Gaia Scientia 2009, 3(1): 47 - 62
Viriditas e Sabedoria: o envolvimento de Hildegard de
Bingen com a natureza revivido em conceitos da biologia
contemporânea
Márcio Quaranta1
Resumo
Monja beneditina, mística, botânica, médica, compositora, escritora, louvada como santa sem ser canonizada pela
Igreja Católica Romana, Hildegard de Bingen, cuja obra esteve esquecida por nove séculos, recebe atenção especial
atualmente. Em suas visões, comparecia Sophia, a Senhora Sabedoria, criadora do mundo e da vida; em sua relação
com a natureza, sobressaía a noção de Viriditas, sopro verde divino que mantém e renova a vida. Hildegard acreditava
em uma natureza viva que precisava ser conservada, ideia ligada a uma visão orgânica de mundo, hoje contemplada
no paradigma emergente na biologia, em que se destacam os conceitos de auto-organização e de autopoiese, e a
teoria de Gaia. Com seu exemplo de vida, ela ensinou a necessidade da religação, do envolvimento do Homem com
a natureza. Rompido este, o ser humano cai vítima do modelo dominante de civilização mundial; cabe-lhe a tarefa
urgente de resgatar seu envolvimento com a natureza.
Palavras-chave: Ordem Beneditina, Senhora Sabedoria, Viriditas, natureza.
Abstract
GREENNESS AND WISDOM: THE HILDEGARD OF BINGEN’S INVOLVEMENT WITH NATURE AND
ITS REVIVAL IN CONCEPTS OF THE CONTEMPORARY BIOLOGY. Benedictine nun, mystical, botany,
physician, composer, writer, praised as a saint without the canonization by the Roman Catholic Church, Hildegard
of Bingen, whose work has forgotten for nine centuries, receives special attention actually. In her visions, appeared
Sophia, Lady Wisdom, creator of the world and the life; in her relationship with nature excelled the notion of greenness,
divine breath that maintains and renews the life. Hildegard believed in a living nature that must be conserved, an
idea bound to organic vision of the world, now present in the emerging paradigm in biology, which highlights the
concepts of self-organization and autopoiesis, and the theory of Gaia. With her example of life, she taught the need
for the reconnection, the involvement of man with nature. Upset this, the human being falls victim of the dominant
model of global civilization; it is his urgent task of rescuing his involvement with nature.
Keywords: The Benedictine Order, Lady Wisdom, greenness, nature, involvement.
Uma luz viva chamada Hildegard
Luce del suo popolo e del suo tempo, santa Ildegarda di Bingen, splende
più luminosa in questi giorni in cui si celebra l’ottocentesimo anniversario
della sua dipartita da questo mondo, dalla cui malizia e dai cui peccati
era lontana, ma che, spinta dall’amore di Cristo, beneficò con innumerevoli
doni [...].
Dotata fin dalla tenera età di particolari doni superiori, santa Ildegarda si
addentrò nei misteri che riguardavano la teologia, la medicina, la musica
e le altre arti e lasciò numerosi scritti su tali arti e mise in luce il rapporto
tra la redenzione e la creatura.
Amò la Chiesa in modo singolare: ardente di questo amore non esitò ad
uscire dal monastero per incontrare come intrepida propugnatrice di verità
e di pace i vescovi, le autorità civili, e lo stesso imperatore e non esitò a
dialogare con moltitudini di uomini (João Paulo II, 1979).
Pobre mulher inculta, frágil vaso de argila, pena nas
mãos de Deus, pó e cinza; monja beneditina, fundadora
de conventos (Rupertsberg e Eibingen), escritora, poetisa,
compositora, cantora, artista (ideou miniaturas para
seus livros), lingüista (elaborou a língua ignota, primeira
língua artificial da história; padroeira dos esperantistas),
pesquisadora de plantas medicinais, médica herborista,
teóloga, mística, profetisa, exorcista, pregadora, conselheira
de reis e rainhas, nobres, papas e outros religiosos; louvada
como santa (reconhecida como tal por João Paulo II) sem
ser canonizada pela Igreja Católica Romana (o processo
aberto por Gregório IX , em 1227, reaberto por Inocêncio
IV, em 1244, beatificou-a), representada como santa em
pinturas e esculturas, inscrita no martirológio romano
em 1584 (santidade de fato; comemorada em dezessete
de setembro, celebração oficialmente aprovada em 1940);
valorizada por Bento XVI, cogitada para ser Doutora da
Igreja: Hildegard de Bingen (1098-1079). Uma longa vida,
1 Biólogo, Mestre em Educação, Analista Ambiental. ICMBIO, Cx. Postal 217, Araçoiaba da Serra, SP, Brasil. mlqg0207@hotmail.com
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marcada pela busca da justiça, pela dignidade e fé, pelo
respeito a toda a criação divina, pela crítica aos excessos da
Igreja e de seus clérigos, assim como às heresias.
Hildegard redigiu obras teológicas, como o Comentário
para as Regras de São Bento, hagiográficas, como as vidas
de são Disibod e são Rupert, e centenas de cartas; seus
escritos mais famosos, editados em várias línguas no
presente, referem-se ao conteúdo de suas visões e a seus
tratados sobre medicina. Sua música, alvo de rara atenção
nas últimas quatro décadas, motivou a criação de conjuntos
de música medieval que a gravaram e divulgaram.
A trilogia teológica de Hildegard inclui o Scivias
(Conhece os caminhos do Senhor, 1141-1151), o Liber
Vitae Meritorum (Livro dos Méritos da Vida, 1158-1163)
e o Liber Divinorum Opera (Livro das Obras Divinas,
1163-1173/1174), o primeiro e o terceiro com iluminuras.
O Scivias, um guia da doutrina cristã, tentativa de responder
como deve viver um cristão para atingir a Cidade Celestial,
contém três livros com visões (seis, sete e treze, pela ordem),
comentadas pelo método usual dos exegetas medievais para
glosar textos escritos (Flanagan, 1995). O livro 1 aborda
o criador e a criação: a partir do tema da sabedoria e do
conhecimento de Deus, descreve a queda de Lúcifer, a da
humanidade e suas consequências, antecipa a Redenção; no
livro 2, esta desponta como remédio divino para o mundo
e a humanidade caídos (o Espírito Santo afasta as trevas e
fulge a bela e poderosa figura de Ecclesia, a Igreja); o livro
3 volta-se para a história da salvação e ao labor do Espírito
Santo para edificar o Reino de Deus através das virtudes;
apocalíptico, seu final narra visões do Último Julgamento,
da criação de um novo céu e de uma nova terra. Pernoud
(1996) ressalta que a última visão do terceiro livro, onde
as virtudes personificadas são atacadas por demônios, foi
retomada por Hildegard na obra musical Ordo Virtutum,
o rito das virtudes (década de 1050).
O Liber Vitae Meritorum abrange um total de trinta
e cinco visões, descreve as virtudes como meio para
definir seus vícios correspondentes e delineia o castigo e a
penitência para cada um destes; suas seis visões constituem
variações sobre um mesmo tema, a figura de um homem,
sobreposta a todo o mundo, com extensão do céu ao
abismo, a se movimentar através dos pontos da bússola
e a observar interações entre os poderes da luz e os da
escuridão (Flanagan, 1995).
O Liber Divinorum Operum traz uma reflexão
cosmológica sobre a revelação cristã, de um ponto de
vista antropocêntrico: homens e mulheres, obras de Deus,
recebem o chamado para cooperar ativamente com Ele e
aperfeiçoar Sua criação. Divide-se em três partes: as quatro
visões iniciais tratam da criação do mundo por Deus,
auxiliado por Caritas (Amor), e do lugar privilegiado da
humanidade em seu seio; na quarta visão, Hildegard traz
uma meditação sobre o Evangelho de São João. O segundo
M. Quaranta
livro (quinta visão) aprofunda a ideia da humanidade como
centro moral do mundo, comenta alegoricamente o livro
do Gênesis como alusivo ao progresso da fé. O terceiro,
nas cinco visões finais, coloca novamente em causa a
salvação histórica, em especial a Encarnação, e o fim dos
tempos, baseado no Apocalipse (Flanagan, 1995). A obra
inter-relaciona o macrocosmo e o microcosmo na história
da salvação, no entender de Fraboschi (2008).
Na época de Hildegard, os mosteiros beneditinos
constituíam locais de auxílio a doentes; ela própria labutava
no herbário, preparava remédios, socorria necessitados; sua
obra Subtitulates diversarum naturarum creaturarum (O
livro das propriedades das diversas naturezas das criaturas,
1151-1158) chegou aos dias de hoje seccionado em duas
partes. O Physica ou Liber simplicis medicinae (Livro da
medicina simples), com nove seções, arrola as propriedades
curativas de mais de duzentas plantas, dos elementos terra,
ar e água, de árvores, animais, pedras preciosas e metais
(as descrições amiúde se restringem às quatro qualidades
básicas: quente, frio, úmido, seco); o Causae et Curae ou
Liber compositae medicinae (Causas e Curas; Livro da
Medicina Composta), em cinco seções, discorre sobre a
teoria humoral, lista mais de duzentas afecções ou estados
a que estão sujeitas as pessoas e aponta a cura para centenas
de doenças, a partir de ervas e outros elementos naturais,
cujas proporções são indicadas nas receitas (Flanagan,
1995). A abordagem holística hildegardiana preocupa-se
com o doente como um todo, um organismo, não apenas
com seu mal. Nas obras visionárias e nas médicas avulta a
noção de viriditas (viridez), capacidade de a natureza reagir
a agressões, diferenciar-se, reverdejar, superar desequilíbrios
e danos.
Além do Ordo Virtutum, rito moral em que uma alma
errante, seduzida pelo diabo, depois auxiliada pelas virtudes,
retoma o caminho da Salvação, Hildegard compôs mais
de setenta obras musicais (antífonas, responsórios, hinos,
seqüências, etc.), reunidas na Symphonia armonie celestium
revelationum (Sinfonia da harmonia das revelações celestes);
Viriditas, a Sabedoria e Caritas comparecem amiúde nos
textos.
Este artigo observará os cuidados, aludidos por
Flanagan (1995), quanto ao uso indevido de obras de
Hildegard para sua inserção em uma espiritualidade da
criação, no movimento ecologista e no feminismo. Situarse-á Hildegard no contexto de sua época para, a seguir,
conectar suas ideias a alguns conceitos da biologia atual, que
inter-relacionam as partes no todo e vice-versa.
