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monumentos CIDADES | PATRIMÓNIO | REABILITAÇÃO

monumentos CIDADES | PATRIMÓNIO | REABILITAÇÃO 33 ABRIL 2013 monumentos DOSSIÊ: UMA PRODUÇÃO Guimarães 33 monumentos N.º 33 | ABRIL 2013 DIRET OR F OT OG RA F I A A G RA D EC I MENT OS João Vieira António Cunha (à exceção das que se encontrem com outra identificação na legenda) A revista Monumentos agradece a cedência gratuita de imagens incluídas na presente edição às seguintes entidades: Arquiteto Sergio Fernandez; Arquivo Histórico Ultramarino; Arquivo Municipal Alfredo Pimenta; Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Associação para o Estudo, Defesa e Divulgação do Património Cultural e Natural; Câmara Municipal de Guimarães; Centro de Estudos da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho; Diocese do Porto/Secretariado Diocesano de Liturgia; Direção-Geral de Infraestruturas do Exército/Gabinete de Estudos de Arqueologia e Engenharia Militar; Direção-Geral do Património Cultural; Direção-Geral do Território; Fundação Calouste Gulbenkian/ Biblioteca de Arte; Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva; Fundação Martins Sarmento; Ordem Terceira de São Francisco; Real Irmandade de Nossa Senhora dos Santos Passos. CONSELHO EDIT ORIAL Alexandre Alves Costa José Eduardo Horta Correia José Manuel Fernandes Nuno Portas Raquel Henriques da Silva Vítor Serrão P ROJ ET O G RÁ F I C O TVM Designers PA G I NA Ç Ã O TVM Designers COORDENAÇ ÃO D I S T RI B U I Ç Ã O EL ET RÓNI C A Andrea Cardoso Imprensa Nacional-Casa da Moeda, SA REDAÇ ÃO ED I Ç Ã O Maria João Reis Martins Paula Tereno Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP Fundação Cidade de Guimarães T EXT OS Alexandre Alves Costa Deolinda Folgado Eduardo Fernandes Eduardo Pires de Oliveira Joaquim Inácio Caetano José Ferrão Afonso José Manuel Fernandes Maria Manuel Oliveira Maria Mónica Brito Mário Gonçalves Fernandes Marta M. Peters Arriscado de Oliveira Miguel Soromenho Ricardo Agarez Sílvia Ramos Tiago Borges Lourenço P ROP RI ED A D E Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, IP Av. Columbano Bordalo Pinheiro, n.º 5 1099-019 Lisboa Redacção: 21 942 77 80 E-mail: sipa@ihru.pt Internet: www.monumentos.pt Preço: 8 € (IVA incluído) ISSN: 0872-8747 Os textos são da inteira responsabilidade dos respetivos autores. Os textos e as imagens desta publicação não podem ser reproduzidos sem autorização prévia do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana. monumentos CAPA Guimarães, Rua Rainha D. Maria II, 2013 © IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. s e d i t o r i a l EXERIT AUT DOLOR alit iure faccum volore veA EDIÇÃO DE UM NÚMERO da prestigiada revista lessis am vercipit, quisl irit lum num Monumentos dedicado a Guimarães nãozzrit podiaaccumdeixar de consideração e o apoio da entidade resmomerecer lorerilita prate doloborem doloreetuero doluponsável cultural ipit de Guimarães 2012, tpatuero pelo odit programa nulpute venim at acip eugiat, Capital Europeia da Cultura. Mas não se trata apenas consequis acilisi. de tirar partido de uma coincidência temporal, pois é Bor doluptate veniation certo que iurem o património edificado e a históriaullam urbana do da commy nulla consequ atummolesse modignibh cidade berço a todo o momento justificariam a atenção editorial da facil Monumentos. Sucede, isso sim, que ea faci eros eu ullaore dunt pratem doloreeGuimarães 2012enis desenvolveu uma linha tum dolenim adip ex et, qui blaprogramática faccum veespecificamente dedicada aos estudos sobre o lugar da lenit aliquatue magna con exero odiat adignibh cidade na história da cultura portuguesa e europeia, eum quis nos enim quisisciduis numsan ver ip eue abarcando um conjunto diversificado de exposições facin veniscipit acipsum quipsum quat ad ming de obras preparadas e editadas entre 2011 e 2013. exemplo, a arquitetura foi raestrud alvo de nova erciAssim, el do por conse magna faci blaorpe tio investigação, com a publicação de um Guia de Arquicommod eugait nostie esectem incidunt eliqui bla tectura de Guimarães e de um repositório de projetos feumsan ex elesecte do core et adiamet, quisi tem de arquitetura do século XX, de uma monografia sobre vel projeto exer sisi coreTávora, te feugue ea feu de feugue um de blam, Fernando a realização duas consequat veniamet accummod modio con ullangrandes exposições sobre Nuno Portas e Fernando Távora e deiuscincinim uma outra dedicada à arquitetura dipsum zzriliq uiscin ercinisindustrial erci tat. da grande destaque dasnulput letras, lore das To região. odoloreFiguras riuremdeiurercidunt wissim artes e das ciências vinculadas a Guimarães, como modiam nosto dolor ing ex eum vel in utem doFrancisco Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Raul lorper atincipsum iustrud min venit lobore dolorBrandão, Abel Salazar e Joaquim Novais Teixeira foram evocadasduip através abordagensvel historioti onulpute enimdeet,novas veliquamcore ut ilit gráficas, expositivas e cinematográficas. Novos olhavenibh eugiat. res sobre peças patrimoniais relevantes de Guimarães Rat nullaor eriure faci tio dolore dunt ut utpaforam suscitados em exposições como a que o Museu tincilis venit desenhou veratueroem estrud endiaAlberto at, Sampaio tornomagniss da temática do mc incilit, susto de duis ametatravés ulput da in anjoonulla ou dosfaccum enxovais da Madre Deus, edição niam de monografias como a que por objeto o ullam volobor peraessit am tem in essectem qui túmulo geminado dos Pinheiros Igrejacommodo de Nossa tio et nos delit lobore velis del da ut adit, Senhora da Oliveira, da recuperação de peças do patri- lestio odolore te te doluptat, sisim in henissim veliquisim zzrit lor susting et iuscilis nisi blam vulput ulluptat la con henibh el utpat, commy nonsequatisi et pratem ate vullum zzriuscincil in O PRESENTE NÚMERO da revista Monumentos, publieugiam zzrit velendre mincil digital, digna resulta feu feuissecado exclusivamente em formato de um quam dionsed eliquam, veletrabalho editorialting iniciado aindasectem em 2011.iniscipit Suspenso em fevereiro de 2012 por razões financeiras, o projeto viria sequam delis nos eum doloreros num erat luptaa ser retomado enibh em finais desse ano, já noercontexto da tie minciduip eliquam etueros si. parceria institucional com a Fundação Cidade de GuiNulluptat. Ut lute ero odolore del do odo domarães e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda. lorem alisl ullaore dolorerci tat. Idunt ad tie tradufeum A escolha de Guimarães para tema do dossiê estin ut vel utem velesenisi eugue dolortie ziu a vontade da equipa editorial de então, bem feuisi como do Conselho Diretivo do Instituto de Habitação e Reablam iril et alisim nulputet etum do dunt laoreet, bilitação Urbana, de associar a publicação ao evento volestrud exerit essisi. Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura. Porventura o conjunto final dos contributos submetidos a publicação neste formato digital da Monumentos não refletirá totalmente a riqueza do legado arquitetónico e urbanístico vimaranense, em particular as transformações nele desencadeadas pelo referido evento. Todavia, a totalidade de estudos e reflexões que aqui foi possível reunir destaca a importância que esta urbe Magna facilla facin et biografias nonsent mónio musical maisfeu antigo, ou verosting da edição de utat ut nismodolent velit iureo de figuras históricas. la O consequi legado de erostion Guimarães para entendimento algumasdolut tendências e linhas força dit iniat. Obordeametum nulputate tin de ullaore da história de Portugal no contexto Europa Sul e velessequam iriure eugiat praeseda molor ingdo exeros do Mediterrâneo foi alvo de um ensaio que constitui a duis nullumm odionsequip esectem dipiscil in eliderradeira obra do saudoso professor e urbanista Costa sissed iureetue fotográfico digna aciliquat veriliquis Lobo. Oetpatrimónio da cidade mereceunum um autpat do deliquis augait illum volestrud eliquat conjunto de intervenções sistemáticas de salvaguarda e valorização. Densificou-se e ampliou-se inventário irit erostrud et, sequi esequat aliquisoismolortie e o conhecimento sobre a si história cidade, dos seus magnit loboreet dolorer bla feudafaccumm olobor edifícios, documentos e representações patrimoniais. ipsummy num aliscinim eliquipissi eraestrud esecCom a exigência intelectual que se tornou seu apatet iril oelit esequam nosto33 et,dasum velisl dolutat. Ut nágio, presente número Monumentos acresce ing er sectem vullaore commolor secte feum doloa esta lista sumária importantes contributos para identificar Guimarães e quanto prere enim at amconquanto ullumaoditpassado inciliquis nis doaodelit, sente. Passa em revista o desenho e funções do centro sent lore molobore tate dipit dolorper si. histórico até ao mais recente projeto de intervenção, Iliquis alis acilla commy nonsequis dolorero visita projetos emblemáticos da modernidade urbana, euisim como a esequam Pousada dacommodi Costa ou gniamco o campus mmodolupde Azurém, tat, sustrud magnis del ipit nim ad de mod do con destaca edifícios notáveis das décadas 1930-1950, carreiavolore novos elementos sobre o passado industrialalis da velit, dolore magniam dolore faccum cidade, propõe reinterpretações de elementos patrimoeugait ex exer ilit adit prat, quat. niais de pintura e de arquitetura. Re magna facipisl ip et nis non et, sisi blaor Aos autores dos textos, ao corpo editorial da revisaliquamet in ver adigna cortincidunt volutat. ta e sobretudo ao seu diretor, Dr. João Vieira, o meu testemunho gratidão. Este foi talvez um dos númeFaciduntdeadiam aliquat. ros Dipit, mais difíceis complexos de commod produzir. euis Agradeço si. Ore emin henim do nostambém aos responsáveis da Imprensa Nacional-Casa to odolor illa faccum dolortin ero estrud dolorem da Moeda, particularmente ao Dr. Duarte Azinheira, a irilis accumdaqui tet aut augiamet praesse magna viabilização publicação. facin ulla feugait alis nulla faciduip euisi eu faciJoão quisciduipis Serra pit accum ilissim quat am, dolobor PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO tismod dolorpe raesto cor si. CIDADE DE GUIMARÃES / EUROPEIA DA CULTURA Nosto od tat nit utat. CAPITAL Duip exerit ad min ulluptatem ipsum velenis aut dolobore vel dolut esto commolor ip et non ullandiam in henit nonulputem dolum zzriliquat acin exeriurem iliquatin assume, no presente como no passado, nos contextos ulla feugait ulpute identifica, ero eum estuda ex enteprat voloreeregional e nacional; (re)interpreta tum duis ea ad tisimpatrimoniais vel exercidunt nit ate mincil os principais valores – materiais como imateriais – em presença; analisa experiências arquiinciduis eriustis aci tate verat, quat. Put ad ming tetónicassequismolore e urbanísticastio de do construção, de reabilitaeuguer corem exeros digna ção, de restauro e de valorização de iniciativa pública feui tem in etuero dolenit et wis adit aliscilisci et municipal e estatal, evidenciando e problematizando ing ea feugait niamcore min ulput irit, quatumm princípios e conceitos orientadores, políticas e estratéoloreet, quat,metodologias quatem volum nulluptate dolore gias seguidas, e instrumentos utilizados. Nessa medida, com este número a revista Monufeuis augueros dolor in heniamet, volesto dolorementos cumpriu, uma vez mais de forma rigorosa e Ci blan ute dolor in hendiat ullaorerat. estimulante, a sua função de estudo, documentação e divulgação do património arquitetónico, urbanístico e paisagístico nacional e de matriz portuguesa conLorem Ipsum Sit no Amet texto do SIPA – Sistema de Informação para o PatrimóDIRECTORA DA MONUMENTOS nio Arquitetónico. João Vieira DIRETOR DA REVISTA MONUMENTOS DOSSIÊ: José Ferrão Afonso, 6 Guimarães Guimarães ad radicem montis Latito Marta M. Peters Arriscado de Oliveira e Sílvia Ramos Mário Gonçalves Fernandes 20 O centro histórico de Guimarães: formulações, desígnios, planos e substância Deolinda Folgado 38 Uma indústria em Guimarães: os curtumes Joaquim Inácio Caetano 52 A pintura mural do século XVI em Guimarães Miguel Soromenho 60 Miguel de Lescole e a capela-mor da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães Eduardo Pires de Oliveira 66 André Soares em Guimarães Maria Mónica Brito 74 Paço dos Duques de Bragança em Guimarães: alguns vetores de leitura José Manuel Fernandes 88 Guimarães: cinco edifícios notáveis dos anos de 1930-1950 Alexandre Alves Costa 102 Pousada de Santa Marinha da Costa, 1976-1985 Eduardo Fernandes 108 Entre terras de campo e bons castanheiros: o Campus de Azurém da Universidade do Minho O Castelo de Guimarães durante as obras de consolidação da envolvente, fotografia de autor desconhecido, 1953 . © IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitectónico. Maria Manuel Oliveira 118 (re)Desenhar no coração da cidade: o Projecto de Reabilitação Urbana da Praça do Toural, da Alameda de São Dâmaso e da Rua de Santo António, em Guimarães INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITETÓNICO 132 Paço dos Duques de Bragança VÁRIA Tiago Borges Lourenço 142 Ricardo Agarez 150 162 Uma arquitetura de representação adaptada aos trópicos no SIPA. A propósito do projeto Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónicas Lisboa em Olhão/Olhão em Lisboa. História e fábula em três bairros de habitação económica, desde 1925 Publicações 6 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Guimarães ad radicem montis Latito JOSÉ FERRÃO AFONSO M A R TA M . P E T E R S A R R I S C A D O D E O L I V E I R A S Í LV I A R A M O S A cidade de Guimarães encontra-se implantada numa formação interfluvial da bacia do Ave, confinada por um arco de colinas. Sobressai, dominando a ribeira, entre os rios Ave e Vizela. Ao longo do tempo deteve, no espaço de Entre Douro e Minho, uma posição chave de convergência do sistema viário que fazia a ligação entre o Norte, a Galiza e Braga, e o Sul, seguindo percursos alternativos de travessia do rio Douro e de passagem às Beiras e à Estremadura. Em sentido concorrente cruzam as vias de penetração do litoral, em especial ao longo do vale do Ave, mas também as do Douro Litoral, em direção ao interior de terras de Basto e de Trás-os-Montes. Para além de Guimarães despede-se o Minho de horizontes abertos e colinas onduladas, serram-se os montes. Foram essas rotas linhas de conquista, de invasão, de razia; de produção e de trânsito de mercadorias; caminhos da arte, de mestres-construtores e de artífices; corredores de comunicação entre o Alto Douro, a sede da diocese primaz de Braga e o interior trasmontano, e de estreita relação de afinidade com as terras adjacentes de Montelongo e de Basto. Na bacia hidrográfica do Ave, com a bordadura de montes que anima o recorte do vale e individualiza os recantos abertos pelo curso dos seus afluentes, distribuíam-se de um e do outro lado das margens do rio as antigas terras de Sande e de Guimarães. Ao tempo em que a vila vimaranense surge como polo urbano, o seu povoamento é denso. Uma malha fina de freguesias testemunha a evolução histórica do território e as mais antigas constam mesmo do Paroquial Suevo. A organização de paróquias, por São Martinho de Dume, mantém-se no período instável subsequente; novas freguesias são fundadas com a presúria e o encastelamento. Ainda durante o período medieval, por diminuição de fregueses e de rendimentos, o número de paróquias irá reduzir-se, permanecendo, contudo, a sua memória viva na distinção dos lugares englobados nas freguesias vizinhas. Em alguns casos, esta extinção encontra- -se associada a uma rarefação dos lugares habitados no monte, todavia, na documentação medieval, a referência para situar bens, igrejas, mosteiros e propriedades ainda era, precisamente, o monte. Não seria o acidente geográfico de relevo, um ponto alto da região, mas o monte ou alpe tomado pelo antigo povoado castrum: subtus mons ou ad radicem montis com o mesmo sentido de ad radicem castri1. Os lugares de habitar formam, já então, um cordão de povoamento mais próximo do vale, a mediar entre o agros e o saltus. Ao contexto ligam-se os mosteiros, na organização religiosa das comunidades e no fomento agrícola, a exemplo de São Torcato e do Souto, e na assistência e hospitalidade a viajantes e peregrinos. Destacavam-se nessa função os mosteiros de Vila Nova de Sande e de São João da Ponte, que se implantavam no vale feraz junto à ponte romana sobre o Ave2, na estrada para Barcelos, numa área de villae rurais, de casais e de quintas. A fundação A instituição do mosteiro duplex, em Guimarães, por volta de 950, pela condessa Mumadona Dias, viúva do conde Hermenegildo Mendes, no local aproximado onde hoje se ergue a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, dá-se por escambo da villa de Guimarães foi, desde a sua fundação, muito condicionada pelo território envolvente e pela capilaridade entre o rural e o urbano. Também desde a origem, os diversos monarcas estabeleceram com ela uma relação intensa, que traria proveitos para ambos os lados; a cidade tornar-se-á um centro de peregrinação de reis em crise de identidade e adquirirá uma espessura mitológica sem par em Portugal, o que contribuirá, igualmente, para a criação de uma imagem de cidade muito forte; esta está presente na planta do século XVI e manter-se-á extremamente ativa em épocas posteriores. monumentos 33 DOSSIÊ 7 1 | Guimarães e o seu território, planta efetuada pelos autores a partir das seguintes fontes: Carta Militar de Portugal, folhas 70-71-84-85; Plano Director Municipal, 2011; Fernando Távora et al., Plano Geral de Urbanização de Guimarães, 1979-1982; Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Os Caminhos e a Assistência no Norte de Portugal, 1974; e Arquivo Municipal de Alfredo Pimenta, Carta Corographica de Guimarães (Carta geodésica de 1890). TOPÓNIMOS (CARTA MILITAR DE PORTUGAL) Portela, Portelinha Barco, Barqueira, Calçada, Cancela, Cancelas, Carreira, Carreira de Baixo, Carreira de Cima, Corredoura, Estrada, Ponte, Porta Aldeia, Aldeia de Baixo, Aldeias, Cabo de Vila, Casa, Casais, Casal, Casalermo, Casas, Castelo, Cimo de Vila, Herdade, Hospital, Forte, Fundo de Vila, Paço, Paçô, Pousa, Pousada, Pousadas, Quinta, Quintã, Torre, Torre de Além, Torre de Cima, Vila, Vila Fria, Vilar Creixomil, que recebera em partilhas, pela quinta de Vimaranis, que coubera a sua filha. A propriedade seria apenas um prediolo ou villula3, mas era relevante a sua posição ad radicem montis Latito4, na relação com o povoado antigo existente naquele monte largo. No local convergem as ligações viárias de integração regional; no subúrbio, na costa da serra de Santa Catarina, que domina o espaço inter ambas Aves, pontua o Mosteiro de Santa Marinha, vizinho do lugar de Cantonha, denotação de continuidade com a antiga paróquia sueva de Carantonis. Poucos anos depois da fundação, é referida uma incursão de gentios — talvez normandos — ao mos- SÍTIOS Povoado (PDM, 2011) Convento Convento, localização aproximada Ponte (PDM, 2011) Traçado provável de estradas teiro, bem como ao burgo vizinho. Ambos devem ter sido habitados por uma população diversificada: os mosteiros, enquanto núcleos de povoamento e de colonização, tinham, obrigatoriamente, para além da comunidade dos regulares, neste caso os fratres e sorores, populares e nobres, clérigos e religiosos, laicos, funcionários, servos e escravos. O ataque alerta os poderes para a necessidade de defesa do mosteiro e das vias que junto dele corriam; em consequência dessa arremetida, Mumadona doou ao mosteiro, por documento datado de 4 de dezembro de 968, um castelo, designado de São Mamede, que tinha edificado na elevação próxima, o alpe Latito5. 8 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Dois elementos clássicos na criação urbana dos finais da Alta Idade Média estiveram, portanto, na origem de Guimarães. A localização do mosteiro e do castelo, nas margens de sistemas ecológicos diferenciados, o interior montanhoso e a planície litoral, e numa encruzilhada viária importante, iria incrementar um comércio cuja origem era anterior à romanização. Por outro lado, o mosteiro estava obrigado a dar hospedagem aos peregrinos: aqui, como noutros locais do Norte do país, o caminho jacobeu seria um importante contributo para a sedimentação urbana. A marca original da fundação perduraria, pois o povoado organizou-se morfologicamente numa dualidade também clássica na cidade europeia medieval: o burgo monástico, junto da estrada e do mosteiro, futura Vila Baixa e, um pouco acima, a Vila Alta, ou do Castelo. O espaço rural e urbano da vila Nos finais do século XI, o primeiro condado portucalense e o mosteiro entraram numa era de ocaso, tendo o último conde, Nuno Mendes, sido morto num recontro em Pedroso, próximo de Braga, em 1071. O cenóbio e as suas ricas propriedades, que se estendiam desde a Galiza até Coimbra, bem como o burgo e o castelo engrossaram então os bens da coroa de Leão e Castela. Ressurgem no palco da história com o conde D. Henrique de Borgonha, a favor de quem o monarca leonês Afonso VI refundaria o condado. A conquista de Coimbra em 1064 garantira, porém, um desenvolvimento mais seguro à povoação, o que poderá explicar que, em 1096, logo após ter sido investido pelo seu sogro Afonso VI no governo condal, D. Henrique tenha concedido o primeiro foral a Guimarães, que escolhera para local da sua residência. O documento, onde se expunham preocupações comerciais, mas igualmente a necessidade de atrair povoadores, seria confirmado por Afonso Henriques em 1128, no seguimento do cerco empreendido por Afonso VII no ano anterior. O assédio terá posto à prova a eficácia da fortaleza, cuja reformulação tinha sido ordenada pelo conde D. Henrique. A configuração em escudo, com uma torre de menagem, mas sem os cubelos que serão uma adição posterior, data dessa intervenção. A descolagem urbana na Idade Média far-se-á pelo desenvolvimento do mercado no âmago do sistema senhorial que o promoveu, enquadrou e encorajou. Constituem preocupações centrais do foral reafirmado por D. Afonso Henriques o desenvolvimento económico da vila, a atração de populações e a afirmação de liberalidades comerciais, incluindo as de mercadejar em todo o território nacional, nas terras de jurisdição real, sem pagar portagem. Mas o documento detém a particularidade de não incluir uma delimitação do termo do território, sob administração municipal, e de o privilégio, concedido de forma restrita, ter sido estendido6 expressamente aos homens-bons de Guimarães que o tinham auxiliado durante o cerco, habitantes da vila e bem assim os burgueses da terra vimaranense, proprietários espalhados pelos casais, descendentes dos povoadores aforados pelo conde D. Henrique, a quem cabe, ainda na centúria seguinte, a designação de cidadãos, mesmo sem residirem na vila7. Estavam lançadas as bases de um contrato entre a monarquia e os habitantes não só da vila como da sua área de incidência territorial. A paisagem vimaranense, moldada pelo artifício do homem, será integradora dos espaços rural e urbano, numa contínua interação humana, material e cultural. Os nomes dos lugares formarão a densa narrativa do espaço existencial, da forma de vida das comunidades que aí habitaram8. Sem uma noção de espessura e de profundidade da sobreposição de estratos no tempo, não seria possível vislumbrar, na atualidade do espaço habitado, senão a forma difusa de uma ocupação contígua, discreta do território. O regime de propriedade, corroborado por outros indícios, revelaria condições particulares que terão obstado a uma senhorialização do território9, tal como surgira em outras partes de Entre Douro e Minho. No campo permanecia uma burguesia rural, ocupada na movimentação de excedentes de produção e na cobrança e encaminhamento de rendas para os senhorios seculares ou eclesiásticos. Marcavam, bem assim, presença os interesses de burgueses e de mercadores da vila, que adquiriam propriedades agrícolas para rendimento e que, por meio da posse de terra de certa extensão, selavam uma posição social de respeitabilidade e de honorabilidade, expressão de poder, inclusive de nobilitação, também alcançável por casamento10. Por sua vez, já em meados do século XII, vários fidalgos possuíam casas honradas em Guimarães11. A propriedade de casas urbanas e a morada de nobres no burgo coexistiam com a posse de herdamentos no espaço de ambos os rios, Ave e Avizella. Com os tempos, desenhar-se-iam ciclos de vida. No campo, famílias gradas batizavam e casavam na colegiada; filhas recolhiam ao Convento de Santa Clara; religiosos de São Francisco, de São Domingos e irmãos da Misericórdia levavam a enterrar. No campo, a casa de linhagem acolhia sob um teto a família alargada; gerações mais novas assentavam morada urbana, tomavam cargos públicos, ingressavam na clerezia, iam servir a Coroa, partiam para o Brasil e para o Oriente em busca de riqueza12. A contrapartida dos percursos de vida que estreitavam relações entre espaço urbano e rural, através de alianças matrimoniais que uniam famílias titulares de Guimarães, de Basto, de Entre Douro e Minho e do vale do Douro, e que cruzavam estratos sociais entre nobreza e mercadores, entre o serviço do reino e as viagens e estadas em terras longínquas, seria uma “abertura ao mundo”, possível de acompanhar através da observação das transformações urbanas de Guimarães e do quadro edificado do campo. monumentos 33 D. João I, uma só vila Foi também na primeira década do século XII que o mosteiro de Mumadona se transformou em colegiada, embora o documento que lhe assinala os estatutos date apenas de 1229. A sua imagem de Nossa Senhora da Oliveira, a que se atribuíam propriedades miraculosas, com a consequente capacidade de atrair peregrinos e populações, é coetânea. Em 1223 tinha-se efetuado a partição das rendas e do património entre as mesas capitular e prioral da instituição, o que poderá ter sido determinante para a territorialização urbana: referem-se então as paróquias de São Paio (1212) e de São Miguel do Castelo (mencionada em 1216 e, como paroquial, nas Inquirições de 1258). Abundantemente privilegiada e dotada pelos nossos primeiros monarcas, a colegiada assume na hierarquia das instituições portuguesas congéneres um lugar cimeiro. Sendo um dos mais relevantes centros portugueses de peregrinação, ela contribui para a enorme vitalidade da vila, somando-se a uma importante atividade artesanal e mercantil, em que se transformavam e comerciavam os recursos de um território fértil e densamente povoado, servido por uma rede de comunicações de proximidade, articulada e sobreposta aos antigos percursos de longa distância, que uniam não apenas os portos marítimos e o interior, mas também o Sul e o Norte do país. A contínua proteção e as liberalidades dos monarcas, que, sobretudo em épocas de crise dinástica, não dispensavam o enorme potencial provatório e regenerador do mitológico fundador Afonso Henriques, da colegiada que com ele se identificava e da própria Guimarães, fazem DOSSIÊ o resto. Essa vitalidade institui-se numa dualidade fundacional, que se manterá até aos finais do século XIV, vindo os dois burgos — a Vila Baixa e a Vila do Castelo, ou Vila Alta — a ser rodeados por circuitos de muralhas autónomos, embora separados por um pano transversal, partilhado, pertencente ao muro da Vila do Castelo. Unindo os dois burgos corria uma rua, referida já em 1173, embora certamente muito mais antiga, nas proximidades da colegiada designada de Santa Maria e, já perto do castelo, da Infesta13. À dualidade morfológica correspondeu a organização de cada uma das vilas num concelho autónomo. Seria o rei da Boa Memória, na sequência da crise de 1383-1385, a extinguir o do Castelo, tendo também dado ordem para o derrube da muralha transversal. O ritual, simultaneamente criador e memória da paisagem urbana, registaria essas alterações. O padre Torcato Peixoto de Azevedo informa-nos que a procissão do Anjo Custódio, criada na época manuelina, se dirigia todos os anos à Vila Velha, designação pela qual passou a ser conhecido concelho do Castelo após a união; aí chegado, o juiz de fora entregava o estandarte concelhio ao vereador mais velho14, numa passagem de testemunho que registava a antiga autonomia dos dois núcleos. O mesmo D. João I que aboliu o concelho do Castelo será determinante na revitalização do culto dinástico à colegiada, ao fundador e a Guimarães. Em cumprimento da promessa solene feita antes de Aljubarrota dirigiu-se, após a vitória, em peregrinação à Senhora da Oliveira15, percorrendo a pé o percurso desde São Lázaro, na Estrada de Vila do Conde. Mais uma vez o ritual surge como elemento estruturante 9 2 | De Guimarães, c. 1569, planta de autor desconhecido, in: Coleção Diogo Barbosa Machado da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. A planta foi trabalhada pelos autores de modo a realçar a notação subjacente; foi efetuado redesenho apenas no que se refere à representação de pórticos e chafarizes. 1. Igreja de São Miguel do Castelo 2. Castelo de São Mamede 3. Paço dos Duques 4. Convento de Santa Clara 5. Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira 6. Igreja de Santiago 7. Igreja de São Paio 8. Convento de São Francisco 9. Capela de São Sebastião 10. Convento de São Domingos 11. Capela de Santa Luzia 12. Padrão de São Lázaro 10 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê da paisagem urbana: no local onde o monarca iniciou o seu percurso será erguido, mais tarde, um padrão comemorativo que durante séculos marcará um limite urbano. D. João I ordenaria ainda a reedificação da igreja colegiada, que era capela real. No espelho superior da frontaria integrar-se-ia, no quadro do janelão, uma árvore de Jessé, em pedra de Ançã, elevando a imagem da Senhora à vista, sobre a Praça Maior e a sua oliveira. Forma urbana A morfologia da Vila Baixa medieval seria marcada pela proeminência simbólica da Praça Maior e do espaço que lhe ficava contíguo, a Praça de Santiago. A palavra praça assinala, na Idade Média portuguesa, não apenas uma realização morfológica, mas também a decantação de poderes que esteve na sua origem. Ela surge, desse modo, no seguimento da fragmentação do espaço absoluto, eminentemente simbólico-religioso e feudal do românico que, por exemplo, esteve na origem da decadência e do desaparecimento da Vila do Castelo. O mercado começa então a apartar-se do sagrado, com o qual convivera nos adros desde a Antiguidade Tardia, e afirma-se como uma especialização funcional; o seu controlo e regulação seriam um dos atributos essenciais da iconologia do poder real. A Praça de Santiago tomou o seu nome da Igreja de Santiago, possivelmente fundada por francos no início do século XII, num campo limitado pela cerca da Igreja de Santa Maria, pelo seu adro e pela Rua dos Francos16. Junto do adro de Santiago estabeleceram-se os açougues e, mais tarde, o mercado do pescado ficando esse espaço conhecido por Praça do Peixe. Perto, na Praça de Santa Maria, surgirá também uma Rua das Tendas (1351) que resultou da progressiva sedimentação e consequente loteamento do que foi primitivamente um espaço mercantil efémero, referido como “Tendas” ainda na época de D. Dinis. Entre os dois espaços instalar-se-ia uma torre/paço municipal, que só a partir de 1414, com D. João I, seria objeto de particular atenção arquitetónica, que, contudo, não adicionou muito à abstração formal do símbolo. Em Quatrocentos, a Praça Maior já possuía alpendradas a norte, a sul e a poente, e nela faziam audiência os almotacés do concelho. A praça associou, desta forma, a funcionalidade mercantil a uma monumentalização indexada à res publica, por sua vez apoiada nas propriedades de um sagrado forjado na Igreja de Santa Maria e na sua imagem santa, constantemente invocado e revitalizado pelos rituais celebratórios e comemorativos dos cónegos e das peregrinações reais. Surgem assim, para além da torre do concelho, uma série de ícones: o padrão, caracteristicamente oferecido em 1342 por um mercador de grosso trato residente em Lisboa, a oliveira miraculada e miraculosa, o dispendioso chafariz concelhio (c. 1390) e a torre da igreja, edificada de novo já no século XVI. A praça é, também na Idade Média, o movimento pelo qual um exército, dispondo-se para o combate, interrompe a sua marcha. Nos dois espaços imobilizava-se igualmente o fluxo contínuo, de homens e de mercadorias, do principal caminho que atravessava a vila, dotando-se de uma espessura semântica associada aos poderes e às suas liturgias. Esse percurso atingia os limites urbanos, proveniente de Braga e de Barcelos, junto da Capela de Santa Luzia, vizinha de uma gafaria de mulheres. A construção da muralha e da porta designada da Senhora da Graça, e o plano urbano, implantado a partir do início da Idade Moderna, entre essa entrada e a Praça de Santiago, tornaram-no numa lembrança; este percurso, contudo, conduzia à Praça Maior. Prosseguia, depois, na direção sul através das duas vias mercantis mais importantes do burgo: a dos Mercadores e, na sua continuidade, a da Sapateira, esta já mencionada no século XII, a primeira autonomizando-se dela em Trezentos. Com origem no ponto de interceção das duas, dirigindo-se ao postigo de São Paio, ao Vale de Sousa e ao Porto, situaram-se as ruas das Ferrarias e de Felgueiras. A Rua da Sapateira, por sua vez, sairá da muralha pela porta de São Domingos ou da Senhora da Piedade. 3 | Guimarães, Praça Maior e Praça de Santiago, identificação efetuada sobre a planta De Guimarães, c. 1569, planta de autor desconhecido, in: Coleção Diogo Barbosa Machado da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. 1. Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira 2. Igreja de Santiago monumentos 33 A nascente do eixo Mercadores/Sapateira e a sul da Praça Maior, o plano integrou um díspar conjunto de quarteirões, os mais antigos da Vila Baixa, que a muralha abraçará no seu circuito. A poente da Sapateira, porém, o plano urbano poderá ser coetâneo da muralha. Estruturou-se, num desenho ortogonal, em torno dessa via, da Praça de Santiago, da judiaria e da Rua Escura e, mais para norte, ao longo de duas outras vias, as das Flores e de Vale de Donas, que a construção da muralha irá desenhar. A praça regular, de forma quadrangular, que existiu na frente da Igreja de Santiago articula-se com a Rua do Espírito Santo, antiga judiaria; esta inseria-se aproximadamente na mediana do espaço que fora um antigo campo, no enfiamento da igreja17. A configuração dos espaços públicos, nas imediações da colegiada, e o traçado de alguns arruamentos a eles adstritos (além dos referidos, a Rua de Santa Maria) denotam uma disposição urbanística ordenada, que inclui vias paralelas e ortogonais entre si, tanto quanto as preexistências o permitiam, e poderá ter sido concretizada a par com a edificação da cerca da vila. Mas a vila de Guimarães conta também com um outro tipo de formação arruada sinuosa, de que são exemplo as ruas de Santa Maria, na sua parte alta, a Rua da Infesta e, sobretudo, a Rua dos Gatos, ao longo do seu percurso, desde o padrão, na entrada pela Estrada de Vila do Conde, até à praça, no interior da cerca. O traçado curvilíneo dessas ruas é medido e regulado na alternância dos encurvamentos, definindo uma sucessão equivalente de segmentos de espaço urbano. Desse modo se preserva uma escala de vizinhança e de domesticidade, numa via que satisfaz ao mesmo tempo a funcionalidade de trânsito de longo curso. O traçado sinuoso ajusta-se à pendente do terreno e constitui um meio de resguardo de ventos e de defesa de estruturas urbanas em campo aberto18. A implantação da cerca e da Porta de São Domingos sobrepuseram uma nova racionalidade, com incidência no tecido urbano intramuros, na definição da Rua da Sapateira, e na configuração do rossio do Toural. A planta do século XVI A planta quinhentista de Guimarães pertence ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e foi publicada por Maria Dulce de Faria na 21st Internacional Conference on the History of Cartography (Budapeste, Julho de 2005). Encontra-se igualmente na Real Biblioteca do Rio de Janeiro uma planta de Vila do Conde19, assinalada por Rafael Moreira e Amélia Polónia20, integrada na mesma coleção que a sua congénere de Guimarães, organizada por Diogo Barbosa Machado e intitulada Mappas do Reino de Portugal e das suas Conquistas collegido por Diogo Barbosa Machado, o autor da Bibliotheca Lusitana. Maria Dulce de Faria aponta para a execução da planta de Vila do Conde a data de 1568-1570 e para a de Guimarães a de 1562-1570. Juntamente com o geógrafo Mário DOSSIÊ Gonçalves Fernandes concluiu, através da análise das duas plantas, que foram ambas desenhadas pelo mesmo autor; Mário Gonçalves Fernandes concorda ainda com as balizas cronológicas estabelecidas para o documento de Guimarães21. A última data, 1570, justificar-se-ia pela representação, a poente do Toural, da Capela de São Sebastião que, nessa data, seria substituída pela igreja paroquial da mesma invocação. Quanto à outra baliza, 1562, Mário Gonçalves Fernandes fundamenta-a por, nesse ano, as Clarissas terem feito a sua entrada solene no Convento de Santa Clara, citando, a esse propósito, o padre Caldas e Maria de Fátima Falcão Ferreira22. O Convento de Santa Clara, porém, é anterior a essa data: segundo a Historia Serafica, foi seu fundador o mestre-escola da colegiada Baltasar de Andrade: (…) o qual delineando os edifícios em h as casas, & hortas, q possuhia no lugar onde està o Convento (…)23. Frei Fernando da Soledade cita o testemunho de um breve do núncio João, arcebispo Sepontino, firmado em Lisboa, a 17 de novembro de 1548, (...) no qual declara que o Mosteyro já se ia edificando (...). Breve que foi expedido por solicitação da duquesa de Guimarães, D. Isabel (1514-1576), filha do duque de Bragança D. Jaime, então já viúva do infante D. Duarte (1515-1540), filho de D. Manuel I. Só em 1562 e depois de, no ano de 1559, quando a casa ia (...) chegando à sua ultima perfeição (...), o fundador Baltasar de Andrade ter dirigido à Santa Sé a súplica para ereção do convento, as freiras fizeram nela a sua entrada solene24. Saliente-se ainda que no documento está representada, com grande detalhe, a planta baixa de todo o edifício do convento, uma parte do qual só viria a ser erguido nos séculos XVII — a igreja — XVIII — o claustro junto dela — e XIX — a ala norte. Essa planta, por conseguinte, só poderia ter sido executada por alguém que tivesse acesso ao projeto; o facto de a Igreja de São Sebastião, iniciada em 1570, não estar ainda desenhada no mapa indica igualmente que este deverá ser bem anterior a essa data, quando ainda não existia projeto para ela e, muito provavelmente, a decisão de a construir ainda nem sequer tinha sido tomada. Outros detalhes explicitados na planta apontam, igualmente, a sua execução para uma data bem mais recuada: por exemplo, na cabeceira da igreja do Convento de São Francisco não estão ainda representadas as duas capelas colaterais à capela-mor. A do lado do Evangelho — Capela do Cristo Crucificado — foi instituída por Pedro Álvares de Almada em 1507, enquanto a da Epístola, do Senhor Crucificado, anexa ao morgado do Pinheiro, foi ereta por Fernão Martins de Almeida. Ambas são góticas e cobertas com abóbadas de nervuras; a dos Almadas, do lado do Evangelho, mais evoluída, já com o sistema de terceletes e combados introduzido por João de Castilho. Dadas essas características, a que se adiciona a completa ausência de ornamentação “ao romano” a execução de qualquer uma delas muito dificilmente poderá ultrapassar os anos quarenta do século XVI. 11 12 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Resta o paralelismo com a planta de Vila do Conde: Rafael Moreira justifica a sua datação (1568-1570) pela urgência posta pelo cardeal infante D. Henrique no levantamento, com objetivos militares, dessa e de outras povoações. Amélia Polónia, porém, faz notar que na planta de Vila do Conde não está representada a costa marítima, o que seria indispensável se a questão bélica estivesse em cima da mesa; as balizas que adianta para a sua execução (1550-1580) baseiam-se ainda noutras referências25. Rafael Moreira, contudo, adianta um pormenor importante: a representação, na matriz, da Capela de São Miguel, concluída em 156126. Esta capela localizou-se no lado do Evangelho; porém, a estrutura que está representada na planta poderá não corresponder a essa fundação, mas sim à sacristia que a precedeu no mesmo lugar. Com efeito, a autorização para construção da capela que, segundo Marisa Costa, teria sido pedida à câmara em 1556, foi concedida com a condição de os seus fundadores deslocarem a sacristia, que aí se encontrava, para outro local27. A segunda capela, frente a essa, na costã do lado da Epístola, e de invocação do Corpo Santo, estava já concluída desde 154228. Um outro ponto sustenta uma datação mais recuada da planta, que não foi acabada, devendo, por conseguinte, ser posterior à de Guimarães: no Convento de São Francisco, visível à direita em baixo, não está ainda representada a capela do lado da Epístola da nave, contratada, em 1566, por Estêvão Ferreira d’Eça e que deveria estar concluída no espaço de um ano. A planta de Vila do Conde poderá, portanto, datar de cerca de 1550, baliza mais antiga proposta por Amélia Polónia; a de Guimarães dos anos quarenta da mesma centúria. Resta saber qual a razão da encomenda das duas plantas, que requereram uma bagagem científica, meios económicos e um controlo da produção iconológica que não estariam ao dispor de qualquer um e que se associam geralmente ao rei ou à alta nobreza. A compra, em 1540, do senhorio de Vila do Conde pelo infante D. Duarte, filho de D. Manuel I e, pelo seu casamento, em 1537, com D. Isabel (1514-1576), filha do duque de Bragança D. Jaime, duque de Guimarães, poderá responder a essa questão. O interesse de D. Jaime pela cartografia e a colaboração de matemáticos e geógrafos na sua corte de Vila Viçosa29 poderão ter facilitado o saber e a existência de meios necessários à execução da planta. D. Duarte morrerá poucos meses após a rematação do senhorio, em setembro de 1540, mas este estará na posse da viúva e do seu filho, D. Duarte II (1541-1576), até 1576 quando, por morte de ambos, ficou vaga a sucessão30. A planta de Guimarães é produto de um sistema de representação científico que desencriptou o organicismo simbólico da cartografia medieval. Numa época em que se reacende, mais uma vez, o tema mitológico fundacional, ela resume a vontade de criação de uma imagem da vila associada a uma linhagem, a dos Bragança, que entroncava em Afonso Henriques. Será importante, a esse propósito, salientar que na planta as duas construções que sobressaem, pelo cuidado que foi posto na sua representação, são exatamente o Paço dos Duques e o Convento de Santa Clara, ambos ligados à casa ducal31. A propósito deste último, convirá ainda referir que D. Isabel se fez pintar vestida com o hábito de clarissa, podendo ter herdado do seu pai, D. Jaime, a dedicação ao ramo franciscano dos Observantes, que o tinha levado a fundar uma série de casas suas no Alentejo. A grande proximidade de D. Jaime com frei João de Chaves, seu companheiro na expedição a Azamor, que foi provincial dos Franciscanos, prior do Convento de São Francisco de Guimarães, do mosteiro de Cónegos Regrantes de Santa Marinha da Costa e, apesar de conventual, um grande protetor dos Observantes, estaria assim justificada. Outros âmbitos de atuação de frei João de Chaves sugerem atenção, não apenas em relação ao duque de Bragança, mas também ao serviço do rei D. Manuel I32. Em 1509, frei João de Chaves encontra-se envolvido no plano de fundação de estudos e de um colégio que D. Diogo de Sousa pretendia criar em Braga e que o rei se declarara pronto a sustentar. Logo em 1512, recebia um alvará do monarca para prosseguir um mesmo intento de criação de um colégio, ou escola, em Guimarães, assunto que já tinha sido por ele discutido com o rei e que os juízes e vereadores da vila formalizavam, num pedido a D. Manuel I, em 25 de fevereiro de 151233. O pedido efetuado ao rei resultava de uma reunião havida em Guimarães, que juntou a vereação, o alcaide-mor e o ouvidor do duque. Na carta anunciavam: (...) com muyta jnstançia se poer em obra como de facto ja se faz (...), e que dispunham de ajudas de (...) madeira e outras coisas (...)34. Os estudos seriam criados na vila em 1537 e funcionaram até 1550, tendo o rei alcançado bula papal que concedia a equiparação dos graus aos da Universidade de Coimbra, apesar da forte oposição desta última. O colégio alojar-se-ia no Mosteiro de Santa Marinha da Costa, que fora entretanto entregue à Ordem dos Padres Jerónimos, tendo como prior frei Diogo de Murça (até 1543). Aí fariam os seus estudos os filhos naturais de D. João III e do infante D. Luís, D. Duarte e D. António, e também frei Heitor Pinto, possivelmente, em 1546-154735. Nicolau Clenardo visitaria o colégio em 1537; o infante D. Luís estaria na vila em 1548. Guimarães, Vila do Conde, o vale do Ave e a zona de Basto estão ainda unidas, nessa época, por um surto construtivo, ligado ao Renascimento, que partilha um caráter identitário próprio. Desse modo, a Câmara Municipal de Vila do Conde, concluída em 1543, é atribuída por Rafael Moreira a Francisco de Cremona; é também possível que o projeto da primeira igreja da Misericórdia da vila, com nave única, erguida depois de 1525 e já representada na planta quinhentista, seja seu. Perto de Guimarães, o mesmo historiador credita o cremonês com o projeto da loggia da Capela do Santíssimo Sacramento da Igreja de São Tomé de Negrelos, também enquadrável nos anos quarenta do século XVI. Francisco de Cremona deve ter igualmente trabalhado no Mosteiro de Santo Tirso, de que D. Miguel da Silva era abade comendatário, em cuja monumentos 33 igreja houve obras importantes36; aí estão documentados, entre 1534 e 1536, Pedro de La Faya, depois associado à Sé de Miranda do Douro e, entre 1529-1530, Álvaro Gonçalves, pedreiro de Viseu. Este último será mais tarde, já na década de 1560, mestre das obras do mosteiro37. A Capela do Santíssimo Sacramento em São Tomé de Negrelos fora instituída pelos Lopes de Carvalho, senhores de Abadim e de Negrelos, que mandariam erguer em Guimarães, no gaveto entre as ruas do Espírito Santo e de Vale de Donas, uma residência que mostra ainda um trecho de fachada renascentista, em granito aparente, que poderá datar igualmente da década de 1540. Algumas outras casas nobres e pórticos de Guimarães mostram um vocabulário renascentista bem mais contido e “romano” do que, por exemplo, o que se encontra, pela mesma época, no alegre “Renascimento de Granito” do Alto Minho. Finalmente, surge ainda associada a Guimarães a figura de António Pereira Marramaque, senhor de Basto, humanista e amigo de Sá de Miranda, que ordenou uma capela de invocação de nossa Senhora da Conceição (1554) na sua Quinta da Taipa, em Cabeceiras de Basto. A capela, no extremo de uma longa alameda que a une à residência de planta em L, também intervencionada no século XVI, tem uma falsa planta centrada — com o braço posterior cortado — e é coberta por uma cúpula semiesférica. Em Guimarães, deve-se também ao mesmo António Pereira uma intervenção, em 1553, na capela familiar de São Pedro Mártir instituída no Convento de São Domingos. É neste contexto de renovação cultural que podemos enquadrar a planta de Guimarães: se ela foi um elo estratigráfico importante na contínua sedimentação da mitologia fundacional da vila, utilizou para tal todo um conjunto de novos conhecimentos, de certo modo sintetizando a ativa paisagem humanista da vila e da sua região. Daí, também, a importância do paço38, nela representado em grande destaque, que o padre Torcato Peixoto de Azevedo afirma ter sido residência de D. Duarte39. O alçado do paço e o corte pelo interior do castelo, rebatíveis, consagram um processo científico de representação da imagem da cidade; em planta, a posição da rosa de ventos parece fixar algumas das coordenadas do espaço urbano. O Paço dos Duques surge como uma das suas referências principais40. Em legendas, escritas no alçado rebatível e na planta do Toural, DOSSIÊ são indicadas as diferenças altimétricas entre o paço, a Praça do Toural e o sítio do padrão41, no limite urbano sudoeste, no local onde começara a caminhada a pé de D. João I. A representação do paço sugere que a ala nascente, sobranceira à muralha, constitui a parte da edificação principal já concluída. Para o torreão sul ascende uma larga escadaria, ainda mencionada num tombo setecentista transcrito por Albano Bellino42, que se dirige à Porta da Freiria aberta na muralha. Essa seria a entrada nobre. A quadra em torno de um pátio e bem assim as duas alas, norte e sul, cuja planta baixa é visível com um avançado sistema de compartimentação interior, ainda hoje existem. Elas, porém, não estão na disposição simétrica relativamente à mediana do pátio representada na planta. Esta acolhe talvez um projeto coetâneo, provavelmente ainda em execução à época, como parecem sugerir as formas de algumas portas e janelas, datáveis do século XVI, que em parte desapareceram com a intervenção efetuada pelos Monumentos Nacionais. Por sua vez, os torreões da ala poente apresentam uma configuração planimétrica distinta dos correspondentes a nascente e daquela atualmente existente. Frente à ala poente e tangente à fachada norte surgem assinaladas duas construções preexistentes que não parecem compatíveis com a imagem e a presença do paço no espaço urbano. No pátio interior, encontra-se representada uma estrutura não identificável, com pormenores de desenho claramente distintos da representação seguida nos claustros de Santa Clara43. O rigor de certos pormenores marcados na planta e as diferenças observadas entre a representação e o existente sugerem que uma parte da representação planimétrica do paço, tal como o desenho daquele convento, possa corresponder a uma intenção de projeto. O arrabalde Na planta quinhentista é também representado o grande campo, contíguo e exterior à muralha, que a poente, entre a Porta de São Domingos, ou de Nossa Senhora da Piedade, e o Postigo de São Paio se chamou Toural e, a nascente, entre as torres da Alfândega e dos Cães, se denominou Terreiro de São Francisco e Campo da Feira. Para além dessa cintura 13 4 | Guimarães, Rua de Gatos, Rua da Sapateira e Convento de São Domingos, identificação efetuada sobre a planta De Guimarães, c. 1569, planta de autor desconhecido, in: Coleção Diogo Barbosa Machado da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. 1. Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira 2. Convento de São Domingos 3. Padrão de São Lázaro 14 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê periférica localizaram-se os dinâmicos e economicamente especializados arrabaldes da vila. Se a origem desse espaço foi uma zona onde a construção não era permitida, após a construção da muralha, por razões militares, os conventos mendicantes, para aí transferidos, impulsionam uma nova definição e dinamização urbanas. As primeiras notícias fidedignas relativas à presença dos Dominicanos na vila datam de 1272, mas Falcão Ferreira indica o ano de 1284 como sendo o primeiro em que se refere a obra do seu convento44. Este localizou-se, como era hábito em instituições similares, junto de uma via importante de acesso à vila: a Estrada de Vila do Conde. A construção da muralha, porém, obrigaria à sua deslocação, em 1323, para o local que atualmente ocupa na antiga Rua dos Gatos45. Os Franciscanos, por sua vez, ter-se-iam instalado em Vila Verde. Daí deslocaram-se para junto da Torre Velha e, finalmente, pela mesma razão — a construção da muralha — invocada em relação à deslocação dos Dominicanos, ter-se-iam estabelecido, depois de 1322, na sua atual localização, junto do importante núcleo industrial de Couros, habitado por curtidores mas, também, cutileiros. Falcão Ferreira, porém, refere o interesse dos Frades Menores por essa zona, ligando a atividade construtiva, já no século anterior46. A igreja conventual, contudo, data do século XV; a licença para a sua edificação, concedida em Braga por D. João I, data de 3 de novembro de 1400 e é atribuída ao mesmo mestre Anton que terá edificado o Paço dos Duques. Com efeito, a sua planta de nave única, grande transepto, cabeceira com apenas uma capela-mor e cobertura em tesoura, muito inclinada, tem pouco de comum com a tipologia da arquitetura mendicante portuguesa. A imagem da cidade Em meados de Seiscentos, aquando do passamento de D. João IV, em 29 de novembro de 1656, são três os espaços principais da vila onde são repetidos os atos qualificados de sentimento e demonstrações pelo seu falecimento, com a quebra dos escudos: na praça da colegiada, no Toural e, finalmente, no Terreiro das Freiras, concedendo cidadania ao mundo de clausura. O Toural — local onde se corriam touros e se fez feira do gado, daí o seu nome — possuía, junto à muralha, um patim a que acediam uns degraus, utilizados para assento dos espetadores dos numerosos espetáculos que aí se efetuavam. A progressiva racionalização da paisagem urbana e do seu caráter representativo exigia espaços amplos, pelo que essa praça foi ganhando importância; em 1585, por exemplo, será erguido no seu limite sul, frente ao Postigo de São Paio, um monumental chafariz de taças. A Praça Maior, por sua vez, embora dotada de um extremo funcionalismo simbólico, era pouco operacional em termos dos novos pragmatismos urbanos. Desse modo, em 1794, a vila assistiu, a propósito da realização da feira semanal, a uma “guerra” entre esses dois espaços, na qual se procedeu à enunciação das qualidades de cada um deles; a razão para o conflito foi a deslocação do mercado do Toural para a Praça da Senhora da Oliveira. Esta, segundo os seus detratores, de “praça” tinha apenas o nome, por afinal apenas se tratar de uma (...) rua (…) muito fúnebre (...), onde não se podiam arrumar carros, nem dar de beber às bestas naquele que fora um dos símbolos do município, o antigo chafariz adossado à torre da igreja. A oliveira sagrada, por sua vez, era um estorvo, juntamente com o padrão, à passagem do trânsito; estorvo eram também os ofícios e rituais que na praça se praticavam, sobretudo o responso pela morte de D. João I, todos os sábados, junto do padrão. O alpendre sob a câmara não permitia o arrumar dos carros, que tinham de o ser por trás da vizinha Igreja de Santiago, por a praça junto desta ser exígua. Em contrapartida, o Toural era muito largo e airoso, local de passagem (...) das pessoas que vêm de Braga, Porto, Barcelos, e mais outras partes da província (...)47. Desde o século XVII que o movimento para fora de muros se implementava. Isto apesar de um novo surto 5 | Guimarães, Praça do Toural e Terreiro de São Sebastião, identificação efetuada sobre as plantas: a) De Guimarães, c. 1569, planta de autor desconhecido, in: Coleção Diogo Barbosa Machado da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil; b) Planta da Cidade de Guimarães, levantada pelo engenheiro Manoel D’Almeida Ribeiro, 1863-1867, folhas 1 e 7. 1. Igreja de São Sebastião 2. Chafariz do Toural 3. Alfândega 4. Igreja de São Paio a b monumentos 33 DOSSIÊ 15 6 | Guimarães, Campo da Feira, identificação efetuada sobre as plantas: a) De Guimarães, c. 1569, planta de autor desconhecido, in: Coleção Diogo Barbosa Machado da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil; b) Planta da Cidade de Guimarães, levantada pelo engenheiro Manoel D’Almeida Ribeiro, 1863-1867, folhas 8 e 9. 1. Igreja dos Santos Passos de Nossa Senhora da Consolação 2. Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira a propagandístico de reafirmação nacionalista, que se desenvolveu com a Restauração (e de que são exemplares as obras literárias de Gaspar Estaço e de Torcato Peixoto de Azevedo), ter tido a sua maior expressão formal na nova capela-mor da colegiada, símbolo da independência que D. João IV colocara sob sua proteção em 1645. Ordenada em 1674 por mais um monarca, D. Pedro II, em busca de legitimação dinástica e do superavit da fortaleza afonsina, no seu retábulo-mor, pintado em 1665, representaram-se as batalhas de Ourique e de Aljubarrota e a entrega, por D. Afonso Henriques e D. João I, das armas dos inimigos derrotados a Nossa Senhora da Oliveira48. Sinal dessa expansão institucional para fora de muros foi a construção, junto da torre da alfândega, adossada à muralha e frente à nova paroquial de São Sebastião, de uma alfândega em 1610. Sucedeu a uma anterior, localizada na Praça Maior de Nossa Senhora da Oliveira, destruída por um b incêndio, onde se expunham os produtos provenientes de fora e destinados à venda na vila. Frente à alfândega, entre as igrejas de São Sebastião e de São Francisco, formou-se um terreiro onde foi colocado o pelourinho em 1588. O espaço era pontuado pela Torre Velha da muralha, que ostentava no alto um nicho com a imagem de São Francisco. No extremo oposto, foi erguido um calvário sobre um arco triunfal de pedra, por onde passavam as procissões que desciam ao adro terreiro, frente à igreja do convento, designado Carvalhos de São Francisco49. A norte do Terreiro de São Francisco, o Campo da Feira, atravessado pelo mesmo rio Herdeiro que banhava a Zona de Couros, abria-se entre a Porta da Senhora da Guia e, no seu extremo nascente, uma capela, dedicada a Nossa Senhora da Consolação, construída em 1594. A capela estava alinhada com a porta e a torre da colegiada; no século XVIII, esse alinha- 16 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 7 | Augusto Roquemont, Chafariz do Carmo, c. 1842, atualmente no Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto, fotografia de José Pessoa, 1995. 8 | Guimarães, Largo do Chafariz do Carmo, identificação efetuada sobre a Planta da Cidade de Guimarães, levantada pelo engenheiro Manoel D’Almeida Ribeiro, 1863-1867, folha 12. A planta foi trabalhada pelos autores no sentido de ressaltar a situação urbana preexistente ao projeto de arranjo do Largo do Carmo. 1. Convento do Carmo 2. Capela da Senhora da Boa Hora (ou da Boa Morte) 3. Passo da Paixão 4. Chafariz do Carmo mento será reforçado pela Igreja dos Santos Passos, erguida por André Soares no mesmo local da capela, concluída em 1785. A obra barroca, porém, adicionou uma síntese material ao geometrismo espacial abstrato do alinhamento dos finais do século XVI: entre a igreja, a escadaria que a precede e a porta, André Soa- res colocou uma alameda de balaústres rematados por estatuária votiva, que, como um íman, atraiu as duas extremidades do campo. Tempos de doença e de peste (em princípios e finais do século XVI) e a fuga das populações para junto de uma capelinha da invocação de São Roque, situa- monumentos 33 da num vale ameno, costa acima, nas faldas da serra de Santa Catarina, chamam a atenção para a ocupação esparsa de subúrbio que se ia formando além do Campo da Feira e da Zona de Couros. As margens da cidade acomodavam modestos recolhimentos. Numa pequena casa térrea junto da capela, um eremitão ensinava a doutrina cristã aos aldeãos. Acorreriam também os filhos de pessoas principais da vila, a que se juntariam mais companheiros. Principiava assim um eremitério com uma Capela do Bom Jesus do Calvário, com um (...) delicioso jardim (...) com árvores e flores, um bosque, (...) uma excellente fonte rustica e tosca (...), as figuras dos Passos da Paixão de Cristo — um sítio de santidade cercado de paredes entrelaçadas de capelinhas50. Daí subia-se ao alto da serra, à Capela de Santa Catarina, da apresentação dos religiosos de Santa Marinha da Costa. A piedade popular de Seiscentos tomava conta do monte sobre a cidade. Das casas da cidade, algumas têm serventia para a muralha: (...) debaixo das sombra[s] das parreiras que têm em cima della (…); daí, (…) huma alegre vista (...)51 espraia-se sobre os arredores. Augusto Roquemont pintaria um desses lugares de habitar com árvores frondosas, como fundo de uma cena do quotidiano, recortada num largo vizinho de sua casa52, calçada acima da Rua de Santa Maria. Povo, um grande chafariz de espaldar com tanque retangular — o Chafariz do Carmo —, um Passo da Paixão. Por cima do chafariz assoma uma torre com ameias, apesar de a direção da vista não deixar ver o Paço dos Duques. Estava aí como memória e ideia de património. Num outro tempo, numa outra imagem, ocorrera já idêntica reinvenção iconográfica. Numa enor 9 | Tela de D. Mafalda de Fortado, 1737, atualmente na Ordem Terceira de São Francisco, Guimarães. DOSSIÊ me tela, datada de 1737, proveniente do Mosteiro de Santa Marinha da Costa e atualmente depositada na Ordem Terceira de São Francisco, surge sentada num trono a rainha D. Mafalda, esposa de D. Afonso Henriques, fundadora do Mosteiro de Santa Marinha. Este é representado, à sua esquerda, num plano recuado, a meia altura da encosta da Penha, com a igreja exibindo uma fachada retábulo e, junto dela, na zona do claustro, o que parece ser uma série de galerias abertas para a paisagem. Mais interessante que isso, porém, é o facto de o primeiro plano desse ponto de vista ser ocupado pelo Paço dos Duques e a muralha: na depressão entre eles e o mosteiro, numa zona de hortas, o artista pintou Guimarães, destacando as agulhas das torres das igrejas. A vila, porém, nunca poderia estar aí, pois se localiza ad radicem montis latito, a sul do castelo e do paço; no século XVIII, era a realidade urbana que se adaptava à mitológica imagem da cidade. José Ferrão Afonso Docente da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa/Centro Regional do Porto Investigador do CITAR/Artes Bolseiro de pós-doutoramento da FCT Marta M. Peters Arriscado de Oliveira Docente da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto Investigadora do CEAU/FAUP Sílvia Ramos Arquiteta Bolseira de doutoramento da FCT Imagens: 1: autores; 2 a 4, 5a e 6a: Sociedade Martins Sarmento; 5b e 6b e 8: Arquivo Municipal de Alfredo Pimenta; 7: Direção-Geral do Património Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica; 9: Ordem Terceira de São Francisco. N OTA S 1 2 3 4 5 6 Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA — Castelologia medieval de Entre-Douro-e-Minho:..., pp. 24-26, passim. Nos documentos citados pelo padre Avelino de Jesus da Costa, surgem numerosas referências a esses montes castrenses que circundam o território do vale de ambas as Aves (Ave e Avicella): monte Santa Marta (Falperra), monte Outino, monte Espinho, monte Cavalo (uma cadeia de montes que se alonga entre os rios Vizela e Ave), monte Latito, monte de São Miguel o Anjo, monte Sancto Romano (Briteiros), monte Telarias (Serrana), monte de Penido (Souto). O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga, vol. II, passim; Idem, “Povoamento e colonização do território vimaranense nos séculos IX a XI”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada..., vol. III, pp. 140-196. Santa Maria de Vila Nova de Sande (...) prope illum pontem antiquum qui est super flumen Ave (...), 1162, e São João Baptista da Ponte (...) prope Ponte petrina (...), 957. Padre Avelino de Jesus da COSTA — O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga, vol. I, pp. 189-190; vol. II, pp. 52 e 223. A transferência da doação do mosteiro de São João, de Santiago de Compostela (911) para o mosteiro de Guimarães, em 957, denota uma reorientação dos percursos de devoção religiosa que convergem no polo de centralidade religiosa e urbana emergente. Padre Avelino Jesus da COSTA — “Povoamento e colonização do território vimaranense nos séculos IX a XI”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada..., vol. III, p. 181. Idem, ibidem, vol. III, p. 180. Alpe Latito, documentado in idem, ibidem, vol. III, pp. 181-182. (...) Subtus mons latito (...), in Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA — Ob. cit., passim. Semelhante referência ao montis Latito, em 1021, valida a posição de villa Margeriti (Mesão Frio, São Romão), na sua doação ao mosteiro. Padre Avelino de Jesus da COSTA — O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga, vol. I, p. 245. A. de Almeida FERNANDES — “A burguesia vimaranense nos séculos XII e XIII”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. III, p. 12 e nota 12. 