aparece quando as palavras silenciam. Assim, ela seria capaz de dar forma àquilo que se manifesta radicalmente como crítica à limitação de nossas convenções linguísticas e formais. Vejamos um pouco mais de perto a aplicação de tal maneira de pensar o sublime. O sublime musical Embora haja controvérsias, é certo que o sistema de obras musicais ao qual o conceito de sublime parece inicialmente se relacionar tem seu eixo na produção de Beethoven, principalmente a partir de sua Terceira sinfonia, embora seja através de uma crítica de E.T.A. Hoffmann à Quinta sinfonia, publicada em 1810, que se costuma assumir a produtividade do sublime na crítica musical. Como dirá Hoffmann: “A música de Beethoven suscita o medo, o horror, o terror e a dor, nos elevando a esta nostalgia infinita (unendliche Senhsucht) que é a própria essência do romantismo. Beethoven é um compositor puramente romântico e não seria por isto que ele está menos a vontade na música vocal, que não deixa lugar para as emoções indeterminadas (unbestimmten Sehnens) por representar tais emoções, que vem do reino do infinito, apenas através da determinação dos afetos pelas palavras?” HOFFMANN, E.T.A.; Kresleriana, Reclam, 1986. Aqui, Hoffmann apresenta alguns dos traços fundamentais que acompanharão o conceito de sublime durante todo o século XIX. Primeiro, Hoffmann afirma não apenas que Beethoven é puramente romântico, mas que a música é talvez a única arte puramente romântica, como se devessemos assumir uma aproximação, cheia de consequências, entre “romântico” e “musical”. Beethoven é romântico por ser eminentemente “musical”. Seria interessante perguntar-se, no entanto, o que o adjetivo “musical” pode significar neste contexto. Seguindo as discussões a respeito da noção de música absoluta, podemos dizer que “musical” significa, primeiramente, expressão do que se conserva em uma certa vagueza, daí o desconforto relativo de Beethoven com a música vocal. Pois o que é musical não tem a precisão do que se define no interior de um regime espacial de imagens ou do que se define pela capacidade de categorização das palavras. Neste sentido, o que é musical desconhece a “determinação dos afetos”. Por isto, aquilo provido de qualidades musicais tem a força de provocar em nós uma “nostalgia infinita” por apresentar o que nunca está completamente presente. Mas o vocábulo “infinito” não está aqui por acaso. Ele é importante por expressar o desconforto dos artistas do começo do século XIX com as convenções formais da linguagem e com a ordem social que elas representavam. Recorrer ao infinito era a maneira romântica de se compreender em um tempo de mutação no qual a ordem social não podia mais aspirar fundamentação que outrora teve, no qual as normas que forneciam a funcionalidade da forma estética devia ser sistematicamente questionada por parecerem “finitas”. Neste sentido, é interessante lembrar como escritores como Hoffmann diziam que a música era talvez a única arte realmente romântica por ter por único objeto a expressão do infinito. “Expressar o infinito”, neste caso, significa: expressão do que desarticula nossa capacidade de estabelecer relações de identidade e diferença e que, por isto, nega constantemente as aspirações construtivas da forma. O que é “musical” é pois indeterminado, dispõe-se em um jogo constante com o informe, não por deficiência em relação à prosa do conceito (como o anti-romântico Hegel defendia), mas por proximidade com a experiência do infinito. Hoffmann lembra como, para um certo ouvinte médio da época, a música de Beethoven não seria desprovida de fantasia. No entanto, ela seria desorganizada, como se a fantasia subjugasse a forma, o que faria de suas sinfonias uma sucessão inconstante de sentimentos e caracteres. Como disse um crítico da época, os ouvintes de Beethoven eram: “massacrados por uma massa de ideias sobrecarregadas e sem relação umas com as outras, assim como pelo tumulto incessante de todos os instrumentos” Apud ROSEN, Charles; Le style classique, p. 497. Música composta por temas fragmentados por serem, em sua maioria, pequenas ideias musicais de não mais do que quatro compassos, ideias cujas transições são muitas vezes abruptas, cortadas, marcadas por pausas e interrupções. Hoffmann precisa lembrar das opiniões deste “populacho musical” (musikalischen Pöbel) para afirmar que tal desarticulação dos princípios construtivos da forma, que tal desregulação das normas, produzida pela música de Beethoven, não era simples maneirismo, mas modo de trazer para o interior da forma a tensão entre a expressão do infinito e a regularidade das convenções. Este que reclamam de Beethoven procuram a unidade através do respeito às regras gramaticais da linguagem musical hegemônica Por tal razão, Charles Rosen lembrará que: “antes de Beethoven, nenhum compositor tinha tão claramente ignorado o limite de seus intérpretes e de seu auditório” (ROSEN, Charles; Le style classique, Paris: Gallimard, p. 488). Mas eles deveriam procurá-la na força unificadora da ideia. Nesta tensão entre expressão do infinito e regularidade das convenções, a obra não se desagregaria em um mero jogo com o informe porque a música de Beethoven seria capaz de fornecer novos processos construtivos. Note-se, por exemplo, a maneira com que o arqui-famoso primeiro movimento da Quinta sinfonia é organizado. Praticamente todos os motivos são derivados de uma mesma ideia musical, expressa logo nos primeiros compassos com sua figura ritmica suficientemente reduzida, simples e estrutural para não indicar identidade alguma, nenhuma tonalidade que nos permitiria derivar qual será sua progressão harmônica (embora seja verdade que os próximos compassos já deixem claro que estamos em dó menor). Esta ideia musical não se desenvolve no sentido forte da palavra, mas se movimenta por contraste, por acumulação e modulação. A rememoração musical da ideia permite, inclusive, que os vazios, os cortes e as rupturas não comprometam a unidade da forma. É a força produtiva da ideia musical que produz aquilo que Hoffmann chama de uma “articulação interna profunda” (innere tiefe Zusammenhang) que é aproximação entre contrários e mediação entre extremos Daí porque Adorno dirá que: “a unidade em Beethoven se move por meio de antíteses: ou seja, seus momentos, tomados individualmente, parecem se contradizer uns aos outros” (ADORNO, Beethoven, p. 13). Ou seja, a ideia musical aqui unifica contrariedades, absorve até mesmo o silêncio, desconstruindo determinações por reconduzir a diferença a uma identidade indiferenciada de base. É desta desarticulação entre diferença e identidade que viria a expressão do infinito no interior da ideia musical beethoveniana. Contra a comunidade Um exemplo privilegiado do procedimento de Beethoven é sua Abertura Coriolano, composta na mesma época que a Quinta sinfonia. A obra é uma abertura para a versão escrita por Heinrich Joseph von Collin para a peça “Coriolano”, de Shakespeare. A peça de Shakespeare foca-se no desterro do general romano Coriolano, herói romano devido a sua bravura no comando das tropas contra Volscos. Coriolano é a expressão dos ideais aristocratas de honra, bravura e arrogância. Por isto, sua relação com as demandas populares e com os tribunos sempre foi de completa incompreensão. Ao ser nomeado cônsul romano pelo senado e pedir o voto do povo, Coriolano mostra toda sua inabilidade, conseguindo despertar a ira popular e ser banido de Roma. Ou seja, Coriolano é, acima de tudo, aquele que não sabe como falar com o povo, ele é aquele que simplesmente não sabe como se expressar. Na condição de banido, ele acaba por se aliar aos antigos inimigos a fim de marchar sobre a cidade. Às portas de Roma sitiada a indefesa, Coriolano prepara-se para o ataque final quando sua mãe e esposa aparecem rogando-lhe que abandone seu ódio e não invada a cidade. Tomado de tristeza, Coriolano ouve as mulheres e abandona seus planos, o que lhe levará à morte pelas mãos dos Volscos. Ao adaptar a peça de Shakespeare, Collin faz duas mudanças principais. Primeiro, ele atenua o aristocratismo da peça, retirando muitos dos momentos no qual o desprezo pela pretensa inconstância e pela irracionalidade da opinião popular são evidentes. Mas, principalmente, o Coriolano de Collin se suicida, deixando mais clara sua dimensão de herói trágico. Ele é o homem sem comunidade, sem lugar, cuja certeza de si o exila do contato com os outros homens. Personagem que representa com clareza a tensão da individualidade moderna nascente com sua potência de incomunicabilidade, com sua expressão assombrada pela indeterminação. Homem só capaz de parar diante do objeto de desejo em vias de dissolução. Assim, ao escolher transformar a morte de Coriolano em suicídio, Collin permite a exploração da consciência da experiência moderna da desorientação diante da tentativa de ocupar um lugar marcado pelo desterro. A composição de Beethoven dá forma à estrutura do conflito já na própria construção da ideia musical. Pois a ideia musical, exposta logo nos primeiros acordes, é baseada nas modulações possíveis de uma relação de polaridade e conflito entre dois grupos de notas. Tal polaridade irá estruturar praticamente toda a música, aparecendo como elemento construtor interno aos motivos (como podemos ver na partitura em anexo). Já o motivo que aparece nos compasso 15 a 19 demonstra claramente um procedimento no qual a polaridade opositiva entre duas notas serve de base construtiva. Tal polaridade nunca se resolve, mas é simplesmente cortada e suspensa antes de se completar (como no final deste primeiro motivo) ou aumenta por acumulação e intensidade. Ela é o melhor exemplo de como: em Beethoven, ideias formais e detalhes melódicos vem à existência simultaneamente; o motivo singular é relativo ao todo. Ao contrário, no final do século XIX a ideia melódica funciona como um motivo no sentido literal da palavra, colocando a música em movimento e providenciando a substância de desenvolvimento na qual o tema em si foi elaborado DAHLHAUS, Between romanticism and modernism, p. 42. No caso da Abertura Coriolano, podemos dizer que o motivo é a própria ideia musical. Esta permanência extensiva da ideia musical permite integrar acontecimentos que poderiam ser compreendidos como negações radicais da funcionalidade da obra. Um exemplo maior encontra-se na forma com que a polaridade dinâmica entre notas se transforma em polaridade conflitual entre motivos e temas. A peça toda é atravessada pelo antagonismo entre os motivos, associados a Coriolano e organizados basicamente através de polaridades entre duas notas e um tema melódico sinuoso associada às vozes femininas da mãe e da mulher. A primeira apresentação do motivo, pelo primeiro grupo de violinos e pelo grupo de violas, é na tônica de dó menor. A segunda é sob uma modulação para a tônica de si bemol menor. Não por acaso a construção da melodia feminina é baseada em um acorde perfeito de dó maior quando tocada pelos violinos e em um acorde perfeito de si maior quando tocada pelos clarinetes. A ideia de contraposição e distensão é evidente, embora não seja possível dizer que exista aí alguma organização baseada, por exemplo, no esquema antecedente-consequente ou mesmo em algum princípio de transição. Poderíamos pensar em uma relação de contraste, mas tal contraste não segue nenhuma forma de desenvolvimento orgânico. Em certos momentos, ele opera por simples justaposição ou se serve de longas pausas e suspensão da dinâmica para a melodia “feminina” ser reapresentada. É possível dizer que a peça se move por antíteses, já que os momentos, tomados individualmente, parecem contradizer uns aos outros. Ou seja, tomados isoladamente, cada um dos momentos musicais contradiz o que lhe segue. Esse caráter irresoluto do conflito chega até o final da peça, onde a transposição musical da ideia do suicídio de Coriolano ganha forma de um final sem superação, música que simplesmente dissolve sem cadência conclusiva ou promessa de reconciliação teleológica. Ela não se resolve, ela simplesmente para. Nesse ponto, encontramos uma ideia fundamental. A impossibilidade de resolução do conflito, a contínua luta contra a organicidade, não nos leva, como poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em atualizações contraditórias, sem com isto perder sua univocidade. Pois ela desenvolve, ao mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos e a univocidade de sua processualidade infinita que absorve a multiplicidade das determinações. Mas se a ideia musical está, no caso de nossa obra, ao mesmo tempo na voz de Coriolano e na voz de suas mulheres, se ela está, ao mesmo tempo, no reconhecimento da individualidade expulsa da comunidade e na voz da comunidade que pede para ser poupada é porque a ideia expressa a inexistência de um solo comum, na efetividade, no qual essas duas vozes poderiam não entrar em contradição. Por isto, ela só pode aparecer como o que constitui os temas e motivos e o que os dissolve em um puro devir que expõe exatamente a fragilidade do enraizamento de todos os momentos. Tanto a comunidade quanto a individualidade são momentos a serem dissolvidos. Em Abertura Coriolano, Beethoven mostra de forma clara como a essência do que constitui as vozes já é o que as dissolve como momentos de um devir. De certa forma, essa é uma interpretação que fundamenta boa parte da compreensão feita por Theodor Adorno a respeito de Beethoven. Tal compreensão parte da defesa de que a unidade da obra é fornecida pela exploração sistemática do caráter da forma como processo. Tomemos, por exemplo, uma afirmação a respeito da conhecida comparação adorniana entre Beethoven e Hegel: “A realização de Beethoven encontra-se no fato de que em sua obra – e apenas nela – o todo nunca é externo ao particular, mas apenas emerge de seu movimento, ou melhor, o todo é este movimento. Em Beethoven não há medição entre temas mas, como em Hegel, o todo como puro devir é a mediação concreta” ADORNO, Beethoven, p. 24. Esta é a maneira de dizer que, em Beethoven a ideia musical é o que constrói uma noção de totalidade dinâmica. Ideia que, pela sua clareza na apresentação (e por nunca quebrar algumas estruturas elementares de base, como, por exemplo, a polaridade entre tônica e dominante), permite ao ouvinte conservar a percepção da processualidade interna da forma, mesmo à despeito da presença de tudo aquilo que, à época, seria visto como índices de uma forma em desagregação, em flerte contínuo com o informe. Por isto, não há exatamente mediação entre temas, mas um devir contínuo, que nunca para por parecer ser capaz de se desdobrar em tudo. Desta forma, a temática do sublime pode aparecer como modo de compreensão da autonomia das obras em relação às regularidades formais e às convenções de estilo. Ela permite não apenas esclarecer como as obras só se constroem a partir da anulação dos elementos que conformam a linguagem às exigências da comunicação. Ela permite também que as obras de arte possam ser os momentos nos quais a linguagem se redimensiona através do deixar aparecer o fundamento do que se mostra. O que é o terror? Mas se o caráter sublime da música de Beethoven está, por um lado, nesta sua capacidade de usar a ideia musical como um princípio inicial de indeterminação que produz, ao final, uma ordem mais elevada e englobante, há ainda um segundo ponto a salientar. Como diz Hoffmann, a música de Beethoven produz “medo, terror, horror”, embora a princípio não seja claro a que fenômeno musical ele exatamente se refere. Seria ao caráter massivo e descomunal do uso dos recursos musicais? Ou devemos procurar a matriz de produção de tais sentimentos em outro lugar? Voltemos momentaneamente à discussão filosófica sobre o sublime. O terror sublime é um tema que acompanha as discussões do conceito ao menos desde Edmund Burke e sua maneira de ligar o sublime à dimensão dos prazeres negativos. Burke distingue dois tipos de prazeres produzidos pela contemplação estética: os positivos e os negativos. Os primeiros estariam vinculados à harmonia, clareza, suavidade e constituem o quadro de atributos da beleza. Já os segundos seriam produzidos pela contemplação de objetos propícios a ocasionar dor, pois de certa forma ameaçadores e perigosos. Foi pensando no prazer provocado pela contemplação do que ameaça nossa existência física que Kant dirá: “sublime é o que compraz através da sua resistência contra o interesse imediato dos sentidos” KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkfrat, Hamburgo: Felix Meiner, 1993. A fórmula de Kant é precisa. Encontrar prazer no medo e na dor significa, neste contexto, descobrir o prazer de ir contra o interesse imediato dos sentidos, de descobrir algo em mim que não é apenas a expressão de meus interesses individuais de auto-conservação. Lembremos, neste ponto, da maneira com que Kant acrescenta algo novo na ideia, própria aos sensualistas ingleses, de que seriam sublimes os fenômenos nos quais descubro o caráter descomunal e desmedido da natureza, como grandes tempestades, pradarias inabitadas, vastas cataratas, entre outros. Ele lembra que não seria exatamente tais fenômenos que deveriam ser entendidos por sublimes, mas a descoberta de algo em mim que não os teme, algo em mim que os supera e os domina. Assim, Friedrich Schiller, profundamente influenciado neste ponto por Kant, podia afirmar que a contemplação da força da natureza, em segurança, nos abre à descoberta de uma resistência que não é resistência física, mas resistência vinda de nossa dissociação entre existência física e personalidade. Entusiasmamo-nos com o temível porque podemos querer o que os impulsos repudiam, porque há um querer para além dos impulsos sensíveis. Ou seja, no belo, razão e sensibilidade se harmonizam. No sublime, elas encontram seu ponto de desregramento. Kant abre tal discussão estética por estar interessado em mostrar como o sublime é modo de experiência da autonomia, pois o prazer negativo no qual o sublime se assenta evidenciaria a existência de algo em nós que coloca entre parênteses nosso desejo de auto-conservação, quebrando a capacidade de apreensão da imaginação. Por isto, Kant pode afirmar que o julgamento sobre o sublime assenta-se na disposição humana ao sentimento moral. Da mesma forma que o belo nos prepara a amar algo de maneira desinteressada, o sublime nos prepara a estimar aquilo que vai contra nosso interesse sensível Desenvolvi esse ponto de maneira mais extensa em SAFATLE, Vladimir; O dever e seus impasses, São Paulo: Martins Fontes, 2013. Neste sentido, o que é exatamente monstruoso no sublime é a descoberta de uma força em nós que é desmedido em relação às medidas da individualidade, força em nós que não porta a imagem do indivíduo. Uma descoberta que só se dá através da descoberta do prazer de contemplar o que pode destruir nossa existência sensível ou que pode esmagar nossa dimensão finita e humana. Há sempre algo de profundamente inumano no sublime e se a inflexão romântica do conceito aparece exatamente no momento em que as sociedades ocidentais começam a se constituir como “sociedades dos indivíduos” é porque a arte procura guardar uma experiência que tais sociedades só verão com os olhos de uma “nostalgia infinita”. Mas talvez esta discussão filosófica pareça agora muito distante do universo musical, em especial o universo de Beethoven. No entanto, se recuperarmos neste contexto um conceito desenvolvido por Theodor Adorno para descrever as últimas obras de Beethoven, talvez tenhamos uma aproximação sugestiva. Procuramos algo, na música de Beethoven, desmedido e monstruoso em relação às medidas da individualidade . Poderíamos apelar para o excesso como manifestação da desmesura, ou seja, para a maneira com que algumas de suas obras são monumentais, excessivamente longas para os padrões da época, mobilizando largos recursos musicais, como a Nona sinfonia. Mas podemos também, e este me parece um caminho muito mais contemporâneo e interessante, procurar a desmesura na experiência da subtração. Uma subtração que, à sua maneira, nos lembra da presença monstruosa do que nos silencia e do que anula nossa individualidade, ou seja, a presença da morte. Este talvez seja o sentido da noção de “estilo tardio”, empregada por Adorno para falar das últimas obras de Beethoven. Poderíamos inicialmente imaginar que o interesse de Adorno pelo “estilo tardio” viria de sua procura em entender experiências estéticas que parecem culminar nas últimas obras. Mas “culminar” não significa aqui a realização mais bem acabada e harmônica de um projeto maturado. Como bem lembra o crítico literário Edward Said: “O poder do estilo tardio de Beethoven é negativo, ou melhor, é a própria negatividade: lá onde poderíamos esperar serenidade e maturidade, encontramos, ao contrário, uma mudança áspera, difícil, inflexível e, às vezes, inumana” SAID, On the late style, p. 12. Esta é uma maneira de afirmar que o caráter tardio de uma obra expõe, na verdade, sua capacidade de ser a forma de uma tensão explosiva entre forma e expressão. Dizer que o poder do estilo tardio de Beethoven é negativo significa afirmar que a tensão própria à fase dita clássica de sua obra será potencializada pelo próprio desenvolvimento da linguagem musical do compositor. Muitas vezes, a peculiaridade de sua última fase foi colocada na conta de motivos psicológicos, como a extrema surdez e um certo desespero daí advindo. No entanto, Adorno insiste que há uma razão interna ao desenvolvimento da linguagem musical. Isso nos permite dizer que a noção de estilo tardio não será apenas uma descrição de uma fase da experiência artística de Beethoven, mas uma chave de compreensão de obras de compositores variados como Schoenberg, Strauss, entre outros. Said chegará a afirmar, e neste ele não está completamente errado, que o conceito de estilo tardio é o conceito central da estética adorniana. Na verdade, ele seria a descrição da própria experiência da obra de arte em seu ponto de máxima tensão, pois exposição da profunda instabilidade formal, do acordo frágil e contraditório entre planos construtivos e demandas expressivas que não se colocam mais sob as formas do que entendíamos por “expressão”. “Na história da arte, obras tardias são catástrofes”. Esta frase de Adorno é decisiva para nossa discussão. Se as obras tardias são catástrofes é porque elas aparecem como o lócus de uma quebra em relação ao regime do funcionamento das determinações da convenção. Sobre as obras tardias de Beethoven, Adorno afirma, por exemplo, que elas faltam harmonia. Os silêncios são cada vez maiores, as quebras muitas vezes se dão nos meios das frases musicais, os contrastes parecem simplesmente justapostos. A princípio, poderíamos acreditar que tal falta de harmonia seria o resultado de uma subjetividade superdimensionada que procura alguma forma de expressão integral e que, por isto, não teme explorar extremos desprovidos de mediação. O que explicaria porque ela procuraria quebrar, ou ao menos ignorar todas as regras até então respeitadas. Mas esta desmesura aparece, em Beethoven através do abandono do que parecia garantir à forma sua organicidade, assim como através do uso de convenções que aparecem de maneira explícita. Como se estivéssemos diante de uma espécie de indiferença à aparência que permite ao compositor usar fórmulas e fraseados deliberadamente convencionais. Mas um uso da convenção que não consegue mais garantir a aparência de organicidade. Notemos assim que, se o poder de sua música é negativo e por vezes inumano, é porque o horror sublime que ela provoca vem de sua força de subtração e de recusa do que era até então compreendido como elementos fundamentais para o reconhecimento da “humanidade” da expressão, não de sua exposição grandiosa de materiais. Levando em conta seu estilo tardio, podemos dizer que Beethoven nos mostra como as obras sublimes parecem transformar a subtração em consciência aguda da atrofia da linguagem. No entanto, gostaria de mostrar como tal ideia de estilo tardio traz, no seu bojo, possibilidades de compreensão de processualidades da forma musical que nos fornecem a genealogia de estratégias composicionais mais próximas de nós. Poi a poi di nuovo vivente Dentre vários exemplos possíveis de estilo tardio, poderíamos analisar o adagio da Sonata para piano, n. 31, opus 110, com sua articulação entre um arioso e uma fuga. Vários elementos nesta peça surpreendem o ouvinte de Beethoven. Primeiro, contrariamente à Abertura Coriolano e à Quinta sinfonia, a ideia musical não é claramente apresentada. Ao contrário, os sete primeiros compassos introdutórios são um dos mais impressionantes momentos de indeterminação musical na produção do romantismo. A tonalidade é completamente oscilante. Sete compassos nos quais a música oscila entre, ao menos, si bemol menor, sol bemol maior, mi maior e dó bemol menor. Esta oscilação expressa o espírito de uma música em suspensão, que desenha um motivo para terminar abruptamente em um arppegio, que suspende o desenvolvimento para insistir de maneira obsessiva na pura repetição da mesma nota por quase dois compassos. Quando a música de fato começar, com um arioso dolente, ela ainda não estará na tonalidade que lhe caracteriza (lá bemol maior). A estabilização da tonalidade só virá quando uma fuga enfim aparecer. A introdução do adagio funciona como o anúncio da monstruosidade de uma expressão sem gramática, que parece ter renunciado à seu lugar como motor dinâmico da ideia musical, quebrando aparentemente a unidade que constitui a própria especificidade da experiência musical de Beethoven. A posição da expressão nesta situação levará a música a um movimento de profunda cisão, um pouco como vimos no antagonismo presente na dinâmica da Abertura Coriolano. No entanto, aqui a cisão se desenvolverá de outra forma. Com a retração da ideia musical, a obra se construirá através da radicalização do princípio de mediação pelos extremos, na qual a tendência à fragmentação é controlada não por uma síntese final, mas, como veremos, pela alteração interna das formas. Se lermos de forma dialética a relação entre o momento clássico e tardio de Beethoven poderemos dizer que a retração da ideia abre a assunção de espaços de indeterminação formal nas obras. Mas a retração da ideia não é sua pura e simples anulação. Como foi ela que construiu a linguagem beethoveniana, como sua linguagem é definida por sua capacidade em produzir totalidades processuais nas quais identidades estão em contínua reconfiguração, algo da ideia pode permanecer mesmo quando ela está ausente, a saber, a noção de processo, mesmo que agora dramatizado pela retração do elemento que garantia sua unidade. Vejamos como isto se dá no interior da sonata. A sonata se desdobrará através de uma justaposição entre duas formas: o arioso e a fuga. O arioso, com seu espírito entre a ária e o recitativo acompagnato, apresenta um extenso tema melancólico, em um tempo diferente do tempo da introdução (passamos do 4/4 para o 12/16). Ele é acompanhado por uma fuga, em outro tempo (6/8) e tonalidade. Não há transição entre os dois materiais, um não é a introdução do outro pois tudo que poderia funcionar como transição foi subtraído. Sai-se do adagio do arioso ao allegro da fuga de forma completamente inesperada. O que não poderia ser diferente já que estamos na posição de extremos: o caráter profundamente monofônico do canto meio falado do arioso e a polifonia da fuga. O uso da fuga guarda, por sua vez, as marcas de uma forma gasta em relação ao estágio do material musical de então. Compor uma fuga em 1822 era revisitar um modo de composição envelhecido, com suas regras de contraponto e transposição que andavam na contramão da clareza harmônica e de uma certa liberdade expressiva defendida pelo romantismo. Seria aparentemente a última coisa a fazer para quem procura afirmar uma “subjetividade desmesurada”. Mas, à sua maneira, o segundo movimento da sonata nos descreve o movimento de dar vida ao que parecia mera forma convencional. Isto fica claro na passagem da segunda exposição do arioso à segunda exposição da fuga e ao final da sonata. Ao voltar ao arioso de forma completamente abrupta, parando um frase ao meio, Beethoven escreve na partitura “perdendo le forze, dolente”. Deve-se tocar o piano com o horror dos que sentem a força indo embora. Ou seja, deve-se encontrar uma expressão que se esvanece, cuja intensidade vai do piano ao pianíssimo, como quem faz do lamento recitado do arioso uma procura pelo grau zero. Notemos, no entanto, como nada disto implica suspensão efetiva da processualidade da peça. Como dirá Adorno, as últimas obras ainda permanecem um processo, embora ele não possa ser compreendido como desenvolvimento. Se não temos aqui exatamente a processualidade como movimento de superação de antagonismos através do desvelamento progressivo da força construtiva da ideia musical, como vimos na Abertura Coriolano, temos uma outra forma, baseada na posição do informe no interior das obras e sua transformação em motor de impulso para o processo de reconfiguração de formas convencionais. No caso da Sonata opus 110, tal transformação ocorre através do retorno final à fuga. Ao terminar a melodia do arioso, Beethoven apresenta uma sequência de treze acordes em ampliação de intensidade que tem como função mimetizar um movimento de emergência. O que nos explica porque a volta da fuga é exposta na partitura com a indicação “piu a piu di nuovo vivente”. É no interior da segunda exposição da fuga que, de pouco a pouco, a vida retornará. A respeito desta sequência massiva de acordes em progressão, dirá Rosen: “Beethoven não apenas simboliza ou representa o retorno da vida, mas nos persuade fisicamente do processo” ROSEN, Charles; Beethoven’s piano sonatas, Yale University Press, 2002, p. 240. Sua análise ainda acerta ao lembrar que a reexposição da fuga é feita utilizando as regras mais elementares: a inversão do tema da fuga, a aumentação e a diminuição. Ou seja, a vida que retorna de pouco a pouco se serve das normas aparentemente ultrapassadas para, sempre de pouco a pouco, mostrar como alterá-las. Nesse processo, a sonata produz sua realização mais surpreendente. Beethoven conserva o tema da fuga e suas transposições entre a mão esquerda e direita, mas agora sem servir-se do contraponto, usando acompanhamentos completamente estranhos à linguagem barroca, acompanhamentos da linguagem musical de seu tempo. Mas como tudo deve ser feito “poi a poi” (há três indicações na ultima parte da partitura), como não deve haver quebra na mutação das formas, elas agora se alteram em continuidade. E nesta alteração em continuidade torna-se possível a realização da integração entre dois tempos distintos do material musical. Assim, a fuga ainda permanece, mas sem ser mais fuga. Ela ainda pode ser identificável, mesmo que não haja mais o que identificar. A vida, que pouco a pouco retorna, encontra o caminho de produzir novas formas, quebrando a descontinuidade do tempo ao produzir-se como expressão do que já não está mais no tempo linear. Tempo cuja manifestação não seria possível sem o descolamento radical em relação à gramática da linguagem musical permitida pela posição, desde os primeiros compassos, da potência do indeterminado. Revolução política, instauração estética Aula 7 Na aula de hoje, gostaria de iniciar a discussão a respeito da teoria marxista da Revolução. Nela, vincula-se duas operações fundamentais do pensamento de Marx: a consolidação da temática da emancipação como eixo fundamental do projeto crítico e a compreensão da descontinuidade latente do tempo histórico. Tempo e sujeito são os dois polos da teoria marxista da revolução. Pois longe de ser a descrição dos modos de realização de uma utopia de forte teor normativo, a teoria da revolução em Marx é a descrição dos processos históricos de ruptura de formas de vida associado à temática do processo de emergência de sujeitos políticos. Mais do que uma teoria do governo, a temática da revolução é reflexão sobre os processos de insurreição e de constituição insurrecional de sujeito dotados de capacidade de transformação prática da natureza dos vínculos sociais. Neste sentido, tal conceito de revolução se vincula a três fatores decisivos, a saber: uma concepção de tempo histórico, uma concepção de sujeito político e uma concepção de processualidade dialética. Tentemos analisar esses três fatores a fim de melhor compreender a maneira com que a temática da revolução se introduzir de forma fundamental na filosofia de Marx. Lembremos inicialmente como, no período de 1846 a 1852, Marx abandona o horizonte de seus primeiros escritos (Crítica da filosofia do direito de Hegel, A sagrada família, A ideologia alemã, Miséria da filosofia), todos eles dedicados, principalmente, ao debate polêmico com o pós-hegelianismo e correntes do socialismo de então, como Proudhom. Neste período, é claro seu engajamento direto na reflexão e no ativismo revolucionário. Em 1846, Marx e Engels começam de maneira sistemática a atividade política no interior do movimento operário. Tudo se passa como se, depois de refletir teoricamente sobre a concepção materialista da história, fosse questão de se implicar praticamente no curso do mundo através, principalmente, do problema da organização da revolução proletária. Daí que a finalidade da atividade política de Marx será: formar uma vanguarda comunista, livre do socialismo utópico, ‘verdadeiro’, conspirador, artesanal ou ‘sentimental’, constituir em escala internacional e, antes de tudo, na Alemanha, um partido comunista revolucionário e ‘científico’ que deveria ser teoricamente coerente, sem ser uma seita apartada das massas LÖWY, Michael; A teoria da revolução do jovem Marx, p. 160. Ou seja, abandonar a lógica da ação política conspiratória ou compensatória a fim de definir as condições para um partido de massas orientado à revolução mundial. Marx e Engels se implicarão então em várias associações de trabalhadores (Comitê de correspondência comunista, Liga dos justos, Liga dos comunistas, entre outras) a fim de constituir as condições de um partido comunista engajado, como vemos no primeiro parágrafo da Liga dos comunistas: “na derrubada da burguesia, no domínio do proletariado, na supressão da antiga sociedade burguesa fundada na oposição entre classes e na criação de uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada”. Esta atividade os levarão à publicar um manifesto para a Liga dos comunistas, a saber, o Manifesto Comunista, de 1848. Eles ainda se engajarão na atividade jornalística de difusão do comunismo através da criação da Nova Gazeta Renana, que durará poucos anos. Assim, neste momento, Marx e Engels percebem a iminência do processo revolucionário. Eles acreditam em uma crise iminente do capitalismo que levaria necessariamente à revolução. Mas há aqui um elemento complicador. Pois o capitalismo é um sistema que faz da crise o seu fundamento. Sua dinâmica de auto-valorização do valor é uma contínua lógica de desmedida (masslos) e de sobreprodução. Marx acredita que tal desmedida do valor leva, necessariamente, a um processo, ao mesmo tempo, de aprimoramento da produção, de reconfiguração dos processos produtivos a partir de exigências de capitalização e de pauperização crescente das massas trabalhadoras. Processo este que, ao menos para Marx e para Engels, só pode caminhar a uma crise final com a abertura necessária à Revolução. Assim, podemos ler em um trecho célebre do Manifesto Comunista: A moderna sociedade burguesa, com suas relações de produção, troca e propriedade, sociedade que deu surgimento a gigantescos meios de produção e troca, assemelha-se ao feiticeiro que perdeu o controle dos poderes infernais que pôs em movimento com suas palavras mágicas. Há mais de uma década a história da indústria e do comércio é simplesmente a história da revolta das forças produtivas modernas contra as condições modernas de produção, contra as relações de propriedade que condicionam a existência da burguesia e seu domínio. Basta lembrar as crises comerciais que, repetindo-se periodicamente, ameaçam cada vez mais a sociedade burguesa. Nestas crises, destrói-se grande parte dos produtos existentes e das forças produtivas desenvolvidas. Irrompe uma epidemia que, em épocas precedentes, pareceria um absurdo – a epidemia da superprodução. Repentinamente, a sociedade vê-se momentaneamente de volta a um estado de barbarismo; é como se a fome ou uma guerra universal de devastação houvesse suprimido todos os meios de subsistência; o comércio e a indústria parecem aniquilados. E por que? Porque há demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas disponíveis já não mais favorecem as condições da propriedade burguesa; ao contrário, tornaram-se poderosas demais para essas condições que as entravam; e quando suprimem esses entraves, desorganizam toda a sociedade, ameaçando a existência da propriedade burguesa. A sociedade burguesa é muito estreita para conter suas próprias riquezas. E como a burguesia vence essas crises? De um lado, pela destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas, do outro, pela conquista de novos mercados e pela intensa exploração dos antigos. Portanto, prepara crises mais extensas e mais destrutivas, diminuindo os meios de evita-las MARX e ENGELS, Manifesto Comunista, p. 39. Neste extenso trecho, encontramos sintetizado vários tópicos maiores da teoria da relação entre crise e revolução em Marx. Primeiro, a ideia de que o desenvolvimento da burguesia é impulsionado por um ritmo constante de crises cada vez mais extensas. Como um feiticeiro que não controla os poderes infernais que invocou, a burguesia amplia sua capacidade produtiva de forma tal a colocar em contradição contínua as forças produtivas e as relações sociais de produção, ou seja, as relações de propriedade dominadas pela burguesia. Essa é outra forma de dizer que o processo de valorização do Capital é marcado por um excesso, o fundamento do sistema de produção de valor é expressão de uma dissolução contínua de si. Há uma certa auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de valorização do Capital, ou seja, há uma auto-dissolução do fundamento no próprio movimento de sua atualização. A atualização do fundamento de produção próprio ao capitalismo produz demasiada civilização, demasiados meios de subsistência, demasiada indústria. Mas quanto mais produtividade, menos vale o trabalho, mais necessário é aumentar o tempo de trabalho, maior a intensificação dos regimes de trabalho e a pobreza relativa. Daí porque a sociedade burguesa é muito estreita para conter suas próprias riquezas. Só lhe resta então dois caminhos ou a produção contínua das catástrofes, com a consequente destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas através das guerras, das crises ou o imperialismo com seu avanço da lógica monopolista. O Capitalismo aparece assim, para Marx e Engels, como um sistema cujas crises lhe são inerentes, levando-lhe a ser um gestor contínuo de catástrofes e dominações imperiais. Isto até o momento em que o processo de espoliação chegar a um nível tal que, mundialmente, aparecer a classe do proletariado em um processo de interação contínua e de consolidação de prática revolucionária. O advento da figura “vazia” do proletariado será o correlato da “dissolução” de um mundo Ver BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, p. 364. Ou seja, o proletariado é o termo médio que permite a unificação entre crise e revolução. A teoria da revolução assim é um setor de uma teoria mais ampla das crises imanentes ao capitalismo. Por outro lado, ela é a expressão de uma concepção de filosofia da história para a qual a história é expressão de uma sequencia de momentos típicos nos quais ela se universaliza, transformando-se em história mundial. De fato, Marx e Engels partilham esta característica da filosofia hegeliana da história, para quem a história de universalização caminha através da realização do conceito de liberdade. É este caminho da liberdade que estabelece a diferença entre a história positiva e a história tal como é objeto da filosofia da história. No entanto, há uma diferença maior entre Marx e Hegel neste ponto. Para Marx, o caminho da liberdade não segue em direção à realização do Estado moderno como forma institucional da vida racional mas, ao contrário, caminha em direção à desconstituição do Estado moderno em prol de uma associação entre indivíduos histórico-universais livres que apareceram inicialmente sob a forma de proletários. Para tanto, faz-se necessário que o advento do proletariado impulsione um processo de luta de classe que exigirá a organização da massa de despossuídos em classe e sua união em partido