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Experiências históricas Afro-brasileiras Helder Alexandre Medeiros de Macedo Joel Carlos de Souza Andrade Organizadores Reitora Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitor José Daniel Diniz Melo Diretoria Administrativa da EDUFRN Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Diretor) Wilson Fernandes de Araújo Filho (Diretor Adjunto) Judithe da Costa Leite Albuquerque (Secretária) Conselho Editorial Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Presidente) Alexandre Reche e Silva Amanda Duarte Gondim Ana Karla Pessoa Peixoto Bezerra Anna Cecília Queiroz de Medeiros Anna Emanuella Nelson dos Santos Cavalcanti da Rocha Arrailton Araujo de Souza Carolina Todesco Christianne Medeiros Cavalcante Daniel Nelson Maciel Eduardo Jose Sande e Oliveira dos Santos Souza Euzébia Maria de Pontes Targino Muniz Francisco Dutra de Macedo Filho Francisco Welson Lima da Silva Francisco Wildson Confessor Gilberto Corso Glória Regina de Góis Monteiro Heather Dea Jennings Jacqueline de Araujo Cunha Jorge Tarcísio da Rocha Falcão Juciano de Sousa Lacerda Julliane Tamara Araújo de Melo Kamyla Alvares Pinto Luciene da Silva Santos Márcia Maria de Cruz Castro Márcio Zikan Cardoso Marcos Aurélio Felipe Maria de Jesus Goncalves Maria Jalila Vieira de Figueiredo Leite Marta Maria de Araújo Mauricio Roberto Campelo de Macedo Paulo Ricardo Porfírio do Nascimento Paulo Roberto Medeiros de Azevedo Regina Simon da Silva Richardson Naves Leão Roberval Edson Pinheiro de Lima Samuel Anderson de Oliveira Lima Sebastião Faustino Pereira Filho Sérgio Ricardo Fernandes de Araújo Sibele Berenice Castella Pergher Tarciso André Ferreira Velho Teodora de Araújo Alves Tercia Maria Souza de Moura Marques Tiago Rocha Pinto Veridiano Maia dos Santos Wilson Fernandes de Araújo Filho Secretária de Educação a Distância Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Secretária Adjunta de Educação a Distância Ione Rodrigues Diniz Morais Coordenadora de Produção de Materiais Didáticos Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Coordenadora de Revisão Maria da Penha Casado Alves Coordenador Editorial José Correia Torres Neto Gestão do Fluxo de Revisão Rosilene Paiva Revisão Antônio Loureiro da Silva Neto Ailson Alexandre Câmara de Medeiros Letícia Torres Melissa Gabriely Fontes Renata Ingrid de Souza Paiva Projeto gráfico inicial Caule de Papiro Diagramação Mariana Andrade da Costa Capa Mariana Andrade da Costa Imagem da capa: JOVEM negra (Thier Buch - Livro dos Animais, de autoria do pintor holandês Zacarias Wagener, ca. século XVII). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14491/jovem-negra-thier-buch-livro-dos-animais>. Acesso em: 7 mar. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7 Este livro foi produzido a partir de recursos oriundos da SECADI/MEC, gerenciados, no âmbito da UFRN, pelo COMFOR. Os organizadores deste livro não se responsabilizam pelas opiniões emitidas pelos autores, tanto em forma, quanto em conteúdo. Sumário Introdução Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Muirakytan K. de Macêdo Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte Helder Alexandre Medeiros de Macedo Maria Firmina dos reis e A Escrava Régia Agostinho da Silva Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen Evandro Santos Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras Ana Santana Souza Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil Joelma Tito da Silva “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica João de Castro Maia Veiga Figueiredo I’ve got 2 wings: uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John Elton John da Silva Farias Sobre os autores 5 11 39 77 91 115 142 169 200 218 Introdução No segundo semestre do ano de 2014, teve início a Especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, com duas turmas, uma no polo de Caicó/RN e outra, no de Currais Novos, do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que ora se conclui. Este Curso está inserido no campo das diretrizes nacionais formuladas em decorrência da Lei Federal 10.639, de 09 de janeiro de 2003, no projeto de formação continuada, desenvolvido com a interveniência do COMFOR/UFRN e apoiado financeiramente pela SECADI/MEC. Pelo caráter inovador, à semelhança de outras congêneres, esta especialização tem como ponto de intersecção a partilha de experiências em seus diferentes níveis e momentos. Ela atendeu, diretamente, em pleno sertão do Seridó potiguar, a professores-alunos da Rede Básica do Rio Grande do Norte e da Paraíba; indiretamente, a todos os que participaram das atividades desenvolvidas em interação com aqueles, como alunos de graduação, cidadãos e grupos da comunidade externa. Reforçamos isso: os professores-alunos, mesmo em fase de formação, trouxeram para o processo de ensino-aprendizagem um universo fantástico de experiências oriundas do cotidiano escolar, do seio familiar ou de suas próprias vivências identitárias. Este livro vem somar-se à noção de partilha, porque traz para o bojo do debate diferentes estudos, que carregam, não obstante, elementos unificadores, pois tratam de temas sensíveis ao universo histórico e cultural dos laços com a África. Escrita em vários tons, esta obra enfatiza uma abordagem muito importante. O saber é um artifício do qual os griots são os guardiões e difusores, rompendo com os lugares atribuídos aos saberes disciplinares e específicos sobre a história, a cultura africana e a afro-brasileira. Revela-se uma experiência afro-atlântica-lusobrasileira multifacetada. Ao mesmo tempo em que houve espaço para discussões de temáticas locais, que ganharam evidência em vários trabalhos de conclusão de curso, vislumbramos, também, uma interlocução com outros exercícios e com reflexões que contribuem para uma expansão do debate por meio dos autores de textos aqui compulsados. Tais trabalhos já estão disponíveis online no Repositório Institucional da Universidade Federal do Rio Grande. Alguns deles receberam, por parte das bancas avaliadoras, a recomendação para a publicação, o que será feito mais em breve. O livro está dividido em dois blocos. O primeiro, cronológico, está composto de capítulos que versam sobre a temática da escravidão, a partir de olhares da História, da Literatura e da Historiografia. O segundo bloco, por sua vez, radica em ensaios temáticos que discutem diversidade e literatura, quilombos, memória e música negra. No primeiro bloco, o primeiro capítulo, de autoria de Muirakytan Kennedy de Macêdo, professor do Departamento de História (DHC) do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN), intitula-se Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX). Interessado em desconstruir versões “branqueadas” da história regional, que emergem na historiografia produzida pelos descendentes das elites agropecuaristas dos séculos XVIII e XIX, suas atenções voltam-se para a demonstração da existência e para o protagonismo de escravos negros, na antiga Ribeira do Seridó, entre o Setecentos e o Oitocentos. Lançando mão de fontes históricas de diversas naturezas – como registros de paróquia, censos, inventários post-mortem e jornais –, o autor nos conduz a um processo 6 de conhecimento da história negra do Seridó, que, a despeito de ter sido obscurecida pela historiografia tradicional, é identificada, também, em manifestações folclóricas e no patrimônio urbano da cidade de Caicó. Em seguida, o capítulo escrito por Helder Alexandre Medeiros de Macedo, do mesmo departamento acadêmico (DHCCERES-UFRN), volta-se para a recuperação da trajetória de vida de um homem de cor, cuja história está intimamente ligada à gestação do território que, hoje, corresponde ao município de São José do Seridó, no sertão do Rio Grande do Norte. Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte estabelece, pois, crítica a essa historiografia tradicional à medida que expõe, por meio de documentação judicial, sesmarial e eclesiástica, aspectos da história negra da região utilizando-se, como fio condutor, a vida do crioulo forro Nicolau Mendes. Maria Firmina dos Reis e A Escrava, de autoria de Régia Agostinho da Silva, do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão (UFAM), aventura-se pelos meandros da Literatura, ao explorar as possibilidades de compreensão do mundo que cercava uma autora no contexto escravista da província do Maranhão no século XIX. Estamos nos referindo à pessoa de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), que publicou o romance Úrsula (1859) e o conto A Escrava (1887). Em ambos, com ênfase no segundo, Maria Firmina recriou, em ambiente citadino, cenas por meio das quais ficou patente a situação de violência a que eram expostas as mulheres escravas, incluindo sua desqualificação como pessoas, consideradas de raça inferior. A opinião de Régia Silva é que a produção do conto A Escrava teve, como um de seus interesses, o de incitar os leitores contra o horror da escravidão e comovê-los com a tristeza 7 que esta impunha às famílias escravas, muitas vezes, fracionadas em função do tráfico interno. O último capítulo do primeiro bloco, de autoria de Evandro dos Santos, do Departamento de História (CERES-UFRN), está denominado Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen. O seu objetivo é revisitar a produção de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), na tentativa de verificar em que medida o historiador dedicou atenção a aspectos ligados à escravidão no século XIX. Partindo da importância conferida, sobretudo hoje, à produção historiográfica ligada ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em Oitocentos, para a constituição de um projeto de nação, o autor enviesa sua análise para um trabalho menos conhecido de Varnhagen, o Memorial Orgânico (1849-1850). Neste, embora não seja a sua temática central, a escravidão africana aparece, para o Brasil, como um dilema, tendo em vista que, em tese, descaracterizaria a intenção de o país fulgurar como uma nação “moderna”. Tema, portanto, que deveria ser debatido em uma ampla agenda política, que se estenderia durante todo o século XIX, culminando com a assinatura da Lei Áurea. O segundo bloco de textos inicia-se com Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de Literaturas africanas e afro-brasileiras, escrito por Ana Santana Souza, do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA-UFRN). Ancorando a problematização na experiência adquirida como professora do Curso de Especialização em História e Cultura Africana e Afro-brasileira, a autora propõe uma reflexão acerca da literatura na formação continuada de professores das Ciências Humanas. Duas questões balizam essa reflexão: o porquê de a literatura ser importante na formação de professores, ainda que não sejam eles os responsáveis pela área das Linguagens; e o que 8 as literaturas africanas de expressão lusa podem ensinar à diversidade, em termos de educação. Logo após, em Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil, Joelma Tito da Silva, historiadora e servidora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), lança luzes sobre o conceito de “quilombo”. Explorando a historicidade da palavra, a autora discorre sobre os seus significados e sobre o contexto colonial, remontando aos agrupamentos de negros “fugidos”, até as interpretações constitucionais contemporâneas, que aludem às comunidades de “remanescentes de quilombos”. O texto é arrematado com considerações acerca de comunidades quilombolas no Rio Grande do Norte, mormente aquelas situadas nos municípios de Parelhas, Currais Novos e Lagoa Nova, na região do Seridó. “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica, de João de Castro Maia Veiga Figueiredo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), é o penúltimo texto do livro. O autor parte de dois eventos contemporâneos, quais sejam, as comemorações dos 126 anos de existência da Universidade de Coimbra e, ainda mais, a exposição do mais recente objeto doado ao Museu de Ciência dessa mesma universidade, um ídolo do Congo. O exame procedido pelo autor na etiqueta do artefato, inscrita com “ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”, revelou diferentes possibilidades semânticas de compreensão do seu significado, além de efetuar uma rica incursão histórico-cultural e atentar para as visões e para os rótulos construídos pelos desígnios do “progresso” de séculos passados, salientando o autor, com bastante propriedade, a necessidade de haver novas leituras e reflexões. O livro encerra-se com um capítulo que explora as relações entre História e Música, demonstrando as possibilidades de 9 problematização da fonte musical. O capítulo I’ve Got 2 Wings: uma história de vida do Presbítero Utah Smith na voz do cantor/compositor britânico Elton John, de autoria de Elton John da Silva Farias, professor do Departamento de História (CERES-UFRN), segue por essa trilha. Ao analisar a canção de autoria do letrista Bernie Taupin, interpretada pelo pianista Elton John, o docente nos apresenta a trajetória de vida do presbítero Utah Smith, negro e protestante, historicizando a sua missão de evangelização por meio da música nos Estados Unidos, no século XX. Esperamos que, com essas diferentes incursões, os leitores possam cruzar discursos, imagens e sonoridades que reportam ao nosso universo histórico-cultural das relações pretéritas e coevas com a(s) África(s). Helder Alexandre Medeiros de Macedo Joel Carlos de Souza Andrade Organizadores 10 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Muirakytan K. de Macêdo O regionalismo seridoense, expresso em uma série de livros de história, genealogia e memória, foi um exercício que instituiu um tipo histórico dominante. Nesse discurso historiográfico, os seridoenses são brancos de cabelos e olhos claros, construção que ecoa os traços fenotípicos do colonizador português. Essa foi a fisionomia que se assentou, com maior aderência, em livros, ou, pelo menos, em um público letrado que replica o mantra regionalista, infenso ao mundo que o circula. Nessa verdade histórica cinzelada insistentemente, se é que as interpretações históricas podem se cingir com esta soberba de verdade, o Seridó, antiga ribeira das Capitanias do Norte, não tinha sofrido, de forma significativa, a repercussão da escravidão negra, onipresente em todo o Brasil colonial, nem experimentado as misturas étnicas tão próprias desse caldeamento histórico. Esta versão não é isenta de intenção, como qualquer outra versão do passado. Está a serviço de um processo de “branqueamento” historiográfico, muito comum em discursos regionalistas, especialmente, em regiões de ocupação colonial pela pecuária. Tudo se passa como a se reconhecer somente o que parecia ser uma obviedade histórica: o poder onipresente da elite proprietária branca. Desse modo, preservar-se-ia o poder da memória como capital político/simbólico dos descendentes daquelas elites e se colocaria “para baixo do tapete” outros sujeitos sociais que viveram na subalternidade: mulheres, crianças, índios, negros, mestiços. Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) No entanto, as evidências históricas da diversidade étnica, tanto pela paisagem humana atual do Seridó, rica em matizes diferenciados, quanto pelos documentos que informam sobre a escravidão e sobre os processos de liberdade, não cessam de afirmar o contrário do corpo escrito do regionalismo. Essa locução regionalista é evidente produto de uma geração de historiadores tributários de suas linhagens familiares e de sua formação como intelectuais forjados em uma matriz política e cultural específica. Ou seja, uma geração de historiadores, a exemplo de Manoel Dantas, Juvenal Lamartine e seu filho Osvaldo Lamartine, cujo meio familiar estava ancorado na produção algodoeira na República Velha e francamente comprometido com um projeto político ligado aos ideais liberais e oligárquicos. Mais tarde, Olavo Medeiros Filho, com uma marca memorialística muito pronunciada, sem formação universitária, se propôs a um mergulho em documentos explorados com fervor quase “positivista”. Mesmo esse historiador, que hoje é uma bússola para o monumento documental do Seridó, via os escravos sem exergá-los como matriz social/cultural do panteão identitário regionalista. Diante desse silenciamento, recolocamos aqui, insistentemente, a questão do discurso regionalista e seu sucedâneo, a produção de determinadas verdades históricas, cujo teor não permite uma compreensão ampliada nem do papel da escravidão no meio sertanejo, nem da contribuição das populações negras, indígenas e mestiças para o processo histórico da região. Nesse sentido, em um caráter ainda preliminar, mas com base em pesquisas levadas a termo no ambiente universitário (mono-grafias, dissertações, teses e artigos científicos), realçamos alguns elementos que julgamos pertinentes para a discussão da história do Seridó. 12 Muirakytan K. de Macêdo Alguns desses aspectos advêm da história da escravidão nos sertões seridoenses; outros, guardam suas formas no patrimônio material e imaterial da história presente. Em princípio, tomemos os territórios cujo protagonismo econômico e social se formou no período colonial, utilizando a escravidão na pecuária em regiões afastadas do agreste e do litoral. Mais precisamente no sertão, onde tudo parecia girar em torno do clima semiárido, que, se não é o seu único sol, parece ser sempre uma variável a ser considerada. Inicialmente, é preciso que reconheçamos que, nas Capitanias do Norte, a América portuguesa extrapolou a matriz da produção açucareira. Sob sua epiderme, uma rede de mercadorias e de pessoas se articulava em economias de autossustento e/ou integradas ao circuito interno da colônia, de maneira que aquele foi um universo que atava diversas atividades, para além daquelas que o mercado europeu requisitava com avidez. Mesmo o complexo do engenho de açúcar, sendo a pedra angular da organização socioeconômica e cultural do litoral nordeste, necessitava do suporte alimentício das fazendas de gado do semiárido, atividades que não poderiam conviver com a monocultura da cana de açúcar, sem prejuízo de suas lavouras. O avanço da fronteira pastoril para os sertões, além de ser necessário à produção do açúcar, servia como estratégia geopolítica de conquista e de ocupação coloniais de territórios para o império português. Nesse sentido, os sertões poderiam lançar mão das sobras populacionais que não se adequavam à vida dos engenhos e das vilas litorâneas. Esse contingente de pessoas seria atraído por motivações que, na sede do reino, não eram possíveis – ou seja, pela possibilidade de possuírem terras e gados e, coroando esse cabedal, os postos sociais que poderiam galgar na mobilidade social que, aos homens brancos livres na colônia, se mostrava mais franca. Mas não foi uma ocupação colonial fácil, pois a terra já era povoada 13 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) por aguerridos índios, que reagiram ao avanço pastoril sobre suas terras tradicionais. Essa expansão para o interior e a resistência indígena desencadearam uma série de eventos bélicos, que terminaram por quase extinguir os vestígios populacionais e culturais indígenas da Ribeira do Seridó. Após esses combates, chamados à época de Guerras dos Bárbaros (MACEDO, 2007; PUNTONI, 2002), a colonização dos sertões ganhou maior fluidez. Vastas sesmarias recortaram o território da ribeira, abrigando imensas fazendas de gado e lavouras para consumo interno. Não faltaram os peticionários para essa terra, pois muitos eram antigos combatentes das guerras sertanejas, remunerados, pelo direito tradicional ibérico, com as terras tomadas do inimigo. Por outro lado, o fluxo migratório aproveitava-se da pressão populacional sob a zona açucareira, que, não suportando toda essa população livre, fazia dos sertões uma “válvula de escape” para os colonos empobrecidos que não encontravam colocação nas vilas e nas lavouras sob a égide da produção do açúcar (SILVA, 2003, p. 216). Os sertões abriam-se, assim, como ricas possibilidades e liberalidades, tanto para os “desclassificados” do açúcar, quanto para escravos fugidos e para indígenas, já sob o controle da administração régia. Na colonização da ribeira do Seridó, localizada entre a Capitania do Rio Grande do Norte e a da Paraíba, apesar dos homens brancos terem sido os sesmeiros, donos de fazendas de criação e eles próprios trabalhadores a vaquejar seu gado, a mão de obra escrava negra foi indispensável, pois estávamos em uma realidade colonial, na qual a escravidão negra se capilarizava em todos os recônditos produtivos, inclusive, com o movimento diaspórico de várias etnias africanas, como atesta o gráfico, a seguir, para a ribeira do Seridó. 14 Muirakytan K. de Macêdo Gráfico 1 – Procedência das “nações” nos inventários Fonte: Inventários do 1° Cartório de Caicó (1737-1813). Nos primeiros tempos, os vaqueiros apareciam com destaque nessas regiões de fronteira, mas isso não queria dizer que todos eram brancos. Notadamente, pelos documentos da época, figuravam, em meio à população, uma significativa população de escravos negros e indígenas (MACÊDO, 2007). Porém, é necessário que reconheçamos que, dado à baixa rentabilidade da atividade pastoril e, até mesmo, ao manejo do gado, a rigor, na Ribeira do Seridó, não existiam grandes escravarias que justificassem, nas fazendas, a existência de numerosas senzalas. Isso em razão de que a maior parte dos criadores possuía um conjunto de cativos inferior a cinco escravos; muitas vezes, ou não os possuíam ou possuíam somente um escravo (Gráfico 2, a seguir). Números expressivos de escravos eram casos isolados, nunca a regra. Encontramos algumas escravarias notáveis em inventários lavrados antes da Grande Seca. Por exemplo, em 1774, José Carneiro Machado teve listados seus 10 escravos e, no ano em que começou a famosa e terrível estiagem, 15 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) João Marques de Souza teve sua escravaria contabilizada em 20 cativos1 (MACÊDO, 2007). Eram casos únicos. Gráfico 2 – Escravaria nos inventários seridoenses (século XVIII) Fonte: Inventários do 1o Cartório de Caicó (1737-1813). No século XIX, a tendência seguiria. A maioria dos proprietários não possuía escravos ou os tinham com mais frequência entre um e três, sendo, também, raros os casos que passavam de uma dezena2 (Gráfico 3, a seguir). 1 Os dados apresentados nesse texto, que se referem ao século XVIII, são originários da tese de doutorado (MACÊDO, 2007) produzida pelo autor do capítulo. 2 Todos os dados de pesquisa referentes ao século XIX foram extraídos de investigações realizadas em inventários post mortem do Seridó (Acervo Labordoc – UFRN – Campus de Caicó/RN), em pesquisa denominada “As astúcias da suavidade - a escravidão negra nos sertões 16 Muirakytan K. de Macêdo Gráfico 3 – Escravaria nos inventários seridoenses (1856-1888) Fonte: Inventários do 1o Cartório de Caicó (1856-1866). A partir de nossas pesquisas, baseadas largamente em inventários da ribeira do Seridó, é possível afirmar que o número reduzido de escravos não se traduziu em insignificância patrimonial. Analisando o montante de bens dos inventariados, podemos chegar à expressiva cota de 20,25% da participação de escravos na formação da fortuna geral dos sesmeiros seridoenses, percentual que só perdia para os imóveis (terras e casas) e para o gado (MACÊDO, 2007). Essa participação variou pouco. Entre 1822 e 1888, a mão de obra escrava ainda representava, em média, 22% do total dos bens declarados nos inventários seridoenses3. É evidente que, ao trabalhar com médias para longos períodos, não percebemos variações conjunturais, mas podemos, por meio de outros dados pesquisados, detectar a ocorrência de oscilações na composição patrimonial. Entre 1860-1869, por exemplo, em uma realidade que passava a supervalorizar a demanda de escravos, devido à proibição do Rio Grande do Norte”, projeto financiado pela UFRN (PIBIC/20082011), sob coordenação de Muirakytan K. de Macêdo. 3 Os dados para o século XIX foram sistematizados em continuidade à mesma metodologia que empreguei na investigação de doutoramento (MACÊDO, 2015), no projeto de pesquisa “As astúcias da suavidade”, ver nota 2. 17 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) do tráfico atlântico, os escravos representavam 34% no valor das posses dos proprietários. Mas a tendência não evoluiria indefinidamente, visto que decairia vertiginosamente no processo de desmonte da escravidão, em fins do século XIX. Outros sertões da época passavam por situação semelhante, o que pode apontar um padrão. Em fazendas de gado, por exemplo, da região sertaneja da Província de Pernambuco, no século XIX, os escravos compunham 31% da riqueza total dos proprietários de terra (VERSIANI; VERGOLINO, 2003). Se, por um lado, o próprio valor monetário dos escravos era, em si, uma evidência de seu peso na economia e na sociedade, por outro lado, não há dúvidas a respeito do montante demográfico de negros, sejam eles escravos, sejam livres e libertos. No censo demográfico de 1872, visualizamos, com maior acuidade, essa expressiva população negra e mestiça. Tal censo mostra uma contagem criteriosa da população (rural e urbana) da Cidade do Príncipe, no Seridó. Nela, podemos constatar que, mais uma vez, parte considerável da população seridoense foi escravizada (Tabela 1). Tabela 1 - População da Cidade do Príncipe - 1872 Fonte: Censo de 1872. Disponível em: <http://www.nphed.cedeplar.ufmg. br/pop72/index.html;jsessionid=a64bf6dbef7950a0e111366fdfbb>. Acesso em: 20 jan. 2012. 18 Muirakytan K. de Macêdo Esse flagrante censitário possibilita que pesquisas metodológicas considerem, em bases mais sólidas, a relevância da população negra no período, mesmo a despeito da política emancipacionista, do tráfico e da mortalidade. Segundo Ariane de Medeiros Pereira, [...] verificamos que em 1872 havia um número considerado pequeno de escravos se comparado com a população livre. Porém, nem por isso é inexpressível, ao contrário, em face das atividades abolicionistas, da lei de 1871 e dado às atividades desenvolvidas na Cidade do Príncipe, é revelador a quantidade da mão de obra escrava. No entanto, o que se tem de deixar claro é que além do tráfico interprovincial, havia a mortalidade escrava dada às precárias condições de vida e alimentação (MATTOS, 1985 apud PEREIRA, 2014, p. 66). Por seu turno, fontes cartoriais e paroquiais nos levam a afirmar que essa população também se reproduziu ao longo dos séculos, em muitos casos, no seio de famílias transgeracionais. Tais arranjos societários foram possíveis devido à natureza das atividades do criatório e das pequenas lavouras, que possibilitaram, por meio de sua formação demográfica, maior probabilidade da formação de pares matrimoniais. Esse fenômeno se explica pelo fato de a relação entre o número de escravos e escravas tender a ser mais equilibrada em regiões que, a exemplo do Seridó, eram ancoradas na pecuária como economia local hegemônica. Nos 56 inventários da Freguesia da Gloriosa Santa Ana do Seridó, foram catalogados 143 escravos para o século XVIII, 84 do sexo masculino e 59 do sexo feminino (MACÊDO, 2007). No século seguinte, entre 1822 e 1832, catalogamos 96 homens e 19 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) 89 mulheres escravizados (razão de sexo4 igual a 107,8). Para o intervalo entre 1833 e 1843, catalogamos 60 homens e 95 mulheres escravizados (razão de sexo igual a 63,1); entre 1844 e 1854, catalogamos 102 homens e 82 mulheres escravizados, cuja razão de sexo totaliza 124,3 (Gráfico 4, a seguir). Gráfico 4 – Razão de sexo (1822-1854) Fonte: Inventários do 1° Cartório de Caicó (1822-1854). Para a segunda metade do século, entre os anos 1855 e 1866, catalogamos 101 homens e 92 mulheres escravizados (razão de sexo igual a 109,7). Entre 1867 e 1877, catalogamos 56 homens e 54 mulheres escravizados (razão de sexo igual a 103,7). Por fim, entre 1878 e 1888, catalogamos 30 homens e 38 mulheres escravizados, cuja razão de sexo ficou igual a 78.9. 4 IBGE (2012): “Razão de sexo - expressa o número de pessoas do sexo masculino para cada grupo de 100 pessoas do sexo feminino. É obtida através do quociente entre as populações masculina e feminina por grupos de idade”. Disponível em: <http://www.mpas.gov.br/arquivos/ office/4_081010-120048-289.pdf.>. Acesso em: 3 jan. 2013. 20 Muirakytan K. de Macêdo Gráfico 5 – Razão de sexo (1856-1888) Fonte: Inventários do 1° Cartório de Caicó (1822-1854). No intervalo de 1878-1888, há a novidade do impacto da proibição do tráfico atlântico e, consequentemente, a efervescência do tráfico interprovincial de escravos que, junto com as alforrias, diminuíam a população cativa na segunda metade do século (LOPES, 2011). É interessante percebermos que o tráfico interprovincial, por si só, não drenou instantaneamente toda a população cativa para fora da região. Grande parte do comércio de negros escravos ocorria no mercado local; só depois, aos poucos, é que se esvaía para outras províncias. Maria Regina Furtado5 (2014), ao estudar as escrituras de compra e venda de escravos para o período entre 1850 e 1888, sistematiza a predominância desse movimento endógeno na tabela a seguir. 5 Capítulo baseado na dissertação de mestrado (MATTOS, 1985). 21 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Tabela 2 – Destino dos escravos negociados na Vila do Príncipe – 1850/1888 Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos – 1850/1888 – 1º Cartório de Notas de Caicó. In: FURTADO, 2014, p. 245. 22 Muirakytan K. de Macêdo De qualquer forma, os números da razão de sexo possibilitam indicar que, em áreas pastoris, o relativo equilíbrio entre homens e mulheres permitiu o maior número de arranjos familiares entre os cativos. Esse indício nos permite afirmar que, por um lado, havia expressividade da população escrava e, mais do que isso, que tal equilíbrio possibilitou a formação de pares conjugais e estruturas complexas de parentesco. Ou seja, duradouras experiências familiares: casamentos, compadrios, irmandades em confrarias religiosas e alianças para liberdade consentida ou não. Com relação ao matrimônio, as determinações das Constituições Primeiras da Bahia, publicadas em carta pastoral de 1707, defendia esse sacramento para os escravos, como direito divino e humano (VIDE, 2007), além de afirmar que os senhores tinham que, por obrigação cristã, promover o casamento in facie eclesiae e deviam ficar atentos ao princípio da indissolubilidade do sacramento matrimonial e da família. Por consequência, os casais cativos não deveriam ser separados nos tratos comerciais. Por essas razões, era comum os senhores de escravos ignorar solenemente a pastoral eclesial, mesmo sob o risco do pecado. Temiam que, uma vez formada a família escrava, fosse difícil negociá-la in totum. Por outro lado, os argumentos pios católicos, em favor desse tipo de casamento, eram que os escravos continuariam a servir seus senhores da mesma forma e que reproduziriam a escravaria sob o abrigo das normas cristãs. Ainda não temos estudos suficientes para afirmar os arranjos familiares que ocorriam à revelia da Igreja. Essa hipótese é plausível, visto que devemos considerar o fato de que as regras de parentesco entre os negros africanos não corresponderam às ditadas pelas normas eclesiásticas, de modo que não era incomum a relação sexual fora do casamento e a formação familiar, mesmo precária, em situação servil. 23 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Mais elementos documentais temos para pensar os casamentos in facie eclesiae, a sua abrangência e os seus limites. Dessa forma, a partir do exame feito nos livros de casamento do período estudado, podemos afirmar que, nos sertões do Seridó, a maioria dos casamentos de negros e de mestiços ocorria entre escravos (Gráfico 6, a seguir), sendo a maior parte entre cativos de um mesmo senhor (MACÊDO, 2007). Gráfico 6 – Casamento entre pessoas de cor FONTE: Livro de Casamento da Paróquia de Caicó (1788-1811). Macêdo (2007, p. 224). Os dados apresentados no Gráfico 6 podem ser uma evidência da lógica do casamento entre escravos, pelo menos para o período colonial. O fato de ocorrerem casamentos no interior da mesma escravaria revelaria, também, um cálculo senhorial. O senhor não precisaria ter uma vigilância ostensiva sobre o casal, visto que ele gerava, por meio da prole cativa, uma dependência mútua que diminuía as possibilidades de marido e mulher escravos se envolverem em fugas. Essa estratégia evidente que não era uma via de 24 Muirakytan K. de Macêdo mão única, somente uma astúcia senhorial; era, também, uma situação de escravidão negociada, ou seja, os escravos toleravam melhor seu cativeiro se o senhor se dobrasse um pouco, aceitando a união “legítima”, como era denominado o casamento sacramentado pelo padre. Legítimas ou ilegítimas, essas famílias eram possíveis, especialmente em regiões pastoris, em que os escravos poderiam ficar muito tempo em campo aberto e até sozinhos, no pasto, sendo o núcleo familiar sempre um chamado para que ele retornasse à esposa e aos filhos, quando havia apego familiar. Por todos esses dados pesquisados, podemos afirmar que não só a escravidão foi um imperativo na formação social seridoense como também se multiplicou em famílias dentro da própria vivência do escravismo. Práticas planejadas, sem dúvidas, para que homens e mulheres se agrupassem como resistência à dispersão e como logística para tramarem suas liberdades com as alforrias que poderiam conseguir com seu trabalho e com outras manobras familiares, que incluía a mestiçagem (MACEDO, 2013). As alforrias não foram, por sua vez, realizadas somente por obra e graça dos senhores de escravos, muitos dos cativos, a duras penas, conseguiam produzir uma suada poupança que poderia comprar sua liberdade, de seus filhos e mulheres. O gráfico a seguir demonstra que, na maior parte das vezes, era o próprio escravo e seus parentes que patrocinavam a alforria com ônus para eles, o que significava que existia uma disposição tanto individual quanto parental para auxílio mútuo, no caso da compra da liberdade. 25 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Gráfico 7 – Agentes alforriadores Fonte: Livros de Notas (século XVIII). Muitos negros lutaram arduamente, até para assegurar a liberdade com a qual já tinham nascidos em terras brasileiras, ou aquela conseguida com a alforria. Em muitas ocasiões, a legitimidade de seu estatuto de livre ou liberto foi questionada, o que prova que a liberdade dos negros e mestiços era, em qualquer caso, precária, pois poderiam juridicamente voltar a ser escravizados (CHALHOUB, 2012; PEREIRA, 2014). Devido à violência do cativeiro, muitos escravos resistiram fugindo para longe de seus senhores. Conflitos entre senhores e escravos sempre estiveram na pauta de um sistema que se baseava na violência, sendo mais comum a praticada pelos proprietários de escravos. Embora seja um tópico ainda pouco pesquisado6, no recorte territorial que estudamos, a violência perpetrada pelos 6 Nessa direção, mencionamos os estudos pioneiros para a região, nas pesquisas sobre a violência envolvendo negros escravos, livre e libertos realizadas por Macêdo (2003) e Pereira (2014). 26 Muirakytan K. de Macêdo escravos contra os seus senhores foi real, em potência e em ato. Coronel Laurentino Bezerra de Medeiros, em suas memórias, assinala, nesse sentido, um fato familiar: Sou filho 1º de João Bezerra Galvão, que foi barbaramente assassinado por dois de seus escravos (Paulo e Joaquim) aos 21 de Dezembro de 1844, e de Ana Joaquina de Medeiros que não podendo sobreviver muitos tempos aquele inesperado golpe rendeu sua alma ao creador no mez de fevereiro de 1846, as 3 horas da tarde (ARAÚJO; MACÊDO, 2015, p. 13). Outra reação imediata era a fuga. No jornal O Assuense, de 15 de setembro do ano de 1867, flagramos um anúncio que faz um pormenorizado retrato de uma escrava fugida da Villa do Jardim, Comarca do Príncipe: 27 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Figura 1 – Retrato de uma escrava fugida “da villa do jardim” Fonte: O Assuense, 1867, 15 de setembro de 1867, n. 25, p. 4. Anúncios dessa espécie eram comuns nos jornais da época. Severina era uma escrava cujo preço deveria ser significativo, pois era jovem e qualificada. Manoel Martins de Farias, seu senhor, a despeito da intrepidez e da anunciada impetuosidade da mulher, noticiou o fato nas localidades por onde circulavam as pessoas e mercadorias demandadas pelo Seridó, na esperança de restituir a escrava para sua propriedade, ou negociá-la no próprio local 28 Muirakytan K. de Macêdo da captura. Exemplo desta última situação foi registrado pelo já citado Coronel Laurentino, em seu livro de assentos: “Dezembro fui ao Baturité7 vender Guilherme que, para lá tinha fugido em Junho, chegando aqui de volta perto da Festa do Natal”. (ARAÚJO; MACÊDO, 2015, p. 20). Severina, segundo o reclame, era ardilosa, pois era uma fujona contumaz. Evadira-se de seu senhor e da prisão de Angicos, armada e com dinheiro. Denunciava-a seu bom aspecto (“bem parecida”) e suas marcas corporais: dentes limados e, no braço, o “sino de Salomão ou de alguma outra figura”. Este último era, possivelmente, uma escarificação ou tatuagem com a forma da Estrela de Davi, também chamado de “Selo ou Signo de Salomão”, utilizado como um talismã8. Guarnecida pela estrela, a crioula (nascida no Brasil) Severina contava, ainda a seu favor, com o fato de ser “ladina”9. Mas, voltemo-nos para a historiografia e para conclusão do texto. O “branqueamento” a que nos referimos, no início, acerca da historiografia “tradicional” do regionalismo seridoense, demonstra-se como um ardil revelador de táticas sociais autoritárias. Tal procedimento surge quando determinados grupos querem se afirmar no poder, usando o expediente da reordenação da memória e da história, com o fim de invisibilizar a diversidade social. Essa prática era moeda corrente 7 8 Região serrana no norte do Ceará. O sino ou signo de Salomão, na forma da Estrela de Davi, foi um dos talismãs mais usados na indumentária dos cangaceiros dos sertões nordestinos, figurando, especialmente, na frente de seus chapéus de couro (MELLO, 2012). 