17 18 DOSSIÊ 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 monumentos 33 dossiê Idem, ibidem, vol. III, pp. 9-24, em especial pp. 12-17. Caracterizam unidades de vizinhança (formas de morada e de propriedade, natureza de assentamentos e de edificações, de campo e de monte); lugares de bem viver (boas vistas e bons ares, águas) e de assistência (pousada, hospital); pontos de vigilância e de defesa; coordenadas de orientação no espaço (de cima, de baixo); um telhado, onde só haveria colmaças; carreira e lugares de travessia do rio (porto de São Cláudio, no lugar de Barco, na estrada para Braga); altos cristianizados; penhas, o fojo de batida aos lobos; invasores e colonos (Mouro, Almançor, Francos); os limiares de entrada no território e de passagem de colos do monte (Portela, Portelinha). Ressalvar-se-ia a necessidade de complementar com documentos, considerando os casos de topónimos que foram intencionalmente alterados, a exemplo de São Miguel de Negrelos, que se chamou São Miguel do Inferno e, depois, São Miguel do Paraíso (Avelino de Jesus da COSTA — O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga, vol. I, p. 222). José Mattoso observa que na região de Guimarães, no século XIII, se verificam determinadas condições históricas, relativamente à posse da terra (uma abundância de alódios, larga presença de propriedade livre, não privilegiada, nas mãos de funcionários, eclesiásticos e burgueses, a par de propriedade nobre acantonada em algumas zonas, que obstaram a uma senhorialização extensiva, considerada, de modo geral, uma característica distintiva de Entre Douro e Minho. José MATTOSO — “As famílias nobres na região de Guimarães no século XIII”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. III, pp. 319-327. Maria Adelaide Pereira de MORAES — Velhas Casas de Guimarães, passim. Aurélio OLIVEIRA — “Rendas e arrendamentos da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães (1684-1731)”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. II, pp. 99-121. José MATTOSO — “As famílias nobres na região de Guimarães no século XIII”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. III, p. 324. A quintã permanecia como lugar de resguardo e reserva na velhice ou tornava-se pouso do jovem morgado e da sua geração e, inversamente, seriam os progenitores a retirarem-se para a casa da vila, na idade e na viuvez. As famílias residiam também numas e noutras moradas, conforme as estações do ano. No campo, junto de suas fazendas, refugiavam-se em tempos de peste, deixando a vila deserta. A muralha da Vila Alta, provavelmente iniciada por D. Sancho I, monarca que, na viragem do século XII para o XIII circuitou a cavalo a Vila do Castelo, criando-lhe um termo, é descrita pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, que escreve nos finais do século XVII, como (...) muralha bruta, pouco alta e esconça sem ameias, assentada sobre uma barbacã (...), fazendo notar as diferenças construtivas para com a sua congénere da Vila Baixa (padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 154). Refere o memorialista, comparando as duas cercas: (...) a velha é toda tosca, e a nova de pedra lavrada e coroada de ameias (...). Na sua época, as armas de D. Afonso III ainda se exibiam sobre uma das portas desta última, a da Freiria, depois designada de Santa Cruz, aberta a nascente, junto do ponto de junção com o muro da Vila do Castelo, onde se erguia um torreão que fora terraplanado. Junto da porta da Garrida, que Peixoto de Azevedo chama Garridos, designada a partir do século XVII, quando no seu exterior se funda o Convento de Santo António dos Capuchos, erguia-se também um torreão terraplanado em que se uniam as duas cercas. Ainda segundo o mesmo memorialista, D. Dinis teria sido o responsável pela conclusão da cerca da Vila Baixa, sendo as suas torres, em que se encontravam gravadas as armas de D. João I, obra deste monarca (Idem, ibidem, pp. 316-319). Idem, ibidem, p. 163. As memórias da origem e do espaço de domínio da cidade continuariam a ser encenados ritualmente em procissões, nos momentos em que urgia implorar auxílio divino: em tempo de peste, ofertando três dias de Ladainhas, o primeiro a São Miguel de Creixomil, o segundo, à Capela de Santo André, no subúrbio, e o terceiro ao Mosteiro de São Torcato; ou ainda, cercando a vila, já unida, com um rolo de cera branca, levado em oferta ao Espírito Santo. Com o andar dos tempos, o circuito reduzir-se-á a uma ida simbólica aos arrabaldes, ora ao Convento de São Domingos, ora ao de São Francisco (Idem, ibidem, pp. 351-352). D. João I oferece à Senhora da Oliveira o loudel que vestiu sobre as armas, na batalha de Aljubarrota; é uma peça de vestuário ornamentada com ramagens que o tempo e o uso em procissões deliu. O padre Torquato Peixoto de Azevedo refere que a Igreja de Santiago fora templo de Ceres (padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 331). O padre António Carvalho da Costa acrescentaria que se acharam medalhas e uma inscrição no local junto à igreja, aquando da derrocada da torre, em 1559 (Corografia Portugueza, e Descripçam..., vol. I, pp. 24-25). A disposição de rua inserida numa praça, no enfiamento de um edifício público qualificado, constitui uma das morfologias da cidade desenhada no período medieval e no moderno. O exemplo de Viana do Castelo — a Rua do Poço, na sua relação com o Largo da Matriz — oferece o enquadramento à situação observada em Guimarães. Semelhante forma de traçar a sinuosidade, em função da pendente do terreno, pode ser observada, por exemplo, em Vila do Conde, na Rua da Igreja. Em Guimarães, o intuito de defesa parece evidente no modo como a estrada de Braga se encaminha pela Rua de Santa Luzia, em direção à vila, e termina num último segmento curvo que retira qualquer visibilidade na aproximação à torre e porta de Nossa Senhora da Graça. 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘de Guimarães’ e ‘de Vila do Conde’, da Biblioteca Nacional do Brasil”. Passado & Presente para o Futuro..., p. 3. https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/fernandes_as -plantas -de-guimaraes-e-de-vila-do-conde.pdf. Amélia Polónia data a planta de Vila do Conde de entre as décadas de cinquenta e de setenta do século XVI, com incidência particular na de sessenta (Amélia POLÓNIA — Vila do Conde, um Porto Nortenho na Expansão..., vol. I, p. 723). Rafael Moreira situa-a entre 1568-1570 (Rafael MOREIRA — Os Grandes Sistemas Fortificados..., p. 152). Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘de Guimarães’ e ‘de Vila do Conde’, da Biblioteca Nacional do Brasil”. Passado & Presente para o Futuro..., p. 4: (…) as plantas são, em tudo, exactamente iguais, variando apenas no conteúdo, naturalmente (…). António CALDAS — Guimarães. Apontamentos para a sua História, p. 326 e Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães; Sociedade Martins Sarmento, 1989, p. 53. Ambas as referências apud Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘de Guimarães’ e ‘de Vila do Conde’, da Biblioteca Nacional do Brasil”. Passado & Presente para o Futuro..., p. 4. Frei Fernando da SOLEDADE — Historia Serafica Chronologica..., tomo IV, pp. 699-700. Idem, ibidem, pp. 701-703. A menção na planta às (...) hortas de Francisco Carneiro (...) que Amélia Polónia encontra citadas na mesma época, tendo esse indivíduo sido juiz de fora em Sintra em 1571, e a representação da Fonte das Donas, que afirma estar por concluir em 1547 (Amélia POLÓNIA — Vila do Conde, um Porto Nortenho na Expansão...,, p. 723, nota 47). Esses elementos, contudo, não terão força probatória suficiente. Rafael MOREIRA — Os Grandes Sistemas Fortificados..., p. 153. Marisa COSTA — “A construção da Igreja Matriz de Vila do Conde”. Boletim Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde, nova série, jun. 1994, n.º13, pp. 12-13, separata. Idem, ibidem, , jun. 1994, n.º13, p. 12, separata. Ver, a este propósito: Luís MATOS — A Corte Literária dos Duques de Bragança..., pp. 18-19. Amélia POLÓNIA — Ob. cit., p. 60. Refira-se ainda que, na representação da Vila Alta, a sua muralha, ou uma barbacã posterior, que com ela se une, contorna a fortaleza a norte; não o faz, porém, na totalidade, deixando uma grande abertura frente à Porta de Santa Bárbara, a poente do castelo. É possível que esse sistema defensivo estivesse, à época, já derrubado nessa zona. No extremo sul da Vila Alta, o muro que é visível, em que se rasgou uma porta, pode não pertencer à antiga muralha, mas sim a uma cerca erguida pelo duque D. Fernando II, entre o paço e a porta da Garrida (cf. José Ferrão AFONSO; Bernardo José FERRÃO — Guimarães Património Cultural..., vol. I, pp. 55-56). É também possível que a destruição da muralha, ordenada por D. João I, fosse apenas de caráter simbólico e, nesse caso, o pano de muro visível na planta pertença ainda, pelo menos parcialmente, à muralha original. Em 1517, encontra-se em Azurara, a prover a obra de certa igreja a mando do duque. Nesse contexto, Gomez Paez escreve a D. Manuel I, comunicando que estivera com frei João Chaves e que este teria manifestado a intenção de (...) ir a Castella ver hu mestre Adriano, que foi mestre do principe ou rei de Castella, que he alemaão (...). Diccionário Histórico e Documental dos Architectos,..., vol. I, p. 209. A. Moreira de SÁ — A Universidade de Guimarães no século XVI (1537-1550), pp. 15-16. Idem, ibidem, p. 17. Idem, ibidem, p. 48. Ver: Mário BARROCA — As Fortificações do Litoral Portuense, pp. 25-27. Segundo Barroca, a reforma empreendida por D. Miguel, que estaria concluída por 1529, terá incidido sobretudo na construção de uma nova capela-mor e na encomenda de mobiliário. Com efeito, mestre André Siciliano, (...) mestre das obras de marcenaria que o Senhor Bispo manda fazer no dito mosteiro (...), ou (...) mestre dos coros (...), deverá ter construído um novo coro para a igreja, mas apenas em 1536. José Ferrão AFONSO — “A herança do ‘muratore’ e o caminho de Coimbra: ‘consuetudo’, ‘sprezzatura’ e a arquitectura religiosa do Noroeste português na segunda metade do século XVI”. Congresso Histórico de Amarante..., II vol., tomo I, p. 237, nota 180. Em 1537-1539, mestre André será responsável por outro coro, o da Sé do Porto e, em 1545, por uma cúpula com lanternim, em madeira, lançada sobre o cruzeiro da mesma igreja. Idem, ibidem, p. 237, nota 180. Iniciado, c. 1420-1422, por D. Afonso (1380-1461), conde de Barcelos e, a partir de 1442, primeiro duque de Bragança. D. Fernando II casou com D. Isabel, sobrinha de D. Constança de Noronha, segunda mulher do primeiro duque D. Afonso, o que o terá aproximado da vila; receberá nesta uma série de privilégios, destacando-se entre eles o padroado de Nossa Senhora da Oliveira e de todas as suas igrejas e conventos. É possível, por isso, que tivesse prosseguido com as obras no paço, interrompidas após a morte de D. Afonso; projetou também, pouco antes da sua morte, em 1483, algumas intervenções urbanas na Vila Baixa. Padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 155. Seria de salientar, também, o Convento de Santa Clara. O enquadramento dado à planta de Guimarães e o desenho desta edificação relacionam-se entre si. monumentos 33 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 A representação do convento toma uma posição oblíqua perfeitamente definida a 45º. Na praça do Toural pode ler-se: (...) Esta este chaõ mais baxo q o tabolro dos paços . 140 . p. / E mais alto q ho de s. Lazaro . 140 . p. (...). E junto ao alçado do Paço dos Duques: (...) Esta esta caza / mais alta q / o toural 140 p. (...). Albano BELLINO — Archeologia Christã, p. 53. A diferença consiste na posição atribuída aos suportes do que poderão ser galerias das quadras de cada uma das edificações, da qual se deduz uma distinta relação entre pavimento de galerias e espaço exterior. Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Guimarães: Duas Vilas, um só Povo..., p. 319. A igreja do Convento de São Domingos, tal como numerosos arruamentos urbanos, que eram ladeados por pórticos, concorria para o ornamento e serviço da cidade com os seus alpendres da frontaria e da fachada lateral para a rua. Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Ob. cit. A. L. de CARVALHO — Os Mesteres de Guimarães..., vol. VI, pp. 49-50. D. João I é representado com o loudel ornamentado com ramos de oliveira que oferecera à Senhora da Oliveira. Segundo o padre António Carvalho da Costa, ainda em Seiscentos era tradição aqueles que partiam — fossem militares para as guerras da Restauração ou embarcados para as partes do mundo —, levarem um ramo da oliveira da praça da Colegiada, com o qual esperavam alcançar a proteção de Nossa Senhora (António Carvalho da COSTA — Ob. cit., pp. 49-50). O terreiro do pelourinho, sobre um muro de contenção, veio resolver o problema da diferença de cotas muito acentuada entre a muralha e a depressão dos Couros. A entrada na Igreja de São Francisco, do lado poente, fazia-se por uma larga alpendrada com quatro naves e quatro tramos. Com porta para o adro, localizaram-se as importantes escolas públicas do convento, que funcionaram durante mais de duzentos anos. Este espaço comunicava com a Porta da Senhora da Guia por uma rua, a Detrás do Muro, em que seriam construídos, no primeiro quartel do século XVII, a igreja e o hospital de São Dâmaso. (...) Todo este sitio de santidade é cercado de paredes, e pelas partes do norte, nscente, e poente é a parede entrelaçada de capellinhas em que se manifestam os Passos da Paixão de Chirsto, do Horto até ao Calvario, as quaes tem as portas para dentro da cêrca, e para fóra janellas com grnades de ferro, para que o povo possa fazer a sua oração (...). Padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, pp. 354-355 e 505. António Carvalho da COSTA — Ob. cit., p. 54. Na planta de Quinhentos este largo já se encontra representado. Situava-se na margem esquerda da Rua da Infesta, já nas proximidades da Vila do Castelo, frente ao local onde se fundaria, nos finais do século XVII, o Convento do Carmo. No mesmo local onde se ergueria, mais tarde, uma capela com a invocação do Senhora da Boa Hora, uma praça quadrangular tem, nos extremos nascente e poente, dois acessos, o primeiro dos quais é parcialmente ocupado por uma construção de planta retangular. Não é feita, na abundante bibliografia vimaranense, nenhuma referência a esse espaço. B I B L I O G R A F I A AFONSO, José Ferrão — “A Herança do ‘Muratore’ e o caminho de Coimbra: ‘consuetudo’, ‘sprezzatura’ e a arquitectura religiosa do Noroeste português na segunda metade do século XVI”. Congresso Histórico de Amarante, Actas. Património, Arte e Arqueologia. 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IV. 19 20 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê O centro histórico de Guimarães: formulações, desígnios, planos e substância M Á R I O G O N Ç A LV E S F E R N A N D E S Quando se fala de centros históricos, em Portugal ou nos países europeus de forte espessura temporal urbana, o nosso imaginário recria uma imagética específica que se consubstancia numa estética que nos transporta para uma morfologia específica e nos recorda uma vivência secular essencialmente marcada pela interioridade. Dentro dos muros defensivos da cidade esperamos encontrar a malha presumivelmente medieval, densa e circunscrita, que se abre, fora de portas, para o advento da cidade ampla, num quase arquétipo da modernidade. O mesmo sucede quando, no caso vimaranense, associamos a expressão “centro histórico” a um território que se confina ao “casco medieval” admitindo como evidente a destrinça entre o que esteve encerrado e o que se expandiu depois. Assim se compreende a razão do ajustamento ao perímetro sensivelmente definido pelo traçado das segundas muralhas medievas da área classificada pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade. No entanto, embora instituições como a UNESCO ou a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) utilizem aquela expressão nesta estrita abrangência, no caso de Guimarães, como em relação à generalidade das aglomerações urbanas portuguesas, os centros históricos poderiam, sem perda valorativa ou patrimonial e merecendo, por isso, cuidados regulamentares e operacionais decorrentes dessa consideração, corresponder às áreas gizadas até meados do século XIX, anteriores, portanto, às expansões e transformações intensificadas com o fontismo e decorrentes das obras portuárias, da estruturação da rede de estradas reais e da introdução do caminho-de-ferro. Querendo-se uma data pode-se, simplificando, relevar como marca temporal a criação do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em 1852, mas a principal destrinça, claramente diferenciadora, reside na mudança que resulta do processo de intensificação coevo de urbanização estreitamente relacionado com a maquinofatura e a emergência da cidade industrial em oposição à das corporações dos ofícios. Desta opção decorre que, pelo menos potencialmente, os centros históricos deveriam corresponder às malhas delineadas e consolidadas antes da construção da cidade contemporânea, o que, frequentemente, corresponde às áreas urbanas estruturadas até ao século XVI, já que, de facto, se excetuarmos as cidades de fronteira pela importância das fortificações abaluartadas seiscentistas ou as reconhecidas e localizadas intervenções pombalinas e almadinas do século XVIII, na maioria das povoações o essencial do plano urbano que encontramos em meados do século XIX estava definido na centúria de Quinhentos. No caso de Guimarães, basta a simples e liminar comparação entre as plantas dos séculos XVI e XIX para o comprovar. As diferenças entre ambas são diminutas, confirmando-se o que a investigação anterior ao conhecimento do documento quinhentista afirmava ao referir que (...) ao terminar o século XV, divisamos já um traçado que, não obstante algumas alterações, se irá prolongar até ao século XIX (...)1. De facto, a divulgação em Portugal da planta De Guima- Em Guimarães, como na generalidade das aglomerações urbanas portuguesas, os centros históricos poderiam, sem perda valorativa ou patrimonial, corresponder às áreas gizadas até meados do século XIX, ou seja, às malhas delineadas e consolidadas antes da construção da cidade contemporânea. Com maior precisão e utilizando referências da atualidade, a área objeto deste estudo pode identificar-se como a “zona tampão” definida concomitantemente com a classificação como Património Cultural da Humanidade e assumida como área de intervenção da Divisão do Centro Histórico da Câmara Municipal de Guimarães. Visando reconhecer a sua evolução desde a segunda metade do século XIX, revemos os planos e os projetos gizados, a delimitação das áreas afetadas e a identificação de atores e de consequências na conformação da morfologia urbana da atualidade. monumentos 33 rães2, elaborada entre 1562 e 1570 e que representa o aglomerado urbano com o rigor duma escala de cerca de 1:1100, permitiu verificar que, entre esta e a planta de 1863, as principais alterações residem na ausência de algumas partes dos muros medievos, nomeadamente do traçado meridional do primeiro circuito amuralhado3; na eliminação das edificações adossadas à Capela de São Tiago, dando lugar a uma pequena praça originalmente inexistente; na abertura do terreiro da Misericórdia, em consequência da edificação desta em finais do século XVI; na construção da Igreja do Senhor dos Santos Passos no século XVIII e, finalmente, na delimitação do recinto do mercado municipal. Algumas edificações singulares, como a imagem iluminista imposta em 1791 às fachadas do Toural viradas a poente ou a construção do Convento do Carmo (século XVII) e da Igreja de São Pedro (século XVIII), embora qualifiquem a paisagem urbana, não promoveram alterações significativas da sua malha. Parece agora explícita a razão por que abordamos o centro histórico de Guimarães num sentido alargado, entendido como uma parte da cidade cuja abrangência vai para além do casco medieval, que se contém entre os rios de Covros e Svyo, para utilizar a grafia da planta quinhentista, e que foi genericamente estruturada até ao século XVI. Com maior precisão e utilizando referências da atualidade, a área objeto deste estudo pode identificar-se como a “zona tampão” definida concomitantemente com a classificação como Património Cultural da Humanidade e assumida como área de intervenção da Divisão do Centro Histórico da Câmara Municipal de Guimarães (CMG). Visando reconhecer a sua evolução desde a segunda metade do século XIX, revemos os planos e os projetos gizados, a delimitação das áreas afetadas e a identificação de atores e de consequências na conformação da morfologia urbana da atualidade. Delimitações e planos São vários os contributos, na sua maioria publicados ao longo das últimas décadas, pertinentes para o conhecimento da evolução da morfologia do centro histórico de Guimarães4, pelo que os factos são conhecidos e o faseamento está, no fundamental, definido. Para o período aqui abordado e numa cronologia estabelecida em seis fases, desde o remoto século X até 1974, Bernardo Ferrão e José Ferrão Afonso definiram, numa primeira versão, a destrinça entre A expansão ecleticista e industrial da cidade (meados do séc. XIX a 1924) e A ampliação e renovação moderno-monumental da cidade (1925 a 1974)5. Por sua vez, concomitantemente com esta, a periodização adotada pela UNESCO referencia as mesmas duas fases, mas introduzindo pequenos ajustes e denominando-as Do ecletismo ao período industrial (1863-1926) e Expansão moderna (de 1926 aos nossos dias)6. Entre ambas, o pormenor diferenciador é DOSSIÊ a definição da fronteira entre os dois períodos, com os primeiros a considerarem 1925 como o início da fase seis, de forma a integrar o plano do capitão Luís de Pina, referindo-se no sítio da UNESCO uma data condizente com uma periodização menos casuística7. Além disso, em ambos os casos existem propositadas imprecisões, porque uns consideram (...) meados do século XIX (...), quando outros escolhem a data correspondente ao início do levantamento para o Plano de Melhoramentos da Cidade de Guimarães (1863), prolongando até (...) aos nossos dias (...) o que os primeiros limitaram a 1974. Embora se devam considerar as particularidades da evolução de cada aglomerado urbano, quando se pretende precisar limites cronológicos deve optar-se por aqueles que, intrinsecamente, se adequam ao percurso da generalidade dos aglomerados urbanos de uma região ou de um país. Neste sentido, enquanto delimitadores de grandes períodos política, económica e socialmente distintos, a criação do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em 1852, o fim da Primeira República, em 1926, e a revolução de abril de 1974 são referenciais genericamente adequados para um faseamento geral do planeamento e das transformações da morfologia urbana das cidades portuguesas, independentemente de prolongamentos ou retardamentos casuísticos, bem como, naturalmente, de necessárias subdivisões de aprofundamento do conhecimento. Clarifique-se, então, que, no caso concreto da área correspondente ao centro histórico de Guimarães, a referida “zona tampão”, de 1852 a 1926 decorreu uma fase genericamente caracterizada pelo “livre trânsito” e a salubrização, consubstanciados nos projetos de estradas do poder central, no Plano de Melhoramentos da Cidade de Guimarães (1863-1867), nos contributos da Comissão de Melhoramentos (1869), nas avenidas da estação (década de 1890) e na ação de Mariano Felgueiras (1914-1926); entre 1926 e 1974 verificou-se a tendencial monumentalização subjacente à ação da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), enquanto paralelamente, acontecia uma fase de planeamento urbano que primeiro assumiu morfologias da cidade-jardim e depois derivou para propostas modernistas, como as versões do Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães (1949 e 1953) e os planos parciais para a “zona noroeste” (1957, 1969 e 1971) bem evidenciam; a partir de 1974 assinala-se a retoma da importância da cidade tradicional herdada e a convicção da necessidade da recuperação dos centros históricos, relevando-se a delimitação da Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística (ACRRU, 1979), o Plano Geral de Urbanização de Guimarães (1982) e a ação do Gabinete do Centro Histórico/Gabinete Técnico Local, coroada com a classificação como Património Cultural da Humanidade pela UNESCO (2001) e continuada até à atualidade, numa gestão de processos quotidianos ou de exceção, como os enquadrados na Capital Europeia da Cultura (2012). 21 22 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Dos segmentos de reta à “pata de ganso” (1852-1926) ] As ideias e intenções de infraestruturação do país eram anteriores, algumas setecentistas, mais ou menos filiadas no fisiocratismo, contudo, apenas a partir de meados do século XIX, primeiro nos anos quarenta com o Cabralismo e, principalmente depois, a partir da ação de Fontes Pereira de Melo, num contexto mais favorável de estabilidade política e de expansão económica, se desenvolveu um ciclo de obras públicas promovidas pelo poder central que dotaria o país com uma rede de estradas macadamizadas, com ferrovias e com melhores condições portuárias. Quer as novas estradas, quer a inovadora ferrovia, ou seja, as que importam para o caso vimaranense, articularam as aglomerações urbanas e implicaram transformações na respetiva malha urbana, umas de iniciativa e financiamento do poder central e outras decorrentes da ação do poder municipal, em ambos os casos alimentadas e incentivadas pela ideia do progresso pelos melhoramentos materiais, que marcava a ação política e a legislação coeva. Quase todas as estradas do Norte do país foram iniciadas entre 1853 e 18678, estabelecendo-se, simultaneamente, o necessário enquadramento legal que, apesar dos inúmeros diplomas e acrescentos, alterações e precisões, se condensou num decreto, assinado a 31 de dezembro de 1864 e publicado em janeiro de 18659, contendo uma primeira parte estritamente dedicada às questões técnicas, de construção e de conservação de estradas, e tratando na segunda dos planos de melhoramentos urbanos. Iniciava-se, então, um período morfológico consentâneo com as premissas do “livre trânsito” e da salubrização, bem marcado na maioria das povoações portuguesas e que, como mencionado, de alguma forma, decorreu da construção da rede viária e ferroviária, de iniciativa, incentivo e/ou permissão do poder central, mas também da vontade política municipal e da organização das finanças municipais; da renovação do conhecimento no âmbito higienista; da legislação elaborada a partir das necessidades da construção e “polícia” de estradas que integrava as ideias coevas sobre planeamento urbano. A intervenção municipal dirigiu-se, predominantemente, para o interior das povoações, a do poder central para os seus acessos e atravessamentos, sendo ambas complementares e estruturadoras da cidade. A intenção da CMG de proceder ao levantamento de uma planta geral da cidade foi sinalizada logo em 1859 e seria renovada pelo presidente da câmara, comendador António Alves Carneiro, em março de 1863, no âmbito da discussão do orçamento camarário para o ano económico de 1863-1864. A ideia passava por possuir uma imagem geral da povoação onde constassem as propostas de intervenção de maneira a que os melhoramentos fossem pensados de uma forma mais “regular”. A escritura com o engenheiro Manoel de Almeida Ribeiro foi assinada a 2 de outubro de 1863 e, em janeiro de 1865, foi publicado o decreto que formalizou a existência legal dos planos de melhoramentos, encontrando-se então Almeida Ribeiro a elaborar a proposta que se materializaria na Planta da Cidade de Guimarães e respetiva Memória Descritiva. Plano de Melhoramentos delineado pelo Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro (1867): Arruamentos e alinhamentos traçados “Passeio Público” previsto Regularização e abertura de novas praças Arruamentos para a localização do “bairro para a classe pobre” Escolas primárias previstas para rapazes e raparigas Propostas de alteração e acrescento ao plano do Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro, aprovadas pela Comissão de Melhoramentos (1869) Arruamentos e alinhamentos traçados pelo Eng.º José Taveira Carvalho Pinto de Menezes, sobre a planta do Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro Traçado conjectural dos arruamentos e alinhamentos descritos Prolongamento do “Passeio Público” previsto 0 100 m pelo Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro 1 | Guimarães, Plano de Melhoramentos da Cidade de Guimarães, da autoria do engenheiro Manoel de Almeida Ribeiro, 1863-1867, reconstituição elaborada a partir de informação extraída de: Arquivo Histórico Municipal de Alfredo Pimenta, Planta da Cidade de Guimarães, 1867 e AHMAP, Livro de Actas da Comissão de Melhoramentos das Cidade de Guimarães, 1869. monumentos 33 DOSSIÊ 23 2 | Guimarães, intervenções no plano urbano, 1850-1926; informação colocada sobre base cartográfica cedida pela Câmara Municipal de Guimarães, 2000. Espaços públicos alinhados e/ou alargados Espaços públicos abertos Caminho-de-Ferro 0 As explicações que encontra para as suas opções são, por si só, reveladoras da sintonia com os valores urbanísticos da época, colocando a ênfase na facilitação do “livre trânsito” e na salubrização, no caso revelados pela importância e preocupação relativas ao alinhamento e uniformização da largura dos arruamentos, bem como pelas propostas de articulação do sistema viário e de demolição de núcleos de edificações insalubres, assim se alargando ou abrindo praças, de tudo decorrendo o aformoseamento da cidade. A preocupação com a articulação do plano urbano é clarificada na proposta de abertura de uma via que ligaria as saídas da cidade e que permitiria a comunicação desde a estrada para Famalicão, a poente e nas proximidades de São Lázaro, até São Francisco e daqui ao Campo da Feira, a nascente, a partir de onde se saía para Fafe. Dessa via arrancaria, no Campo de São Francisco, um arruamento que passava a nascente da Capela de São Dâmaso e, rasgando a muralha, permitiria a ligação direta ao centro do poder municipal, na Praça da Oliveira. Além disso, acrescentava o rasgamento do núcleo medieval através do prolongamento, para nascente, da rua que deveria articular o mercado municipal com a Porta de São Bento, cuja abertura a câmara privilegiava, nas palavras do autor, e que originaria a atual Rua Gil Vicente. Em síntese, visava-se regularizar as vias existentes, particularmente na área sudoeste, melhorar as 100 m ligações da parte alta com a parte baixa e, principalmente, das áreas a poente e a nascente do núcleo medieval, constituindo-se aquela, polarizada pelo novo mercado, como a área privilegiada de expansão, particularmente depois da articulação do mercado com a Praça do Toural, através da abertura da Rua de Paio Galvão, da responsabilidade da Direção Distrital de Estradas por ser parte integrante da estrada para Braga, de cujo projeto o poder municipal tinha conhecimento desde 1863. Finalmente, Manoel de Almeida Ribeiro delineou a abertura de quatro novas praças, três no interior do núcleo medieval e uma entre o Toural e São Francisco, propôs a construção de um passeio público envolvendo o castelo e o Paço dos Duques de Bragança, identificou a localização de escolas primárias, para ambos os sexos, e delimitou a área para a construção de um (...) bairro para a classe pobre (...). Tendo desenvolvido o seu plano entre 1863 e 1867, Almeida Ribeiro adequou as propostas com o articulado do decreto de 1864, como o demonstra o facto de nenhum dos novos arruamentos propostos possuir menos de 10 metros de largura, como aquele decreto impunha. Além disso, pela sua adequação à realidade coeva, as propostas de Almeida Ribeiro servirão de guia e de inspiração para todos os projetos subsequentes até ao primeiro quartel de Novecentos, começando, desde logo, pelos da “comissão de me- 24 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 3 | Guimarães, intervenções no plano urbano segundo a origem do financiamento, 1850-1926; informação colocada sobre base cartográfica cedida pela Câmara Municipal de Guimarães, 2000. Entidades financiadoras: Poder central (MOPCI) Poder local (Câmara Municipal) Caminho de Ferro 0 lhoramentos”, que a câmara trataria de constituir por ser prescrita pelo decreto de 1864 para os municípios que, além dos obrigados Lisboa e Porto, entendessem elaborar um plano de melhoramentos. A Comissão de Melhoramentos de Guimarães seria instalada a 5 de julho de 1869 e, respeitando o decreto, incluía um engenheiro da Direção Distrital de Obras Públicas e um representante da autoridade local de saúde, acrescentando-se-lhes sete elementos representativos da elite da cidade, como o barão de Pombeiro ou Francisco Martins de Moraes Sarmento, que não compareceria a qualquer reunião10. Aliás, a comissão limitou-se a aprovar as propostas de melhoramentos urbanísticos do “primeiro engenheiro” distrital José Taveira Carvalho Pinto de Meneses, cujo discurso monopolizou as seis reuniões realizadas, ao longo das quais pormenorizou (...) o seu programma de trabalhos (...), cujos (...) capítulos de melhoramentos (...) enumerara logo na primeira reunião, numa listagem impregnada pelas preocupações urbanas da época11. No essencial, além de reafirmar as propostas de Manoel de Almeida Ribeiro, recorrentemente citado para com ele concordar ou para sugerir pequenos ajustamentos, Pinto de Meneses acrescentou algumas novas ideias, à época um pouco arrojadas, entre as quais se sublinham quatro propostas: o prolongamento da via de cintura, que denominou de rua de 100 m circunvalação, desde Santa Luzia e de São Lázaro até ao Terreiro do Cano, articulando-a com o mercado; as duas novas vias retilíneas de atravessamento do núcleo medieval, uma das quais a atual Rua de Serpa Pinto, nunca se concretizando a outra; o arruamento a ligar o terreiro de Santa Clara e a estrada de Fafe, materializada na atual Rua Nunes Álvares; o alargamento do projeto de passeio público com a inclusão do Terreiro do Cano. Revelando a sua formação de “engenheiro de pontes e de estradas” as propostas de Pinto de Meneses assentavam numa visão abrangente e prospetiva, pretendendo alargar a articulação das saídas da cidade, melhorar os atravessamentos do núcleo medieval e aprofundar a centralidade do mercado municipal, ao propor (...) uma estrada vicinal ligando em volta dos subúrbios da cidade as estradas de Braga, Fafe, Stº Thyrso, e Famalicão (...), da qual derivariam novos eixos, (...) novas ruas, ligando a cidade com a nova estrada vicinal (...). Em contrapartida, os outros membros repetiram propostas de Manoel de Almeida Ribeiro, como a edificação de um (...) bairro para as classes pobres (...), agora denominado (...) bairro d’operarios (...), ou a necessidade de (...) desmoronamento da igreja de S. Sebastião e o corte da alpendrada da Alfândega (...). O bairro operário apenas seria retomado na Primeira República, conjugado com a edificação de novos paços concelhios, preterindo-se monumentos 33 a ideia, do engenheiro Pinto de Meneses, de instalar as (...) repartições publicas (...) no Convento de Santa Clara, onde acabaria por ser instalada a câmara municipal em 1968, depois de um conturbado e longo percurso. A Igreja de São Sebastião seria derrubada na década de noventa do século XIX, no âmbito do processo de construção das avenidas da estação. Foi António de Moura Soares Velloso, proprietário e homem de negócios, quem fez chegar o caminho-de-ferro a Guimarães em 1884, ano da realização da exposição industrial vimaranense. O acesso à estação ferroviária fazia-se, a partir do Toural, por um conjunto de caminhos estreitos que apenas apresentavam alguma regularidade a partir do palacete de Vila Flor, por uma via retilínea de 5 metros de largura. Assim, importava melhorar os acessos da cidade à estação pelo que, em 24 de março de 189012, quando João Franco, eleito deputado por Guimarães em 1884, era ministro da Fazenda, foi colocada a concurso a abertura de uma (...) estrada de serviço (...) a ligar a cidade com a estação ferroviária. O projeto previa uma avenida de 20 metros de largura e 627 de comprimento, traçada a nascente do palacete de Vila Flor e ligando o Largo de São Francisco e as proximidades da estação. Sendo o proprietário do caminho-de-ferro, do palacete e da maioria dos terrenos entre a cidade e a estação ferroviária, António de Moura Soares Velloso DOSSIÊ 25 era parte interessada no processo, pelo que, face ao programa do concurso, apresentaria uma proposta alternativa que deslocava a avenida para poente do palacete de Vila Flor, acrescentava uma segunda avenida até ao Campo da Feira e ainda um (...) alinhamento parallelo à estação (...) que articulava as duas avenidas, prometendo, além disso, tudo concretizar pelo preço base de licitação do concurso. A proposta era vantajosa para o Estado, pois, pela mesma verba, ligava-se a estação à cidade e melhorava-se a articulação com a estrada de Fafe. Além do mais, segundo o proponente, a solução conciliava (...) todas as opiniões e interesses da cidade de Guimarães (...), onde se incluíam os do próprio que assim era pago para urbanizar a maior parte dos seus terrenos13 e com um desenho em que a disposição das avenidas permitia a maximização das frentes de rua nas suas propriedades. Estando todos de acordo, celebrou-se o contrato em 27 de setembro de 1890, prevendo-se a conclusão da obra até 27 de setembro de 1894. Simultaneamente, projetava-se, desde 1893, o primeiro lanço da estrada municipal entre a estação e a Estrada Real n.º 32, no lugar do Castanheiro, sabendo-se que, em 1901, apenas faltava eliminar a diferença de nível entre as avenidas e a Estrada Municipal do Castanheiro, que se transformaria numa nova entrada na cidade. Entre 1916 e 1926, Mariano da Rocha Felgueiras, republicano, de 30 anos de idade e quatro de expe4 | Guimarães, faseamento das intervenções no plano urbano, 1850 e 1926; informação colocada sobre base cartográfica cedida pela Câmara Municipal de Guimarães, 2000. Faseamento: Antes de 1892 1892 a 1910 Após 1910 Caminho de Ferro 0 100 m 26 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 0 a b c d 100 m riência no poder municipal14, apresentou as propostas por cuja execução se bateu em todo o seu percurso autárquico. Entre todas, publicadas logo em 1916, releva-se o parque do castelo, a edificação de um bairro operário e a concretização dos paços do concelho, com assinaláveis consequências no plano urbano e na morfologia vimaranense. Durante a Primeira República, um tempo de exaltação das virtualidades do poder municipal e das suas competências e obrigações no melhoramento e no embelezamento da cidade e na promoção de edificação salubre e económica, compreende-se o empenho de Mariano da Rocha Felgueiras na recuperação destes projetos, debatidos e reafirmados desde 1867. O parque, envolvendo o castelo e o Paço dos Duques de Bragança, era justificado com argumentos que incluíam, simultaneamente, o lazer, a reforma social, o embelezamento e a higiene, a estética, o patriotismo e a preservação do património e, ainda, o desenvolvimento do turismo. Embora projeto antigo, proposto no plano de 1867 e ampliado ao Terreiro do Cano nas propostas de 1869, a ideia do parque continuava a ser alimentada, como o demonstra o Projecto do Parque do Castelo de Guimarães, encomendado em 1914 à Companhia Hortícola do Porto15, e ganhara pertinência com a classificação do Castelo de Guimarães, do Paço dos Duques de Bragança e da Igreja de São Miguel do Castelo como monumentos nacionais, em 1908 e em 191016, entre as primeiras e inúmeras classificações nacionais oficiais efetuadas num contexto de valorização dos “monumentos históricos” singulares, crescente desde o século XIX em Portugal e na Europa e remissível a Ruskin, Viollet-Le-Duc, Boito e Riegl17. Justificando a necessidade do bairro operário em termos que evocam a descrição de Manchester por Engels em 1845, Mariano da Rocha Felgueiras manteve a sua localização no sítio onde Manoel de Almeida Ribeiro o projetara, ocupando a Rua das Hortas e a travessa e o largo da Fraga, mas estendendo-se agora até às proximidades da Rua de Serpa Pinto. A ideia passava pela abertura de uma avenida, com 20 metros de largura, articulando-a com a estrada para Fafe, que seguia junto à muralha, através de 5 | Guimarães, contributo para o processo de formação de um retalho do plano urbano (“pata de ganso”): a) Propostas inseridas no Plano de Melhoramentos da Cidade de Guimarães, da autoria do engenheiro Manoel de Almeida Ribeiro, 1867; b) Propostas aprovadas pela Comissão de Melhoramentos das Cidade de Guimarães, 1896; c) Projeto do “bairro operário” proposto pelo arquiteto José Luiz Ferreira, 1916; d) Parte da Planta do Projecto Geral de Melhoramentos, da autoria do capitão Luís de Pina, 1924. monumentos 33 uma rua com 10 metros de largura, formando todo o conjunto uma imagem em planta que se assemelha a um “4”. Previam-se cinquenta e oito casas, uma escola e um balneário, e afirmava-se a preocupação de conseguir alguma diversidade de (...) aspectos, tamanhos e preços (...), com a construção de nove modelos de casas, visando satisfazer quer a classe operária quer as classes mais remediadas e evitar a imagem de bairro com o (...) aspecto monótono duma fileira ou conjunto de casas pobres todas iguais (...). Da autoria do jovem arquiteto José Luiz Ferreira, discípulo de Marques da Silva, o projeto acrescentava à malha urbana dois segmentos de reta ortogonalmente entroncados, apresentando um desenho de transição entre as características estritamente funcionalistas dos engenheiros oitocentistas e as preocupações de composição urbana. Não possuindo recursos financeiros que permitissem a construção de um edifício para cada uma das “repartições” (tribunal, finanças, registo civil, administração municipal), Mariano Felgueiras optou por concentrá-las num único edifício, para cuja construção abriu concurso entre arquitetos nacionais, em 1916. Entre onze projetos, apreciados (...) somente pelo seu valor artístico (...) por todos ultrapassarem os 60 contos previstos18, venceu o do arquiteto Marques da Silva19, que correspondia ao (...) estilo arquitectónico regional (...) sugerido pela comissão nomeada, em 1915, para a escolha do local de implantação. Este deveria ser o centro de uma praça tendencialmente quadrangular, a abrir bem no meio do casco medievo a partir de demolições nas ruas do Espírito Santo e do Gravador Molarinho e na Praça de São Tiago, retomando-se a ideia de praça proposta por Almeida Ribeiro em 1867. As dificuldades financeiras e as perturbações políticas no país, com consequências nas disputas locais que levariam à queda de Mariano Felgueiras20, adiaram a concretização de quaisquer projetos, apesar de reafirmados em 1921 pelo presidente da comissão executiva municipal, Francisco Moreira Sampaio, que lhes acrescentava a ideia de abertura de uma extensa alameda entre o Toural e o Campo da Feira, apenas concretizada no Estado Novo. No entanto, reassumindo a presidência camarária em 1923, Mariano Felgueiras voltou a fazer aprovar a concretização do bairro operário e tratou da aprovação de posturas que, com base em lei de 1912, lhe permitiam executar as expropriações e controlar a valorização do solo edificável. A enorme depreciação da moeda e a inflação galopante em consequência da Primeira Guerra Mundial levam Mariano Felgueiras a eliminar a escola e o balneário e a atribuir a construção do bairro a uma sociedade privada, competindo à municipalidade a fiscalização do processo, a concessão de garantia dos juros do capital investido, a execução das expropriações e a abertura dos arruamentos. Concomitantemente, retomou os paços do concelho com o anúncio, em 1924, da escolha de uma diferente localização considerada, o centro de uma nova e DOSSIÊ ampla praça no topo da nova avenida do bairro económico. Conjugavam-se, assim, os projetos do bairro económico e da praça e edifício municipais, congregados na Planta do Projecto Geral de Melhoramentos, da autoria do capitão Luís de Pina e apresentado por Mariano Felgueiras em 1925, que o fez publicar, juntamente com o projeto e memória descritiva do edifício concelhio21. Foi então o capitão Luís de Pina quem definiu a imagem final deste pedaço da malha urbana vimaranense, propondo uma nova avenida (...) destinada a formar ‘pendant’ (...) com a Estrada de Fafe, invertendo o desenho do bairro do arquiteto José Luiz Ferreira e simetrizando a composição num desenho urbano coerente, evocador da clássica “pata de ganso”. A expressão, de P. Lavedan22, denominava a figura em planta dos arruamentos focalizados na praça defronte do Palácio de Versalhes, mas aplica-se a este tipo de desenho de vias, tendo sido utilizada por F. Távora23, num paralelismo sugestivo, salvas as devidas diferenças de escala. Também o plano urbano de Letchworth, a cidade-jardim promovida por Ebenezer Howard em 1904 e desenhada por R. Unwin e B. Parker, contém o mesmo desenho, num conjunto constituído por uma praça central, “o centro cívico”, e pelas três avenidas que dela derivam. Aliás, como referiu B. Gravagnuolo, em relação a Letchworth, a recuperação de (...) elementos inspirados no monumentalismo clássico, como o traçado em pata de ganso (...)24, é uma característica de alguns traçados de cidade-jardim. Finalmente, podem acrescentar-se outros exemplos potencialmente inspiradores de Luís de Pina, como as ruas em tridente que divergem da Piazza del Popolo, em Roma, numa composição também concretizada por partes e concluída no século XVI, com a abertura da Via Babuíno e com a marcação do ponto de fuga através do levantamento de um obelisco, já no pontificado de Sisto V25. Embora não mencione as suas fontes, a proposta de Luís de Pina adequa-se à tendência coeva para a rejeição de plantas assentes na funcionalidade do segmento de reta e para a recuperação da “exigência estética” como condicionante do desenho urbano, potenciando a nova praça municipal com a articulação de todas as ruas e avenidas de forma a (...) enfrentarem na direcção dos seus eixos com os Paços do Concelho (...). De qualquer forma, apesar do esforço de composição assente na simetria e na perspetiva, o desenho também se adequava às preexistências, evitando expropriações vultuosas e ajustando-se à topografia, como se verifica na posição da malha ortogonal oriental que acompanhava (...) o melhor aproveitamento da directriz das curvas de nível do terreno (...). Em suma, apoiando-nos nas palavras de Luís de Pina, a proposta explica-se com (...) motivos de ordem topográfica, de exigência estética, de medida económica e de fáceis ligações com o existente (...)26. Em síntese, do plano do engenheiro Almeida Ribeiro (1867) e das propostas de Pinto Menezes, na comissão de melhoramentos de 1869, ao projeto do bairro 27 28 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê de José Luiz Ferreira (1916) e ao plano de melhoramentos de Luís de Pina (1925) cerziu-se uma malha urbana característica da contemporaneidade, primeiro derivada da importância funcional dos alinhamentos e dos novos arruamentos retilíneos, depois da adaptação e da composição do desenho urbano, num processo de planeamento e de transformação que compatibilizou heranças e acrescentos. A ação da DGEMN e os anteplanos de urbanização (1926 a 1974) A criação, em 1929, da DGEMN veio clarificar e recentrar um processo de intervenção estatal que, apesar das raízes de 1840 com o restauro do Mosteiro da Batalha, iniciara a sua institucionalização em 1880, com a aprovação da Lista dos Edifícios Monumentais do Reino pela Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses, continuara em 1901, com a aprovação por decreto da orgânica do Conselho dos Monumentos Nacionais e a aprovação de critérios de classificação, prolongara-se entre 1906 e 1910, com a publicação oficial de listagens classificando 454 imóveis como monumentos nacionais, culminando entre 1924 e 1932, com a legislação que, aprofundando normas anteriores, definiria as bases de atuação em relação ao património classificado, ficando a DGEMN com as competências operativas de intervenção sobre o património e o Conselho Superior de Belas-Artes, do Ministério de Instrução Pública, com as competências normativas de classificação do património e de proposta de zonas de proteção27. Foi com este enquadramento legal que decorreram as primeiras intervenções da DGEMN em Guimarães, escolhida enquanto “berço da nação” como um dos lugares emblemáticos para as Comemorações dos Centenários, o que proporcionaria, assim, a concretização de intervenções de restauro no castelo e na Igreja de São Miguel, ambas a partir de 1936 e concluídas a tempo daquelas comemorações, bem como no Paço dos Duques de Bragança, iniciadas em 1937 mas apenas concluídas em 196028. Apesar das recorrentes críticas de adulteração do edificado intervencionado e de evidentes provas pontuais, a verdade é que, como se pode agora comprovar a partir dos perfis insertos na quinhentista planta De Guimarães, o essencial dos edifícios foi preservado e respeitado, como foi o caso do castelo, embora o acrescento de um piso na parte frontal e no corpo norte do Paço dos Duques de Bragança o tenham tornado num edifício distinto, de diferentes volumes e monumentalidade. Seria esta busca de monumentalidade, associada a uma perspetiva que limitava o património ao edifício e encarava o restauro como forma de sublinhar a singularidade do monumento, quer intrínseca quer de enquadramento, que implicava o acompanhamento do restauro dos imóveis classificados por (...) intervenções nos espaços adjacentes, quer para demolição das construções consideradas histórica e artisticamente desajustadas, quer por motivos de salubridade ou, ainda, para atingir um melhor enquadramento estético (...)29. Neste sentido, da ação da DGEMN decorreu uma importante modificação da morfologia urbana vimaranense, com a demolição do edificado corrente que compunha os quarteirões da Vila Alta estruturados pela Rua do Castelo, com o relevar do tríptico constituído pelos edifícios classificados como monumentos nacionais, agora definidores de uma monumental “colina sagrada”, e estruturando, finalmente, o parque urbano previsto desde o plano de melhoramentos oitocentista, mesmo se o seu desenho final se fica a dever ao arquiteto Rogério de Azevedo e ao seu conhecimento dos parques dos castelos franceses. Simultaneamente, melhoraram-se os acessos ao parque com o alargamento da Rua dos Palheiros, marginada por moradias unifamiliares previstas em projeto pelo arquiteto Faria da Costa, e com a conclusão do prolongamento da Rua de Serpa Pinto30. Assim se concluiu o projeto iniciado no século XIX de facilitação do atravessamento do núcleo medieval, que desde logo passou a ser o percurso mais utilizado para quem circulava entre o litoral e as terras de Basto, particularmente incrementado com a continuidade permitida pela oitocentista Rua de Gil Vicente e pela Avenida Conde de Margaride, aberta entre 1931 e 1940 por solicitação da junta de freguesia de São Paio e por vontade da câmara municipal31. Acentuava-se o crescimento da cidade para a área ocidental, em contraponto à paulatina urbanização da “pata de ganso”, a única parte concretizada do plano de melhoramentos de 1925. Pelos anos trinta e quarenta do século XX assistia-se a uma fase de sinais contraditórios, verificando-se algum impasse em relação ao estagnado e inacabado edifício dos Paços do Concelho e, simultaneamente, a uma evidente azáfama decorrente da confluência de três processos paralelos que, de uma forma ou de outra, se foram mutuamente condicionando e adequando. Por parte do poder municipal, verificava-se 6 | Guimarães, Paço dos Duques de Bragança durante a intervenção de restauro levada a cabo pela DGEMN (1937-1960), fotografia de autor desconhecido, [1940-1960]. monumentos 33 DOSSIÊ 7 | Guimarães, Paços do Concelho, edifício projetado pelo arquiteto Marques da Silva, inacabado, fotografia de autor desconhecido, [1940-1960]. 8 | Paço dos Duques de Bragança após a intervenção levada a cabo pela DGEMN (1937-1960) visto a partir do Largo Condessa Mumadona, fotografia de autor desconhecido, [1960-1970]. 9 | Guimarães, Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, avenida central da “pata de ganso”, fotografia de autor desconhecido, 1953. a concretização e a conclusão de alguns dos projetos previstos e iniciados com o plano de melhoramentos de 1867 e retomados durante a Primeira República, nomeadamente, o alinhamento, alargamento e abertura de algumas ruas ou a conclusão do bairro económico e da “pata de ganso”, enquanto, por parte do poder central, se impunha, por um lado, a ação da DGEMN em relação ao parque da “colina sagrada” e à sua trilogia edificada e se delineava, por outro lado, o arranque de uma nova fase de planeamento da cida- de, ancorada na atuação do engenheiro Duarte Pacheco que, apesar do seu curto percurso como ministro das Obras Públicas (1932 a 1936 e de 1938 a 1943), lançaria as novas bases legais, administrativas e processuais do planeamento urbano em Portugal32. De facto, com o Decreto-Lei n.º 24 802, que fez publicar em 1934, além de substituir toda a legislação relativa ao planeamento urbano publicada desde 186433, Duarte Pacheco tratou de modernizar a conceção vigente do planeamento, procurando a sua 29 30 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê sistematização e a institucionalização de uma outra cultura consubstanciada na figura dos planos gerais de urbanização, com os quais as câmaras municipais poderiam desenvolver (...) a transformação do seu território como agentes activos e intervenientes, através de uma real política de solos (...)34. Contudo, o processo mostrou-se moroso, com a disponibilização de cartografia de grande escala a ter que ser organizada pelo poder central e disponibilizando-se as primeiras plantas aerofotogramétricas apenas a partir de 1941, sendo a planta de Guimarães, na escala de 1:2000, relativa a 194235. Finalmente, a morte de Duarte Pacheco, em 1943, permitiu o esbatimento da conceção do plano como instrumento fortemente 10 | Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, da autoria dos arquitetos Maria José Moreira da Silva e David Moreira da Silva, 1949. regulador e condicionador, abrindo caminho a uma perspetiva mais orientadora da atividade dos particulares, pelo que a partir de 1946, excetuando-se os casos de Lisboa e do Porto, se determinaria a suficiência da elaboração de “anteplanos”, instrumentos implicitamente mais expeditos, mas também mais ajustáveis e menos convictos. Duarte Pacheco apoiou-se em reconhecidas figuras do planeamento e do urbanismo europeu, entre os quais se destacam Donat-Alfred Agache, que terá influenciado a legislação de 1934 e que coordenou a elaboração do Plano de Urbanização da Costa do Sol (1936), e Etienne De Groer, antigo colaborador de Agache, que elaborará vários planos e anteplanos monumentos 33 DOSSIÊ 31 11 | Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães: planta de trabalho, da autoria dos arquitetos Maria José Moreira da Silva e David Moreira da Silva, 1953. para cidades portuguesas, perfilhando e adaptando aspetos decorrentes das ideias de cidade-jardim e influenciando alguns dos primeiros urbanistas portugueses, como o arquiteto David Moreira da Silva, que participou com De Groer nos planos de Coimbra (1940) e de Luanda (1946)36. A visão de De Groer em relação à cidade-jardim passava pela adaptação de algumas ideias derivadas diretamente de Ebenezer Howard e pela adoção, para as áreas residenciais, da morfologia urbana de baixa densidade assente na opção por moradias unifamiliares dispostas em desenhos inspirados no trabalho de Raymond Unwin37, que divulgara diversos tipos de traçados tendencialmente curvilíneos e recorrendo a mais ou menos prolixas ramificações em cul-de-sac. A ação de De Groer incrementaria a opção pelas morfologias de baixa densidade associadas à cidade-jardim que em Portugal eram já conhecidas e privilegiadas, sendo ideologicamente defendidas pelo poder político e recorrentemente propostas nos planos e an- teplanos até aos anos cinquenta do século XX. Assim, é com naturalidade que se verifica que em ambas as versões (1949 e 1953) do Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, da autoria dos arquitetos Maria José Moreira da Silva e David Moreira da Silva, todas as propostas de áreas residenciais se baseiam na moradia unifamiliar, condenando-se, em contraponto, a utilização da “casa-bloco”, como se explicita, com argumentos ideologicamente inequívocos, na memória descritiva da versão de 194938. Em consonância com esta perspetiva, além da recuperação de alguns projetos anteriores, como a abertura de uma via que continuava para sul a avenida central da “pata de ganso” e articulava o Largo da Feira com São Lázaro, o anteplano de 1949 distinguia-se pela demarcação de um “parque da cidade” na área ocidental e pelo desenho de áreas residenciais de moradias unifamiliares em todos os quadrantes das periferias, incluindo a “unwinização” do desenho do bairro oriental previsto no plano de 1925. 32 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê O anteplano de 1949 seria severamente criticado pelo Conselho Superior de Obras Públicas, em parecer de 1952, onde se salientava a fraca qualidade e legibilidade da cartografia apresentada; a necessidade de remodelar o (...) esquema de novos arruamentos (...) adequando-o às alterações na rede de estradas encetadas pela Junta Autónoma de Estradas; a inadequada insistência na continuação do inacabado edifício para os serviços da câmara municipal visto a sua localização (...) prejudicar o aspecto grandioso do belo conjunto constituído pelos Paços e Castelo de Guimarães (...) e considerando-se que no local (...) só deveria existir uma vasta praça donde irradiem os vários arruamentos de penetração na cidade e os de acesso a esses dois monumentos nacionais (...), sugerindo-se que (...) eventualmente se pudessem aproveitar os Paços dos Duques de Bragança ou o edifício do actual liceu [Convento de Santa Clara] para instalação dos serviços municipais (...); a ausência de proposta de localização para vários equipamentos, como o tribunal, os correios e a estação rodoviária; a inadequada localização para o novo edifício do liceu, sugerindo-se a sua aproximação ao centro da cidade; a necessidade de reduzir a (...) proporções mais modestas (...) o parque da cidade por estar previsto com (...) proporções demasiadas em relação à população da cidade (...). Finalmente, refere-se a necessidade de audição de várias entidades públicas, sublinhando-se a da DGEMN e alertando-se para o dever de (...) proceder a um estudo completo de todos os motivos artísticos, históricos e paisagísticos (...), exigindo-se a elaboração de uma (...) classificação por categorias (...) e a indicação, para cada categoria, dos cuidados e das (...) obras necessárias à sua valorização e integração no urbanismo local (...)39. O parecer concluía com a imposição de uma (...) profunda revisão (...) do anteplano. Na versão de 1953 do anteplano, contra-argumentava-se em relação à defesa da continuação da edificação dos paços concelhios, criticando o (...) desafogo sem medida (...) em torno dos monumentos nacionais e lembrando a contradição de se pretender construir o tribunal dentro dos (...) exagerados limites da zona vedada à construção, em torno do Paço dos Duques de Bragança (...), que entretanto haviam sido determinados pelo Ministério da Educação40. Contudo, acabaria por se acatar cada uma das críticas, sugestões e determinações do parecer do Conselho Superior de Obras Públicas, transformando-se o “parque da cidade” numa “zona de reserva” adjacente a um mais contido quarteirão para edificação de um estádio de futebol, eliminando-se algumas áreas de moradias unifamiliares, demarcando-se uma zona industrial a norte da linha férrea que integrava a Zona de Couros e voltando-se a alterar o desenho do bairro-jardim oriental com a relocalização do liceu. Entre todos, sublinhe-se a melhoria dos aspetos relativos à preservação do património edificado corrente, perspetivando contextos e conjuntos subjacentes a uma classificação dos monumentos citadinos em três categorias41. Apesar da singeleza classificatória, releve-se a elaboração de listagens enumerando os edifícios pertencentes a cada uma42 e, principalmente, a ideia de criação de (...) faixas de respeito (...) nas proximidades dos edifícios classificados43, o que implicou acrescentos e especificações regulamentares explicitando a competência e a obrigação do poder municipal na preservação do património edificado. Mesmo sendo uma abordagem essencialmente preocupada com a imagem urbana porque centrada na qualidade das fachadas, trata-se de um contributo assinalável pois alarga os limites de proteção do património edificado, até aí restringidos aos perímetros legais em torno dos monumentos nacionais, a todas as (...) faixas de respeito (...) cartografadas no anteplano para os edifícios públicos e privados com (...) interesse artístico (...)44. Finalmente, apesar da reconhecida e assinalada importância dos planos e anteplanos do Estado Novo, as suas propostas foram normalmente condicionadas pela localização de alguns equipamentos e, em todo o caso, pelas ações do poder central, resultando daqueles instrumentos modificações e acrescentos da malha urbana frequentemente mais mitigadas do que os resultados pressupostos. No caso vimaranense, como noutros, as consequências foram contidas, podendo adjetivar-se como diminutas se apenas considerarmos a área correspondente ao centro histórico alargado ou “zona tampão”. De facto, apenas o triângulo de quarteirões estruturado entre a Avenida Conde de Margaride e a antiga Avenida do Cemitério deve o seu desenho à versão de 1953 do anteplano, decorrendo ainda deste a área desportiva que lhe está adjacente, cujo estádio foi inaugurado em 1965 e cujas proximidades se manteriam como as áreas privilegiadas para a expansão da cidade nas décadas seguintes. Aliás, para esta área, que o anteplano de 1949 integrava num “parque da cidade” e que o anteplano de 1953 transformara em “zona de reserva”, foi delineado logo em 1957 um anteplano parcial, pelos Moreira da Silva, que mantinha evocações da morfologia de cidade-jardim, então já anacrónicas, sendo substituídas pelas morfologias modernas inspiradas na Carta de Atenas que o arquiteto Arménio Losa proporia no Plano Parcial de Urbanização da Zona Noroeste de Guimarães, de 1969, e reafirmaria no Estudo Prévio de Urbanização da Zona Noroeste de Guimarães, de 1971. Em contraponto, o centro histórico foi-se despovoando, envelhecendo e degradando. A ACRRU (1979), a ação do GTL e a classificação como Património da Humanidade (2001) Foi no contexto da crise do movimento moderno e dos preceitos da Carta de Atenas, nomeadamente como reação à indiferença e ao menosprezo pela cidade tradicional herdada, que surgiu a Carta de Veneza (1964), considerando que o património vai além do edifício isolado, introduzindo a ideia de ambiente monumentos 33 e conjunto urbano e sublinhando a necessidade do conceito de reutilização como forma de garantir o futuro da cidade histórica. Seria à luz destes pressupostos que aconteceria a elaboração e concretização do plano de reabilitação para o centro histórico de Bolonha, envolvendo arquitetos como Aldo Rossi e Bernardo Benévolo, entre outros. Tornado conhecido como o modelo Bolonha, além de preconizar a salvaguarda e recuperação do casco antigo original e de estruturar a intervenção na delimitação de áreas homogéneas estabelecidas em função de critérios morfológicos, funcionais e sociais, pretendia a manutenção do essencial da composição social anterior à reabilitação, aspeto que seria entretanto sublinhado pela Declaração de Amesterdão ou Carta Europeia do Património Arquitetónico, de 197545. Em Portugal, na sequência do 25 de abril de 1974, o poder central lançou algumas medidas de política urbana para responder ao premente problema da habitação. Entre outros aspetos, foram publicados alguns instrumentos legais para enquadramento do apoio técnico e financeiro aos municípios, visando a recuperação do edificado degradado que pontuava a generalidade das aglomerações urbanas e que era particularmente acentuado nos centros históricos. Os primeiros instrumentos surgiram logo em 1976, consubstanciados no Programa de Recuperação de Imóveis Degradados (PRID, Decreto-Lei n.º 704/76) DOSSIÊ e na Lei de Solos (Decreto-Lei n.º 794/76), prevendo-se nesta a delimitação de ACRRUs (Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística) e a elaboração de “medidas preventivas” visando tornar expedita a ação dos municípios, quer nas expropriações, quer no condicionamento das ações dos privados, tendo como finalidade intervir no património edificado das zonas históricas das cidades. A planta com os limites da ACRRU de Guimarães foi publicada em 1979 (Decreto Regulamentar n.º 24/79, DR n.º 117, I Série, 22 de Maio) e clarificava-se então que respeitava (...) à Câmara Municipal de Guimarães promover, em colaboração com as demais entidades interessadas, o processo de recuperação e reconversão urbanística (...). A ACRRU delimitada abarcava a área intramuros a sul da Rua de Serpa Pinto e a extramuros que lhe era adjacente, que se estruturava entre a Avenida Conde de Margaride e a Rua da Caldeiroa, abrangendo a generalidade dos edifícios e respetivas “faixas de respeito” classificados no anteplano de 1953. Concomitantemente, no âmbito da elaboração do Plano Geral de Urbanização de Guimarães, da autoria dos arquitetos Fernando Távora e A. Matos Ferreira, foi reconhecida a necessidade de elaboração de um plano de pormenor para apoio à gestão urbanística do centro histórico, o que, conjugado com a importância de estabelecimento de “normas provisó- 33 12 | Plano Geral de Urbanização de Guimarães, da autoria dos arquitetos Fernando Távora e A. Matos Ferreira, 1982. 34 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê rias” para controlo do processo de urbanização até à conclusão de um plano diretor municipal, tece o contexto para a proposta do arquiteto Nuno Portas, formulada em 1981, de criação de um gabinete do centro histórico, em cuja direção a câmara municipal coloca a arquiteta Alexandra Gesta, que contará com a assessoria do arquiteto Fernando Távora46. O Gabinete do Centro Histórico, redenominado em 1985, no âmbito do Programa de Reabilitação Urbana (Despacho 4/SEUH/85, de 22 de janeiro), como Gabinete Técnico Local (GTL), congregará uma equipa multidisciplinar cuja ação assentará em estratégias claramente decorrentes do conhecimento da experiência de requalificação do centro histórico de Bolonha, que se tornara paradigmática para a reabilitação de centros históricos um pouco por toda a Europa. Naturalmente, desenvolveu-se um caminho próprio, já caracterizado como (...) uma reabilitação para e pelas pessoas (...), visando a (...) conservação estrita dos valores identitários e de autenticidade (...), com (...) a garantia da continuidade das permanências essenciais de longo prazo (...) e com a preservação das características formais consolidadas, mas com a imprescindível abertura e flexibilidade que permita incluir necessidades e oportunidades47. A ação continuada do GTL, entretanto rebatizado como Divisão do Centro Histórico, permitiria a qualificação da generalidade dos espaços públicos e a reabilitação de centenas de edifícios, concretizada, por entidades públicas ou por privados, de forma criteriosa quer em relação às questões morfotipológicas, quer aos processos construtivos e respetivos materiais48, contribuindo-se, assim, para a criação das condições concretas para a classificação como património cultural da humanidade alcançada em 2001. Desde então, com maiores ou menores perturbações, tem-se mantido uma gestão urbanística ponderada e reconhecida no assegurar da qualidade das intervenções no edificado e no espaço público, normalmente sem alterações importantes na morfologia urbana ou apenas com pequenos ajustamentos, como se verificou na transformação do antigo mercado municipal em “plataforma das artes” e na construção do novo espaço da feira semanal, dois dos (...) cinco projetos para Guimarães (...)49 enquadrados na Capital Europeia da Cultura 2012. Uma realidade compósita À época da candidatura de Guimarães a Património Cultural da Humanidade e apesar do lastro de colaboração institucional existente, os limites das áreas de intervenção do então Instituto Português do Património Arquitetónico e Arqueológico (atual DGPC) e do GTL não se ajustavam mutuamente e nenhum se adequava aos limites da “zona tampão” proposta. Aparentemente, enquanto serviço da administração central, o IPPAR considerava a superfície resultante do somatório da área de proteção definida em 1951, para a “colina sagrada”, mais a área aprovada como ACRRU em 1979 e ainda a Zona de Couros, consagrada com semelhante estatuto no plano geral de urbanização de 1982, assumindo os limites anteriormente determinados, com pequenos retoques que apresentavam a mesma incompreensível indiferença em relação à realidade morfológica e que apenas pareciam pretender acautelar uma alargada margem de intervenção. Por sua parte, o GTL considerava sensivelmente o mesmo somatório de áreas, mas definia os limites a partir de um conhecimento casuístico e de proximidade, baseando-os na procura de coerências morfotipológicas e morfogenéticas e gizando contornos mais lógicos e compreensíveis, embora tendencialmente mais restritos. Ao mesmo tempo, embora ambas contivessem a área proposta para classificação, abarcavam superfícies inferiores à “zona tampão” proposta, verificando-se, simultaneamente, diferenças importantes entre a “zona proposta” para classificação e a área finalmente classificada, bem como entre a “zona tampão” proposta e aquela que seria aprovada, bem mais lata do que todas as delimitações anteriores e cujos limites seriam finalmente assumidos como coincidentes aos da nova área de intervenção da Divisão do Centro Histórico, entretanto formalizada e recentemente inscrita na “planta de condicionantes” do Plano Diretor Municipal de 201250. A classificação como “conjunto” Património Cultural da Humanidade e a respetiva e devida promoção proporcionaram um melhor conhecimento do património em causa e a criação de consensos criadores, permitindo o aprofundamento da conjugação de esforços entre instituições, técnicos, investigadores, moradores. Contudo, importa notar o perigo dos consensos em torno de ideias simplistas e equívocas, facilmente aceites e divulgadas, entre as quais se referencia a identificação do miolo muralhado como linearmente medieval, a restrição do que é medieval ao núcleo muralhado ou a limitação do centro histórico ao recinto muralhado, independentemente de eventuais decisões institucionais nesse sentido. Na verdade, o (...) trabalho continuado de boa gestão urbanística (...), sublinhado pela DGPC51, apenas permite apresentar o casco de origem medieval vimaranense como um exemplo excecionalmente bem preservado (...) of the evolution of a medieval settlement into a modern town (...)52, como é referido no sítio web da UNESCO. Além do mais, nota-se alguma benevolência na consideração de que (...) the eclectic and industrial periods and modern expansion (1926 until today) include some changes, although the town has maintained its medieval urban layout (...), pois verificaram-se mudanças importantes e apenas a sul da Rua de Serpa Pinto se pode afirmar que o layout medieval não sofreu mais do que “algumas” mudanças. Finalmente, algumas das áreas de génese medieval encontram-se extramuros, como as que se estruturam ao longo das ruas de D. João I, da Caldeiroa, de Santa Luzia ou a própria Zona de Couros. monumentos 33 DOSSIÊ 35 13 | Guimarães, planta georreferenciada com representação da área classificada pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade e respetiva zona tampão; informação trabalhada por Rita Vale sobre base cartográfica cedida pela Câmara Municipal de Guimarães, 2013. PATRIMÓNIO MUNDIAL – UNESCO, 2001 IMÓVEL DE INTERESSE PÚBLICO ZONA ESPECIAL DE PROTEÇÃO 11. Casa dos Lobos Machado [IPA.00000326] Aviso n.