comunista. Este processo chegaria a uma “hora decisiva” na qual mesmo o setor dos ideólogos burgueses compreenderiam teoricamente o momento histórico em geral. Uma hora decisiva na qual a guerra civil implícita na sociedade se transformaria em guerra aberta e declarada com a derrubada violenta da burguesia. Assim: “a passagem ao comunismo seria pois iminente desde que as formas e contradições da sociedade civil burguesa fossem completamente desenvolvidas” BALIBAR, Etienne; La philosophie de Marx, p. 79. Neste momento, Marx e Engels compreendem que a revolução só pode ocorrer de forma violenta, como uma insurreição popular dirigida por uma vanguarda comunista que teria “uma compreensão nítida, das condições, rumos e objetivos gerais do movimento proletário”. Vanguarda esta que não é uma espécie de direção intelectual, mas a fração do movimento operário mais vinculada ao processo de luta internacional. Tal revolução ocorreria, ao menos para Marx e Engels, inicialmente na Alemanha devido à sua posição no processo de acumulação capitalista, mas ela se desenvolveria ao ritmo de uma revolução mundial. Por outro lado, Marx e Engels rejeitam a tese, muito difundida no movimento operário da época, de uma transformação pela educação. Neste sentido, as Teses sobre Feuerbach são exemplares na sua pergunta: “quem afinal irá educar os educadores?” e na sua confrontação entre a mudança pela educação e a prática revolucionária. Por isto, esta fração comunista não “educa” a massa proletária. A princípio, ela expressa “o movimento histórico que se desenvolve diante dos nossos olhos”, ela nomeia o que ocorre, através de um nome próprio. Tal colocação é fruto da crença de Marx e Engels em uma expressão imanente do real que não pode se reduzir a um discurso ideológico. Expressão imanente baseada nas noções de contradição, de antagonismo, assim como de um diagnóstico que eleva a alienação a condição de sofrimento social fundamental nas sociedades modernas ocidentais e a exteriorização do ser do gênero a condição de seu horizonte de superação. Lembremos ainda que o processo de abolição da sociedade de classes levaria o proletariado a ações como: a centralização dos instrumentos de produção nas mãos do Estado com a consequente abolição da propriedade privada, a criação de imposto progressivo, o fim do direito de herança, a centralização do crédito nos bancos do Estado, a educação gratuita para todas as crianças e a abolição gradual da distinção entre cidade e campo. Estes são os pontos fundamentais defendidos no Manifesto Comunista. O fracasso da revolução No entanto, com a Revolução de 1848, Marx se depara com algo que ele não esperava no Manifesto Comunista, a saber, o fracasso da revolução que parecia tão iminente, com a consequente adesão de uma parte do socialismo francês ao bonapartismo, com a passividade operária diante do golpe de Estado de Luís Bonaparte. Esta experiência histórica é tão importante que, a partir de 1852, Marx só voltará a publicar um livro em 1859, a saber, Para a crítica da economia política. É a partir do fracasso da revolução que Marx se volta de maneira mais sistemática à crítica da economia política. Como se fosse questão de procurar, na estrutura da racionalidade da vida social moderna e de seus modos de reprodução material da vida, as causas fundamentais para o bloqueio da assunção do proletariado a condição de sujeito revolucionário. Marx irá então se colocar a questão: como se perde uma revolução? Qual a operação que não leva a uma revolução, mas a uma “parodia” de transformação, a uma “mascarada”, a um falso movimento. Esta discussão é fundamental por nos mostrar como, no interior da teoria política de Marx, haverá a distinção entre uma verdadeira revolução e uma transformação meramente aparente. Isto a ponto de podermos dizer que o capitalismo será então um espaço de produção contínua de transformações aparentes que visam evitar uma transformação real. Inicialmente, Marx fala em diversas ocasiões que a revolução de fevereiro de 1848, que derrubou a monarquia de Luís Filipe, ocorreu “cedo demais”. Ou seja, não havia um processo proletário amadurecido. A revolução foi impulsionada pela crise econômica com sua “devastação do comércio e da indústria” MARX, Karl; As lutas de classe na França, p. 42 que tornou a tirania da aristocracia financeira ainda mais insuportável. Ela ainda se serviu da divisão da burguesia entre a aristocracia financeira, ligada à monarquia que vigora na França entre 1830 e 1848, e a burguesia industrial, que sofrerá diretamente com a crise e encontra-se distante do centro de decisões do poder. Por isto, entre fevereiro e julho de 1848, mês das revoltas populares e das barricadas em Paris, o movimento ocorreu de forma retroativa. Tudo se passa como se as condições necessárias para a revolução proletária fossem se desenvolver depois da queda da monarquia. Este processo retroativo não é, no entanto, a fonte do fracasso da revolução. A respeito das causas do fracasso, lembremos das palavras de Marx: O proletariado se lançou em parte, a experimentos doutrinários, bancos de câmbio e associações de trabalhadores, ou seja, a um movimento em que abriu mão de revolucionar o velho mundo com o seu grande cabedal de recursos próprios; ele tentou, antes, consumar a sua redenção pelas costas da sociedade, de modo privado, no âmbito de suas condições restritas de existência, e por isso, necessariamente fracassou MARX, Karl; O 18 do brumário, p. 35. Ou seja, o fracasso vem do fato do proletariado não assumir sua situação de sujeito revolucionário, não estar em condições de consumar sua tarefa histórica, preferindo acreditar em promessas de recondução de um lugar social no interior da ordem existente. Isto ocorre, diz Marx, porque a história está presa a uma repetição que é necessário suspender, uma repetição que é necessário romper e que aparece vinculada à incapacidade do proletariado em afirmar o desamparo de sua despossessão, de sua ausência de lugar. No entanto, esta repetição só pode ser suspensa através de outra forma de repetição. Marx é consciente de que toda revolução é uma repetição. Este postulado é a consequência do fato do tempo histórico no interior da dialética ser composto por repetições, ou seja, por retornos que reinscrevem continuamente os fatos em uma nova significação. Lembremos desta passagem célebre de nosso texto: Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial Idem, pp. 25-26. Eis aí toda a dificuldade que Marx descobre: quando estão diante de situações de crise que podem produzir revoluções em si mesmos e no mundo, os sujeitos resolvem conjurar temerosamente a ajuda de espíritos do passado, tomam emprestados seus nomes e palavras de ordem. Eles parecem assim não serem capazes de ocupar as novas cenas da história mundial, a não ser vestindo-se de conflitos passados não produzindo com isto um “nome próprio e original” a respeito de sua própria situação. Mas notemos como este nome próprio é, necessariamente, um nome anterior. Nos sirvamos de um belo exemplo de Alain Badiou e lembremos do nome “Spartacus” como nome próprio de um processo revolucionário. Este sujeito político “transita de mundo em mundo” BADIOU, Alain; Logique des mondes, p. 74 encarnando-se na forma da revolta de escravos em Roma, no “Spartacus negro” que marca a revolução dos escravos no Haiti e nos revolucionários alemães liderados por Rosa Luxemburgo. Este sujeito transindividual e transhistórico permite a dramatização das lutas atuais a partir das lutas passadas, fazendo as lutas atuais explodirem seus contextos locais. Tal explosão aparece a Marx como condição geral dos processos históricos. Assim, ao falar da Revolução Francesa, ele dirá: foi nas tradições de rigor clássico da República Romana que os seus gladiadores encontraram os ideais e as formas artísticas, as autoilusões de que ela [a Revolução Francesa] precisava pra ocultar de si mesma a limitação burguesa do conteúdo de suas lutas e manter o seu entusiasmo no mesmo nível elevado das grandes tragédias históricas Idem, p. 27. Mas interpretemos de forma adequada tal enunciado. Não se trata simplesmente de dizer que tais encarnações são meras ocultações, meras idealizações, ou seja, simples roupagem ideológica que faz os sujeitos históricos perderem a sensibilidade em relação ao verdadeiro conteúdo de suas ações. Elas são contrações temporais próprias a todo verdadeiro acontecimento. Pois todo acontecimento é uma explosão do contínuo do tempo em prol da experiência de um tempo multiplicado no qual várias camadas de experiência histórica entram em processo de ressonância e unificação. No entanto, este processo pode ser tanto o motor de impulsão da revolução para além de sua limitação burguesa quanto a trava que fará a história ser uma mera paródia do passado, ser como “sombras que perderam seus corpos” na qual o nível elevado das grandes tragédias históricas se transforma em mera fraseologia vazia. A repetição do passado pode se transformar assim em farsa assumida enquanto tal ou se quisermos em mero cinismo. Pois a repetição se degrada a uma paródia que se repete de forma mais compulsiva quanto menos se leva a sério. Neste contexto, faltará à revolução: “um nome próprio e original”. Ou seja, o desafio de uma revolução está sempre em que modalidade de repetição ela colocará em circulação. Admiremos o paradoxo: a ruptura do tempo não pode ocorrer sem colocar em circulação alguma forma de repetição do tempo. O problema é que há ao menos duas formas de repetir o tempo. Uma concepção de processualidade dialética Lembremos, inicialmente, de alguns fatos ligados ao que poderíamos chamar de a primeira revolta proletária da história, ou seja, a primeira revolta em que emerge um sujeito político que poderemos chamar de “proletariado”. Uma revolução entre duas revoluções, a saber, entre a reedição dos momentos populares da Revolução Francesa, de 1789, e a antecipação da primeira experiência de instauração comunista contemporânea, a Comuna de Paris, de 1871. Com a queda de Napoleão, em 1814, a França sucumbiu à restauração da monarquia, com o favorecimento da nobreza e a tentativa de reintrodução do absolutismo, isto até a revolução de 1830. Nesta data, vários levantes em Paris levaram ao trono Luís Filipe de Orléans, chamado “o rei burguês”. Mas, como lembra Marx, quem reinou sob Luís Filipe não foi a burguesia francesa mas uma facção dela: Os banqueiros, os reis da bolsa, os reis das ferrovias, os donos de minas de carvão e de ferro e os donos de florestas em conluio com uma parte da aristocracia proprietária de terras, a assim chamada aristocracia financeira. Ela ocupou o trono, ditou as leis nas câmaras, distribuiu os cargos públicos desde o ministério até a agência do tabaco MARX, Karl; Lutas de classe na França, p. 37. Esta monarquia financeira resistiu até 1848 quando, sob o impacto de uma insatisfação de massa devido a uma série de crises econômicas, caiu em 24 de fevereiro depois de combates sangrentos e barricadas em Paris. Esta primeira revolução contava com a burguesia e com o proletariado liderados, entre outros, pelos socialistas Louis Blanc, Auguste Blanqui. Os primeiros meses da revolução viram a colisão entre o proletariado, a pequena-burguesia republicana e a burguesia moderada. Em 23 e 24 de abril, realizam-se eleições para a Assembleia Constituinte. O Partido da ordem, representando a burguesia moderada e os monarquistas, ganha a maioria absoluta. Começa então a tentativa de impor uma série de leis que iam contra os interesses dos socialistas. Com isto, uma novas revoltas operárias explodem em maio e junho sob o lema: “Queremos uma República democrática e social”. A reação governista será brutal: decretação do estado de sítio, 1500 insurretos mortos, 12000 presos e 4000 deportados para a Argélia. Promulgada a Constituição em novembro, eleições presidenciais foram convocadas para dezembro de 1848. Dois candidatos se apresentam: Cavaignac, responsável direto pela repressão à insurreição operária de junho, e Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. Será Luís Bonaparte que vencerá, recebendo os votos tanto dos operários, que detestavam Cavaignac, quanto dos conservadores. Em 1851, ele dará um auto-golpe proclamando o Segundo Império e coroando-se imperador sob o nome de Napoleão III. Através de dois plebiscitos, o golpe de estado e seu coroamento foram ratificados. Ele ficará no poder até 1870, quando a França perder a Guerra Franco-prussiana. A derrota de 1848, em especial das insurreições de junho, será um fato decisivo para Marx. Lembremos que o Manifesto Comunista é publicado pela primeira vez exatamente em fevereiro de 1848. Ou seja, quando Marx e Engels falam que um “fantasma ronda a Europa”, eles realmente acreditavam em uma revolução mundial iminente. Os descaminhos de 1848 marcarão Marx de forma decisiva. Eles mostrarão a Marx como é possível transformar uma revolução iminente em paródia, como o tempo de transformação pode ser aprisionado em um processo que será, na verdade, uma forma astuta de restauração. Nesta reflexão, Marx irá perceber que a radicalização dos conflitos sociais não levam, necessariamente, à revolução. Ela pode ficar aprisionada por décadas em um falso movimento Comecemos então pela frase inicial do livro: Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele esqueceu de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière como Danton, Luis Blanc como Robespierre, a Montanha de 1848-51 como a Montanha de 1793-95, o sobrinho como o tio MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 25. A colocação de Marx era precisa por problematizar um ponto fundamental da dialética como processualidade referente à necessidade da repetição. A frase de Hegel, dita a respeito da morte de César, era: “de fato, uma revolução política é geralmente sancionada pelos homens quando ela se repete. Assim, Napoleão sucumbiu duas vezes e duas vezes foram afastados os Bourbons. Através da repetição, o que apareceu inicialmente como possível e contingente adquire realidade e permanência” HEGEL, G.W.F.; Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, p. 242. Nota-se claramente aqui como a revolução é definida como uma forma específica de repetição a partir de um acontecimento que aparece inicialmente como contingente, como meramente possível no sentido de poder ter sido de outra forma, poder ter ocorrido ou não. Uma revolução é repetição de um acontecimento contingente, mas uma repetição feita de forma tal que transforma a contingência, transforma o que até então não aparecia para uma situação como fruto de uma causalidade necessária, em necessidade. Neste sentido, podemos falar em “revolução” porque tal transformação só é possível à condição do acontecimento produzir uma contradição formal com a situação presente. O acontecimento é impensável no interior da situação presente, ele não obedece ao regime de necessidade do que está imediatamente posto. Repeti-lo é inscrevê-lo em uma nova estrutura simbólica. Assim, por exemplo, o assassinato de César – tópico fundamental no trecho da Filosofia da História citado acima - aparece inicialmente como a anulação de uma individualidade que parecia colocar em risco a forma da República, como a anulação de algo que poderia ter sido de outra forma. Diante da situação representada pela República Romana e sua institucionalidade, um acontecimento como César era puramente contingente, colocando-se em contradição com a situação normal. Eliminando-o, a necessidade da situação normal se restabeleceria. No entanto, o assassinato de César produz sua repetição sob a forma simbólica de Césares que retornam instaurando um novo regime de necessidade e de temporalidade no qual a perda produzida no passado é apenas uma forma de abrir uma temporalidade espectral que dará ao presente a espessura de novas camadas. Esta repetição é a prova de que a forma da República havia sido esvaziada de sua substância. Ela não passava de um mero formalismo. Diria que esse processo de integração processual das contingências é a base estrutural da compreensão de revolução presente em Marx. No entanto, ele é complexificado por Marx ao estabelecer a existência de um modo de repetição histórica que é apenas a expulsão do que aparecia como a potência de transformação de um acontecimento. Uma revolução sempre desencadeia um sistema de repetições, mas há de se saber como e o que se repete. É importante para Marx operar tal distinção no interior do conceito de repetição histórica para dar conta de um processo bem descrito no capítulo III do 18 de brumário: Na primeira Revolução Francesa, seguiu-se ao governo dos constitucionalistas o governo dos girondinos e ao governo dos girondinos o governo dos jacobinos. Cada um desses partidos se apoiou no mais avançado. Assim que um deles conduziu a Revolução até o ponto de não mais poder segui-la e menos ainda puxar-lhe a frente, o aliado mais ousado que estava logo atrás dele o pôs de lado e o mandou para a guilhotina. Assim, a Revolução se moveu numa linha ascendente. Aconteceu o contrário na Revolução de 1848. O partido proletário figurou como apêndice do partido democrático pequeno-burguês sendo traído por este e abandonado à própria sorte em 16 de abril, 15 de maio e nas jornadas de junho. O partido democrático, por sua vez, apoiou-se nos ombros do partido republicano-burguês. Os republicanos-burgueses mal sentiram o chão firme debaixo dos pés e já se desvencilharam do incômodo camarada, apoiando-se, eles próprios, nos ombros do Partido da Ordem. O Partido da Ordem encolheu os ombros, deixou os republicanos-burgueses caitem e se jogou nos ombros das Forças Armadas. Ele ainda acreditava estar sobre os ombros destas quando, numa bela manhã, deu-se conta de que os ombros haviam se transformado em baionetas. Cada um desses partidos bateu por trás naquele que avançava e se curvou para trás para apoiar-se naquele que retrocedia. Não admira que, nessa pose ridícula, cada um desses partidos tenha perdido o equilíbrio e, depois de ter rasgado as suas inevitáveis caretas, estatelado-se no chão fazendo cabriolas esquisitas. Desse modo, a revolução se moveu numa linha descendente Idem, pp. 55-56. A descrição de Marx é clara na sua caracterização de revoluções que seguem linhas ascendentes e outras que seguem linhas descendentes. No primeiro caso, os sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o informulado pelo sujeito precedente, o que ele não é capaz de enunciar sem se destruir, impulsiona uma transformação ainda maior em relação ao que era a situação normal de partida. No segundo caso, os sujeitos políticos se sucedem através de um movimento no qual o informulado posto inicialmente pelo partido proletário é cada vez mais afastado até que, em um movimento descendente contínuo, o processo termina nas baionetas das Forças Armadas. Sugiro que para entender esta clivagem entre linha ascendente e linha descendente, devemos adentrar na forma com que Marx estabelece, ao menos, dois regimes distintos de repetição histórica. Lembremos inicialmente como Marx insiste que: “a tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” pois, no momento em que parecem empenhados em criar algo nunca visto, os homens reavivam espíritos do passado, tomam emprestado os seus nomes a fim de representar as novas cenas da história mundial, abrindo uma dinâmica de identificações históricas. Por exemplo, foi com figurinos romano e fraseologia romana que a Revolução Francesa se realizou como ereção da moderna sociedade burguesa. Mas ela reviveu tal tempo para ocultar aos agentes históricos: “a limitação burguesa do conteúdo de suas lutas” Idem, p. 27. Neste sentido, seguiria Guillaume Silbertin-Blanc a fim de lembrar que: “Jamais la « révolution bourgeoise » nʼaurait pu avoir lieu, si elle avait dû être faite par des bourgeois. Dʼabord, elle ne put être révolutionnaire quʼen étant dʼabord populaire et « de masse », donc à la condition de transfigurer son contenu de classe particulier dans les formes idéologiques dʼune émancipation universelle capables dʼexalter lʼenthousiasme bien au-delà des seules fractions de la bourgeoisie, et de mobiliser le peuple en masse dans les affrontements contre les forces contre- révolutionnaires intérieures et extérieures. Mais elle ne fut jamais faite par la bourgeoisie en un autre sens encore: la bourgeoisie de 1789 comme