9 Ladinos eram os escravos “aculturados” que falavam bem o português. 29 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) na algibeira historiográfica e memorialística, não escapava até ao discurso médio sobre a região, proferido pelos próprios seridoenses ou por estudiosos renomados (MACÊDO, 2012). Câmara Cascudo, por exemplo, em expedição realizada ao Seridó, a despeito de sua notável sensibilidade etnográfica, não realçou traços significativos da presença negra entre os seridoenses (CASCUDO, 1984). No entanto, ele mesmo foi um dos primeiros a registrar a festa da Irmandade dos Negros do Rosário de Caicó (CASCUDO, 1962). É sintomático que os negros só apareçam em f(r) estas folclóricas! De qualquer forma, não havia como calar a participação dos afro-brasileiros na história do sertão pecuarista, nem a colocando na órbita controlada do “folclore”. O patrimônio cultural pulsa irrefreável e dá também voz ao passado afrodescendente. As irmandades católicas negras, dado sua persistência e estatura histórica, eram e continuam a ser monumentos dessa memória que, para além da coreografia folclorizada, varam com seus espontões quase três séculos de resistência identitária (GOULART, 2014). A primeira confraria negra do Seridó nasceu próxima à época da territorialização da região. A Freguesia da Gloriosa Senhora Sant´Ana foi criada em 1735 e, já em 1771, foi orquestrada, por iniciativa de um grupo de negros cativos e livres, a Irmandade do Rosário dos Homens Pretos. A princípio, a irmandade se reunia na igreja de Sant´Ana, matriz da freguesia, enquanto seus membros acumulavam recursos financeiros para a construção de um templo próprio, que foi erigido na segunda metade do século XVIII. Data de 16 de junho de 1771, o documento intitulado Termo de Aceitação que Fazem os Irmãos das Constituições deste Compromisso. Nele constam “as constituições do compromisso da irmandade”, que deviam ser seguidas e respeitadas por todos os seus membros (MACÊDO, 2014). 30 Muirakytan K. de Macêdo Não foi um fenômeno extemporâneo. Nos séculos XIX e XX, outros grupos ligados à devoção do Rosário foram criados na região. Documentos de arquivos seridoenses e a memória regional informam a existência dessas irmandades em Jardim do Seridó, Currais Novos, Acari, Serra Negra do Norte e Jardim de Piranhas. Hoje, continuam atuantes somente as confrarias de Caicó, Jardim do Seridó e Serra Negra do Norte (GOIS, 2014; GOULART, 2014; MACÊDO, 2014; MORAIS, 2014). Como se os sinais documentais e do patrimônio imaterial não bastassem, a Praça da Liberdade, em Caicó, testemunha, ainda hoje, a história da escravidão, mesmo que seja somente no nome que carrega, e que já foi, inclusive, apagado10. A história da praça começou quando foi construído o mercado público naquele local, inaugurado em janeiro de 1870. Em seu pátio, realizavam-se as feiras, passando a ser conhecido como Praça do Mercado, centro comercial da cidade (ARAÚJO, 2003). Esse local também foi palco da Revolta do Quebra-quilos, que invadiu os estabelecimentos comerciais, destruindo pesos e medidas do sistema de mensuração imposto pela monarquia (MEDEIROS, 2003). As feiras perduraram ali, até ser construído o atual mercado público, inaugurado no dia 23 de fevereiro de 1918. À nova praça foi dado o nome de Praça da Liberdade. Mas, qual a razão do nome? A liberdade dos escravos. A antiga Praça do Mercado tinha sido usada, publicamente, pelo movimento abolicionista em Caicó, em fins do período monárquico. 10 Hoje, a Praça convive com o nome antigo de Praça da Liberdade; no entanto, houve uma renomeação promovida pela municipalidade, que não caiu no gosto da população: Praça Dinarte Mariz. Felizmente, a Liberdade continua a ser pronunciada na nomeação do logradouro. 31 Notas sobre a escravidão nos sertões do semiárido (Seridó – XVIII e XIX) Ali, os abolicionistas se reuniam e discutiam alforrias e outras formas de libertação dos escravos pelas vias legais. Refletir sobre os processos de apagamento histórico nos dá a vertigem de que estamos tentando provar o que, obviamente, já existe. Mas, além de ser uma posição de honestidade intelectual diante das evidências “materiais” da documentação estudada, é também uma posição política, quando a memória e a história afrodescendentes buscam sua legítima cidadania. Sendo assim, esperamos ter colocado, com estas notas, alguns outros elementos que alimentem esse inadiável debate histórico/historiográfico; que eles cumpram o seu papel acadêmico de tentar pôr luz em um processo histórico que, de tão traumático, ainda nos faz falar obviedades, para que não se perca de vista o protagonismo de sujeitos históricos afro-brasileiros na história seridoense. Fontes manuscritas a) Acervo do Primeiro Cartório de Caicó (LABORDOC) • Inventários e testamentos (57 documentos do século XVIII) • Livros de Notas (século XVIII) – 9 volumes b) Acervo da Paróquia de Caicó (ACPSJ) • Livros de Batizados: 1803 a 1806 • Livros de Casamentos: 1788 a 1811 • Livros de óbitos e sepultamentos: 1789 a 1811 32 Muirakytan K. de Macêdo Referências ARAÚJO, Radilson Costa de. Praça da liberdade ou praça Senador Dinarte Mariz. In: MACÊDO, Muirakytan Kennedy (Org.). Caicó: uma viagem pela memória seridoense. Natal: UFRN/SEBRAE/RN, 2003. ARAÚJO, Ausônio Tércio de; MACÊDO, Muirakytan K. de; CAVIGNAC, Julie A. Lembranças oferecidas a meu filho Ulisses aos 2 de abril de 1877: Diário de Laurentino Bezerra de Medeiros. Caicó: Biblioteca Seridoense, 2015. CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa, 1955. ______. Tradições populares da pecuária nordestina. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1956. 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A irmandade de Jardim do Seridó e os folcloristas: pensando a visibilidade e a representação dos negros do Rosário. In: CAVIGNAC, Julie; MACÊDO, Muirakytan K. de (Org.). Tronco, ramos e raízes!: história e patrimônio cultural do Seridó negro Brasília: ABA, Natal: EDUFRN, 2014, p. 359-378. LOPES, Michele Soares. Escravidão na Vila do Príncipe, Província do Rio Grande do Norte (1850-1888). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2011. MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Ocidentalização, territórios e populações indígenas no sertão da Capitania do Rio Grande. 309 f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2007. ______. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2013. MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. 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Segundo uma de suas versões, durante um de seus banhos matinais, num poço do rio São José, uma jovem foi surpreendida por um caçador (ou pescador) que andava eventualmente por aquelas plagas, o qual, encantado com a sua beleza, teria exclamado “Oh, que moça bonita!”. Impulsivamente, a moça correu para a mata, onde se encantou. Em remissão ao ocorrido, as pessoas que passavam pelo lugar passaram a chamá-lo de Poço da Moça Bonita ou, simplesmente, Poço da Bonita. O nome foi adotado, também, para uma fazenda de criação de gado que surgiu nas cercanias do poço, cujo acúmulo de casas de morada fez surgir uma povoação, fundada oficialmente em 04 de novembro de 1917, com o nome de São José da Bonita, que aglutinou o nome do principal rio da região e do poço lendário.12 A povoação foi alçada à vila por força do Decreto Estadual nº 603, de 31 de outubro de 1938, com o título 11 12 Professor do Departamento de História, CERES, UFRN. MONTEIRO, Arxel Faustino et al. A cidade de São José do Seridó em seu movimento histórico-espacial. 2000. 46p. Relatório de atividades Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte de São José do Seridó – nome que foi conservado quando esse distrito foi elevado ao status de municipalidade, em 11 de maio de 1962, em função da Lei Estadual nº 2.79313. Segundo as pesquisas de Sinval Costa (1999)14 e Edite Medeiros (1998),15 [...] a moça bonita era filha do crioulo forro Nicolau Mendes da Cruz (séc. XVIII), proprietário desta data de terra, que deixou para ela (Domingas Mendes da Cruz, cf. Sinval Costa) a faixa que vai do sítio Viração até o Badaruco (limite com o município de Cruzeta, na atualidade)” (CIRNE, 1986)16 . (Disciplina Geografia Urbana – Curso de Geografia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2000. p. 6. 13 MONTEIRO, Arxel Faustino et al. A cidade de São José do Seridó em seu movimento histórico-espacial. 2000. 46p. Relatório de atividades (Disciplina Geografia Urbana – Curso de Geografia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2000. p. 6. 14 Trata-se de uma referência ao livro Os Álvares do Seridó e suas ramificações, de autoria de Sinval Costa, no qual a presença do crioulo forro Nicolau Mendes é salientada e demonstrada sua importância como um dos povoadores que primeiro bateram o rastro do gado no sertão do Rio Grande, a partir do começo do século XVIII (COSTA, Sinval. Os Álvares do Seridó e suas ramificações. Recife: edição do autor, 1999). 15 A professora Edite Medeiros foi responsável por compilar narrativas orais acerca da presença do crioulo forro Nicolau Mendes da Cruz, como povoador do rio São José, no período colonial (MEDEIROS, Edite. Resumo em Geografia e História de São José do Seridó-RN. São José do Seridó: [s.n.], 1998). 16 CIRNE, Moacy. A moça bonita. Balaio Porreta 1986, n. 2157, Rio de Janeiro, 06 nov. 2007. Disponível em: <http:// http://balaiovermelho. blogspot.com.br/2007_11_01_archive.html>. Acesso em: 15 ago. 2012. 40 Helder Alexandre Medeiros de Macedo Essas pesquisas nos mostram outra aresta do processo de gestação do território da ribeira do Seridó, no sertão do Rio Grande do Norte, que, com poucas exceções, comumente não é enfatizada pela historiografia regional: a existência, no século XVIII, de um homem de cor, forro, possuidor de uma data de terra, que deixou herança para uma filha. Em outros trabalhos, discutimos a descendência desse homem de cor e o seu patrimônio territorial17. Para este texto, todavia, interessa-nos indagar sobre quem era Nicolau Mendes da Cruz, além dos significados em torno de ser crioulo e forro no sertão do Rio Grande do Norte, no período colonial. Além disso, questionamo-nos sobre que mecanismos utilizou para adquirir a terra que, nos dias de hoje, corresponde ao município de São José do Seridó. A primeira referência conhecida sobre Nicolau Mendes da Cruz data de 1909, quando foram publicadas as sinopses das sesmarias da Capitania da Paraíba, fruto de intensiva pesquisa documental procedida por João de Lyra Tavares. Entre essas sinopses, encontra-se a que resume a Data n°. 161, requerida por Francisco Georges Monteiro em 1719, o qual havia descoberto “[...] no sertão A citação, na verdade, corresponde ao texto de um e-mail enviado pelo turismólogo Romário Gomes, estudioso das tradições de São José do Seridó, ao professor Moacy Cirne. Nesse e-mail, o turismólogo referenda as pesquisas de Sinval Costa e de Edite Medeiros como sendo as responsáveis por respaldar os dados históricos sobre a história de São José do Seridó. 17 MACEDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças no sertão do Rio Grande do Norte (séculos XVIIIXIX). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. (Capítulo 5, p. 171-207). 41 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte de Piranhas um olho d’agua com pastos e largura necessaria para crear gados” (MACEDO, 2013, p. 171-207). Esse olho d’água, chamado Quinquê, ficava localizado entre as datas do capitão-mor Afonso de Albuquerque Maranhão, padre David de Barros e “[...] pela parte do leste, com terras de Nicoláo Mendes, criolo forro [...]”. (TAVARES, 1982, p. 110)18. No mesmo ano, desta vez, junto à Capitania do Rio Grande, Gervásio Pereira de Moraes, morador no sertão das Piranhas, solicitava uma sesmaria na “Data de Nicolau Mendes”, terras de Francisco Marques, terras de Manuel do Vale e Serra do Quinquê, compreendendo o Olho d’água das Pedras e o riacho das Milharadas dos Gentios19. Ambas as datas de terra, localizadas na ribeira do rio São José, que desaguava no rio Acauã, ficam situadas, hoje, entre os municípios de São Vicente, Cruzeta e Acari. Nicolau Mendes da Cruz, a julgar pela qualificação que lhe foi dada no texto da sesmaria de 1719, era crioulo. Esse termo, provavelmente de origem africana20, indicava os escra18 CAPITANIA DA PARAÍBA (CPB). Sesmaria nº 161 – 1719, doada a Francisco George Monteiro. Doc. transcrito e publicado por TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a historia territorial da Parahyba [1909]. 2. ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 110. 19 CAPITANIA DO RIO GRANDE (CRG). Sesmaria nº 184 – 1719, doada a Gervásio Pereira Morais. Doc. fac-similar do original arquivado no IHGRN e publicado por FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO (FVR). INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE (IHGRN). Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 2 (1716-1742). Mossoró: Gráfica Tércio Rosado/ESAM, 2000. Não paginado. 20 A origem africana do vocábulo criollo foi apontada pelo Inca Garcilaso de la Vega nos seus Comentarios Reales de los Incas (1609) apud PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas 42 Helder Alexandre Medeiros de Macedo vos nascidos na América portuguesa e que eram filhos de pretos, isto é, de pais nascidos na África21. Eduardo França Paiva, porém, considera ser mais prudente falar de crioulos como aqueles que nasceram nas possessões portuguesas na América e que eram filhos de mãe africana. Essa proposição fundamenta-se no fato de que, na maioria dos registros documentais, a paternidade dos crioulos era omitida, dando-se precedência, portanto, ao registro do nome e à qualidade da mãe – do que resulta não se ter uma ideia bem clara, ainda, acerca de como seriam qualificados os filhos de um casal em portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). 2012. 286f. Tese (Concurso para Professor Titular em História de Brasil – Departamento de História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. p. 222. 21 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João del Rey (1700-1850). 2004. 278 f. Tese (Concurso para Professor Titular em História do Brasil – Departamento de História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. p. 68; KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 37; MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. Tradução de James Amado. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 2003. p. 105-6. Os dicionários especializados em história colonial da América portuguesa também confirmam o significado de crioulo como sendo o escravo negro nascido no Brasil, distinto do escravo negro nascido em África (METCALF, Alida. Crioulo. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994. p. 227; FARIA, Sheila de Castro; VAINFAS, Ronaldo. Escravidão. In: VAINFAS, Ronaldo (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1822). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 208). 43 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte que apenas o pai fosse africano22. O significado que o dicionário de Rafael Bluteau (1712) forneceu para crioulo, todavia, considera-o como sendo o “Escravo, que nasceo na casa do seu senhor”.23 Essa definição, segundo a opinião de Eduardo França Paiva, soa como problemática, já que, “[...] entre os escravos nascidos nas Américas, houve, também, mestiços de todas as ‘qualidades’, que não eram confundidos com ‘criollos’ ou com ‘crioulos’ na documentação existente” 24. Não são conhecidos levantamentos populacionais incidindo, especificamente, sobre as qualidades da população escrava da ribeira do Seridó, no século XVIII. Recorremos, pois, à quantificação dos cativos arrolados nos inventários post-mortem da ribeira do Seridó desse mesmo período para, ao menos, termos uma representação parcial de como se apresentava essa população. Os dados estão compilados na Tabela 1, a seguir. Trata-se de uma representação parcial, reiteramos, vez que os inventários post-mortem armazenados nas comarcas não se referem à maioria ou à totalidade da população de determinado território. Segundo a legislação colonial, em tese, os inventários deveriam ser abertos no caso de falecimento de um dos cônjuges do casal, quando houvesse órfãos25, mas, essa 22 PAIVA, Eduardo França. Op. Cit 23 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. v. 2 (B-C), p. 613. 24 PAIVA, Eduardo França. Op. cit., p. 223. É possível, segundo Eduardo Paiva, que o dialeto utilizado no dicionário de Rafael Bluteau estivesse usando a palavra “escravo” como sinônimo de “negro” ou “preto”, daí o equívoco em relação ao significado da palavra crioulo. 25 CÓDIGO Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal: recompiladas por mandado d’el-Rei D. Filipe I. 14.ed.fac-similar. Brasília: 44 Helder Alexandre Medeiros de Macedo cláusula poderia ser estendida para o caso de haver bens a ser partilhados, independentemente da existência de filhos menores de 25 anos e que não fossem casados. Tabela 1 – Qualidades dos escravos arrolados em inventários post-mortem da ribeira do Seridó (1737-1800) Fonte: Inventários post-mortem da Comarca de Caicó, 1737-1800 (57); Inventários post-mortem da Comarca de Acari (10), 1770-1798; Inventários post-mortem da Comarca de Currais Novos, 1788-1799 (04). No levantamento acima, não estão incluídos quatro cativos, dos quais não foi possível discernir sua qualidade devido à ilegibilidade da documentação. Senado Federal, 2004. Primeiro Livro das Ordenações, Título LXXXVIII – Dos Juizes dos Orfãos, 4 – Inventarios. p. 207-208. 45 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte As informações advindas desses inventários post-mortem nos mostram que 31% dos escravos da ribeira do Seridó, nesse período, eram crioulos. Depois destes, o grupo numericamente superior era o dos africanos26, qualificados como do Gentio de Angola, que representavam 20% dos cativos. Logo após, vinham aqueles que foram assinalados, nos registros, apenas como “escravos”, que somam cerca de 15% do universo dos dados, o que quer dizer que tiveram a sua qualidade despersonalizada, nas descrições dos arrolamentos – fosse pela pessoa que, na época, produziu o registro, fosse pelo inventariante, que dava à carregação os bens pertencentes ao monte da fazenda. É possível inferir, a partir dessa amostra fornecida por 71 inventários post-mortem, que, concomitante à presença de cativos mestiços (mulatos e cabras) e oriundos da África, havia um processo de crioulização demográfica27 em curso na ribeira do Seridó, 26 Embora o termo africano seja de uso corrente na historiografia para mencionar os escravos provindos da África, Sheila de Castro Faria nos adverte para os perigos de sua utilização sem que possa ser contextualizado ou sem definir de quais regiões do continente negro. Segundo a autora, “Tratar dos africanos, como um grupo, significa incorporar mais um sem número de etnias ao complexo cultural do Brasil. Antes de mais nada, é necessário frisar que o termo africano, para designar os negros oriundos do tráfico atlântico de escravos, é anacrônico para o período colonial e, mesmo, para a primeira metade do século XIX” (FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João del Rey (1700-1850), p. 31). 27 Crioulização é um conceito utilizado na problematização de Luciano Mendonça de Lima para compreender as possibilidades de reprodução natural da população escrava de Campina Grande, na Paraíba. É entendida, segundo esse autor, como sendo “[...] um complexo 46 Helder Alexandre Medeiros de Macedo no decorrer do século XVIII, isto é, de predominância dos escravos já nascidos nas terras brasílicas – ainda que haja um relativo equilíbrio numérico entre os crioulos (31%) e aqueles provenientes da África (cerca de 29%)28. processo de transformação econômica, demográfica e cultural, que implicou na paulatina predominância dos escravos cativos crioulos em relação aos africanos e cujo ritmo variou no tempo e no espaço, de acordo com as vicissitudes históricas das sociedades escravistas” (LIMA, Luciano Mendonça de. Cativos da “Rainha da Borborema”: uma história social da escravidão em Campina Grande – século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2009. p. 176-7). Para Luís Nicolau Parés, tal conceito pode ser desdobrado em duas vertentes: a “[...] crioulização cultural (isto é, o processo de transformação a que estiveram sujeitas as culturas africanas no Brasil) e [...] [a] crioulização demográfica, ou seja, o crescimento da população crioula (crioulo aqui entendido como indivíduo negro de ascendência africana nascido no Brasil)” (PARÉS, Luís Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo Baiano (1750-1800). Afro-Ásia, Salvador, n. 33, p. 88, 2005). 28 Para a composição desta cifra, reunimos os escravos qualificados como Gentio de Angola, Gentio da Guiné, Gentio de Arda, Nação Congo e Nação da Costa, além daqueles que foram nomeados de “negros” e de “pretos”. Segundo Eduardo França Paiva, além dos termos que designam nações, os vocábulos preto, negro, escravo, africano, Guiné, etíope, sudanês e natural foram aplicados, em diferentes épocas e espaços, para qualificar, especificamente, os africanos na América luso-espanhola. O autor adverte, contudo, que, embora, a partir de meados do século XVI, os termos negro, preto e escravo tenham sido apreendidos como sinônimos, nem todo escravo era negro africano e, por outro lado, a maioria dos negros africanos, na América luso-espanhola colonial, era escrava (PAIVA, Eduardo França. Dar nome 47 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte Documentos judiciais dessa mesma natureza, explorados por historiadores em pesquisas sobre outras áreas das capitanias do norte, demonstraram situações diversas daquela que verificamos para a ribeira do Seridó, no que diz respeito ao número de crioulos, nesse mesmo período. Em inventários post-mortem do termo da Vila de Campo Maior, sede da antiga Freguesia de Santo Antonio do Surubim, na atual porção centro-norte do estado do Piauí, Tanya Maria Pires Brandão constatou certo equilíbrio entre crioulos (ca. de 51%) e africanos (ca.de 48%), no intervalo temporal que vai de 1722 a 180029. Para a Capitania da Paraíba, especificamente no termo da Vila Nova da Rainha, a porcentagem de crioulos era de 65% e a de escravos vindos da África, de 33%, para o período de 1785 a 179930. Em relação a Pernambuco, os dados que dispomos são provenientes de pesquisa empreendida pelos economistas ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho, p. 221). 29 BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O escravo na formação social do Piauí: perspectiva histórica do século XVIII. Teresina: Editora da UFPI, 1999. p. 135. A autora utilizou dados de 105 inventários, armazenados, na época de sua pesquisa, nos anos de 1980, no Cartório do 1º Ofício do município de Campo Maior-PI. O universo da porcentagem que apresentamos tem como base a quantidade de 358 cativos arrolados, excetuando-se 31 cuja qualidade não foi possível de ser obtida pela autora. 30 LIMA, Luciano Mendonça de. Cativos da “Rainha da Borborema”: uma história social da escravidão em Campina Grande – século XIX, p. 179. A porcentagem de crioulos e de africanos foi estabelecida tendo como base o universo de 62 escravos arrolados em inventários post-mortem do termo da Vila Nova da Rainha, no recorte de 1785 a 1799. Essa vila, nos dias de hoje, corresponde à cidade de Campina Grande-PB. 48 Helder Alexandre Medeiros de Macedo Flávio Rabelo Versiani e José Raimundo Oliveira Vergolino, em inventários relativos ao sertão da capitania – com a ressalva de que os números se estendem do ano de 1770 até a primeira metade do século XIX. Os resultados obtidos na análise desses documentos revelaram a proporção de cerca de 82% de cativos crioulos e de 17% vindos da África31. Já para os inventários post-mortem do agreste de Pernambuco, no mesmo período, os índices em relação à procedência dos escravos auferidos por esses autores remetem à cerca de 60% de crioulos e 39% de africanos32. Não são conhecidas pesquisas que demonstrem 31 VERSIANI, Flávio Rebelo; VERGOLINO, José Raimundo Oliveira. Posse de escravos e estrutura de riqueza no agreste e sertão de Pernambuco: 1777-1887. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 370, abr./jun. 2003. No artigo, os autores diferenciam os escravos nascidos da África daqueles nascidos na América portuguesa, chamando estes últimos de “brasileiros”. A pesquisa foi centrada em 152 inventários, cujas propriedades concentravam-se em áreas sertanejas localizadas, na atualidade, no sul do Estado de Pernambuco, nas proximidades dos municípios de Cabrobró e Flores. Aparecem, nesses arrolamentos, 817 escravos, universo sobre o qual montamos a porcentagem. Tais inventários estão localizados no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), em Recife-PE. 32 VERSIANI, Flávio Rebelo; VERGOLINO, José Raimundo Oliveira. Posse de escravos e estrutura de riqueza no agreste e sertão de Pernambuco: 1777-1887. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 365. A pesquisa foi centrada em 168 inventários, cujas propriedades concentravam-se em amplas áreas do agreste, localizadas, na atualidade, nas circunvizinhanças dos municípios de Pesqueira (ao norte) e Garanhuns (ao sul). Aparecem, nesses arrolamentos, 1.348 escravos, universo sobre o qual montamos a porcentagem. Tais inventários 49 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte os números de crioulos e de africanos, a partir de fontes judiciais, para espaços do litoral de Pernambuco33. As cifras aqui apresentadas, ainda que sejam consideradas uma amostra da realidade da Capitania de Pernambuco e das anexas a ela, corroboram o pensamento de Luciano Mendonça de Lima, para quem o processo de crioulização teve variações espaço-temporais, de acordo com a sucessão de mudanças históricas das sociedades escravistas34. Voltando nossas atenções à pessoa de Nicolau Mendes da Cruz, a alusão a sua figura na Data nº 161, da Capitania da Paraíba, além de referir-se à qualidade – a de crioulo – também menciona a sua condição, a de forro. Dizendo de outra maneira, Nicolau Mendes estão localizados no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), em Recife-PE. 33 Os estudos de Gian Carlo de Melo Silva (SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010. p. 175-97) e Janaína Santos Bezerra (BEZERRA, Janaína Santos. Pardos na cor & impuros no sangue: etnia, sociabilidades e lutas por inclusão social no espaço urbano pernambucano do XVIII. 2010. 214f. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2004. p. 41-69) nos dão pistas para a compreensão da população crioula em freguesias do litoral da Capitania de Pernambuco no fim do século XVIII. Todavia, esses estudos foram embasados em fontes paroquiais, não se adequando ao perfil da análise comparativa que estamos fazendo neste tópico. 34 LIMA, Luciano Mendonça de. Cativos da “Rainha da Borborema”: uma história social da escravidão em Campina Grande – século XIX, p. 176-7. 50 Helder Alexandre Medeiros de Macedo já havia sido escravo, mas era alforriado, pelo menos na época em que foi referenciado no texto da data de sesmaria, em 1719; isto é, liberto da sua condição de trabalhador compulsório. Segundo Eduardo França Paiva, a condição era uma das formas pelas quais se nomeavam pessoas, no mundo iberoamericano, entre os séculos XVI e XVIII, agregando-se, muitas vezes, a qualidade do indivíduo. “Criolo forro”, expressão que foi acrescida ao nome de Nicolau Mendes no citado ano de 1719, por exemplo, era um indicativo de que o mesmo era homem de cor, nascido na América portuguesa e, juridicamente, alforriado. Essa fórmula (nome+qualidade+condição), de maneira geral, definia um indivíduo e dava ciência do seu passado, seus ascendentes, suas origens e posições sociais35. A condição, assim, segundo Eduardo Paiva, “era o certificado jurídico da pessoa”. No mundo ibero-americano colonial, um indivíduo poderia se enquadrar, pelo menos, em três condições: a de escravo (para aqueles que vieram da África, no tráfico transatlântico, transmitida por meio da linha matrilinear para seus descendentes, inclusive os nascidos em solo americano); a de livre (para aqueles que não estavam sob o jugo da escravidão ou eram descendentes de mães forras); e a de forro (para aqueles que foram libertados da condição de escravos após receberem sua alforria; também chamados de libertos ou alforriados)36. Nicolau Mendes, 35 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho), p. 174. 36 PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho), p. 175. O autor afirma, a propósito, que, além desses três status jurídicos (o de escravo, o de livre e o de forro), havia duas outras condições ou 51 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte se pensarmos a partir dessa estratificação, tinha o seu lugar social e o seu campo de atuação política, como sujeito delimitado a partir da sua qualidade, mas, também, da sua condição de forro. Mas, de quem teria sido escravo? Quando foi alforriado? De onde era originário e como chegou à ribeira do Seridó? Jayme da Nóbrega Santa Rosa, em seu estudo acerca da história do município seridoense de Acari, listou nomes de colonizadores luso-brasílicos que se espalharam nas terras banhadas pelo rio Acauã, tributário do Seridó, a partir das primeiras décadas do século XVIII, impulsionados pela expansão da pecuária. Entre os “novos povoadores” vindos de Pernambuco, o primeiro anunciado pelo autor foi o “pernambucano” Nicolau Mendes da Cruz, que subcondições na realidade ibero-americana colonial: a de administrado (assim eram vistos os índios que eram submetidos à administração particular de um homem livre e sujeitos ao trabalho forçado) e a de coartado (escravos que negociavam a sua libertação com o senhor por meio de um acordo baseado no direito costumeiro, segundo o qual o cativo poderia afastar-se do seu domicílio para procurar trabalho e, com o rendimento deste, pagar, em parcelas, a sua própria alforria). (Ibid., p. 175-6). Sobre a prática da administração de índios no período colonial, verificar MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 129-153. Acerca das coartações, consultar PAIVA, Eduardo França. Coartações e alforrias nas Minas Gerais do século XVIII: as possibilidades de libertação escrava no principal centro colonial. Revista de História, São Paulo, n. 133, p. 49-57, 1995 e Id. Senhores, escravos, coartados e forros: versão em séries numéricas e em trajetórias individuais. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: EDUFMG, 2001. p. 115-216. 52 Helder Alexandre Medeiros de Macedo “situou fazenda no Saco” (posteriormente, chamado de Saco dos Pereira) em 1718, cujas terras foram vendidas para o seu parente, o sargento-mor Manuel Esteves de Andrade, em 172537. Não sabemos se o autor de Acari: fundação, história e desenvolvimento (1974) omitiu, deliberadamente, a qualidade de Nicolau Mendes da Cruz ou se, efetivamente, desconhecia que se tratava de um crioulo forro. Em relação às fontes de pesquisa utilizadas pelo autor, embora não tenham sido textualmente citadas ao final do livro, Jayme Santa Rosa afirmou que, para escrever a obra, “[...] leu e examinou com espírito de análise e crítica inúmeros livros de história, artigos de jornal e manuscritos, que estão citados no seu trabalho ‘Fazendas e Fazendeiros do Seridó’”, além de ter consultado “[...] sem número de informações prestadas indireta e diretamente por historiadores regionais”38. 37 SANTA ROSA, Jayme da Nóbrega. Acari: fundação, história e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Pongetti, 1974. p. 31. 38 SANTA ROSA, Jayme da Nóbrega. Acari: fundação, história e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Pongetti, 1974. p. 121. O trabalho Fazendas e fazendeiros do Seridó, cujo sumário foi publicado ao final de Acari: fundação, história e desenvolvimento, infelizmente, nunca foi publicado. Entre as informações que foram prestadas indiretamente, estão aquelas fornecidas por Manuel Antonio Dantas Corrêa, Manuel Maria do Nascimento Silva, Phelippe e Theophilo Guerra, João Praxedes e Joaquim Theotonio de Araújo Galvão. As informações prestadas diretamente ao autor vieram de Cipriano Bezerra Galvão Santa Rosa, Daniel Diniz, José Augusto Bezerra de Medeiros, José de Azevêdo Dantas e José Braz de Albuquerque Galvão. Em nosso estudo, também nos utilizamos dos manuscritos de Manuel Antonio Dantas Corrêa, Manuel Maria do Nascimento Silva, Phelippe Guerra e José de Azevêdo Dantas, bem como, dos livros publicados por José Augusto Bezerra de Medeiros. 53 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte É provável, assim, que as datas de 1718 e de 1725, relacionadas por Jayme Santa Rosa ao estabelecimento e à venda da fazenda Saco, tenham sido fixadas com base em informações fornecidas pela bibliografia consultada pelo autor ou mesmo pela tradição oral – considerando que ele realizou entrevistas com moradores da fazenda Saco dos Pereira em 1972, para elucidar aspectos da vida de Manuel Esteves de Andrade39. O caso é que esses marcos temporais encontram nexo na cronologia que pudemos fixar para a presença de Nicolau Mendes da Cruz no Seridó, já que a sesmaria mais antiga que este requereu na ribeira data de 171740. Por outro lado, em 1724, houve uma querela judicial envolvendo Nicolau Mendes da Cruz e Manuel Esteves de Andrade em torno da posse do Quinquê Pequenino, na ribeira do Acauã41. Datas à parte, o que nos importa, neste momento, é a informação 39 A compilação e a crítica das entrevistas realizadas por Jayme da Nóbrega Santa Rosa estão dispostas no Capítulo VI - A construção da capela. Detectamos, a partir da leitura da obra Acari: fundação, história e desenvolvimento, os nomes de três dos quatro entrevistados pelo autor, em 1972, na fazenda Saco dos Pereira: Júlio Gomes de Araújo, Joaquim Silvério Dantas e Francisca Elita. Cf. SANTA ROSA, Jayme da Nóbrega. Acari: fundação, história e desenvolvimento, p. 38-44. 40 CAPITANIA DE PERNAMBUCO (CPE). Sesmaria nº 109 – 1717, doada a Nicolau Mendes da Cruz e Francisca Marques. Doc. transcrito e publicado em RECIFE. Secretaria de Educação e Cultura. Biblioteca Pública. Documentação histórica pernambucana: sesmarias. V. I. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1954. p. 240. Agradeço à professora Carmen Margarida Oliveira Alveal a cessão desse documento. 41 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE (IHGRN). Avulsos [Cota antiga: Cx. 89]. Processo de terra do Quinquê Pequenino, Ribeira do Cauã, Seridó, ajuizado por Nicolau Mendes da 54 Helder Alexandre Medeiros de Macedo que veio da obra de Jayme da Nóbrega Santa Rosa: a de que Nicolau Mendes da Cruz era natural de Pernambuco. Tal informação tem fundamento, considerando que Nicolau Mendes da Silva – provavelmente o primogênito de Nicolau Mendes da Cruz – e sua esposa Rosa Maria eram naturais de Pernambuco, como se depreende do registro de casamento de sua filha Maria da Silva (que reproduzia o nome da avó paterna), realizado em 179142. Isso quer dizer que, possivelmente, Nicolau Mendes da Cruz já chegou ao sertão da Capitania do Rio Grande casado com Maria da Silva e conduzindo seus filhos, ou, pelo menos, Nicolau Mendes da Silva, de quem sabemos a naturalidade. O historiador Sinval Costa, mesmo concordando com a naturalidade de Nicolau Mendes da Cruz já referida acima, afirma que “[...] parece que antes de chegar [no Seridó] morava na várzea da Paraíba, no Engenho São João, com os Mendes de Vasconcelos, um deles de nome Nicolau Mendes de Vasconcelos”43. Essa conjectura levantada por Sinval Costa para o processo de migração de Nicolau Mendes da Cruz com destino à ribeira do Seridó baseia-se, acreditamos, na similitude entre os nomes e sobrenomes deste último e do capitão-mor Nicolau Mendes de Vasconcelos, que era senhor do Engenho São João, localizado na Cruz, de que pediu vista Manuel Esteves de Andrade. Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande, 1724. (Manuscrito). 42 PARÓQUIA DE SANT’ANA DE CAICÓ (PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Casamentos nº 1. Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1788-1809, f l. 16. (Manuscrito). 43 COSTA, Sinval. Correspondência pessoal. Recife, 13 ago. 2010. Destinatário: Helder Alexandre Medeiros de Macedo. Acervo particular de Helder Alexandre Medeiros de Macedo. (Manuscrita). 55 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte várzea do rio Paraíba, na capitania homônima, anexa à do Rio Grande. No período colonial, era comum que os forros, após a liberação dos laços oficiais da escravidão, por meio da alforria, se apropriassem de sobrenomes de seus antigos senhores, para usufruírem de prestígio social no mundo dos livres. Trabalhos enfocando a realidade das capitanias de São Paulo44 e do Rio de Janeiro45 dão conta dessa apropriação de sobrenomes por parte de homens de cor alforriados, que também encontramos na ribeira do Seridó46. 