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
Idade média: a Europa ocidental no
século xii
[...] o homem era um microcosmo de todo o organismo cósmico, o
macrocosmo. A sociedade humana, do mesmo modo, refletia a ordem
hierárquica do universo, e os movimentos e as conjunções dos planetas
estavam conectados com as vidas humanas e com o destino das nações.
Reciprocamente, uma desordem nos céus refletia-se numa desordem sobre a
Terra (Sheldrake, 1993: 56).
No século XII viveram mulheres notáveis, como a
monja Herrade de Landsberg (autora de “O jardim das
delícias”) e a rainha Eleanor de Aquitânia, da França e
depois da Inglaterra; os místicos Hugo de São Vítor e
São Bernardo de Clairvaux (exemplos para Hildegard); o
poeta Alain de Lille; o imperador alemão Frederico I Barba
Ruiva; os reis da Inglaterra Henrique Plantagenet e seu filho
Ricardo Coração de Leão; Rogério II, da Sicília e sul da
Itália, cuja corte multicultural repassou saberes dos árabes
aos europeus; Pedro Abelardo, dialético, e sua discípula e
parceira Eloísa. Perdurava a luta entre os soberanos alemães
e o papado (a este manteve-se fiel Hildegard): Frederico I
nomeou quatro antipapas; vencido seu exército pelo da
Liga Lombarda, em Legnano, aceitou a paz com Alexandre
III (1177). Jerusalém, tomada pelos cruzados em 1099,
voltou no domínio islâmico em 1187 (com Saladino, sultão
do Egito). Trovadores, jograis, mercadores e cavaleiros
percorriam as estradas; Santiago de Compostela e Roma
recebiam inúmeros peregrinos. Expandiam-se as cidades
existentes, novas surgiam, o comércio crescia, fundavamse corporações de ofícios, ampliava-se o número de
universidades e escolas. Vigorava na arte o estilo românico,
com seus mosteiros e catedrais a proliferar por toda a
parte: a paixão por construir era paralela à expansão das
cidades. Na França, Suger, abade de Saint-Denis, iniciou o
estilo gótico, dominante na Europa a partir do século XIII.
Na música, começou a polifonia. A filosofia da natureza
ensinada nas escolas das catedrais e universidades era
animista: todas as criaturas vivas tinham uma alma, que não
estava dentro do corpo; este se situava dentro da alma, que
permeava todas as partes do corpo.
A lassidão e o luxo abusivo dos prelados mais ricos
provocavam reações, como o despontar da seita maniqueísta
dos cátaros: dualista, ela supunha existirem dois deuses
criadores, um mau, do mundo visível, corporal e carnal,
outro bom, das almas e do espírito, que os fiéis deveriam
seguir. Apoiada pelos nobres, a seita se expandiu no
Languedoc (contra ela predicou São Bernardo) e a seguir
pelas prósperas cidades do Reno: seus adeptos pregavam
a pobreza, vestiam-se com farrapos, raspavam os cabelos,
identificavam o mal no próprio corpo, na mulher e no ato
de procriar (Pernoud, 1996).
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Conforme Eco (1989), os artistas sentiam uma
solicitude para com a realidade sensível em todos os
seus aspectos: escultores e miniaturistas circulavam pelos
bosques para descobrir o ritmo vivo das coisas da natureza,
então vista como reflexo da transcendência. A concepção da
beleza incluía a harmonia moral e o esplendor metafísico.
Nos escritos teóricos transparecia uma imagem do universo
plena de luz e otimismo. A tradição bíblica, ampliada pelos
monges, e a tradição clássica concorriam para reforçar
a visão estética do universo. A beleza do mundo como
reflexo da beleza ideal era um conceito de origem platônica
(harmonia das criaturas; o belo partia da espécie, do número
e da ordem); o universo exibia uma estrutura musical. Na
concepção matemática, o belo situava-se na proporção
harmoniosa das partes, suas dimensões delineavam-se
uma em relação à outra, proporcionalidade baseada em
harmonias concretas, orgânicas, não em números abstratos,
definição da formosura a exprimir numericamente a
perfeição formal reconduzida ao princípio da unidade na
diversidade. O macrocosmo e o microcosmo se uniam
tanto pela matemática quanto pela estética; percebia-se
concretamente o belo nos ciclos cósmicos. O místico
contemplava com olhos serenos as coisas do mundo,
contrapunha a beleza interior imortal à exterior perecível.
Para o monge agostiniano Hugo (escola de São Vítor), a
beleza natural readquiria um caráter positivo: o mundo
era obra de Deus, a sensibilidade do homem ao belo
endereçava-se à descoberta da beleza inteligível; as alegrias
da visão, da audição, do olfato e do tato desvelavam ao
homem a formosura do mundo, descobriam neste o reflexo
de Deus. A contemplação intuitiva, típica da inteligência
não exercitada apenas no êxtase místico, voltava-se ao
mundo sensível; seu olhar livre e arguto visava ao objeto
a ser colhido, deleitava-se exultante nas coisas admiradas.
O belo como valor deveria coincidir com o verdadeiro, o
bom e os demais atributos do ser e da divindade (ideal de
Platão). “Todos os objetos visíveis nos são propostos pela
significação e declaração das coisas invisíveis, instruindonos, através da visão, de maneira simbólica, isto é, figurativa
[...] de fato, a beleza das coisas visíveis consiste em sua
forma [...] a beleza visível é imagem da beleza invisível”.2
(Hugo de São Vítor apud Eco, 1989: 81). Para a escola de
Chartres, a obra de Deus era o próprio cosmos, a ordem do
todo contraposta ao caos inicial. A Natureza, força ínsita às
coisas, mediadora da obra, produzia coisas semelhantes de
coisas semelhantes, presidia o nascer e o devir de tudo. A
beleza do mundo brotava em cada elemento seu (estrelas
no céu, pássaros no ar, peixes na água, homens na terra) e
aparecia quando a matéria criada diferenciava-se em número
e peso, delimitava-se, adquiria figura e cor. Alain de Lille
saudava um processo orgânico cuja causa final era o Espírito
1 In hierarchiam coelestem expositio, PL 175.
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M. Quaranta
Santo, a anima mundi. A Natureza, não o número, regia
o mundo:
Ó filha de Deus e mãe das coisas
que manténs unido e tornas estável o mundo
gema para os homens, espelho para os mortais,
luz do mundo.
Paz, amor, virtude, governo, poder,
ordem, lei, fim, caminho, guia, origem,
vida, luz, esplendor, forma figura,
regra do mundo.3
(Alain de Lille apud Eco, 1989: 51-52).
Uma via diversa partia da cosmologia pitagórica: a
teoria do homo quadratus (o cosmo como grande homem,
o homem um pequeno cosmo), pela qual o alegorismo
medieval tentava interpretar por arquétipos matemáticos a
relação entre microcosmo e macrocosmo. O número, como
princípio do universo, assumia significados simbólicos,
amparados em correspondências numéricas e estéticas: a
natureza dividida em quatro partes, isto é, o número quatro
como ponto fundamental de determinações seriais: pontos
cardeais, estações, fases da lua... O quatro como o número
do homem: a largura do homem com braços esticados
equivalia à sua altura (base e altura de um quadrado ideal).
Do homem quadrado passou-se ao homem pentagonal:
o número cinco, símbolo da perfeição mística e estética,
multiplicado, encontra continuamente a si mesmo (5 X 5 =
25 X 5 = 125 X 5 = 625 etc.). Há cinco zonas elementares,
essências das coisas e gêneros viventes (plantas, peixes,
pássaros, animais, homens); a pentás, citada nas Escrituras,
constituía a matriz para construir Deus e o Homem; inscrito
este em um círculo com o centro no umbigo, o perímetro
das linhas retas que unia suas extremidades formava um
pentágono. Segundo Hugo de São Vítor, o corpo e a
alma refletiam a perfeição da beleza divina, o primeiro
embasado na cifra par, imperfeita e instável, a segunda
na cifra ímpar, determinada e perfeita; a vida espiritual
seguia uma matemática fundada na perfeição da dezena.
A teologia hildegardiana (com sua concepção sinfônica da
alma) apoiava-se na simbologia das proporções e na pentás:
o sentido sinfônico da natureza e a experiência do absoluto
brotavam de temas musicais (Eco, 1989).
As ideias de belo, de proporções e de harmonia bebiam
na fonte da ideia platônica, da qual brotava uma corrente
para a transcendência; e esta implicava em um simbolismo.
O estilo românico privilegiava a imaginação simbólica. Para
Durand (1988), o símbolo constitui a epifania de um mistério
e o simbolismo um processo a requerer mediadores; no
estilo românico, em que transparecia a glória de Deus e sua
vitória sobre a morte, o Espírito Santo e Sophia, a sabedoria,
realizavam a mediação. De acordo com Eco (1989), na
visão simbólica, a natureza, mesmo em seus aspectos
2 De planctu naturae, ed. N. Häring, Spoleto, Centro Italiano di Studi sull’Alto
Medioevo, 1978. p. 831.
mais terríveis, torna-se um alfabeto utilizado pelo criador
para falar aos humanos sobre a ordem do mundo, os bens
sobrenaturais, os passos a serem percorridos de maneira
ordenada no mun m o intuito de se adquirir os prêmios
celestes. A desordem, a transitoriedade e a aparência hostil
das coisas (“monstros”) inspiravam desconfiança; porém,
se as coisas são símbolos, e não o que aparentam ser, a
esperança pode tornar ao mundo, pois este constitui um
discurso de Deus dirigido ao Homem. Além do mais, a
questão da proporção induzia uma ligação entre o natural e
o sobrenatural, um jogo de relações contínuas. No universo
simbólico tudo se corresponde: uma relação de harmonia
tornaria a serpente tanto símbolo da virtude da prudência
como equivalente da figura de Satanás; uma mesma
realidade sobrenatural (como o Cristo e sua divindade)
poderia aparecer na forma de várias criaturas (grifo, pomba,
unicórnio, cordeiro, cacho de uva), a significar sua presença
nos mais diversos lugares (céus, montes, campos, florestas,
mares); fatos e personagens, como os patriarcas bíblicos, no
papel de símbolos, mediariam uma leitura de mundo que
permitiria estabelecer regras de vida ou de moralidade.
