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REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL 112 O ROMÃNCE BIOGRÃFICO NÃ PERSPECTIVÃ DE ÃNÃ MIRÃNDÃ: HISTORIOGRÃFIÃ E INTERTEXTUÃLIDÃDE NÃ COMPOSIÇÃO DÃ OBRÃ MUSÃ PRÃGUEJÃDORÃ THE BIOGRÃPHICÃL ROMÃNCE IN THE PERSPECTIVE OF ÃNÃ MIRÃNDÃ: HISTORIOGRÃPHY ÃND INTERTEXTUÃLITY IN THE COMPOSITION OF THE WORK MUSÃ PRÃGUEJÃDORÃ Claudia Letícia Gonçalves Moraes15 Danglei de Castro Pereira16 RESUMO: Ao se considerar os estudos literários na contemporaneidade, observa-se que a literatura está intrinsecamente ligada aos contextos social, histórico e ideológico. Assim, propõe-se com esta pesquisa investigar as intersecções entre literatura e história e a construção intertextual em uma obra recente de Ana Miranda que versa sobre a vida do poeta seiscentista Gregório de Matos, a partir da sua representação ficcionalizada enquanto personagem. O corpus literário é composto pela biografia romanceada Musa Praguejadora (2014), sendo destacada, dentro da referida obra da autora, a questão da ficcionalidade a partir de um recorte amplo nos limites entre literatura e história, as quais guardam modos peculiares de aproximação com o real. A fundamentação teórica partirá de pesquisas sobre novo romance histórico, ficcionalidade e intertextualidade, bem como suas relações com a produção literária contemporânea. O corpus teórico considera as discussões de Peter Burke (1994, 2008) como representante dos estudos da “nova história”, os conceitos de intertextualidade discutidos por Julia Kristeva (apud PERRONE-MOISÉS, 2006) e Gérard Genette (2007). A partir deste quadro teórico buscaremos compreender como ocorre a representação literária dentro da narrativa, pretendendo descrever e discutir o empreendimento de reconstrução do passado, nas tensões e hibridações entre os campos da Doutoranda em Literatura da Universidade de Brasília. E-mail: claudiamoraes27@gmail.com 16 Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – IBILCE. Mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – IBILCE. Professor da Universidade de Brasília; E-mail: danglei@unb.br 15 literatura e da história. Será destacada, portanto, a estratégia de criação que comporta simultaneamente ficção, intertextualidade, biografia e historiografia. ABSTRACT: When considering literary studies in contemporary times, it is observed that literature is intrinsically linked to social, historical and ideological contexts. Therefore, we come to the understanding that to study literature is, also, to study various elements present in the text. Thus, it is proposed with this research to investigate the intersections between literature and history and the intertextual construction in a recent work by Ana Miranda that deals with the life of the seventeenth-century poet Gregório de Matos, from his fictionalized representation as a character. The literary corpus is composed of the novela biography Musa Praguejadora (2014). In this work the author emphasizes the question of fictionality from a broad cut in the boundaries between literature and history, which have peculiar modes of approximation with the real. The theoretical basis will be based on research on new historical novel, fiction and intertextuality, as well as its relations with contemporary literary production. The theoretical corpus considers the discussions of Peter Burke (1994, 2008) as representative of the studies of the "new history", the concepts of intertextuality discussed by Julia Kristeva (apud PERRONE-MOISÉS, 2006) and Gérard Genette (2007). From this theoretical framework we will try to understand how the literary representation occurs within the narrative, intending to describe and discuss the reconstruction project of the past, in the tensions and hybridizations between the fields of literature and history. It will be highlighted, therefore, the strategy of creation that simultaneously involves fiction, intertextuality, biography and historiography. KEYWORDS: Ana Miranda; Historiography; Fictionality; Intertextuality. 