º 15171/2010, DR, 2.ª série, n.º 147, de 30 de Julho 2010. 12. Igreja da Misericórdia de Guimarães [IPA.00005174] 13. Edifício na Rua Egas Moniz, n.º 113 [IPA.00002628] MONUMENTO NACIONAL 14. Capela e cruzeiro de Santa Cruz [IPA.00001069] ZONA ESPECIAL DE PROTEÇÃO 15. Rua de D. João I [IPA.00005870] 1. Castelo de Guimarães [IPA.00001060] 16. Igreja do Convento de São Domingos [IPA.00001896] 2. Paço dos Duques de Bragança [IPA.00001139] 17. Convento da Madre de Deus [IPA.00001924] 3. Igreja de São Miguel do Castelo [IPA.00001248] 18. Igreja e oratórios dos Santos Passos de Nossa Senhora 4. Igreja de Nossa Senhora da Oliveira [IPA.00005247] 5. Cruzeiro de Nossa Senhora da Guia [IPA.00000310] 6. Paços Municipais de Guimarães [IPA.00005794] da Consolação [IPA.00001077] 19. Cruzeiro fronteiro ao adro da Igreja de São Francisco [IPA.00000022] 7. Muralhas de Guimarães [IPA.00001048] 8. Padrão Comemorativo da Batalha do Salado [IPA.00000764] 9. Padrão de D. João I [IPA.00000774] EM VIAS DE CLASSIFICAÇÃO 20. Conjunto das antigas fábricas de curtumes [IPA.00001938] 10. Claustro do Convento de São Domingos [IPA.00001896] IMÓVEL DE INTERESSE MUNICIPAL 21. Casa das Rótulas [IPA.00001929] 22. Casa do Proposto e seus jardins [IPA.00001071] 23. Igreja e Convento de São Francisco [IPA.00000305] 36 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Independentemente das ações que se desenvolvam na procura de coerências e equilíbrios, na afirmação ou na eliminação de valores e dissonâncias, o que observamos, hoje como sempre, são realidades compósitas, nas delimitações como nas morfologias, conjugando traçados e formas visíveis e “invisíveis”, entendidos e identificados pela inquirição dos respetivos processos de formação. No caso do centro histórico vimaranense, no restrito como no alargado, a composição assenta a sua génese em dois “momentos”: a época medieval e a contemporaneidade. 11 12 13 14 15 16 17 Mário Gonçalves Fernandes Geógrafo Docente do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Investigador do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território 18 19 Imagens: 1 a 5: autor; 6 a 9 e 13: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico; 10 a 12: Direção-Geral do Território N OTA S 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval (1376-1520), p. 47. Esta planta foi divulgada no IV Congresso Histórico de Guimarães que decorreu em 2006, constando das respetivas atas, publicadas em 2009, um estudo de datação e análise da planta (Mário G. FERNANDES — “Novas notas para a história da cartografia urbana e da morfologia urbana de Guimarães”. Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães, vol. IV, pp. 115-133). Decorrem deste estudo as informações sobre a planta vertidas no inventário da Cartoteca da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e publicadas na edição concretizada pela Sociedade Martins Sarmento, em colaboração com a Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO (“A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade, vol. II, pp. 33 e 56) consideraram que (...) nos finais do século XIV, D. João I ordenou a destruição da cerca alta (...) ou seja, da parte que ficara interiorizada. No mesmo passo, pela conjugação de informações de proveniência diversa, também sugere que, ainda no século XV, se terá edificado nova (...) cerca desde os paços até à torre junto da mesma porta [da Garrida] (...). Daqui decorre a dúvida sobre a origem da cerca representada na planta “De Guimarães”. Observando com redobrada atenção o documento cartográfico e considerando a cor utilizada, bem como a largura e a altura dos muros (verificável pelo número de degraus de acesso desenhados), porque tudo é idêntico, reafirmamos que (...) a planta De Guimarães, não só confirma a existência dos primeiros muros, como dá a conhecer a generalidade do seu traçado (...) (Mário G. FERNANDES — Ob. cit., p. 123). Refiram-se, por exemplo, Manuel Alves de OLIVEIRA (A Exposição Industrial de 1884 e as suas Repercursões; “A cidade de Guimarães no séc. XIX num plano de urbanização”. Guimarães do Passado e do Presente; “Guimarães numa resenha urbanístiva do século XIX”. Boletim de Trabalhos Históricos, vol. XXXVII, pp. 119-147), Maria da Conceição Falcão FERREIRA (Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval... e Guimarães ‘Duas Vilas, um só Povo’: Estudo de História Urbana), Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO (“A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade, vol. II), Mário G. FERNANDES (Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal... e “Novas notas para a história da cartografia urbana e da morfologia urbana de Guimarães”. Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães, vol. IV, pp. 115-133). A primeira versão, de 2000, consta do site da Câmara Municipal de Guimarães, na informação relativa ao Gabinete Técnico Local (http://www.cm-guimaraes. pt/files/1/documentos/470409.pdf, acedido em 16 de outubro de 2012). UNESCO, http://whc.unesco.org/en/decisions/2303, acedido em 16 de outubro de 2012. Na verdade, na versão de Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO publicada em 2002, após a classificação da UNESCO, embora se mantenha o texto inalterado também se adotam os limites cronológicos referidos no site da UNESCO. Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal... , anexo 14, p. 368. “Decreto sobre a construção, conservação e polícia das estradas e aberturas de ruas”. Diário de Lisboa, n.º 10, de 19 de Janeiro de 1865. Livro de Actas da Comissão de Melhoramentos, publicado por Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., anexo 2, pp. 307-327. 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 (...) 1) abertura de ruas novas; 2) melhoramentos de ruas velhas; 3) abastecimentos e distribuição de águas, tanques e chafarizes; 4) banhos e lavadouros públicos; 5) mercados; 6) cemitérios; 7) edifícios públicos – Palácio municipal, tribunal, cadeia, hospital, escolas, biblioteca, matadouro, etc.; 8) jardins, embelezamentos e arborização; 9) Iluminação; 10) Numeração e designação das ruas; 11) estabelecimentos perigosos e prejudiciais ao serviço de salubridade pública, limpeza de ruas e incêndios; 12) indicação dos meios para os melhoramentos (...). Diário do Governo n.º 69, de 24 de março de 1890. Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 239, nota 895. Uma resenha biográfica foi publicada pela Câmara Municipal de Guimarães (MARIANO Felgueiras, o Político Vimarenense e a Cidade). Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 426. Decreto de 27 de agosto de 1908, publicado no Diário do Governo, 5 de set. 1908, n.º 199, e Decreto de 16 de junho de 1910, publicado no Diário do Governo, 23 de jun. 1910, n.º 136. Françoise CHOAY — A Alegoria do Património, pp. 111-143. António CARDOSO — O Arquitecto José Marques da Silva..., p. 328. Segundo Marques da SILVA (“Projecto de edifício para a Câmara Municipal de Guimarães, Memória Descritiva”. Alargamento da Cidade e Novos Paços do Concelho, Memórias Descritivas, pp. 7 e 8) o edifício representava a (...) síntese das tradições históricas da cidade (...), nomeando (...) o castelo altaneiro (...), a capela românica (...), os paços junto ao Castelo (...), a parte gótica da igreja de S. Francisco (...), a colegiada e Praça da Senhora da Oliveira com as suas épocas românica, gótica, renascença e século XVII (...) e rematando, para não alongar mais esta resenha, o actual edifício da Câmara, tão característico pelo seu pórtico gótico de trânsito público (...). E sintetizava afirmando que (...) Ao alvorescer da idade média fomos buscar as fontes do nosso trabalho, ainda que o tivéssemos de matizar com a época posterior (...) foi pois, no carácter da Arte gótica que estabelecemos a nossa concepção (...). O sidonismo depôs o Partido Democrático, chefiado por Afonso Costa, ao qual pertencia Mariano Felgueiras. Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 123. A memória descritiva e as plantas, cortes e alçados do edifício municipal, tinham já sido publicados em 1917, por diligência de Mariano Felgueiras, na revista A Arquitectura Portuguesa. Pierre LAVEDAN — Histoire de l’urbanisme, Renaissance et temps Modernes, p. 236. Fernando TÁVORA — “O ‘Plano de Alargamento’ ou Guimarães entre o sonho e a realidade”. Guimarães do Passado e do Presente, p. 40. Benedetto GRAVAGNUOLO — Historia del Urbanismo en Europe, 1750-1960, p. 122. A. E. J. MORRIS — Historia de la forma urbana, pp. 206 e 207. Luís de PINA — “Plano geral de alargamento da cidade, memória descritiva e justificativa”. Alargamento da Cidade e Novos Paços do Concelho... , pp. 15-18. Lei n.º 1.700 de 19/12/1924; Decreto n.º 11.445 de 13/021926; Decreto n.º 18.123 de 20/03/1930; e Decreto n.º 20.985 de 07/03/1932. Ver Flávio LOPES — Património Arquitectónico e Arqueológico..., pp. 19-32. As memórias relativas às três intervenções foram publicadas no Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais: Castelo de Guimarães, n.º 8, de junho de 1937; Igreja de São Miguel do Castelo, n.º 20, de junho de 1940; Paço dos Duques de Bragança, Guimarães, n.º 102, de dezembro de 1960. Refiram-se também os boletins n.º 108, de 1962, e n.º 128, de 1981, relativos às igrejas de São Domingos e de Nossa Senhora da Oliveira, respetivamente. Flávio LOPES — Ob. cit., pp. 23-24. Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO — “A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade, vol. II, pp. 155 e 158. Idem, ibidem, pp. 159-160. Margarida Souza LÔBO — Ob. cit., pp. 35-49. Mário G. FERNANDES— Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., pp. 100-110. Margarida Souza LÔBO — Ob. cit., p. 35. Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 265. Margarida Souza LÔBO — Ob. cit., pp. 38, 51, 57 e 77. Sublinhe-se o incontornável texto de Etienne de Groer, paradigma das suas ideias e caracterizador do pensamento dominante no urbanismo coevo, publicado em 1946 no Boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, onde o arquiteto explica e enaltece as ideias de Ebnezer Howard (p. 24), se opõe às ideias de construção em altura de Le Corbusier (p. 28) e defende a construção da habitação em unidades familiares, em morfologias estudadas por Unwin (pp. 38-41). Os (...) altos blocos de casas de rendimento (...) são muitas vezes condenáveis na habitação, pelos perigos que constituem para a saúde e a educação das crianças, como pelo enfraquecimento dos laços de família e outras consequências de carácter social que provocam. Nas suas, via de regra, dependências de dimensões mínimas, os ruídos e o mau exemplo de alguns dificilmente se podem evitar. As pequenas e grandes discussões (...) como os descontentamentos gerais encontram na casa-bloco o ambiente mais favorável ao seu rápido alastramento que, não raro, conduz à indisposição e à anarquia (...) quanto a nós, a casa-bloco, monumentos 33 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 em altura, só excepcionalmente e quando destinada a famílias possuidoras de capacidade moral suficiente para enfrentar vitoriosamente os riscos referidos é que poderá vir a dar resultados satisfatórios (...). Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949, Memória Descritiva, p. 36. “Apreciação” datada de 22 de julho de 1952 e inserta na versão de 1953 do Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, pp. 5-9. A planta com a delimitação da (...) área vedada à construção (...) e com o (...) limite da zona de proteção (...) do castelo, Igreja São Miguel e Paço dos Duques de Bragança, foi publicada no Diário do Governo n.º 103, II Série, de 30 de abril de 1952, como anexo de despacho do Ministério da Educação, datado de 24 de novembro de 1951. Categoria A — monumentos classificados como nacionais; B — edifícios públicos de reconhecido interesse artístico; C — imóveis privados de reconhecido interesse artístico (Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953, pp. 29-32). Como curiosidade, refira-se a inclusão na categoria C, com ilustração fotográfica, do (...) prédio de madeira, na Rua Egas Moniz (...) — Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953, p. 32 —, ou seja, exatamente a casa da Rua Nova onde funcionaria o GTL e cujo restauro seria objeto da atribuição do prémio Europa Nostra. (...) Em consequência daquela classificação, que pretende contribuir para salvaguardar as condições estéticas, objectivas e subjectivas, de cada monumento, seja ele público ou particular, nasceu a ideia de se criarem algumas FAIXAS DE RESPEITO nas suas proximidades, para que a sua conservação, construção ou reconstrução bem como a dos prédios seus vizinhos, não possam ser feitas em plena liberdade ou desprezo pelos valores existentes. (...) — Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953, p. 32. (...) À Câmara Municipal, obrigatoriamente coadjuvada pela sua Comissão de Estética, compete velar, com particular carinho, pela manutenção da unidade estética dos monumentos incluídos nas categorias B e C e pelas obras de conservação e construção nas faixas de respeito agora criadas e no alinhamento das quais só serão autorizadas obras novas de acentuado cunho artístico e obras de conservação que pela sua côr e qualidade dos materiais não briguem com os monumentos das referidas categorias. (...) — Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953, p. 33. Rubén LOIS GONZÁLEZ (coord.) et al — Los espacios urbanos:..., pp. 132-134. José AGUIAR — “A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégia, método e algumas questões disciplinares”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade, pp. 54-55. Idem, ibidem, pp. 51-53. Sobre a ação do GTL e pormenorização dos respetivos resultados veja-se José AGUIAR (“A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégia, método e algumas questões disciplinares”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade) e Vera Patrícia S. Rocha BARROS (A Acção do GTL no Centro Histórico de Guimarães). Referem-se os (...) 5 Projectos para Guimarães: 1 — Parque de Lazer da Cidade Desportiva/Centralidade de Silvares; 2 — Arranjos Urbanísticos do Toural/Alameda de S. Dâmaso/Rua de Santo António; 3 — Novo Espaço da Feira Semanal; 4 — Reestruturação da Praça e do Edifício do Mercado Municipal de Guimarães; 5 — CampUrbis. (...) (Miguel S. M. BANDEIRA — “A alegoria da univer(c)idade como uma eutopia em devir — O projeto CampUrbis em Guimarães”. OBS, p. 28 e nota 19). Proposta de revisão do PDM de 2012, “Planta de condicionantes”, Folha 85-1: área “património mundial da humanidade” e respectiva “zona especial de proteção” (http://www.cm-guimaraes.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=40456). DGPC, http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/mundial/portugal/119/. UNESCO, ICOMOS, 2001, http://whc.unesco.org/en/list/1031. F O N T E S D O C U M E N TA I S Direção-Geral de Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, Maria José Moreira da Silva e David Moreira da Silva, Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949 e 1953 (1:2500); Maria José Moreira da Silva e David Moreira da Silva, Anteplano Parcial de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1957 (1:1000); Arménio Losa, Plano Parcial de Urbanização da Zona Noroeste de Guimarães, 1969 (1:1000); Arménio Losa, Estudo Prévio de Urbanização da Zona Noroeste de Guimarães, 1971 (1:2000); Fernando Távora e A. Matos Ferreira, Plano Geral de Urbanização de Guimarães, 1982 (1:5000). DOSSIÊ ALARGAMENTO da Cidade e Novos Paços do Concelho. Memórias Descritivas. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães; Tip. Minerva Vimaranense, 1925. BANDEIRA, Miguel S. M. — “A alegoria da univer(c)idade como uma eutopia em devir — O projecto CampUrbis em Guimarães”. OBS. Lisboa: Observatório das Atividades Culturais, 2008, n.º 16, pp. 20-30. BARROS, Vera Patrícia S. da Rocha — A Acção do GTL no Centro Histórico de Guimarães. Porto: s. n., 2010, dissertação de mestrado integrado em Arquitetura apresentada à Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, texto policopiado. CARDOSO, António — O Arquitecto José Marques da Silva e a Arquitectura do Norte do País na Primeira Metade do Séc. XX. Porto: FAUP publicações, 1997. CHOAY, Françoise — A Alegoria do Património. 1.ª ed. 1982. Lisboa: Edições 70, 2000. DE GROER, Etienne — “Introdução ao urbanismo”. Boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização. Lisboa: Ministério das Obras Públicas e Comunicações, 1945-1946, vol. I. FERNANDES, Mário G. — “Novas notas para a história da cartografia urbana e da morfologia urbana de Guimarães”. Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2009, vol. IV: História e Geografia das Populações, pp. 115-133. FERNANDES, Mário G. — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal. Viana do Castelo, Póvoa de Varzim, Guimarães, Vila Real, Chaves e Bragança entre 1852 e 1926. Porto: FAUP publicações, 2005. FERRÃO, Bernardo; AFONSO, J. Ferrão — “A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães/Gabinete Técnico Local, 2002, vol. II, pp. 5-185. FERREIRA, Maria da Conceição Falcão — Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval (1376/1520). Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1989. FERREIRA, Maria da Conceição Falcão — Guimarães “Duas Vilas, um só Povo”: Estudo de História Urbana, 1250-1389. Braga: s. n., 1997, dissertação de doutoramento apresentada à Universidade do Minho, texto policopiado. GRAVAGNUOLO, Benedetto — Historia del Urbanismo en Europa, 1750-1960. Madrid: Akal Ediciones, 1998. LAVEDAN, Pierre — Histoire de l’urbanisme, Renaissance et temps Modernes. Paris: Henri Laurens Ed., 1959. LÔBO, Margarida Souza — Planos de Urbanização, A Época de Duarte Pacheco. Porto: FAUP publicações, 1995. LOIS GONZÁLEZ, Rubén (coord.); et al. — Los espacios urbanos: el estudio geográfico de laciudad y la urbanización. Madrid: Biblioteca Nueva Editorial, 2012. LOPES, Flávio — Património Arquitetónico e Arqueológico, Noção e Normas de Proteção. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2012. MARIANO Felgueiras, o Político Vimaranense e a Cidade. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2000. MORRIS, A. E. J. — Historia de la forma urbana. Barcelona, Editorial Gustavo Gil, 1984. OLIVEIRA, Manuel Alves de — A Exposição Industrial de 1884 e as Suas Repercussões. Guimarães: s. n., 1984, vol. XXXV, pp. 3-15, separata do Boletim de Trabalhos Históricos. OLIVEIRA, Manuel Alves de — “A cidade de Guimarães no séc. XIX num plano de urbanização”. Guimarães do Passado e do Presente. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1985, pp. 16-37. OLIVEIRA, Manuel Alves de — “Guimarães numa resenha urbanística do século XIX”. Boletim de Trabalhos Históricos. Guimarães: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, 1986, vol. XXXVII, pp. 119-147. PINA, Luís de — “Plano geral de alargamento da cidade, memória descritiva e justificativa”. Alargamento da Cidade e Novos Paços do Concelho, Memórias Descritivas. Guimarães: Tipografia Minerva Vimaranense, 1925, pp. 15-18. PROPOSTA Apresentada pelo Presidente da Comissão Executiva. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães; Typ. Pires, 1916. SILVA, Marques da — “Projecto de edifício para a Câmara Municipal de Guimarães, Memória descritiva”. Alargamento da Cidade e Novos Paços do Concelho, Memórias Descritivas. Guimarães: Tipografia Minerva Vimaranense, 1925, pp. 7-14. TÁVORA, Fernando — “O ‘Plano de Alargamento’ ou Guimarães entre o sonho e a realidade”. Guimarães do Passado e do Presente. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1985, pp. 40-41. B I B L I O G R A F I A S Í T I O S E D O C U M E N TO S (consultados em 16 de outubro de 2012) W E B AGUIAR, José — “A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégia, método e algumas questões disciplinares”. Guimarães. Património Cultural da Humanidade. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães/Gabinete Técnico Local, 2002, vol. II, pp. 51-135. http://www.cm-guimaraes.pt/files/1/documentos/470409.pdf. http://www.cm-guimaraes.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=40456. http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/mundial/portugal/119/. http://whc.unesco.org/en/list/1031. 37 38 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Uma indústria em Guimarães: os curtumes DEOLINDA FOLGADO (…) É a indústria mais importante pelo valor e pelos grandes capitais de que dispõe. Dentro da cidade está localizada n’um bairro, que se chama Rua dos Couros; fora encontra-se na freguesia de S. Torcato, no lugar da Corredoura (…). Relatório da Exposição Industrial de Guimarães em 18841. 1. A indústria de curtumes como património Os anos setenta do século XX representam um tempo de renovação para o património. Ao nível internacional, a Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural (1972)2 inaugurou uma nova etapa ao relacionar os bens culturais com os elementos naturais, na senda das preocupações sentidas a partir da Segunda Guerra Mundial com os centros históricos, com os conjuntos urbanos e com os próprios bens culturais (Convenção de Haia, 1954)3. Durante cerca de trinta anos assistiu-se ao emergir de uma tematização do património, metodologia imprescindível para a organização tipológica dos artefactos da memória que careciam de estudo e de salvaguarda. De entre as tipologias patrimoniais que encontraram um enquadramento organizacional que zelasse ao nível internacional pelo seu conhecimento e preservação destaca-se a do património industrial, através da fundação do The International Commitee for the Conservation of the Industrial Heritage — TICCIH (1978)4. Para Portugal, os anos setenta do século XX representaram, igualmente, tempos de mudança. No sector do património as alterações políticas evidenciaram-se no início da década seguinte. Procurou-se acompanhar as novas exigências, sentidas há muito ao nível internacional, através da alteração do sistema de preservação e de intervenção no património, o que implicou modificações aos níveis administrativo e conceptual5. Pela sua extrema actualidade, e revelando uma admirável sintonia com as preocupações de salva- guarda internacionais relacionadas com os novos patrimónios, mencione-se o despacho de abertura de classificação das antigas fábricas de curtumes de Guimarães, do então diretor-geral do Património Cultural, datado de Julho de 1977: (...) Nos termos dos artigos primeiro e segundo do Decreto-Lei número 181/70, de 28 de Abril, e para cumprimento urgente do disposto no artigo terceiro de mesmo diploma, comunico a Vossa Excelência que, por despacho de Sua Excelência o Secretário de Estado de Investigação Científica proferido sobre propostas da quarta Subsecção da segunda Secção da Junta Nacional da Educação, foi determinada a classificação como imóvel de interesse público, o conjunto das antigas fábricas de curtumes, nessa cidade (...)6. Este despacho, relativo a uma área patrimonial ainda pouco reconhecida entre nós, compreende-se num contexto de mutação, nomeadamente através das primeiras acções de sensibilização para a arqueologia/património industrial, disciplina que principiara a ser estudada no âmbito da cadeira de Revolução Industrial (1977), leccionada na licenciatura de História da Faculdade de Letras de Lisboa7. Outro exemplo de salvaguarda do património industrial, A actividade da curtimenta, com uma presença de séculos em Guimarães, deixou marcas na cidade. Devido a condicionantes de natureza técnica, o tratamento das peles fixou-se junto do curso de água, no arrabalde da cidade muralhada, dando origem à Rua de Couros, à Zona de Couros e ao rio de Couros, sendo uma das primeiras áreas urbanas, de vocação industrial, a ser reconhecida com o valor arqueológico-industrial, através do despacho de abertura da classificação, datado de Julho de 1977. Compreender como esta actividade se implementou e se relacionou com a cidade, conhecer quais as principais fases de tratamento das peles, anteriores à industrialização de todo o processo, e observar como eram os edifícios/espaços onde decorriam as diversas operações são alguns dos aspectos abordados neste texto. monumentos 33 de extrema precocidade, reporta-se à classificação da central eléctrica de Tomar, edifício incluso no conjunto da levada, localizado no rio Nabão, o qual integra ainda os lagares d’El-Rei e duas moagens, a Nabantina (1882) e a Portuguesa (1912), por despacho do secretário de Estado da Cultura de Maio de 19798. Ambos os casos inauguraram um novo período para o património industrial. O reconhecimento deste património fez-se através de um conjunto de valores que abandonou a exclusividade do interesse histórico-artístico ou monumental, inscrevendo-se num primeiro nível de salvaguarda no âmbito da protecção legal. Uma certa prematuridade do despacho de abertura de classificação das antigas fábricas de curtumes, em Guimarães, observa-se ainda em relação ao momento em que a arqueologia/património industrial se afirmou em Portugal, por via da realização da primeira grande exposição com carácter nacional na Central Tejo (1985)9; da fundação da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (1986); e da realização de vários colóquios internacionais, nomeadamente a Conferência Intercalar do TICCIH (1989). Em finais dos anos de 1980 e durante a década seguinte efectuaram-se as primeiras classificações relativas a bens industriais, nomeadamente a Central Tejo (1986)10; o edifício da Fábrica Nacional a Cordoaria (1996)11; a Fábrica de Vidros de Coina (1997)12; ou a Real Fábrica de Gelo de Montejunto (1997)13, entre outras. Todavia, as antigas fábricas de curtumes, integradas na Zona de Couros, não chegaram a ser classificadas, permanecendo em vias de classificação, ainda que o despacho de homologação do secretário de DOSSIÊ Estado da Cultura date de Novembro de 197814. Subsiste até hoje uma imprecisão na interpretação deste despacho, considerado por muitos como o procedimento que classificou a referida Zona de Couros como imóvel de interesse público15. A novidade evidenciada pelo referido despacho de abertura de classificação não dependera exclusivamente do momento em que foi produzido ou da tipologia patrimonial. A proposta de classificação das fábricas de curtumes constitui também um caso de estudo para a salvaguarda do património industrial pelo próprio objecto proposto — um conjunto de fábricas localizado junto ao rio de Couros, referenciado no Relatório da Exposição Industrial de Guimarães, de 1884, como o bairro a que se chama Rua dos Couros. Trata-se de um complexo funcional relacionado com uma monoprodução — os curtumes — de escala urbana, reunindo, num território com uma antiga vocação laboral, os edifícios, os vários vestígios de trabalho, a forma urbana, provavelmente à época ainda alguma memória oral, não se desenhando uma fronteira clara entre cada uma destas áreas, uma vez que participam no seu todo para a compreensão deste património. A novidade prendera-se igualmente com a natureza urbano-funcional da área a classificar. Uma zona que vivera para os couros e com os couros durante séculos, e cujas sedimentações se encontravam nos vários tempos dos espaços de trabalho, alguns identificados nos conjuntos de edifícios apresentados na planta para a classificação, surgindo associados às últimas designações industriais. A singularidade conceptual da área a classificar, reconhecida enquanto zona arqueológico-industrial, foi 39 1 | Guimarães, planta com a delimitação da área a classificar como zona arqueológico-industrial, in Gomes Alves, “A zona de interesse arqueológico-industrial das antigas fábricas de curtumes em Guimarães”, Revista de Guimarães, 1977, vol. LXXXVII, p. 283. A identificação das antigas fábricas de curtumes, informação sobreposta à planta, foi extraída da Proposta de Classificação para um conjunto de cinco fábricas em Guimarães, que se encontra na Direcção Regional de Cultura do Norte, sendo: A. António José de Oliveira & Filhos (Freitas e Fernandes); B. Cabanelas & Irmão, Lda; C. Fernando Ribeiro Mendes de [?]eira; D. António Matos; E. Não identificada; F. Sociedade Textil — Luís Correia (Âncora); G. Domingos Torcato Ribeiro (Ramada); H. Mirandas Ferreira & Carvalho, Lda.; I. Não identificada; J. Não identificada. 40 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê acompanhada por um conjunto de reflexões sobre a sua integração na cidade. Através de um documento, incluso num processo que se encontra na Direcção Regional de Cultura do Norte (Outubro de 1980), identificou-se a constituição de uma comissão que integrou os serviços da Secretaria de Estado da Cultura, da Câmara Municipal de Guimarães, do Ministério da Habitação e Obras Públicas e da Secretaria de Estado do Ordenamento Físico e Ambiente16. Neste documento, a comissão apresentou um conjunto de sugestões, quanto a nós fundamentais, e que contribuíram seguramente para aprofundar e ampliar a reflexão em torno da reconversão desta área urbana, cujo interesse patrimonial voltou a ser reiterado (...) quer pelo seu significado, quer pela sua expressão arquitectónica (...)17, após visita às antigas fábricas de curtumes. Das várias sugestões apresentadas pela comissão destacam-se as considerações relativas à inclusão da Zona de Couros nos vários instrumentos de gestão urbana, referindo-se que (...) em virtude do Plano Director da Cidade estar em curso de realização, o mesmo deverá vincular a zona das antigas fábricas de curtumes como de interesse a preservar bem como a sua envolvência. A revisão com toda a urgência do ‘Plano de Pormenor da zona a Norte da Estação do C. F.’ tenha como um dos factores de importância fundamental a zona das antigas fábricas de curtumes, o Palácio de Vila Flor, a ‘Casa do Cidade’ e respectivos enquadramentos ambientais (...)18. Releva-se ainda a indicação de uma espécie de condicionantes quanto à suspen- são de licenciamentos de novas construções na área do plano, mesmo as industriais; ou a apresentação de uma espécie de programa âncora para a área assente num núcleo cultural19 e ainda as recomendações específicas para o edifício de uma fábrica de curtumes adquirido pela Câmara Municipal de Guimarães (referenciado com a letra F na planta que apresenta a delimitação da área a classificar e as antigas fábricas de curtumes), essencialmente ligadas à manutenção do imóvel. Em meados da década de 1980, no primeiro Encontro Nacional sobre o Património Industrial, realizado também em Guimarães, as três comunicações apresentadas tiveram de novo como preocupação comum encontrar formas de salvaguarda e de reutilização da área do rio de Couros proposta para classificação20. Apesar do reconhecimento geral dos valores patrimoniais intrínsecos à Zona de Couros, foi a inscrição na Lista do Património Mundial da UNESCO, em Dezembro de 2001, da área intramuros do centro histórico de Guimarães, que protegeu esta nesga de território associada aos curtumes ao ter sido classificada como “zona tampão”. Seria no âmbito do amplo trabalho de reabilitação urbana e de valorização do património do centro histórico, empreendido pela Câmara Municipal de Guimarães, que se verificaria uma preocupação com a cidade, o que permitiu alargar a área de intervenção para além do interior da cintura de muralhas, abarcando alguns espaços de expansão, nomeadamente 2 | Guimarães, Zona de Couros, fotografia de Paulo Pacheco, 2009. monumentos 33 DOSSIÊ 41 3 | Guimarães, antigo “Palácio do Cidade”, actual Pousada da Juventude, e conjunto de tanques de preparação para a curtimenta localizado no Largo do Cidade, 2013. 4 | Guimarães, Largo do Cidade, pormenor do conjunto de tanques, 2013 os industriais, como a Zona de Couros21. A primeira reabilitação realizada (em 2001) junto ao rio de Couros verificou-se no “Palácio do Cidade” (fig. 3) e no conjunto industrial contíguo (B — Cabanelas & Irmão Lda.). O processo iniciado pela Câmara Municipal de Guimarães, em 1996, vocacionou esta área para um vasto programa que incorporou uma pousada da juventude e um conjunto de outras funções, como um jardim-escola e um centro de dia, entre outras. Dos restantes edifícios propostos para classificação e referenciados na Planta que Apresenta a Delimitação da Área a Classificar e as Antigas Fábricas de Curtumes (cuja informação foi transposta para a fig. 1), três foram integrados no projecto CampUrbis: a Fábrica da Ramada (G), futuro Instituto de Design (fig. 5); a Fábrica Âncora (F), área reconvertida para Centro de Ciência Viva (figs. 6 a 8); e a Fábrica Freitas & Fernandes (A, antiga José de Oliveira & Filhos) adaptada a Centro Avançado de Formação Pós-Graduada22. Releve-se o carácter pioneiro deste projecto, quer pela firme aposta na reabilitação urbana e patrimonial, quer pela estratégia apresentada com base na formação avançada e nas novas tecnologias, ainda que em certos aspectos se reconheçam similitudes com a estratégia desenvolvida pela Universidade da Beira Interior, na cidade da Covilhã, nomeadamente através da reutilização de edifícios industriais, associados aos lanifícios, para os diversos serviços da universidade ou para o museu. Seria mesmo desejável que este tipo de projectos pudesse ser replicável e servisse de modelo ou de inspiração para outras áreas urbanas de carácter industrial, onde geralmente o património constitui uma dificuldade. 5 | Guimarães, antiga Fábrica da Ramada, actual Instituto de Design, fotografia de Paulo Pacheco, 2011. 42 6 | Guimarães, antiga Fábrica Âncora, actual Centro de Ciência Viva, fotografia de Paulo Pacheco, 2009. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 7 | Antiga Fábrica Âncora, actual Centro de Ciência Viva, interior do primeiro piso, fotografia de Paulo Pacheco, 2009. 8 | Antiga Fábrica Âncora, actual Centro de Ciência Viva, pormenor da estrutura construtiva, fotografia de Paulo Pacheco, 2009. monumentos 33 2. O(s) lugar(es) da indústria de curtumes na cidade de Guimarães (...) Por baixo do Campo da Feira para o Sul está situado o Burgo, que chamão rua de Couros, que se compõem de três, a do seu nome, a Rua de S. Francisco, & a dalém, que lhe chamão assim, porque a divide das outras o regato, que corre do Campo da Feira, que largando aqui o nome, que trazia de empréstimo, formou o de Rua de Couros, por estes serem conservados nelle pelos Sapateiros, aonde naquelle lugar tem seus pelames, & nelles passa este regato por baixo de huma ponte de pedras (...)23. Do espaço urbano Guimarães constituiu um centro especializado no tratamento/fabrico das peles ao nível nacional. A permanência desta actividade na cidade, durante séculos, vocacionou determinadas áreas para esta função. A própria toponímia, como regato dos Couros, rio de Couros, Rua de Couros ou Zona de Couros, fixou na cidade o tratamento das peles e o trabalho desenvolvido por sucessivas gerações de vimaranenses. Será esta a área da cidade que se procurará compreender neste breve artigo, apesar da existência de outras zonas dedicadas a esta actividade, conhecidas por Corredoura, situada na freguesia de São Torcato, por Travassos, ou por Santa Maria do Souto24. Foi também esta a área proposta para classificação em 1977. A localização dos espaços de trabalho no território anda também associada a um conjunto de condicionantes tecnológicas e produtivas25. A instalação das oficinas de curtumes junto a um curso de água reflecte essa dependência. A água é neste estádio tecnológico um recurso fundamental para transformar as peles em couros. Recordemos Lewis Mumford e a sua proposta de interpretação para os diversos momentos tecnológicos organizada em três fases — eotécnica, paleotécnica e neotécnica26. Inserida na fase eotécnica, caracterizada pelo elevado número de técnicas dependentes da energia proveniente da madeira, da água, do vento e da presença do Homem, com particular ocorrência, na Europa, entre o século X e XVIII, a actividade de curtimenta não poderia deixar de estar perto de um curso de água, elemento constante em praticamente todas as fases de fabrico. Em Guimarães, o curso de água nasce a montante do núcleo em análise e adquire nesta zona a designação de rio de Couros. O rio surge como elemento agregador de uma actividade, em torno do qual se irão instalar as oficinas. Na fixação desta produção verificou-se uma adaptação ao lugar, havendo notícia da sua presença já no século XI27. A Zona de Couros consolidou-se fora da muralha, em terrenos inicialmente agrícolas, ou seja, nos arrabaldes, a sudoeste do núcleo urbano de Guimarães. A actividade da curtimenta perdurará muito tempo na cidade. DOSSIÊ No século XVIII, de acordo com o padre Costa Carvalho, esta área designava-se burgo e estendia-se por três ruas — de Couros, de São Francisco e a “dalém”. (...) Actualmente, trata-se de uma zona ampla — como ampla parece ter sido na Idade Média —, entre ruas estreitas e desníveis acentuados. Ao que foi parte desta vasta zona de Couros assina-se agora com o nome de ‘Largo do Trovador’, onde ficava a presa ou pelames de S. Crispim (...)28. Na Zona de Couros as oficinas permaneceram em laboração durante o século XIX e em grande parte do XX, independentemente das preocupações relacionadas com a salubridade, a saúde e a higienização dos lugares públicos entretanto manifestadas. Como se sabe o processo de industrialização contribuiu determinantemente para acentuar estas inquietações, uma vez que muitos dos espaços industriais — fábricas, oficinas, habitações — se revelaram inabitáveis face às novas exigências trazidas também por uma cultura mais mecanizada. O ritmo e o tipo de crescimento ocorrido em Lisboa e no Porto impuseram a criação de soluções. O Plano Geral de Melhoramentos, em vigor entre 1865 e 1934, procurou solucionar aspectos relacionados com a circulação, a rede viária ou o arranjo do espaço público. Não se desenhara ainda uma concepção global para as cidades. Para Guimarães, o primeiro plano de urbanização de que há notícia, da autoria do engenheiro Almeida Ribeiro, data de 1863 e antecipa a criação da Comissão de Melhoramentos para a cidade29. As soluções propostas inseriram-se dentro do espírito da época, relacionadas com regularizações ou abertura de vias, embelezamento de espaços, demolições de conjuntos, de edifícios. Medidas que evidenciavam uma preocupação: a criação de boas condições higiénicas. Sendo o “burgo” dos couros um dos mais insalubres da cidade que propostas concretas foram apresentadas? (...) Respeito ao Largo da Rua de couros e às demais ruas compreendidas entre o Terreiro de S. Francisco e a rua dos 120, tracei na planta melhoramentos que me parecem dever ser adoptados. Não deixarei de dizer que a comunicação que estabeleço entre o Terreiro de S. Francisco e a Rua d’além do rio é bastante dispendiosa, porque comporta a demolição completa de um lado inteiro da actual Rua de S. Francisco, mas a simples inspecção da planta mostra que, sem este sacrifício, não se pode aformosear, nem colocar em boas condições, esta parte da cidade (...) Ainda para sul do terreiro de S. Francisco e com acesso pela rua de S. Sebastião, ficavam a rua do Guardal e o Largo da rua de Couros, que terminava nas margens do regato e para a qual eram propostos alinhamentos. Daí seguia-se a Rua d’além do Rio, em que se situava a residência do comendador Cristóvão José Fernandes da Silva, mais conhecido pelo ‘Cidade’ (...)30. Algumas destas propostas foram retomadas pela Comissão de Melhoramentos, criada pela câmara em 1869, nomeadamente as relacionadas com os projectos elaborados para o largo e para a Rua de Couros e “dalém” 43 44 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê rio, bem como o alinhamento proposto para a Rua de São Francisco31. Apesar destas preocupações higienistas e da instalação dos estabelecimentos industriais insalubres estar regulamentada32, desde 1863, a falta de salubridade continuou na Zona de Couros33. O Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, de 1949, eivado de princípios associados ao zonamento, tal como sucedera para Lisboa com o plano director de Etienne de Groer (de 1948), identificou uma área muito degradada devido à actividade industrial: (...) a cidade está todavia, altamente prejudicada, nas suas condições de salubridade, pela presença excessivamente próxima da sua indústria de peles, que, como é do conhecimento geral, tomou por colector e principal carreador de [imundice] e maus cheiros o conhecido ribeiro dos Couros que inteiramente a atravessa na Direcção Este-Oeste (...)34. A apreciação crítica desta área, feita pelos autores do anteplano de urbanização de 1949, não foi porém contra a instalação da indústria no tecido urbano, uma vez que os princípios que nortearam a sua elaboração procuraram harmonizar as diversas funções na cidade. Subjacente a esta análise encontrava-se o tipo de indústria, os processos utilizados e o seu reflexo no ambiente urbano ou a sua convivência com as habitações. Ou seja, pretendera-se corrigir um certo carácter desordenado e promíscuo da Zona de Couros e criar uma área industrial que concentrasse todas as actividades deste sector. Efectivamente, o anteplano propôs a fixação da zona industrial de Guimarães nas proximidades do caminho-de-ferro. Esta zona teria um uso exclusivo e vocacionado para a instalação de fábricas, armazéns e oficinas, com excepção das indústrias perigosas, incómodas ou insalubres (classificadas no Diário do Governo, como sendo de primeira classe). Quanto às novas habitações só seriam permitidas se fossem direccionadas para os guardas das respectivas fábricas35. As novas zonas industriais nas cidades integravam-se geralmente nas áreas de expansão e estavam servidas por um conjunto de infra-estruturas que, por exemplo, permitissem uma rápida circulação. A construção na cidade ou no território de uma zona industrial dependia directamente da evolução tecnológica verificada. Esperava-se que a indústria a instalar nestas áreas materializasse uma mudança associada à energia utilizada — a electricidade —, aos processos de fabrico e ao tipo de construção dos próprios edifícios. Nesta fase, associada à segunda geração industrial, a cidade preparara-se para (...) receber a fábrica limpa e clara (...)36. A indústria dos couros que ainda laborava junto ao rio representava precisamente um modelo industrial que se procurava eliminar, longe da ideia de fábrica limpa e clara. Para além dos aspectos urbanos ou de saúde pública, esta era também uma indústria que representava um arquétipo antigo, quer nos saberes, quer nos processos, quer nas relações hierárquicas existentes entre os trabalhadores, quer ainda na sua dimensão. A mudança das fábricas dos couros para fora da cidade foi uma das propostas apresentadas no anteplano. Todavia, no segundo volume, refere-se que a zona onde actualmente se encontram instaladas as fábricas de curtumes deve ser beneficiada em duas fases: (...) na primeira cobrir-se-á, transformando-o em colector de esgotos, em toda a extensão da faixa ocupada por aquela incómoda indústria, o regato que por ali passa carreando as maiores imundices e cheiros; na segunda, a efectuar a muito longo prazo, transferir-se-ão as instalações daquela indústria para um lugar extra-urbano não abrangido pelo anteplano de urbanização, e aproveitar-se-á a respectiva área para a instalação de indústrias limpas, como, por exemplo, as de fiação e tecidos, depois de rectificados, alargados ou suprimidos os arruamentos que, à luz do fim a que em definitivo aquela área se destinar, as circunstâncias aconselhar (...)37. Dos espaços fabris A caracterização do espaço de trabalho onde as diversas operações da curtimenta decorrem revelou-se essencial para compreender o tipo de indústria em análise e o modo como as diversas tarefas se relacionavam com a organização do lugar associado a esta actividade, tanto para o edificado como para a área urbana. Relacionar os nomes das empresas com um espaço fabril/oficinal e conhecer a sua dimensão, implantação e composição desenhou-se como uma metodologia que permitiria, em simultâneo, perscrutar a longevidade das firmas38. Todavia, este último propósito revelou surpresas. Através das fontes consultadas apreendeu-se a ausência de firmas com prolongada longevidade e de grande dimensão. Em 1884, contabilizaram-se trinta e oito estabelecimentos que, segundo os inquéritos industriais, caracterizar-se-iam por pequena indústria. A relação estabelecida entre os anos de 1884 (exposição industrial) e 1890 (Inquérito Industrial) mostra apenas três registos comuns — Bento José Leite, José Maria Leite e António José Ribeiro — o que revela uma curta duração das empresas. Para o ano de 1915 (licenciamento industrial) os nomes de Bento José Leite e António José Ribeiro voltam a ser arrolados, indiciando a permanência da sua actividade. Em relação à comparação estabelecida entre os dados obtidos nestas fontes e os processos de obras refira-se a existência de uma firma com continuidade — António José de Oliveira (1915)/Sociedade de Curtumes António José d’Oliveira, Filhos, Lda. (1928), casa que surge assinalada (A) na planta que apresenta a zona a classificar (de 1977), sendo que, para as restantes empresas identificadas, não foi possível estabelecer qualquer relação entre os diversos registos existentes. Esta ausência de longevidade por parte das firmas explica-se em parte pelo tipo de organização empresarial e pelo modelo de trabalho existente. Coloca-se a hipótese de muitos dos industriais ou das empresas não terem uma fábrica sua, fenómeno que impli- monumentos 33 caria uma certa sazonalidade da actividade, porque na “época da curtimenta” alugar-se-iam tanques e contratar-se-iam alguns trabalhadores mais especializados, como os surradores. Esta interpretação explicaria a profusão e a inconstância das designações das firmas, bem como a sua pequena dimensão, pois o número de trabalhadores referenciados é muito reduzido e o capital investido não seria elevado. Este modelo empresarial teria consequências nos processos de fabrico, no sistema de organização e até na tipologia dos edifícios. A dificuldade em relacionar um espaço fabril com uma empresa durante um longo período de tempo, e a parca informação obtida através dos processos de obras consultados para a área da Zona de Couros, dificultou a elaboração de um registo sistemático dos edifícios fabris que permitisse fazer uma leitura sistemática, quer dos aspectos arquitectónicos, quer da sua organização nesta área urbana, ou mesmo fixar um bilhete de identidade para cada uma das empresas/fábricas diagnosticadas em fontes várias. Os pedidos de autorização requeridos para as obras que constam dos processos disponíveis para uma faixa temporal de nove anos (1921-1930) reportam-se, na sua maioria, a ampliações, acrescentos, obras pontuais, geralmente aprovados, enquanto a construção de raiz de fábricas de curtumes para a Zona de Couros DOSSIÊ 45 começara a ser dificultada devido às inerentes características insalubres. Todavia, para o período referido assiste-se ainda à construção de habitação localizada junto às oficinas de fabrico de curtumes, tanto para operários, como para os proprietários. É o caso do industrial Joaquim Luciano Guimarães que manda construir, no ano de 1922, uma correnteza de casas para os seus trabalhadores, ao lado da fábrica de curtumes, com frente para a viela que liga a Rua da Trindade à da Alegria, muito próximo da Viela da Madrôa (fig. 9). A correnteza para os operários organizava-se com frente para o regato que abastecia a fábrica, ficando o tardoz voltado para esta. Caracterizando-se por uma edificação extremamente económica, a madeira foi o material de construção utilizado, recorrendo-se a alvenaria para os alicerces. Despojada de qualquer elemento decorativo, a preocupação inerente à construção destas casas residiu exclusivamente na acomodação dos trabalhadores junto à fábrica de curtumes. Cada habitação compunha-se de um quarto, com ligação à cozinha, localizando-se a área de despejos e o sanitário no exterior, num pequeno logradouro. A simplicidade do programa adivinhava-se no alçado principal do conjunto através do cadenciado ritmo entre janela e porta. 9 | Projecto a que se refere o requerimento de Joaquim Luciano Guimarães, alçados, perfis e planta, desenho de autor desconhecido, 1922. 46 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 10 | Processo de Simão Ribeiro, Prujeto d’Armazem para surragem e secadouro de peles, desenho de autor desconhecido, 1923. 11 | Processo de Simão Ribeiro, Reconstrução na Rua da Ramada, plantas, alçados e perfil a-b, desenho de autor desconhecido, 1923. Na Zona de Couros não seriam apenas os trabalhadores a habitar junto das fábricas, em casas construídas para o efeito ou em condições ainda mais precárias. O industrial Simão Ribeiro, no ano de 1923, pede licença camarária para reedificar um prédio de habitação, localizado na Rua da Ramada, pelo qual se fazia a entrada para a sua fábrica de curtumes (figs. 10 e 11). Este prédio integra, no rés-do-chão, espaços relacionados com a actividade dos couros, caso dos escritórios e de um armazém, e uma passagem que dá acesso à fábrica, que se desenvolve no tardoz, enquanto nos pisos superiores se propõe a instalação do programa habitacional, ficando, no primeiro andar, quatro quartos e, no segundo andar, dois quartos e as áreas sociais, como a cozinha e a sala de jantar. As preocupações manifestadas no anteplano de urbanização para a zona das indústrias de couros prendiam-se efectivamente com o carácter desordenado das indústrias, mas também com esta promiscuidade existente entre as habitações e as fábricas ou oficinas. Recorde-se que algumas das reflexões relacionadas com a higienização ou com os novos conceitos de habitar veiculadas pelos Congressos Internacionais da Arquitectura Moderna estavam nos antípodas dos dois casos apresentados e construídos no primeiro quartel do século XX. Esta zona caracterizar-se-ia precisamente por um ambiente fortemente marcado pela actividade ligada à curtimenta. As diversas construções procuravam responder às necessidades funcionais, tanto nos aspectos relacionados com o fabrico, como com a mão-de-obra associada. Como se caracterizariam estes espaços de trabalho que conviviam paredes-meias com as habitações? O que os distinguia e os singularizava? A compreensão destes lugares é indissociável do tipo de fabrico e das diversas fases existentes para a obtenção do produto final. Constituindo a água um elemento primordial no processo produtivo, permanece por fazer uma geografia da água e da sua relação com os lugares de produção. Designações como rega- monumentos 33 tos, da Madrôa ou dos Couros, remetem para um sistema de condução de água que serpenteava por entre o bairro dos couros. Será na dependência desse sistema hidráulico, reconhecido por condutas e pequenos canais, que se poderá esboçar uma compreensão clara da localização das fábricas ou oficinas. A ramificação no território de uma estrutura de circulação de água, como de vasos comunicantes se tratasse, é a primeira condição para a fixação das fábricas e para a sua organização no espaço. Sem um levantamento cuidado destas estruturas a explicação da implantação dos espaços de trabalho surge imprecisa e desligada do motivo da escolha do lugar — a água. Através da planta referente ao projecto do industrial Domingos Ribeiro Martins da Costa (fig. 12) observa-se que toda a área do tratamento das peles está implantada ao longo do regato da Madrôa. O pedido de licença para fundar um estabelecimento industrial de curtumes de peles, dirigido à Câmara Municipal de Guimarães, no ano de 1921, explicita que o processo fabril consiste na curtimenta das peles de couros em lagares alimentados pela água do regato. Este pedido comprova a importância de localizar estas unidades DOSSIÊ 47 produtivas junto a água corrente e caracteriza, simultaneamente, uma fábrica de curtumes. Esta unidade será considerada por nós como um protótipo das fábricas de curtumes. Um protótipo que se distende no tempo e incorpora uma sabedoria oral que se plasma nos processos de fabrico, de construção e de organização no espaço, revelando um saber definido em prol da curtimenta. Reconhecendo-se que este modelo construtivo possa ter existido até cerca de meados do século XX, perde-se no tempo a sua origem. Dependendo de materiais de construções tradicionais, como a alvenaria em pedra e a madeira, estes locais associados ao fabrico dos couros caracterizariam o “burgo de couros” desde a Idade Média. Os trabalhos da curtimenta integravam actividades realizadas ao ar livre e no interior de edifícios, o que contribuía para esbater as fronteiras físicas dos vários espaços de trabalho. A área associada às primeiras fases de fabrico reconhece-se pela geometrização dos tanques. De um modo justaposto, vários quadrados, com perfil em pedra granítica, configuram uma paisagem laboral indissociável desta actividade. A textura do 12 | Projecto a que se refere o requerimento de Domingos Ribeiro Martins da Costa, planta com a implementação da fábrica, perfil e alçados, desenho de autor desconhecido, 1921. 48 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê quadriculado, nem sempre regular, reflecte o uso de materiais tradicionais, configurando por vezes afloramentos junto a regos ou regatos. A organização destes quadriláteros pétreos deveria ser estudada tanto em relação às tarefas específicas aí desenvolvidas como ao modo como circulava a água entre estas estruturas que periodicamente tinham de ser enchidas e esvaziadas. Os nomes técnicos, como poça, lagaretas, lagares, tanques, humala, pelames, revelam dimensões e funções várias. O projecto (datado de 1921) de Domingos Ribeiro Martins da Costa indica uma secção constituída por vinte lagares, com dimensões homogéneas, uma outra que integra uma lagareta, uma poça, de maiores dimensões, dois tanques para as humadas e outros três tanques separados para pelames. Entre estas duas áreas de tanques desenvolve-se uma espécie de pátio que dá acesso ao estabelecimento, onde se localizam as restantes operações, nomeadamente a groza e a surragem. O edifício, que ocupa a largura do lote, localizara-se no topo, longe da entrada para a Rua da Alegria. “Cazinha”, guarda ferramentas, groza e surragem são outros termos técnicos desta indústria que referenciam espaços onde ocorrem algumas das fases do tratamento dos couros, complementando o léxico associado às tarefas desenvolvidas no exterior. Os edifícios, de feição paralelepipédica, revelam uma extrema plasticidade obtida pelo diálogo estabelecido entre os materiais utilizados — alvenaria de pedra e madeira. Ao nível do rés-do-chão, a alvenaria de pedra acolhe as secções da groza e da surragem, enquanto o primeiro andar, em madeira, acolhe a função de secadouro. O ripado de madeira que conforma uma desenhada textura a este piso acusa uma solução de excelência para secar as peles por processo natural. Aliás, este conceito é extensível a outros sectores produtivos, nomeadamente ao do papel: seria, igualmente, ao nível do primeiro piso que, nas fábricas de Oitocentos, se localizava a casa do espande, local onde se realizava a secagem do papel por processo natural, enquanto no rés-do-chão se desenvolviam as operações dependentes da água e da sua energia, como a moagem e trituração do papel. Os edifícios paralelepipédicos das fábricas de couros caracterizavam-se também por uma diferença de áreas entre o rés-do-chão e o primeiro piso, no qual a estrutura de madeira ganhava uma superfície maior, muitas vezes utilizada para construir varandas que permitiriam colocar as peles a secar durante o tempo mais quente. Estas ligeiras diferenças de áreas parecem acentuar a leveza do ripado em madeira ao assentar, numa base mais pequena, em alvenaria de pedra. São estes dois espaços — exteriores e interiores — marcados pela textura dos materiais tradicionais, como a pedra e a madeira, que organizaram as diversas fases do trabalho de curtimenta. Soluções construtivas, estritamente dependentes do tipo de produção existente, distinguiram os núcleos de produção dos couros em Guimarães. 3. Que indústria de curtumes? (...) O processo fabril consiste na curtimenta das pelles ou couros em lagares alimentados pela água do regato, com emprego de cascas de carvalho e cal, e finda ella na surragem manual dos ditos couros e na sua secagem ao tempo. Os produtos serão couros secos ou atanados (...)39. A descrição do modo como se laboravam os couros no “burgo”, ainda durante o século XX, surge espontaneamente descrita no pedido de licenciamento para construir um estabelecimento industrial, por parte de Domingos Ribeiro Martins da Costa, em 1921. Ainda que na Europa e nos Estados Unidos da América muitos avanços ao nível da indústria química se tenham aplicado à actividade dos curtumes, nomeadamente através da utilização de sais de crómio, processo que conferia à curtimenta um carácter cada vez mais científico, em Guimarães as diversas operações continuavam a depender de um encadeado de fases com início nos “trabalhos da ribeira”. O quadro 1 mostra que o processo de curtimenta se obtinha percorrendo catorze operações que duravam cerca de seis meses. 13 | “Foulons para cortir, para ensebar, para lavagem, etc.”, Revista Industrial de Couros e Pelles, Lisboa, ano 1, 1 dez. 1899, p.114. monumentos 33 O Inquérito Industrial de 1881 referia que as técnicas de natureza artesanal e o trabalho manual caracterizavam este sector produtivo, não se observando uma produção moderna — (...) o regime dos grandes estabelecimentos, a concentração de capitais avultados, o emprego de potentes instrumentos, a larga divisão do trabalho (...)40. As operações de curtimenta realizavam-se em estabelecimentos de dimensão reduzida e não dependiam de grandes máquinas nem de conhecimentos técnicos muito especializados. Os foulons (fig. 13) para curtir, ensebar e lavar constituíram o processo de mecanização mais avançado nestas fábricas, permitindo reduzir o tempo de algumas operações, dependendo do número de máquinas adquiridas ou das funções que executavam. A utilização dos foulons na fase da curtimenta contribuiu para que a casca de carvalho começasse a ser substituída pelos extractos taninosos, permitindo uma diminuição do tempo empregue em relação aos processos tradicionais. N.º OPERAÇÕES / TIPO A especificidade técnica da indústria de Guimarães terá de ser compreendida dentro do quadro oficinal e manufactureiro do trabalho dos couros, não se podendo esquecer a importância da Real Fábrica de Atanados de Povos (século XVIII) na criação de um arquétipo manufactureiro para esta actividade em Portugal. Todavia, a concentração de oficinas para o tratamento dos couros foi tão intensa e persistente na cidade de Guimarães que a utilização do termo indústria ou fábrica não depende exclusivamente dos processos técnicos e da forma de organização da produção, mas da criação de uma identidade cultural associada a esta actividade da curtimenta. Deolinda Folgado Investigadora na área do património industrial Direção-Geral do Património Cultural Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Imagens: 2, 5 a 8: Câmara Municipal de Guimarães; 3 e 4: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico; 9 a 12: Arquivo Municipal Alfredo Pimenta. OPERAÇÕES / DESIGNAÇÃO41 LOCAL TEMPO 1 Demolhar — abrir os pólos da pele, preparar as fases seguintes. Tanques rasos ao chão/poça 1 semana 2 Pelame — 1.º banho. Águas continham o “tempero da curtimenta reforçado com a adição de cal e sulfureto. Tanques de menor dimensão 3 dias 3 Descabelar — retiradas as peles dos pelames encontravam-se prontas para a extracção do pelo, tarefa realizada com o auxílio de uma “ferrelha”. 4 Preparação para a curtimenta DOSSIÊ 30 a 45 minutos por fazenda Pelame — 2.º banho. As peles regressam aos pelames para receberem um banho de cal fina, com a flor da pele voltada para baixo. 5 Grosar ou descarnar, dependendo da utilização final das peles. Uniformização da pele. 6 Zincalagem ou humada — preparada com base em excrementos de pomba ou de cães e água. As peles ao serem mergulhadas neste composto ficavam preparadas para receber a tanação, após ocorrer a fermentação. Tanques — humada 5 a 15 dias 7 Abaldoar — as peles ao serem retiradas da humada eram introduzidas em lagares com água limpa na qual se juntavam cascas de carvalho. O objectivo é a libertação de taninos, substância que confere imputrescibilidade às peles. Lagares 24 horas 8 Atabicar o lagar — colocavam-se as peles uma a uma nos lagares cheios de água e envoltas em carvalho moído. Lagares c. 3 meses Casca — pela segunda vez dava-se um banho de casca. O objectivo era que o tanino aderisse à pele. Lagares 2 semanas 10 3.ª casca — para se alcançar um curtume definitivo dava-se um último reforço de casca à pele. Lagares 1 semana 11 Lavar à perna — tarefa realizada pela força dos homens que mergulhados em água até aos joelhos iam exercendo a acção de lavagem dos resíduos da casca. 12 Surrar — depois de escorridos os couros passavam para as “tábuas de surrar”, extraindo-se o excesso de tanino com a ajuda de uma “pissara”. 30 minutos Secar — processo que visava secar, atribuir uma determinada densidade e dar brilho à flor da pele. 1 mês Engordurar ou engraxar — depois de terem passado pelo secadouro as peles eram engorduradas com sebo. Esticava e uniformizava a pele. Total c. 5 meses e meio a 6 meses 9 13 14 Curtimenta Ultimação/ acabamento 49 50 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê N OTA S O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico por opção expressa da autora. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 RELATÓRIO da Exposição Industrial de Guimarães em 1884. Porto: Typographia de António José da Silva Teixeira, 1884, p. 75. Assinada a 16 de Novembro, no decurso da XVII Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, reunida em Paris, de 17 de Outubro a 21 de Novembro de 1972. No artigo “Património Inclusivo. Das expectativas aos desafios” apresentei quatro grandes etapas como proposta de leitura para a evolução do património nos seus vários aspectos, quer quanto ao conceito e designações, quer quanto à proliferação de cartas e convenções internacionais: primeira etapa, 1931-1954 — o domínio do património histórico-artístico; segunda etapa, 1954-1972 — dos bens culturais ao património natural; terceira etapa, 1972-2003 — mais tipologias patrimoniais; quarta etapa, 2003/2005-… — entre o património imaterial e o social. Cf. Deolinda FOLGADO — “Património Inclusivo. Das expectativas aos desafios”. In Jorge CUSTÓDIO — 100 Anos de Património..., pp. 323-335. O aparecimento da arqueologia industrial emergiu no contexto da reconstrução da Grã-Bretanha saída do flagelo da Segunda Grande Guerra, no âmbito no Plano Marshall (1947). Os vestígios materiais legados pela primeira revolução industrial inglesa constituíram, numa fase inicial, elementos fundamentais para a História. Conceptualizada, em 1955, pelo histórico Michael Rix como o (...) estudo sistemático das estruturas e artefactos que alargam a nossa compreensão sobre o passado industrial (...) a arqueologia industrial chega à Europa na década de 1970. Esta nova ordem patrimonial implicou várias revisões dos conceitos operatórios ou das terminologias utilizadas até então, devido à sua complexidade material que implica necessariamente uma interpretação interdisciplinar e que aporta novos problemas metodológicos, quer sejam relacionados com o seu conhecimento, quer com a sua protecção ou reutilização. Será no final da década de 1970, numa conferência em Estocolmo, que surge o conceito de património industrial — engloba o período da actividade humana caracterizada pela industrialização e contempla o conjunto de bens imóveis e móveis, bem como as fontes de energia e matéria-prima, os locais de trabalho, o habitat, a utensilagem tecnológica, os meios de transporte, para além da documentação escrita, gráfica, iconográfica e dos produtos — que universalizará um campo epistemológico no âmbito dos vestígios técnico-industriais. Foi no seio desta conferência que nasceu o TICCIH. Criação do Instituto Português do Património Cultural (em 1980), no âmbito da tutela da Cultura, primeiro na esfera da Secretaria de Estado da Cultura e, mais tarde, do Ministério da Cultura, aproximando-nos do modelo francês desenvolvido por André Malraux, na década de 1960. Cf. Gomes ALVES — “A zona de interesse arqueológico-industrial das antigas fábricas de curtumes em Guimarães”. Revista de Guimarães, 1977, vol. LXXXVII, p. 283. Cf. Jorge CUSTÓDIO — “A fábrica de neve de Montejunto no contexto da arqueologia industrial em Portugal”. In Deolinda FOLGADO (coord.) — A Fábrica de Neve..., p. 85. A proposta de classificação do edifício da central eléctrica de Tomar, bem como dos seus equipamentos tecnológicos, resulta de um documento elaborado por Marques da Costa, finalista do curso de História, em Agosto de 1978, da Faculdade de Letras de Lisboa. Esta central, inaugurada em 1901 pela empresa Jean Boudain & C.