Beneditinos, natureza e cultura
A regra beneditina teve tanto êxito no início da Idade Média que os seus
mosteiros se multiplicaram através da Europa e o número de monges
chegou a vários milhares. Diferiam mais ou menos na interpretação da
regra, mas eram todos organizados dentro de padrões religiosos e sociais
semelhantes. Todos os monges e monjas beneditinos adotavam a vida do
claustro e consideravam o trabalho manual não como uma necessidade
lamentável mas como uma parte essencial da disciplina espiritual.
Praticavam um sistema administrativo democrático de governo interno e
tentavam conseguir uma relação vital com o mundo material que os cercava.
A regra monástica era tão amplamente humana que permitia atitudes
diferentes para com a natureza e o homem. [...] os beneditinos originários
se estabeleciam de preferência nas montanhas, os monges da ordem de
Cister preferiam os vales. Essa variação topográfica na localização dos
mosteiros teve grande significação econômica e tecnológica porque ampliou a
influência dos beneditinos no desenvolvimento da Europa (Dubos, 1975:
138).
No final da Idade Antiga e início da Idade Média,
período de invasões de germânicos, hunos e ávaros (na
segunda onda, de vikings, muçulmanos e magiares), houve
a decadência das cidades, a deterioração dos campos,
epidemias (como a de peste no século VI), fome e mortes
em tenra idade; a insegurança grassava e o monacato garantia
um modo de vida relativamente ordenado e tranqüilo. O
mosteiro produzia e armazenava conhecimentos; monges
copistas protegiam e reproduziam obras antigas.
Os primeiros missionários católicos, seguindo
orientações papais, procuraram estabelecer os templos
do Deus único nos mesmos locais onde existiam antigos
templos dedicados aos deuses e deusas pagãos, uma
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
apropriação dos mesmos na sua assimilação à doutrina
cristã (Sheldrake, 1993). Mantinha-se o caráter sacro do
local, o respeito ao espírito do lugar. No século VI, São
Bento de Norcia (criador da Ordem Beneditina) edificou
o mosteiro de Monte Cassino no mesmo sítio onde havia
um templo de Apolo.
Para Dubos (1975), São Bento preocupava-se com a sua
dedicação, e a de seus companheiros, ao culto divino. Embora
de origem aristocrata, ela conhecia o perigo da indolência
física e estabeleceu, na regra da Ordem Beneditina, o
trabalho como uma forma de orar; por conseguinte, todos
os monges deveriam utilizar as próprias mãos (não recear
sujá-las) nos campos e oficinas, dedicar-se a problemas
práticos, o que lhes propiciou uma profunda integração com
o mundo natural ao seu redor, através de rituais e trabalhos
diários e sazonais, coordenados com os ritmos cósmicos.
A intervenção beneditina na natureza inspirava-se no
segundo capítulo do Gênesis: Deus não colocou o Homem
no Éden como um dominador, e sim como um jardineiro,
capaz de criar e implementar atividades em uma relação
harmoniosa com o mundo vivo, como se consistisse em seu
dever aperfeiçoar a natureza, exercer o papel de Seu sócio
na obra da Criação. Os monges intervieram ativamente
no solo, na água, na flora, na fauna, como agricultores
e construtores; alteraram a natureza para deixá-la mais
conveniente ao uso humano, agradável aos olhos humanos
e apropriada ao culto divino, de forma tão sábia que seu
trato da natureza, de maneira geral, compatibilizou-se
com a manutenção de uma qualidade ambiental adequada.
Regras exatas governavam o culto, o trabalho e os demais
aspectos da rotina dos mosteiros beneditinos, onde a
tecnologia assumiu alguns de seus aspectos modernos;
mecanismos por eles aperfeiçoados, como os moinhos
de vento e as rodas de água, eram usados como fontes de
força motriz para converter produtos agrícolas em artigos
manufaturados, tais como couro, tecidos, papel e licores.
Concomitantemente com essa tradição de trabalho material,
outra, não prevista pelo fundador da ordem, desdobrouse progressivamente: a intelectual, reunindo a erudição e
a perícia artística. Na abadia beneditina, o saber teórico
e a perícia prática contemplavam uma mesma pessoa, o
que facilitou desenvolver tecnologias. A regra beneditina
inspirou uma organização comunal tanto hierárquica
quanto democrática: cada monge ou monja tinha direitos
na organização monástica, contudo deveria aceitar um
determinado lugar em sua ordem social. Tal estrutura
social complexa se associava a um estilo arquitetônico bem
adaptado a rituais da vida monástica e paisagens locais: a
beleza funcional da arquitetura beneditina atingiu o nível de
uma grande realização artística da civilização ocidental. A
vida interna do mosteiro, o dia, esclarece Pernoud (1996),
marcava-se pelas horas canônicas. Pouco após a meianoite, ocorria o ofício das matinas; ao despontar a aurora,
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cantavam-se as laudes; a seguir, vinham o ofício das primas
(primeira hora) e o da terça, na terceira hora a partir do
nascer do sol. Depois da refeição, elevava-se a nona (por
volta de 14 a 15 horas); as vésperas designavam o ofício do
final do dia (das 18 às 19 horas); ao sol poente, era a vez das
completas. Com o passar do tempo, a Ordem Beneditina
afrouxou no seguimento das regras estabelecidas por seu
fundador: seus membros cederam ao acúmulo de riquezas
materiais, relaxaram na observação rigorosa da disciplina
interna. Tal quadro, nítido no século X, motivou reformas
com o intuito de resgatar o aspecto primordial das regras
da ordem e o respeito às mesmas.
A reforma de Cluny, em 910, deu início a um extraordinário
desenvolvimento da vida monástica. Parecia que as invasões dos duzentos
anos precedentes tinham aniquilado a bela cristandade dos séculos VI e
VII, mas ela renascia ainda mais bela das ruínas. Depois da reforma
de Cluny, a de Robert de Molesme, com a fundação da abadia de Cister,
[...] ano de 1098, vai renovar, em profundidade, a observância das regras
de São Bento e permitir um prodigioso avanço da vida monástica – com o
impulso que era dado, pouco depois, por São Bernardo (Pernoud, 1996:
11).
Os cirtencienses, monges brancos (contraposição ao
hábito negro beneditino), estabeleceram seus mosteiros de
linhas e decoração austeras nos vales arborizados dos rios
e em terras pantanosas impróprias à ocupação humana,
que transformaram em terras aráveis. Sua atitude mística
perante a natureza influía na escolha de locais ermos para o
culto divino. Nos mosteiros de Cister (dedicados à Virgem
Maria), rodas de água forneciam energia a diversas oficinas
(Dubos, 1975).
São Bernardo mostrou-se sensível ao espírito do lugar
ao escolher Clairvaux (Vale Claro) para sede de sua abadia;
ele cria, como os beneditinos, no dever monacal de labutar
como sócio de Deus na melhoria da criação; em seus
escritos sobressaiu a ideia do trabalho como prece que
auxilia a criar o paraíso a partir do caos; defendeu a cultura
monástica contra a iniciante cultura escolástica. Fraboschi
(2008) diferencia as duas formas de cultura: a primeira,
cultivada pelos homens da Igreja, afeita ao scriptorium do
mosteiro, provinha da máxima beneditina ora et labora
e provia material para estudos nas escolas monásticas
(voltadas a formar futuros membros da instituição; os
alunos eram noviços e oblatos, e os docentes não se
profissionalizavam), a reza dos Ofícios e o intercâmbio com
outros mosteiros; tais obras apresentavam-se profusas em
iluminuras, difusoras de imagens sobre o sentido da palavra
escrita. A leitura dos textos, lenta, em voz média ou alta,
convite à meditação, tinha o fito de se conhecer e amar a
vontade divina. Os monges eruditos não cultivavam o saber
como fim em si mesmo. A cultura monástica, focada nas
sagradas escrituras (embora aproveitasse as artes liberais),
mirada no exemplo de Cristo, na união a Deus, inspirou-se
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na ordem beneditina, perdurou na cisterciense, luziu com
Bernardo de Clairvaux; com a orientação platônica e o
plano de estudos agostiniano, valorava os conhecimentos
da autoridade (não produzia novos de caráter especulativo),
fixava-se no sentido do pertencer, preconizava o imperativo
da fé sobre a razão, valorizava ao máximo a teologia (sem
participar de pregações), ligava-se em especial ao ambiente
rural e ao regime feudal. A cultura escolástica se fundava
no mestre escolástico (categoria social típica da cidade) que
amava o saber por si mesmo, estudava, debatia, polemizava
(dialética) e recebia pagamento dos estudantes; prosperou
notadamente nas escolas das catedrais (como Chartres),
ensinava artes liberais (trívio e quadrívio) e apreciava-as por
si mesmas, apesar de manter a teologia no cimo dos estudos;
sua orientação filosófica predominante aristotélica (aberta
ao neoplatonismo cristão), propunha questões, discutia-as,
procurava explicações racionais (primava a razão sobre a
fé), gerava saberes (sem desprezar a sabedoria tradicional),
especulava sobre a fé e edificava a ciência sobre Deus.
A sibila do Reno
[...] Hildegard procurou na prateleira seu estilo, as lousas de cera e os rolos
de pergaminho. Acima do atil, uma prateleira continha tinteiros de chifre
e penas de ganso, uma régua para marcar as margens das páginas e uma
pedra pomes para raspar o pergaminho. Tudo estava preparado. Depois de
uma vida inteira de segredo e vigilância, ela ia abrir as comportas e revelar
suas visões. A ordem que recebera forçava essa decisão (Ohanneson, 1999:
86).
As imagens percebidas nas visões de Hildegard
abrangiam círculos de fogo, esferas luminosas, estrelas,
montanhas, nuvens, turbilhões de ventos, animais
peçonhentos, monstros, anjos, árvores carregadas de folhas
ou nuas, cabeças aladas, espelhos, cidades, muralhas, colunas
de ferro, torres, trombetas, joias e o ovo cósmico. A luz
como metáfora da realidade espiritual: Deus de luz, energia
irradiante. Para Eco (1989), os místicos se entusiasmam pela
luz, exclamam seu gozo perante as chamas do fogo ou os
fulgores do dia (mesmo os simbólicos, como o do Espírito
Santo); a luz dimana do alto, difunde-se criativamente
nas coisas e nelas se solidifica. A mística de Hildegard se
alimentava das visões de chamas rutilantes, de uma Luz
Viva.