classe révolutionnaire, ne fut jamais révolutionnaire en tant que bourgeoise, mais seulement en tant quʼelle sʼhéroïsa, se transfigura elle-même et, littéralement, sʼhallucina dans les rôles grandioses dʼune tradition romaine quʼavaient déjà idéalisée théoriquement, si lʼon peut dire, les philosophes des Lumières, dans des figures héroïques où ses caractères bourgeois lui devenaient méconnaissables” SILBERTIN-BLANC, Guillaume; Pensée politique en temps inactuels, p. 64. Neste sentido, a repetição aparece como uma forma de “ilusão necessária”, uma astúcia que só poderia produzir, ao final, formas de decepção histórica. A ressurreição dos mortos serve aqui para glorificar as novas lutas, exaltar na fantasia as missões recebidas e para redescobrir o espírito da revolução. Mas aqui se abre uma ambiguidade importante. Quando os fantasmas do passado são chamados, eles não voltam mais para o passado. Ninguém ressuscita os mortos sem se deixar invadir por eles, sem fazer com que as promessas não realizadas no passado, voltem a assombrar os vivos, criando uma profunda instabilidade que impulsionará a Revolução em uma linha ascendente. Não é apenas o heroísmo da Roma antiga que é convocado a fim de permitir à burguesia alucinar seu próprio papel histórico. São também as promessas quebradas à plebe, os tribunos assassinados, as revoltas sufocadas, em suma, o que ficou na história como derrota a espera de outra oportunidade e é isto que impulsiona a Revolução em linha ascendente. Pois ressuscitar os mortos é aproximar-se de outro tempo, não é apenas trazer os mortos para o presente, mas também presentificar o tempo do passado em sua integralidade. O tempo da Revolução é uma temporalidade outra; é, para usar um conceito hegeliano, um “presente absoluto”. Há um outro tempo a assombrar o presente e ele só deixará de assombrá-lo quando não houver mais presente tal como até agora houve. Pois as rupturas nos modos de produção que as Revolução proletárias procuram realizar são modificações que, como bem lembra Balibar, modificam: “a base econômica, as superestruturas jurídicas e políticas, as formas da consciência social” BALIBAR, Etienne; “Concepts fondamentaux du matérialisme historique”, In: ALTHUSSER, Louis (org.); Lire le Capital, p. 424. Neste contexto, “formas da consciência social” significa o modo de determinação dos sujeitos e de sua experiência espaço-temporal. As configurações de sujeitos vão juntamente com os modos de produção. No entanto, Marx fala que: “não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do século XIX pode colher sua poesia” MARX, Karl; 18 de brumário, p. 28. A princípio, parece que Marx está a dizer que não se trata mais de recorrer a memórias históricas para travestir burgueses de césares, insensibilizando a sociedade em relação ao real conteúdo dos processos de transformação social. Como Marx insistirá, ao invés da fraseologia histórica superar o verdadeiro conteúdo do processo revolucionário, era o conteúdo que deveria enfim superar a fraseologia. No entanto, talvez Marx fale que é apenas do futuro que a revolução poderá colher sua poesia porque não há figuras no passado que possam dar forma à subjetividade política revolucionária pois o que uma revolução faz ressoar é exatamente aquilo que, no interior do passado, ficou sem forma e figura, aquilo que ficou sem lugar. A poesia da revolução é a poesia do que não se inscreveu no tempo da história. Neste sentido, tem razão Walter Benjamin quando afirma: “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios” BENJAMIN, Walter; Sobre o conceito de história, p. 232. Ou seja, a revolução é este processo que reconstrói o tempo a partir da capacidade de “extrair uma época determinada do curso homogêneo da história” idem, p. 231. Tal extração pode, inclusive, paralisar o tempo em uma configuração saturada de tensões que se cristaliza como uma mônada. Assim, o tempo pode paralisar-se em uma saturação contínua, fazendo com que os múltiplos instantes na história sejam o mesmo instante em repetição, até que tal pressões de tensões produza a emergência de um novo sujeito. Por exemplo, sabemos como Marx dirá que as revoluções do século XVIII são intensas e tem vida curta, enquanto as revoluções do século XIX (1830, 1848) estão em constante auto-crítica, parecem interromper sua marcha para começar tudo de novo, para zombar da debilidade de suas primeiras tentativas. Elas “recuam repetidamente ante a enormidade ainda difusa de seus próprios objetivos até que se produza a situação que inviabiliza qualquer retorno” MARX, Karl; O 18 de brumário, p. 30. O que significa tais recuos e interrupções? Podemos dizer que eles são os processos que paulatinamente produzem o sujeito revolucionário através da consciência de sua ausência completa de lugar. Marx, por exemplo, lembra como é recorrente este processo no qual o proletariado abre mão de revolucionar o velho mundo para se lançar a: “experimentos doutrinários, bancas de câmbio e associações de trabalhadores” Idem, p. 35. Como se o proletariado acreditasse que os problemas sociais que enfrenta poderão ser resolvidos através da conservação reajustada dos modos atuais de produção, dos modos atuais de narrativa e de dramatização política. Ao fazer isto, eles só poderão produzir uma repetição histórica como paródia da revolução. Repetição como aprisionamento em um tempo morto no qual o que retorna, retorna sob a forma da impotência social. Revolução política, instauração estética Aula 8 Na aula passada, discutimos o conceito marxista de revolução a partir da compreensão das estruturas de temporalidade que ele pressupõe. Agora, gostaria de abordar outra dimensão, esta ligada às modalidades de emergência de sujeitos políticos. No caso, trata-se de explorar as relações necessárias entre proletariado e revolução. Esta relação nos mostra como, em Marx, a constituição do processo revolucionário é indissociável da emergência de um sujeito político com capacidade de ação a partir de processos de despossessão generalizada. Este conceito político tem uma matriz filosófica clara, pois é tributário da noção de negatividade em Hegel. No entanto, há também uma matriz estética do proletariado que gostaria de explorar na próxima aula. Genealogia do proletariado Conforme definido da Constituição Romana, proletário é a última das seis classes censitárias, classe composta por aqueles caracterizados por, embora sendo livres, não terem propriedade alguma ou por não terem propriedades suficientes para serem contados como cidadãos com direito a voto e obrigações militares. Sua única possessão é a capacidade de procriar e ter filhos. Reduzidos assim à condição biopolítica a mais elementar, à condição de reprodutor da população, os proletários representam o que não se conta. Daí uma colocação importante de Jacques Rancière: “Em latim, proletarii significa “pessoa prolífica” – pessoa que faz crianças, que meramente vive e reproduz sem nome, sem ser contada como fazendo parte da ordem simbólica da cidade” RANCIÈRE, Jacques; “Politics, identification and subjectivation” in: RAJCHMAN, John; The identity in question, Nova York: Routledge, 1995, p. 67. Até o final do século XVIII, proletário designa o que é “mal, vil” ou, em francês, como sinônimo de “nômade”, de sem lugar. É no bojo da Revolução Francesa, e principalmente depois da Revolução de 1830, que o termo será paulatinamente acrescido de conotação política, agora para descrever os que só possuem seu salário diário pago de acordo com a necessidade básica de auto-conservação, sejam camponeses ou operários, e que devem ser objetos de ações políticas feitas em nome da justiça social. Neste sentido, os proletários não são ainda o nome de um sujeito político emergente, mas o nome de um ponto de sofrimento social intolerável, um “significante central do espetáculo passivo da pobreza” STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84. Exemplo claro neste sentido é o uso do termo feito por Saint-Simon. É entre os saint-simonistas que a dicotomia entre proletários e burgueses será descrita pela primeira vez, ainda que em um horizonte de reconciliação possível de interesses. Neste sentido, mais do que cunhar o uso social do termo, o feito de Marx encontra-se em vincular o conceito de proletariado a uma teoria da revolução ou, antes, a uma teoria das lutas de classe que é a expressão da “história da guerra civil mais ou menos oculta na sociedade existente” MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; Manifesto Comunista, São Paulo: Boitempo, p. 50. Daí porque Marx falará, a respeito dos saint-simonistas e de outros socialistas “crítico-utópicos”: “Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo de classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja peculiar” Idem, p. 66. A sua maneira, Marx partilha com Hobbes a compreensão da vida social como uma guerra civil imanente. No entanto, como não se trata de pensar as condições para a formação da sociedade como associação de indivíduos, mas parar de pensar a vida social a partir da elevação do indivíduo como célula elementar, esta guerra não será a expressão da dinâmica concorrencial entre indivíduos desprovidos de relações naturais entre si. Ela será uma guerra de classes no interior da qual uma das classes aparece como o conjunto daqueles que nada mais dispõem. Por isto, uma guerra que só pode levar não a vitória de uma classe sobre outra, mas à destruição do princípio que constitui as classes, a saber, o trabalho e a propriedade como atributo fundamental dos indivíduos. O que explica porque Marx deverá ser claro: A revolução comunista se dirige contra o tipo anterior de atividade, elimina o trabalho e suspende a dominação de todas as classes, ao acabar com as próprias classes já que essa revolução é levada a cabo pela classe a qual a sociedade não considera como tal, não reconhece como classe e que expressa, de per se, a dissolução de todas as classes, nacionalidades etc. dentro da sociedade atual MARX, Karl e ENGELS, Friedrich; A ideologia alemã, op. cit., p. 98. Teremos de entender melhor o que significa dizer que o proletariado expressa a dissolução de todas as classes, a dissolução do que constitui classes. Inicialmente, lembremos como tal guerra civil entre proletários e burguesia que leva à revolução é fruto de uma contradição cujo motor é a própria burguesia. Marx não cansará de afirmar que a burguesia é uma classe revolucionária: “A burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais” Idem, Manifesto Comunista, p. 43. É ela que mostrará como tudo o que é solido se desmancha no ar. No entanto, a burguesia é uma espécie de agente involuntário da história. Ela: “assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou” Idem, p. 45, ela “produz seus próprios coveiros” Idem, p. 51. Ou seja, sua ação é contraditória porque, no processo de auto-realização de si, a burguesia produz uma figura que lhe será oposta e que lhe destruirá. Assim, a burguesia é o local no qual se realiza uma impressionante operação de auto-negação que não é apenas a auto-negação dos interesses de uma classe, mas a auto-negação da própria “produção da vida” vigente até agora com suas relações entre sujeitos, entre sociedade e natureza, entre o sujeito e si mesmo. Tal auto-negação é impulsionada pela produção do excesso. A burguesia produz crises descritas como “epidemias de superprodução” que destroem grande parte das forças produtivas já criadas: “A sociedade possui civilização em excesso, meios de subsistência em excesso, indústria em excesso, comércio em excesso”. Um excesso que: “lança na desordem a sociedade inteira e ameaça a existência da propriedade burguesa”. Pois tal excesso de produção, de comércio, de civilização leva a uma desvalorização tendencial da produção, uma intensificação dos regimes de trabalho e um aumento da pobreza relativa que só pode ser superada através ou da destruição violenta de grande quantidade de forças produtivas ou pela conquista de novos mercados, pela exploração mais intensa dos antigos. Ela leva a uma estrutura monopolista que só pode significar a abolição da propriedade privada “para nove décimos da sociedade”. No entanto, tal desordem produzida pela burguesia em sua escalada global não é apenas o anúncio da destruição. Ela é a produção involuntária de novas relações que tem em seu germe a forma de outro mundo: Apenas esse desenvolvimento universal das forças de produção traz consigo um intercâmbio universal dos homens em virtude do qual, por um lado, o fenômeno da massa “despossuída” se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das transformações revolucionárias dos outros e, por último, institui indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais Idem, A ideologia alemã, p. 58. A desordem produz um fenômeno universal de despossessão e de intercâmbio. Mas tal despossessão universal não é apenas um fenômeno negativo, pois ele produz novas formas de interdependência e de simultaneidade. A burguesia abre o espaço para o advento de indivíduos histórico-universais caracterizados pela despossessão comum e pela simultaneidade de tempos até então completamente dispersos. Ela produz as condições para o advento de uma universalidade concreta que suspenderá e superará o estado de coisas atual. É assim que ela produz seus próprios coveiros. A indeterminação social do proletariado Isto demonstra como, segundo Marx, a revolução só pode ser feita pela classe dos despossuídos de predicado e profundamente despossuídos de identidade. Classe formada por “indivíduos histórico-universais, empiricamente universais, em vez de indivíduos locais” MARX, Karl; A ideologia alemã, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 58. Para que apareçam indivíduos histórico-universais, faz-se necessário uma certa experiência de negatividade que, desde Hegel, é condição para a fundamentação da verdadeira universalidade. Tal experiência, o proletariado a sofre através da despossessão completa de si descrita por Marx em termos como: O proletário é desprovido de propriedade (eigentumslos); sua relação com mulher e crianças não tem mais nada a ver com as relações da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a moderna subsunção ao capital, tanto na Inglaterra quanto na França, na América quanto na Alemanha, retiraram dele todo caráter nacional. A lei, a moral, a religião são para ele preconceitos burgueses que encobrem vários interesses burgueses MARK, Karl; Manifest der Kommunistischen Partei in http://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-engels/1848/manifest/1-bourprol.htm. Como vemos, o proletariado não é definido apenas a partir da pauperização extrema, mas da anulação completa de vínculos a formas tradicionais de vida. Tais vínculos não são recuperados em um processo político de reafirmação de si, não se trata de permitir que os proletários tenham uma nação, uma família burguesa, uma moral e uma religião. Tais normatividades são negadas em uma negação sem retorno. No entanto, tal negação não leva o proletariado a aparecer como “essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème” MARX, Karl; O 18 brumário de Luis Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91 e que Marx define como “lumpemproletariado” Ver, por exemplo, THOBURN, Nicholas; “Difference in Marx: the lumpenproletariat and the proletarian unamable”; Economy and Society Volume 31 Number 3 August 2002: 434–460. Vale a pena discutir melhor este ponto porque não foram poucos aqueles que tentaram, desde Bakunin, transformar o conceito de lumpemproletariado no verdadeiro conceito com força revolucionária Como vemos, por exemplo, em STALLYBRASS, Peter; “Marx and heterogeneity: thinking the lumpemproletariat” In: Representations, vol 0, n. 31, p. 84 e LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit.. Tal como acontece com o conceito de proletariado, o conceito de lumpemproletariado não descreve imediatamente um agente econômico, mas um tipo de sujeito político, ou antes, uma espécie de anti-sujeito político. Lembremos da estranha extensão que o termo toma no 18 do brumário: Roués decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni, batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereux, donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapaceiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème MARX, Karl; O 18 do brumário, op. cit., p. 91. Difícil não ler esta série descrita por Marx com seus literatos e amoladores de tesoura sem se lembrar da Enciclopédia fantástica de Borges. Pois o que totaliza esta série não é a suposta analogia entre seus elementos a partir do desenraizamento social. A este respeito, lembremos como em Luta de classe na França, Marx chega a descrever a própria aristocracia financeira como “o renascimento do lumpemproletariado nos cumes da sociedade burguesa”. Há um lumpemproletariado no baixo nível do estrato social e no alto nível, sendo os do alto nível perfeitamente enraizados à escroqueria funcional do capitalismo financeiro. O que os une é, na verdade, uma certa concepção de improdutividade, uma diferenciação entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo, mas diferenciação concebida do ponto de vista da produtividade dialética da história. Pois o lumpemproletariado é uma massa desestruturada cuja negatividade não se coloca como contradição em relação às condições do estado atual da vida. Neste sentido, ele é a representação social da categoria de negatividade improdutiva. Por isto, trata-se de uma massa heterogênea que pode ganhar homogeneidade desde que encontre um termo unificador que lhe dará estabilidade no interior da situação política existente. Tal termo, no 18 do brumário, não é outro que Napoleão III, “o chefe do lumpemproletariado”. Aquele que dá homogeneidade a tal heterogeneidade social, a história mesma repetida como farsa e que deve se confessar enquanto farsa para poder se manter. No entanto, há de se insistir como o modelo de estabilização produzido por Napoleão III é uma espécie de estabilização na anomia. Através de Napoleão III, a heterogeneidade do lumpemproletariado permanece radicalmente passiva, permanece como ação anti-política, pois acomoda-se à gestão do desenraizamento social, seus crimes romantizados não se transformam em ação de transformação alguma. Na verdade, essa desestruturação e indefinição anômica do lumpemproletariado é própria de quem ainda conserva a esperança de retorno da ordem, ou que não é capaz de conceber nada fora de uma ordem que ele mesmo sabe estar completamente comprometida. O que faz suas ações políticas serem apenas “paródias” de transformações, “comédias”, ou ainda, “mascaradas”: todos termos usados por Marx no 18 de brumário para falar de revoluções que são, na verdade, tentativas de estabilização no caos. O lumpemproletariado representa uma negatividade que não pode ser integrada no processo dialético porque ele representa o congelamento da negatividade em uma espécie de cinismo social. Já o caso do proletariado é marcado pela ausência de qualquer expectativa de retorno. O proletariado é uma heterogeneidade social que simplesmente não pode ser integrada sem que sua condição passiva se transforme em atividade revolucionária. Por isto, ao ser desprovido de propriedade, de nacionalidade, de laços com modos de vida tradicionais e de confiança em normatividades sociais estabelecidas, ele pode transformar seu desamparo em força política de transformação radical das formas de vida. Para tanto devemos compreender que a afirmação da condição proletária não se confunde com alguma forma de demanda de reconhecimento de formas de vida desrespeitadas, claramente organizadas em suas particularidades. Ao contrário, a afirmação de tal condição proletária gera a classe destes sujeitos sem predicados descritos da seguinte forma em A ideologia alemã: Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um círculo exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a produção universal, com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã, pescar pela parte da tarde e a noite apascentar o gado, e depois de comer, criticar, se for o caso conforme meu desejo, sem a necessidade de por isto me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum dia MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56. Notemos aqui a natureza anti-predicativa do reconhecimento proposto por Marx. Não me defino como caçador, pescador, pastor ou crítico, embora possa caçar, pescar ou criticar. Não estou completamente vinculado nem ao tempo originário da caça, pesca e pastoreio, nem ao tempo de apreensão reflexiva da crítica, embora possa habitar as temporalidades distintas em uma simultaneidade temporal de várias camadas. Não limito minha ação nem ao trabalho manual, nem ao trabalho intelectual. Todas essas negações demonstram como, por não passar completamente nos predicados historicamente disponíveis, o sujeito preserva algo da dimensão negativa da essência, quebrando assim a natureza funcionalizada do corpo social. No entanto, poderíamos complexificar o diagnóstico de época e nos perguntar sobre a diferença estrutural entre tal descrição da sociedade comunista e aquele diagnóstico a respeito, por exemplo, do desenvolvimento do capitalismo nos EUA presente nos Grundrisse: A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade em que os indivíduos passam (übergehen) com facilidade de um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles contingente e por conseguinte, indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio, não somente enquanto categoria, mas na efetividade, meio para a criação de riqueza em geral e, como determinação, deixou de estar ligado aos indivíduos em sua particularidade. Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade burguesa – os Estados Unidos MARX, Karl; Grundrisse, op. cit., p. 58. Em que pese a mais moderna forma de existência da sociedade burguesa não ser exatamente uma “sociedade encarregada de regular a produção universal”, assim como em que pese o primeiro trecho dizer respeito à crítica da divisão do trabalho enquanto o segundo versa sobre o conceito de trabalho abstrato, a indiferença em relação ao trabalho determinado parece a mesma tal como descrita na futura sociedade comunista. A contingência em relação ao tipo determinado de trabalho, a flexibilidade das atividades concebidas na indiferença da abstração parece, à primeira vista, algo próximo dos comunistas que caçam, pescam, pastoreiam e fazem crítica literária, mesmo que ela seja muito mais uma construção ideológica do que uma realidade efetiva em solo norte-americano. Mas, se for o caso, então será difícil não dizer que a sociedade comunista apenas realizaria o que as sociedades burguesas mais avançadas prometem sem, no entanto, serem capazes de cumprir. Como se as promessas da sociedade burguesa fossem o fundamento normativo da crítica; fundamento que enfím poderia ser realizado no momento em que a falsa totalidade do “corpo social de trabalho” fosse abandonada em direção à verdadeira totalidade produzida pela regulação racional da produção universal. Mas insistamos em um ponto: o que está em questão no processo histórico pensado por Marx não é apenas a superação da divisão social do trabalho, nem a defesa de uma “regulação social da produção”. Mesmo tal divisão pode mostrar-se obsoleta para o capitalismo, ao menos em suas sociedades mais avançadas; mesmo tal regulação pode ser feita através de fortes intervenções estatais, como no modelo da social-democracia escandinava em seu auge. O que está em questão é, também e principalmente, a liberação do trabalho em relação à produção do valor, em relação à produção de objetos que sejam apenas o suporte próprio de determinações do valor e em relação à submisão do tempo ao tempo de produção do valor Lembremos de uma boa síntese feita por Postone: “O objetivo da produção no capitalismo não são os bens materiais produzidos nem os efeitos reflexivos da atividade do trabalho sobre o produtor, é o valor ou, mais precisamente, o mais-valor. Mas, valor é um objetivo puramente quantitativo, não existe diferença qualitativa entre o valor do trigo e das armas. Valor é puramente quantitativo porque, como forma de riqueza, ele é um meio objetivado: ele é a objetivação do trabalho abstrato – do trabalho como meio objetivo de aquisição de bens que não produziu” (POSTONE, Moishe; idem, p. 210) . Não somente o vínculo à identidade social produzida pelo trabalho deve absorver uma certa potência da indeterminação, mas também o objeto produzido, a ação realizada A respeito deste trecho de Marx, Fausto dirá que “a mobilidade do trabalhador não realiza o universal que é ao mesmo tempo singular, o universal não é outra coisa aqui que uma sucessão de singularidades ou de particularidades” (FAUSTO, Ruy; Marx: logique et politique, Paris: Publisud, 1986, p. 114). De fato, mas poderíamos ainda nos perguntar sobre que tipo de determinação deve ter uma universalidade que é ao mesmo tempo singular. Em que condições a universalidade é posta no campo das singularidades? Insistiria que a universalidade que se singulariza implica, neste caso, recusa a determinar o singular como uma determinação completa, sendo que a incompletude de sua determinação é forma de indicar a integração do indeterminado enquanto seu momento próprio. Neste sentido, é verdade que tal determinação só é incompleta para o entendimento, mas seu gênero de posição nada tem a ver com as determinações já determinadas como possíveis. Tentarei indicar o desdobramento deste tempo através de certa leitura do que podemos entender por “vida do gênero” em Marx. . Neste ponto, podemos compreender melhor a importância de sublinhar que o elemento decisivo na produção do valor é a submissão do objeto à condição do próprio. Sua intercambialidade absoluta, resultante de um modo de determinação que privilegia a instrumentalidade do mensurável, do quantificável e do calculável é a afirmação maior de que as coisas agora submetem-se por completo à condição do “próprio”. Elas são a expressão do que os indivíduos podem determinar como sua propriedade, prontas a serem comparadas e avaliadas com outras propriedades, prontas para circularem em um circuito de velocidades sem fricções, dominadas na familiaridade do que conhece o tamanho e o limite, representadas sob a forma juridicamente determinada do que pode ser descrito no interior de um contrato. Mas o trabalho livre só pode ser a produção do impróprio. Um impróprio que não é propriedade comunal, mas circulação do que não tem relações especulares com o sujeito, por isto o trabalho nunca poderia ser possessão da natureza, dominação das coisas pelas pessoas. Ele é expressão do que circula fora da utilidade suposta pela pessoa. Apropriar-se Insistamos na relação entre novas formas de apropriação e a configuração do proletariado como essa classe “que expressa, de per si, a dissolução de todas as classes dentro da sociedade atual” MARX, Karl; A ideologia alemã, op.cit., p. 98. A classe do que dissolve todas as classes por representar “a perda total da humanidade” MARX, Karl; Crítica da filosofia do direito de Hegel – introdução, São Paulo: Boitempo, 2005, p. 156, o que não encontra mais figura na imagem atual do homem. Neste sentido, podemos dizer que, tal como na teoria hegeliana do sujeito (embora Marx desqualificasse tal assimilação por ver, em Hegel, uma elaboração meramente abstrata do problema), o proletariado só supera sua alienação ao se confrontar com o caráter profundamente indeterminado do fundamento e conservar algo desta indeterminação Sobre este ponto da filosofia hegeliana, tomo a liberdade de remeter ao meu SAFATLE, Vladimir; Grande hotel abismo: para uma reconstrução da teoria do reconhecimento, São Paulo: Martins Fontes, 2012. . Seu papel de redenção (Erlösung) só pode ser desempenhado à condição de assumir sua natureza de dissolução (Auflösung). Como dirá Balibar, o advento do proletário como sujeito político é o aparecimento de um “sujeito como vazio” BALIBAR, Etienne; Citoyen sujet et autres essais d’anthropologie philosophique, Paris: PUF, 2011, p. 260. Trata-se de uma ideia presente também em Jacques Rancière, para quem: “os proletários não são nem os trabalhadores manuais nem as classes trabalhadoras. Eles são a classe dos não-contados, que só existe na própria declaração através da qual eles se contam a si mesmos como os que não são contados” (RANCIÈRE, Jacques; La mésentente: politique et philosophie, Paris: Galilée, 1995, p. 63). que não é, em absoluto, privado de determinações práticas. Essa manifestação de um vazio em relação às determinações identitárias atuais leva-nos a compreender que o reconhecimento de si só é possível à condição de uma crítica profunda de toda tentativa de reinstaurar identidades imediatas entre sujeito e seus predicados. Se este for o caso, então poderemos dizer que a luta de classes em Marx não é simplesmente um conflito moral motivado pela defesa das condições materiais para a estima simétrica entre sujeitos dispostos a se fazerem reconhecer a partir da perspectiva da integralidade de suas personalidades, como quer alguns como Axel Honneth. A abolição da propriedade privada deve acompanhar necessariamente a abolição de uma economia psíquica baseada na afirmação da personalidade como categoria identitária. Insistamos neste ponto lembrando de um importante trecho do Manifesto Comunista: Os proletários não podem apoderar-se das forças produtivas sociais senão abolindo o modo de apropriação a elas correspondente e, por conseguinte, o modo de apropriação existente até hoje. Os proletários nada tem de seu a salvaguardar; sua missão é destruir todas as garantias e seguranças da propriedade privada até aqui existentes MARX, Karl e ENGELS, Friedrich: Manifesto Comunista, op. cit., p. 50. Percebamos o caráter paradoxal deste trecho. Os proletários só podem apoderar-se das forças produtivas abolindo todo modo de apropriação até hoje existente (lembremos, neste ponto, da discussão sobre a ideia de uma “apropriação sem possessão” que vimos na aula passada). O modo de apropriação dos proletários é um modo que não existe até o momento, impensável até agora pois não é simples passagem da propriedade privada à propriedade coletiva. Ele é apropriação de quem não tem nada de seu a salvaguardar, de quem não tem nem terá nada o que lhe seja próprio. Tal apropriação não é apenas a destruição da propriedade, mas também a destruição do próprio. Por esta razão, a luta de classes em Marx não pode ser compreendida como mera expressão de formas de luta contra a injustiça econômica, já que ela é também modelo de crítica à tentativa de transformar a individualidade em horizonte final para todo e qualquer processo de reconhecimento social. O que não poderia ser diferente se lembrarmos que, ao menos no interior da tradição dialética, “pessoa” é uma categoria derivada historicamente do direito romano de propriedade (dominus), uma categoria que, por ainda guardar os traços de sua origem, era vista já por filósofos como Hegel como “expressão de desprezo” HEGEL, GWF; Fenomenologia do Espírito – vol. II, Rio de Janeiro: Petrópolis, 1992, p. 33 devido à sua natureza meramente abstrata e formal advinda da absolutização das relações de propriedade Tal articulação entre “pessoa” e “propriedade” servirá de fundamento para uma larga tradição de reflexão que chegará até as discussões recentes sobre a “self-ownership” como atributo fundamental da pessoa (a este respeito, ver, entre outros COHEN, G.A.; Self-ownership, freedom and equality, Cambridge University Press, 1995). Embora este seja um debate de várias matizes, é certo que a tradição dialética de Hegel e Marx tende a lê-lo da maneira esboçada acima. . Encontramos claramente em Marx esta crítica já presente em Hegel. Lembremos mais uma vez como Marx insistirá, por exemplo, que a noção de liberdade pressuposta pela Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1793, era calcada em larga medida na absolutização do indivíduo proprietário. Daí uma colocação como: “o limite dentro do qual um [cidadão] pode mover-se de modo a não prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma (…) A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada” MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49. . A liberdade, para Marx, passa pela liberação do sujeito de sua condição de indivíduo que se relaciona a outro indivíduo tal como dois terrenos separados pelo poste da cerca. Estaremos sendo fiéis ao espírito do texto de Marx se afirmarmos que, através da luta de classes, uma experiência social pós-identitária pode encontrar lugar. Podemos mesmo dizer que “proletariado” é a nomeação política da força social de desdiferenciação identitária cujo reconhecimento pode desarticular por completo sociedades organizadas a partir da hipóstase das relações gerais de propriedade Que esta força de desdiferenciação própria ao conceito de proletariado tenha ganhado evidência graças a marxistas franceses, como Badiou, Balibar e Rancière, isto demonstra como algo do descentramento próprio ao conceito lacaniano de sujeito alcançou a política através de ex-alunos de Louis Althusser. No entanto, tal descentramento tem sua matriz na noção de “negatividade” própria ao sujeito hegeliano. Assim, por ironia suprema da história, algo do conceito hegeliano de sujeito acaba por voltar à cena através da influência surda em operação nos textos de ex-alunos deste anti-hegeliano por excelência, a saber, Louis Althusser. . Por esta razão, o proletariado não pode ser imediatamente confundido com a categoria de povo. Falta-lhe a tendência imanente à configuração identitária e limitadora que define um povo. O proletariado funciona muito mais como uma espécie de anti-povo, isto no sentido da potência sempre vigilante do que permanece a lembrar a provisoriedade das identidades, estados e nações, assim como da pulsação constante de integração do que se afirma inicialmente como exceção não-contada. Esta é uma maneira de aceitar proposições como: A coisa toda seria muito simples se houvesse apenas a infelicidade da luta que opõe ricos e pobres. A solução do problema foi encontrada muito cedo. Basta suprimir a causa da dissensão, ou seja, a desigualdade de riquezas, dando a cada um uma parte igual de terra. O mal é mais profundo. Da mesma forma que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os pobres por sua vez não são realmente os pobres. Eles são apenas o reino da ausência de qualidade, a efetividade da disjunção primeira que porta o nome vazio de ‘liberdade’, a propriedade imprópria, o título do litígio. Eles são eles mesmos a união distorcida do próprio que não é realmente próprio e do comum que não é realmente comum RANCIÈRE, Jacques; Le mésentente: politque et philosophie, Paris: Galiée, 1995, p. 34. Neste sentido, a felicidade do conceito forjado por Marx residia em sua capacidade de sobrepor lógica política e descrição sociológica, permitindo a criação de uma relação profunda entre trabalhadores realmente existentes (que constituíam uma importante maioria social) e proletários Como nos lembra LACLAU, Ernesto; La razón populista, op. cit., p. 308. No entanto, sustentar tal relação não é condição necessária para que o conceito marxista de “proletariado” continue a mostrar sua operatividade. Na situação histórica atual de reconfiguração da sociedade do trabalho, podemos repensar tal relação a fim de encontrar espaços outros para a manifestação de exigências próprias a uma certa ontologia do sujeito pressuposta pela construção marxista. Revolução política, instauração estética Aula 9 Não é novidade lembrar como há algo, na relação entre arte e política, muda de forma decisiva com o advento do romantismo, embora o sentido de tal mudança tenha sido objeto de controvérsias de mais de um século. Reação conservadora aos processos de modernização social, desdobramento estético de impulsos jacobinos-revolucionários, estetização da crítica social a partir da nostalgia de modalidades de retorno à origem e a vínculos comunitários substanciais, culto ao individualismo, expressão de uma classe urbana sem lugar: todas essas disposições contraditórias entre si já foram em algum momento associadas ao romantismo. Todas elas estão corretas em sua descrição, mas incorretas em sua parcialidade. No entanto, não se trata aqui de fornecer alguma perspectiva mais integradora a fim de permitir o advento de mais um capítulo na remodelação contínua de interpretações a respeito do romantismo. Há, na verdade, uma tese a ser defendida, a saber, a experiência do romantismo abre espaço a um modelo de emancipação social que pode redimensionar nossos horizontes hegemônicos atuais de reconhecimento. As reações a tal abertura se darão no interior do próprio romantismo, como se estivéssemos diante de um processo alargado de ação e reação. Ou seja, o romantismo, em seus setores mais avançados, iniciará uma trajetória de circulação de dispositivos que terão impacto decisivo na consolidação de certos modelos críticos de emancipação social a partir de meados do século XIX, assim como produzirá uma reatividade conservadora que terá também sua caracterização estética. No entanto, é decisivo compreender como ele produzirá uma modificação na sensibilidade responsável pela abertura a demandas de emancipação com forte capacidade de ressonância na configuração do radicalismo político moderno e, a sua maneira, ainda atuais até os dias de hoje. Mas para analisarmos tal possibilidade de forma mais estruturada há uma estratégia que deve ser colocadas em marcha. Ela diz respeito ao privilégio necessário a ser dado àquela que foi considerada a “mais romântica das artes”, a saber, a música. Será na música que o romantismo ganhará suas inflexões mais amplas e avançadas. O que não poderia ser diferente. A prevalência do modelo musical a partir do romantismo se explica, em larga medida, pelo caráter não-representativo do espaço musical a partir do advento da música instrumental como paradigma. A afirmação descomplexada de tal caráter anti-representativo, que já ocorre no final do século XVIII, será decisivo para a consolidação da autonomia precoce da linguagem musical em relação aos processos de autonomização pelos quais passarão as outras artes a partir do final do século XIX, assim como para sua força de influência. Notemos, inicialmente, que o deslocamento da reflexão sobre a força política do romantismo para o campo musical complexifica a noção de que: “desde a sua origem o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval)” Idem, p. 37. Ou ainda: “repúdio à realidade social atual, experiência da perda, nostalgia melancólica e procura do que foi perdido: tais são os principais componentes da visão romântica” (p. 47).. Uma afirmação desta natureza pressupõe que a crítica romântica da modernidade e da civilização capitalista seria feita, preferencialmente, em nome de valores e ideais do passado, ou seja, a temática da perda lhe seria constitutiva. No entanto, o romantismo musical de Beethoven, Schubert, Chopin não apresenta formas de fixação melancólica em perdas que não podem ser elaboradas ou que fazem da obra de arte o espaço de uma nostalgia infinita (embora seja verdade que o termo de “nostalgia infinita” fora usado por E.T.A. Hofmann exatamente para falar das sinfonias de Beethoven). Antes, mesmo os usos de materiais regressivos (por exemplo, como o uso da fuga no estilo tardio de Beethoven) ou as estilizações da melancolia (por exemplo, como na constituição do gênero dos Noturnos, em Chopin) são marcados por dinâmicas instauradoras do ponto de vista das inovações formais. Do ponto de vista formal, não há fixação melancólica, mas exploração das potencialidades internas a dinâmicas de instauração e ruptura. Linguagens em crise e a educação sentimental da sociedade burguesa Em um impressionante estudo sobre a música romântica, Charles Rosen sugere tomar duas peças de Schumann como exemplos paradigmáticos da forma musical no romantismo. Os exemplos escolhidos dizem muito a respeito das tensões internas à expressão romântica. A primeira peça chama-se Humoreske e foi composta em 1839. Estruturada em sete seções, ela apresenta, em sua segunda seção (Hastig), uma melodia inaudível que deve ser imaginada pelo interprete em voz interior (innere Stimme) enquanto toca uma espécie de acompanhamento para uma melodia que nunca será ouvida. Desta forma, nos confrontamos como: “uma estrutura de sons que implica o que está ausente” ROSEN, Charles; The romantic generation, Harvard University Press, p. 10, implica o que é destinado a nunca se realizar, mas que deve ser contado como parte da obra. Esta é uma forma no interior da qual nem toda potência está