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  UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL CAMPUS CHAPECÓ CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA TAÍSE STAUDT SOU DIÁSPORA: IDENTIDADE E MOBILIDADE NAS MEMÓRIAS DE HAITIANOS NO BRASIL CHAPECÓ 2018   1   TAÍSE STAUDT SOU DIÁSPORA: IDENTIDADE E MOBILIDADE NAS MEMÓRIAS DE HAITIANOS NO BRASIL Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado como requisito para a obtenção do título de Licenciada em História da Universidade Federal da Fronteira Sul. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Machado CHAPECÓ 2018   2     3     4   A todas as haitianas e haitianos em mobilidade pelo mundo.   5   AGRADECIMENTOS A realização desta pesquisa foi possível pela colaboração e apoio de diversas pessoas. Agradeço a minha família pela paciência em determinados momentos e os calorosos incentivos. Em especial, minha mãe Marlene, que não duvidou por um instante da minha capacidade de realizar este trabalho e da minha vontade de mudança. Agradeço o professor orientador Ricardo Machado, por aceitar trabalhar coletivamente neste estudo e acreditar, assim como eu, na necessidade de expandir os horizontes da historiografia. Aproveito para agradecer a todos os professores do curso de graduação em História da UFFS - campus Chapecó, que de alguma maneira influenciaram na realização completa deste trabalho. De maneira inigualável, agradeço a professora Claudete Gomes Soares pela possibilidade de trabalhar conjuntamente no projeto de pesquisa que sinalizou o início desta caminhada. Agradeço pelos esclarecimentos, colaborações constantes, pelos debates intermináveis e pelo compartilhamento de interesses, temas e curiosidades. Na mesma medida, agradeço ao NEABI da UFFS - Campus Chapecó pelas atividades e debates proporcionados. Sou grata por ter uma família em Chapecó, possibilitada pelos ideais de mudanças e luta por direitos, alcançada principalmente nos movimentos de ocupação da UFFS - Campus Chapecó. Agradeço a Lais pelos seis anos em que ela é minha família nesta cidade. Agradeço a Ana pelo companheirismo, amor diário e pelas colaborações na elaboração direta deste trabalho com apoio nas transcrições, formatação e elaboração dos mapas, sem as quais, o trabalho estaria bem menos colorido. Agradeço a amizade, ensinamentos e transformações que a Jéssica e a Fernanda possibilitaram em mim e na maneira como vejo o mundo. Da mesma forma, agradeço meus colegas da turma de 2014.1 e amigos, que tem papel importante nesta caminhada. Por fim, agradeço de maneira especial a todas as amigas e amigos haitianos que estudam na Universidade Federal da Fronteira Sul, pelo carinho, abertura e trocas que vem sendo possibilitadas nos últimos anos. Agradeço ao Roberson pelas várias horas de conversa e a tradução do resumo deste trabalho em crioulo. A Marie, pela sua sempre alegre e forte presença e luta pela redução de preconceitos aos haitianos. Ao Bernadel, pela abertura e trocas de experiência. A todos por possibilitarem este trabalho, muito obrigada!       6 Lembro-me que no momento de deixar o Haiti, vinte anos atrás, eu estava completamente feliz por escapar dessa bagunça que começa com o nascer do sol e termina de madrugada. O silêncio em Porto Príncipe só existe entre uma e três da manhã. A hora dos bravos. A vida só pode ser pública nessa metrópole espantosamente superpovoada (uma cidade construída para nem duzentos mil habitantes que tem hoje cerca de dois milhões de histéricos). Vinte anos atrás, eu queria o silêncio e a vida privada. Hoje não consigo escrever se não sentir as pessoas a minha volta, prontas a interferir, a todo momento, no meu trabalho, para lhe dar outra direção. Escrevo a céu aberto no meio das árvores, das pessoas, dos gritos, dos choros. No coração desta energia caribenha. (LAFERRIÈRE, 2011. pp. 11, 12)   7   RESUMO Objetivo nesta pesquisa a reflexão a respeito das memórias dos haitianos que atualmente residem no Brasil, a partir de entrevistas de história de vida, dentro da metodologia de história oral. As entrevistas foram realizadas com três imigrantes haitianos que residem no oeste de Santa Catarina, com diferenciações em gênero e idade, sendo posteriormente transcritas e adequadas em texto. Realizei reflexões sobre temas citados ou não nas narrativas e sobre a fórmula do sucesso que envolve a saída do Haiti. A partir dos temas que se destacam nas narrativas, analisei alguns fatores determinantes para a formação social e cultural haitiana, da construção da característica de mobilidade e das experiências dos indivíduos, na trajetória e no Brasil. Os resultados demonstram a carga da violência colonial nas experiências destes indivíduos e da estruturação de uma sociedade diáspora. As memórias revelam a ligação indissociável da identidade com a mobilidade nas falas dos haitianos no Brasil. A pesquisa coloca em evidência, com base nas histórias de vida, a experiência de mobilidade contemporânea pela visão dos sujeitos que passaram e passam por tal processo. Palavras-chave: Diáspora. História de vida. Mobilidade haitiana.   8   REZIME Objektif rechèch sa a reflete sou memwa Ayisyen ki abite nan Brezil, ki baze sou entèvyou istwa lavi yo, pa metodoloji istwa oral . Entèvyou yo te reyalize ak twa imigran ayisyen kap viv nan lwès Santa Catarina, diferans nan sèks ak laj, pita yo te transmèt yo adekwa nan tèks.Te gen refleksyon sou anpil tèm ki te site oswa ki pat ekri ak sou fòmil siksè ki enplike nan kite Ayiti.Apati de diferan tèm yo make nan narasyon yo, gen kèk detèminan yo te analize pou fòmasyon sosyal ak kiltirèl ayisyen, konstriksyon karakteristik mobilite ak eksperyans yo nan moun yo, nan trajètwa yo ak nan Brezil. Rezilta yo demontre chay vyolans kolonyal sou eksperyans moun sa yo ak nan estriktirasyon yon sosyete dyaspora. Memwa yo revele lyen enseparab ant idantite ak mobilite nan diskou Ayisyen yo ki nan Brezil. Rechèch la mete an evidans, ki baze sou istwa lavi yo, eksperyans nan mobilite kontanporen pa mwayen vizyon endividi sa yo ki te pase e pase nan pwosesis sila. Mo kle: Dyaspora. Istwa nan lavi. Mobilite ayisyen.   9   LISTA DE ILUSTRAÇÕES Fotografia 1 - Louis Sainne Bernadel ..................................................................................... 34 Fotografia 2 - Marie Merlande Divers .................................................................................... 44 Fotografia 3 - Roberson Damis ............................................................................................... 54   10   LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Regiões da América ................................................................................................. 19 Mapa 2 – Caribe ...................................................................................................................... 20 Mapa 3 - Haiti - Fond-des-Blanc e Aquin ............................................................................... 36 Mapa 4 - Haiti - Abricots e Jeremias ...................................................................................... 45 Mapa 5 - Haiti - Petit-Gôave ................................................................................................... 55 Mapa 6 - Rotas dos narradores .............................................................................................. 103 Mapa 7 - Rota dos narradores – Caribe ................................................................................. 104   11   SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO …………………………………………………………..................... 12 2 LEMBRANÇAS NARRADAS …………………….....................................……........18 2.1 A PRESENÇA HAITIANA NO BRASIL ….....................................…………........… 18 2.2 REGISTRO E MEMÓRIA: OS CAMINHOS PELA HISTÓRIA ORAL .................... 27 2.3 OS NARRADORES ………………………………….................................................. 31 3 HISTÓRIAS DE VIDA ............................................................................................... 34 3.1 LOUIS SAINNE BERNADEL ..................................................................................... 34 3.2 MARIE MERLANDE DIVERS .................................................................................... 43 3.3 ROBERSON DAMIS ................................................................................................... 54 4 MEMÓRIA E CONVENÇÕES SOCIAIS NAS FALAS DOS HAITIANOS NO BRASIL …………………………......................................................................................... 70 4.1 MEMÓRIAS MARCADAS PELA MOBILIDADE .................................................... 70 4.2 FAMÍLIA: DINÂMICAS DE MOBILIDADE E LAÇOS AFETIVOS ....................... 74 4.2.1 Fanmi e a mobilidade .................................................................................................. 77 4.3 CONSTRUÇÃO SOCIAL: ENTRE O DITO E O NÃO DITO .................................... 79 4.3.1 “É proibido você falar crioulo” .................................................................................. 85 4.3.2 O não-dito sobre o Vodu ............................................................................................. 89 5 AS TRAJETÓRIAS: DIÁSPORA E A MOBILIDADE HAITIANA…………...... 93 5.1 “MWEN SE DIASPORA” - “SOU DIÁSPORA” ........................................................ 93 5.2 FÓRMULA DO SUCESSO .......................................................................................... 97 5.3 OS GRANDES FLUXOS E AS TRAJETÓRIAS DOS NARRADORES ................... 99 5.3.1 As trajetórias: o que esteve entre o Haiti e o Brasil ............................................... 100 5.4 OS NARRADORES NO BRASIL .............................................................................. 106 5.4.1 Sociabilidade e integração no oeste de Santa Catarina ......................................... 109 5.4.2 A atuação da linguagem e do gênero na (não) integração .................................... 114 5.4.3 Mobilidade contínua: os planos e sonhos ................................................................. 118 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 120   REFERÊNCIAS ………………………………………………………………......…… 123 APÊNDICE A ……………........................................................................................... 129 APÊNDICE B …………….............................................................................................. 131 APÊNDICE C …………...........................................................................................…. 137 ANEXO I …………….................................................................................................. 140   12 1 INTRODUÇÃO Os estudos sobre memória, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, abriram possibilidades de pesquisa e tem se tornado um dos temas centrais de debate dentro da História nas últimas décadas. Para a historiografia ocidental eurocêntrica existe uma forte ligação dos estudos da memória com o tema do Holocausto, as reflexões sobre trauma, memória e história se baseiam em sua grande maioria nesse momento histórico de genocídio étnico que aconteceu na Europa. Césaire em seu “Discurso sobre o colonialismo” (2010), coloca um contraponto no que se refere a centralidade do Holocausto, do Nazismo hitleriano, como assombroso e capaz de gerar indignação mundial. Para o autor, vale a pena estudar clinicamente esse movimento, que não se mostra imperdoável por Hitler e seu crime contra a humanidade, mas o que mais gera indignação é o fato de ter cometido tal crime contra o homem branco, humilhado o branco europeu de uma maneira que só havia ocorrido anteriormente nos processos colonialistas aos árabes argelinos, aos coolies indianos e aos negros africanos. Falamos neste trabalho sobre memórias em mobilidade de sujeitos que carregam em si, na sua cultura, na sua negritude e na sua nacionalidade o traço da violência colonial, exercida pela ideia de superioridade europeia, assim como é marcada a população brasileira que tais sujeitos convivem atualmente. A violência exercida contra a população não-branca na forma de escravização de corpos, religiosidade, língua e cultura em geral - durante os séculos de expansão imperialista europeia, ainda marcam intensamente as experiências das populações colonizadas. Esse é um estudo sobre memórias de pessoas que passaram recentemente por mudanças intensas em suas vidas: a migração do Haiti para outros países, e que, no momento, residem no Brasil, mais precisamente no oeste de Santa Catarina. Por esse fator, um dos principais interesses da pesquisa é perceber, nas memórias, características culturais da população haitiana, formada, historicamente, de migração para outros países, e os resultados das dinâmicas e trocas culturais e organizacionais que tais características possibilitam, tanto para os haitianos que saem do país quanto para os que ficam. Um dos fatores de aproximação com o tema se deu com a crescente atenção dada ao fenômeno de presença dos imigrantes haitianos na região oeste de Santa Catarina pela população e por pesquisadores. Isso pode ser percebido no intenso número de pesquisas realizadas pensando vários aspectos dessa movimentação, assim como as conversas informais em espaços de socialização.   13 Os estudos já efetuados sobre a presença dos imigrantes no Brasil, em especial na região oeste do Estado de Santa Catarina, tornaram possível conceber uma crescente preocupação e debate em nível acadêmico sobre a relevância da discussão desse momento histórico. Alguns exemplos importantes dos trabalhos que focam na região catarinense, são os trabalhos de conclusão de curso da Universidade Federal da Fronteira Sul do campus Chapecó, como o do graduado em Ciência Sociais, Neuri José Andreola (2016), que pesquisou a integração dos grupos de brancos brasileiros e negros haitianos em um bairro específico no trabalho denominado “Os brasileiros e os estrangeiros: as relações de sociabilidade entre o grupo de brancos e o grupo de negros “em um bairro de Chapecó””, assim como da graduada Eliziane Tamanho de Oliveira (2017), no trabalho denominado “Branquitude e poder nas relações entre moradores locais e imigrantes haitianos: falando de raça no oeste catarinense”, que busca compreender como os elementos raciais e da negritude presentes nos corpos dos imigrantes, influenciam nas relações estabelecidas na região. Outra pesquisa bastante pertinente para a percepção da presença haitiana é a monografia em Educação na Universidade Comunitária da Região de Chapecó UNOCHAPECO, realizada pela Ma. Sandra de Avila Farias Bordignon (2016), denominada “Inserção dos imigrantes haitianos nos contextos educativos escolares e não-escolares no oeste catarinense”, que traz diversos dados e análises sobre a presença dos imigrantes e suas inserções nas instituições educativas da região. Para além desses, foram e estão sendo produzidas outras pesquisas locais, e muitas em nível estadual e nacional, que possibilitam elucidar as experiências dos haitianos e sua presença em diversos locais do Brasil e são utilizadas como referências centrais para a realização deste trabalho. Entre elas, cito a relevância e centralidade do trabalho realizado por Joseph Handerson, como tese de doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional intitulado “Diaspora. As dinâmicas da mobilidade haitiana no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa” (2015), assim como sua dissertação de mestrado realizado na Universidade Federal de Pelotas, denominada “Vodu no Haiti - Candomblé no Brasil: Identidades culturais e sistemas religiosos como concepções de mundo afro-latino-americano” (2010). Estes e outros trabalhos realizados por haitianos, são essenciais para a realização das análises de memórias de haitianos no Brasil, principalmente pelas características dos pesquisadores e a riqueza de informações e referências que oferece.   14 O papel desempenhado de antropólogo, sendo haitiano residente há dez anos no Brasil e, portanto, um diaspora para os haitianos; mais o fato de ter residido em vários países, antes de vir para o Brasil e conhecer outros, sendo, na época, professor da Universidade Federal de Pelotas e, posteriormente Presidente da Associação dos Imigrantes Haitianos no Brasil; além de visto como um ex-Frei Franciscano Capuchinho pelos membros da Pastoral da Migração e da Mobilidade Humana (incluindo os Padres e Irmãs da Igreja Católica), tendo um tio residido na Guiana Francesa, sendo funcionário do Consulado do Suriname em Cayenne e, finalmente, ter eu encontrado em Tabatinga, ex-colegas meus e da minha irmã, tudo isso contribuiu para a minha inserção em campo. Tais dimensões são intrínsecas ao processo de construção do objeto de pesquisa e, posteriormente, à interpretação dos discursos sociais embutidos nessas experiências. Enfim, a minha trajetória permitiume olhar o universo investigado de maneira singular. (HANDERSON, 2015. pp. 60, 61) Como consequência, as memórias dos imigrantes instigaram atenção, pelas vastas lembranças que podem ser reveladas sobre a cultura em que estavam inseridos no Haiti, os ambientes de socialização, as dificuldades, a decisão de partida, a travessia, a chegada, a nova realidade, as formações identitárias a partir da característica migrante, as experiência em outros países e, para além, as diversas lembranças que não se pode imaginar de antemão, que são únicas da experiência de vida do indivíduos. São novas experiências onde a memória pode ser instrumento de reflexão. O contato inicial com a temática como possibilidade de pesquisa de trabalho de conclusão de curso se deu com a participação como bolsista do projeto de pesquisa denominado “Negritude e Branquitude: Uma análise da integração Haitiana no oeste de Santa Catarina”, a partir de agosto do ano de 2016 com a orientação da Profª Drª Claudete Gomes Soares, na Universidade Federal da Fronteira Sul- Campus Chapecó, financiada pela FAPESC a partir do Edital nº 07/2015. A pesquisa que ainda está em andamento, possui o objetivo de analisar os processos de interação entre os imigrantes e os brasileiros no oeste catarinense, tendo como locus empírico a cidade de Chapecó. A aproximação possibilitada pela participação na pesquisa, tanto com a temática da História do Haiti, processos atuais de migração, facilidades e dificuldades de interação entre brasileiros e haitianos, quanto a proximidade com os próprios imigrantes em diferentes espaços de socialização e aprendizagem, geraram uma curiosidade e demonstraram uma necessidade diferente: a de conhecer as histórias de vida dessas pessoas, possibilitar a atenção a suas vozes tão marcantes e tão pouco ouvidas com esmero. Pensar para além do que pode ser observado sobre os indivíduos haitianos no dia a dia, registrar as memórias que carregam consigo nessas longas e dificultosas viagens em busca de novas e melhores possibilidades de vida.   15 Os trabalhos, já citados, realizados até o presente momento, refletem diversos aspectos da presença e inserção dos imigrantes haitianos no novo contexto social, político, geográfico e econômico em que se fazem presentes no Brasil. Com o auxílio dessas reflexões já realizadas, optei pela pesquisa na seguinte linha: ouvir o que os haitianos tem a falar sobre si, a história e formação, ouvir as memórias desses sujeitos por sua própria voz. Pretendo que esse trabalho possa ser participativo em proporcionar reconhecimento aos sujeitos que são agentes de suas próprias histórias e fazem parte, agora, da história dos novos locais onde vivem. Dessa maneira, defendo e opto por pensar a situação atual de mobilidade a partir da memória de maneira que se possa também pensar a história, o trauma e a própria memória desviando da perspectiva eurocêntrica e aproximando-se das perspectivas decoloniais que visam pensar a realidade assim como a teoria epistemológica das populações colonizadas a partir delas próprias, e não continuar vislumbrando a si mesmo pelo óculos do colonizador europeu. A metodologia possibilita pensar a partir de indivíduos contemporâneos, com uma realidade de dificuldades através de problemáticas sociais atuais, ainda reflexos diretos do processo colonizador. Importa a esta pesquisa o contingente cultural dessa população assim como suas características formadas a partir de sua tradição migrante, que, segundo Luís F. A. Magalhães (2014), é formada desde o período colonial como consequência de fatores estruturais atualmente materializados a partir de indicadores sociais, econômicos e demográfico precários. Os elementos diaspóricos presentes nas identidades desses indivíduos, quando repensada a trajetória histórica por que passou o Haiti desde o período colonial quando colônia da coroa francesa, a diáspora forçada, as problemáticas políticas e econômicas até os recentes processos migratórios que vivem, serão pensados a partir, principalmente, de autores haitianos ou da região caribenha, priorizando uma perspectiva teórica que abrange de maneira mais completa a realidade investigada. Entre esses autores1, encontra-se o jamaicano Stuart Hall, com as obras denominadas “Da Diáspora: Identidades e mediações culturais” (2003) e “Identidade Cultural na Pós-modernidade” (2015), que refletem profundamente sobre o termo diáspora, assim como a questão multicultural de formação das sociedades caribenhas e o caráter identitário dos sujeitos. Também como bibliografias centrais estão os martinicanos Aimé Césaire, com a                                                                                                             1   Vale ressaltar que lamento o limitado acesso às referências de trabalhos de mulheres nessa pesquisa. No entanto, foi possível perceber que atualmente as mulheres haitianas e caribenhas, assim como em diversos outros locais, estão cada vez mais ocupando o espaço acadêmico, político e social, transformando e registrando suas presenças.   2 Relatos trazido por Caisse (2012) explicitam a violência aos Aruaques pelos espanhóis: “Nesse sentido,   16 obra “Discurso sobre o Colonialismo” (2010), e Frantz Fanon, com “Peles Negras, Máscaras Brancas” (2008). Os autores auxiliam quanto a relevância das reflexões e impactos coloniais nas sociedades caribenhas, na maneira que a subalternização imperialista atinge tais populações até atualidade, utilizando da racialização para tais fins. Dentre os autores haitianos, utilizo aqueles que são traduzidos em português ou mesmo aqueles que escrevem na língua portuguesa. Destaco novamente a centralidade das pesquisas de Joseph Handerson (2010, 2015) já citadas, o trabalho de Jean Gardy Jean Pierre (2009), que trabalha o local do Vodu na sociedade haitiana a partir de reformas constitucionais, as pesquisas de Rose-Myrlie Joseph (2015) e seu trabalho colaborativo com Handerson Joseph, disponíveis em português, sobre gênero, sexismo e trabalho, Jean Anel Joseph (2014), com suas pesquisas também voltadas a religiosidade haitianas, e Michaëlle Desrosiers (2014), com a pesquisa voltada a situação trabalhista de mulheres haitianas e sobre o empresariado humanitário neocolonial. São utilizadas de maneira complementar as obras literárias de Dany Laferrière, principalmente “O país sem Chapéu” (2011), no qual se destacam as questões de mobilidade, realidade diária e crenças haitianas. Além desses, há a contribuição de outros autores, que não são usados de forma direta nesta pesquisa, mas colaboram impreterivelmente para a compreensão da formação cultural, social, política, econômica e de mobilidade haitiana. O trabalho é estruturado em quatro capítulos. O primeiro deles é uma breve reflexão a partir de referências bibliográficas sobre a formação sócio-histórica haitiana, de maneira a explicitar a constituição político econômica que formou uma sociedade cultural ligada diretamente com a mobilidade. A partir disso, se aprofunda em como se dá o processo de intensificação da chegada de haitianos em território brasileiro e oeste catarinense, que levou à problemática de pesquisa. No segundo momento do capítulo, saliento os caminhos metodológicos da pesquisa e da aproximação com o narradores de histórias de vida, de maneira que o leitor se aproxime da formulação geral do presente trabalho. O segundo capítulo é reservado às histórias de vida. Nele, são apresentadas as histórias de vida de Marie, Bernadel e Roberson, que foram narradas a partir de suas memórias. Ressalto que tais entrevistas foram gravadas, transcritas e adaptadas em texto, com acompanhamento e autorização dos participantes. O terceiro capítulo analisa as construções de sociabilidade e identidade dentro da sociedade haitiana. As análises são realizadas a partir dos aspectos que mais se destacam nas histórias de vida dos entrevistados. Dentro desse tema, trabalho a relação indissociável de lembrança-mobilidade, presente nas falas dos indivíduos em todo seu processo de acesso as   17 memórias. É evidenciado o papel familiar na sociedade e mobilidade haitiana, a relação entre as línguas, crioulo haitiano e francês, a presença não aparente da religiosidade Vodu, entre diversos outros aspectos ligados à formação identitária e cultural haitiana. O quarto capítulo se volta para a diáspora, mobilidade e trajetória como elemento essencial na estrutura econômica e social haitiana. Inicio com um debate do termo diáspora, explorando as singularidades que devem ser observadas quando analisadas as diásporas caribenhas e qual é o significado do termo para os próprios haitianos. No momento seguinte, se faz uma reflexão sobre a mobilidade como fórmula de sucesso no imaginários haitianos a partir dos relatos e uma análise da trajetórias realizadas pelos três entrevistados, salientando algumas similaridades e diferenças nas experiências. No último momento, ressalto alguns aspectos principais narrados sobre suas experiências no Brasil, refletindo sobre os reflexos da presença dos mesmos nesse contexto. Nos capítulos de análise, três e quatro, são citadas as falas diretas dos narradores durante as entrevistas, com o objetivo de demonstrar e explicitar suas linguagens referentes aos temas debatidos, que não ficam tão evidentes dentro da narrativa adequada em texto. As narrativas compõem a escrita do trabalho de maneira que são o ponto de partida para os debates propostos, possibilitando analisar instrumentos de pesquisa gerados pelas lembranças. Ouvir essas experiências a partir de suas próprias percepções é um desafio e também uma abertura para conhecer espólios, características, identidades, simbolismos, dinâmicas e experiências individuais e grupais que a memória possa ser capaz de acessar.     18 2 LEMBRANÇAS NARRADAS Falar sobre memória e coletar lembranças, é (re)construir conjuntamente uma história de vida individual, com características e movimentações singulares que dizem respeito à trajetória intelectual e geográfica do próprio indivíduo. Da mesma maneira, possibilita refletir sobre outras características históricas, em diversos níveis, compreendendo que os elementos da memória dos indivíduos não estão separados das influências sociais, políticas e econômicas que os sujeitos estão atrelados. Este trabalho propõe coletar e analisar as memórias de indivíduos com uma característica em comum: sujeitos que nasceram no Haiti mas que residem atualmente no Brasil e, nesse momento, no oeste de Santa Catarina. Pretendo, através desse trabalho, registrar a presença, analisar as formações identitárias e sociais, e a mobilidade destas pessoas. O presente capítulo da pesquisa relata de maneira direta a formação da problemática de pesquisa que se trabalha, como ela se forma e o que possibilita sua realização. Depois serão explanados os meios pelos quais se realizam a pesquisa - através da História Oral e da História de vida - e a escolha e necessidade da metodologia. Ainda, serão apresentados os narradores das histórias de vida que possibilitaram as análises realizadas neste trabalho. 2.1 A PRESENÇA HAITIANA NO BRASIL Um conjunto de processos históricos, levaram a uma configuração de constante emigração de indivíduos do seu país, Haiti. Apesar de registros informarem a presença de haitianos no Brasil desde a década de 1940, o grande fluxo dessa movimentação aconteceu a partir de 2010. Segundo dados de Joseph e Handerson (2015), eram cerca de 4 a 5 milhões de haitianos em outros países do mundo em 2015 - o que representava a metade dos habitantes estimados no Haiti no ano de 2013 - estando, desses, aproximadamente 60 a 65 mil no Brasil. Diversos alicerces estão ancorados na atual presença haitiana no Brasil. Magalhães (2014), refletindo sobre a formação de uma tradição migrante haitiana, defende que existe um processo histórico de expulsão da população haitiana de seu país, resultado de sua posição sócio-histórica de dependência e subalternidade. Apesar de ser a colônia francesa mais próspera do mundo durante os séculos XVI e XVIII, as condições de subalternidade iniciadas com o violento processo colonial e com a estruturação e hierarquia do sistema capitalista, tornaram o Haiti o país mais pobre da América na atualidade.   19 O processo colonizador e a sua violência precisam ser reflexão central para a compreensão das atual situação do Haiti. Como ressalta Aimé Césaire (2010), a Europa é indefensável quando se trata das posturas que assumiu nesse período, das extorsões e chacinas realizadas, nas palavras do autor, a Europa ainda necessita prestar contas pela maior pilha de cadáveres da História. Nesse contexto, a população de ameríndios Aruaques que povoava a ilha onde o país se localiza hoje, depois de escravizada foi reduzida quase que totalmente após a chegada das primeiras naus européias no território da ilha de Hispaniola, que foi provavelmente o primeiro lugar que Colombo colonizou na América2. Para a realização da mão de obra que conciliasse com o modelo agroexportador, o Haiti é povoado com africanos trazidos num processo violento de retirada de seu local3, sendo escravizados e realizando trabalho forçado na colônia. Nos mapas a seguir, é possível identificar o Caribe, em laranja (mapa 1) e a ilha onde se localiza o Haiti (mapa 2): Mapa 1: América com regiões sinalizadas em cores diferentes. O Caribe, conjunto de ilhas, está em laranja. Fonte: Peter Hermes Furian | Dreamstime.com                                                                                                             2 Relatos trazido por Caisse (2012) explicitam a violência aos Aruaques pelos espanhóis: “Nesse sentido, Bartolomé de las Casas, frade e historiador espanhol, no segundo volume de Historia de las Indias (Zinn, 2003), conta as crueldades desumanas sofridas pelos aruaques que ele mesmo testemunhou. Os espanhóis, embriagados pelo poder, ficaram cada vez mais arrogantes, chegando inclusive a se recusarem a andar qualquer distância, preferindo ser carregados pelos aruaques. A brutalidade colocada por las Casas pode ser evidenciada também no fato de que eles matavam os aruaques sem hesitar e cortavam pedaços de sua carne para testar se a faca estava afiada. Num relato particularmente perturbador de las Casas, os espanhóis, ao avistarem dois meninos com araras no ombro, roubaram os pássaros pela diversão e decapitaram os meninos.” (CAISSE, 2012, p. 10) 3  Pode-se ler mais sobre dinâmica de mão-de-obra do modelo agroexportador europeu em FLORENTINO (1997).     20 Mapa 2 - Ilhas do Caribe. Ao centro, ilha onde se localizam o Haiti e a República Dominicana. Fonte: GoogleMaps. Depois de largo período sob as ordens e coroa francesa, a libertação e independência haitiana acontece em consequência de uma organização e união dos negros escravizados em intenso ciclo de organização e revoltas, que se iniciaram por volta de 1789 e aconteceram até a proclamação da Independência, em janeiro de 1804. A Revolução Haitiana se caracteriza e simboliza a afronta ao regime colonial, ao racismo e a escravização de almas e de culturas no século XVIII. Essa luta pela independência foi facilitada ou até possibilitada pela linguagem através da língua crioula haitiana4, e do sincretismo religioso com o Vodu (espiritualidade e ancestralidade africana associada a alguns aspectos cristãos). Ambos os mecanismos significavam linguagem própria, demonstrando a diferença da vida escrava em relação ao                                                                                                             4  A expressão utilizada no Haiti para se referir a língua nativa é kreyòl. Considerando as diferentes maneiras de escrita do termo, optei pelo uso em português. Quando for utilizado língua crioula no texto, estaremos nos referindo a língua crioula haitiana.   21 mundo dos senhores brancos, agindo como possibilidade de demonstração de inquietudes que colaboraram para a revolta5. Após o processo colonial, a complexidade de instauração de uma política e economia menos dependentes dos franceses ou outras potências, se mostra dificultosa. O poder foi mantido centralizado numa minoria mulata assegurando privilégios herdados da colônia, e ainda havia a cobrança da própria França pela indenização de perda da colônia. Tais fatores e as disputas internas de poder e instabilidade econômica favoreceram a presença de potências no país, até que em 1915 os EUA passaram a controlar militarmente o país, o que perdurou até 1934 (MATIJASCIC, 2010). Vale ressaltar a apresentação realizada por Cláudio Antonio Ribeiro na obra “Discurso Sobre o Colonialismo”, de Aimé Césaire (2010), na qual utiliza da atual situação do Haiti para demonstrar a importância do debate colonial realizado por Césaire, e relata que após os Estados Unidos alcançarem seus objetivos e “libertar” o país haitiano de seus militares, o secretário do Estado dos EUA, Robert Lansing, justificou a ocupação norte americana dizendo que a raça negra era incapaz de governar o legado deixado pelos franceses. A passagem demonstra o discurso utilizado pelas potências para explorar o território e população haitiana, fazendo uso de um racismo estrutural que dá continuidade às justificativas coloniais para a escravização dos corpos negros e subalternização das características destes corpos. Após a saída dos norte-americanos, aumentaram as tensões entre negros e mulatos em disputa pelo poder do país. É quando a força militar do Haiti entra no cenário político com os Duvalier, que instauram regime autoritário de governo entre 1962 e 1986. François Duvalier (Papa Doc) baniu a oposição política e criou os Voluntários da Segurança Nacional, força que atuava sob seu comando. Para além, garantiu que o poder fosse hereditário e repassado para seu filho, Jean-Claude Duvalier, em 1971. As medidas centralizadoras e incapacidade política de Jean-Claude (Baby Doc) ocasionaram fim do regime em 1986. O regime gera muita revolta estudantil e popular no Haiti, que se faz presente deste momento em diante como central nas transformações políticas. Após a queda do regime Duvalierista, se instaura no poder uma junta militar que priorizava conter o “caos” instaurado no país. No entanto, as ações populares só aumentaram na busca de eleições democráticas que foram alcançadas em fevereiro de 1991, sendo Jean-Bertrand Aristide eleito presidente, embora tenha sofrido golpe e deportação em outubro do mesmo ano (MATIJASCIC, 2010).                                                                                                             5  Para uma reflexão completa sobre esse tema, ver na íntegra HANDERSON (2010). A referência completa se encontra listada ao final.   22 Com uma situação econômica e social em extrema dificuldade no país, resultado do processo colonial e de aproveitamento das potências e elite mulata e militar, inicia a organização e contribuição das organizações internacionais no papel de estabilizar a vida política, econômica e social no país (MATIJASCIC, 2010). Todo esse processo político direciona o desenvolvimento econômico e social do país. A instabilidade demonstrada nessa resumida reflexão histórica nos faz compreender que a trajetória política haitiana foi de baixo investimento social e econômico, sem planejamento governamental que fosse estruturado como objetivos de execução e trabalhos para resolução das dificuldades estruturais. Tais fatores geram uma composição com pouca oportunidade de trabalho, subsistência e qualidade de vida no Haiti. Examinando a relação da história política do Haiti com a sua mobilidade, é possível visualizar um conjunto de subalternidades – classe, cor, crença, origem – que hierarquizam as populações conforme interesse do capital, decorrente do modelo econômico atual, se apropriando das mobilidades e das forças de trabalho e dominando todos os sistemas de produção e relações sociais. Tais fatores formaram os eixos de dependência do Haiti, hoje demonstrados em dados concretos de marginalidade e miséria, que são fatores fundamentais para compreender os processos migratórios da população haitiana: Analisando em perspectiva histórica, o Haiti reproduz sistematicamente fatores estruturais de expulsão de sua força de trabalho: não se trata de um país que não é capitalista, mas sim de um país capitalista dependente, que ocupa posição das mais subalternas na divisão internacional do trabalho, cujas relações de produção são incapazes de incorporar as massas haitianas à produção, ao consumo e a formas dignas de existência. (GUIMARÃES, 2014. p. 9)6 O Brasil se fez presente no Haiti como força econômica e militar, assim como outros países, supostamente colaborando para a recuperação do país em critérios econômicos e sociais. A situação do próprio Brasil é sub imperialista, de país que também passou pela violência colonial, e não possui condições de disputas econômicas com potências, como a norte americana. Com isso, o país acaba por expandir mercados e projetos sociais de maneira que indivíduos necessitados de trabalho aceitem trabalhar no Brasil por salários muito baixos. Assim, o Brasil se apresenta no Haiti como uma potência em desenvolvimento (pela presença econômica e militar), facilitando a criação, no imaginário dos haitianos, de que a vinda para o Brasil possivelmente será positiva. (GUIMARÃES, 2014)                                                                                                             6  Quatro grandes fluxos de saída dos haitianos de seu país serão trabalhados de maneira detalhada no item 5 da pesquisa.     23 A partir do terremoto ocorrido no início do ano de 2010, as condições do país e da população para manter as exigências mínimas de sobrevivência se tornaram mais complexas, gerando a necessidade de buscar de maneira urgente tais condições em outros países. A partir desses movimentos, o Brasil se torna rota mais frequente de passagem haitiana. Durante os anos de 2012 e 2013, a região sul do país foi um dos destinos centrais dessa população. O oeste do estado de Santa Catarina, localizado no sul do Brasil e local central deste estudo, é atualmente grande centro em ascensão de atividade industrial, com a economia focada, sobretudo, no ramo de agroindústrias. No período entre 2012 e 2015, a economia brasileira fora considerada em ascensão, exigindo, em consequência, fortificação da mão de obra nas funções laborais, necessitando que as indústrias buscassem intensamente pessoas para sanar essa carência. (ANDREOLA, 2016) Essas pessoas vieram atraídas pelo trabalho nas empresas do Oeste do estado, voltado principalmente a frigoríficos e a agroindústrias, responsáveis pelo maior movimento da economia regional. Os haitianos formam um contingente populacional exercendo a mão de obra necessária para suprir a lacuna laboral existente nessas empresas. Sobram vagas, menciona-se no depoimento dos empresários, cujo trabalho os brasileiros não querem mais executar, por vários motivos, dentre eles o aumento da escolaridade, a capacitação qualificada na região e a diminuição no número de filhos nas famílias. (BORDIGNON, 2016. p. 87) A situação suscitou que as próprias indústrias, quando cientes da procura por emprego dos imigrantes, buscassem o contato e a vinda dos haitianos para a região. Com a grande oferta nesses espaços e a busca dos imigrantes haitianos por um trabalho assalariado, aconteceu uma espécie de teia de contatos viabilizada pelas comunicações nas redes de contato7 (geralmente redes sociais, como Facebook e Whatsapp). Isto possibilitou que haitianos divulgassem as vagas de emprego para outros que buscavam as mesmas oportunidades, além de ter facilitado os trâmites de viagem e chegada dos amigos e familiares, pois estando aqui há algum tempo, colaboraram na comunicação em português, localização de moradia e de emprego aos novos imigrantes residentes no Brasil. Segundo dados anunciados na Câmara de Vereadores de Chapecó, em outubro de 2014, a Polícia Federal já havia registrado a presença de mil e seiscentos haitianos na região oeste de Santa Catarina naquela data, sendo que uma publicação dos pesquisadores Sandra Bordignon e Leonel Piovezana ressaltam que em 2015 um agente da PF indicou mais de quatro mil vistos protocolados para os imigrantes. Esses números revelam, em estatística,                                                                                                             7   BORDIGNON (2016) chama essa movimentação de fenômeno comunicativo social de larga escala, pois as comunicações a partir dos aparelhos tecnológicos com acesso a internet, os imigrantes puderam estabelecer grande comunicação com familiares e amigos espalhados pelo mundo.     