No terceiro ano de vida, ela viu uma luz muito forte,
que a deixou estremecida; aos oito, foi confiada a Jutta de
Spanheim (em breve, como oblata de Jutta, ingressou no
mosteiro dúplice de Disibodenberg) que lhe ensinou os
salmos e a tocar o decacordo, instrumento acompanhante
do canto; ler e escrever consistia em reconhecer e
reproduzir, em tábuas de cera, vocábulos memorizados (não
teria aprendido o significado das palavras, a divisão silábica,
o estudo dos casos e tempos); aos quatorze ou quinze
M. Quaranta
anos, teria feito seus votos. Continuava com as visões,
falava de fatos que viriam a ocorrer, percebia realidades
estranhas, sofria com doenças recorrentes. Confidenciou
o que testemunhava apenas a Jutta, que a recomendou ao
monge Volmar, futuro conselheiro, assistente e secretário
por mais de trinta anos. Morta Jutta (1136), Hildegard foi
eleita magistra pelas colegas. No ano 1141 da Encarnação
de Cristo, aos quarenta e dois anos e sete meses de idade,
a luz brilhante fluiu por seu cérebro e a capacitou-a a
entender os escritos dos livros sagrados; uma voz do céu
conclamou-a a dizer e escrever o que via e ouvia, tal como
era dito, pela vontade d’Aquele que sabe, vê e dispõe de
tudo em Seus mistérios; boca de Deus, profetisa, ela deveria
difundir tudo que aprendia com a Luz Viva (Pernoud,
1996). As visões ocorriam em pleno estado de consciência,
não no sono ou no êxtase místico, e em lugares abertos.
Ao se recusar a registrá-las, Hildegard caiu enferma; com
a assistência de Volmar e da jovem monja Richardis von
Stade, passou a redigir o Scivias. O fato alarmou os monges
de Disibodenberg; o abade Kuno informou-o ao arcebispo
Henry, de Mainz. Um sínodo, dirigido pessoalmente por
Eugênio III, papa cisterciense oriundo de Clairvaux, teria
lugar em Trier, com a presença de Bernardo. Hildegard
escreve a este, narra-lhe suas visões, solicita-lhe conselhos.
A resposta estimula-a a expor suas experiências. A pedido
de Henry, Eugênio envia o bispo de Verdun para uma
entrevista com Hildegard, em que esta consegue comprovar
sua capacidade visionária. No sínodo (1147-1148), o papa
leu trechos do Scivias e abençoou-os; redigiu uma carta a
sua autora, felicitou-a pela graça que a preenchia e autorizou
a mudança das monjas para uma nova sede. (Em uma visão,
o Espírito Santo indicara à magistra uma encosta árida, solo
sagrado, o monte de são Rupert, para erigir a nova abadia
para suas filhas). Dobrada a resistência do abade Kuno, foi
fundado o mosteiro de Rupertsberg (1150), no morro onde
fora sepultado são Rupert. Evocação ao espírito do lugar,
“[...] a relação ecológica viva entre determinado sítio e as
pessoas que derivaram dele e a ele acrescentaram os vários
aspectos de sua qualidade humana” (Dubos, 1975: 124);
criação de um centro, um espaço sagrado diferenciado do
profano a seu redor, abertura para o céu, lugar de hierofania,
fonte de vida e fecundidade (Eliade, 2001).
A mudança para Rupertsberg permitiu a Hildegard
dedicar-se mais a obras musicais e escritas, para as quais
contribuíram suas visões, sem desleixar o atendimento
médico a necessitados, ou a troca de cartas com várias
pessoas, das mais humildes (pedidos de conselhos,
agradecimentos por curas) às mais destacadas da época.
Antes de terminar o Scivias, perdeu Richardis, escolhida
como abadessa de outro convento e logo falecida (1152).
Sempre ao seu lado, Volmar colaborou no preparo do
Livro dos Méritos da Vida. Por essa época, Hildegard
provavelmente redigiu obras médicas e estreou o Ordo
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
Virtutum. Sua fama granjeou-lhe o convite de Frederico I
Barba Ruiva para uma entrevista: viajou por via fluvial até
o palácio de Ingelheim, dialogou com o soberano, previulhe perigos a enfrentar e sua coroação em Roma, pelo
papa (1155), como imperador do Sacro Império Romano
Germânico (quando Frederico criou um cisma e nomeou
antipapas, ela o advertiu por cartas). Correspondeu-se com
Elizabeth de Schönau, jovem monja que sofria êxtases
místicos (Pernoud, 1996). Henry, arcebispo de Mainz,
acusado de apropriação fraudulenta de fundos da Igreja,
perdeu seu cargo; o fato abriu os olhos de. Hildegard para
a cobiça, a mentira e a infâmia. A Luz Viva ordenou-lhe
denunciar quem ocultava o erro e promovia a injustiça: ela
partiu a pregar contra os hereges, sedutores do povo, e o
clero viciado. Na primeira viagem (1158-1159), pelo rio
Main, predicou a comunidades monásticas em Würzburg
e Kitzingen; na segunda (1160), publicamente, em Trier
(criticou a negligência clerical) e visitou comunidades em
Metz e Krauftal; na terceira (1163?), foi ao norte, a Colônia
(seu discurso evocou a interdependência dos elementos do
universo, acoimou a negligência do clero, incitou-o a agir,
condenou os cátaros e anteviu sua perseguição) e a Werden;
na quarta (1170), ao sul, a Zwiefalten e Kircheim (Flanagan,
1995; Pernoud, 1996). Iniciou o Livro das Obras Divinas
em 1163. Previu a morte do arcebispo Arnold de Mainz
(linchado por populares), exortou Elizabeth de Schönau
(falecida em 1164) a moderar a mortificação corporal, instou
a hesitante abadessa Hazzecha de Krauftal a disciplinar-se,
consolou Eleanor de Aquitânia na prisão onde a colocara o
marido, o rei inglês Henrique. O abade de Brauweiler rogou
sua ajuda para salvar a possessa Sigewize, liberada de seus
demônios interiores após um exorcismo (psicodrama) por
Hildegard, em Rupertsberg. Para abrigar parte das monjas
deste lotado monastério, fora fundado outro, em Eibingen
(1165). Volmar expirou no final da quarta viagem (1173);
Gottfried, seu substituto na redação do Livro das Obras
Divinas, morreu logo após iniciar a biografia da sibila. O
último secretário, com quem Hildegard se comunicara por
cartas em que discorreu sobre a Luz Viva, foi Guibert de
Gembloux.
Um cavaleiro antes excomungado, enfim reconciliado
com a Igreja, foi enterrado em Rupertsberg (1178).
Hildegard, instruída pela Luz Viva, recusou-se a exumar
o cadáver, como exigira o representante do arcebispo de
Mainz, e camuflou o túmulo. Sobre o monastério incidiu
uma interdição: não entoar cânticos ou tocar sinos, não
haver Ofício Divino, nem Comunhão. Na sua defesa,
em carta ao clero de Mainz, Hildegard dissertou sobre
a importância da música, criticou clérigos devassos e
os apropriadores de bens eclesiásticos. Testemunhas
confirmaram a reconciliação do finado cavaleiro com a
Igreja: o interdito cessou no primeiro semestre de 1179.
Abatida, a monja expirou em 17 de setembro. Entre 1180
53
e 1190, o monge Teodorico de Echternach concluiu a
biografia principiada por Gottfried.
Viriditas: a chama verde da
natureza
O ignis spiritus paracliti,
vita vite omnis creature,
sanctus es vivificando formas.
Sanctus es unguendo
periculose fractos,
sanctus es tergendo
fetida vulnera.
[...]
O iter fortissimum
quod penetravit omnia
in altissimis et in terrenis
et in omnibus abyssis,
tu omnes componis e colligis.
De te nubes fluunt, ether volat,
lapides humorem habent,
aque rivulos educunt
et terra viriditatem sudat. 4
(Hildegard von Bingen in The origin of fire..., 2004).
Na teologia hildegardiana, o Espírito Santo, ígneo e
consolador, energia vital, anima toda a criação, espiritual
e física, e o próprio ser divino. O poder verdejante de
Deus, calor do Espírito Santo, confere vida a todas as
criaturas. Chama verde da natureza, seiva da vida a ascender
da terra: a vegetação reverdece depois de um rigoroso
inverno, a floresta tropical se regenera após um incêndio
ou a exploração humana; árvores rebrotam, florescem,
frutificam; animais em hibernação ou estivação despertam;
as feridas cicatrizam-se, o doente readquire saúde. A vida se
diferencia, procria e se renova: viriditas. Eco (1989) lembra
que Hugo de São Vítor louvava a cor verde como a mais bela
dentre todas, símbolo da primavera; Guillaume d’Auvergne
sustentava a mesma preferência com argumentos de teor
psicológico: o verde se situava entre o branco, que dilata o
olho, e o preto, que o contrai.
Ohanneson (1999) cita várias passagens sobre o contato
de Hildegard com a natureza: em um passeio com o pai
pelo bosque, a menina tocava as plantas com reverência,
3 Sequência “O ignis spiritus paracliti”. Ó espírito consolador do fogo, vida da
vida de todas as criaturas, tu és santo, tu que dás vida às formas. Tu és santo, tu
que untas aquilo que foi perigosamente quebrado, tu és santo, tu que curas as
feridas fétidas. [...] Ó força possante que penetras em todas as coisas, nos céus e
na terra, e em todos os abismos, tu reconcilias e congregas toda a humanidade.
Graças a ti as nuvens lutuam, os ventos voam, a umidade surge das pedras, a
água forma os regatos, e a terra se cobre de verde (viriditas).