44 GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2008. 45 SOARES, Márcio de Sousa. Fortunas mestiças: perfilhação de escravos, herança e mobilidade social de forros em Campos dos Goitacases no alvorecer do oitocentos. Revista Estudos de História, Franca, v. 9, n. 2, p. 165-194, 2002. 46 Um exemplo que ocorreu na ribeira do Acauã é o do crioulo Maurício, que era cativo da casa do coronel Caetano Dantas Corrêa, tendo sido avaliado como bem semovente no inventário deste último (RIO GRANDE DO NORTE. Fórum Desembargador Félix Bezerra (FDFB). Comarca de Acari (CA). Inventários e arrolamentos. Mç. 01. Inventário de Caetano Dantas Corrêa. Inventariante: Josefa de Araújo Pereira. Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba do Norte, Capitania do Rio Grande do Norte, 1798. Manuscrito) e de sua esposa, Josefa de Araújo Pereira (RIO GRANDE DO NORTE. FDFB. CA. Inventários e arrolamentos. Mç). 01. Partilha amigável dos bens de Josefa de Araújo Pereira. Fazenda Cajueiro, termo da Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande do Norte, 1817. (Manuscrito). Maurício casou, em 1817, com a mulata Manuela Maria da Conceição, escrava de Maximiana Dantas Pereira, filha de Caetano Dantas e Josefa de Araújo (PSC. CPSJ. Livro 56 Helder Alexandre Medeiros de Macedo O que conseguimos levantar, até o momento, é que o capitão-mor Nicolau Mendes de Vasconcelos requereu sesmaria ao governo da Capitania da Paraíba em 1769, nas imediações do rio Tibirizinho47, além de ter mantido relações com dois moradores da ribeira do Seridó, na primeira metade do século XVIII, de Casamentos nº 2. FGSSAS, 1809-1821, f l. 99v. Manuscrito), tendo, posteriormente, conseguido alforria e adotado o nome Maurício José Dantas Corrêa. Morou na fazenda Bico da Arara, próxima ao rio Ingá, tendo deixado descendência. 47 CPB. Sesmaria nº 660 – 1769, doada a Nicolau Mendes de Vasconcelos. Doc. Transcrito e publicado por TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a historia territorial da Parahyba [1909]. 2.ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 342. 57 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte Inácio da Silva de Mendonça48 e Diogo Pereira da Silva49. 48 Inácio da Silva de Mendonça era casado com Joana Batista Bezerra, filha do alferes José Mendes dos Santos e de Ana Pereira da Silva, sendo proprietário de “[...] metade do Citio do Caycô da parte da Serra do Samanayhû pegando da barra do Riacho do Samanahû pello Rio Siridô abaixo athê donde fizer mey athê contestar com terras de Manoel Fernandes Jorge [...]” (LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC). FUNDO DA COMARCA DE CAICÓ (FCC). 1º CARTÓRIO JUDICIÁRIO (1ºCJ). Inventários post-mortem. Cx. 410. Inventário de Inácio da Silva de Mendonça. Inventariante: Joana Batista Bezerra. Sítio e fazenda do Cupauá, ribeira do Seridó, termo da Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande do Norte, 1754. Manuscrito). Todavia, morava no sítio de São Miguel do Cupauá, onde, provavelmente, era vaqueiro do capitão José Gomes de Melo (MEDEIROS FILHO, 1983. p. 131). Seu testamento foi redigido em 1752, no engenho de São João, em casa do capitão-mor Nicolau Mendes de Vasconcelos, onde também foi sepultado, no mesmo ano, após sua morte. No inventário dos seus bens, realizado na casa de morada do capitão José Gomes de Melo, no sítio de São Miguel do Cupauá, em 1754, assinou a rogo da inventariante meeira, Joana Batista, o mesmo capitão-mor Nicolau Mendes. 49 O capitão Diogo Pereira da Silva, provavelmente, era irmão de dona Ana Pereira da Silva, esposa do alferes José Mendes dos Santos. Casado com dona Margarida, residiu no sítio de São Miguel do Cupauá, tendo deixado duas filhas: a menor Bernarda e Micaela Jácome (ou Jaques) da Silva, que casou com o alferes Gregório Martins Pereira. Nos autos do seu inventário, realizado em 1754, consta a informação de que o capitão-mor Nicolau Mendes de Vasconcelos foi o seu testamenteiro, além de ter, em seu poder, dinheiro de contado relativo a dívidas do casal (LABORDOC. FCC. 1ºCJ. Inventários post-mortem. Cx. 321. Inventário de Diogo Pereira da Silva. Inventariante: Gregório Martins Pereira. 58 Helder Alexandre Medeiros de Macedo Essas relações, bem como a possibilidade de Nicolau Mendes da Cruz ter sido escravo dos Mendes de Vasconcelos do Engenho São João, contudo, precisam ser investigadas com mais afinco no futuro. Sítio de São Miguel, fazenda do Cupauá, ribeira do Seridó, termo da Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande do Norte, 1754. Manuscrito). 59 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte A outra informação acerca de Nicolau Mendes da Cruz, fornecida por Sinval Costa, com base na tradição oral recolhida por esse historiador, é a de que ele [...] veio para Acauã Velha apaziguar os Índios sob a responsabilidade maior da Casa do Cunhaú e dela recebeu em recompensa de três léguas do Rio São José (posse). São José pertencia ao datão da Acauã (dos Albuquerques). Nicolau em 1719 já estava a serviço. E por 1720, Cipriano L. Galvão já estava no Totoró completando o trabalho da reconquista da terra (COSTA, 2010.)50. A família Albuquerque da Câmara, ligada ao Engenho Cunhaú, foi detentora de sesmarias situadas ao longo do rio Acauã, requeridas nos anos de 1679 e 1684, que totalizavam mais de trinta léguas – daí o porquê de Sinval Costa, a partir da tradição oral, referir-se ao datão – utilizadas para o criatório em território que, nos dias de hoje, corresponde à região do Seridó. Tais sesmarias foram requeridas no contexto da eclosão da Guerra dos Bárbaros, quando diversas expedições militares foram organizadas pelas autoridades coloniais para enfrentar o perigo das tribos nativas sublevadas. Uma dessas campanhas foi liderada pelo coronel Antonio de Albuquerque da Câmara, 51 um dos sesmeiros do datão do 50 COSTA, Sinval. Correspondência pessoal. Recife, 13 ago. 2010. Destinatário: Helder Alexandre Medeiros de Macedo. Acervo particular de Helder Alexandre Medeiros de Macedo. (Manuscrita). 51 Antonio de Albuquerque da Câmara era descendente de Jerônimo de Albuquerque, que esteve envolvido na conquista do litoral do Rio Grande no fim do século XVI e começo do século XVII. Jerônimo de Albuquerque foi casado com dona Catarina Feijó e, entre outros filhos, proveio Matias de Albuquerque Maranhão. Senhor, como seu pai, do Engenho Cunhaú, era “Fidalgo Cavalleiro da Casa Real” 60 Helder Alexandre Medeiros de Macedo Acauã, que se internou no sertão em 1687. Sua expedição, burocrática 52, foi formada inicialmente por 300 homens de e “Commendador da Commenda de São Vicente da Figueira, na Ordem de Cristo”. Foi casado com dona Isabel da Câmara, de qual consórcio nasceram os seguintes filhos: Antonio de Albuquerque Maranhão (nos documentos da Capitania do Rio Grande, Antonio de Albuquerque da Câmara), Fidalgo da Casa Real e ComendadorMestre de Campo de Infantaria; Jerônimo de Albuquerque, religioso da Companhia de Jesus; Lopo de Albuquerque da Câmara; Pedro de Albuquerque da Câmara; Afonso de Albuquerque Maranhão; dona Catarina Simôa de Albuquerque, que casou com Luiz de Souza Furna (FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarchia Pernambucana, v. I. 2.ed. Mossoró: Gráfica Tércio Rosado/ESAM, 1992. (Mossoroense, série C, v. 819). p. 9; 11-2). 52 As tropas burocráticas correspondem às de 1ª linha. Trata-se, na opinião de Kalina Vanderlei Paiva da Silva, do “[...] exército português, regular, profissional e permanente, burocrático, a partir de 1640”, sendo a única força militar que efetivamente era paga. A autora ainda estabelece considerações sobre as tropas de 2ª (milícias) e 3ª linha (ordenanças). As milícias, segundo Kalina Silva, eram “[...] tropas auxiliares, organizadas em terços de base territorial – comarcas, freguesias –, não renumeradas, a não ser quando em serviço ativo”. As ordenanças, por sua vez, abrangiam “[...] toda a população masculina livre não recrutada pela tropa de linha, nem pertencente às milícias, entre dezesseis e sessenta anos, segundo uns autores, e dezoito e sessenta anos, segundo outros” (SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial: história de homens, militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. 1999. 204f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1999. p. 65-6). 61 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte Pernambuco e da Paraíba, oriundos de duas companhias do Terço de Camarão e dos Henriques, que recebeu reforços no ano seguinte, com uma companhia de gente parda, degredados e criminosos, além de brancos e índios de aldeias do rio São Francisco53. Desse regimento fez parte, também, como sargento-mor, Pedro de Albuquerque da Câmara, irmão de Antonio de Albuquerque e coproprietário da sesmaria do Acauã54. O coronel Antonio de Albuquerque da Câmara foi reformado em 1690, no contexto de reorganização do esforço de guerra promovido pelo Governo Geral, quando a infantaria paga, a miliciana e membros do Terço dos Henriques foram retirados do sertão55. 53 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2010. p. 159-60. 54 MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1984. p. 120. Além disso, outro irmão de Antonio de Albuquerque, Afonso de Albuquerque Maranhão, comandou outra expedição militar à região do Açu, desta vez em 1696, para combater os índios descontentes. Afonso de Albuquerque foi nomeado capitão-mor das entradas do sertão e sua gente de guerra foi composta por 30 henriques vindos de Pernambuco, 20 criminosos perdoados e índios janduí que, anteriormente, estavam aldeados na Missão de Guaraíras (SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit., p. 160). 55 PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. 1998. 200f. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. p. 127-8. Junto com a reforma de Albuquerque da Câmara, foi também considerado inativo Manuel de Abreu Soares, que liderava expedição na área do rio Açu desde 1687. Sobre a expedição de Albuquerque da Câmara, suas ações de enfrentamento aos 62 Helder Alexandre Medeiros de Macedo A presença dos Albuquerque da Câmara, no cenário da guerra, demonstra o jogo de interesses em torno da manutenção da posse dos territórios sertanejos, tanto por parte da Coroa e das autoridades coloniais como dos sesmeiros56. Para Fátima indígenas e seus insucessos no sertão verificar PIRES, Maria Idalina Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência e conflitos no Nordeste Colonial. Recife: Secretaria de Cultura, 1990. p. 51-87; PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 110-31; MEDEIROS FILHO, Olavo de. Notas para a História do Rio Grande do Norte. João Pessoa: Unipê, 2001. p. 113-32; SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit., p. 154-83. 56 Exemplo similar de um colono que, além de sesmeiro, esteve envolvido nas campanhas militares contra os “bárbaros”, entre o fim do século XVII e começo do século XVIII, é o de Teodósio de Oliveira Lêdo, proprietário de vastas sesmarias na ribeira do Piranhas, apontado por Kalina Vanderlei Silva. Segundo a autora, “O capitão-mor das Piranhas, Theodósio de Oliveira Ledo, é uma ilustração de como as fronteiras entre poderes particulares e funções estatais se misturavam no sertão. Sendo importante sesmeiro, Ledo era alvo das investidas dos indígenas nos levantes na região dos rios Piranhas e Piancó, e como tal procurou combatê-los provavelmente com suas próprias forças particulares. Mas ele era também um comandante de ordenanças, e nessa função tinha sob suas ordens todos os homens livres de sua comarca. Assim organizou a repressão arregimentando contingentes de flecheiros arius e cariris aldeados, mas sem desprezar o apoio logístico das tropas da Coroa, solicitando a instalação de um arraial na região em questão” (SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit., p. 166-7). Sobre a participação de Teodósio de Oliveira Lêdo na conquista do sertão do rio Piranhas ver SEIXAS, Wilson. O Velho Arraial de Piranhas (Pombal) no centenário de sua elevação a cidade. João Pessoa: A Imprensa, 1961. p. 19-24; 49-66. 63 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte Martins Lopes, nesse sentido, as motivações para a repressão aos índios revoltados giravam em torno da “[...] defesa dos currais e fazendas do sertão, [d] a conquista do território para a expansão da pecuária [...]”, e, também, da busca por cativos para serem vendidos na capitania ou mesmo fora dela57. É preciso considerar, contudo, que nas décadas de 80 e 90 do século XVII, os henriques estiveram presentes no sertão da Capitania do Rio Grande, integrando, ou mesmo comandando, expedições contra o gentio. O termo henriques é comumente utilizado, na historiografia, para referir-se aos integrantes do Terço dos Henriques, criado na época das guerras holandesas, em Pernambuco, cujo primeiro comandante foi o crioulo forro Henrique Dias e que integrava, em seus inícios, africanos, crioulos e mestiços (pardos, mamelucos, mulatos), fossem forros ou escravos58. Após a restauração portuguesa na Capitania de Pernambuco, em recompensa pelos serviços prestados à Coroa, o Terço dos Henriques foi institucionalizado como milícia, isto é, como tropa auxiliar, abrangendo, majoritariamente, pretos forros e livres59. 57 LOPES, Fátima Martins. Missões Religiosas: índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. 1999. 210f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1999. p. 123. 58 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada – guerra e açúcar no Nordeste (1630/1654). Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 193. 59 SILVA, Kalina Vanderlei. Os henriques nas vilas açucareiras do Estado do Brasil: tropas de homens negros em Pernambuco, séculos XVII e XVIII. Estudos de História, Franca, v. 9, n. 2, p. 145-6, 2002. Sobre o Terço dos Henriques e sua atuação nas diversas situações de guerra na América portuguesa, consultar SILVA, Kalina Vanderlei. Flecheiros, 64 Helder Alexandre Medeiros de Macedo No que se refere à Guerra dos Bárbaros, sobretudo nos confliitos específicos conhecidos como Guerra do Açu60 , paulistas, henriques e os homens do litoral: estratégias militares da Coroa portuguesa na “Guerra dos Bárbaros” (século XVII). Clio – Revista de Pesquisa Histórica, v. 27, n. 2, p. 305-33, 2009; VALENÇA, Millena Lyra; SILVA, Kalina Vanderlei. O Terço dos Henriques: a formação de uma elite de cor em Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. Mneme – Revista de Humanidades, Caicó, v. 9, n. 24, p. 1-12, set./out.2008; SILVA, Luiz Geraldo. Sobre a “etnia crioula”: o Terço dos Henriques e seus critérios de exclusão na América portuguesa do século XVIII. In: VENÂNCIO, Renato Pinto; GONÇALVES, Andréa Lisly; CHAVES, Cláudia Maria das Graças (orgs.). Administrando impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012. p. 71-96; MATTOS, Hebe. “Guerra preta”: culturas políticas e hierarquias sociais no mundo atlântico. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na trama das redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 433-57. 60 Kalina Vanderlei Silva, concordando com o pensamento de Pedro Puntoni (PUNTONI, Pedro. Op. cit., p. 4), considera que o que as autoridades metropolitanas e coloniais chamaram, na documentação administrativa, de Guerra dos Bárbaros, era menos um grande conflito unificado que uma série de guerras que espocaram em regiões diferentes, mais ou menos ao mesmo tempo – a segunda metade do século XVII. Dessa maneira, a autora coloca que, paralelamente às guerras do Recôncavo baiano, que aconteceram entre as décadas de 1650 e 1670, ocorreram combates cujo epicentro foi a ribeira do rio Açu, no sertão da Capitania do Rio Grande do Norte, e que se estenderam para os sertões de Rodelas, do Jaguaribe, do Piauí e da Paraíba, no recorte de 1650 a 1710. Esses combates são conhecidos como a Guerra do Açu, que Kalina Vanderlei Silva considera “[...] a parcela mais duradoura 65 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte os henriques reforçaram as tropas burocráticas de Antonio de Albuquerque da Câmara (1687) e de Manuel de Abreu Soares (1688), além da expedição de Afonso de Albuquerque Maranhão em 1696. Antes disso, em 1688, o próprio mestre-de-campo dos henriques, Jorge Luís Soares, liderou expedição com cinco companhias do terço de gente preta para combater os tapuias no Açu. Passados sete anos, novamente um destacamento dos henriques, igualmente oriundo de Pernambuco, seguiu para essa ribeira, com o propósito de servir na guerra, em 169561. Em termos numéricos, o pessoal do Terço dos Henriques não se constituiu a maior tropa entre aquelas enviadas para o sertão, porém, tinham “[...] grande significância militar para o imaginário açucareiro, que acreditava em sua suposta ferocidade em batalha” (SILVA, 2010, p. 167)62. Julgamos válida a hipótese de Sinval Costa, mencionada anteriormente, que se referiu a Nicolau Mendes da Cruz como participante das tropas que vieram para o sertão do Rio Grande empenhadas no combate aos tapuias, nos tempos da Guerra dos Bárbaros. Três razões nos levam a complementar essa hipótese, da guerra dos bárbaros, e o momento em que a Coroa envolveu seus maiores contingentes militares, entre os quais os pobres das vilas do açúcar de Pernambuco” (SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII, p. 138). 61 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII, p. 159-160. 62 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII, p. 167. 66 Helder Alexandre Medeiros de Macedo indagando se Nicolau Mendes teria migrado para o sertão integrado ao Terço dos Henriques. A primeira está ligada à composição dessa milícia, que reunia gente preta (sobretudo, crioula), forra e livre, em seus quadros. A segunda diz respeito à proximidade cronológica e espacial da atuação dos henriques – que se deu nas décadas de 1680 e 1690, no sertão da Capitania do Rio Grande, inclusive reforçando as forças militares da expedição de Antonio de Albuquerque da Câmara, na ribeira do Acauã – com a sesmaria mais antiga de Nicolau Mendes da Cruz de que temos conhecimento, datada de 1717. Por último, a trajetória de Nicolau Mendes, após sua efetiva fixação no sertão do Rio Grande, a partir do século XVIII (sesmeiro, senhor de fazendas de gado e de escravos, sargento-mor, como será discutido posteriormente), coaduna-se com a possibilidade que o Terço dos Henriques oferecia aos seus membros: a de ascensão social para homens forros e livres oriundos das vilas açucareiras, além de “[...] uma parcela de prestígio e status social de outra forma vetados a esses personagens”63. Entretanto, os trabalhos que já se detiveram sobre o Terço dos Henriques não apontam a presença, entre as fontes documentais utilizadas, de listagens nominais dos seus membros, o que poderia ser um instrumento útil para verificar se o indivíduo sobre o qual estamos discorrendo estava entre as suas fileiras64. A confirmação da hipótese a que nos referimos, a de 63 SILVA, Kalina Vanderlei. Os henriques nas vilas açucareiras do Estado do Brasil: tropas de homens negros em Pernambuco, séculos XVII e XVIII. Estudos de História, p. 146. 64 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos séculos XVII e XVIII; MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada – guerra e açúcar 67 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte que Nicolau Mendes da Cruz veio para o sertão do Rio Grande integrando o Terço dos Henriques, no contexto da Guerra dos Bárbaros, portanto, não é possível neste momento, ficando reservada a futuras investigações. O que podemos afirmar, partindo das evidências documentais até então apresentadas, é que Nicolau Mendes era crioulo (isto é, nascido na América portuguesa, provavelmente de mãe africana), forro (embora não saibamos, com exatidão, de quem foi escravo, onde e quando foi alforriado) e natural de Pernambuco. Compreender aspectos de sua trajetória de vida implica em reconhecer, dessa maneira, outro lado da história do sertão da Capitania do Rio Grande que ainda precisa ser mais visitado e disseminado: o da forte presença de homens de cor entre os colonizadores da grande Ribeira do Seridó. no Nordeste (1630/1654); MATTOS, Hebe. “Guerra preta”: culturas políticas e hierarquias sociais no mundo atlântico. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). Na trama das redes: política e negócios no Império português, séculos XVI-XVIII. 68 Helder Alexandre Medeiros de Macedo Fontes (em ordem de aparecimento no texto) CAPITANIA DA PARAÍBA (CPB). Sesmaria nº 161 – 1719, doada a Francisco George Monteiro. Doc. transcrito e publicado por TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a história territorial da Parahyba [1909]. 2. ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 110. CAPITANIA DO RIO GRANDE (CRG). Sesmaria nº 184 – 1719, doada a Gervásio Pereira Morais. Doc. fac-similar do original arquivado no IHGRN e publicado por FUNDAÇÃO VINGT-UN ROSADO (FVR). INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE (IHGRN). Sesmarias do Rio Grande do Norte, v. 2 (1716-1742). Mossoró: Gráfica Tércio Rosado/ESAM, 2000. Não paginado. CAPITANIA DE PERNAMBUCO (CPE). Sesmaria nº 109 – 1717, doada a Nicolau Mendes da Cruz e Francisca Marques. Doc. transcrito e publicado em RECIFE. Secretaria de Educação e Cultura. Biblioteca Pública. Documentação histórica pernambucana: sesmarias. v. I. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1954. P. 240. Agradeço à professora Carmen Margarida Oliveira Alveal a cessão deste documento. INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE (IHGRN). Avulsos [Cota antiga: Cx. 89]. Processo de terra do Quinquê Pequenino, Ribeira do Cauã, Seridó, ajuizado por Nicolau Mendes da Cruz, de que pediu vista Manuel Esteves de Andrade. Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande, 1724. (Manuscrito). PARÓQUIA DE SANT’ANA DE CAICÓ (PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Casamentos nº 1. Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1788-1809, f l. 16. (Manuscrito). 69 Nicolau Mendes da Cruz, crioulo forro: um dos colonizadores da Ribeira do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte RIO GRANDE DO NORTE. Fórum Desembargador Félix Bezerra (FDFB). Comarca de Acari (CA). Inventários e arrolamentos. Mç 01. Inventário de Caetano Dantas Corrêa. Inventariante: Josefa de Araújo Pereira. Vila Nova do Príncipe, Comarca da Paraíba do Norte, Capitania do Rio Grande do Norte, 1798. (Manuscrito). RIO GRANDE DO NORTE. FDFB. CA. Inventários e arrolamentos. Mç. 01. Partilha amigável dos bens de Josefa de Araújo Pereira. Fazenda Cajueiro, termo da Vila Nova do Príncipe, Capitania do Rio Grande do Norte, 1817. Manuscrito). PSC. CPSJ. Livro de Casamentos nº 2. FGSSAS, 1809-1821, f l. 99 v. (Manuscrito). CPB. Sesmaria nº 660 – 1769, doada a Nicolau Mendes de Vasconcelos. Doc. transcrito e publicado por TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a historia territorial da Parahyba [1909]. 2.ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 342. LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC). FUNDO DA COMARCA DE CAICÓ (FCC). 1º CARTÓRIO JUDICIÁRIO (1ºCJ). Inventários post-mortem. Cx. 410. Inventário de Inácio da Silva de Mendonça. Inventariante: Joana Batista Bezerra. Sítio e fazenda do Cupauá, ribeira do Seridó, termo da Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande do Norte, 1754. (Manuscrito). LABORDOC. FCC. 1ºCJ. Inventários post-mortem. Cx. 321. Inventário de Diogo Pereira da Silva. Inventariante: Gregório Martins Pereira. Sítio de São Miguel, fazenda do Cupauá, ribeira do Seridó, termo da Cidade do Natal, Capitania do Rio Grande do Norte, 1754. (Manuscrito). 70 Helder Alexandre Medeiros de Macedo Referências BEZERRA, Janaína Santos. 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Pouco sabemos sobre o que decorreu entre a sua infância e a sua aparição nas folhas dos jornais maranhenses de 1860, que anunciam a publicação de seu único romance: Úrsula, de 1859. Recontar a história de Maria Firmina dos Reis e reler seus textos não é apenas falar de uma história de uma mulher que escreveu no século XIX, mas também tentar entender seus escritos, como escreveu, para quem escreveu e quais seriam os objetivos de seus textos. Nossa intenção é, justamente, a partir dos escritos deixados por ela, tentar compreender como essa escritora percebia o mundo que a cercava; como, por meio da literatura, tentou interferir nesse mundo, usando, como bem expôs, Nicolau Sevcenko (2003), “a literatura como missão” . Fazer isso é também adentrar na discussão da história das mulheres no Oitocentos no Brasil, mais especificamente, das mulheres escritoras. O mundo feminino, muitas vezes, foi lido e narrado pela pena masculina, visto o acesso à educação e à escrita pública para as mulheres ser, nesse período, bastante limitado. Dessa forma, a intenção aqui é discutir as ideias de uma mulher escritora na segunda metade do século XIX, especificamente, no que diz respeito ao seu conto dedicado à temática da escravidão, A Escrava (1887), e, pensando dessa forma, como a Maria Firmina dos Reis e A Escrava escrita feita por Maria Firmina pode nos ajudar a compreender os discursos sobre a escravidão no período. A Escrava foi publicado na Revista Maranhense, em 1887, já num período de mais maturidade da escritora. Maria Firmina contava com sessenta e dois anos, em 1887, e deve ter acompanhado todas as discussões e as leis sobre o “elemento servil”. No conto, podemos perceber uma Maria Firmina dos Reis mais madura e mais informada sobre os preceitos legais que regiam a vida dos cativos. Constam também informações sobre a economia do país e discussões a respeito da questão da civilização e do progresso. Em 1887, o debate em torno do elemento servil se colocava em todos os jornais da província; pela narrativa firminiana, podemos ter a certeza de que a escritora acompanhava esse debate. O conto tem início com uma senhora num salão nobre proferindo uma fala contra a escravidão: Admira-me, disse uma senhora, de sentimentos sinceramente abolicionistas; faz-me até pasmar como se possa sentir, e expressar sentimentos escravocratas, no presente século, no século dezenove! A moral religiosa, e a moral cívica aí se erguem, e falam bem alto esmagando a hidra que envenena a família no mais sagrado santuário seu, e desmoraliza, e avilta a nação inteira!. (REIS, 2004, p. 241).1 1 Resolvemos tomar o conto que vem junto com a publicação de 2004 da Editora Mulheres de Úrsula. A Revista Maranhense, onde o conto foi publicado, desapareceu da Biblioteca Pública Benedito Leite no Maranhão. Como escolhemos trabalhar com os textos já publicados em livros mais recentes, pela questão da ortografia e que neste momento o estudo aprofundado das diferentes edições não nos 78 Régia Agostinho da Silva Interessante perceber que o discurso, explicitamente abolicionista, como a própria escritora atesta, é de uma mulher que se pronuncia num salão ilustrado para ser ouvida por muitos. Maria Firmina escolheu uma personagem feminina para pregar contra a escravidão. Ao contrário do que fez em 1859, em Úrsula, a fala antiescravista aqui não é carregada de subterfúgios. Afinal, os tempos são outros e a discussão sobre o elemento servil estava à tona. Maria Firmina aproveita a oportunidade para, mais uma vez, descerrar seu discurso antiescravista e, neste caso, já abolicionista, visto que, em seu próprio texto, fala de “sentimentos sinceramente abolicionistas”. Continua com os argumentos religiosos presentes em Úrsula e os junta à questão da moral cívica, da nação, da civilização, da família. Com os argumentos religiosos, a senhora sem nome continua sua fala: Levantai os olhos ao Gólgota, ou percorrei-os em torno da sociedade, e dizei-me: Para que se deu sacrifício, o Homem Deus, que ali exalou seu derradeiro alento? Ah! Então não é verdade que seu sangue era o resgate do homem! É então uma mentira abominável ter esse sangue comprado a liberdade!? E depois, olhai a sociedade... Não vedes o abutre que a corrói constantemente!. Não sentis a desmoralização que a enerva, o cancro que a destrói? (REIS, 2004, p. 241-242) Ao se referir ao Gólgota, ou seja, ao monte em que Jesus Cristo foi crucificado, Maria Firmina, mais uma vez, apela para a questão religiosa para combater a escravidão. Se Jesus Cristo interessa, visto não ser o tema de nossa pesquisa, optamos por utilizar o conto publicado em 2004. 79 Maria Firmina dos Reis e A Escrava morreu por todos os semelhantes, então qual seria o sentido da escravidão, se considerassem que existissem raças inferiores? Portanto, se era cristão, não podia compactuar com a escravidão, já que a salvação veio para todos e todos incluíam também os cativos. O que era complicado para a própria Igreja Católica explicar e sustentar, a questão da escravidão dos negros no Novo Mundo, para a escritora era uma questão de lógica cristã; se a salvação era para todos, e Maria Firmina considerava os cativos como semelhantes, logo, a escravidão era um erro, um pecado. Junta-se a esse discurso cristão, o econômico e o civilizatório, que não estavam presentes em 1859 – até porque, na atmosfera cultural daquele tempo, a discussão da escravidão não se dava por esse viés. É apenas no final do século XIX, mais precisamente na década de 1880, que a questão econômica e a civilizatória terão mais força. Maria Firmina acompanha essa discussão, apresentando mais um argumento contra a escravidão no discurso da personagem de A escrava: Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e sempre será um grande mal. Dela a decadência do comércio; porque o comércio, e a lavoura caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer f lorescer a lavoura; porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem futuro; o seu trabalho não é indenizado; ainda dela nos vem o opróbio, a vergonha: porque de fronte altiva e desassombrada não podemos encarar as nações livres; por isso que o estigma da escravidão, pelo cruzamento das raças, estampa-se na fronte de todos nós. Embalde procurará um dentre nós, convencer ao estrangeiro que em suas veias não gira uma só gota de sangue escravo... (RAUL, 2004, p. 242). 80 Régia Agostinho da Silva Maria Firmina junta, portanto, aos argumentos religiosos e cristãos, os argumentos econômicos. A escravidão emperrava o desenvolvimento econômico do país, pois, com o trabalho forçado, não haveria produtividade; sem produtividade, não haveria progresso e, sem progresso, não haveria nação. Outro ponto importante da argumentação da escritora é em relação à questão racial, a miscigenação que envergonhava o país diante das outras nações... afinal, eram os brasileiros herdeiros do sangue escravo. Interessante perceber que, para a escritora, não era a questão da raça negra, mas sim a da escravidão em que essa raça estivera submetida que tornava o país miscigenado um problema. Não era a cor ou a raça em si, mas sim a escravidão. Nesse sentido, Maria Firmina se posiciona de forma diferenciada do que estava posto à época pela grande maioria dos intelectuais. Será, para a escritora, a escravidão o motivo de vergonha nacional e não a miscigenação com o elemento negro. A questão, para ela, não seria racial, ou, melhor dizendo, o problema não era a miscigenação em si, mas a miscigenação ser herdeira da escravidão2. Continua ndo sua na r rativa a ntiescrav ista, a escritora nos fala da relação entre vítimas e algozes: “O escravo é olhado por todos como vítima – e o é. O senhor, que papel representa na opinião social? O senhor é o verdugo – e esta qualificação é hedionda” (REIS, 2004, p. 242). Ao colocar, nesse ponto, o escravo como vítima da escravidão e da vilania de senhores verdugos, Maria Firmina dialoga 2 Sobre a questão racial no século XIX e sua discussão no Brasil, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 81 Maria Firmina dos Reis e A Escrava com as imagens que estavam presentes sobre os cativos na segunda metade do século XIX. Em 1869, Joaquim Manuel de Macedo publicou o livro As vítimas-algozes - Quadros da escravidão (MACEDO, 2010), texto no qual o autor salienta a necessidade de se acabar com a escravidão, não porque ela fosse um mal para o escravo, mas sim para os próprios senhores, que, ao consentir e conviver com os cativos, acabavam sendo corrompidos por eles, pelo mau-caratismo, pelas feitiçarias africanas, pela imoralidade cativa, própria da escravidão. Então, os cativos não seriam apenas vítimas da escravidão, mas também teriam se transformado em algozes de seus senhores. A escravidão os pervertera de tal forma, que de vítimas dela passaram a ser algozes de seus senhores. O texto de Joaquim Manuel de Macedo é antiescravista, porque denuncia os males da escravidão, mas os denuncia do ponto de vista senhorial. A escravidão precisa ser exterminada, pois ela provoca todos os males da sociedade. Cativos corrompidos corrompiam as classes senhoriais.3 Maria Firmina, ao contrário, usa, mais uma vez, a imagem da vítima, não para proteger os senhores das vilanias de cativos corrompidos pela escravidão, mas para mostrar como alguns senhores “verdugos” confirmavam a crueldade, a maldade, a falta de humanidade em se ter escravos. A senhora, em nobre salão que Maria Firmina dos Reis inventou em seu conto, tenta comprovar essa tese ao narrar a estória da escrava Joana, que, 3 Sobre como as classes senhoriais e alguns escritores e intelectuais viam e percebiam a escravidão no século XIX, ver estudo já clássico: AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites- século XIX. São Paulo: Editora Annablume, 2008. 82 Régia Agostinho da Silva sendo vítima da escravidão, da malvadeza de um senhor algoz, chega à loucura e ao óbito. Acompanhemos. A escrava Joana Joana aparece, no conto, como uma escrava fugida que, já enlouquecida, é socorrida pela nobre senhora. Sua primeira aparição se dá desta forma: De repente uns gritos lastimosos, uns soluços angustiados feriram-me os ouvidos, e uma mulher correndo, em completo desalinho passou por diante de mim, e como uma sombra desapareceu. Seguia-a com a vista. Ela espavorida, e trêmula, deu volta em torno de uma grande mouta de murta, e colando- se no chão nela se ocultou. (REIS, 2004 , p. 242). Joana é escrava fugida, perfeita vítima da escravidão, ou não. Afinal, ela foge, não aceitando, dessa forma, passivamente o cativeiro. A fuga é uma forma da resistência cativa, talvez uma das formas mais desesperadas de resistência. Afinal, se fosse pego, o escravo estava sujeito a uma série de penas e castigos. É baseada nessa relação extremamente violenta que Maria Firmina dos Reis continua sua narrativa, ao mostrar como Joana foi perseguida: [...] Um homem apareceu no extremo oposto do caminho. Era ele de cor parda, de estatura elevada, largas espáduas, cabelos negros, e anelados. Fisionomia sinistra era a desse homem, que brandia, brutalmente, na mão direita um azorrague repugnante; e da esquerda deixava pender uma delgada 83 Maria Firmina dos Reis e A Escrava corda de linho. – Inferno! Maldição! Bradara ele, com voz rouca. Onde estará ela? E perscrutava com a vista por entre os arvoredos desiguais que desfilavam à margem da estrada. – Tu me pagarás – resmungava ele. E aproximando-se de mim: Não viu minha senhora, interrogou com acento, cuja dureza procurava reprimir, – não viu por aqui passar uma negra, que me fugiu das mãos ainda há pouco? Uma negra que se finge douda... tenho as calças rotas de correr atrás dela por estas brenhas. Já não tenho fôlego. (REIS, 2004, p. 244). Caçada como um animal sujeito a violências, Joana representa a escrava fugida que, se encontrada, terá uma punição; não é à toa que a escritora Maria Firmina dos Reis, ao construir seu perseguidor, afirma que ele está munido de azorrague e de uma corda. O primeiro para chicotear a cativa, caso a encontrasse; o segundo, provavelmente, para laçá-la e amarrá-la. Denunciar a violência cometida contra escravos já era, desde seu romance Úrsula, uma estratégia da escritora para convencer seu público leitor da ferocidade que era a escravidão. Não é por acaso, portanto, que a fisionomia do perseguidor de Joana é descrita como sinistra e que use palavras anticristãs, como “inferno” e “maldição”, para se referir à fuga da escrava. Esse quadro, assim pintado, induz o leitor a se posicionar contra o perseguidor e a favor de Joana. Joana aparece espavorida e trêmula e seu perseguidor, como sinistro. Por conseguinte, Joana aqui é vítima da escravidão, da ferocidade de senhores verdugos; essa classificação é hedionda. Continuando sua narrativa, Maria Firmina nos apresenta o escravo Gabriel, filho de Joana, que encontra a senhora nobre que desvencilhou sua mãe de seu perseguidor. Quando a senhora vai tentar ajudar Joana, Gabriel aparece procurando a mãe: 84 Régia Agostinho da Silva Era quase uma ofensa ao pudor fixar a vista sobre aquele infeliz, cujo corpo seminu mostrava-se coberto de recentes cicatrizes; entretanto sua fisionomia era franca, e agradável. O rosto negro, e descarnado; suposto seu juvenil aspecto aljofarado de copioso suor, seus membros alquebrados de cansaço, seus olhos rasgados, ora lânguidos pela comoção da angústia que se lhe pintava na fronte, ora deferindo luz errante, e trêmula, agitada, e incerta traduzindo a excitação, e o terror, tinham um quê de altamente interessante. No fundo do coração daquele pobre rapaz, devia haver rasgos de amor, e de generosidade. Cruzamos, ele, e eu as vistas e ambos recuamos espavoridas. Eu, pelo aspecto comovente, e triste daquele infeliz, tão deserdado da sorte; ele, por que seria? Isto teve a duração de um segundo apenas: recobrei ânimo em presença de tanta miséria, e tanta humilhação, e este ânimo procurei de pronto transmitir-lhe. Longe de lhe ser hostil, o pobre negro compreendeu que eu ia talvez minorar o rigor de sua sorte; parou instantaneamente, cruzou as mãos no peito, e com voz súplice, murmurou algumas palavras que eu não pude entender. Aquela atitude comovedora despertou-me compaixão; apesar do medo que nos causa a presença dum calhambola. (REIS, 2004, p. 247-248. grifos nosso) Aqui chamamos a atenção para o que grafamos em negrito: mais uma vez, Maria Firmina insiste em mostrar a violência da escravidão: Gabriel tem o corpo coberto de cicatrizes. Assim como fez em Úrsula, em 1859, a escritora tenta convencer seu público leitor da vilania da escravidão, mostrando a dor física que ela causava, os castigos constantes etc., além da violência subjetiva que levou, no caso do conto A Escrava, Joana à loucura. Se só no campo subjetivo era possível algum tipo de liberdade e 85 Maria Firmina dos Reis e A Escrava de resistência, afinal “a mente ninguém pode escravizar” (REIS, 2004, p. 38), de Joana foi lhe retirado até isso. A violência, então, ultrapassara as marcas físicas e deixara marcas indeléveis na subjetividade da cativa. Marcas indeléveis também em toda a sociedade, porque o estigma de sermos herdeiros da escravidão estampava-se em nossa fronte, como afirmara a escritora, no início do conto. Outro ponto importante nessa passagem é quando Maria Firmina insiste no caráter da generosidade e da bondade dos cativos. Devia haver “rasgos de amor e de generosidade” em Gabriel. Ele, mesmo castigado, mesmo curvado à força da escravidão, mantinha uma alma boa e generosa. Por fim, nesse trecho, temos referências aos calhambolas, que a narradora pensa, em princípio, ser Gabriel um deles. Os quilombos, há muito, existiam no Maranhão, sendo o mais famoso deles o de São Benedito do Céu, que, em 1867, chegou a provocar uma insurreição em Viana 4. A existência de quilombolas, ou calhambolas, para usar os termos do período, empregado pela escritora, causava pavor na sociedade branca, temerosa de que, a qualquer momento, esses indivíduos se levantassem contra eles, como já havia acontecido no Haiti (AZEVEDO, 2008). Portanto, o medo que Maria Firmina dos Reis retrata e que sua personagem enfrenta com coragem era real e possível. 