1. INTRODUÇÃO Ao considerar os estudos em literatura na contemporaneidade percebese que o texto literário está intrinsecamente ligado aos contextos social, histórico e ideológico. Portanto, chega-se ao entendimento de que estudar REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL PALAVRAS-CHAVE: Ana Miranda; Historiografia; Ficcionalidade; Intertextualidade. literatura é também estudar os liames que a ligam a outros campos como a história na composição textual literária. Proceder a uma análise literária é também ter a percepção de que o texto literário é uma construção histórica, cultural e socialmente situada. Isto posto é fundamental notar que nos interstícios da literatura contemporânea, principalmente em relação ao tipo de literatura que possui fronteiras fluidas com áreas de conhecimento como a história, existe uma preocupação em buscar significados, criar representações e possíveis interpretações do simbólico de determinada época, considerando 113 que as atividades de ler e escrever sobre o passado estão tão presas ao tempo como quaisquer outras (BURKE, 2008). Desse modo, Ana Miranda, em duas obras – Boca do Inferno (1989) e Musa Praguejadora (2014) – escritas num intervalo de 25 anos, retoma um autor que lhe é muito caro para empreender um processo de reconstrução REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL histórica por meio da criação literária que traz como conteúdo a convivência entre personagens históricas e ficcionais, versos do poeta barroco colocados lado a lado com passagens da autora em questão, num jogo que alia biografia e intertextualidade para contemplar a vida e a obra de Gregório de Matos na Bahia do século XVII, além de Angola e Recife. A obra objeto da presente crítica, Musa Praguejadora, é elaborada de forma bastante apurada por meio de uma construção engenhosa que ao mesmo tempo em que mantem a fidelidade aos textos de Gregório de Matos em vários excertos, também oferece uma nova possibilidade sobre o que podem ter sido as vivências e os sentimentos de seu autor transformado em personagem, algo nunca respondido pelas pesquisas históricas e que só pode ser imaginado nos meandros de uma ficcionalização. Ana Miranda lança mão de uma intensa pesquisa para resgatar vida e obra do autor biografado, levando em consideração também aspectos diversos para a construção do texto literário. Um dos principais recursos que a autora utiliza é a intertextualidade como prática moderna de discurso, não apenas referenciando outros autores, mas também tornando-os personagens centrais de seus romances que se sustentam no tripé história, intertextualidade e ficção. O presente estudo pretende problematizar o processo de criação artística da autora a partir de sua relação com dois aspectos fundamentais da 114 obra aqui em análise: o biográfico e o ficcional, alinhavado pela intertextualidade. Desta forma, a discussão versará sobre a representação de Gregório de Matos como personagem de ficção em Ana Miranda, trazendo uma proposta de pesquisa para a questão da ficção na obra em análise e propondo um recorte mais amplo nos limites entre literatura e história, considerando também o conceito de intertextualidade que é relevante para compreender a literatura da autora. Assim, pretende-se observar como Ana Miranda utiliza o real em direção a uma mobilização da história em sua ficção, preenchendo Essa discussão amplia questões relacionadas à biografia romanceada e ao novo romance histórico na obra da autora em direção ao conceito de narrativa histórica, conforme a perspectiva de autores como Linda Hutcheon (1991), bem como a formas de compreender o passado, principalmente conforme a visão do historiador Peter Burke em A fabricação do rei (1994). No âmbito dos estudos literários, utilizaremos como base Alfredo Bosi em duas obras de relevância: Dialética da Colonização (1994), em que dedica um capítulo ao contexto de Gregório de Matos, e Entre a Literatura e a História (2013), no qual o autor problematiza e discute as aproximações e diferenças entre os dois campos do saber, além de teóricos como Júlia Kristeva (2006) em suas discussões sobre o conceito de intertextualidade. 