ª, que distribuiu num primeiro momento energia eléctrica à cidade de Tomar; insere-se num universo técnico-industrial mais vasto, integrando um conjunto urbano estruturante da identidade de Tomar. O conjunto industrial encontra-se em vias de classificação. A exposição realizada na Central Tejo, em 1985, designou-se de Arqueologia Industrial. Um Mundo a Descobrir. Um Mundo a Defender. Classificada como Imóvel de Interesse Público (Decreto-Lei n.º 1/86). Classificada como Monumento Nacional (Decreto-Lei n.º 2/96). Classificada como Imóvel de Interesse Público (Decreto-Lei n.º 67/97). Classificada como Monumento Nacional (Decreto-Lei n.º 67/97). O processo administrativo que se encontra na Direcção Regional de Cultura do Norte não integra a proposta inicial e o primeiro documento data apenas de 15 de Outubro de 1980. Deste modo não podemos analisar os elementos iniciais apresentados na fase de instrução do processo, nem os pareceres emitidos, nem as personalidades envolvidas nesta proposta de classificação. Para finalizar este processo de classificação e para que seja atribuído o grau mérito de Imóvel de Interesse Público a este conjunto é necessário que esta informação seja publicada em Diário da República. Os representantes dos diversos organismos foram: Dr.ª Maria João Vasconcelos, pela Secretaria de Estado da Cultura; Manuel Ferreira (vereador), pela Câmara Municipal de Guimarães; Arq.º Manuel Marques de Aguiar, pelo Ministério da Habitação e Obras Públicas; não esteve presente nenhum representante da Secretaria de Estado do Ordenamento Físico e Ambiente. A missão desta comissão prendera-se com o cumprimento do despacho do secretário de Estado da Cultura (de 6 de Novembro de 1978), homologando o parecer da Comissão Organizadora do Instituto de Salvaguarda do Património Cultural e Natural — COISPCN (de 3 de Novembro de 1978). Desconhece-se o teor do despacho do secretário de Estado da Cultura, bem como do parecer da COISPCN. Cf. Secretaria de Estado da Cultura, Direção Regional de Cultura do Norte, Proposta de Classificação para um conjunto de cinco fábricas em Guimarães, Proc. nº 6/13/15-8 (3). Idem. Idem. Este núcleo cultural previu a integração de um museu da indústria; de um auditório e teatro; de instalações para o funcionamento dos grupos culturais já 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 existentes; de uma escola de música; de serviços camarários que apoiassem o núcleo cultural; da instalação de pequenas oficinas (tecedeiras, marceneiros, sapateiros, etc.). Cf. Secretaria de Estado da Cultura, Direção Regional de Cultura do Norte, Proposta de Classificação para um conjunto de cinco fábricas em Guimarães, Proc. nº 6/13/15-8 (3). A Dr.ª Margarida Vasconcelos, do Museu Alberto Sampaio, apresentou uma comunicação intitulada “Sobre as formas de evolução da salvaguarda da zona de rio de Couros”; Paulo Vieira de Castro, da Associação para a Defesa do Património de Guimarães a MURALHA, comunicou com o título “Defesa do património: revitalização da antiga zona industrial dos curtumes (rio de Couros)”; e o Arq.º José Manuel Dinis Ribeiro centrou a sua apresentação na “Reutilização da zona do rio de Couros”. As ideias apresentadas, assentes nas especificidades do território, procuraram valorizar o rio, a relação entre o espaço urbano e o rural, o estabelecimento de percursos, ou a constituição de um museu associado à herança cultural dos couros, entre outras. Realizou-se ainda uma visita guiada à fábrica de curtumes da Madrôa. Este Encontro Nacional sobre o Património Industrial (1986), organizado pela Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, realizou-se em três cidades: Guimarães, Coimbra e Lisboa. Cf. Jorge CUSTÓDIO (coord.) — I Encontro Nacional sobre o Património Industrial. Refira-se que no decurso de uma nova dinâmica local para a política de reabilitação criam-se alguns serviços fundamentais para a sua concretização: Gabinete Técnico Local (1985); Gabinete do Centro Histórico, coordenado inicialmente pela Arq.ª Alexandra Gesta e assessorado ao nível técnico-científico pelo Arq.º Fernando Távora. Quanto às áreas de intervenção refira-se que se verificou (...) uma redução relativa da área de intervenção, centrando-se na zona intra-muros, baseado num então proposto faseamento tripartido, [porém] a zona de Couros manteve sempre uma notoriedade e uma expectativa singular no âmbito das políticas de reabilitação e revitalização urbana de Guimarães (...). Cf. PROJECTO CampUrbis/Parceria para a Regeneração Urbana de Couros. O Projecto CampUrbis, concebido especialmente para a Zona de Couros, resulta da definição de um plano que visa reabilitar esta área e os edifícios associados à indústria da curtimenta, reutilizando-os com base num programa estratégico para a cidade. O projecto tem como entidades impulsionadoras a Câmara Municipal de Guimarães e a Universidade do Minho, e procurou (...) desenvolver uma plataforma capaz de induzir actividade económica baseada numa interacção sustentável entre inovação, tecnologia e cultura, ancorada num intenso esforço de formação de recursos humanos (...). Cf. PROJECTO CampUrbis/Parceria para a Regeneração Urbana de Couros. Padre A. Carvalho da COSTA — Corographia Portuguesa, p. 50. A. L. de CARVALHO — Os Mesteres de Guimarães, p. 93. Quanto à actividade de curtimenta desenvolvida na Corredoura, um artigo publicado na Ilustração Portuguesa, refere que (...) Guimarães não só pelas suas fábricas de fiação e tecidos, cutilarias e pentearias mas ainda pela sapataria e cortumes é a mais industrial cidade do norte do paiz. A laboração dos cortumes na cidade é enormíssima mas na Corredoura também estas fábricas trabalham e de dia para dia se desenvolvem (...). Cf. Manuel da Silva LEITE — “Curtimento de peles”. Ilustração Portuguesa, 1912, p. 601. É também importante compreender o que existia na área que foi alterada com a construção da avenida que ligou o Toural à estação de caminho-de-ferro, em 27 de Março de 1890, uma vez que atravessou o arrabalde dos couros, através da construção de um túnel. Dependente da evolução dos meios técnicos, as indústrias ou oficinas estão mais ou menos afastadas dos recursos, como a água ou as matérias-primas. Mapear a indústria no território pode constituir um estudo fascinante, pois permitirá a apreensão das técnicas utilizadas, dos sistemas construtivos, do aproveitamento dos recursos, da especialização de alguns sectores, da cultura produzida, numa análise estreita com as especificidades de cada zona geográfica num determinado período histórico. Cf. Lewis MUMFORD — Técnica Y Civilizacion. 2.ª ed. Madrid: Alianza Universidad, 1997; Deolinda FOLGADO — A Nova Ordem Industrial. Da Fábrica ao Território de Lisboa. 1933-1968. Lisboa: s.n., 2009, dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. (...) Para sudoeste de Gatos, e como o próprio nome indica e o conteúdo dos documentos permite confirmar, o local dos Couros (dito quer ‘rua de’, quer ‘rio de’, em significado alternativo) configurava a zona de pelames da vila. Já se referia o seu dinamismo em tempos recuados: no foral de 1096 mencionavam-se as peles (de coelho, boi ou vaca) (...). Cf. Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Guimarães: Duas Vilas..., pp. 294-295. Idem, ibidem, p. 296. Para uma melhor compreensão desta zona importa, pelo menos, observar a Rua da Caldeiroa e da Madrôa e a área envolvente ao Convento de São Francisco. Engenheiro Almeida Ribeiro — professor de arquitectura civil e naval da Academia Portuense de Belas-Artes, celebrou escritura com a câmara para a elaboração do plano de urbanização, a 2 de Outubro de 1863. Este plano compõe-se de treze folhas e um preâmbulo. Cf. Manuel Alves de OLIVEIRA — Guimarães uma Resenha Urbanística.... Cf. Idem, ibidem, p. 25. A Comissão de Melhoramentos nomeada pela Câmara Municipal de Guimarães tomou posse a 5 de Julho de 1869. Cf. Idem, ibidem, p. 30. Também a classificação das indústrias começou a constituir uma questão fundamental, essencialmente a partir de meados do século XIX. As fábricas organizavam-se em três classes: primeira classe — estabelecimentos que não se deviam permitir dentro nem próximo das cidades; segunda classe — apesar de poderem estar nas cidades, importava saber que tipo de operações realizavam, se eram incómodas, insalubres ou nocivas; terceira classe — podiam existir dentro das localidades. Esta classificação, dependente da perigosidade das operações ou da insalubridade dos estabelecimentos industriais, contribuiu para a monumentos 33 33 34 35 36 37 38 39 40 41 deslocalização de determinadas actividades. Ainda em 1964, as indústrias de primeira e segunda classes necessitavam de autorização do Ministério das Obras Públicas, do secretário de Estado da Indústria, quanto à sua localização, para além das regras do condicionamento. (...) A falta de higiene e [a] insalubridade verificada em Guimarães conduziu os industriais a uma tomada de posição. Em 1919, a Associação Comercial, sob a presidência do Dr. Eduardo de Almeida [...] dirigiu uma representação ao Governo apelando à tomada de medidas profiláticas para se evitar o alastramento das epidemias da varíola e do tifo exantamático, cuja virulência se assenhoreava sobretudo dos bairros operários (...). Cf. Maria Elisabete de Sousa PINTO — Curtidores e Surradores (1865-1923)..., p. 195. Cf. Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP), Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949, vol. I, p. 7. Cf. AMAP, Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949, vol. I, p. 39. Ver o regulamento proposto para a nova zona industrial. Deolinda FOLGADO — A Nova Ordem Industrial... Cf. AMAP, Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949, vol. II, p. 34. A consulta de inquéritos ou de exposições industriais, bem como dos processos de obra, surgiu como um processo natural que permitiria contribuir para explicar os objectivos estabelecidos. Consultaram-se o Mappa das fábricas que existem na villa, termo e commarca de Guimarães, 1815; os Inquéritos Industriais de 1881 e 1890; a Exposição Industrial, realizada em Guimarães no ano de 1884; o Licenciamento Industrial de 1915 e os processos de obra existentes no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta para um período de nove anos — 1921 e 1930 (de acordo com a documentação existente). Cf. AMAP, Processo de Obras de Domingos Ribeiro Martins da Costa. Cf. Inquérito Industrial de 1881..., p. 273. Quadro elaborado com base no trabalho de Elisabete de Sousa PINTO — Curtidores e Surradores (1865-1923).... F O N T E S D O C U M E N TA I S Arquivo do Ministério das Obras Públicas (AMOP), M. Diderot, M. d’Alembert, Encyclopedie, ou Dictionnaire raisonné dês Sciences, des Arts et des métiers, par une societé de gens de lettres, Paris, tomo IV, 1754; Mappa das fábricas que existem na Villa, Termo e Commarca de Guimarães, 1815. Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP), Alargamento da cidade e Novos Paços do Concelho, Memórias Descritivas. Guimarães: Tipografia Minerva Vimaranense, 1925; Anteplano de urbanização da Cidade de Guimarães, Porto, 1949, vol. I; Processo de obras de António F. de Melo Guimarães. Cota – B.25-3-1. Proc. 250; Processo de obras de António José d’Oliveira, Cota — B.25-3-1. Proc. 153; Processo de obras de Curtumes da Caldeiroa Ld.ª, Cota — B.25-3-1 / Proc. 37; Processo de obras de Domingos Ribeiro Martins da Costa, Cota — 25-3-2, Proc. 159; Processo de obras da Fábrica de Roldes, Cota — B-13-3-104-b. Proc. 176; Processo de obras de Joaquim Luciano Guimarães, Cota — B.25-3-1. Proc. 3; Processo de obras de Joaquim Luciano Guimarães, Cota — B-25-3-1 / Proc. 427; Processo de obras de Joaquim Luciano Guimarães, Cota — B.25-3-1. Proc. 512; Processo de obras de José Torcato Ribeiro Júnior, Cota — B.22-2-72. Proc. 32; Processo de obras de Simão Ribeiro, Cota — B.25 -3-1. Proc. 600; Processo de obras de Simão Ribeiro C.ª, Cota — B.22-2-72. Proc. 97; Processo de obras da Sociedade de Cortumes António José d’Oliveira, F.ºs Ld.ª, Cota — B.22-2-72. Proc. 93. PROJECTO CampUrbis / Parceria para a Regeneração Urbana de Couros. Política das cidades POLIS XXI, Programa da Região Norte 2007-2013. Programa de Acção, Abril de 2008. Secretaria de Estado da Cultura, Direção Regional de Cultura do Norte, Proposta de Classificação para um conjunto de cinco fábricas em Guimarães, Proc. N.º 6/13/15-8 (3). B I B L I O G R A F I A ALVES, Gomes — “A zona de interesse arqueológico-industrial das antigas fábricas de curtumes em Guimarães”. Revista de Guimarães. Guimarães: Sociedade Martins Sramento, 1977, vol. LXXXVII, pp. 282-284. AMADO, António Peres Correia — A Indústria de Curtumes, Evolução e Aspectos Químicos, Conferência Realizada no Núcleo de Coimbra em 24-3-1958. Lisboa: s. n., 1958, vol. I, p. 209-228, separata da Revista Portuguesa de Química. 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Este tema tem vindo a ser estudado e divulgado desde os anos quarenta do século passado, tendo sido Alfredo Guimarães o primeiro estudioso a fazer pesquisas sistemáticas, quer em documentação quer no terreno, dando a conhecer os resultados em artigos publicados nos Estudos do Museu Alberto Sampaio1. Já na década de 1980, Franquelim Neiva Soares, através do estudo dos Livros de Visitações do século XVI2, enumera várias igrejas onde é referida a existência de pintura mural, entretanto destruída. Na primeira década do século seguinte é publicado um artigo3 onde se investiga o modo de produção da pintura mural dos séculos XV e XVI, identificando várias oficinas ativas na zona de Vila Real, e se dá a conhecer o seu corpus, fazendo parte de um deles algumas pinturas do aro de Guimarães. Por ocasião do X Encontro de História Local vimaranense, em 2002, Catarina Vilaça de Sousa publica um excelente artigo4 onde faz uma análise exaustiva, sob vários pontos de vista, dos exemplares até então conhecidos. Na mesma ocasião é produzido um roteiro da pintura mural de Guimarães5. Por fim, mais recentemente e no âmbito das suas dissertações de doutoramento, Luís Afonso6 e Paula Bessa7 analisam as várias pinturas murais conhecidas nesta região. A primeira questão que se coloca quando se aborda o tema da pintura mural de Guimarães, isto é, da pintura mural que podemos considerar incluída na região de Guimarães, é a de quais são os limites geográficos que devemos considerar, uma vez que as fronteiras administrativas não podem ser, nem foram ao tempo da execução destas pinturas, limitativas da circula- ção de pintores e oficinas. Deste modo, partimos dos exemplares conhecidos e existentes numa área restrita centrada em Guimarães e, pelo conhecimento que temos do seu modo de produção oficinal, alargaremos a abordagem a outros espécimes, eventualmente fora do que poderemos chamar “região” de Guimarães, para termos uma melhor perceção do fenómeno e das características de cada oficina. Uma vez que este assunto não é de todo novidade, como podemos perceber pelos vários estudos que lhe são dedicados, corremos o risco de nos repetir em relação ao que foi dito, o que aliás é inevitável uma vez que não existem novas investigações sobre este núcleo de pinturas e estas fontes são incontornáveis. As pinturas Numa área restrita, centrada em Guimarães, estão referenciados vinte e sete conjuntos pictóricos dos quais restam apenas oito (fig. 1), tendo desaparecido um número significativo nas décadas de trinta e de quarenta do século passado, alguns referenciados e estudados por Alfredo Guimarães8, como os da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e do Convento de São Francisco, em Guimarães, e das igrejas Matriz de Cerzedo, São Romão de Arões, Santa Eulália de Pentieiros (atualmente anexada a Tabuadelo) e do Salvador de Pinheiro. Mais recentemente foram também destruídas as pinturas das igrejas paroquiais de São João do Calvos e de Joane, Aborda-se neste artigo a pintura mural da região de Guimarães sob o ponto de vista da sua expressão territorial e do modo de produção oficinal. Descrevem-se, também, de um modo sucinto, os vários exemplares remanescentes associando entre si as pinturas que fazem parte do corpus das várias oficinas identificadas. monumentos 33 como consequência de grandes transformações e de demolições nos edifícios. No conjunto houve destruição de pintura mural nas seguintes igrejas: Abação, Agrela, Armil, Arões (São Romão), Caldas, Calvos, Cepães, Cerzedo, Gominhães, Gondomar, Gontim, Guimarães (Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e São Francisco), Joane, Pedraído, Ribeiros, Santa Eulália de Pentieiros (Tabuadelo), Selho (São Lourenço), Silvares, Sobradelo e Travassos. As pinturas remanescentes deste vasto conjunto encontram-se nas igrejas de: Arões (São Romão), Corvite, Guimarães (São Francisco), Negrelos, Pinheiro, Sanfins de Ferreira, Serzedelo e Telões. Apesar da proximidade geográfica de Braga, Felgueiras e Amarante, com exceção das igrejas de Santo André de Telões (Amarante) e de São Salvador de Ribas (Celorico de Basto), porque têm pinturas atribuíveis a uma das oficinas de Guimarães, não incluímos neste estudo as pinturas desse aro porque, apesar de existir também um número significativo de exemplares, grande parte deles resultam de encomendas coletivas do Mosteiro de Pombeiro9, sendo produção de outras oficinas por nós identificadas com áreas de influência10 que ultrapassam a região de Guimarães, como podemos observar no mapa da fig. 2. DOSSIÊ 53 As oficinas Algumas destas pinturas fazem parte do corpus de oficinas ativas durante o século XVI nesta região e são designadas em estudos anteriores por Oficina do Mestre Delirante11, Oficina das Volutas12 e Oficina da Moldura13. O primeiro grupo é constituído pelas pinturas da Capela de São João Batista do Convento de São Francisco, das quais resta apenas A Degolação de São João Batista, pintura destacada, atualmente no Museu de Alberto Sampaio; pelas pinturas da parede fundeira da capela-mor da Igreja de Santa Cristina de Serzedelo, das quais foram destacadas as representações de Santa Luzia e da Anunciação, que estão expostas na igreja, continuando in situ, São Martinho e Santo Antão; pela composição A Natividade no arco triunfal da Igreja de Santo André de Telões14 (fig. 3); e, escondido por detrás do altar colateral do lado do Evangelho, O Martírio de São Sebastião, na Igreja do Salvador de Pinheiro, tendo sido estas duas últimas pinturas descobertas recentemente. Da segunda oficina identificada, Oficina das Volutas, fazem parte: os conjuntos da Igreja de Santa Maria de Corvite, compostos pelas pinturas da parede fundeira (representando São Brás, Nossa Senhora com o Menino 1 | Noroeste de Portugal, mapa da área restrita, centrada em Guimarães, com a localização das igrejas com referência à existência de pintura a fresco do século XVI. Estão marcados a vermelho os conjuntos remanescentes e a amarelo as pinturas destruídas; marcação efetuada pelo autor. 54 DOSSIÊ monumentos 33 triunfal (São Sebastião, do lado do Evangelho, e Nossa Senhora com o Menino, do lado da Epístola) e na parede norte adjacente ao arco triunfal (Santa Catarina e São Miguel); no arco triunfal da Igreja de São Pedro de Sanfins (São Brás); e ainda as destruídas pinturas da Igreja de São João dos Calvos, das quais não se conhece qualquer representação figurativa. Poderá também fazer parte do corpus desta oficina a pintura recentemente descoberta na Igreja de São Salvador de Ribas (Celorico de Basto), pois são grandes as afinidades no tratamento dos rostos e no desenho dos olhos15 (fig. 4). Atendendo ao repertório decorativo deste conjunto de pinturas e, também, à referência existente no Livro de Visitações, de 1548, podemos datá-las de meados do século XVI. E, por fim, o corpus da terceira oficina é constituído por uma das campanhas das paredes laterais da nave da Igreja de Santa Cristina de Serzedelo (fig. 7, campanha G) e pelas destruídas pinturas da Igreja de Joane, com a representação de São Tiago e de dois anjos. 2 | Noroeste de Portugal, mapa com a localização do corpus de pinturas de duas oficinas ativas nesta área: Oficina do Mestre Arnaus, a vermelho, e Oficina II do Marão, a azul; marcação efetuada pelo autor. As igrejas e suas pinturas Igreja de Santa Cristina de Serzedelo, Guimarães 3 | Amarante, Igreja de Santo André de Telões, parede do arco triunfal, Natividade, fotografia de autor desconhecido, 2008. 4 | Celorico de Basto, Igreja de São Salvador de Ribas, pormenor da pintura mural, fotografia de Joaquim Inácio Caetano, 2012. e Santo Antão), da parede adjacente, do lado do Evangelho (um santo não identificado), da parte superior do arco triunfal (Calvário), do altar colateral do lado do Evangelho (Santa Catarina e Santa Bárbara) e do lado da Epístola (Martírio de São Sebastião); uma das campanhas da Igreja de Santa Cristina de Serzedelo, de que fazem parte as pinturas localizadas no arco As pinturas atualmente existentes situam-se na capela-mor (parede fundeira e em parte das paredes adjacentes), no arco triunfal e nas paredes laterais da nave, correspondendo a seis campanhas pictóricas. A dependência anexa à capela-mor, que foi construída como panteão e que hoje serve de sacristia, encontra-se parcialmente revestida com pintura mural, ocupando a totalidade da parede nascente e da zona adjacente da parede norte, onde se podem observar três campanhas distintas. Da mais antiga pode identificar-se a figura de São Cristóvão, vendo-se apenas as suas pernas. Sobre esta campanha corre outra de grotescos largos com as figuras de Santa Luzia e de São Martinho, já ilegíveis. Na parte central da parede e por cima da fresta observam-se pequenos fragmentos da terceira campanha, reconhecendo-se a figura de Nossa Senhora a ser coroada por anjos. Esta quantidade, pouco habitual, de campanhas pictóricas deve-se, possivelmente, à importância que esta igreja, enquanto casa monacal, terá tido durante o século XVI. Algumas destas campanhas correspondem à produção das oficinas que referimos anteriormente, para que a sua leitura e a sua identificação sejam mais fáceis apresentamos um esquema de localização das diversas campanhas (figs. 5 a 7). Na capela-mor resta, in situ, um conjunto pictórico composto por dois registos. No primeiro registo a contar de baixo encontram-se a representação de Santo Antão, à esquerda do altar, e São Martinho, do lado contrário. Estas duas composições são encimadas por um conjunto de brutescos e rematadas superiormente pela figura do Padre Eterno, presentemente tapada pelo teto de madeira. Desta campanha monumentos 33 5 | Serzedelo, Igreja de Santa Cristina, sacristia, identificação das campanhas pictóricas: A. Primeira campanha — São Cristóvão; B. Segunda campanha — grotescos, Santa Luzia e São Martinho; C. Terceira campanha — fragmentos da Coroação de Nossa Senhora; fotografia de Joaquim Inácio Caetano, 2012. 6 | Igreja de Santa Cristina, capela-mor, identificação das campanhas pictóricas: D. Primeira campanha — grotescos, Padre Eterno, Santo Antão e São Martinho e as destacadas Santa Luzia e Anunciação; E. Segunda campanha — fragmentos sem leitura; fotografia de Joaquim Inácio Caetano, 2012. 7 | Igreja de Santa Cristina, nave, identificação das campanhas pictóricas: F. Primeira campanha — barra decorativa; G. Segunda campanha — grotescos e Santa Catarina; H. Terceira campanha — São Francisco e Santo António; I. Quarta campanha — São Miguel, São Sebastião, Nossa Senhora com o Menino e São Remígio (?), e São Brás; fotografia de Joaquim Inácio Caetano, 2012. 8 | Igreja de Santa Cristina, nave, Nossa Senhora com o Menino, fotografia de Joaquim Inácio Caetano, 2012. 9 e 10 | Igreja de Santa Cristina, nave, composições de grotescos, fotografias de Joaquim Inácio Caetano, 2012. DOSSIÊ fazem parte também duas pinturas destacadas que se encontravam sobre a fresta, uma Anunciação e uma Santa Luzia, respetivamente no registo superior e inferior, e que presentemente se encontram expostas nas paredes laterais da nave (campanha D). Sobre a figura de São Martinho observam-se dois pequenos fragmentos de uma camada de pintura sobreposta a esta (campanha E), e que terá sido destruída aquando da intervenção da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) em 1957. Esta situação indica-nos que também aqui houve uma modernização no que diz respeito à decoração com a execução de uma segunda campanha pictórica, cuja extensão desconhecemos. Na nave, vamos encontrar pintura no arco triunfal prolongando-se pelas paredes adjacentes. Do lado do Evangelho, no arco triunfal, estão representados São Francisco (campanha H), num registo superior, e São Sebastião, no registo inferior. Na parede contígua da nave observa-se a toda a altura uma banda de brutescos rematada inferiormente pelas figuras de Santa Catarina e de São Miguel. Do lado da Epístola, e numa relação simétrica relativamente às pinturas anteriormente descritas, temos Santo António e Nossa Senhora com o Menino (fig. 8) e uma banda de grotescos rematada pelas figuras de São Remígio (esta identificação não é segura, no entanto, pelo atributo que se observa no canto superior esquerdo, uma ampola de vidro e as asas de uma pomba, leva-nos a crer que se tratará deste santo) e de São Brás. Também aqui temos várias campanhas pictóricas, quatro no total. Da primeira apenas se veem pequenas áreas através de algumas lacunas da composição de brutescos. Da segunda campanha farão parte as bandas de grotescos e Santa Catarina, da terceira a representação das figuras de São Miguel, São Sebastião, Nossa Senhora com O Menino, São Remígio e São Brás. São Francisco e Santo António pertencerão a uma outra campanha relativamente à qual não associamos outras pinturas. Nas paredes laterais da nave, por cima das composições figurativas, observam-se decorações de grotescos sobre fundo vermelho (figs. 9 e 10). 55 56 DOSSIÊ monumentos 33 12 | Guimarães, Museu Alberto Sampaio, Degolação de São João Batista, pintura destacada proveniente da Casa Capitular do Convento de São Francisco, fotografia de autor desconhecido, s.d. 11 | Pinheiro, Igreja de São Salvador, Martírio de São Sebastião, fotografia de autor desconhecido, 2008. Igreja de São Salvador de Pinheiro, Guimarães Das pinturas existentes nesta igreja não resta senão o que ficou escondido pelos retábulos colaterais. Do lado de Evangelho encontram-se representações de São Brás e do Martírio de São Sebastião (fig. 11) e do lado da Epístola a representação de Santo Antão e um painel de pintura decorativa. Estas composições encontram-se bastante mutiladas e de difícil leitura devido às condições em que se encontram. Tendo em conta alguns pormenores da composição, como as vestes do arqueiro, esta campanha pictórica é atribuível à Oficina do Mestre Delirante. Igreja de Santo André de Telões, Amarante Por detrás do retábulo-mor existem vários fragmentos de diferente tamanho, dispersos por toda esta parede e paredes adjacentes, onde se identificam, na zona superior, de cada lado da fresta, um anjo segurando a ponta de uma espécie de grinalda de elementos esféricos (rosário?) e, na zona inferior, os pés descalços e parte quer da túnica de Santo André, quer das hastes da sua cruz. Tendo em conta o reduzido número e tamanho dos fragmentos, é muito difícil identificar o esquema compositivo sem um termo de comparação. O que resta desta pintura remete-nos para o conjunto de pinturas que designámos por Oficina II do Marão16 e, em particular, para a pintura da parede fundeira da capela-mor da Igreja de Santa Marinha de Vila Marim. No arco triunfal conservou-se uma composição, quase completa, representando uma Natividade (fig. 3). Numa leitura mais apressada poderíamos pensar tratar-se de outro exemplar atribuível à oficina referida anteriormente, devido à existência, no lado direito da zona inferior da composição, de uma barra de enrolamento semelhante à que identificámos na parede fundeira da capela-mor. No entanto, percebe-se que essa barra, assim como a área contígua de cor rosa, correspondem a um reboco de uma intervenção pictórica distinta e anterior à da composição da Natividade. Estamos, assim, perante duas pinturas diferentes, sendo a pintura subjacente atribuível à Oficina II do Marão e a representação da Natividade correspondente a outra campanha posterior, que cremos atribuível à Oficina do Mestre Delirante17 de Guimarães. Além da existência de pormenores semelhantes entre esta pintura e a Degolação de São João Batista, pintura destacada da Casa Capitular do Convento de São Francisco de Guimarães (que se encontra atualmente no Museu de Alberto Sampaio), acresce o facto de o padroado da Igreja de Santo André de Telões pertencer, no século XVI, à Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães18. Esta situação terá favorecido a produção de pintura pelos mesmos pintores ou oficinas nas igrejas pertences a esta colegiada à semelhança do que se passava noutras zonas, como nas igrejas dependentes do padroado de Pombeiro19, por exemplo. Igreja e Convento de São Francisco, Guimarães De um vasto conjunto de pinturas existente neste conjunto monástico20 restam apenas in situ, detrás do retábulo-mor de talha dourada, alguns fragmentos de uma decoração que revestiria, se não toda a igreja, pelo menos a capela-mor. Deste conjunto remanescente, apenas se identifica uma pintura figurativa fragmentada na parede fundeira e de difícil leitura por se encontrar parcialmente coberta com cal. Toda a restante pintura é decorativa e teria revestido completamente este espaço. Do ponto de vista formal este conjunto decorativo tem afinidades com as pinturas da Igreja de São Francisco de Leiria21. Das pinturas destacadas é importante referir a que representa a Degolação de São João Batista (fig. 12), localizada originalmente na parede norte da Casa Capitular do convento, tendo sido destacada em 1940 no âmbito da intervenção da DGEMN. Este exemplar inscrevia-se numa composição murária mais alargada, retratando igualmente dois anjos e a cena do Batismo de Cristo, composições hoje perdidas. Podemos atribuir este exemplar à produção da Oficina do Mestre Delirante de Guimarães. monumentos 33 Igreja de Santa Maria de Corvite, Guimarães 13 | Corvite, Igreja de Santa Maria, capela-mor, pinturas murais da parede fundeira, fotografia de Joaquim Inácio Caetano, 2012. A mais antiga referência a esta igreja aparece no Livro de Visitações de 1548, do qual Franquelim Neiva Soares22 faz a seguinte transcrição: (...) Item Mando aos freigueses que pintem o altar de São Bastião de romano sob penna de dozemtos reaes para as obras da see (...). Como na maior parte dos casos das pinturas do século XVI, este conjunto “sobreviveu” por ter ficado escondido por detrás de retábulos de talha, mantendo-se em relativo bom estado de conservação tendo em conta as vicissitudes por que passou. Com as pinturas expostas, devido ao apeamento dos retábulos para restauro, e ao abandono da igreja por ausência de culto, o seu estado de conservação tem vindo a piorar rapidamente. Pode observar-se na capela-mor uma composição (fig. 13) onde, numa imitação retabular, está representada Nossa Senhora com o Menino em posição central, ladeada por Santo Antão e São Brás. A pintura deveria revestir também a parede adjacente do lado norte, podendo ainda observar-se a representação de São Domingos. Na nave as pinturas encontram-se somente no arco triunfal onde, na parte superior, se identifica um Calvário em mau estado de conservação e parcialmente coberto por camadas de cal. Nos altares colaterais estão representadas Santa Catarina e Santa Bárbara, do lado do Evangelho, e o Martírio de São Sebastião, do lado da Epístola. Do ponto de vista formal podemos dizer que se privilegia o desenho na definição das formas. Os vários elementos das composições, sejam decorativos ou figurativos, são contornados com linhas bem definidas, passando-se, com bastante contraste, de uma cor a outra, sem utilização de meios tons. Outra característica destas composições é a utilização de uma linguagem decorativa de elementos vegetalistas, folhas de acanto, em enrolamentos que envolvem as composições figurativas, assim como o tipo de moldura que as enquadra, resultando de uma campanha de modernização das pinturas ao romano, como é referido na visitação. Esta situação não se observa no altar colateral do lado do Evangelho, onde as figuras estão inseridas numa moldura simples. DOSSIÊ 57 Igreja de São Pedro de Sanfins de Ferreira, Paços de Ferreira Das pinturas que terão revestido as paredes desta igreja, não resta senão uma figura fragmentada, representando São Brás (fig. 14), no altar colateral do lado do Evangelho. A leitura é confusa devido à deslocação de pedras e seu assentamento noutro lugar, consequência provável do alargamento do arco triunfal. Na parede da nave adjacente podem observar-se, ainda, alguns fragmentos de pintura onde apenas se identificam alguns elementos decorativos. A figura de São Brás é muito semelhante à de Corvite parecendo haver um modelo que se repete. Igreja de São João dos Calvos, Guimarães Das pinturas existentes nesta igreja já nada resta. Sabemos da sua existência pelas referências nas visitações de 1548 e pela documentação existente nos arquivos da DGEMN. No processo de obra desta igreja existe alguma documentação fotográfica onde se pode ver um fragmento de pintura no frontal de altar, cujos elementos decorativos são semelhantes aos das pinturas de Corvite. A pintura foi destruída aquando da campanha de obras levada a cabo por aquela instituição em 1960, na qual a capela-mor foi totalmente reconstruída. Igreja Paroquial de Joane, Vila Nova de Famalicão A primitiva igreja românica foi destruída e com ela as suas pinturas murais. Pelos documentos fotográficos existentes percebe-se que a pintura se situava na parede fundeira da capela-mor. Na fresta entaipada estavam representados dois anjos que coroavam (fig. 15), provavelmente, Nossa Senhora, e do lado esquerdo, no registo inferior, identifica-se uma imagem de São Tiago Peregrino (fig. 16), enquanto a figura do registo superior não se consegue identificar. É uma pintura da mesma autoria das pinturas de uma das campanhas de Serzedelo, atribuível à Oficina da Moldura. Além das afinidades formais, o motivo 14 | Sanfins, Igreja de São Pedro, pormenor da pintura mural do altar colateral do Evangelho, fotografia de autor desconhecido, s.d. 58 DOSSIÊ monumentos 33 15 e 16 | Joane, igreja paroquial, pinturas destruídas, fotografias de Joaquim Inácio Caetano, 2012. cução da pintura e, mais tarde, aberta por ocasião da remoção do retábulo de talha que cobria a pintura. Do lado do Evangelho está representado São Pedro e do lado da Epístola São Paulo. Entre estas duas figuras existem ainda fragmentos de três anjos que ladeariam uma Nossa Senhora. É uma pintura datável de meados do século XVI. Igreja de São Romão de Arões, Fafe Presentemente, do conjunto de pinturas desta igreja, não resta senão uma composição, com a representação de Nossa Senhora, situada no arco triunfal do lado do Evangelho, que se encontra tapada pelo retábulo de talha dourada que aí se encontra. Pelos documentos fotográficos existentes verifica-se que também o lado da Epístola do arco triunfal era pintado com uma representação de São Sebastião. As pinturas destacadas do Museu de Alberto Sampaio No Museu de Alberto Sampaio existe um conjunto de pinturas destacadas pela DGEMN nas décadas de 1930 a 1950 do século passado23, atualmente expostas em sala própria, provenientes das igrejas do Salvador de Ponte da Barca, de Nossa Senhora da Azinheira de Outeiro Seco, de Fonte Arcada e do Convento de São Francisco de Guimarães. Por não serem do aro de Guimarães, com exceção da Degolação de São João Batista e à qual já nos referimos, fica apenas a nota da sua existência (fig. 12). Conclusões 17 | Negrelos, Igreja de Santa Maria, pormenor da pintura mural na parede fundeira, fotografia de autor desconhecido, 2012. das barras decorativas que emolduram as composições, executado com estampilha, é igual ao motivo de algumas das barras da pintura da referida igreja. Igreja de Santa Maria de Negrelos, Santo Tirso A pintura situa-se na parede fundeira da capela-mor e encontra-se mutilada na parte central correspondente à fresta (fig. 17). Esta foi fechada aquando da exe- Numa análise detalhada deste conjunto pictórico no estreito aro de Guimarães, poderíamos deter-nos em vários aspetos, nomeadamente, sobre os encomendantes, a iconografia, os temas mais representados, a técnica de execução, a produção oficinal, entre outros. No entanto, por não ser este o espaço para um desenvolvimento extenso, referiremos apenas alguns dados que sobressaem da exposição anterior. Observando a grande quantidade de pinturas (as referenciadas e as ainda existentes), datáveis do século XVI, podemos concluir que a pintura mural terá tido uma enorme expressão nesta época, perdendo importância nas centúrias seguintes, com a introdução da talha dourada nas igrejas, subsistindo apenas os exemplares que ficavam escondidos por detrás de retábulos e, mesmo de entre estes, uma parte significativa foi destruída por obras de modernização das igrejas e pelas intervenções da DGEMN. Pela análise das referências existentes nos Livros de Visitações percebe-se que há um constante cuidado na sua manutenção e modernização, ordenando-se que se pintem “ao romano”, o que, quanto a nós, tem que ver também com a vertente decorativa da pintura mural, muito mais do que com a represen- monumentos 33 tação de santos. São disso exemplo os grotescos da Igreja de Santa Cristina de Serzedelo, assim como os elementos decorativos das pinturas da Oficina das Volutas. 20 21 Joaquim Inácio Caetano 22 Mural da História 23 Imagens: 3, 11, 12 e 17: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico; 4 a 10, 13, 15 e 16: autor; 14: Diocese do DOSSIÊ à Igreja de S. Dinis de Vila Real: parentescos pictóricos e institucionais e as encomendas do abade D. António Melo”. Cadernos do Noroeste, 2003, série 3 (História), vol. 20, n.º 1-2, pp. 67-95; Idem — “D. Diogo de Sousa e a pintura mural na capela-mor da igreja de S. Salvador de Bravães”. Revista da Faculdade de Letras..., 2003, pp. 757-781. Alfredo GUIMARÃES — “Os novos frescos de Serzedelo”. Estudos do Museu Alberto Sampaio, vol. III. Luís AFONSO — A Pintura Mural entre o Gótico... Franquelim Neiva SOARES — Ensino e Arte na Região de Guimarães... Catarina Valença GONÇALVES, Joaquim Inácio CAETANO — “Um olhar sobre a pintura mural na Região de Guimarães no século XVI”. X Encontro de História Local; Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no século XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. III, pp. 219-273. Porto/Secretariado Diocesano de Liturgia. B I B L I O G R A F I A N OTA S 1 Alfredo GUIMARÃES — “A Degolação de S. João Batista”. Estudos do Museu Alberto Sampaio, vol. I; Idem — “Os novos frescos de Serzedelo”. Estudos do Museu Alberto Sampaio, vol. III. 2 Franquelim Neiva SOARES — Ensino e Arte na Região de Guimarães... Joaquim Inácio CAETANO — O Marão e as Oficinas de Pintura... Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no século XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. III, pp. 219-273. Catarina Valença GONÇALVES; Joaquim Inácio CAETANO — “Um olhar sobre a pintura mural na Região de Guimarães no século XVI”. X Encontro de História Local. 3 4 5 6 7 8 9 10 Luís AFONSO — A Pintura Mural entre o Gótico... Paula BESSA — Pintura Mural do Fim da Idade Média... Alfredo GUIMARÃES — “A Degolação de S. João Batista”. Estudos do Museu Alberto Sampaio, vol. I. Luís AFONSO — “São Salvador de Bravães e a cronologia da pintura mural portuguesa da Idade Média”. Monumentos. Dossiê: Sé do Funchal, 2003, n.º 19, pp. 114-123; Paula BESSA — “Pintura Mural em Santa Marinha de Vila Marim, S. Martinho de Penacova, Santa Maria de Pombeiro e na capela funerária anexa à Igreja de S. Dinis de Vila Real: parentescos pictóricos e institucionais e as encomendas do abade D. António Melo”. Cadernos do Noroeste, 2003, série 3 (História), vol. 20, n.º 1-2, pp. 67-95; Idem — “D. Diogo de Sousa e a pintura mural na capela-mor da igreja de S. Salvador de Bravães. Revista da Faculdade de Letras..., 2003, pp. 757-781. Joaquim Inácio CAETANO — O Marão e as Oficinas de Pintura...; Idem — “Uma obra de arte redescoberta: os frescos da igreja românica de Santa Leocádia”. Revista Aquae Flaviae, Dez. 2004, n.º 32, pp. 43-76; Idem — “Novas achegas para a compreensão da actividade oficinal nos séculos XV e XVI. As pinturas murais das Igrejas de Santo André de Telões, Amarante, de Santiago de Bembrive, Vigo e de S. Pedro de Xuenzás, Boborás na Galiza”. Revista da Faculdade de Letras, 2006-2007, série I, vol. V-VI, pp. 57-68; Idem, Luís Urbano AFONSO (ed.), Vítor SERRÃO (ed.) — “De la fragmentation du regard à l’identification des ensembles”. Out of the Stream…, pp. 88-102; Idem — “Modelos de estampi- 11 lhas na pintura mural quinhentista do Marão (Trás-os-Montes)”. O Largo Tempo do Renascimento, pp. 101-130; Idem — Motivos Decorativos de Estampilha... A designação desta oficina decorre de um estudo de Ignace Vandevivere e de José Alberto Carvalho sobre algumas pinturas em tábua do Museu Alberto Sampaio, no qual atribuem a este pintor a pintura a fresco representando a Degolação de S. João Batista, destacada do Convento de São Francisco de Guimarães, existente neste museu. Ignace VANDEVIVERE; José Alberto CARVALHO — “O Mestre Delirante de Guimarães”. A Colecção de Pintura do Museu..., pp. 17-32. 12 Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no século XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. III, pp. 219-273; Catarina Valença GONÇALVES, Joaquim Inácio CAETANO — “Um olhar sobre a pintura mural na Região de Guimarães no século XVI”. X Encontro de História Local. 13 Idem, ibidem; Joaquim Inácio CAETANO — Motivos Decorativos de Estampilha... Joaquim Inácio CAETANO — “Novas achegas para a compreensão da actividade oficinal nos séculos XV e XVI. As pinturas murais das Igrejas de Santo André de Telões, Amarante, de Santiago de Bembrive, Vigo e de S. Pedro de Xuenzás, Boborás na Galiza”. Revista da Faculdade de Letras, 2006-2007, série I, vol. V-VI, 14 15 16 17 18 19 pp. 57-68. Informação gentilmente cedida pela Drª. Rosário Machado, diretora da Rota do Românico. Joaquim Inácio CAETANO — O Marão e as Oficinas de Pintura... Ignace VANDEVIVERE; José Alberto CARVALHO — “O Mestre Delirante de Guimarães”. A Colecção de Pintura do Museu..., pp. 17-32; Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no século XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. 111, pp. 219-273. Informação fornecida pela Dr.ª Paula Bessa. Luís AFONSO — “São Salvador de Bravães e a cronologia da pintura mural portuguesa da Idade Média”. Monumentos. Dossiê: Sé do Funchal, 2003, n.º 19, pp. 114-123; Paula BESSA — “Pintura Mural em Santa Marinha de Vila Marim, S. Martinho de Penacova, Santa Maria de Pombeiro e na capela funerária anexa AFONSO, Luís — “São Salvador de Bravães e a cronologia da pintura mural portuguesa da Idade Média”. Monumentos. Dossiê: Sé do Funchal. Lisboa: Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2003, n.º 19, pp. 114-123. Idem — A Pintura Mural entre o Gótico Internacional e o Fim do Renascimento: Formas, Significados, Funções. Lisboa: s.n., 2006, 3 vols., dissertação de doutoramento em História (História da Arte) apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, texto policopiado. BESSA, Paula — “Pintura mural em Santa Marinha de Vila Marim, S. Martinho de Penacova, Santa Maria de Pombeiro e na capela funerária anexa à Igreja de S. Dinis de Vila Real: parentescos pictóricos e institucionais e as encomendas do abade D. António Melo”. Cadernos do Noroeste. Braga: Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, 2003, série 3 (História), vol. 20, n.º 1-2, pp. 67-95, separata da referida publicação. Idem — “D. Diogo de Sousa e a pintura mural na capela-mor da igreja de S. Salvador de Bravães”. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003, pp. 757-781. Idem — Pintura Mural do Fim da Idade Média e do Início da Idade Moderna no Norte de Portugal. Braga: s.n., 2007, 3 vols., dissertação de doutoramento em História, Área de Conhecimento de História da Arte apresentada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho. CAETANO, Joaquim Inácio — O Marão e as Oficinas de Pintura Mural nos Séculos XV e XVI. Lisboa: Aparição, 2001. Idem — “Uma obra de arte redescoberta: os frescos da Igreja Românica de Santa Leocádia”. Revista Aquae Flaviae. Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae, Dez. 2004, n.º 32, pp. 43-76. Idem — “Novas achegas para a compreensão da actividade oficinal nos séculos XV e XVI. As pinturas murais das Igrejas de Santo André de Telões, Amarante, de Santiago de Bembrive, Vigo e de S. Pedro de Xuenzás, Boborás na Galiza”. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006-2007, série I, vols. V-VI, pp. 57-68. Idem; AFONSO, Luís Urbano (ed.); SERRÃO, Vítor (ed.) — “De la fragmentation du regard à l’identification des ensembles”. Out of the Stream. Studies in Medieval and Renaissance Mural Painting. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2007, pp. 88-102. Idem — “Modelos de estampilhas na pintura mural quinhentista do Marão (Trás-os-Montes)”. O Largo Tempo do Renascimento: Arte, Propaganda e Poder. Lisboa: Caleidoscópio; Centro de História da Universidade de Letras, 2008, pp. 101-130. Idem — Motivos Decorativos de Estampilha na Pintura a Fresco dos Séculos XV e XVI no Norte de Portugal. Relações entre Pintura Mural e de Cavalete. Lisboa: s.n., 2011, 2 vols., dissertação de doutoramento em História, na especialidade Arte, Património e Restauro no Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. GONÇALVES, Catarina Valença; CAETANO, Joaquim Inácio — “Um Olhar sobre a Pintura Mural na Região de Guimarães no Século XVI”. X Encontro de História Local. Guimarães: Museu de Alberto Sampaio, 2002, texto fotocopiado. GUIMARÃES, Alfredo — “A Degolação de S. João Baptista”. Estudos do Museu Alberto Sampaio. Guimarães: Museu Alberto Sampaio, 1942, vol. I. Idem — “Os novos frescos de Serzedelo”. Estudos do Museu Alberto Sampaio. Guimarães: Museu Alberto Sampaio, 1953, vol. III. RODRIGUES, Dalila — “A pintura mural portuguesa na região Norte. Exemplares dos séculos XV e XVI”. A Colecção de Pintura do Museu Alberto Sampaio — séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português dos Museus, 1996. SOARES, Franquelim Neiva — Ensino e Arte na Região de Guimarães Através dos Livros de Visitações do Século XVI. Guimarães, 1984. SOUSA, Catarina Vilaça — “A pintura mural na região de Guimarães no século XVI”. Revista de Guimarães. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 2001, vol. III, pp. 219-273. Idem — “As intervenções da DGEMN no acervo de pintura mural nacional (1929-1972)”. II Congresso Internacional de História da Arte 2001 – Portugal: Encruzilhada de Culturas, das Artes e das Sensibilidades. Coimbra: Livraria Almedina, 2004, pp. 23-48, livro de atas do referido congresso. VANDEVIVERE, Ignace; CARVALHO, José Alberto Seabra — “O Mestre Delirante de Guimarães”. A Colecção de Pintura do Museu Alberto Sampaio — Séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português dos Museus, 1996, pp. 17-32. 59 60 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Miguel de Lescole e a capela-mor da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães MIGUEL SOROMENHO Os dados essenciais sobre a reconstrução seiscentista da capela-mor da Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, foram publicados há mais de trinta anos por Aurélio de Oliveira1; sobre esta peça arquitectónica pouco mais se pôde entretanto acrescentar, pelo que, à míngua de novos documentos, importa esclarecer e aprofundar algumas das questões levantadas por aquele trabalho pioneiro. A revelação das peças contratuais relativas à obra da capela-mor permitiu estabelecer, com exactidão, os pormenores da empreitada, até então de autoria desconhecida e imprecisa cronologia: o memorialista Torquato Peixoto de Azevedo cria-a de 16702; o padre António José Ferreira Caldas3, de 1677. Na verdade, data de 6 de Junho de 1675 o contrato passado com o architecto de pedraria António de Castro para a construção da nova capela, orçada em oito mil cruzados e trezentos e quarenta mil réis, que devia fazer-se de acordo com o projecto dado pelo mestre de campo Miguel de Lescole, o qual incluía o (...) Diseunho principal (…), moldes, plantas [e] apontamentos (...) que ele deixara feitos, a que faltavam, porém, os róis de preços das (...) brassas e mais pedrarias (...). No dia imediato, 7 de Junho, foi feita também, no registo notarial, a escritura de fiança relativa ao contrato de arrematação, e, a 14, a outorga e o consentimento do ajuste, dados pela mulher de António de Castro. A empreitada não estava ainda acabada em 1679, quando os cónegos pediram ao príncipe regente D. Pedro o rendimento de dois anos do real da água — haviam entretanto gasto três mil e quinhentos réis em pedraria, sessenta nas grades de ferro e nas vidraças, e seis mil cruzados no retábulo —, e continuava inconclusa em 1688, levando o já então rei a esmolar mais mil cruzados para encerrar a obra4. É provável que o guarnecimento do espaço interno com um retábulo de talha e um cadeiral para o cabido fizesse parte da intenção original de modernização; mas se este, devido ao mestre Gaspar dos Reis, foi contratado em 1688, a máquina destinada ao altar-mor, realizada pelo entalhador Pedro Coelho e pelo imaginário António de Andrade, só muito mais tarde, em 1712-1713, viria a ser instalada5. Se alguma outra intenção houve no lançamento deste empreendimento que não apenas a necessidade prática de substituir uma estrutura envelhecida e provavelmente pouco funcional, ela não ficou registada na documentação conhecida, mas o gesto do patrocínio régio e a sua marcação com a aposição do escudo real no intradorso da nova abóbada poucos anos após o fim da Guerra da Aclamação, ocorrido em 1668, podem sugerir que se tratava então de assinalar o armistício e a legitimação dinástica que ele representava. Nada melhor do que fazê-lo num contexto que remetia directamente para a memória de D. João I e para a afirmação da independência conseguida naqueles anos finais do século XIV, irmanando simbolicamente dois sucessos das armas portuguesas separados por cerca de três séculos. Na verdade, a estreita ligação da Colegiada de Guimarães à figura do Mestre de Avis, como seu refundador, fazia parte integrante da sua génese monumental: isso mesmo é, a cada passo, lembrado pelo padre Peixoto de Azevedo que, escrevendo embora no século XVIII, recolhia uma pertinaz tradição memorial, 1 | Guimarães, Igreja e Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, fachada principal, e Padrão Comemorativo da Batalha do Salado, fotografia de Amadeu Astorga Viana, 1976. O presente artigo procura esclarecer e aprofundar algumas das questões levantadas pelo trabalho incontornável de Aurélio de Oliveira sobre a reconstrução seiscentista da capela-mor da Colegiada de Guimarães. A revelação das peças contratuais relativas à obra torna possível estabelecer os pormenores da empreitada, até então de autoria desconhecida e de imprecisa cronologia. Esta campanha deve ser entendida como de primordial importância para o reavivar da reivindicação do estatuto régio da colegiada e da sua identificação com a dinastia dos Bragança, o que, aliás, à própria Coroa interessava promover. Assim se justifica a escolha de Miguel de Lescole, então funcionário da Coroa, senhor de uma sólida cultura teórica e prática, para a projectar. monumentos 33 DOSSIÊ 61 62 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 2 | Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, vista geral da nave, 2013. comprovada por outras fontes e pelos testemunhos edificados subsistentes. A reforma joanina tinha sido generosa: à munificência régia ficara a dever-se um conjunto gordo de obras que incluíam os vitrais dos janelões da nave, selados com os escudos do rei e da rainha, D. Filipa6, uma torre sineira demolida em 1515, e toda a cabeceira, reconstruída na actual campanha seiscentista, onde também pontificava a heráldica régia, além da oferta de alfaias ricas para a igreja, entre as quais se contava o célebre tríptico de prata alegadamente recolhido pelas tropas portuguesas em Aljubarrota do espólio de Juan I de Castela7. Tratava-se, pois, de um espaço impregnado de evocações autonomistas a que não faltava a identificação com outros momentos fundacionais, através, por exemplo, da exposição da suposta pia baptismal de D. Afonso Henriques, oferecida aos olhares públicos num nicho aberto na nave do templo, mandado compor em 1664 por D. Diogo da Silveira, seu prior, a quem também se deve a recuperação e o restauro de peças emblemáticas de ourivesaria medieval ali conservadas, casos da cruz do doutor João das Regras ou do cofre-relicário quatrocentista de D. Luís Vasques da Cunha. Esta operação de remissão para o passado contava, ao mesmo tempo, com a valorização do santoral autóctone, outro modo de expressão da individualidade portuguesa: ainda a D. Diogo se credita a encomenda de um relicário de prata dourada com uma relíquia de São Torcato, bem como se regista, depois, o acompanhamento quase arqueológico da obra de 1675 da capela-mor, em cujo contrato ficou consignada a cautela com que devia ser feito o seu desmantelamento, para se ver (...) Se nas dittas paredes estaõ alguas Relliquias de alguns Santos de que ha algua tradissão (...). Mais importante ainda foi a iniciativa de D. Diogo para a instalação de um novo retábulo na capela, em 1665. Dificilmente para esta substituição se podia reclamar da vetustez da máquina existente, que não tinha mais de cem anos. De facto, o retábulo devia estar todo montado in situ no início de 1573, de acordo com um contrato recentemente revelado que o atribui ao mestre imaginário Fernão Carvalho8, mas a adopção de novos padrões de gosto na talha portuguesa não foi, no transcurso destes anos, tão profunda que justificasse, por si só, a renovação almejada pelo prior: tirando alterações menores, o esquema arquitectónico retabular manteve-se no essencial até ao último quartel do século XVII, quando se veio a definir o chamado “estilo nacional”, barroquizante, com as suas colunas de fuste torso e profusa decoração insculpida9. Ora, não parecendo haver razões estilísticas substanciais para a reforma de 1665, ela não pode ter outra origem senão a de fazer reavivar a reivindicação do estatuto régio da colegiada e a sua identificação com a dinastia dos Bragança que, aliás, à própria Coroa interessava promover10. Foi esta a narrativa que informou o programa iconográfico do conjunto de pinturas ajustadas com o pintor e frade franciscano Manuel dos Reis (n. c. 1625), cuja biografia e personalidade artística são hoje conhecidas, e presentemente conservadas no Museu Alberto Sampaio, destinadas a integrar o novo retábulo gizado pelo enxambrador António de Andrade11. Embora de qualidade plástica duvidosa, as telas revelam uma expressa intenção política, traduzindo em imagens a tópica da identificação simbólica entre D. Afonso Henriques e D. João I e, implicitamente, destes com D. Afonso VI/D. Pedro II. Não durou sequer dez anos o retábulo instalado na Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira a expensas monumentos 33 DOSSIÊ 63 3 | Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, capela-mor, 2013. de D. Diogo da Silveira. A obra de Miguel de Lescole encarregou-se, como vimos, de o apear dando origem à estrutura edificada que chegou aos nossos dias. A circunstância de se tratar de um empreendimento régio ajuda a compreender a razão por que recaiu tal encargo naquele engenheiro militar francês, cujos dados biográficos merecem ser revistos e ampliados12. Colocado na Província do Minho desde 1655, estava ao serviço em Portugal já em 164113, com uma passagem pelo Alentejo, uma ida ao Rio de Janeiro para 64 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 4 | Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, corte transversal longitudinal no sentido nascente-poente, desenho de autor desconhecido, s.d. preparar a fortificação da cidade, em 1649-165014, uma aventurosa viagem à Ilha da Madeira em 1653-1654 — no regresso foi feito prisioneiro por piratas holandeses15 — e de novo entre nós, em 1655, com destacamentos fugazes nas províncias do Algarve e de Trás-os-Montes, antes de se estabelecer em definitivo, até à data da morte, ocorrida em 1688, na vila de Viana da Foz do Lima16. As peripécias e os sucessos da Guerra da Restauração no Noroeste português, em parte reportados pelo conde da Ericeira no seu Portugal Restaurado, contaram com a presença activa de Lescole, no desenho de fortificações, na construção de dispositivos de defesa de campo, na didáctica da engenharia e da artilharia17, em obras de engenharia hidráulica e portuária18 e até na produção teórica, tendo proposto para publicação um tratado de engenharia militar, hoje perdido, mas cujos conteúdos técnicos podem, em parte, ser reconstituídos graças ao processo de avaliação ordenado pelo Conselho de Guerra, em 167019. Foi a paz de 1668 que lhe proporcionou o exercício da arquitectura, civil e religiosa, tendo sido chamado pelo arcebispo de Braga, D. Luís de Sousa, para reformar a sacristia da sé20, entregue, depois da sua morte, ao arquitecto régio João Antunes, e para a construção da Igreja de São Vítor. Foi também seu o risco para a remodelação da matriz dos Arcos de Valdevez21. Não admira, assim, o envolvimento de Miguel de Lescole na reconstrução da capela-mor da Colegiada de Guimarães. A importância da obra, numa época e num território em que escasseavam arquitectos capazes de assegurar a dignidade requerida por uma campanha de patrocínio régio, aconselhava esta escolha, não só contando com a disponibilidade de um funcionário da Coroa como com a segurança de uma sólida cultura teórica e prática, apanágio da formação ecléctica do génio militar francês. Rasgada lateralmente por amplas janelas — a questão da iluminação do interior estava bem patente nos termos do contrato de pedraria —, a capela-mor resolve a cobertura com uma bem lançada abóbada de berço de caixotões quadrados e rectangulares alternados, de molduração de filetes de meia-cana, com a aposição das armas reais ao centro. A abóbada de caixotões constituía uma importante figura do repertório construtivo de intenção clássica, introduzida em Portugal com as primeiras formas da arte do Renascimento. Até datas relativamente tardias confinou-se o seu uso a pequenos espaços, podendo assim aparecer associada a outras formas de cobertura de feição goticizante, cujas potencialidades estáticas os mestres-pedreiros melhor dominavam. Mais tarde, a abóbada de caixotões generalizou-se à cobertura integral de grandes naves, embora, por razões dos elevados custos que implicava, ela fosse de recurso mais comum em templos de patrocínio régio ou de fábrica mais rica. Vejam-se, por exemplo, os casos da Sé de Leiria, levantada entre 1559 e 1574 pelo arquitecto Afonso Álvares, e o da igreja lisboeta de São Vicente de Fora, projectada pelo sobrinho, Baltasar Álvares, com um provável concurso inicial de Juan de Herrera. Se, na catedral leiriense, a abóbada de berço de caixotões é apenas usada na capela-mor — e com a cobertura das naves feita com abóbadas de cruzaria de ogiva de nervuras de perfil simplificado —, em São Vicente de Fora aquele sistema expande-se já por toda a nave, transepto e cabeceira, como o triunfo final de um sistema amadurecido nas suas potencialidades portantes e decorativas. De qualquer modo, ele tinha-se já generalizado, sobretudo, a norte do Mondego, na segunda metade de Quinhentos, ora desenvolvido em esquemas sintéticos, ora enriquecido no desenho variado dos caixotões e na aplicação de uma profusa monumentos 33 ornamentação de motivos almofadados e de cartelas de influência flamenguizante. Na preferência do engenheiro Miguel de Lescole por este tipo de organismo confluíam, em suma, duas matrizes essenciais: uma, radicada nos exemplos clássicos aprendidos através da sua formação teórica; outra, resultante do acolhimento oportuno das tradições locais, que o tinham plenamente absorvido, e a que não será alheio o gosto particular dos cónegos da colegiada, intermediários da encomenda. A familiaridade do engenheiro com a linguagem clássica, nas poucas obras de arquitectura que se lhe conhecem, foi já oportunamente notada22, tanto para o caso de São Vítor — para onde, aliás, foi destinado um revestimento azulejar de evocação de santos mártires autóctones23, cumprindo um desiderato ideológico e político próximo do programa da capela-mor vimarenense — como para o caso da colegiada. É na conjunção de todos estes factores — a formação de um clima de exaltação nacionalista após a Restauração e assaz duradouro, a específica formação dessa típica figura do engenheiro militar seiscentista, bem como o seu comprometimento profissional com a Coroa — que se deve procurar a génese e o sentido desta obra, onde persistia o entendimento da dignidade monumental e a capacidade celebratória de uma arquitectura vazada nos princípios da linguagem clássica, que deixava as primícias do barroco confinadas aos requintes ornamentais das artes decorativas e da talha dourada. 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Miguel Soromenho Historiador da Arte Museu Nacional de Arte Antiga Imagens: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. N OTA S O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico por opção expressa do autor. 18 1 2 3 4 5 6 7 Aurélio de OLIVEIRA — “Contribuição para o estudo dos elementos arquitectónicos seiscentistas da Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada. Actas. Braga, 1981, vol. IV, separata. Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas de Guimarães. Porto: Biblioteca Pública Municipal do Porto, n.º 527. Padre António José Ferreira CALDAS — Guimarães. Apontamentos Para a Sua História. Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, 1881, vol. II, p. 18. Maria Adelaide Pereira de MORAES — Ao Redor de Nossa Senhora da Oliveira. Guimarães: ed. da autora, 1998, pp. 188 e 192. Flávio GONÇALVES — “A talha na arte religiosa de Guimarães”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada. Actas, vol. IV, separata. Maria Adelaide Pereira de MORAES, cit. supra, dá conta de mais informações sobre estas obras, transmitidas por António José de Oliveira e Lígia Márcia Cardoso. A ser verídica, esta afirmação é surpreendente, uma vez que antedata o fabrico do vitral em Portugal para o primeiro quartel do século XV, quando se cria a sua introdução em período ligeiramente posterior. Pedro Redol, por exemplo, data o seu aparecimento entre nós após o terceiro decénio de Quatrocentos, no Mosteiro da Batalha (Pedro REDOL — O Mosteiro da Batalha e o Vitral em Portugal nos Séculos XV e XVI. Batalha: Câmara Municipal da Batalha, 2003, p. 51). Nuno Vassallo e SILVA — “Quatro momentos na história do tesouro da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira”. A Colecção de Ourivesaria do Museu Alberto 19 20 21 22 23 DOSSIÊ Sampaio. Lisboa: Instituto Português de Museus, 1998, pp. 27-35; idem, ibidem, “Tríptico”, pp. 54-58. António José de OLIVEIRA — “A obra de talha da Colegiada de Guimarães (1572-1789): subsídios para o seu estudo”. Colegiada de Nossa Senhora de Guimarães. História e Património. Guimarães: Fábrica da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Oliveira, 2011, pp. 156-157. Robert SMITH — A Talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962, pp. 49-67. Em Maio de 1667 a colegiada reclamaria ao secretário do rei, António Cavide, o pagamento de uma esmola de mil cruzados prometida para um ornamento de tela — cortinas de damasco, franjadas a ouro, e uma capa de tela — (...) asi fica o altar mor da Capella Real aprefeiçoada de todo (...), Biblioteca da Ajuda, 51-X-17, fl. 260. Vítor SERRÃO — “As oficinas de Guimarães nos séculos XVI-XVIII e as colecções de pintura do Museu de Alberto Sampaio”. A Colecção de Pintura do Museu de Alberto Sampaio. Séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português de Museus, 1996, pp. 89-109 e 132. Segundo Vítor Serrão pode ser contemporâneo deste um outro ciclo pictórico, igualmente de evocação nacionalista, atribuível ao pintor Simão Álvares (idem, ibidem, p. 124). Aurélio de OLIVEIRA — Ob. cit., reuniu as notícias disponíveis à data, colhidas sobretudo em Sousa VITERBO — Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, vol. II, pp. 67 e 68, e em Cláudio de CHABY — Synopse dos Decretos Remetidos ao Extincto Conselho de Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional, 1869, vols. I, pp. 27-278, e III, pp. 316 e 317. Baseada na documentação inédita sobre a actividade de Lescole que dei a conhecer na minha tese de mestrado (Manuel Pinto Vilalobos — da Engenharia à Arquitectura. Lisboa: s.n., 1995, 2 vols., dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humana da Universidade Nova de Lisboa, texto policopiado), bem como em investigações posteriores, tenho em preparação, para publicação, a biografia deste infatigável engenheiro militar. A identificação de uma carta régia de outorga de uma pensão de cem mil réis à viúva de Lescole permite não só aclarar grande parte do seu currículo como antecipar a data da sua chegada a Portugal, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Chancelaria de D. Pedro II, Doações, L.º 64, fls. 293-295). O respectivo projecto foi enviado para Lisboa no dia 1 de Dezembro de 1649 (Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Cx. 2, doc. 124-A). Esta viagem rocambolesca consta também da carta régia de 1688, cit nota (13). Arquivo Distrital de Viana do Castelo (ADVC), Registo de Óbitos — Santa Maria Maior 1651-1701, fl. 168, in António Matos REIS — “Miguel de Lescole, Engenheiro e Arquitecto”. Estudos Regionais. Viana do Castelo: Centro de Estudos Regionais, s.d., vol. V, p. 59, pp. 53-59. Dois exemplos flagrantes são as alegações do empreiteiro das praças de Monção e de Caminha, João Alves do Rego, em 1678, para obtenção de aumento de soldo, justificadas num certificado passado por Miguel de Lescole, presume-se que seu mestre, em que gabava os conhecimentos de estereotomia, de aritmética e de matemática do pedreiro, bem como o seu conhecimento dos livros de Euclides, além da se mostrar capacitado para o desenho de fortificações (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, Maço 40A, consulta de 3 de Março de 1681); ou o eco das suas lições de artilharia de que sobrevivem duas sebentas, uma datada de 1676, que se conserva na Biblioteca Nacional de Portugal (Secção de Reservados, Cod. 7660), compilada por Sebastião de Souza de Vasconcelos, e outra conservada no Arquivo Histórico Militar (Cf. Henrique de Campos Ferreira LIMA — “Um tratado de artilharia manuscrito do séc. XVII, adquirido pelo Arquivo Histórico Militar”. Revista de Artilharia. Lisboa, Jul. 1931, 2.