4 Ver PEREIRA, Josenildo de Jesus. Na fronteira do cárcere e do paraíso: um estudo sobre as práticas de resistência escrava no Maranhão oitocentista. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, SP, 2001; GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil, (séculos XVIII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP; Ed. Polis, 2005. 86 Régia Agostinho da Silva A continuidade da história de Joana é terrível: ela foi enganada por um senhor malvado – o senhor Tavares do Cajuí –, que vendeu uma falsa carta de liberdade ao seu pai, de raça índia, e a sua mãe africana, escrava do senhor Tavares. O pai de Joana não era cativo, mas desposara sua mãe escrava, fazendo de tudo para ajudá-la na lida. Juntou dinheiro para comprar a liberdade da filha, ao que o senhor Tavares, sabendo que ambos – mãe e pai – não sabiam ler, os enganou: Nunca a meu pai passou pela ideia, que aquela suposta carta de liberdade era uma fraude; nunca deu a ler a ninguém; mas minha mãe à vista do rigor de semelhante ordem, tomou o papel, e deu-o a ler, àquele que me dava lições. Ah! Eram umas quatro palavras sem nexo, sem nenhuma assinatura, sem data! Eu também a li, quando caiu das mãos do mulato. Minha pobre mãe deu um grito, e caiu estrebuchando. (REIS, 2008). Joana foi, assim, escravizada e vivenciou os horrores da escravidão. A narrativa que se segue é comovente: Tinham oito anos. Um homem apeou-se à porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres filhos - era um traficante de carne humana. Ente abjeto, e sem coração! Homem a quem as lágrimas de uma mãe não podiam comover, nem comovem os soluços do inocente. Esse homem trocou ligeiras palavras com meu senhor, e saiu. Eu tinha o coração opresso pressentia uma nova desgraça. A hora permitida ao descanso concheguei a mim meus pobres filhos, extenuados de cansaço, que logo adormeceram. Ouvi ao longe o rumor, como de homens que conversavam. Alonguei os ouvidos; as vozes se aproximavam. Em breve reconheci a voz do senhor. 87 Maria Firmina dos Reis e A Escrava Senti palpitar desordenadamente meu coração; lembrei-me do traficante... Corri para meus filhos, que dormiam, apertei-os ao coração. Então senti um zumbido nos ouvidos, fugiu-me a luz dos olhos e creio que perdi os sentidos. Não sei quanto tempo durou este estado de torpor; acordei aos gritos de meus pobres filhos, que me arrastavam pela saia, chamando-me: mamãe, mamãe! Ah! Minha senhora! Abriu os olhos. Que espetáculo! Tinham metido adentro a porta da minha pobre casinha, e nela penetrado meu senhor, o feitor, e o infame traficante. Ele, e o feitor arrastavam sem coração, os filhos que se abraçavam a sua mãe (REIS, 2004, p. 256-257). Com esse enredo, Maria Firmina dos Reis pretendia convencer seus leitores a ficar contra a escravidão. Ao narrar a triste história de Joana, que vê seus filhos gêmeos, Carlos e Urbano (de apenas oito anos), separados de si pelo tráfico interno na província, somos informados, ao longo do conto, por Gabriel, que os irmãos foram levados para o Rio de Janeiro. Embora o tráfico interno tenha, algumas vezes, respeitado os laços familiares que uniam mães e filhos ou famílias inteiras, isso nem sempre era a regra; era, aliás, a exceção.5 O conto foi publicado em 1887, ou seja, quando a discussão e a luta abolicionista já estavam fortes nas ruas e nos jornais de todo o país, num período em que as leis já permitiam que o cativo, numa sociedade manumissora, ou qualquer indivíduo, 5 Ver: JACINTO, Cristiane Pinheiro Santos. Fazendeiros, negociantes e escravos: dinâmica e funcionamento do tráfico interprovincial de escravos no Maranhão (1846-1885). In: GALVES, Marcelo Cheche; COSTA, Yuri. (Org.) O Maranhão oitocentista. Imperatriz: Ética; São Luís: Editora UEMA, 2009, p. 169-194. 88 Régia Agostinho da Silva que tivesse em mãos uma quantia de dinheiro considerada razoável, poderia comprar sua liberdade, mesmo sem aprovação do seu senhor, no caso de Gabriel6. Maria Firmina dos Reis viveu para ver abolida a escravidão em 1888, causa pela qual lutou em boa parte de sua vida por meio de seus textos, um deles aqui apresentado. Faleceu em 1917. 6 Sobre a questão da compra de alforrias e da luta de escravos ou mesmo de outros membros da sociedade na justiça pela liberdade cativa ver: RIBEIRO, Jalila Ayoub Jorge. A desagregação do sistema escravista no Maranhão (1850-1888). São Luís: SIOGE, 1990; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luíz Gama na imperial cidade de São Paulo, Campinas: Editora da Unicamp, 1999; Idem. O direito dos escravos: Lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. 89 Maria Firmina dos Reis e A Escrava Referências AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites- século XIX. São Paulo: Editora Annablume, 2008. MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. São Paulo: Martin Claret, 2010. REIS, Maria Firmina. Úrsula. A Escrava. Florianópolis: Editora Mulheres, Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sócias e criação cultural na primeira república. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 90 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen Evandro Santos A história do mercado brasileiro, amanhado pela pilhagem e pelo comércio, é longa, mas a história da nação brasileira, fundada na violência e no consentimento, é curta. (ALENCASTRO, 2000, p. 355). Parece que as ideologias da desigualdade, elas tampouco, não foram eliminadas da história. Elas têm ilustres e nem sempre conhecidos antepassados, além de uma invencível tendência à ressurreição. (ROSSI, 2000, p. 120). Nação e escravidão: um projeto sem futuro A obra do historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (18161878), nascido em Sorocaba, apesar de ser, hoje, relativamente conhecida por boa parte daqueles que se dedicam aos estudos de história da historiografia brasileira, por sua amplitude quantitativa e qualitativa, já possui um histórico próprio de leituras. As maneiras como tal conjunto de textos foi tratado, por exemplo, desde as reflexões seminais de Manoel Salgado Guimarães e Arno Wehling, apresentaram uma variedade de temas e de Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen abordagens realmente impressionante, quando comparada às interpretações anteriores (GUIMARÃES, 2011; WEHLING, 1999) 1. De modo geral, até bem recentemente, Varnhagen teve sua obra investigada em uma perspectiva eivada de ideias pre-concebidas que impediam, por assim dizer, a problematização de determinadas questões de fundamental relevância para o conhecimento acerca da historiografia do século XIX. Ele não foi apenas o autor da primeira Historia geral do Brazil (VARNHAGEN, 18541857) escrita por um brasileiro, mas um prolífico pesquisador e, principalmente, um dos letrados que mais ajudou a construir o incipiente ofício de historiador em moldes modernos, em seu país de origem. Viveu pouco tempo nesse país, mas, desde cedo, interessou-se pelos assuntos da jovem nação onde nascera. Por sua experiência portuguesa, acabou vindo a ser uma das principais pontes entre os acervos europeus sobre o Brasil e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1838, no Rio 1 No que se refere a Manoel Salgado Guimarães, é relevante precisar que foi a partir de seu conhecido artigo publicado na revista Estudos Históricos, em 1988, que essa nova forma de trabalho com a produção dos letrados oitocentistas ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em geral, e com os escritos de Varnhagen, em particular, tornou-se conhecida. Sua tese de doutoramento, defendida no ano de 1987, na Universidade Livre de Berlim, apenas ganhou versão em português postumamente, em 2011. Ver GUIMARÃES (1988). Em tempo, não creio ser aqui lugar para balanço ou listagem dos estudos dedicados à obra varnhagueniana, considerando as dimensões previstas para este capítulo. No entanto, buscarei o diálogo com as contribuições que se destacaram no decorrer da presente análise, respeitando os limites de seu objetivo. 92 Evandro Santos de Janeiro, marca do início de uma historiografia disciplinar por aqui (GUIMARÃES, 1995). Michel Foucault chamou a atenção dos historiadores para o fato de que os marcos fundadores são sempre suspeitos e que as disciplinas são, no mais das vezes, espaços de restrição e de coerção (FOUCAULT, 2010, p. 29-36). Sendo assim, repensar constantemente os lugares institucionais de produção e de desenvolvimento disciplinar constitui um dos objetos centrais da história da historiografia. Nessa área de estudos específica, foi Manoel Salgado Guimarães quem, no Brasil, destacou tal aspecto: Trazer também a própria prática do ofício que exercemos ao mundo histórico, reconhecendo-o como parte das inúmeras frentes de batalha travadas para dar significação ao mundo em que vivemos, tornando-o dotado de finalidades e valores, que antes são os dos homens vivendo e não os de uma história alçada à entidade supra-humana (GUIMARÃES, 2003, p. 22). A operação historiográfica realizada por Varnhagen permite a observação dos mecanismos que, pouco a pouco, vieram a construir o discurso histórico sobre o Brasil, mas, também, a constituição de própria autoridade e legitimidade desse discurso. No entanto, a forma como seus escritos foram recebidos é bastante diversificada e o fato de se atentar (ou não) aos aspectos que particularizaram o discurso histórico, em perspectiva geral, determinam o tratamento dado a sua obra. Nesse sentido, o problema da escravidão, apreendido em suas dimensões política e/ou historiográfica, corrobora a necessidade da observação dos aspectos apontados acima a partir do que argumenta Guimarães. Em primeiro lugar, pelo restrito espaço que o estudo da cultura africana recebeu no vasto 93 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen conjunto de escritos de Varnhagen, o historiador reconhecia as limitações de seu conhecimento sobre o assunto, chegando a apontar a pertinência de novas pesquisas. A escravidão, contudo, não foi concebida como um objeto de análise pelo historiador. Em seus textos históricos, as menções são esporádicas e superficiais, ainda que presentes, porquanto inevitáveis, tendo em conta os diferentes aspectos que serão comentados mais adiante. Para situar adequadamente o que foi dito até aqui, importa destacar que Varnhagen não foi apenas um historiador. Foi antes um militar e atuou, sobremaneira, como diplomata. Foi um servidor público do Império do Brasil e, unificando essas atuações, teria sido o historiador do “Tempo Saquarema”, para citar outro trabalho fundamental aos estudos de história da historiografia brasileira, de meados dos anos 1980 (MATTOS, 2004, p. 298)2. A tarefa de dissociar a construção crítica da história, entendida como disciplina, de seus usos políticos torna-se profundamente delicada pelo efeito determinante que o discurso sobre a nação terá ao longo do período imperial – e esse impasse não parece ter sido solucionado com a proclamação da República (GOMES, 2009). Aqueles que se encontravam ocupados com o exame do passado do país estavam urgidos pela perspectiva nacional (PALTI, 2006). Essa pode ser, inclusive, uma das hipóteses de leitura para a limitada participação do tema da cultura africana nos trabalhos de Varnhagen. Os africanos, por definição, seriam sequer vistos como um elemento anexo à nação, algo quase estranho ao projeto nacional brasileiro. Entretanto, três séculos de sequestro e de comércio de escravos não poderiam ser ignorados. O IHGB buscava, desde 2 Para uma abordagem bastante completa e interessante da biografia de Varnhagen ver Cezar (2007). 94 Evandro Santos a sua fundação, o sentido para a história de um povo pouco ou nada homogêneo, experiência singular entre os Estados nacionais oitocentistas, aporia que atravessaria o século entre os historiadores (OLIVEIRA, 2009, p. 43-64). O próprio Estado, desde o primeiro reinado, portanto, encontrava dificuldades em elaborar a condição brasileira: ser uma nação ocidental moderna e escravista. As características da formação burocrática do Estado patrimonial no país, inclusive, podem ser vistas como índices do dilema na articulação entre os princípios dos movimentos liberais e a desigualdade na qual se baseava a composição da sociedade (URICOECHEA, 1978)3. Como se posicionava Varnhagen em relação à questão? A leitura mais incisiva do historiador oitocentista sobre a escravidão apareceu entre 1849 e 1850, não por acaso, período crítico da discussão sobre o tráfico no segundo reinado (SCHWARCZ, 1998, p. 101-124). Não se tratava de um trabalho propriamente historiográfico, mas de um texto de proposições políticas e administrativas intitulado Memorial Orgânico. No entanto, esse gênero de distinção entre os escritos de Varnhagen, bem como de qualquer outro autor, deve ser matizado. Tal argumento, apresentado em estudo anterior, mais amplo, busca evitar leituras excessivamente esquemáticas que acabam por empobrecer o exame dos textos historiográficos, garantindo certa supremacia do “contexto” (termo aqui entendido como ideias gerais acerca de determinada época ou período), em detrimento das concepções desenvolvidas no conjunto de uma obra ou mesmo em reuniões de textos heterogêneos 3 A remissão à clássica obra de Sérgio Buarque de Holanda é, neste assunto, oportuna (HOLANDA, 1995, p. 139-151). Ver também o balanço mais geral de Schiavinatto (2009). 95 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen de contemporâneos (SANTOS, 2014, p. 17-22). Importa ressaltar que, no tocante a tal perspectiva, não é intuito desconsiderar a consecução de uma escrita histórica com definições particulares e que, pouco a pouco, foi construída, efetivamente, uma autonomia discursiva. Explorar a depuração desse discurso é no que consiste, afinal, parte dos esforços da história da historiografia. Busca-se, outrossim, não negligenciar o conjunto das ideias que podem vir a esclarecer aspectos menos evidentes na obra de Varnhagen, como é o caso do tópico da escravidão e da cultura africana. Evita-se, portanto, expectativas que emergem da diferença entre as experiências de ontem e a de hoje, por vezes, sinalizadas em algumas análises (RODRIGUES, 1988; ODÁLIA, 1997). Por assim dizer, é desse diálogo entre temporalidades e diferenças que se torna possível restituir o sentido do passado para um determinado presente que se quer díspar. Conforme dito anteriormente, Varnhagen admitia seu desconhecimento no que se referia à cultura africana. Nesse horizonte, a presença das etnias que, no Brasil, viviam em função do tráfico, em suas obras, era restrita. Foi, porém, assunto de importância na discussão apresentada no Memorial Orgânico. Esse texto fora analisado em suas particularidades em dois trabalhos recentes, aos quais se remete de imediato. Primeiramente, na dissertação de mestrado de Leandro Macedo Janke, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Rio ( JANKE, 2009). Posteriormente, Arno Wehling apresentou comentário que serve de introdução à edição do documento em livro, resultado do projeto mais amplo, Coleção Memória do Saber, organizado por Raquel Glezer e Lúcia Guimarães (WEHLING, 2013, p. 160-199). 96 Evandro Santos É patente, no Memorial, a contrariedade de Varnhagen no que diz respeito ao tráfico de escravos: A escravatura dos africanos torna o país escravo de si próprio; pois como diz o M. de Maricá: o cativeiro apostema e tortura os escravos e seus senhores. É urgentíssimo impedir-se que entrem mais; e antes pedirmos todos amanhã esmolas e andarmos descalços que ver o belo e risonho Brasil, a nossa pátria convertida numa catinguenta Guiné (VARNHAGEN, 1849, p. 8)4. Olhando para um país escravista, Varnhagen atentava para o problema da formação da população. A evidente xenofobia, em relação aos africanos trazidos à força para o Brasil, expressava-se pelo fato de confrontar a perspectiva europeia que ele concebia, compreendendo o país onde nasceu como uma continuidade de Portugal, como já foi observado em variadas análises de sua obra. Além disso, percebe-se em Varnhagen o embate entre o antigo e o moderno, no que se refere ao trabalho escravo. Ao mesmo tempo em que o recrimina como mácula a ferir o desenvolvimento da população nacional, mantém a hierarquia estabelecida pelos europeus, de maneira geral, no que toca à ideia de civilização, fundante da lógica da constituição das nações naquele continente (JANKE, 2009, p. 105). 4 A ortografia original das fontes oitocentistas aqui citadas foi atualizada. Cabe destacar que, a despeito de ser contrário ao tráfico de africanos, a escravidão era tida por Varnhagen como prática lícita, inclusive com justificativa religiosa, conceito comum à época. Cf. Rodrigues (1983, p. 205), Carvalho (2001, p. 49-51) e Narita (2014). 97 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen Pode-se observar o dilema da manutenção escravista em uma sociedade que se quer moderna. Na segunda parte do documento, Varnhagen retoma Aristóteles e Cícero com o objetivo de evidenciar os riscos que as sublevações de escravos poderiam representar no futuro e, por meio do prisma teleológico de seu tempo, propõe a superação do modelo na mesma lógica da transição medieval. Tratemos pois de ir suavizando, sem lesar os proprietários e as indústrias do país, os vexames que sofrem os nossos escravos, que contra sua vontade nos trouxe d’além dos mares a cobiça, privando-os dos agradáveis laços de família, os quais estamos vendendo como brutos, às vezes quando acabam de criar na casa do senhor novas afeições. Imitemos os povos da Idade Média no modo como procederam pouco a pouco a tal respeito; comecemos, como eles começaram, a melhorar a condição dos escravos que estavam então, como os nossos hoje, sujeitos à legislação do paganismo romano. O que na Idade Média fizeram os concílios, em proveito do cristianismo, façam hoje os nossos corpos colegisladores a bem do país e das instituições (VARNHAGEN, 1850, p. 8). No âmbito das propostas políticas alicerçadas pela história e expostas por Varnhagen, um projeto de nação para o Brasil padecia de um mal crônico: como justificar a união de um povo abissalmente heterogêneo? Parcela significativa da população não nascera e nem mesmo ocupava lugar no território por vontade própria. Eram excluídos em todos os sentidos. Que futuro é possível perante a exclusão? 98 Evandro Santos Percursos africanos na historiografia de Varnhagen O Memorial Orgânico é, certamente, um dos textos mais indicados, quando o intuito é verificar a posição de Varnhagen quanto à escravidão e às proposições de futuro possíveis que vislumbrava dentro de suas definições políticas (SCHWARTZ, 1967, p. 187). Diferentemente do que fez em relação aos indígenas, tema a que se dedicou por quase toda sua vida, os africanos não foram convertidos pelo pesquisador em um objeto de estudo privilegiado. O sistema escravista era um problema político de seu tempo e a concepção mais geral acerca do que viria a ser uma nação moderna, definida pelo padrão europeu, não combinava com a inclusão forçada de uma etnia estrangeira. Esse fator determinante, a nação, pesa sobre suas concepções e sobre focos de interesse. Não raro, comentadores buscam explicitar aquilo que é visto como lacunas graves no pensamento varnhagueniano: Considerá-lo desvalioso por não atentar para o mal da escravidão, por seu conservadorismo ou reacionarismo, por não apreciar questões hoje tão vitais, para nós, é não só procedimento duvidoso como denunciador de falta de sentido histórico. Varnhagen foi homem de sua época, pensou e agiu como a maioria de seus contemporâneos. O mais é crítica passível de reparos (IGLÉSIAS, 2000, p. 85). A falta de perspectiva histórica – via a sociedade organizar-se àquela maneira – e, ainda, a ausência de aprofundamento nos estudos e nos conceitos do que se viria a se chamar campo sociológico, lamento expressado já por Capistrano de Abreu, seu primeiro noticiador biográfico póstumo, ideia repisada por 99 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen muitos a posteriori, seriam argumentos para o seu desinteresse (ABREU, [1878], p. 507). Entrementes, se em Varnhagen o tema da cultura africana e os inúmeros aspectos passíveis de análise que provinham do tráfico de homens e mulheres vindos da África para o Brasil não foram privilegiados, a estruturação de uma escrita da história a partir de um ponto de vista nacional não seria capaz de ignorá-los. O IHGB promoveu um concurso entre seus sócios, com a intenção de que estes apresentassem planos de escrita para a história do país. O texto que venceu a disputa foi escrito pelo bávaro Carl Friedrich Philip von Martius, intitulado Como se deve escrever a história do Brasil. O plano dividia-se em quatro partes. A quarta e última parte fora dedicada aos africanos: “A raça africana em suas relações para com a história do Brasil” (MARTIUS, 1844, p. 397)5. Já esse subtítulo evidencia o prisma atribuído à população africana: guardava apenas “relações” com a história da nação emergente. Ao indígena, a categorização indica a incorporação de sua história particular à história mais ampla da nação: Os Índios (a raça cor de cobre) e sua história como parte da História do Brasil (MARTIUS, 1844, p. 384). Aos portugueses, é atribuído índice semelhante: Os Portugueses e a sua parte na História do Brasil (MARTIUS, 1844, p. 389). Apesar disso, como ressalta Temístocles Cezar, ao analisar o conjunto do texto de Martius, percebemos que 5 O historiador Temístocles Cezar sublinha que, na própria organização textual de Martius, estava implícita uma concepção de tempo que ordenava também uma concepção de história para o Brasil: “esta ordem é por si só reveladora. Ela sinaliza um tempo: os índios chegaram antes dos portugueses. Este dado, naquela época, não constituía uma evidência” (CEZAR, 2003, p. 182). 100 Evandro Santos Para a conjuntura em que vivia, Martius é decididamente audacioso. Não somente por integrar os índios ao processo de constituição, por assim dizer, da nacionalidade, mas também porque insere nela os negros. Evidentemente, se podemos de certo modo explicar a presença indígena graças ao componente romântico do período, o mesmo não é válido para os escravos. Martius foi um dos primeiros, talvez até o principal precursor, a tentar resolver antes do movimento abolicionista dos anos 1870 o “problema epistemológico” que representa o escravismo no Brasil para os intelectuais, sobretudo os estrangeiros (CEZAR, 2003, p. 184). O trecho dedicado aos africanos, a despeito de ser o menos extenso, guarda, portanto, sua importância pela precocidade da discussão e pela própria elaboração que propõe acerca da nacionalidade em debate. Estava nele previsto, também, a necessidade do estudo da cultura dos povos africanos que, para o Brasil, haviam sido trazidos (MARTIUS, 1844, p. 397). As indicações de Martius, arrojadas para a época, encontraram uma primeira tentativa justamente na História geral do Brazil, de Varnhagen, obra de síntese, que veio à luz exatos dez anos após a publicação, pelo IHGB, do texto analisado acima. Praticamente todos aqueles que se dedicaram ao exame de sua obra ocuparam-se da Historia geral, incontornável para os estudiosos da história da historiografia brasileira. A maioria deles destacou a restrita participação da história dos africanos no Brasil, posto que descreve não mais que algumas diferenças entre as etnias dos grupos de africanos aqui chegados em termos religiosos, linguísticos e costumes (WEHLING, 1999, p. 165-167). Apenas a seção XIV, bastante curta, é dedicada ao assunto (VARNHAGEN, 1854, p. 181-191). Em contrapartida, 101 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen os indígenas passariam a ocupar seus focos de análise, como dito anteriormente, colocando-o em certo litígio com os membros do IHGB (era um crítico do indianismo que emergia em parte dos associados ao órgão) e, de certa maneira, circunscrevendo o conjunto de ressalvas que recebeu, do início ao fim de sua obra (PUNTONI, 2003; CEZAR, 2008)6. A frieza com a qual Varnhagen via o contato entre as culturas, nas relações do escravismo, foi chamada “pitoresca” por Celso Vieira, ao mencionar o “paradoxo da escravidão”, como definiu quando citou passagem em que o historiador julga os africanos nascidos no Brasil, proporcionalmente, mais “prestimosos e notáveis” do que os nascidos em sua terra de origem (VIEIRA, 1923, p. 65-66). José Carlos Reis avaliou que, em certa medida, Varnhagen “parece ser menos racista e mais antiescravista: não é somente a presença negra no Brasil que o desagrada, mas, sobretudo, a presença da escravidão” (REIS, 1999, p. 44). Lúcia Guimarães observa que ele “mostra-se bem mais sensível à violência da escravatura africana do que em relação às atrocidades cometidas contra os indígenas. Deplora a condição do tráfico” (GUIMARÃES, 2000, p. 86). De todo modo, Varnhagen seguiu Martius e considerou a importância da participação da população trazida à força para o país: Como a colonização africana, distinta principalmente pela sua cor, veio para o diante a ter tão grande entrada no Brasil que se pode considerar hoje como um dos elementos de sua população, julgamos do nosso dever consagrar algumas 6 Para a questão do estudo indígena no espaço do IHGB, especificamente, ver Turin (2006). 102 Evandro Santos linhas neste lugar, a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar, e modernamente os da cultura do café [...] (VARNHAGEN, 1854, p. 182-183). Cabe ainda mencionar, brevemente, outro episódio da presença africana na produção do historiador que caracteriza, assumidamente, um uso político da história, em texto publicado no ano de 1871. Trata-se de outra de suas obras históricas mais conhecidas: a História das Lutas com os holandeses no Brasil desde1624 a 1654 (VARNHAGEN, 1955). Como não escondeu seu autor, a edição tinha intenção clara: estimular os combatentes que atuavam na Guerra do Paraguai (1864-1870). Como já havia destacado na Historia geral, agora Varnhagen exacerba os líderes responsáveis pela expulsão dos holandeses, operando com a semântica do patriotismo pouco a pouco elaborada ao longo do século XIX. Felipe Camarão, André Vidal de Negreiros e Henrique Dias são alguns dos personagens indígenas, portugueses e africanos que, respectivamente, corresponderiam à união das “três raças” que haviam combatido o inimigo estrangeiro no século XVII. As biografias desses personagens, publicadas nas páginas da Revista do IHGB, em grande parcela assinadas por Varnhagen, antecipavam as pesquisas que resultariam nesse uso específico do conhecimento histórico (ou de uma determinada expectativa em relação a suas potencialidades) (SANTOS, 2009). Ainda assim, como observa Armelle Enders, a suposta união da tríade étnica mantinha a distância e a desigualdade bem conhecida: Os projetos de Constituição para Pernambuco, após a revolução lá ocorrida em 1817, puseram Vieira, Vidal de Negreiros, Camarão e Dias na primeira fila das devoções 103 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen públicas, ref le- tindo fielmente a sociedade escravocrata e sua hierarquia. Pois se as “três raças” estavam ligadas pelo amor à pátria, elas permaneciam estritamente separadas (ENDERS, 2014, p. 146). Conclusão? Memória e política: para outro debate acerca do passado escravista no Brasil Em 1906, Machado de Assis publicou o conhecido conto Pai contra mãe. Escrito anos antes, em época posterior ao término oficial da escravidão no Brasil, conta a história de Cândido Neves, que, após diversas ocupações, acabara por tornar-se caçador de escravos fugitivos, no Rio de Janeiro. Ocorreu que, logo após seu casamento com Clara, Candinho, como era chamado pelos íntimos, tornou-se pai. À coincidência da notícia da paternidade, o revés da diminuição, nos casos de fugas de escravos, colocou-o em situação financeira muito delicada. O quadro atinge ponto mais crítico quando, com o filho recém-nascido e o aluguel de casa atrasado havia três meses, Candinho vê-se prestes a deixar a criança na roda dos enjeitados. Em última tentativa de reverter as duas imposições às quais se via submetido – entregar o filho à adoção e ser despejado – investiga anúncios de recompensa pela captura de escravos desaparecidos. Com sua competência para gerir perfeitamente drama e ironia, Machado de Assis descreve o clímax que esclarece o título do texto: Candinho, no percurso de casa ao local de abandono das crianças enjeitadas, identifica uma de suas presas: uma escrava de nome Arminda. Candinho a contém e leva-a à casa do senhor que havia divulgado a busca. O percurso, agressivo para ambos, agride muito mais Arminda, não apenas por 104 Evandro Santos ser mulher, mas por estar ela grávida. Embora avisado de tal condição, Candinho não titubeia em conduzi-la ao proprietário. A consequência, extremamente violenta, se segue: ao mesmo tempo em que Candinho recebe o pagamento pelo serviço prestado e resolve seus problemas imediatos, Arminda sofre um aborto e perde o filho que esperava. Ao ganho momentâneo de um corresponde o prejuízo inqualificável de outro. Em 2005, o filme Quanto vale ou é por quilo?, dirigido por Sérgio Bianchi, recriou livremente o conto, adaptando-o para os dias atuais e traçando paralelos históricos com o período escravista, que interagem na própria narrativa, expondo a permanência das desigualdades e os inúmeros limites das liberdades que atravessam a história brasileira de ponta a ponta. *** Nas últimas três décadas – ou um pouco mais que isso –, fala-se muito sobre a ascensão da memória como conceito fundamental a dominar o espaço público nas sociedades ocidentais. “A memória conjuga-se sempre no presente”, o que exige dos historiadores cuidado redobrado com seus usos e, sobretudo, com as associações junto à história (TRAVERSO, 2012, p. 18). O impacto dessa vaga memorialística e suas consequências têm merecido atenção dos historiadores e boa parte dos questionamentos mais importantes de suas agendas atuais passam pela questão (HARTOG, 2013, p. 39-107). A sociedade brasileira pode se perguntar sobre que histórias temos da escravidão. Ela é ampla e seria impossível, neste espaço, fazer um balanço, sobretudo, por escapar à abordagem proposta, que se limita às dimensões historiográficas dentro de uma obra específica, ainda que se tenha buscado destacar a compreensão 105 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen da íntima ligação entre o assunto e os letrados oitocentistas ocupados da construção da disciplina histórica (MARQUESE, 2004, p. 259-298). A caracterização da história da escravidão é, igualmente, vasta. Temos algumas datas cruciais para o intento de observar sua discussão. A história da historiografia tem revelado, em diversas passagens, tal aspecto, aprofundando o que poderia ser mera efeméride e demonstrando o quanto nos diferenciamos, em muitos pontos, daquele passado de preconceitos naturalizados. O contexto da independência é um exemplo (ARAUJO, 2008, p. 66-76). Outros muitos poderiam ser mencionados, como, decerto, a proclamação da república e, sobretudo, as movimentações sociais em torno da Constituinte que marcou o início da Nova Democracia, em 1988. Por coincidir com o centenário da abolição, uma série de ações de memória foi exposta nos meios de comunicação que, provavelmente, podem ter contribuído com a associação entre o peso do passado e a necessidade da ampliação dessa pauta, em termos políticos, no presente do país. O ambiente criado pela transição democrática foi capaz de diversificar os lugares para tais debates e para o repensar da história que se quer saber acerca da cultura afro-brasileira. De certa forma, pode ser dito que houve chance para se ultrapassar os conteúdos de memória e se promover o avanço histórico fundamental na superação das maiores mazelas do passado escravista. A Lei n°10.639/03 e o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana são provas disso (MEC; SECADI, 2013). Machado de Assis abre o conto supracitado com a seguinte frase: “a escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais” (MACHADO DE ASSIS, 2006, 106 Evandro Santos p. 659). Que a permanência dos avanços democráticos aprofunde por aqui, enfim, dois dos principais lemas do século XIX, ainda não suplantados: a importância do combate às desigualdades sociais e a defesa generalizada das liberdades individuais, fazendo com que algumas das marcas da escravidão sejam, de fato, situadas no passado. 107 Antes da nação: projeto político, história e escravidão em Francisco Adolfo de Varnhagen Referências ABREU, João Capistrano de. Necrologio de Francisco Adolpho de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro. 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A SECADI implementa políticas educacionais para a promoção da educação inclusiva, valorizando temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação escolar indígena e diversidade étnico-racial. A criação dessa secretaria no Ministério da educação - MEC é uma Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras das estratégias de enfrentamento das injustiças existentes nos sistemas de educação do país. A SECADI, como outras secretarias do MEC, implementa suas políticas em articulação com os sistemas de ensino e com os Fóruns Estaduais Permanentes de Apoio à Formação Docente. Essa articulação é promovida pela Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública (RENAFOR), instituída pelo MEC, em 2011. As Instituições de Ensino Superior (IES), que participam da rede, o fazem por meio de um Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica (COMFOR). Cada IES tem seu Comitê. Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o COMFOR tem articulado diversos cursos de formação continuada, entre eles, o Curso de Especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, com duas ofertas, sendo uma delas ajustada para a demanda do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), cujo público alvo alcançou professores da região com formação inicial em Letras, História, Geografia e Pedagogia. Integrando a estrutura curricular dessa especialização, estava a disciplina Literaturas africanas em língua portuguesa. Ao ministrá-la, pude refletir sobre seu papel na formação de professores de Letras, História, Geografia e Pedagogia. A reflexão sobre a literatura na formação continuada de professores dessas áreas atravessa diversas questões. Para nortear esse texto, destaco duas: por que literatura na formação de professores, especialmente daqueles que, na escola, quase nunca são responsabilizados pela área de linguagens? O que as literaturas africanas de expressão portuguesa podem ensinar, em termos de educação para a diversidade? 