24 como o momento singular proporcionou a vinda e chegada massiva de imigrantes haitianos para essa região no momento de estabilidade econômica. Tanto em nível nacional como regional, houve considerável busca acadêmica em abordar diversos segmentos tanto da emigração, quanto da imigração e integração haitiana intensificada nessa década, pensando a relevância desses debates. A óptica historiográfica de viés de registro gerou, então, a necessidade de conceber o movimento da presença haitiana no Brasil através dos relatos dos próprios imigrantes, a partir de suas memórias e de suas histórias de vida. Outro ponto que é importante para priorizar o registro da presença dos imigrantes no oeste catarinense é que a economia brasileira, a partir de 2016 principalmente, não é mais considerada aquecida, e o processo reverso ao visualizado em 2012 está acontecendo. Um trabalho de análise da representação dos imigrantes nas mídias online regionais realizado dentro do projeto de pesquisa “Branquitude e Negritude”8, revelou que a presença dos imigrantes nas mídias a partir de 2016 demonstram majoritariamente um estado de dificuldade para os haitianos pelo desemprego gerado pela queda na economia, pela dificuldade de adequação e pelos preconceitos diários, gerando uma crescente movimentação de saída dos imigrantes do Brasil, principalmente do sul, para outros países da América ou retornando para o Haiti. Segundo dados de Joseph Handerson, no ano de 2015 seriam em torno de 35 a 40 mil haitianos no Brasil, no entanto, ressalta que tais dados devem ser problematizados, sendo improvável estabelecer um número preciso de imigrantes haitianos na região ou no país pelos intensos fluxos de chegada e saída e compreendendo que nem todos os imigrantes passam pela Polícia Federal brasileira ou enviam dados para o Conselho Nacional de Imigração. Pelas palavras de Handerson (2015, p.41), é “quase impossível mensurar mundo em movimento”. A percepção dessa movimentação de partida intensificou a necessidade de registro da presença e das memórias diaspóricas desses indivíduos que passaram por recentes processos de mudança em suas vidas, de contatos e formações identitárias singulares, de choques de costumes, de culturas e de cores, que possuem memórias, histórias e vozes que precisam de abertura e espaço para serem ouvidas. A opção por realizar o registro com base em ouvir e coletar as memórias dos imigrantes se dá por diversos motivos. O principal deles consiste em proporcionar um espaço                                                                                                             8 Trabalho que analisou a representação dos imigrantes nas mídias online da região oeste catarinense, e foi apresentado no III Copene Sul, realizado em Florianópolis em julho de 2017 e no VII SEPE da UFFS-campus Chapecó, em outubro do mesmo ano.   25 de escuta para indivíduos que, apesar de muito notados, pouco são ouvidos no país em que residem. A história de vida, baseada nas lembranças dos indivíduos que as contam, proporciona que o segmento da atual imigração ultrapasse as análises externas do processo, dando enfoque a alguns dos protagonistas desse movimento que possam representar, com suas lembranças, como a memória carrega, para além das fronteiras, os aspectos culturais, costumeiros e identitários dos indivíduos. Observo a imigração a partir de Sayad (1998), que indica que os processos migratórios precisam ser analisados em sua totalidade para compreender o movimento, desde os motivos e condições que levaram a saída de seu país até as trajetórias e as maneiras de integração e inserção do imigrante no país de destino. Assim, a pesquisa em memória e história de vida pode proporcionar, a partir dos relatos dos entrevistados, elementos de todos esses momentos a partir de suas experiências individuais, e que podem facilitar a compreensão do processo geral. Para além, a opção do estudo da memória se dá pela característica diaspórica presente na migração haitiana. O termo diáspora geralmente é ligado diretamente com a dispersão judaica pelo mundo em diversos períodos, mas, principalmente, pela mobilidade em fuga dos nazistas no século XX. No entanto, os estudos sobre tais mobilidades e encontros culturais e processos identitários, baseada em olhar e experiência européia, ou seja, do colonizador, não cabem inteiramente para compreender os processos diaspóricos daqueles que foram colonizados. Busco então aproximar ao máximo a experiência de memória e diáspora dos narradores com as teorias que observam de colonizado para colonizado. Stuart Hall (2003) discute os conceitos de diáspora e de que maneira são utilizados para compreender os processos de formação identitária utilizando como exemplo a situação caribenha e criticando a conceituação eurocêntrica do termo. Para o autor, existe a necessidade de uma flexibilidade do conceito, pois ele é resultado de movimentos muito singulares principalmente quando se pensa em países e composições que sempre estiveram à mercê de grandes potências. Para tais análises, Hall parte dos países caribenhos, no qual se inclui o Haiti. Nossos povos tem suas raízes nos — ou, mais precisamente, podem traçar suas rotas a partir dos — quatro cantos do globo, desde a Europa, África, Ásia; foram forçados a se juntar no quarto canto, na "cena primária" do Novo Mundo. Suas "rotas" são tudo, menos "puras". A grande maioria deles é de descendência "africana" — mas, como teria dito Shakespeare, "norte pelo noroeste". Sabemos que o termo "África" e, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de origem comum situava-se no tráfico de escravos. No Caribe, os indianos e chineses se juntaram mais tarde a "África": o   26 trabalho semi-escravo [indenture] entra junto com a escravidão. A distinção de nossa cultura e manifestamente o resultado do maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus. (HALL, 2003. p. 31) Diante dos debates sobre a singularidade dos processos diaspóricos, principalmente entre as diásporas e processos de emigração de países que foram colonizadores e movimentos de diáspora dos colonizados, é interessante pensar o exemplo citado por Hall na obra subracitada, sobre as singularidades da diáspora africana: cerca de 10 milhões de africanos foram capturados e obrigados a entrar em navios europeus que os levaram para outros continentes em que foram escravizados, entre 1514 e 18669. Essa diáspora africana é um processo forçado, em que a saída expressiva de pessoas do continente não foi uma opção da população para melhoria das condições de vida, mas um movimento imposto a partir da violência, para um local e uma realidade que retirou todas as suas condições humanas de vida. “Esses sujeitos constituídos na diáspora, ou que vivem e se moldam no entre-lugar, acabam por não pertencer a lugar nenhum, ou mesmo a sentir-se deslocado em todos os lugares” (CANTO, 2015. p. 120). Esses povos foram inseridos numa realidade totalmente distante da sua, na qual o que conheciam era totalmente desconsiderado, ao passo que essa nova realidade passou a ser tudo o que tinham. Dentro dessa linha reflexiva, Hall cita a familiar e profundamente atual sensação, proveniente dos processos históricos, de deslocamento do ser. Em tempos modernos, para o autor, talvez todos nós “não estejamos em casa” e jamais poderemos voltar a ela. (HALL, 2003. p. 27) Ao pensar a influência desses aspectos nas lembranças dos indivíduos, Ecléia Bosi (1994. p.75), nos diz que “é a essência da cultura que atinge a criança através da fidelidade da memória”, ou seja, os elementos culturais influenciadores da formação dos indivíduos como sujeitos e suas identidades, são repassados através da memória que pode desaparecer na aparência, mas permanecer em pequenos detalhes de costumes, linguagem, lugares, etc. Em outras palavras, a memória, para além das experiências individuais, “é um dos suportes essenciais para o encontrar-se dos sujeitos coletivos, isto é, para a definição de laços de identidade” (FÉLIX, 2004. p. 33). A população haitiana é, dessa forma, possuidora de uma cultura singular formada a partir de um intenso processo histórico e de subalternização que caracterizam sua cultura, memória e mobilidade. Os reflexos dessa história se entrecruzam nas narrativas de história de                                                                                                             9  Dados detalhados das datas e números no sítio Voyages, disponível em: http://www.slavevoyages.org/voyage/search.     27 vida coletadas. As lembranças registradas aqui irão nos aproximar e da realidade de ser haitiano em mobilidade no século XXI. 2.2 REGISTRO E MEMÓRIA: OS CAMINHOS PELA HISTÓRIA ORAL A memória nesse contexto é acessada a partir da oralidade. É nas narrativas que os sujeitos expõem as suas lembranças a partir daquilo que pode ser expressado na linguagem. Entre os debates mais frequentes quanto ao método de história oral está a “veracidade” da narrativas e a maneira com que devem ser analisadas: o que aconteceu de fato? Quais memórias foram alteradas pelos indivíduos? O que é ficcional/imaginário e o que é real nas narrativas das memórias? Essa linha de discussão leva a questões intensas dentro da historiografia como: a função do historiador, a busca da “verdade” dos fatos na perspectiva metódica e debate historiográfico no século XX, o caráter ético, a subjetividade dos indivíduos e do historiador perante os processos históricos, a busca a partir do presente e todas as relatividades que influenciam os indivíduos. A maneira como a memória separa os fatos de cenas imaginadas e como esses processos se confundem, foi por muito tempo argumentação para negar o uso da memória como fonte historiográfica. Verena Alberti (2011) relata que, com a preferência dos estudos com fontes quantitativas, defendida pelos Annales no início século XX: considerava-se que os relatos pessoais, as histórias de vida e as biografias não contribuiriam para o conhecimento do passado, pois são subjetivos, muitas vezes distorcem os fatos e dificilmente seriam representativos de uma época ou de um grupo. (ALBERTI, 2011. p. 163) No entanto, as próprias concepções sobre a História foram se alterando, e a formação do campo da história do tempo presente possibilitou o reconhecimento das análises qualitativas, abrindo novos vastos campos de pesquisa inclusive com o método de história oral. Para além, “hoje já é generalizada a concepção de que fontes escritas também podem ser subjetivas e de que a própria subjetividade pode se constituir em objeto do pensamento científico” (ALBERTI, 2011. p.163). O método de história oral, principalmente no formato de história de vida, teve uma ascensão na década de 1960, juntamente com os avanços tecnológicos que possibilitaram o melhoramento dos gravadores de voz portáteis. A opção por trabalhar com entrevistas de   28 histórias de vida iniciou com um caráter militante, principalmente de “dar voz” aos que “não possuíam história”, objetivando construir uma história “de baixo pra cima” e do cotidiano, opondo-se a história positivista e da nação, considerada elitista (ALBERTI, 2011). Para autora Verena Alberti (2011. p. 158), “não há dúvidas de que a possibilidade de registrar a vivência de grupos cujas histórias dificilmente eram estudadas representou um avanço para as disciplinas das Ciências Humanas”, pois a possibilidade de expressão oral alcançou grupos impossibilitados de deixar seus registros escritos, geralmente pessoas de baixa renda sem acesso à educação. No entanto, as Ciências Humanas só reconheceram esse método quando, em suas transformações e movimentos, deram espaço para o reconhecimento das diferenças e a “existência de múltiplas histórias, memórias e identidades em uma sociedade” (ALBERTI, 2011. p. 158). A pesquisadora também ressalta que determinada ideia de “dar voz” aos grupos e indivíduos considerados minoritários pode acarretar uma acentuação das desigualdades sociais quando o pesquisador considera estar dando voz a pessoas que não são capazes de falar por si próprias, questionando até que ponto esses estudos são uma pauta e geram resultados aos próprios grupos. Levando em consideração que os imigrantes haitianos que vivem no Brasil possuem poder de voz, o presente trabalho objetiva criar o espaço de registro desse momento histórico, da presença e troca cultural possibilitada pela recente chegada em massa dos imigrantes ao Brasil e possibilitar esse registro a partir de suas próprias narrativas e percepções, nas suas palavras e expressões. Em trabalhos que refletem a presença, socialização e integração dos imigrantes no Brasil, aparecem aspectos em que os mesmos sofrem discriminações diárias embutidas numa relação de poder histórica e imperialista, intensificada pela formação de cultura eurocêntrica baseada na branquitude do processo de colonização do oeste catarinense10. Essas violências podem ser percebidas nas passagens de brasileiros moradores da cidade de Chapecó trazidas por Andreola (2016, p.54): O senhor Nico, nos diz que a presença dos estrangeiros no país, “o governo deve controlar, para não aumentar muita população, porque aumentando a população (negra) com certeza vai começar a dar problema social, vai misturar raça, vai modificar costumes, vai alterar o jeito de nosso estado país”. Também outro entrevistado diz que: “eu acho que deveria ter um maior controle de entrada deles e distribuição dessas pessoas, pois tem muito deles aqui em Chapecó, e o nosso bairro está cheio deles”. (Sebastião)                                                                                                             10  Mais informações, ver OLIVEIRA (2017).     29 Levando em consideração esses discursos realizados pelos brasileiros da região, assim como as dificuldades que os preconceitos geram nas funções e necessidades diárias dos haitianos presentes no Brasil, esse trabalho possibilitou vislumbrar as experiências do ponto de vista dos imigrantes, tanto das histórias de suas vidas que desencadearam na presença no Brasil, quanto às experiências vividas nesse local, levando a uma pluralidade de perspectivas sobre o momento histórico atual. A população brasileira, que convive e interage na atualidade com os imigrantes, em contato com as histórias e vivências passadas dos haitianos, pode possibilitar uma diferente interpretação sobre a presença, integração e troca cultural em andamento. Quando busco aproximar ao máximo da realidade do indivíduo e da história contada pelos próprios sujeitos, objetivo que os mesmos expressem a narrativa da maneira que seus significados sejam mais pertinentes a sua realidade, ou seja, na sua linguagem, gírias, símbolos, dialetos usuais diários, para que possam ser analisados, inclusive, esses aspectos culturais voltados a linguagem. Uma das características de muitos dos imigrantes é a proximidade ou até mesmo fluidez em diversas línguas, principalmente o crioulo - língua oficial no Haiti -, o francês - língua também oficial utilizada nas instâncias mais formais no Haiti, inclusive na escola -, o inglês e o espanhol. Apesar dessa característica, ainda existe dificuldade entre os imigrantes em se expressar completamente na língua portuguesa, pois grande parte está há poucos anos no Brasil. Tal fator pode gerar dificuldades na completa expressão da narrativa, pois não há um controle total do sujeito perante seu dizer e os sentidos que causa, sempre havendo um espaço/possibilidade de equívoco entre o que se tem intenção de dizer e aquilo que é dito (COSTA, 2016). No entanto, esse aspecto, apesar de desfavorável, quanto a sua completa expressão, não diminui a necessidade e importância dos relatos dessas memórias, sendo inclusive aspecto para análise e questionamento quanto aos seus processos de integração no Brasil e maneiras de uso da linguagem com que tem contato há pouco tempo. A estrutura deste trabalho se dá de maneira que os aspectos analisados partem das memórias através das falas dos agentes históricos, da voz e da expressão de cada indivíduo que relatou suas trajetórias e experiências de vida. As análises teóricas - nos aspectos de memória, identidade, diáspora - assim como os aspectos historiográficos, políticos, econômicos e sociais, são percebidos e trabalhados a partir da fala dos imigrantes participantes da pesquisa. Sendo assim, os debates e análises presentes neste trabalho partem do universo das memórias relatadas, do campo de suas experiências a partir do que as lembranças dessas pessoas possibilitaram evocar.   30 Para o alcance desses objetivos, procurei dialogar previamente com os participantes, deixando-os elucidados sobre o objetivo e processos da pesquisa. Busquei uma diversificação de perfis entre os imigrantes haitianos dispostos a participar desse trabalho, compreendendo que sendo as experiências de cada um desses indivíduos diferentes no passado e diferentes no presente, a memória que é revivida e narrada por eles pode dar uma interessante base para análise das experiências coletivas e individuais dos imigrantes haitianos no Brasil, ou seja, uma metodologia que varia as características de idade, gênero e funções que exercem no Brasil, promove relatos e percepções diferenciadas sobre os processos de mudanças que esses indivíduos passaram e estão passando. Como Ecléa Bosi (1994) analisa em “Memória e Sociedade”, a memória quando solicitada aos velhos tem um retorno diferente, pois seus afastamento das outras funções da sociedade (como trabalho) facilita com que retornem as suas lembranças como auto-análise sem que questões do presente limitem as suas memórias e narrativas, sendo que o distanciamento das situações passadas possibilita que sejam evocadas de maneira mais intensa. No entanto, levando em consideração que os haitianos que migram para o Brasil vêm em busca de emprego e estudo, os mesmos acabam sendo majoritariamente mais jovens (em fase produtiva, com melhores condições de arcar com trabalhos pesados e também por terem como objetivos qualificações acadêmicas para suas carreiras), portanto a dinâmica em relação a idade dos entrevistados se dá de maneira diferenciada ao que idealizou Ecléa em sua obra. Busquei pessoas de idade mais avançada entre as presentes na região, acima de 40 anos, e também pessoas relativamente jovens, com menos de 30. O diferencial de idade e gerações presentes nos entrevistados possibilita a observação de como essa distinção influencia nas experiências e na maneira com que são vistas, guardadas e narradas as lembranças. Busquei também o diferencial de gênero entre os haitianos que narraram suas histórias. O artigo de Joseph Handerson e Rose-Myrlie Joseph (2015), que pesquisaram em suas teses movimentos migratórios haitianos para a França e o Brasil, demonstra uma grande diferença das expectativas e experiências das mulheres haitianas que migram para o Brasil em relação aos homens -, pela questão da linguagem e das oportunidades de trabalho disponibilizadas para elas no Brasil, muito distantes de suas realidades de trabalho no Haiti. Para os autores, “não há simplesmente uma divisão sexual do trabalho, mas uma articulação de divisões sexuais, sociais, étnico raciais e internacionais do trabalho” (JOSEPH; HANDERSON, 2015. p.28), que influenciam nas vivências dessas mulheres que buscam melhores condições de trabalho no Brasil.   31 2.3 OS NARRADORES A aproximação pessoal com o tema da presença haitiana, em 2016, possibilitou o contato com pesquisadores, colaboradores e os próprios imigrantes. Inicialmente, o contato foi mais frequente com os estudantes da Universidade Federal da Fronteira Sul, em sala de aula, intervalos e atividades extracurriculares. Foi nesse contexto que conheci Marie Merlande Divers, estudante do curso de Administração na UFFS - campus Chapecó. Com efetiva participação nos debates e atividades na universidade, Marie demonstrava interesse nas pautas raciais e de integração haitiana no oeste catarinense. Após sua participação em um vídeo produzido pelo NEABI da UFFS no campus Chapecó11, em que relata parte de sua experiência como mulher negra imigrante no sul do Brasil, questionei sua disponibilidade e interesse na participação do atual trabalho, o que foi aceito de prontidão. Marie tem 27 anos e reside no Brasil desde o ano de 2015 possuindo facilidade em se expressar na língua portuguesa. Vive e é domiciliada no Brasil com uma família brasileira, no entanto, nesse momento se encontra no Haiti resolvendo questões pessoais e forneceu entrevista através de conversa por chamada de vídeo. Também no contexto universitário, durante uma atividade cultural realizada pelo Centro Acadêmico de História (CAHIS), que objetivava promover os artistas presentes na própria universidade, houve participação de um grupo de haitianos realizando apresentações musicais diversas. Em um momento de pausa entre apresentações musicais, um haitiano se levantou da plateia, com roupas rasgadas e expressão assustada, e declamou a seguinte poesia, problematizando as relações de poder que diminuem o ser pela sua nacionalidade, cor de pele e cultura:                                                                                                             11  A referência completa do vídeo que conta com a participação da Marie está listado no final.   32 “L'HOMME QUI TE RESSEMBLE J'ai frappé à ta porte J'ai frappé à ton cœur Pourquoi me repousser? Ouvre-moi, mon frère. Pourquoi me demander L'épaisseur de mes lèvres La longueur de mon nez La couleur de ma peau Et le nom de mes dieux? Ouvre-moi, mon frère. Pourquoi me demander Si je suis d'Afrique Si je suis d'Amérique Si je suis d'Asie Si je suis d'Europe ? Ouvre-moi, mon frère. Je ne suis pas un noir Je ne suis pas un rouge Je ne suis pas un blanc, Je ne suis pas un jaune. Ouvre-moi, mon frère Je ne suis qu'un homme, L'homme de tous les cieux, L'homme de tous les temps, L'homme qui te ressemble : Ouvre-moi, mon frère. René Philombe (Yaoundé, 1977)” (Versão Original do Poema em Francês.) “O HOMEM QUE SE PARECE COM VOCÊ Eu bati à sua porta, Eu bati em seu coração, Para ter boa cama Para ter um bom fogo Por que me rejeitar? Abra-me meu irmão! Por que me perguntar, Se eu sou da África Se eu sou da América Se eu sou da Ásia Se eu sou da Europa Abra-me meu irmão! Por que me perguntar O comprimento do meu nariz A espessura da minha boca A cor da minha pele E o nome dos meus deuses Abra-me meu irmão! Eu não sou negro Eu não sou vermelho Eu não sou amarelo Eu não sou branco Mas, apenas um homem Abra-me meu irmão! Abra-me sua porta, Abra-me seu coração Porque sou um homem Um homem como você Um homem de todos os tempos Um homem de todo o céu O homem que se parece com você.” (Tradução do poema feita por Roberson Damis) A interpretação emocionou e chocou a plateia. O poeta era Roberson Damis, de 23 anos, estudante do curso de Engenharia Ambiental da UFFS no campus de Chapecó. Logo após essa interpretação, estabeleci um contato com o estudante, que aceitou prontamente a participação na pesquisa. Roberson iniciou os estudos na instituição no primeiro semestre do ano de 2017, e está no Brasil a quase três anos, possuindo muita facilidade na fala em português. Ele nasceu e residiu na cidade de Petit-Goâve no Haiti até seus 19 anos, quando iniciou sua jornada de vinda ao Brasil. Sua aproximação com o teatro e a arte em geral influenciaram diretamente na sua abertura quanto a narrativa de memórias, sendo uma entrevista muito mais longa que as outras e que possibilitou um campo de análise mais amplo.   A proximidade com o tema também proporcionou o diálogo com o professor do curso de Licenciatura em História, Délcio Marquetti, que reside na cidade de Xanxerê e é colaborador da Associação de Haitianos de Xanxerê desde o início de sua formação. A partir da conversa, houve a indicação, por parte do professor, de diálogo com Louis Sainne   33 Bernadel, que também foi muito receptivo quanto a participação no estudo. Louis tem 44 anos, e está a quatro anos e meio no Brasil, residindo na cidade de Xanxerê. Desde de que chegou, trabalha em um frigorífico (Unibom) da cidade de Xanxerê, além de ser um dos idealizadores e atual presidente da Associação de Haitianos de Xanxerê. Bernadel nasceu em Fond-Des-Blanc, sul do Haiti, onde residiu até seus 15 anos. Morou na capital, Porto Príncipe, até 2013 quando saiu do país com o objetivo de chegar ao Brasil. O convite para participação na pesquisa foi direcionado aos haitianos que eu conhecia ou me foram indicados, que se enquadravam na idade procurada, que possuíam facilidade na comunicação em português e que sentiam-se mais a vontade para falar sobre as suas experiências de vida. O número de narradores estimados no projeto da pesquisa era de quatro pessoas, mas pela dificuldade de encontrar mulheres com mais de trinta anos com facilidade na língua portuguesa, pelo tempo disponível e pelo volume e demanda das entrevistas de história de vida, elas foram realizadas apenas com três pessoas e todas utilizadas no trabalho. Duas das entrevistas foram realizadas em apenas um encontro de algumas horas, enquanto a de Roberson foi realizada durante 4 encontros de algumas horas. Estas entrevistas, juntamente com as leituras e convivências anteriores possibilitadas pela caminhada no projeto de pesquisa formaram os destinos deste trabalho. As memórias dessas pessoas, narradas e registradas em um gravador portátil, são o alicerce de todo o trabalho e análises e registros presentes nos próximos capítulos, e as análises realizadas objetivam perceber nas entrelinhas das lembranças, o caráter social e diaspórico presente na memória.     34 3 HISTÓRIAS DE VIDA Este item é direcionado para a apresentação das histórias de vida de Louis Sainne Bernadel, Marie Merlande Divers e Roberson Damis. Haitianos residentes no Brasil que disponibilizaram uma entrevista sobre suas lembranças, desde a infância, até os dias atuais. As entrevistas estão adequadas em texto, e todas as informações foram disponibilizadas pelos narradores para esta pesquisa. As lembranças a seguir são as fontes das análises realizadas nos próximos capítulos. 3.1 LOUIS SAINNE BERNADEL Meu nome é Louis Sainne Bernadel, nasci em 1973 e tenho 44 anos. Sou casado e tenho um filho de dezesseis anos. Eu morava lá no Haiti, vivi lá, e por isso a gente sabe alguma coisa. Por exemplo, quando eu estava bem pequenininho, vivi com meus parentes no Haiti, no sul, por isso a gente tem que batalhar e lutar pra sair de lá. O estado Sul não é o estado que está muito bom. Tem que batalhar pra estudar, por isso tem que sair do Sul para morar no Oeste, pra viver bem. Eu sou do Sul, mas saí e fui morar no centro, na Capital, Porto Príncipe. Fotografia 1: Bernadel em sua casa, em Xanxerê. Foto de Taíse Staudt.   35 Minha mãe morava lá no Sul, e eu também, até que eu tinha 15 anos, quando deixei o estado do Sul pra morar na Capital, sozinho. Minha mãe alugou uma casa pra eu viver, e fiquei lá até meus 28 anos. A gente tem várias coisas com os antepassados, né? Infelizmente eu não conheci minha vó, e meu sogro também não conheci. Morreram antes de eu e minha esposa nascermos. Vivi só com minha mãe, mas deixei minha mãe no Sul pra morar em outro lugar pra aprender a estudar. Tenho vários irmãos, mas eles deixaram o Haiti também pra buscar a vida. Estão lá na França e na Guiana Francesa, por isso a gente não conhece bem uma vida com a família. Como eu saí da casa da minha mãe com 15 anos, pra morar em Porto Príncipe, e meus irmãos também saíram pra viver em outros países, a gente não viveu com eles. Sete deles estão na Guiana Francesa e cinco na França, em Paris. São mais velhos que eu. Só uma irmã nasceu depois de mim, eu sou antepenúltimo de minha família. Meus irmãos já tinham saído do país quando eu fui morar em Porto Príncipe pra estudar, crescer um pouquinho e casar, tudo antes de vir para o Brasil. Eu casei lá no Haiti no ano de 2001, faz dezessete anos. Nos encontramos na rua, a primeira vez, nos cumprimentamos com um "bom dia". Então começamos conversar, fazer amizade e depois namoramos um tempo. Depois conhecemos a família e casamos. Desde que nos conhecemos até casarmos foi um ano. Eu tinha vinte e oito anos. Enquanto eu morava com a minha mãe a gente seguia a religião católica, mas chegando em Porto Príncipe, que a gente está sozinho, a gente muda de ideia e muda também de religião. Agora sou evangélico. *** Comecei estudar bem cedo, com cinco anos. Quando eu era bem criança, bem pequenininho, pra ir à escola eu tinha que passar por algumas coisas… Se chovesse, não dava pra sair, não dava pra ir, mas a gente queria ir porque tem a comida na escola, a gente queria ir pra comer. A escola não era perto da minha casa, eu acho que uns 5 quilômetros distante, e a gente tem que ir lá a pé. Não era fácil, mas tinha que ir. E quando chovia não podia ir porque tinha água na rua, não dava pra passar, então a gente tinha que ficar em casa. Essas coisas a gente nunca esquece. Isso foi em Aquin, que é uma cidade como se fosse Chapecó e Xanxerê. Chapecó é mais grande e Xanxerê é um pouco pequenininho. Eu sou de Fond-DesBlanc, que seria Xanxerê, que é uma cidade de Aquin. Aquin é maior, e Fond-Des-Blanc é mais pequenininho. Eu morava em Fond-Des-Blanc, que é mais ou menos como vocês chamam no Brasil de capital do estado, mas lá não chama capital e nem de estado, lá chama departamento.   36 Mapa 3: Mapa do Haiti. Em verde, sinalizada a localização de Fond-Des-Blanc, e em roxo, Aquin. Fonte: GoogleMaps *** A língua que eu aprendi falar primeiro foi o crioulo. Tem que falar crioulo, porque lá é o que todo mundo fala. Também tem o francês lá, mas pra gente falar bem o francês temos que ir na escola estudar, se não você não vai falar, você vai escutar o que a gente está falando, mas pra falar mesmo o francês tem que ir na escola. Crioulo todo mundo aprende falar desde pequenininho. Minha mãe falava crioulo bem certinho. Ela não sabia ler, não teve a sorte de ir na escola. Ela não sabia ler, mas fez um esforço, lutou, para que as crianças dela pudessem estudar, por isso todos nós sabemos ler e escrever, graças a deus. Eu vivia sozinho, não tinha tempo pra me divertir, porque eu morava sozinho num quarto, numa cidade que não era a minha, então não tinha muitas amizades. Ia para a escola, voltava para casa e continuava estudando, sozinho. Quando eu morava com a minha mãe era a mesma coisa, porque eu não tinha meus irmãos perto, eles não estavam conosco pois já haviam saído do Haiti. Não tive a sorte de conviver com a família. Não me lembro muito bem do bairro, em crioulo katye, que eu morava lá com a minha mãe. O nome do bairro é Kapy, foi lá que comecei estudar, mas não deu pra continuar estudando porque a escola era pequena e tinha poucas turmas. Era uma escola pública, mas pagávamos 15 gourdes, a moeda do Haiti, o que equivale a uns R$3 hoje, mas naquela época esses 15 gourdes equivaliam a R$1. Era isso que pagávamos para estudar um ano inteiro, na Escola Técnica de Fond-des-Blanc. Essa escola tinha um pátio grande, bem grande, que a gente fazia alguma brincadeira, mas não dá pra se lembrar tudo porque eu era bem pequenininho, tinha cinco anos, e estudava lá até os seis ou sete anos, depois saía. Quando   37 terminei o primeiro ciclo, tive que ir para outra escola para aprender mais, por isso temos que sair de lá e ir para a capital. Nessa escola a gente já aprendia francês. Crioulo não, porque crioulo a gente aprende em casa. Na escola tem que falar francês, por isso aprendemos falar francês desde pequenininhos. Não se ensinava crioulo nas escolas, na minha época não podia estudar crioulo, mas agora começaram ensinar. O crioulo é um dialeto que todo mundo fala lá, mas se você não estuda ele você não pode escrever também. O francês você vai para a escola para aprender o alfabeto, como se escreve e como se pronuncia, tudo isso. Mas eu escrevo crioulo porque aprendi em casa. Não podíamos falar crioulo dentro da sala de aula, só francês. Mas quando estávamos no pátio a gente falava. Agora estão ensinando crioulo na escola, na sala de aula, mas naquele tempo lá não. Falar com amigos lá fora, tudo bem, mas dentro da sala não. Na rua, tudo bem, porque todo mundo tem um conhecimento bem diferente. Não dá pra chegar e falar francês com as pessoas, tem que chegar e falar crioulo, porque o povo, o idioma dele é crioulo. Se diz dois idiomas, verdade, mas tem que ir na escola pra estudar francês, senão não dá pra falar. *** Eu morava com minha mãe numa casa de alvenaria, coberta de telhas. Tinha quatro peças: duas para dormir, a sala e a cozinha, mas não consigo me lembrar muito bem porque essa casa não existe há muito tempo, faz mais de quarenta anos. Tínhamos alguns vizinhos, mas poucos, pois era interior. Não tinha hospital por perto, apenas uma igreja católica. Se precisasse, tinha que ir no centro, em torno de quarenta minutos de ladeiras, subindo e descendo, subindo e descendo... Não conheci outros familiares. Vivi apenas com minha mãe e não tive pai, ela nunca me contou quem ele era. Talvez ela tenha irmãos, tios, mas eu não tive a sorte de conhecê-los. Naquela época não havia acontecido terremoto, mas pra algumas famílias faltava comida, faltava água… Era interior, tínhamos que sair de lá pra comprar as coisas que precisava na cidade. Faltava serviço e se faltava serviço, faltava dinheiro. Por isso tinha dias que ficava pesado, que passamos fome. A vida naquele tempo foi assim, lá pelos anos de 1980 até 1986. Não foi fácil naquele departamento, mas tinha que viver. Minha mãe nunca trabalhou com outra pessoa, apenas fazendo agricultura, com o que a gente recolhia da agricultura dava para vender e pagar escola e comprar as coisas que precisávamos. Foi assim que minha mãe lutava pra me ajudar a sair de lá. Minha mãe tinha bastante terra que ela herdou. Nunca vendemos, até hoje estas terras, nossas terras, estão lá com outras pessoas vivendo sobre ela, plantando e fazendo agricultura. Quando eu tinha quinze anos saí de lá pra estudar e casar e fui morar na capital, até os vinte e oito anos. Estava bem sozinho no meu quarto. Não foi muito fácil. Quando cheguei   38 na capital eu não tinha ninguém. Até tinha minha irmã mais velha, mas eu não fiquei com ela porque minha mãe não queria que eu fosse na casa dos outros para passar miséria. Minha mãe dizia: "Louis, vou mandar você para Porto Príncipe e você vai viver sozinho, cuidando da tua vida". Por isso a gente sofre um pouco e sofre mais um monte antes de sair. Sofrer, passar fome… Quando acaba o dinheiro não se sabe o que fazer e, vou falar a verdade, teve uma situação que eu fiquei sete dias sem comer nada. Minha mãe, então mandou cem dólares americanos pra mim e um amigo mandou setenta gourdes. Antes de receber esse dinheiro eu fiquei sete dias sem comer nada. Eu tinha entre dezoito e vinte anos, estava sozinho no meu quarto e acabou tudo. Eu tomava água, ia para a escola, voltava da escola, tomava água, tomava banho, estudava, dormia, no dia seguinte a mesma coisa, por sete dias. A gente nunca, nunca esquece. Por isso quando alguém diz que está com fome eu sei o que isso significa, eu sei o que é sentir fome. A gente resiste. Eu não sabia fazer comida, não tinha talheres, panelas, então eu comia no restaurante. Eu só gastava meu dinheiro para comer. Se acabou meu dinheiro, eu não podia mais comer, porque não sabia cozinhar. Acabou o dinheiro, acabou a comida. Eu comia duas vezes por dia no restaurante, de manhã e de tarde, porque de meio-dia não dava, eu tinha que estudar e aguentar o dia inteiro. As vezes eu comia um pouquinho na escola. Chegava em casa, tomava banho, estudava e ia no restaurante comer. Essa escola que eu ia na capital era particular, minha mãe ajudava a pagar, dos meus irmãos também. Ela mandava dinheiro pra gente comer, aí conseguíamos viver. Eu voltava pra casa dela a cada três meses, de ônibus, porque era longe, Sul para Oeste é longe. Terminei o estudo classic, ensino fundamental e médio aqui no Brasil, e comecei a faculdade, mas por causa da nossa responsabilidade a gente tem que casar, não dá para estudar mais e tem que buscar o sustento para ajudar a família. Eu fiz o curso de História, mas também trabalhava como professor de francês. História e Francês, lá na capital. Aqui tem o Ensino Médio, mas lá não, lá a gente entra em tudo para ensinar, não tem barreiras pra fazer a história. Por causa da minha responsabilidade eu não consegui terminar o curso, fiz dois anos. Desse tempo faltava três anos para terminar, mas, infelizmente, tive que buscar um serviço, buscar aula pra dar, e tinha que pagar e eu não tinha dinheiro pra pagar… Era muito cara e ainda é bem cara. Pra fazer uma faculdade lá tem que ter dinheiro na mão. Tem universidade pública também, mas não é fácil de entrar. Particular a gente entrava, mas tem que ter dinheiro. Faz cinco anos que eu não estou lá, não sei como está agora, mas quando eu estava lá tinha uma universidade pública que continha várias faculdades. O governo paga, a gente entra, tem vários cursos. Não sei se ainda tem. No Haiti tem dez Departamentos, e acho que agora tem uma faculdade em cada Departamento. Lá na capital eu tive que sair na rua pra ver como funcionava, tinha que conhecer, fazer amizades, porque lá é diferente. Quando eu morava no Sul eu era bem fechado, mas quando cheguei na capital tive que mudar, é uma vida diferente, precisa ser mais aberto,   39 conversar… Porque aquelas pessoas também vieram de outras cidades pra morar lá, eles também precisam de alguém pra fazer amizades, pra discutir alguma coisa. Isso não foi tão difícil pra mim porque na escola eu fazia amizades. Em casa eu ficava sozinho, mas como estava estudando na escola, com amigo, aí é mais fácil de se adaptar porque já tinha alguém pra se relacionar. Mas fora da escola eu não fazia outras coisas além de estudar em casa e ir para o restaurante comer. Eu comecei trabalhar em Porto Príncipe quando eu tinha dezoito anos, comecei dar aulas. Não tenho outra profissão a não ser dar aula para ganhar dinheiro. Sem dinheiro na mão não dá pra viver, não é como aqui no Brasil que você pode trabalhar enquanto estuda. Lá é muito difícil de ter um serviço, tem que ter força. Se você tem conhecimento dá pra ter serviço, mas se você não tem conhecimento você vai sofrer muito. A minha concepção é que se eu saio da minha cidade e entro na capital eu tenho que fazer o valor do meu povo. É assim, a gente não quer fazer qualquer coisa, mas quer fazer uma coisa bem legal, porque se alguém lá do interior chega na capital a gente quer que ele diga: "Vi o Louis na cidade, ele está fazendo uma coisa bem legal". Tem outros serviços que dá pra fazer, mas eu não quero fazer. Eu quero dar aula, eu gosto de fazer isso. Antes de chegar no Brasil eu dei aula por dezessete anos. Essa marca aqui no meu dedo é de caneta. Minha vida é dar aula. *** Antes de sair do Haiti para vir ao Brasil, tinha gente da polícia que chegava lá para dar um pouco de paz. Eu escutei pessoas falando que eram brasileiros, mas eu não sabia português para chegar perto e falar, cumprimentar. Então, antes de vir para o Brasil, eu não havia conversado com nenhum brasileiro, porque o idioma é bem complicado e difícil de entender. Eu aprendi só quando cheguei aqui no Brasil. Eu falo, sempre digo assim, que o português é o idioma mais difícil pra gente aprender. Quando entrei aqui no país eu pensei que iria viver com a fé, porque se não sabia o idioma como iria na rua buscar um serviço? É complicado. *** Quando aconteceu o terremoto, em 2010, eu morava na capital, lugar onde aconteceu mais estragos e sofrimento. Ninguém da minha família foi atingido, mas na vizinhança, na rua que eu morava, bastante gente morreu ou sofreu, perdeu tudo, ficou só com a roupa do corpo, ficou sem nada. Assim muita gente tentou viajar para se resolver, para buscar outra vida. Demorou mais ou menos quatro anos para as pessoas recomeçarem por lá. Ainda tem gente que não está conseguindo se levantar, porque quebrou, destruiu tudo e ficou sem nada, então demora para recomeçar, mas agora o governo faz algum esforço para arrumar as coisas, apesar de que a política lá fica pior a cada dia, faz o povo sofrer muito. Se você não   40 tem algum conhecido ou familiar no governo você não consegue viver bem. Cada dia que passa fica pior. Um professor de História tem que saber bem como é a política, então eu conhecia a política no Haiti, e era complicado, não era fácil. Se você quer entrar na política lá, ficar à frente, você pode até morrer, é perigoso. Houve um acordo entre os governos do Haiti e do Brasil, depois do terremoto, que permitiu a nossa entrada aqui. Mas não é o governo que paga pra gente, então se você não tiver dinheiro, você não sai do Haiti. Eu saí do Haiti e fui para a República Dominicana. De lá, peguei um avião para o Equador e, do Equador entrei no Peru, para, então entrar no Brasil, pelo Acre. Demorou um pouco para fazer a documentação e encontrar um lugar pra ficar, porque no Acre não tem serviço, é um estado difícil de viver, complicado. Se ficasse lá seria pesado o dia a dia. Nós resolvemos sair do Haiti para buscar uma outra vida. Lá não tem como trabalhar e meu filho tá crescendo, eu preciso ajudar ele, buscar uma vida melhor, buscar um serviço e viver bem. Se você está no Haiti sem trabalho, fica pesado. Quando eu saí de lá, em 2013, eu estava sem trabalho. Não tinha serviço pra mim porque o terremoto destruiu tudo, não tinha lugar para dar aula. Sair de lá e não saber pra onde ir é complicado. Vir para o Brasil e não saber o idioma, não saber pra onde ir nesse país, sem parentes, nem amigos. Sair do Haiti e chegar no Acre pra mim foi um inferno. Quando entrei no Acre tinha muitos haitianos. Faltava comida, faltava água, faltava tudo, mas eu aguentava, não tinha o que fazer. Eu não entendia nada, por três dias eu não falei nada, só escutava o povo falando. Eu sabia um pouco de espanhol, então, com isso eu tentava falar, aprender, escutar e olhar a boca das pessoas enquanto elas falam, e deus me ajudou, porque até hoje eu nunca fui na escola aprender português, consigo me comunicar, não muito bem, mas consigo me defender. De qualquer maneira, cheguei no Acre e percebi que não dava pra ficar, que tinha que buscar um lugar melhor. Eu não tinha nada, não tinha dinheiro, nenhum parente ou um amigo pra dizer que “pronto, vou lá no sul do Brasil, vou lá em Santa Catarina”, não. Eu não sabia que existia Santa Catarina. Eu só sabia que existia São Paulo e Porto Alegre, quando eu estava lá no Haiti. Mas felizmente eu vim parar em Santa Catarina, que para mim é um estado melhor que São Paulo... Só tem um pouquinho de frio. Eu decidi que tentaria entrar no Brasil, pra ver se conseguiria ter uma vida melhor, depois desse acordo com o Haiti que todo mundo falava, passava na TV, no jornal. Guardei um pouquinho de dinheiro, porque é muito caro, é bem pesado de um país para o outro, ainda mais sem o visto. Gastei três mil dólares americanos. Se você não tem dinheiro para fazer o trajeto por esses três países, aí é complicado. Agora pra entrar no Brasil é bem mais fácil, é só ir na embaixada pegar o visto e comprar a passagem pra qualquer cidade. Mas na época em que vim para cá não era assim, não dava para pegar o visto, tinha muita gente precisando e todo mundo ia para a embaixada pegar, mas não dava. Então saí do Haiti e fui para a República Dominicana, de ônibus. Fui de avião para o Equador, e de lá fui para o Peru e depois ao Acre, de ônibus.   