destinada a passar ao ato. Há assim uma experiência de interpretação que exige a consciência da dissociação entre concepção e realização. Tal dissociação produz uma latência sempre presente na obra, como se o limite à interpretação fosse fenômeno interno ao funcionamento da obra. Longe de ser uma ironia gratuita de Schumann, sua melodia que deve ser “tocada” apenas em voz interior talvez seja, de fato, a expressão mais radical de um eixo maior de desenvolvimento da forma musical no interior do romantismo. Trata-se da exigência de integração contínua do que aparece como limite às possibilidades definidas pela organicidade da forma. A forma musical no romantismo de Schumann, de Chopin, do chamado “estilo tardio” de Beethoven é uma forma atravessada pela consciência de seus limites, por isto forma eminentemente crítica. Forma animada pela potência do irrealizado e do irreconciliável. “É um paradoxo essencialmente romântico que o primado do som na música romântica tenha de ser acompanhado e mesmo anunciado por uma sonoridade que não apenas é irrealizável, mas inimaginável” Idem, p. 11. Como se a música caminhasse necessariamente em direção ao que força o esquematismo da imaginação, ao que desorienta os limites da escritura. Trata-se de algo muito diferente destas notações de partitura barrocas que deixavam à escolha do interprete algumas decisões importantes a respeito de ornamento, intensidade e timbre. Neste caso, a partitura deixa espaço à habilidade do interprete. Pois no caso da peça de Schumann, o interprete se vê diante do que sua habilidade não permite formalizar. Trata-se de uma maneira de confrontar o interprete com algo que permanecerá irrealizado, embora com a força de intervir na maneira com que a interpretação se dará. É neste contexto que outra peça de Schumann é invocada, a saber, o primeiro Lied da série dos Dichterliebe, intitulado “Im wunderschönen Monat Mai”. Ela começa no meio, termina em uma dissonância, um impressionante acorde de sétima dominante sem resolução, e parece procurar traduzir musicalmente a expressão de um desejo insatisfeito, em permanente expectativa. O poema de Heinrich Heine é claro neste sentido. Ele dirá: no maravilhoso mês de maio, os botões de flores exprimem a emergência do amor e o canto dos pássaros faz o poeta ouvir seu próprio anseio (Sehnen) e saudade (Verlangen). Por sentir o descompasso entre o tempo presente e o que não se realiza, por sentir a forma com que o maravilhoso produz não exatamente o conforto, mas o desnorteio do anseio, a peça parece começar em qualquer parte e terminar em qualquer parte, como se fosse um simples fragmento de uma forma não completamente presente, que pode continuar infinitamente. Diante destes dois exemplos poderíamos falar de uma forma em crise perpetua, ou seja, que perpetuamente evidencia a natureza de convenção a animar o solo de inteligibilidade que liga compositor, intérprete e ouvinte, forma que perpetuamente denunciaria a finitude do que a obra é capaz de determinar. Convenção que, por sua vez, parece apontar para o envelhecimento contínuo da linguagem. De fato, conhecemos certas interpretações que insistirão que algumas características fundamentais da expressão romântica, como a ironia, o culto do fragmento e do paradoxo, o caráter de desarticulação contínua da capacidade construtiva da forma, seriam marcas de uma subjetividade a estilizar continuamente os descompassos entre efetividade e as aspirações normativas da Ideia Ver ARANTES, Paulo; Ressentimento da dialética, São Paulo: Paz e Terra, 1996.. No entanto, há um risco ao inflacionarmos, neste contexto, o conceito de “linguagem em crise” ou de ver em casos similares apenas a expressão de uma estetização contínua do descompasso. Pois correremos o risco de não compreender o sistema profundo de ligações entre desejo romântico em direção ao irrealizado e redimensionamento da experiência social de emancipação. De certa maneira, desde a aurora do romantismo, a linguagem musical estaria, ao menos se formos fieis a tal leitura, continuamente em crise, o que nos leva a se perguntar se, por trás desta aparente crise perpétua, não haveria algo que não é simplesmente crise, mas a afirmação de uma processualidade produtiva animada pelo caráter formalmente desestabilizador de certos conceitos estéticos centrais, em especial o conceito de expressão. Estudos para piano Para apreender melhor as articulações entre processos de instauração e dinâmicas de desestabilização da linguagem, podemos privilegiar uma estratégia local e nos voltar à análise do desenvolvimento de um gênero musical que se consolida com o romantismo, que lhe representa de forma privilegiada, permanecendo até hoje em alguns compositores contemporâneos centrais (como Gyorg Ligeti, Pascal Dusapin, Maurice Ohana, Philip Glass). Como uma lógica sintomal, este ponto local poderá iluminar o todo. O gênero escolhido é peculiar pois preso entre a condição de mero exercício técnico de adestramento corporal e obra autônoma, entre disciplina e expressão, entre música e ginástica, por isto gênero que deixa mais evidente as engrenagens através das quais a expressão musical encontrará sua gramática tensa. Trata-se dos Estudos para piano. Gostaria pois de procurar compreender, a partir de um dos gêneros aparentemente mais tipificados da literatura musical, como a expressão se coloca como limite à comunicação e às determinações regulares da forma. Assim, veremos como, longe de ser o processo que garante a unidade de uma subjetividade fortemente personalizada, a expressão será o ponto de relação ao que se coloca como heteronomia. Lembremos ainda que discutir o problema da expressão musical através do desenvolvimento da técnica pianística não é uma escolha gratuita. Nenhum outro instrumento se vinculou tão claramente à formação sentimental da burguesia em ascensão, à definição do espaço privado da home e de sua memorabilia quanto o piano. Uma impressionante literatura pianística foi produzida a partir das primeiras décadas do século XIX visando, entre outras coisas, alimentar um público crescente em formação. O piano não foi apenas um instrumento musical, mas um espaço privilegiado de formação da sensibilidade burguesa e de sua interioridade psicológica. O seja, o piano não foi apenas o instrumento privilegiado de educação musical, ele foi o meio fundamental de educação sentimental, ele foi, na verdade, o primeiro divã da sociedade burguesa. Ao menos no que diz respeito ao século XIX, não haveria a sensibilidade burguesa como a conhecemos se não houvessem pianos. Mas como todo bom divã, o que aparecerá diante do piano ultrapassa em muito os anseios de controle da sensibilidade burguesa. Assim, dentre a literatura pianística, os Estudos para piano merecem nossa atenção por aparecer mais claramente como eixo de uma certa pedagogia da expressão. A sua maneira, os Estudos procuram fornecer a definição das condições de possibilidade para toda intepretação correta possível, produzindo historicamente algo como a determinação transcendental da interpretação musical. Tais condições de possibilidade, no entanto (e este é um ponto de suma importância), são inicialmente expressas em um conjunto de disposições corporais. Não se aprende a tocar piano sem aprender a controlar o peso dos dedos, a modelar as mãos, a abrir e fechar os braços a fim de construir uma dinâmica de intensidades e velocidades. Neste sentido, a técnica pianística impõe claramente a construção de um corpo expressivo a partir da internalização de um sistema complexo, de tempos, de gestos e de movimentos Ver, a este respeito, SZENDY, Peter; Membres fantômes: des corps musiciens, Paris: Minuit, 2002. Ela demonstra, de maneira exemplar, como a personalização da expressão é totalmente dependente da determinação de uma gramática de disposições corporais. Por exemplo, podemos não saber se uma indicação de pianíssimo em uma partitura indica ternura, solidão, tristeza ou quietude contemplativa, mas sabemos quais gestos corporais são necessários para o pianíssimo aparecer. Sei como meu corpo deve estar, de que parte do corpo deve vir o peso do toque. Essa gramática corporal (e não a elaboração intelectual dos sentimentos) é, no fundo, a base da noção moderna de expressão. Como se a expressão fosse, no fundo, um gênero de expressão corporal. Pois, se a expressão pode inicialmente parecer a manifestação de uma egoidade personalizada, tudo se passa como se a ilusão desta egoidade estivesse profundamente relacionada a um sistema de condicionamentos corporais, a uma imagem do corpo que a técnica de interpretação parece procurar criar. O que não deixa de nos lembrar uma ideia cara à psicanálise, a saber, a noção de que o sentimento da egoidade está sempre vinculado à imagem do corpo próprio Ver a este respeito : LACAN, Jacques ; « Le stade du mirroir comme formateur de la fonction du Je », In : Ecrits, Paris : Seuil, 1966. . No entanto, tal construção de uma gramática corporal não é apenas a internalização de processos disciplinares em direção a formação de um corpo expressivo. Esta é a diferença maior entre Estudos de função meramente didática, que todo estudante de piano infelizmente conhece e felizmente odeia, e as obras que gostaria de analisar. Na verdade, em tais obras, a construção da gramática corporal é, na verdade, a posição de uma modalidade de aproximação com o que não tem a forma de uma egoidade. Ela é aproximação com aquilo que, liberado da sua ordenação regulada no interior da linguagem musical, é um fluxo de despersonalização e heteronomia, pois é forçagem contínua da normatividade da forma musical. Poderíamos dizer que, para além de um imaginário do corpo, ele é a expressão de um corpo real, isto se quisermos continuar nas aproximações psicanalíticas. Como já foi dito, um conjunto de Estudos para piano é normalmente feito com o objetivo de fornecer ao instrumentista situações que lhe possibilitem desenvolver sua técnica, aprimorar sua gestualidade e agilidade. Embora encontremos antes do começo do século XIX peças fundamentalmente destinadas ao desenvolvimento da habilidade técnica do tecladista, como os Clavier Übung, de Johann Sebastian Bach (que contém as famosas Variações Goldenberg) e os 30 exercícios para cravo, de Domenico Scarllati, é só a partir de compositores menores como Karl Czerny, Johann Cramer e Muzio Clementi (se me permitem uma pequena colocação de ordem pessoal, credito a eles os piores momentos de minha vida em conservatório) que teremos uma produção sistemática de peças didáticas não dirigidas à performance e que serão chamas de Etudes. Como dirá Charles Rosen: O Estudo é uma ideia romântica. Ele aparece no começo do século XIX como um novo gênero: uma peça curta cujo interesse musical é derivado quase inteiramente de um único problema técnico. Uma dificuldade mecânica produz diretamente a música, seu charme e seu pathos. Beleza e técnica estão unidas, mas o impulso criativo é a mão, com seu arranjo de músculos e tendões, sua forma idiossincrática ROSEN, Charles; The romantic generation, p. 363. No entanto, com Liszt e, principalmente, Chopin, tais peças transcenderão seu caráter meramente pedagógico para tornar-se, também, repertório de salas de concerto. Na verdade, eles representarão um ponto alto da expressividade romântica. Por isto, gostaria de concentrar-me em uma discussão mais específica sobre Chopin, deixando os igualmente importante Estudos de Liszt de lado. É fato que, com Chopin, encontramos uma manifestação paradigmática e decisiva da expressão musical romântica extremamente singular. Mas tenhamos em vista, mais do que uma análise estrutural de seus Estudos, o problema da articulação possível entre expressão musical e emancipação social. A destituição do território A análise da expressão em Chopin, assim como de suas implicações para a reconstrução do conceito de emancipação social, talvez devesse, no entanto, partir inicialmente de outro lugar. Não diretamente da maneira com que ele reconstrói a gramática da expressão musical a partir de seus gestos, a partir da emergência de um corpo, mas da maneira com que sua música procura por um povo, ou se quisermos, procura por um outro tipo de corpo, um corpo político. Pois há articulações profundas, há relações de imbricação entre a emergência de um corpo expressivo e um corpo político. Seria importante lembrar aqui que há maneiras distintas de se procurar por um povo. Podemos faze-lo à maneira dos compositores nacionais que recuperam e catalogam materiais folclóricos, músicas populares a fim de contribuir para a consolidação da identidade nacional no interior da afirmação dos estados-nação. Dvorak, Janacek e os tchecos, Grieg e os noruegueses, Sibelius e os finlandeses, Borodin e os russos, Villa-Lobos e os brasileiros. Os exemplos são legião e aparecem principalmente no século XIX ou (em caso de países de nacionalidade retardatária como o Brasil) no século XX. A absorção do folclore pelos compositores era, na verdade, peça maior da estratégia burguesa de enraizar sentimentos nacionalistas em uma “gramática da origem” capaz de fornecer a ilusão de uma continuidade identitária, de materiais musicais tipicamente nacionais, como os cristais da Boêmia, o café brasileiro e os queijos franceses. Mas seria este exatamente o caso de Chopin e os poloneses? Já se procurou sem grande sucesso traços diretos de materiais folclóricos em suas Mazurkas, com resultados extremamente limitados, não indo além de referências ligadas a um imaginário popular bastante genérico. Eles praticamente inexistem em suas Polonaises, peças no entanto organicamente animadas pelo sentimento de procura de um povo em vias de desaparição, assim como inexiste o trabalho temático com o mito ou com marcas do Volkgeist. Por isto, podemos dizer que o caso de Chopin e suas Polonaises, o eixo principal de sua procura por um povo, é outro. O que encontramos inicialmente é a reformulação completa de um gênero que, até então, aparecia como gênero menor ligado à dança, ao divertimento e, por isto, a estereotipia das formas. Um gênero menor e completamente tipificado advém uma forma-extensa com desenvolvimento verdadeiramente sinfônico e força dramática. Este novo desenvolvimento da Polonaise como forma-extensa des-identifica os materiais, retirando sua tipificação estrita. Note-se, por exemplo, o sentido de Chopin chamar por um povo privilegiando operações musicais como a elevação intensiva de operações por contrastes e por diferenciação de sentimentos no interior do mesmo tema, muitas vezes no interior da mesma frase musical. Notemos como estas diferenciações são, na verdade, diferenciações em continuidade. Que tenhamos em mente o exemplo da Polonaise n.5 e suas resoluções através de cortes abruptos que, no entanto, resolvem a última nota do tema no início do tema seguinte de intensidade completamente oposta, criando assim uma continuidade onde deveria haver apenas ruptura. Há de se sublinhar, principalmente, os casos das passagens entre os compasso 81 e 82, na qual a tripla oitava de mi que inicia a sequência de acordes no compasso 80 se resolve na tripla oitava de lá que será repetida de forma obsessiva durante vinte compassos, assim como a passagem do compasso 101 a 102, na qual a tensão produzida pela repetição insistente do lá agora em oitavas paralelas é suspensa por uma resolução completamente improvável de frases melódicas que começam em sol e fá e que recuperam frases expostas anteriormente em outro contexto. Mas note-se principalmente a “transição” entre o compasso 109 e 110. Essas são passagens nas quais o fim da frase musical é sua transmutação completa de caráter e, principalmente, a conservação de tal processo em um aumento de tensão que fornece às figuras retomadas por uma segunda vez a complexificação de seu sentido. A retomada a partir do compasso 110 é o aumento exponencial da força dramática da repetição das oitavas paralelas, mas sua resolução se dá através de uma transmutação do ritmo marcial em tempo di mazurka, ou seja, em recuperação da expressão da dança. Há de se admirar a coragem de resolver o drama de uma marcha militar através de uma dança de salão. Este ponto nos leva a outra característica musical importante. Chopin chama um povo fazendo apelo a um fluxo constante de desconstituições e recontextualizações semânticas que transformam o sentido de peças normalmente usadas para chamar musicalmente um povo, como hinos, marchas, danças e uníssonos. Os elementos musical próprios a hinos, marchas e danças estão lá, mas em um jogo de passagens e instabilidade tal que lhes retira a capacidade de, digamos, fundamentar um solo. Os hinos se dissolvem em contrapontos, as marchas viram danças, as danças carregam uma tensão, vinda da ressonância dos momentos musicais anteriores ainda vivos e prestes a reemergir, que retiram da dança sua função de divertimento. Isto nos permite dizer que este povo chamado por Chopin, constitui seus vínculos e seus sistemas de transmissões através da partilha de uma expressão que não terá solo, expressão que constrói um espaço musical em fluxo contínuo de transformação. Fluxos muito intensos para fundar um solo. Neste sentido, se a emancipação política no século XIX esteve tão vinculada à construção de um território nacional, com seu imaginário de libertação e recuperação de uma origem silenciada, a estratégia de Chopin segue outra coordenada. Ela é um esforço contínuo de desconstituição de territórios, de invasão de forças heterogêneas que desestabilizam formas e produzem um espaço de múltipla imbricação. Há de se atentar para este modelo de emancipação através da abertura a forças heterogêneas. Como disse anteriormente, ela fornece um outro modelo de emancipação, não mais ligada às ilusões autárquicas de autonomia e jurisdição de si. De toda forma, não é por acaso que tal modelo aparece a respeito dos poloneses do século XIX. Neste momento, como dirá Engels: “polonês e revolucionário são dois termos idênticos”. Afastado do pan-eslavismo e sua ressureição contra-revolucionária de arcaísmos, os poloneses seriam, na perspectiva de Engels e Marx, o único povo eslavo capaz de aceder a uma consciência revolucionária visando a emancipação coletiva Ver ENGELS, Friedrich; “A revolta húngara”, In: Nova Gazeta renana, 13 janeiro 1849.. Já sua constituição de 1791 fora acusada de jacobinismo e simpatias revolucionárias, o que motivara a guerra russo-polonesa e a posterior partição da Polônia. Após a partição, várias revoltas se sucedem, em especial Varsóvia, em 1830, e principalmente Cracóvia, em 1846. Marx e Engels dirão que a insurreição de Cracóvia deveria ser vista como um modelo por ser o primeiro movimento na Europa a hastear a bandeira da revolução social, sendo não apenas uma revolução nacional, mas uma revolução de emancipação de classes, o que os fazem defender sua posição de precursora das revoluções de 1848. Ou seja, o vínculo à causa polonesa tem, no século XIX, uma complexidade para além do problema da emancipação nacional. Reconstituir um corpo expressivo Mas tentemos desenvolver o problema da expressão musical como abertura ao heterogêneo através da discussão de algumas peças paradigmáticas dos Estudos para piano. Comecemos por lembrar que uma abordagem do conjunto dos Estudos de Chopin em seus dois livros, o opus 10 e o opus 25, além dos três Estudos sem opus publicados posteriormente, demonstra como não se trata no caso de Chopin apenas de apresentar dificuldades técnicas para a formação das habilidades musicais do interprete. Trata-se de algo mais audacioso, a saber, reencontrar o corpo, reconstruir seus gestos com suas intensidades e movimentos, recuperar a mão através de dedilhados e movimentos que construam para cada um dos dedos uma sonoridade que lhes seria própria. Tomemos, por exemplo, o problema do dedilhado. O ponto fundamental de contato entre o corpo do interprete e o corpo do piano são os dedos. Por isto, toda a constituição disciplinar do corpo expressivo do interprete começará pela “produção” dos dedos. Era comum à época de Chopin a defesa de que: “a clareza da execução só pode existir enquanto todos os dedos tiverem uma força e uma flexibilidade iguais” FÉTIS, François-Joseph; La méthode des méthodes de piano, Paris, 1840, p. 9. Ou seja, a expressão musical seria solidária aqui da produção de uma disposição igual de forças, de uma intercambialidade