2. TRISTE BAHIA: A RELAÇÃO AMBÍGUA DE GREGÓRIO DE MATOS COM A CIDADE DE SALVADOR REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL lacunas face ao que denominamos de discurso histórico propriamente dito. Em Musa Praguejadora (2014), romance foco de nossa análise, Ana Miranda retoma sua relação com o poeta barroco Gregório de Matos – seu primeiro autor transformado em personagem ficcional no romance de estreia de Miranda na literatura em 1989. Boca do inferno se apresentou como romance com fundo histórico, trazendo o poeta barroco como protagonista. A obra foi ancorada em uma sólida pesquisa documental, apresentando uma forte relação entre literatura e história, uma marca que se mostraria na quase totalidade dos escritos da autora. Depois de um intervalo de 25 anos Ana 115 Miranda volta à sua primeira personagem da história literária brasileira. Na composição de Musa Praguejadora a autora empreende a mesma pesquisa histórica e documental que embasou outros trabalhos, como convém a uma investigação biográfica, mas fazendo uso não-convencional da perspectiva que conforma as biografias. Assim, a longa empreitada de mais de 500 páginas REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL desafia as fronteiras entre literatura e história, não pretendendo ser unicamente uma biografia, nem apenas um romance. Sua tessitura ultrapassa conceituações simplistas na forma e no conteúdo, engendrando uma configuração híbrida que faz um passeio pelos momentos iniciais da formação da literatura brasileira, mas principalmente focada no arco da existência do poeta, lançando mão da ficção como recurso para compreender sua vida e seu tempo. Nessa incursão pelo Barroco brasileiro mais uma vez a cidade de Salvador, capital baiana, tem uma importância fundamental na formação e nas influências sobre a escrita de Gregório de Matos Guerra. Esta importância é destacada em diversos momentos na obra de Ana Miranda, posto que esta se dedica, em várias passagens, a descrever a Salvador do século XVII em seus múltiplos aspectos, sejam eles físicos ou morais, tais como se percebe no seguinte trecho (MIRANDA, 2014, p. 27): Era Salvador da Bahia bem provida de águas. Fontes cristalinas na praia ao lado dos desembarcadouros, onde os navios faziam aguada, serviam também à cidade em sua parte baixa. Na ribeira que cercava a cidade alta, as águas se turvavam pelo movimento de bois que iam beber à nascente; mas outras fontes forneciam água fresca e limpa aos moradores. Essa descrição física – que apresenta uma cidade abastada de recursos naturais, plena de águas doces, cercada pelo mar que é também porta de 116 entrada do mercado do país, incluindo seus atracadouros de embarcações que são o ponto forte do comércio àquela época – guarda um lado social ainda mais curioso, composto de nuances diversas causadas pela população que a habita e que traz um arranjo do vasto painel social do século XVII. A população heterogênea, passível da sátira do poeta, é formada por um grande número de pessoas que circulavam pela cidade de forma desordenada em suas vivências, sem lei e sem rei. Esse contexto não passava despercebido aos olhos do poeta, seiscentista, lançando um olhar ácido à população por meio de um viés que é também pós-renascentista, conflitante, inclinado às observações voltadas para a constituição de uma Bahia formada de pessoas de múltiplas nacionalidades e de múltiplos tipos de caráter. Essas características de sua vertente barroca são demonstradas no trecho a seguir: Caminha o poeta pelas ruas de sua meninice, ao lado de Gonçalo Ravasco, e comenta Gregório, Como mudou a Bahia! Ele já não conhece as pessoas que passam, ali estão recopiladas gentes de mundos e reinos distintos, persas, ímpios homens de Nação, magores, armênios, gregos, infiéis e outros gentios (...) De quem procedem os males da Bahia, senão dos moradores? Ela não faz mal nenhum, é apenas terra e mato arisco. Se lançaram más sementes, como podem querer frutos limpos? Algum tempo atrás a semente era boa, de bom trigo, e por isso seus campos produziam pomos lindos, de que ainda se conservam remotos indícios. Mas depois que chegaram estes carregados como ouriços de sementes invejosas e legumes de maus vícios, a Bahia tem tido tal retribuição que no lugar de rosas agora produz espinhos. (MIRANDA, 2014, p. 237238) REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL que nos escritos atribuídos a ele destacava abertamente a ambivalência O excerto traz uma visão interessante sobre a cidade, que é uma ambivalência recorrente na obra de Ana Miranda: em algumas passagens sua personagem elogia e enaltece seu entorno, em outras não se furta em direcionar sua pena ferina à uma terra tão contaminada por má gente – mas, ressalte-se, a cidade tornou-se desvirtuada porque constituída de pessoas ruins, malprocedidas e de maus costumes. É na esteira dessa composição que a literatura do próprio Gregório irá se fundar em tom satírico e crítico, disparando denúncias contra tudo e contra todos, destacando uma visão de 117 mundo que traz em sua linha de frente as formas ridicularizadoras que esboçam a imagem de uma cidade emoldurada por festas e ritos populares, assim como bastante afeita à transgressão diante dos padrões de comportamento consagrados pelo poder oficial. Assim, a poesia de Gregório de Matos está focada numa formulação REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL literária de críticas diversas à sociedade baiana do século XVII, cujos habitantes são considerados pelo poeta como depravados e corruptos (BOSI, 1994). As críticas eram direcionadas a todos os estratos sociais, desde negociantes passando pela nobreza, pelo clero e pela justiça, além de atingir também a pretos e mestiços. O poeta estabelece, em seu contexto, uma relação sempre dúbia com a cidade de Salvador, relação esta que é melhor explicada pela ótica de Ãlfredo Bosi em capítulo denominado “Do Ãntigo Estado { M|quina Mercante”, de sua obra Dialética da Colonização (1994, p. 95), conforme abaixo citado: Assim nomeia-se a Bahia, o espaço de vida, não como alheio ou estranho à voz do poeta, mas imantado pela força das suas paixões; não o nome em si, menção abstrata, mas o nome-para-o-eu, o nome sofrido, o nome a quem o tom exclamativo dá graus de canto; o nome qualificado, triste. Ambíguo, aliás, este adjetivo: denota estado de alma depressivo e melancólico; mas também conota a ideia de infelicidade, que partilha com outros nomes da nossa língua, como desgraçado e miserável sobre os quais paira igualmente uma sombra de culpa. (BOSI, 1992, p. 95) A triste Bahia de Gregório se configura como um espaço vivido a partir de um contexto histórico peculiar: a decadência do comércio do açúcar (denominado “ouro branco”) e as relações econômicas firmadas entre Portugal e Inglaterra da metade do século XVII para frente, o que auxiliou em grande medida no declínio da fidalguia da qual Gregório fazia parte, 118 permitindo a ascensão de maganos, aventureiros, brichotes, comerciantes e judeus que se inclinavam mais fortemente ao crescimento do comércio da época e, de certa forma, tomavam o lugar da nobreza decadente de sangue português. A mágoa de Gregório de Matos em perder espaço para esse tipo de gente considerada como de mais baixo estrato se manifesta por meio de sua pena de poeta satírico, que vê nessa cidade a decadência econômica e intelectual, a efervescência dos modos burgueses de produção que mesmo relações comerciais que aparentemente guiam apenas a macroestrutura – nas relações proximais entre Portugal e Inglaterra – na verdade se refletem também na derrocada de famílias mais tradicionais, como a de Gregório de Matos. Ainda segundo a análise de Bosi (1994, p. 101): O filho d’algo em apuros não tolera o comerciante forâneo nem o desenvolto mercador cristão-novo. O que está em jogo não é uma forma irritada de consciência nacionalista ou baiana, mas uma rija oposição estrutural entre a nobreza, que desce, e a mercancia, que sobe. É este fortalecimento da burguesia urbana, feita em função do comércio de produtos brasileiros, que traz em seu bojo o sopro de uma nova mentalidade mais comprometida com os fatores de ordem extra-religiosa. O fato de haver uma emergência de visão de mundo mais atualizada vai explicar, de certa forma, a proliferação de uma literatura polemista e satírica, mas também dual, claramente ambígua e manifesta também como poesia de REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL naquele momento já mercantilizavam tudo o que surgia pela frente. As extração sacra e lírico-amorosa, que teve seu maior representante na figura de Gregório de Matos Guerra. 