41 Não trouxe nada além de roupas, dinheiro e uma bíblia. Não dá para trazer outras coisas porque você não sabe pra onde vai. Eu trouxe cinco ou seis peças de roupa, porque não dá pra levar nada pesado, teve lugares que eu cruzei a fronteira a pé. Depois que entra na Polícia Federal e pega o documento está tudo bem, mas antes eu fiz alguma coisa escondida pra chegar aqui, como no Peru, lá o povo acha que haitiano tem dinheiro na mão e que a gente tem que dar dinheiro para poder passar. A bíblia eu trouxe porque a gente sabe que é uma jornada difícil, que a gente não sabe pra onde vai, em que país vai parar, não sabe o idioma, mas a gente sai com a palavra de deus no coração e fé de que vai dar tudo certo e que a gente vai chegar. Por isso a gente traz uma bíblia. Aos amigos, quando saí do Haiti, eu avisei que iria viajar e não sabia quando voltaria porque não tinha o visto. Não sabia se voltaria em um ano, dois anos, três. Tem quem deseja boa sorte e que tudo dê certo, como também tem quem chora, depende do coração da pessoa. Mas não falei pra todo mundo, falei com as pessoas mais próximas que eu estava saindo. Não fui de porta em porta dizendo "vou amanhã", pois isso não é importante, apenas para as pessoas mais próximas, por uma questão de respeito. Pra conseguir sair fácil é preciso ter dinheiro, senão tem que guardar durante meses e comprar dólar, porque não dá pra viajar com a moeda do Haiti. Em todos os países a gente gasta dólar. Dá pra conseguir o dinheiro um pouco mais rápido se tiver alguém para ajudar, outras pessoas em outros países, por exemplo, nos Estados Unidos ou na França. Mas se não tem, se é só você que está trabalhando, aí demora um ano, dois anos. Eu recebi ajuda da minha família, mas do Governo não. A gente gastava bastante dinheiro pra sair naquela época porque cada lugar que a gente entrava tinha que dar um pouco de dinheiro pra alguém, eles imaginam que a gente tem dinheiro porque está viajando e quem viaja tem que ter dinheiro. Então as pessoas chegam na sua frente dizendo que precisam de dinheiro, precisam de ajuda, que tem que dar senão não vai dar certo, mas, graças a deus, eu consegui passar e chegar aqui no Brasil, porque entrar no Brasil não era fácil. Eu fiquei cinco dias na República Dominicana, e cinco dias também no Equador, em hoteis, o restante do tempo foi do trajeto entre o Equador e o Acre. Saí lá do Haiti no dia 13 de dezembro de 2013 e cheguei no Brasil no dia 29 de dezembro. O trajeto Haiti-Brasil demorou dezesseis dias. Pra eu chegar aqui em Santa Catarina, a empresa que eu trabalho mandou buscar a gente, eu e mais nove pessoas, lá no Acre. Chegamos em Xanxerê no dia 21 de janeiro de 2014, com serviço na mão e continuo nesse trabalho até hoje. Fiz parte do primeiro grupo de haitianos, trinta e quatro no total, que veio do Acre para Xanxerê para trabalhar em empresas. Eu não conhecia outros lugares aqui no Brasil, então eu iria onde conseguisse. Eu não tinha ninguém aqui, então saí para ir a qualquer lugar, qualquer cidade que fosse me   42 acolher. Aí cheguei em Santa Catarina, em Xanxerê, para viver, mas, até então, eu não sabia que existia uma cidade chamada Xanxerê. Durante um ano a empresa pagou o aluguel da minha casa e depois comecei a pagar. Lá no Acre todo mundo ficava junto, e era muita gente, então ninguém conhecia ninguém. Aqui em Xanxerê que eu comecei a me comunicar, a fazer amizades com os outros haitianos que vieram comigo para cá. Os primeiros brasileiros com quem comecei conversar foram da empresa também, porque eu tentava falar, explicar, dizer o que precisava, então comecei me comunicar em português. O salário era bem baixo, R$892 por mês, e eu deixei minha família lá. Mas ainda assim estava bem melhor que hoje, porque o dólar custava R$2,15 e agora custa R$4. Se a gente tinha R$500 pra mandar lá para o Haiti, esse valor se transformava em duzentos e poucos dólares. Hoje, esses R$500 valem cento e poucos dólares americanos. O salário estava bem baixo, mas a gente ganhava mais dólares, hoje a gente ganha um pouquinho a mais em reais, mas o dólar custa muito e é nessa moeda que precisamos mandar para o Haiti. Eu tive aumento de salário, mas não muda nada porque, apesar de ganhar um pouquinho mais, a responsabilidade aumenta. Eu estava sozinho aqui, minha família estava no Haiti, mas depois que eles vieram - faz três anos e fizeram o mesmo trajeto que eu - para o Brasil a gente passou a gastar mais, então não dá para guardar dinheiro mais. Para mim o Brasil é um país pra gente viver apenas, aqui não dá pra guardar dinheiro. A gente trabalha, ganha, paga as contas e se alimenta, mas guardar dinheiro? Não dá. Eu tenho intenção de estudar, mas o foco não é esse, eu vim aqui para trabalhar, ganhar dinheiro, ajudar minha família. Agora vou batalhar para o meu filho estudar. Eu sou velho já. *** Em Xanxerê há uma associação de haitianos, da qual sou o presidente. Com essa associação, criada em 12 de setembro de 2016, a gente tenta resolver os problemas que existem entre nós. Sempre tem problema, mas sempre tentamos resolver. Ali eles compreendem que nós somos irmãos e que se precisar de alguma coisa, dá pra ajudar. E por isso a gente tenta fazer a organização com algum amigo brasileiro, como o Delcio, a Leci, o Tiago, a Fernanda e demais… É tranquilo conviver com essas pessoas, pois são um povo bem educado. Então, quando há alguma dificuldade, a gente tenta se ajudar. Setenta haitianos se registraram na associação, mas em torno de duzentos e cinquenta frequentam sem serem membros. Todos os meses nos encontramos para saber se alguém está com alguma dificuldade, por exemplo, se você chegar aqui e não tem lugar para ficar, ou precisa fazer os documentos na Polícia Federal, ou não tem dinheiro, é só chamar o presidente que ele e a associação darão um jeito. Estamos sempre fazendo isso, ajudando fazer o CPF, carteira de trabalho, nos depósitos para pegar o visto - que custa R$311, na alimentação. Na associação também fazemos campeonatos de futebol, ceia de natal. Quando estamos reunidos   43 falamos crioulo, mas se tem algum brasileiro a gente fala um pouco de português. Vários haitianos estão falando português agora e melhor que eu. Um deles está estudando na UFFS, inclusive, Ciência da Computação. *** Quando eu estou aqui no Brasil, o que eu mais sinto falta do Haiti é a comida de lá, porque aqui não tem nada do que a gente costuma comer. Por exemplo, banana verde aqui em Santa Catarina não tem. Inhame, cabrito, peixe do mar, aqui não tem. Tenho bastante saudade e vontade de voltar pro Haiti. É o meu país. Acho que se voltar para lá vai ser uma outra vida. Voltar e consegui dar aula vai mudar a minha vida, porque aqui o meu serviço é pesado, eu trabalho no carregamento e não recebo muito por isso, dá apenas para pagar as contas. Então tenho que pensar em ir para outro lugar que me proporcione uma vida melhor. Estou batalhando para isso, mas não é fácil sobrar dinheiro, e pra ir é preciso ter dinheiro na mão pra quando chegar em outro lugar. Se eu quiser ir pra Guiana Francesa agora é só comprar passagem daqui até Macapá, de lá entra na Guiana Francesa, mas tem que ter dinheiro pra quando chegar lá e não depender dos outros, encontrar uma casa e começar a vida. Se não der pra começar, fica onde está. Tenho intenção de sair, mas agora não vai dar, agora está pesado, não dá para sair com as mãos vazias, tenho que guardar um pouco de dinheiro. Se tivesse possibilidade e dinheiro hoje, voltaríamos para o Haiti, com certeza, é o meu país, é meu sonho voltar e viver bem lá, voltar para o sul onde minha mãe morava. Voltar para o interior vai ser melhor para a gente viver, não vai ter tanto lixo, barulho. Se der pra voltar para lá, eu vou voltar, mas não agora. Eu tenho sonhos, mas não vou falar sobre eles. Tenho vários, mas o principal eu não vou falar porque é bem pesado e talvez dê para pensar "esse não vai realizar", mas eu penso que sim, que talvez amanhã vai dar certo e esse sonho se realiza pra mim, por isso não vou falar sobre isso. 3.2 MARIE MERLANDE DIVERS Meu nome é Marie Merlande Divers, tenho 27 anos. Nasci em 1991 na cidade dos meus avós, que é Abricot e fica na região Sul do Haiti. Hoje eu estou no Haiti, pois vim visitar minha família e tive que ficar mais tempo por problemas de saúde, mas pretendo retornar ao Brasil em breve. Acho que minha história é um pouco longa, mas eu vou tentar contar.   44 Fotografia 2: Marie em 2017, na Universidade Federal da Fronteira Sul, Campus Chapecó. Foto: Disponibilizada por Marie Merlande Divers. Eu cresci com a minha avó e meu avô. A minha avó era comerciante e meu avô, ele fazia de tudo, por que ele trabalhava no campo, horta, essas coisas. Quando eu nasci, minha mãe tinha 18 anos, ela teve que me deixar com os parentes dela pra poder ir pra cidade e terminar os estudos. Então eu morei por dois anos com meus avós no interior e minha mãe morava na cidade. Sobre gerações anteriores, eu só sei que a minha bisavó morreu bem cedo, e que minha avó foi criada por uma tia. Quando minha mãe engravidou de mim, todo mundo me detestava, mas depois que eu nasci, todo mundo me amou. Como eu sou a primeira neta da família e minha avó tem nove filhos, era legal, pois eu achava que todos os meus tios e tias eram minha mãe e meu pai. Quando um deles não me deixava fazer alguma coisa, eu ia perguntar para outro na esperança de que esse deixasse. A gente se reunia no dia das mães, no Natal, dia das crianças e essas datas especiais, fazíamos comida e ficávamos juntos. Infelizmente, hoje mandamos presentes e é só isso. Sempre tivemos sorte de não sermos atingidos por catástrofes naturais. Apenas em 2016, com o furacão, a casa da minha mãe foi atingida em parte e da minha avó inteira, mas agora minha avó construiu uma casa em outro terreno e tudo está bem. Para falar um pouco mais dos meus pais, quando minha mãe engravidou acho que ela tinha 18 anos e o meu pai 20. Pelo fato da minha mãe ser muito jovem, houve uma briga entre as famílias: a do meu pai queria que eu ficasse com eles, e a da minha mãe queria a mesma coisa. A família do meu pai disse que minha mãe teria que escolher: ou eu iria morar com a família do meu pai e eles cuidariam de mim, ou eu fico com a família da minha mãe e meu pai não vai buscar saber nada de mim. Nesse momento, o meu avô, que tinha expulsado a minha mãe de casa quando ela engravidou, disse para minha mãe cuidar de mim, que eles iam   45 ajudar. Depois que nasci, o meu avô materno me assumiu e é por isso que o meu sobrenome é o sobrenome do meu avô. Assim, eu cresci com a família da minha mãe e não sei muitas coisas da família do meu pai, só sei que ele tem irmãos e que um deles, o homem, me cumprimenta. A minha mãe engravidou enquanto estava no ensino médio, era muito jovem. Com dois anos, fui morar com ela e com uma prima dela. Depois de um tempo fomos morar sozinhas: eu, minha mãe e uma empregada, até meus 10 anos. O namorado da minha mãe não morava conosco, mas eu tinha uma boa relação com ele, inclusive acreditava que ele era o meu pai. Depois, dois irmãos da minha mãe vieram morar conosco, e moramos juntos até o ano que saí da minha cidade, acho que em 2010. Também tenho um irmão, ele tem 18 anos agora e nasceu na cidade em que minha mãe estava morando, Jeremie. Meus avós moravam numa região mais de interior, Abricot, e minha mãe mais no centro urbano, podemos dizer assim. Mapa 4: Mapa do Haiti. Em vermelho, sinalizada região que Marie morou na infância nas cidades de Abricots e Jeremias. Fonte: GoogleMaps. Fui descobrir quem realmente era meu pai quando eu tinha entre 11 e 12 anos. Eu estava na capital durante as férias, e meu pai, que morava lá, e ele falou pra minha mãe que queria me levar pra sair. Saímos e ele me perguntou: “você sabe quem eu sou?”, e eu disse que ele era amigo da minha mãe, ele respondeu: “Não, eu sou bem mais do que isso, porque eu sou seu pai!”. Quando ele disse isso, eu comecei a chorar e pedir pela minha mãe, aquilo parecia muito estranho para mim. Quando encontrei a minha mãe e a questionei do por que nunca tinha me contado que ele era meu pai, ela me disse: “Porque você não precisava dele, você tinha tudo o que você precisava, o pai que você precisava você tinha”. Ela pediu se eu queria colocar o nome dele na minha certidão de nascimento, mas eu disse que não, eu não gostava dele na época, mas depois desse dia passei a ter algum tipo de contato com ele. ***   46 Acho que a lembrança mais antiga que eu tenho, é de uma sorveteria que tinha perto da minha casa, quando eu tinha uns seis anos. Quem trabalhava na sorveteria era um homem branco, ele não era haitiano e estava no Haiti para trabalhar. Eu gostava de sorvete, como qualquer criança, mas a minha mãe não me deixava comer todos os dias, então eu e minhas amigas íamos na frente da sorveteria e ficávamos dançando para o homem, que depois nos dava sorvete. Eu dizia pra minha mãe que ia na casa da minha amiga que morava na casa da frente, e só tinha meninas na casa, então ela deixava, e a gente ia pra frente da sorveteria dançar pra ganhar o sorvete. Semana passada estava contando isso para minha mãe e ela achou a maior graça! Mas na época ela não queria que eu ficasse comendo doce. Morávamos em uma rua bem pequeninha, com poucas casas, mas a escolinha que eu frequentei ficava bem perto da minha casa. Era tão pequeno que todo mundo se conhecia e todas as crianças da rua eram amigas. Depois disso, nos mudamos para uma outra casa, onde tinham várias empresas, mas não tinha muita casa ou crianças pra brincar. Essas casas minha mãe alugava e ficava mais no centro. Mais tarde minha mãe conseguiu construir a casa dela num lugar mais afastado, então fomos morar nessa casa quando eu tinha uns doze anos, e fiquei até os meus dezoito anos. Nesse momento, minha mãe já era casada, então morávamos eu, minha mãe, meu irmão, o marido de minha mãe e mais dois irmãos dela. Em geral, na minha infância, eu não tive muito lazer por que a mãe não me deixava sair. A maior parte do tempo eu passei em casa estudando e vendo filme. Eu ia pra escola às oito horas da manhã, voltava pra casa meio dia e meia, voltava pra escola às duas horas da tarde e só voltava pra casa às dezessete horas. Passava quase o tempo todo na escola. Comecei a estudar com três anos, na escolinha. Nessa época, com uns três aninhos, eu tinha alguns joguinhos e brinquedos que não sei o nome em português, mas é bem comum no Haiti: são aquelas forminhas que colocávamos areia dentro, e usávamos para montar castelos e outras coisas, além da massa modeladora. Era com essas coisas que brincávamos. Eu tenho uma dificuldade em diferenciar brincar de brigar quando falo português, mas além de brincar eu brigava também, brigava muito. Teve até uma vez que eu quase quebrei o braço de uma menina, mas vou contar o que aconteceu: na escola, montávamos grupos para realizar algumas tarefas, tínhamos amigos que montavam seus grupos e um dia a menina queria entrar no nosso grupo e nós falamos que não. Ela ficou chateada e enfiou um lápis dentro do meu olho! A diretora chamou a minha mãe, e tivemos que comprar passagem de avião para a capital no mesmo dia. Fiquei duas semanas na capital cuidando do meu olho. Quando voltei pra escola eu a encontrei na escada e a empurrei, ela caiu e quase quebrou o braço. Quando a diretora me chamou pra saber por que eu tinha feito aquilo eu disse: “Sabe por que? Porque ela enfiou o lápis dentro do meu olho e ninguém falou nada! A mãe dela nem foi me visitar!”. Eu estudei em escola católica e tinha que ir na missa todo santo domingo e eu frequentava a igreja católica nessa época. Mais tarde eu participei um ano da adventista e agora estou fazendo estudo com os Testemunhas de Jeová. Pra falar a verdade eu já participei de todas as religiões que tem no Haiti. Durante a infância eu aprendi ao mesmo tempo duas línguas, o francês e o crioulo, porque minha mãe falava um pouco das duas línguas comigo, mas na escola, a gente só falava francês. Já os meus avós só falavam crioulo, eles até sabiam algumas coisas em francês, mas só se aprende bem o francês na escola, e minha avó estudou bem pouco. Apesar de falarem muito mais o crioulo, quando eu estava na casa dela ela tentava falar francês comigo também.   47 Minha avó, quando eu era pequena, ia numa igreja Batista, porque o Pastor era marido da prima dela, filha da tia que criou a minha avó. Ela até me levou algumas vezes nesta igreja, mas eu não lembro de ver ou saber que meu avô frequentava alguma igreja, eu não sei se ele praticava Vodu escondido, mas geralmente quem pratica Vodu, é escondido. Eu não sei de ninguém da minha família que tenha praticado, inclusive quando eu tava crescendo a minha mãe e minha avó me ensinaram a não praticar, porque quando você pratica tem tendência a fazer mal para as pessoas. Até o momento eu não fui, nem pra matar a curiosidade, tenho um pouco de medo. Não sei até que ponto isso é verdade, sei que tem pessoas que vão lá pra matar e fazer coisas ruins, mas tem muitas pessoas que praticam porque é a religião delas, simples assim. Eles sempre disseram pra mim não ir, mas isso não significa que eles não tenham ido, porque como eu disse, quem pratica geralmente faz isso escondido. Sobre as escola, eu comecei na escolinha, que era paga. Essa etapa dura três anos: no primeiro ano eles ensinam as cores, formatos, ensinam as palavras mágicas, cantar, coisas assim. No segundo ano começamos a escrever, fazer as letras, ler e interpretar vídeos. No terceiro ano já líamos e escrevíamos tudo, cantávamos, sabíamos as cores, mas não lembro exatamente pois isso faz muito tempo. Mas lembro que nos primeiros anos não nos davam nota numérica, o boletim trazia notas como “come bem”, “come mal”, “canta bem”, e no terceiro ano começam a dar nota. Era uma escola de meninos e meninas, e nessa escola só tem esse nível, de escolinha, estuda dos três até os seis anos, depois disso você muda pra escola que tem primário. A escola do primário também era perto da minha casa, porque era um cidade bem pequeninha. Nessa escola comecei a aprender as coisas da vida, a montar frases. Nessa etapa você estuda seis anos nessa escola e quando chega no sexto ano você precisa realizar uma prova de nível federal, como se fosse o ENEM: se você passar nessa prova, você vai pro secundário e se não passar, vai ter que repetir os estudos de novo, pode repetir até três vezes. Essa escola era católica, mas também era paga e tinha tanto meninos quanto meninas. Aprendíamos coisas da igreja em Religião, tínhamos que aprender a rezar e tinha até prova sobre isso. Não era obrigatório ser católico pra estudar lá, nem todos os professores eram, mas se não fosse católico tinha que apresentar uma carteirinha pra diretora que provasse que você é de alguma religião, o pastor da sua igreja precisa assinar essa carteirinha. Nesse período eu era bem tímida, mas também muito inteligente. Eu ajudava os colegas em matemática, porque eu gostava, então nem todo mundo, mas a maioria das pessoas me amava. Ainda hoje os professores lembram de mim e eu os visito quando vou pra minha cidade. Nessa fase escolar eu já comecei a aprender espanhol e inglês na escola, e eu tinha mais facilidade com o espanhol, mas eu tive que dar um jeito de aprender inglês, porque tinha que passar na prova. É interessante também que nessa escola, apesar de ser Católica e ser no Haiti, é proibido na escola falar crioulo. Dentro da escola, na sala de aula, no pátio da escola, na rua, se você estiver de uniforme, você precisa falar francês e isso nos é cobrado. Por exemplo, na sala de aula tem um bichinho de plástico, que lá é chamado simbole, e se você falar uma palavra em crioulo, você vai ficar com o bichinho até que outra pessoa fale em crioulo, pra então você poder passar o simbole para aquela pessoa. Todo dia que o bichinho ficar com você, você vai ter que pagar em dinheiro, como uma multa de uns dez reais, e eu já tive que pagar. Tem mais algumas coisas interessantes que são bem diferentes entre as escolas do Haiti e do Brasil e uma delas é o uniforme, porque no Brasil cada pessoa pode ir pra escola   48 como quiser e no Haiti tem uniforme e ele precisa ser respeitado. A saia que usávamos tinha que ficar para baixo do joelho, se ela estiver acima, não vai ser permitido entrar na escola. Se fosse homem, tem que ir de calça de tecido, camisa de manga comprida e gravata, não podia ir de tênis ou camiseta ou calça jeans. Outra coisa é o cabelo, pois a maioria das crianças aqui no Haiti tem cabelo crespo e cacheado, porque aqui não tem brancos, só tem negros e miscigenados nas escolas, e eu não podia ir na escola com o cabelo solto, ele tinha que ser penteado e amarrado. Também não pode trançar e fazer nagô no cabelo pra ir pra escola, não pode botar aplique nas tranças nem fazer dreads, você não pode. Pra poder entrar na escola, só amarrado. Digamos que você poderia fazer umas três tranças, mas nagô, aplique, dread, não. O cabelo dos meninos tinha que ser curto, as vezes, quando começava a crescer, eles mandavam a criança pra casa pra cortar o cabelo, e o mesmo acontecia com as unhas. E tudo isso eles diziam ser necessário por que não era ético estudante fazer essas coisas, as justificativas eram coisas bobas assim. Com relação ao que tinha perto da minha casa, não tinha um atendimento de saúde muito perto, mas tinha. Na verdade, quanto a gente tem uma doença tomamos chá antes de tudo, aí se não passar, vamos pro hospital. Tinha na mesma rua da minha casa um cinema que eu sempre ia. Foi lá que eu assisti “Titanic” e “O Príncipe em Nova York”. Esses filmes eram sempre legendados ou dublados em francês, por que não tem cinema que vai passar um filme em crioulo, a não ser que seja um filme haitiano. *** O que marcou a minha passagem da infância para a adolescência foi quando eu menstruei pela primeira vez, porque foi quando pensei “eu não sou mais criança”. A primeira menstruação foi um caso interessante, porque eu tinha muito medo da minha mãe e do que ela diria se soubesse, então eu não consegui contar pra minha mãe. Além do medo, era vergonha e um conjunto de vários sentimentos. Nesse período meu corpo estava mudando, eu engordei e meus seios estavam crescendo e minha mãe até disse: “não vai demorar pra chegar sua menstruação”. Eu estava de férias e estava jogando baralho com uns amigos quando senti algo na minha calcinha e quando fui ver era sangue. Eu não sabia de nada sobre isso e fiquei um tanto desesperada, mas tinha medo de contar para minha mãe, então acabei contando primeiro pra minha tia que morava conosco. Minha tia ficou feliz e disse que eu tinha que contar para a minha mãe, e eu disse que faria isso quando ela voltasse do trabalho. Eu não tive coragem e no outro dia minha tia me disse: “se você não contar, eu conto”. Como não tinha coragem de falar, escrevi uma carta e quando ela estava saindo pro trabalho eu disse que tinha que contar algo a ela. Entreguei a carta e pedi para que lesse apenas quando voltasse do trabalho. Então ela foi, mas acho que leu assim que chegou no trabalho e voltou pra casa dizendo: “meu deus do céu, e você não me contou! Você escreve numa carta pra mim!”. A partir desse momento, minha mãe começou a me contar algumas coisas da vida, me explicando que eu precisava tomar alguns cuidados, que eu poderia engravidar e por isso não deveria me relacionar antes dos dezoito anos, e eu tinha só onze ou doze, dizia que tinha pelo menos que terminar o ensino médio pra me relacionar. Como eu poderia engravidar, quem cuidaria do meu filho se isso acontecesse? Ela me dizia: “será que você vai conseguir cuidar de um menino agora?”, e quando eu dizia não, ela respondia: “então você tem que esperar”. Eu comecei a me achar mocinha e queria fazer várias coisas. Quis alisar meu cabelo e aí a minha mãe alisou. Com uns doze anos, eu amava um menino que morava perto de casa, eu mal conseguia olhar no olho dele. Eu ia toda bonitinha pra ele ver, mas quando ele falava   49 comigo eu dizia que não queria falar com ele e que minha mãe me proibia de falar com meninos. Com treze anos comecei a namorar com ele e quando ele falava que queria me beijar eu dizia que não, que eu não podia beijá-lo. Como resposta ele dizia que agora eu era sua namorada, devíamos nos beijar, mas eu não deixava, pois ele teria que esperar eu ter dezoito anos. Então ele disse que ficaria na frente da minha casa até que eu o beijasse. O problema era que minha mãe não podia vê-lo ali, mas ele ia na frente da minha casa todos os dias. Então certo dia eu fui lá e dei um beijinho nele e saí correndo! Mais tarde, ele foi morar nos Estados Unidos com a família dele. Namoramos a distância por um ano, ele me ligava quase todos os dias, mas depois terminamos. Depois desse término fiquei bastante tempo sem namorar. Namorei quando eu tinha cerca de 16 anos: namorei um tempo, terminamos, namorei outro… Mas quando eu comecei a namorar essas pessoas, era pra conversar mesmo, eu era uma pessoa muito tímida. Eu começava a namorar a pessoa, mas depois que falava que estávamos namorando, eu não queria mais ver a pessoa, porque eu não queria beijar e nem sair com a pessoa, aí terminávamos. Foi com uns 19 anos que eu comecei a namorar sério com um menino, namoramos por cerca de dois anos. Com ele que aprendi a beijar, fazer sexo, e um monte de coisas. Depois de dois anos me mudei pra capital e ele ficou na minha cidade. Namoramos por um tempo, mas depois eu terminei com ele, quando eu já estava na universidade. Durante a minha adolescência eu não saía muito. Minha mãe me deixava sair mais a tarde, então eu saía as vezes com as amigas. Durante à noite eu saía só se fosse com a minha mãe, ou pessoas mais velhas da família, até hoje que sou velha e estou aqui, minha mãe me diz pra não sair à noite. Na verdade, as mães de algumas amigas minhas eram mais liberais, então eu dizia pra minha mãe que dormiria na casa de uma amiga, mas da casa dela íamos pra festas e baladas. Essas festas que íamos eram geralmente eventos que faziam concurso de interpretar as músicas que estavam na moda, você se inscreve e interpreta. Nós adorávamos esse tipo de festa. Nesses momentos, entre amigos, sempre falávamos em crioulo, era muito raro falarmos em francês. Nessa época eu frequentava o Ensino Médio. Já não era a mesma escola das outras etapas, mas eram os mesmos princípios. Ainda tinha o simbole para quem falasse crioulo. Assim que terminei o Ensino Médio eu fui morar na capital, Porto Príncipe. Minha mãe nesse momento já morava lá, pois ela estava muito doente e sofrendo bastante. Quando eu tinha 16 anos eu fiquei na cidade com minha tia, pra estudar, e ela se mudou pra capital para ter melhor acompanhamento médico. No Haiti tem a Universidade que seria como uma Federal, só na Capital. Lá também ficam as melhores universidades privadas. Mas se você não for pra capital, com certeza terá que pagar uma privada. Então, fui morar com a minha mãe pra estudar na capital, e fiz as provas para a universidade pública e uma privada, porque se eu não passasse na pública, não poderia ficar um ano sem estudar. Primeiro, passei na universidade privada e cursei por um mês Administração, até que saiu o resultado que eu passei na Universidade Pública em Direito. Eu fui estudar Direito porque eu tenho uma tia que é juíza, e pra ela, todo mundo precisa fazer Direito. Ela dizia pra eu cursar esse curso e trabalhar com ela. Comecei a gostar da ideia e por isso fiz a prova e passei em Direito, Agronomia e Relações Internacionais, mas cursei Direito, cursei por três anos e faltava um ano pra me formar quando fui pro Brasil. Eu gostava do curso de Direito, mais ou menos. Mas eu comecei a perceber que eu estava estudando mais pela minha tia do que por mim. Foi aí que comecei a falar que eu queria estudar outra coisa e estudar fora do país, porque aqui no Haiti também tem essa   50 questão: todo mundo quer estudar fora, em uma universidade internacional, ter um diploma internacional e depois volta pro país para trabalhar. E sobre as universidade que estudei, eu gostava mais da privada, porque na pública ninguém dá bola pra você. Se você quiser estudar, você estuda, mas se não quiser, ninguém vai te cobrar. Os professores não ligam muito pra você, eles dizem que não são seus pais para te dizer se você precisa estudar ou não, então você que escolhe, pode ficar na sala vendo aula ou lá fora com seus amigos, que ninguém te dá atenção. Além da minha tia que é juíza, não tem muita pessoas da minha família que são formadas. A minha mãe e uma tia minha começaram o curso de Contabilidade, mas não terminaram. Tem eu, que comecei o Direito e não terminei. Aí só tem quatro tios meus que estão com diploma agora, irmãos da minha mãe. *** Eu não conhecia nenhum brasileiro antes de ir para o Brasil. A possibilidade de ir para o Brasil aconteceu porque eu tinha um amigo, vários na verdade, que estavam estudando no país. Depois do terremoto, o Brasil ofereceu oportunidades de bolsas de estudo pros haitianos e alguns amigos meus estavam estudando na UFRGS. Esses amigos me contaram da oportunidade que estava sendo oferecida pela UFFS e eu aproveitei. Eu já pensava em ir para o Brasil para conhecer, pois eu sempre gostei da Seleção Brasileira, mas nunca imaginei que eu iria estudar no Brasil, imaginava que eu estudaria em outro país. Eu estava procurando oportunidades para estudar fora, e pensava no Canadá porque também tinha amigos lá, no entanto, o processo seria muito mais complicado e demorado do que entrar no Brasil. Eu estava de férias, no final de 2014, e fui pro Equador com uma amiga minha, pois o namorado dela atua como médico no país. Como não precisa ter visto para entrar no Equador, nós fomos. Enquanto estava lá, fiquei sabendo da oportunidade no Brasil e decidi tentar. Fui na embaixada do Brasil no Equador para tirar o visto e consegui. Eu nem voltei pro Haiti, porque o visto sairia no mês de abril de 2015, e o meu amigo me disse que o semestre iniciaria em agosto na UFFS, mas eu precisaria aprender a língua antes. Fiquei no Equador até sair o visto e em abril comprei as passagens e fui ao Brasil. Estudei a língua por alguns meses, em junho fiz a prova, passei e, em agosto, entrei na universidade. Eu fui do Equador ao Brasil de avião, direto para São Paulo. Depois de um dia em São Paulo, vim de ônibus para Chapecó. Como eu já estava no Equador e não fazia ideia que eu não ia voltar pro Haiti, eu não trouxe quase nada comigo para o Brasil. Eu tinha apenas as minhas roupas e um pouco de dinheiro, mais nada! Eu nem me despedi de ninguém quando saí do Haiti, e acho que isso dificultou um pouco o início da minha vida no Brasil, pois eu só queria voltar. Eu deixei o meu país e fui morar em outro país com cultura diferente, comida diferente e língua diferente. Meus primeiros momentos e contatos em Chapecó foram meio estranhos. Logo que cheguei, as pessoas ficavam me olhando e me encarando, o que foi bem estranho pra mim. Perguntei para meu amigo: “Qual o problema? Porque isso está acontecendo?” e ele me disse que não tinha problema nenhum, que eles me olhavam porque eu era preta e que eles não eram acostumados com as pessoas pretas. Isso me chocou muito, e eu perguntei: “mas como assim? Não estamos no Brasil?”. Quando estamos fora do Brasil, o que vemos do país é completamente diferente daquilo que se vê quando vive no lugar. Tem amigos meus que já me disseram: “mas como   51 assim você está falando que no Brasil tem racismo se não tem branco no Brasil?”. Quando eu digo que no Brasil tem brancos, eles insistem comigo que só tem pretos no Brasil. Isso acontece porque as imagens que você vê na mídia, sobre o Brasil, é de pessoas negras ou morenas no carnaval, pessoas como a Taís Araújo que você chama de brasileiros. A gente nunca pensou que teria pessoas brancas no Brasil, por isso, logo que cheguei em Chapecó, eu dizia pro meu amigo que ainda não estávamos no Brasil, que devíamos estar na fronteira. Aconteceram coisas que foram bem estranhas pra mim. Quando eu fui lá no supermercado as pessoas ficam olhando pra mim. Inclusive, teve uma vez que eu fui lá no Brasão Avenida e quando eu estava passando e pagando minhas compras e moça que estava no caixa me atendendo ficou me olhando e disse alguma coisa. Como eu não entendia português ainda, meu amigo me disse que ela tinha pedido para tocar no meu rosto. Eu não estava entendendo nada, mas depois eu disse que sim, que ela poderia tocar. Ela tocou e disse: “ai meu deus do céu, que macia”, e chamou mais pessoas para me ver, dizendo que eu era linda e minha pele macia. Eu só me perguntava: “mas o que é isso gente?”. Neste momento, que eu tinha acabado de chegar, eu não falava absolutamente nada em português. Quando as pessoas estavam conversando em português, ela poderia falar uma frase ou mil frases, para mim, era uma palavra só, era igual chinês! Eu tinha muito dificuldade na pronúncia, eu pronuncio como em inglês ou francês. Mais tarde eu comecei a estudar português lá no Bom Pastor, onde as meninas do curso de letras davam aula, e eu comecei a entender muito melhor. Depois de três meses, eu entendia quase tudo, mas eu não falava, pois tinha medo e vergonha, eu não queria falar nada errado, então fiquei três meses sem falar quase nada. Depois de uns seis meses eu já me comunicava muito bem, entendendo tudo. Outras coisas aconteceram logo nos primeiros meses da minha chegada, formas de preconceito e racismo que eu nunca imaginei que iria passar no Brasil, e isso foi o que mais me chocou no país. Muitas vezes no ônibus as pessoas ficam me olhando, ou não querem sentar do meu lado. Essas coisas que todo haitiano já viveu. Lá na UFFS, aconteceu uma situação que eu entrei na sala e sentei perto de um menino e ele levantou e foi sentar no outro lado da sala. No início, eu só queria voltar pro meu país, eu não iria ficar num país assim. Todo mundo me dizia que eu ia superar, que as coisas dariam certo, e eu dizia que não, eu não ia superar nada, eu não era acostumada a passar por todas essas coisas, sofrer racismo dessa forma. Depois de um ano, eu tinha certeza que queria voltar pro meu país, não estava conseguindo ficar no Brasil, até que eu fiz amizade com a Eliziane, e é com a família dela que vivo hoje no Brasil, e a partir dela, comecei a ter contato com mais pessoas negras em Chapecó, como o Genival e a Gerliane. Com eles, eu comecei a encontrar um mundo, a encontrar o meu mundo um pouco. Apesar de ter amigos, quando eu estava na universidade, na sala de aula ou em outros lugares, tudo, mas tudo mesmo, me mostrava que eu não estava no meu país, no meu lugar. Que eu não estava com meus amigos, que eu não fazia parte dessa sociedade, essas coisas. Alguns dias atrás, uma amiga minha me ligou. Ela é haitiana e cursa a quarta fase de administração na UFFS. Me ligou chorando e dizendo que não aguenta mais tanta humilhação, que na sala de aula todo mundo a deixa de lado, que os colegas não querem fazer trabalhos em grupo com ela e que acabou trancando várias matérias. Eu só pude dizer que as coisas são assim mesmo, porque eu também passei por isso. Eu fui então perguntar pro meu amigo que está estudando na França se essas coisas também acontecem lá, e ele me disse que   52 não, que sempre vão colocar ele em um grupo. Isso me fez pensar que tudo bem que não falamos português como os brasileiros, mas pelo menos você pode ajudar a pessoa e colocar ela no grupo e não deixar a pessoa de fora. Eu acredito que quando você está ajudando uma pessoa, você está ajudando a si mesmo. Todas essas experiências pesam muito todas as vezes que penso que vou voltar ao Brasil, é sempre elas que me vem a mente. Eu estou com muitas saudades do Brasil, porque tenho amigos, pessoas legais que eu quero ver de novo, que eu quero abraçar, conversar, tudo isso. Mas ao mesmo tempo, eu penso que quando voltar ao Brasil para terminar os estudos, eu vou pra universidade, pra academia, para o mercado e pegar ônibus, e todas essas coisas vão se repetir e são coisas que eu não vou me acostumar a passar. Eu conheci algumas outras cidades aqui, fiquei alguns dias em Florianópolis e outros em Porto Alegre. Inclusive cheguei a trabalhar em Florianópolis, na praia, mas fiquei só uma semana. Tinha uma senhora que trabalhava no mesmo restaurante que trabalhei, que não consegui aguentar. A chefe de cozinha era muito legal, me cumprimentava e fala bem de mim, dizia que eu era muito inteligente, que poderia até deixar o restaurante pra que eu cuidasse, que eu daria conta porque aprendo muito rápido. Já para a outra senhora que trabalhava lá, tudo o que eu fazia pra ela era errado, e sempre que falava algo e eram coisas como: “ah, ela não ia conseguir porque essas pretas são preguiçosas”. Ela sempre falava essas coisas para tudo o que eu fazia, então eu decidi sair, porque eu não ia aguentar aquilo calada e ia xingar a senhora, mas pra não fazer isso, já que ela está no país dela, eu saí depois de uma semana. Quando saí do restaurante, fiquei procurando outros trabalhos, mas não encontrei. Procurar trabalho no Brasil sempre foi algo difícil pra mim. Teve outras vezes que eu estava procurando, aí nas empresas eu encontro homens que me dizem coisas como: “vamos morar juntos, fica comigo que depois eu arrumo um trabalho pra você”. Até que eu desisti. Eu não vou mais procurar trabalho, eu vou ficar estudando apenas. Eu prefiro evitar algumas coisas também, por isso não vou em alguns lugares no Brasil, nas baladas, por exemplo. Se eu vou na balada, a pessoa vai falar comigo e eu sei que vou sofrer racismo, vou sofrer algumas coisas, vão mexer na minha bunda, e eu não vou ficar sem fazer nada, vou xingar. Então eu prefiro ficar na minha casa porque tenho amigas que já me contaram tudo do que aconteceu com elas nesses lugares. Acho que todas as vezes que eu estou na rua eu sinto a diferença de ser uma imigrante mulher e negra, porque acontecem coisas como um carro parar e um homem perguntar pra mim algo como: “você quer ir pra um motel comigo? Você não está com vontade de fazer sexo?”