116 Ana Santana Souza O estudo das literaturas afro-brasileiras e africanas pode ampliar a discussão acerca de diferentes temas. Neste trabalho, destacaremos como esse estudo pode explorar o conceito de nação e o de gênero, na perspectiva do feminismo, tendo como referência obras de autores africanos de língua portuguesa. Por meio da literatura e, consequentemente, de seu ensino, a concepção de nação pode perpassar pela reelaboração do modo como a identidade nacional é pensada na escola. Esta, por muito tempo, definiu a nação baseada nos conceitos, imutáveis, de território, língua, etnia e religião. Desse modo, a unidade da nação era uma meta da educação, o que significava, entre outras coisas, a adoção de uma língua padrão baseada nos usos linguísticos das classes mais prestigiadas, o ensino da religião católica e, consequentemente, o apagamento escolar da cultura religiosa negra. A tradição do colonizador tinha, enfim, supremacia. Por outro lado, essa literatura estudada nas escolas, quase sempre de autoria masculina, não questionava o papel da mulher na sociedade. Muito pelo contrário: quase sempre as obras lidas (quando lidas) na escola eram usadas na perspectiva de reforçar uma imagem de mulher branca, associada à figura da mãe, da esposa ideal e da amante capaz de enlouquecer os homens. O espaço da mulher negra nessa literatura é ainda mais reduzido ou inferiorizado. Se não é a escrava, é a cozinheira, a babá ou a mulata cobiçada pelo patrão. Quando o espaço da mulher, na tradição escolar, é o de autora, ela nunca é negra. Somente algumas obras de autoria feminina compunham os currículos escolares, isso quando a literatura tem algum espaço. No caso da literatura brasileira, não é comum que se apresente aos alunos alguma obra de mulheres negras, ainda mais se o recorte temporal for o século XIX. Hoje, não se pode alegar que não se tem acesso à 117 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras produção literária de mulheres negras naquele período. O livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, escrito em pleno romantismo brasileiro, foi publicado pela editora Mulheres, em 2004. Do mesmo modo, obras como Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, também está disponível. Inúmeras pesquisas dão conta de produções em diversos períodos da literatura brasileira e também da literatura africana de língua portuguesa. É certo que não é fácil encontrar essas obras nas livrarias, especialmente, naquelas de estados mais periféricos, como o Rio Grande do Norte, mas é assim porque não há procura por essas obras, o que acaba gerando um círculo vicioso. Não há demanda, não há oferta e, se essa não existe, não tem como formar um público leitor. Em todo caso, a inclusão da literatura escrita por mulheres africanas ou afrodescendentes de língua portuguesa impulsiona a discussão em torno de gênero e de discursos feministas, atentando para o tratamento que essas narrativas dão às mulheres negras. Para discutir as questões geradoras da reflexão desenvolvida neste texto, amparamo-nos em documentos oficiais do MEC e em autores como Compagnon (2009), Hobsbawm (1990), Butler (2001), entre outros. Também ancoramos o texto em poemas africanos e afro-brasileiros. Por que literatura de raiz africana na formação de professores? Ao investir na promoção da educação para a inclusão e a diversidade, a SECADI centralizou seus esforços na formação do professor. Formado por um sistema educacional que não se baseava na diversidade, o professor da educação básica 118 Ana Santana Souza precisava de uma complementação que lhe possibilitasse pensar o ensino para além da especificidade das disciplinas escolares. Assim, não bastava uma lei, era preciso dar aos professores as condições de cumpri-la. Para tanto, uma das medidas foi a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em 2004, também publicada na coletânea Diretrizes curriculares Nacionais para a Educação Básica: diversidade e inclusão (BRASIL, 2013a). A formação dos professores para a atuação, na perspectiva de uma educação das relações étnico-raciais, tem focalizado, especialmente, aqueles cuja área de atuação estabelece maior vínculo com a temática. Em princípio, o segundo parágrafo da Lei 10.639 determina que Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (BRASIL, 2003). Portanto, a formação para o trabalho com a temática recaiu, principalmente, sobre os professores dessas áreas, acrescentando-se o pedagogo, que, nas séries iniciais, é responsável, também, por conteúdos correspondentes a elas. Geralmente, as disciplinas de Literatura compõem a estrutura curricular de cursos com público alvo de formação inicial em Letras. Contudo, por que a literatura em um curso para professores de outras áreas? Podemos iniciar citando Antônio Cândido, para quem “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade, na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, 119 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras o semelhante” (CANDIDO, 2004. p. 180). Para o autor, a fruição da literatura, como da arte, em geral, é um direito inalienável. Já para Compagnon, a literatura ensina coisas insubstituíveis, tais como [...] a maneira de ver o próximo e si mesmo, [...] de atribuir valor às coisas pequenas ou grandes, [...] de encontrar as proporções da vida, e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, a maneira de pensar e de não pensar nela, e outras coisas necessárias e difíceis, como a rudeza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor (COMPAGNON, 2009, p. 45). A leitura literária, desse modo, se torna uma experiência obrigatória por favorecer a formação humana integral, contribuindo para que o sujeito leitor reflita sobre si próprio e sobre o mundo em que está inserido. Nesse sentido, a literatura de qualquer nacionalidade tem a mesma função e deve fazer parte da formação de professores pelas razões já explicitadas. Sendo assim, haveria a necessidade da inserção de literaturas africanas no currículo? Sim, pois além do que toda literatura pode ensinar, as literaturas africanas de língua portuguesa e as de afro-descendência possibilitam o conhecimento da produção cultural do negro. Sua inclusão no currículo oportuniza atitudes afirmativas frente às culturas de matriz africana, cujo povo é representado em materiais didáticos, muitas vezes, apenas como escravo ou em condição subalterna. O estudo das literaturas africanas e afro-brasileiras favorece os sujeitos de qualquer raça ou etnia, pois todos são afetados, de uma forma ou de outra, pelo racismo, pelo mito da democracia racial e pela ideologia do branqueamento. 120 Ana Santana Souza Enquanto processos estruturantes e constituintes da formação histórica e social brasileira, estes estão arraigados no imaginário social e atingem negros, brancos e outros grupos étnico-raciais. As formas, os níveis e os resultados desses processos incidem de maneira diferente sobre os diversos sujeitos e interpõe diferentes dificuldades nas suas trajetórias de vida escolar e social. Por isso, a construção de estratégias educacionais que visem ao combate do racismo é uma tarefa de todos os educadores, independentemente do seu pertencimento étnico-racial (BRASIL, 2013a, p. 137). Dentro das políticas de enfrentamento do racismo, o estudo da literatura africana e de afrodescendentes é uma estratégia para construir, na escola, uma cultura de reconhecimento do valor cultural das produções da pessoa negra. Isso, por si só, já justificaria o ensino de literaturas africanas e afrodescendentes na escola e na formação de professores, mas ler e estudar essas produções literárias é importante, também, porque amplia o que a literatura, em geral, é capaz de promover na formação das pessoas. Educação para a diversidade: o que literaturas africanas e afrodescendentes de língua portuguesa podem ensinar O estudo das literaturas africanas, no conjunto dos estudos da história e da cultura afro-brasileira e africana, dá visibilidade à produção cultural das pessoas negras. Além disso, ele pode orientar para uma revisão de conceitos estabelecidos pela cultura ocidental, muitos deles sedimentados pela 121 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras literatura do colonizador e replicados, antes das lutas pela independência, pela literatura das colônias. Ao se tornarem ex-colônias, contudo, é possível verificar um diferencial. De acordo com Mata, é sabido que em sociedades emergentes, com um passado colonial recente, a literatura é um veículo muito importante na construção da identidade literária. Isto é: por razões que têm a ver com a especificidade do processo libertário, a identidade literária tornou-se uma componente fundamental do cadinho da identidade que se pretende nacional (MATA, 2007, p. 86). O estudo dessas literaturas implica pensar em nação colonizada, explorada em seu próprio território, e nas lutas nacionais pela libertação. Claro que isso não é um conteúdo específico da literatura, mas, como disse o autor, a literatura é um instrumento de luta e seu estudo permite perceber como a nação projetou a libertação a partir de uma produção própria, com elementos autóctones. Por outro lado, isso também não é um conteúdo específico da literatura de países africanos. Outros, como o Brasil, também têm uma literatura produzida logo após a independência, que buscou a construção de uma identidade nacional. Tema que, aliás, foi retomado pelos modernistas. Contudo, a literatura africana de países de língua portuguesa pode contribuir para refletirmos não somente sobre a identidade daqueles países, mas sobre a nossa própria, como veremos mais adiante. Além disso, no seio de uma nação africana pós-colonial, a construção de sua identidade não é papel apenas dos homens. A mulher tem uma importância fundamental no cenário nacional, na promoção da liberdade da nação e de si própria. 122 Ana Santana Souza Brasil na África: a nação tecida pela literatura Pensemos a colonização tendo como referência Portugal, Brasil e uma ex-colônia africana de língua portuguesa. Temos o primeiro como colonizador e os outros, em relação ao primeiro, como colonizados em seu próprio território. Mas, uma nação pode ser colônia de outra colônia, quando fora de seu território, como atesta o caso da escravidão do negro no Brasil. Nesse sentido, o conceito de nação – que não se define nem pelas noções de língua, nem pela de povo, religião ou território (HOBSBAWM, 1990), aliás, qualquer definição é enganosa – traz para o brasileiro um duplo reconhecimento: o de colonizado e, também, o de colonizador. Para o português, seu reconhecimento é o de colonizador, na relação com qualquer uma de suas colônias, ao mesmo tempo em que todas elas se reconhecem como colonizadas. Mas, se para um país africano de língua portuguesa, sua condição é de ex-colônia, para o Brasil esse reconhecimento é ambivalente: ao mesmo tempo em que é um país com histórico de colonizado, tem também um histórico de desvalorização da cultura do negro, uma vez que sua presença no país nunca foi percebida como a de igual. A desvalorização leva à imposição do branqueamento cultural, o que equivale à colonização. Por outro lado, ao estudar a literatura de países africanos de língua portuguesa, é notável a contribuição da literatura brasileira na emancipação literária desses países. É nesse aspecto que o estudo da literatura pode trazer outro viés de compreensão das relações entre Brasil e África portuguesa. Estudando os modos como os escritores africanos percebem o Brasil, podemos revisitar nossa própria cultura pelo olhar do estrangeiro, não o estrangeiro com quem parece não termos com o que contribuir, mas o estrangeiro para quem podemos 123 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras oferecer alguma coisa maior: o exemplo da luta pela reconstrução de si mesmo. Na poesia de cabo-verdianos, por exemplo, é evidente a presença de João Cabral de Melo Neto em Corsino Fortes ou, antes disso, de Manuel Bandeira em Jorge Barbosa e em outros, como é visível no poema Palavra profundamente (BARBOSA apud FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 19): [...] Enquanto isso Manuel Bandeira vai passando por nós no tempo na sua alegria melancólica na sua alegria de coração apertado vai passando na sua poesia profundamente. A poesia de Bandeira, assim como a de Jorge de Lima, que abordava a temática da negritude, e a prosa de outros brasileiros, especialmente da geração de 1930, a exemplo de Jorge Amado, foram importantes na construção do modernismo cabo-verdiano. Os claridosos, como ficaram conhecidos os escritores de Claridade, revista literária que, em 1936, inaugura o modernismo no arquipélago, foram atentos leitores de autores brasileiros, mesmo que, ora adotando as ideias modernistas, ora criticando-as, como acontece com Gilberto Freyre e com o próprio Bandeira. É notável a resistência aos claridosos que, em referência ao poeta brasileiro, cantaram, também, sua Pasárgada. Onésimo Silveira critica o evasionismo que a ideia de Pasárgada encerra e define sua própria geração como “ESSA É A GERAÇÃO QUE NÃO VAI PARA PASÁRGADA” (apud PAULA, 2005, p. 75). A crítica aos claridosos inaugura outro momento na 124 Ana Santana Souza literatura do arquipélago, marcada pelo chamamento a intelectuais para um novo realismo, que implica a negação da adesão aos padrões do colonizador e a qualquer postura que não seja ficar no país e lutar pela independência e pela autonomia. O contato com a literatura brasileira contribuiu para um novo enfoque da própria nacionalidade cabo-verdiana. Isso, de acordo com as pesquisas de Paula (2005, p. 95), mais do que uma abertura para novas possibilidades estéticas, significou o início de um processo que transformaria os artistas em agentes de sua própria condição, de passivos a ativos, de pessoas que apenas são vistas a pessoas que veem. A presença da literatura brasileira é visível, também, em outros países africanos de expressão portuguesa, o que se confirma nas palavras do escritor Costa Andrade (apud FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 16): Entre a nossa literatura e a vossa, amigos brasileiros, os elos são muito fortes. Experiências semelhantes e influências simultâneas se verificam. É fácil ao observador corrente encontrar Jorge Amado e os seus Capitães de Areia nos nossos escritores. Drummond de Andrade, Graciliano, Jorge de Lima, Cruz e Souza, Mário de Andrade, Solano Trindade e Guimarães Rosa têm uma presença grata e amiga, uma presença de mestres das jovens gerações de escritores angolanos. Nas narrativas do moçambicano Mia Couto, por exemplo, percebe-se, claramente, traços da produção de Guimarães Rosa, a exemplo do conto “Nas águas do tempo”, de Histórias abensonhadas (COUTO, 2012, p. 14), que dialoga com “A terceira margem 125 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras do rio”, publicado a primeira vez em 1962, no livro de contos Primeiras estórias, de Guimarães Rosa (ROSA, 1994). Note-se que o autor fala em influências simultâneas. Mas, independentemente disso, a leitura de obras africanas de língua portuguesa proporciona outro olhar sobre nós, brasileiros, diferente do que se poderia construir com o estudo apenas da nossa própria literatura ou da literatura de países de tradição colonizadora. Compreender as relações literárias entre Brasil e os países africanos de língua portuguesa é abordar as histórias dessas nações para além das fronteiras territoriais ou étnicas, mas é também indagar sobre a mulher negra na construção dessa nação. Qual o seu papel? Como ela participa dessa construção e como olha para si mesma nesse contexto de luta pela independência? A literatura escrita por mulheres africanas e afro-brasileiras: enegrecendo o feminismo A história do feminismo pode ser sintetizada em três momentos. São gerações que, em linhas gerais, podem ser assim distribuídas: 1- Do final do século XIX a Segunda Guerra Mundial: mulheres se organizaram em torno da conquista de direitos fundamentais, como o voto, a educação, o ingresso em carreiras consideradas masculinas e as condições dignas de trabalho; 2- Décadas de 1960 e 1970: período da consolidação do feminismo como movimento político. Nesse período, registra-se uma grande produção teórica sobre a opressão feminina em diálogo com a militância política; 3-Década de 1980: ocorrência de uma renovação teórica, pelo menos, para o feminismo brasileiro, pois é quando o conceito de gênero chega ao Brasil. Nessa época, a unidade do feminismo é contestada, reconhecendo-se as múltiplas opressões, a exemplo da mulher negra, 126 Ana Santana Souza cuja opressão sofrida não pode ser percebida como idêntica à da mulher branca. De lá para cá, foram muitas as conquistas. Entre elas, destacamos o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (BRASIL, 2013b). Pelos títulos dos capítulos do plano, podemos ter uma ideia do teor do documento: 1. Igualdade no mundo do trabalho e autonomia econômica; 2. Educação para igualdade e cidadania; 3. Saúde integral das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; 4. Enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres; 5. Fortalecimento e participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; 6. Desenvolvimento sustentável com igualdade econômica e social; 7. Direito à terra com igualdade para as mulheres do campo e da floresta; 8. Cultura, esporte, comunicação e mídia; 9. Enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia; Igualdade para as mulheres jovens, idosas e mulheres com deficiência. Como é possível perceber, tal documento abrange várias esferas em que a mulher está presente. Ele, como outras conquistas, é fruto dos movimentos das mulheres que, em muitas partes do mundo, se organizaram. De acordo com Matilde Ribeiro, 127 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras A inserção de ativistas com conteúdos feminista e antiracista nas esferas de decisão possibilita uma imediata mudança de discussão e visão política, favorecendo agendas determinantes para a promoção dessas populações renegadas pelo sistema hegemônico. Propicia uma proximidade e otimização de interlocução e resolução dos pleitos por meio de revisão e/ou correção das políticas existentes e, consequentemente, elevação das possibilidades da eficácia das políticas governamentais ao passo que é fortalecido o diálogo com a sociedade civil (RIBEIRO, 2006, p. 806). Tão importante quanto as feministas chegarem ao poder, interferindo nas políticas, também é o diálogo com a sociedade civil. Esta, por sua vez, atua por meio de manifestações que fortalecem as lutas e ampliam as conquistas. As manifestações das mulheres chamam a atenção para o que ainda não foi possível avançar quanto aos direitos das mulheres e de outras minorias. Uma das manifestações mais importantes é a Marcha das vadias: protesto feminista que ocorre em várias cidades do mundo. Começou em Toronto, em 2011, em reação a um policial, no campus universitário, que culpabilizava as vítimas de estupro, por causa de suas roupas. A Marcha partiu da reivindicação dos corpos, mas num sentido que extrapola o tema do controle da reprodução e da saúde e a articulação de políticas públicas correspondentes. A liberdade do corpo em todas as suas dimensões: corpo-bandeira. A Marcha das vadias revelou a diversidade de feminismos, impondo vários desafios. Um deles surgiu da grande presença de jovens brancas universitárias, o que impôs questões de ordem geracional, étnica/racial e social. A idade, a etnia e a classe social implicam opressões e preconceitos de diversas 128 Ana Santana Souza ordens. São as formas de opressão diferentes que provocam outra mirada do movimento feminista. De acordo com Sueli Carneiro (2007), é preciso enegrecer o feminismo. Para a autora, isso significa tornar mais representativas as reivindicações do conjunto das mulheres. Também a forma de vivenciar a sexualidade impõe pensar o feminino/feminismo no plural, (cis, trans, lésbicas), mas implicaria, também, no questionamento sobre quem é esse sujeito. As teorias feministas se construíram, tendo o sexo como um dado natural e o gênero como um constructo histórico e social, mas será que sexo é mesmo um dado natural? Também ele não é afetado pela cultura? O que dizer das novas formas de reprodução, cirurgias plásticas etc.? Por outro lado, a identidade de gênero nem sempre coincide com o sexo biológico. Ela é performativamente constituída. Não é preciso nascer com vagina, seios e útero para se identificar como mulher (BUTLER, 2001). Por outro lado, não basta falar de pluralidade e tentar definir uma identidade para a mulher cis, a mulher trans, a mulher lésbica etc. Cada uma dessas categorias tem, em si, múltiplas identidades, portanto, não há identidades fixas. Pensar o feminino/feminismo no plural implica pensá-lo, também, na intersecção com outras lutas: feminismo + movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT) + Movimento negro + pós-colonialismo + outras que combatam toda forma de opressão. Em termos de literatura afro-brasileira, essas intersecções realizam-se na atualidade, mas não com frequência. Entretanto, a abordagem do sujeito feminino nas obras de mulheres negras, se não é uma constante, é, pelo menos, uma presença cada vez mais perceptível. Em certas autoras, a exemplo de Conceição Evaristo, essa relação é bem clara, como no poema “Vozes-mulheres”, cujo 129 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras título já indica a presença do sujeito feminino. No desenvolvimento do poema, percebemos que essas mulheres são negras e de várias gerações de uma mesma família. A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recorre todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas. A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. 130 Ana Santana Souza O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância e o eco da vida-liberdade (EVARISTO, 2008, p. 10) Mineira de Belo Horizonte, nascida em 1946, Conceição Evaristo é Doutora em Literatura Comparada. Certamente, por isso, a autora imprime em seus versos a consciência feminista e negra. O mesmo se verifica na prosa, como se pode perceber já no título do livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres, publicado em 2011. Essa relação entre feminismo e movimento negro não é tão clara na literatura africana, pois o conceito de feminismo, tal como é posto no ocidente, é polêmico em África. Para Bamisile, A alternativa ao conceito de feminismo euro-americano deve ser expressamente identificada por uma designação nova, que corporize o modo diferente como as mulheres africanas se relacionam com a questão do género. Em resposta à resignação e ao desajustamento que veem no feminismo ocidental e a um discutível universalismo dos seus postulados, os womanisms africanos são tendencialmente ou até claramente antifeministas, mesmo porque há em África um entendimento pouco aberto ou relutante para com intenções que se receiam ser imperialistas ou de imposição pós/neocolonial (BAMISILE, 2013, p. 277). 131 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras A rejeição ao feminismo, ou, pelo menos, a busca por uma alternativa a ele, gerou, em África, termos como womanism, motherism, femalismo, entre outros. Segundo as pesquisas de Bamisile, essas propostas caracterizam-se pela necessidade de pensar a especificidade da mulher negra africana, mas também têm em comum a crítica ao que consideram radicalismo no feminismo ocidental. Como exemplo desse radicalismo, a pesquisadora cita, entre outros, o questionamento da maternidade e o apoio ao lesbianismo, o que significaria a exclusão dos homens. Em África, enfim, é comum uma aversão ao feminismo porque, na compreensão local, seria uma ameaça ao modo de vida africano. O questionamento ao modelo ocidental não se dá de forma unânime. Também não rejeita totalmente seus postulados e nem significa que as mulheres escritoras não reflitam sobre a condição da mulher africana. Há escritoras, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que se definem como feministas. Mesmo não se vendo como tal, a preocupação com questões de gênero perpassa por obras de muitas outras escritoras. Contudo, esse olhar para a própria condição é um tanto recente. Érica Antunes Pereira entende que “a necessidade urgente de criar um corpo nacional, adiou a mirada para si mesma” (PEREIRA, 2010, p. 128). Talvez aí esteja uma das razões para a aversão ao feminismo. Na luta pela independência de Moçambique, por exemplo, as mulheres estiveram ao lado dos homens, inclusive, formando um exército feminino. Porém, a própria Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO, em seu projeto modernizante, não inclui a mulher moçambicana em situação de igualdade com o homem. A nova ordem social, a ‘sociedade de novo tipo’, de que nos falam os documentos da Frelimo deveria ser uma ordem na qual o poder masculino pareceria efetivamente representar a 132 Ana Santana Souza modernidade e o progresso, enquanto formas não ocidentais e não patrilineares pareceriam representar o atraso (PINHO, 2012, p. 971). Na necessidade imediata de liberdade, as mulheres escritoras se dedicaram a cantar o sonho coletivo da liberdade. Nessa perspectiva, as antologias poéticas africanas, compostas, principalmente, por homens, dedicaram algum espaço aos poemas de autoria feminina que versam sobre a mulher, associando-a à imagem da mãe e a de um corpo-terra. Essa forma de representar a mulher não se diferenciava do modo como eram cantados o continente e a mulher, em poemas de autoria masculina. Demonstraremos isso com o poema “Sangue negro”, da moçambicana Noémia de Sousa. Ó minha África misteriosa, natural! minha virgem violentada! Minha mãe! ... Como eu andava há tanto desterrada de ti, alheada distante e egocêntrica por estas ruas da cidade engravidada de estrangeiros Minha Mãe! Perdoa! [...] Mãe! Minha mãe África, das canções escravas ao luar, Não posso, NÃO POSSO, renegar o Sangue negro, o sangue bárbaro que me legaste ... Porque em mim, em minha alma, em meus nervos, ele é mais forte que tudo! 133 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras Eu vivo, eu sofro, eu rio, através dele, MÃE!... (SOUSA, 1975, p. 151-152) No poema de Noémia de Sousa, a mulher que representa a nação não é qualquer uma, é a mãe. Assim, a mulher é louvada naquilo que lhe é socialmente atribuído: a qualidade de procriar e cuidar da cria. Contudo, em outras produções em que já não é urgente a causa da independência, uma vez que as nações africanas de expressão portuguesa não são mais colônias, é possível identificar poemas cuja autora se preocupa com questões mesmas das mulheres, como este, da cabo-verdiana Vera Duarte: Exercício poético 5 A ti Fechemos as cloacas fétidas da cidade e deixemos inebriarem- se os ares de recendidos perfumes estivais [...] A voz da líbido. Em toda a sua violência incontrolável. [...] E dentro de mim, censuradas e sedutoras, sucedem-se as imagens proibidas e as sensações interditas. Sublimar é a palavra d’ordem. O amor e a paixão a libido e o prazer. No altar dos valores supremos. Sublimar aqui e agora e manter estóica e estupidamente secretos os diálogos que comigo mantenho contigo. 134 Ana Santana Souza [...] (DUARTE, 2011, p. 140) Nesse poema, a autora assume seu desejo, ao mesmo tempo em que critica a obrigação social de sublimar o que sente. O texto provoca uma discussão sobre a mulher como ser desejante e não apenas como cumpridora de um papel que lhe foi instituído socialmente. A leitura de poemas com esse teor, associada a outros em que a mulher denuncia a opressão por ser negra e por ser colonizada, podem, se bem trabalhados em sala de aula, provocar discussões importantes sobre o papel da mulher nas lutas pela independência nacional e pela sua própria liberdade. Essas discussões são atravessadas por questões sobre identidade, nação e gênero, que, numa perspectiva do feminismo, implicam na compreensão de que as lutas de todos os oprimidos não estão desconectadas entre si. Não é possível, portando, uma educação para a diversidade que seja seletiva, isto é, que não considere a intersecção entre os diversos segmentos sociais que lutam por igualdade de direitos. A luta das mulheres tem que ser também a luta contra o racismo, contra todo tipo de preconceito de gênero e contra toda forma de colonização da nação ou de ideias. Para encerrar: o papel do professor No início dessa conversa, levantei duas questões para nortear a reflexão aqui desenvolvida. A primeira foi: “por que literatura na formação de professores, especialmente daqueles que, na escola, quase nunca são responsabilizados pela área de 135 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras linguagens?”. Essa questão surgiu pelo fato de ser alunos da disciplina “Literaturas africanas em língua portuguesa” alunos não apenas de Letras, mas também de História, Geografia e Pedagogia. A segunda: “o que as literaturas africanas de expressão portuguesa podem ensinar, em termo de educação para a diversidade? ” A primeira questão nos levou ao reconhecimento da importância da literatura, especialmente, da literatura africana e afro-brasileira, na formação docente de qualquer área, pelo que elas promovem na ampliação da visão de mundo dos leitores. Os professores formados como leitores de literatura, incluindo a leitura de obras de matriz africana, têm ao seu dispor um material rico para desenvolver uma prática que contemple a diversidade. Os textos literários africanos e afrodescendentes de língua portuguesa fornecem elementos para a discussão de diversos conceitos ou temas. Neste texto, exploramos dois: nação e gênero; ou, mais especificamente, nação e mulher. Evidentemente, até pelos limites textuais, a abordagem foi apenas uma demonstração de como a leitura dessas literaturas podem contribuir para a discussão sobre temas tão relevantes para a educação. Certamente, para que o estudo dessas literaturas cumpra a função de contribuir para a prática docente, é preciso conhecer as obras que os escritores, homens e mulheres africanos ou afrodescendentes, têm produzido. Também, é claro que é necessário um planejamento em que as aulas sejam amparadas em bom referencial teórico que permita ao professor estar continuamente também estudando e aprendendo, pois, de acordo com Cyana Leahy-Dios, 136 Ana Santana Souza À frente de turmas caracterizadas pela diversidade, professores frequentemente se acham munidos apenas de métodos acríticos dirigidos a uma clientela homogênea e irreal. Entender essa inadequação é o primeiro passo para práticas mais coerentes e avaliações mais sensíveis de si próprios e de seus alunos. A vontade de buscar e utilizar ferramentas que permitam realizações literárias e pedagógicas abrangem perspectivas culturais e sociopolíticas variadas para mediar questões de poder ideológico (LEAHY-DIOS, 2004, p. 230). A consciência de que a diversidade não é algo fora da escola, mas inerente à própria configuração da sala de aula, permitirá ao professor, no trabalho com o texto literário africano ou afro-brasileiro, ir além do mero conhecimento de obras e autores. Essa consciência é o ponto de partida para se perceber, junto aos alunos, que todos se constituem como sujeitos em relação ao outro que é diverso. Mas não é possível perceber isso apenas pela boa vontade e intuição, é preciso perspectivas culturais e sociopolíticas variadas, o que se constrói, obviamente, com muita leitura e estudo, isto é, com formação continuada permanente. Ciente disso, o Ministério da Educação, como dissemos no início, tem investido (e esperamos que assim continue fazendo) na qualificação profissional docente. Esse é um passo importante para que a educação brasileira fique mais perto de cumprir seu ideal, isso é certo. 137 Educação para a diversidade: explorando os conceitos de nação e de mulher, por meio de literaturas africanas e afro-brasileiras Referências BAMISILE, Sunday Adetunji. A procura de uma ideologia a f ro - cênt r ica: do feminismo ao af ro-feminismo. São Paulo: Via atlântica, n. 24, p. 257-279, DEZ/2013. Disponível em: <file:///C:/Users/ana_santana/ Downloads/58303-175408-2PB%20(2).pdf.> Acesso em: 17 jan. 2016. BRASIL. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: [s.n.], 2003. ______. Ministério da Educação. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.328, de 23 de setembro de 2011. Institui a Rede Nacional de Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública. 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Claro estava que essa palavra remetia a um passado marcado pela violência da escravidão, gerando, como reação lógica, a fuga de cativos para regiões ermas, distantes da vista de seus senhores. A fuga e o isolamento geográfico demonstrariam, então, a oposição dos quilombos ao sistema e, portanto, uma tentativa de subvertê-lo. Nessa narrativa, encontramos um personagem arquetípico, vivendo igualmente a distância, no passado: Zumbi, o chefe dos negros fugidos, o emblema da África no Brasil. Personagem que poderia figurar como aqueles das fábulas, no esquema indefinido do “era uma vez”, Zumbi torna-se o quilombola-modelo, heroicizado ou não, signo dos movimentos sociais ou nome lembrado nos livros didáticos; transforma-se em folclore que carrega a beleza da morte e do apaziguamento 1 Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil histórico,tal como escreveu Michel de Certeau (2001. p. 55-85), a propósito das práticas culturais2. Certamente, nem todos enxergaram beleza no morto, em verdade, alguns expressaram, de forma menos encoberta, o medo em relação ao defunto. Nos idos de 1905, o médico e professor Raymundo Nina Rodrigues, por exemplo, defendia o caráter brutal e ameaçador desses agrupamentos, classificando Palmares como evidência do retorno dos negros fugidos à selvageria encontrada nos régulos bantos. A civilização estaria ameaçada e os portugueses, vistos como injustiçados por uma má reputação injustificável, figuram como heróis responsáveis por livrar o Brasil de ver-se transformado em novo Haiti (NINA RODRIGUES, 1935). O quilombo é, nesse caso, entendido como experiência do passado, não apenas escravocrata, mas como evidência da desigualdade temporal entre selvagens (em retorno às suas origens africanas) e civilizados (ameaçados pelos anacrônicos elementos que se reuniam no quilombo). Antes de Nina Rodrigues, estudiosos como Oliveira Martins e Rocha Pita atribuíram ao quilombo outros marcadores do passado, dessa vez, a partir de suas referências sobre história antiga, de modo a transformar Palmares em “Troia negra” ou em “república”. Classificado como ação de retorno à selvageria, visto como experiência comparável à antiguidade clássica, ou, ainda, pertencendo à história do herói folclórico Zumbi, o quilombo quase sempre figurou como sinônimo de experiência pretérita, finalizada com a abolição. A recente revisão e ampliação desse conceito redesenhou essa relação temporal, a partir de noções como resistência, memória e pertença. 2 CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: _____. A cultura no plural. São Paulo: Papirus, 2001. p. 55-85. 143 Joelma Tito da Silva O entendimento do quilombo como aquilo que “já não é” talvez tenha facilitado, de algum modo, a aprovação, em 1988,do Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que trata da garantia da posse da terra aos chamados “remanescentes de quilombos”. Curiosamente, no documento Constitucional, não há referências aos espaços camponeses denominados, naquela década, comunidades negras rurais. Tais territórios estavam espalhados por todas as regiões do Brasil, comportando diferentes histórias de resistência no passado e no presente. A necessidade de aplicação da lei e, portanto, da garantia de direitos a populações invisibilizadas implicou no esforço de reinvenção do conceito de “quilombo”, de modo a romper com a ideia de resistência baseada, exclusivamente, na fuga e no isolamento geográfico, abarcando diferentes e antigas formas de resistência (herança, posse, compra etc.) relacionadas à vida presente de diversas comunidades, distribuídas pelo território brasileiro. Busca-se, então, religar o quilombo, portanto, ao presente, não como emblema de uma luta que retira do passado seus símbolos, mas em relação à memória, às lutas, às relações familiares e históricas dos chamados “remanescentes” com o território. Neste texto, analisaremos, brevemente, as implicações da revisão do conceito de quilombo, ocorrida nos anos 2000, e observaremos as situações concretas que envolvem essa questão na comunidade rural Negros do Riacho, localizada no município de Currais Novos, certificada em 2006, pela Fundação Cultural Palmares (FCP). 