3. BIOGRAFIA E IMAGINÁRIO A PARTIR DA MEDIAÇÃO PELA LINGUAGEM No romance em questão é importante também analisar a parte formal que o constitui, já que a obra apresenta uma divisão visual entre trechos biográficos, em corpo normal, e criação literária, grafada em itálico. Na perspectiva biográfica a condução do texto segue um esquema tradicional: a história do poeta começa a ser traçada a partir das origens dos seus 119 antepassados, das circunstâncias de seu nascimento, da infância e da juventude, do seu estabelecimento como advogado e conceituado funcionário da igreja, dos conflitos da idade adulta, até a morte. Musa Praguejadora também faz um vívido retrato da sociedade e das relações sociais na Bahia do século XVII, formando um conjunto panorâmico do viver baiano no seiscentos REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL brasileiro. No fuso literário que compõe a obra, Ana Miranda se vale de recursos relevantes como a intertextualidade que será discutida de maneira mais aprofundada no próximo tópico, costurando trechos de diferentes textos do autor que se configuram como ecos de sua voz, ressurgindo quase quatro séculos depois de sua morte. Essa construção literária da autora molda uma possível visão de mundo do poeta barroco e de suas vivências na Bahia de todos os santos quando escrevia sobre mulheres, sobre corrupção, sobre a angústia de ser ao mesmo tempo idolatrado e condenado por seus versos. Os amores de Gregório de Matos têm especial destaque, sendo citados em várias passagens: Ele se diverte com as aventuras amorosas no recôncavo. Vive um episódio com uma negra, protegida de um clérigo em Maré, que engana o poeta marcando um encontro e não comparecendo; ela o deixa, diz ele num longo versejar, esquentado, embaraçado, desesperado, preso de amor em sobejos infernos, querendo se enforcar, e ele a compara à primeira mulher bíblica, que fez pecar outro Adão. (MIRANDA, 2014, p. 282) Estes relatos sobre o poeta e sua intensa relação com as mulheres se configuram também um minucioso registro histórico da condição das mulheres do Brasil do século XVII, incluindo a forma como essas mulheres eram (re)tratadas poeticamente em seus textos. A figura mais recorrente que 120 se pintou de Matos Guerra é de um poeta boêmio, amante das mulheres das mais variadas extrações sociais17. Estas são representadas de maneiras diversas ao longo do desenvolvimento do affair com o poeta: na fase da conquista, aparecem sempre como virtuosas e inatingíveis; quando finalmente as consegue, não raro passam a ser tratadas por meio de referências chulas. O poeta considerava as mulheres inferiores e submissas, sobretudo as negras e vigente na sociedade da época e dando sinais das complexas relações raciais no Brasil desde o período colonial, esboçando um imaginário e um trato nas relações sociais que podem ser observados até os dias de hoje. Deste modo, Musa Praguejadora entrelaça biografia e ficção de modo a construir uma imagem mais ampla do poeta, uma obra não de todo ficional, embora a ficção seja necessária para dar conta da existência do poeta no seiscentos brasileiro, revelada mais amplamente em suas poesias do que nas documentações da época. Um número relevante de partes ficcionais de Musa Praguejadora são a reformulação em prosa de poesias atribuídas ao próprio Gregório, e uma recriação de diálogos e sentimentos do poeta a partir da sua própria obra. Essas partes se alternam com textos escritos em forma de biografias tradicionais, baseadas em documentos e com narrativa linear. A utilização extensa desse recurso pela autora nos encaminha mais uma vez REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL mulatas que eram representadas de forma pejorativa, refletindo o pensamento para a discussão dos limites entre literatura e história. Para Linda Hutcheon, analisando questões relacionadas às aproximações entre o ficcional e o histórico em Poética do Pós-Modernismo (1991, p. 142), ambos os campos do saber: “[...] partilham a mesma postura de questionamento com relaç~o ao uso comum que dão às convenções narrativas, à referência, à inserção da subjetividade, a sua identidade como textualidade e até seu envolvimento na A poesia de cunho obsceno é uma das faces do poeta, se apresentando como um fruto de seu tempo atrelado à tradição portuguesa e não sendo predominante na vida e obra do poeta, mas ainda assim se mostrando relevante o suficiente para ser estudada por autores diversos como João Adolfo Hansen (1989), Adriano Espínola (2000) e Marcelo Moreira (2014). 