. Na hora de procurar emprego acontece o tempo todo das pessoas me falarem que “essa vaga de emprego não é pra mulher”, “não é trabalho de mulher fazer” ou “estamos procurando um homem”. Então são experiências que eu poderia ter, mas vou acabar não tendo, porque tem lugares que eu não vou no Brasil. Acho que os relacionamentos entre os próprios homens haitianos é mais forte entre eles do que com os brasileiro, porque dificilmente se vê um caso onde o haitiano tenha como um amigo de verdade um brasileiro. Mas eu não posso dizer que isso não aconteça por causa das diferenças de culturas, porque é fácil pra um brasileiro ser amigo de um europeu, francês ou americano ou querer morar com uma pessoa dessas culturas, agora quando se pergunta porque ele não quer morar com um haitiano, ele diz: “é porque a gente tem uma cultura diferente”.   53 Para as mulheres haitianas no Brasil, acredito que as coisas sejam ainda mais complicadas e acho que o relacionamento delas é bom com elas mesmas. Se uma haitiana conseguir encontrar uma brasileira como a Taíse, a Eliziane ou a irmã dela, pode ter uma amizade com uma brasileira, mas eu já morei com outra menina brasileira e posso dizer que foi um inferno. Se encontrar uma pessoa que não é racista, que não ligue pra cor de pele, país de origem, coisas assim, pode ser um bom relacionamento, mas se não, não será nada bom. Acho que as mulheres haitianas que vivem no Brasil se comunicam menos e acabam tendo mais dificuldade na língua ou na integração. Eu acredito que isso se dá por alguns motivos e um deles é com certeza a timidez. Mas eu acho também que tem o machismo que influencia nisso, por que muitas das mulheres haitianas tem marido e alguns maridos pressionam elas, que não devam conversar com ninguém. Quando eles vão fazer alguma coisas juntos, aí o homem que aprende o português vai e fala com as pessoas, e quando a mulher quer fazer alguma coisa também vai o homem e pergunta e fala, porque ele também quer saber tudo da vida da mulher. As mulheres geralmente ficam na delas, não buscam muito aprender porque o marido de qualquer forma estará ali para ajudar. Mas eu acho que não é só ajuda, acho que é machismo mesmo, porque o homem acha que é superior, que ele tem que fazer tudo, que ele tem esse poder. Mas para além, eu acredito ter mais coisas boas do que ruins nessa experiência no Brasil e apesar de passar bastante tempo nesses espaços que eu enfrentava as situações ruins, eu tenho pessoas incríveis perto de mim no Brasil. As vezes, eu até falo pra Lizi que ela não é branca, que ela é negra que tem uma pele clara. Tem a mãe dela que é uma mãe pra mim, uma família que eu não tenho nada de negativo para dizer. As vezes eu até xingo a Dani, mas são pessoas incríveis pra mim. Também tem a Gerliane, o Genival, O Ubiratã, tem a Taíse e a Jéssica. Acho que eu aprendi muitas coisas, que é uma experiência muito boa pra mim e eu não me arrependo de nada! Eu sofri racismo, preconceitos, mas eu sei que as coisas que eu passei fazem de mim, agora, outra pessoa e eu encaro a vida de outra maneira. Quando eu cheguei no Brasil, comecei a ver o mundo de outra forma, tem coisas que eu dizia antes que nunca mais vou fazer. No Haiti, você pode até fazer uma piada racista com uma pessoa que ela nem vai perceber, porque ela é negra como você. Até eu mesma falo algumas coisas racistas as vezes, mas acredito que depois de passar pelo Brasil, diversas coisas eu não vou mais repetir. Lá nos Estados Unidos eu tenho amigas, e quando elas estão falando mal das pessoas, eu penso que há um tempo atrás eu falaria mal também, mas agora não faria mais isso, pois eu sei e já vivenciei o bastante pra saber a repercussão que isso tem na vida daquela pessoa que eu falo mal, eu sei como é quando as pessoas estão falando mal de mim, então não vou fazer isso com outra pessoa. Eu aprendi muito no Brasil e eu nem tenho como agradecer ao país pela oportunidade, porque esse lugar que eu estou ocupando na universidade eu sei que muitos brasileiros gostariam de estar. *** Quando eu estou no Brasil, o que eu sinto falta todos os dias do Haiti é a comida, porque a alimentação é muito diferente, no meu país comemos muito mais comidas orgânicas, mas agora que estou aqui estou comendo muito bem! Sinto falta também da temperatura, das músicas e das festas haitianas. As minhas maiores saudades enquanto estou no Brasil, é sem dúvidas, a minha família. Eu gostaria muito de poder ter a minha família mais perto de mim. Agora está mais fácil, pois tenho uma família no Brasil, e quando estou lá falo todos os dias com a minha   54 família do Haiti. Dessa forma, eu consigo aguentar ficar um tempo, um ano, sem voltar pro meu país. Os meu planos e sonhos daqui pra frente são muitos, mas inicialmente pretendo voltar pro Brasil e terminar os estudos em Administração e depois disso, voltar pro Haiti. Quero terminar esse curso porque eu gostaria de abrir uma empresa no Haiti. Também quero, futuramente, estudar Moda, porque eu gosto muito. Os meus sonhos, resumindo, são montar um Restaurante e também um Salão de Beleza em Porto Príncipe, capital do meu país. 3.3 ROBERSON DAMIS Meu nome é Roberson Damis, tenho vinte e dois anos, sou haitiano. Quando eu nasci, em 1995, na cidade de Petit-Goâve, meu pai não estava no país, ele estava em Bahamas. Não passei muito tempo com ele por conta disso, ele viajava o tempo todo e ficava de dois a três meses com a gente, sempre na época no Natal. Minha mãe é que cuidava da gente, digo, das minhas três irmãs, do meu irmão e de mim, e ele, meu pai, mandava dinheiro. Eu o admiro muito, gostaria de ter o caráter e a inteligência que ele tem. Ele saiu do Haiti pra proporcionar uma vida melhor pra gente, porque lá tem uma fórmula: para ter uma boa oportunidade, primeiro temos que sair. Fotografia 3: Roberson, em dezembro de 2017, em Chapecó. Foto: Taíse Staudt Ele voltou pro Haiti em 2004 e falou algo que eu sempre lembro. Ele disse que para criar os filhos e as filhas, os dois devem estar presentes: a mãe e o pai. É dessa forma que os filhos vão se adaptar e desenvolver o respeito. Ele queria que não faltasse nada para nós,   55 inclusive amor, por isso ele decidiu não mais ficar longe da família: "Em primeiro lugar, a família". Aí era uma alegria em casa porque ele brincava com a gente, jogava futebol, ensinava coisas. Ele trabalhava como mestre de obras numa empresa de construção civil e tentou me ensinar algumas coisas, mas na época eu não queria aprender porque eu não conseguia perceber pra quê eu usaria aquilo na vida, mas hoje eu vejo que ele fazia aquilo para o nosso bem. Meu pai nasceu no interior da cidade que eu nasci, Petit-Gôave, que fica perto da capital, e se mudou para o que vocês chamariam aqui de "centro da cidade" quando tinha 18 anos. Ele é um pouco rígido, mas se você fizer sempre o que é certo, ele vai ser seu amigo, seu melhor amigo, vai estar sempre lá para conversar com você. Ele é uma pessoa muito querida… É um modelo pra mim. Mapa 5: Mapa do Haiti. O ponto sinalizado em verde é a localização de Petit-Gôave, cidade em que Roberson nasceu e residiu. Fonte: GoogleMaps. E a minha mãe… Ela é a mulher da minha vida. Ela nasceu também no interior da mesma cidade do meu pai, cerca de quarenta minutos de caminhada da casa de um para o outro, sendo que saiu de lá quando começou namorar com ele… Foi para o centro e começou trabalhar lá. Ainda sobre o meu pai, ele não teve chance de terminar o Ensino Médio, tampouco de fazer uma faculdade, isso porque ele tem um irmão gêmeo, e lá no Haiti, antigamente, tinha essa questão cultural de que um dos irmãos gêmeos não pode passar de ano e o outro reprovar. No último ano do Ensino Fundamental o irmão dele reprovou e ele passou, mas ele teve que repetir também. Isso não é uma lei, mas é uma questão cultural, é uma tradição, porque eles têm que andar juntos. Então meu pai repetiu o ano três vezes por causa do irmão   56 dele, até que decidiu parar, quando tinha quase dezenove anos de idade, e saiu de lá, do interior, e foi para a cidade. Foi assim que ele começou aprender como ser carpinteiro. A minha mãe também tinha um irmão gêmeo, mas ele faleceu com sete anos. Ela é mais clarinha do que eu, por causa da minha avó, que é mais clara ainda. Já o meu pai é negro, negro bem escuro mesmo. Nunca passei mais que duas semanas sem ver minha mãe, ela sempre estava presente… Até que eu saí do país e agora temos que ficar longe um do outro. É um pouco complicado. Ela é uma pessoa um pouco rígida também, no sentido positivo. Quer que você faça as coisas certas, e não é uma questão de que você tem que obedecer o que a sociedade manda, mas é uma questão de respeito. Quando brava, ela não vai falar nada, mas depois, na hora certa, ela vai falar: "Olha, Roberson, o que você fez eu não aceito. Por que você fez isso?". Somos parceiros, o que acontece entre eu e ela é algo nosso. As vezes meu pai queria saber alguma coisa, algo que eu e minha mãe conversamos, mas ela sabia guardar segredo, ela não contava pra ele, e eu gosto disso porque tinha coisas que eu não queria que meu pai soubesse. Saindo do interior, ela teve que fazer várias coisas, trabalhar. Foi costureira, empregada doméstica, e agora é comerciante… Ela tem um mercadinho, que não é tão grande, mas que não dá pra ela trabalhar em outras coisas ao mesmo tempo. Na capital ela trabalhava na casa de outras pessoas, cuidando das coisas, fazendo faxina. Por causa dessa época que ela trabalhou lá, na capital, é que hoje ela tem medo e não quer que os filhos dela morem em Porto Príncipe. Depois disso ela casou com meu pai. Em 2017 fizeram trinta anos de casamento, que é a mesma idade que minha irmã mais velha teria se estivesse viva. Minha mãe tinha sete irmãos, mas, infelizmente, cinco deles faleceram, então ela tem duas irmãs que estão vivas. Pelo que eu ouvi dizer, foi de causas naturais mesmo, mas acontece as vezes de as pessoas nem saberem que estão doentes quando na verdade estão, mas se não levar no médico não vai ter como saber. Ela estudou até o Ensino Fundamental, parou de estudar na mesma época que meu pai. Entende bem o francês, mas não a escrita, já que lá no Haiti você só consegue aprender mesmo o francês se for à escola… Os livros todos são em francês. Sem ir para a escola você pode entender a língua francesa, mas não consegue escrever ou falar. Minha mãe ajudava, eu e meus irmãos, em algumas tarefas da escola, quando estávamos no Ensino Fundamental, mas quando chegamos no Ensino Médio ela não conseguia ajudar por conta disso, de não compreender a forma escrita do francês. Então tivemos que ter aulas particulares. O maior sonho deles, dos meus pais, era isso, ver os filhos independentes, na Universidade, sem precisar da ajuda deles… E isso está acontecendo. Uma das filhas deles vai se formar em Psicologia esse ano, lá na República Dominicana, só pra ter uma ideia que é o sonho deles se realizando. As vezes estou conversando com a minha mãe e com o meu pai e eu fico muito feliz porque eles falam, sobre mim e meus irmãos: “Não tem como reclamar de vocês”. Lá no Haiti tem essa questão de sujar o nome da família quando você faz alguma coisa errada, então quando alguém quiser falar que “foi o Roberson que fez” tal coisa, vão falar: “você não é o filho de tal?”, “a sua mãe não é tal?”, “nossa, sua mãe não é assim!”, “o pai dele é muito gentil”. Tem muito disso lá, mas vezes os filhos não são produto dos pais, as vezes o pai é   57 gente boa, mas o filho não. Então é muito bom saber que meus pais estão felizes com a gente, porque as vezes tem pais que falam “ah, meus filhos são um inferno!”, eu já ouvi isso. *** Como eu sou muito curioso, eu questionei meus pais sobre como eles se conheceram. Foi assim, eles estavam numa festa, numa praça. Meu pai estava com o irmão dele, e eles eram tão parecidos que não dava pra dizer quem era quem. Aí ele viu ela e ela estava olhando pra ele, e essa coisa da troca de olhares. Então, no dia seguinte, ele mandou uma carta pra ela, o problema é que minha mãe não conseguiu identificar qual deles que estava mandando a carta por conta da semelhança entre meu pai e o irmão dele, já que são gêmeos. Mas aí deu tudo certo, deu pra identificar, meu pai é mais baixo. Ficaram conversando por muito tempo, por doze meses. Eu até falei pra ele que eu não faria isso, ficar doze meses conversando com uma pessoa sem saber se vai dar certo ou não. Mas tem uma questão cultural, lá, que o homem quando vai pedir em namoro uma menina, ainda mais naquela época e no interior, tinha que ir na casa dela, conversar com a família dela e também trabalhar pela família, por exemplo, cortar a grama… Assim a família dela percebe que você é trabalhador. Você pode até fingir que você está trabalhando, mas tem que fazer. É uma questão da cultura. Aí depois de doze meses, namoraram, minha mãe aceitou, porque a mulher gosta que o homem fique insistindo. Mas, enfim, eles casaram, tiveram cinco filhos e agora estão felizes. Eu tenho duas irmãs e um irmão. A Michelene é a mais velha, vai se formar esse ano em Psicologia, e eu sou o mais novo. Minha irmã mais velha nasceu em 1987, a segunda em 1990, meu irmão Richardson em 1990 e eu em 1995. Todos nasceram na mesma cidade que eu, distante uma hora da capital do Haiti, é uma cidade pequena menor que Chapecó, chamada Petit-Gôave. É francês... Petit significa "pequeno" e Gôave, não sei ao certo como se fala em português, mas é como se fosse um "planalto". Sou o filho caçula, então passei menos tempo com eles todos. Eu e minha irmã mais velha temos seis anos de diferença, discutíamos bastante, talvez por sermos bem parecidos. Com meu irmão eu nunca briguei, mesmo dividindo quarto sempre, as vezes até a mesma cama. Agora está tranquilo, mas minha irmã era mais velha e, antigamente, eu tinha medo dela, na verdade, porque ela batia na gente e isso foi um pouco complicado. Mas eu amo ela. Eu sei que tem irmãos que brigam, que não se ajudam, mas não é o nosso caso até agora. Por enquanto, todos estão solteiros, talvez quando algum de nós casar com outra pessoa vai mudar alguma coisa, mas até então está tudo normal, desde quando nasci até agora. Eu tenho alguma coisa, é para todos. Eu estou trabalhando, meu irmão também, e a gente divide as despesas. Eu tive outra irmã, que faleceu em 2007, quando eu tinha doze anos, antes do terremoto. A minha mãe sofreu uma queda do telhado quando estava grávida dela e, então, minha irmã nasceu com uma doença que fazia ela ter várias crises, ficava tremendo e falando estranho. Na época, o médico disse que, por conta da queda, umas das duas iria falecer, ou minha mãe ou minha irmã. Faz trinta anos e minha mãe e ela sobreviveram. Infelizmente, aos vinte anos, num domingo, minha irmã faleceu, e isso foi muito difícil na nossa família. Nos dias anteriores ao falecimento dela, ela ficou dezessete dias sem fazer nada, sem comer, apenas no soro. É complicado quando o médico fala que não tem jeito. Já perdi um avô, avó, mas é diferente perder uma irmã com quem você sempre convive. Mas a vida é assim e temos que nos acostumar com isso.   58 O meu maior objetivo é a família, sempre será. Depois, é o estudo. Quando eu falo em família, como eu não estou casado, quero me referir a minha mãe, meu pai, meus irmãos. Eles são minha família agora. Quando você está casado, aí é outra coisa, eles serão sua família. Meu pai e minha mãe sofreram bastante para que a gente chegasse nesse caminho, tiveram que fazer coisas que não queriam, passar fome, largar a família e ir trabalhar num país que nem sabia a língua e teve uma vez que até um policial… não, foi um ladrão, chegou a bater nele. Tudo isso eles passaram que nós tivéssemos uma vida melhor. Muitas pessoas não entendem o esforço de meu pai para ter o que tem hoje. Na verdade, ele nasceu numa família de boas condições, porque lá, quando você tem um monte de bens, terrenos e casa, você é rico, mesmo que não tenha dinheiro guardado. Diferente da minha mãe, que passou por muitas dificuldades, pois depois que o pai dela morreu, a minha vó teve que cuidar de tudo sozinha porque ela não tinha outro marido. Todas essas coisas também fazem com que eu e meus primos, por exemplo, tenhamos ideias e pensamentos bem diferentes. *** Pelo que eu ouvi da minha avó que tá viva ainda, ela teve um marido - infelizmente eu não o conheci - que faleceu quando minha mãe tinha nove anos. Lá no Haiti tem essa questão de compartilhar os bens materiais no caso de alguém falecer. Se você tiver terreno, casas, tem que dividir. Então ela me contou que teve uma briga entre eles e um acabou matando o outro. Eu conheci meu avô paterno, mas só que ele faleceu quando eu tinha oito anos, em 2002. Agora estão vivos minha vó, meu pai e minha mãe. Minha avó é descendente de negros com os brancos que vieram da França - o Haiti foi colonizado pela França. Já no lado do meu pai, o pai dele tinha descendentes de negros, no caso haitianos que nasceram na terra mesmo. Minha avó não é que nem eu, preto, mas a cor dela é meio… Aqui o pessoal fala "morena", no caso é bem assim. No lado da minha mãe ainda, o pai dela era negro também, mas só que minha avó era, digamos assim, morena, no caso. Como eu não tinha muita convivência com minha avó paterna, porque eu morava na cidade e ela morava no interior, a gente se via quase uma vez por ano, porque às vezes ela ia visitar a gente ou a gente ia lá quando tinha feriados, para passar um tempo com eles. Uma coisa que eu sei é que ela é muito gente boa, ela gostava da gente. Só que ela sofreu bastante por causa do meu avô, o marido dela, porque ele era uma pessoa muito rígida, até com meu pai ele era muito rígido. Ele era o mestre, vamos dizer assim, ele que mandava lá. Para falar a verdade, apesar de não ter muita convivência com ele, eu nunca gostei do jeito dele, eu achava que ele era uma pessoa muito rígida. O jeito dele era muito, vamos dizer assim, tem que fazer tudo do jeito dele e até várias vezes ele brigou com meu pai por causa disso. Do lado da minha mãe eu não conheci o meu avô, mas minha avó, até agora foi ela que me criou, eu tenho bastante convivência com ela. Estou com muita saudade e não vejo a hora de visitar ela de novo. dela. A gente conversa por telefone, no WhatsApp, às vezes eu mando foto para ela e ela me manda foto também... Ela é, vamos dizer, um coração. Eu tenho bastante o caráter dela também, ela me ensinou um monte de coisas, tipo, fazer faxina em casa, lavar e, vamos dizer, só ela não me ensinou a fazer coisas que tem a ver com a escola, mas o que tem a ver com casa ela me ensinou um monte de coisas. Eu fiquei, mais ou menos, cinco a seis anos morando junto com ela. Minha mãe morava em outra casa, mas no mesmo terreno. Ela, minha avó, tem 97 anos agora.   59 Ouvi minha avó contar que houve uma briga entre o meu avô materno e os irmãos dele, por causa de um terreno, que era do pai deles. Ela me disse que eles ficavam se ameaçando de morte. É que lá no Haiti tem uma história, uma questão de religião… Não é uma questão de religião, mas é uma doutrina, na qual algumas pessoas fazem mal a outras pessoas, no sentido da feitiçaria. Matar, nesse caso, não quer dizer pegar uma faca e usar como arma, mas fazer magia, na verdade. As pessoas ficam mal por conta da magia. Mas não sei muito bem sobre isso. De qualquer maneira, meu avô faleceu… Num dia ele estava bem e no outro dia tinha dor de barriga e faleceu do nada. Até levaram ele para o hospital, mas os médicos falaram que ele não tinha nada. Lá no Haiti chamamos isso de vodu. Além de religião, é uma tradição, mas as vezes as pessoas usam dela para fazer maldades. Se eu quiser o mal de alguém, eu vou lá e procuro pelo que vocês chamam aqui de medium para fazer coisas que não são boas, inclusive matar. Lá tem muito de a pessoa ter um emprego mas outra pessoa acha que não deveria estar lá e faz alguma coisa para te atrapalhar. Mas não é no sentido físico, de pegar uma arma e ir lá te matar. Lá é assim, o pessoal fala que ou você está dentro da igreja ou você está fora. Quando fala fora, é que você tem outra religião. Foi mais ou menos isso que aconteceu, segundo minha avó. Eu nasci numa família evangélica. Atualmente eles frequentam uma igreja Apostólica, acho que tem no Brasil também, Pentecostal, algo assim. Na família do meu pai, o meu avô não tinha religião, não frequentava nem acreditava em deus. Já a minha avó acreditava, eles eram opostos, meu avô até brigou com ela, e bateu nela, mas não é uma questão de religião, é que o pensamento deles não batia. A minha avó por lado de mãe, antes de perder o marido, ela não era religiosa, então minha mãe cresceu sem seguir uma religião, mas depois se tornou evangélica. Por nascermos em uma família evangélica tínhamos que seguir um monte de regras, porque lá tem uma questão de doutrina, cada religião tem além das opiniões, as coisas que você deve e que não deve fazer. Lá no Haiti tem muitas religiões na verdade, e dentro delas várias igrejas diferentes. As Igrejas tem regras, mas as vezes tem algumas que confundem antigo e novo testamento, até algumas coisas são questões culturais. Você não pode fumar, as mulheres, por exemplo, quando vão orar ou vão pra algumas igrejas, precisam colocar uma coisa na cabeça, lá é natural, elas também não podem se vestir com roupas de homem, como calça, infelizmente, um monte de regras assim. Acho que aqui no Brasil tem uma igreja que é assim também, onde as mulheres não podem usar calça, acho que é Assembléia de Deus, uma que é só nos sábados. Tem algumas igrejas que são mais liberais, que você pode fazer o que quiser, só tomar cuidado para não atrapalhar a vida dos outros, cada um segue o que quiser e muitas pessoas não tem religião. Muitas vezes as pessoas acham que por uma pessoa estar na Igreja ela é mais confiável, mas tem pessoas religiosas que são piores do que as que estão longe da igreja. Tem pessoas aqui que acreditam que por ser evangélico eu sou um santo, mas não é assim, e eu digo porque eu nasci nisso e sei que tem pessoas que pegam o papel de pastor para cobrir um monte de coisas ruins. Eu já quebrei muitas regras da minha igreja. Minha mãe brigou comigo muitas vezes, dizendo que sou rebelde, mas aí eu sigo que sou porque ela me colocou na escola, um lugar onde eu vejo duas coisas e analiso, deduzo, pra dizer o que é verdadeiro ou falso. Se eu acho que é falso, que foi um homem que disse as coisas que devo fazer, eu não faço. Minha mãe me colocou no lugar certo ao me colocar na escola e não é pra ganhar dinheiro que eu estudei. Eu até obedeço a igreja, mas depende, tenho que ver se é a coisa certa e a hora certa de fazer.   60 *** Minha mãe tem duas irmãs - o irmão faleceu. Uma delas é minha madrinha e tem uma filha e um filho, sendo que eles moravam com a gente desde que eu nasci. A minha prima casou e deixou de morar conosco. A outra tia teve três filhos, um menino e duas meninas, o menino faleceu. Essas duas primas minhas estão hoje aqui no Brasil. Como eu cheguei primeiro, eu recebi uma e depois recebi a outra. Tem ainda os dois primos que ficaram no Haiti, mas eu acredito que a minha prima venha para cá, porque o marido dela já está morando no Brasil, e o meu primo mora no Haiti com a família, ele é professor na escola de Ciências Sociais. Com essa minha prima que já é casada, tivemos um probleminha uma vez. Ela começou a namorar mas a família não aceitava, não gostavam do jeito do menino. A minha prima gostava muito dele e ela acabou tendo que sair de casa, então ela foi morar na Capital. Ela voltou, mas fugia de casa para ir ver ele, então saiu de casa de vez, mas depois separou dele. Isso foi um pouco complicado porque no Haiti quando a pessoa tem 15, 16, 18 anos, a família acha que é muito cedo para namorar, é uma questão de cultura também. *** Meu pai saiu entre 1995 e 1996 para ir pra Bahamas, não sei a data exata. Ele ficou lá na capital do país, e foi uma experiência como a minha no Brasil, apesar de eu já ter visto quando cheguei, nós dois tivemos que nos adaptar a língua e a cultura e não foi fácil. Ele saiu por causa da fórmula porque pra conseguir algo melhor as vezes é necessário sair da zona de conforto. Ele tinha um profissão no Haiti, o que é uma coisa difícil, ele já trabalhava como carpinteiro, o problema é que ele já tinha cinco filhos e a minha mãe era costureira. Manter cinco filhos em um país onde o governo não ajuda é muito difícil. O problema do país não é bem a pobreza, o problema é a nossa constituição que não aceita que venham empresas de fora para abrir empresas lá, então o governo não ajuda mesmo. Assim, meu pai teve que escolher entre sair do país pra ter um salário melhor, ou ficar no Haiti e os filhos passando fome. Então ele saiu e ficou durante 11 anos fora. Nesse período, ele conseguiu construir quatro casas, comprar carro e terreno. Eu acho que ele poderia ter conquistado tudo isso ficando no Haiti, porque ele é um homem muito inteligente, mas provavelmente ia demorar muito mais para alcançar o que ele tem agora. O motivo foi os filhos, ele saiu para os filhos, assim como tudo que ele fez desde que se casou, até agora. O sonho dele é ver os filhos irem além dele, que a gente vá longe, não sei pra onde, mas esse é o sonho dele e é por isso que ele saiu. *** Uma das minhas memórias mais antigas, das que eu lembro sem ninguém me contar, é que eu não sabia falar o nome do meu irmão que se Chama Richard, e eu chamava ele de “Ritaton”. Outra coisa que eu lembro é que em dezembro de algum ano, que não lembro bem qual, eu que um cara chegou e fez um carinho na minha mãe, e eu fiquei bravo pensando quem era esse maluco! Fiquei com ciúmes. Quando perguntei pra minha mãe, ela me contou que era o meu pai, que ele tinha retornado de viagem. Eu fiquei chateado, foi horrível pra mim não saber quem era meu pai. O problema é que eu nunca via meu pai, já que ele estava fora, só tinha visto por foto, então não reconheci. Eu só ouvia a voz dele porque a gente se comunicava por fita cassete que a gente gravava e enviava, e ele respondia.   61 Para além disso, eu lembro da infância, da escola, porque como a minha mãe dizia, eu era uma pessoa de olhos grandes, que é como se chama no Haiti uma pessoa curiosa e inteligente. Com um ano eu já falava, caminhava e me adaptava muito rápido, então com dois, comecei a ir pra escola. Aqui no Brasil chama creche, que era paga. Com quatro anos entrei pra escolinha regular, mas eu tive que fazer de novo porque lá no Haiti precisa ter seis anos para iniciar o Ensino Fundamental então fiquei quatro anos só na creche, e isso me atrasou um pouco, é uma parte escura da minha vida, porque já era pra eu estar terminando a faculdade. Tem uma passagem de quando eu ia na creche que me marcou muito, porque eu lembro de ter pego no flagra dois coleguinhas meus numa das camas da creche, se beijando assim, que nem adultos. Aquilo me chocou, porque eu não sabia nada daquilo ainda. Muito tempo depois eu perguntei pro menino pelo facebook se ele lembrado que tinha pego a menina lá, e ele ficou surpreso por eu lembrar. Na época ele implorou pra mim não contar pra ninguém, porque se alguém soubesse, daria problemas. Outra coisa da cultura e tradição das famílias, é que se uma coisa é sua, um brinquedo por exemplo, e você chega em casa com outro, vai dar problema. Se uma mãe der ou deixar o filho dar alguma coisa pra outra criança, tem que avisar a mãe. Teve uma vez que eu levei pra minha casa uma borracha que um colega tinha esquecido na sala, pra devolver no outro dia e minha mãe, quando achou na minha mochila, já me perguntou de quem era porque ela não tinha comprado aquela borracha pra mim. Eu expliquei e tive que prometer que entregaria logo no outro dia. Eu sei agora que ela me ama e fez isso por uma boa coisa, mas as vezes ela era bem rígida. Nas minhas lembranças de infância, tem muitas partidas de futebol depois da aula. Acontecia muito uma coisa que eu não gostava, mas hoje eu vejo que foi importante: por causa da instabilidade política do país, as vezes fica um grande período com energia elétrica e muitos dias a gente ficava sem. Nos dias que tinha energia aproveitávamos para ver TV e nos dia que faltava, inventávamos outras brincadeiras porque criança não pode parar. Durante essas noites, meus pais e minha avó ficavam conversando coisas de velhos e nós ficávamos jogando ou contando histórias. Era divertido porque já tínhamos que planejar o que faríamos no dia seguinte e tinham que ser brincadeiras que fizessem todos rir, ou não dava certo. Uma boa parte da minha infância foi brincar em casa, porque lá não é como aqui no Brasil que as pessoas saem ou vão para as praças, lá fazemos isso em casa mesmo. A gente junta todo mundo e faz uma janta, vamos pro interior, mas em casa. Eu adorava quando a gente ia pro interior, eu sempre gostei da natureza, de subir os morros, o som das galinhas… Outra coisa da minha infância é que eu gostava de conversar com as pessoas, novas e velhas. Adorava conversar com minha avó com as pessoas de fora: elas não podiam sair da minha casa sem que eu fizesse umas vinte perguntas. Algumas vezes, quando meu pai morava fora e voltava pro Haiti, a gente saía comprar roupas, tênis, essas coisas. Com a minha mãe saíamos também, íamos para as atividades da Igreja geralmente. Como eu sempre digo, eu cresci numa casa de quatro paredes, porque até meus dez anos, mais ou menos, eu vivi bem fechado, tinha horário para fechar tudo e nem pensar sair na rua depois das dez horas. Hoje eu acredito que tenha sido bom, porque o Haiti as vezes é muito perigoso, só de sair, as vezes você pode ser uma vítima né. ***   62 Desde que nasci eu comecei a aprender a falar crioulo, porque é a língua natal, é a língua que meus pais e todos os haitianos precisam falar. Eu comecei a aprender francês só quando comecei a frequentar a escola, na creche você já começa a aprender e no fundamental, tudo vai ser só em francês. O professor pode até explicar alguma coisa em crioulo, mas só pra deixar mais clara alguma coisa que não foi entendida em francês, porque nos níveis acima, de médio e superior, é só francês. É como aqui, que algumas pessoas falam alemão, mas todas precisam falar português, lá todo mundo fala crioulo e o francês é parcial. As minhas escolas do fundamental e do médio tinham uma coisa, que se eu falasse crioulo, tinha que levar pra sua casa e amanhã o professor vai te bater porque era proibido de falar crioulo na sala. Era uma coisa absurda né, agora eu percebo. Nos intervalos a gente geralmente falava crioulo, porque no francês ainda demorava pra gente achar a palavra certa. O crioulo tem gírias, não tanto quanto o português, mas tem, então é mais fluído. O francês é uma língua formal, você tem que falar exato, não tem como fugir. Com 12 anos eu comecei a aprender inglês, antes eu sabia algumas coisas básicas como “good morning” ou “thank you”. Aprender de verdade mesmo foi no ensino médio quando comecei ter aula de inglês e espanhol. Eu e meu irmão conversávamos bastante, um chegava e abordava o outro em inglês, aí começamos a praticar, mas na escola eu não gostava muito, por causa dos professores. Espanhol eu achava muito difícil, acho que agora o meu português já superou o espanhol que eu sabia, e agora preciso voltar a estudar espanhol, pra deixar no mesmo nível que o português. Das fases mais avançadas da escola, eu lembro de um professor de história que eu não gostava porque eu sei que ele mentia na sala, ele dizia que estava presente em todos os momentos históricos que ensinava. Por causa dessas coisas que ele dizia, eu acabei tirando notas baixas e tendo que repetir o segundo ano do fundamental, isso me deixou muito chateado, mesmo! Na época eu tinha ódio do professor, mas depois passou, perdoei. Infelizmente, ele faleceu no terremoto, pois estava na escola dando aula naquele dia quando tudo desabou. Lá se faz muitas matérias ao mesmo tempo, várias vezes eu estava cursando umas 17. São muitas, temos que aprender História geral, história do Haiti, inglês, espanhol, latim, gramática crioula, civilismo, tudo isso. Durante a escola foi legal que eu sempre fui o líder da turma, que tomava frente das coisas, então eu acabei tento bastante autonomia e aprendi a lidar com as pessoas. Tinha que saber lidar com todos os lados, pois quando tinha briga ou meus colegas não se comportavam, eu tinha o dever de falar para os professores também. É uma coisa que foi muito importante e vai me seguir na vida sempre, inclusive como aconteceu no meu atual trabalho no Brasil. Eu sempre tive medo dos professores, e dos pastores também, porque lá no Haiti eles são os mestres, eles sabem tudo e você não sabe nada. Foi sempre complicado pra mim lidar com a autoridade deles se eu fizesse alguma coisa errada, eles iam contar pra minha família e seria bem ruim porque eles iam dizer que: “seus irmãos não são assim” e na época eu pensava que tinha que ser iguais a eles, a mesma pessoa, mas são uma coisa que eu estou mudando agora. O tempo passa e a gente muda também, sei que daqui a cinco anos, depois que terminar o curso de Engenharia, vou estar muito diferente também. A escola que eu estudei no Fundamental era pública e da igreja católica. A minha escola se chamava I’école du frère, é francês e significa escola do irmão, porque estudavam apenas meninos. A escola que minhas irmãs estudavam se chamava I’école de la soeur, escola de irmã. Acho que antigamente as escolas eram iguais, mas quase todos os meus professores eram pessoas que não eram envolvidas com a igreja católica, enquanto na escola delas eram   63 as madres que cuidavam de tudo, acho que por isso até a educação dela foi melhor, elas foram melhor que nós nos vestibulares, porque as madres eram mais dedicadas. Nas línguas por exemplo, eu aprendi porque me dediquei muito, já elas praticavam sempre. Não tinha que ser católico pra estudar nas escolas, mas tínhamos uma matéria chamada catéchèse, onde estudávamos a doutrina católica, e também íamos na igreja. *** Na adolescência eu percebi que começaram alguma mudanças, a voz ficou mais grossa, comecei a me arrumar antes de sair e também comecei a namorar as meninas. Esse processo aconteceu muito quando eu mudei de escola, quando fui pro Ensino Médio, que era uma escola particular e lá também estudavam meninas. Passei a ter o primeiro contato físico com as meninas, comecei a conversar com meninas e ter amigas pela primeira vez, e depois começaram os namoros. Mas essa questão de namoro é bem rígida no Haiti, pois se duas pessoas estão se beijando, pra eles já é uma coisa completa, e ninguém faz isso na frente dos outros. Você só faz essas coisas quando é sério o namoro e tu tem o objetivo de casar com essa pessoa. Agora, muitas pessoas já viajaram e viram que pode ser diferente, está ficando mais tranquilo, mas em 19 anos lá eu nunca vi duas pessoas se beijando, só quando saí do país. Por tudo isso, na adolescência as coisas são feitas sempre escondidas, dentro de casa sem a presença dos pais, e tem que se esperar muito pra beijar ou fazer sexo. Minha mãe já me bateu por causa de uma menina. Pra eles, o filho precisa terminar os estudos antes de namorar, ter uma relação sexual é uma coisa muito grande. Eu não gosto muito desse pensamento e eu sempre gostei de testar as coisas antes de dizer se deve ou não fazer, então eu namorei, beijei e fiz sexo e agora digo que não se pode proibir, precisa explicar, pra não fazer errado e já cair um filho. Eu acredito que essa proibição não seja apenas religiosa, mas um medo, realmente, de ter responsabilidade com filhos sem condições de trabalhar pra sustentar. A minha mãe não ia querer que eu tivesse um filho com quinze anos, porque no Haiti o cara tem vinte e oito anos e dois diplomas e não consegue trabalhar, imagina com quinze que tá no ensino médio! Lá se uma jovem engravida a responsabilidade é das mães. Não é só cultural ou religiosa a questão, se você é evangélico, católico, vodu ou não tiver religião, o medo é mesmo. O tempo certo para isso é quando você é casado para os haitianos, mas isso na verdade não garante nada. O casamento pra eles é uma coisa gigantesca e pra casar você precisa ter condições, no mínimo ter uma casa. Então os haitianos valorizam muito o estudo por causa disso, se esforçam muito, porque até com diploma é difícil conseguir trabalhar. Eu não saí muito durante minha adolescência e juventude, porque minha mãe não gostava e nem deixava, as vezes poderia ser muito perigoso porque muitas vezes não tinha energia elétrica e tudo era escuro. Teve uma vez que eu saí e acabei voltando mais tarde, e minha mãe estava acordada me esperando. Como eu sei que ela sofria e se preocupava demais eu evitava fazer isso. Outra coisa interessante da minha adolescência foi que com 15 anos, depois do terremoto, eu comecei a fazer teatro. Eu sempre gostei muito de ler de todos os tipos de arte, principalmente da arte de falar em público. Com o teatro minha forma de ver o mundo mudou e o que eu tenho de liberdade é graças ao teatro. Eu apresentei em vários lugares e tinha atuações de rua também, todo ano. Teve um dia que até apresentamos pro Dany Laferrière, que é um escritor haitiano muito famoso e inteligente, e eu conheci ele graças ao teatro. ***   64 Ninguém da minha família sofreu diretamente com o terremoto de 2010, mas vários conhecidos e professores meus. Eu lembro bem do dia do terremoto. Eu sempre ficava estudando encostado em muro da minha casa depois de voltar da escola, no final da tarde. Naquele dia estava assistindo uma novela na TV e estava esperando acabar para ir sentar no muro, faltavam uns cinco minutos. De repente, tudo começou a tremer. A casa balançou e voltou, muito rápido, e ninguém entendeu o que estava acontecendo. Eu, meu primo e minha irmã que estávamos juntos corremos para a parte de fora da casa e minha mãe já estava vindo correndo do mercado para nos encontrar. Naquele mesmo dia o meu professor estava falando sobre terremoto na aula, que se acontecesse no Haiti em poucos segundos tudo ia se quebrar, e a tarde aconteceu. A casa era boa, mas teve uma vala que abriu na terra, que chegou pertinho mas desviou. Fui correndo na casa dos fundos peguei minha avó no colo e tirei da casa. Estávamos todos ali fora assustados e ficou tremendo por uns 40 segundos sem parar. Demorou um tempo para meu pai, meu irmão e meus primos que estavam foram chegarem, mas ficamos bem mais aliviados. Ninguém sabia o que estava acontecendo: quando saímos na rua para procurar meu irmão, vimos as pessoas de perna cortada, braços, cabeças. As casas todas derrubadas na rua e algumas ainda tremendo. Caiu o sinal, e não conseguimos falar com a parte da família que estava no interior. Diversas pessoas estavam acreditando ser o fim dos tempos, pois como não tinha nenhum tipo de sinal, ninguém sabia se aquilo estava acontecendo só no Haiti ou no mundo todo. Quando deu meia-noite ficou quase um minuto tremendo, achei que estava tudo terminado, porque a casa afundou na terra e voltou, eu vi. Naquele dia, ninguém conseguiu dormir dentro da casa, porque sempre voltava a tremer. Montamos a barraca do lado de fora e dormimos nela. Aquele muro, que eu estudava todos os dias, caiu também, exatamente onde eu ficava. Se eu tivesse ido mais cedo, ou o terremoto fosse uns minutos mais tarde, eu iria me machucar ou morrer também. Foram tempo difíceis. Vieram muitas pessoas de fora, e meu pai não sabia mais o que fazer, então alugamos nossa casa para conseguir um dinheiro. Ficou nela um pessoal de uma ONG que construía casas temporárias por causa do terremoto e meu pai ainda conseguiu trabalhar com eles. Eu naquela época não queria que colocassem a casa para alugar, ficava imaginando que as pessoas iam pensar que íamos morar na rua, mas como eu era o último filho, apenas aceitei. *** Depois do ensino médio, em 2014, eu tentei entrar na universidade lá do Haiti. Tentei um curso que é como Letras aqui, outro que é parecido mas precisa aprender a língua mesmo, e em Direito, mas não passei. Lá, pra você passar na universidade pública, não tem que ser só inteligente, mas tem que ter padrinhos e madrinhas também, pessoas importantes ou que trabalhem lá dentro. São 40 vagas pro país inteiro, é muito difícil de passar. Quando não passei minha mãe disse que eu teria que escolher entre ir pra República Dominicana ou outro país, mas eu não queria