54
M. Quaranta
observava o voo de borboletas; Jutta a convenceu a deixar
de chorar, ao sentir-se abandonada pelos pais, pelo plantio
de uma árvore no pátio de Disibodenberg, da qual a garota
cuidava como amiga especial e cumprimentava todas as
manhãs; já adulta, procurava a sombra da árvore querida,
abraçava-a, subia em seus galhos após um dia de trabalho,
refletia sobre o poder curativo das plantas e ervas. Jutta
a designou como herbanária: Hildegard dedicou sua
atenção aos ungüentos e bálsamos; abriu uma trilha entre o
albergue (local de tratamento) e o herbário (de preparo dos
remédios); invocava a viriditas, sopro verde de Deus, para
ajudá-la a escolher a raiz, semente ou folha correta, e curar
os enfermos. Volmar, uma “árvore amiga”, acompanhava-a
no campo, na coleta de plantas medicinais, e sugeriu-lhe
iniciar um compêndio sobre ervas, compartilhar seus
conhecimentos com outras pessoas. Para Pernoud (1996),
Hildegard, a partir da observação, procurou nas suas obras
médicas relacionar o Homem com a Natureza; estudar sua
saúde e equilíbrio; descrever as propriedades das águas
de rios da região (a melhor para o banho, para beber ou
preparar alimentos), de plantas, animais e minerais; devassar
os recônditos da natureza a fim de compreender o valor
curativo de seus elementos para o Homem. Em tal contexto,
a viriditas sobressaía como pujança da vida manifestada
em seu pleno viço, não só nas plantas, mas em todos os
seres vivas. As receitas hildegardianas não apresentavam
medidas em algarismos, e sim em porções (costumava-se,
então, usar meia casca de ovo como medida), propunhamse a recuperar o equilíbrio do corpo e da alma. Tratava-se
o doente como um todo, não apenas sua enfermidade; os
estados de alma não se isolavam das doenças corporais;
os sintomas acusavam um desregramento interior. A
melancolia causava preocupação especial, por solapar a
viridez. A saúde constitui o estado natural do ser humano:
este requer harmonia e beleza, necessita inalar odores
agradáveis, observar o verde da natureza e praticar um
regime alimentar adequado. A espelta, o centeio, a ervilha,
as favas, a aveia e a maçã constavam na lista dos alimentos
mais recomendados. Ohanneson (1999) cita Hildegard e a
prioresa Hiltrude a abraçar macieiras em Disibodenberg, o
que teria aumentado a produção de maçãs; em Rupertsberg,
o primeiro ato da sibila teria sido o de plantar uma árvore
perto de sua cela; ao saber do óbito de Elizabeth, ela correu
para a sombra de um olmo; ao voltar das viagens, louvava a
beleza do mundo, procurava consolo na terra, nas criaturas
vivas, devaneava junto às árvores, deliciava-se com o
murmurar das correntes aquáticas. Quando o verde cobria
as encostas dos morros, ela rejuvenescia, a vida parecia subir
como seiva do solo ao seu corpo.
O nobilissima viriditas, que radicas in sole,
et quae in candida serenitate
luces in rota
quam nulla terrena excellentia
comprehendit,
tu circumdata es
amplexibus divinorum ministeriorum.
Tu rubes ut aurora
et ardes ut solis flamma. 5
(Hildegard von Bingen in Canticles of ecstasy, 1994).
Na quinta visão do Livro dos Méritos da Vida, Hildegard
descreveu uma mulher nua, a Tristeza do Mundo, atrás da
qual uma árvore totalmente seca, sem folhas, aprisionava-a
com os ramos: os braços, retidos pela árvore, voltavam
as mãos para baixo; seus pés eram de madeira. Espíritos
malignos, oriundos de uma nuvem negra fétida, rodeavamna e ela se lamentava. Um quadro de depressão e apatia:
a pessoa doente, incapaz de voltar-se para o mundo ou a
Deus. A árvore seca, sem vida, oprimia-a; os braços presos
não praticavam boas obras; os pés travados não seguiam o
caminho da fé e da esperança; sem viridez, a mulher caíra
no vício, no pecado (Flanagan, 1995). A pessoa dominada
pela Tristeza do Mundo, oca de virtudes, de seiva vital, leva
outras a perderam a umidade; a viriditas, umidade quente,
calor úmido, impede a aridez, difunde a fertilidade, o frescor
e a inovação no mundo.
Na prédica em Würzburg, Hildegard citou a importância
dos quatro elementos, cujas bênçãos, vindas de Deus,
participam da formação da pessoa: o fogo fornece o calor,
o ar a respiração, da água vem o sangue, da argila da terra
o corpo. Homem e mulher, obras divinas, não vivem um
sem o outro. A alma e o corpo, o masculino e o feminino,
a sexualidade, a geração de novas vidas e a maternidade
exibem a viriditas, presente na alma humana como princípio
vital de sua carne; as virtudes morais e a ciência também
a apresentam; ela se manifesta na história da Salvação,
de modo à história humana assemelhar-se a uma árvore
cósmica (Pereira, 200-). A viriditas no centro, no eixo do
mundo, na conexão entre o humano e o divino: teofania.
Picozzi (2003) entende a noção de viriditas como
inseparável de uma visão de mundo em que tudo se conecta
a tudo, em um único fio da existência, onde mesmo a morte
gera vida; a interdependência caracteriza o cosmo como
unidade complexa, fertilizada pela viridez que flui por todas
as suas criaturas e pelo próprio universo, compreendido
como uma totalidade: a viriditas como anima mundi. Para
Fraboschi (2007), a obra divina previu a solidariedade do
homem com a natureza, incluiu sua responsabilidade ética
junto ao cosmos, ao mundo natural. O homem bom, amigo
de Deus, procura a viriditas no contato amistoso com a
natureza; o rebelde a Deus, obstinado no pecado e no mal
(como quem explora florestas e outros ecossistemas até a
sua exaustão), perde a viridez, volta-se contra a natureza,
que contra ele se revolta.
4 Responsório “O nobilissima viriditas”. Ó nobilíssima viridez, que enraízas no
sol e que em pura serenidade brilhas em um círculo que nenhuma potência
terrestre contém: tu és circundada pelo abraço dos mistérios divinos. Tu
resplendes como a vermelha aurora e ardes como as chamas do sol.
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
Sophia, sapientia, senhora
sabedoria
Prima autem imago dicebat:
ego caritas viventis dei claritas sum
et sapientia mecum opus suum operata est.
In umbra quoque hac sapientia
equali mensura omnia metiebatur,
ne aliud pondere suo aliud excederet
et ne etiam aliud ab alio
in contrarium moveri posset,
quoniam ipsa superat et constringit
omnem diabolice artis maliciam.
Et in seipsa per seipsam
constituit omnia pie et leniter
que etiam a nullo inimico destrui poterunt,
quoniam inceptionem et finem
operum suorum excellenter vidit,
que omnia pleniter composuit,
ita ut etiam omnia per ipsam regantur. 6
(Hildegard von Bingen in The origin of fire..., 2004).
Citada no Cântico dos Cânticos, nos Provérbios e
no Eclesiastes, criada antes do início dos tempos, filha
primogênita de Deus, sua face feminina, sua amada e
parceira na criação, o Filho como uma mulher, o primeiro
dos sete dons do Espírito Santo: a Senhora Sabedoria do
Antigo Testamento, Sophia para os gregos, Sapientia em
latim. Mulher belíssima, de um branco luzidio, dourada
ou em um verde que recorda a viriditas, habitualmente
associada a Caritas (Amor), na obra da criação, ela distribui
qualidades de maneira equânime e obstaculiza as perfídias
do demônio, prevalece sobre o desequilíbrio.
Segundo Ohanneson (1999), mais bela que o sol, mais
gloriosa que as estrelas, a Sabedoria abraça o mundo,
protege as pessoas com as asas da compaixão e ilumina
profetas como Hildegard, que ouviu sua voz pela primeira
vez no ventre de sua mãe; a linda Senhora guiou-a por toda
a vida e colocou Hiltrude como um anjo ao seu lado. Em
uma visão, a esplêndida e gloriosa Sophia dialogou com o
Filho do Homem, até ambos se fundirem na mesma figura
(representação feminina de Cristo); obra do espírito divino,
mantida na sombra até este ultimar seu labor, agraciada com
um lugar ao lado do Criador; presença feminina de Deus,
por suas filhas (Eva; Maria, ramo florido, perfumado, cujo
ventre se abriu ao casamento do céu com a terra; Ecclesia, a
Igreja, prenhe de sementes da compaixão, sempre alerta ao
5 Livro das Obras Divinas, III, 3. E a primeira forma disse: “Eu sou o Amor, a luz do
Deus vivo, e a Sabedoria completou sua obra comigo. Na sombra, a Sabedoria
repartiu todas as coisas de modo igual para que nenhuma pese mais do que a
outra e que nenhuma possa mudar a outra em seu contrário. Porque a Sabedoria
domina e detém todas as obras maléicas do diabo. Ela, e só ela, dispôs todas
as coisas com amor e bondade, e nenhum inimigo poderá destruí-las, porque
ela vê a perfeição no início e no im de suas obras, e compôs todas as coisas
para ela mesma presidir a tudo”.
55
brado dos filhos abandonados, com seu coração acolhedor
como um ninho) manava a Luz Viva; generosa, compassiva,
severa, portadora da harmonia entre o corpo e a alma, o
homem e a mulher, a terra e suas criaturas, ela empresta suas
asas ao Amor para este sulcar a abóbada celeste, ordenar
todas as coisas e ligar o homem a todas as criaturas em um
pacto de lealdade.
O virtus sapientiae,
quae circuiens circuisti
comprehendendo omnia
in una via, quae habet vitam,
tres alas habens,
quarum una in altum volat,
et altera de terra sudat,
et tertia undique volat.
Laus tibi sit, sicut te decet, o Sapientia. 7
(Hildegard von Bingen apud Symphoniae..., 1985).
Para Góngora (2006), a imagem da Sapientia constitui
um marco importante na tradição sapiencial cristã,
presente, por exemplo, nas obras de Hugo de São Vítor;
Hildegard menciona-a em visões e cartas como fonte de seu
ensinamento visionário, voz que se lhe dirige diretamente
através da Luz Viva, e proclama sua existência e sua obra
desde antes da criação do mundo. A Sabedoria admite
três versões: personificação alegórica, hipóstase divina
ou arquétipo feminino. Na tradição sapiencial cristã, ela
tem sido considerada como manifestação da Trindade
nas pessoas do Espírito Santo ou do Filho, um princípio
feminino interior ou exterior à Trindade, prefiguração
de Maria e da Igreja, noiva de Deus, arquiteta e anjo
guardião do universo. Na antífona “O virtus sapientae”,
personificada, digna de louvor, ela abarca todo o mundo
graças ao triplo alcance de suas três asas, sua admissível
dimensão trinitária. A Sabedoria se enraíza na terra como
a árvore, imagem interpretada, na perspectiva cristã, como
a encarnação de Cristo; promove o germinar da graça;
delineia as flores da glória e riqueza, dons que a ligam à
graça do Espírito Santo; afigura-se como potência a girar
pela órbita ou círculo que representa o mundo e a divindade
em sua plenitude; oferece ensinamentos sobre a salvação e
a redenção dos crentes aos iluminados. No Scivias, III, 9,
a Sabedoria, figura feminina em pé sobre uma plataforma
com sete pilares, trajada com uma túnica de ouro, uma coroa
e uma estola com joias, proclama sua realeza; criadora do
mundo, sua governante, ela representa a atividade divina na
Igreja e no cosmos. Esposa amada de Deus, manifestação
da beleza irradiada por Ele, a quem se abraça com ternura
em uma dança amorosa, a Sabedoria, no Livro dos Méritos
da Vida, confunde-se com Caritas, também Sua esposa, a
6 Antífona “O virtus Sapientiae”. Ó poderosa Sabedoria, que ao circundar
circundaste, abraçando tudo em uma só órbita que possui vida (a Terra), três
asas tens: a primeira voa nas alturas, a segunda emana da terra e a terceira voa
por toda parte. Que haja louvores para ti como mereces, ó Sabedoria.