ª série, ano XXVIII, n.º 73, pp. 5-19). Há notícia das suas intervenções em obras de regularização de leitos e construção de cais e paredões nos rios Lima (ANTT, Conselho de Guerra, Livro de Registo de Patentes, Alvarás, Cartas e Ordens, nº 39, fl. 198v.), Mondego (Sousa VITERBO — Ob. cit., p. 68) e Douro ( cfr. Miguel SOROMENHO — “Engenheiros, ‘práticos’ e curiosos na barra do Douro em finais de Seiscentos”. Museu. Porto, 2003, IV Série, nº 12, ob. cit., pp. 65-76). ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, Maço 30, Consulta de 11 de Agosto de 1670. Uma carta do Padre Inácio de Carvalho ao Chantre da Sé refere explicitamente a presença assídua do arcebispo de Braga D. Luís de Sousa, com Miguel de Lescole, nas primeiras obras de reedificação da sacristia catedralícia, interrompidas pela morte do prelado e recomeçadas, mais tarde, com risco de João Antunes (Biblioteca da Ajuda, 54-VIII-6, n.os 151 e 151a). Paula CARDONA — “A actividade artística das confrarias no Vale do Lima”. Monumentos. Dossiê: Igreja Matriz de Viana do Castelo. Lisboa: Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2005, n.º 22, p. 142. Rafael MOREIRA — “Miguel de Lescole”. Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1989, pp. 259 e 260. Flávio GONÇALVES — As Obras Setecentistas da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda de Peniche e o seu Enquadramento na Arte Portuguesa da 1.ª Metade do Século XVIII. Porto: Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras do Porto, 1984, pp. 259-262. Concebido como um pequeno templo à antiga nas suas citações explícitas, São Vítor apresenta, também, o mesmo sistema de cobertura de abóbada de caixotões, ensaiado com êxito na colegiada onze anos antes. 65 66 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê André Soares em Guimarães EDUARDO PIRES DE OLIVEIRA Os inícios do rococó do Minho estão umbilicalmente ligados à ida do arcebispo D. José de Bragança para a cadeira arcebispal de Braga, a mais antiga e importante diocese portuguesa. D. José era um homem muito compenetrado, muito senhor de si próprio, muito cioso das suas origens familiares; disse um cronista da época, que foi mais príncipe do que arcebispo1. A aprendizagem na Universidade de Évora2 deu-lhe uma boa formação intelectual, que do ponto de vista artístico deverá ter sido complementada com os conhecimentos que muito possivelmente obteve com o compulsar da imensa coleção de gravuras do seu irmão, o rei D. João V. Poderá ter sido aí, talvez, que recebeu os primeiros contactos com novas formas de sentir e de desenhar. Mas como as gravuras têm apenas duas dimensões e estavam impressas, na sua esmagadora maioria, a preto e branco, dever-lhe-á ter sido muito mais difícil compreender a arte de conceber espaços e pensar que os mesmos poderiam ter outras cores bem diferentes das que o barroco “nacional” ou “joanino” propunham, o espesso ouro, ocres e outras cores quentes, para além de um ou outro marmoreado, embora a delicadeza de uns tantos desenhos pudesse levar a pressupor cores muito leves, como os rosas e azuis-celestes. Nos primeiros anos da afirmação do novo gosto não deveria existir uma aceitação clara do rococó. A formação não era essa, a sociedade portuguesa ainda o não intuíra; a verdade é que talvez se possa dizer que nunca o compreendeu na sua dimensão total. A esse nível é muito sintomático que, por exemplo, em 1756, na arrematação para a talha que iria revestir a nova igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Ponte de Lima, não tenham sido os mesários, mas sim os artistas arrematantes, a chamar a atenção para o programa que estava a ser proposto, que era ainda conforme o velho gosto. Uma das maiores dúvidas que se pode colocar em relação aos inícios do rococó no Minho tem sobretudo que ver com a cidade onde poderão ter sido feitos os primeiros ensaios da nova sensibilidade: se em Braga, se em Guimarães. E a questão coloca-se porque na segunda metade da década de 1740 não há nenhuma obra municipal relevante de arquitetura, embora se saiba que Braga era um senhorio eclesiástico e que em Guimarães, apesar de o não ser, dificilmente a vereação teria capacidade para aceitar obras que não estivessem conforme o novo gosto proposto pelo arcebispo. D. José de Bragança chegou a Braga em 1741. A sua nomeação, decidida em 1738, teve o intuito de dominar a fortíssima influência dos cónegos bracarenses que gastavam impressionantes quantidades de dinheiro na sua sé catedral em obras muito mal orçamentadas. Autoritário, o arcebispo conseguiu no ano seguinte “meter na cadeia” a maior parte dos membros do cabido. Não contava, porém, com a força, organização e capacidade de movimentação dos cónegos, nem com a insensatez do seu principal valido, João Lobo da Gama, que levaram a que o rei, seu irmão, o mandasse sair de Braga para uma distância mínima de três léguas, um exílio mascarado de visita pastoral que já deveria ter sido feita, obrigação que não parecia ter vontade de cumprir. D. José saiu de Braga, no dia 10 de janeiro de 1746, em direção a Guimarães. No alto da Falperra, na separatória dos dois concelhos, teve a recebê-lo todas as Os inícios do rococó do Minho estão ligados à ida do arcebispo D. José de Bragança para a cadeira arcebispal de Braga, a mais antiga e importante diocese portuguesa. Em Guimarães, o novo gosto encontra-se presente no Convento de Santa Rosa de Lima, na Casa dos Lobo Machado, na Casa dos Coutos e, principalmente, na Igreja dos Santos Passos, sendo atribuída a André Soares a autoria de várias, ainda que parciais, intervenções rococó realizadas nesses imóveis vimaranenses em meados do século XVIII; a atribuição da autoria de algumas dessas intervenções carece ainda, contudo, de prova documental. monumentos 33 forças vivas deste concelho. Chegado a esta cidade, e ao contrário do que fizera em Braga, aceitou ir à principal igreja, à colegiada, onde foi celebrado um solene te-deum. Em Braga, a câmara municipal não avançara com nenhuma obra de peso durante a década de 1740. Em contrapartida, o arcebispo, fosse para marcar uma posição compatível com a qualidade do seu sangue, fosse por qualquer outra razão, fez construir para si um novo palácio, na continuidade do que herdara dos seus antepassados arcebispos. Este palácio teve, porém, de marcar de forma bem visível a sua posição, a sua origem real. E fê-lo não só voltando a fachada para uma praça até aí sem qualquer expressão social — criando assim uma nova centralidade urbana — mas, também e sobretudo, levantando um edifício que mostraria uma nova forma de desenhar uma fachada. O resultado obtido mostra-nos uma obra ainda muito hesitante, entre o desenho de janelas encimadas por dintéis-sanefas de gosto ainda joanino e uma série de pormenores dispersos já bem ao gosto rococó. A pessoa escolhida para conceber o novo palácio deverá ter sido André Soares, como Robert Smith muito bem intuíra3. Não se sabe, porém, a data em que começou a obra; sabe-se apenas que os trabalhos de conclusão foram muito acelerados com o regresso do arcebispo a Braga, em agosto de 1750, após a morte do rei, seu irmão, tendo o palácio sido inaugurado no ano seguinte. D. José de Bragança permaneceu dois anos em Guimarães, durante os quais aceitou hospedar-se em casa de um nobre local, Tadeu Camões. Teve, também, uma intensíssima atividade pastoral, social e cultural, chegando mesmo a comprar uma casa que depois ofereceu ao seu valido, a Casa dos Coutos. Talvez lembrando-se de sua mãe, uma das obras a que mais se devotou foi a renovação dos conventos femininos, quer alteando os muros das suas cercas, quer intervindo na escolha do desenho da talha do Convento do Carmo (talvez concebida pelo entalhador executante, José Álvares de Araújo), quer renovando outras dependências. A sua intervenção no conjunto da talha da igreja conventual do Carmo, embora anterior à sua chegada a Guimarães4, é extremamente significativa porque deverá ter passado pela reformulação do desenho apresentado a concurso e validado por um primeiro contrato notarial; a verdade é que não se encontra outra razão plausível para a obrigatoriedade de realização de um novo contrato com o entalhador escolhido, que era, aliás, o seu preferido5. Efetivamente, olhando todo aquele conjunto de talha, percebe-se em alguns momentos, sobretudo nos retábulos laterais e nas sanefas, que o ornato assimétrico já começa a fazer parte do léxico ornamental da talha minhota. A intervenção do arcebispo na obra do Convento de Santa Rosa de Lima foi muito além da arquitetura. Criado em 1630, inicialmente como um recolhimento voluntário de mulheres piedosas, evoluiu meio século mais tarde para um conservatório de religiosas profes- DOSSIÊ sas da Terceira Ordem de São Domingos, passando a ocupar a casa da albergaria de São Roque6. Em 18 de maio de 1747, por ordem do provincial dominicano, as recolhidas demitiram-se daquela sujeição e requereram ao arcebispo autorização para ficar sob a sua jurisdição O local onde o convento estava implantado era muito problemático, bem longe das usuais praças. Estava situado numa rua estreita, ocupada do lado oposto por edifícios bastante altos. A colocação longitudinal do templo rasando a via, dentro do que era tradicional em igrejas de conventos femininos, permitia resolver esta situação com facilidade, embora criasse uma rua, quase túnel, que beneficiava, porém, de um progressivo alargamento da via. Contudo, não resolvia a questão da colocação da nova portada principal, tradicionalmente colocada no enfiamento das paredes do templo, nem facilitava a localização do mirante, que deveria dar para um espaço amplo e aberto para 67 1 | Guimarães, Convento de Santa Rosa de Lima, vista do muro de ligação do mirante à igreja, fotografia de Eduardo Pires de Oliveira, 2009. 68 2 | Convento de Santa Rosa de Lima, frontão decorativo com a pedra de armas do arcebispo, fotografia de Eduardo Pires de Oliveira, 2009. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê que as reclusas pudessem, assim, beneficiar da altura da sala colocada na cota mais elevada; era, porém, o terreno disponível. A solução encontrada foi a mais óbvia: recuar a entrada principal, criando um pátio delimitado exteriormente pelas paredes extremas do templo e do mirante, algo que, por exemplo, também se pode ver em Braga, no antigo Convento da Conceição, embora neste caso a solução fosse mais simples pois não só o que estava em causa era apenas a igreja, como o espaço público era muito mais amplo. Acrescia, ainda, que os edifícios que o Convento da Conceição defrontava eram poucos e muito mais baixos. Ou seja, era, de certa forma, um espaço que tinha uma planta em “U”, algo que foi corrente na arquitetura civil, sobretudo em edifícios de grandes dimensões, como nalguns solares (ex.: Casa de Vale de Flores, ou Casa de Infías, em Braga) ou no novo palácio de D. José de Bragança. Em Santa Rosa de Lima o problema, porém, subsistia: o muro que ligava o mirante à igreja teria de ser muito alto, de forma a atenuar a devassa que pudesse ser exercida a partir dos prédios existentes do outro lado da rua. Assim, a solução escolhida foi tão simples quanto genial: uma forte e muito modulada cornija descendo vertiginosamente desde a parte inferior do último piso do mirante até ao portão principal, elevando-se aqui um pouco, de forma a criar um frontão decorativo, para depois descer ligeiramente e logo voltar a subir até uma cota paralela, a da linha de empena do templo. Sobre a porta colocava-se a pedra de armas do arcebispo. A opção por esta solução foi magistral. Não se tratava de uma simples fiada de pedra com um desenho bem determinado e só por si magnífico, havia também aqui uma modulação muito forte, formando a parte superior como que um anteparo. Além disso, era uma linha muito grossa porque recoberta por uma fiada de pedra de cantaria. A porta, embora alta, era singela. O dintel era sobrepujado por uma leve sanefa de pedra constituída por finos motivos marinhos, semelhantes a algas, tendo ao meio uma concha muito ampla, cuja ponta cai voltada obliquamente para poente; um pouco acima foi colocado o brasão do arcebispo D. José, o novo patrono e doador do dinheiro necessário para a realização desta obra. Esta pedra de armas liga-se à cornija através de um elemento pétreo também modulado em diversos volumes. É precisamente este portal que, do ponto de vista formal, nos permite indicar o nome de André Soares como autor desta parte do convento. É um André Soares ainda no início da sua carreira, embora já com 27 ou 28 anos, porque esta obra foi patrocinada e realizada durante a estadia vimaranense do arcebispo, em 1747 ou 1748, portanto. Por um lado, há aqui uma enorme ousadia ao propor um tal volume, tratado de uma forma que mais parece uma escultura do que uma parte da arquitetura de um edifício. Por outro, a pedra de armas é semelhante às duas que estão colocadas no novo palácio bracarense, embora nesta obra vimaranense todos os motivos que a ornam sejam ainda organizados de forma simétrica, enquanto nas de Braga o pendão já cai obliquamente, havendo também alguns pormenores decorativos assimétricos no interior da peça. Esta cornija, em Santa Rosa de Lima, é muito forte e movimentada, mas não tanto como a que André Soares concebeu para o cunhal do Convento dos Congregados, em Braga. O elemento que une a pedra de armas à cornija pode ser visto, exatamente no mesmo local, noutra obra sua, a Casa da Câmara de Braga, esta documentadamente da sua lavra. Os motivos de- 3 | Guimarães, Casa dos Coutos, fachada principal, 2013. monumentos 33 corativos em forma de alga irão encontrar-se depois quer na porta da Casa dos Coutos, em Guimarães — casa que o arcebispo comprou, em que fez alterações, mas onde nunca chegou a viver, pois entretanto foi aconselhado a continuar a visita pastoral, o que constituía uma sua obrigação, porque já se encontrava em Guimarães há cerca de dois anos e esta cidade não era a cabeça do arcebispado —, quer em obras de talha, sobretudo no retábulo-mor da igreja do Convento de Tibães, obra também documentadamente sua. O mais interessante elemento é, contudo, a grande concha aberta que pende sobre quem entra, concha que já usara, embora de forma muito mais aberta e menos interessante do ponto de vista plástico, no portal da capela do palácio bracarense do arcebispo; depois utilizou de forma muito nervosa e esguia — uma peça belíssima — no portal do Palácio do Raio e, ainda, no da Capela de Santa Maria Madalena da Falperra, esta quase dupla e com uma enorme volumetria, semelhando a talha gorda que iria espalhar por múltiplos retábulos minhotos. Mas, da mesma forma que aqui se veem estas ousadias a remeter-nos para um rococó que se estava a adivinhar, há outros elementos que pertencem ainda a léxicos anteriores: as volutas que encimam a porta, sobrepujadas por meninos de bochechas gordas, motivo recorrente em gravuras e depois aproveitado na arquitetura e na talha minhotas, mesmo vimaranenses, como é o caso do portal do Convento do Carmo; a sanefa que envolve a parte superior da porta, que DOSSIÊ embora decorada com motivos trabalhados de forma já rococó ainda se revê, como as do último piso do novo palácio bracarense, no gosto joanino. Tem sido referida a hipótese da Casa dos Lobo Machado ter sido concebida por André Soares mas, pese o excelente estudo recente de Fernando Conceição7, pensamos que haverá ainda muito trabalho a fazer para se poder tomar uma decisão, que dificilmente poderá ser definitiva. Mas é perfeitamente natural que, devido à talha em pedra que a reveste, se possa apontar a existência de reflexos de dois edifícios “soarescos” bracarenses e quase simultâneos, o Palácio do Raio e a Capela de Santa Maria Madalena da Falperra. A outra obra vimaranense de André Soares é a Igreja dos Santos Passos, cuja autoria é indiscutível, por se encontrar bem documentada, sabendo-se também que, em virtude de não ter querido receber dinheiro pelo seu trabalho, lhe foi oferecido um tecido — (...) por trinta covados de crepe e forro que se lhe deu em agradecimento da factura do dito risco por não querer levar por elle dinheiro (...)8 —, que custara 13$800 réis. Os problemas económicos, sempre tão presentes nas obras portuguesas, impossibilitaram que esta obra pudesse ser hoje ainda mais interessante, pois a arquitetura demorou demasiado tempo a ser concluída, o que levou a que a talha fosse realizada em tempos em que o rococó já deixara de ser moda. Ou seja, perdeu-se a unidade. E a verdade é que havia todas as condições para se poder estar perante uma obra excecional. Expliquemo-nos: 69 4 | Guimarães, Casa dos Lobo Machado, fachada principal, 2013. 70 5 | Guimarães, Igreja dos Santos Passos, fotografia de Antero Seabra, [1863]. 6 | Igreja dos Santos Passos, fotografia de Manoel Carneiro, [1905]. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê monumentos 33 DOSSIÊ 71 9 | Igreja dos Santos Passos, vista geral do exterior, 2013. 10 | Igreja dos Santos Passos, pormenor da escadaria de acesso à igreja, 2013. 11 | Igreja dos Santos Passos, vista do interior, 2013. 7 | Egreja de Nossa Senhora da Consolação em Guimarães [Igreja dos Santos Passos], desenho de Nogueira da Silva, gravado por Coelho, in Archivo Pittoresco, vol. 7, 1864. 8 | Igreja dos Santos Passos, planta do primeiro pavimento, desenho de autor desconhecido, 1958. 72 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Havia uma capela velha dedicada aos Santos Passos que estava situada fora das muralhas, junto do pequeno ribeiro que atravessa Guimarães. Por várias razões encontrava-se, em 1767, em condições deploráveis, (...) o corpo da sua capella inteiramente aberto da parte do Norte (...)9, havendo necessidade de uma intervenção urgente. Em vez de tomar a decisão de mandar repará-la, os mesários resolveram avançar para uma obra nova, tendo o cuidado de procurar previamente e (...) com diligencia e actividade architecto perito que o fizesse, escolhendo o famozo curioso na arte de architectura Andre Ribeiro Soares da Silva, da Cidade de Braga, que fizerão vir a esta capella ver o citio em que se pretendia formalizar a sumptuoza obra para idear o mesmo risco e planta que vindo, e vendo tudo, tomou a incumbencia de o fazer (...)10. A opção de André Soares foi essencialmente cenográfica. Desviou a localização da capela, originalmente junto do riacho, para uma pequena elevação artificial. Se por um lado a protegia de futuras cheias, por outro criava um novo ponto de centralidade fora de muralhas porque o novo templo ao dominar o espaço afrontava diretamente quem saía da cidade, dado que ficava com uma grande visibilidade. Ou seja: era uma solução que, de certa forma, repetia a sua primeira obra, o palácio de D. José de Bragança, também colocado em cota ligeiramente superior à da rua e à da praça defronte. A planta do templo, com a parte central avançada — a relembrar a Igreja do Colégio, em Salzburgo11, de Fischer von Erlach, ou a da fachada da abadia bávara de Weingarten12 e, sobretudo, a da igreja do convento de Ochsenhausen13, ou o santuário de peregrinação de Wies14, mas com esculturas colocadas sobre pilares nas partes mais altas da cornija, memória possível das torres voluntariamente esquecidas, ou reminiscência da Igreja da Lapa, uma obra sua em Arcos de Valdevez —, é já por si dinâmica, a qual foi acentuada pelo jogo da escadaria de degraus que se vão progressivamente afunilando até à dimensão da largura da porta, como que a convidar os crentes a entrar, solução que já utilizara, mas com as colunas ou outras formas similares, nos edifícios do Palácio do Raio, da Casa da Câmara e da capela de Nossa Senhora da Torre e com lances de escadaria na capela da Falperra, embora neste caso com um desenho incomparavelmente mais dinâmico. O átrio assim criado, se por um lado originava um novo espaço, fazia, por outro, salientar a própria igreja que ficou situada alguns metros atrás. Este espaço avançado permitiu a criação de uma zona prévia à nave, como que de acolhimento, sob o coro-alto. A solução da fachada saliente era outra fórmula que lhe era querida, pois já a utilizara dezasseis anos antes na fachada e no corpo que acrescentou à antiga capela de Santa Maria Madalena da Falperra, tendo repetido alguns anos mais tarde na Igreja da Lapa, em Arcos de Valdevez. Esta ideia teve sucesso porque depois viria a ser utilizada quer por Carlos Amarante na nova igreja do Hospital de São Marcos, em Braga, quer pelo autor da igreja da Peregrina, em Pontevedra, na Galiza15. Ao mesmo tempo criava na varanda uma espécie de púlpito ou de altar campestre (a igreja situava-se, relembramos, na periferia da cidade), em que o celebrante ou o pregador era facilmente visto por todos os crentes ou ouvintes. Se olharmos com alguma atenção para a fachada, veremos que André Soares continua aqui com o fortíssimo corte com o rococó que patenteava sobretudo na sua obra de talha e que se mantém fiel nas obras de arquitetura ao sentir tardobarroco que lhe vinha desde o edifício da Casa da Câmara, de Braga, e que continuou pelo desenho de fontes e capelas do Santuário do Bom Jesus do Monte, da fachada da igreja do convento bracarense dos Congregados e, sobretudo, pela obra excecional que é a Capela dos Monges, no interior deste mesmo convento. O desenho das janelas exteriores e, sobretudo, o das portas que dão acesso ao coro-alto desta Igreja dos Santos Passos expressam bem este gosto. A simplicidade decorativa, a quase ausência de ornatos — muito pontuais, apenas a ladear a janela oblonga situada entre a porta principal e a varanda; os capitéis são também bastante simples e de desenho tradicional —, não significa o aproximar de uma nova forma de pensar a arquitetura, mas sim o aprofundar dos valores do tardo-barroco que em Portugal e na Europa foram cultivados simultaneamente16. Aqui, André Soares está sobretudo a continuar os estudos que desenvolvera sobre os volumes e o espaço e que atingiram o cume na referida Capela dos Monges. A planta do templo não é completamente retangular, sendo os cantos exteriores da fachada ligeiramente curvos. A nave é bastante comprida, tendo, porém, os quatro cantos ligeiramente arredondados. A talha que recobre os altares laterais não é do mesmo período da arquitetura. A bênção final do templo ocorreu apenas em 178417. Em 1862, ou 1863, começaram a ser feitas várias alterações na fachada, tendo sido construídas as torres, da autoria do portuense Pedro Ferreira. Seguiram-se, mais tarde, a colocação do relógio e a dos azulejos. Estas obras alteraram gravemente o projeto original, o que provocou a perda da forte tensão concebida por André Soares, um desenho que hoje podemos ainda conhecer quer devido à gravura que nos foi deixada por Vivian quer, sobretudo, pela fotografia de Antero Seabra, datada precisamente destes anos, bem como pela gravura de madeira feita a partir desta foto. Eduardo Pires de Oliveira Historiador da Arte epoeduardo@gmail.com Imagens: 1, 2 e 5: autor; 3, 4 e 8 a 11: IHRU/ Sistema de Informação para o Património Arquitetónico; 6: Associação para o Estudo, Defesa e Divulgação do Património Cultural e Natural/Espólio Manoel Carneiro. monumentos 33 DOSSIÊ N OTA S 1 2 3 4 5 6 7 Inácio José PEIXOTO — Memórias Particulares. Braga: Arquivo Distrital de Braga, 1992. Maria do Rosário Castiço de CAMPOS — “D. José de Bragança: estadia e educação no ‘colégio e universidade’ de Évora: subsídios para a história da educação do século XVIII em Portugal”. Congresso de História no IV Centenário do Seminário de Évora. Actas. Évora: Instituto Superior de Teologia/Seminário Maior de Évora, 1994, vol. 2, pp. 347-359. Robert SMITH — André Soares. Arquitecto do Minho. Lisboa: Livros Horizonte, 1973. Os contratos para a sua execução datam de 1 e 22 de junho de 1746. Estes foram dados a conhecer por António José OLIVEIRA; Lígia Márcia Cardoso Correia de Sousa OLIVEIRA — “Artistas bracarenses que trabalharam em Guimarães e seu termo no século XVIII”. Minia. Braga: s.n., 1997, 3.ª série, n.º 5, pp. 178-180; António José OLIVEIRA — “A actividade de artistas portuenses em Guimarães (1685-1768)”. Museu. Porto: s.n., 2002, 4.ª ª série, n.º 11, pp. 117-197 (páginas citadas 128-130); António José OLIVEIRA — “A talha e o cadeiral da Igreja do Carmo de Guimarães (1723-1754)”. Museu. Porto: s.n., 2003, 4.ª série, n.º 12, pp. 93-118. Arquivo Distrital de Braga (ADB), Registo Geral, vol. 121, fls. 534v.-536, (…) hum Jozeph Alvares de Araujo, dessa cidade, de quem ouvi dizer que fazia algumas obras para Vossa Alteza Sereníssima (…), com a data de 5 de julho de 1751. Maria Helena Matos Ribeiro de ABREU — O Convento de Santa Rosa de Lima em Guimarães. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 2001; Alexandra PEDRO — “Do Convento de Santa Rosa de Lima à Igreja Paroquial de São Sebastião”. In José Paulo Leite de ABREU (ed. lit.); Isabel Maria FERNANDES (ed. lit.) — Igreja Paroquial de São Sebastião, Guimarães. Braga: Instituto de História e Arte Cristãs, 2010, pp. 14-34. Ed. coordenada pelo Museu Alberto Sampaio. Fernando CONCEIÇÃO — “A Casa dos Lobo Machado: uma perspectiva histórica”. A Casa dos Lobo Machado: de Espaço Privado a Espaço de Interesse Público. Guimarães: Associação Comercial e Industrial, 2011, pp. 18-47. 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 Arquivo da Irmandade dos Santos Passos (AISP), Livro das Obras da Igreja dos Santos Passos, fl. 15v. AISP, Livro das Obras da Igreja dos Santos Passos, fl. 15v. AISP, Livro das Obras da Igreja dos Santos Passos, fl. 15v. Uma boa gravura desta igreja é a de Benjamim Kenckel, Prospeckt der Kollegienkirche in Salzburg: Alfred SAMMER — J. B. Fischer V. Erlach: Akzentuierte Dokumentation der Sakral — Architectur in seinem 275.Todesjahr. Viena, 1999, pp. 94-95. Otto BECK — Die Basilika zu Weingarten. Regensburg: Verlag Schnell & Steiner, 1997. Otto BECK — Pfarrkirche Sankt Georg Ochsenhausen. Regensburg: Verlag Schnell & Steiner, 1998. Georg KIRCHMEIR; Margret HESENMULLER — The Wies. Pilgrimage church of the “Scourged saviour”. Lechbruck: Verlag Wilhelm Kienberger, s.d. Maria del Cármen FERNÁNDEZ ARRUTI — La capilla de Nuestra Señora del Refugio La Divina Peregrina. Estúdio histórico-artístico. Pontevedra: Diputacion Provincial, 1989. Julio SEOANE — La política moral del Rococó. Madrid: A. Machado Libros, 2000. ADB, Registo Geral, vol. 225, fl. 309, Provisão de licença para se benzer a Capela ou Igreja dos Santos passos da vila de Guimarães, a favor do Reverendo tesoureiro Mor da Colegiada da mesma vila, com a data de 27 de novembro de 1784. Sobre este templo e a intervenção de André Soares vejam-se os nossos textos — “Os alvores do rococó em Guimarães”. Os Alvores do Rococó em Guimarães e Outros Estudos sobre o Barroco e o Rococó no Minho. Braga: Edições da Associação Portuguesa de Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Braga, 2003, pp. 15-61; André Soares e o Rococó do Minho. Porto: s.n., 2011, vol. 1, pp. 381-385; vol. 2, pp. 349-366; vol. 4, pp. 78-83. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, texto policopiado. 73 74 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Paço dos Duques de Bragança em Guimarães: alguns vetores de leitura MARIA MÓNICA BRITO 1. Os indecifráveis segredos da Esfinge1 O palácio erigido em Guimarães por D. Afonso (1370-1461)2, filho bastardo de D. João I e fundador da Casa de Bragança, é hoje o segundo palácio nacional mais visitado do território português: no ano de 2011 recebeu pelo menos 347 mil pessoas, número só superado pelo Palácio Nacional de Sintra3. A par do evidente deslumbramento que provoca em milhares de pessoas, paira no ar, também, o natural embaraço com a verdade e com a integridade deste edifício: sendo a sua imagem atual fruto de diversas intervenções humanas polémicas segundo o senso comum hodierno, o segredo do mistério que o envolve pode ser minorado por um juízo que passe por um olhar sobre a globalidade da sua fortuna histórica, pelo que, no presente artigo, tentaremos expor as principais conclusões dessa atenção sobre o edifício, segundo os principais vetores de leitura que emergiram na nossa investigação e que não podem deixar de ser, aqui, sumariamente apontados. 2. A fundação de um palácio magnificente por um filho bastardo de D. João I Do ponto de vista da sua fundação, a construção de um palácio magnificente4, em Guimarães, é um eco da política de afirmação social de D. Afonso, com vista a subalternizar a sua bastardia. No âmbito da história da arquitetura civil, ele é a imagem acabada da mudança estrutural ocorrida na mentalidade da nobreza de toda a Europa ao longo do século XV, caracterizada por José Custódio Vieira da Silva5 como uma nova preocupação com a comodidade, o luxo arquitetónico e decorativo das habitações. Mesmo tendo em conta o mistério que envolve o verdadeiro fácies do edifício medieval, a grandiosidade da escala da sua planta, comprovada por fiadas de alvenaria não aparelhada, idêntica em todo o seu primeiro registo, impõe-se como fator imediatamente cativante naquela obra de arquitetura, revelando a índole do seu primordial mentor. D. Afonso, um nobre viajado, comprometido com a ambiência social, cultural e mental da Europa do seu tempo6, construiu um edifício monumental de planta quadrangular, hoje com quatro torreões de ângulo, elevados todos à mesma altura pelos seus restauradores, urgindo por isso analisá-lo à luz de metodologias próprias de arqueologia da arquitetura. Tal como pudemos documentar, através de um importante levantamento datado de 1816, procedente do Exército7 ali aquartelado durante todo o século XIX, corroborado pelo Dicionário Geográfico, datado de 17588, o edifício foi provido de um pátio central que exibiria uma galeria porticada de quatro naves9, formadas por arcos quebrados, e (...) barandas de excelente jaspe (...)10. A novidade que trouxemos à luz com esta planta, em 2003, veio a ser suplantada com a publicação da mais antiga representação da vila de Guimarães (ver fig. 2, na página 9 desta mesma edição), presente na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, por Mário Gonçalves Fernandes11, que, tal como aquele levantamento militar, apresenta as quatro galerias do pátio bipartidas por aquilo que aparenta ser mais um corredor coberto, com estrutura quadrada central, porventura um O Paço Ducal de Guimarães é um monumento único, cuja história está imersa em dúvidas resultantes não só da exiguidade de fontes disponíveis, fruto da destruição, com o terramoto de 1755, do arquivo da casa ducal que o viu nascer, mas também devido a um processo de descaracterização arquitetónica, por ter sido manancial de pedra para novas construções na Idade Moderna, modificado sob critérios de utilidade estratégica pelos engenheiros militares ao longo do século XIX, e, por fim, por ter sido restaurado sob o regime salazarista segundo práticas reconstitutivas. Apresentam-se aqui alguns vetores de leitura sobre a metamorfose da “sua imagem”. monumentos 33 DOSSIÊ 75 1 | Guimarães, Paço dos Duques, Planta do Paço Velho da Senhora Rainha Colocado na Villa de Guimarens, desenho de autor desconhecido, 17 de julho de 1816; planta do levantamento efetuado pelo Exército, que constitui um raro testemunho da existência de uma galeria porticada no interior do pátio medieval. 76 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê fontanário, representados segundo este autor entre 1562 e 1570. O palácio possui ainda um espaço espiritual, tão próprio do despertar da devotio moderna, ao qual se acede por um portal de arcos em ogiva com capitéis vegetalistas sobre colunas de mármore, e onde a luz verticalizante entra por entre dois janelões rendilhados de estilo “batalhino”. A escala humana é reposta por dois balcões que permitem aceder à capela de modo privativo. Desta não há, contudo, testemunhos senão a partir de 1470, como veremos12. Na verdade, a ligação de D. Afonso a Guimarães remonta a 1409, data em que D. João I lhe faz a doação de Fão, com todas as suas rendas, direitos e jurisdições, declarando que (...) não embargava que a dita jurisdição fosse de Guimarães, e de seu termo (...)13. Por outro lado, a sua comitiva é documentada na vila desde 1402, data em que é inventariada por João Lopes de Faria a presença em Guimarães de um (...) carpinteiro do Conde (...)14. Tudo indica, no entanto, que a construção do paço estará associada às cláusulas do contrato do seu segundo casamento, em 1420, com D. Constança de Noronha15, segunda (...) associação a uma família de igual estirpe, que gravitava na órbita dos favores régios (...)16. As terras do termo reguengo de Guimarães constituíram penhor da parte do dote de nove mil dobras, acordado para as núpcias com esta nobre senhora, a quem, segundo as cláusulas do seu contrato se obrigava a (...) garantir guarida de casa e de seu corpo como cumpre a mulher que com o Conde caza (...)17. De facto, a lista de personagens presentes na vila, ligadas por laços de vassalagem ao conde de Barcelos, multiplica-se na década de vinte do século XV e, em 1424, encontrava-se em Guimarães um (...) Veedor das Obras do Conde D. Afonso de Barcelos (...)18, Joham 2 | Paço dos Duques, Planta do Perfil, Que Mostra o Lado Interior e Alçado do lado do Norte, desenho de Luis Ignacio de Barros Lima, s.d.; alçado do levantamento efetuado pelo Exército, no qual se vislumbra o perfil dos arcos que adornam o pátio. Steuez. Por outro lado, a primeira prova da existência da realidade construtiva paçã remonta a 7 de julho de 1428, data em que D. Afonso teria assinado nela, o instrumento público de justificação dos seus filhos, D. Afonso, conde de Ourém, e D. Fernando, conde de Arraiolos, fruto do primeiro casamento, em 1401, com a filha do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, D. Beatriz19. Os contactos com a cultura material da Europa do seu tempo suscitam diversas opiniões acerca das fontes de inspiração que D. Afonso terá querido reproduzir no seu palácio. Desde a defesa da influência francesa a partir da ligação ao seu cunhado, Filipe, O Bom, da Borgonha, à prevalência do fascínio pela vida palaciana de Itália20 — como acabou por defender o seu restaurador, o arquiteto Rogério de Azevedo — as abordagens desta problemática carecem, porventura, do aprofundamento da destrinça do que formalmente se reporta ao seu restauro salazarista e o que pertence, deveras, à sua fundação medieval. O (...) mestre francês Antom (...)21 é o nome em torno do qual esta problemática é encetada por aquele que foi o sustentáculo historiográfico dos primeiros projetos de restauro da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), Alfredo Guimarães22. Este, em 1930, introduzia (...) hesitante, pela falta de documentos concretos (...)23 a atribuição da autoria da obra a este nome, tese que fez escola até hoje, baseada apenas na sua referência como testemunha, não da sua proveniência, num documento de data avançada — 146024. Para José Custódio Vieira da Silva podemos vislumbrar a existência de grandes afinidades deste palácio com o modelo mental francês, concretamente com o paço dos reis de Maiorca, em Perpignan (construído entre 1262 e 1330), que reproduz a tipologia do monumentos 33 DOSSIÊ 77 3 | Ante-projecto do Q.el de Guimarães. Esboceto da Fachada d’Entrada, desenho aguarelado de J.C. Chelmichy, 1870, projeto revivalista romântico nunca realizado. palácio dos Valois, figurino muito propagado naquele tempo25. Segundo o mesmo autor, esta questão deve ser analisada sob a perspetiva dos contactos de D. Afonso V com a Catalunha e a França, atestados na sua crónica, e onde, desde o século XIII, se operava uma transformação profunda dos castelos e palácios26. A observação de um alçado levantado pelo Exército do início do século XIX27 revela que a exuberância da escala do Paço dos Duques contrasta com uma sobriedade de formas, com paralelo no Gótico Mendicante, patente nas arcarias da galeria porticada sem qualquer decoração ou suportes intermédios. Curiosamente, os duques tinham uma ligação privilegiada com a espiritualidade franciscana, de que o próprio palácio foi palco pela ação caritativa da duquesa, até à sua morte com fama de santidade, em 1480. Esta ligação pode ser comprovada não só pelo facto de D. Constança ter envergado o hábito da Ordem Terceira de São Francisco, como pela ação mecenática de D. Afonso, duque de Bragança, a partir de 1449, apondo o seu brasão de armas no fecho da abóbada da capela-mor da Igreja de São Francisco de Guimarães, “guarida” do corpo que se comprometera a providenciar para sua esposa28. 3. Quem terminou o Paço Ducal? As fontes documentais aconselham alguma apreensão relativamente à identificação do paço como obra acabada do primeiro duque de Bragança. Segundo uma tradição cristalizada e exemplificada por Francisco Xavier Craesbeeck, (...) o palácio ducal, fundado pello infante D. Afonso a dispensa de seo pai, El Rei D. João 1.º, cuja morte o deixou imperfeito, disendo o Infante a quem lhe perguntou porque não o aperfeiçoava que morrera a galinha dos ovos grandes (...)29. O mesmo autor leva-nos a pensar que após a morte de D. Afonso, o terceiro duque de Bragança, D. Fernando II, terá sido o continuador das obras, quanto a nós, sob o olhar atento de D. Constança de Noronha. Relata Francisco Xavier Craesbeeck: (…) huma das torres que estava posta para a porta da Garrita, mandou derrubar o Senhor D. Fernando o 2.º e com a pedra della fazer huma cerca desde os Passos que já estavam começados, e feita obra nelles para agasalho athe a torre, que está junto da Porta da Guarrida, onde o muro novo se vem juntar com o velho (…)30. As teias da história do palácio passam pela via feminina. O rei D. Afonso V fizera doação da posse do castelo e da sua alcaidaria ao segundo duque de Bragança, D. Fernando I. Este, mais interessado nas suas possessões do sul, passou alvará a D. Constança de Noronha, confirmando-lhe a posse do reguengo e rendas da vila de Guimarães. Por sua vez, esta senhora apadrinharia a sua sobrinha, D. Isabel, no seu casamento com D. Fernando II, com o dote de doze mil dobras, sobre as quais empenharia as suas prerrogativas sobre Guimarães, num contrato ratificado na capela paçã, em 147031. Assim, observando os muros do palácio, podemos relacionar algumas evidências com a existência de mais do que uma empreitada no paço ducal: uma ligada a um projeto inicial de D. Afonso, de escala quadrangular grandiosa ao nível do sobrado, testemunhada, como vimos, por fiadas de alvenaria não aparelhada; a estas sucede-se a alvenaria já aparelhada de uma segunda fase construtiva. Esta empreitada poderá explicar a estranha existência, na fachada do corpo que integra a capela virada ao pátio, de dois vãos sobrepostos em cada extremo dessa ala posterior, o que poderá subentender que as galerias porticadas não foram concebidas de início32. O palácio confiscado por D. João II à Casa de Bragança — D. Fernando II foi “justiçado” em Évora em 78 4 | Paço dos Duques, fachada interior do corpo onde se situa a capela, desenho de Ernesto Korrodi, Palácio dos Duques de Bragança em Guimarães. Estudos de Reconstrução, 1897. 5 | Paço dos Duques, fachada interior do corpo onde se situa a capela antes das obras, fotografia de autor desconhecido, s.d. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê monumentos 33 1483 por alegada conspiração contra o rei — retornou à sua órbita, em 1496, altura em que D. Manuel I confirma a D. Jaime a doação dos padroados de Guimarães, concedidos por D. Afonso V. Estes acontecimentos levam José Custódio Vieira da Silva a considerar uma terceira fase construtiva no palácio, denunciada, quanto a nós, pelas janelas quadrangulares presentes no terceiro piso da ala posterior, que encontramos em construções de arquitetura militar designadas “de transição”, correspondentes aos reinados de D. João II e D. Manuel I33. 4. A descaracterização infligida desde o século XVII D. Teodósio, quinto duque de Bragança, é apontado pelo padre António Caldas como o último habitante do paço dos seus ancestrais em Guimarães34. Após complicada teia de esferas de influência, concretamente a passagem pela propriedade de donatários castelhanos, ao tempo de domínio filipino, o edifício surge como propriedade da Casa das Rainhas35, que escasso uso fez dele. A dar testemunho deste fenómeno podemos observar nas plantas elaboradas pelos engenheiros do Exército, até à extinção desta instituição em 1834, a ala do Armazém onde se recebem as rendas do Reguengo que pertencem à Rainha N.ª S.ª36. Paradoxalmente, foi durante a dinastia da família que viu nascer o palácio que se verificou a sua verdadeira descaracterização, sob uma ótica exclusivamente utilitarista que apenas foi refreada pelos frutos da mentalidade difundida pela geração de Alexandre Herculano e de um reavivar do gosto pela medievalidade. O primeiro desaire foi resultado da destruição que lhe foi infligida pelos frades capuchos, que dele se serviram como pedreira para o seu novo convento. O que remanesceu até hoje deve-se, curiosamente, à ação cívica dos próprios vimaranenses que, em 1666, solicitaram à Câmara que fosse contrariada a provisão real em favor daquela ordem monástica. Justificavam-no dizendo que assim (...) se conseguia grandíssimo damno ao credito e honra desta villa, por ser ella adonde nascera o senhor rei Dom Afonso Henriques o primeiro rei deste reino e era esta dita vila a primeira corte delle (...)37. Afirmavam, assim, a consciência de que o que se perdia era a (...) obra mais notável que nesta villa vesita toda a pessoa grande que vem a ella, e faltando ficava esta vila sem esta maior honra (...)38. Em plena época barroca, este testemunho é a expressão mais viva de que a memória era, então e já, a raiz identitária da comunidade e da sua honra. Embora possamos documentar a ideia do estabelecimento de tropas em Guimarães desde 179039, foi o contexto das invasões francesas que despoletou o aquartelamento do Regimento de Infantaria número 15 neste espaço, em 180740. Seguiram-se-lhe muitos outros corpos militares e, desde 1819, o “Paço da Rainha” foi objeto de diversas obras sob a ótica do critério da utilidade ou da operacionalidade estratégica, DOSSIÊ das quais as mais gravosas e sintomáticas foram as que desmantelaram as galerias porticadas (um troço remanescente esteve presente no pátio até à década de setenta do século XIX) ou a abertura de quarenta e duas novas janelas em todo o edifício, na década de 186041. Os militares estariam ali presentes até à definitiva passagem do edifício da tutela do Ministério da Guerra para o Ministério da Instrução Pública, na sequência das diligências feitas por Alfredo Guimarães na visita de Salazar a Guimarães, a 26 de setembro de 1933, no sentido de que se restaurasse o monumento com vista a nele se estabelecerem bibliotecas, arquivo e o Museu Alberto Sampaio42. 5. As primeiras tentativas de reabilitação A primeira manifestação no sentido da vontade de reabilitar o edifício surge em pleno Romantismo. Trata-se de um anteprojeto de índole revivalista, miscelânea de evocações goticizantes e renascentistas, que implicaria uma operação de cosmética à fachada, da autoria do coronel de engenharia J. C. Chelmichy, datado de 1870, nunca realizado43. Na sequência da classificação do edifício como “Monumento Histórico de Segunda Classe”44 pela Real Associação dos Architectos Civis e Archeólogos Portuguezes, em 1881, surgem os Estudos de Reconstrução da autoria de Ernesto Korrodi, em 189745. Estes estudos seriam oferecidos pelo autor ao Museu Alberto Sampaio, em 22 de junho de 193646. A data da oferta impele-nos a pensar que, pelas suas similitudes com os projetos do primeiro restaurador do paço, terão tido papel fundamental na sua traça, concretamente na terceira versão de projeto para a fachada da ala posterior ou sudeste e a sua escadaria de acesso à capela (que não foi, contudo, a última versão)47. 6. O restauro salazarista 6.1. Leitura política: a “questão monárquica” Ao nível político, o restauro do Paço dos Duques não escapou a uma estratégia concertada subjacente a uma atitude restauracionista triunfalista diagnosticada no seio da ideologia e da mentalidade do “salazarismo”. Esta atitude caracterizada por Maria João Baptista Neto48, na esteira de Borges de Macedo e de João Medina49, vem também ao encontro do que Artur Portela designa como “arte salazarista”50. A documentação relativa ao palácio dos Bragança presente no acervo da antiga Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), hoje no arquivo do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), em complemento com o acervo de António Oliveira Salazar nos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (AN/TT), é uma amostra excecional de cerca de trinta anos de mecenato do regime ca- 79 80 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 6 | Paço dos Duques, primeiro projeto de vitrais destinados à capela, da autoria de Guilherme Camarinha: a) Painel de Cristo; b) Painel das armas do duque de Bragança, D. Afonso; c) Painel de Nossa Senhora; d) Painel das armas da duquesa, D. Constança de Noronha; fotografias de autor desconhecido, s.d. a c b d racterizado. Com ela pudemos constatar que este restauro foi realizado sob o dirigismo de uma pirâmide hierárquica centralizada, sendo ciosamente acompanhado pelo seu topo, concretamente pelos ministros das Obras Públicas e pelo próprio presidente do Conselho, intervindo este último, não apenas em diretrizes gerais, mas no aval ou rejeição de diversas etapas, mesmo em aspetos de pormenor e em campos tão específicos quanto, por exemplo, a heráldica. Tal como notou Maria João Baptista Neto, para este restauro foi planeado, desde a primeira fase do longo processo, um projeto global no qual a marca decorativa não é menosprezável, concretizada muito para além do primeiro modernismo impulsionado por António Ferro e do cunho Art Déco, patente na obra do seu primeiro ideólogo, o arquiteto Rogério dos Santos Azevedo (1898-1983), dando ênfase ao artesanato e às artes decorativas. Esta é, de resto, uma das ferramentas políticas da “arte salazarista” como forma de propaganda de imagens caras ao regime. No Paço dos Duques, as artes decorativas e aplicadas, não tanto quanto o restauro arquitetónico, foram colocadas ao serviço de uma intencionalidade político-ideológica inquestionável. Este sintoma pode monumentos 33 ser avaliado pelo programa iconográfico escolhido para os vitrais da capela, realizados por António Lino, após a rejeição de um primeiro projeto de cunho mais catequético, que “não agradou”51, da autoria de Guilherme Camarinha, arquivado no ano de 1946, a data em que expunha ao lado de pintores que se inspiravam no neorrealismo52. No mesmo sentido, assume especial significado a sucessão de projetos para o brasão que coroa o portal da mesma capela, a que o escultor Teixeira Lopes foi impelido até conseguir satisfazer a ideia precisa que se queria transmitir com a mensagem heráldica. A decisão de elevar toda uma ala do edifício secular com vista a constituir uma residência presidencial no norte do país era uma questão delicada que, por isso, pouco ou nada foi publicitada ou claramente assumida até 1953. Em contraponto, existia uma cumplicidade para com a “causa monárquica”53 por parte de Salazar, que apenas se demarcou deste setor sociológico que o apoiou num Congresso da União Nacional em Coimbra, em 195154. Esta foi, quanto a nós, uma das razões que esteve na base da omnipresença de Salazar neste processo que tinha como pano de fundo a história da última família reinante. O ditador demonstrou claramente, através das suas diretrizes para aquele brasão, a vontade de não se representar com este edifício mais do que um nobre bastardo, filho do fundador da “Ínclita Geração”. Neste sentido, fez prevalecer a sua vontade sobre o parecer da Academia Portuguesa de História de que deveria nele figurar o coronel de duque, a que Afonso ascendera em 1442. No entanto, D. Afonso foi representado nos vitrais ao lado do primeiro rei de Portugal, rei cuja corte em 7 | Paço dos Duques, quinta maqueta para o brasão, em barro, destinado ao portal da capela, executada por Manuel Teixeira Lopes, vendo-se o fácies com que foi passado à pedra, reproduzindo as armas de D. Afonso, ainda conde de Barcelos, seguindo as diretrizes de Salazar, com o escudo ao valon (inclinado) em sinal de bastardia e sem o coronel de duque, fotografia de autor desconhecido, 1960. DOSSIÊ 81 Guimarães foi identificada por alguma tradição como sendo sediada no local onde D. Afonso erigiria o seu palácio55. Este facto revela o dúbio posicionamento de Salazar na sua demarcação face à causa monárquica. Parece-nos que os vitrais, que hoje decoram os janelões da capela, podem ser lidos como um hino de celebração aos momentos decisivos para a construção e expansão da soberania nacional, vestindo-se o monumento com a iconografia da mitologia nacional, e uma imagem da linhagem que se impusera face à usurpação espanhola como (...) património moral da nação (...)56, tal como o ditador a definira. Tal argumento de demarcação não obstaculizou que, atendendo à Comemoração do Centenário da Elevação de Guimarães a Cidade e do Milenário da sua Fundação, em 195357, fosse constituída pelo Ministério das Obras Públicas uma Comissão de Mobiliário, liderada por alguém próximo do ditador, o engenheiro Duarte do Amaral, que teria a incumbência de recriar o ambiente do solar nobre que transcorrera toda a Idade Moderna — (...) uma casa de coisas raras (...), como caracterizara o paço, D. António Caetano de Sousa58. Assim, a decoração que é hoje o espólio e coleção do palácio nada, ou pouco, tem que ver com ele, o que dificulta a estruturação de um discurso para um centro interpretativo. 6.2. Leitura técnico-metodológica: um restauro “viollet-le-duquiano”? Tal como Mário Barroca notou, este restauro arquitetónico iniciado em 1937 não foi levianamente empreendido, e existiu por parte do seu primordial projetista uma reflexão profunda, tanto em termos 8 | Paço dos Duques, pátio interior, arco reconstituído com as aduelas encontradas in situ, que constituiu o modelo para as arcadas da galeria porticada existente no palácio, fotografia de autor desconhecido, s.d. 82 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 10 | Paço dos Duques, capela, mobiliário neogótico concebido por Mário Barbosa, fotografia de autor desconhecido, 1959. 9 | Paço dos Duques, pátio interior, fachada da capela, construção de um modelo de escada em madeira para acesso ao pórtico da capela, figurino do quarto e último projeto para este equipamento provavelmente inspirado no desenho da escada do Tribunal de Ruão, de Viollet-le-Duc, fotografia de autor desconhecido, s.d. deontológicos, como metodológicos e historiográficos. No que toca a critérios de restauro, nos seus relatórios, desde logo, Rogério de Azevedo assume que o objetivo final de todas as ações é o de uma “reconstituição”59. Contudo, o termo é demarcado de um exercício de estilo, pela vontade expressa de fidelidade ao que teria existido, com exceção para as zonas nas quais o destino a uma função ditou uma “adaptação”. A fragilidade metodológica do arquiteto portuense está na distância entre o mote introduzido e a aplicação prática desenvolvida que o coloca numa posição intermédia entre Viollet-le-Duc60, que serviu, em geral, a filosofia nacionalista do restauro da DGEMN, e Lucca Beltrami que, com a máxima com’era, dov’era, inaugurou o “restauro histórico”61. Rogério de Azevedo não esconde que podem ser consideradas duas fases no propósito final ou na intencionalidade geral da “reconstituição”: a (...) reconstrução pura das muitas partes arruinadas, sem adaptação ou fantasias (...) e a “restauração”. Com a primeira fase supõem-se operações de “reparação” como lavagem da pedra, desentaipamento de rasgos primitivos, demolição de acrescentos recentes (com vista, é certo, a uma limpidez de leitura do que é considerado “primitivo”), cobertura do edifício e reconstituição em sentido restrito, ou seja, dos aspetos de que se considerava existirem testemunhos materiais de existência. Já a “restauração” supôs a reconstituição com caráter hipotético, que Beltrami rejeitava. Não se tratava de uma recuperação filológica de uma linguagem estilística, porque existia uma vontade de remissão histórico-arqueológica. Contudo, recorria-se a analogias internas para defender aspetos de que não existiam testemunhos, sob a convicção da sua simetria e regularidade. Foram também utilizadas analogias externas a edifícios considerados “coevos” ou do “mesmo género”, sob reserva, e quando os outros recursos estavam esgotados, mas esse não foi o procedimento mais seguido por Rogério de Azevedo. Tal é o caso da escadaria de acesso à capela que foi delineada, segundo o seu autor, com base nas escavações aos seus alicerces. Contudo, a sua forma específica, que variou ao longo de quatro projetos, acabou por ser a do Tribunal de Ruão, cujo desenho figura no Dictionnaire de Viollet-le-Duc. A “restauração” incluía ainda a “adaptação” a uma função numa das alas erguida de novo, a ala noroeste ou frontal, e aqui o arquiteto permitiu-se assumidamente a aplicação do restauro estilístico, na animação da fachada, podendo observar-se no seu projeto62, nunca transposto à pedra, três janelões copiados dos presentes no Palácio dos Condes de Poitiers, desenhados na mesma obra de Viollet-le-Duc63. Assim, contrariamente ao que sucedeu em muitos edifícios medievais, o restauro do Paço dos Duques, pela sua singularidade, tal como o que se pode observar no restauro de alguns edifícios pré-românicos intervencionados pela DGEMN64, exigiu uma reflexão mais maturada, um prelúdio de uma arqueologia da arquitetura65 e a criação de teorias historiográficas de suporte às reconstituições, ao sabor das quais se ergueram e destruíram projetos (e arquitetos)66. monumentos 33 11 | Paço dos Duques, pátio interior, galeria porticada, fotografia de autor desconhecido, 1959. Em 1934, o historiador espanhol Gomez Moreno divulgou em Portugal os novos rumos apontados pela Carta Internacional do Restauro e da Carta de Restauro Italiana, de 1930-1931, elevando a bandeira de Gustavo Giovannoni67. No entanto, apenas a reflexão de Raul Lino, em 1949, na qualidade de diretor de Serviços dos Monumentos, seria a nota dissonante num contínuo aplicar, até ao final da intervenção no paço, do paradigma reconstitutivo. A sua crítica incidiu sobre a (...) dúvida, um tanto desconcertante, se havemos de encarar [o paço] como monumento histórico, restaurado ou reconstituído, se como edifício moderno (...)68. Esta terá influído na estagnação dos trabalhos entre 1949 e 1952, e na inclusão da palavra “conservação”, desde então nas memórias dos projetos69. A sua ação não impediu, no entanto, que a orientação da intervenção, em 1954, fosse ainda a de (...) se reintegrar o Paço no seu estilo primitivo de grande solar ducal (...)70. Se o mobiliário neomedieval da capela, projetado por Mário Barbosa, os telhados, inspirados nos castelos do Loire, e os tetos das grandes salas, do risco do arquiteto Alberto da Silva Bessa, são um fruto, reversível, desta orientação, já os capitéis das colunas de suporte da cobertura do segundo piso da galeria porticada, que foram talhados sem qualquer decoração, marcam o dilema destes quadros técnicos quanto ao restauro arquitetónico. Para os políticos, os critérios de unidade estilística serviam os pressupostos nacionalistas de toda a política patrimonial71. Os arquitetos cumpriam ordens. DOSSIÊ 7. Que Paço dos Duques nos é dado conhecer? Não nos sendo possível, aqui, descrever todo o restauro do Paço dos Duques72 e a globalidade do percurso da sua metamorfose, podemos afirmar, contudo, e como vimos, que existem várias imagens suas às quais podemos, de alguma relativa forma, aceder. O percurso é, por vezes, o de uma cripto-história da arte73 que integre a contextualização da sua fortuna histórica e historiográfica, urgindo também um olhar sob a ótica de uma arqueologia da arquitetura. Do ponto de vista da sua fruição, há que encarar o nosso palácio como qualquer obra de arte, por definição total e aberta. Total, na medida em que exige do observador um olhar integrado sobre toda a sua vida; aberta, porque não se esgota na intencionalidade daqueles que a criaram ou na sua “carga genética”, mas continua nos infinitos impactos que pode suscitar e no deslumbramento que, porventura, opere. De resto, os números falam por si. Com uma média de cerca de novecentos e cinquenta visitantes por dia, em 2011, o palácio dos Bragança sobreviveu à pertinente afirmação de Alfredo Pimenta de que existe uma fronteira inabalável entre nós e a verdade74. Maria Mónica Brito Historiadora da Arte Técnica Superior do Serviço Educativo do Museu de São Roque Imagens: 1 a 3: Direcção de Infra-Estruturas do Exército/Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar; 4: DGPC/Museu Alberto Sampaio; 5 a 12: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. 83 84 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 12 | Paço dos Duques, fachada principal e lateral a partir do ângulo oeste, 2013. N OTA S 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Expressão utilizada pelo arquiteto restaurador do paço ducal, Rogério de Azevedo. In Rogério de AZEVEDO — Paço dos Duques de Guimarães..., pp. 7-8. Sobre D. Afonso, primeiro duque de Bragança, cf. D. António Caetano de SOUSA — História Genealógica da Casa Real Portuguesa, t. V; AHCB, Francisco Nunes Franklin, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança; e Francisco Nunes FRANKLIN; J. T. Montegalvão MACHADO (org.) — Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança... Cf. www.guimaraesdigital.com/index.php?a=noticias&id=46927 Expressão de Alfredo Pimenta. In Alfredo PIMENTA — A Propósito do Paço dos Duques, p. 23. Cf. José Custódio Vieira da SILVA — “Paço dos Duques de Bragança em Guimarães”. Patrimónia. Identidade Ciências Sociais e Fruição Cultural, out. 1990, n.º 1, pp. 29-36; Idem — Paços Medievais Portugueses, e idem — Fascínio do Fim... Não só por compromissos diplomáticos como por sua iniciativa, e reunindo grandes comitivas, conheceu destinos como Inglaterra, Escócia, Provença, Auvergne, Borgonha, Itália, Navarra, Aragão e Castela. Participando como capitão das galés na expedição e assalto a Ceuta, em 1415, foi agraciado pelo rei com a mercê da vila e do palácio de Algezira, de onde, segundo a tradição, teria trazido vasto espólio artístico, concretamente a decoração em talha dos salões e setenta colunas do pátio, em mármore e jaspe, dentre as quais teria escolhido algumas para o pórtico da capela paçã. O conde de Barcelos tinha também relações privilegiadas com a Galiza, uma vez que adquiriu a Igreja Metropolitana de Sant’Iago de Compostela, em 1426. Cf. AHCB, Francisco Nunes Franklin, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança, fl. 78 e 78v. Cf. DIE/GEAEM, Planta do Paço Velho da Senhora Rainha colocado na Villa de Guimarens, [17 de julho de 1816]. Neste documento o padre António Oliveira faz referência a um (…) claustro de coatro naves feito de arcarias ecombarandas de excelente jaspe (…), in AN/TT, Padre Luís CARDOSO (org.), Dicionário Geográfico, [1758], rolo 327, vol. 18, fl. 772. Rogério de Azevedo afirma também ter encontrado os alicerces das galerias (...) a atestar a sua existência com sinais bem nítidos (...). In Rogério de AZEVEDO — Ob. cit., p. 118. No entanto, os alicerces da realidade construtiva que atravessa o pátio neste documento gráfico terão sido por ele interpretados como uma escada de acesso à capela, que nunca existiu de facto, pois, segundo o padre António Oliveira afirma no Dicionário Geográfico, a ela se acedia pelas barandas. Cf. AN/TT, Padre Luís CARDOSO (org.) — Dicionário Geográfico. In idem, ibidem. Esta planta foi anunciada por Maria Dulce de Faria, bibliotecária daquela biblioteca, na 21st International Conference on the History of Cartography, realizada em Budapeste, em 2005. Cf. Fundação Biblioteca Nacional do Brasil (Rio de Janeiro)/Cartoteca, “De Guimarães”. Mappas do Reino de Portugal e suas Conquistas Collegidas por Diogo Barbosa Machado, apud; Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘De Guimarães’ e ‘De Vila do Conde’ da Biblioteca Nacional do Brasil”. Passado e Presente para o Futuro..., pp. 1-9 e idem — “Novas notas 12 13 14 15 16 17 18 19 20 para a história da cartografia urbana e para a morfologia urbana de Guimarães”. IV Congresso Histórico de Guimarães..., pp. 117-133. Estes balcões não surgem representados no alçado da fachada posterior da ala que alberga a capela, presente no documento gráfico citado, presente na Biblioteca do Rio de Janeiro, tendo sido encontradas, claramente, as suas estruturas, como pode ser observado nos registos fotográficos anteriores ao restauro. Tal levanta alguma perplexidade relativamente à correspondência real estrita deste documento com o que então remanescia. O mesmo sucede com a torre que existia junto à Porta da Freiria, que também não surge representada e é documentada quer pelo padre Ferreira Caldas, quer pelo padre Torcato Azevedo, e que só foi demolida no século XIX, segundo Alberto Vieira Braga. Agradecemos a este respeito todas as considerações partilhadas pelo arqueólogo da câmara desta cidade, Dr. Francisco Faure, acerca das muralhas da vila de Guimarães. In António Caetano de SOUSA — História Genealógica da Casa Real Portuguesa, t. V. O Fundo João Lopes de Faria, guardado na Sociedade Martins Sarmento, reúne inúmeros textos transcritos do Arquivo Histórico de Guimarães e informações inéditas acerca da história local, da autoria daquele estudioso vimaranense. Entre estes documentos encontra-se um levantamento dos indivíduos na órbita da “Casa dos Duques”, em Guimarães, que surgem nomeados naquele arquivo. Cf. SMS, Fundo Lopes de Faria, Velharias Vimarenses, fl. 150 e 190-190v. D. Constança era sobrinha-neta do fundador da dinastia de Avis e filha de D. Afonso, conde de Gijon e Noronha e de D. Isabel, filha bastarda do rei português D. Fernando. In Mafalda Soares da CUNHA — Linhagem, Parentesco e Poder. A casa de Bragança (1384-1483), p. 33. In António Caetano de SOUSA — “Contrato de Casamento do Duque de Bragança, D. Afonso, com D. Constança de Noronha”. Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, t. III, pp. 22-25. In SMS, Fundo Lopes de Faria, Velharias Vimarenses, fl. 150 e 190-190v. Avançamos com esta datação com base em AHCB, Francisco Nunes Franklin, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança, fls. 83 e 83v. A data mais recuada que tem sido apontada para a ocupação do paço é a de 31 de janeiro de 1438, alicerçada em documento encontrado pelo abade de Tagilde. Cf. Oliveira GUIMARÃES — Guimarães e Santo António, 1895. Apud, Barroso da FONTE — Paço dos Duques de Bragança, p. 26. Sobre as influências externas recebidas por D. Afonso ao projetar o seu palácio cf. Alfredo PIMENTA — A Propósito do Paço dos Duques de Guimarães; Alfredo GUIMARÃES — Guimarães. Guia de Turismo; Rogério de AZEVEDO — Ob. cit., pp. 78-79; Ilídio ARAÚJO — Arte Paisagista e Arte de Jardins em Portugal, vol. I; J. H. Pais da SILVA — Paço dos Duques em Guimarães, 1973, vol. I; Carlos AZEVEDO — Solares Portugueses, p. 134; José Custódio Vieira da SILVA — “Paço dos Duques de Bragança em Guimarães”. Patrimónia. Identidade Ciências Sociais e Fruição Cultural, out. 1990, n.º 1, pp. 29-36; idem — Paços Medievais Portugueses, pp. 137-145 e idem — Fascínio do Fim..., p. 23; Pedro DIAS — A Arquitectura Gótica Portuguesa, 1994, p. 89; Mário BARROCA — “A Arquitectura Gótica Civil”. In Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA (dir.); Mário Jorge BARROCA (dir.) — História da Arte em Portugal. O Gótico, pp. 89-133. monumentos 33 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 In Alfredo GUIMARÃES — Guimarães Monumental, p. 8. Curiosamente, se Alfredo Guimarães se revela em muitos aspetos a “musa historiográfica” do restaurador Rogério de Azevedo, este virá a defender uma influência italiana do paço, contestando a origem francesa do nome Antom. Cf. Rogério de AZEVEDO — Paço dos Duques de Guimarães, passim. Idem, ibidem. Esta tese foi defendida em Alfredo GUIMARÃES — “Tapeçarias”. Prisma, 1937, pp. 222-235 e em idem — Guimarães: Guia de Turismo, p. 82 e idem — Guimarães. Publicação Comemorativa das Festas Centenárias da Fundação de Portugal, p. 76. Cf. J GARDELLES; Jean Pierre BALELON (dir.) — De Saint Louis à Filippe le Bel. Le XIIIéme Siècle…, pp. 91-92. Agradecemos as preciosas orientações a este nível amavelmente concedidas pelo Professor Doutor José Custódio Vieira da Silva. Segundo este historiador foi decisivo para a criação de um gosto cortesão pelos palácios afrancesados, equipados com o necessário para o conforto e luxo dos seus habitantes, a deslocação do rei a França e o contacto com as construções do duque de Berry atestados na sua crónica. Cf. Rui de PINA — Crónica de D. Afonso V. Lisboa: Mello d’Azevedo, 1901, vol. III, p. 109. Citado por José Custódio Vieira da SILVA — Paços Medievais Portugueses. DIE/GEAEM, Planta do Perfil, Que Mostra o Lado Interior e Alçado da Parte do Norte. A participação de D. Constança na idealização do seu paço é uma questão a não menosprezar, ela própria foi mecenas em Guimarães, exemplo desse facto está patente em documento da Chancelaria de D. Afonso V, onde surge mencionado um (...) oratório que ella hordenara que chamam santa vera cruz junto com os muros de Guimarães (...). Este testemunho leva a pensar que no local onde se encontra a atual Capela da Santa Cruz, construída em 1639, sita nas proximidades de onde se encontrava a Porta da Freira, da Freiria ou de Santa Cruz, a mais próxima do Paço Ducal, terá existido outra anterior com a mesma invocação fundada por D. Constança de Noronha. Cf. AN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, L.