absoluta que parece garantir o domínio pleno de meu corpo através da afirmação de um horizonte abstrato de pura homogeneidade (todos os dedos se equivaleriam, independente de sua anatomia distinta; desta forma, posso ter o domínio de todos de forma igual). Ao produzir a homogeneidade de forças e flexibilidade, teremos uma expressão que nasce do domínio de si sobre o corpo e sua anatomia. Ela será por isto expressão máxima da disciplina. Neste sentido, Chopin será praticamente o único em sua época a dizer: Agiu-se durante muito tempo de maneira contra-natural procurando dar aos dedos uma força igual. Tendo cada dedo uma conformação diferente, é melhor não procurar destruir o charme do toque especial de cada um mas, ao contrário, desenvolve-lo. Cada dedo tem força de acordo com sua conformação CHOPIN, Frédéric; Esquisses pour une méthode de piano, Paris: Flammarion, 1993, p. 74. Chopin chega mesmo a propor que a posição natural da mão sobre o teclado não é a colocação de cada dedo sobre uma tecla de dó a sol, como se faz normalmente até hoje, mas em mi, fa#, sol#, la#, si, já que os três dedos centrais, por serem maiores, devem ficar sobre teclas pretas, que são mais altas. Assim, não se trata de adequar a naturalidade do corpo ao fundamento primeiro do sistema tonal, no caso a primeira pentatônica da escala fundamental de dó maior. Trata-se de elevar o próprio corpo a princípio normativo, de produzir a expressão a partir da liberação do corpo da posição de mero apêndice repetidor da normatividade interna ao sistema. Esta liberação é o que permite criar uma gradação de colorações até então desconhecidas, nunca ouvidas, que fornecerão possibilidades construtivas para a escrita pianística. Isto nos explica porque: A maior parte dos Estudos de Chopin são estudos sobre colorações e a dificuldade técnica concerne, na maior parte dos casos, mais a qualidade do toque do que a acurácia ou a velocidade. Esta implicação com as colorações responde à importância a insistência de Chopin nas diferentes funções dos diferentes dedos ROSEN, idem, p. 371. Neste sentido, basta perceber como Chopin trabalha a melodia do toque do quinto dedo, o dedo cujo controle é o mais difícil, em sua contraposição a massa quase indefinível composta pelas figuras de arpeggio, no primeiro Estudo do opus 25. A função maior deste primeiro Estudo é a diferenciação do toque e as possibilidades construtivas que tal diferenciação revela. A modulação das intensidades deve obedecer a um sistema de diferenciação do quinto dedo e de indeferenciação generalizada dos demais. Desta forma, aprende-se a elaboração de uma disciplina sobre si capaz de produzir diferenciação a partir da distribuição singular de intensidades e da criação de contraposições lá onde até então havia apenas uniformidade. Há assim no primeiro Estudo do opus 25, antes de mais nada, a arte de produção de um gesto musical vinculado à recomposição da gramática dos movimentos corporais. Não deixa de ser interessante lembrar aqui como a música contemporânea foi sensível a esta natureza fundamental do gesto musical que anima o princípio construtivo de Chopin e enraíza sua linguagem musical. Tomemos, por exemplo, a seguinte afirmação do compositor húngaro Gyorg Ligeti à ocasião de uma explanação a respeito de seus Estudos para piano: Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos táteis são quase tão importantes quanto conceitos acústicos (...) Um giro melódico ou uma figura de acompanhamento chopinesco não é apenas ouvido, mas é também sentido como uma forma tátil, como a sucessão de excertos musculares. Uma peça de piano bem formada produz prazer físico LIGETI, Etudes, . Se uma peça pode produzir prazer físico é porque ela esculpe a dinâmica dos corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através da repetição de movimentos. Esta inscrição da corporeidade em um processo de produção de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de uma certa expressão corporal resultante de uma verdadeira “disciplina de artista”, ligada a uma trabalho sobre si que faz do corpo o campo de desdobramento daquilo que Ligeti chama de “conceito táteis”. Mas há algo mais do que produção de um esquematismo corporal em Chopin e é este ponto que merece nossa atenção. Se é verdade que: “nos Estudos de Chopin, o momento de maior tensão emocional é geralmente aquele que a mão é alongada da maneira mais dolorosa, de maneira que a sensação muscular se transforme – mesmo sem o som – em uma mimesis da paixão” ROSEN, Charles; The romantic generation, p. 383 é porque, muitas vezes, esta escultura da dinâmica dos corpos não é apenas a constituição de uma regularidade, mas o aprendizado das paixões naquilo que elas tem de mais amedrontador, ou seja, na confrontação com o ponto no qual tensão emocional e limite corporal se tocam. Limite corporal visível em vários Estudos, como o opus 10 n. 1, no qual os arpeggios constituídos de intervalos de oitava, quinta, quarta e terça a serem tocados em extrema velocidade (tempo de 176 para as semínimas). O que leva o interprete ao exercício impossível de tentar: “reduzir os espaços (écarts) até negá-los” BOUCOURECHLIEV, André; Regard sur Chopin, Paris: Fayard, 1996, p. 105. Esta gramática que não é apenas o ensino da regularidade, mas o desenvolvimento da confrontação com o limite, não se contenta em ser o conjunto de condições para o desenvolvimento da virtuose pianística. Ela é o desenvolvimento da forma como passagem em direção ao limite, como se realização da forma e sua própria dissolução fossem processos indissociáveis. Por isto, tal gramática não é apenas um exercício de virtuose, mas a conquista da expressividade através da reversão da normatividade em princípio de desconstituição da própria forma. Esta dialética é uma das características maiores da expressão romântica e diz muito a respeito da maneira com que a experiência estética poderá a partir de então ser elevada à condição de modelo social de liberdade. Pois liberdade aqui é indissociável da capacidade de operar o manejo de uma dialética rigorosa entre constituição e desconstituição. Violência, dissociações e equilíbrios Analisemos dois exemplos maiores a este respeito, a saber, o Estudo opus 10 n. 12 (1833) e o opus 25, n. 12 (1837). O que os une é, acima de tudo, uma mesma caraterística construtiva. Tratam-se de estudos cuja célula elementar é a repetição de um gesto. De certa forma, é correto afirmar que a ideia musical que dá unidade e princípio de desenvolvimento à peça é a expressão de um gesto. Nos dois casos, toda a peça é baseado em um gesto ascendente e descendente normalmente desenvolvido para mostrar como o pianista deve “tomar posse” da extensão do teclado. O opus 10 n. 12 tem, além destes gestos de arppegios ascendentes e descendentes, o movimento de escalas descendentes, claramente ouvido nos oito primeiros compassos e retomado tanto na primeira reexposição dos temas quanto ao final. Neste sentido, o que ouvimos na peça é simplesmente a manifestação de um gesto pianístico fundamental que garante coerência de desenvolvimento e unidade estrutural à obra. Como se o gesto fosse a célula elementar do nascimento de toda significação possível, a base de toda e qualquer linguagem expressiva, o “ser bruto” da língua liberado agora de sua condição de “objeto” potencial. Mas há dois pontos fundamentais aqui. Primeiro, uma análise do opus 10 n. 12 demonstra como o Estudo se estrutura, desde seu início, através de um esforço de construção a partir da desconstituição produzida pela mão esquerda. Pois a mão esquerda não pode ser descrita como fornecendo algo que se assemelha a um acompanhamento que se subordina a melodia. De fato, entre os compassos 10 e 28 os arpeggios ascendentes e descendentes ainda “mimetizam” uma estrutura tradicional de subordinação. Podemos encontrar tais figuras de acompanhamento já no Cravo bem temperado, de Bach. Mas há algo aqui de completamente diferente. Comparemos, por exemplo, com o uso das mesmas figuras no Moderato cantabile da Fantasia, opus 66, de Chopin. Neste caso, a figura musical está claramente no interior de sua função, ela é usada de forma a sustentar o desenvolvimento melódico de maneira claramente subordinada. Já nos compassos em questão do Estudo opus 10 n. 12, a velocidade e intensidade a que a mão esquerda está submetida, em contraposição à continuidade da mão direita, funciona como uma espécie de distorção da função inicial das figuras musicais. Ou seja, elas estão saturadas e em desconstituição semântica. Há um crescimento por saturação até os compasso 29 ao 41, onde não há mais nada que possa ser descrito como se referindo a acompanhamento, nem se trata por isto de uma estrutura tradicional de contraponto, pois não há exatamente uma outra “voz” na mão esquerda. A submissão das figuras musicais a um trabalho cada vez mais extremo de velocidade, intensidade e modulação retira-lhes o caráter de voz para aproximar-lhes de algo, de certa forma, anterior à voz de um sujeito. A continuidade ininterrupta deste trabalho de velocidade e intensidade faz de toda a sequência da mão esquerda algo abaixo da incorporação da música à voz, abaixo do processo de incorporação de frases musicais à intenção significativa. Há de se sentir esta impessoalidade, esta despersonalização em emergência para interpretar de forma correta a peça. Há de parar, ao menos por um momento, de se perceber como portador de “vozes” que se agenciam em um diálogo. Assim, ao invés da subordinação das vozes, ao invés das vozes em contraponto, temos algo como uma espécie de fluxo intensivo cortado pelo trabalho da mão direita com pontuações que paulatinamente constituem uma série melódica extraída da transcrição pianística de uma gestualidade em explosão. Como se estivéssemos diante de um fundamento que, ao invés de operar por semelhança ao fundado, é a forma mesma do que não permite construção alguma por relações de semelhanças. O que demonstra quão errado estava René Leibowitz ao dizer que, em Chopin, a escritura não ultrapassa nunca o solo da melodia acompanhada. Tal construção através de cortes é pois a expressão de um segundo princípio que se descola do princípio meramente gestual da mão esquerda. A mão esquerda apresenta uma intensidade em limite contínuo e uniforme enquanto a mão direita é capaz de operar por contrastes, tal como vemos no contraste que suporta a relação antecendente-consequente das células motívicas dos compassos 10, 11 e 12. Esta operação por contrastes, que aparecerá em outros momentos da peça, indica um modelo de construção e controle estranho ao fluxo contínuo e indiferenciado da mão esquerda. É por levar em conta tal dinâmica de agenciamento de contradições que podemos dizer que poucas foram as peças musicais que expuseram de forma tão evidente a estrutura da expressão romântica como elaboração da contradição posta entre indeterminação e determinação, como elaboração singular de modalidades de controle do que aparece como posição enfim exposta do ímpeto (Drang). Como se tratasse de expor um corpo que parece, a todo momento, confrontar-se com a desestabilização produzida por um plano de pura intensidade. Como se interpretar um Estudo como este exigisse do pianista perceber-se entrar em um movimento de dissociação, chegar no limiar de um descontrole que, apesar disto, deverá ser calculado e conscientemente produzido. Esta forma da expressão musical como subjetivação de processos que, no interior da linguagem musical, estão, de certa maneira, em processo de desconstituição semântica por expressarem o que força a forma musical em direção ao informe fazem da experiência estética uma relação constitutiva à heteronomia. Não haverá depois disto experiência estética sem o impulso de forçagem da forma para fora de si mesma. Esta será a maior das contribuições românticas. Podemos encontrar o mesmo princípio construtivo de integração de processos abaixo da significação, de forma mais contida, no Estudo opus 25, n. 6 e seus ostinatos de terças na mão direita. Aqui, os ostinatos ganham extensão desproporcional transformando-se em material musical dotado de autonomia própria. Mas é certamente o Estudo opus 25 n. 10 que mais claramente desenvolve o modelo de construção que encontramos no opus 10, n. 12. Dividido em três partes, sua primeira parte é claramente uma abolição perfeita das noções de subordinação e hierarquia que fornecem o modelo de organização da progressão harmônica do sistema tonal. Apresentando duas séries de oitavas exatamente iguais em deslizamento contínuo, a primeira parte tem como função a posição do princípio de indeterminação que será controlado na segunda parte, na qual as sequências de oitava se concentram na mão direita para liberar a mão esquerda a retornar, momentaneamente, à sua condição de voz subordinada. O contraste brutal entre a primeira e a segunda parte tem uma função clara. Tudo se passa como se Chopin quisesse expor o mesmo princípio construtivo (sequências de oitavas) em sua expressão monstruosa, em um fluxo marcial em 4/4, em uma articulação desprovida de hierarquia, e em sua inscrição controlada em um ritmo ¾ e em uma estrutura de vozes subordinadas. Assim, a monstruosidade se transforma em dança. Como se fosse questão de evidenciar como as oposições se dissolvem em uma transvaloração contínua e reversível. Esta ideia musical de apresentação sequencial de materiais inicialmente em sua forma quase assignificativa e posteriormente em sua construção realizada pode ser também encontrada, sob outra forma, no opus 25 n. 5. Composto claramente em três partes, sua primeira parte é um exemplo do uso da ironia em música. Seu motivo elementar é composto de acordes arpejados e sequências de notas de passagem em segundo diminuta, criando uma sequência de dissonâncias e de impressão de “falsas notas”. A indicação de scherzando na partitura indica que ela deve ser tocada no limite do caricato e mecânico. Há uma clara ironia, acentuada na forma como a primeira parte termina de forma abrupta e impaciente. O tema que aparece na segunda parte guarda relações morfológicas com o primeiro, mas as “falsas notas” desapareceram, criando assim uma sequência de terças em continuidade. Este jogo de contraste entre caráteres musicais, entre o rígido e o fluido, é produzido a partir dos mesmos elementos. Como disse anteriormente há, além desta relação dialética tensa entre forma e informe, outro ponto a ser salientado, a saber, o aprendizado da dissociação, em especial da dissociação temporal. Há uma dissociação latente, por exemplo, no opus 25 n. 12. A mão direita normalmente move-se em intervalos de terça e de oitava, isto enquanto a mão esquerda se move em intervalos de quinta e oitava. Desta forma, teríamos uma peça construída a partir dos intervalos mais elementares, ou seja, aqueles próprios a um acorde perfeito. No entanto, a melodia que se constrói a partir das primeiras notas da sequência baseia-se em intervalos dissonantes (terça menor, segunda, quarta) que se resolvem em uma consonância de oitava ou em uma consonância de quinta. Ou seja, a peça exige do interprete a capacidade de operar, ao mesmo tempo, a partir de dois princípios em oposição. A expressão da heteronomia Nas notas redigidas para a elaboração de um método de piano, Chopin escreveu: “A palavra indefinida (indeterminada) do homem é o som”/ “A língua indefinida: a música” CHOPIN, Frédéric; idem, p. 48. Chopin não poderia ser mais romântico nesta forma de elevar a indeterminação a condição de processo fundamental da linguagem musical. No entanto, há de não esquecer como tal elevação é peça maior da estratégia de dar à experiência estética a condição de forma paradigmática da emancipação social. Pois insistamos mais uma vez que essa língua indefinida própria à música será o veículo de uma sensibilidade outra. Se a música a partir do romantismo associa de forma tão clara a expressão ao fragmentário, à ruptura, à não conformação a princípios construtivos, à exaustão do limite, à desconstituições semânticas, à críticas às formas gerais do classicismo (a ponto de relativizar o conceito de “belo” em prol do “sublime”) é porque o movimento do qual a música será, de forma cada vez mais evidente, expressão da crítica à linguagem reificada da vida ordinária, linguagem esta submetida aos imperativos comunicacionais e seus modos de constituição de objetos. Estes processos visíveis no fundamento da estética romântica ganharão vida própria para além do próprio romantismo, não apenas no interior da Segunda Escola de Viena, mas mesmo para além dela. Há de se salientar este ponto pois poderia parecer que principalmente a partir do serialismo, a expressão musical não teria mais lugar. No entanto, não é correto dizer que a expressão deixaria de ser um conceito estético central depois que, como dizia Boulez, “Schoenberg morreu”. O recurso ao serialismo, à inexpressão (como na música de indeterminação de John Cage ou no objetivismo de Stravinsky) ou mesmo ao maquinismo em suas versões múltiplas na história moderna da música (de Colon Nancarrow, por exemplo) podem significar mudanças radicais no regime de similitude da música à linguagem (“Sprachähnlichkeit”), como diria Adorno Ver, por exemplo, WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl Hansen Verlag, 2009, pp. 7-14. Mas é possível levantar como hipótese de que tais estratégias podem, por sua vez, serem lidas no interior de uma dialética necessária para a recuperação da potencialidade não-intencional da expressão. É claro que podemos encontrar tendências importantes da música contemporânea que visam transformar a experiência estética em experiência, ao mesmo tempo, não vinculada de maneira estrita a funções sociais exteriores e não dependente de uma estética dos sentimentos própria à uma concepção de sujeito fortemente egológica. Neste sentido, não é mero acaso que momentos decisivos da arte modernista tenham sido animados pela luta contra a expressão e o estilo. Tais momentos denunciaram o estilo como depositário de uma gramática reificada de formas, assim como a expressão musical aparece como a tentativa de fetichizar uma “segunda natureza” que teria se cristalizado através de uma gramática fixa dos modos de afecção. Por isto, é certo afirmar que algumas obras maiores da experiência musical no século XX são desprovidas de expressão, mas não por elas serem “desprovidas de alma” ou “desprovidas de vida”, como o senso comum gosta muitas vezes de dizer. Como se tais obras fossem culpadas por não cultivarem a proximidade semântica com operadores linguísticos da vida ordinária, da gramática ordinária de nossos afetos e da narratividade de nossa temporalidade. Por exemplo, Structures 1a, de Pierre Boulez, era certamente e deliberadamente desprovida de expressão, pois procurava realizar uma estratégia crítica claramente definida. Da mesma forma como era desprovida de expressão, por razões diversas, Concerto para piano, de John Cage. Mas diria que essas obras são desprovidas de expressão não por terem abandonado todos os elementos gramaticas ordenadores do tempo musical e que aproximam a logicidade musical da expressão linguística (como as relações antecedente-consequente, dissonância-resolução, as repetições de motivos e elementos acessíveis à percepção musical do ouvinte). Elas são desprovidas de expressão por desconhecerem princípios de tensão interna entre seus materiais e as disposições construtivas que dão coesão à obra. Mesmo uma racionalidade musical baseada no uso restrito de categorias como: repetição, periodicidade, variação, decisão e automatismo (como no serialismo e no pós-serialismo) pode se afastar da tematização explícita do problema da expressão sem desqualificar necessariamente seu possível retorno em um nível menos reificado. É isto que faz o próprio Boulez em um momento posterior, com explosante-fixe, por exemplo, e sua tensão entre construção e organicidade do instrumento solista (não por acaso, um instrumento de sopro, o mais próximo da voz humana). Mas obras que anularem a tensão entre tendências internas aos materiais e construção, que transformarem os materiais em disposição integral da forma, repetirão um princípio de dominação contra o qual a noção de expressão musical se bate desde o romantismo, desde a época que Chopin lutava contra os dedos de seus contemporâneos. Neste sentido, se quisermos ainda falar