144 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil As palavras têm vida: o quilombo como espaço de resistência De forma ampla, a ressignificação antropológica e jurídica do conceito de quilombo, ocorrida nos anos 2000, com a finalidade de garantir direitos a diferentes comunidades rurais e urbanas afro-descentes, relaciona-se, diretamente, às lutas promovidas pelos movimentos sociais e pelos próprios sujeitos envolvidos. Não foi uma dádiva das instituições, mas o resultado de embates, nos quais Arruti (1997, p. 7) afirmou que “novos sujeitos de interesse entram em cena [...] em função da criação de novas figuras legais [...]” baseadas no texto constitucional e com implicação na edição do Decreto nº 4.887/2003, responsável por definir os procedimentos necessários à titulação dos territórios em que vivem os remanescentes de quilombos. A necessidade de desfazer estereótipos sobre o modelo usual de quilombo, implicou, portanto, em um intenso jogo com a linguagem na redefinição de sentidos e na demarcação de fronteiras conceituais. Assim, estudiosos, antropólogos, em sua maioria, assumiram como ponto nevrálgico dos seus trabalhos historicizar o conceito, demonstrando os limites impostos pelas definições clássicas sobre quilombos, forjadas desde o século XVIII. Ampliava-se, dessa forma, o entendimento sobre os vários caminhos encontrados por populações escravizadas, por populações libertas e por seus descendentes em busca de autonomia. A chamada história social da escravidão, desde o final dos anos 1980, oferecia uma gama de interpretações e estudos que ajudavam a balizar historicamente as discussões suscitadas nesse contexto, ao repensar as diferentes formas de resistência escrava, tais como a manutenção de vínculos familiares, as relações de comunidades de negros fugidos com sujeitos diversos etc. 145 Joelma Tito da Silva Neoquilombos, quilombos contemporâneos ou remanescentes de quilombos são expressões nascidas da luta de comunidades negras rurais e urbanas, cujos direitos fundamentais foram historicamente negados. São termos construídos a partir da noção de ausência histórica de direitos e da assimetria das relações raciais no Brasil. Os debates jurídicos, políticos e acadêmicos, travados sobre a questão dos remanescentes, depois do dispositivo lançado na Carta Magna de 1988, assumem tom de reparação, no qual o Estado deve estar presente na defesa dos direitos das comunidades negras e garantir a aplicação das prerrogativas constitucionais. Grande parte das iniciativas de identificação e de demarcação de terras de quilombo surge das demandas das comunidades que, ameaçadas pela expropriação agressiva de seu território, acionam os dispositivos legais para a manutenção de uma posse sempre reafirmada e legitimada pelo costume. A aprovação e a aplicação do ADCT n.68 foram (e estão sendo) construídas a partir de embates entre os interesses das comunidades negras e os dos que anseiam por manter incólume a estrutura agrária no Brasil, impondo limites à abrangência da lei, de modo a reduzir o número de terras tituladas em favor dessas comunidades. O processo de elaboração do texto constitucional foi articulado em um âmbito político marcado pelo descontentamento do chamado “centrão” – composto por representantes dos fazendeiros no legislativo – e pela participação intensa de parlamentares envolvidos nos movimentos sociais, de intelectuais – em sua maioria, cientistas sociais e advogados – e do movimento negro organizado3. 3 SILVA, Dimas Salustiano da. Apontamentos para compreender a origem e propostas de regulamentação do artigo 68 no ato das 146 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil Conforme sugere Ilka Boaventura Leite, foi nesse contexto que as questões acerca das terras de preto ou das comunidades negras tornaram-se um “fato político”, produzindo um novo sujeito capaz de pleitear para si o reconhecimento legal do direito à terra e de ocupar um lugar como categoria jurídica que lhe possibilita a ação efetiva, com base nos dispositivos constitucionais. No trato com as comunidades negras, os “remanescentes de quilombos” constituem um conceito inteiramente novo, expressamente descrito no texto constitucional. Essas sobrasdo passado, restos de uma história marcada pela resistência a situações completamente adversas, existem, efetivamente, no território nacional? Ora, a utilização do termo “remanescente”, em vez de “descendente”, visa delimitar uma permanência residual no tempo das comunidades de “quilombo”. Richard Price compara a recente experiência do Brasil, nesse campo, às situações que caracterizam outras partes da América e conclui que, apesar de existirem diversas formações quilombolas durante o período de vigência do sistema escravista, não há, no Brasil contemporâneo, comunidades quilombolas – com evidente continuidade histórica das comunidades rebeldes do tempo da escravidão e com profunda consciência histórica e organização política semi-independente – que florescem em outras partes da disposições constitucionais transitórias de 1988. In: BOLETIM INFORMATIVO DO NUER (Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétinicas) Regulamentação de Terras de Negros no Brasil. v. 1, n. 1. Florianópolis, 1996. p. 12-23. 147 Joelma Tito da Silva América [...], como na Colômbia, Jamaica, Haiti ou Guiana (PRICE, 2000, p. 248). O argumento de que havia poucos casos (ou nenhum) de comunidades herdeiras diretas de antigos quilombos, formados até 1888, influiu na aprovação e na inclusão do dispositivo transitório na Carta Magna. Isto é, o “centrão” previa que não haveria alterações significativas na estrutura fundiária, o que faria com que o artigo se tornasse inaplicável. Isso porque estariam excluídas da categoria “quilombo” as muitas comunidades que construíram os seus espaços de sobrevivência, depois de extinta a escravidão, por meio da posse em terras devolutas ou de santos, ou por meio de doações recebidas de antigos senhores, a partir da permanência de ex-cativos em fazendas decadentes (CARRIL, 2006, p. 52). Experiências diversas de formações negras que, no correr dos anos, se mostraram significativas. Em 2005, o Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília identificou 2.228 comunidades negras em todo o Brasil (ALMEIDA, 2005, p. 5). Diante da dificuldade semântica, quanto ao conteúdo especificado pelo dispositivo constitucional que objetiva orientar teoricamente a aplicação da legislação de acordo com a pluralidade das comunidades negras, a ABA (Associação Brasileira de Antropologia) publicou uma redefinição do termo quilombola, em encontro realizado no Rio de Janeiro, em outubro de 1994. O termo “quilombo” renovou-se e ampliou-se para contemplar os diversos territórios negros no Brasil, “[...] é utilizado para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico” (MILTON, 1997, p. 47). Isto é, quilombo se reporta a um sentimento, uma identidade étnica e 148 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil territorial atrelada a laços de parentesco, a ancestralidade e a formas de uso coletivo da terra. Segundo a ABA, Constitui em grupos étnicos, conceitualmente definidos pela antropologia como tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar filiação ou exclusão [...]. Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos, num determinado lugar (ABA, 1994 apud ANDRADE, 1999, p. 1). Considerando a diversidade das formas de ocupação das terras de pretos, para além da experiência da fuga, “quilombo” passa a significar todas as formas de resistência, tácita ou aberta, velada ou violenta, ao escravismo e à condição de cativos e de libertos que construíram espaços de sobrevivência, mesmo depois de finda a escravidão. As comunidades negras começam a negociar e a dialogar com esse novo conceito (muitas vezes, não apenas o conceito é novo, mas também o é a inserção da palavra no interior dos agrupamentos), vinculando a busca pela posse definitiva da terra ao elemento étnico. Nesse sentido, tornou-se possível incluir, na categoria “quilombola”, as comunidades formadas depois de 1888. A abrangência, no sentido do termo, recria o conceito “quilombo”, de modo a dotá-lo de um novo significado, capaz de aproximar o dispositivo constitucional das situações concretas 149 Joelma Tito da Silva experimentadas por comunidades negras em diversos espaços do país. A palavra está viva e se reconstrói a partir das necessidades sociais que nela estão entranhadas. De olho no tempo, é possível encontrar os diversos sentidos que definiram, historicamente, o termo “quilombo”: entre os séculos XVIII e XIX, representava uma artimanha perigosa e criminosa de escravos fugidos; nos anos de 1930, emergiu como bandeira de luta para Frente Negra por Ilka Boaventura Leite (2002) e, nas últimas décadas do século XX, tornou-se estandarte da resistência afro-brasileira para o movimento negro organizado. No contexto de aplicação do dispositivo constitucional, o conceito se ampliou e, além de contemplar o espaço campesino, se estende às comunidades urbanas e de terreiros. A reivindicação do reconhecimento legal dos espaços citadinos formados por maioria de negros como “quilombolas”, pressupõe uma identidade territorial comum, construída a partir da diferença entre os bairros negros e os outros no tecido da cidade4. Portanto, a identificação dos quilombos vincula-se à 4 A ampliação do conceito de quilombo para o âmbito urbano pode ser verificada nos trabalhos sobre o tema, premiados pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2006. Entre as publicações, há duas pesquisas sobre comunidades urbanas em Porto Alegre, uma sobre a família Silva, feita por Ana Paula Comim, e outra sobre a Avenida Luiz Guaranha, em Porto Alegre, que passa a ser definido como quilombo do Areal, trabalho de Olavo Ramalho Marques. (PRÊMIO DA ABA. Territórios Quilombolas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário e Rural, 2006). Lourdes Carril publicou um estudo sobre a construção da periferia da cidade de São Paulo, especificamente o Capão Redondo, como espaço negro, oposto às áreas nobres da cidade. A autora identifica na estética dos rappers a 150 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil territorialidade e à etnicidade. Isto é, aos sentidos e aos usos dos espaços e lugares habitados majoritariamente por negros. Do ponto de vista jurídico e antropológico, o tipo de ocupação efetuada por essas comunidades é oposto ao modelo de apropriação privada, constituindo-se “núcleos de resistência contemporânea”, nos quais a utilização do espaço é coletiva5. Diante de um contexto favorável ao amplo reconhecimento formal de comunidades negras como quilombolas (ainda que parte significativa das terras de pretos não tenha recebido o título coletivo e definitivo da terra), Richard Price observa que os estudos sobre a historicidade desses espaços devem evitar simplificações grosseiras e estereotipadas que busquem impor às comunidades modelos historicamente infundados. Segundo Price, comunidades que, no Brasil, são consideradas quilombos jamais teriam a mesma designação em países como o Haiti, o Suriname, a Jamaica ou a Colômbia, nos quais a questão quilombola assumiu um caráter de resistência diferenciado. Nesses territórios, foram firmados acordos entre os quilombos e as autoridades coloniais, durante os séculos XVI e XVII, a partir expressão do espaço periférico simbolizado pelo quilombo, um território de negros marcado pela exclusão. 5 SILVA, Dimas Salustiano da. Apontamentos para compreender a origem e propostas de regulamentação do artigo 68 no ato das disposições constitucionais transitórias de 1988. In: BOLETIM INFORMATIVO DO NUER (Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétinicas) Regulamentação de Terras de Negros no Brasil. Florianópolis, v. 1, n. 1. 1996. p. 12-23. 151 Joelma Tito da Silva dos quais demarcaram-se, oficialmente, “áreas de liberdade” a populações negras. O contexto brasileiro é outro e o autor ressalta tal diferença. Apesar de os estudos produzidos no Brasil apresentarem, como ponto forte, a participação em uma pauta jurídica de luta pela terra, o autor aponta a necessidade da elaboração de etnografias mais densas e “texturizadas”. Price reconhece o papel do Artigo 68 na redistribuição de terras e a função desempenhada por antropólogos e historiadores na criação de neoquilombo (PRICE, 2000, p. 243-265). O interesse das comunidades e os contextos acadêmico, jurídico e político são propícios à ampliação do número de espaços reconhecidos como quilombolas, ainda que seja reduzido o número de terras coletivamente tituladas em favor dessas comunidades. No rastro das ações que transformam a questão dos territórios negros em fato político, seguem as articulações governamentais que passam a considerar a existência de tais grupos e a necessidade de identificá-los. No plano político e jurídico, as possíveis incongruências históricas apresentadas em laudos, além da “sofisticação” do conceito como uma deturpação do texto constitucional, são argumentos constantes das forças contrárias ao amplo processo de demarcação das terras para comunidades negras. Esses grupos, compostos por grandes proprietários de terras, consideram o critério de autoatribuição insuficiente e ressaltam a fragilidade das informações oferecidas nos laudos. Isto é, questionam as provas étnico-jurídicas que não se fundamentam em documentações de época. Nesse caso, sozinhas, as narrativas orais da memória não congregariam elementos satisfatórios para se constituírem em provas jurídicas válidas. Certamente que, para as comunidades, a memória dos ancestrais, a lembrança dos 152 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil mais velhos, a história de vida e a tradição oral são suportes de reafirmação de uma identidade étnica e territorial. A efetividade da lei e os quilombolas do Rio Grande do Norte De ideia a-histórica e folclórica, quilombo torna-se um conceito presente, com efeito jurídico e aparato teórico, possibilitando uma política de reparação da memória e garantindo direitos, como o acesso à terra e a criação de políticas públicas voltadas para esses grupos. Vale salientar, porém, que os embates na política da linguagem sofrem revezes e, de alguma forma, a noção modelar de quilombo, baseada em Palmares, ronda o imaginário social. Por isso, no limiar do medo e da folclorização, podemos encontrar algumas incoerências na aplicação de políticas públicas voltadas para tais comunidades. Isso, obviamente, não implica em desconsiderar a importância de um entendimento amplo do conceito de quilombo para tais comunidades, mas, em perceber as barreiras enfrentadas para que a nova conceituação antropológica, jurídica e política se efetive. Os dados sobre as titulações de terras de comunidades quilombolas são sintomáticos desse limite. Até o ano de 2015, a Fundação Cultural Palmares havia reconhecido mais de 2000 comunidades6 como remanescente de quilombos. Bem menor foi o número de comunidades (158) que receberam o 6 Os dados sobre todas as comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, entre os anos de 2004 e 2015, estão disponíveis no site: <http://www.palmares.gov.br/?page_id=88>. Acesso em: 9 nov. 2015. 153 Joelma Tito da Silva título definitivo de terras, emitido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária7. O estudo antropológico que serve de perícia nem sempre tem sido suficiente para a confirmação da propriedade coletiva da terra, ou não tem implicado na celeridade do processo, pois a efetividade do direito dos chamados remanescentes encontra dificuldades em realizar-se diante dos interesses de outros grupos que, em geral, entendem a terra como mercadoria, e da burocracia do Estado. No contexto do Rio Grande do Norte, tais limites também podem ser verificados, pois apenas a comunidade Jatobá, em Patu, recebeu o título coletivo da terra. Um resultado ínfimo no reconhecimento de direitos, em comparação com as 15 comunidades consideradas, oficialmente, como quilombolas pela FCP. Esse quadro parece ainda mais grave no universo de 64 comunidades identificadas pelo Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica da Universidade de Brasília8. No município de Currais Novos, há duas comunidades rurais negras: uma no Riacho dos Angicos e outra nas Queimadas. Esta última é conhecida na região como “negros do Totoró”, ocupa, há mais de um século, terras herdadas dos antigos. Atualmente, ela é formada por 12 famílias e não possui certificado de reconhecimento da FCP (QUEIROZ, 2002). Em Serra de Santana, há duas comunidades: em Cerro Corá vivem os Negros do Boinho e em Lagoa Nova está localizada a comunidade da Macambira, composta por cerca de 1200 pessoas, cujas terras estão em processo avançado de titulação 7 Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/terras/asp/terras_tabela. aspx >. Acesso em: 9 nov. 2015 8 RIO GRANDE DO NORTE. Projeto Dignidade, Negros do Riacho. Natal: Governo do Estado do Rio Grande do Norte, 2006. p. 7. 154 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil pelo INCRA (PEREIRA, 2007), tendo sido alvo de processo de expropriação promovido por uma empresa de energia eólica em 2014. A reintegração de posse para os quilombolas foi garantida na Justiça Federal, embora a situação expresse as fragilidades dessas comunidades em relação às demandas de outros grupos de interesses. Quadro 1 - Comunidades Negras Rurais na Micro-Região do Seridó e Serra de Santana. Fonte: ASSUNÇÂO, Luiz Carvalho. Quilombos: Comunidades Remanescentes, RN. Rev. Galante, Natal: Fundação Hélio Galvão, n. 17, v. 3, p. 6, Nov. /2006. O reduzido número de terras tituladas e de processos para a demarcação dos territórios pode ser atribuído à burocracia do Estado, mas também resulta das características da estrutura 155 Joelma Tito da Silva agrária do país, marcada pela dificuldade de acesso formal à terra por parte de pequenos camponeses. Por isso, são inúmeros e constantes os problemas, no sentido de definir os caminhos mais adequados para orientar o processo de reconhecimento, de demarcação e de titulação das terras dos “remanescentes”. Em 2001, o Governo Federal lançou o Decreto nº 3.912, atribuindo a FCP o monopólio sobre as atividades de identificação e reconhecimento da posse territorial das comunidades (FUNES, 2001, p. 25) e determinando, em seu Artigo 1º, Incisos I e II, que somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que [...] eram ocupadas por quilombos em 1888; e que estavam ocupadas por remanescentes de quilombos em 5 de outubro de 1989 (FUNES, 2001, p. 22). O decreto desconsidera a ampliação do termo quilombo e, provavelmente, reduz o campo de atuação das comunidades negras formadas depois de 1888 e daquelas que perderam partes de suas terras antes de 1989, por diversas formas de expropriação. O princípio de autodefinição foi incluído no Decreto 4.887, de 2003, que define comunidades remanescentes como grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2001, p. 40). 156 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil Além dessas mudanças, o decreto confere ao INCRA a competência de demarcar e titular áreas reconhecidas. Quanto à FCP, esta permanece com a responsabilidade de certificar as comunidades e desenvolver políticas de apoio estrutural aos grupos formalmente reconhecidos. São sinuosos os caminhos que levam a uma orientação mais eficaz para a aplicação do Artigo 68. Por conta disso, grande parte dos territórios negros permanecem sem titulação. Um quilombo no Riacho A produção de uma memória acerca do passado e a legitimação histórica do sentimento de pertença vinculado à terra, com base em laços de parentesco, garante à comunidade do Riacho o reconhecimento oficial como quilombola pelos critérios de autoatribuição, presentes no Decreto nº 4.887, de 2003. Na tessitura histórica de identidades entre os habitantes do Riacho, a palavra “quilombola” constitui uma terminologia recente que, nos dizeres da líder Tereza Filha, aparece como “Pirambola” quando, ao seu lado, alguém citou o termo. Essa alteração da palavra presente na fala de Tereza acena para a emergência de uma nova identificação, ainda precária, entre os moradores do Riacho. Nesse contexto, os moradores – especialmente as lideranças que negociam diretamente para a entrada de novas políticas dentro da comunidade e participam de encontros com outras comunidades – passam a repensar a própria história a partir dessa nova categoria. Não para inventar uma tradição inteiramente nova ou criar histórias sobre a ancestralidade da ocupação, mas para reinventar antigas histórias que, anteriormente, 157 Joelma Tito da Silva deveriam ser esquecidas. Em outras palavras, o termo “quilombo”, recente na comunidade, legitima, a partir de uma nova categoria, o sentimento de pertença a um território no qual vivem há mais de um século (HOBSAWM, 1997). No entanto, há resistências entre os moradores do Riacho em aderir à identificação “quilombola”. Ora, do ponto de vista legal, devem ser reconhecidas e tituladas as comunidades formadas a partir de uma ancestralidade negra. No Riacho, a terra é um legado dos negros velhos, como Trajano, Miguel e outros, um espaço de uso coletivo em que todos são herdeiros em comum. O termo “negro” sempre esteve vinculado ao direito da posse do espaço e, ao mesmo tempo, às diversas formas de preconceito vividas pelos membros da comunidade. Quilombo pressupõe a legitimação de uma identidade negra e esse aspecto gera desconforto entre os moradores do Riacho. As lideranças se apropriam da nova situação com maior afinco, visto que elas representam as comunidades, estão em contato constante com outros grupos, participam dos debates sobre a questão quilombola e reivindicam, junto aos órgãos públicos, a resolução de problemas. A ideia de quilombo pressupõe uma ancestralidade negra que não está marcada apenas na cor da pele, mas entranhada na história dos grupos. Reconhecer-se dentro dessa categoria significa ressaltar laços com a escravidão, sempre negados por tais comunidades como forma de defesa. Isto é, considerar-se quilombola implica em ressignificar as maneiras de conceber o “ser” negro e repensar a própria identidade sempre, construída como o oposto do “ser” branco. Assim, os grupos precisam refazer-se a partir de uma identificação continuamente estigmatizada. Além disso, em grande medida, tais comunidades são compostas por uma população miscigenada entre índios 158 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil (correntemente chamados de caboclos) e negros. Os habitantes dessas comunidades podem oscilar entre uma ou outra identidade como forma de autodefesa. No caso dos moradores do Riacho, os dissensos familiares assumiram um vocabulário étnico que dividiram os negros e os misturados (descendentes de negros e caboclos). Para os sujeitos miscigenados, havia a possibilidade de manifestar uma ou outra identificação étnica. Sempre que se coloca em questão a posse da terra, ressalta-se a herança deixada pelos negros velhos. No entanto, a marca negra que revela o direito de uso e posse do território expressa, igualmente, uma herança de escravos, elemento que deve ser esquecido ou suplantado, pois agrega estereótipos diversos, tem no seu íntimo um apelo pejorativo. Enfim, um passado em cujos escombros jamais foi possível construir uma história prestigiosa, digna de ser lembrada e recontada entre gerações. Essa recusa não é comum apenas ao Riacho e pode ser verificada em outras comunidades, como Macambira, no município de Lagoa Nova. Ali, os moradores relatam suas memórias sobre a fundação a partir chegada de Lázaro às terras que hoje pertencem à família, omitindo qualquer referência à condição de escravo do ancestral que, depois de forro, adquiriu, mediante compra, um patrimônio em terras na Serra de Santana. Para os narradores, Lázaro seria um negro rico, que comprou muitas terras e gerou uma prole extensa, com treze filhos, semeando os troncos velhos da comunidade (PEREIRA, 2007). A negação da identificação imediata com a escravidão ocorre, porque a servidão traz consigo ideias negativas. Essas comunidades, descentes de cativos ou de libertos, foram historicamente alvos diletos de assertivas preconceituosas em relação à cor e às suas práticas. Assim, “ser” negro significava, 159 Joelma Tito da Silva indubitavelmente, expor a própria inferioridade pela diferença. Em outras partes do Brasil, pode-se perceber esse tipo de relação diante da identificação “negro” ou “preto”. Em pesquisa sobre os negros do Abacatal, no Pará, Edna de Castro e Rosa A. Marin verificam que, na comunidade, há resistência frente às designações “negro” e “preto”. Essa recusa produz divisões internas baseadas em diferenciações étnicas, visto que algumas famílias se negam a utilizar tais denominações por estarem associadas à indigna condição da escravidão. Há famílias que se distinguem das outras por constituírem núcleos de “negros”. Assim, ocorre em Abacatal divisões familiares semelhantes àquelas verificadas no Riacho, que dividiram “negros” e “caboclos”. Essas segmentações expressam formas internas de organizar o parentesco e definem quem deve ser considerado herdeiro ou não da terra. A textura rugosa dessas relações tensas e, muitas vezes, divididas não impede a construção da ideia de grupo e a legitimidade de um sentimento de pertença alicerçada em histórias de vida em comum. Se, no Riacho, ela atinge os tempos de D. Pedro II e a chegada do negro Trajano Passarinho, em Abacatal todos se consideram herdeiros da escrava Olímpia, do Conde Coma de Mello e de suas três filhas mulatas, cujas histórias remontam ao século XVIII. (MARIN, 2004, p. 37-49). José Maurício Arruti define essa dificuldade em falar sobre a escravidão, presente em grande parte das comunidades negras, como o resultado de um ethos do silêncio. Essas famílias aprenderam a silenciar sobre si mesmas. As lembranças dolorosas do cativeiro foram ficando para trás, feneceram com a morte dos mais velhos. No presente, a recusa dos conhecedores de antigas histórias impediu que as gerações seguintes tomassem conhecimento de muitos aspectos da vida de seus antecedentes. (ARRUTI, 2006). 160 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil Nesse caso, o esquecimento ocorre pela recusa de lembrar e de ritualizar o indesejado, para não perenizar a dor. Certamente que, para os antigos, não havia motivos para trazer à memória cenas de um passado de servidão9. Assim, o resultado da recusa dos velhos em falar sobre a escravidão foi a construção de narrativas sucintas sobre o tema, ou, ainda, o fim de qualquer referência a ele. Esses indivíduos teriam se organizado de modo a não precisar falar de si, a não relatar experiências escravas para protegerem-se, bloqueando as vias mnemônicas que conduzem ao cativeiro. A nova conjuntura, posta para a maioria das comunidades negras a partir da promulgação da Constituição de 1988, inverte juridicamente essa lógica. A possibilidade de terem suas terras tituladas a partir do reconhecimento como remanescentes de quilombos passa a provocar as memórias sobre as formas de exploração sofridas por tais famílias, antes e depois da escravidão. Recordar o passado escravo e as situações que envolvem o negro passa a ser importante como elemento de comprovação científico-jurídica de que a demanda pela terra quilombola procede. Curiosamente, em entrevistas realizadas entre 2005 e 2008, os moradores do Riacho afirmavam peremptoriamente a oposição entre ser chamado de negro (negativo) e ser quilombola (identidade redentora). Certamente, esse quadro relaciona-se aos “processos constitutivos da amnésia generalizada referente ao ‘tempo do cativeiro’” (CAVIGNAC, 2013, p. 113). Parece paradoxal uma afirmação que propõe opor “negro” a “quilombola”. No entanto, vale ressaltar que, quando 9 Para o Movimento Negro, ocorre o inverso, lembrar e ressaltar a escravidão é uma forma de legitimar a ação contra o preconceito. Geralmente o quilombo dos Palmares aparece como bandeira de luta. 161 Joelma Tito da Silva se reportam a “negros”, os “de dentro” reportam-se a um conjunto de ideias formuladas sobre si desde tempos imemoriais. Para os “de fora”, o termo “negro do Riacho” associa-se ao incesto, ao alcoolismo, ao não-trabalho, à fome, à desorganização social e sexual, a um não-dever-ser que se contrapõe ao ideal branco-rico. Esse “outro” é construído como portador de hábitos suspeitos, pouco recomendáveis e atávicos (QUEIROZ, 2002). Tais adjetivações podem ser comparadas às impressões deixadas pelo racismo científico do século XIX, cujos estudos propunham que negros, índios e mestiços possuíam traços biológicos e culturais de degenerescência e eram dados, por natureza, ao alcoolismo, ao crime e as perversões sexuais. Os escravos africanos eram bárbaros; os nativos, verdadeiros selvagens infantis; e os mestiços representavam misturas atrozes, potencialmente perigosas (RODRIGUES, 1939). Historicamente, negros e índios estiveram muito próximos, nas margens, se miscigenaram. A ideia de que o negro e o mestiço são elementos perigosos, embriagados, ociosos, elabora um anti-herói, o outro desregrado, infantil e ameaçador. Essas concepções, comuns nos estudos antropológicos e jurídicos do século XIX, parece reproduzidas, em parte, pelas falas dos “de fora” sobre os negros do Riacho. O olhar de fora não constrói apenas o “outro”. Os moradores do Riacho não são alheios aos estereótipos que lhes são imputados. Em resumo, lidam com uma situação desfavorável para fazer valer seus interesses, negociam com o contexto para atingir, pelo menos parcialmente, os seus objetivos. O legado negro da terra singulariza aquela posse, assim como o uso coletivo do espaço, em que a agricultura é ocasional e a criação de animais, como porcos e galinhas, rareia. Um lugar de moradia 162 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil construído historicamente como terra de negro, que se distingue das outras propriedades na região do Bonsucesso, por ser marcada pelo dado étnico. Uma relação de fricção que, para Barth, demarca o contraste entre o “outro” e o “nós” (BARTH, 2000). Essas diferenças não criam um limite intransponível entre os grupos étnicos, isolando-os. Elas revelam uma fronteira historicamente tecida, que “no es una barrera, sino um paso, ya que señala, al mismotiempo, la presencia del outro y lapossibilidad de reunirseconél” (AUGÊ, 2007, p. 21). Há, entre os moradores do Riacho, um ranço guardado e subjetivado em relação à maneira pejorativa como sempre foram vistos. Nesse contexto, o quilombo pode figurar-se como instrumento de afirmação política do sujeito, com a possibilidade de reivindicar direitos. Vale salientar, entretanto, que o reconhecimento como quilombo não trouxe consigo o paraíso, a vitória final para essas comunidades depois da morte do preconceito, ou o fim das várias formas de exploração que as atingiram por décadas ou séculos. Esse movimento esteve, sem embargo, associado às políticas afirmativas orientadas pelo Governo Federal e executadas nas esferas do Estado e do Município. As características assumidas por essas ações e a maneira como foram administradas ao Riacho exerceram influência sobre a especificidade da apropriação (ou não) que seus moradores fazem do termo “quilombola”. No processo de inserção intensiva de ações governamentais no Riacho, as configurações políticas locais operaram alterações práticas (não necessariamente retóricas) nas diretrizes dos projetos desenvolvidos pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Programa Brasil Quilombola (PBQ). Nessa relação, estão em pauta os interesses dos governos locais (isto é, sua forma de pensar e gerir 163 Joelma Tito da Silva projetos de políticas “afirmativas” como ações de assistência puramente material); o discurso dos órgãos nacionais fomentadores de projetos inspirados em demandas sociais surgidas nos vários espaços negros no Brasil; as perspectivas do movimento negro e campesino; o engajamento acadêmico na produção de um arcabouço teórico capaz de balizar com status de cientificidade a emergência de novos sujeitos (explicitamente na operação de ressemantização da palavra “quilombo”); bem como as demandas surgidas a partir de comunidades que se autopercebem como historicamente alijadas de direitos básicos, tais quais o acesso à cidadania e à terra. No caso do Riacho, o “quilombo” aparece atrelado, por um lado, a práxis de uma política local de caráter assistencialista e paternalista e, por outro, ao movimento negro instituído nas esferas do poder Estatal. Considerações finais Ao mesmo tempo em que o quilombo é coisa nova e o Riacho, experiência antiga, ambos remetem a um sentido do velho, daquilo que ficou para trás, das experiências dos antigos moradores na terra uterina. Espaço em que os troncos velhos nasceram e morreram, enterraram seus umbigos e alguns mortos. O quilombo, como uma nova realidade, possui sentido, tão somente, nas referências aos tempos passados, mesmo quando estas são vagas e refazem a história de um negro cujos passos, ao certo, quase ninguém conhece, ou falam de um tempo em que os negros eram “muito apanhado por esse povo rico, esse povo branco, assim, branco num gostava de nego nesse tempo pra trás” (EUCLIDES, 2008). 164 Notas sobre remanescentes de quilombos no Brasil Permanece a referência ao tempo antigo, pertencente aos avós e bisavós que chegaram há “mais de cem anos” naquelas terras e à identificação de relações entre diferentes grupos, definindo os lugares de brancos e de negros. O quilombo aparece como uma nova versão de antigas histórias que sempre se remetem à noção de família e de terra de negros, um momento para os moradores do Riacho que passam a reinventar sua história, refazê-la, repensá-la. São essas e outras mudanças que podem ocorrer no passar das “eras”, no tempo que segue e não finda. 165 Joelma Tito da Silva Referências ABA. Apud ANDRADE, Lúcia, TRECCANI, Girolano. Terras de Quilombo. 1999, (Mimeo). ALMEIDA, Alfredo Wagner Bernode. Os Quilombolas. Revista Orçamento e Política Socioambiental. Brasília/DF: Instituto de Estudos Socioeconômicos. ano 4, n. 13, p. 5, jun. de 2005. ARRUTI, José Maurício Andion. A emergência dos “remanescentes”: notas para o diálogo entre indígenas e quilombolas. Mana. Rio de janeiro, v. 3, n. 2, p. 7-38, 1997. _____. Mocambo: Antropologia e História do Processo de Formação Quilombola. Bauru/SP: EDUSC, 2006. ASSUNÇÂO, Luiz Carvalho. Quilombos – Comunidades Remanescentes – RN. Rev. 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(Áudio, mp3). 168 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica João de Castro Maia Veiga Figueiredo Algebra is that unique occasion In which a school can say that there should be a balanced equation (RILEY, 2012). Western man is a wolf of science (SERRES, 1979, p. 276). No dia 1 de março de 2016 a Universidade de Coimbra completou 726 anos de existência, sendo a efeméride celebrada com várias iniciativas, dentre as quais o evento “Há Festa no Colégio de Jesus”1. O programa da comemoração prometia “um dia cheio de actividades”, “ciência ao vivo”, “visitas aos espaços”, um “momento musical”, e a apresentação “ao público” do “objecto mais recente” do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra: “um ídolo do Congo, oferecido em 2015 por José Sobral”. Um termo “carregado como “ídolo”, irrompe assim, no texto de divulgação da “Festa”, de forma 1 Toda a informação sobre o evento foi retirada do sítio do Museu da Ciência, sendo completada pelas notas de campo do autor. “Há Festa no Colégio de Jesus” disponível em: <http://www.museudaciencia.pt/ index.php?module=events&option=&action=&id=628>. Acesso em: 24 abr. 2016. “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica casual e descontextualizada, causando surpresa, tendo em conta a natureza “ligeira” do evento social anunciado. A cerimónia de apresentação desta peça teve lugar à hora marcada, no átrio que separa duas das alas da extensão do Museu da Ciência no Colégio de Jesus – a consagrada à colecção de Zoologia, e a que alberga o espólio do gabinete de Física. Colocado em cima de um pedestal minimalista e sob uma protecção de vidro, encontrava-se o objecto oferecido ao Museu, acompanhado por uma placa que referia apenas: “ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”. A cerimónia foi simples, e não muito longa. Pouco mais de uma dezena de pessoas compareceu. A Directora do Museu da Ciência expôs formalmente a peça, referindo-a pelo seu “nome” em português, e apresentou dois técnicos que haviam já trabalhado na sua conservação e identificação. A ligação do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra com o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque foi de seguida evocada, enquanto forma de realçar a importância da “família de peças” na qual este novo objecto havia sido enquadrado pelos funcionários do Museu da Ciência. Este vínculo, consubstanciado no empréstimo de peças bakongo ao Museu norte-americano, foi realçado pela Directora, que afirmou entendê-lo não só como fonte de prestígio, mas de conhecimento técnico “especializado”. Seguiramse breves interlocuções por parte dos peritos2, e a palavra foi 2 Alguns termos “técnicos” em kikongo, como “takula” e “mangaaka”, foram referidos, sendo brevemente contextualizados, o primeiro enquanto referindo um dos pigmentos utilizados no objecto (de cor vermelha), o segundo como sendo a designação do “tipo específico” do “ídolo” em causa. A menção do segundo termo provavelmente indica a inf luência do conhecimento técnico divulgado pelo Metropolitan Museum of Art. Segundo o sítio deste 170 João de Castro Maia Veiga Figueiredo finalmente passada à viúva do Engenheiro José Sobral, que narrou a história da peça desde a sua aquisição em Cabinda, no ano de 1974, até à sua doação à Universidade. Concluindo a cerimónia, os técnicos portugueses prometeram recorrer à ajuda de “especialistas” estrangeiros de forma a preencher as lacunas no seu conhecimento sobre o “ídolo do Congo”, que a Directora reafirmou haver sido escolhido para celebrar os 726 anos da Universidade apenas por ser o “objecto mais recente” do espólio do Museu. Do espanto inicial até um primeiro exercício “algébrico” O recurso ao termo “ídolo”, em 2016, é curioso, e evoca imediatamente as cenas de iconoclastia promovidas no antigo Reino do Kongo pelos missionários capuchinhos, nos distantes séculos XVI e XVII. Contudo, ainda mais excêntrica parece ser a sua utilização em conjunção com as duas outras expressões inscritas na placa de identificação do “objecto mais recente” do Museu da Ciência: “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”. Como sustentar a evidente assimetria entre as propostas interpretativas em língua inglesa e portuguesa? Como resolver a situação de tensão criada pelo recurso ao termo “ídolo”? museu, os nkisi n’kondimangaakasão um tipo de “power figures” que oferecem uma“personification of power”. Power Figure (Nkisi N’KondiMangaaka). Disponível em: <http://www.metmuseum. org/ toah/works-of-art/2008.30/>. Acesso em: 24 abr. 2016. 