56
quem Ele nada esconde, com quem tudo reparte; no Livro
das Obras Divinas, III, 4, fulgura como mulher linda, vestida
de seda branca e uma túnica verde, adornada com pérolas,
brincos nas orelhas, colares no peito, braceletes de ouro
puro nos braços, defronte a Deus onipotente, que explica
o papel dela na criação e nos ensinamentos que fornece
para a ação humana. Pernoud (1996) decodifica o manto
verde como uma conexão da Sabedoria com os seres vivos:
ela lhes permite crescer e preserva-os, pois não extrapolam
sua natureza, ao contrário do ser humano, transgressor
contumaz do reto caminho. Pode-se conceber a viriditas e a
Sapientia integradas em um único ente, de caráter feminino:
a natureza como uma mulher.
Góngora (2006) ressalta as analogias entre a sabedoria,
o amor e a igreja; entre a potência do amor e a da sabedoria,
vistas como virtudes. A sabedoria-caridade (amor) equivale à
Maria, prevista desde a criação como mãe de Cristo, mulher
que atrai a si o amor divino, frutificado na Encarnação;
Maria, mãe do amor formoso, do temor a Deus (criatura
com muitos olhos no Scivias, associado à sabedoria), do
conhecimento, da santa esperança, sobressai como Sedes
Sapientae. A Igreja Católica Ortodoxa venera a Santa
Sabedoria, Hagia Sophia, elemento feminino próximo ou
interno à Trindade; a Igreja Católica Romana identifica-a
com Cristo, cita-a como um dos sete dons do Espírito
Santo.
Para Di Scala (2005), quem recorre aos caminhos
da Sabedoria acaba por integrar-se nela: segui-los levou
Hildegard não apenas a superar todo tipo de oposição, como
as existentes entre fé e razão, microcosmo e macrocosmo,
como também a integrar os opostos na busca de exprimir
o absoluto, o universal.
A teologia hildegardiana, pelo destaque atribuído à
Sabedoria, pode ser definida como sapiencial: as teofanias
divinas manifestas como imagens significativas no cosmos
e na natureza.
Hildegard revisitada pela ciência
atual
Com o coração partido, Hildegard saiu apressadamente do albergue,
correndo às cegas até tropeçar nas raízes de um olmo gigantesco. Agachada
no solo gelado, ela estendeu os braços para os troncos das árvores, pedindo
a Deus para salvar todas as árvores e todas as coisas vivas das presas
da cobiça. A terra era preciosa demais para morrer de sede e falta de ar
e deslizar para a extinção. Nunca devia acontecer! (Ohanneson, 1999:
200).
O modelo de civilização prevalente no mundo atual
enfatiza excessivamente a economia e os valores materiais,
apela ao consumismo exagerado, incita ao hedonismo, usa
perversamente a ciência e a tecnologia, desrespeita a vida,
reduz a biodiversidade genética e a ecossistêmica, enxerga
M. Quaranta
a preservação do patrimônio natural e cultural como
obstáculo ao progresso. O lucro imediato e os interesses
políticos predominam sobre a conservação da natureza
e os saberes tradicionais. As pessoas mergulham em um
mundo de simulacros, onde se acomodam. A crise (ética,
econômica, ambiental) adquire caráter crônico e sistêmico.
Um número crescente de cientistas, pensadores e líderes
religiosos questiona a destruição do meio ambiente natural,
principalmente das florestas tropicais, e preocupa-se com
os seus efeitos sobre a Terra e a espécie humana.
Para Sheldrake (1993), desde os tempos dos mais remotos
antepassados humanos admitia-se uma natureza viva, ideia
mantida na Grécia Antiga, em Roma e na Idade Média. A
dessacralização do mundo natural ganhou impulso com a
revolução científica iniciada no Renascimento (quando o
homem se colocou no centro do universo), reforçada pelo
indispensável apoio da Reforma Protestante: esta suprimiu
o culto aos santos e anjos, a devoção à Virgem Maria,
as práticas rituais, festividades sazonais e peregrinações,
julgadas pagãs, e desencadeou a destruição de objetos e
lugares sagrados, no intento de erradicar a ideia da presença
de uma alma no mundo natural, do qual deveriam sumir os
traços de magia, sacralidade e poder espiritual. Destacar o
mundo material da vida do espírito definiu os campos da
ciência e da religião; a primeira tomaria para si, em sua esfera
de ação, o todo da natureza, inclusive o corpo humano; a
segunda se encarregaria dos aspectos morais e espirituais
da alma humana. A Reforma preparou o terreno para a
revolução mecanicista na ciência. A retirada do espírito do
funcionamento da natureza atingiu o auge no século XVII:
ela quedou-se reduzida à matéria inanimada em movimento,
criada por Deus e mecanicamente obediente às leis eternas,
sem espontaneidade, liberdade e criatividade, ideia a
predominar mesmo entre as pessoas mais cultas; passou a
vigorar a concepção de uma máquina do mundo, criada por
um Deus engenheiro todo-poderoso. Em breve, a própria
figura divina tornou-se supérflua: no final do século XVIII,
ela desapareceu da visão científica do mundo. Ao humanista
secular importa apenas a vida humana: sua religião laica
glorifica o homem e suas obras maravilhosas. Para Prigogine
& Stengers (1997), a natureza antiga era fonte de sabedoria,
a medieval falava de Deus, a moderna emudeceu. O mundo
das qualidades e das percepções sensíveis, onde se vive,
ama e morre, cedeu espaço ao da geometria deificada, da
quantidade, onde não há lugar para o Homem. O mundo
científico separou-se por inteiro do mundo da vida, não
explicado pela ciência. A atitude humana perante a natureza
cambiou do contemplativo ao pragmático. Mesmo na
biologia prevaleceu o mecanicismo.
Para Sheldrake (1993), os valores simbólicos vinculados
a determinados locais, a plantas e animais, esvaziados de
seu significado, foram trocados por valores materiais. O
tecnocrata, o economista, o cientista mecanicista ou o
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
proprietário de terras que as vê apenas com fins lucrativos
partem do conceito da natureza inanimada e neutra. Num
mundo natural sem vida, finalidade ou valor próprio, os
recursos naturais existem para serem explorados, seu único
valor provém das forças de mercado ou dos planejadores
oficiais. A religião ateísta e fundamentalista do progresso
econômico ilimitado, alicerçada no materialismo e na
visão mecanicista da natureza, disseminada globalmente,
sobrepôs-se às visões de mundo tradicionais e animistas,
ainda cultivadas pelos povos “primitivos”. Uma natureza
inanimada propicia a sensação de seu controle pelo homem,
da superação de modelos antigos de pensamento, ora
encarados como crendices, meras fontes de inspiração
poética ou arquétipos confinados ao âmago mais profundo
da mente. Muitas pessoas “civilizadas” ainda mantêm um
sentimento vago do caráter sacro da natureza; inspiradas
por sua beleza, desdobram uma ligação emocional com
lugares, criam empatia com animais e plantas, vivenciam
um sentimento místico de unidade com a natureza, tratamna como viva e feminina: poemas, cantos e obras de arte
ainda a celebram.
A ciência moderna renegou a visão de uma natureza
permeada por um conteúdo anímico, e a sua complexidade,
em nome de um mundo regido por um número limitado de
leis imutáveis e simples, modelo científico que desencantou
e dominou o mundo, impediu a manifestação de outros
tipos de saberes, arruinou tradições e experiências
profundamente enraizadas na memória cultural (Prigogine &
Stengers, 1997). Para Lorenz (1986), negar o conhecimento
empírico herdado dos ancestrais, em especial quanto aos
aspectos mais nitidamente humanos da vida, denota um
falso culto ao progresso, uma religião tecnocrática que
despreza as tradições culturais humanas como superadas:
o adepto do cientismo aceita como real apenas o expresso
nos termos das ciências exatas e comprovado por
quantificação, e como único e legítimo método científico,
para adquirir conhecimentos, o que envolve medição e
cálculo. Despedaçar o conhecimento em várias disciplinas
e especialidades leva à perda da visão do todo, incapacita
as pessoas a perceberem a beleza do mundo.
Para Heisenberg (1981), a ciência clássica partiu da
ilusão de descrever um mundo idealizado e suas partes
de maneira exclusivamente objetiva, em uma visão
reducionista; todavia, a ciência resulta da interação
entre homens observadores e a natureza pesquisada, o
que propicia uma descrição influenciada pelo modo de
questionar do investigador. Não se deve pesquisar o mundo
ao fragmentá-lo em objetos, mas pelas conexões entre estes:
em um mundo tecido como um complexo de fenômenos,
conexões de vários tipos alternam-se, sobrepõem-se ou
mesclam-se para determinar a tessitura do todo. O estudo
da vida não pode ser reduzido a um misto de física e
química com o darwinismo; os conceitos biológicos têm
57
caráter mais qualitativo que os daquelas ciências; os seres
vivos ostentam uma complexidade superior à da matéria
inanimada. A linguagem da ciência precisa mudar, aceitar
a poética imprecisa, com sua aparente vaga relação com
a realidade.
De acordo com Morin (1999), a ciência moderna
elimina o sujeito observador, ressalta ao extremo a
objetividade, quebra aspectos do real (reduzido a modelos
com leis imutáveis e deterministas: simplificação), elimina
julgamentos de valor e manifesta um caráter ambivalente:
trouxe inúmeros benefícios à humanidade (como na saúde),
inseparáveis de riscos como o da extinção da espécie
pelas armas nucleares ou alterações ambientais globais. O
Homem não pode se eximir da responsabilidade de praticar
ciência com consciência e assumir as consequências dos
resultados de todas as suas pesquisas. Preocupado com
a irreversibilidade aparente das ações humanas sobre a
Terra, Jonas (2006) infere que as descobertas científicas
devem ser empregadas com responsabilidade e cautela, de
modo a manter uma vida humana autêntica no planeta,
sem comprometer ou impedir suas futuras condições de
sobrevivência.