17 121 ideologia”. Ãssim, a leitura da obra proporciona ao leitor uma sensaç~o de apagamento das fronteiras entre a ficção e a história, conduzindo a uma percepção mais aprofundada de entrelaçamento entre esses dois mundos tão complexos e que dialogam constantemente por meio da forma como o tema se apresenta e, principalmente, por meio da linguagem que a autora adotou como REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL fundamento para compor a vida de Gregório e recriar seu tempo18. Nesse ínterim faz-se necessário o diálogo com uma obra importante do historiador inglês Peter Burke, A fabricação do rei (1994), na qual o autor polemiza sobre a criação da imagem do rei francês Luís XIV. O argumento amplamente defendido por Burke, nos meandros de sua pesquisa e que aqui nos interessa, é a de que não existiam efetivamente cisões entre realidade e representação. Na esteira da tese defendida pelo autor revela-se uma preocupação maior com a interpretação do que com o acontecimento em si, privilegiando a imagem em detrimento do homem. Assim, é necessário compreender como o imaginário pode ser objeto de controle, sobretudo considerando épocas passadas em que existem lacunas sobre a ocorrência dos acontecimentos – um tema que é sempre caro ao ofício do historiador, mas válido também para empreendimentos como este a que Ana Miranda se propôs. Na arquitetura da obra literária temos um modus operandi que está próximo aos meandros que movem também o imaginário. (Re)criar um período rico como o Barroco brasileiro por meio da linguagem, aí inclusa a vida de sua principal personagem, é uma tarefa de alto grau de complexidade Em entrevista concedida para o blog da Editora Record, em 23/12/2015, a autora relata sobre seu processo de elaboraç~o da linguagem para a obra: “É uma questão de imaginação. E de linguagem. As palavras guardam o seu tempo. Um texto qualquer escrito numa época qualquer, num lugar qualquer, nos transporta imediatamente para esse tempo e lugar. É impressionante fazer as conexões com o tempo presente, ir adivinhando os motivos pelos quais somos assim, nós, brasileiros, parece que tudo fica claro. Com esse passado, o Brasil só poderia ser este país. Inferno e paraíso. Ou, como dizia Gregório, inferno para os bons e paraíso para os maus”. 18 122 que demanda, em Musa Praguejadora, uma dupla chave: a da biografia nos moldes tradicionais aliada à ficcionalização que preenche lacunas às vezes imperceptíveis, daí a noção defendida por Burke de que as cisões entre realidade e representação são ilusórias. Alfredo Bosi, em obra mais recente que discute sobre as relações fluidas entre literatura e história, afirma o Na ficção o devaneio das personagens faria um só corpo com a ação. As ações dependem desses devaneios porque o romancista pode, num certo momento, ler o que está dentro do pensamento das personagens e depois arquitetar eventos, situações que concordem ou contrastem com os sentimentos daquela personagem. De sorte que [...] os eventos estão afetados, encantados por aqueles sentimentos e aqueles devaneios. (BOSI, 2013, p. 225) Esse processo se apresenta de maneira bastante elaborada na obra de Miranda, caminhando entre dois mundos distintos que se complementam na tessitura de seu texto sobre a vida – documentada e imaginada – de Gregório de Matos. O poeta foi exilado em Angola em 1694 por conta de seus poemas satíricos em que atacava as autoridades brasileiras e desde então nunca pôde voltar à Bahia. Conseguiu salvo-conduto para entrar novamente no Brasil em 1695, mas ficou em Recife, tendo falecido doente em dezembro do mesmo, REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL seguinte: período em que a cidade festejava a morte de Zumbi e a destruição do Quilombo dos Palmares. Gregório de Matos foi então enterrado na capela do hospício de Nossa Senhora da Penha, conhecida também como Penha dos Franceses, demolida décadas depois. Não houve lápide ou epitáfio e até hoje não há nenhuma indicação em Recife de que a cidade guarda os restos mortais do poeta mais importante do período barroco brasileiro. 