º 13, §2, fl. 141, apud, Francisco Nunes FRANKLIN, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança, fl. 181. Padre Torquato de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 356. In Francisco Xavier CRAESBEECK — Memórias Ressuscitadas da Província de Entre-Douro-E-Minho, vol. I, p. 84. Esta ideia está também presente em Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias da Antiga Guimarães e padre António Carvalho da COSTA — Corographia Portugueza Descripçam Topographica do Famoso Reyno de Portugal..., t. I. Francisco Xavier CRAESBEECK — Ob. cit. Antes do casamento, datado de 1475, altura em que D. Fernando II ascende a duque de Guimarães, recebera, em 1464, a doação do Padroado da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e de todas as igrejas e mosteiros de Guimarães que era então elevada a condado. O facto de Craesbeeck alegar que os paços, ao tempo de D. Fernando II, (...) já estavam começados (...) incute a leitura de que, porventura, a obra de D. Afonso teria sido o citado “início”. Poderíamos, assim, considerar que a capela paçã não foi uma exceção no contexto das casas senhoriais, a rivalizar com os paços reais, mas uma realidade posterior, segundo José Custódio Vieira da Silva, já presente no contexto das casas nobres a partir do reinado de D. Afonso V. Também as ameias encontradas por Rogério de Azevedo nas escavações realizadas no terreno podem ser enquadradas no período manuelino, num fácies que prima pela perda do conteúdo defensivo e pela prevalência do cunho decorativo. No entanto, não foram encontrados muitos exemplares, pelo que a sua presença residual aconselha algum cuidado de interpretação. Quanto às fortificações ditas “de transição” cf. Mário PEREIRA — “Da Torre ao Baluarte”. A Arquitectura Militar na Expansão Portuguesa, pp. 35-42; Rafael MOREIRA — “A Arquitectura Militar”. História da Arte em Portugal, vol. VII, pp. 137-142; PORTUGAL no Mundo. História das Fortificações Portuguesas no Mundo. Cf. António José Ferreira CALDAS — Guimarães. Apontamentos para a sua História, pp. 414-418. Para diversa documentação acerca dos encargos e benefícios da rainha relativamente ao reguengo de Guimarães. Cf. AN/TT, Casa das Rainhas, Registo das Folhas do Almoxarifado das Terras do Estado da Rainha Fidelíssima, [1761-1774], cx. 62, lv.5; AN/TT, Casa das Rainhas, Rendimento dos Corregedores das Vilas de Guimarães, Viseu e Aveiro, [1771-1824], cx. 83, lv. 543; AN/TT, Casa das Rainhas, Registo de Emprazamentos, Doações e outros Documentos Relativos aos Reguengos de Guimarães, [1644-1657], cx. 162, lv. 48; AN/TT, Casa das Rainhas, Tombo do Reguengo de Guimarães, [1517], cx. 161, lv. 47; AN/TT, Casa das Rainhas, Tombo do Reguengo de Guimarães, [1657], cx. 162, lv. 48. DIE/GEAEM, Luís Ignácio Barros LIMA (assinado), Planta Baixa que Mostra Afigura Que Tem o Terreno que Occupa o Edifício Antigo Denominado, o Paço na Villa de Guimarães; parte do qual está occopado em quartel do regimento d’Infantaria. Arquivo Histórico Alfredo Pimenta, Vereações da Câmara de Guimarães, livro 12, fl. 126. Transcrito por Alfredo PIMENTA, apud, Rogério de AZEVEDO — Paço dos Duques, pp. 112-113n. Idem, ibidem. Carta do Corregedor de Guimarães, José Diogo Mascarenhas, in AHM, 3.ª Divisão, 20.ª Secção, cx. 1, doc. n.º 58. Cf. padre António José Ferreira CALDAS — Guimarães. Apontamentos para a sua História, vol. II, pp. 248-258; idem; António Amaro das NEVES (org.); 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 DOSSIÊ J. Santos SIMÕES (org.) — Guimarães. Apontamentos para a sua História, pp. 411-419; Luís Maria da Câmara PINA; Carlos Gomes BESSA — “Algumas Unidades de Guimarães”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada..., vol. III, pp. 335-367. Elaborámos um levantamento da documentação que revela as obras elaboradas pelo exército ao longo da sua estadia no palácio. Cf. Maria Mónica BRITO — Ob. cit., pp. 63-77. O percurso jurídico e administrativo do paço foi definido pelo Auto de Entrega de 17 de julho de 1933 e pelo Decreto-Lei n.º 24.489 de 13 de 1934. In DGTF, Processo n.º 26-CH-21. Distrito de Braga. Concelho de Guimarães. Paço dos Duques de Bragança em Guimarães. DIE/GEAEM, J. C. CHELMICHY, Inspecção d’Engenharia... Integrado entre os (...) Edifícios importantes para o estudo da história das Artes em Portugal, ou somente históricos, mas não grandiosos, ou simplesmente recomendáveis por qualquer excelência de arte (...). Era então descrito como (...) um vastíssimo edifício muito interessante para o estudo da construção das habitações dos grandes senhores n’aquela época (…), in Maria Lúcia Cardoso ROSAS — Monumentos Pátrios. Arquitectura Religiosa Medieval..., p. 133. MAS, Ernesto KORRODI, Palácio dos Duques de Bragança em Guimarães. Estudos de Reconstrução, n.º de inventário 851. Tivemos conhecimento destes desenhos, em abril de 1999, através sua antiga conservadora, Dra. Manuela Alcântara, à qual já agradecemos. Dois dos desenhos foram expostos e publicados por Mário Barroca em GUIMARÃES. Mil Anos a Construir Portugal, p. 91-92, catálogo da exposição realizada entre 31 de julho e 31 de dezembro de 2000. Informação contida em MAS, Livro de Correspondência, n.º 3. Agradecemos à Dr.ª Isabel Maria Fernandes, diretora do Museu Alberto Sampaio em 2000, que nos permitiu o acesso à obra de Korrodi, então em depósito. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, DES. 0301030. O nosso trabalho teve como ponto de partida as perspetivas lançadas pela Professora Doutora Maria João Neto no II Congresso Histórico de Guimarães, realizado em 1997. Cf. Maria João Baptista NETO — “O Restauro dos Monumentos Medievais de Guimarães no tempo do Estado Novo”. II Congresso Histórico de Guimarães..., vol. III, pp. 423-444. Da sua vasta obra foram essenciais para este trabalho: idem — A Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais...; idem — “A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e a Intervenção no Património Arquitectónico em Portugal. 1929-1999”. Caminhos do Património. 1929-1999, pp. 23-43 e idem — “‘A Afirmação da Modernidade’. António Lino e as Vivências da Pintura do seu Tempo”. ANTÓNIO Lino. 1914-1996, pp. 13-19, catálogo da exposição realizada entre 22 de novembro e 13 de dezembro na Biblioteca Municipal D. Dinis, em Odivelas. Cf. João MEDINA — “Deus, Pátria, Família: ideologia e mentalidade do Salazarismo”. História de Portugal..., pp. 11-142. Artur PORTELA — Salazarismo e Artes Plásticas, p. 132. In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques de Bragança. 1936-56. Processo Administrativo, vol. 266, ou SIPA, DGEMN:DSID 001/003-0266. Cf. José-Augusto FRANÇA — A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), pp. 355-361. Há que lembrar a propagada filosofia da história salazarista segundo a qual se denegria a ação dos governos liberais e republicanos que estiveram na origem da nacionalização dos bens das instituições monárquicas seculares, questão que só foi sanada com a instituição da Fundação da Casa de Bragança. Agradecemos ao Professor Doutor António Telo a sugestão desta problemática e da bibliografia que lhe está subjacente. Sobre este tema cf. Manuel Braga da CRUZ — Monárquicos e Republicanos no Estado Novo; idem — “A oposição eleitoral ao Salazarismo”. Revista de História das Ideias, 1983, n.º 5, pp. 701-781; idem — “A Revolução Nacional de 1926: da Ditadura Militar à formação do Estado Novo”. Revista de História das Ideias, 1985, n.º 7, pp. 347-371; António Assis TEIXEIRA, Benedita AMEAL, Gonçalo de SAMPAIO e MELLO — Os Monárquicos e o Poder durante o Estado Novo, pp. 7-8; cf. quanto a esta questão o que já desenvolvemos em Maria Mónica Carrusca Pimenta de BRITO — Ob. cit., pp. 107-116. Cf. Marcelo CAETANO — As Minhas Memórias de Salazar, p. 386. Rogério de Azevedo acreditava nesta teoria baseado em Alfredo Guimarães e em Alberto Sampaio, autores para os quais a doação feita por D. João I recairia sobre um imóvel já existente onde os pais do primeiro rei de Portugal teriam também o seu palácio. Para Rogério de Azevedo este teria sido (...) arrasado até aos fundamentos (...) por D. Afonso de Bragança. Cf. Alberto SAMPAIO — Estudos Históricos e Económicos, vol. I, p. 246. Apud, Alfredo GUIMARÃES — Guimarães. Publicação Comemorativa das Festas Centenárias da Fundação de Portugal, p. 34. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Rogério de AZEVEDO, Memória Histórica, Descritiva e Justificativa, [29 de outubro de 1939], documento inédito amavelmente cedido pela Professora Doutora Maria João Baptista Neto. In António Oliveira SALAZAR — “Questões de Política Interna. Discurso dirigido aos governadores civis, às comissões distritais da União Nacional e aos candidatos a deputados, numa sala da Biblioteca Nacional, em 20 de Outubro de 1949”. Discursos e Notas Políticas 1943-1950, vol. IV, pp. 425 e segs. Neste discurso Salazar chega a lançar a ideia de ceder o Paço dos Duques aos (...) príncipes portugueses (...). Cf idem, ibidem, p. 443. As obras de arte e o mobiliário foram então adquiridos em antiquários nacionais e estrangeiros e nas reservas de outros museus e palácios nacionais. Não se recorreu apenas a mobiliário medieval porque, para além da sua raridade e alto custo, pretendia-se que o espaço fosse dotado da capacidade e comodidade para albergar dois chefes de Estado e que este pudesse ser palco de eventos oficiais. 85 86 DOSSIÊ 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 monumentos 33 dossiê Citado pelo ministro da Educação em IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques de Bragança, Braga. (1936-1956), Processo Administrativo, vol. 266, ou SIPA, DGEMN:DSID 001/003-0266. Veja-se o primeiro relatório de Rogério de Azevedo. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques de Bragança, Braga, (1936-1956), Processo Administrativo, vol. 266 ou SIPA, DGEMN:DSID 001/003-0266. Não esqueçamos a célebre definição de Viollet-le-Duc: (...) restaurer un édifice, ce n’est pás l’entretenir, le réparer ou le refaire, c’est le rétablir dans un état complet qui peut n’avoir jamais existé un moment donné (...) in Eugène-Emmanuel VIOLLET-LE-DUC — “Restauration”. Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XIéme au XVIème siècle, t. VIII, [s.l.], Bibliothèque de L’Image, 1932, pp. 14-34. Considerando que, sendo o ato artístico único e irrepetível, a sua reposição — e até, se necessário, a sua cópia para salvar (...) um valor referencial, simbólico, urbanístico ou funcional (...) — teria, segundo Beltrami, que basear-se em provas objetivas, em vestígios físicos ou documentais, apelando-se assim a um trabalho heurístico e arqueológico, como única base do projeto. Cf. José Manuel Aguiar Portela da COSTA — Estudos Cromáticos nas Intervenções de Conservação em Centros Históricos..., p. 30. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, DES. 0006527. Este projeto foi publicado em Maria João NETO — “O restauro dos monumentos medievais de Guimarães no tempo do Estado Novo”. II Congresso Histórico de Guimarães, p. 436. Eugène-Emmanuel VIOLLET-LE-DUC — “Cheminè”. Dictionnaire Raisonné de L’Architecture Française du XIème au XVIème siècle, t. III, p. 206. Analisámos a este respeito o restauro da Capela de São Frutuoso de Montélios. Cf. M. Mónica BRITO — “As fases de Restauro da Capela de São Frutuoso de Montélios. A Fragilidade da Reintegração Nacionalista face à Evolução Historiográfica”. Museu, 2001, série IV, n.º 10, pp. 223-277. Cf Paulo Almeida FERNANDES — “Reconstituição. Reintegração. Restauro. Os Projectos de intervenção em D. Pedro de Lourosa (1929-1934)”. Estudos. Património, 2006, n.º 9, pp. 150-158. Acerca dos restauros da Direção Regional de Edifícios do Norte Cf. Miguel Jorge Biscaia Ferreira TOMÉ — Património e Restauro em Portugal (1920-1939). In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, “Relatório Acerca das Obras do Paço dos Duques em Guimarães”. Paço dos Duques de Bragança, Braga, 1936-1956, (Processo Administrativo), vol. 266 ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0266. No que toca à (...) investigação arqueológica no terreno circunscrito (...), que se desenvolve a partir de 1938 e até à construção da galeria porticada em 1939 — cujos arcos foram desenhados a partir das aduelas que surgiram disseminadas na alvenaria que entaipava janelas e portas ou servindo de lagedo em algumas salas — levantam-se, desde logo, questões também elas metodológicas. Nenhum registo ficou que permita ter uma ideia das realidades observadas e das ações empreendidas, sendo certo que a reversibilidade destas foi também comprometida com o revestimento dos alicerces com asfalto. Repare-se que inicialmente, nos projectos de janeiro de 1939, Rogério de Azevedo verteu no papel a teoria da influência da arquitetura senhorial francesa do Périgord e do Loire, que o arquiteto Baltazar de Castro, após uma viagem efetuada a estes locais em novembro de 1938, defendia. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, “Relatório Acerca das Obras do Paço dos Duques em Guimarães”. Paço dos Duques de Bragança, Braga, 1936-1956, (Processo Administrativo), [janeiro de 1939], vol. 266 ou IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN: DSID 001/003-0266. Esta mesma posição é defendida por Rogério de Azevedo nos seus últimos projetos datados de outubro de 1939, depois dele próprio ter feito os seus périplos pelos castelos do Loire, entre 1 e 15 de agosto de 1939. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Memória Histórica, Descritiva e Justificativa, [29 outubro de 1939], documento inédito amavelmente cedido pela Professora Doutora Maria João Baptista Neto. No entanto, na sua obra justificativa, publicada em 1942, põe em causa a teoria da origem francesa do misterioso Mestre Antom, defendendo agora o italianismo do Paço Ducal, presente, nomeadamente, na escada que teria existido em Itália, mesmo antes de surgir em França. Algures, após outubro de 1939, Rogério de Azevedo pôs em causa duas individualidades fortemente apoiadas pelo regime — Baltazar de Castro e Alfredo Guimarães. Passado algum tempo, novembro de 1940, afasta-se da DGEMN (...) em virtude de ter aceitado o cargo de professor da Escola de Belas Artes do Porto (...). In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Processo Individual do Arquitecto Rogério dos Santos Azevedo. A escada, bem como outros pormenores dos projetos de Rogério de Azevedo, apesar de passarem por crivo, como o de novas pesquisas aos alicerces, serão realizados pelo arquiteto que se lhe seguiu como chefe de Secção do Norte, Joaquim Areal. Este, entre 1940-1945, manifesta-se preocupado com a “honestidade” da intervenção, do ponto de vista (...) arquitectónico e arqueológico (...). Este mesmo arquiteto, em 1945, é enviado para Moçambique. A escada é derrubada nesse ano com a nova chefia do arquiteto Alberto da Silva Bessa, doravante ideólogo da última fase de restauro. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Processo individual do Arquitecto Joaquim Santiago Areal e Silva e Paço dos Duques. Braga. 1941-44. E IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Processo de Obras, vol. 254, ou SIPA, PT DGEMN: DSID-001/003-0254. Tal como Gustavo Giovannoni defendeu que o restauro deveria ser o último recurso de intervenção nos monumentos, sendo necessário que, quando houvesse acrescentos, as novas partes assumissem um caráter distinto, também Gomes Moreno tentou passar a mensagem aos restauradores portugueses de que (...) Ahora aqui en España no nos atrevemos a hacer grandes restituiciones en los edifícios venerables, ante el peligro de que se tergiverse irremediablemente el carácter del edifício, auque haja que dejarlo mutilado, y las partes nuevas se hacen en condiciones de no poder nunca confundirse com lo antigo (...), apud, 68 69 70 71 72 73 74 M. Mónica BRITO — “As fases de restauro da Capela de São Frutuoso de Montélios. A fragilidade da reintegração nacionalista face à evolução historiográfica”. Museu, 2001, série IV, n.º 10, p. 261. In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques. Braga. 1936-56. Processo Administrativo, vol. 266 ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0266. A palavra conservação classificava, no entanto, as ações empreendidas que continuaram, na prática, a seguir as velhas práticas inspiradas em Viollet-le-Duc. In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, “Memória para Obras de Conservação e Restauro”, DGEMN, Paço dos Duques, Braga, Zona de Protecção, vol. 270, ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0270. In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques, Zona de Protecção, vol. 270, ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0270. Em janeiro de 1956, em resposta ao ministro Arantes de Oliveira, o arquiteto Alberto da Silva Bessa informa o arquitecto Vaz Martins de que (...) o critério que se adoptou de deixar a massa geral por concluir é, quanto a nós, o único a seguir visto não haver conhecimento exacto da sua verdadeira expressão e pormenor (...) in IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques, Braga, 1936-56, Processo Administrativo, vol. 266 ou SIPA, PT DGEMN:DSID 001/003-0266. Devemos notar, contudo, quanto às fases de restauro seguintes que a documentação projetual dá-nos conta de que os arquitetos que se sucederam a Rogério de Azevedo na direção dos trabalhos, se socorreram recorrentemente dos numerosos desenhos, estudos e projetos do primeiro restaurador, muitas vezes repescados do arquivo, para servirem de base a outros com algumas modificações ou acrescentos, como alicerce de pesquisas e inspiração. Cf. o conceito em Vítor SERRÃO — A Cripto-História de Arte: Análise de Obras de Arte Inexistentes. (...) Mercê das ‘reconstituições ideais’, Guimarães vai ficar na posse de um Palácio sumptuoso, magnificente, digno das coisas mais belas, digno talvez de um Rei. Mas as suas paredes continuarão a guardar os indecifráveis segredos da Esfinge, envoltos no mistério que teimosamente as emudece, inabalável fronteira que se ergue entre nós e a verdade (…), in Alfredo PIMENTA — A Propósito do Paço dos Duques, p. 23. F O N T E S D O C U M E N TA I S Arquivo Histórico da Casa de Bragança (AHCB), Francisco Nunes Franklin, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança, s.d. [18..], NNG 2625, MS Lxª/83-I. Arquivo Histórico Militar (AHM), 3.ª Divisão, 20.ª secção, cx. 1, doc. n.º 58. Arquivo da Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), Processo n.º 26-CH-21. Distrito de Braga. Concelho de Guimarães. Paço dos Duques de Bragança em Guimarães. Arquivo Nacional/Torre do Tombo (AN/TT), Padre Luís Cardoso (org.), Dicionário Geográfico, [1758], rolo 327, vol. 18. AN/TT, Casa das Rainhas: Registo das Folhas do Almoxarifado das Terras do Estado da Rainha Fidelíssima, [1761-1774], cx. 62, lv.5; Rendimento dos Corregedores das Vilas de Guimarães, Viseu e Aveiro.[1771-1824], cx. 83, lv. 543; Registo de Emprazamentos, Doações e outros Documentos Relativos aos Reguengos de Guimarães. [1644-1657], cx. 162, lv. 48; Tombo do Reguengo de Guimarães.[1517], cx. 161, lv. 47; Tombo do Reguengo de Guimarães. [1657], cx. 162, lv. 48. Direção de Infraestruturas do Exército/Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar (DIE-GEAEM), J. C. Chelmichy, Inspecção d’Engenharia na 3.ª Divisão Militar. Ante-Projecto do Q.el de Guimarães da Fachada d’entrada, 1870, Dim. 0,56 x 0,40, papel vegetal colado em cartolina, aguarelado, 2025-2-17A-25. DIE-GEAEM, Luís Ignácio Barros LIMA (assinado), Planta Baixa que Mostra Afigura que Tem o Terreno que Occupa o Edifício Antigo Denominado, o Paço na Villa de Guimarães; parte do qual está occopado em quartel do regimento d’Infantaria, n.º 15, 2004- 2- 17 A- 25, Dim. 52 x 44 cm, papel J. Whatman 1819 (Aguarelado), [s.d.]. DIE-GEAEM, Planta do Paço Velho da Senhora Rainha Colocado na Villa de Guimarens [17 de julho de 1816], 2015-2-17A-25. Dim. 51 x 35 cm, papel J. Whatman 1810 (Aguarelado). 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I. 87 88 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Guimarães: cinco edifícios notáveis dos anos de 1930-1950 JOSÉ MANUEL FERNANDES Intróito explicativo Este texto refere e analisa cinco obras que consideramos emblemáticas da arquitetura das décadas de 1930-1950, em Guimarães, executadas quer sobre a área da trama urbana mais central (e “histórica”), quer nas áreas de crescimento da cidade já previstas no(s) plano(s) de urbanização dessa época. Devem mencionar-se assim, neste âmbito, para enquadramento e pano de fundo, quer o Plano de Extensão da Cidade de Guimarães (fig. 1), que o arquiteto José Marques da Silva (1869-1947) concebeu em 1938 (ao qual nos referiremos com mais detalhe a seguir), quer o Anteplano de Urbanização de Guimarães, realizado pelo arquiteto David Moreira da Silva (1909-2002), com aprovação ministerial em 3 de abril de 19531. Moreira da Silva concluiu, em 1929, o curso da Escola de Belas-Artes do Porto (EBAP), estudou depois no Institut d’Urbanism de Paris, entre 1935 e 1938, foi professor da cadeira de Projetos e Obras de Urbanização na EBAP, entre 1946 e 1957, tendo sido ainda coautor, com Étienne de Groer, dos importantes e pioneiros planos para Coimbra e Luanda nos anos de 1940. Os edifícios foram selecionados pela sua qualidade intrínseca, mas, também, pela importância que assumiram na vida da cidade, pelo seu papel na história da arquitetura portuguesa do século XX, ou ainda por serem representativos da obra de autores relevantes. Note-se igualmente a nossa preocupação geográfica, enquanto significadora do crescimento/transformação urbanas, que se reflete na localização diversificada dos cinco imóveis selecionados na planta da cidade, onde de algum modo ajudam a caracterizar o processo de mutação urbana local, em cada sector: o mercado municipal, no eixo da saída a poente do núcleo medievo (Rua Gil Vicente/Avenida Conde de Margaride); a Caixa Geral de Depósitos, no sector a sul do mesmo núcleo, na articulação com o eixo de ligação à estação ferroviária (da Rua de Camões à Ave- nida D. Afonso Henriques); o Cineteatro Jordão, na sequência deste mesmo eixo, a meio caminho da dita avenida; o Palácio da Justiça, do lado oriental da saída urbana, na estrada para Fafe/Felgueiras; finalmente, a moradia moderna, implantada no sector norte, na transversal à Avenida Duarte Pacheco/General Humberto Delgado). Em relação aos autores invocados por via dos edifícios em estudo, há que fazer notar que aqueles foram nascendo sucessivamente nos anos de 1860, de 1890, de 1900 e de 1910, permitindo de algum modo, por amostragem, um “retrato corporativo” de várias gerações de profissionais intervenientes na cidade — uns formados em Lisboa, outros no Porto. Procurou-se também, através desta selecção de obras, ver o reflexo da evolução da arquitetura praticada em Portugal ao longo das décadas centrais do século XX, em relação às sucessivas fases estilísticas e conceptuais: veremos pois obras do Modernismo internacionalista (anos de 1930-1940), da fase neotradicional e nacionalista do Estado Novo (anos de 1940-1950) e da fase da chamada arquitetura moderna do pós-Segunda Guerra Mundial (sobretudo incidente nos anos de 1950-1960). Os dois equipamentos locais selecionados (um mercado e um cineteatro) não foram, por certo, aleatoriamente projetados por autores do Porto; do mesmo modo, também os dois equipamentos estatais escolhidos (o tribunal e o banco) foram execu- Neste artigo são analisados cinco edifícios da cidade de Guimarães, da autoria de cinco arquitetos, selecionados pela importância que tiveram na arquitetura portuguesa nas décadas de 1930 a 1950: o Mercado Municipal de Guimarães, de José Marques da Silva; o Cineteatro Jordão, de Júlio de Brito; o Palácio da Justiça de Guimarães, de Luís Benavente; a agência da Caixa Geral de Depósitos, de António Lino e, finalmente, uma “habitação para uma família de classe média”, de Luís Oliveira Martins. monumentos 33 DOSSIÊ 89 1 | Plano de Extensão da Cidade de Guimarães, projeto de José Marques da Silva, 1938. tados por autores de Lisboa, fruto das ligações mais diretas dos arquitetos da capital ao Estado. Finalmente, a moradia moderna referida é bem um exemplo de que no Norte do país, e na área de influência da EBAP, o ideário arquitetónico moderno estava já em plena propagação na transição dos anos de 1940-1950, enquanto em Lisboa este processo tardava mais. Refiram-se e analisem-se de seguida os vários casos das edificações escolhidas. 1. O Mercado Municipal de Guimarães constituiu uma encomenda encetada em 1926, tendo havido um primeiro projeto em 1927 e um projeto final, o edificado, em 1936, com o desenvolvimento das respetivas obras até 1947. Situado no gaveto da Avenida Conde de Margaride com a Rua Paio Galvão, foi projetado pelo arquiteto José Marques da Silva. Este autor foi o mais importante no Porto nos primeiros anos do século XX, tendo sido diretor da EBAP e o seu principal professor. Arquiteto diplomado pelo governo francês, em 1896, dele podemos referir como alguns dos seus trabalhos fulcrais, no Porto: a Estação de São Bento (1896-1911); o Bairro Operário de Monte Pedral (1899-1904); o Teatro de São João (1910-1920); a casa-ateliê do próprio, na Praça Marquês de Pombal (1909); os Armazéns Nascimento (1914-1927); os liceus Alexandre Herculano (1914-1930) e Rodrigues de Freitas (1918-1933); a companhia de seguros A Nacional, na Avenida dos Aliados (1919). Nestas obras a linguagem arquitetónica de Marques da Silva foi evoluindo, década a década, desde as conceções mais revivalistas, classicizantes e protofuncionalistas até aos temas da Arte Nova (1910-1920) e do estilo Art Déco (1930-1940). Marques da Silva trabalhou um pouco por todo o Minho, de Monção a Barcelos, ou de Braga a Santo Tirso. Em Guimarães concebeu também o projeto para a conclusão da Igreja de São Torcato, bem como os projetos do Parque de São Torcato (1910-1921), do Santuário da Penha (1931-1947) e, sobretudo, da poderosa sede da Sociedade Martins Sarmento, num excelente neo-românico, sóbrio mas monumental, (1903-1908 e 1935-1950) — talvez o melhor exemplo deste estilo edificado em Portugal. Marques da Silva executou também o projeto dos novos Paços do Concelho da cidade (1916), resultante da sua participação no concurso para a construção do imóvel, promessa do presidente municipal Mariano Felgueiras, em 19142, edificação inacabada e demolida em 1942. O edifício municipal viria a inscrever-se na Praça de Mumadona, integrada no Plano de Expansão da Cidade de Guimarães, que Marques da Silva concebeu em 19383, com extensão da urbanização na direção do Monte da Costa, não totalmente realizado. O mercado municipal constitui possivelmente a mais relevante obra do modernismo internacionalista e Art Déco dos anos de 1930-1940 na cidade (fig. 2) — ao mesmo tempo que, embora último abencerragem na obra de Marques da Silva, como sua obra tardia, será o melhor exemplo desta fase estilística de entre os seus trabalhos. O mercado vimaranense, como “mercado-quarteirão”, aberto e pavilhonar (fig. 3), buscando as suas origens tipológicas no conjunto do Bolhão portuense 2 | Guimarães, antigo mercado municipal, fotografia de autor desconhecido, 1941. 90 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 3 | Municipalidade de Guimarães. Projecto do Mercado, planta, desenho de José Marques da Silva, [1936]. ou na Praça da Figueira lisboeta, constituirá também, possivelmente, um dos mais assinaláveis casos de arquitetura de mercado municipal da sua época em Portugal — senão o melhor. Só com o Mercado dos Lavradores, por Edmundo Tavares, erigido no Funchal em 1940, se criou obra de superior pujança, modernista, nesta modalidade funcional. Vejamos e equacionemos, pois, que valores marcantes há a relevar. Uma “fachada de aparato”, desenvolvida ao longo da Rua Paio Galvão (que conduz diretamente ao Toural), perpendicular à Avenida Conde de Margaride, remata a nascente, e oculta o espaço amplo e retangular dos pavilhões de vendas de frescos, 5 | Municipalidade de Guimarães. Projecto do Mercado, corte transversal e fachada principal, desenhos de José Marques da Silva, [1936]. dispostos para poente da dita fachada. Duas entradas laterais, justapostas à fachada, abrem para a Avenida Conde de Margaride e para a Rua Sociedade Martins Sarmento; são estas que permitem a entrada no recinto-pátio interno, que se situa em cota mais baixa relativamente à da frontaria, mediante um sistema de escadas escalonado. Dois corpos corridos, de expressão meramente funcional, alinhados a norte e a sul do recinto, conformam o dito pátio, onde se implantam sucessivos pavilhões térreos. O quarto lado carece de expressão e remate arquitetónico (fig. 4). A organização espacial geral do conjunto escalona assim um corpo com dois pisos, sendo um abaixo do 4 | Guimarães, vista aérea da área do mercado municipal, fotografia de Paulo Pacheco, 2009. monumentos 33 6 | Mercado Municipal de Guimarães, desenhos de estudo com torre do relógio, de José Marques da Silva, [1936]. nível da rua e o outro acima, do lado nascente, constituindo este o corpo arquitetónico mais representativo e emblemático do mercado. Os restantes espaços são menos interessantes como arquitetura, mas não como vivência do mercado — o qual, nesta organização que aproveita o desnível do terreno, recorda a distribuição do Mercado do Bolhão4. O desenho arquitetónico do corpo a nascente parece filiar-se numa estética funcionalista estrita, servida por uma primeira “arquitetura do betão armado”. Assim, parecem corresponder a esta lógica formal, muito estruturalista, a longa galeria com pilares aberta a poente, a série de pilares e pórticos das lojas abertas a nascente e as consolas em betão salientes para a rua (fig. 5). Já a molduração da entrada central, com o frontão encimado por sucessivos volumes piramidais escalonados, bem como os dois remates (também coroados por frontões piramidais), em cada lado dos volumes trifacetados sitos nas extremas laterais do longo edifício, a nascente, surgem como expressões de um estilo DOSSIÊ 91 Art Déco corrente, aplicado nos edifícios e equipamentos públicos portugueses desde os finais dos anos de 1920. Tais remates e coroamentos procuravam certamente realçar e dignificar, “em moderno”, à moda da época, o gosto emergente e geométrico — e nesse sentido inovador — da estética do betão armado e dos novos materiais concernentes. Finalmente, o elã do edifício é “puxado” (quase só) pelas dinâmicas e originais torres de coroamento dos referidos corpos trifacetados (fig. 6), a sul e a norte do volume nascente: são torres de base octogonal, em betão (que parecem ser ventiladores desses corpos), que por sua vez recebem superiormente um volume cilíndrico mais esguio, acima do qual dois pilares “soltos” enquadram um relógio público (um dos leitmotiv deste tempo), o qual é expressiva e ostensivamente assinalado por quatro pequenos discos em betão, horizontais, balançados nas quatro direções possíveis, quase “soltos” no espaço. O relógio está finalmente coberto, no extremo superior, por novo disco, este centrado, igualmente em betão. O todo descrito constitui uma peça de sentido escultural, graciosamente “brincando” com a seriedade municipal do conjunto — mas que resulta, pelo inesperado e pela sua leveza, fortemente caracterizadora do edifício, e dele até o emblema básico5. Parcialmente demolido entretanto, o imóvel e a sua área foram objeto de uma profunda remodelação, no âmbito das operações da iniciativa Guimarães 2012, tendo sido transformados num conjunto de equipamentos culturais multiusos de assinalável valor. 2. O Cineteatro Jordão, de 1938, foi projetado pelo arquiteto Júlio José de Brito (Paris, 1896 - Porto, 1965). Diplomado em Engenharia pela Faculdade de Enge7 | Guimarães, Cineteatro Jordão, fachada principal, 2013. 92 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê tes laterais. Do mesmo autor, o Cine-Teatro Alba de Albergaria-a-Velha, inaugurado uma década depois, em 1948, apresenta também a sala isolada no centro da composição (...)7. Atualmente, o edifício encontra-se desativado, em degradação. 3. 8 | Cineteatro Jordão, planta ao nível do balcão, projeto de Júlio de Brito, 1937. nharia da Universidade do Porto em 1924, formou-se, igualmente, na EBAP, em 1926; foi autor de inúmeras edificações, entre as quais, a propósito do tema em análise, se destaca o Cineteatro São Pedro, em Espinho (também da fase modernista). Filho do pintor José de Brito e de Isabelle Ruffier Pouppeloz de Brito, Júlio de Brito foi professor da EBAP, desde 1926 até 1964, sobretudo nas áreas de Cálculo, Resistência de Materiais, Estruturas e Topografia. Como arquiteto, notabilizou-se pelos seus característicos edifícios desenhados num estilo Art Déco sóbrio, até austero, como o Teatro Rivoli, no Porto, e o edifício A Nacional, em Braga. O Cineteatro Jordão implanta-se a meio da Avenida D. Afonso Henriques, que liga a estação de caminhos-de-ferro, a sul de Guimarães, ao Passeio Público/Toural, central à cidade (fig. 7). Integra-se no gosto modernista do estilo Art Déco, característico da arquitetura dos anos de 1930 em Portugal, servido pelo desenho sóbrio de Júlio de Brito, atrás mencionado. Pela planta, apresentada e analisada por Susana da Silva6 (fig. 8), podemos ver a disposição simétrica da composição da fachada, com um corpo de entrada central tripartida, a partir do qual, de cada lado, se desenvolvem as duas caixas de escada também simetricamente implantadas. No piso de cima, estas escadas desembocam num foyer aberto sobre o átrio de entrada, o qual, por sua vez, conduz a dois lances de escada de acesso ao balcão — sempre na linha de simetria descrita. Embora mantendo um desenho geométrico reticulado, com a sala de espetáculos de forma retangular, a tipologia do “Jordão” insere-se ainda num modelo mais convencional de sala, ligada à anterior tradição teatral, com camarotes seriados, em duas alas dispostas ao longo da sala, após o remate do balcão, aos quais se acede por uma galeria-corredor de desenvolvimento igualmente longitudinal: (...) a tradição ligada à concepção das salas de espectáculo fez manter, ainda que com diferentes configurações e relações internas, o desenho da sala central com circulações periféricas: é o caso do Cine-Teatro Jordão de Guimarães, de Júlio José de Brito, que apesar da sala regular apresenta organização espacial muito tradicional, mantendo frisas de plateia e os camaro- O Palácio da Justiça de Guimarães foi projetado por Luís Benavente (1902-1993), arquiteto formado na EBAP, em 1930 (com “carta de curso” assinada por Marques da Silva, então diretor daquele estabelecimento de ensino). Benavente fez a primeira parte do curso de Arquitetura em Lisboa, onde nasceu, viveu e trabalhou, desenvolvendo uma longa atividade relacionada sobretudo com o restauro de monumentos, tanto no país, como no estrangeiro, sempre ao serviço do Estado português. Autor com assumida atitude neotradicional, considerando-se discípulo de Raul Lino, trabalhou também no restauro de monumentos no então Ultramar português (sobretudo em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, mas também em Goa). Foi co-redactor da Carta de Veneza, de 1964, importante documento internacional que fixou critérios de restauro e de recuperação do património. Das suas obras mais marcantes podem referir-se: dos projetos novos, em Lisboa, o interessante Mercado de Arroios, ainda com desenho modernista (1939-1942), o Bairro Social da Madre de Deus, em Marvila (das mesmas datas), as Escolas Primárias de São José, no Torel (1941-1951), e o edifício do Automóvel Club de Portugal (1947-1952); dos trabalhos de restauro, mencionem-se o Palácio Foz (que incluía a sala de conferência, concertos e cinema da Cinemateca Portuguesa, 1941-1949), o Palácio Presidencial de Belém (na adaptação para a instalação do presidente Craveiro Lopes, 1951-1952), o Palácio de Seteais (adaptação a hotel, 1953-1955) e, fora do país, as obras na Embaixada de Portugal, em Londres (1947-1954), e na Basílica de Santo Eugénio, no Vaticano, em Roma (1947-1951). O Palácio da Justiça de Guimarães foi construído com mão-de-obra prisional e inaugurado em 24 de junho de 19608, tal como a nova edificação da Caixa Geral de Depósitos (CGD) da cidade, descrita de seguida. O Palácio da Justiça foi implantado num local-chave da expansão da cidade para nascente, a Praça de Mumadona, que recebera obras anteriores, não concluídas. Como já foi referido, Marques da Silva encetara o projeto de edificação dos novos Paços do Concelho da cidade na nova Praça de Mumadona — obra iniciada em 1916, parcialmente edificada até 1942. Esta obra, inacabada, foi depois demolida e aproveitada a sua pedra para a edificação do Palácio da Justiça, na mesma praça, nos anos de 1950 (fig. 9). Enquanto a obra dos Paços do Concelho iria ocupar o centro da Praça de Mumadona (onde se chegaram a elevar o primeiro e o segundo níveis9), no eixo de saída da cidade para nordeste, o Palácio da Justiça foi monumentos 33 DOSSIÊ 9 | Guimarães, Praça de Mumadona com a implantação dos Paços do Concelho, obra não concluída e depois demolida, desenho de José Marques da Silva, 1925. 93 10 | Guimarães, planta vendo-se a Praça de Mumadona com a implantação do Palácio da Justiça, em cima à direita. In Guia de Portugal II: Entre Douro e Minho, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. anterior à 1137. implantado no topo sul da mesma praça, deixando o espaço central livre. Este aspeto é importante, pois assinalou a passagem de uma conceção “clássico-rotundista”, com monumento central, à conceção da praça aberta, livre, envolvida por monumentos na sua periferia e alinhamento. Assim, a Praça de Mumadona, sita no sector de expansão para nordeste da cidade, recebeu o edifício do Palácio da Justiça, virado a norte, inscrito entre a Avenida Alberto Sampaio (a sudoeste) e a Rua Cónego Gaspar Estaço (a sudeste), e a eixo da Avenida dos Combatentes (para sul). Refira-se, para melhor enquadramento da importância urbana deste espaço público, que da praça sai, a oeste, a Rua Nun’Álvares e, para este, a rua que liga ao projetado liceu novo. Para nordeste, sai a via que liga ao Paço dos Duques e ao castelo (fig. 10). No catálogo sobre a obra de Luís Benavente10, podemos encontrar uma referência à sua série de trabalhos em Guimarães, encadeados e articulados entre si: (...) Para o chamado ‘Paço dos Duques’, em Guimarães, que fora restaurado e reconstituído com projecto pelo arquitecto Rogério de Azevedo, Luís Benavente estuda o mobiliário ‘de época’, a instalar. Um plano de conjunto do ‘Arranjo Interior do Paço dos Duques de Bragança’ data de 1954-55. Na sequência do estudo, 11 | Guimarães, Palácio da Justiça, fachada principal, 2013. 94 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê Luís Benavente desenvolve o plano urbanístico da Praça de Mumadona, fronteira ao paço — procurando a sua articulação, em conjunto coerente, com outros edifícios monumentais anexos: o antigo Seminário, adaptado a liceu Martins Sarmento (projecto de 1956) e um Palácio da Justiça, ex-nuovo, de 1955. (...) Seguindo uma solução urbana tradicionalista, pela estruturação de um eixo de composição simétrica nos arruamentos, é interessante igualmente, no plano arquitectónico, (...) o entendimento mimético que a fachada do corpo setecentista da igreja do Seminário terá inspirado a Luís Benavente: a composição tripartida dos volumes e de vãos do vizinho Palácio da Justiça parece nele se inspirar de um modo quase directo — mostrando claramente o modo epocal de entendimento dos valores histórico-patrimoniais (...)11. Arquitetonicamente, o edifício é pouco motivador, seguindo os modelos mais ou menos estereotipados das obras para os tribunais do Estado: uma expressão neotradicional no desenho geral, com composição simétrica, apresentando ao centro um pórtico triplo, monumentalizado com colunas de pedra cilíndricas, de duplo pé-direito, que enquadram três amplas varandas de sacada, ao modo dos grandes solares urbanos setecentistas. De cada lado, longos volumes exibem cinco grandes janelões de “andar nobre”, em proporção vertical, ritmados por apilastrados em pedra, sendo as extremas rematadas por sacadas com entablamento ornamentado com relevos (fig. 11). No interior, um amplo átrio central em pedra exibe o desenho das guardas das escadas, também simétricas, num neoclássico “palaciano”, escadas essas que conduzem ao piso nobre — este com patamar marcado por pilares de secção quadrangular em pedra. 12 | Guimarães, Caixa Geral de Depósitos, fachada original, fotografia de autor desconhecido, [1960]. 4. A “Nova Agência da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em Guimarães” foi edificada junto ao Largo do Toural, em área urbana central, reformulada, e rasgada no gaveto sul da Rua de Camões com o Toural, com projeto de 1957 e inauguração em 24 de junho de 1960 — no mesmo dia da inauguração do Palácio da Justiça, atrás analisado, o da comemoração da Batalha de São Mamede, marco que normalmente assinala a independência de Portugal, feriado em Guimarães. Constitui um característico exemplo da chamada arquitetura do Estado Novo, de cariz estilístico e formal neotradicional, neste caso com feição classicizante algo modernizada. A planta, rígida, de desenho ortogonal, contrasta com os edifícios vernáculos e habitacionais da envolvente, e os seus dois alçados urbanos exibem as linhas verticalizantes que acentuam a monumentalização que neste contexto formal e epocal era frequente exibir (fig. 12). A agência foi projetada por António de Brito Macieira Lino da Silva (1908-1961)12, arquiteto formado na Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1936, também autor de projetos como o monumento ao Cristo Rei, em Almada (1952, inaugurado em 1959), ou a Igreja de São João de Deus, na Praça de Londres, em Lisboa (1947-1953). Segundo a informação prestada13, a CGD ocupara inicialmente, desde 1922, os edifícios da cidade onde viria a instalar-se mais tarde o Museu Alberto Sampaio (construções antigas, adaptadas). Depois de 1938, começou a encarar-se a ideia de edificar uma sede nova, datando de 1956 a indicação e a escolha do local para tal, tendo de seguida sido demolidos alguns monumentos 33 13 | Anteprojecto do novo edifício da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência, Guimarães, planta de localização, desenho de António Lino, [1957]. velhos edifícios vernáculos aí existentes. O projeto de António Lino foi executado na sequência deste processo e implantou-se (...) sobre reformulação urbanística da zona (...)14. Passados anos, em 1980-1982, ocorreu uma (...) grande remodelação com alterações parciais da estrutura pelo arquitecto João Santos Jorge (...), tendo havido ainda algumas alterações posteriores, entre as quais (...) remodelação interior e pontualmente no exterior (...)15, pelo arquiteto António H. Pintão. Do que pudemos averiguar, trata-se de um edifício de algum modo “mal-amado” localmente — seja pelo gosto algo pesado, seja pela época impositiva que representa, seja ainda porque para o executar foram sacrificados muitos edifícios preciosos da arquitetura popular urbana vimaranense. Os profusos elementos gráficos e fotográficos fornecidos pela CGD são muito relevantes para a reconstituição do processo do projeto e da obra. Passemos, pois, à sua análise e considerações daí resultantes. A implantação, como se referiu, foi executada por António Lino sobre o plano de urbanização previsto para a área, o qual implicava a demolição de inúmeros edifícios tradicionais, de cariz vernáculo — como demonstra a sobreposição da planta destes sobre a da futura obra da CGD (fig. 13) —, demolições de que só uma parte foi executada, como se vê nas fotos aéreas atuais (fig. 14). Na Memória Descritiva do projeto, assinada por António Lino em 15 de março de 195716, é evidente a sua consciência sobre esta questão, procurando minorar através do seu desenho o efeito das demolições: (...) Determinou o novo plano de urbanização para o local a que este edifício se destina, que esta se localizasse segundo o alinhamento de cuja execução resulta a necessidade de demolição de vários edifícios existentes no local. Assim, a fim de evitar o mais possível a demolição desnecessá- DOSSIÊ ria de construções, foi a planta concebida segundo o apresentado e pelo qual se vê da adaptação atrás referida (...). Em termos de programa e espaços, as plantas do edifício, contidas no projeto de António Lino, de 1957, mostram uma opção de grande simplicidade, com as áreas bancárias dispostas no rés-do-chão (balcão de atendimento ao centro, a eixo da entrada do público; arquivo e caixa-forte à esquerda; gabinete do gerente e escada de acessos ao segundo nível, à direita) e no primeiro andar (armazém e operações de crédito para o público), enquanto os dois seguintes se destinavam a habitação do gerente (segundo andar) e habitação para aluguer (o terceiro), cada um com cinco assoalhadas e quarto de “criada”, como era usual na época. Estes dois últimos níveis tinham entrada separada, com a respetiva escada distinta da outra (num corpo saliente do volume principal de planta retangular) — figs. 15 e 16. Quanto ao chamado “partido estético”, patente nos alçados do mesmo projeto de António Lino, é interessante ver como o autor procura justificar a expressão clássico-verticalista e monumentalizante da fachada principal (de composição simétrica, com pórtico térreo centrado, fig. 17) — depois alterado com um desenho modernizante, de proporção horizontal (fig. 18), sete vãos separados por oito pilastras, rematados numa cornija, com uso abundante de pedra aparelhada: (...) Nem o programa determinado para este edifício nem a época actual nos aconselharia conceber esta obra seguindo religiosamente os exemplos de construção de há muito existentes nas praças vizinhas (...). Também o muito respeito que nos merece o local a que este edifício se destina nos obriga a não dar azo a fantasias de concepção em que se criasse uma obra que satisfazendo os ímpetos modernos desafiasse irreverentemente a respeitabi- 95 14 | Guimarães, fotografia aérea sobre a área do edifício da Caixa Geral de Depósitos (em baixo, à esquerda), fotografia de Paulo Pacheco, 2009. 96 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 15 | Agência de Guimarães. Plantas das fundações, rés do chão e 1.º andar, desenho de António Lino, [1957]. 16 | Agência de Guimarães. Plantas dos 2.º e 3.º andares e coberturas, desenho de António Lino, [1957]. 17 | Agência de Guimarães. Alçados principal e lateral, desenho de António Lino, [1957]. lidade do ambiente (...). Parece-nos que o trabalho apresentado, de linhas sóbrias e de materiais nobres, se coaduna com as necessidades que impuseram a execução deste trabalho e o local que lhe foi destinado (...)17. Assim, a descrição e a justificação do estilo e das opções estéticas é feita segundo os conceitos de “sobriedade” e de “nobreza”, e também pressupondo que o “alto” significado histórico do local impediria “naturalmente” qualquer expressão moderna (que poderia ocorrer se se estivesse nos anos de 1930). Por outro lado, a opção assumida não é a de repetir em pastiche os estilos do passado (como seria talvez nos anos de 1910-1920), mas sim, através de uma operação de “depuração conceptual”, criar um novo “estilo contextual-histórico”, nobre e sóbrio... É assim exposta aqui toda a temática fulcral da arquitetura do Estado Novo, então em plena vigência: uma conceção, aperfeiçoada desde cerca de 1940, ao mesmo tempo antimoderna e anti-revivalista, de base neotradicional, estilizando e simplificando as expressões formais-estilísticas do passado — com recurso nobilitante aos bons materiais, trabalhados por bons artífices, possíveis pela persistência do saber técnico regional e pela barateza da mão-de-obra disponível. O alçado lateral repete em menor escala (três vãos compondo um eixo de simetria) o principal; em paralelo, o autor separa a parte do edifício destinada à CGD da outra, que serve para habitação de aluguer (certamente pelas mesmas razões de “simbólica da dignidade institucional”): separação feita em termos de expressão funcional e de usos, através da marcação autónoma do piso superior, o qual está formalmente separado dos outros três por meio da cornija, que remata os pisos abaixo, assumindo este quarto nível o sentido de um “andar-sótão”, secundarizado — que curiosamente recebe os lintéis curvos que o joanino e o pombalino setecentistas consagraram. monumentos 33 DOSSIÊ O remate global da edificação é o da “marca” da “casa portuguesa”, “chapéu para tudo” — definido pelo beiral expressivo e pela ampla cobertura telhada. Também o acesso aos espaços mais correntes das duas habitações está segregado do corpo público-institucional da CGD (de algum modo “sacralizado”), através da entrada térrea lateral, feita no alçado secundário, apartada da composição simétrica deste — mas aqui com alguma ambiguidade, pois um dos pisos serve para a habitação do próprio gerente da instituição bancária estatal. Um pormenor curioso, por raro, é significativo das dúvidas ou hesitações, em termos das opções estéticas e simbólicas, possivelmente emergentes no ocaso desta época nacionalista (como é a fase dos últimos anos da década de 1950), e está patente num dos dois desenhos de Pormenor da Cantaria da Fachada (fig. 19): referimo-nos ao desenho detalhado do escudo nacional com as cinco quinas, sobrepujado pela esfera armilar, em relevo, para ser executado em granito. Deveria situar-se encastrado na esquina do edifício, sobre o piso térreo, ao nível do suposto “andar nobre”. De facto, está riscado à mão com um “X” a lápis ou caneta, talvez pelo próprio técnico verificador da CGD, ou pelo autor do projeto. Não conhecemos o significado de tal “X”, mas parece indicar discordância ou anulação da integração da peça18. O desenho, sem data, deve corresponder ao processo da obra, entre 1957 e 1960. A peça não foi executada, apresentando o edifício, ao que sabemos, desde sempre, a esquina toda em pedra, curva e lisa. A pergunta é simples: porquê anular, nessa fase e época, o símbolo que culminaria e daria o habitual significado oficial-nacionalista à obra? Por motivos meramente económicos? Mesmo nesse caso, será relevante, na decisão, o enfraquecer da corrente conservadora dos serviços técnicos do Estado (e dos arquitetos que para eles trabalhavam), que então erigia este tipo de construções como símbolos excelsos do Estado Novo. O mais provável será, na nossa opinião (e sem dispor de mais dados exatos), pensar nessa mesma razão como a principal para o ato de reprovação da execução da peça: 1960 já não era 97 18 | Edifício da Caixa Geral de Depósitos, com a fachada térrea modernizada, 2013. 19 | Agência de Guimarães. Pormenor de cantaria da fachada, desenho de António Lino, [1957]. 20 | Agência da Caixa Geral de Depósitos de Guimarães, Betão Armado. Distribuição, desenho de António Lino, [1957]. 98 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 1940, os tempos tinham mudado, não se justificaria tão naturalmente a aposição do escudo nacional em edifício público, mesmo que no coração da “cidade-berço” da nação!! O outro desenho consultado do pormenor da cantaria da fachada apresenta um corte com a colocação das peças de granito definidoras das duas cornijas, de rigoroso recorte clássico; a solução da cobertura era ainda aqui para execução de uma platibanda, com caleira de escoamento (sem beira aparente do exterior), mas que foi alterada na obra para a construção de um saliente beiral, característico da região Norte portuguesa. Talvez aqui, na opção final, tivesse sido decisivo o peso da enraizada tradição construtiva local. Resta analisar sucintamente os temas da estrutura e dos materiais utilizados no edifício. Em relação ao primeiro aspeto, há que referir o uso limitado do betão armado (fig. 20), com as várias plantas da estrutura: vê-se a conceção das lajes de betão, assentes sobre paredes resistentes de pedra, cintadas, sem pilares; apenas surgem dois pilares no piso térreo, para definir a sala de atendimento público, com um espaço de balcão mais rasgado. Noutros desenhos confirma-se esta utilização parcial do betão armado (por exemplo, é estrutural nas escadas, mas não na cobertura, concebida ainda em madeira) — correspondente a uma última época transicional das estruturas mistas (alvenarias e betão), persistente até cerca de 1960 (e ao efeito provocado pelo terrível terramoto de Agadir, que impressionou internacionalmente, tendo sido na sua sequência alterado o regulamento do betão armado em Portugal). Estava iminente a utilização sistemática, obrigatória e amplamente difundida, dos sistemas integrais de betão armado, pilar-viga-laje, em todas as edificações públicas. Quanto ao uso de materiais, a “nobreza” do granito exterior e interior, articulada pela aplicação de ferros forjados de desenho também “sóbrio” (fig. 19) é, uma vez mais, justificadamente invocada pelo autor, que refere na sua Memória Descritiva: (...) Predominará o granito no paramento do edifício intercalando-o com alguns motivos de massa de tom mais alegre, destacando-se sobre isto o recorte dos seus ferros forjados, sóbrios e sem fantasias (...). Assim era, em 1960, a arquitetura pública de iniciativa estatal em Guimarães. 5. A “Habitação para uma família de classe média”, como está referida numa revista de arquitetura, ao mencionar o título do trabalho de tese apresentado em contexto académico19, foi projetada por Luís Oliveira Martins (Lisboa, 1918 - Porto, 1997) — fig. 21. Luís José Oliveira Martins realizou o seu curso de Arquitetura na EBAP, em 1937-1943, e fez o Concurso para Obtenção do Diploma de Arquiteto (CODA), tendo obtido a classificação de 19 valores, em 1950. Foi membro fundador da Organização dos Arquitetos Modernos no Porto (ODAM), em 1947-1952, participando na exposição deste grupo realizada no Ateneu Comercial daquela cidade, em 1951. Antes, tinha apresentado uma tese no 1.º Congresso Nacional de Arquitetura, em 1948, sempre na linha de defesa dos valores modernos. Posteriormente, a obra de Oliveira Martins veio a realizar-se, em grande parte, sobretudo em Viseu, de que são exemplos os projetos da Pousada para Vilar Formoso (1964) e o da Casa de Saúde de Viseu (1966). O projeto de Oliveira Martins para Guimarães foi quase de seguida publicado na revista Arquitetura n.º 40, de outubro de 1951, organizado por um grupo de autores bem representativo da geração moderna recém-formada: Celestino de Castro (1920-2007), Huertas Lobo (1914-1987), Castro Rodrigues (n. 1920) e Hernâni Gandra (1914-1988). E foi-o como exemplo de obra moderna concebida em Portugal, numa fase histórica de combate entre a modernidade emergente, que se pretendia afirmar, e uma arquitetura neotradicional retrógrada que, apoiada pelo Estado, teimava em persistir. Repare-se que, dez anos depois da conceção desta moradia, ainda se iriam construir e inaugurar duas obras claramente dentro da retórica oficial nacionalista, atrás mencionadas, o Palácio de Justiça e a CGD! Note-se ainda que, nesse mesmo número da revista Arquitetura, eram apresentados projetos modernos internacionais de gabarito (Centro Urbano Presidente Aleman, no México), bem como as atas oficiais do VII Congresso Internacional da Arquitetura Moderna (CIAM), que defendiam e propagavam a arquitetura moderna em todo o mundo, além de se referir à VI Exposição Geral de Artes Plásticas, onde esta mesma modernidade ensaiava a sua difusão no país20. O autor da moradia de Guimarães, imbuído da ideologia moderna então propagada pela escola de arquitetura do Porto, defendia com clareza e intensidade os princípios inovadores que presidiam à conceção do seu projeto, como reza o texto justificativo incluído no seu CODA: (...) Julgo dever começar por definir que tenho por ‘Arquitectura Moderna’ não uma receita mais ou menos dogmática, mais ou menos ortodoxa, mas sim uma súmula de conceitos gerais, sínteses da intervenção duma vasta pleiade de arquitectos e técnicos notabilíssimos, do nosso tempo, cujas contribuições teóricas e práticas são inúmeras e universais (...). Uma das características dominantes desta Arquitectura é justamente a ausência de preconceitos, único ponto de vista que a torna compatível com o estudo dos aspectos novos dos problemas básicos e das correspondentes soluções (...). Por outras palavras: nunca como hoje a arquitectura pôde expressar melhor — pela enormidade de recursos — a sua finalidade e melhor se adaptar ao meio ambiente, social e geográfico (...)21. Noutro passo do seu discurso, Oliveira Martins reage contra o tema e o peso da chamada “arquitetura oficial” que a modernidade que defendia combatia (de modo indireto embora, na linha da referência subentendida monumentos 33 21 | Guimarães, Casa Dr. António Rocha, painel de desenhos com estrutura, plantas e alçados de Luís Oliveira Martins, [1950]. In rA — Revista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, n.º 0, out. 1987, p. 13. que a autocensura da época encorajava): (...) Eis porque se torna insidiosa e mesmo irrisória a ideia da obrigatória uniformidade, da inevitável monotonia, da Arquitectura Moderna. Eis porque se torna absurda a pretensão de criar uma Arquitectura, fechada, que nada possua de comum com a Arquitectura da sua época (...)22. De seguida, no mesmo texto, o autor invoca e enuncia os habituais princípios modernos (aspectos básicos da Arquitectura e do Urbanismo) decorrentes da Carta de Atenas (Habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito, circular), para se referir depois expressamente ao projeto concreto: (...) A forma da planta é, em princípio, consequência das limitações do terreno. A distribuição interior da casa funda-se num esquema claro de circulações e na disposição lógica das diferentes zonas, proporcionando-lhes a DOSSIÊ necessária independência e simultânea correlação. Procurou-se dentro do espaço limitado e reduzido [existente] obter perspectivas largas, quanto possível, reduzindo os elementos de separação — divisórias — nas zonas de estar, particularmente, proporcionando aquela maleabilidade e elasticidade características de uma habitação moderna (...). E, se é certa a ausência de espaço circundante (...) [desprende-se] do edifício uma sensação de liberdade, de espaço, arrumado pelo jogo de volumes (...)23. O edifício, pela modernidade quase panfletária que implicava, cerca de 1950, na sua construção na área consolidada de Guimarães, totalmente envolvido por arquiteturas tradicionais, e com elas necessária e fortemente contrastante, assumiu desde sempre o papel e efeito singular da “obra moderna cravada na cidade” — símbolo da cultura edificada própria dos novos 99 100 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê tempos, erigida por iniciativa de uma elite culta local, e representativa dos valores da geração moderna da Escola do Porto, na transição dos anos de 1940 para os de 1950 (fig. 22). Consagrada no meio local, ao longo do tempo, esta moradia veio a ser estudada e referida criticamente por Sergio Fernandez24, referindo-se-lhe como projeto de coautoria com Delfim Amorim (também formado na EBAP em 1947, emigrou nos inicios dos anos de 1950 para o Brasil, tendo desenvolvido em Pernambuco uma intensa atividade criativa e construtiva, sobretudo na arquitetura urbana do Recife): (...) Em [19]49, Oliveira Martins e Delfim Amorim projectam uma pequena habitação para A-Ver-O-Mar. (...) A casa que projectam, em [19]51, para Guimarães propõe uma organização interna relativamente convencional. O tratamento exterior acusará, no entanto, o uso dos elementos característicos do estilo internacional, aqui com uma justificação que parece ser eminentemente formal; fenestração horizontal, cobertura balançada apoiada por pilares de ferro e ‘pilotis’, localizados a curta distância da parede de alvenaria aparente que envolve o rés-do-chão, ligeiramente recuado em relação ao andar (...)25. Esta leitura parece-nos agora algo injusta, e sobretudo desfasada da real construção existente, cuja filiação na leitura de Vila Sabóia é clara e corajosa, embora condicionada (como de resto o(s) autor(es) assume(m)), pela escassez do terreno disponível: veja-se, observando o projeto, como de facto a planta do piso térreo se “solta” completamente do piso su- perior e da maioria dos ‘pilotis’; e, no quadro da sua época, parece abusivo enquadrar já a obra no “Estilo Internacional”, quando ainda se procurava afinal, e apenas, afirmá-la como exemplo do Movimento Moderno contra os estilos oficiais e historicistas então dominantes... Esta obra foi incluída mais tarde na seleção do Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal26 estando referida naquela publicação como a Casa Dr. António Rocha, na Rua Agostinho Barbosa número 44 (à Avenida Duarte Pacheco, atual Avenida General Humberto Delgado), por Luís Oliveira Martins e Delfim Amorim, de 1947. Continua como o exemplo maior da fase instauradora do espaço moderno na cidade. José Manuel Fernandes Arquiteto Imagens: 1 a 3, 5, 6 e 9: Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva; 4, 8, 14: Câmara Municipal de Guimarães; 7, 11, 13, 15 a 20 e 22: IHRU/Sistema de Infomação para o Património Arquitetónico; 12: Arquivo da Caixa Geral de Depósitos/Sogrupo GI. N OTA S 1 Cf. Margarida Souza LÔBO — Planos de Urbanização. A Época de Duarte Pacheco, p. 275. 2 Ver MARQUES da Silva, o Aluno, o Professor, o Arquitecto, pp. 240-243. 3 Ibidem, pp. 248-249. 4 Ibidem, pp. 206-213. 5 Ibidem, p. 206. 6 Susana Constantino Peixoto da SILVA — Arquitectura de Cineteatros: Evolução e Registo (1927-1959), pp. 134-136. 22 | Casa Dr. António Rocha, fachada principal, 2013. monumentos 33 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 Idem, ibidem, pp. 135-136. António Manuel NUNES — Espaços e Imagens da Justiça no Estado Novo, p. 374. MARQUES da Silva, o Aluno, o Professor, o Arquitecto, pp. 240-243 e 248-249. José Manuel FERNANDES (coord.); Maria de Lurdes JANEIRO (coord.) — Luís Benavente. Arquiteto, pp. 30-31. Idem, ibidem, pp. 30-31. Cf. documento consultado nos serviços centrais da CGD — Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar Construir em Guimarães —, disponibilizado pelos arquitetos José Sousa Martins e José Martins da Costa, a quem agradecemos. Pelo gerente da agência, Senhor Eduardo Soares Pinto, a quem igualmente agradecemos. Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar Construir em Guimarães. Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar Construir em Guimarães. Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar Construir em Guimarães. Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar Construir em Guimarães. No desenho consultado no Arquivo da CGD surge representado o “X”, o que não sucede neste que aqui se reproduz por se tratar de uma cópia pertencente ao SIPA. rA — Revista de Arquitectura, out. 1987, n.º 0, p. 13. Cf. José Manuel FERNANDES — “Índice classificado e comentado da revista Arquitectura n.os 26-50”. Arquitectura, jul. 1979, 4.ª série, n.º 134, 1979, p. 69. rA — Revista de Arquitectura, out. 1987, n.º 0, p. 13. Ibidem, p. 13. Ibidem, p. 13. Sergio FERNANDEZ — Percurso. Arquitectura Portuguesa 1930/1974. Idem, ibidem, pp. 82-83. José AFONSO (coord.) — IAPXX: Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal, p.125. DOSSIÊ B I B L I O G R A F I A AFONSO, José (coord.) — IAPXX: Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2006. ARQUITECTURA Pintura Escultura Desenho. Património da Escola Superior de Belas-Artes do Porto e da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Porto: Universidade do Porto, 1987, catálogo da exposição. FERNANDES, José Manuel — “Índice classificado e comentado da revista Arquitectura n.ºs 26-50”. Arquitectura. Lisboa: Casa Viva Editora, jul. 1979, 4.ª série, n.º 134, pp. 68-69. FERNANDES, José Manuel — Arquitectura Modernista em Portugal 1890-1940. 2.ª ed. 2005. Lisboa: Gradiva, 1993. FERNANDES, José Manuel (coord.); JANEIRO, Maria de Lurdes (coord.) — Luís Benavente Arquitecto. Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 1997, catálogo da exposição. FERNANDES, José Manuel — Português Suave. Arquitecturas do Estado Novo. Lisboa: IPPAR, 2003. FERNANDEZ, Sergio — Percurso. Arquitectura Portuguesa 1930/1974. Porto: FAUP Publicações, 1988. GUIA de Portugal II: Entre Douro e Minho — Minho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, antes da p. 1137. LÔBO, Margarida Souza — Planos de Urbanização. A Época de Duarte Pacheco. Porto: FAUP Publicações; DGOTDU, 1995. MARQUES da Silva, o Aluno, o Professor, o Arquitecto. Porto: Fundação Arquitecto José Marques da Silva; Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2006, catálogo da exposição. NUNES, António Manuel — Espaços e Imagens da Justiça no Estado Novo. Templos da Justiça e Arte Judiciária. Coimbra: Minerva, 2003. PEDREIRINHO, José Manuel — Dicionário dos Arquitectos Activos em Portugal do Século I à Actualidade. Porto: Afrontamento, 1994. rA — Revista de Arquitectura. Porto: FAUP, Out. 1987, n.º 0, p. 13. SILVA, Susana Constantino Peixoto da — Arquitectura de Cineteatros: Evolução e Registo (1927-1959). Equipamentos de Cultura e Lazer em Portugal no Estado Novo. Coimbra: Almedina, 2010. Efetuaram-se diversas consultas via Internet ao Google e à Wikipédia. Agradece-se ao arquitecto Elisiário Miranda os dados e as referências bibliográficas que nos cedeu. 101 102 DOSSIÊ monumentos 33 Pousada de Santa Marinha da Costa, 1976-1985 A L E X A N D R E A LV E S C O S TA Tenho escrito, ao longo da minha vida, alguns textos sobre Fernando Távora, que agora reli com alguma curiosidade. Constatei, com desgosto, como a tentativa de transformar em discurso crítico e interpretativo, o que é visível e tão claro na sua obra, foi redundante e demasiado fácil. E, na impossibilidade de me remeter para o discurso hermético, abundante de referências extradisciplinares, que hoje transformou grande parte da crítica de arquitetura numa atividade ensaística de superespecialistas afastados do ofício, vejo que me coloquei sempre, em relação a Távora, numa posição mais próxima do biógrafo. Talvez, também, por respeito à sua figura tão próxima e familiar. Assim, deixei, definitivamente, para outros a tarefa de o relerem com verdadeira distância crítica e, por isso, retomo um texto de 1998, publicado nessa data na DPA 14, Documents de Projectes d’Arquitectura, revista do Departament de Projectes Arquitectònics de la Universitat Politècnica de Catalunya. Não me coibi de corrigir aqui e ali o texto original. 