Lorenz (1986) teme o desaparecimento de capacidades
humanas, como a de amar, se não exercitadas durante
etapas críticas do desenvolvimento pessoal, e recomenda
as vivências subjetivas de contato com a natureza. Um
ser humano alienado da natureza comete crimes contra o
mundo natural, mistura a sabedoria rara com a violência
extrema, extingue sem remorso outras espécies, provocalhes terror: Homo terminator, o exterminador humano, fera
perigosa que ameaça erradicá-las (Serres, 2003). Por sua
vez, Wilson (2002) responsabiliza a espécie humana por
uma guerra contra a natureza, marcada pela destruição de
hábitats, pela prática da caça indiscriminada, pela invasão de
territórios por espécies exóticas, pela poluição generalizada
e por extinções em massa em várias partes do mundo. A
destruição de hábitats, sobretudo nas regiões cobertas por
florestas tropicais, já abatidas em mais de metade de sua
extensão, acelera a redução da biodiversidade; destruir
esta desestabiliza os ecossistemas, o clima e a economia,
facilita o proliferar de doenças infecciosas. A importância
da biodiversidade para o bem estar do homem escapa à
percepção da pessoa comum, que pouco se importa com a
supressão da natureza, substituída por artefatos humanos.
Estima-se um índice atual de extinção de mil a dez mil
vezes maior do que antes do surgimento do Homem; ao
menos um quinto das espécies estarão extintas ou fadadas
à extinção em 2030; metade sofrerá o mesmo destino até
2100. O século XXI pode deixar como trágica herança a
solidão para a humanidade. Serres (1994), revoltado com
a atual situação, conclama a se tratar a natureza como um
sujeito, não um objeto; nada é tão belo como o mundo, mas
este, no momento, exibe uma face mutilada. A beleza exige a
58
paz, e esta pressupõe que o homem deva assinar a paz com
a Terra, em um contrato natural de simbiose, reciprocidade,
contemplação e respeito, e reverter seu parasitismo, sua
posse sobre ela. Para Serres (2003), o contrato natural
promoveria a simbiose do objeto-mundo global e do
sujeito-homem global, geradora do Homo universalis, novo
ser humano, protetor da paz, da eqüidade, da cooperação,
da diversidade. Para ser criador contínuo de seu mundo
e de si mesmo, só resta ao homem tornar-se bom; como
espécie, ele só pode nascer do amor.
Milburn (1998) preocupa-se com a perda da alma do
mundo, evidenciada na inexpressiva vida atual, sequela da
perda da subjetividade do mundo; os sujeitos esvaziados
tomam a aparência de objetos para serem entendidos,
zeram o valor do estético. Porém, cada coisa apresenta
sua realidade subjetiva: a alma do mundo, expressão da
dimensão intrínseca da realidade, clama pela abertura do
ser humano a ela; fértil como toda imagem, ela porta uma
gravidez de significados. O homem necessita mudar sua
percepção de mundo, atentar à qualidade expressiva das
paisagens, oferecer-se à riqueza inerente ao mundo natural,
envolver-se com ele, passear, prestar atenção aos lugares. As
coisas parecem incorporar uma intencionalidade, interessarse pelos humanos, aceitá-los, trazer-lhes uma mensagem;
divisar um mundo formado por sujeitos oferece a base
para um senso moral da natureza. A realidade entrelaça
elementos subjetivos e objetivos, seu caráter transcende
o das pessoas; a própria ciência principia a demonstrar
componentes estéticos e de valor.
Skolimowski (1998) sugere ao ser humano sentir-se à
vontade na presença de árvores, envolver-se com elas, regerse por elas, por sua geometria natural da vida, que atenua
tensões acumuladas pelos modelos artificiais. Árvores e
florestas importam por razões psicológicas: voltar à floresta
subentende retornar ao útero, às origens; as florestas trazem
tranqüilidade à alma, estimulam a espiritualidade; florestas
sagradas, genuínos templos ao ar livre, locais de cerimônias
religiosas, deveriam ter sido protegidas, não profanadas;
nos bosques e florestas sagradas povos antigos se sentiam
mais próximos a seus deuses, a quem dedicavam diversas
espécies de árvores.
Segundo Eliade (2001), o espaço, para o homem
religioso, exibe rupturas, é heterogêneo; se sagrado, possui
significado; se profano, homogêneo, pode ser dividido e
qualificado pela geometria. O espaço sagrado organiza-se
em torno de um ponto fixo, um centro, implica em uma
hierofania, abertura para o céu, constitui fonte de vida
e fertilidade. Viver no espaço sagrado significa escapar
à ilusão; destruir o eixo cósmico, tornar ao caos inicial.
A natureza embebe-se de valor religioso: a árvore, eixo
do mundo, escada que conduz ao céu, símbolo de vida,
juventude, imortalidade e sabedoria, representa o cosmos,
exprime o que o homem religioso considera sagrado por
M. Quaranta
excelência, contudo só desempenha totalmente sua função
como símbolo se despertar a consciência humana, abri-la
ao universal. O homem atual, secularizado, sente-se mal
diante do sagrado; já o homem religioso sempre está aberto
para o mundo, ama a natureza, a vida, intenta ressacralizar
o cosmos.
Durand (2004) lembra a exclusão, a partir do século
XVII, do imaginário nos processos intelectuais, como
delírio, sonho, irracionalidade, e a rejeição da natureza pelo
pensamento sem imagem. Entretanto, para o Homem,
animal simbólico, todo pensamento é representação, passa
por articulações simbólicas; mesmo o pensamento científico
passou a recorrer ao imaginário, que sempre persistiu nas
religiões: em todas elas há uma rede de imagens simbólicas,
coligidas em mitos e ritos, a ligar o homem religioso ao
homem simbólico. Por sua vez, poetas e artistas tentam
reconstituir o pensamento pelas imagens; a imaginação
poética unifica a percepção do mundo, reencontra o sentido
de sua unidade.
Para Griffiths (2000), no pecado original, o homem
revoltou-se contra a natureza, tentou dominá-la por todos
os meios disponíveis, com resultados ambíguos. A ciência
tem limites: o conhecimento não resulta só do pensamento
abstrato, conceitual, que isola homem e natureza, afasta
o espontâneo e imaginativo, cria um mundo artificial; o
racional excessivo fecha a vereda para a intuição (oriunda da
reflexão da mente sobre si mesma, da autoconsciência, não
da observação, experimento, conceitos, razão), que brota
dos sentidos, dos sentimentos, da imaginação. Conectada
à emoção, não à reflexão, a intuição pode visualizar o
todo. A razão abstrata não se acerca mais do real do que
a imaginação; a razão é inteligente, porém estéril, sem a
intuição; esta, sem a razão, é fértil, mas cega. Integrar o
racional e o intuitivo religa em unidade profunda o homem
e a natureza. As dimensões racional e intuitiva da natureza
humana se reencontram no poeta e no artista: pela razão,
ambos transmitem as riquezas da experiência profunda,
da vida emocional, imaginativa. Heisenberg (1981) lembra
que inspirações fecundas emergem no encontro de diversas
linhas de pensamento; a ciência deveria interagir com outras
tradições culturais e com as religiosas.
As ciências naturais agora transcendem a visão de
mundo mecanicista; assumem o indeterminismo, o
caos, a espontaneidade; descrevem evoluções múltiplas
e divergentes, singularidades, instabilidades e crises. Na
natureza proliferam estruturas ativas, ricas em diversidades
qualitativas e surpresas potenciais. A ciência do devir cria
novos conceitos, como o de auto-organização, utilizado
nas pesquisas em Cosmologia, Ecologia e Biologia, e
situa o homem no seu interior; o diálogo racional com a
natureza encontra uma interlocutora complexa e múltipla;
a indeterminação e a irreversibilidade permitem processos
de organização espontânea (Prigogine & Stengers, 1997). As
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
leis naturais tratam agora de possibilidades, não de certezas,
a ciência atual procura na complexidade sua nova forma de
ser e estar no mundo.
Uma abordagem científica tenta abranger os grupos de
fenômenos que não apresentam entre si uma relação linear,
cujos componentes interagem: os sistemas. Bertalanffy
(1973) elaborou a teoria dos sistemas a partir da concepção
biológica que reconhece os organismos como sistemas e
tenta descobrir seus princípios de organização: a teoria
realça questões sobre organização e totalidade, excluídas
da ciência mecanicista como ilusórias e metafísicas, supera
o procedimento analítico. A ordem hierárquica, conceito
primordial na teoria sistêmica, relaciona-se a questões de
diferenciação e evolução, como a medida da organização
interna do sistema; este, se aberto, libera entropia
(desorganização) em processos irreversíveis e importa
negentropia (organiza-se internamente), como na evolução
biológica, sequência de transições para ordens mais altas,
maior heterogeneidade e organização. A teoria geral dos
sistemas soluciona questões preteridas pela ciência clássica,
elabora um tipo de pensamento que acredita em oposições
complementares, propõe modelos para explicar os seres
vivos e sua autorregulação, e valoriza sistemas alternativos,
como outras culturas e saberes.
Para Bresciani Filho & D’Ottaviano (2000), um sistema
pode sofrer evolução, gerar novos produtos, alterar sua
organização, em que surgem estruturas ou funcionamentos
novos. Entre a criação e a organização pode haver um ciclo
recorrente: a primeira instiga à modificação da segunda, que
propicia a ocorrência da primeira. A criação pode se inserir
no processo dinâmico relacional entre o meio ambiente
e o sistema, que a este garante sobreviver, reproduzir-se,
evoluir. A interação das atividades pré-existentes com
as espontâneas e autônomas, entre elementos internos
ou de fronteira do sistema, em ciclos recorrentes, ou a
introdução de atividades autônomas do meio ambiente,
como flutuações, pode despertar no sistema processos
espontâneos e criar nova organização: a auto-organização,
que se relaciona com a criação em um ciclo recorrente.