sair do meu país. Consegui passar em uma universidade que é metade pública e metade privada em Direito, mas antes de começar, minha mãe disse que eu teria que sair do Haiti, não teria outro jeito. Meus pais estudaram só até o ensino médio. Minha irmã mais velha fazia Medicina na República Dominicana e agora estuda Pedagogia aqui na UFFS. Meu irmão também fazia Medicina e agora estuda Agronomia na UFFS, e minha outra irmã está se formando em Psicologia na República Dominicana. Mas eu não quis ir para lá, pois além do custo de vida   65 ser muito alto, não poder trabalhar ao mesmo tempo que estuda e ter que sobreviver com dinheiro que meus pais mandam, existe a questão dos preconceitos que os dominicanos tem com os haitianos. Sei que meu pai venderia tudo o que tinha para nos manter lá, e eu não queria isso. Assim, eu que acabei saindo da ilha primeiro e os outros vieram pra cá também. Meus irmãos sofreram preconceito na República Dominicana, até dos professores que dizem que vão te reprovar logo que olham pra você, colegas que não fazem trabalho porque tem os colegas brancos que dizem: “ah, você é um negro muito feio”, acontecem até assassinatos de haitianos nas ruas. Aqui na UFFS também tem preconceito, mas acho que é bem diferente. Eles vivem na mesma terra mas não conseguem conviver juntos. Mas pra mim, isso não importa, graças ao teatro que me ensinou muito na vida. Pra mim, nada é nada, tudo é tudo, se a pessoa tem preconceito, problema dela e não meu. Depois se não conseguir entrar na universidade pública do Haiti, como minha mãe não queria que eu morasse na capital porque ela morou e achou muito perigosa e como eu não queria ir para a República Dominicana, eu tive que escolher outro país para ir, porque no Haiti é aquela história: e lá era aquela coisa, se todos os seus irmãos foram, você vai ter que ir também. Nesse tempo, em 2014, um amigo meu estava em processo de entrada no Brasil e o irmão dele já morava no país. Fizemos uma reunião e eu falei que pensei no Brasil, pois o meu amigo já tinha me explicado como era o processo que ele estava fazendo para chegar no Brasil passando pelo Equador. Minha mãe gostou da ideia de vir para o Brasil pois ela sabia que já tinham muitos haitianos que estavam vindo para cá, então fiz a documentação e entrei em 11 de janeiro de 2015 saí do meu país. Não se pode trazer muitas coisas para uma viagem assim, e ela é como a vida, você vai deixando algumas coisas e levando outras pelo caminho. Trouxe só roupas, as coisas mais básicas, uma bíblia, alguns livros, um deles muito famoso no Haiti chamado Met Lawarze em crioulo e Gouverneurs de la Rosée em francês do Jacques Roumain, que é haitiano. Trouxe fones de ouvido e mais alguns acessórios, além de dinheiro, que você precisa de muito dinheiro pra viajar. Você não pode levar coisas que vão atrapalhar. Nos lugares que fiquei algum tempo, comprei só as coisas necessárias, e depois deixei aquilo que não caberia na mala. Eu trouxe algumas fotos, mas no notebook e no pen drive. Trouxe também um presente que a menina que eu estava namorando me deu, não sei como traduzir, mas é artesanal e simbólico. Sem esquecer, que eu trouxe meu violão! A despedida foi difícil, pois tive que sair com pressa, pois soube com três dias de antecedência que teria que sair, não pude me despedir muito bem de ninguém, deixei muitos amigos sem avisar. Minha mãe e minha avó estavam muito tristes. Fui com meus irmãos até a República Dominicana onde fiquei alguns dias e já percebi que todos os haitianos precisam sair do país pelo menos uma vez, seja para longe ou para perto, pois percebi como faltam coisas no meu país, como eu não nasci num país onde as pessoas tem valor. De lá fui pro Equador, onde entrei como turista em 21 de janeiro. Fiquei bem doente lá por causa do frio e passei meu primeiro aniversário sozinho, mas não contei nada desse sofrimento pra minha mãe. Fui atrás do meu visto para entrar no Brasil e teria que esperar 5 meses. Comecei então a buscar emprego porque o aluguel era caro e tentar aprender espanhol. Depois de um tempo consegui um emprego fixo numa empresa que faz trabalhos com madeira. Nesse período meu irmão e minha irmã mais velha, começaram a demonstrar interesse em também virem ao Brasil, então comecei a juntar o dinheiro para ajudar a pagar a vinda deles. Em abril do mesmo ano os dois já estavam lá, mas só eu estava trabalhando. Tivemos dificuldades com a língua, com dinheiro, com tudo. Trabalhava no serviço bem pesado, que era geral, mas o patrão não me tratava bem e eu tinha que fazer coisas que os   66 equatorianos que trabalhavam comigo não precisavam. Teve vezes que até tive que lavar o carro do patrão e enquanto os equatorianos ganhavam 520 dólares por mês, eu fazendo até mais trabalho do que eles, ganhava 320. Eu acabei deixando o serviço, porque ele me falava coisas muito ruins que eu não aguentei. Foi então o momento mais difícil, porque nenhum dos meus irmãos estava trabalhando e nós tínhamos que comer. Mas tudo é um aprendizado na vida, o meu alvo é ter sucesso na vida. Eu não sei pelas coisas que eu vou passar, quantas pessoas eu vou decepcionar, mas eu tenho que ter sucesso. No Equador também aconteceu outra situação. Quando eu saí desse emprego comecei num trabalho que não era fixo, fazendo pinturas e consertos. Em um dia que eu e meu irmão estávamos indo trabalhar um policial desceu uma escadaria de um parque de moto, onde eu e meu irmão estávamos caminhando. Estávamos achando engraçado até perceber que ele estava indo atrás de nós. Nos parou, pediu pra encostarmos na parede e disse que tinham dito para ele que nós havíamos roubado algo no mercadinho. Ele revistou nossas mochilas e viu que só tínhamos umas moedas e a lixa que íamos usar no trabalho, que tínhamos acabado de comprar numa lojinha. Voltamos lá e conversamos com a dona da loja que disse que nós não tínhamos roubado nada, que éramos pessoas ótimas, que estávamos no país pra trabalhar. O policial não soube nos dizer quem tinha dito aquelas coisas para ele, mas foi um situação muito ruim. Foi a primeira vez que uma coisa assim aconteceu comigo. Foi nessa época que eu comecei a viver, quando saí do Haiti, que eu realmente comecei a ver como a vida é. Depois, deixei eles lá e vim para o Brasil. Desde que nasci, sempre achei que o Brasil fosse aquilo que dizem: país do futebol, do samba, de meninas lindas. O Brasil que a gente vê na TV é bem legal. Uma coisa que sempre percebi é essa mistura, de pessoas brancas, pobres, ricas, negras, e por isso nunca pensei que o Brasil seria um país muito preconceituoso. Achava que todo mundo jogava futebol, e não pensei que fosse tão longe do Haiti. Eu decidi vir pro Brasil por ser um país acolhedor depois do terremoto e abriu as portas para que nós entrássemos. Eu também queria enfrentar o desafio da língua, pois eu não conhecia nada de português, mas gosto de desafio. Muitas vezes eu cantava músicas em português e não fazia ideia do que era, e queria saber. Quando você sai do seu país, sai da zona de conforto, e então passei por muitos desafios, mas na verdade, eu gosto de desafios. Cheguei no Brasil de avião, em São Paulo, e depois de esperar quase 24 horas, peguei ônibus para Marau, no Rio Grande do Sul. Cheguei lá em junho, e estava muito frio. Estranhei muito as casas de madeira, pois isso não existe no meu país, e tive que morar numa casa dessas com um conhecido meu do Haiti, lá éramos da mesma igreja. Não estava aguentando ficar lá, pela temperatura, dificuldade de encontrar trabalho e não ter universidade. Falei então com outra amiga que estava morando em Minas Gerais, e um mês depois, em julho, viajei para a cidade dela que se chama Extrema, e fiquei morando com ela por um tempo. É uma cidade muito pequena, e ela morava num bairro muito afastado, o que dificultou muito o acesso. Me mudei para uma kitnet no centro, mas fiquei um tempo sem comida cozida, pois eu não tinha fogão, dormindo em condições não muito boas por algum tempo, mas dizia para minha mãe que estava tudo bem, feliz, que estava encontrando sucesso, não poderia dizer outra coisa. Resolvi tentar algo ali, sem ter que viajar novamente por um tempo. Consegui um emprego de carregamento, estocagem numa empresa, e isso só porque realizaram a entrevista em inglês, porque meu português ainda estava difícil de sair, mesmo que eu compreendesse bastante coisa. Juntei um dinheirinho e quando meus irmãos e minha prima chegaram no Equador, tivemos que ir para uma casa maior, que são todas ruins e caras   67 em Minas. Só tinham universidades privadas que eram acessíveis, mas já que eu estava trabalhando e passei nas provas, iniciei um curso de logística em fevereiro de 2016. No final de 2016, um haitiano, um amigo do meu irmão, que já fazia Enfermagem na UFFS, mandou pelo facebook um link, que uma universidade do sul estava dando oportunidade de estudos para os haitianos, vimos o edital e começamos a nos organizar, mesmo estando bem no meu emprego, subindo de cargo, e fazendo o curso de logística, não podíamos perder essa oportunidade, ainda mais quando vi que tinha uma Engenharia, pois Engenharia Civil sempre foi o meu sonho. No dia primeiro de janeiro de 2017 viemos para Chapecó eu e meu irmão, nos inscrever e nos informar sobre os processos de entrada na universidade. Gostei muito da cidade no momento que cheguei e depois de alguns esforços e de pedir algumas informações - ainda bem que sabíamos um pouco da língua - conseguimos resolver tudo e no dia seguinte voltamos para Extrema, pedir as contas no trabalho e organizar tudo para a vinda para Chapecó. Gastamos bastante dinheiro para ir e voltar, então quando voltamos para fazer a prova, já viemos preparados para ficar, pois sabemos que em fevereiro aconteceria um curso preparatório de língua portuguesa, que foi ministrado pelas estudantes de letras e onde conhecemos haitianos de todas as regiões do país, que tínhamos que participar porque eu nunca tinha tido oportunidade de estudar a língua. Quando me perguntaram, no emprego, se eu ia deixar tudo o que eu tinha em Minas para tentar oportunidades em Chapecó, eu respondi que eu já tinha feito isso quando saí do Haiti. Viemos novamente eu e meu irmão, deixamos as malas na rodoviárias e saímos em busca de uma casa para morar. Moravam muito haitianos aqui na cidade, mas infelizmente não conhecíamos nenhum ainda. Foi um dia inteiro, de sono, fome e exaustão. Procuramos no centro da cidade mas era tudo muito caro e necessitava de fiador. Em algum momento do dia, alguém comentou conosco de um bairro, chamado Efapi, que poderia ter locais mais baratos. Tivemos sorte, muita sorte! Fomos para o bairro e enquanto caminhávamos por ele, em busca de placas de aluguel, um senhor que nos observava perguntou se era uma casa que estávamos buscando e disse que tinha uma a oferecer. Esse mesmo senhor nos ajudou, trazendo com seu carro um fogão e dois colchões para a casa, e assim, só a noite, eu e meu irmão cozinhamos e comemos alguma coisa, já na nossa casa, tínhamos comprado uma panela, pratos e algo pra cozinhar no mercado. Moro na mesma casa até hoje. Vários momentos, no início, passamos dificuldades e não sabíamos o que íamos comer depois que acabasse o que tinha ali ou até para pagar a passagem de ônibus para ir para as aulas de português no centro. Eu sabia que precisava me esforçar porque eu pensava no início que se caso eu deixasse o Brasil, seria por causa da língua, que achei que nunca iria aprender. Só tinha ouvido falar de Chapecó algumas semanas antes de saber da universidade, por causa da tragédia que aconteceu com a queda do avião do time, de universidades que davam oportunidades assim para os haitianos eu só tinha ouvido falar da UNILA, em Foz do Iguaçu. Minha irmã ficou em Minas por mais um tempo, trabalhando e nos ajudando com dinheiro até conseguirmos resolver a questão dos estudos e buscar um emprego, quando ela veio nos visitar nas férias, nos ajudando comprando algumas coisas para a casa. Temos essa união na família, e um só vai estar bem se os outros estiverem, sem dívidas. Fizemos a prova do PROHAITI, passamos, e não voltamos mais para Extrema. Ficamos um tempo só em casa, eu e meu irmão, descansando depois de muito tempo sem parar de estudar e trabalhar. Fizemos contato com um vizinho, brasileiro, que nos emprestava gelo enquanto não tínhamos geladeira, ele entendia as dificuldades que muitos haitianos passam aqui. Logo depois as aulas iniciaram e começamos a fazer contato com mais pessoas.   68 O início das aulas foi algo incrível pra mim, eu estava realmente concretizando um grande sonho. Já iniciou a busca por trabalho. Consegui, a partir de uma publicação que vi no facebook, conversar com a proprietária e dar aulas de inglês na FISK de Pinhalzinho, mas tive que desistir porque era longe e sábado de manhã. Durante esse período, fui em uma agência de viagens do bairro, para ver alguns valores de passagem e conheci o proprietário da empresa, que é um haitiano que está a 4 ou 5 anos no Brasil, e ele gostou muito de mim. O dono perguntou do meu interesse em trabalhar com ele, se eu tinha tempo e vontade. Como eu já estava na universidade cursando um curso integral, expliquei a situação, mas que eu tinha necessidade, força de vontade e de aprender. Graças a isso, comecei a trabalhar na empresa e estou lá até hoje. Sou a mão direita do meu patrão e cuido de tudo quando ele está viajando. Só por causa do emprego e do que eu aprendi nele, final desse ano vamos poder realizar o outro objetivo, que é visitar nossa família no Haiti. Minha irmã, em maio, saiu do emprego em Minas e veio morar conosco, também fez o PROHAITI e agora está cursando Administração na UFFS. Estamos os três juntos novamente. Juntos e entre amigos haitianos, só falamos crioulo, mas se tiver algum brasileiro na roda vamos falar em português. Entre nós três, irmãos, acho que eu sou o que melhor se comunica em português, e entre meu irmão e minha irmã, acho que ele se comunica melhor, porque eu e ele tivemos possibilidade de socializar mais, conversar com as pessoas, e ele está no Brasil a menos tempo que minha irmã. Não é que ela socialize menos, mas os homens, tanto aqui como no Haiti, geralmente são mais abertos que as meninas, os relacionamentos delas são mais fechados que os dos homens geralmente. Acho que é um pouco falta de conversa, porque minha irmã tem mais amizade com haitianos que brasileiros. Sobre a universidade, acho que para todos os haitianos é uma coisa enorme estar estudando lá. Eu só acredito que em alguns momentos, os professores precisam dar a aula entendendo que não tem só brasileiros na sala de aula, pois se os brasileiros precisam estudar 24 horas, nós precisamos estudar 48, por causa da língua é tudo mais difícil. Acho que independente da matéria, quando tem estudantes de fora, eles deviam perguntar se está tudo bem, se estamos compreendendo. É um dos motivos de muitos haitianos desistirem dos cursos, e eu escuto isso de quase todos, tudo por falta de relacionamento. Mas tem também a questão do trabalho, porque muitos desistem porque é muito difícil conciliar o trabalho e os estudos, principalmente quando é trabalho pesado, na Aurora e na Sadia, e muitos não tem a opção de parar de mandar dinheiro pro Haiti. O que a gente ganha de auxílio na UFFS também não dá pra se manter pagando aluguel, transporte e comida. É difícil. Mas somos nós que estamos na universidade que temos que lutar por todos os haitianos e aquilo que sofremos no Brasil, porque a sociedade brasileira vai ouvir antes nós do que aqueles que estão nas agroindústrias. A condição dos haitianos é muito diferente pra cada pessoa que vem, não é porque ela é haitiana que vem pro Brasil porque não tem condições lá, as vezes a falta de informação pode fazer as pessoas julgarem mal. Um dos grandes problemas é a nossa moeda, que é muito desvalorizada, então mesmo que você tenha muito no Haiti, aqui em real vai ser bem menos, o que deixa as coisas mais difíceis. As vezes a gente sofre um pouco, mas também por opção, por não querer pedir ajuda pra quem tá no Haiti. Acho também que o relacionamento entre os haitianos é ruim aqui no Brasil, porque acontece o mesmo que no Haiti, aquela coisa de ver só minha personalidade, minha família, meu interesse, e o do outro não importa. Nem todas as relações são assim né, mas muitas vezes. O problema também é generalizar, porque se um haitiano faz alguma coisa ruim, as pessoas já acham que todos vão fazer igual.   69 *** Falando um pouco das minhas saudades, em primeiro lugar está a minha família, a parte que ficou no Haiti, o meu lar. Depois vem a comida! Já pedi para minha mãe guardar um cabrito só pra mim, pra quando eu visitar, porque fazem três anos que não como. Eu quase nunca vi no Brasil, assim como várias outras comidas. Sinto falta das árvores do terreno da minha casa, do som que elas fazem, que quando estou ali esqueço de tudo. Sobre minha pretensões e sonhos, tem alguns que são surpresa, mais pessoais e outros mais abertos. Os mais abertos são muitos, mas pra 2017 eu já consegui tudo o que eu queria, estou na universidade e vou poder voltar pra visitar minha família. Pro próximo ano eu tenho alguns planos, como ter mais saúde, mais estabilidade, trabalhar menos. Quero ter alguma coisa, como um carro ou uma casa, vamos ver se consigo ano que vem, mas os meus projetos nunca tem limites. Também quero trazer meus pais para cá, para visitar. A longo prazo tenho vários planos, muitas casas, carros, ajudar as pessoas. Quero conhecer países e os próximos serão Argentina e Chile, para visitar. Quero ter também um visto schengen para visitar a Europa e os EUA, não para ir no ano que vem, mas acho que é necessário ter, é uma coisa básica. Eu tenho dois países agora, tenho o Haiti e o Brasil, se vou ter três países, não sei ainda. No momento não vou voltar pro Haiti, porque não tem como, mas o Haiti sempre vai ser meu país. Posso ter alguma coisa no Haiti, mas preciso ter algo além disso, fora do país. Os meus planos são mundiais, não são para um país só. Se vou tentar me nacionalizar brasileiro, tudo isso, ainda não sei, vamos ver se vou encontrar alguém, casar com uma brasileira, aí sim. Mas ainda tem tempo, e tem mulheres lindas no Brasil. Eu quero marcar meu século, para que depois de cem anos ter pessoas que lembrem que eu fui e as coisas que eu fiz, porque não adianta viver aqui uns noventa anos e ninguém saber que você existia. Ser esquecido é um dos meus medos. Eu não sei como vai ser, se eu vou terminar a minha história no Brasil, no Haiti, EUA, Alemanha, não sei, mas eu sei uma coisa, que eu tenho que ter sucesso. Não sei como que vai ser, em qual área? Não sei. Se vai ser na que eu estou estudando, se vai ser em outra coisa, mas eu sei o que eu tenho que ter.   70 4 MEMÓRIA E CONVENÇÕES SOCIAIS NAS FALAS DOS HAITIANOS NO BRASIL As entrevistas de história de vida realizadas com os haitianos que residem atualmente no Brasil demonstram uma memória ligada diretamente aos processos migratórios e transitórios dos haitianos, dentro dos contextos familiares, escolares e sociais em geral. Dessa forma, o capítulo atual é voltado para a análise das marcas que a mobilidade, como característica haitiana, é representada e ligada a memória e formação cultural desses indivíduos. Em um segundo momento, serão observadas de maneira mais próxima a ligação familiar e de afeto, que envolve amigos, vizinhos e diversos graus de parentesco, a maneira com que aparecem nas memórias e seus papéis diante das dinâmicas de mobilidade estabelecidas. Considerando a importância do papel familiar na formação social do indivíduo e consequentemente, da proximidade com a possibilidade de migração, é proposta uma reflexão sobre tais papéis antes da saída do sujeito do país, durante a mobilidade e nos momentos de retorno ao Haiti. Para falar em família, o termo em crioulo que melhor pode abranger o seu significado em níveis de parentesco, laços de amizade e outras afinidades como vizinhos, além de identidade e universo do indivíduo, seria fanmi12. Quando no texto o sentido de família abrange essa amplitude, se utilizará do uso do termo. Alguns aspectos sociais se destacam por terem sido citadas com frequência pelos narradores e outros por não serem salientados. O terceiro momento do capítulo se volta para as questões relacionadas à sociedade e instituições sociais haitianas, refletindo sobre seus papéis na inserção social e formação identitária cultural. Deste segmento se destacam a língua crioula e o voduísmo, marcantes para a história de revolução haitiana, que são evidenciados de maneira distinta nas narrativas. 4.1 MEMÓRIAS MARCADAS PELA MOBILIDADE Ao pensar a memória haitiana a partir das entrevistas realizadas, percebi a necessidade de refletí-las em conjunto com a característica cultural de mobilidade e hibridismo presente nos indivíduos. As lembranças narradas, carregam constantemente e de maneira indivisível traços que refletem a diáspora haitiana em condições cotidianas, dentro do contexto familiar,                                                                                                             12 Termo trazido por Joseph Handerson (2015) de acordo com afirmativa de Louis Herns Marcelin.   71 local, escolar até o presente. Para representar essa ligação, iniciamos com a seguinte fala de Roberson: Lembro também quando durante dezembro, quando meu pai volta lá [pro Haiti], teve uma vez que meu pai chegou, não lembro qual idade que eu tinha, só que eu vi que um cara chegou e fez "assim" [carinho] na minha mãe, eu pensei "quem é esse maluco aí?". Porque eu vi ele na foto, mas não conhecia muito bem porque eu não via, e aí foi assim, porque sabe, fiquei com ciúmes né. Fiquei meio bravo e depois eu perguntei pra minha mãe: "quem é ele?" E ela disse: "é seu pai!" e eu falei "sério? Sério? Esse é o pai? Meu pai? Meu…" Isso foi muito horrível porque depois ele chegou, me abraçou. Sabe como é quando você não conhece a pessoa, entendeu? Ele ficou um tempo conosco só. Eu só ouvia a voz dele porque a gente fazia assim: gravava e mandava numa k7, algo assim. A gente mandava lá e depois ele mandava de volta, e foi assim que a gente conversou, e eu vi na foto, mas não, face a face eu nunca vi. Então foi isso, é que foi uma coisa que, na verdade, eu não gostei porque você ver seu pai e você não sabe se ele é seu pai, foi horrível também. (DAMIS, 2017) A fala de Roberson expressa o quanto a mobilidade se faz presente na vida dos haitianos. Essa narrativa foi em resposta ao questionamento sobre a lembrança mais antiga que ele tinha, que marcava sua vida, e prontamente ele contou como foi “horrível” não reconhecer seu pai que trabalhava fora do país, em Bahamas, desde que ele havia nascido. A maneira com que o narrador expressa esse sentimento, demonstra como o fato de não reconhecer o próprio pai o deixou chateado e foi extremamente marcante para ele quando criança. Em outro trecho, quando solicitado que falasse sobre seus pais, Roberson diz: Então quando eu nasci, em 1995, meu pai não tava, saiu do país, ele saiu para morar em outro país, em Bahamas, não sei se você já viu falar, no Caribe, e eu ficava com minha mãe. Eu não passei muito tempo com meu pai por causa disso, porque ele ficava viajando toda hora e ficava só um mês ou dois meses com a gente, só em dezembro, ele vai lá em janeiro ou fevereiro e volta em dezembro. Ele sempre passava o Natal com a gente. Mas é minha mãe sempre cuidava da gente, tipo ela fazia tudo por que eu tenho, eu tinha na verdade, mais quatro irmãos e minha mãe cuidava da gente e ele sempre ficava lá fora e mandava dinheiro para a gente para sustentar, para estudar e tal. Mas então ele para mim seria o melhor pai do mundo, vamos dizer assim, porque ele tem um caráter, eu queria ser igual, no caso, ele é muito inteligente. Aí em 2004 decidiu de ficar no Haiti, pra voltar, e falou uma coisa que eu acho que foi muito massa e até agora eu tô pensando sobre o que ele falou: que não dá para criar um filho ou uma filha vamos dizer uma criança somente com uma pessoa, vai faltar alguma coisa porque tem que ter o amor desses dois, o pai e da mãe e por isso ele decidiu para não ficar longe da família porque ele falou que em primeiro lugar, a família é primeiro lugar. (DAMIS, 2017) A ênfase ou o fato do narrador ativar de prontidão as memórias que estão relacionadas ao seu pai e a sua ausência física durante a infância, por conta da migração, podem ser motivações e sentimentos construídos durante um longo processo, que caracteriza a “falta” do papel paterno durante os anos de infância. O narrador também diz ter ouvido do   72 seu pai, quando decide voltar a morar no Haiti, a importância das duas figuras, tanto materna quanto paterna na criação dos filhos. Sendo assim, a ativação dessas lembranças como centrais também podem partir da sua construção de ausência do pai nesse período juntamente com a lembrança da fala que seu pai faz quando retorna ao Haiti. Concomitantemente, como sugere a teoria bergsoniana, as memórias ativadas pelo sujeito estão diretamente ligadas com o presente. Nas palavras do autor “é do presente que parte o apelo ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida” (BERGSON, 1999, p. 179), dessa forma, a situação presente do narrador, de também se encontrar na situação de migrante, longe do contexto familiar, considerado como prioridade em sua própria fala, pode influenciar na maneira como a mobilidade, representada pela figura de seu pai na infância, aparece nas memórias. Nas falas de Bernadel, a mobilidade, durante infância e adolescência, está ligada a figura de seus irmão e também, da sua própria movimentação dentro do país: A gente tem várias coisas com os antepassados, por que? Eu morava lá no Haiti, vivi lá e por isso a gente sabe alguma coisa. Por exemplo, quando eu estava bem pequenininho vivi com meus parentes lá no Haiti, no sul desse país, por isso a gente tem que batalhar e lutar pra sair de lá, por que? O estado Sul não é o estado que está muito bom. Tem que batalhar pra estudar, por isso tem que sair do Sul para morar no Oeste pra viver bem. Bernadel relata nessa passagem, que foi resposta a primeira pergunta do roteiro relacionada aos seus antepassados, a importância da mobilidade dentro do próprio país como possibilidade de melhoria de vida. Sendo assim, pude analisar que a mobilidade haitiana não está ancorada apenas no sentido saída do país, mas também é cultural a mobilidade dentro do próprio Haiti em busca de trabalho e melhores condições de vida, que geralmente levam a capital Porto Príncipe, ou até dinâmicas de mobilidade entre as casas sendo em que residem: Desde criança, as pessoas viviam indo e vindo entre lugares e casas diferentes. As crianças brincavam numa casa, comiam em outra, tomavam banho numa outra e dormiam em outra ainda. Estas casas podiam estar na mesma localidade formando “configurações de casas” ou em lugares diferentes. (HANDERSON, 2015. pp. 332, 333)13                                                                                                             13 Essa característica aparece nas falas de Roberson, citando que haviam duas casas no mesmo terreno, a de sua família e da sua avó. Por algum tempo, teriam morado alguns primos com eles também, e essa mobilidade acontecia entre as casas, pois de certa forma, “moravam todos juntos”.   73 A ativação das lembranças remotas no caso de Bernadel, também aciona diretamente a mobilidade como cotidiana e necessária. Quando questionado sobre os seus familiares, Bernadel relata: Infelizmente eu não conheci minha vó, e meu sogro também não conheci. Já foi morte antes que a gente nasce. Vivi só com minha mãe, mas deixei minha mãe no estado pra morar em outro lugar pra aprender a estudar. [Irmãos], tenho bastante. Mas eles deixaram o Haiti também pra buscar a vida. Estão lá na França e na Guiana Francesa. Por isso, a gente não conhece bem uma vida com a família. Eu falei que sair da casa da minha mãe, com quinze anos, pra morar em Porto Príncipe, e meus irmãos viviam na Guiana Francesa e na França. A gente não viveu com eles, mas tem, eu acho que são sete na Guiana Francesa, e o resto na França, Paris. São doze, ao todo. Sete na Guiana Francesa e cinco na França. (BERNADEL, 2018) Por ser penúltimo filho, Bernadel não teve chances de viver com a família. Ele não conheceu seu pai e seus irmãos saíram muito jovens do país. As palavras “viver sozinho” são frequentes dentro da narrativa de Bernadel (2018), pois na infância: “também, não tinha meus irmãos, não estavam junto comigo, eles já foram viajar. A gente não tem essa sorte pra viver com a família, certinho”. A mobilidade necessária de seus irmãos torna central em suas memórias remotas, de infância, sentimentos demonstrados com tristeza de não poder viver com sua família. No caso de Marie, a mobilidade aparece muito cedo, quando sua mãe precisa mudar de cidade para continuar os estudos e Marie permanece morando com os avós por dois anos. Mais tarde, na adolescência, seu namorado viaja para morar com a família nos Estados Unidos e o namoro continua por algum tempo, à distância. De qualquer maneira fica evidente nas lembranças o que Joseph Handerson afirma em sua tese: “Desde cedo as crianças convivem com a mobilidade dos seus colegas da escola ou dos seus bairros, partindo ou viajando. A mobilidade é constitutiva do cotidiano haitiano” (2015, p. 186) independente da idade do sujeito. Desde as passagens que remontam os períodos mais remotos até os mais atuais das lembranças dos narradores, a memória e a diáspora são indissociáveis, representando como a mobilidade e cruzamentos étnicos se constituem identidade do sujeito. Segundo Stuart Hall (2015), isso não significa perder a identidade “enraizada” através da homogeneização das culturas, mas sim, compreender que a globalização e os processos de hibridismo cultural criam novas identificações “globais” e também novas identificações “locais”. Segundo análise voltada ao processo psíquico e identitário da mobilidade haitiana, indica que:   74 O processo de ressignificação da identidade pode ser definido como a busca em sentir-se pertencente, sentir-se adequado ao local onde se encontra, ou ainda construir um novo significado/ sentido à vida. Para o imigrante esta necessidade torna-se mais evidente, pois este em geral está em local culturalmente distinto do seu de origem. (OLIVEIRA et al., 2016) Concebi, dessa maneira, que os processos de ressignificação identitária não permanecem com o indivíduo que migra, mas alcança, em menor escala, os membros da fanmi que permanece no Haiti. Segundo Hall (2015. p.52), as identidades “não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e ao mesmo tempo, várias casas”. Dessa forma, assim como a possibilidade de compreensão das identidades em movimento, a memória do imigrante e seu registro estão ancoradas de maneira estratégica na forma como nos visualisamos americanos na atualidade, nos desvencilhando da dependência epistêmica e histórica eurocêntrica: A “amnésia cultural”, resultante do processo de desqualificação da tradição e da origem enquanto chaves operatórias para o entendimento das trocas culturais e do nosso estar-no-mundo- de latino-americanos, é condição positiva para se criar espaços de intervenção menos dependentes e menos inferiorizados. É assim, ferramenta conceitual para a compreensão de um mundo sujeito a transformações vertiginosas e “sem dono”, cujas representações se constroem enquanto releitura e “invenção”, ao invés de nos conduzir ao pretensamente autêntico espaço de origem.” (CURY, 2006. p.305). Analisar as lembranças dos imigrantes haitianos presentes no Brasil, permite então além do registro histórico dessas experiências de vida e de busca de melhorias de vida na globalização, pensar a cultura, identidade e a própria memória a partir de nós mesmos, como sujeitos americanos que passaram violento processo colonial. A memória em movimento se torna chave no processo de re-inventar e repensar a própria história e formação política, econômica e social da América e dos indivíduos que a constituem. 4.2 FAMÍLIA: DINÂMICAS DE MOBILIDADES E LAÇOS AFETIVOS Tanto as memórias de história de vida dos entrevistados, quanto o material bibliográfico e literatura haitiana, colocam em evidência o local e importância da família para a formação social haitiana, a maneira como ela localiza e estrutura as identidades coletivas e individuais. Por esses fatores e pelo destaque dado a essa instituição nas lembranças dos entrevistados, considerei necessário compreender a maneira como a família ou os outros laços afetivos influenciam na formação social e na mobilidade dos haitianos.   75 Como na já citada fala de Roberson “família é primeiro lugar”. Nas memórias narradas, o papel familiar e a sua dinâmica e identidade é o fator principal de inserção na sociedade e na própria mobilidade. Esse papel familiar e sua integridade são demonstrados no meio social a partir dos indivíduos e segundo Roberson, a família precisa ser “preservada” na sua posição de “boa e íntegra” por cada membro pois as “cobranças” sociais ultrapassam o sujeito, atingindo o “nome da família”: Porque sobre o que eles [pais] impedem a gente fazer, é tipo, para não fazer besteira, para não sujar o nome, porque lá no Haiti fala sujar o nome da família quando você faz uma coisa errada, porque mesmo quando você fala: “foi o Roberson que fez”, eles vão falar que foi o filho de tal, e isso às vezes é um impacto grave. Eu fui, eu sou testemunha disso, quantas vezes eu vi uma pessoa na rua que fez alguma coisa aí vai falar assim “ah, você não é filho de tal?”, “a sua mãe não é tal?”, “nossa, sua mãe não é assim”, “o pai dele é muito gentil”, entendeu? Tem muito isso né, só para você ter uma ideia. Eu às vezes fico muito feliz, é que quando eu tô conversando com a minha mãe e com meu pai e eles falam: “não tem como reclamar de vocês” quando tá falando sobre mim meus irmãos, eu acho que é muito, muito bom ouvir isso porque às vezes tem pais que falam “ah meus filhos são inferno”. (DAMIS, 2018) A fala do entrevistado demonstra como existe uma ligação ou “identidade familiar”. A conduta estabelecida por um dos membros, é pensada considerando o “histórico” de comportamento e características de sua família. Segundo Handerson (2015), existes condutas estabelecidas para aqueles indivíduos ou famílias que arcam com suas promessas e dívidas. Tais pessoas têm possibilidade, por exemplo, de fazer compras a fiado, em algumas cidades. A identidade individual e familiar no caso de Roberson, era confusa: Se tinham um comportamento diferente, e você já é mais ou menos, aí vão falar o que "ah, seus irmãos não estão assim". Agora eu sei que [meu irmão] é uma pessoa e eu sou outra pessoa, mas antigamente não era assim, eu pensava que ele é uma pessoa e eu sou a mesma pessoa, porque o que ele tá fazendo de certo eu também tenho que fazer. (DAMIS, 2018) O histórico familiar, os antepassados e a identidade familiar manifestam ser muito respeitadas, como primordial, aquilo a que se deve sacrifícios. Para Roberson (2017): “agora o meu maior objetivo é o quê? Primeira coisa é família, sempre vai ser, e depois é estudo...” Ao pensar a questão familiar a partir da violência do sistema colonial, uma das coisas que foi negada aos negros escravizados na América, era o direito à memória e a família, os laços afetivos e sentimentais. A importância da família nos alicerces atuais no Haiti podem atuar como contraponto aos laços retirados a partir da crueldade colonial, pois:   76 Com estratégica crueldade e rude pretensão, procurava-se condenar o negro à dúvida da origem, assim como à ignorância do ponto de chegada, buscando fazer do escravo uma tabula rasa. Um ser sem memória, sem afetividade, sem laços de família, sem vínculos de pertencimento, sem história a ser partilhada. Eis o projeto escravagista em sua face cruel, pois significava negar ao escravo a sua humanidade. (HANDERSON, 2010. p. 72) Essa negação efetuada durante tanto tempo no projeto colonizador, que objetivava a retirada dos enlaces sentimentais que caracterizam, assim como a religião e a língua, sua tradição, memória e humanidade, podem ter sido convertidas na atual posição da família e dos laços sentimentais, afirmando assim sua ancestralidade e humanidade por tanto tempo violentadas. Abrangendo essa discussão, Frantz Fanon destaca a necessidade de demonstração dessas características em contraponto ao que o branco colonizador impõe, quando diz que: No caso do negro, nada é parecido. Ele não tem cultura, não tem civilização, nem “um longo passado histórico”. Provavelmente aqui está a origem dos esforços dos negros contemporâneos em provar ao mundo branco, custe o que custar, a existência de uma civilização negra. (FANON, 2008, p. 46) Na fala de Bernadel, já citada, ele ressalta que “não tem essa sorte pra viver com a família, certinho”, lamentando a maneira com que viveu e vive distante de toda a sua família, inclusive tios e outros que nunca conheceu. Em suas palavras: Porque eu não sabia se tem irmão da minha mãe. A família da minha mãe, eu não conheci ninguém, só vivi com minha mãe e também eu não tenho pai. Minha mãe nunca me conta meu pai. É assim que a gente viveu com a mãe. Talvez ela tenha tio, tia, mas eu não tive a sorte de conhecer. (BERNADEL, 2018) A família é colocada também num papel central em sua fala, porém, a necessidade da mobilidade e as questões sociais, impedem Bernadel de conhecer e viver com seu núcleo familiar quando criança e jovem. No entanto, quando fala dos motivos de sua mobilidade atual, cita, assim como Roberson que é para ajudar a família. Quando questionado se pretende estudar, Bernadel responde: É… sim. A gente tem intenção de estudar. Mas, também sabe que a gente não saiu pra vir estudar, saí pra vim trabalhar. Trabalhar, ganhar dinheiro, ajudar a família. Compreende? Mas, chega a gente não sabe falar, como a gente vai saí se não sabe falar? Tem que saber primeiro o idioma e depois aprender uma profissão, qualquer coisa que a gente precisa. Compreende? Agora vou batalhar pro meu filho estudar. Sou velho já! (BERNADEL, 2018) As oportunidades que Bernadel não teve por viver sozinho a maior parte de sua juventude, a distância da família, aparecem como motivações para não ficar distante da   77 família que formou com sua esposa e filho. Ele relata a dificuldade de deixar os dois no Haiti, buscar uma vida fora do país, sem saber ao certo onde iria. Mas um ano depois de se estabelecer em Xanxerê e conseguir emprego, conseguiu juntar o dinheiro suficiente para que sua família também viesse. 