da experiência estética como experiência da liberdade, seria importante retirar, de todas suas formas, o conceito de liberdade do horizonte temático de noções como auto-legislação, livre-arbítrio, decisão e adesão voluntária a escolhas. A experiência estética não é apenas a reiteração de um conceito de liberdade já presente na vida social. Ela é a constituição de uma noção de liberdade, de certa forma, estranha àquilo que a vida social espera. Uma liberdade pensada não como constituição de novos espaços relacionais a partir de deliberações não-constrangidas por processos heterônomos, mas liberdade como relação ao que me descentra. Liberdade como abertura a uma heteronomia sem servidão. Revolução política, instauração estética Aula 10 A revolução russa forneceu o paradigma para as teorias das revoluções do século XX. Ela foi a primeira experiência de tomada revolucionária do poder, feita em nome de uma transformação radical de todas as relações sociais, capaz de construir instituições que, de forma ou outra, duraram algo em torno de setenta anos. As experiências anteriores tiveram como uma de suas características fundamentais a rápida duração. Exemplo maior neste sentido foi a Comuna de Paris, de 1871, a primeira experiência histórica de governo popular, que não durou mais do que alguns meses (18 de março a 28 de maio de 1871). Esta questão da duração não é uma questão menor, se quisermos analisar o significado da Revolução Russa a partir dos escritos de sua figura mais emblemática, Vladimir Lenin. Desde o início, Lenin se vê diante de problemas de organização, não apenas dos processos de insurgência e mobilização, mas posteriormente dos processos de governo. Ele constrói um vínculo entre modelo de insurgência e modelo de governo através da centralidade da forma-partido. Do ponto de vista pragmático, tal construção se demonstrará extremamente eficaz durante todo o século XX, servindo de modelo para a revolução chinesa e cubana. Ela trará também problemas importantes para uma compreensão das paralisias internas aos processos revolucionários. Comunas e soviets O advento da forma-partido como motor do processo revolucionário caminha juntamente com a crítica do Estado como forma institucional necessária para uma sociedade justa. A forma-partido tende a recompor a estrutura do Estado moderno a partir de exigências de institucionalização de horizontes pós-revolucionários. Uma revolução completa exige novas formas de organização que não estariam mais fundadas na figura do Estado moderno. Crítica do Estado que encontra suas raízes na denúncia de Marx do caráter classista do estado nacional. Dentro desta perspectiva, o Estado aparece assim como instrumento de dominação de uma classe por outra e sua estrutura de opressão só poderá cessar a partir do momento que a estrutura institucional da sociedade for capaz de produzir novas formas. Essas novas formas de organização nascem de um modelo de assembleia popular deliberativa chamada, no caso russo, “sovietes”. A palavra russa, que significa “conselho”, “assembleia” designava, entre outros, conselhos operários que apareceram a partir da insurreição de 1905. Eles desaparecem para reaparecer com a queda do governo czarista. O principal de todos os sovietes foi constituído em Petrogrado e era composto por mais de 4000 membros. Uma das características fundamentais do bolvechismo em sua fase insurrecional é a exigência da transferência de todos os poderes aos sovietes, assim como a exigência de uma assembleia constituinte, que nunca verá a luz pois será destituída pela própria revolução de outubro. Desde o início o estado revolucionário russo será compreendido como uma estrutura concêntrica de sovietes que encontram sua forma final em um soviete supremo. Este privilégio de uma administração do bem comum por conselhos seguia de perto da compreensão de Marx e Engels a respeito de toda revolução efetiva ser feita tendo em vista a dissolução do Estado. Marx vira na Comuna de Paris o principal modelo histórico para esta nova forma de organização social. A comuna era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos de Paris, com mandato revogável a qualquer momento e mandat imperatif, ou seja, instruções formais de seus eleitores que deveriam ser seguidas a risca. Sem ser um corpo parlamentar, a comuna era um órgão de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo. Ela ainda tinha uma característica profundamente internacionalista, integrando estrangeiros. Um de seus lemas será: “a bandeira da Comuna é a bandeira da República mundial”. Neste sentido, podemos dizer que a Comuna de Paris é o primeiro governo revolucionário que compreende sujeitos políticos fora do quadro nacional. Ela é o embrião de uma política pós-nacional. A comuna submeteu a polícia a si, abolindo o alistamento e o exército permanente, criando uma guarda nacional da qual fazem parte todos os cidadãos capazes de portar uma arma, baixando os salários dos funcionários públicos a salários de operários. A Comuna também retirará as instituições de ensino das mãos dos religiosos, abrindo-as ao povo gratuitamente. Os magistrados e juízes serão eleitos por sufrágio. A unidade da nação seria organizada por meio de uma constituição comunal que visava destruir o poder estatal. Longe de significar o retorno do poder a fragmentação de estruturas comunais medievais, ela era vista por Marx como a liberação do corpo social das forças absorvidas pelo poder estatal. Notemos como a comuna era vista por Marx, ao mesmo tempo, como a realização das revoluções burguesas e sua superação. Por um lado: A Comuna tornou realidade o lema das revoluções burguesas – o governo barato – ao destruir as duas maiores fontes de gastos: o exército permanente e o funcionalismo estatal MARX, Karl; A guerra civil na França, p. 59. Ou seja, o eixo próprio da Comuna consiste em combater o estado em seus dois polos: como gestor da vida social e como gestor do medo social através da criação de um corpo contínuo de defesa externa e de intervenção interna. Mas nem o governo barato nem a verdadeira república eram seus reais objetivo. Eles eram apenas suas consequências: Eis o verdadeiro segredo da Comuna: era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política enfim descoberta para se levar a efeito a emancipação econômica do trabalho Idem. Notemos dois elementos fundamentais aqui. A forma de organização de uma sociedade emancipada passa pelo retorno do governo à imanência da vida social. Isto implica não apenas a absorção das funções do funcionalismo estatal pela dinâmica imanente da sociedade. Isto passa também pela decomposição do exército, pela quebra da relação orgânica entre governo e criação de corpos de defesa do Estado. O Estado como aparato de segurança e violência desapareceria. Lenin fará a mesma defesa nas Teses de abril, a saber, supressão do exército, da polícia e do funcionalismo. Tais processos são feitos tendo em vista a “emancipação econômica do trabalho”. O que significa que tais processos só tem sentido no interior de uma dinâmica de uma transformação radical do modo de trabalho e de produção social. Marx alude a isto ao afirmar: Se a produção cooperativa é algo mais do que uma fraude e um ardil, se há de se substituir o sistema capitalista, se as sociedades cooperativas unidas devem regular a produção nacional segundo um plano comum, tomando-a assim sob seu controle e pondo fim à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a fatalidade da produção capitalista – o que seria isso, cavalheiros, senão comunismo, comunismo ‘realizável’? Idem, p. 60 No que se vê como a emancipação é pensada aqui a partir da articulação entre trabalho cooperativo e planificação de larga escala, tendo em vista por fim à anarquia econômica com suas crises periódicas. Este é ponto no qual a posteridade marxista irá girar em torno. Pois se trata de conciliar a espontaneidade do trabalho cooperado e a exigência de planificação de larga escala tendo em vista o fim do ciclo de crises. Notemos ainda como Marx compreende o advento da Comuna como a possibilidade de uma forma de imanência entre vontade e ação que sequer poderia ser chamada de realização do autogoverno, como entendeu-se esta palavra até agora: As gloriosas penas de aluguel britânicas realizaram a esplêndida descoberta de que a Comuna não é o que costumamos entender por autogoverno. De fato, não é. Não é a autoadministração das cidades por vereadores empanturrados de sopa de tartaruga, conselhos paroquiais corrompidos e ferozes inspetores de workhouses. Não é a autoadministração dos municípios por grandes fazendeiros, ricaços e cabeças ocas. Não é a abominação judicial dos ‘The great unpaid’. Não é o autogoverno político do país por um clube oligárquico e pela leitura do Times. Ela é o povo agindo para si mesmo, por si mesmo MARX, Karl, A guerra civil na França, p. 108. Esta formulação, povo agindo para si mesmo e por si mesmo chama a atenção. Ela indica um “si mesmo” como horizonte de reconciliação que exige a constituição do povo como sujeito que pertence a si mesmo. As metáforas são sempre muito claras neste contexto. Marx fala em “quebrar a máquina do Estado”, como se houvesse algo a impedir o movimento vivo, como uma máquina. Esta figura de uma relação pura da sociedade a si mesma é um eixo fundamental e prenhe de problemas políticos. Vimos como as revoluções apareciam como a emergência de uma força que quebrava, à sua maneira, a compreensão dos sujeitos políticos como sujeitos autônomos pertencentes a si mesmos. Est círculo de ipseidade que parece assombrar as ações políticas nunca é sem trazer como consequências uma política da purificação baseada na assunção efetiva de uma soberania que se coloca como agindo para si e por si mesma. O fim do estado Votaremos ao problema da relação entre revolução e emancipação do trabalho mais a frente. Por enquanto, vamos insistir na compreensão marxista do perecimento do Estado no interior de um processo revolucionário. Lembremos, por exemplo, do que diz Engels: Não sendo o Estado mais do que uma instituição transitória, da qual alguém se serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isto, nossa proposta seria substituir por toda parte a palavra Estado por Gemeinwesen, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune Carta de Engels a August Bebel, 28 de março de 1875, p. 56. Engels fala de um uso estratégico do Estado no interior de uma luta do proletariado contra aqueles que procuram oprimi-lo. Uso este que não pode se coadunar com a realização efetiva da liberdade. Só pode haver liberdade lá onde o Estado dá lugar a outras formas de associação. Este tópico é fundamental em Lenin, para quem todas as revoluções anteriores aperfeiçoaram a máquina do estado. Uma revolução efetiva só poderia querer destrui-la, já que o estado seria inútil em uma sociedade na qual as contradições de classe não existem. No entanto, há várias formas de destruir algo e há algumas formas que destroem sem tocar os pressupostos do que foi destruído. Por isto, muitas vezes o destruído retorna com ainda mais força. Este é um ponto decisivo no debate em marxismo e anarquismo. Em Estatismo e anarquia, Bakunin acusa Marx de ser incapaz de pensar o processo revolucionário fora do Estado e da conquista do Estado. Ele afirma que o governo popular desejado pelos marxistas é: “o governo do povo por meio de um número escasso de líderes seletos (eleitos) pelo povo”, adiantando assim uma realidade que as sociedades burocráticas do Leste Europeu conhecerão bem. O que só poderia redundar na condução da maioria da massa popular por uma minoria privilegiada que se transformará em novo aparelho de direção do Estado. O Estado que estará em vias de desaparecimento nunca desaparecerá, dirá Bakunin. Há de se lembrar como Rosa Luxemburgo percebe um risco semelhante na Revolução Russa quando questiona o destino dado à ideia de uma Assembleia Constituinte. Ela compreende a decisão bolchevique de anular uma Assembleia que fora escolhida antes da revolução de outubro, mas exige então a convocação de novas eleições, o que nunca ocorrerá. Daí uma colocação como: Tal influência constantemente viva do estado de espírito e da maturidade política das massas sobre os organismos eleitos, justamente numa revolução, seria impotente perante o esquema rígido das etiquetas partidárias e das listas eleitorais? Muito pelo contrário! É justamente a revolução que, por sua efervescência e seu ardor, cria essa atmosfera política leve, vibrante, receptiva, na qual as vagas do estado de espírito popular, a pulsação da vida do povo, influem de maneira instantânea e do modo mais extraordinário sobre os organismos representativos LUXEMBURGO, Rosa; A revolução russa, p. 200. Seguindo de fato a posição de Marx, Lenin dirá que o proletariado precisa de um estado, mas de um estado em vias de extinção, que comece imediatamente a se apagar. Não há desacordo com os anarquistas a respeito da destruição do estado como objetivo. Mas o proletariado precisa de um estado devido a necessidade de uma organização centralizada de sua força a fim de reprimir a resistência dos antigos exploradores e dirigir as massas na consolidação da economia socialista. A tomada do Estado, a conquista do poder tem ainda que lidar com estruturas de produção da sociedade capitalista. Tais estruturas não são suspensas por decreto. Elas precisam passar por uma metamorfose. A tomada do poder não é resultado de uma nova forma de produção econômica. Ela é fruta da sedição da classe criada pela despossessão econômica inerente ao desenvolvimento do capitalismo. Do ponto de vista político, esta decomposição gradual do Estado passa, para Lenin, por medidas que recuperam certos procedimentos da democracia primitiva. Não é possível passar do capitalismo ao socialismo sem um retorno à democracia primitiva. Como medidas desta democracia primitiva, Lenin fala da eletividade completa, da revogabilidade a todo momento de todos os funcionários sem exceção, da redução de seus salários a um salário de operário. Ou seja, o corpo dirigente do estado e seus funcionários devem perder seus privilégios. Isto implica eliminar as funções de comando próprias aos funcionários públicos por funções de vigilância e contabilidade. Essas funções serão simplificadas a ponto de poderem ser exercidas por todos. Isto até o momento no qual elas deixarão de ser funções ligadas a uma classe especial para serem dissolvidas nos hábitos cotidianos da sociedade. Ditadura do proletariado Em sua Crítica do programa de Gotha, Marx afirma: “entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período de transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado” MARX, Karl; Crítica do programa de Gotha, p. 43. Este conceito de ditadura do proletariado vinha, a sua maneira, da noção romana de ditadura. Ela indicava a concentração de poder em períodos de exceção, limitada em um tempo. Ou seja, abre-se um período de exceção na qual o poder concentra-se nas mãos do proletariado tendo em vista a decomposição do Estado e a constituição de estruturas associativas entre trabalhadores livres. A ditadura do proletariado seria assim a condição para uma transição em direção à forma de uma sociedade que teria sido capaz de abolir suas divisões por classes. Ela se constrói “trazendo de nascença as marcas econômicas, morais e espirituais herdadas da velha sociedade de cujo ventre ela saiu” Idem, p. 29. Por isto, suas transformações ainda trazem as marcas de certa injustiça. Por exemplo, a ditadura do proletariado seria um período de transição para a efetiva abolição da sociedade do trabalho. Nesta transição, os produtores não trocam mais seus produtos através da venda da força de trabalho. O trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor desses produtos. Marx sugere então que o tempo individual de trabalho forneça a base para as relações sociais de troca: O tempo individual de trabalho do produtor individual é a parte da jornada social de trabalho que ele fornece, é sua participação nessa jornada. Ele recebe da sociedade um certificado de que forneceu um tanto de trabalho (depois da dedução de seu trabalho para os fundos coletivos) e, com esse certificado, pode retirar dos estoques sociais de meios de consumo uma quantidade equivalente a seu trabalho. A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma, agora ele a obtém de volta em outra forma Idem, p. 30. Mas esta justiça inicial que consiste em liberar o trabalho da condição de produção de valor porta ainda uma injustiça. Indivíduos desiguais, com talentos e capacidades desiguais só podem ser medidos segundo um padrão igual quando observados apenas por um aspecto determinado. Outros aspectos são desconsiderados: um trabalhador é casado, outro não; um tem mais filhos, um supera outro física e mentalmente, etc. Por isto, essas “medidas de urgência” ainda giram em torno do “estreito horizonte jurídico burguês”. Só em uma situação social na qual o trabalho deixar de ser meio de vida e se transformar em atividade que permite o desenvolvimento multifacetado dos sujeitos, na qual a carência não ser mais o fantasma que assombra todo consumo, na qual as condições materiais de produção forem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, será possível estabelecer o princípio fundamental de justiça: “cada um segundo suas capacidades, cada um segundo suas necessidades”. Note-se um dado fundamental, a abolição do Estado está completamente vinculada à abolição da sociedade do trabalho, ou seja, à abolição da submissão da atividade humana ao processo de autovalorização do valor, base para a reprodução do Capital. O Estado só pode ser abolido quando a sociedade consegue enfim realizar a aquilo que já estava presente em A ideologia alemã: Na sociedade comunista, onde cada indivíduo não tem para si um círculo exclusivo de atividades, mas pode desenvolver suas aptidões no ramo que melhor lhe aprouver, a sociedade encarrega de regular a produção universal, com o que ela torna possível, justamente através disso, que eu possa me dedicar hoje a isto e amanhã àquilo, que possa caçar pela parte da manhã, pescar pela parte da tarde e a noite apascentar o gado, e depois de comer, criticar, se for o caso conforme meu desejo, sem a necessidade de por isto me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico algum dia MARX, Karl; A ideologia alemã, op. cit., p. 56. Marx justifica muitas vezes a ditadura do proletariado e o uso do estado porque, enquanto houver uma luta de classes, o proletariado tem que aplicar meios violentos, ou seja, meios de governo: enquanto ele próprio ainda for classe e as condições econômicas sobre as quais repousa a luta de classes e a existência das classes ainda não tiverem desaparecido e tiverem de ser violentamente extirpadas do caminho ou transformadas, seu processo de transformação será acelerado por meios violentos MARX, Karl; Resumo crítico de Estatismo e anarquismo, de Bakhunin, p. 111. Para Marx, só desta forma, ou seja, só através de uma ditadura dos despossuídos tendo em vista o fim da possessão como forma geral de existência social, seria possível uma mudança real das formas de produção e das bases materiais da vida social. Ao invés de “esperar o dia do juízo final”, Marx insiste que o proletariado começará por se mover por formas políticas que mais ou menos pertenciam à sociedade burguesa. . Ao falar da decomposição do Estado, Engels afirma, em O anti-Duhring, que inicialmente o proletariado toma o poder de Estado e transforma os meios de produção em propriedade do Estado. Desta forma, o proletariado suprimiria as diferenças de classe a as oposições de classe. O Estado burguês daria assim lugar a um Estado proletário que paulatinamente desapareceria. Lenin compreenderá esta ditadura do proletariado como uma ditadura levada a cabo pelo setor mais organizado do proletariado, ou seja, aquele que constitui o partido comunista. Lenin, nas Teses de abril, indica em que deveria constituir esta passagem. Ele fala do confisco de todas as terras que passariam às mãos de sovietes compostos por camponeses pobres e deputados assalariados agrícolas. Ele indica ainda a concentração de todos os banco em um só que estaria sob controle dos sovietes. Trata-se de, inicialmente, mudar o controle da produção. Faltam as duas últimas aulas sobre o suprematismo e o construtivismo soviético