Uma organização emergente, derivada da autoorganização, não tem necessariamente características que a
qualifiquem como criação organizacional, caso em que ela
pode ser identificada como uma reprodução ou duplicação
de outra já existente. Isso verifica-se na autopoese,
propriedade auto-organizativa que garante a constante
manutenção e a reprodução dos seres vivos (Maturana &
Varela, 1995). Na unidade autopoética, o ser e o fazer não
se separam, constituem seu modo de organização; isto é,
a autopoese refere-se à produção contínua da vida por
ela própria. Os seres vivos mantêm-se pela autopoese,
subsistem como sistemas ao eliminar para o meio ambiente
calor, entropia e desordem.
59
Para Bresciani Filho e D’Ottaviano (2004), quanto
maior a quantidade e qualidade de elementos de um sistema,
quanto mais numerosas e variadas forem as relações que
os envolvem, maior complexidade ele apresenta. Concebese então a evolução de um sistema organizado como um
processo de aumento de sua complexidade, tanto estrutural
quanto funcional, um aumento progressivo da variedade
em seu interior. Em um sistema auto-organizador, a
complexidade aumenta pela eliminação de suas próprias
restrições internas.
Segundo Morin (1999), a organização, ao compor
um sistema a partir de elementos diversificados,
simultaneamente forma uma unidade e uma multiplicidade,
uma complexidade denominada unitas multiplex, que não
reduz o uno ao múltiplo, nem este ao uno. Há uma inibição
das potencialidades dos elementos que se organizam e
compõem o sistema, afigurado menor do que a soma
de suas partes; contudo, o todo organizado também se
desvela maior do que a soma de suas partes, pois brotam
qualidades novas, as emergências, que retroagem ao nível
dos elementos e os estimulam a exprimir as potencialidades.
Nos sistemas biológicos, a organização pode originar-se de
diversos centros ou de interações espontâneas entre grupos
de indivíduos. Cada elemento de um sistema contém toda
ou quase toda a informação do conjunto: a célula armazena
toda a informação genética do ser global, embora apenas
uma parte de seus genes se manifeste, devido às inibições.
O todo está na parte, e esta no todo. Só se conhece o todo
ao se conhecer todas as partes, e compreender a estas ao se
conhecer o todo. A complexidade impede uma separação
nítida entre os seres vivos e o seu meio ambiente. A
autonomia, ignota no determinismo, assoma na teoria dos
sistemas: estes se preservam ao captar energia do meio
ambiente, sua autonomia depende do meio ambiente;
autonomia e dependência, opostas complementares. Um
sistema, para preservar sua individualidade e originalidade, a
autonomia, precisa ser dependente, como os sistemas vivos,
que inspiram o princípio da auto-eco-organização: viver de
morte e morrer de vida. Opostas complementares, morte e
vida simultaneamente excluem-se e não se separam dentro
da mesma realidade, conexas no fenômeno complexo.
A interação entre diversas espécies de seres vivos e
os fatores abióticos de seu meio ambiente instala um
ecossistema, cujos elementos trocam matéria entre
si, enquanto a energia solar, absorvida pelos vegetais,
transformada em energia química, exalada parcialmente
em cada nível da cadeia alimentar na forma de calor, flui
dos produtores aos animais consumidores, e de ambos
aos decompositores. O ecossistema, não estático, e sim
dinâmico, evolui com o passar do tempo, complexifica-se
no processo de sucessão ecológica; alterado, pode reiniciar
um processo de criação e auto-organização e recuperar-se
das perdas, ao menos parcialmente.
60
M. Quaranta
O mais complexo fenômeno conhecido: o
planeta Terra como um superorganismo autorregulador,
a cuidar das condições para permanecer vivo e sustentar
a vida em sua biosfera: Gaia, onde a biodiversidade
e o meio ambiente evoluem em interação (Lovelock,
2006). Contudo, as atividades antrópicas alteram
o meio ambiente global em desacordo com as
necessidades de Gaia: o aquecimento global derrete
as calotas polares e as geleiras no pico de montanhas,
eleva o nível dos oceanos, altera o regime de circulação
dos ventos na atmosfera e as correntes oceânicas,
acelera a erosão dos ecossistemas e da biodiversidade.
Gaia, natureza, auto-organizadora, pode se revigorar
e reagir às agressões, e de maneira drástica para o
Homem.
A visão de mundo atual ultrapassa a da máquina
repetitiva e previsível, divisa um cosmos criativo e em
evolução. Uma natureza viva desmistifica hábitos de
pensamento que negam o valor intrínseco da vida,
indica novos caminhos e formatos para a ciência, abrese à valorização da espiritualidade e da religião, a uma
renovada relação entre o homem e o restante do mundo
vivo. Tradições passadas se reconciliam com linhas de
pensamento recentes, a ciência e a espiritualidade confluem
e se inter-relacionam.
Considerações finais
O quam mirabilis est
prescientia divini pectoris
que prescrivit omnem creaturam.
Nam cum deus inspexit
faciem hominis quem formavit
omnia opera sua
in eadem forma hominis
integra aspexit.
O quam mirabilis est inspiratio
que hominem sic suscitavit. 8
(Hildegard von Bingen in The origin of fire..., 2004).
A ideologia do progresso ilimitado, um fim em si
mesmo, verdadeira religião laica e secular, baniu a viriditas
do mundo, vilipendiou a Sabedoria, rompeu a unidade
do microcosmo com o macrocosmo, cultivou mentiras e
idolatrou simulacros, tornou a espécie humana parasita do
planeta Terra..
Hildegard von Bingen, mulher, sistema criativo e
evolutivo, progressivamente complexo em sua organização,
7 Antífona “O quam mirabilis est”. Ó, como é maravilhosa a presciência do
coração divino que ordenou toda a criação. Porque, quando Deus examinou
a face do homem que ele tinha formado, viu o conjunto de suas obras nessa
mesma forma. Ó, como é maravilhoso o sopro que desta maneira suscitou a
vida no homem.
Observação: as traduções dos cânticos para o português foram efetuadas a
partir do original em latim e de suas versões em espanhol, italiano e francês.
ao interagir com o divino e com inúmeras pessoas, superou
dicotomias, integrou a intuição e a emoção; em dupla com
Volmar, religou o místico e o intelectual; ao percorrer o
mundo natural, observar atentamente suas formas de vida,
abraçar árvores, reequilibrar o microcosmo de pessoas
enfermas, e este com o macrocosmo, reintegrou o Homem
a uma natureza da qual ele nunca deixou de fazer parte,
cultivou uma visão sistêmica que unia o microcosmo ao
macrocosmo. Urge resgatar o seu modo de ser e agir ante
a natureza, sua visão de mundo, o que requer a mudança
interior do ser humano: este precisa compreender-se mais
profundamente como microcosmo, ou falhará ao tentar
reconectar-se com o macrocosmo.
A sibila do Reno cultivou tanto a dimensão poética
quanto a científica da natureza, e integrou-as ao saber
tradicional, numa lição para o ser humano hodierno; seu
exemplo incita a ressacralizar o mundo em conexão com o
saber da ciência; esta deve mudar o seu tipo de linguagem,
abrir-se à metáfora, ao poético, ao artístico, ao mítico, ao
sagrado, dialogar com outras formas de conhecimento, as
tradições e as religiões.
A noção de viriditas, de uma natureza dotada de
espontaneidade, liberdade e criatividade, fonte de unitas
multiplex, criada por Hildegard, antecipou o enfoque mais
atual da ciência, de um mundo tecido como complexo de
fenômenos e mescla de conexões; reavida na visão sistêmica
da natureza, ela permeia e fecunda conceitos da biologia
contemporânea, como os de auto-organização, auto-ecoorganização e autopoiese; argumenta em prol da imagem
de um planeta vivo, Gaia, expressão plena da anima mundi;
reverdece a espiritualidade e as religiões que valorizam o
mundo natural vivo; revitaliza como símbolo a árvore,
eixo cósmico, ligação entre a terra e o céu, a sabedoria e a
vida, local de manifestação da hierofania e da teofania, e
a necessidade de preservar ou conservar as florestas e as
espécies vivas que as habitam.
O nível de destruição dos ecossistemas e da
biodiversidade exige a imediata retirada da Sabedoria da
sombra a que o homem a relegou, ao vulgarizar uma visão
de um mundo natural como máquina previsível e repetitiva,
ao cultuar imprudentemente o progresso material a qualquer
custo, e ao não prever as possíveis consequências de sua
intervenção irrestrita sobre o seu lar terreno. O Homem,
rosto a refletir toda a riqueza e a diversidade do criado,
deverá pautar seu modo de ser no mundo pela Sabedoria,
para atender a suas reais necessidades sem obrigatoriamente
prejudicar o restante do mundo natural; se não reconsiderar
seus erros, permanecer dominado por ilusões, agir sem
cautela e responsabilidade, impedir a manifestação da
alma do mundo, deixar de cultivar o amor a lugares, a seus
semelhantes, à vida e à Terra, o presunçoso Homo sapiens
continuará a desempenhar o trágico papel de exterminador
de espécies, de ambientes e de si mesmo.
Viriditas, sabedoria, Hildegard e a natureza
Através da experiência simbólica, percorre-se o caminho
para a sabedoria; resgata-se as imagens da natureza, as obras
de arte, as poesias, os sentimentos, o diálogo com outras
culturas e saberes; recupera-se o sentido da hierofania e
teofania; celebra-se as paisagens, a beleza, a vida. A trilha
da viriditas e da sabedoria leva a colmar de valor intrínseco
a vida e os seres vivos, a uma simbiose com a natureza,
reação contra o parasitismo humano da Terra, da qual
surge o Homo universalis, que brota do amor e se unifica à
imagem da sabedoria. Por meio desta, ele saberá usar com
cuidado a tecnologia e obter a inspiração necessária para
sair da crise ecológica.
No caso específico de um pesquisador, este
precisará aprender a apreciar a beleza do mundo
natural, a envolver-se com ele, não apenas estudálo como objeto, e incorporar a arte e a poesia à sua
cultura geral e à ciência que pratica, além de nunca
denegar ou abandonar a espiritualidade (como neste
texto). O exemplo de Hildegard ensinou que uma
pesquisa não precisa ser obrigatoriamente quantitativa;
mostrou como alguém pode se empenhar em
preservar e conservar a natureza, sem abandonar a
Ciência, integrar diversos campos do conhecimento,
e pesquisar a vida sem ser inspirada pelo mecanicismo
e pelo reducionismo.
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Artigo recebido: 17/01/08
Aceito em: 08/03/09