4.2.1 Fanmi e a mobilidade Todos os relatos demonstram que os narradores conheceram a mobilidade, dentro do núcleo familiar, já durante a infância com a saída de membros do país ou de sua cidade, em busca de melhores condições. A fanmi é geralmente o local central de inserção na mobilidade e dela que parte a necessidade de saída. As condições citadas anteriormente que geram a necessidade de mobilidade haitiana na atualidade atingem de maneira inicial esse núcleo: as famílias, responsáveis pela inserção social e pela manutenção das condições de vida, não conseguem manter economicamente, por falta de emprego e políticas sociais, essa sustentação. A necessidade primária, principalmente de alimentação e financiamento dos estudos, aparecem como objetivos finais do salário dos haitianos que vivem no Brasil. No contexto de precarização nesses setores, Enel Vil (2006) já relatava que: los trabajadores se han visto obligados a buscar mecanismos de sobrevivencia, a través de adecuaciones a su economía familiar o comunal; contratándose en la economía informal; emigrando a otras regiones y países del planeta; empleándose en las maquiladoras de exportación, que ofrecen los empleos peor pagados y riesgosos; cambiando sus hábitos de consumo y aumentando el número de miembros de la familia que trabajan en los mercados formal e informal, con el fin de completar el ingreso familiar, entre otros medios de subsistencia. (VIL, 2006. p. 36) Dessa maneira, a mobilidade e a família estão ancoradas em uma condição econômica e social mais abrangente, reflexos da constituição da formação haitiana, se caracterizando base de condições de sobrevivência e subsistência. A economia haitiana e a organização de milhares de famílias está baseada na mobilidade do sujeito que está fora do país. A importância do papel familiar na mobilidade é expressa nas falas dos entrevistados em diversos momentos, como motivação central de saída do país e também motivação e força para ultrapassar as dificuldades. Roberson comenta diversas vezes sobre realizações de reuniões com seus pais para decidir a situação de sua saída do país e como eram pensadas coletivamente tais procedimentos, como financiamento e destino. No entanto, cita várias vezes falas da sua mãe como essa: "então como eu não gosto de que você fique na   78 capital, você vai ter que escolher um país. Ou você vai lá com seus irmãos, na República Dominicana, ou você escolhe um outro país", e de seu pai: “Ele me falou isso na quinta-feira e eu tenho que sair no domingo de manhã, cedo”. De qualquer maneira, sua saída estava definida, mesmo que ele não quisesse sair do país, o planejamento e orçamento familiar não via alternativas. Eu não queria sair do país na verdade, porque eu queria ficar lá e estudar no meu país, porque lá a gente já tinha uma convivência com minha família. E outra, também com uns amigos que eu tinha lá. Aí eu queria estudar lá no país, mas era por dois motivos, primeiro pra não ficar longe da minha mãe e o outro seria, porque eu tinha meus irmão que estavam lá na República Dominicana, vizinho do Haiti, e lá era aquela coisa, sua irmã mais velha foi, seu irmão, sua outra irmã foi, ai você vai ter que ir também. (DAMIS, 2017) Se seus irmãos tinham migrado, ele também deveria. A lógica e identidade familiar pensada na mobilidade geralmente envolve o coletivo que cerca e que financia a viagem. A dinâmica coletiva das lógicas de mobilidade merece uma atenção. Para além das sociais, há várias lógicas familiares no mundo social das mobilidades. Uma série de estratégias é utilizada em algumas famílias, para decidir quem viaja e a ordem dos candidatos à viagem. Uns são escolhidos antes do que outros para viajar. Esse processo não é uma construção mecânica e unidimensional. Para tomar tal decisão, uma variedade de questões é levada em conta pelos que financiam a viagem. (HANDERSON, 2015. pp. 183, 184) Dessa maneira, existe uma relação muito próxima entre os escolhidos a partir e aqueles que ficam, pois aquele que migra, escolhido pela fanmi, parte com a responsabilidade de trazer os retornos aguardados por aqueles que ficam. Os critérios de escolha não são iguais ou pré-definidos, mas planejados através das possibilidades, ajustando as relações internas da família através das dinâmicas de circulação. (HANDERSON, 2015) Isso explicita o grande fluxo inicial para o Brasil na presente década, de homens de idade mediada com condições de arcar com trabalhos intensos e pesados, que só seriam disponibilizados para pessoas do sexo masculino. Compreendendo que a maioria das vagas oferecidas no sul do Brasil eram nessas áreas, foram esses homens que se direcionaram inicialmente para a região, caracterizando o segundo movimento mais feminino, onde vieram grande número de esposas com os filhos. (BORDIGNON, 2016) Esses indivíduos partem com a possibilidade do que Bernadel cita diversas vezes: “tem que ajudar a família”. A família, parte do processo migrante, aguarda o retorno da empreitada no exterior para suprir, geralmente, as necessidades básicas. Segundo Handerson (2015), é negado a esse escolhido para viajar, a possibilidade de não obter sucesso financeiro   79 na viagem. São sua responsabilidade a manutenção da escola14, dos rituais religiosos (roupas para a primeira comunhão), rituais de morte (velórios), entre outros. Para além da manutenção e ajuda familiar, o envio de dinheiro ao Haiti simboliza que esse sucesso está sendo alcançado e a legitimação total está no ato de “mandar buscar” outro familiar que ficou no Haiti. “Realmente, é assim, como é que eu cheguei primeiro no Brasil, quem sempre é… carrega mais, sou eu.” diz Roberson, que mesmo sendo o filho mais novo, foi o primeiro dos irmãos a sair da ilha onde fica Haiti e República Dominicana, e demonstra seu orgulho quando ajuda seus irmãos e primas a virem ao Brasil representando seu sucesso na mobilidade. Da mesma forma Bernadel, que apesar de citar que a situação financeira fica mais apertada com a chegada da esposa e filho no Brasil, juntou em um ano o dinheiro necessário para as passagens. As expressões haitianas, chèche lavi miyò (tentar uma vida melhor), chèche lavi lòt bò dlo (tentar a vida além do mar), chèche lavi aletranje (tentar a vida no exterior) (...) essa busca não se resume apenas à pessoa que viaja, mas também aos familiares que ficam é a busca de uma melhor condição de vida, um melhor salário para garantir à família, um melhor nível de educação, sobretudo, uma moradia digna que se concretiza através da construção de uma casa no Haiti. (HANDERSON, 2015. p. 182) As lembranças demonstram, a partir disso, que a mobilidade e a família, além de centrais na memória, possuem uma dinâmica coletiva, que não pode ser desvencilhada, mas ela é por conseguinte, completa. 4.3 CONSTRUÇÃO SOCIAL: ENTRE O DITO E NÃO DITO A infância e adolescência: o local de convivência e da formação identitária, de se conhecer e conhecer aquilo que faz parte de si, a introdução e a socialização. Todo esse momento da vida do indivíduo é reativada, ou melhor, (re)inventada, durante uma entrevista de história de vida. Os narradores viveram e formaram essas características no Haiti, em regiões distintas, no entanto, carregam traços singulares que nos aproximam um pouco mais de como é, ou como foi para Roberson, Marie e Bernadel, a socialização e formação nos espaços pessoais - principalmente em suas casa - ou sociais, caracterizado principalmente pelo papel escolar no seu país de origem. Perante as singularidades das experiências dos indivíduos e inúmeras possibilidades de temáticas possíveis de análise a partir das falas, necessitei limitar                                                                                                             14   Segundo HANDERSON (2015), a escola é mecanismo de preparação do familiar que fica para a migração futura, dessa maneira, manter o parente em boas condições escolares é fundamental.   80 alguns temas que se tornaram centrais dentro das narrativas quanto as experiências e formações sociais no Haiti. Além do fator da importância da família já trabalhado, um tema quanto às experiências narradas por Roberson que se mostrou central foi a centralidade das casas (kay em crioulo), de sua construção e do caráter e status social que ela representa. Roberson (2018) nos diz que “lá [no Haiti], quando você tem um monte de bens você é rico. Você não tem dinheiro guardado, mas se você tem bastante casas ou terrenos enormes, você é rico”. A fala do narrador se volta em diversos momentos da narrativa das memórias a situações sociais no Haiti que envolvem a kay, principalmente porque seu pai, com o dinheiro que conseguiu trabalhando fora do país, construiu quatro casas no Haiti, durante sua infância. Em sua tese, Joseph Handerson (2015) nos demonstra de maneira explícita a importância das casas para contexto social haitiano, enfocando na diferenciação arquitetônica e de status das casas que são construídas por aqueles sujeitos que não estão morando no Haiti, as kays diaspora. Assim, a casa no Haiti se configura como demonstração e segurança de poder aquisitivo numa realidade de dificuldades diárias e também como reflexo de mobilidade, pois no Haiti, “a casa não é percebida apenas como lugar, estrutura física, mas também como um processo que se constrói no contexto de mobilidade” (HANDERSON, 2015. p. 276). Diante da dinâmica intensa que permeia a casa e as relações que estabelecem sobre 15 ela , vale ressaltar a importância a que ela se configura no que se refere às relações sociais, principalmente quando se fala em estabilidade. Segundo as falas de Roberson, para o indivíduo haitiano poder casar, além do homem (narrador se refere à figura masculina) ter que realizar serviços a família da mulher com quem pretende estender os laços matrimoniais, existe a mínima exigência de que o homem possua uma casa, pois ela representa a possibilidade de estabilidade necessária para iniciar uma família. Nas palavras de Roberson: A questão de casamento lá é também, como posso dizer, uma coisa gigantesca. Pra eles é muito, porque pra casar, lá, você tem que ter tudo. Quando falo tudo, você tem que ter pelo menos uma casa, não precisa ter um carro, porque aqui, né, é carro primeiro, ou motocicleta, e lá as pessoas tem casa antes. Meu pai teve três casas antes de ter um carro. (DAMIS, 2018) Essa necessidade exigida pelas famílias diante da possibilidade de união de matrimônio se forma como garantia de alcance das necessidades básicas dos sujeito,                                                                                                             15  Informações mais detalhadas das dinâmicas, configurações das casas e relações familiares a partir dela, podem ser encontradas no trabalho de Flávia Freire Dalmaso denominado “Moram em um lugar, viver em outro: a mobilidade haitiana vista a partir de suas casas”, cuja referência completa está listada ao final.     81 considerando as dificuldades no que tange a subsistência da maioria das famílias que residem no Haiti. Outros aspectos sociais consequentes da estrutura econômica frágil do país aparecem na narrativa de Roberson, como quando é questionado sobre alguns tabus e “regramentos” estabelecidos quanto às atividades sexuais dos jovens haitianos, que são indicados a esperar ter idade, formação e emprego antes de iniciar suas relações: Não é uma questão somente da cultura, é uma questão de preparação também. Imagina só, o cara com 15 anos ter um filho… Aqui no Brasil não é nada, mas lá no Haiti é muito, porque lá o cara tá com 28 anos, não consegue trabalhar… Imagina o cara com 15. (DAMIS, 2018) Para o narrador, não se pode ancorar algumas práticas sociais apenas em alicerces culturais ou influências religiosas, mas algumas práticas são consequência de estruturação econômica, política e social de muitos anos, obrigando a população a se adequar as maneiras e modelos de vida possíveis, assim como se adequou e incorporou a mobilidade. Incorporado a logística de adequação perante as necessidades aparentes, os relatos coletados também direcionam na formação social haitiana o caráter de divisão do trabalho, no âmbito familiar, quanto ao gênero. Os homens, como já citados, geralmente são os primeiros da fanmi a emigrar do país em busca de trabalho, enquanto a maioria das mulheres permanece no país exercendo outras atividades para completar a renda necessária para o sustento. Segundo relato de Pâmela Marques (2012), são notoriamente as mulheres que dominam as práticas de comércio no Haiti, em “mercadinhos” localizados perto das casas ou nos mercados de rua que se prolongam por quilômetros em algumas localidades. A avó de Marie, era comerciante, a mãe de Roberson tinha um mercadinho na frente de casa e a mãe de Bernadel, sustentava sozinha seus filhos a partir da venda dos produtos de sua agricultura. É importante destacar que a questão de gênero no Haiti, tanto na questão de trabalho quanto de estrutura familiar e social, necessita de um estudo mais aprofundado e não haverá oportunidade de adentrar no debate aqui16, apenas se entrará nos dados referentes às informações diretamente representadas nas falas e às mulheres haitianas no Brasil, a partir das informações presentes nos relatos de Marie. Quanto a introdução no meio social dos indivíduos, as histórias de vida possibilitaram perceber que o maior contato social se dá, fora da casas e da família, nas                                                                                                             16 Para aproximação do debate de gênero no Haiti e outros que permeiam essas relações, indico a leitura da tese de doutorado de Rose-Myrlie Joseph (2015) nomeada “L’articulation des rapports sociaux de sexe, de classe et de race dans la migration et le travail des femmes haïtiennes”, até o momento disponível apenas em francês, e a tese de Michaëlle Desrosiers denominado “Trabalho, mulheres negras e zonas francas no Haiti contemporâneo: o “empresariado humanitário” neocolonial em movimento”(2014).   82 instituições escolares. Os relatos, com exceção do de Marie, trazem poucas socializações externas ao ambiente escolar, como encontros e brincadeiras com amigos em ruas ou praças. A escola é central quando se fala da infância e da adolescência, o local de experiências e inserção social. Entre os entrevistados, todos tiveram oportunidade de frequentar regularmente uma escola no Haiti, pública ou paga, realizando toda a formação básica. Dois deles, Bernadel e Marie, iniciaram um curso de ensino superior no próprio Haiti. Isso nos revela algumas características sociais dos entrevistando, quando se considera que as condições para realização dos estudos no país não são consideradas funções do Estado, voltados quase totalmente para iniciativa privada, sem efetivação de políticas de inclusão das crianças e adolescentes na educação básica. É importante ressaltar que 50% das crianças haitianas estão fora da escola e, entre as que estão dentro, mais de 80% frequentam escolas privadas. Nessas, a prática de “seleção por eliminação” vem afastando centenas de milhares de jovens do ensino médio e superior. (MARQUES, 2012. p.106) Marques (2012) teme que o sistema de ensino haitiano reproduza uma estrutura baseada na exclusão, garantindo ensino e aprendizado, que são essenciais para o alcance de condições de trabalho no Haiti, apenas para a elite econômica. As falas dos entrevistados refletem essa busca e dificuldade que se mostra o estudo para as famílias em situação econômica menos favorecida. Bernadel cita diversas vezes que “tem que batalhar pra estudar”, enquanto relata as dificuldades enfrentadas por sua mãe, para conseguir mantê-lo na escola. Roberson também cita a importância qualificação nos estudos como necessidade social econômica: Você tem que ter um trabalho, pelo menos um estudo, porque lá eles dão muito valor pra isso. É por isso que você vai ver os haitianos sempre se esforçando, porque tem um monte de pessoas lá com diplomas e não conseguem trabalhar, imagina só, porque aqui é diferente, aqui é muito raro você ver um cara com dois diplomas e não conseguir trabalhar. (DAMIS, 2017) A formação acadêmica é muito importante para o alcance de algum emprego no Haiti, e como reflete Roberson em outro trecho, se “às vezes você tá com dois diplomas e não consegue trabalhar lá, imagina o cara que não terminou o ensino médio”. A luta pelo estudo formal, mesmo que sem apoio governamental, é uma luta da população haitiana. O objetivo dos pais e daqueles que migram é também conseguir bancar as escolas e possibilitar uma vida digna para as próximas gerações, como um investimento para o futuro:   83 A diferença estava no fato de que apenas 10% das escolas haitianas são públicas e que pagá-las, num país onde 80% da população sobrevive com menos de um dólar por dia, pode ser a diferença entre comer ou não. Ainda que eu sentisse que a formação do haitiano se dava sobre tudo fora da escola, e que esses ambientes marcados pelo estar junto coletivo eram extremamente pedagógicos, percebi que a comunidade desejava a educação formal, que viam nela uma alavanca para o futuro de seus filhos, a despeito da pobreza em que viviam. (MARQUES, 2012. p. 103) Os entrevistados se enquadram na média populacional que alcançam, com esforços, as vagas nas escolas haitianas, tendo local de centralidade nas falas que direcionam a socialização na infância. Alguns dados interessantes aparecem nas narrativas, principalmente quanto a presença intensa da Igreja Católica frente a educação pública, a divisão de gênero, e os regramentos comportamentais instituídos. Os três narradores destacam que estudaram - pelo menos por algum período - em escolas privadas, que caracterizam em média 83% das escolas haitianas, enquanto apenas 17%17 são públicas. Segundo Join (2008), existe uma grande dificuldade do governo haitiano em colocar em prática as reformas educacionais propostas pois os meios políticos e econômicos do país dificultam tais execuções. O autor nos diz que os poucos governantes que de alguma maneira tentaram realizar modificações, efetuaram mudanças que parecem coincidir com o modelo e a lógica de oportunidade desiguais que reforçam as desigualdades sociais do Haiti. Roberson e Marie também destacam o fato de terem estudado em escolas católicas, onde práticas religiosas eram obrigatórias, independente da crença do sujeito. Quanto a isso, Join (2008) também destaca o acordo do governo haitiano com o Vaticano em 1860, onde torna a Igreja responsável pela educação principalmente da classe mais abastada haitiana, abrangendo mais tarde a prática a classes menos favorecidas. Quanto o ambiente escolar como local de formação identitária do indivíduos, se destacaram alguns aspectos citados pelos entrevistados quanto a comportamentos e regras que as instituições, voltadas aos padrões e normas eurocêntricas. Marie cita que uma das lembranças que lhe surgem quando lembra a época da escola, é a vestimenta obrigatória de uniforme com saia abaixo do joelho e a maneira que as meninas tinham que usar o cabelo: Tipo, o cabelo, a maioria das crianças daqui [Haiti] tem cabelo crespo, cabelo cacheado, porque aqui não tem branco, só tem negros e, como que é, tipo, miscigenação, tem essas pessoas e são esses tipos de pessoas que tem na escola. Aí                                                                                                             17 Os dados das referências bibliográficas diferem quanto a essas porcentagens, mas as referência utilizadas dos últimos 10 anos, trazem números que não diferem em mais de 10%.   84 você não pode ir na escola com o cabelo solto, você tem que amarrar o cabelo, tem que pentear e amarrar o cabelo. Outra coisa, você não pode trançar e fazer nagô no cabelo pra ir pra escola, não pode botar aplique pra ir pra escola, fazer as tranças com aplique, você não pode. Você não pode ir pra escola, tipo, com dread, essas coisas. (DIVERS, 2018) Com a população negra e característica de cabelos crespos e a cultura das tranças nagô, a negação dessas expressões corporais culturais na escola, demonstram uma negação aos traços culturais afro presente nas estudantes. Roberson nos diz que na escola pública católica que estudou no que corresponde ao ensino fundamental no Brasil, as escolas eram divididas por gênero: nas escolas dos meninos, professores “normais”, com formação, dava as aulas, independente das ligações religiosas, enquanto na escola de suas irmãs, quem mantinha o ensino eram as Irmãs ou freiras ligadas a igreja. Configura-se um ensino diferente ao que concerne o gênero em algumas instituições escolares no Haiti, onde o nível de escolarização das mulheres ainda é muito inferior ao dos homens. Resultado que pode ser observado dentro da Universidade de Estado do Haiti (única instituição de ensino superior pública), onde: Há uma marcada sub-representação e elevada especialização involuntária feminina em meio ao corpo discente de praticamente todas as áreas, com exceção da enfermagem. A participação das estudantes nos cursos superiores, seja em outras áreas da saúde, seja em cursos técnicos ou das ciências humanas, tem-se mantido extremamente baixo ao longo dos anos, e isso apesar de um desempenho escolar equiparável (ou mesmo melhor, diriam muitos) ao dos seus colegas. Um problema como esse denuncia a persistência de fatores econômicos e de segurança envolvidos na decisão das mulheres de deixar o sistema escolar antecipadamente ou de optar em meio a um espectro muito estreito de carreiras. (MARQUES, 2012. p. 110) Dessa forma, a escola se mostra como um local divisor e marcador de status e classe social: aqueles que estudam representam a parcela que, mesmo com dificuldade, encontra meios de frequentar, e aqueles que não alcançam a oportunidade pelos espaços econômicos e sociais que ocupam. A elite haitiana, que domina grande parcela dessas instituições de ensino (“fundamental” e superior), expande nesse meio de socialização e de formação identitária e de conhecimento, sua ideologia comportamental e ética baseada nos traços dos colonizadores franceses, inferiorizando em diversos momentos as características sociais da massa populacional. As elites haitianas têm desenvolvido uma abordagem discriminatória frente a seu próprio povo que teve o efeito de marginalizá-lo sem qualquer consideração, dado a sua assimilação das teorias racistas da suposta inferioridade dos negros. Essas mesmas elites, se tivessem a pele negra e escura, se consideravam brancas de cultura, pois queriam se distinguir das massas por sua língua (francês), religião (catolicismo), educação e boas maneiras. O dilema haitiano vem justamente do fato   85 de que as teorias racistas de inferioridade negra, embora formalmente combatidas, são promovidas para justificar a exploração dos camponeses. Hábitos que remontam aos tempos da escravidão são mantidos e reproduzidos. (CHARLES, 2015. p.38) A escola se mostra, nas lembranças dos narradores, o espaço em que eram definidos os comportamentos, vestimentas e linguagens corretas a serem usadas. O ambiente escolar se torna além de divisor econômico e social, um divisor cultural, na medida que de certa forma afasta a criança e adolescente de laços históricos que o crioulo e o Vodu carregam com força, na cultura popular haitiana. 4.3.1 “É proibido você falar crioulo”18 Não há um consenso entre os linguistas atuais sobre o que determina uma língua crioula, mas a tradução literal do termo seria “criado em domicílio”, e fazia referência a tudo que tinha origem nas colônias ibéricas, aos não-indígenas que nasciam na colônia, ou tudo aquilo que fosse típico das colônias, sendo usado para se referir a línguas apenas no śeculo XVIII. Uma língua crioula foi considerada, e ainda é por alguns, uma língua europeia corrompida, alterada e usada por negros ou brancos “crioulos” para comunicação entre si. (CAISSE, 2012). Análises apontam que a formação do crioulo haitiano foi possibilitada pelo modelo de latifúndio e sistema agrícola plantation, que gerou afastamento dos escravizados dos europeus e direcionou o contato quase exclusivo com outros africanos ou afrodescendentes, oriundos geralmente da parte oeste do continente. Assim, os escravizados que chegavam a ilha aprendiam em variações de línguas, afastadas do francês formal. O crioulo haitiano provavelmente se desenvolve no período de transição para uma economia açucareira, entre 1680 e 1740. Nas décadas seguintes, a população escravizada falava ainda diversas línguas africanas, em especial do grupo nigero-congolês, principalmente as línguas gbe do ramo kwa, e o crioulo já falado, começa a se consolidar no início do século XIX. (CAISSE, 2012) A língua crioula haitiana, tem papel fundamental no que se refere ao momento de organização e revolução negra no país (1791-1804). O crioulo, que possibilitou a conservação, resistência, continuidade e transformação da tradição oral trazida da África, se tornando a expressão do povo haitiano, uma linguagem própria, um símbolo de resistência ao poder colonial.                                                                                                             18   Termos e fala literal realizada por Marie no momento em que se referia a fala do crioulo nas escolas que estudou no Haiti. Roberson utiliza do mesmo termo “proibido”.   86 O crioulo é uma linguagem performática: sua expressão completa, necessita da utilização do corpo e de movimentos, o que a torna uma linguagem impossível de se aprender de forma mecânica. É a sua incorporação que possibilita a compreensão dos sentidos mais amplos e plenos de situações diárias, da graça de uma piada ou de expressões profundas. (HANDERSON, 2010) Dessa forma, assim como o Vodu, o crioulo é elemento central para pensar o processo identitário e diaspórico haitiano, pois foi com a criação de linguagem própria que surge a possibilidade de ligação com sua historicidade, cultura e ancestralidade, que colaboraram para a luta pela liberdade durante o período colonial. Pensando o presente e as identidades dos narradores, a língua é elemento fundamental para resgate da carga histórica presente nesses indivíduos, a comunicação pós-colonial e, como caráter de análise, onde o dialeto se localiza na globalização do século XXI. Como ressalta Debora Costa (2016) em análise a entrevistas realizadas com haitianos: O fato do participante considerar o crioulo, a língua que disse materna, como uma “deformação” impacta no movimento de diáspora, apresenta-se como um conflito, pois é uma língua que une e espalha ao mesmo tempo. Por outro lado, o crioulo como uma “deformação” (marca linguística repetida na sequência) nos mostra seu caráter fundador (de-formação), ou seja, forma o sujeito, faz parte de sua constituição. Embora seja considerada pelo enunciador como uma alteração da língua francesa, ainda assim, permanece sua característica de origem, de constituinte do sujeito haitiano. (COSTA, 2016. p.80) Vale ressaltar novamente que a realização das entrevistas em português, por não ser a linguagem materna dos entrevistados, possivelmente prejudicou sua expressão total. Para essa experiência plena, seria importante a realização das conversas em crioulo e a apresentação das histórias de vida com imagem que demonstrasse expressões e movimentos durante as narrativas. Todavia, para os objetivos e análises deste trabalho, os diálogos em português se fizeram bastante completos e interessantes, possibilitando vários campos de análise. Falo especificamente da utilização do crioulo pela maneira com que algumas passagens referentes a língua chamam atenção nas falas dos entrevistados, além de um aspectos específicos que são relatado pelos três entrevistados, que cabe debater. Quando questionados sobre a língua que aprendem a se expressar primeiro - pois o país possui como língua oficial o francês e o crioulo - todos dizem que é o crioulo que predomina como linguagem dentro dos aspectos familiares e diários. Bernadel (2018) responde: “Tem que falar crioulo, porque lá todo mundo se fala crioulo. (...) crioulo todo mundo aprende falar desde pequenininho.”   87 O crioulo haitiano é a língua falada e preservada pelos mais velhos, a maneira com que todo haitiano, segundo as falas, aprende a se expressar. Segundo Rodrigues (2008. p.66): “Estima-se que quase 400 mil pessoas (cerca de 5%) falem francês. Resumindo, praticamente toda a população do país tem o crioulo haitiano como língua primeira.” Roberson e Marie, que são cerca de 20 anos mais novos que Bernadel, citam que para eles, o crioulo e o francês andavam juntos, ambos aprendiam a falar os dois idiomas ao mesmo tempo, mesmo que o linguagem crioula haitiana fosse predominante. Em outra passagem, Bernadel (2018) expõe: “Na rua tudo bem, porque todo mundo tem um conhecimento bem diferente. Não dá pra chegar e falar francês com ninguém, não, tem que chegar e falar crioulo, porque o povo, o idioma dele é crioulo.” Dessa maneira, as expressões cotidianas da grande massa populacional haitiana é feita através dessa linguagem, como também pode ser percebido na seguinte fala de Roberson: (...) pra ficar claro pra todo mundo, em crioulo [que se explica], por que é a língua mais... É que nem aqui, tem umas pessoas aqui [Santa Catarina], que falam alemão, algumas pessoas que falam português, mas pra todo mundo entender, fala português, pra maioria né, geral no caso, então, crioulo, assim, é uma língua geral e francês é uma língua parcial, assim, amostra. (DAMIS, 2017) Dessa forma, a linguagem cotidiana, informal e afetiva é realizada prevalentemente em crioulo. Na fala exposta, Roberson (2017) relata a parcialidade da língua francesa entre os haitianos, pois ela não é falada por toda a população. “Pra gente falar francês, bem, tem que ir na escola estudar, se não você não vai falar, você vai escutar o que a gente tá falando, mas pra falar francês tem que ir na escola”, é o que Bernadel nos diz: a maior parte da população aprende a língua francesa dentro dos ambientes escolares, enquanto o crioulo se aprende em casa durante a convivência e formação. Além da fala dos três entrevistados levar ao mesmo direcionamento quanto a linguagem social ser o crioulo e linguagem formal o francês, os três narradores destacaram, no momento em que comentaram sobre o ambiente escolar, o fato de serem repreendidos ou proibidos de falar crioulo. Sobre isso, Bernadel, que estudou na década de 1980, relata: Na escola do Haiti a gente não aprende a falar crioulo porque crioulo a gente fala em casa, só. Na escola tem que falar francês, por isso a gente começa aprender francês desde pequenininho. O crioulo não ensina na escola, agora [recentemente] começa a ensinar crioulo na escola. Mas nesse tempo que eu estudava não dá pra estudar crioulo, só francês. [Crioulo] A gente falava no pátio, dentro da classe, da sala, não dá pra falar, só francês. Quando a gente tá dentro da aula não dá pra falar crioulo. Agora a gente tá aprendendo crioulo na escola, na sala, mas desse tempo lá não dava pra falar crioulo. (BERNADEL, 2018)   88 No pátio, com amigos, a comunicação em crioulo foi permitida durante o período escolar de Bernadel, mas dentro de sala de aula e na execução de temas e trabalhos, o francês tinha que ser a única linguagem utilizada. O mesmo teor aparece nas falas de Roberson e Marie, com algumas pequenas diferenças. Roberson, no trecho a seguir, relata determinadas punições estabelecidas aqueles que falavam o dialeto dentro de sala de aula: A minha escola do fundamental também era tudo em francês, tinha até uma coisa assim: se você fala crioulo, mas vamos dizer que pra mim era uma brincadeira, aí você vai ter que levar pra tua casa e amanhã o professor vai te bater porque você não pode, era proibido de falar crioulo na sala. Era uma coisa absurda, né, depois eu pensei, ah, nada a ver, o cara fala a língua que ele quer, mas era isso, uma obrigação em falar francês na sala. Quando eu tava no penúltimo e último ano do ensino fundamental foi assim. No ensino médio começou e era a mesma coisa. Aí tive que falar francês. Tinha que perguntar em francês, mas nos intervalos, às vezes a gente conversava em crioulo, que era mais prática, no caso. (DAMIS, 2017) De maneira mais detalhada, Marie explica como era o método de punição em sua escola, através da exposição diante da turma e pagamento financeiro, a quem falava crioulo em sala de aula: Na escola tem um negocinho, eles chamam isso de simbole, mas é tipo um bichinho em plástico que eles colocavam na sala. Você fala uma palavra em crioulo você fica com o bichinho, aí quando você fica com o bichinho, você vai ter que pagar, pro bichinho, você vai ter que pagar todo dia, tipo você tem que pagar R$10 pra cada dia que o bichinho ficar com você, e você vai ficar com o bichinho até que alguém fala crioulo pra você passar. (DIVERS, 2018) É possível observar que dentro do contexto escolar haitiano existe uma obrigação para a utilização da língua francesa, mesmo que segundo Rodrigues (2008) em 1979 a língua crioula foi introduzida nas escolas a partir de decreto presidencial: é fixado manual com os princípios da escrita, em 1980 decretado língua de ensino e língua ensinada, sendo por fim, em 1987, reconhecida como língua oficial da República do Haiti. Mesmo estudando em períodos posteriores a essas legislações, Roberson e Marie não puderam utilizar a linguagem na escola. Fanon, em sua obra “Peles Negras, Máscaras Brancas” (2008), trabalha de maneira específica a questão das populações negras que passaram pelo processo de colonização e sua utilização das linguagens. Fanon (2008, p. 42) destaca que nas Antilhas “os professores vigiam de perto as crianças para que a língua crioula não seja utilizada”, e tudo isso estaria ancorado no violento e desumanizador processo colonizador. Para Fanon, falar o francês   89 aproxima o negro antilhano do branco, se aproximando consequentemente, da humanidade, aumentando suas possibilidades de atitude, abrir portas que foram fechadas por muito tempo. Ou seja: Todo povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural - toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. (FANON, 2008. p. 34) O aprofundamento na linguagem do Haiti, assim como Fanon abrange para toda a Antilha, revela-nos alguns traços de sua identidade e a formação social do indivíduo haitiano: há uma sustentação da subalternização da população negra haitiana diante daqueles que foram um dia colonizadores, de cor branca, e a linguagem, sua linguagem de resistência contra esses, torna-se instrumento da própria subalternização. A repressão escolar assume um caráter de instituição conservadora e colonialista, controlando os corpos e proibindo expressões e comunicação na linguagem que assume uma identidade e uma carga histórica para a população que a utiliza. Com o aprendizado de diversas línguas na escola - também característico e como preparação para uma população migrante - torna-se uma ofensa dizer que o sujeito não se expressa bem o suficiente em francês, pois, segundo análise de Fanon (2008, p.48), “nada de mais sensacional do que um negro que se exprime corretamente, pois, na verdade, ele assume o mundo branco”, nesse caso, do branco francês colonizador. Apesar das disposições referentes à linguagem, Rodrigues (2008, p. 82) nos diz que a linguagem francesa, praticamente inutilizada nas classes mais baixas, está perdendo espaços tradicionalmente voltados a ela, e que “apesar de alguma resistência por parte de certos indivíduos, a língua crioula conquista solidamente o mercado lingüístico, seja na Diáspora, seja no próprio Haiti”. 4.3.2 O não-dito sobre o Vodu A evangelização no Haiti, durante o período colonial, se deu com a implantação do cristianismo, assim como nas outras colônias europeias na América. A violência colonial, para além da escravização dos indígenas e principalmente dos africanos, buscou a desumanização e dominação de seus traços culturais. As religiões de matriz africana com seus deuses e rituais, eram demonizadas pelo cristianismo, instituída como a nova religião dos   90 cativos. Joseph Handerson em sua dissertação (2010) nos lembra de questões essenciais para pensar o local da África na história: Os povos africanos, antes da invasão colonial europeia, dispunham de uma grande riqueza cultural, tendo criado, ao longo de sua história, diversos modos de viver e formas de representar o mundo e o homem. Não se pode pensar a África como uma unidade cultural. Povos com línguas, crenças, técnicas, costumes e histórias diferentes a habitavam. A desconsideração, por parte do europeu, com a cultura dos povos africanos negros fez que, durante muito tempo, não se pensasse em termos de África histórica, considerando-a como uma “página em branco”. (HANDERSON, 2010. p.41) Apesar de oriundos de diversas regiões do continente Africano, os negros escravizados na América traziam traços e identidades relacionada aos seus grupos, que eram assimilados a práticas de outros locais da África. Com a imposição dos ideais cristãos europeus e ao mesmo tempo as trocas e celebrações realizadas a partir dos traços de religiosidade africana, os cativos criam a expressão máxima desse sincretismo no Vodu. O Vodu se estrutura, junto com o crioulo, como os elementos de diferenciação entre colono e escravizado: uma resposta as imposições imperialistas brancas, e elemento de papel central para a revolução negra. O Vodu, como nos informa Handerson (2010, p. 117) parafraseando Trouillot nos diz que: ”uma condição desumana criou o Vodu e se tornou o lugar de cristalização de uma demanda humana dos escravos: aquela da liberdade.” A religiosidade Vodu se mostra, dessa forma, um elemento essencial quando se pensa no processo histórico de formação cultural haitiana, ou até mesmo o principal elo para revolução que alcançaria a primeira república negra na América. Dany Laferrière, escritor haitiano, em seu livro “País sem Chapéu”19, ressalta como até a atualidade, as crenças e rituais Vodu se fazem presentes de maneira constante no dia-a-dia dos haitianos, principalmente nas camadas menos abastadas da população. Acredito ser necessária essa introdução sobre a importância e presença do Vodu na cultura haitiana pois, de maneira muito interessante, a religião de matriz afro não é citada pelo entrevistados dentro dos espaços familiares ou de formação social durante a infância no Haiti. Quando questionados sobre religiosidade familiar, Marie e Bernadel citam ser católicos quando crianças por influência da família, mas migrando para religiões de matriz evangélica quando adultos, e Roberson já nasceu em família evangélica.                                                                                                             19   "País sem chapéu" é a maneira como é chamado o local onde habitam os mortos no Haiti. A referência completa da obra se encontra listada ao final.   91 O Vodu aparece, de maneira voluntária, apenas na fala de Roberson quanto a mistérios relacionadas a mortes na sua família, onde introduz o Vodu: Lá tem um, vamos dizer assim, uma doutrina que tem algumas pessoas que fazem mal a outras pessoas mas no sentido de feitiçaria no caso, lá tem isso também. Às vezes uma pessoa fica mal, não é tipo vou matar uma pessoa com faca, com arma, é... mas às vezes só faz alguma coisa tipo magia, e não sei o que que é, porque eu não sei o que é muito bem, mas lá tem muito isso. (...) Lá no Haiti tem algumas pessoas que... fora é o vodu é uma religião, eu conheci assim, isso além de ser uma religião tem a ver com tradição, mas depois eu vou falar mais sobre isso. Mas lá às vezes a pessoa usa, vamos dizer assim, essa doutrina para fazer as coisas más, às vezes tipo... tem um monte de coisa. (DAMIS, 2017) A religião aparece na fala de Roberson naquilo que tange história de antepassados, problemas familiares que segundo ele, tiveram como retorno utilização da magia Vodu. Apesar da fala voluntária, o assunto parece gerar desconforto para o narrador. Há pausas e diversas frases que não são completadas, que podem caracterizar também dificuldade de expressar na língua portuguesa, os elementos formadores do elemento religioso, relacionado diretamente com a língua materna crioula. (RODRIGUES, 2008) As falas referentes às religiosidades cristãs se dão de outra maneira: existe uma necessidade na narrativa de demonstrar distanciamento do Vodu, pouco conhecimento, enquanto com as religiões de matrizes ocidentais ocorre o contrário. Rodrigues (2008) nos diz que, apesar da falta de dados concretos, cerca de 95% dos camponeses e proletários haitianos - além de uma boa parcela da elite - praticam vodu, muitas vezes, de maneira conjunta com o catolicismo. Curiosamente, o mesmo autor pontua, que em todos os momentos da existência do voduísmo, ele se deu “às escondidas”. Segundo o relato de um sacerdote vodu, trazido por Rodrigues (2008, p.172): “mesmo que os fiéis pratiquem, eles jamais lhe dirão”. O sacerdote queixa-se e completa dizendo que a maioria dos haitianos praticou pelo menos uma vez na vida o vodu, porém mesmo não sendo proibido por lei, a prática não é realizada abertamente. Marie, pela proximidade e abertura, foi questionada quanto a prática de Vodu em sua família, se possui alguma lembrança referente a essa religião na infância. Em resposta, sua narrativa envolve toda essa problemática: é que tem muito preconceito assim… porque a religião principal do Haiti seria o Vodu, que é tipo macumba, só que quando você pratica esse tipo de religião tem muito preconceito, aí quando você tá praticando, você pratica escondido, entendeu? (...) Eu não sei ninguém da minha família que tenha praticado, até porque quando eu tava crescendo a mãe, a vó, me ensinavam a não praticar, falavam que não era pra praticar porque quando você vai lá você tem tendência a fazer mal pras pessoas e   92 não é pra mim ir, essas coisas. (...) Isso não quer dizer que a mãe nunca foi, talvez ela foi, escondido. (DIVERS, 2018) A fala de Marie demonstra que o preconceito ao voduísmo é temido no Haiti, e no Brasil ele também acontece pois aqueles que praticavam vodu, geralmente receiam se identificar como praticantes, principalmente devido aos estigmas que relacionam vodu com superstições (HANDERSON, 2015). Dessa forma, não falar sobre o voduísmo de maneira aberta e próxima, como aconteceu nas entrevistas, pode estar relacionado a alguns fatores: ou os entrevistados não possuem nenhuma proximidade com as práticas Vodu, ou, falar sobre o voduísmo para alguém que não é do universo haitianos - entrevistadora - pode ser uma tarefa complexa e também desconfortável pelos estigmas relacionados à religião. A prática, proibida até a legislação de 1987 e regularizada no decreto de 2003 do Haiti, é considerada religião. “Com o Decreto, na verdade, é como se estivéssemos finalmente diante de uma verdadeira ruptura com mais de dois séculos de marginalização do Vodu” (PIERRE, 2009. p.105). O “não-dito” demonstrado pelas narrativas de histórias de vida, perante o Vodu, pode então representar muito e ser analisado sobre a formação cultural haitiana, assim como tudo o que é - ou pode ser - dito.   93 5 AS TRAJETÓRIAS: DIÁSPORA E A MOBILIDADE HAITIANA Posso ter alguma coisa no Haiti, mas preciso ter algo além disso fora do país. Os meus planos são mundiais, não é pra um país só. (Roberson Damis) Como foi trabalhado até o momento, as memórias registradas de haitianos que vivem ou viveram atualmente no Brasil, não podem ser desassociadas da sua característica de mobilidade, pois além da recente locomobilidade realizada pelos narradores, a característica diaspórica se encontra em todos os períodos da vida desses sujeitos, constituindo-se característica primordial de sua formação cultural e identitária. Esse terceiro e último capítulo do trabalho visa refletir os aspectos ligados à diáspora, como conceito e uso social do termo, assim como a sua singularidade para as populações caribenhas e especificamente a haitiana. Priorizo nessa reflexão as análises de autores caribenhos que pautam o pensamento das culturas, identidades e mobilidades a partir da própria América, desviando ou diferenciando a diáspora daquela pensada a partir e pelos moldes das mobilidades europeias (judaicas). A partir das entrevistas coletadas, será realizada reflexão sobre a condição de obrigatoriedade de migração dentro da construção social haitiana, como necessidade social de primeira ordem. Se aprofundará nas mobilidades haitianas, pensando através dos quatro grandes fluxos de migrações haitianas citados por Joseph Handerson (2015), considerados os quatro momentos de maior saída de haitianos no país. Também será pensada a trajetória dos narradores das histórias de vida, os locais por onde passaram e as suas experiências. O terceiro e último momento do capítulo é destinado a pensar na presença dos locutores no Brasil: como é a experiência de estarem no Brasil nesse momento, os motivos por que chegaram aqui, a vivência e integração nos espaços de sociabilidade no oeste catarinense. 