4. O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE NO CONTEXTO DO ROMANCE DE ANA MIRANDA 123 As práticas intertextuais são assunto pertinente no âmbito das pesquisas em Literatura e Língua Portuguesa, buscando demonstrar como o diálogo entre textos pode ser profícuo e utilizado das mais diversas maneiras. Desse modo, Ana Miranda, em sua obra, reconstrói historicamente não apenas a personalidade de um de nossos autores mais importantes, mas também REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL destaca uma perspectiva de leitura enriquecida pela miscelânea entre personagens históricas e ficcionais, passagens da própria autora mescladas aos versos do poeta em questão, num jogo intertextual que empreende um trabalho de recriação das perambulações de Gregório de Matos na Bahia do século XVII, além de Angola e Recife. A autora, nas localizações de sujeito e nas representações da história, proporciona a visão de um projeto literário sem a pretensão de propor interpretações fechadas, possibilitando a reflexão por meio da imaginação sobre as histórias elaboradas por ela. Como base teórica do estudo ora em questão o conceito de intertextualidade é de suma importância. Sua criadora, Julia Kristeva, cunhou o termo a partir de leituras sobre o dialogismo de Mikhail Bakhtin, sendo a autora aqui citada por Leyla Perrone-Moisés: “(...) todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos; ele é uma escritura réplica (funç~o e negaç~o) de outro (dos outros) texto(s)” (KRISTEVÃ, apud PERRONE‐MOISÉS, 2006, p. 94). Ã partir dos estudos bakhtinianos sobre literatura, Kristeva refez a rota do dialogismo no sentido de demonstrar que já não existem mais discursos originais: os discursos formam-se como fragmentos de outros discursos, num contexto em que, a priori, tudo já foi dito. Isto posto, entende-se o romance como entidade dinâmica em constante dialogismo e aberto às mais variadas leituras. Compreende-se, assim, que um texto só existe em relação a outros textos já 124 produzidos – daí a relev}ncia da ideia de “mosaico de citações” que Kristeva cunha em seus trabalhos. Já Linda Hutcheon, em obra anteriormente citada (1991, p. 158) afirma o seguinte: “Ã intertextualidade pós-moderna é uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto”. Dessa forma, outro ponto importante para esta investigação são as na literatura brasileira. Essa retomada aponta para o que Hutcheon denomina como desejo, ânsia em diminuir a distância entre os tempos: o passado é trazido para o presente pela mediação da linguagem, textos antigos são citados, bricolados, reelaborados em textos atuais, com a licença poética amplamente permitida ao campo ficcional. Percebe-se que as áreas da literatura, principalmente a que concerne ao romance histórico, e da história, enquanto campos epistemológicos, estão construídas sobre um terreno teórico ora nitidamente definido, ora passível de instabilidade, mas sempre aproximados em suas técnicas, eventualmente em seus temas e formas. O trabalho preciosista de reconstrução a que uma autora como Ana Miranda se lança na elaboração de Musa Praguejadora recorre, conforme discutido, no preenchimento de lacunas pelo viés ficional e imaginativo, haja vista a impossibilidade de conhecer toda a verdade histórica REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL considerações sobre a reescrita do passado, sempre em processo de retomada que constituiria a vida do poeta. Desta forma, trata-se de uma representação artística de um determinado momento ou de uma determinada história de vida, fazendo com que o tema seja tratado literariamente sem perder de vista os fatos ocorridos. No trecho a seguir a autora faz, de forma intertextual, uma mediação entre biografia, obra do autor (representada no trecho do poema) e ficção: Era fácil comprar um título, e se podia conquistar facilmente o tratamento de fidalgo, como dizem os versos: ...que ande pois a fidalguia vendida assim por dinheiro, como trigo no terreiro. 125 Não basta ser fidalgo, é preciso parecer fidalgo. Vestir casaca de veludo, ir conversar à porta de gente rica, ir ao palácio, distribuir cortesias. Também é bom andar sempre a caçar, em montarias; e usar um vocabulário enfatuado, com palavras fora do uso, que poucos entendem: facção, pretexto, efeito... (MIRANDA, 2014, p.75) Esse trecho é um exemplo do emaranhado intertextual que a autora REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL constrói em determinados momentos da sua obra. Desse modo, a noção que Bosi traz das relações intertextuais em sua obra Entre a literatura e a história (2013) nos d| uma vis~o do que seja o trabalho empreendido pela autora: “[...] os textos estão dentro dos textos, saindo dos