171 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica Frente a este problema, um primeiro impulso “algébrico” passa pela sugestão da mera substituição do termo português por qualquer outro, de carga semântica menos “carregada” e, portanto, não remetente para uma avaliação imediatamente pre-conceituosa da cultura bakongo. Assim, a sequência de termos escritos na etiqueta da peça poderia passar a ser, por exemplo: “Figura de poder, nkisinkondi, power figure”. Contudo, uma vez tornada a atenção para o efeito causado pela sucessão “ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure” não é mais possível aceitar esta solução de forma irreflectida. Atendendo à génese da nova proposta, que claramente implica uma simples actualização do termo português face ao inglês, torna-se claro que semelhante tratamento é negado ao termo em kikongo e que o conheci- mento lusófono é simplesmente subordinando à 172 João de Castro Maia Veiga Figueiredo autoridade final anglófona3. ‘Figura de poder’4 é o resultado de uma tradução maquinal, um acto heurístico de valor epistemológico nulo e, como tal, uma proposta fraca para substituir “ídolo do Congo”. De forma a começar a avançar com a resolução do delicado problema de “álgebra museológica” colocado pela etiqueta do “objecto mais recente” do Museu da Ciência é preciso, portanto, perceber algumas das implicações metafísicas da aceitação como legítimade, qualquer sucessão de expressões escolhidas para preencher os três espaços do seu rótulo. O desequilíbrio entre os três elementos da sequência, que, no caso de “ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure” nitidamente não são traduções literais ou maquinais uns dos 3 Mesmo não adoptando um termo que seja uma simples tradução do inglês, a crítica de que a expressão em kikongose mantém inalterada e inconsiderada é válida. A Sociedade de Geografia de Lisboa propõe o termo “Nkisi Nkondi (figura protectora)” para catalogar peças semelhantes ao objecto recebido pelo Museu da Ciência. Utilizando o termo “figura protectora” seria portanto possível criar a sequência “Figura protectora, nkisi nkondi, power figure”, em que o elemento português não é uma simples tradução a partir do inglês, sendo igualmente neutro em relação à cultura bakongo. Contudo, esta sequência não resolve o problema colocado pela manutenção acrítica do termo nkisi nkondi, e continua a conter um desfasamento entre os termos português e inglês, pois uma “Figura protectora” é “passiva”, e uma “power figure” “activa”. “Nkisi Nkondi (figura protectora)”. Disponível em: <http://www.socgeografialisboa.pt/en/wp/?p=544>. Acesso em: 24 abr. 2016. 4 Tendo em conta que o termo “mangaaka” foi referido pelos especialistas, “power figure” poderia ser igualmente traduzido para “figura do poder”. 173 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica outros5, pode ser graficamente exposto pela sua separação, não por vírgulas ou sinais de equivalência (↔), mas sim vectores 5 O termo kikongonkisi (pl. minkisi) é de difícil tradução para o português, não porque não exista uma expressão que facilmente reúna o consenso dos bakongo bilingues, mas porque esta têm conotações tão “carregadas” como o termo “ídolo”: nkisi é o “feitiço”, se não despido da sua aura de poder e “secularizado” enquanto folclore. O problema do recurso a este termo é que “feitiço” ganhou conotações colonialistas e mesmo racialistas (no sentido da crença no seu poder se haver tornado um índice de incapacidade mental), ao longo dos séculos XIX e XX. Contudo, recorrendo ao Vocabulario Portuguez & Latino (1712-1728) de Raphael Blueau é possível encontrar uma entrada para “feitiço” ainda relativamente livre destes preconceitos, que mostra continuidades entre o contexto português e o africano. Nkondi significa “caçador” e como tal nkisi nkondi poderia ser traduzido à letra para “caçador de feitiços” ou “feitiço caçador” – uma alusão ao papel que este tipo antropomórfico de nkisi tem nos rituais bakongo contra a feitiçaria anti-social (kindoki), ou de retribuição a todos aqueles que incorreram em comportamentos tidos como ameaçadores do bem comum (MACGAFFEY E HARRIS, 1993, p. 72). Um outro problema de traduzir nkisi para “feitiço” prende-se portanto com a herança colonialista de utilizar o termo português “feitiço” tanto para referir os tipos neutros ou benéficos de objectos com poderes sobrenaturais (os minkisi) (COOKSEY, POYNOR E VANHEE, 2013, p. 202-203), como as práticas e objectos negativamente avaliados pela moral bakongo (por exemplo o kindoki). Assim se explica o aparente paradoxo do nkisi nkodipoder ser apresentado como um “feitiço anti feitiçaria” – tradução para o português da expressão em kikongo com um relativamente elevado grau de adequação. BLUTEAU, R. “Feitiço”, in Vocabulario Portuguez & Latino (1712-1728). Disponível em: <http:// 174 João de Castro Maia Veiga Figueiredo (→) ou (←), que determinam a ordem relativa pela qual as expressões podem ser ordenadas ao longo de um dado eixo. Vários destes eixos são possíveis e resultam da representação linear de uma dinâmica entre dois pólos, que se entende “normalmente” seguir o sentido em que as expressões são lidas (esquerda → direita). Esta dinâmica é investida de significado, podendo ter conotações positivas ou negativas. Tendo como exemplo um eixo “temporal” e a “corrente” transitiva que se estabelece entre o pólo “passado” e o pólo “futuro” (passado → futuro), pode afirmar-se que uma sequência de termos alinhados entre estes pólos, e lidos da esquerda para a direita, significa uma “evolução”, que pode ser positiva ou negativamente avaliada, de acordo com a adequação entre a ordem de leitura e a posição “conceptual” relativa entre os termos, tendo os pólos “passado” e “futuro” como limites. Assim sendo, se a ordem com que se lêem os termos da etiqueta (esquerda → direita) coincide com a sucessão das referências ao “passado” e ao “futuro”, de uma forma que ecoa o fluxo entendido como “normal” entre “passado” e “futuro” (passado→ futuro), a sequência é tida como significando uma “evolução normal”: (termo referente ao passado → termo referente ao futuro). Graças a esta associação, uma série de propriedades são “emprestadas” aos termos, pois a sua ordenação passa a ter implicações nos domínios da causalidade, precedência, e todos os outros associados a uma hierarquização de base “temporal”. Se, de contrário, o “termo referente ao futuro” surge na placa de identificação do objecto à “esquerda”, a sequência pode dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/feiti%C3%A7o>. Acesso em: 24 abr. 2016. 175 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica ser apercebida como significando uma “regressão”, “degeneração” ou “evolução anormal”. De qualquer das formas, a hegemonização de uma ordenação linear significa, desde logo, a aceitação da existência de um telos privilegiado, unindo ambos os pólos – de sentido preferencial e prenhe de significado, mesmo quando interrompido. Começando por considerar como os termos empregues na legenda do “objecto mais recente” do Museu da Ciência, coincidem com um eixo “temporal” cujos pólos ordenem os períodos aos quais remetem as expressões escolhidas, depressa se chega à conclusão que a etiqueta original pode ser substituída por: (ídolo do Congo / passado → nkisinkondi/ presente → power figure/ futuro). Por outras palavras, o termo em português “ídolo”, na primeira posição, remete para um património colonial problemático e, definitivamente, parte do “passado”, enquanto que o termo em kikongo “nkisi nkondi”, na segunda posição, alude ao “presente etnográfico” no qual as monografias antropológicas são escritas e a expressão inglesa “power figure” na terceira posição, reveste-se de autoridade e precisão técnica, tornando-se, assim, um signo inequívoco do “futuro”. Na sua sequência, os três termos significam uma “evolução normal”6, sendo, portanto, a etiqueta no seu todo um índice 6 Tendo este aspecto em conta, torna-se ainda mais claro porque substituir “ídolo do Congo” por ‘Figura de poder’ não é uma solução ideal. A sequência passaria a ser (figura de poder / futuro → nkisi nkondi/ presente ← power figure / futuro). Por outras palavras, apesar da nova opção permitir a aproximação ‘temporal’ entre o termo português e o inglês, a expressão em kikongo continuaria remetendo para um problemático ‘presente etnográfico’, contribuindo assim a sequência não para promover a emancipação dos bakongo, mas sim a sua 176 João de Castro Maia Veiga Figueiredo do “progresso” – precisamente o “processo” que se celebrava ritualmente no evento “Há Festa no Colégio de Jesus”. Contudo, “progresso” de que grupo humano, à custa de quem, em que direcção, e mediado por que especialistas? O eixo “temporal” não é o único que ordena os elementos da etiqueta do “objecto mais recente” do Museu da Ciência. Tendo em conta os universos semânticos de que são extraídas cada uma das expressões elencadas, é possível perceber que, ainda que de forma vicária, está também em curso uma hierarquização disciplinar, segundo um eixo em que ao pólo da “esquerda” equivale o “menor rigor epistemológico” e ao da “direita” o “maior”. Assim, (ídolo do Congo → nkisinkondi → power figure) corresponde, igualmente, à sequência (teologia ou história colonial → etnografia ou antropologia → estética ou história da arte). Por outras palavras, o primeiro termo denota não só uma ligação com o “passado”, como com epistemologias “ultrapassadas” – quer a dos missionários ou a dos teólogos, quer a dos historiadores de África “pré-científicos” do período colonial. O segundo situa-se, por sua vez, na charneira entre estes saberes “difusos” e as disciplinas da antropologia ou etnografia. De facto, se “nkisi nkondi” surge nos relatos dos autores que também empregam o termo “ídolo”, como os missionários ou exploradores de finais do século XIX e inícios do XX, esta designação é, precisamente, o tipo de informação que as novas disciplinas científicas do século XX respigam e excisam subalternização enquanto povo que não se encontra na “vanguarda da História”, ou que se encontra “encerrado” numa temporalidade cíclica e portanto excluído da “evolução” civilizacional tida como normal” no Ocidente (CATROGA, 1999, p. 198-201). 177 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica destas fontes. O termo “powerfigure” remete, por sua vez, ao vocabulário especializado dos museus de arte, de entre os quais se destaca o já referido Metropolitan Museum of Art7. Uma mais profunda reforma algébrica da equação (ídolo do Congo → nkisinkondi → power figure) passaria, portanto, pela escolha de termos referentes a um mesmo “tempo”, mas igualmente a uma mesma área semântica ou disciplinar, de forma a substituir mais inequivocamente vectores (→) ou (←) por (↔). Por outras palavras, escolher um termo actual, mas “popular” ou de um saber considerado “ultrapassado” para representar o “vértice” português ou kikongo da equação, e um “especializado” ou “técnico” para preencher a lacuna destinada à tradução inglesa equivale a mais uma vez dispor de forma cladística os elementos. Esta ordenação acaba obviamente por se traduzir numa classificação hierárquica entre os povos metonimicamente representados pelas expressões oriundas das suas línguas (portugueses, bakongo, ingleses/americanos), que podem assim ser reificados não como civilizacional e temporalmente coevos, mas, sim, ordenáveis, de acordo com as categorias “retrógrados”, “estagnados” ou “avançados”. O que isto significa, é que, ao adoptar (ídolo do Congo → nkisinkondi → power figure) o Museu da Ciência da Universidade de Coimbra aceita uma variação da sequência (portugueses retrógrados → bakongo estagnados → ingleses/americanos avançados). O preconceito inconsciente segundo o qual tal ordenamento entre os povos é “natural” está de tal forma arreigado, que uma inversão desta sequência dificilmente ocorreria inintencionalmente, 7 Power Figure (Nkisi N’KondiMangaaka). Disponível em: <http://www. metmuseum.org/toah/works-of-art/2008.30/>, acesso em: 24 abr. 2016. 178 João de Castro Maia Veiga Figueiredo sendo muito pouco provável a existência de um objecto etiquetado (Figura de poder ← nkisi nkondi ← Congoleseidol). Será possível resolver de uma forma ética o problema levantado pela necessidade de etiquetar o “objecto mais recente” do espólio do Museu da Ciência, mantendo o recurso a três termos, respectivamente, em português, kikongo e inglês8? Pode este gesto ter em conta não só os interesses da generalidade dos portugueses, como igualmente 8 É obviamente questionável a opção de manter uma etiqueta trilingue, bem como esta selecção específica de línguas. Não sendo explícitas as razões que levaram à escolha deste esquema, é possível especular que a inclusão na etiqueta de uma expressão em português se reveste de um carácter quase obrigatório, tendo em conta a função educativa do Museu da Ciência (um museu público português), sendo a inclusão dos termos em kikongo e inglês de natureza opcional. Neste contexto, a utilização do termo kikongo parece ser um mecanismo de legitimação e autenticação do objecto em exibição, enquanto que o recurso ao inglês uma forma de lhe consagrar uma “aura” de cosmopolitismo. Interpretações diferentes das motivações por detrás da adopção deste modelo tripartido de etiqueta são obviamente possíveis. É no entanto interessante manter esta estrutura ao longo do presente capítulo, de forma a evitar soluções puramente formalistas aos problemas que vão sendo enunciados, como as que passam por propor a redução da etiqueta a um só termo (ou a sua eliminação). No cenário de um termo único ser escolhido, poderia ser dada credibilidade à noção de que apenas esse significa ‘correctamente’ o objecto exposto – opção problemática a vários níveis –, sendo que para qualquer número mais elevado de escolhas as reflexões enunciadas no presente texto são válidas. A opção de não nomear directamente o objecto, ou eliminar a legenda tout court, ditaria o uso continuado de paráfrases oblíquas como “objecto mais recente do Museu da 179 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica o dos bakongo, descendentes dos produtores da peça? Será uma “álgebra” dos vários termos, que proporcione como resultado final um conjunto de três expressões em equilíbrio estável, a solução mais desejável? Antes de ensaiar uma resposta a estas questões, é interessante ter em conta um evento que ecoa a celebração de 1 de março de 2016, e que ajuda a compreender melhor que tipo de “progresso” foi celebrado graças à escolha do termo “ídolo” por parte dos responsáveis do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Ecos de equações passadas Em 1985 o Museu de Etnologia do Instituto de Investigação Científica Tropical, em Lisboa, dá ao prelo Escultura Africana em Portugal (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Esta obra colectiva resulta de uma exposição organizada pela instituição, à data dirigida por A. Lima de Carvalho. Escultura Africana em Portugal conta com um longo texto introdutório de Ernesto Veiga de Oliveira, e brevetes sobre cada uma das tradições escultóricas representadas da autoria de Marie-Louise Bastin. Esta distribuição de encargos é interessante. Os dois homens portugueses ligados a Escultura Africana em Portugal assumem-se enquanto o “vínculo” com a “História”, o director do Museu como “figura tutelar distante a quem apenas cabe esboçar uma breve nota introdutória, Ernesto de Oliveira, Ciência”, sendo uma solução inviável a longo termo, e não mais do que uma fuga à responsabilidade científica e social do museu. 180 João de Castro Maia Veiga Figueiredo enquanto sua “voz”9 (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Marie- Louise Bastin adota não só o papel de etnógrafa, recorrendo ao “presente etnográfico” e mobilizando a sua maior proximidade com as culturas abordadas, como de “especialista estrangeira” – ou seja, “espécime” de uma sociedade cientificamente mais “evoluída” do que a portuguesa. Este duplo vínculo permite a Marie-Louise Bastin não só veicular informação “objectiva” (e objectificante) sobre as sociedades africanas que vai abordando como legítima e garante a sua epistemologia, centro-europeia e, portanto, entendida em Portugal como de maior “rigor”. Na introdução de título “Arte Africana em Portugal”, Ernesto de Oliveira esboça de forma impressionista uma história do contacto dos portugueses com os povos do continente africano, mobilizando a Cronica do Descobrimento e Conquista da Guiné (1453) de Gomes Eanes de Azurara (c. 1410-1474) enquanto mero abono da sua antiguidade e, imediatamente, saltando para 1875, ano em que se cria “em Paris o ‘Museum d’Histoire Naturelle, do Trocadero” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). A partir desta referência, Ernesto de Oliveira elenca uma série de eventos culturais transpirenaicos, desde a estreia em Paris da peça “A Vénus Negra”, à “moda das ‘plantationsongs’” e à generalização do “gosto pelos cantos dos Negros-escravos da América”, passando pelos trabalhos dos “Expressionistas alemães” e dos “pintores do grupo Fauvista – Derain, Matisse e depois Picasso e os Cubistas”, até à Negerplastik (1915) de Carl Einstein (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Regressando ao contexto português após este périplo erudito, Ernesto de Oliveira não só reafirma a Europa 9 Ernesto de Oliveira era etnógrafo, e não historiador. Assume contudo este papel, ao esboçar a introdução de Escultura Africana em Portugal (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). 181 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica transpirenaica como a fonte de conhecimento estético e científico “avançado” sobre o “Outro” africano – valorizando assim grandemente a contribuição de Marie-Louise Bastin – como a ligação de Portugal com a “História”. A “primeira geração” de artistas modernistas de Portugal, “descobridor e sob múltiplos aspectos desbravador de terras africanas, asiáticas e americanas”, vivendo todos êles em Paris na época que precede ou se segue imediatamente à guerra de 1914, terão tido conhecimento do que se passava em relação à “arte negra”, de que os seus camaradas franceses, que tanto a apreciavam, seguramente lhes falariam… (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Se em a “Arte Africana em Portugal” a cultura portuguesa se equaciona com o “passado” e a da Europa transpirenaica com o “futuro”, as “culturas tradicionais dos grupos africanos” são por Ernesto de Oliveira fixadas no “presente etnográfico” dos “etnólogos”, até que os “estetas” centro-europeus exerçam a sua influência salvífica (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Uma vez alienadas do seu contexto original e resgatadas dos “atávicos” museus portugueses, as produções materiais das culturas africanas em “extinção progressiva” poderiam então regressar à sua geografia natal, servindo enquanto “afirmação primordial” da “unidade nacional” dos povos africanos: Hoje, ao mesmo tempo que se assiste à extinção progressiva das culturas tradicionais dos grupos africanos, a sua arte tornou-se, para eles próprios, não um valor estético em si, mas sobretudo uma afirmação primordial do seu génio original, da sua unidade nacional, e da sua identidade cultural. Se portanto é exacto que a escultura africana foi de entrada considerada apenas na sua realidade etnográfica, aliás mal identificada, […] ela só atingiu o seu mais alto sentido 182 João de Castro Maia Veiga Figueiredo quando foi encarada na sua especificidade como criação artística autonoma, independentemente dessa sua natureza funcional extrínseca; e por isso, a chamada de atenção para os seu valores deve-se aos estetas e não aos etnólogos. Como nota Michel Leiris […] “se a verdade é que se esquematizaria excessivamente imputando a descoberta da “arte negra” aos artistas que no começo do nosso século fôram os promotores de um prodigioso renovo, o certo é que foi com eles que a produção escultórica da África negra adquire as suas cartas de nobreza” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). De acordo com este esquema, apenas a ação do “esteta” transpirenaico é capaz de elevar peças “brutas” ao Elísio da “Arte”. Depois desta mediação (objecto africano → esteta centro-europeu → “Arte”; símbolo), as culturas africanas, nas quais os objectos tiveram origem, apresentadas como “tradicionais” e em “extinção progressiva”, podem receber de novo as suas produções, agora não mais um mero agregado plástico de materiais, mas sim um “símbolo” da “sua unidade nacional” e “identidade cultural” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Neste esquema evolucionista, os “especialistas” europeus são apresentados como mediadores de outra transição que é tida como implacável, porque orgânica e, portanto, sujeita às leis biológicas da “seleção natural”: a entre as sociedades “tradicionais” estudadas pelos etnólogos e as novas “nações” pós-coloniais. Significativamente, o “regresso” das peças africanas a África é, na esmagadora maioria das vezes, apenas “simbólico”, uma vez que, ainda nos nossos dias, estas são estudadas, desenhadas, fotografadas ou digitalizadas e é apenas o “fruto” deste labor medianeiro entre a esfera material e intelectual que é “repatriado”. 183 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica Que mais podem os africanos querer, se o “melhor” das peças é este seu “espírito simbólico”, que apenas os estetas e demais especialistas centro-europeus são capazes de destilar? Em a “Arte Africana em Portugal”, a incapacidade de transformar objectos materiais em “símbolos” estende-se, também, ao comum dos portugueses, o que explica porque, apesar de Ernesto de Oliveira dedicar várias páginas aos museus portugueses que albergavam “obras de artifício dos naturais” do continente africano, é a ligação dos “pintores da nossa primeira geração dos modernistas” aos seus “camaradas franceses” que é escolhida como marco do início da apreciação da “arte negra” em Portugal (que o autor fixa em c. 1930): A despeito contudo do seu pioneirismo no que respeita a contactos com povos e civilizações “diferentes” e “primitivas” e à curiosidade e ao conhecimento de formas de viver desses povos, e até à museografia etnográfica, e apesar de nos seus museus existirem de há muito, como vimos, peças que agora reputamos de grande qualidade, a Portugal só nos anos trinta é que chegaram os primeiros ecos desse movimento de interesse pela “arte negra” nascido na França e Alemanha nos princípios do século, e que certos artistas se debruçam com gosto e compreensão sobre a escultura africana (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Como prova da não existência de uma leitura estéticavernácula portuguesa das peças africanas, pelo menos prévia às “revoluções” artísticas centro-europeias das primeiras décadas do século XX, Ernesto de Oliveira avança com o elencar da profusão de termos que eram utilizados para designar as “realizações” escultóricas africanas que: até aí [à primeira geração modernista] […] [eram] invariavelmente designadas pelos termos de “manipanços”, “machacazes”, “macatrepos”, ou, nas melhores hipóteses, “ídolos” 184 João de Castro Maia Veiga Figueiredo e “fetiches”, indistintamente, com uma marcada conotação pejorativa, significando objectos grotescos e disformes, toscos, risiveis e desprezíveis (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). O exemplo que Ernesto de Oliveira escolhe mobilizar para ilustrar esta sua afirmação é significativo: Em 1897, um jornalista, exprimindo o pensar comum do seu público, escrevia, a propósito dos Mussorongos de Angola: “Como todos os negros incultos, são crentes fervorosos em feitiços. Os idolos são umas grosseiras e grotescas esculturas de madeira enfeitadas de contas e plumas […] a profusão dos enfeites representa a abundância de milagres que o machacaz tem feito, e o que tiver mais pregos cravados no corpo já se sabe que é manipanço reles que faz ouvidos de mercador e não dá milagres” Trata-se naturalmente dos soberbos “ídolos de pregos” do Congo (BASTIN; OLIVEIRA, 1985)10. Nas páginas remanescentes d’“Arte Africana em Portugal” Ernesto de Oliveira dedica-se a estabelecer o escultor Diogo de Macedo (1889-1859) enquanto o primeiro “avatar” português do “artista qua mediador” entre os objectos africanos e a “Arte”, adotando como marco a publicação da sua obra A Arte Indígena Portuguesa (BASTIN; OLIVEIRA, 1985; MACEDO; MONTALVOR, 1934). Significativamente, a “Arte Africana em Portugal” é traduzida nas páginas de Escultura Africana em Portugal para o francês, pelo seu autor, sofrendo os brevetes de Marie-Louise Bastin um processo simétrico (neste caso a tradução ficando a cargo de António Enes Ramos). Em “L’Art Africainen Portugal”, 10 O autor retira esta citação de (VASCONCELOS, 1980, p. 92-93). 185 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica Ernesto de Oliveira opta por traduzir “‘ídolos de pregos’ do Congo” por “fetiches à clousdu Congo” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985), deixando cair não só as aspas, como substituindo “ídolos” por “fetiches”. Tornando a atenção para o brevete “Congo/Kongo”, é possível perceber que Marie-Louise Bastin recorre, por sua vez, aos termos “statues à clous, appelées[nkisi]n’kondi” que afirma serem uma forma de “magieblanche” – termos que António Ramos traduz para “estátuas com pregos, chamadas [nkisi]n’kondi” e “magia branca” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Tendo em conta o contributo da ‘especialista estrangeira’, bem como a escolha que fez aquando da tradução do seu texto para o francês (“fetiches”), a opção de Ernesto de Oliveira recorrer ao termo “‘ídolos de pregos’ do Congo” para definir o objecto em causa é significativa. Porque não adoptar a escolha de Bastin ou a tradução de António Ramos (“statues à clous” / “estátuas com pregos” ou “[nkisi]n’kondi”)? Alinhando as várias propostas, torna-se claro que Ernesto de Oliveira situa a sua obra a ‘jusante’ de uma corrente intelectual portuguesa (manipanso / um “jornalista” [1897] → arte negra / Diogo de Macedo [1934] → “ídolos de pregos” do Congo / Ernesto de Oliveira [1985]), em que cada um dos elos depende de uma ligação específica com o “estrangeiro”. Por outras palavras, cada um dos portugueses que escolhe o elemento alinhado nesta sequência medeia entre um mesmo tipo de objecto africano e o contexto Europeu transpirenaico – o “mundo platónico das ideias”, da ligação com o qual decorre, em última instância, a autoridade e legitimidade de cada um dos mediadores. Se o “jornalista” que utilizou o termo “manipanço” peca por um suposto “provincianismo” ao se revelar alheio aos acontecimentos que decorriam em Paris, e se o artista Diogo de Macedo é celebrado como importador para Portugal 186 João de Castro Maia Veiga Figueiredo dos desenvolvimentos da “Arte” Europeia, Ernesto de Oliveira apresenta-se como a superação de ambos, devido à sua relação de proximidade profissional com Marie-Louise Bastin, a grande especialista da arte e da civilização Quiocas […] [que] fez, no Museu de Etnologia, […] sobre a arte africana […] o primeiro curso qualificado e de nível universitário que se realizou em Portugal [1985] (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Tendo esta dinâmica em conta, a opção de Ernesto de Oliveira surge como lógica, uma vez que, apesar de, no seu texto, ele fustigar o “atraso” português, a sua própria autoridade depende de existir, em Portugal, uma “dessincronização” face ao “estrangeiro” transpirenaico, pois de outra forma seria supérfluo o seu papel de mediador (ou o “curso universitário” de Bastin). Assim sendo, Ernesto de Oliveira adopta o termo “‘ídolo de pregos’ do Congo”, apenas porque a sequência (“ídolo de pregos” do Congo/ Oliveira → [nkisi]n’kondi / Bastin → statues à clous / Bastin) funciona como garante da sua posição. Ao possibilitar a dinâmica desta sequência escolhendo um primeiro termo “popular” e remetente ao “passado”, Ernesto de Oliveira posiciona-se como agente da introdução no contexto português de uma apreciação estética (“statues”) mediada pela etnografia (“[nkisi]n’kondi”) sobre o património histórico material inerte “salvaguardado” nos museus (“ídolo”). Caso os termos escolhidos fossem à partida equivalentes, quer quanto à sua relação com um “tempo”, quer com uma disciplina, a sua relação seria circular (↔), denotando uma paridade entre os povos metonimicamente referidos em cada um dos elos (portugueses, africanos, europeus transpirenaicos) que estancaria a “corrente” de “elevação civilizacional” (→) por via da educação, da qual Ernesto de Oliveira pretende ser agente. 187 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica A reformulação (estátuas com pregos ↔ [nkisi]n’kondi ↔ statues à clous) equaliza todos os elementos da série no “presente etnográfico” do discurso de Marie-Louise Bastin, ao mesmo tempo que os situa a todos no campo lexical da estética11 (o que torna a ordem dos termos irrelevante, formando estes assim uma sequência para todos os efeitos circular). Ernesto de Oliveira aceita esta equalização como uma realidade “transpirenaica”, com a qual sucessivas gerações de portugueses devem aprender e que lhe cabe a ele retransmitir – mas apenas enquanto esta não for a norma hegemonicamente aceite em Portugal. Por outras palavras, a posição privilegiada de Ernesto de Oliveira depende de que grasse em Portugal um consenso “retrogrado” quanto aos “soberbos ídolos”. O autor pode assim, ao mesmo tempo, fustigar os seus compatriotas menos cosmopolitas, e acenar-lhes com o Elísio “futuro” do mundo da “Arte” centro-europeia. Outra acção é permitida pela postulação do “enxertar” tardio em Portugal de um pensamento “válido” sobre os objectos africanos assente num claro “corte” epistemológico (teologia, história natural, museologia, etnografia… → estética transpirenaica). Ao reificar este “corte” ou “purificação epistemológica”, Ernesto de Oliveira não só cria uma tabula rasa a ser facilmente preenchida pelos “especialistas”, como se livra de uma série de termos problemáticos por fazerem alusão a um “passado” partilhado entre portugueses e os povos africanos cujas culturas estatuárias se encontram sob análise. “Manipanços”, “machacazes”, “macatrepos”, “ídolos”, “fetiches”, “feitiços”: todos estes 11 Uma vez que o termo nkisi nkondi não só remete para a etnografia, como foi progressivamente adoptado enquanto etiqueta ‘neutra’ pelos estetas europeus (CASANOVAS; GASPAR, 2005, p. 282). 188 João de Castro Maia Veiga Figueiredo termos são marcados como prévios ao “corte”, e, portanto, o estudo da sua “história” é descontinuado enquanto supérfluo. Tal como o “jornalista” que vaticinava que o objecto que “tiver mais pregos cravados no corpo já se sabe que é manipanço reles que faz ouvidos de mercador e não dá milagres”, Ernesto de Oliveira entende que o objecto que tiver muitas denominações não é digno ainda de ser alvo de contemplação estética, havendo que ser submetido a um processo “modernizante” de “purificação” (LATOUR, 1993, p. 10-12). Esta manobra resulta no esquecimento de séculos de hibridização e de produção cultural conjunta entre africanos negros e os portugueses (em África, Portugal metropolitano e no Brasil), que assim se “purificam” duplamente ao aceitarem como natural e “evolutiva” a equação (“ídolo de pregos” do Congo → [nkisi]n’kondi → statues à clous). Ao pugnarem por que esta sequência se torne hegemónica, as elites portuguesas aceitam a sua própria subalternização face às estrangeiras, mas fazem-no mediante a contrapartida de “branquearem” um passado “crioulo”, e de continuarem a ser as mediadoras privilegiadas entre “especialistas” estrangeiros e o “público” português. Estes são os contornos do “progresso” celebrado a 1 de março de 2016, através da apresentação ritual do objecto intitulado (ídolo do Congo → nkisinkondi → power figure). Regresso ao “presente”: escapando da prisão de uma “álgebra” perfeita Os paralelos entre a sequência (“ídolo de pregos” do Congo → [nkisi]n’kondi → statues à clous) (1985) e a (ídolo do Congo → nkisinkondi → power figure) (2016) são claros, comprovando que, para além 189 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica da alteração do centro “estrangeiro” tido como de referência, que da Europa e do mundo francófono (Paris) se desloca para os Estados Unidos e o mundo anglófono (Nova Iorque), pouco se altera na cosmologia que serve de base à actividade ritual que teve lugar no Museu de Etnologia e no Museu da Ciência. Esta analogia não só proporciona uma possível explicação para a mobilização do termo “ídolo” em 2016, como ajuda a pensar se uma “álgebra” perfeita entre os três termos da etiqueta do “objecto mais recente” do espólio do Museu da Ciência é exequível, ou eticamente defensável. Como fica demonstrado, tendo em conta o exemplo de Escultura Africana em Portugal, uma equalização entre os termos da sequência pode não conduzir a um resultado emancipador, mas à reificação da noção de que certas culturas existem “trancadas” no “presente etnográfico”, cabendo apenas aos antropólogos ou etnógrafos decifrar ou escolher os melhores termos para significar os elementos materiais retirados destas sociedades em existência “estática” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Uma discussão quanto ao termo a utilizar para preencher o espaço da sequência reservado à língua bakonga pode tornar-se, assim, uma mera disputa profissional entre diferentes intelectuais ligados à antropologia, etnografia ou museologia. Recorde-se a dimensão de polémica académica que subjaz à intervenção de Ernesto de Oliveira, que afirma que até ao evento de que resulta Escultura Africana em Portugal as peças haviam sido “na sua realidade etnográfica, aliás mal identificada[s]” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Esta é a armadilha menos óbvia da sequência (estátuas com pregos ↔ [nkisi] n’kondi ↔ statues à clous), que pode ser classificada como “antropológica” ou “etnográfica” e que explica a omnipresença em todas as permutações até agora analisadas de simples variações do termo kikongo “nkisi nkondi”. 190 João de Castro Maia Veiga Figueiredo A “armadilha antropológica” consiste na aceitação tácita de que, apesar dos termos em inglês, francês ou português serem disputáveis e poderem ser avançados a partir de uma série de pontos de vista disciplinares, a acção de um ou vários antropólogos é suficiente para “extrair” da cultura bakongo o termo “correcto”, “inequívoco” e “unívoco” para significar o objecto material em causa, decorrendo as variantes “[nkisi]n’kondi” ou “nkisi nkondi” de meras questões técnicas relativas à transliteração a partir do kikongo. Em caso de existirem propostas diferentes, é a filiação académica de cada um dos proponentes, todos eles invariavelmente com pergaminhos nas disciplinas de antropologia ou etnografia, que é tida em consideração na hora de optar por uma das hipóteses. Se não é entendido como desfasado o acto de pedir a um historiador da arte versado no idioma português uma opinião quanto ao termo português a incluir na sequência (estátuas com pregos ↔ [nkisi]n’kondi ↔ statues à clous), podendo igual solicitação ser feita a um antropólogo, artista, historiador ou mesmo jurista, a “armadilha antropológica” garante que apenas um antropólogo ou etnógrafo se pronuncie sobre o termo em kikongo. Esta limitação barra simetrias interessantes e impossibilita a aceitação de que, na sociedade metonimicamente representada pelo termo em kikongo, diferentes “processos” possam estar em curso, sem paralelo directo com os que decorrem nos universos a que os termos em inglês e português aludem. Quando Ernesto de Oliveira refere que os objectos em causa são agora tidos nos países africanos pós-coloniais como “uma afirmação primordial do seu génio original, da sua unidade nacional, e da sua identidade cultural” alude precisamente a um destes “processos” (BASTIN; OLIVEIRA, 1985). Não seria neste contexto interessante requisitar uma opinião, quanto ao 191 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica termo kikongo a escolher, a um político ou diplomata angolano – bakongo ou não – visto que o objecto em causa está no centro de um “processo” político12? A “armadilha antropológica” poderia ser evitada se generalizasse a consciência de que cada um dos termos denota um “processo” em curso, sendo impossível avançar com expressões antropologicamente “provadas” ou definitivamente “correctas”. Esta consciencialização pode ser promovida divulgando alguns dos resultados de uma recente reconsideração do papel que o método comparativo desempenha na epistemologia da disciplina. Conforme expõe Sally Falk Moore em Comparing Impossibilites, apesar de a antropologia se assumir como um saber comparativista, existe, com boa razão, uma enorme resistência em definir e consagrar um único método comparativo “antropológico” (MOORE, 2016, p. 31-32). O tema da comparação tem sido o alvo de um renovado interesse (ITEANU; MOYA, 2015), que se consubstanciou, em parte, numa chamada de atenção para a necessidade de uma “meta-comparação” ou comparação entre métodos comparativos, que não seja nem reducionista nem esteja preocupada com unificações disciplinares ou metodológicas (MOORE, 2016, p. 31-43). O objectivo de semelhante empresa intelectual passa, não pela consagração de uma abordagem definitiva, mas sim pela consciencialização de que, em diferentes sociedades, vários 12 Ou, seo “objecto mais recente” do Museu da Ciência pode ser entendido como uma “figuração do poder”, por ser um “nkisi nkondi” do tipo “magaaka”, porque não consultar um constitucionalista, ou qualquer outro jurista interessando na relação entre o “nível” de poder representado pelo objecto e o poder centralizado do Estado angolano, ou dos seus vizinhos do norte que albergam populações bakongo? 