5.1 “MWEN SE DIASPORA” - “SOU DIÁSPORA”20 A formação de cultura e identidades em movimento, característica dos haitianos como vimos nas reflexões realizadas até o momento, carrega traços formados por diversas gerações que realizam na movimentação sua formação e organização social. Stuart Hall                                                                                                               Autodesignação utilizada de forma comum entre os haitianos para diferenciar aqueles que vivem fora do 20 Haiti, daqueles que ficam no país. (HANDERSON, 2015. p.352)   94 (2003) demonstra como essas movimentações haitianas se assemelham a de outros países caribenhos e de que maneira essas trajetórias estão ancoradas em sua identidade e historicidade cultural formada a partir da violência colonial estabelecida nesses territórios: Nossas sociedades [caribenhas] são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a terra pertencia, em geral, pereceram há muito tempo — dizimados pelo trabalho pesado e a doença. A terra não pode ser "sagrada", pois foi "violada" — não vazia, mas esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar. Longe de constituir uma continuidade com os nossos passados, nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas. Em vez de um pacto de associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao discurso liberal da modernidade ocidental, nossa "associação civil" foi inaugurada por um ato de vontade imperial. O que denominamos Caribe renasceu de dentro da violência e através dela. A via para a nossa modernidade está marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela da dependência 'colonial. (HALL, 2003. p.30) Dessa forma, é necessário observar as trajetórias e diáspora dessas populações considerando a carga histórica e de violações que carregam. Existe uma diferenciação quanto aquilo que, ancestralmente, é chamado de “meu povo” e “meu local”. Diversos povos, com diferentes religiosidades e aspectos culturais, formaram o Haiti. Povos originários de diversos locais adaptaram o território antilhano destinado ao país com aquilo que traziam em comum, bem como suas peculiaridades e diferenças. Essas características demonstram a necessidade de analisar os processos migratórios atuais a partir do olhar e realidade haitianas. Falar em Diáspora e das memórias diaspóricas dos haitianos presentes hoje no Brasil, requer observar também o que o termo, diáspora, carrega e significa, como conceito e para os próprios caribenhos e haitianos. Seguindo a observação de Hall, considerado um dos “pais” da teoria cultural, presumia-se, em teorias passadas, que a identidade cultural do indivíduo era fixada em seu nascimento a partir das linhagens de parentesco, praticamente inata ao indivíduo, ligada diretamente à tradição. A partir dessa perspectiva, a diáspora na sua ideia convencional simboliza um dualismo, uma lógica binária que cria fixas barreiras de “eu” e “outro”, assim como “de dentro” e “de fora”. Difícil utilizar esses termos quando se refere às populações das Antilhas, pois todos eram, de alguma maneira, de fora, além da tamanha diversidade que dificulta observar a diferenciação que define “o eu” e “o outro”. Para o autor, a diáspora caribenha não cabe, de maneira alguma, dentro desse conceito fechado dualista europeu, pois sua mobilidade e formação identitária: não funciona através de binarismos, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas são também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais,   95 sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim (HALL, 2003. p. 33). Diferente da perspectiva de diferenciação por características que definem o sujeito em mobilidade como parte do “nosso” ou do “outro” grupo, o autor defende que quando se refere a caribenhos, o que acontece não são criação de muros de divisão, e sim se assimilações, significações e modificações, diante de um caminho de mudanças, sem delimitação de início ou começo. A mobilidade sempre esteve presente nesses espaços de forma singular. Desde a fundação do Haiti como colônia, a mobilidade – mesmo tendo sido forçada – esteve presente com a vinda dos milhares de escravizados africanos através do comércio transatlântico. Posteriormente, a peculiaridade e o contexto singular da luta pela independência – entre 1793 e 1803 – coincidente com a libertação dos escravizados, teria constituído uma nova cultura de marronnage, de mobilidade e de migração. (HANDERSON, 2015. p. 67) Quando utilizamos do termo diáspora para pensar especificamente a dimensão das mobilidades haitianas nos voltamos a especificidade que o termo carrega dentro do simbolismo e universo cultural haitiano. Em sua tese, Joseph Handerson aprofunda o estudo quanto a utilização social e simbólica do termo entre os haitianos, principalmente entre os que residem no próprio Haiti. O trabalho do antropólogo demonstra que para essa população, o termo tem uma utilização mais direta e simbólica, como indicativa de adjetivo do sujeito ou sujeito coletivo, abrangendo o conjunto de haitianos transnacionais. Dificilmente um haitiano em mobilidade irá se autointitular da maneira que é titulado pelas legislações ou populações que entram em contato, como migrantes, refugiados ou imigrantes. Tais termos, em especial o de refugiado (refijye em crioulo), tem conotações pejorativas no universo haitiano, caracterizando os sujeitos como com “pouco prestígio social”. Dessa forma, os haitianos preferem e utilizam o termo diáspora (dyaspora). Segundo as análises trazidas por Handerson, não apenas os sujeitos são qualificados diáspora, mas também objetos e comportamentos que simbolizam reflexos do exterior no Haiti. Alguns exemplos são as casas, que quando possuem arquitetura “estrangeira” e sabe-se que foram construídas com dinheiro vindos de outros países, são chamadas casas diáspora (kay dyaspora), ou o dinheiro diáspora (lajan dyaspora) que é o dinheiro vindo do exterior, mas geralmente o euro ou dólar das grandes potências para os haitianos (EUA, França e Canadá). (HANDERSON, 2015)   96 “Meu sonho é ser diáspora” é a fala de um dos entrevistados pelo pesquisador durante sua pesquisa em campo. O jovem Henri sonha em conquistar reconhecimento, crescimento profissional e financeiro em países estrangeiros e a partir disso melhorar a vida de sua mãe, que ficou no Haiti. (HANDERSON, 2015) Essa fala é marcante no sentido que expressa a utilização social e a positividade que o termo carrega, pois ser diáspora representa o sucesso daquele haitiano que vive no exterior por muito tempo e retorna ao Haiti temporariamente, “demonstrando” o sucesso da ida ao exterior. Interessante perceber a não utilização do termo diáspora durante as narrativas de história de vida quando os entrevistados se referem a sua mobilidade. Acredito que o nãodizer pode significar que, por ser uma expressão popular haitiana, utilizada no crioulo “dyaspora” (ou diaspora), com um significado específico para os próprios haitianos, não utilizaram para se expressar em português em resposta a questionamentos efetuados por uma brasileira. E/ou em segunda hipótese, é possível que nem toda a população haitiana utilize o termo nessa configuração e significado. A passagem de “País sem Chapéu” explicita a questão da utilização da linguagem no universo haitiano: Agora estamos conversando em crioulo, e nem percebemos. Conversamos, e pronto. Não é a mesma coisa em outra língua, mesmo que seja o francês, e principalmente quando o sotaque é diferente. Só nos sentimos em casa na nossa língua materna e no nosso sotaque. Tem coisas que eu só saberia dizer em crioulo. (LAFERRIÈRE, 2011. p.162) Pude perceber, apesar de não utilizar exatamente esse termo, que na fala de Roberson aparece aquilo que se dirige ao termo diáspora, quando explica qual o sonho de seu pai: Pros filho. Tudo o que ele fazia, quando ele casou até agora, foi para o nosso crescimento. O sonho dele era isso, era ver os filhos além dele, entendeu? E quando eu falo "além dele" não é terminar o ensino médio, é que a gente vá longe, longe nao sei aonde, mas esse é o sonho dele, foi por causa disso que ele saiu [para trabalhar fora do Haiti]. (DAMIS, 2017) O termo “longe” nesse contexto, é provavelmente utilizado para pensar tanto em termos geográficos - locais distantes, estrangeiros - como econômicos e intelectual oportunidades de emprego e estudos. O peyi etranje (país estrangeiro) ou o peyi blan (país estrangeiro considerado com melhores condições) são, dessa forma, construídos na mentalidade e imaginário haitianos como a possibilidade do sucesso e a diáspora considerada identidade.   97 A diáspora é concretizada com sucesso financeiro, ajuda aos familiares e retorno ao Haiti, pelo menos para passeio. Esta é uma empreitada que não pode dar errado para aquele que sai do país, pois o indivíduo tem a possibilidade de seguir aquilo que os haitianos chamam de “fórmula do sucesso”. 5.2 FÓRMULA DO SUCESSO Diretamente relacionado com o “status social” possibilitado pela diáspora, é possível perceber a importância dessa possibilidade - migrar - para a comunidade haitiana, como alternativa de uma melhoria de vida. No relato exposto a seguir, o narrador Roberson cita os motivos da saída de seu pai do país, em 1995: É a mesma fórmula, pra conseguir algo melhor às vezes tem que sair da sua zona de conforto, né, porque ele [pai de Roberson] tinha profissão, que é uma coisa que é bem rara. (...) Ele já tinha 4, 5 filhos, e minha mãe fazia comércio e costura. Mas pra se manter 5 filhos num país, digamos, não é pobre, é um país onde o governo não ajuda, porque se não tem emprego não tem condição.(...) Aí ele [pai] teve que escolher entre ficar no Haiti e os filhos passando fome ou sair do país, entendeu? Então ele saiu e durante esse tempo ele ficou 11 anos fora. Ele conseguiu construir, pelo que eu fiquei sabendo, deixa eu ver, uma, duas três, quatro, quatro casas. Comprar carro, terreno, tudo. (DAMIS, 2017) Esse trecho da fala de Roberson explicita diversas das questões relacionadas com os motivos de migração já trabalhados, como a importância da família, do retorno financeiro e da construção de casas. No início da fala, o narrador cita a “fórmula” como a única possível “solução” para se obter “algo melhor”, nesse caso, a solução para a fome dos filhos no momento de dificuldade, é a mobilidade. Nesta circunstância, se percebe nitidamente como a mobilidade se insere no Haiti, como necessidade e realidade social: O mundo da mobilidade possui lógicas próprias que ordenam a vida das pessoas e o seu mundo social. A mobilidade se desenvolve, ao mesmo tempo, como uma perspectiva econômica, mas também como um modelo social. De prática conjuntural, a mobilidade tende a se constituir, a partir de uma lógica estrutural. No Haiti, ela se impõe como uma realidade social de primeira ordem. (HANDERSON, 2015. p. 187) A fórmula do sucesso direciona o indivíduo a sair, preferencialmente para as grandes potências econômicas com um dinheiro que pode valer muito no país de origem. Essa fórmula, se faz presente em toda a construção dos indivíduos haitianos, como pôde ser percebido a partir das histórias de vida: as melhores condições de trabalho no Haiti ou melhores condições de vida para o/a diáspora e a família, são dependentes de uma   98 experiência de mobilidade exterior. Bernadel, que se demonstrava um pouco mais fechado em suas respostas, quando questionado sobre motivos de saída do país, nos diz que decidiu sair: Porque falta serviço e a gente precisa ajudar. Meu filho tá crescendo de dia em dia. A gente sai de lá pra buscar uma vida melhor, buscar um serviço pra gente poder fazer e viver bem. Mas se você está no Haiti sem serviço, fica pesado de dia em dia… A gente sai pra buscar uma outra vida. (BERNADEL, 2018) A mobilidade significa então, a possibilidade de encontrar aquilo que o Haiti, a partir de seu histórico político e econômico, não pode oferecer a toda a população. O estudo, público e gratuito é um grande marcador da mobilidade e os entrevistados relatam as grandes dificuldades que norteiam um estudo de qualidade no Haiti. Marie Divers (2018) acredita que seu sucesso profissional, e de muitos haitianos, será marcado pelo diploma brasileiro que está buscando: “eu queria estudar fora, porque aqui [Haiti], aqui também tem esse tipo de coisa, todo mundo quer estudar fora, todo mundo quer estudar numa universidade internacional, assim, quer um diploma internacional e depois volta pro país pra trabalhar.” Dentro da formação social haitiana, estar no peyi etranje (país estrangeiro) é fórmula certeira para encontrar sucesso naquilo que se busca. Em diversos momentos e situações da vida dos haitianos e haitianas, a mobilidade se coloca como obrigatoriedade, como para Roberson, que nos diz que “não queria sair do país”, no entanto, sua mãe o fez optar por um país e viajar. Algumas expressões marcam o mundo social haitiano: “Tenho de viajar um dia para peyi etranje”, “Desde que nasci, meu sonho era partir um dia”, “Antes de morrer com certeza vou partir”. Durante a pesquisa de campo no Brasil, no Suriname e na Guiana Francesa, notadamente no Haiti, era comum ouvir estas declarações vindas dos interlocutores. “Tenho que ... um dia”, “Desde que nasci...”, “Antes de morrer ...”, esses três verbos nascer, ter e morrer descrevem como a mobilidade se constitui numa “obrigação”, como “algo predestinado” e num “sonho” a ser realizado. (HANDERSON, 2015. p. 67) Na formação do imaginário haitiano estar morando/trabalhando/estudando em outro país possivelmente significa uma construção de sonho de infância, uma necessidade básica e a oportunidade sonhada. Não é excesso afirmar que praticamente todas as famílias haitianas possuem um membro morando fora do Haiti, ou que partir, seja o sonho da maioria da população (HANDERSON, 2015), apesar de não ser generalizada. Como no caso de Roberson: Porque ele [pai] saiu do país para que? Pra ter uma vida melhor, é uma fórmula né: pra crescer para ter uma boa oportunidade lá no Haiti às vezes tem que sair, infelizmente é uma coisa que eu estou tentando e lutar contra isso, eu acho que um   99 monte de pessoas é assim, porque, o país às vezes não dá oportunidade. (DAMIS, 2018) Apesar de não possuir esse sonho, que envolve um status no Haiti, Roberson migrou. A relação da obrigatoriedade da mobilidade, de ser diáspora, se coloca em diversos momentos históricos no país por diversas condições que serão discutidas nas próximas páginas, mas para além, se torna um objetivo de vida, um sonho, pelo papel estrutural, pelo retorno e imaginário criado na sociedade haitiana. 5.3 OS GRANDES FLUXOS E AS TRAJETÓRIAS DOS NARRADORES Como citei anteriormente, apesar da intensificação da migração haitiana ao Brasil e a outros países americanos na última década, essas migrações acontecem a muitos anos por parcela da população. É possível expressar em quatro grandes momentos os fluxos de haitianos e haitianas para outros países em busca de melhores condições (HANDERSON, 2015) e perceber, dentro delas, as mobilidades dos narradores e de membro de suas famílias. O primeiro grande fluxo migratório trazido pelo estudo de Handerson (2015) teria acontecido entre os anos de 1915 e 1950, mesmo período em que as forças armadas norteamericanas ocuparam o país. Com o crescimento das indústrias de cana-de-açúcar norteamericanas no Caribe e carência de mão-obra, milhares de haitianos migraram para atender essa necessidade e em busca de melhores salários, principalmente em Cuba e na República Dominicana. O segundo movimento, entre a década de 1950 e 1980, teve como grande destino os Estados Unidos da América. Os fatores foram diversos, entre eles, a visualização do país como potência (política e econômica) e possibilidade21: a língua inglesa passou a ser ensinada nas escolas haitianas e diversas igrejas norte-americanas chegaram ao país, influenciando diretamente no objetivo da mobilidade. Na década de 1960, instaurada a Ditadura de François Duvailler, repressão política e deterioração das condições de vida, a classe média intelectualizada passou a migrar ou a ser expulsa do país, indo principalmente aos EUA, Canadá ou países francófonos africanos, principalmente Senegal, Benin e República do Congo.                                                                                                             21   Percebi, nas histórias de vida, como os EUA se coloca como local com maior possibilidade de alcançar sucesso financeiro. A potência midiática, a econômica, e a presença constante das forças norte-americanas no Haiti, são fatores que colaboram para criar o imaginário de país de grande possibilidades.     100 Foi durante esse fluxo migratório que os irmãos de Bernadel saíram do Haiti. O destino deles, França ou Guiana francesa, foi também local de mobilidade em muitos períodos principalmente pela língua francesa, ensinada nas escolas. Durante muito tempo, os filhos da elite ou a classe média anti-ditadura, buscava refúgio e estudos na França. Apesar de ter migrado no período temporal que se encaixa no terceiro fluxo, as migrações para trabalhar em Bahamas, onde o pai de Roberson morou durante onze anos, começou e se intensificou entre a década de 1950 e 1970. Entre 1995 até 1996, por aí, que ele [pai] foi pra Bahamas. Ele ficou lá na capital e começou, tipo, foi que nem eu… Eu cheguei no Brasil, apesar de já ter visto, pra se adaptar à língua, à cultura, não é uma coisa fácil, né. Foi isso pra ele, quase a mesma coisa. (DAMIS, 2017) O pai de Roberson saiu do Haiti no período que foi considerado o terceiro grande fluxo de emigrações haitianas que foi a partir da década de 1990, quando o país sofre um golpe de estado e a deportação do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide22. Somente na época de deportação de Aristide, cerca de cem mil haitianos deixaram o país. Os maiores fluxos foram para República Dominicana, Guantânamo, Cuba e Estados Unidos. (HANDERSON, 2015) O quarto grande fluxo é marcado pela precarização extrema das condições e oportunidade de trabalho e de condições básicas de vida no Haiti após o terremoto de janeiro de 2010. É neste que migraram, e agora estão no Brasil, Bernadel, Marie e Roberson. O choque social e econômico ocasionado pelo terremoto no país gerou a necessidade que novos sujeitos buscassem a migração, muitos que provavelmente não migrariam sem tal necessidade, criando novos circuitos e dinâmicas de mobilidade internacional. Apesar da intensificação da chegada dos haitianos no Brasil após 2010 e acreditar-se inicialmente que essa vinda fosse consequência direta do terremoto e da presença brasileira no Haiti através da MINUSTAH, essa construção e reflexão histórica demonstra que apesar da contribuição da catástrofe natural para aumento da mobilidade haitiana, esse processo é uma longa construção cultural, identitária, econômica e política. 5.3.1 As trajetórias: o que esteve entre o Haiti e o Brasil                                                                                                               Aristide, como citado, foi eleito democraticamente depois de muitos anos de dominação norte-americana e 22 dos Duvalier. A população lutou por muito tempo para poder eleger seus representantes, sofrendo diversas represálias que geraram milhares de mortes. Aristide sofreu o golpe em 1991, no mesmo ano que assumiu a presidência.   101 Assim como em cada período ou fluxo de migração citado, os destinos ou o local escolhido para ser, naquele momento, parte da trajetória dos indivíduos, se alteram. Tais variações são definidas a partir das condições oferecidas pelos países que são possibilidade econômicas e sociais -, das facilitações com documentação, redes de contato - amigos e parentes -, entre diversos outros pontos que são analisados. Da mesma maneira com que os locais de trânsito haitiano se alteram, as trajetórias e rotas principais precisam ser adequadas a esses novos espaços. Como relata Handerson (2015. p. 92), os “itinerários e circuitos são cada vez mais complexos e mundializados e, a partir deles surgem novas rotas imprevisíveis e inéditas como é o caso do Brasil, no universo da mobilidade haitiana.” O fluxo migratório intensificado a partir de 2010 engendrou novas dinâmicas de mobilidade, não apenas pela questão econômica e social do Haiti, mas a partir da formação de políticas de acolhida criadas por alguns países (CARRERA, 2014). As principais rotas, que se formularam nesse segmento, foram para países que possuíam uma legislação que facilitasse e acelerasse a elaboração de documentos que legalizassem a presença dos haitianos nesse país. Quando questionados sobre os motivos das trajetórias que objetivavam a passagem pelo Brasil, a resposta foi unânime entre os narradores. Bernadel (2018) nos diz que “tinha um acordo entre o governo daqui e o governo de lá. Depois do terremoto, ver como o povo tá passando algumas coisas, os dois governos sentaram e fazeram um acordo. Com esse acordo a gente entra”, se dirigindo as questões legislativas. Bernadel também relata que quando foram criadas e implantadas as normativas, os haitianos foram informados pelas mídias e todo mundo falava e comentava no país, na intenção de informar aqueles que planejavam buscar melhores condições de vida fora do Haiti. Marie coloca que: Na verdade eu tava procurando, tipo, eu tava procurando pra estudar fora, porque eu queria ter um diploma internacional. Aí eu já pensava em ir pro Canadá porque tinha amigos também que estavam estudando lá. Só que demora mais o processo. Aí quando eu vi que o processo do Brasil era bem mais fácil, eu fui lá. (DIVERS, 2018) Roberson expõe da seguinte maneira um dos motivos de vir para o Brasil: Como eu já tinha alguma ideia e aquela coisa de ser o país mais acolhedor, porque teve alguns países que ajudaram o Haiti depois do terremoto, mas no Brasil a porta tava bem aberta e esse foi um dos motivos também. Quando você tem algumas possibilidades, num momento assim, você vai tentar aquilo que é mais fácil, porque dava pra tentar entrar nos EUA ou em outros países, só que isso podia demandar muito tempo. (DAMIS, 2017)   102 A abertura possibilitada pelas adequações realizadas na legislação brasileira, na Resolução nº 97 de 12 de janeiro de 2012, do Conselho Nacional de Imigração, que se refere a presença de imigrantes no Brasil, e que facilitava a legalização da presença haitiana pelas consequências do terremoto ocorrido em 2010, foi central para que a população haitiana imigrasse. Como citam os entrevistados, era a maneira mais rápida e também fácil de se instalar de maneira legal em outro país. As questões legais são fundamentais para organização das pessoas em mobilidade, e entre as experiências trazidas pelo autor Joseph Handerson (2015), às questões legislativas acarretaram diversas dificuldades nas empreitadas de haitianos para chegar a outros países, por restrições governamentais: casos de repressão, agressões e inclusive mortes nas más condições de travessias, realizadas de maneira perigosa pela clandestinidade das movimentações. Dessa forma, o autor nos diz: Para as pessoas em mobilidade, as questões legais são estratégicas, pensadas, calculadas, mas, às vezes, também inesperadas e sofridas nos trajetos de acordo com as políticas restritivas dos governos. É preciso saber circular entre mundos legais, mantendo uma relação digna e produtiva com Haiti, tal como se disse no universo haitiano: chèche lavi, buscando ou tentando levar a vida e o bem- estar, seja juntando dinheiro, cumprindo as obrigações com os que ficam, mantendo reputações pessoais e familiares, ou tendo acesso ao documento de visto de residência no Brasil, pois são várias questões em jogo. (HANDERSON, 2015. p. 36) Segundo análises trazidas por MAGALHÃES (2017) a viagem pro Brasil se dá de maneiras diferentes, dependente das condições das documentações dos indivíduos em mobilidade. O mapa a seguir sintetiza as movimentações e rotas realizadas pelos narradores:   103 Mapa 6: Rotas realizadas pelos entrevistados, da saída do Haiti até a chegada no oeste de Santa Catarina. Fonte: edição das rotas realizada no GoogleMaps.   104 Mapa 7: Zoom da região do Caribe onde se localiza o Haiti e a República Dominicana para facilitar a visualização do início das trajetórias realizadas pelos entrevistados. A legenda se encontra no mapa anterior. Fonte: edição das rotas realizada no GoogleMaps. As três rotas possuem diversificações, principalmente no que condiz ao meio de transporte utilizado nas viagens, e simultaneamente, possuem locais de passagem em comum. Quanto a trajetória, Marie possui a mais singular pois já estava no Equador, de férias, quando decide vir para o Brasil, vindo de lá diretamente ao Brasil, tendo Chapecó como destino. Para Roberson e Bernadel, a saída do Haiti tinha um propósito, possível de mudança, mas que levava ao Brasil em uma primeira instância, considerando que as mobilidades se deram em períodos e tempos de viagem diferentes. Quanto às movimentações de Roberson e Bernadel, apesar de singulares, tiveram características diferenciadas por alguns aspectos e um deles foi o aguardo do visto para entrar no Brasil. Roberson realiza a transição até a República Dominicana e de lá para o Equador, onde aguarda por alguns meses o visto. A partir desse momento, faz uma viagem tranquila e pôde entrar no Brasil com segurança. Enquanto Bernadel, que viaja durante um período de migração mais intensa de haitianos para o Brasil (2013), necessita realizar as rotas com transportes e empresas não muito seguras, sendo alguns trajetos a pé, até conseguir entrar no Brasil, ainda sem documentação. Por tais motivos, Bernadel cita que nas despedidas no Haiti, para as pessoas próximas23 disse que: “ah bom, não vou estar aqui amanhã, vou viajar. Não                                                                                                             23   A fala de Bernadel demonstra como geralmente é silenciosa a partida do Haiti, ou misteriosa até certo ponto. Uma passagem da obra de Laferrière (2011, p.132) relata um reencontro dele -do autor-, depois de vinte anos fora do Haiti, com um de seus melhores amigos, que diz: “Não censuro você por não ter dito, nem para nós, teus melhores amigos, que ia embora”. Segundo Richman (2005, p.76 apud HANDERSON, 2015. p.188) pela ligação ao acúmulo de bens e sucesso financeiro, os haitianos em mobilidade também são frequentemente alvos de feitiçaria, o que pode estar ligado ao fato de muitos não anunciarem sua ida aos países estrangeiros.   105 vou dizer até quando eu vou voltar porque eu não sei, não tenho visto. Por isso vou viajar, não sei até quando a gente vai voltar.” O aparato legal transparece nas falas que sua ausência torna a viagem ainda mais incerta, assim como seu sucesso e principalmente a possibilidade de retorno para o Haiti. Para Roberson e Bernadel, os outros países transitados até a chegada ao Brasil são considerados locais de passagem, corredores para o país que se objetiva passar. Vale ressaltar que quando se fala aqui no Brasil como destino, é o planejamento realizado pelos narradores citados antes de sua saída do país, no entanto, isso não significa que possamos observar o Brasil como única possibilidade ou o local final da jornada. Falamos aqui sobre indivíduos em movimento, e o local onde se encontram agora não pode ser observado como definitivo. Entre esses países de passagem, tanto para os narradores que planejavam inicialmente a vinda ao Brasil, quanto para Marie, o Equador se torna local em comum na jornada. Segundo Carrera (2014), a partir de 2010, o Equador se torna um dos principais corredores da vinda de imigrantes haitianos para a América do Sul pela aproximação e abertura que o país estabelece com o Haiti. Segundo a autora, antes do ano de 2010, o Equador já se fazia presente no Haiti com auxílio na Missão das Nações Unidas para estabilização do país. Depois do terremoto de 2010, o governo Equatoriano inicia um processo de regularização daqueles haitianos que já se encontravam em território Equatoriano. Apesar da proximidade entre os países acontecer durante e após o ano de 2010, a constituição equatoriana de 2008 é que possibilita as diferentes relações migratórias com o Haiti e com outros países. Na referida constituição, foi levada em consideração a migração de milhares de equatorianos na década anterior, percebendo a necessidade de medidas estatais que abracem a causa da mobilidade (CARRERA, 2014). Sendo assim, o artigo 40 da constituição Equatoriana nos diz que “Se reconoce a las personas el derecho a migrar. No se identificará ni se considerará a ningún ser humano como ilegal por su condición migratoria”. E no artigo 416, nos pontos 6 e 7 dizem: 6. Propugna el principio de ciudadanía universal, la libre movilidad de todos los habitantes del planeta y el progresivo fin de la condición de extranjero como elemento transformador de las relaciones desiguales entre los países, especialmente Norte-Sur. 7. Exige el respeto de los derechos humanos, en particular de los derechos de las personas migrantes, y propicia su pleno ejercicio mediante el cumplimiento de las obligaciones asumidas con la suscripción de instrumentos internacionales de derechos humanos. As experiências e entrevistas realizadas por Handerson (2015) também ressaltam como haviam “portas abertas” no Equador. Dessa forma, com a liberdade de trânsito no país,   106 o Equador, peyi etranje (país estrangeiro), se torna rota central para a presença e mobilidade haitiana em destino aos peyi blan, que são os países considerados com melhores desenvolvimentos econômicos, que nesse contexto, pode significar o Brasil para alguns haitianos. Para os haitianos no Brasil, Suriname e Guiana Francesa, nem todo peyi etranje é peyi blan: a República Dominicana, o Panamá, o Equador e o Peru são peyi etranje, mas não são considerados peyi blan, por acreditarem que, nesses países, não ganham em lajan diaspora, e não são “desenvolvidos” como Estados Unidos, Canadá, França, Inglaterra etc. (HANDERSON, 2015. pp. 374, 375) Os relatos de história de vida demonstram diferentes enfrentamentos nos segmentos das trajetórias. Bernadel enfrenta as situações mais dificultosas de movimentação para chegar ao Brasil, relatando momentos traumáticos, várias horas de ônibus ou caminhando para atravessar fronteiras. Poucas roupas, documentos, dinheiro e algum artefato religioso é o que a bagagem e a trajetória permitem carregar. Roberson nos diz que a viagem é a saída da zona de conforto, é a busca por aquilo que não se pode alcançar ficando no Haiti. As memórias relatadas da trajetória e das situações enfrentadas podem demonstrar o quanto a fórmula e busca do sucesso é, diversas vezes, feita de desafios e dificuldades, mas com objetivos concretos, e no caso desses narradores, o sucesso financeiro e de estudos no Brasil e como cita Bernadel (2018): “eu aguento, não tem o que fazer.” 5.4 OS NARRADORES NO BRASIL Depois da difícil jornada de juntar o dinheiro, deixar a família e passar por uma trajetória na maioria das vezes penosa, outra etapa inicia-se: encontrar uma cidade, um emprego, universidade, local para morar, conhecer pessoas, integrar-se. Os narradores chegaram na região por rotas e situações muito singulares que valem aprofundamento. Marie, que chegou diretamente em Chapecó24 relata-nos que parte do Equador com destino certo a Chapecó com objetivo de realizar estudos na Universidade Federal da Fronteira Sul, que conheceu através de amigos que estudavam na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Essa passagem indica que Marie decide migrar a partir das                                                                                                             24 Analisar o mapa das rotas dos narradores (mapa 3). Marie realizou uma parada em São Paulo, mas passou apenas um dia na cidade, e se dirigiu a Chapecó.   107 oportunidades que foram propagadas através de redes sociais por aqueles que já estavam na região. As redes se tornam um instrumento interessante dentro do movimento de mobilidades haitianas, sendo bem característico nas passagens dos imigrantes presentes no oeste catarinense, como demonstra pesquisa de Luís Felipe A. Magalhães (2017): Os amigos e parentes que já migraram dão referências positivas do lugar àqueles que ficaram no Haiti ou estão em outro país, os incentivando a migrar a Santa Catarina e construindo, com isto, uma rede de relações pessoais, sociais e laborais na qual o migrante se inserirá. Previamente, já se tem garantias de emprego, hospedagem e ajuda inicial. (MAGALHÃES, 2017. p. 193) As garantias de estabilidade inicial possibilitadas pelas redes, aumentam as chances e condições de pessoas, que têm intenção de migrar, a alcançar alguns locais. Marie desejava um diploma internacional pelas oportunidades que ele possibilita no Haiti e as redes possibilitaram que conhecesse a UFFS e o PROHAITI, um processo de seleção diferenciada e direcionada para haitianos em mobilidade acessarem a graduação: A Universidade Federal da Fronteira Sul proporciona o ingresso de estudantes haitianos através do programa PROHAITI (Programa de Acesso à Educação Superior da UFFS) através da resolução No 32/2013 do CONSUNI, a qual tem o objetivo de [...] contribuir para integrar os imigrantes haitianos à sociedade local e nacional, por meio do acesso aos cursos de graduação da UFFS, e qualificar profissionais que ao retornar possam contribuir com o desenvolvimento do Haiti (UFFS, 2013, p.1). O programa proporciona uma forma diferenciada do ingresso aos estudantes, através de um exame realizado pela comissão do PROHAITI, duas vezes ao ano. (OLIVEIRA, 2017. p. 30) O processo seletivo PROHAITI possibilita que haitianos em busca de estudos não necessitem passar por vestibulares burocráticos que não consideram sua realidade de imigrante em território brasileiro, facilitando a entrada no ensino superior. Marie decide vir ao Brasil certo tempo antes da realização da prova para participar de um curso de línguas redigido por estudantes do curso de Letras - Português e Espanhol, do campus Chapecó e organizado pelo PET. Roberson também vive atualmente na região oeste de Santa Catarina pelas possibilidades oferecidas pela UFFS. Como relata, quando chegou ao Brasil viveu cerca de um mês em Marau no Rio Grande do Sul com haitianos que já conhecia e depois residiu e trabalhou em Extrema, Minas Gerais. No entanto, pretendia estudar e quando ficou sabendo, também por redes, do PROHAITI, deixou tudo para vir à região tentar ingressar na graduação. Destaco o papel da universidade quanto a políticas de facilitação de inserção dos   108 imigrantes no ensino superior como destaque nas narrativas e motivo da chegada de muitos haitianos a região. A história de Bernadel demonstra um outro grande motivo de chegada de haitianos na região: as ofertas de emprego nas agroindústrias e frigoríficos. Assim como citado no primeiro capítulo do trabalho, nos anos iniciais da década atual, com certo aquecimento na economia regional, houve muita disponibilidade de empregos nas grandes empresas do ramo, que foram intensamente divulgadas em diversas mídias. A pesquisa que observou a presença haitiana na mídia online regional25, realizada dentro do projeto de pesquisa “Negritude e Branquitude” supracitado, demonstrou como diversos haitianos chegaram à região a partir de indústrias que buscavam em cidades do Acre, os imigrantes para realização de mão de obra nessas empresas. Bernadel nos conta que: Faço parte do primeiro grupo que chega aqui em Xanxerê. Estava 34 haitianos nessa cidade esse dia lá. 34… dez no Arcaplas, dez no Continental, 10 no Unibom, faz 34 no perfimax. 34 nesse tempo… A empresa manda buscar a gente a gente vem aqui Xanxerê.(BERNADEL, 2018)26 As reportagens veiculadas no oeste catarinense trazem diferentes opiniões sobre a presença haitiana como força de trabalho, aparecendo com destaque as análises dos empresários que acreditam ser extremamente positiva pois os imigrantes estão ocupando o trabalho que muitos brasileiros não querem mais realizar, referindo às práticas laborais. Dessa forma, diversos haitianos necessitando de emprego para ajudar a fanmi que permanece o Haiti, foram trazidos pelas empresas ou se direcionaram por conta própria ao oeste catarinense. A maioria dos haitianos que vieram posteriormente, sem auxílio das empresas, souberam por haitianos que já residiam na região dos emprego disponibilizado, nas mesmas e em outras empresas, o que gerou o grande fluxo regional. As motivações contadas por Roberson, Marie e Bernadel nos demonstram que são diversos os caminhos e motivações que resultaram em sua chegada na região oeste de Santa Catarina. Cada um, com suas relações e condições, realizaram a movimentação e estão atualmente estudando e/ou trabalhando no local, nas palavras de Marie (2018), “num outro país com cultura diferente, comida diferente, língua diferente…”.                                                                                                             25 As referências das reportagens centrais para as análises realizadas aqui, encontram-se listadas ao final. Roberson está citando aqui o nome das empresas de Xanxerê e o número de haitianos que vieram para trabalhar nelas. 26   109 5.4.1 Sociabilidade e integração no oeste de Santa Catarina Ainda não acabou, e não termina de maneira tão simples a adequação do sujeito em mobilidade ao local que se encontra. Alguns chegam a região com algumas garantias, como Bernadel, já outros, estão apenas iniciando a busca daquilo que vai garantir o sucesso de sua vinda, como é o caso de Marie e Roberson. Bernadel (2018) diz que “A empresa manda buscar a gente a gente vem aqui Xanxerê”, com gastos da viagem do Acre até a região pagas. E a casa “Estava alugada e paga por empresa. Durante um ano.”. Marie tinha amigos que colaboraram na sua estadia durante algum tempo na cidade de Chapecó. Roberson, quando deixou seu emprego e sua casa onde sua irmã permaneceu em Minas Gerais, teve que encontrar junto com seu irmão, no dia em que chegou, uma casa para alugar, um alimento, móveis para descansar, conhecendo muito pouco da cidade. Ademais, Marie e Roberson não tinham nenhuma garantia de acesso à universidade quando chegaram em Chapecó. Ambos realizaram um curso de língua oferecido pelo projeto do PET da UFFS para aprender o português, antes de realizar o processo seletivo e disputar suas vagas na universidade pelo PROHAITI. Estabelecidos ou buscando oportunidades, a socialização era necessária para entrar e permanecer nos espaços, para as necessidades básicas, a sobrevivência. Bernadel felizmente relata que não teve grandes dificuldades quanto ao entrosamento no trabalho na cidade de Xanxerê, sendo seus colegas as primeiras pessoas com que ele entrou e criou contato e isso colaborou na aproximação da língua portuguesa: “na minha empresa a gente conhece eles, e com eles a gente começa a falar também. Porque a gente tenta falar, tenta explicar, tenta pedir o que a gente precisa, por isso a gente se começa a comunicar. Começa tentar a falar português.” (BERNADEL, 2018) Dessa forma, apesar da dificuldade da língua, Bernadel (2018) demonstra ser harmoniosa sua integração, mesmo que o salário deixasse a desejar pelo trabalho, pois, em suas palavras “aqui meu serviço é pesado, tem que, pra falar a verdade, eu sou do carregamento, é bem pesado.”