textos, entrando noutros textos” (2013, p. 222). É importante observar também que além das poesias citadas ipsis litteris muitos trechos ficcionais de Musa Praguejadora são a recriação em prosa de poesias atribuídas ao próprio Gregório. Essas partes estão constantemente em alternância com os textos biográficos que se utilizam da pesquisa documental extensamente explorada, conforme demonstram as notas ao fim da obra. As poesias, também bastante citadas ao longo da obra, servem como fontes documentais da época, como objetos de investigação da linguagem utilizada no seiscentos brasileiro e que serve como base para o resgate histórico que Ana Miranda faz. A obra aqui analisada é construída a partir de estratégias criadas pela autora para ter uma visão mais ampla da vida do autor, dentre elas o recurso da intertextualidade que nos permite dialogar com textos do período em que a obra se passa, nos levando a participar de etapas importantes da vida do poeta, contemplando sua existência como um todo: os estudos em Coimbra, as primeiras aventuras amorosas, seu envolvimento com a política colonial, seu deportamento para Angola e retorno ao Brasil, mais especificamente à cidade de Recife, onde viveu seus últimos dias. 126 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das discussões empreendidas ao longo deste artigo foram descritas e discutidas as iniciativas de reconstrução do passado que a autora Ana Miranda fez para trazer de volta o autor seiscentista Gregório de Matos, pondo em relevo a estratégia de criação que comporta simultaneamente ficção e pesquisa em fontes primárias. A construção textual da qual a autora lançou tomando como ponto fundamental a prática intertextual entendida como estratégia de diálogos entre textos. Dessa forma, história e literatura, ficção e realidade andam juntas no tecido de palavras engendrado por Ana Miranda, que cria um espaço literário de muitas possibilidades, por meio dos quais a Literatura sempre pode surgir e ressurgir de si mesma. Através de um processo de revisitação do momento literário do poeta Gregório de Matos, há, na obra em questão, uma ressignificação do contexto dos seiscentos, refazendo de certa forma parte da história da literatura brasileira pelo olhar particularizado da ficção. Assim, a narrativa romanceada da fortuna crítica deixada por Gregório de Matos Guerra apresenta-se por meio do recurso que une, no mesmo texto, biografia e ficção a fim de renovar o espaço literário do romance contemporâneo. Invoca-se, portanto, a necessidade de compreender a literatura do ponto de vista das experiências REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL mão para a criação da obra analisada também é de extrema relevância, humanas, considerando as obras literárias como experiências de vida que podem contribuir para uma consciência de si, da relação com o outro e, ao mesmo tempo, da sua própria história e memória. Paul Ricoeur, em A memória, a história, o esquecimento (2007, p. 391) faz a seguinte assertiva: “Para nós, é infinitamente mais promissora a afirmaç~o segundo a qual repetir n~o é nem reefetuar imediatamente, nem reelaborar: é ‘realizar de novo’”. É justamente na novidade desta realização de cunho literário que o presente estudo pretendeu aqui analisar, de forma inicial, a obra Musa Praguejadora, ambicionando caminhar para uma pesquisa mais ampla com vistas a 127 compreender a vida do autor barroco por meio do processo de ficcionalização empreendido por Ana Miranda. REFERÊNCIAS REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2019 – EDIÇÃO ESPECIAL - VII EIEL BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. _______. Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013. BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. _______. As fronteiras instáveis entre História e Ficção. In: AGUIAR, Flávio; MEIHY, José Carlos Sebe Bom; VASCONCELOS, Sandra Guardini T. (Orgs.). Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997. _______. O que é História Cultural? Trad. Sergio Goes de Paula 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2008. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, poesia, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MIRANDA, Ana. “Musa Praguejadora”, de Ana Miranda [dez. 2015]. 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