192 João de Castro Maia Veiga Figueiredo “processos” estão em curso, que podem ser entre si comparados através de métodos diferentes, com resultados variáveis em termos de adequação. Estes métodos comparativos podem, por sua vez, ser comparados entre si, tendo em conta não a sua estrutura concreta, mas esta adequação com o seu objecto, que é calibrada pelas considerações metafísicas prévias, cuja aceitação constitui o mínimo denominador comum entre os praticantes da disciplina de antropologia, a um nível global. Por outras palavras, aceitando como uma destas premissas a noção de que a existência de “diversidade” é um valor positivo, um método comparativo que analise dois “processos” decorrentes em diferentes sociedades é tão mais adequado quanto da sua aplicação resulte, não uma redução de um dos “processos” ao outro, mas sim um entendimento mais plural do tipo de “processo” em causa. Concretizando ainda mais este modelo de “meta-comparação”: a comparação entre o “processo” de modernização “A”, na “sociedade Ocidental X”, com o “processo” de modernização “B”, na “sociedade não-Ocidental Y”, apenas é adequada se desta resultar não uma subordinação do “processo B” ao “A”, mas um repensar do conceito de “processo” de modernização, que conduza a uma maior “diversidade” de significados deste. (MOORE, 2016, p. 31-43). Tendo em conta uma série de valores metafísicos prévios, cuja articulação consciente os “coloca na mesa” enquanto tópico de discussão e decisão colegial, é possível, portanto, chegar a um método de “meta-comparação”. Sendo este adoptado no caso concreto em estudo, proporciona-se a hipótese de criar um equilíbrio entre os termos da etiqueta do “objecto mais recente” do Museu da Ciência que não se torne numa “prisão”, pois o devir proporcionado por cada uma das expressões seleccionadas passa a ser tido em conta. 193 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica Da simples metáfora da “álgebra” passamos à do “cálculo”, o que implica passar da defesa instintiva de uma harmonização perfeita dos três termos da sequência “ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”, para uma tentativa reflectida de assegurar que cada um destes, por si só e em conjunto, contribui para o avanço de uma agenda assente em valores aceites como positivos (e que servem como uma espécie de “limite assimptótico” ao qual cada um dos “processos” alinhados, tende). Se um destes for a “tolerância”, depressa se chega à conclusão que o termo “ídolo do Congo” resulta de uma comparação inadequada, pois não promove este valor, dando azo a uma “meta-comparação” (entre os três termos do rótulo), igualmente inaceitável, pois é conducente à exclusão dos interlocutores lusófonos da comunidade “tolerante” internacional. Escolhendo, por sua vez, valorizar o princípio da “diversidade”, são “nkisi nkondi” e “power figure” que surgem como os termos mais problemáticos, porque se revestem de uma “aura” de autoridade final. Os melhores termos para promover certas comparações e “meta-comparações”, especialmente adequadas à promoção de valores metafísicos como a “diversidade” ou a “tolerância”, não são os mais adequados para fazer avançar as combinações de comparações progressivamente “exactas”, “precisas” ou “indiscutíveis”, tão caras aos especialistas ou mediadores do “progresso”1. Os valores escolhidos como prioritários por uma instituição pública como o Museu da Ciência devem, no entanto, ser abertamente discutidos e sujeitos a uma escolha 1 O que não é um paradoxo, pois são igualmente metafísicos os valores da ‘exactidão’, ‘precisão’ e ‘univocidade’, existindo entre todos estes e os da ‘diversidade’ ou ‘tolerância’ uma relação ontológica plana, o que os torna incomensuráveis de uma forma por vezes trágica. 194 João de Castro Maia Veiga Figueiredo tão democrática quanto possível, pois a “democracia” e o “diálogo” são princípios que a sociedade portuguesa escolheu adoptar. Cedências aos valores que possibilitam discursos científicos sobre as peças, como a “exactidão” e o “rigor”, devem, no entanto, ser feitas, não só porque o Museu da Ciência é uma instituição de ensino, como por estes serem desejáveis em si mesmos – excepto quando a sua persecução intemperada conduz a resultados claramente anti-sociais2. Por outro lado, devem ser acomodados os valores que permitem um relativismo cultural “saudável” entre os “processos” em curso nas diversas sociedades metonimicamente significadas por cada um dos termos da etiqueta. Assim, o termo empregue para ocupar o espaço em português deve resultar de uma comparação adequada, tendo em conta a hierarquia de valores exposta (democracia/diálogo → ciência → relativismo cultural), emergindo os outros de “processos” internos a cada uma das sociedades metonimicamente 2 Esta defesa da subordinação da ciência à política ou ao bem social decorre do contexto do caso em análise, pois o objecto cuja etiqueta vem sendo discutida pertence a um Museu da Ciência que é no entanto uma instituição pública de divulgação científica com um claro mandato educacional. Se o objecto fizesse parte de uma colecção albergada por uma instituição dedicada a servir de apoio à investigação científica, seria claramente legítimo defender uma inversão desta hierarquia. Por outro lado, se o objecto fosse parte do lote de uma leiloeira, seria justificável dentro de certos limites que considerações de mercado ditassem a subordinação de aspectos científicos e políticos à obtenção de lucro, mediante o recurso a termos mais “exóticos” ou sensacionalistas 195 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica representadas. As hierarquias de valores intrínsecas a cada uma destas podem não coincidir com a que deu origem ao primeiro termo, mas os termos que produzem devem ser seleccionados tendo em conta proporcionarem uma “meta-comparação” adequada, em relação a uma série de outros valores que é transcendente a cada uma das primeiras hierarquias (diversidade, tolerância, maior bem comum, etc.). A quem cabe articular, seleccionar ou priorizar os elementos deste segundo grupo de valores, subjacentes à avaliação da adequação da “meta-comparação”? Não é possível defender que o grupo de todos os interessados, quer nos objectos em causa, quer nos “processos” em comparação, tenha qualquer consistência ontológica ou capacidade real de articulação, sendo no entanto a este grupo abstracto que caberia idealmente a função de decidir colegialmente sobre esta hierarquia transcendente de valores. Consequentemente, o máximo que pode ser exigido de qualquer indivíduo confrontado com a tarefa espinhosa de etiquetar a peça em causa é que dedique uma parte do tempo que tem disponível a considerar a miríade de pontos de vista dos vários membros desta gigantesca e difusa mole de seres humanos. É justo reduzir esta incrível diversidade a um nível de homogeneidade mais rigoroso do que é estritamente necessário? Que consequências tem tal gesto classificador/simplificador? Em que medida são estas interferências irreversíveis? No fundo, questões desta ordem colocam-se a todos os que são forçados a trabalhar com temas verdadeiramente globais, como os relacionados com a defesa de ecossistemas planetários e as alterações climáticas. Desta consciencialização resultam duas conclusões. Primeiro, que certos valores e precauções metodológicas que regem a insípida, mas nascente reacção global aos problemas ambientais podem e devem servir de molde para 196 João de Castro Maia Veiga Figueiredo pensar outras questões complexas. Segundo, que o presente capítulo não é mais do que um fruto do momento histórico em que foi escrito, marcado pela hegemonia das abordagens ecossistémicas, nas quais reside a esperança de superar o impasse criado pelo culto do “progresso” modernista (LATOUR, 1993, p. 1-10/130-145), que conduziu tanto à actual situação catastrófica global, como possibilitou o rótulo “ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”. 197 “Ídolo do Congo, nkisi nkondi, power figure”: uma delicada álgebra museológica Referências BASTIN, M.; OLIVEIRA, E. V., Escultura Africana em Portugal. Lisboa: Instituto de Investigação Científica, Museu de Etnologia, 1985. CASANOVAS, A.; GASPAR, A. Orígenes. Madrid: Centro Cultural Conde Duque, 2005. CATROGA, F. A História Começou a Oriente. In: RODRIGUES, A. M. (Org.). O Orientalismo em Portugal (séculos XVI-XX). Porto: Edições Inapa, 1999. COOKSEY, S.; POYNOR R.; VANHEE, H. Kongo across the Waters. Gainsville: University Press of Florida, 2013. ITEANU, A.; MOYA, I. 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Etnografia Portuguesa, v. 7, Lisboa: Imprensa Nacional, 1980. 199 I’ve got 2 wings: uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/compositor britânico Elton John Elton John da Silva Farias Quando de minha participação na Sessão Coordenada 03, intitulada Literatura, Cinema e Negritude, dirigida em conjunto com a professora Maria das Dores Medeiros Rocha, no Seminário de Integração da Especialização em História e Cultura Africana e Afro-brasileira, evento realizado no Centro de Ensino Superior do Seridó da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na cidade de Caicó – RN, nos dias 04 e 05 de março de 2016, fui convidado por seus organizadores a contribuir com este livro na escrita de um capítulo que se encaixasse com a própria proposta temática do evento e do curso de Especialização mencionado. A grande questão que me ocorreu, na oportunidade, foi: “qual contribuição posso oferecer para este livro, já que meu principal objeto de pesquisa histórica gira em torno da obra do cantor/ compositor britânico Elton John?”. Sendo Elton John um musicista branco e europeu, a priori, não se espera que haja uma relação direta entre sua história de vida, sua produção musical e as questões étnico-raciais, culturais africanas e/ou afrodescendentes. Não parece devido que ele se torne mote para uma discussão que aborde e valorize a negritude e que narre histórias importantes de negros I’ve got 2 wings:uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John e/ou negras, enfatizando suas contribuições sócio-históricas. Sua vasta obra, no entanto, prova o contrário. Foi-me mais desafiador escolher uma única relação, entre as tantas possíveis, que se encaixasse no espaço aqui disponibilizado para o desenvolvimento do que seria mostrar e justificar que o cantor tem relação direta com uma cultura negra qualquer. Entre os diversos gêneros musicais de matriz afro-americana que são trabalhados em suas canções, entre os tantos momentos que ele dividiu de composição, inspiração e criação com musicistas negros e negras, entre as diversas contribuições por ele efetuadas para gêneros, como o rhythm‘n’ blues, o rock, o soul, a disco music, entre outros – contribuição esta geralmente ignorada –, resolvi apresentar aos leitores uma história pouco conhecida, quase nunca contada, mas que merece destaque especial na obra recente do pianista: a vida do Presbítero negro estadunidense Utah Smith. Tal escolha só se tornou viável com o lançamento de um álbum musical, ainda neste ano de 2016, disponibilizado para o grande público no último dia 05 de fevereiro, intitulado Wonderful Crazy Night. Nele, Elton John, em parceria com o letrista Bernie Taupin, o produtor T-Bone Burnett e uma série de musicistas que compõem a chamada EJ Band3, trouxe à tona 14 canções inédi3 Acompanhando o cantor desde 1970, com diversas modificações ao longo dos anos, a Elton John Band (ou EJ Band) é atualmente composta por Davey Johnstone (direção musical, guitarra, bandolim, violão, back vocais), Matt Bissonette (baixo e back vocais), Nigel Olsson (bateria e back vocais), Kim Bullard (teclados), John Mahon (percussão e back vocais), além da participação esporádica de Ray Cooper (percussão). 201 Elton John da Silva Farias tas, sendo dez disponíveis no álbum regular e quatro em suas edições especiais. Entre elas, destaco I’ve Got 2 Wings (“Eu Tenho 2 Asas”), que apresenta ao ouvinte uma narrativa musical sobre o evangelista protestante negro citado, que nasceu no bairro de Cedar Grove, localizado a sudoeste do centro da cidade de Shreveport, no estado da Louisiana, em 1906. A concepção da história narrada em versos é toda pensada pelo letrista Bernie Taupin, que idealiza e cria poesias que são enviadas ao cantor Elton John. Ele, por sua vez, compõe melodias para as letras que recebe. Nesse processo, não há um diálogo intelectual preestabelecido: a famosa fórmula de composição da dupla segue um rito peculiar, desde o ano de 1967, quando iniciaram o trabalho em conjunto, em que o letrista escreve o que bem entende e o pianista recebe os escritos em outro aposento, em outro local e/ou, como nas últimas décadas, em outro país, já que, atualmente, um reside nos Estados Unidos e o outro possui residências em três países do mundo, a saber, Inglaterra, França e no próprio Estados Unidos. A partir de tais escritos, John finaliza o formato-canção, elaborando melodias que acompanham a sequência de rimas feitas pelo parceiro musical. Há precisos 49 anos, ambos mantêm esse método de composição, o que resulta em praticamente nenhuma intervenção no trabalho um do outro. Taupin, mesmo sendo britânico, é um exímio leitor da literatura e da história estadunidenses e, de modo recorrente, busca inspiração em personagens peculiares que descobre em suas leituras e pesquisas. Mesmo não sendo o único letrista a trabalhar com o cantor4, ele é responsável pela maior parte das 4 Além de Bernie Taupin, Elton John já trabalhou regularmente com os letristas Gary Osborne e Sir Tim Rice, além do dramaturgo e roteirista 202 I’ve got 2 wings:uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John palavras e dos versos que são musicados pelo pianista desde 1967, diferenciando-se dos demais pela quantidade de histórias reais a que recorre e às quais atribui um novo olhar. Apenas para mencionar temas considerados “históricos” (já que, via de regra, todo tema pode ser histórico), há, ao longo de toda a carreira, letras sobre a I Guerra Mundial, a Guerra Fria e o Muro de Berlim, a Guerra do Vietnã, o massacre indígena e a Guerra Civil nos Estados Unidos do século XIX, sobre a cultura nórdica viking, o governo de Richard Nixon, sobre os embates religiosos na Irlanda do Norte etc. Há, para além destes, a dedicação a um tema bem recorrente na literatura contemporânea: as narrativas de histórias de vida. Por conta desse interesse, chegamos ao objeto de análise deste texto. Oscar Wilde, Blind Tom Wiggins, Jimmi Rodgers, Richard Nixon, Elvis Presley, Matthew Shepard, Joana d’Arc, Capitão Robert Taupin, Cher, John Lennon, Roy Rogers, Edith Piaf… todos esses já tiveram suas vidas poetizadas pelos versos do letrista, musicados e também cantados por Elton John. Em 2016, chegou a vez do Presbítero Utah Smith. Que o conheçamos mais um pouco a partir de agora. Esse religioso se destacou nos Estados Unidos entre as décadas de 1920 a 1960 pelo modo nada convencional que escolheu para transmitir suas pregações cristãs: além dos usuais terno e gravata, ele portava uma guitarra5 e, ainda mais inteLee Hall; também já compôs de modo esporádico para letras dos cantores Chris Difford e Tom Robinson, das cantoras Cher e Judie Tzuke e dos produtores musicais Thom Bell e Pete Bellotte. 5 Entre as décadas de 1920 e 1930, ele costumava tocar uma guitarra steel, passando a tocar guitarra elétrica a partir do ano de 1938 até 203 Elton John da Silva Farias ressante, usava um par de asas artificiais para entoar o clima de “pureza” e “graça” que ele queria demonstrar e alcançar, nos momentos de disseminação da fé para os fiéis. Além disso, viajava pelo país cantando sermões e compondo canções que eram apresentadas em congregações negras, representando a pentecostal Church Of God In Christ (“Igreja de Deus em Cristo”). Nascido em uma família pobre da cidade de Shreveport, abandonado pelos pais, Utah Smith foi criado pela avó materna. Estudou apenas até o terceiro ano (third grade) do ensino primário, quando, por volta dos 9 anos, deixou a escola para trabalhar como water boy6 nos campos de algodão da zona rural da cidade, até atingir maior idade, por volta dos 12, e crescer na profissão, “ascendendo” de cargo, transformando-se em colhedor dos frutos de algodoeiro. Mais alguns anos se passaram, até ele ser contratado para trabalhar depenando e limpando galinhas e frangos em um abatedouro: disperso e pouco hábil com o ofício, ele foi demitido apenas alguns meses após o início das atividades. É quando chegamos ao ano de 1923. Nesse ano, Utah Smith recebeu o que ele denominou “chamado” para se tornar um evangelista da igreja já mencionada, que também é usualmente conhecida pelas alcunhas de “Igreja Sagrada” ou “Igreja Santificada” e que é vista, até hoje, como a “maior” igreja pentecostal dos Estados Unidos. Gradativamente, o nome do jovem foi se tornando conhecido, sua morte em 1965. 6 O termo não possui tradução precisa, mas significa, literalmente, “garoto da água”; para ser mais preciso, é similar ao office boy que entrega documentos e correspondências: o water boy era encarregado de levar água para os colhedores de algodão. 204 I’ve got 2 wings:uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John além da Louisiana, nos estados de Mississipi, Alabama, Arkansas, Tennessee, Oklahoma e, em menor escala, no Texas. Muito importante para a chegada de Utah Smith na referida igreja foi a aceitação, por parte de seu fundador, o Bispo Charles Harrison Mason, que não se opôs à ideia de Smith sair viajando pelo país apresentando a indumentária já descrita. Tais viagens tiveram início no ano de 1925 e duraram por volta de 40 anos. A vida musical do evangelista, porém, iniciou-se muito antes. Ainda adolescente aprendeu, de modo autodidata, a tocar gaita harmônica: muito provavelmente vendo e ouvindo outros negros tocarem o instrumento, Smith se interessou, de prontidão, por desenvolver tal habilidade e foi, gradativamente, tomando gosto pela música. Sem portar uma formação musical institucionalizada, a decisão de viajar pelo país e a associação à igreja pentecostal o levaram ao inusitado feito, algo impactante para a época, de utilizar uma guitarra, no intuito de envolver os fiéis e tornar a pregação mais atrativa e “glorificada”, como diria Smith, para alcançar as graças e a paz divinas. O tema em “Are You Ready for the Lord?” (“Você Está Preparado(a) para o Senhor?”) era uma questão recorrente nas pregações e nas canções idealizadas por ele, o que proporcionava um ar de surpresa e conquista significativas para pessoas de pouca escolaridade e, geralmente, de áreas socialmente fragilizadas dos locais por onde passava. Convicto e convencido de sua missão, Smith também ficou conhecido, além da habilidade musical, pelos seus “poderes curativos” e pela cativante capacidade de contar anedotas e piadas, o que lhe rendeu a alcunha de “God’s Funny Boy” ou o “Rapaz Engraçado de Deus”. No entanto, seu nome ficou na penumbra, praticamente no esquecimento, durante 43 anos, entre 1965 e 2008. 205 Elton John da Silva Farias Tal quadro começou a mudar quando Lynn Abbott, curador associado do Hogan Jazz Archive da Universidade de Tulane, em Nova Orleans, Louisiana, escreveu um texto reunindo fatos, histórias e documentos de época no livro I Got Two Wings: incidents and anecdotes of the two-winged preacher and electric guitar evangelist. Sem tradução para o português, a obra, além do livro, vem acompanhada por um CD com todas as canções gravadas por Smith (09 no total), adicionada de mais 09 canções gravadas por importantes artistas gospel que acompanharam a carreira do evangelista (tais como Sister Rosetta Tharpe, Sister Sarah James, Elder Curry, Brother Bill Louis, Reverendo Robert Ballinger etc.). Enfatizando a canção símbolo do artista, I Got Two Wings, a narrativa da obra foca em suas situações “engraçadas”, “inusitadas” e pouco usuais, dando destaque às anedotas que ficaram gravadas e aos registros dos tipos de “milagres” que a ele se associam. Fotografias raras, recortes de jornais, registros de época, grande parte deles decorrente dos arquivos da Universidade de Tulane, compõem o arsenal que completa a obra, produzida como espécie de homenagem à Utah Smith. Mas o público que chegou a adquirir a obra restringia-se, basicamente, a pessoas residentes nos Estados Unidos e, de modo mais específico, aos estados nos arredores da Louisiana, lugares pelos quais a memória do guitarrista ainda ressoava fragmentada, resistindo às intempéries do esquecimento. Estações de rádio locais, como a WFMU, voltaram a tocar algumas de suas canções em programas saudosistas após o lançamento do livro de Abbott. Alguns intelectuais e curiosos lançaram textos em blogs, na internet, contando de maneira resumida a história de Smith, ou apresentando os fatos curiosos de sua vida. Um reviver de sua importância para o desenvolvimento do 206 I’ve got 2 wings:uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John gênero musical gospel foi arquitetado por essas iniciativas. O alcance, no entanto, ainda não extrapolava essas fronteiras. Oito anos depois, com o lançamento de Wonderful Crazy Night e a presença da canção que tematiza a vida e a obra de Smith, seu nome se torna conhecido – pelo menos, entre os fãs do cantor espalhados pelos quatro cantos do globo. Por ser um lançamento recente, ainda não se tem uma estimativa do total de vendas do álbum do pianista britânico, mas, a levar em conta sua fama mundial, é possível dizer que a obra do contador de anedotas encontrará ecos maiores a partir deste ano de 2016. Chegamos, neste momento, ao objetivo central deste texto: observar a vida do Presbítero Utah Smith por meio das palavras de Bernie Taupin e da voz de Elton John. Conheçamos, portanto, a canção I’ve Got 2 Wings: I am the elder Utah Smith (Eu sou o Presbítero Utah Smith) I’ve got two wings to f ly (Eu tenho duas asas para voar) They may be made of paper (Elas podem ser feitas de papel) They may never reach the sky (Elas podem nunca alcançar o céu) But I believe in mercy (Mas eu acredito em misericórdia) I believe that man is good (Eu acredito que o homem é bom) And if they want two wings like me (E se eles querem duas asas como as minhas) There’s a chance they could (Há uma chance de que eles possam) 207 Elton John da Silva Farias I am the elder Utah Smith (Eu sou o Presbítero Utah Smith) I was born in Cedar Grove (Eu nasci em Cedar Grove) That’s in Louisiana (Que fica em Louisiana) On a dirt-poor stretch of road (Em um trecho muito pobre da estrada) I found the calling early (Eu encontrei o chamado anterior) Gave birth to righteous words (Que deu a luz a palavras justas) And in a tent around the South (E em uma tenda nos arredores do Sul) I took my sonic church (Eu levei a minha igreja sônica) I was a light for the living (Eu era uma luz para os viventes) And I spoke of peace and love (E eu falava de paz e amor) With two wings and my old Gibson (Com duas asas e minha velha Gibson) I bought blessings from above (Eu trouxe bênçãos lá do alto) I was here and I was gone (Eu estava aqui e eu tinha ido embora) Just a heartbeat from the past (Apenas uma pulsação do passado) But I went from paper wings 208 I’ve got 2 wings:uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John (Mas eu fui de asas de papel) To the real thing at last (Para a coisa real finalmente) I am the Elder Utah Smith (Eu sou o Presbítero Utah Smith) I take all as they are (Eu levo as coisas como elas são) I was the first man of the cloth (Eu fui o primeiro homem do clero) To blacken a guitar (A pretejar uma guitarra) Love was my Redeemer (O amor era o meu Redentor) I felt it from the start (Eu senti isso desde o início) The Holy Ghost was channeled (O Espírito Santo foi canalizado) Through the sound of my guitar (Através do som da minha guitarra) Been a long time in the ground (Passei um bom tempo na estrada) Unmarked is my grave (Minha sepultura não é demarcada) But I reside elsewhere these days (Mas eu moro em outro lugar hoje em dia) Thanks to souls I’ve saved (Graças às almas que salvei) I traveled far, I traveled wide 209 Elton John da Silva Farias (Eu viajei muito, viajei na imensidão) Three quarts for the Lord (Três galões para o Senhor) Till one day He called me home (Até um dia que Ele me chamou para casa) To claim his great reward (Para reivindicar a sua grande recompensa) Percebe-se, de imediato, o caráter descritivo e narrativo dos versos de Taupin: em primeira pessoa, como se fosse o próprio Presbítero narrando sua vida, rememorando o passado, avaliando seus atos, vangloriando seus feitos, sendo nostálgico e ref lexivo. É como se Utah Smith encarnasse em Elton John, como se este nos dissesse o que houve em detalhes, com a garantia da “verdade”. Esse teor de segurança e de convicção não se dá à toa: os versos seguem a lógica da escrita do livro de Abbott e tentam codificar, resumindo uma identidade própria para o evangelista baseada na sua cor de pele negra, na sua infância pobre em Cedar Grove, no uso das asas artificiais, no pioneirismo de ser parte do clero7 a empunhar uma guitarra Gibson, em suas habilidades “milagreiras”, na bondade de sua missão, na simplicidade de sua congregação e na sinceridade de sua fé. Lamentando não ter uma cova bem demarcada8, Smith diria, 7 Mesmo não tendo encontrado resistência por parte da “alta cúpula” da Igreja de Deus em Cristo e de seu principal fundador, Bispo Charles Harrison Mason, Utah Smith nunca foi reconhecido oficialmente como membro do clero daquela igreja, fundando a sua própria, The Two Winged Temple (ou “O Templo de Duas Asas”), em Nova Orleans. 8 Localizada no Cemitério Memorial de Carver, na cidade de Birmingham, estado do Alabama, a cova de Utah Smith é a de número 05 na 210 I’ve got 2 wings:uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John orgulhoso, “minha sepultura não é demarcada / mas eu moro em outro lugar hoje em dia / graças às almas que salvei”. “Passei um bom tempo na estrada”. Como bem diz esse verso, Smith passou cerca de 40 anos de sua vida entre viagens, pregações e shows ao vivo. Constam como apresentações notáveis sua presença na cidade de Newark, em Nova Jersey, e no Museu de Arte Moderna de Nova York, ambas no ano de 1941. Fez turnês acompanhando artistas, como Mahalia Jackson, o grupo The Bells Of Joy e o cantor Brother Joe May durante a década de 1950, e roubando as atenções com suas chamativas duas asas. Viveu intensamente no palco o que ele chamava de “a mão curativa de Deus”, como bem reportou o Baltimore Afro-American, jornal da cidade de Baltimore, no estado de Maryland, em 1941: imagens dele e de seu grupo vocal Congregação9 eram fotografadas e, posteriormente apresentadas nas pregações e em shows subsequentes. Seção A, Lote 70. Ela não possui pedra tumular (o que é mais comum nos Estados Unidos), túmulo ou mausoléu. Está simplesmente sem demarcação ou cuidado. Cf. SHREVEPORT Songs Blog. Disponível em: <http://shre veportsongs.blogspot.com.br/2014/03/revutahsmithsgra- veandrecentfinds.html>. Acesso em: 28 fev. 2016. 9 Em diversas apresentações e gravações, seu nome artístico foi divulgado como Rev. Utah Smith and Congregation (ou “Reverendo Utah Smith e a Congregação”). A “congregação” era um grupo de seis mulheres negras que providenciavam os back vocais das canções do Presbítero. Cf. “Minister Makes Recordings of Revival Series”, matéria publicada no jornal Baltimore Afro-American, em 14 de fevereiro de 1941. 211 Elton John da Silva Farias Figura 1 – Presbítero Utah Smith e sua Congregação em Nova Orleans Circa (1941). Toda essa virtuose imagética tinha por objetivo trazer alegria e uma sensação de paz para os negros, significativa parcela da sociedade estadunidense que viviam sob um forte regime de segregação racial e histórico preconceito por cor de pele. Pobreza, violência e discriminação pública assolavam as pessoas negras: até a década de 1950 elas eram proibidas de frequentar as mesmas escolas que os brancos; ainda na década seguinte, só podiam ocupar assentos na parte traseira dos ônibus públicos; bebedouros e banheiros eram separados. Foi nesse cenário que Smith apareceu como uma figura que simbolizava esperança e crença num futuro mais digno e mais feliz para seus irmãos: a fé e a música foram as armas usadas por ele para elevar a autoestima de seus seguidores. Logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, um terror vestido de capuzes brancos, que havia sido criado no século XIX, ressurge 212 I’ve got 2 wings: uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John com força total: a Ku Klux Klan. Movidos pelo ódio racial e pela defesa da supremacia branca e cristã, os membros desse grupo incitavam ações violentas em público: Os cidadãos brancos, dentro e fora da Klan, despejaram contra os negros, pouco depois da guerra, uma cólera que dificilmente podia ser vista como uma punição adequada até mesmo para traidores. Mais de 70 negros foram linchados durante o primeiro ano do período pós-guerra. Dez soldados negros, vários ainda de uniforme, foram linchados. (FRANKLIN; MOSS JUNIOR, 1989, p. 332) Foi contra essa cólera que Utah Smith lutou. Não efetivando um enfrentamento político direto ou armado; não convocando uma mobilização social pública com a participação de lideranças políticas e integrantes engajados que afrontassem o governo e os brancos. Não foi necessária uma bala sequer. Seus fuzis eram suas anedotas, suas balas eram seus riffs de guitarra e seu grito de guerra era entoado por sua voz rouca: I Got Two Wings (“Eu Tenho Duas Asas”) e, como se confirma na canção de Elton John, Smith era “uma luz para os viventes” que “falava de paz e amor” e que tinha o “Espírito Santo canalizado através do som” de sua guitarra. Muito além da veracidade ou não da crença, o que está em jogo aqui é sua capacidade de alcance social. O gênero musical gospel era o caminho para tanto. Tal percepção da vida artística e religiosa de Smith concerne com a afirmativa, de Florent Mazzoleni, de que tal gênero era uma síntese da vontade negra de sonhar e de sua esperança em uma vida de maior conforto e felicidade; de que as pessoas negras teriam, um dia, a democracia que lhes era negada. O gospel, portanto, era um 213 Elton John da Silva Farias catalisador de sonhos, de uma América negra melhor e igualitária, que buscava elevar-se, gritando e batendo com as mãos e os pés, em júbilo no centro de uma igreja negra para escapar de um cotidiano muitas vezes difícil. [...]. No campo ou nos guetos urbanos, para inúmeros negros pobres, o gospel representava muitas vezes a única distração a que tinham acesso. (MAZZOLENI, 2012, p. 10). “Eu acredito em misericórdia / eu acredito que o homem é bom / [...] / mas eu fui de asas de papel / para a coisa real finalmente”. O gospel como conhecemos, criado nas décadas de 1920 e 1930, é oriundo das canções rurais próprias dos estados do Sul, tendo se desenvolvido a partir dos cânticos negro spirituals religiosos do século XIX, entoados por trabalhadores dos campos de algodão, recém-libertos da escravidão. Essa era a opção nas horas de repouso, nos breves momentos de lazer, inclusive do ponto de vista prático, já que juntava o momento de descontração com o de devoção, o que, para pessoas que lidavam com jornadas acima de 10 horas de trabalho, era algo bastante compensatório. Utilizar as poucas horas que sobravam com os semelhantes e, em momentos que uniam descontração e encontro, com a fé: o escape mais acessível para quem vivia sob a égide da segregação e do preconceito; um sentimento espiritual que aliviava os ânimos e pregava “amor” e “palavras justas”, como bem diz a canção. Essa sensação de calmaria e paz é justaposta na melodia de I’ve Got 2 Wings: uma balada com um quê de country, um leve traço folk e uma introdução gospel em que se utiliza, astutamente, a interjeição humm repetidas vezes, para alcançar um tom sereno e pacífico, totalmente inteirado à narrativa dos versos de sua letra. Acelerando o compasso e aumentando a intensidade 214 I’ve got 2 wings: uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John melódica, justamente quando o refrão diz “eu era uma luz para os viventes / e eu falava de paz e amor”, a construção rítmica não está ali à toa: ela busca atender aos anseios do letrista Bernie Taupin de transmitir essa bela história da maneira mais justa possível. Uma história que chegou ao seu fim em 24 de janeiro de 1965, quando Utah Smith, já cego e sem possibilidades de tocar sua guitarra, faleceu acometido por complicações decorrentes de forte diabetes e de glaucoma. Mas alcançou um fim eminentemente físico, já que sua vida tão peculiar resiste aos porões do tempo e persiste na memória coletiva até os dias de hoje. Essa é, por fim, a grande importância da canção de Elton John e Bernie Taupin: mesmo sabendo que o livro de Lynn Abbott foi pioneiro e grande responsável por efetivar uma revivência da memória sobre Utah Smith, a canção, aqui em foco, ampliou o horizonte de alcance dessa memória a nível mundial: ela teve o necessário cuidado com a justiça da imagem do Presbítero, tentando, inclusive, ao usar a primeira pessoa como arma narrativa, ser o mais fiel possível à imagem que Smith gostaria de passar para a posteridade. Sem essa canção, muito provavelmente a guitarra do evangelista continuaria sendo ouvida apenas nas fronteiras dos Estados Unidos, por um ou outro aficionado da música gospel, em outros países. Com a atenção dada por Taupin a essa bela história, podemos todos, eu e você, leitor, depararmo-nos com o homem que usou duas asas que, em si, podem nunca ter voado, mas que fizeram a fé de muitas pessoas negras estadunidenses alçar voos incríveis. 215 Elton John da Silva Farias Referências ABBOTT, Lynn. I Got Two Wings: incidents and anecdotes of the two- winged preacher and electric guitar evangelist Elder Utah Smith. Montgomery, AL: CaseQuarter, 2008. BALTIMORE AFRO-AMERICAN JOURNAL. Edição de 14 de fevereiro de 1941. Baltimore. Maryland, EUA. CARVALHO, Olívia Bandeira de Melo. Música Gospel: aproximações e conflitos entre o sagrado e o secular. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 29, Natal, 2014. Anais... 2014, Natal. 03 a 06 de agosto de 2014, Natal – RN, p. 1-20. FRANKLIN, John Hope; MOSS JUNIOR, Alfred A. Da Escravidão à Liberdade: a história do negro americano. Tradução: Élcio Gomes de Cerqueira. Rio de Janeiro: Editorial Nórdica Ltda., 1989. MAZZOLENI, Florent. Os Anos 1930. In: ______. As Raízes do Rock. Tradução: Andrea Gottlieb Castro Neves. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2012. p. 10-33. NEW ORLEANS MAGAZINE. Edição de novembro de 2010. Nova Orleans, Louisiana, EUA. SHREVEPORT SONGS BLOG. Disponível em: <http://shre veportsongs. blogspot.com.br>. Acesso em: 28 fev. 2016. THE HOUND BLOG. Disponível em: <http://thehound blog. blogspot. com.br>. Acesso em: 28 fev. 2016. 216 I’ve got 2 wings: uma história de vida do presbítero Utah Smith na voz do cantor/ compositor britânico Elton John Ficha técnica I’ve Got 2 Wings Álbum: Wonderful Crazy Night Gêneros: Country, Folk, Gospel Duração: 04:35 Ano de Lançamento: 2016 País: Inglaterra Site Oficial: eltonjohn.com Local de Gravação: Estúdios Village, Los Angeles, Califórnia, EUA. Gravadora: Island Records Selos: Mercury, Virgin, EMI, Island Produtores: T-Bone Burnett & Elton John Lançamento: 05 de fevereiro de 2016. 217 Sobre os autores HELDER ALEXANDRE MEDEIROS DE MACEDO é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor do Departamento de História, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: heldermacedox@gmail.com JOEL CARLOS DE SOUZA ANDRADE é doutor em História pela Universidade de Coimbra (UC/Portugal). Professor do Departamento de História, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: jocadesoan@yahoo.com.br MUIRAKYTAN KENNEDY DE MACÊDO é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor do Departamento de História, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: muirakytan@uol.com.br EVANDRO DOS SANTOS é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Departamento de História, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: evansantos.hist@ gmail.com ANA SANTANA SOUZA é doutora em Estudos da Linguagem (PPGEL) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo, Centro de Educação (CE), Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: anasantanasouza@gmail.com RÉGIA AGOSTINHO DA SILVA é doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Departamento de História, Centro de Ciências Humanas (CCH), Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: ruaformosa@hotmail.com JOELMA TITO DA SILVA é doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Técnico em Assuntos Educacionais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN). E-mail: joelmatito@ yahoo.com.br ELTON JOHN DA SILVA FARIAS é mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Professor Substituto do Departamento de História, Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor de História da Rede de Ensino da Prefeitura Municipal de João Pessoa/PB. E-mail: eltonjohnpb@gmail.com JOÃO DE CASTRO MAIA VEIGA FIGUEIREDO é doutor em História pela Universidade de Coimbra (UC/Portugal). Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20), Universidade de Coimbra. E-mail: de.castro.maia@gmail.com 219 Este livro foi produzido pela equipe editorial da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.