. É interessante que não aparece nenhuma dificuldade de interação ou integração na fala de Bernadel: sua fala é voltada para a questão financeira dificultosa, mas com evitamentos no que se refere aos espaços de sociabilidade na cidade, o que possivelmente está associado a diferença de seu perfil entre os narradores: ser um homem adulto, de meia idade, casado e com filhos, faz crer que suas responsabilidades ou prioridades influenciem nas suas experiências e na maneira com que as observa.   110 Retornando para a análise realizada, em relação a mídia, se destaca uma reportagem de 2013 sobre uma sessão da câmara de vereadores da cidade de Xanxerê27, onde aparecem posicionamentos diversos sobre a presença dos imigrantes. Está evidente que os discursos construídos na reportagem denunciam as hierarquias que dividem os imigrantes haitianos dos brasileiros naturais de Xanxerê, estabelecendo relações de poder sobre eles. As relações de poder e privilégio estabelecidas entre haitianos e brasileiros ficam evidentes quando os vereadores discursam em favor de seus interesses individuais e da coletividade da população de Xanxerê, que não inclui “aqueles”, “os outros”, os haitianos. Passíveis de análise nesta reportagem são os comentários de usuários da internet, que, em suas falas, representam a população geral e trabalhadores dessas empresas. A maioria destes comentários evidencia que os haitianos não são bem-vindos por muitos habitantes nos espaços da cidade. Inclusive, Marie representa essa relação em sua fala: “quando você tá na universidade, tá na sala, tudo, tudo te mostra que você não tá no seu país, que você não tá dentro dos seus amigos, que você não faz parte dessa sociedade” (DIVERS, 2018). Além disso, um trecho de comentário de internauta traz o seguinte: “lógico que seria legal para eles [haitianos, estarem em Xanxerê], mas e nós aqui, nosso sistema de saúde é péssimo, entre outros problemas”. Outro comentário: em Xanxerê tem muita gente atrás de trabalho, se vai vim tanta empresa para Xanxerê então não precisa trazer estrangeiros para trabalhar, só treina o pessoal que tem aqui,tem muita gente se deslocando a outros municípios porque aqui já não tem mais onde procurar emprego28 Bernadel, que chegou em um período próximo a publicação desta reportagem, certamente necessitou conviver e entrar em contato com pessoas que não aceitavam sua posição de estrangeiro que utiliza dos serviços públicos e trabalha em empresa da região. Por isso, a necessidade de ter em análise estas informações presentes na reportagem e comentários citados. Indubitavelmente, existe a possibilidade do narrador não ter sofrido situações de preconceito e ter tido um contato agradável, no entanto, também pode ter sido preferível não citar situações negativas com brasileiros, quando era uma brasileira branca que o entrevistava.                                                                                                             27 DEBIASI, Carol. Vereadores têm opiniões distintas sobre a vinda de haitianos a Xanxerê. In: Tudo Sobre Xanxerê > Notícias > Vereadores têm opiniões distintas sobre a vinda de haitianos a Xanxerê. Disponível em: http://tudosobrexanxere.com.br/index.php/desc_noticias/vereadores_tem_opinioes_distintas_sobre_a_vinda_de_ haitianos_a_xanxere?fb_comment_id=719576361405776_93262879#f3a31c635fc58. Acesso em: 30/04/2018. 28 Ambos os trechos de comentários citados aqui foram alterados quanto sua gramática para ser mais compreensível ao leitor, o conteúdo e o sentido não foram alterados. Uma imagem registrando os comentários está anexada em apêndice.   111 Marie e Roberson demonstram nas narrativas a colaboração e auxílio de algumas pessoas quanto a integração e adaptação em Chapecó, mas não deixam de citar como eles acreditavam que o Brasil fosse diferente antes de chegarem, incluindo nestas falas, o caráter preconceituoso que enfrentaram e enfrentam nos espaços públicos e de socialização no oeste catarinense. Roberson diz que: Desde quando eu nasci, o que eu achava do Brasil é aquela coisa que as pessoas sempre falam, é o país do samba, do futebol, país de meninas lindas, a gente sempre fala isso no Haiti. O Brasil que a gente vê na TV é bem legal, mas tem uma coisa que eu sempre acreditei e quando eu cheguei eu pensei "talvez seja esse o Brasil que eu vi lá", é essa mistura, as pessoas brancas, as pessoas pobres, as pessoas ricas, as pessoas negras, tem tudo isso, é uma mistura que eu acho bem legal, mas nunca pensei que o Brasil seria um país muito preconceituoso. (DAMIS, 2017) Roberson não acreditava que o Brasil seria um país preconceituoso pela multiplicidade cultural que ele via, através da mídia, antes de chegar. Não aparecem referências diretas a situações que o narrador tenha sido alvo de algum tipo de racismo no Brasil, mas ter citado o preconceito, demonstra que conhece situações desse cunho. A fala de Marie, nos leva a outra dimensão desse caráter, sendo que em sua narrativa, ela demonstra como sofreu diversas situações de xenofobia, racismo e de machismo na cidade de Chapecó. As imagens que você está vendo, da mídia, é um Brasil com pessoas, tipo, negras, no carnaval, essas morenas no carnaval, são as pessoas que nem, tipo, a Taís Araújo, que você chama de brasileiros, assim. A gente nunca pensou assim que tem pessoas brancas no Brasil. Aí quando eu cheguei em Chapecó eu costumava falar pro meu amigo assim: “A gente não tá no Brasil, a gente tá na fronteira do Brasil, a gente não tá no Brasil ainda” (DIVERS, 2018) Ambos citam que o que conheciam a partir da mídia, o Brasil demonstrava ser muito diferente. O estranhamento - dos brasileiros à presença haitiana- aparece diretamente na fala ou nas entrelinhas das narrativas, evidenciando a conduta da maioria dos brasileiros, no oeste catarinense, em diferenciar o imigrante daquele que nasceu na região. Para compreender a discrepância daquilo que a mídia oferece sobre o Brasil no exterior da realidade vislumbrada aqui, é importante a ressalva nacional e recorte da história regional que permeia todas essas falas citadas e analisadas dos narradores. Durante o final do século XIX, contava-se com um cenário nacional que era apontado por viajantes europeus como um cenário singular de miscigenação racial, o que era utilizado como condição subjetiva e diminutiva da população e nação brasileira: as raças perdiam suas características para se tornar uma “mistura” nada agradável aos olhos europeus. A partir dos   112 posicionamentos, o plano nacional era tornar aquele país mestiço do século XIX, uma país em processo de branqueamento no século XX, solucionando assim os problemas do país que eram ancorados na diversidade e miscigenação racial. (SCHWARCZ, 1993) O país era descrito como uma nação composta por raças miscigenadas, porém em transição. Essas, passando por um processo acelerado de cruzamento, e depuradas mediante uma seleção natural (ou quiçá milagrosa), levariam a supor que o Brasil seria, algum dia, branco. (SCHWARCZ, 1993. P. 16) O Brasil é reconhecido, a contragosto de alguns, como miscigenado a partir da década de 1930: a criação das primeiras universidades demonstra a fragilidade dos institutos e a decadência teórica do evolucionismo social que idealizada e sustentava a ideia de embranquecimento do Brasil (SCHWARCZ, 1993). O oeste catarinense, no entanto, assume um contraponto quanto a idealização de hegemonia nacional por ter um processo de colonização tardio, uma dinâmica econômica que não foi inserida no modelo colonial de grandes plantações, se voltado para a pequena propriedade e agricultura familiar e uma economia regional, diferenciada também pelas características da população que habitou os espaços. (SOARES; ANDREOLA 2017) No início do século XX, o debate político quanto a consolidação do Brasil como nação necessitava de uma união em nível nacional, o que levou a uma atenção especial para regiões “abandonadas” pelo Estado até aquele momento. Uma das regiões era o oeste catarinense, onde encontrava-se dificuldades de delimitação territorial. Após a delimitação jurídica houve intenso investimento estatal quanto a estrutura material, para transformar a região em um local economicamente rentável. A transformação do local era baseada em um plano maior, com diferentes implantações de produção e urbanização, preenchendo as “áreas vazias”29 mas com objetivos socioculturais, e entre eles, o branqueamento da população. (PETROLI, 2012) A Marcha para o Oeste, como foi chamada, tinha intenção de realizar o branqueamento, social e cultural, através da venda das terras apenas para descendentes diretos de italianos e alemães que residiam no Rio Grande do Sul. Tanto a formação econômica e da produção, quanto social do oeste catarinense se difere daquilo que se considera homogêneo da formação cultural nacional:                                                                                                             29   O território era povoado por uma vasta diversidade de grupos indígenas das etnias Guarani e Kaingang, que foram expulsas de seus locais, sobrevivendo hoje em pequenos territórios afastados dos centros, sofrendo de marginalização social, inclusive na venda de seu artesanato. Para mais informações ver o trabalho de Wilmar da Rocha D’Angelis: “Para uma história dos índios do oeste catarinense”(1989) e “Terras indígenas no Oeste Catarinense: uma questão histórica” (2009) de Sabrina da Silva Goulart.   113 Esses diferentes movimentos implicam também em diferentes narrativas sobre identidades e impactam nas relações de poder entre os diferentes grupos. ocupação territorial que ocorreu no oeste catarinense não tem a sua centralidade figura do português como grupo hegemônico e não se funda na experiência escravidão. (SOARES; ANDREOLA, 2017) as A na da A identidade regional do oeste catarinense não é caracterizada então pela miscigenação de ibéricos, indígenas e afrodescendentes, mas voltada para a cultura européia do centro-sul pela colonização ter sido realizada por esses descendentes de alemães e italianos. A identidade regional é afirmada, dessa forma, também na branquitude da população como característica homogênea dos oestinos, e a miscigenação é vista com temor, ainda hoje. Nas entrelinhas da fala de Dona Chica (nome fictício), brasileira moradora de um bairro da cidade de Chapecó, entrevistada por Neuri no seu trabalho de conclusão de curso, é possível perceber o receio de ligações ou contatos de suas filhas com os imigrantes: No bairro, eles ficam com o celular na rua, vivem na esquina, ali tem o ginásio e a academia, minhas meninas ia lá e das vizinhas fazer academia, não dá para deixar, eles ficam lá, acho que eles não são acostumados ficar dentro de casa parece. (Entrevistada Chica). (ANDREOLA, 2015. p.55) Compreendo que a região oeste é, dessa forma, uma região com característica de imigração. No entanto, apesar do número de haitianos no Brasil ser muito inferior a diversos outros grupos que imigram, a presença haitiana gera um impacto diferenciado quando se refere ao oeste catarinense: a negritude presente em seus corpos revela o impacto com uma estrutura de poder baseada na perpetuação da hegemonia branca instaurada com os ideais europeus (SOARES; ANDREOLA, 2017). A presença haitiana é para os brasileiros da região, a configuração daquilo que é diferente de si, a característica e identidade que não é sua, é o outro, como demonstra a situação que Marie nos revela: Teve uma vez que eu fui no Brasão Avenida, eu cheguei pra pagar as minhas compras, a moça que tava no caixa falou, ficou olhando pra mim assim e falou pra outra moça: “Vem aqui, vem aqui ver, olha que linda. Posso tocar no seu rosto?”. Eu olhei pro meu amigo e ele falou: “Ela falou pra você se ela pode tocar no seu rosto”. Aí eu falei: “mas por quê?”. Ele falou: “Você quer ou não?”. Eu falei: “Ela pode”. Aí ela tocou: “meu deus do céu, que macia, vem aqui tocar o rosto dela”. Tipo… Eu fiquei: “O que que é isso, gente?”. (DIVERS, 2018) As hierarquizações e relações de poder visíveis, podem ser analisadas através da obra de Norbert Elias e Scotson, os Estabelecidos e os Outsiders (2000), onde os autores, a partir de um estudo de caso específico, definem como estabelecidos a população que vive em   114 determinado lugar e compartilham de costumes e crenças, enquanto o outsider é aquele diminuído nas relações de poder em relação ao estabelecido. O que chega por último no local, o diferenciado, estigmatizado como grupo de menor valor humano em relação ao grupo dominante. Neste estudo, os autores indicam que geralmente os outsiders são classificados e repreendidos pelos estabelecidos no local, dessa maneira “o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto imagem deste último e com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo” (ELIAS, SCOTSON. 2000, p.24). Pude pensar esse posicionamento a partir da seguinte fala de Marie: Quando eu cheguei as pessoas ficavam olhando pra mim e me encarando, assim. eu achei estranho. Falei: “Qual o problema?”, meu amigo falou pra mim: “Não tem problema, é porque você é preta, porque eles não tem costume, tipo, com as pessoas pretas”. Aí eu falei: “Mas como assim? Porque a gente não tá no Brasil?” (DIVERS, 2018) A ideia da característica preta ou miscigenada do Brasil, que os haitianos carregam, é totalmente contrariada na realidade do oeste catarinense que perpetua o questionamento “será que estou mesmo no Brasil?”. A realidade identitária do oeste catarinense baseada na branquitude entra em contato então com a identidade haitiana, baseada completamente na negritude como formação de identidade nacional e símbolo de sua luta por liberdade. 5.4.2 A atuação da linguagem e do gênero na (não) integração A socialização nesse processo diaspórico se mostra como um desafio diário quanto a chegada de homens e mulheres haitianas no Brasil e se torna mais complexo quando se analisa que todo esse processo se deu, em uma língua que era desconhecida, de maneira total, para a maioria dos imigrantes que chegam ao país, como relata Bernadel nessa passagem: Eu não escuto [entendo] nada quando a gente chega. E a gente passou três dias sem falar nada, só escutar, o povo tá falando. Mas a gente sabia um pouco espanhol, e com isso que a gente sabia, a gente tenta, falar, tenta aprender, tenta escutar o que tá falando e também olhar a boca quando a pessoa fala. E deus me ajuda. Até hoje, eu nunca fui na escola estudar [português], mas dá pra se comunicar. Não é muito bem, mas dá pra me defender. (BERNADEL, 2018) Marie (2018) nos diz que, quando chegou, não imaginava que aprenderia a língua, diz que “no início eu não falava nada, nada, nada. Quando uma pessoa falava português pra mim, a pessoa pode falar uma frase, pode falar, tipo, mil frases, pra mim era uma palavra só. Eu não   115 entendia nada, nada.” Roberson (2017) cita o quanto a língua portuguesa é complexa, e que conhecia muitas músicas brasileiras sem saber o que as letras diziam: “Quantas vezes eu estava cantando em português e não sabia o que eu tava cantando… Essa música do Michel Teló, "Ai se eu te pego", eu vivia cantando e não sabia o que o cara tava falando”. Toda ação que necessitava ser realizada pelos narradores no país que se encontravam e desejavam se estabelecer, necessita de comunicação, e a comunicação é fundamentalmente realizada por linguagens. Novamente, importa ressaltar que a linguagem ultrapassa toda a pesquisa pela característica e diferenciador cultural que ela carrega, e especificamente no caso pesquisado, é elemento fundamental para compreender um processo identitário e de integração dos indivíduos. Todos os entrevistados conseguem se expressar de maneira razoavelmente boa em português, mas esse detalhe também é interessante ser analisado: muitos haitianos que residem na região a alguns anos, ainda não falam ou se expressam na língua portuguesa, e essa estatística se dá principalmente nas mulheres, a partir do que pôde ser observado nas conversas informais na universidade, outros locais de socialização e a partir do trabalho de pesquisa realizado. Sobre o assunto da língua entre as mulheres haitianas, Marie nos diz que: Primeiramente eu acho que é por causa da timidez. Em segundo lugar, eu acho que tem o machismo também, tem um monte de mulheres haitianas que tem marido. Aí o marido pressiona a mulher, fala que “não é pra você conversar com ninguém”. Quando você vai fazer alguma coisa junto contigo, o homem vai lá e aprende falar português e ele vai lá falar com as pessoas. Quando a mulher quer alguma coisa, ele que vai lá também pedir, porque ele quer saber tudo da vida da mulher, aí a mulher fica na dela, não quer se relacionar, não quer aprender porque o marido vai ajudar, o marido vai fazer o seguinte, o marido vai… Mas não é bem que ele vai ajudar, é machismo mesmo. O homem acha que ele é superior, que ele que tem que fazer tudo, que ele tem que ter o poder. Observo assim, que para além das dificuldades enfrentadas pelas mulheres haitianas, por serem imigrantes com a negritude presente em sua pele, elas enfrentam essa dificuldade estrutural, patriarcal, marcada de forma intensa pela língua e por outro fatores que envolvem o fato de serem mulheres negras: as vagas de emprego ofertadas para elas, no Brasil e outros países, são as principais dificuldades que elas enfrentam. Bernadel e Marie citam não ter falado por alguns dias ou meses português, por não saber como se comunicar e ter vergonha de errar a pronúncia. Dessa maneira, “observamos que o estranhamento diante da língua do outro também se manifesta através do silenciamento. (COSTA, 2016. p.64)”, sendo possível perceber que o fator linguístico é também presente no processo de socialização masculina, mas se dá de maneira mais intensa entre as mulheres.   116 Podemos pensar nisso através da fala de Roberson quando questionado se seus irmão que moram no Brasil (um irmão e uma irmã) também falam bem português: Se for escolher entre meu irmão e minha irmã… como que eu e meu irmão, a gente se relacionou mais com as pessoas, e quando você se relaciona mais e conversa mais com as pessoas, a fluência da língua vai ser maior, então ele fala mais do que minha irmã. (...) E a minha irmã fala mais ou menos, tem algumas falhas ainda para tentar ajeitar. Ela está mais tempo no Brasil que meu irmão, só que ele teve mais oportunidade de socializar. (...) Não é que ela não se relacione tanto, mas porque geralmente, não sei se você percebe aqui, os brasileiros, no caso, no sentido religioso ou na universidade também, os homens são mais abertos. (DAMIS, 2017) Dessa forma, apesar de estar a mais tempo no Brasil que o irmão de Roberson, sua irmã não fala a língua portuguesa tão bem quanto ele, e segundo o narrador, isso tem motivação relacionada com o contato social. Os papéis de sociabilidade das mulheres haitianas no Brasil, pelo material de pesquisa, são geralmente mediados por algum homem, seja marido, irmão, amigo, dificilmente quem faz o papel de comunicação é a própria mulher30. Os marcadores linguísticos quanto ao diferencial de gênero, demonstram na linguagem, que é local social de poder (COSTA, 2016), que na estrutura social as mulheres haitianas permanecem em uma esfera ainda mais distante da sociabilidade e integração no Brasil. Marie relata em suas experiências marcadores e situações que passou no Brasil, que além de racistas, explanam como é ainda mais dificultoso quando se tratam das mulheres explicitando a maneira com que tais situações - como a do mercado, supracitada - deixaramna perplexa: antes, enquanto estava no Haiti, acreditava em um Brasil negro, sem brancos, e nos primeiros momentos em locais de sociabilidade, é colocada em situações de diferenciação e violência quanto a suas características físicas e culturais. Tem amigos meus que sempre falavam pra mim assim: “mas como você está reclamando que no Brasil tem racismo se não tem branco no Brasil?”. Eu falei: “tem sim, tem branco no Brasil”. Aí eles falam: “não, Brasil não tem branco!”. Eu falo que sim, que tem branco no Brasil, e eles: “não, não tem branco no Brasil!” (DIVERS, 2018)                                                                                                             30 Entrevista com estudante do curso de Enfermagem da UFFS - Campus Chapecó, para a pesquisa “Negritude e Branquitude: uma análise da integração haitiana no oeste de Santa Catarina” relata experiências de estágio nas unidades básicas de saúde de Chapecó, onde existe bastante dificuldade de atendimento as haitianas pelo fator linguístico, sendo que não existe um preparamento nesse sentido para os funcionários das unidades. Também é relatado como a maioria dos atendimentos às mulheres é intermediada por algum homem próximo a ela, onde ele traduz para os atendentes o que ela diz em crioulo.   117 No vídeo em que Marie participou, realizado e publicado pelo NEABI da UFFSCampus Chapecó, já citado no ítem 2 deste trabalho, a entrevistada relata as dificuldades que perceber por ser mulher e preta na região. Além de situações de racismo vividas dentro da universidade, Marie expõe as dificuldades que teve quando em busca de trabalho na cidade de Chapecó, de visitar e realizar entrevistas entrevistas em locais que negavam - mesmo com a oferta de vaga exposta - que necessitavam de funcionários. Cita ainda uma situação específica em que vai a um local em busca de emprego e deixa o telefone. O funcionário ou dono da empresa a segue na rua assim que sai do local, dizendo que pode ajudar e arrumar um emprego pra ela, mas antes ela teria que viajar com ele, entre outras coisas. Nas palavras de Marie no vídeo: A pessoa não, não fala com você, não fala “qual o seu nome? O que você tá fazendo da vida? O que você quer da vida?” não quer saber isso. A pessoa só vê em você uma mulher preta que, que com certeza pobre, porque não tem como você ser preta e rica ao mesmo tempo, ainda pior quando você é haitiana! Tipo você chegou aqui a pessoa começa a “ah, ela não tem dinheiro, ela não tem nada, daí eu vou oferecer dinheiro pra ela e ela vai me oferecer o corpo dela, é a única coisa que ela tem”.31 Em conjunto com a narrativa das experiências em Chapecó que Marie relata na história de vida, é possível perceber as dificuldades singulares que carregam as mulheres haitianas nesses aspectos. Na questão trabalhista, Handerson e Joseph (2015) quando analisam a situação de mulheres haitianas na França e no Brasil, citam o descontentamento dessas mulheres no que se refere às vagas que lhe são oferecidas. As entrevistas realizadas pelos autores com algumas dessas mulheres, evidenciam como muitas delas tinham condições boas de vida nos países que viviam anteriormente, muitas com formações em nível superior, e no Brasil, apenas tem possibilidade de trabalhar em serviços domésticos. Como exemplo, podemos conhecer a frustração de Anne, de 32 anos, citada por Joseph e Handerson: “Mwen desepsione” (Estou decepcionada). Queria assim expressar sua insatisfação quanto às condições de trabalho e de salário no Brasil. Fora contratada para realizar serviços domésticos, e sua patroa lhe dera a roupa íntima para lavar e passar a ferro. Segundo ela, indignou-se e não voltou mais ao local de trabalho. Disse que na República Dominicana, onde morara, possuía uma casa na praia com duas empregadas: uma fazia serviços caseiros - cozinhava, lavava roupa e limpava -, e a outra era babá, cuidava do seu filho. Nas palavras dela: “Não estudei para hoje trabalhar na casa dos outros como empregada doméstica” (Mwen p’at etidye pou jounen jodi a se kay moun m’ap travay). (JOSEPH, HANDERSON, 2015. p. 23).                                                                                                             31 A referência completa do vídeo se encontra listada ao final.   118 As falas de frustração se caracterizam nesse sentido, tanto nas entrevistas realizadas por Joseph e Handerson (2015), quanto nos relatos de Marie . Com a dificuldade de emprego para as mulheres, que tenham um retorno mediano ou bom no salário, fica evidentemente mais distante o alcance do sucesso da empreitada, as mulheres relatam muitas dificuldade de enviar as remessas de dinheiro necessárias para o sustento da família que ficou no Haiti e a tristeza de não alcançar, nem de perto, o sucesso planejado com a mobilidade. 5.4.3 Mobilidade contínua: os planos e sonhos A identidade haitiana se baseia nos alicerces sociais e estruturais possibilitados pela mobilidade, que é constante. Os locais de parada dos sujeitos diáspora, mesmo que possibilitem uma estruturação e integração, não podem ser considerados fixações, mas sim locais por onde a mobilidade passa, deixando e levando conhecimentos e cultura. Há uma característica interessante na fala de muitos dos imigrantes haitianos presentes no Brasil, tanto dos entrevistados no projeto de pesquisa quanto nas histórias de vida, que está relacionado com o ideal de retorno ao Haiti: o conhecimento, a experiência e dinheiro adquiridos nos outros países, tem o objetivo de ajudar as pessoas que vivem no seu país de origem. Nas histórias de vida dos narradores, também coube relatar aquilo que se planeja para o futuro, a curto ou longo prazo. Marie planeja terminar os estudos no Brasil, mas seu objetivo é voltar para abrir o seu negócio - salão de beleza e um restaurante - no Haiti. Bernadel demonstra mais desconforto com sua situação atual no país: sonha em voltar ao “seu país”, viver de maneira tranquila no interior e poder voltar a fazer aquilo que ama: ser professor! No entanto, assim como é difícil alcançar o necessário para sair do Haiti, o retorno, necessita ainda mais de garantias: Se você tá aqui, não pode chegar lá e falar que vai dependender dos outros, não. Tem que ter dinheiro na mão, chegar numa casa e começar a vida. Se não dá pra começar, fica onde você está. Compreende? Eu tenho intenção de sair, mas não é agora por que é difícil, um pouquinho pesado. (...) a gente tem o sonho de meu país. Meu sonho é voltar lá e viver bem. (BERNADEL, 2018) As pesquisas nas mídias regionais também apontam um movimento grande de saída dos haitianos da região, para outras regiões, outros países ou de retorno ao próprio Haiti, sendo que muitos migram pelo racismo frequente em todos os espaços, pelas oportunidades   119 de emprego majoritariamente em funções braçais em grandes indústrias - mesmo que possuam altos níveis de escolaridade – e, a partir de 2016, às taxas de desemprego.32 Bernadel sonha com seu país porque acredita que só voltando para o Haiti, sua família vai realmente viver bem. Marie, que está em busca do diploma internacional, objetiva colocar em prática no Haiti aquilo que sonha, utilizando o que aprendeu em outros lugares. Independente da forma, o objetivo é retornar ao Haiti, com possibilidades e com “sucesso” financeiro e intelectual possibilitado pela mobilidade. O sucesso da diáspora é indispensável, e o retorno dela, preferencialmente aplicado no país de origem. Ao refletir sobre a interpretação de identidade cultural e conceito de diáspora mais familiar aos povos caribenhos, Stuart Hall (2003) evidencia a importância da história do “povo escolhido” do Velho Testamento, onde o mesmo povo foi violentado e levado a escravidão no Egito, e “o movimento do Povo de Jah” os livrou e possibilitou o retorno à Terra Prometida. Segundo o autor a narrativa é comum nos discursos de libertadores negros do Novo Mundo, e o retorno, pode representar a cura de tudo, a restauração de sua origem. Apesar da metáfora teológica, o autor defende que a esperança de retorno foi colocada para o povo caribenho como um mito fundador. Sendo assim: A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidades — os legados do Império em toda parte — podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento — a dispersão. Mas cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor. (HALL, 2003. p.28) Roberson, abrange mais os seus preceitos para o futuro. Demonstra estar encontrando o sucesso que busca no âmbito profissional e acadêmico, mas pretende muito mais. Diz não estabelecer limites aos seus projetos e que são mundiais, não para um local só. O anseio por mobilidade é central, assim como nas falas de Marie e Bernadel, demonstrando como a composição dos sujeitos em movimento, mesmo que residentes no Brasil atualmente, não pode ser visto como finalizado, ou estático. É um mundo em movimento e a mobilidade, uma necessidade. O Haiti é seu país, mas momentaneamente Roberson não planeja retornar, pois para ele “não tem como, lá não tem condição”. Apesar de evitar falar sobre alguns sonhos e desejos para o futuro, assim como Bernadel, Roberson quer marcar os locais por onde passa e tem uma certeza: quer ser reconhecido, quer ser lembrado.                                                                                                             32  COM relatos de preconceito e falta de emprego, muitos haitianos deixam SC. G1, 22 jul. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2016/07/preconceito-e-desemprego-fazem-haitianos-deixaremsc-tratam-mal.html. Acesso: 30/04/2018.   120 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS   Os objetivos centrais desta pesquisa estão alicerçados nas análises das narrativas de histórias de vida de haitianos em mobilidade, que residem atualmente no Brasil, mais precisamente no oeste do estado de Santa Catarina. O intuito foi analisar as memórias a partir de uma perspectiva que priorize sua sustentação em teóricos americanos e principalmente caribenhos, para que a compreensão da realidade histórico-social e cultural dos sujeitos e das lembranças analisadas - assim como de todas as haitianas e haitianos - seja compreendida, respeitada e mais próxima da realidade, desviando das concepções teóricas eurocêntricas, que não cabem na realidade de sociedades violentadas pelo imperialismo colonial europeu, como o Haiti e o Brasil. As questões ligadas a presença haitiana no Brasil e na região, puderam ser analisadas em profundidade com base nas histórias de vida que revelam, juntamente com as análises bibliográficas, a formação de um tradição migrante (termo utilizado por Magalhães (2014)) e a construção histórica política, econômica e social do Haiti, possibilitando um conhecimento aprofundado no que se refere ao fenômeno de presença massiva de haitianos no Brasil. É essencial pensar a presença haitiana no Brasil a partir do Haiti e dos haitianos, e não ao contrário. Apesar da presença brasileira no Haiti no século XXI e do aquecimento da economia brasileira no início da presente década, investigar a vinda de haitianos para o Brasil através da inversão, demonstrou que a mobilidade está historicamente ancorada na identidade cultural haitiana e que ela se coloca como necessidade estrutural dentro de uma realidade de subalternizações acumuladas. Em relação ao Brasil estar, nesse momento, entre os países que os haitianos buscam, ficou evidenciada a opção dos narradores pela facilitação na legalização da presença dos haitianos no país, após o terremoto de 2010. Observo alguns aspectos que correspondem a formação social e cultural haitiana que mais se destacaram considerando as histórias de vida e leituras relacionadas. Foi possível revelar a estreita ligação entre a identidade e a mobilidade nas memórias dos haitianos entrevistados, assim como a importância e centralidade familiar em todos os períodos da vida, exercendo um papel central nas motivações e colaborações para a mobilidade. Priorizei destacar elementos que se demonstraram centrais nas características sociais do Haiti, abordando a centralidade da língua crioula haitiana como marca de quebra dos alicerces coloniais e sua proibição nos espaços escolares, e também, as possíveis motivações para ser   121 pouco citada nas narrativas a religiosidade Vodu, também elementar quanto a história de revolução haitiana mas estigmatizada e ligada a atividades negativas. Considerei necessária uma abordagem quanto as dinâmicas de mobilidade haitiana, o histórico de fluxos migratórios e o ideal de sucesso profissional e financeiro que envolve, no imaginário haitiano, a emigração do Haiti, geralmente para grandes potências econômicas. Da mesma forma, foi possível elucidar sobre as utilizações do termo diáspora no campo teórico e seu uso social no Haiti, que simboliza sujeitos em mobilidade e alcançando o sucesso, que retornam momentaneamente para o país de origem, assim como os objetos relacionados com os sujeitos diáspora. Explorei também as trajetórias realizadas pelos entrevistados, os locais por onde passaram e os contatos, geralmente mediados por redes sociais, que informaram e motivaram sobre o oeste catarinense. Os processos de socialização e integração na região em que residem foram também aspectos de examinação, os ambientes de estudos e de trabalho, os casos racismo e xenofobia, centralizando a experiência e dificuldades enfrentadas pelas mulheres haitianas que enfrentam dificuldades frequentes pelas opressões machistas, racistas e xenofóbicas estruturadas. Como finalização das análises, refleti sobre os desejos e sonhos dos narradores, a importância do retorno glorioso ao Haiti e a mobilidade como fenômeno constante. Dessa maneira, se evidencia esta pesquisa no campo historiográfico do tempo presente, que pela proximidade com a memória, a literatura e outras ciências sociais e humanas como a sociologia, antropologia e a linguística, é capaz de refletir sobre fenômenos contemporâneos, construídos historicamente. A metodologia em história de vida se apresenta como fundamental para a realização das análises. Entrar em contato, aproximar-me, dialogar e entrevistar o Roberson, a Marie e o Bernadel foi de uma grandiosidade inigualável. O acesso as suas lembranças, aos seus contatos familiares, sua infância, namoros, experiências interessantes e desesperadoras do momento de deixar o Haiti, da jornada ao desconhecido e da socialização no Brasil, tornaram possível aproximar-me de maneira completa, e também sensível, aquilo que envolve cada experiência de mobilidade contemporânea de maneira singular e também o que corresponde as migrações coletivamente. Os debates realizados neste trabalho são o resultado de uma caminhada de pesquisa que não finaliza nessas considerações. As lembranças narradas disponibilizaram um grande campo de pesquisa, sendo debatidos aqui aqueles que mais se destacaram considerando a caminhada realizada. Os estudos que envolvem o fenômeno de mobilidade contemporânea, os aspectos sociais haitianos, a diáspora e a presença haitiana no Brasil e no mundo, é um   122 universo em movimento, que não cessa de renovar suas características e consequentemente, suas compreensões. Registro aqui as lembranças e trajetórias de três pessoas que passaram e passam por transformações em suas vidas, de país, de cidade, de amizades, de língua. No momento em que esta pesquisa foi finalizada, Roberson estava em Chapecó, Bernadel em Xanxerê e Marie nos Estados Unidos. Evidenciar suas memórias e narrativas objetiva demonstrar a experiência de mobilidade haitiana contemporânea pelos sujeitos que estão em mobilidade e que fazem parte, neste momento, da sociedade e história brasileiras, assim como dos outros locais por onde passam. Busquei demonstrar as dificuldades enfrentadas no processo de mobilidade, bem como as situações vivenciadas pelos haitianos no oeste catarinense - de modo significativo, o preconceito evidenciado pelos estigmas e construções sociais baseadas em nacionalidade, língua e, principalmente, cor de pele -, no intuito de possibilitar uma ponte entre o universo haitiano e o brasileiro, que se encontra em socialização e integração.   123 REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena. Fontes orais: Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2011. p. 155-202. ___________. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Fgv, 2005.   ANDREOLA, Neuri José. 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INFÂNCIA 2.1 - Qual é a memória mais antiga que você tem? 2.2 - Sobre a sua infância, qual a lembrança mais vívida que você tem? 2.3 - Que língua você aprendeu a falar primeiro? 2.4 - Como eram as brincadeiras que você brincava? Com quem brincava? 2.5 - Como era o seu bairro? E sua cidade? 2.6 - Você frequentava alguma igreja com sua família na infância? Como era? 2.7 - Como sua família se relacionava com religiões de Matriz Africana? E cristãs? 2.8 - Quando criança, você tem lembranças de festas de família? Que outras festas frequentava? ESCOLA 3.1 - Com que idade começou a frequentar a escola? 3.2 - Como era a estrutura física da escola? E como funcionava? Era paga ou gratuita? 3.3 - Você ia bem na escola quando criança, ou tinha dificuldades? 3.4 - A escola ficava perto da sua casa? Como você ia até lá? 3.5 - Como era a sua relação com os colegas e professores? 3.6 - Eram ensinadas outras línguas? LOCALIDADE 4.1 - Onde exatamente você morava quando era criança? Pode descrever o lugar? 4.2 - Como funcionava a questão de atendimentos de saúde? Tinha “posto” perto da sua casa? Você precisou utilizá-lo? 4.3 - O que você lembra que tinha perto da sua casa na infância? 4.4 - Sua casa era próxima as outras, ou numa região mais distante? 4.5 - Você ou algum membro da sua família sofreu consequência de alguma catástrofe natural na infância? ADOLESCÊNCIA 5.1 - Como foi a passagem da infância para a adolescência para você? 5.2 - Quando você lembra de começar a paquerar? Como foram suas aproximações e namoros? 5.3 - Você frequentava que lugares na sua adolescência? Frequentava festas? 5.4 - Como afloraram seus sentimentos por outras pessoas na adolescência? E sua sexualidade? 5.5 - Você costumava praticar esportes? Onde? 5.6 - Como era a questão da linguagem? Haviam momento em que prevalecia o Creole e em outros o Francês? Você usava gírias? 5.7 - Você frequentou que escola na adolescência? Era a mesma da infância?   130 ADULTO 6.1 - Você trabalhou no Haiti? Começou a trabalhar com quantos anos? 6.2 - Que funções executava no seu emprego? Como você ia e voltava do local? 6.3 - Houveram outros empregos? 6.4 - Você estudou em alguma instituição de ensino superior no Haiti? Que curso? Pública ou privada? E os outros membros da sua família? 6.5 - Você casou ou teve um relacionamento estável no Haiti? 6.6 - Você conheceu algum brasileiro enquanto morava no Haiti? SAÍDA DO HAITI 7.1 - Você ou algum membro da família foi atingido diretamente pelo terremoto de 2010? E indiretamente, como isso atingiu você? 7.2 - Como foi o processo de decisão de saída do Haiti? (motivos, sentimentos) 7.3 - Você decidiu em que momento que viria para o Brasil? Por que a decisão pelo Brasil? 7.4 - O que você trouxe consigo para o Brasil? Fotos, amuletos, instrumentos? 7.5 - Como foi a despedida? E a saída do Haiti? 7.6 - Você pode relatar como foi a viagem desde a saída do Haiti até chegar no Brasil? 7.6.1 - Como foi a sua experiência nas outras cidades do Brasil? 7.6.2 - Como foi a viagem até chegar na cidade que você mora atualmente? BRASIL 8.1 - Como decidiu por morar nessa cidade? 8.2 - Como foram os seus primeiros contatos aqui em Chapecó/Xanxerê? 8.3 - Você trabalha ou já trabalhou nessa cidade? Como conseguiu o(s) emprego(s)? 8.3.1 - E o processo de adequação ao emprego? De integração com os colegas de trabalho? 8.4 - PRA QUEM ESTUDA - Como foi o processo de entrada na universidade? 8.4.1 - E o processo de adequação a universidade? Convívio com colegas? 8.4.2 - Como foi estudar em outra língua? 8.5 - PRA QUEM TRABALHA E ESTUDA - Como é pra você conciliar trabalho e estudos? 8.6 - Como é o relacionamento entre haitianos aqui? E entre haitianos e brasileiros? 8.6.1 - E os relacionamentos amorosos? 8.7 - Que linguagem predomina nas conversas entre haitianos aqui no Brasil? 8.8 - Quais são as suas principais lembranças do Haiti enquanto você está aqui no Brasil? E suas principais saudades? 8.9 - O que você planeja fazer daqui pra frente? Permanecer no Brasil? Voltar pro Haiti? 8.10 - Quais são os seus sonhos de vida hoje?   131 APÊNDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)   132   133   134   135   136   137 APÊNDICE C - TERMO DE CONSENTIMENTO DE ADEQUAÇÃO DE ENTREVISTA PARA FORMATO DE TEXTO EM HISTÓRIA DE VIDA   138   139   140 ANEXO 1 – PRINT SCREEN DE COMENTÁRIOS EM REPORTAGEM ONLINE