1. Em Távora se revê a Escola do Porto, pelo menos até agora. Com ele construímos os alargados consensos que nos permitiram enfrentar os desequilíbrios ou os novos equilíbrios da contemporaneidade. A sua lição fundamental decorreu, simplesmente, da sua capacidade única para distinguir o essencial do supérfluo ou circunstancial e, enquanto nos dividíamos pela circunstância, com ele nos uníamos no reforço e na consideração dos valores mais perenes, cimentados pela presença permanente de uma moral que nunca admitiu qualquer atropelo na defesa da dignidade do Homem. Uma tal abstração poderia ter aberto caminho a todas as perversidades se não estivesse, como no seu caso, ativamente vigilante na construção da felicidade de todos os homens, respeitadas as sua diferenças e por elas olhados e amados no dia-a-dia da vida tão apaixonadamente vivida. Foi neste aparente paradoxo da referência à essência e do apego à qualidade do momento que Távora construiu o seu magistério e a sua obra, como resultado natural da sua forma de estar no mundo. Vivendo intensamente o dia-a-dia, é com a memória que vai construindo o seu comportamento, utilizando em rede os seus estratos, não hierarquizados, conforme lhe vão sendo úteis, trazendo-os para o quotidiano, nunca sacralizando nenhum deles, num tempo que cristaliza todos os tempos, como se esse fosse o tempo único de uma vida sem princípio nem fim, sem o percurso que marca o fluir até à morte, sempre tomada como um absurdo. Os seus relatos autobiográficos são de homem adulto. A infância, o seu começo, não lhe interessa, tal como as paisagens naturais, ainda não humanizadas; nem a música, estranhamente, talvez por ser demasiado abstrata, talvez porque para a ouvir se tenha que comprometer com outra lógica que não é a sua própria e que o obriga a um exercício de apagamento que não lhe proporciona nenhum prazer, diríamos, físico. É o homem, na sua madura vitalidade, o centro imutável do seu mundo. No início da década de 1970, o antigo Convento de Santa Marinha da Costa, em Guimarães, encontrava-se abandonado e em avançado estado de degradação, mas, excluídas as alterações introduzidas aquando do seu uso como habitação após a extinção das ordens religiosas, a sua estrutura mantinha-se intacta. O critério geral adotado no projeto de reconversão do edifício para adaptação a pousada, da autoria de Fernando Távora, foi, como o próprio afirma, o de (…) continuar-inovando, (...) conservando e reafirmando os seus espaços mais significativos ou criando espaços de qualidade resultantes de novos condicionamentos programáticos (…). Constitui uma notável obra e, deixando para outros a tarefa de a relerem com verdadeira distância crítica, retoma-se um texto publicado em 1998, corrigindo-se pontualmente a versão original. monumentos 33 Por isso nos disse que conta a relação com a vida e não o estilo, e as suas aulas foram uma demonstração permanente desta tese. E ao contrário do habitual discurso iniciático dos mestres sobre a dificuldade e a excelência do campo do conhecimento de que se julgam especialistas únicos, Távora explicou aos seus alunos que desenhar é tão natural como respirar e que o ofício de fazer arquitetura, como qualquer outro, não é apanágio de alguns iluminados. Por isso, as suas lições reservaram a maior dignidade da porta que se abre aos novos estudantes. Por isso, as suas lições marcaram profundamente o que tem sido chamado de elitismo da Escola do Porto, que não é mais do que a rejeição constitutiva de qualquer “estilismo” cenográfico e anedótico, a pretexto ou com o álibi da morte das visões totalitárias, da mobilidade e da dispersão do mundo contemporâneo. Reconhecendo a impossibilidade de aplicação pura de qualquer modelo teórico, ensinou-nos que o futuro será sempre incerto e a obra de arquitetura sempre sujeita a novas intervenções transformadoras. A sua obra cria uma ambígua atmosfera entre o antes e o agora, como se entre esses dois mundos, por vezes tão distantes temporalmente, não existissem, de facto, descontinuidades ou ruturas estruturais. É, assim, também na obra, a invenção absoluta de um tempo ilusório que se fixa num único momento que tem o valor metafísico da eternidade. A sequência dos sedimentos não constitui uma narrativa linear que tenhamos que percorrer. Existem, estão presentes, leem-se e constituem-se, numa síntese intemporal, como cenário que conforma e qualifica o espaço onde vivemos a nossa contemporaneidade. DOSSIÊ 103 (…) Na realidade eu sou muito português; tenho muitas influências, mas não de modo permanente. A arquitectura influi-me, mas também muitas outras coisas. O que mais gosto é de passear com os clientes, comer com eles; com humor, com gosto pela vida. Amar os trabalhos. Vivi sempre um pouco afastado das questões formais. Interessa-me mais que as pessoas se sintam bem, que a obra se leve a cabo em clima de boas relações; não me agradam os conflitos. Para mim projectar é como comer ou dormir, uma coisa natural. Sei que isso, agora, não é muito comum, mas cada um é como é. Há gente que acredita que por ler um livro, ver uma peça de teatro ou vestir-se de certa maneira, já se é outra coisa; mas as raízes são mais profundas do que parece (…). Carlos Martí Aris (ed.), “Nulla dies sine línea. Fragmentos de una conversación con Fernando Távora”, DPA14, Barcelona, Universitat Politècnica de Catalunya, 1998. É extraordinário que em plena cultura ocidental se produza este espaço e este tempo absolutos, como se do Oriente nos tivesse chegado esta serenidade que procura evitar o cansaço do percurso físico. Távora nunca abandonou a fidelidade, sempre afirmada, ao Movimento Moderno. Mas, ao contrário de outros, talvez mais velhos e imaturos, transformou a fidelidade em coisa inclusiva e não exclusiva. Daí a sua continuidade, a sua coerência e, sobretudo, a sua permanente contemporaneidade. Mas o que marcou profundamente a sua Escola, ao longo dos seus mais de quarenta anos de magistério, foi a compatibilização desta convicção moderna com a tentativa de elaboração de um método e não com a 1 | Guimarães, Pousada de Santa Marinha da Costa, levantamento das fases históricas do edificado, representado em duas escalas, Fernando Távora, s.d. 104 DOSSIÊ monumentos 33 2 | Pousada de Santa Marinha da Costa, Projecto de Execução, planta geral, Fernando Távora, outubro de 1975. defesa e transmissão de um código formal; foi a consideração da História como um instrumento operativo para a construção do presente; foi não só a consideração da arquitetura na sua adequação construtiva e funcional, mas sobretudo como representação de cada um (...) porque representa todos, fazendo de cada edifício um corpo vivo, um organismo com alma e imagem próprias (...). Nunca se tratou, na sua obra nem no seu pensamento, de revogar o Movimento Moderno. Tratou-se de manter uma ordem arquitetónica com valor universal que o integrasse e redefinisse permanentemente. Para Távora, servir o real não foi nunca rejeitar as aportações inegáveis do racionalismo e a ascese real que ele significa para a Arquitetura. Foi tomar uma posição corajosa de busca inquietante, no aceitar que cada tema tem o seu caráter, a sua problemática específica, a sua expressão própria. Ultimamente, no entanto, temia o futuro, tal como temia a morte: (...) já sinto saudades das árvores, dos pedreiros (...). As nuvens negras da destruição da paisagem natural e construída, causadas pela substituição dos modos de produção por nada que reconstruísse, para ele, uma alternativa credível, transformaram a sua liberdade numa obsessiva busca da ordem, da simetria, do equilíbrio clássico entre as partes, espécie de manifestação de resistência à desordem e ao seu próprio pessimismo. E se gloriosa foi a Casa sobre o Mar, já tão apagada na admiração de um Le Corbusier de certezas, como quem diz, como Rimbaud, (...) il faut être absolument monumentos 33 DOSSIÊ 105 moderne (...), gloriosa é, também, a Torre dos Paços do Concelho, saída da sabedoria do que é preciso. 2. O projeto de reconversão do arruinado Convento de Santa Marinha da Costa tem um valor ímpar na história recente da arquitetura portuguesa por constituir, mais do que uma notável obra, a abertura precoce de um novo período na história e vivência do património1. A Carta de Veneza, determinando que a intervenção nova se deve manter claramente diferente da antiga e, ajudando a esclarecê-la, deve mostrar-se e mostrá-la, levou a que muitos trabalhos de reutilização de edifícios, no seu afã de afirmação da nossa época, tantas vezes retórica, neutralizassem a preexistência, tomada como pano de fundo, lugar estabilizado e intocável. Esta posição respeitadora, embora do passado que não lhe interessa interpretar, impõe a sua marca, estabilizando para sempre a vida do edifício ou do conjunto. Normalmente, o tipo de intervenções que produz é ostensivo na explicitação, tantas vezes retórica, da contemporaneidade. Reaberto o debate sobre a intervenção nos edifícios ou conjuntos de interesse patrimonial que se segue à aceitação da rigidez normativa da Carta de Veneza, paralelamente à criação de um cada vez mais complexo corpo de jurisprudência e à elaboração de planos de salvaguarda sobre a defesa e valorização dos bens patrimoniais, tende hoje a considerar-se que cada caso é um caso e que a teoria da intervenção nascerá de cada circunstância, nunca generalizável, de que fazem parte não só a expressão da individualidade de cada autor, como a obrigação ética de um rigoroso e exaustivo reconhecimento histórico e arqueológico do edifício a transformar. Do “silêncio” à intervenção ativa e transformadora do próprio edifício ou conjunto, a novidade é a consideração da História como matéria de um projeto de autor. No panorama da melhor arquitetura que se pratica em Portugal podemos alinhar algumas opções distintas que permitiram o alargamento do debate a partir do estudo de alguns casos. (…) Não há muito tempo projectei uma casa para uma família abastada. Tinham comprado uma casa antiga pensando recuperá-la, confiando no antigo como signo de representação social. Mas a casa, como construção, não tinha nenhum interesse. Convenci-os que o melhor seria demoli-la e aproveitar o que tinha de bom: a implantação, o volume, a relação com a paisagem. É a mesma ideia de uma casa antiga, mas muito melhor, porque eu, com os meios de que hoje dispomos, posso fazer uma casa melhor do que as que se faziam antigamente (…). Carlos Martí Aris (ed.), “Nulla dies sine línea. Fragmentos de una conversación con Fernando Távora”, DPA14, Barcelona, Universitat Politècnica de Catalunya, 1998. Na Pousada da Flor da Rosa (1995), de Carrilho da Graça, o edifício antigo é o documento/monumento, respeitado, cuidadosamente restaurado e abandonado. A intervenção nova distingue-se e afasta-se, física e morfologicamente. Tem uma lógica de composição a que nada importa a do anterior edifício, respeitando, sobretudo, os valores de escala ou de textura que favorecem uma valorização recíproca, cada um a servir de cenário ao outro. Os poucos momentos de interceção, sempre no espaço interior, referem a reversibilidade da “decoração” moderna. Trata-se de uma respeitável e sensível interpretação da Carta de Veneza. No Convento do Bouro (1998), de Souto de Moura, o edifício preexistente é apropriado, depois de fixado o seu caráter de ruína. É o espaço da ruína que é habitado. A construção é consolidada sem interpretação, nem reconhecimento do seu caráter. São apagados vestígios que possam perturbar a sua pacificação; o telhado não é reconstruído; as novas funções são alojadas, com aparente pragmatismo, sem necessidade de nova apropriação de espaços que tiveram funções idênticas no passado. O usufruto da ruína é um prazer puramente estético, a intervenção apaga-se em absoluto minimalismo expressivo. O aparente romantismo da posição, humildemente passiva em relação à interpretação dos valores da história do edifício, esconde a transformação absoluta da construção em obra de autor, na sua totalidade. A Casa dos Bicos (1983), de Manuel Vicente, Daniel Santa Rita e António Marques Miguel, é, no polo oposto do Bouro, verdadeiramente romântica, na sua vertente não ruinista, mas de reposição historicista e revivalista à maneira dos finais de Oitocentos. A consideração da História pelo lado da linguagem da decoração que se usa, estilizada mas ostensivamente modernizada, abre caminho a alterações estruturais de fundo. Uma Casa dos Bicos neomanuelina para usos do século XX. Assim, uma fachada 3 | Pousada de Santa Marinha da Costa, vista geral, fotografia de Luís Ferreira Alves, 2009. 106 DOSSIÊ monumentos 33 cenográfica, rigorosamente reposta, esconde ou dá acesso aos espaços total e livremente projetados. A visita a todos estes edifícios é acompanhada de folhetos explicativos da sua história. E pode assim ser, porque lhes puseram termo. A intervenção atual não faz parte da narrativa. Inicia e acaba outra. Assim se vai mantendo criticamente a Carta de Veneza ou se vai dela fazendo tábua rasa. Fernando Távora entra no Convento da Costa, futura Pousada de Santa Marinha em Guimarães, com uma postura próxima da simplicidade com que os nossos mestres-pedreiros sempre encararam a continuação ou a alteração das obras dos seus predecessores. Assim o fizeram todos os mestres da Batalha ou dos Jerónimos, atualizando linguagens, sem alterações de conteúdo; assim o fizeram no Convento de Cristo de Tomar, alterando e sobrepondo linguagens correspondentes a novos conteúdos decorrentes de uma forte ideologização das intervenções. Escreve ele próprio no boletim, publicado pela Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, um verdadeiro texto doutrinário, a seguir a uma inestimável “Notícia Histórica” de autoria de Manuel Real: (...) O critério geral adoptado no Projecto da Pousada de Santa Marinha foi o de ‘continuar-inovando’, isto é o de contribuir para a prossecução da vida já longa do velho edifício, conservando e reafirmando os seus espaços mais significativos ou criando novos espaços de qualidade resultantes de novos condicionamentos programáticos. Pretendeu-se aqui um diálogo, afirmando mais as semelhanças e a continuidade do que cultivando a dife- rença e a ruptura. Tal diálogo constitui um método por meio do qual se sintetizaram as duas vertentes complementares a considerar na recuperação de uma pré-existência: o conhecimento rigoroso da sua evolução e dos seus valores, através da arqueologia e da história, e uma concepção criativa na avaliação desses valores e na elaboração do processo da sua transformação. É certo que a pousada introduzirá novo uso no velho convento, mas é certo, também, que se ‘os homens fazem as casas, as casas fazem os homens’, o que justifica a manutenção, no edifício actual, de uma escala e de um ritual de espaços que, traduzindo a presença de um passado que seguramente não volta, aqui se recordam e se mantêm pela actualidade do seu significado e pela sua capacidade de identificação. (…) Nos meus projectos, não pretendo outra coisa senão materializar o que outros desejam ou imaginam. Para isso há que dar tempo aos trabalhos, à construção, conseguir que não pareçam um cenário de teatro. Interessa-me que a obra apareça no final com uma certa densidade; a arquitectura se não tiver densidade é como uma pena de um pássaro. Por isso gosto de intervir em edifícios existentes. O mais belo, num trabalho, é que possa ser como uma flor. Uma flor não se discute; é alguma coisa que nos é dada com absoluta determinação, alguma coisa cuja solução tem um certo grau de fatalidade. Para conseguir isto é preciso trabalhar com constância (…). Carlos Martí Aris (ed.), “Nulla dies sine línea. Fragmentos de una conversación con Fernando Távora”, DPA14, Barcelona, Universitat Politècnica de Catalunya, 1998. monumentos 33 DOSSIÊ 107 4 | Pousada de Santa Marinha da Costa, Projecto de Execução, alçado A1, Fernando Távora, outubro de 1975. O que justificará também, e aqui, uma certa austeridade monástica manifestada através de uma grande economia de meios e de uma extrema simplicidade nas soluções adoptadas, quer a nível de espaços quer a nível do seu tratamento, decoração e mobiliário (...)2. Távora trabalha e molda a preexistência, usa-a como matéria de projeto. Relê nela o fluir da história e, aceitando sobreposições ou aposições estilísticas ou de linguagem, usa de todos os meios para o clarificar. Não prescindindo da investigação histórica e arqueológica, anota fases de desenvolvimento, dando-lhes sem moralismo, uma nova dignidade. A intervenção atual é mais uma, desenhada com regras claras que resultam da interpretação da história, incluindo a contemporânea. A posição de Távora é tão ativa e obrigatoriamente culta que pode atuar, também, restaurando, corrigindo, repondo ou, ao contrário, demolindo qualquer elemento espúrio que provoque opacidade na leitura clara da essência do projeto global, entendido como um processo coletivo de longa duração. O que fica dito e é depois concretizado em posteriores projetos, do Mosteiro de Refóios ao Anfiteatro de Direito da Universidade de Coimbra e, mais recente, o denominado conjunto do Palácio do Freixo, é que Távora encontra a regra a partir do existente sempre legível em cada obra única e insubstituível. A valorização hegemónica é, apesar de tudo e inevitavelmente, a do seu projeto ordenador, para que a ordem, que é a sua aspiração, inclua todas as épocas, sem moralismos nem aprioris estilísticos. Távora não quer habitar o caos, como se de esplendor se tratasse, quer habitar o próprio esplendor. Estética e ética, ambas início e fim de um percurso, sempre inclusivo, de reflexão e desenho, fazem Távora atravessar o século com a consciência permanente de que (…) a analogia do belo com o bom não é a analogia do absoluto, mas a analogia da necessidade do limite (…)3. A sua moralidade impede-o de deixar espaço ao demasiado belo, aceitando o caminho da heterodoxia para atingir a utilidade da arquitetura. (…) A aceitação da heterodoxia, por mais dolorosa que seja, evita o patético, por inútil, do brilho cristalino, na sordidez do não-lugar (…)4. Não o esqueceremos nunca, devendo-lhe, ainda, ouvindo-o sempre, tudo o que fizemos, pior do que ele faria, em Idanha-a-Velha. Alexandre Alves Costa Arquiteto Professor Jubilado da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto Imagens: 1, 2 e 4: Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva; 3: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. N OTA S 1 2 3 4 Pousada de Santa Marinha, Guimarães. Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Lisboa: Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1985, n.º 130, p. 77. Ibidem, p. 77. Alexandre Alves COSTA — “Da necessidade do limite”. 96 Conversas. Porto: AE FAUP, 1997. Idem, ibidem. 108 DOSSIÊ monumentos 33 Entre terras de campo e bons castanheiros: o Campus de Azurém da Universidade do Minho EDUARDO FERNANDES A Universidade do Minho (UM) foi fundada em agosto de 19731, tendo recebido os primeiros estudantes no ano letivo de 1975-1976. A sua comissão instaladora entrou em funções em fevereiro de 1974, defendendo um modelo de “Universidade de Grupos de Projeto” (por oposição a uma estrutura organizada em faculdades ou departamentos) assente num sistema matricial estruturado em Unidades de Ensino, Unidades de Investigação e Unidades de Apoio, o que justificava a escolha de instalações de “tipo concentrado”, materializadas numa configuração de campo universitário, que se pretendia aberto à comunidade2. Enquanto decorria o debate sobre a localização do novo campus, o ensino iniciava-se em instalações provisórias, em Braga3 e em Guimarães4; nesta cidade, a universidade funcionava inicialmente no Palácio de Vila-Flor, adquirido pela câmara municipal em 19765. Muito embora em 1976 a Comissão Instaladora da Universidade do Minho se refira à necessidade de dar resposta urgente à questão (...) Universidade do Minho: onde6 (...), a localização do campus de Guimarães permanecia ainda em aberto dois anos mais tarde, quando o Relatório da Agência de Desenvolvimento Regional refere a (...) necessidade de os órgãos locais [Câmara e Assembleia Municipal] poderem intervir no processo de definição e organização das projetadas instituições universitárias de Guimarães (...)7. Esta intervenção é concretizada no Plano Geral de Urbanização que Fernando Távora apresenta em 1980, onde está prevista a localização das instalações universitárias na veiga da ribeira de Santa Luzia, numa vasta área situada entre o monte Latito e a colina de São Pedro de Azurém, próxima do centro histórico da cidade e com um excelente enquadramento paisagístico. 1. O território do Campus de Azurém na história urbana de Guimarães O Campus de Azurém da UM implanta-se na metade nordeste da freguesia de Azurém, num território que apresentava, até então, uma ocupação essencialmente rural. Embora o seu extremo nascente se situe nas proximidades do castelo, Azurém foi considerada fora dos limites urbanos até ao final do século XIX: no Censo de 1878 (de João da Costa Brandão e Albuquerque) não é ainda considerada como integrante da cidade (tal como as outras freguesias periféricas da Costa, de Creixomil, de Fermentões e de Urgeses); é o padre António Caldas que, em 1881, vai defender que estas áreas deveriam ser incluídas (...) no arco de Guimarães (...), pela sua (...) contiguidade, formando algumas destas freguesias parte integrante da cidade com muitas ruas e praças (...)8. Embora, entre os séculos XVIII e XIX, a população de Azurém quase triplique9, esta não deixa de ser uma área de caráter eminentemente rural, com uma densidade construtiva muito reduzida (255 fogos), se considerarmos a sua área global (285,55 hectares). Ainda que a metade sudoeste da freguesia apresente uma crescente tendência de urbanização desde meados do século XX, o sector nordeste de Azurém chega a 1980 sem ter sido abrangido pela expansão urbana da cidade. As razões que explicam esta circunstância prendem-se com a história do desenvolvimento de um burgo que, dez séculos antes, nascia numa bipolarização que marcou para sempre o seu desenvolvimento: os núcleos da Vila Baixa e da Vila Alta, que crescem em volta do mosteiro dúplice e O campus de Azurém da Universidade do Minho localiza-se na metade nordeste da freguesia homónima; esta goza de uma relação privilegiada com a cidade, mas apresentava ainda um caráter essencialmente rural antes da construção deste polo universitário. Para além do plano do Complexo Pedagógico inicial, merecem destaque na arquitetura deste campus os edifícios da Escola de Ciências e Ciências Sociais e da Escola de Arquitetura, pelo prestígio dos seus autores e pela qualidade das soluções que apresentam. monumentos 33 da fortificação que a condessa Mumadona10 manda edificar no século X. O mosteiro foi construído no local onde hoje se encontram a Igreja de Nossa Senhora da Oliveira e o Museu Alberto Sampaio, na importante estrada medieval que ligava Braga a Lamego; o castelo foi construído no monte Latito, local ideal pela sua localização próxima, mas mais elevada, dominando a envolvente (nomeadamente o vale fértil situado a norte, onde hoje se localiza o campus)11. Relacionava este dois núcleos uma via (a atual Rua de Santa Maria), transversal em relação à referida estrada Braga-Lamego, que ligava diretamente o mosteiro ao castelo; a partir desse eixo também se realizava a ligação do burgo para poente, na direção de Vila do Conde, para sudoeste, na direção de Santo Tirso e do Porto e, para nordeste, na direção de São Torcato e de Chaves. Paralelamente a esta via principal, surgiu uma outra que partia do limite poente da Vila Baixa (o antigo arrabalde situado no local onde hoje se encontra a Praça do Toural) para norte, na direção de Póvoa de Lanhoso12. Mas, ao contrário do que aconteceu com as outras vias referidas, esta saída para norte só deu origem a um eixo de expansão da cidade no final do século XX. Nesta antiga “estrada dos castanheiros”, caminho rural que atravessava sensivelmente a meio o território da atual freguesia de Azurém, só há notícia de intervenção municipal em 1898, no troço inicial, onde se construiu uma nova avenida (a atual Capitão Alfredo Guimarães)13; o prolongamento do seu traçado pela Alameda da Universidade (estruturando a área onde se situa o Campus de Azurém) seria realizado muito mais tarde, na sequência do Plano Geral de Urbanização de 1980. Esta urbanização tardia resulta das desiguais dinâmicas de desenvolvimento e de expansão urbana dos dois núcleos iniciais do burgo de Vimaranes. No final do século XIII, na Vila Alta, o casario não preenchia toda a área interior da cerca, sendo este núcleo menos populoso do que o da Vila Baixa, onde se concentrava a tendência principal de expansão urbana. Se, pela sua capacidade defensiva, o núcleo do castelo manteve grande parte da sua importância até à edificação, no reinado de D. Dinis, da segunda muralha (que abrangia os dois núcleos), após esta construção a Vila Alta começou a perder prestígio e população (tendência que foi reforçada quando, no final do século XIV, D. João I ordenou a demolição do tramo de muralha que separava as duas vilas, unificando todo o burgo). Na área intermédia existiam ainda grandes espaços não edificados, onde, nas centúrias seguintes, se construíram alguns conventos, cujas áreas da cerca bloqueavam o crescimento urbano: a construção de Santa Clara (1559) e de São José do Carmo (1685) travava o desenvolvimento da vila para nascente, enquanto a área da cerca do Convento de Santo António dos Capuchos (1664) impedia o desenvolvimento para poente. Este progressivo isolamento levou a que a desertificação na Vila Alta se acentuasse ao longo do século XVIII, tendo esta adquirido a designação de “Vila Velha”14. DOSSIÊ Foi este o contexto encontrado pelo engenheiro Almeida Ribeiro (professor de Arquitetura Civil e Naval da Academia Portuguesa de Belas-Artes) quando realizou o primeiro plano urbanístico da cidade de Guimarães15, entre 1863 e 1867. A freguesia de Azurém não era contemplada neste plano, que se limitava a propor intervenções no interior da malha urbana já consolidada16. A expansão (não prevista neste plano) da cidade, no final do século XIX, realizou-se sobretudo para sul do antigo recinto amuralhado, despoletada pela inauguração (em 1884) da estação ferroviária de Guimarães. Mais tarde, no Plano Geral de Alargamento da Cidade que o capitão Luís de Pina apresentou em 1925, a expansão urbana surgia prevista a nascente do núcleo medieval e era concretizada em torno de uma praça (o atual Largo da Condessa Mumadona), para onde confluíram três avenidas, num desenho em forma de “pata de ganso” que se articulou com os arruamentos preexistentes17. Este plano promove ainda a demolição de várias construções existentes na Vila Alta, que isolam as edificações mais simbólicas da “colina sagrada”; vão também neste sentido as intervenções que o Estado Novo promove (no âmbito das Comemorações dos Centenários, em 1940) no monte Latito, acentuando o seu caráter de barreira ao desenvolvimento urbano para norte. Finalmente, nos Planos de Urbanização de Guimarães, de David Moreira da Silva (em vigor desde 1955) e de Arménio Losa (1967), foi privilegiado o lado 109 1 | Guimarães em meados do século XVII, planta desenhada por Mário Cardoso, 1922. 110 DOSSIÊ monumentos 33 poente da cidade como área principal de expansão, mas esta incidia apenas na área compreendida entre as estradas para Braga e para Vila do Conde, esquecendo a metade nordeste da freguesia de Azurém. Assim, a área a noroeste do Castelo de Guimarães vai sendo ocupada por um conjunto de quintas, acessíveis por caminhos rurais, numa malha estruturada pela antiga estrada para a Póvoa do Lanhoso. Se a topografia da encosta do monte Latito não facilita o traçado de vias de expansão e a fertilidade do vale justifica o seu uso predominantemente agrícola, a desertificação da Vila Alta e o bloqueio provocado pela cerca do Convento de Santo António dos Capuchos também desencorajam o crescimento urbano. É a circunstância de esta área ter sido sistematicamente esquecida nas dinâmicas de expansão da cidade, até ao último quartel do século XX, que permite localizar aqui o Campus de Azurém da Universidade do Minho. Esta opção revela-se estratégica para as intenções do Plano Geral de Urbanização de Guimarães (Fernando Távora, 1980), pois permite controlar o enquadramento paisagístico a noroeste da colina do castelo e, simultaneamente, proporcionar ao novo campus uma relação privilegiada com a cidade. 2. A evolução urbanística da área atual do campus O Plano Geral de Urbanização de Guimarães reserva para a instalação do campus universitário uma vasta área de veiga situada entre o monte Latito e a colina de São Pedro de Azurém (abrangendo terrenos das quintas de Azurém, de Azurém de Baixo, do Verdelho e da Veiga), a norte/poente do eixo Campo de São Mamede/Rua de São Torcato, a sul da nova via rápida (prevista no plano) e a nascente da Alameda da Universidade18. As definições do plano asseguram a efetiva reserva de toda a área (que será depois parcialmente reduzida), mas as manchas de implantação de edifícios dedicados ao ensino universitário aí desenhadas são meramente indicativas19. O projeto da primeira fase do Complexo Pedagógico de Azurém, apresentado em 1985 por uma equipa liderada por Bartolomeu Costa Cabral (com Maurício de Vasconcelos, Carmem Daenhardt e o paisagista Sidónio Pardal), propõe uma implantação completamente diferente, ocupando uma área situada sensivelmente a meio do terreno disponível, a noroeste da ribeira de Santa Luzia20, seguindo uma direção (sudoeste-nordeste) que procura encontrar algum paralelismo com o seu leito. É este eixo, perpendicular à nova Alameda da Universidade (prevista no plano de Távora para acesso ao novo campus, sobre o traçado da antiga estrada para a Póvoa de Lanhoso), que vai estruturar a implantação dos edifícios da primeira fase, construídos entre 1987 e 1989. Entrando no campus a partir da referida alameda, encontramos sucessivamente a portaria, o primeiro parque de estacionamento e a entrada do edifí- cio principal do Complexo Pedagógico; no seu interior, esta direção é ainda prolongada para nordeste por um grande átrio iluminado zenitalmente. A noroeste deste primeiro corpo, um segundo edifício implanta-se paralelamente, criando entre ambos um espaço externo de grande dinamismo, onde se localiza um parque de estacionamento reservado a docentes. De ambos os lados deste núcleo pedagógico desenvolvem-se vias de acesso e o estacionamento automóvel, com traçado paralelo ao eixo principal. A sudeste, ao longo do curso da ribeira de Santa Luzia, Sidónio Pardal desenha um parque relvado e arborizado que se prolonga pelo sopé do monte Latito e enquadra paisagisticamente o castelo. A segunda fase deste Complexo Pedagógico, que inclui um auditório com capacidade para cerca de quinhentas pessoas, é materializada em 1991 segundo um projeto realizado pela mesma equipa. O núcleo resultante destas duas fases pode, hoje, ser lido como um projeto único; os novos edifícios prolongam os existentes, segundo a mesma lógica de organização do complexo em dois corpos paralelos, longitudinais, que definem o eixo principal do campus e organizam os seus percursos internos e externos. A construção da cantina (projeto dos arquitetos António Coutinhas e Orlando Azevedo), inaugurada em 1995, introduz uma nova polaridade no campus valorizando um percurso lateral (paralelo ao eixo principal), situado entre o Complexo Pedagógico e os pavilhões prefabricados onde funcionavam (em instalações provisórias) alguns dos novos cursos que se iam criando neste polo21. Esta via foi ganhando progressiva importância com a evolução do campus e acabou por se tornar na sua via principal depois da construção das escolas de Arquitetura e de Engenharia, a que dá acesso. Em 1995 é, também, elaborado o programa preliminar do plano de expansão das instalações do Campus de Azurém, que a UM promove em colaboração com a Câmara Municipal de Guimarães (CMG); este plano, cujo estudo prévio é apresentado em novembro de 1997, é coordenado pelo arquiteto Miguel Frazão (da Divisão de Planeamento Urbanístico da CMG) e define, até hoje, as linhas condutoras do desenvolvimento deste polo universitário. Aliás, deverá ainda servir de referência para obras futuras, uma vez que não se encontra totalmente concretizado: não foi realizada a prevista expansão para noroeste, nem a articulação dos edifícios da terceira fase com as residências de estudantes (construídas entre 1991 e 1997, com projeto dos arquitetos António Coutinhas e Orlando Azevedo), os Serviços de Ação Social e o pavilhão desportivo (2002-2003, com projeto dos mesmos arquitetos), que, atualmente, constituem um núcleo autónomo localizado a nordeste, onde se situa também a sede da Associação Académica (que, desde 1997, ocupa a casa da antiga Quinta da Veiga). Os concursos públicos de projetos para a terceira fase do polo de Azurém foram pensados em função deste plano, que procurava articular as novas cons- monumentos 33 DOSSIÊ 111 2 | Guimarães, Plano de Pormenor do Campus da Universidade do Minho, Estudo Prévio, Planta de Apresentação, desenho de Miguel Frazão, 1997. truções com os princípios organizativos dos edifícios preexistentes. A implantação dos projetos vencedores foi organizada em torno de uma praça que remata o eixo central do núcleo pedagógico inicial e articula os três novos edifícios: as novas instalações da Escola de Engenharia (José Soalheiro, Teresa Castro e Ana Paula Calheiros, 1996-1999), a Escola de Ciências e Ciências Sociais (Sergio Fernandez e Alexandre Alves Costa, 1996-2000) e a Escola de Arquitetura (Fernando Távora com José Bernardo Távora, 1996-2002). Foram ainda recentemente inaugurados no Campus de Azurém os edifícios do Centro de Computação Gráfica (projeto de António Coutinhas, apresentado em 2004, construído entre 2007 e 2008), do Polo de Inovação em Engenharia de Polímeros (projeto de António Coutinhas, apresentado em 2005, construído entre 2006 e 2007) e do Centro de Valorização de Resíduos (projeto do Gabinete Pitágoras, apresentado em 2005 e construído em 2007)22; se os dois primeiros se situam em locais previstos no estudo prévio do plano de expansão, no caso do Centro de Valorização de Resíduos (localizado a norte do edifício da Escola de Arquitetura) isso não se verifica, dado que a via prevista para essa área de expansão não foi concretizada. Está ainda previsto para breve o início da construção de um instituto de investigação em engenharia, com projeto de Cláudio Vilarinho, vencedor do concurso público realizado em 2011. 3. A(s) arquitetura(s) do Campus de Azurém No Polo Universitário de Guimarães encontram-se três projetos que merecem destaque, quer pelo prestígio dos seus autores, quer pela qualidade das soluções que apresentam: os edifícios do Complexo Pedagógico (primeira e segunda fases), a Escola de Ciências e Ciências Sociais e a Escola de Arquitetura. Os projetos de Bartolomeu Costa Cabral para as duas primeiras fases do Complexo Pedagógico de Azurém podem ser hoje analisados como uma única entidade, porque a obra mais recente repete (...) as soluções arquitetónicas e construtivas da 1.ª fase, a fim de dar unidade ao conjunto (...)23, e apresenta 112 DOSSIÊ monumentos 33 3 | Guimarães, Campus de Azurém, Complexo Pedagógico, átrio do edifício principal, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. 4 | Campus de Azurém, Complexo Pedagógico, galeria de articulação transversal entre os edifícios, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. os mesmos princípios de implantação: dois corpos paralelos, que se desenvolvem longitudinalmente segundo o eixo sudoeste-nordeste que organiza todo o campus. O edifício principal do Complexo Pedagógico, como já foi atrás referido, organiza-se a partir de um grande átrio, iluminado zenitalmente por uma claraboia que enfatiza o seu desenvolvimento longitudinal. É a partir desta autêntica rua interior que se distribui o acesso a todos os espaços coletivos do campus24: do lado sudeste encontra-se o bar (com uma esplanada virada para o monte Latito e para o castelo) e a biblioteca (no piso inferior), de desenho “aaltiano”25; do lado noroeste situam-se os serviços administrativos e os auditórios. No piso superior, que se relaciona com o átrio central através de um dinâmico jogo de galerias, funcionam salas de aula e laboratórios (instalações iniciais da Escola de Engenharia). O eixo do átrio prolonga-se para o exterior, para uma pequena praça virada à encosta do monte Latito, que funciona como um foyer ao ar livre para o auditório nobre (construído na segunda fase), que remata esta composição. O segundo edifício implanta-se paralelamente e comunica com o corpo principal através de um elaborado sistema de galerias, rampas e escadas que articulam, transversalmente, as diferenças de cota existentes entre os vários pisos de cada volume, cuja implantação se adapta à morfologia do terreno (que, no sentido transversal, apresenta uma diferença de cota com cerca de 9 metros). Estes dois momentos de atravessamento dividem o volume em três sectores e permitem a articulação de todos os pisos dos dois edifícios com as diferentes cotas de acesso exterior26. O cuidado posto na distribuição do programa e na articulação das cotas de circulação está também patente no modo como a modulação estrutural e espacial foi pensada em todo o conjunto: os edifícios organizam-se em função de uma quadrícula de 2,4 x 2,4 metros de que resulta uma malha estrutural com pilares a cada 7,2 metros, que domina a composição espacial27. Em todo o conjunto reconhecemos uma arquitetura com preocupações predominantemente funcionais, sem que isso implique descurar a procura de uma imagem que prestigie a instituição e de uma boa adequação ao contexto. A sua linguagem apresenta óbvias influências da herança do Movimento Moderno, quer na enfática aplicação dos “cinco pontos da nova arquitetura” de Corbusier28 (é evidente a importância que o uso de pilotis e janelas de desenho horizontal apresentam na definição da linguagem deste projeto), quer no recurso ao vocabulário formal “aaltiano”, evidente na organização da biblioteca e no desenho do auditório nobre. Nas galerias exteriores encontramos uma linguagem industrial, onde se enfatiza a assemblagem de elementos metálicos estandardizados (articulados com lajetas de betão deixadas à vista) num desenho que alia a economia à eficiência e à simplicidade, adequado a um edifício que inicialmente albergava uma escola de Engenharia. Na sequência do já referido plano de expansão do campus de Azurém, os projetos da terceira fase procuraram articular-se com os princípios organizativos do Complexo Pedagógico inicial. A sua implantação foi organizada em torno de uma praça que remata, a uma cota superior, o anterior eixo organizador do campus: o percurso longitudinal exterior situado entre os dois edifícios das primeiras fases. Interpretando esta lógica axial, os projetistas da nova Escola de Engenharia assumiram como princípio compositivo o prolongamento desse percurso, criando um vazio interior no mesmo alinhamento, que divide o edifício em dois corpos autónomos mas interligados. Esta intenção, no entanto, não se torna imediatamente evidente, uma vez que a diferença de cota entre as plataformas de implantação dos edifícios das duas primeiras fases e da terceira dificulta a leitura desta continuidade, que é também perturbada pela expressão assimétrica e muito variada (quer na volumetria, quer na linguagem) dos alçados dos dois corpos do edifício, nos topos virados à nova praça29. monumentos 33 Nos edifícios das Escolas de Ciências e Ciências Sociais e de Arquitetura a intenção de relação com os anteriores projetos de Costa Cabral é mais consequente. O projeto de Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez não foi construído na sua totalidade, uma vez que não foi realizada a torre prevista para o lado sul. No entanto, da análise do edificado, é possível verificar como a sua relação com os edifícios do conjunto preexistente é evidente, quer nos alinhamentos procurados para a sua implantação, quer no desenvolvimento longitudinal do seu corpo principal no sentido sudoeste-nordeste, paralelamente ao eixo dominante do campus; a importância atribuída a este eixo está bem afirmada na consola estruturalmente arrojada que o edifício forma para poente/sul, parecendo querer contrariar a rigidez da fronteira estabelecida pelo muro de suporte que enfatiza a diferença de cotas entre a plataforma onde se implanta o inicial Complexo Pedagógico e a nova praça. Na linguagem também é evidente uma procura de diálogo com os edifícios preexistentes, assumindo uma influência purista, onde são visíveis evocações dos já referidos “cinco pontos da nova arquitetura” e do conceito de promenade architecturale30. Essa referência torna-se evidente na entrada principal, onde a articulação da sucessão de pilares com a curvatura do vidro e a rampa parece evocar a Casa Savoye31. No entanto, a presença desta curva no alçado principal resulta de uma intersecção de volumes que, no interior do edifício, se assume como o principal tema espacial. Anuncia-se assim um segundo alinhamento de corpos que se desenvolve do outro lado (sudeste), a uma cota inferior, definindo uma curvatura que direciona o olhar para o extremo nascente do campus, onde se situam as residências de estudantes e o pavilhão desportivo. Esta ligeira torção introduz uma nova lógica axial no núcleo central do campus (cuja importância é evidente no desenho do plano de Miguel Frazão — ver fig. 2), que pode ser lida num âmbito territorial maior, procurando uma centralidade exterior: o Campo de São Mamede32. DOSSIÊ Do mesmo modo, o alinhamento das entradas dos edifícios das Ciências e da Arquitetura (os dois projetos parecem ter sido coordenados, neste aspeto) define um eixo de longo alcance que procura o alinhamento do Santuário da Penha, no alto da colina localizada a sudeste do campus. Esta direção, perpendicular ao eixo longitudinal dos primeiros edifícios do campus, é usada por Fernando Távora e José Bernardo Távora como tema de projeto, constituindo a principal referência da sua implantação. É nesse alinhamento que se organiza o corpo principal da nova Escola de Arquitetura, que se relaciona diretamente com a praça realizada na terceira fase. Importa referir, no entanto, que esta relação não resulta de um processo linear; na apresentação da primeira proposta, Fernando Távora 113 5 | Campus de Azurém, Escola de Ciências e Ciências Sociais, planta de implantação do edifício, sendo visível a torre não construída, projeto de Alexandre Alves Costa e de Sergio Fernandez, 2000. 6 | Campus de Azurém, Escola de Ciências e Ciências Sociais, alçado principal do edifício, sendo visível a torre não construída, projeto de Alexandre Alves Costa e de Sergio Fernandez, 2000. 7 | Campus de Azurém, Escola de Ciências e Ciências Sociais, fachada posterior e remate poente/sul, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. 114 8 | Campus de Azurém, Escola de Ciências e Ciências Sociais, fachada principal vista da entrada da Escola de Arquitetura, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. 9 | Campus de Azurém, Escola de Arquitetura, fachada principal e escadaria de acesso, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. DOSSIÊ monumentos 33 refere que (...) à escolha de um belo local para a sua implantação opôs-se, no Concurso, o problema da indefinição do seu enquadramento urbanístico, uma vez que se pedia a criação de uma praça e o traçado de um arruamento mas não se propunha uma solução para o estabelecimento daqueles elementos, quer entre si, quer com o terreno em que se inserem, quer, ainda, com os edifícios que neles se apoiarão (...)33. Assim, como se observa nas fotografias da maqueta e nos desenhos tridimensionais realizados para o concurso, a praça projetada desenvolvia-se numa extensa plataforma elevada que enquadrava a fachada sudeste do edifício, alinhando pelos seus limites; sob esta grande plataforma passava a via de acesso automóvel que, a partir da cantina, seguia ao longo da fachada noroeste do Complexo Pedagógico e era prolongada por entre os novos edifícios de Engenharia e Arquitetura. No que diz respeito ao edifício, o projeto de execução e a consequente construção não apresentam alterações significativas em relação aos desenhos do concurso, exceto a não concretização do parque de estacionamento previsto para sudoeste (o que explica que ainda hoje esse lado apresente um aspeto inacabado). Mas no que diz respeito à sua relação com as acessibilidades do campus, a solução proposta não se concretiza: a articulação que hoje encontramos construída parece constituir uma solução de recurso face à necessidade de um acerto de cotas entre a entrada do edifício de Arquitetura e a nova praça, mantendo o arranque da plataforma prevista junto à fachada do edifício, mas diminuindo substancialmente a ligação em ponte sobre a nova via (para onde estava previsto um conjunto de ligações, através de rampas e escadas, que não se concretizaram) e rematando o conjunto com uma larga escadaria que pousa sobre a praça. O caráter algo descontrolado que estas ligações exteriores apresentam no seu relacionamento com o edifício e com os restantes espaços exteriores do campus justifica-se por esta circunstância, contrastando fortemente com o modo delicado como o edifício se relaciona com a sua envolvente a nordeste e a noroeste, dialogando subtilmente com o caráter rural da envolvente e com a topografia preexistente. 10 | Campus de Azurém, Escola de Arquitetura, escada no remate do átrio principal, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. 11 | Campus de Azurém, Escola de Arquitetura, sala de projeto no piso 3, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. monumentos 33 A partir da referida escadaria exterior a aproximação ao edifício conduz a uma pala, suspensa num “miesiano” pilar de aço, que marca o eixo de um corpo saliente envidraçado. Este pilar, que reproduz o desenho de Mies van der Rohe para os elementos estruturais do pavilhão de Barcelona (um dos pormenores construtivos mais famosos da história da arquitetura do século XX), acolhe o visitante anunciando que aqui se ensina arquitetura. Este é o momento de maior carga simbólica de um edifício que, no restante, não é tão evidente nas suas alusões formais a modelos exteriores: para além de subtis alusões a Alvar Aalto e a Corbusier, o que ressalta de mais evidente na sua conformação é uma organização que procura repetir os princípios compositivos do anterior Complexo Pedagógico, sobretudo ao nível da organização dos espaços, adaptados a uma diferente circunstância topográfica. A partir do corpo envidraçado que faz a transição interior-exterior, os alunos percorrem um átrio longitudinal que faz a ligação entre todos os espaços principais do edifício, à semelhança do que acontece no projeto de Bartolomeu Costa Cabral. A partir deste átrio, marcado com a duplicação do pé-direito nos seus extremos, encontramos, sucessivamente (em volumes que se autonomizam a partir desta nave central), os espaços de secretariado e de direção, o museu, o auditório principal e o bar (no piso inferior), a biblioteca e os auditórios menores (no piso superior, iluminado zenitalmente). O final deste percurso é pontuado por dois momentos: o desenvolvimento em rampa, que surge no último terço do átrio (enfatizando a relação topográfica com a envolvente), dialoga com a escada de tiro que remata o piso superior34. Para os mais atentos, este átrio revela, ainda, uma pequena surpresa: a falsa porta (não prevista no projeto DOSSIÊ de execução) que simula um segundo acesso à reprografia (que apresenta duas portas do lado do átrio, embora apenas uma corresponda a um vão) pode ser interpretada como um gesto irónico, que glosa com as relações entre forma, função e significado35. Para sudeste, o eixo deste átrio prolonga-se para o exterior, na direção da entrada da Escola de Ciências e Ciências Sociais e, depois, na paisagem, na direção do Santuário da Penha36; mas, para o outro lado, apresenta um remate no próprio edifício: uma sala de desenho, de composição cuidada, onde Távora prevê que os estudantes (...) desenharão, apenas com a sua alma, o seu cérebro e as suas mãos, os melhores desenhos que se farão nesta escola, numa atitude quási revolucionária, oh Deus!, a que chegamos e onde vamos parar? (...)37. Na realidade, mais do que nessa “capela” (assim chamada, carinhosamente, por alunos e docentes), os melhores desenhos produzem-se nas amplas salas de projeto voltadas a sudeste, que se distribuem por um outro corpo, transversal ao primeiro, numa articulação em “L”38 que envolve uma extensa área verde, onde ainda subsistem alguns sinais de ruralidade. Para este espaço bucólico abre-se a esplanada do bar (delimitada por um muro semicircular construído em pedra de aparelho rústico) e viram-se as janelas das salas de trabalho, que desfrutam ainda de uma magnífica paisagem, em segundo plano: a colina do castelo, e, ao fundo, a montanha da Penha, coroada pelo santuário desenhado por Marques da Silva. Se no primeiro corpo, disposto no sentido sudeste-noroeste, encontramos uma organização que lembra o edifício principal do Complexo Pedagógico, no segundo corpo, orientado no sentido sudoeste-nordeste, a a distribuição é semelhante à do seu edifício secun- 115 12 | Campus de Azurém, Escola de Arquitetura, fachada nescente/sul, fotografia de Eduardo Fernandes, 2012. 116 DOSSIÊ monumentos 33 dário, feita através de um corredor, situado assimetricamente, com salas de maior dimensão para o lado mais favorável (quer pela incidência solar, quer pela paisagem) e salas de menor dimensão (e os gabinetes dos docentes, no terceiro piso) para o outro lado. Lembrando as galerias longitudinais que dominam o alçado sudeste do edifício desenhado por Bartolomeu Costa Cabral, na Escola de Arquitetura encontramos palas pronunciadas no alçado que apresenta a mesma exposição, protegendo da incidência solar as amplas janelas corridas; estas palas não são interrompidas quando, à semelhança do que acontece no edifício secundário do Complexo Pedagógico, a sucessão de salas o é (em dois momentos) pelos acessos transversais que permitem o acesso ao exterior. No entanto, em contraste com a linguagem mais marcadamente industrial do Complexo Pedagógico, encontra-se aqui um desenho sereno que procura transmitir uma sensação de conforto, percetível de forma muito evidente no interior, onde a madeira deixada à vista nas guarnições dos vãos e no mobiliário (fixo e móvel) contribui para uma sensação espacial quente, reforçada pela forte luminosidade. Há, assim, neste edifício uma ideia de continuidade dos princípios do edifício fundador do campus, assumindo o sistema matricial da UM; mas há, também, uma intenção de construção de um lugar, com caráter e identidade. Távora previu que esta escola seria uma (...) ‘máquina infernal’ de produzir ‘belos arquitetos’ (...) rodeada por (...) terras de campo e bons castanheiros (...)39; mais do que ocupar este “lugar dos castanheiros” (como se denominava esta área da freguesia de Azurém no final do século XIX) o edifício pertence-lhe, tirando o melhor partido da clarividência da decisão de aqui construir um campus universitário, face à feliz circunstância de esta área ainda se encontrar sem ocupação urbana no último quartel do século XX. Eduardo Fernandes Arquiteto Docente da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 Imagens: 1: Câmara Municipal de Guimarães; 2: Câmara Municipal de Guimarães/Divisão de Planeamento e Urbanística; 3, 4, 7 a 12: autor; 5 e 6: Atelier 15. 21 N OTA S 1 2 3 4 A Universidade do Minho é criada pelo Decreto-Lei n.º 402/73 de 11 de agosto, no âmbito de um Programa de Expansão e Diversificação do Ensino Superior que leva à criação de quatro universidades, nove escolas superiores de educação e onze institutos politécnicos em Portugal; os seus estatutos são homologados em 7 de agosto de 1989, pelo Despacho Normativo n.º 80/89, publicado no Diário da República n.º 198/89, série I, de 29 de agosto. Ver UNIVERSIDADE do Minho: que Universidade?, pp. 20-33. Em Braga, o novo Campus de Gualtar só começa a ser construído em 1986, sendo a sua primeira fase inaugurada em 1993. A cidade de Guimarães tem uma tradição de ensino universitário que remonta a 1541, quando D. João III autoriza a atribuição dos graus de licenciado, bacharel e doutor em Artes no colégio situado no Mosteiro de Santa Marinha da Costa; embora o colégio seja transferido para Coimbra em 1553, os es- 22 23 24 25 26 tudos públicos em gramática, filosofia e teologia reiniciam-se em 1681 (ver A. Moreira de SÁ — A Universidade de Guimarães no Século XVI). O Palácio de Vila Flor começa a ser construído na primeira metade do século XVIII, mas a sua construção fica incompleta, só sendo realizado o corpo central e a ala nascente. No início do século XX, o palácio é adquirido pela família Jordão, que completou a ala poente do edifício e lhe acrescentou uma mansarda. Entre 1976 e 1990 é sede do Polo de Guimarães da Universidade do Minho. Em 2005, depois do restauro levado a cabo no edifício e nos seus jardins, é aí inaugurado o Centro Cultural Vila Flor (ver Eduardo FERNANDES; Filipe JORGE — Guia de Arquitectura de Guimarães, p. 120). Ver UNIVERSIDADE do Minho: que Universidade?, pp. 35-36. ESTUDOS de Desenvolvimento Concelhio, p. 117. Padre António CALDAS — Guimarães, Apontamentos para a sua História, pp. 67-68. No final do século XIX, a freguesia de São Pedro de Azurém teria uma população de 1081 habitantes, acréscimo notável em relação aos dados que o padre António Caldas cita a partir da Geografia Histórica do padre D. Luiz Caetano de Lima (t. II, pp. 490-491) de 1732, que apresentava para a mesma freguesia: (...) 127 fogos, com 388 habitantes (...) (Idem, p. 69). Por morte de D. Hermenegilde Mendes (conde de Tui e do Porto, governador da província de Entre-Douro-e-Minho), sua mulher Dona Muma procede à divisão das suas propriedades entre si e os filhos, ficando com a Quinta de Creixomil e concedendo à filha, D. Urraca, a de Vimaranes. Mas como (...) eram desejos ardentes desta senhora edificar um mosteiro, onde vivesse recolhida (...), a condessa Mumadona (nome por que era conhecida) conseguiu trocar propriedades com a sua filha e tomar conta da Quinta de Guimarães (Idem, p. 29). Em ambos os casos, encontram-se hoje poucos sinais destas construções iniciais: a imagem atual do castelo resulta, sobretudo, das construções realizadas nos séculos XII e XIII e das intervenções da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais na primeira metade do século XX; também no caso do mosteiro, as sucessivas campanhas de obras na Igreja e Colegiada da Senhora da Oliveira fizeram desaparecer quase todos os vestígios da construção do século X. Ver Francisco FAURE — “Castelo de Guimarães”. In Said JALALI (coord.) — Guia de Turismo Científico de Guimarães e Lúcia Maria Cardoso ROSAS — “O claustro da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães”. Portugália, 1997-1998, nova série, vol. XVII-XVIII. Ver planta de evolução da cidade entre os séculos X e XIII, realizada pelo arquiteto Bernardo Ferrão para o Relatório da Candidatura de Guimarães a Património da Humanidade. In Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado e do Presente, p. 260. Ver Maria José Marinho de Queirós MEIRELES — O Património Urbano de Guimarães... Ver Bernardo FERRÃO; José Ferrão AFONSO — “A evolução da forma urbana de Guimarães e a criação do seu património edificado”. GUIMARÃES: Candidatura da Cidade... A rainha D. Maria II concede o título de cidade a Guimarães em 1853. Ver Manuel Alves OLIVEIRA — “A cidade de Guimarães no séc. XIX num Plano de Urbanização”. In Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado e do Presente, pp. 15-33. Ver Fernando TÁVORA — “O ‘Plano de Alargamento’ ou Guimarães entre o sonho e a realidade”. In Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado e do Presente. A área de reserva incluía ainda um sector a poente da Alameda da Universidade onde se constrói (em 1992) um bairro de habitação cooperativa para os funcionários da Universidade do Minho, com projeto de António Gradim (iniciado com Mário Abreu), situado fora dos atuais limites do campus (ver Eduardo FERNANDES; Filipe JORGE — Guia de Arquitectura de Guimarães, p. 142). Ver planta publicada em Fernando TÁVORA — “Plano Geral de Urbanização de Guimarães, 1980”. In Luiz TRIGUEIROS (ed.) — Fernando Távora. Ver António Amaro das NEVES, sobre a possibilidade da ribeira de Santa Luzia (também designada por ribeiro dos Castanheiros) ser o curso de água que aparece designado em documentação medieval como rio Merdário ou Merdeiro, porque funcionaria como coletor dos dejetos produzidos pela população (mais tarde é também referido como Herdeiro). Muitos dos docentes e antigos alunos da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho recordam com saudade os anos passados nestes pavilhões, onde o desconforto das instalações era compensado pela informalidade de usos que a sua flexibilidade permitia e pelo intenso convívio a que a exiguidade dos espaços obrigava. Sobre a atividade destes novos centros ver Said JALALI (coord.) — Guia de Turismo Científico de Guimarães, pp. 165, 169 e 173. Ver Bartolomeu Costa CABRAL — Memória Descritiva do Projeto..., p. 2. Lamenta-se que um conjunto de obras recentes (realizadas sem intervenção dos autores do projeto original) tenha alterado o caráter e a organização espacial do átrio principal e da biblioteca. É evidente a influência da biblioteca de Viipuri (Alvar Aalto, 1927-1935) na configuração espacial, com a sala organizada em torno de uma zona central desnivelada. A partir da entrada noroeste do corpo secundário o visitante pode aceder a uma longa galeria exterior (que articula as várias entradas no sentido longitudinal) ou descer e sair para um espaço externo de grande dinamismo, monumentos 33 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 onde se localiza o parque de estacionamento reservado a docentes. A partir daí, continuando o percurso no sentido transversal, pode aceder-se ao lado noroeste do corpo principal a dois níveis: uma rampa leva ao piso intermédio (cuja cota é ligeiramente superior) e uma escada permite o acesso ao piso inferior, à cota da entrada principal do edifício; por cima, existe ainda uma galeria transversal que relaciona o piso de entrada do corpo secundário com o piso superior do edifício principal, onde encontramos continuados os eixos transversais de articulação, que se prolongam em galerias longitudinais interiores situadas do lado mais alto (noroeste). É também a partir destes eixos que é possível aceder ao exterior, para sudeste, onde o terreno se situa ao nível do piso da biblioteca. As principais exceções a esta métrica que organiza os dois edifícios são a largura do átrio central do edifício principal (que tem 8,4 metros no sentido transversal) e, forçosamente, o espaço interior do grande auditório. Os “cinco pontos da nova arquitetura” (pilotis, planta livre, alçado livre, janelas de desenho horizontal e aproveitamento lúdico da cobertura) são desenvolvidos por Corbusier ao longo da década de 1920 como regras morfológicas associadas à sua teoria purista e conhecem aplicação em várias das suas obras, sendo a mais notável a casa Savoye, em Poissy (1929). A organização desta praça foi inicialmente pensada por Fernando Távora e José Bernardo Távora, mas o desenho que apresenta atualmente resulta de um projeto realizado pela equipa projetista da nova Escola de Engenharia. O conceito corbusiano de “promenade architecturale” parece ter origem na sua célebre viagem ao Oriente, nomeadamente na visita à Acrópole (ver Charles JENCKS — Le Corbusier and the continual revolution..., p. 136). Ver nota 28. Arrabalde da vila, situado junto ao castelo, que surge representado com um desenho já próximo da sua configuração atual numa planta do século XVI (ver Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado e do Presente, p. 259). Fernando TÁVORA — “Faculdade de Arquitectura da Universidade do Minho”. J-A Jornal de Arquitectos, set./out. 2001, n.º 202, p. 96. Se, de um ponto de vista funcional esta escada (que não estava prevista no projeto de execução) não seria essencial, uma vez que se localiza nas proximidades de uma outra (que articula os três pisos do corpo das salas de aula), ela parece fazer todo o sentido como elemento de remate e como articulação cerimonial entre os dois pisos do corpo mais público da escola. Este gesto de Távora pode ser entendido como uma reflexão sobre complexidade e contradição em Arquitetura, com sugestões inesperadamente venturianas (ver Robert VENTURI — Complexity and Contradiction in Architecture). Quem percorre o piso inferior do átrio pode, momentaneamente, descobrir o Santuário da Penha enquadrado na pequena janela que intencionalmente se abre no alçado do corpo de entrada. Fernando TÁVORA — “Universidade do Minho, Faculdade de Arquitectura, Guimarães, 1996-…”. Távora, p. 86. É curioso notar que esta articulação em “L” com um corpo secundário a desenvolver-se transversalmente a partir de um corpo principal se encontra na composição do Mosteiro de Santa Marinha da Costa (que Távora adapta a pousada entre 1973 e 1985) e se repete nos dois projetos que Távora realiza para Guimarães após esta experiência: a Sede da Polícia de Segurança Pública de Guimarães (1988-1993) e a Escola de Arquitetura (1996-2002). Fernando TÁVORA — “Universidade do Minho, Faculdade de Arquitectura, Guimarães, 1996-…”. Távora, p. 86. DOSSIÊ B I B L I O G R A F I A ABREU, Francisca (coord.) — Guimarães, do Passado e do Presente. 2.ª ed. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 1985. CABRAL, Bartolomeu Costa — Memória Descritiva do Projeto de Execução da 2.ª Fase do Complexo Pedagógico do Campus de Azurém. Janeiro 1991. CALDAS, padre António — Guimarães, Apontamentos para a sua História. Reedição do original de 1881. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães; Sociedade Martins Sarmento, 1996. ESTUDOS de Desenvolvimento Concelhio. Guimarães. Relatório de Base. Tarefas Prioritárias. Guimarães: Agência de Desenvolvimento Regional, 1978. FAURE, Francisco — “Castelo de Guimarães”. In JALALI, Said (coord.) — Guia de Turismo Científico de Guimarães. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães; Universidade do Minho, 2009, pp. 42-45. FERNANDES, Eduardo; JORGE, Filipe — Guia de Arquitectura de Guimarães. 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Intervir na cidade existente1 Com uma longa e densa história anterior à fundação da nacionalidade2, Guimarães viu o admirável ambiente do seu centro histórico consagrado com a designação de Património Mundial da Humanidade em 2001, reconhecimento atribuído na sequência de um exemplar trabalho de reabilitação urbana, conduzido ao longo das últimas décadas do século XX pelo Gabinete Técnico Local sob a assessoria e o desenho de Fernando Távora. Recentemente, e no contexto da nomeação da cidade como Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, foi efectuado um conjunto de intervenções no qual se inclui a requalificação do espaço público de uma significativa área no seu centro, abrangendo a Alameda de São Dâmaso, a Praça do Toural e a Rua de Santo António. Elaborado no Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho3, o projecto colocou em evidência muitas das questões actualmente prementes na intervenção em espaço público, explicitando não só as polaridades em que se moveram programa e desenho — uso quotidiano versus sazonal; reinterpretação do património versus musealização; memória em construção versus tradição —, como o paradigma conceptual que o fundamentou, relativo ao significado do espaço público na condição urbana contemporânea. A intervenção arquitectónica em “cidades históricas” (designação da Carta de Cracóvia 2000) levanta, de forma muito evidente, problemas de ordem múltipla que confrontam o seu genius loci e, no limite, colocam em questão a natureza essencial do seu ser habitado. Identidade, história e memória são categorias em debate4, tornando-se necessário compreender se funcionam (e, no limite, se pretendem) como fetiche a que a sociedade recorre para se instalar num cenário que lhe confere glamour, se como rede referencial imprescindível à construção identi- tária dos citadinos vinculados a um particular tecido urbano. Falamos de memória e de consumo — e de consumo da memória. Num período de nítida obsessão patrimonialista (em 1982, já Françoise Choay5 o refere muito claramente, quando alude à vocação narcísica dessa síndrome) e em que a indústria turística adquiriu uma importância desmedida, torna-se difícil separar os dois conceitos. Dos emblemáticos centros históricos europeus às novas cidades asiáticas, história, património, memória e consumo confundem-se progressivamente, submetidos à lógica de uma economia cultural mundializada6. Repositório de gerações incontáveis, as cidades mais antigas orgulham-se da sua história — e frequentemente musealizam-se, fabricando imagens idealizadas e anacrónicas — e as cidades recentes constroem parques temáticos, “disneylândias” periféricas onde se consomem, compactados na ausência do tempo e do espaço próprios, míticos ícones civilizacionais7. Resistindo à fabricação de simulacros destinados à autocontemplação e ao voyeurismo turístico, parece indispensável que o recurso à História assuma a sua Em Guimarães, no contexto da nomeação da cidade como Capital Europeia da Cultura 2012, foi efectuado um conjunto de intervenções, no qual se inclui a requalificação do espaço público de uma significativa área do seu centro, que abrange a Praça do Toural, a Alameda de São Dâmaso e a Rua de Santo António. Elaborado no Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, o projecto colocou em evidência muitas das questões actualmente prementes na intervenção em espaço público, explicitando não só as polaridades em que se moveram programa e desenho — uso quotidiano versus sazonal; reinterpretação do património versus musealização; memória em construção versus tradição —, como o paradigma conceptual que o fundamentou, relativo ao significado do espaço público na condição urbana contemporânea. monumentos 33 Castelo Paço dos Duques de Bragança Largo Valentim Moreira de Sá Igreja de São Pedro Rua de Santo António 1 | Guimarães, área de intervenção, fotomontagem realizada a partir de ortofoto da cidade, 2009. Torre da Alfândega Centro Histórico, Património Mundial UNESCO 2001 vertente de memória (individual e colectiva) em construção, suporte a referenciais urbanos que permitam à comunidade que a habita reflectir-se enquanto entidade singular em interacção com o outro e disponível a (ou seja, não comprometendo) um futuro que a polis irá explicitar8. Será, assim, fundamental à urbe que se pensa e se quer cidade íntegra — city air makes man free9 — reagir positivamente à contemporaneidade, interpretando o seu legado patrimonial e o seu espaço público em função de um desígnio aberto à re-significação. Corroborando este olhar, a objectivação programática que sustentou o projecto aqui exposto atribuiu à História10 um papel essencial na interpretação do devir da cidade — um locus da memória colectiva11 — Fachada século XVIII DOSSIÊ 119 Alameda de São Dâmaso Ribeira de Couros Igreja dos Santos Passos Muralha Avenida República do Brasil Convento de São Francisco acreditando na construção biográfica permanente do lugar e entendendo a cidade histórica como uma ocorrência intrínseca a essa identidade. Nesse sentido, e no pressuposto de que o espaço público é lugar de encontro e permuta, de expressão democrática e de afirmação cívica, defendeu, o projecto, o propósito de que o desenho admitisse diferentes níveis de miscigenação, indicadores de uma urbanidade cada vez mais híbrida e multicultural: à esfera do espaço público, território relevante socialmente, palco de coabitações diversas e tensas — uma condição acelerada agora por mobilidades extensivas e intensivas —, caberá, por excelência, acolher essa expressão da diferença, assumindo-se como ágora partilhada e cosmopolita. Praça do Toural 120 2 | Guimarães, Praça do Toural, planta e alçado poente com arboreto (aguarela de Ana Jotta), 2010; fotomontagem com vista sobre a fachada do século XVIII, realizada em 2012. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê II. O Projecto de Reabilitação Urbana da Praça do Toural, da Alameda de São Dâmaso e da Rua de Santo António A Alameda de São Dâmaso, a Praça do Toural e a Rua de Santo António constituem uma sequência de áreas dispostas em enfilade ao longo da ferradura correspondente à implantação da muralha medieval, conformando um importante segmento do espaço intersticial entre o centro histórico e as zonas que ao longo dos séculos têm vindo a estabelecer-se extramuros. O seu projecto de requalificação buscou os fundamentos numa interpretação actual e acertada do lugar, ancorando a proposta de transformação na temporalidade longa que lhe é subjacente. Assim, articulando temas da urbanidade contemporânea com significados construídos pela memória colectiva, tentou favorecer novas apropriações do espaço12. Incidindo exclusivamente sobre o espaço aberto — e considerando as massas de edifícios que o delimitam como uma manifestação geológica urbana, o hard factor13 físico não sujeito a intervenção — a proposta desenha o chão, interpretando-o na sua projecção tridimensional e atribuindo ao habitante (nas várias condições que assume, entre o uso pragmático e o lúdico) um papel fulcral na determinação da ambiência espacial. Ao abranger uma área com cerca de 40 000 m2 o impacto do projecto é necessariamente elevado, mais ainda na medida em que lida com espaço público localizado em pleno centro da cidade e contempla áreas morfológica e funcionalmente diversas, que incluem uma rua de grande importância comercial, uma praça com enorme significado urbano, uma extensa área arborizada e, ainda, as franjas que lhes são imediatamente adjacentes. Caracterizando esta díspar circunstância, e profundamente interiorizados na vivência citadina, encontramos elementos arquitectónicos notáveis de que se destacam a muralha14 — eloquente limite entre dois universos cujas fronteiras, esbatidas, se mantêm no entanto sensíveis em termos urbanos —, a fachada “pombalina” do Toural15, o Convento de São Francisco e um significativo espólio vegetal. Centrais à espacialidade da área em estudo, exigiram uma reflexão, não equivocada pela prevalência dos cos- monumentos 33 3 | Guimarães, Alameda de São Dâmaso, planta, modelação do terreno, esquartelamento do pavimento e esquema para a iluminação, 2010; fotomontagem com vista sobre a fachada norte, realizada em 2012. tumes, sobre a forma como física e simbolicamente incorporavam (e/ou, poderiam vir a incorporar) o quotidiano dos habitantes. Foram também vários os temas de natureza funcional que se mostraram de evidente pertinência para a clarificação das intenções que informaram o projecto. Se parte substancial das redes infra-estruturais se encontrava desadequada, tendo sido necessária a sua revisão e actualização, a circulação viária revelava graves e múltiplos problemas: ausência de hierarquização dos fluxos, trânsito automóvel de atravessamento no centro da cidade, estacionamento desregulado, autocarros transformados em poluentes barreiras visuais e obstáculo à circulação pedonal. DOSSIÊ Todas estas questões se condensavam, grosso modo, numa muito deficiente situação do transporte público e num manifesto excesso de área atribuído à circulação motorizada. O conforto e a mobilidade dos peões viam-se, assim, seriamente prejudicados, exigindo uma regulação rigorosa do território viário16. Perante esta circunstância, entre os múltiplos aspectos de ordem operativa, a racionalização da estrutura espacial afecta à circulação motorizada, estreitamente associada à melhoria das condições de suporte ao sistema de transportes públicos e à qualificação da área de uso pedonal, constituiu-se como tema estruturante na concepção do projecto e um dos aspectos-chave da solução adoptada. 121 122 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê 4 | Praça do Toural e Alameda de São Dâmaso, pavimentos-tipo, planta, corte e fotomontagem, 2012. III. A Praça, a Rua e o Bosque, a que se acrescentou um Terreiro Aceitando a diversidade morfológica da área de intervenção, argumentando a condição hodierna do espaço público nas suas vertentes de adequação funcional e representação simbólica e, ainda, reconhecendo a sua radicação na trajectória histórica do sítio, o projecto desenvolveu-se centrado nos conceitos de a Praça, a Rua e o Bosque, a que se acrescentou um Terreiro. A Praça Desde a sua formação medieval como largo exterior à muralha, a Praça do Toural constituiu-se como um especial momento de recepção da cidade que se vem adaptando aos tempos e aos usos coetâneos e afir- mando enquanto expressão da contemporaneidade de Guimarães. Ao longo dos séculos, transitou de terreiro (com práticas, nomeadamente, de feira, mercado e tourada) para praça, tornando-se num espaço que se pretendia não só urbano como expressivo de uma modernidade não reconhecida ao centro intramuros. Com uma área aproximada de 5500 m2, forma trapezoidal desenvolvida em marcada pendente sobre o topo noroeste e acessos localizados nos cunhais, a praça é delimitada por três frentes de indiscutível interesse arquitectónico. Nestas, destaca-se a fachada iluminista nascente — que, implantada sobre o tramo da muralha que a seu propósito foi demolida, se contrapõe, pela sua regularidade e extensão, à variedade formal das outras fachadas — e a Igreja de São Pedro (enquanto peça singular, pelo uso, escala e arquitectura), integrada na fachada oposta. monumentos 33 5 | Guimarães, Terreiro de São Francisco, planta e corte, 2010; fotomontagem com vista sobre a fachada do convento, realizada em 2012. Esta “geologia” não remete, porém, para a axialidade que dominou o espaço no último século, organizada a partir de um centro, o qual, inventado por uma composição de finais de XIX tornou obsoleto o chafariz que ao longo de três séculos tinha nobilitado a praça17; expulsando-o do seu seio, convocou — num gesto funcionalista próprio à época — um ordenamento que dedicou espaços exclusivos ao trânsito viário e ao DOSSIÊ peão. E, assim, o protagonismo até então exclusivo do chafariz e das frontarias limítrofes foi disputado pelos arranjos sucessivos da plataforma central, assumida como jardim, cujo desenho também se foi adaptando ao correr das exigências e das modas urbanas. Ocupada inicialmente por uma composição com características românticas — dispondo de grades, coreto, lago e vegetação exótica, um exemplar local do “jar- 123 124 6 | Praça do Toural, fotografia aérea de António Amaro das Neves, 2011. 7 | Praça do Toural, fotografia de Rita Burmester, 2012. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê monumentos 33 dim biscoito” que tanto sucesso recolhia à época —, essa plataforma foi objecto de múltiplas rectificações, sempre veementemente discutidas pelos vimaranenses18. Mas foi na segunda década do século XX que o Toural adquiriu uma configuração muito próxima da que chegou aos nossos dias, deslocando-se a atenção do tema vegetal para o pétreo. A sua vocação como praça foi assumida de forma clara e o novo pavimento em quartzo e basalto, de desenho fortemente decorativo, fixou a recente centralidade espacial, a qual foi ainda vincada mais tarde, nos anos de 1950, com uma fonte monumental. Incorporando parterres, também eles muito delineados, essa placa central encontrava-se ainda rodeada por árvores de pequeno porte, as quais, não obstante esse facto, esbatiam a percepção das edificações que conformam a praça. Ao seu forte sentido de representação enquanto espaço de acolhimento da cidade, o Toural tem aliado sempre um vivido e apreciado carácter de estar, revelando-se um sítio muito procurado em épocas de temperatura mais amena. Esta eleição da praça como momento de encontro sugeriu um enriquecimento efectivo das suas múltiplas possibilidades de leitura e apropriação: campo arquitectónico perceptível na sua integridade, rossio aberto a quem chega — zona de passagem em alturas de agressividade ambiental e lugar de permanência em partes consideráveis do ano — e, ainda, potencial albergue de grandes manifestações colectivas. No desígnio de lhe atribuir inquestionável actualidade e de realçar aspectos relevantes da sua sedimentação histórica, o projecto de arquitectura pretendeu retomar o Toural como uma praça contínua, com leitura desimpedida de fachada a fachada e sem obstáculos ao nível do pavimento. Não intervindo sobre as fachadas que moldam a praça, o projecto desejou no entanto redefinir o entendimento da sua estrutura compositiva, anulando a marcação do, então, seu centro geométrico e valorizando a percepção do longo e regular plano da fachada “pombalina”, assim como a frontaria de São Pedro — dois elementos que, no seu confronto, equilibram de alguma forma o desenho não regular da praça. Esta intenção é reforçada pelo estabelecimento de um remate arbóreo no topo sul, limite esse que criará uma zona de sombra sobre o conspícuo chafariz quinhentista (agora regressado ao local primitivo) e o banco que o envolve, citando um outro, original, entretanto desaparecido. Implantado no sítio que teria sido o seu, o chafariz, legível a partir de vários enfiamentos e sempre sob diversos ângulos, sustém de algum modo a tensão que resulta do desenho e da topografia da praça. Mas à vontade de expressar no Toural a memória da sua longue durée, através da recuperação de uma peça secular que para aí foi concebida e executada, associou-se a confirmação do tempo que vivemos, ultrapassando qualquer pretensa leitura de nostálgica recriação: o chão da área central da praça manter-se-á, como ao longo dos séculos se tem verificado, a superfície que acolhe a inscrição da modernidade — DOSSIÊ e que neste caso se afirma, também, através do projecto de arte pública concebido pela pintora Ana Jotta. A arquitectura solicitou ao projecto artístico que considerasse os limites e a topografia previstos para a placa central e a reutilização, no pavimento, da calçada em basalto e quartzo, de corte irregular e superfície luminosa. Este programa originou uma proposta que reproduz, à escala de 1:5, a planta de um sector da área central da cidade através de linhas desenhadas em basalto; mas o desenho só será inteligível, enquanto planta, de cotas elevadas dos edifícios envolventes — a partir do chão, ele é visto como uma composição abstracta cujo significado geral não se apreende, mas que se poderá construir através de interpretações segmentárias. Constitui-se, também, como um grafismo que permitirá no futuro intervenções de índole diversa na superfície, facto que lhe atribui uma disponibilidade à circunstância efémera que se julga verdadeiramente interessante do ponto de vista da apropriação citadina do espaço público. A intervenção de arte urbana inclui ainda um varandim em ferro fundido laminado a folha de ouro falso e com cerca de 60 metros de comprimento, que percorre longitudinalmente a cota alta da plataforma. Peça eminentemente artística, imprescindível 125 8 | Praça do Toural, fotografia de CE.EAUM, 2012. 9 | Praça do Toural, fotografia de CE.EAUM, 2012. 126 10 | Praça do Toural, fotografia de Rita Burmester, 2012. DOSSIÊ monumentos 33 dossiê monumentos 33 DOSSIÊ 127 contraponto ao chafariz, constitui um importante e incomum suporte ao estar na praça, o qual é apoiado pela relocalização dos bancos anteriormente existentes. O desenho arquitectónico previu também, no limite noroeste da plataforma, um conjunto de árvores (cuja definição ficou a cargo do projecto artístico em articulação com a arquitectura paisagista) que encerra a exagerada perspectiva que actualmente se abre nesse enfiamento do Toural. Este arboreto, plantado sem caldeiras aparentes — facto que permitirá, com o tempo, que as raízes se venham a inscrever no pavimento — contribui para enquadrar a leitura da Igreja de São Pedro para aqueles que acedem ao Toural a partir do seu cunhal norte e, muito especialmente, para recuperar o sentido memorial do percurso de agradecimento realizado por D. João I, em finais do século XIV, em direcção à Colegiada da Oliveira. A Rua Envolvida por um interessante legado arquitectónico e com início no limite norte do Toural, a Rua de Santo António, de conformação tardomedieva, é uma das artérias da cidade com maior intensidade comercial, sendo talvez o seu traçado, que acompanha a implantação da muralha, o elemento que mais carácter confere ao arruamento. A intervenção redefiniu o seu perfil transversal privilegiando a área destinada ao peão através da conquista de espaço ao sistema rodoviário, que se pretendeu condicionado por um dimensionamento muito estrito. Este reperfilamento deu origem a um sensível alargamento dos passeios19, facto de particular importância para o tipo de uso que requerem, dadas as lojas que acompanham a rua em toda a sua extensão e que sobre ela se abrem através de grandes montras. Dar legibilidade à condição da Rua de Santo António enquanto espaço-canal integrante do anel que envolve a muralha — a qual, percorrendo o interior da massa edificada que ladeia a rua a nascente, não é visível — foi também um dos objectivos do desenho. Nesse sentido, o passeio respectivo foi executado com o mesmo tipo de lajeado de granito que acompanha todo o trajecto envolvente da muralha na área de intervenção, dando continuidade ao similar previsto para a Praça do Toural e Alameda de São Dâmaso; o passeio oposto, mantendo o critério de articulação com as áreas com que contacta, é revestido a calçada em calcário. A assimetria entre o tratamento destas duas superfícies evidencia a importância e o significado da muralha — abstractamente figurada no pavimento — na morfologia e na história urbana da cidade. O Bosque Na medida que o Toural sedimentou a sua identidade como praça urbana, a vocação de passeio público centrou-se na área da Alameda de São Dâmaso, desenhada e construída em meados do século passado sob o signo de uma urbanidade em que o trânsito rodoviário e a salubridade se mostravam conceitos essenciais à cidade coeva. Resultante de consideráveis demolições realizadas ao longo dos séculos XIX e XX20, esta mancha verde alberga um espaço de estar importante, cuja topografia resolve o acentuado desnível entre o centro histórico e a zona localizada à cota baixa do centro da cidade, em torno da ribeira de Couros (uma área sujeita, também, a importantes obras de requalificação urbanística). Dividida em três sectores separados por arruamentos, profusamente arborizada e ladeada por vegetação arbustiva, que condicionava visibilidade e acessos, a Alameda, concebida de acordo com os cânones coetâneos, apresentava-se como um espaço confinado em relação à envolvente, não favorecendo a permeabilidade entre as suas margens. Associada ao desejo de abrir a Alameda a novos utilizadores, a atribuição de um elevado nível de porosidade (física visual) a esse espaço conduziu o desenho da proposta e a reconfiguração do seu conceito espacial. Transformar a Alameda num Bosque21 significou tornar o seu espaço acessível perifericamente — desmantelando obstáculos e axialidades — e adoptar uma organização “informal” do chão, libertando-o do ruído originado pelo excesso de pequenos arbustos 11 | Alameda de São Dâmaso, fotografia de CE.EAUM, 2012. 12 | Alameda de São Dâmaso, fotografia de CE.EAUM, 2012. 128 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê disseminados pelos canteiros que encerravam os seus limites laterais. Assim, a par da revisão do sistema de circulação automóvel envolvente — que permitiu fechar uma rua e crescer substancialmente a área que estava adstrita à Alameda — propôs-se (re)inventar a topografia existente no sentido de uma modelação mais naturalizada (em oposição aos anteriores rígidos planos e traçados) e a plantação de um número muito considerável de novas árvores que, densificando o filtro vegetal sem anular a visibilidade nem o sentido de percurso longitudinal, perturbassem os alinhamentos arbóreos e abrissem o espaço à deambulação errática. A distribuição do mobiliário (que viu duplicado o número de lugares sentados) corrobora esta proposta, organizando formas de estar que, mais ou menos expostas, sugerem níveis diferenciados de socialização22. Esta nova espacialidade pretende, no entanto, assegurar continuidades e manter alguns dos seus anteriores referenciais; nesse sentido renovou-se o coreto e deslocalizou-se para o topo nascente uma das belas fontes que aqui já se encontravam, o Faunito, em posição que assegura uma cumplicidade discreta, mas inquestionável, com o seu par a Rapariguinha23. Como suporte a esta ocupação aberta, o pavimento (executado em material permeável, cómodo para o andar e para o estar) foi desenhado apenas através do seu esquartelamento e do recorte correspondente às caldeiras das árvores, não apresentando obstáculos ao utilizador. Caminhar, estar, descansar, jogar, passear — o bosque desejou-se como um moderno passeio público, um fragmento da natureza urbana embebido de gerações e gentes de origens diversas. 13 | Terreiro de São Francisco, fotografia de Rita Burmester, 2012. O Terreiro Localizado no lado sul da Alameda de São Dâmaso e implantado a um nível claramente inferior, o Convento de São Francisco24 materializa um processo edificatório que ocorreu entre os séculos XIV e XVIII. Apresentando-se como um valioso conjunto patrimonial, oferece à cidade quer a sua igreja, com uma cabeceira que possui um valor único na compreensão da arquitectura gótica mendicante em Guimarães, quer — contrastando vivamente com a secura da construção tardomedieval intervencionada em meados do século passado — a expressão barroca do corpo azulejado do antigo hospital e a exuberante fachada rococó da capela. Apesar de ser considerado um dos edifícios monacais de maior importância na urbe nunca dispôs, ao longo da sua secular existência, de um espaço fronteiro de representação que fizesse justiça à sua importância e valia arquitectónica. Ao repensar a frente urbana do Convento de São Francisco no sentido da sua nobilitação, o projecto ambicionou, através de uma intervenção muito deliberadamente reduzida ao indispensável, materializar um espaço que se constituísse como o seu terreiro, estabelecendo um chão adequado à eloquente retórica que o edifício exprime. Assim, num gesto que pretende atribuir um novo significado urbano ao conjunto franciscano, foi desenhada uma extensa superfície lajeada a granito — que encontrou a sua métrica nas irregularidades do pavimento preexistente —, um plano que se dispõe ao longo do convento, capela e dependências da homónima Venerável Ordem Terceira. monumentos 33 14 | Guimarães, arranque da Avenida do Brasil e topo nascente da Alameda de São Dâmaso, fotografia de Rita Burmester, 2012. Este terreiro ex-novo, seco e grave, acolhe dois objectos autónomos que também eles, por oposição, se complementam e reforçam: o cruzeiro datado de 1593, que mantém a posição em que se encontrava já implantado assinalando a reentrância do adro que prolonga o corpo da igreja, e um banco em mármore lioz branco, agora desenhado, que, corrido em toda a extensão do terreiro — uma linha recortada contra o granito que a envolve —, na sua horizontalidade, sublinha o esforço vertical da peça quinhentista. Concretizando a abertura de novas ligações pedonais entre a cidade alta e a zona da ribeira de Couros, propôs-se no topo sudoeste do terreiro a execução de uma escada que articula três níveis: Couros, São Francisco e Alameda. Muito discretamente implantada, sem perturbar a espacialidade do terreiro, permite no entanto singulares leituras ao facultar, a partir do passeio da Alameda, um enfiamento anteriormente inexistente sobre o interior da Zona de Couros e, no sentido inverso, uma nova perspectiva da fachada do corpo barroco do convento. IV. Desenhar para a cidade 15 | Alameda de São Dâmaso, topo nascente, fotografia de Rita Burmester, 2012. É muito proeminente, pois, o valor do património arquitectónico e imaterial que toda a área intervencionada alberga e que o projecto pretendeu salvaguardar, na sua procura de coerências outras que, solicitadas pela condição urbana actual, re-significassem as particularidades notáveis dos espaços sobre os quais procedeu. Fundamentando o seu propósito de contemporaneidade em argumentos de ordem arquitectónica, simbólica e de uso, o desenho ensaiou, face à preexistência, sugerir novas formas de apropriação do espaço público, ampliar o papel da “natureza” na cidade, materializar suportes favoráveis à expressão de uma sociedade progressivamente heterogénea e miscigenada. Comprometido com o reconhecimento crítico do lugar e com o favorecimento de usos que compatibilizam a sua condição de espaço citadino quotidiano com a de recepção, intensa, de visitantes, o Projecto de Reabilitação Urbana da Praça do Toural, da Alameda de São Dâmaso e da Rua de Santo António deseja, ainda, o célere absorvimento da sua proposta transformadora — e das intrínsecas rupturas a ela associadas — no contexto espacial altamente qualificado do coração de Guimarães. Ambiciona a obra, particularmente, constituir-se como um novo passo na contínua fábrica da memória colectiva, cumprindo um ciclo que, no seguimento e à semelhança daqueles que o antecederam, perdurará enquanto a cidade, no seu devir, a entender como apropriada à sua representação. Maria Manuel Oliveira Arquitecta Docente da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho Imagens: CE.EAUM. DOSSIÊ 129 130 DOSSIÊ monumentos 33 dossiê FICHA TÉCNICA N OTA S O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico por opção expressa da autora. O presente texto é a versão revista de uma comunicação efectuada no Seminário Internacional Espaços Culturais e Turísticos em Países Lusófonos, na Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Novembro de 2011. CLIENTE: Câmara Municipal de Guimarães DATA: Abril 2009 – Março 2012 ÁREA: 38 930 m2 CUSTO: 6 437 320,00 € 1 COORDENAÇÃO GERAL: COORDENAÇÃO TÉCNICA Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da Universidade do Minho | CE.EAUM Maria Manuel Oliveira, arq. COORDENAÇÃO PROJECTO DE EXECUÇÃO 2 Miguel Nery, arq. COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA Associação Universidade-Empresa para o Desenvolvimento 3 – TECMINHO PROJECTO DE ARQUITECTURA: CE.EAUM – Maria Manuel Oliveira, arq., colaboradores: João Rosmaninho DS, Sofia Parente e André Delgado, arqs. 4 PROJECTO DE ARQUITECTURA PAISAGISTA: Maria João Cabral, arq. paisagista Daniel Monteiro, arq. paisagista (Estudo Prévio) PROJECTO DE ARTE PÚBLICA (Toural): 5 6 Ana Jotta, pintora PROJECTOS DE ESPECIALIDADES: afaconsult 7 COORDENAÇÃO Paulo Silva, eng. civil ARRUAMENTOS Paulo Silva, eng. civil, colaboradores: Ana Rita Castro, eng. civil INFRA -ESTRUTURAS HIDRÁULICAS Paulo Silva, eng. civil, colaboradores: Ana Rita Castro e Marisa Fernandes, eng. civis INFRA -ESTRUTURAS ELÉCTRICAS E DE ILUMINAÇÃO Raúl Serafim, eng. electrotécnico, colaboradores: Ricardo Pereira 8 e Vasco Sampaio, eng. electrotécnicos LUMINOTECNIA Raúl Serafim, eng. electrotécnico INFRA -ESTRUTURAS DE TELECOMUNICAÇÕES Raúl Serafim, eng. electrotécnico, colaboradores: Ricardo Pereira 9 10 e Vasco Sampaio, eng. electrotécnicos PLANO DE GESTÃO DE RESÍDUOS DA CONSTRUÇÃO Paulo Silva, eng. civil, Ana Rita Castro, eng. civil PLANO DE SEGURANÇA E SAÚDE Paulo Silva, eng. civil, Pedro Pereira, eng. civil CONSULTORIAS: 11 12 HISTÓRIA DA ARQUITECTURA E DA CIDADE Jorge Correia, arq., EAUM AMBIENTE PEDONAL NAS CIDADES André Fontes, arq., eng. civil, EAUM MOBILIDADE António Babo, eng. GNG.APB CONSERVAÇÃO E TRASLADAÇÃO DE FONTES E CRUZEIRO Paulo Lourenço, eng. DEC UM OBRA | EXECUÇÃO: FISCALIZAÇÃO CMG Margarida Pereira e Gilberto Fernandes, eng. civis, Adão Ribeiro, fiscal 13 CONSTRUTORA Alberto Couto Alves, SA 14 (...) a cidade contemporânea é cada vez mais um espaço de mobilidades de pessoas e actividades, no terreno e no tempo, tendo presente que reconstrução e completamento do sistema de espaços colectivos — de infraestruturas e símbolos —, que foi sempre uma longa prioridade na longa história de fazer cidade, não estão nunca terminados e são condição primeira da equidade e da sustentabilidade que hoje exigimos do espaço em que nos movemos, ou onde paramos (...). Nuno PORTAS — Os Tempos das Formas..., p. 201. Ao século X remonta a governação da condessa Mumadona Dias, que ao estabelecer um mosteiro dúplice à cota baixa e fundar um castelo numa colina próxima definiu o embrião espacial que marcaria, até à actualidade, a história e a morfologia da cidade. Elaborado a convite da Câmara Municipal de Guimarães, a realização do projecto contou com uma vasta equipa técnica nas áreas da Arquitectura e da Engenharia e com assessorias específicas nas especialidades da História da Arquitectura e da Cidade, da Mobilidade e Transportes, de Serviço e Ambiente Pedonal e, ainda, de apoio à Trasladação de Fontes e Cruzeiro. A aproximação moderna à construção crítica dos “valores de uso” e “de comemoração” na sua relação com o “culto dos monumentos” inicia-se com Aloïs Riegl no dealbar do século passado — (...) pour la première fois dans l’histoire de la notion de monument historique et de ses applications, Riegl prend distance (...). Françoise CHOAY na introdução à versão francesa de Denkmalkultus. Françoise CHOAY — A Alegoria do Património. (...) si le capitalisme culturel promeut effectivement la culture, il le fait à la manière d’un bien ‘consommable’ et donc inscrit l’usage, mais aussi l’évaluation du patrimoine, dans des logiques d’offre et de demande (...). Stephane DAWANS; Claudine HOUBART — Le patrimoine a l’etat gazeux... Com origem no Grand Tour, praticado por uma restrita elite cosmopolita a partir do Setecentos, a difusão da viagem de lazer cultural aconteceu ao longo do último século (ver Alain CORBIN — A História dos Tempos Livres); a sua explosiva massificação nas últimas décadas do século XX era já muito agudamente comentada por Guy Debord em 1967: (...) § 168 — Subproduto da circulação de mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distracção de ir ver o que se tornou banal. A ordenação económica da frequentação de lugares diferentes é já por si mesmo a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço (...). Guy DEBORD — A Sociedade do Espectáculo, p. 162. (...) Se todo o monumento é traço do passado, consciente ou involuntariamente deixado, a sua leitura só será re-suscitadora de memórias se não se limitar à perspectiva gnosiológica e fria (típica da leitura patrimonial e museológica), e se for medida pela afectividade e pela partilha comunitária com outros. (...). Fernando CATROGA — Memória, História..., p. 24. Max WEBBER — “The city”. Economy and Society: an Outline of Interpretive Sociology, [1921] 1978, vol II. Sabendo, com Alexandre Alves Costa, (...) que há uma história para arquitectos que não tem os mesmos objectivos, nem os mesmos métodos da história dos historiadores (...) e que (...) Estudamos história da arquitectura pelo prazer de compreender a arquitectura (...) como reflexão a partir do interior, pensando o que deve ser feito e como fazer (...). Alexandre Alves COSTA — “O lugar da história”. Textos Datados, pp. 255, 264. Aldo ROSSI — A Arquitectura da Cidade. A proposta de renovação urbana pressupôs, na sua enunciação, objectivos programáticos de natureza diversa. Destacam-se aqueles que se afirmaram como os mais estruturantes: a) adequação do espaço à urbanidade hodierna, considerando as vertentes de representação simbólica, patrimonial e funcional, afirmando a condição contemporânea e reconhecendo a sua radicação na trajectória histórica do sítio; b) favorecimento da relação pedonal entre a cidade intramuros e a Zona de Couros, muito constrangida pelo reduzido número de ligações entre ambas, pelas circunstâncias topográficas e pela organização longitudinal da Alameda de São Dâmaso; c) qualificação da área fronteira ao Convento de São Francisco, então um espaço urbano anódino que não reconhecia o edifício nem valorizava o seu contacto com a cidade; d) compatibilização das circulações viária e pedonal, hierarquizando devidamente os diversos temas e prestando uma atenção particular ao peão e ao transporte público; e) racionalização e melhoramento das infra-estruturas existentes e consideração das redes ausentes, no sentido de aumentar a qualidade dos serviços e o conforto urbano. Günther VOGT — “Between search and research”. Vogt Landscape Architects, distance and engagement, pp. 7-23. A muralha, definida na sua planta e perfil a partir de finais do século XIV, é um elemento desde sempre presente na configuração da cidade e tema transversal decisivo na espacialidade de toda esta área, da sua génese aos nossos dias. monumentos 33 15 16 17 18 19 20 21 Elemento identitário profundamente incorporado na memória colectiva vimaranense, o propósito de “iluminar” essa presença foi um dos temas do projecto. Em finais do século XVIII, princípios do XIX, o pano de muralha que delimitava o Toural a nascente e a torre da Porta da Vila foram apeados, para no seu lugar se erguer a frente pombalina do Toural, que nos aparece (...) como uma realização de carácter tardio, ainda e sobretudo no movimento das cornijas, com reminiscências barrocas, para além de outras, almadinas, no desenho e ritmo contínuo de vãos com padieiras abatidas e molduras laterais que, verticalmente, se prolongam. Isso contudo, não obsta ao seu alto valor estético (...). Bernardo FERRÃO; José Ferrão AFONSO — “A evolução urbana de Guimarães e a criação do seu património”. Guimarães: Património Cultural da Humanidade, p. 41. Pressupôs-se, como ponto de partida, a compatibilidade entre o automóvel e o peão considerando, no entanto, que essa partilha dependia de uma clara definição dos respectivos territórios. A estrutura funcional e o dimensionamento das superfícies atribuídas à circulação motorizada e pedonal foram, assim, centrais no desenho. O projecto, em estreita articulação com as propostas da assessoria para a mobilidade e transportes, anulou arruamentos supérfluos e redefiniu perfis transversais, a localização das paragens de transportes públicos e a organização do estacionamento. No cômputo geral foi recuperada para a circulação pedonal cerca de 40% da área anteriormente afecta ao trânsito motorizado. O excesso de área atribuído à circulação viária (que revertia, sobretudo, em favor do aparcamento de permanência ao longo do dia e de estacionamento em segunda fila) criava constrangimentos que se reflectiam, particularmente, na diminuição das áreas destinadas ao peão. Constatou-se, também, a utilização das vias envolventes da Alameda de São Dâmaso como terminal de autocarros, que aí estacionavam durante longos períodos; por seu turno, os abrigos correspondentes ocupavam a quase totalidade do passeio, constituindo um sério obstáculo à circulação de peões. A substituição da rotunda da Senhora da Guia por um parterre semelhante aos que ocupam a Avenida da República do Brasil permitiu racionalizar e redesenhar o complexo sistema viário daquela área e acelerar a perspectiva da Igreja dos Santos Passos. Também assim foi possível aproximar da frente urbana a fonte setecentista que se encontrava no centro da rotunda e atribuir-lhe uma base de assentamento estável, que a torna acessível e a valoriza formalmente. Esta solução permitiu ainda conquistar uma área significativa para a circulação pedonal naquela zona e a plantação de um enfiamento de árvores no passeio limite nascente da intervenção, rematando assim o continuum arborizado que se verifica, agora, a partir da Praça do Toural. O chafariz do Toural foi executado em 1583 por Gonçalo Lopes, membro de uma família de mestres que trabalhou entre os séculos XVI e XVII no Norte de Portugal e na Galiza. Trata-se de uma peça de granito composta por três taças escalonadas, encimadas por esfera de bronze dourada, encontrando-se à época rodeada por um banco corrido ao qual, eventualmente, se adossava um pequeno tanque para bebedouro. Este chafariz enraíza-se numa tradição de fontanários de um classicismo mais erudito, cujo primeiro exemplar foi erguido por João Lopes-o-Velho, em Viana do Castelo, numa tipologia em tudo idêntica à utilizada por seu filho, João Lopes-o-Moço, em Ponte de Lima. Foi desmontado em 1873 e colocado no Largo do Carmo, de onde agora se trasladou, em 1891. Como exemplo desta discussão, que ao longo do tempo tem inflamado a opinião pública vimaranense — sempre atenta às intervenções na cidade e, muito particularmente, no Toural —, consultar http://araduca.blogspot.pt/2010/12/ o-mosaico-do-toural-1.html. Com este redimensionamento do canal rodoviário a segurança pedonal aumentou, uma vez que os veículos se viram constrangidos a reduzir a velocidade habitual. Simultaneamente, no limite norte da rua, que conta com um perfil transversal mais generoso que na restante via, foi possível criar no passeio frontal aos abrigos de transporte público um alinhamento de árvores que não só controla a excessiva abertura visual deste topo, como lhe atribui conforto. A Alameda de São Dâmaso, surgida enquanto tal a partir do terceiro quartel do século XIX com o intuito de atribuir urbanidade à área localizada entre a muralha e a Zona de Couros, foi edificada ao longo de um processo que se prolongou até meados do século seguinte, quando foi concluída e construída a rotunda da Senhora da Guia (conforme planos de Maria José Marques da Silva e David Moreira da Silva), que a rematava e articulava com a Avenida da República do Brasil. Uma alameda é uma rua (ou caminho) constituída por alinhamentos de árvores; um bosque é um espaço arborizado que se percorre em todas as direcções, por entre troncos dispostos de forma supostamente aleatória. 22 23 24 DOSSIÊ A Alameda de São Dâmaso era conhecida como “o jardim dos idosos”, praticamente os seus únicos utentes; à noite, e apesar da sua centralidade, era um espaço abandonado. O bosque pretende favorecer outros usos urbanos, diversificados, sem no entanto expulsar aqueles que já existiam. Essas novas possibilidades de ocupação prendem-se, sobretudo, com a capacidade que o espaço tem de acolher diversos tipos de utilizadores e actividades, em período de tempo mais dilatado. As duas fontes — o Faunito (1934) e a Rapariguinha (1939), de autoria do escultor António de Azevedo — encontravam-se simetricamente dispostas e viradas uma para a outra no antigo jardim central da Alameda de São Dâmaso, reforçando a sua axialidade. Desmantelada esta última, manteve-se no entanto a relação visual entre ambas as esculturas, que se continuam a olhar. Conjunto dos finais do século XIII e edificado originalmente junto à muralha do burgo medieval, foi deslocado por ordem real na centúria seguinte, tendo em vista o desatravancamento da muralha. B I B L I O G R A F I A BORGES, Nuno Miguel; NEVES, António Amaro das — Renovação [da] Praça do Toural, Alameda de São Dâmaso, Rua de Santo António, Guimarães 2010-2012. Porto: NMB – Nuno Miguel Borges, 2012, edição bilingue em português e inglês. 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IPA.00000095), possuindo diversos caminhos pedestres, rampas e escadas rampeadas, de patim largo. O espaço fronteiro à fachada principal do Paço dos Duques de Bragança apresenta um amplo passeio central, pavimentado a cubos graníticos com guias formando quadrícula, ladeado por espaços relvados; próximo, ergue-se o monumento a D. Afonso Henriques (v. IPA.00029521). DESCRIÇÃO: Planta quadrangular, formada por quatro alas ENQUADRAMENTO: Urbano, isolado, a meia encosta do Monte Latito, ocupando uma posição sobranceira ao burgo medieval amuralhado de Guimarães. Inserido no interior das muralhas (v. IPA.00001048), com ligação à Rua de Santa Maria, o eixo medieval que unia os dois núcleos urbanos, o Mosteiro (Vila Baixa) e o Castelo (Vila Alta), nas imediações da Porta Freiria, já desaparecida. Implantado em terreno de acentuado declive, é envolvido por parque arborizado, onde se erguem outros monumentos; na cota mais dispostas em torno de um pátio central, integrando capela ao centro da ala posterior e quatro torreões nos ângulos. Possui volumes escalonados, com coberturas diferenciadas em telhados de uma e duas águas nas galerias do pátio e de quatro águas nos restantes corpos, de pendente acentuada, com trinta e seis chaminés cilíndricas, em tijolo, e quatro guaritas cilíndricas nos ângulos interiores dos torreões, com cobertura em coruchéu piramidal. Fachadas de três pisos, em alvenaria ao nível do piso térreo e em cantaria de grani- 1 | Vista aérea sobre o Paço dos Duques de Bragança. 3 | Fachadas principal e lateral. 2 | Vista aérea sobre o paço, vendo-se a fachada SO. e enquadramento. 4 | Fachada SE. do paço e enquadramento. monumentos 33 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO 133 5 | Pátio central, após as obras de restauro. to, de aparelho isódomo, nos restantes, possuindo gárgulas entre os panos murários, sendo estes rasgados por vãos de diferente dimensão e modinatura, alguns protegidos por gradeamento, e com remates em ameias com chanfro decoradas por flor-de-lis. Fachada principal virada a NO., de disposição simétrica, com pano central recuado e remate destacado por um balcão corrido, suportado por mísulas trilobadas, com caminho de ronda que une as pequenas guaritas, dispostas junto aos ângulos dos torreões. Piso térreo rasgado por portal em arco apontado de aduelas marcadas, encimado por mísulas que pertenceriam a um alpendre e dez pequenas frestas retilíneas; em cada um dos pisos superiores abrem-se seis janelas de verga reta de cruzeta; os corpos laterais torreados são rasgados por vãos de verga reta, de forma assimétrica: no torreão da esquerda, uma fresta e uma janela de cruzeta por piso; no torreão da direita, cinco frestas e uma janela de cruzeta por piso. Fachadas laterais de disposição simétrica com pano central mais baixo. A fachada lateral NE. é percorrida por mísulas, que teriam sustentado um alpendre corrido, e por friso de cantaria saliente, encimado por quatro vãos quadrangulares, em cada um dos panos, sendo estes em capialço e sobrepujados por pingadouro; ao nível do piso térreo a fachada é ritmada por dezoito frestas retilíneas, no pano central, é rasgada por vão de arco apontado e ladeada por janelas de verga reta, de cruzeta, gradeadas, uma do lado esquerdo e três do lado direito; os torreões apresentam no último piso três janelas de verga reta de cruzeta encimados por friso de cantaria saliente. A fachada lateral SO. apresenta no pano central do piso térreo portal em arco apontado, com aduelas marcadas, precedido por escadaria de lanços retos opostos, com guarda plena em cantaria, sobrepujada por onze frestas retilíneas desalinhadas; no piso superior abrem-se cinco janelas de verga reta, de cruzeta, sobrepostas por janelas jacentes retilíneas; a organização dos vãos nos dois torreões é idêntica, sendo rasgados por fresta retilínea e janela de verga reta de cruzeta, gradeada, ao nível do piso térreo e por três janelas de verga reta de cruzeta em cada um dos pisos superiores. Fachada posterior virada a SE., de cinco panos, o central, correspondente à capela, mais destacado e rasgado por três janelas de verga reta de cruzeta, encimadas por dois janelões em arco apontado, divididos em três lumes com bandeiras decoradas com motivos de desenho flamejante, integrando vitrais figurativos; é ladeado por dois corpos mais recuados de dimensões diferentes; o do lado esquerdo, maior, possui no extremo esquerdo portal de arco apontado, de aduelas marcadas, com acesso por escada adossada, de um só lanço e guarda plena na de cantaria, sendo encimado por quatro pequenos vãos retilíneos e sobrepujado por dois vãos em arco ligeiramente apontado, também de aduelas marcadas; no piso superior duas janelas de verga reta de cruzeta e balcão fechado, coberto por telhado de uma água, suportado por mísulas quadrilobadas e rasgado por duas janelas retilíneas; um pouco mais elevado, rasga-se pequeno vão retilíneo, em capialço; o do lado direito apresenta ao nível do piso térreo, no extremo direito, portal em arco apontado, com aduelas marcadas, encimado por fresta retilínea e, a ladear o portal, três pequenos vãos de verga reta; é sobrepujado por dois vãos em arco de volta ligeiramente apontada, de aduelas marcadas, e, no piso superior, surge janela de verga reta de cruzeta e um balcão idêntico ao anterior, fechado e coberto por telhado de uma água, suportado por mísulas quadrilobadas e rasgado por duas janelas retilíneas, sendo este encimado por pequeno vão retilíneo, em capialço. Os torreões, ao nível do último piso, apresentam balcões corridos, suportados por mísulas quadrilobadas, encimados por três vãos retilíneos; no torreão do lado esquerdo rasgam-se quatro janelas de verga reta de cruzeta, duas por piso, e quatro frestas retilíneas; no torreão do lado direito abre-se uma janela de verga reta de cruzeta, um vão quadrangular em capialço e cinco frestas retilíneas de dimensão diferenciada. INTERIOR: amplo pátio retangular, pavimentado a lajes de granito com acesso direto através do portal da ala NO. As alas são rasgadas, no piso térreo, por vãos em arco apontado, assentes em pilares e muretes, tendo em cada ala um deles aberto, surgindo seis vãos nas alas NO. e SE. e quatro nas NE. e SO.; no piso superior, surgem vãos arquitravados, sustentados por colunelos toscanos. No último piso, a ala NO. apresenta-se rasgada por sete janelas de verga reta de cruzeta e a ala SE. por quatro balcões apoiados em mísulas trilobadas, sendo dois de menor dimensão, cobertos por pequeno telheiro de uma água e dois corridos; rasgam-se 134 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO monumentos 33dossiê te, surgem as armas dos Bragança e dos Lencastre, Santo António, São Francisco, o Crucificado, São Jorge, Nossa Senhora da Oliveira e Santiago. 6 | Portal da capela. 7 | Interior da capela. ainda de forma assimétrica seis pequenos vãos retilíneos, em capialço, encimados por friso saliente. A organização é marcada, no piso térreo, por inúmeras salas separadas por estreitos corredores perpendiculares às fachadas, na ala da fachada principal localizam-se as áreas de receção do visitante e de serviços, a caixa de escadas de quatro lanços, em granito e o elevador. As salas são contíguas, exibindo paredes em granito, pavimento em lajes de cantaria, no piso térreo, e mosaico cerâmico, no superior, tetos de madeira com o travejamento à vista, alguns apresentando pinturas vegetalistas. O piso superior, correspondente ao percurso museológico, é marcado pelos amplos salões, com lareiras de pedra, nomeadamente, o Salão de Banquetes e o Salão dos Paços Perdidos, de grande pé-direito, com teto do tipo quilha de barco invertida, em madeira de castanho. Na ala SE., rasga-se ao centro uma tribuna, enquadrada por grande arco de volta perfeita apoiado nas colunas de pedra com capitéis lisos, coberta por estrutura em madeira de duas águas. Fronteiro à tribuna, e numa posição elevada, rasga-se o portal da capela, de quatro arquivoltas em arco apontado, com a arquivolta exterior envolvida por friso decorado por elementos geométricos em ponta de diamante, assentes em colunas de mármore com capitéis de decoração vegetalista, encimado por brasão do 1.º º duque de Bragança, sendo precedido por escadaria; a ladear a capela surgem salas contíguas *2. CAPELA de nave única com pavimento e teto de madeira com o travejamento à vista. Sobre o portal de verga reta situa-se o coro-alto, estreito, de madeira, com guarda vazada, e acesso aos balcões da fachada exterior e de ligação aos corredores das restantes alas. Presbitério sobrelevado, demarcado por guarda de madeira vazada por arcos polilobados, tendo nas paredes laterais tribunas de madeira, de dois registos, encimadas por cornija, e abertas por arcaria trilobada flamejante, com guarda plena de madeira. Parede testeira com altar paralelepipédico de madeira, encimado pelas janelas de desenho flamejante, onde surge, em posição elevada, peanha com a imagem da Virgem. O último piso da ala da fachada principal, destinado à residência oficial do presidente da República, é composto por cinco quartos de dormir com instalações sanitárias privativas e por duas suites nos extremos da ala, correspondentes aos torreões. DESCRIÇÃO COMPLEMENTAR: Os VITRAIS da capela representam, do lado esquerdo, D. Afonso Henriques, o conde de Barcelos e D. Constança, e, do lado direito, D. Filipa de Lencastre, D. João I e D. Nuno Álvares Pereira. Superiormen- PATRIMÓNIO MÓVEL: Os espaços interiores encontram-se ricamente decorados com peças de mobiliário português, nomeadamente contadores indo-portugueses e hispano-árabes; diversas arcas; móveis holandeses dos sécs. 17 e 18; tapeçarias flamengas do séc. 18, executadas segundo cartões de Pieter Paul Rubens, cujos temas são episódios de um cônônsul romano; quatro cópias das tapeçarias de Pastrana, representando a conquista de Arzila e a chegada dos portugueses a Ceuta; tapeçarias de Gobelins; tapetes árabes; panos que pertenceram à Inquisição de Coimbra; dois quadros do pintor italiano Recco; dois quadros com naturezas-mortas de Josefa de Óbidos; uma coleção de armas reunidas pelo visconde de Pindela, datadas dos sécs. 15 ao 18, nomeadamente armas brancas e de fogo, assim como diversas peças de armaduras; várias imagens religiosas, uma das quais em pedra de Ançã; coleção de porcelanas da Companhia das Índias e Faianças das Fábricas do Prado, Viana, Rocha Soares e Rato. UTILIZAÇÃO INICIAL: Residencial: paço senhorial UTILIZAÇÃO ATUAL: Residencial: residência oficial do presi- dente da República / Cultural: museu (horários: todos os dias das 10:00 às 18:00, última admissão às 17:30, encerra: 1 de janeiro, Domingo de Páscoa, 1.º de maio e 25 de dezembro) PROPRIEDADE: Pública: estatal PROPRIETÁRIO: Estado Português (Direção-Geral do Te- souro e Finanças) AFETAÇÃO: DRCNorte, Decreto-Lei n.º 114/2012, DR, 1.ª série, n.º 102, de 25 maio 2012 8 | Espaço interior do Paço dos Duques, salão decorado com peças de mobiliário e tapeçarias. 9 | Espaço interior, salão decorado com peças de mobiliário e tapeçarias. monumentos 33 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO 135 11 | Pátio central do edifício do Paço dos Duques, enquanto serviu de aquartelamento ao Exército [1935]. 10 | Edifício do Paço dos Duques, enquanto serviu de aquartelamento ao Exército [1935]. UTENTE: Proprietário / Público ÉPOCA CONSTRUÇÃO: Sécs. 15 / 16 / 20 ARQUITETO/CONSTRUTOR/AUTOR: ARQUITETOS: Alberto da Silva Bessa (1948); Francisco de Azeredo (1965); Joaquim Areal (1942); Luís Benavente (1955); Mário Barbosa (1947); Mestre Antom (atr. 1420); Rogério de Azevedo (1936). ARQUITETO PAISAGISTA: António Viana Barreto (1957). CARPINTEIROS: Afonso Anes (1490); João Domingues (1490). ESCULTOR: Manuel Ventura Teixeira Lopes (1958). PINTORES: António Costa (1943); António Lino (1958). CRONOLOGIA: 1420-1422 — início de construção do paço, data associada às cláusulas do contrato do segundo casamento do conde de Barcelos, D. Afonso, filho bastardo de D. João I, com D. Constança de Noronha, no regresso de missões diplomáticas nas cortes de França, Veneza, Aragão e Castela; segundo alguns autores, o projeto é entregue ao mestre francês Antom *3; 1438, 31 janeiro — data provável da ocupação do paço; 1442 — o paço estaria ainda em construção, quando o regente D. Pedro aqui se hospedou e conferiu ao seu meio-irmão o título de 1.º duque de Bragança; 1461 — as obras do paço pararam após a morte de D. Afonso, sucedendo-lhe o seu filho D. Fernando I, 2.º duque de Bragança; D. Constança de Noronha, a viúva, permaneceu no paço e continuou a receber as rendas de Guimarães; o paço foi utilizado como um espaço de acolhimento de doentes e necessitados; 1464 — foi concedido o título de 1.º conde de Guimarães, pelo rei D. Afonso V, a D. Fernando II, filho do duque de Bragança; 1475 — o título de conde de Guimarães foi renovado por D. Afonso V para duque de Guimarães; 1478, 1 abril — falecimento do 2.º º duque de Bragança, sucedendo-lhe o seu filho D. Fernando II, 3.º duque de Bragança, que terá impulsionado a continuação das obras no paço; 1480, 26 janeiro — falecimento de D. Constança de Noronha no paço; 1483 — o duque D. Fernando II foi acusado de traição ao rei D. João II, tendo sido confiscados todos os bens da Casa de Bragança, tornando-se o paço propriedade da Casa Real; 20 junho — falecimento do duque D. Fernando II; 1490 — por ordem do rei D. João II, o paço continuou a receber obras de manutenção, como o evidencia a contratação do carpinteiro João Domingues; 20 dezembro — carta dando conta da renúncia do carpinteiro João Do- mingues, em favor do seu genro Afonso Anes; 1496 — os bens da Casa de Bragança foram novamente restituídos ao duque D. Jaime I e confirmada a doação dos padroados de Guimarães, o que vem comprovar a tese de Custódio Vieira da Silva que teria sido D. Jaime, 4.º duque de Bragança, a construir o terceiro piso da fachada posterior do paço, interligando os dois torreões que ladeiam a capela; séc. 16, início — o paço foi encerrado, devido à deslocação do paço ducal para Vila Viçosa (v. IPA.0002750); 1536, 21 agosto — o ducado de Guimarães foi dado como dote de casamento a D. Isabel, irmã do duque D. Teodósio; 1611, 20 outubro — as freiras clarissas solicitaram pedra da cerca do paço para efetuar arranjos no seu mosteiro; 1616 — início do processo de degradação do paço com a doação de Guimarães ao castelhano D. Diogo da Sylva e Mendonza, durante a dinastia filipina; 1666 — os frades capuchos receberam autorização do rei D. Afonso VI e do 10.º º duque de Bragança para utilizarem pedra das paredes interiores do paço para a construção do Convento da Piedade; 31 janeiro — a Câmara insurgiu-se contra o facto de se estar a arruinar o paço; 4 fevereiro — auto de vistoria e avaliação do paço pela Casa da Câmara para informar o rei sobre a urgência e a necessidade das obras de conservação do paço *4; a Câmara propôs entregar dinheiro aos frades capuchos e ceder a pedra da barbacã do Castelo de Guimarães, em troca da pedra do paço; 1667, 30 julho — através de requerimento da Câmara, foi pedido ao juiz de fora para averiguar quem roubava a pedra junto à porta de Santa Cruz (...) que se vai arruinando e dos Paços pelo prejuízo que se segue à fortificação dos muros e obra real dos mesmos Paços dos Duques (...); 1672, 26 novembro — foi notificado Pedro Vaz de Sampaio, mestre-pedreiro, para consertar a porta do paço, repondo com juntadoiros, visto que a mesma estava já arruinada; 1692 — o padre Torcato Peixoto de Azevedo refere nas suas Memórias, que o paço nunca foi concluído; séc. 18 — o padre António Caetano de Sousa menciona que o paço inicialmente havia sido guarnecido por rico mobiliário, tapeçarias, uma biblioteca e diversas antiguidades vindas de fora do reino; 1706 — o padre António de Carvalho da Costa referiu, na sua Corografia Portuguesa, que o paço não havia sido terminado; 1761, 29 dezembro — documento transcrito em 1900 por Albano Bellino, com a medição do paço em planta e alçados, respetivas confrontações, sem referência alguma ao pátio central; 1771 — Frei Manuel da Mealhada refere-se ao inacabado Paço dos Duques; 1807 — a parte habitável do paço foi coberta de 136 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO monumentos 33dossiê 12 | Fachada NO., durante as obras da DGEMN. e Paço dos Duques para a construção de um parque; 1933, 26 setembro — o diretor-conservador do Museu Alberto Sampaio, Dr. Alfredo Guimarães, pediu a Oliveira Salazar que visitasse o arruinado paço, dando-se assim início ao processo de reconstrução do edifício; 1935, 31 dezembro — o quartel militar abandona o paço; 1936 — o arquiteto Rogério de Azevedo apresentou o projeto de restauro, referindo que as obras ainda não tinham começado por falta de dotação orçamental, faltava ainda a decisão relativamente a alguns pormenores de fachadas e pátio e o programa definitivo para a organização espacial; na altura pretendia-se instalar no edifício os serviços culturais da Câmara Municipal de Guimarães (museu, biblioteca e arquivo); 1937 — início dos trabalhos mais urgentes, sob a orientação do arquiteto Rogério de Azevedo; 1939 — o pátio interior do paço foi objeto de vários estudos, por parte do arquiteto Rogério de Azevedo, tendo sido adotado o da construção de uma escada monumental no centro do pátio de acesso à capela; 1940 — Rogério de Azevedo abandona a direção da obra; a escada monumental encontrava-se em construção; a estátua de D. Afonso Henriques foi transferida para o local atual, por decisão do Governo e da Câmara; 1942 — o arquiteto Joaquim Areal deu continuidade aos trabalhos iniciados no paço; pediu autorização para efetuar uma viagem de estudo a Espanha, a qual não lhe foi concedida; 1943 — novo pedido de viagem de estudo por parte do arquiteto Joaquim Areal, em que este alega dificuldades para a solução a adotar para os tetos e outras decorações, para a qual teve a contribuição do pintor António Costa para os motivos decorativos dos tetos e de Guilherme Camarinha para o estudo dos vitrais da capela, mas este último não foi aprovado superiormente; foram levadas do Mosteiro de São Miguel de Refojos (v. IPA.00001049), em Cabeceiras de Basto, as grades do adro, para reaproveitamento de material nos restauros do paço; 1948 — o arquiteto Alberto da Silva Bessa assume a direção dos trabalhos do paço; demolição da escada monumental; 1953 — o general Craveiro Lopes usou o paço para atos oficiais, nas comemorações do 1.º centenário da elevação de Guimarães a cidade; 1954 — após visita ao paço, o ministro das Obras Públicas 13 | Fachada NE., durante as obras da DGEMN. 14 | Pátio central, durante as obras da DGEMN, construção dos arcos. 15 | Pátio central, durante as obras da DGEMN, construção da escadaria. telha pelo almoxarife Jerónimo de Matos Feijó, para instalação do Quartel do Regimento de Infantaria 20; 1819, 8 janeiro — conclusão de diversas obras; 1880, 30 dezembro — foi considerado monumento histórico de 2.ª classe pela Real Associação de Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses; 1881 — o padre António José Ferreira Caldas referiu-se ao paço, como um edifício arruinado e a servir de quartel, tendo por lá passado diversos regimentos e batalhões; foi efetuada uma descrição do que existia, nomeadamente o grande pátio interior, a fachada principal só com um piso e as laterais e posterior mais elevadas, o portal da capela, os cachorros que suportariam as galerias do pátio, os janelões flamejantes da capela e as diversas chaminés de tijolo; 1886 — Vilhena Barbosa descreveu o paço, mencionando os cachorros da fachada lateral NE. que suportariam uma alpendrada; 1914 — Mariano Felgueira lançou a ideia da expropriação da zona envolvente ao Castelo, Capela de São Miguel monumentos 33 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO 137 de alguns trabalhos; 1992, 01 junho — o imóvel foi afeto ao Instituto Português do Património Arquitetónico, pelo Decreto-Lei 106F/92, DR, 1.ª série A, n.º 126; 1993 — abertura ao público da Sala-Museu José de Guimarães; 2007, 29 março — o imóvel foi afeto ao Instituto dos Museus e Conservação, IP pelo Decreto-Lei n.º 97/2007, DR, 1.ª série, n.º 63. 16 | Fachada NO., depois das obras da DGEMN. 17 | Pátio interior, depois das obras da DGEMN. determinou o aceleramento das obras e a execução do estudo final para as coberturas e para a residência presidencial; deu autorização para a viagem de estudo; 1955 — o arquiteto Luís Benavente fez uma viagem oficial à região do Loire, com o objetivo de estudar os seus palácios e apresentar o programa final para o paço, nomeadamente para as coberturas, pátio e interior da capela; visita oficial do general Craveiro Lopes com o seu homólogo brasileiro João Café Filho; 1956 — as soluções propostas pelo arquiteto Luís Benavente foram aprovadas pelo ministro Arantes e Oliveira; 1957 — execução de arranjo paisagístico da envolvente do Castelo, Igreja de São Miguel e Paço dos Duques, de forma a valorizar os monumentos e a criar um parque público, segundo o projeto do arquiteto paisagista António Viana Barreto; o arquiteto Mário Barbosa apresentou um estudo para as tribunas da capela; 1958 — elaboração de estudos para a execução do brasão para o frontão da capela do paço pelo escultor Manuel Ventura Teixeira Lopes e para a execução dos vitrais da capela pelo pintor António Lino; 1959 — foi nomeada uma Comissão de Mobiliário para dotar os espaços do paço de mobiliário e decoração apropriada à sua funcionalidade de residência presidencial e museológica; 24 junho — inauguração do paço como residência oficial da Presidência da República; 26 agosto — inauguração como museu; 1960 — o monumento foi aberto ao público, faltando ainda a execução TIPOLOGIA: Arquitetura residencial, medieval e revivalista. Paço de fundação medieval, de planta quadrangular, formada por quatro alas dispostas em torno de um pátio central, integrando capela ao centro da ala posterior e quatro torreões nos ângulos. Tenta reproduzir o modus vivendi da nobreza europeia que, para alguns autores, seria inspirada em modelos de residências fortificadas, italiana, flamenga e francesa *5. Segundo Custódio Vieira da Silva, são evidentes as semelhanças formais e construtivas entre o Paço dos Duques de Guimarães e o Paço ço dos Reis de Maiorca, em Perpignan, na organização do espaço em torno de um pátio interior com capela no centro do corpo oposto à entrada principal e as alas laterais a albergar as dependências maiores; assim como, o recurso às janelas retangulares cruzetadas, de influência francesa, difundida em diversos palácios a partir do séc. 14. Apresenta ainda semelhanças com o Paço Ducal de Barcelos (v. IPA.00001925), com obras quase simultâneas e também mandado construir por D. Afonso, nomeadamente nas janelas retangulares cruzetadas, nas altas chaminés que coroam os remates e nas coberturas de grande inclinação e remates em ameias, que possuía originalmente como é visível no desenho de 1509 de Duarte de Armas. O interior organiza-se em torno de um amplo pátio, percorrido por galerias em arco apontado no piso térreo e em colunata no piso superior. Fronteira à entrada principal e ao nível do andar nobre surge a capela, com portal em arco apontado de arquivoltas sobre colunelos, rasgada na parede testeira por dois grandes vãos em arco apontado, de três lumes e bandeiras decoradas com motivos de desenho flamejante, e com vitrais figurativos que iluminam o espaço de decoração neomedieval. A ligação entre os pisos faz-se por escadas de caracol nos torreões e escadas de lanços nas quatro alas. Estas organizam-se em amplas salas comunicantes, algumas com lareira em pedra e tetos revestidos a madeira. 18 | Janela da capela, depois das obras da DGEMN. 19 | Janela de cruzeta, depois das obras da DGEMN. 138 20 | Alçado NO., antes das obras de restauro. 21 | Alçado NO., depois das obras de restauro. 22 | Alçado SE., antes das obras de restauro. 23 | Alçado SE., depois das obras de restauro. INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO monumentos 33dossiê monumentos 33 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO 139 24 | Alçado NE., antes das obras de restauro. 25 | Alçado NE., depois das obras de restauro. 26 | Corte pelo pátio interior, antes das obras de restauro. 27 | Corte pelo pátio interior, depois das obras de restauro. 140 INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO monumentos 33dossiê CARACTERÍSTICAS PARTICULARES: Paço medieval de grande dimensão, bastante transformado pela ação dos vários intervenientes que o ocuparam ao longo dos tempos, já que teve a construção iniciada em 1420-1422 e prolongada até finais do séc. 15, início do séc. 16, altura provável em que se elevou o número de pisos e se fez o remate em ameias, posteriormente devoluto e ocupado como quartel, entre o início do séc. 19 e 1935, altura em que se começa a desenhar o projeto de restauro da DGEMN. Constitui um exemplar de arquitetura civil único no país, onde a monumentalidade se associa ao conforto que a época exigia, como é visível pelo grande número de lareiras de aquecimento coroadas por altas chaminés em tijolo, mesmo a capela já possuía aquecimento, nas laterais do corpo virado a NE. com as duas longas chaminés adossadas; pelas inúmeras escadas de serviço e pelas condutas de escoamento das águas pluviais inseridas nas paredes. É de destacar a influência das construções militares na fachada posterior, com dois pequenos balcões fechados nos corpos laterais da capela e dois corridos nos torreões, todos sustentados por mísulas escalonadas, que se procurou reproduzir no pano central da fachada principal com balcão corrido. A grandeza dos paços construídos em Guimarães e Barcelos pelo duque de Bragança e sobretudo a dimensão e o lugar central ocupado pela capela no de Guimarães reforça a importância que a Casa de Bragança detinha, competindo com o próprio monarca. O paço sofreu uma das maiores e mais profundas obras de restauro, levada a cabo pela DGEMN, sob a orientação do arquiteto Rogério de Azevedo *6, com o objetivo de recriar um modelo tipológico de residência nobre europeia, dos séculos 15 e 16, dotando o paço de uma simetria que não existia originalmente ao nível das fachadas, dos quatro torreões, ainda que a planta original confirme o tratamento igual que todos os muros apresentam até um determinado nível, indicando que o paço foi idealizado como um grande quadrilátero; no coroamento de ameias em todos os muros (coroamento que foi baseado no achado de um único exemplar primitivo datado do séc. 16), na forte pendente das coberturas e na organização do espaço interior em galeria no primeiro piso e a sua correspondente térrea, em todas as faces, apesar das respetivas fundações apenas conservarem os orifícios correspondentes ao encaixe das vigas de suporte do pavimento da galeria nas três faces, excetuando a do corpo principal. Aliás, a fachada principal foi a mais intervencionada, pois era a que detinha os dois pisos menos elevados e não possuía torreão no lado esquerdo; em contrapartida, a ala menos alterada, não só ao nível dos volumes, como de fachadas, foi a posterior, porque era a mais bem conservada até à altura do restauro. O projeto de restauro do Paço foi planeado como um todo, tendo até a sua decoração sido objeto de estudo, para o qual se constituiu uma Comissão de Mobiliário com a atribuição de recriar o ambiente das residências nobres, com peças de mobiliário e obras de arte dos sécs. 17 e 18, utilizadas com uma intencionalidade político-ideológica, nomeadamente visível na iconografia dos vitrais *7 e no brasão que coroa o portal da capela. DADOS TÉCNICOS: Sistema estrutural de paredes portantes. MATERIAIS: Estrutura de alvenaria e cantaria, frisos, cor- nijas, ameias, mísulas, balcões, guardas, gárgulas, escadas, elementos decorativos e pavimentos interiores em granito; betão armado na estrutura, tetos e pavimentos; gradeamentos das janelas em ferro; portas, janelas, coberturas, pavimentos interiores, mobiliário, coro-alto, estrutura das tribunas e bancos da capela em madeira; chaminés em tijolo de burro; diversos pavimentos interiores em mosaico cerâmico; vitrais e vidros simples nas janelas; coberturas em telha. CONSERVAÇÃO COBERTURA EXTERIOR: Bom CONSERVAÇÃO ESTRUTURA: Bom CONSERVAÇÃO ELEMENTOS SECUNDÁRIOS: Bom CONSERVAÇÃO COBERTURA INTERIOR: Bom CONSERVAÇÃO PAVIMENTOS: Bom CONSERVAÇÃO DECORAÇÃO: Bom CONSERVAÇÃO VEGETAÇÃO: Razoável PERIGOS POTENCIAIS: Infiltração de humidade BIBLIOGRAFIA: AZEREDO, Francisco de — Casas Senhoriais Portuguesas: Roteiro da Viagem de Estudos do IBI. [s.l.]: Internationales Burgen Institut, 1986; AZEVEDO, Rogério de — Despropósito a Propósito do Paço dos Duques de Guimarães: Epístola ao Sr. Dr. Alfredo Pimenta. Porto: Livraria Fernando Machado, 1942; AZEVEDO, Rogério de — O Paço dos Duques de Guimarães: Preâmbulo à Memória do Projecto de Restauro. Porto: Livraria Fernando Machado, 1942; BARBOSA, Ignácio de Vilhena — Monumentos de Portugal Historicos, Artisticos e Archeologicos. Lisboa, 1886; BELINO, Albano — Archeologia Christã: Descripção Historica de todas as Egrejas, Capellas, Oratorios, Cruzeiros e outros Monumentos de Braga e Guimarães. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal; Sociedade Editora, 1900; BRITO, Maria Mónica — Paço dos Duques de Bragança em Guimarães: Metamorfoses da Imagem na Época Contemporânea. Lisboa: 2003, dissertação de mestrado em Arte, Património e Restauro, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, texto policopiado; CACHADA, Armindo Guimarães — Guimarães: Roteiro Turístico. Guimarães: Zona Turismo de Guimarães, 1992; CHICÓ, Mário Tavares — A Arquitectura Gótica em Portugal. 3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1981; COSTA, António Carvalho da — Corografia Portugueza e Descriçam Topografica do Famoso Reyno de Portugal... Braga: Typ. de Domingos Gonçalves Correia, 1868, tomo I; DO ESTÁDIO Nacional ao Jardim Gulbenkian: Francisco Caldeira Cabral e a Primeira Geração de Arquitectos Paisagistas, 1940-1970. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003; FERNANDES, José Manuel (coord.); JANEIRO, Maria de Lurdes (coord.) — Luís Benavente: Arquitecto. Lisboa: IAN/TT, 1997, catálogo da exposição; FORTE, Joaquim — “Encontrada no castelo estrutura edificada”. Jornal de Notícias Minho. 18 jan. 2004, p. 8; GIL, Júlio — Os Mais Belos Palácios de Portugal. Lisboa: Verbo, 1992; GUIMARÃES do Passado e do Presente. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2009; GUIMARÃES, Alfredo — “Tapeçarias”. Revista Prisma, n.º 4, 1938; LEMOS, Rui — “Paço dos Duques de Bragança vai entrar em obras”. Diário do Minho. 22 jan. 2007; PAÇO dos Duques de Bragança, Guimarães. Boletim da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. [Lisboa]: Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1960, vol. 102; PATRIMONIA: Identidade, Ciências Sociais e Fruição Cultural. Cascais: PAPCFT, 1996; RELATÓRIO da Actividade do Ministério no Ano de 1956. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, monumentos 33 1957; RELATÓRIO da Actividade do Ministério dos Anos de 1957 e 1958. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, 1959, 1 vol.; RELATÓRIO da Actividade do Ministério dos Anos de 1959. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, 1960. 1 vol.; RELATÓRIO da Actividade do Ministério no Ano de 1962 / Ministério das Obras Públicas. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, 1963. 2 vols.; SILVA, José Custódio Vieira da — Paços Medievais Portugueses. Lisboa: IPPAR, 1995; TESOUROS Artísticos de Portugal. Lisboa: Reader’s Digest, 1988; TOMÉ, Miguel — Património e Restauro em Portugal: 1920-1995. 1.ª ed. Porto: FAUP Publicações, 2002. DOCUMENTAÇÃO GRÁFICA: IHRU: DGEMN/DREMN, DGEMN/DREL, DGEMN/DRML, DGEMN/DSMN, DGEMN/ CAM, DGEMN/DSID; Arquivo pessoal António Viana Barreto; Exército Português: Direção de Infra-Estruturas/GEAM: Projeto SIDcarta DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA: IHRU: DGEMN/ DREMN, DGEMN/DSID, DGEMN/DREML, SIPA DOCUMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA: IHRU: DGEMN/ DREMN, DGEMN/CAM; DGEMN/DSARH; DGEMN/DSMN; Câmara Municipal de Guimarães, 1666, Livro 1, p. 132; Arquivo Municipal de Guimarães, São Miguel do Castelo, 1761, Maço n.º 228, doc. 49. INTERVENÇÃO REALIZADA: DGEMN: 1937 / 1959 — diversas obras de restauro e reconstrução: demolição de construções realizadas na época em que o paço esteve adaptado a quartel; aquisição e demolição do casario circundante ao paço e do que se encontrava adossado à muralha contígua à fachada posterior; conclusão da fachada principal e da fachada voltada ao castelo a partir do primeiro piso; recalcamento profundo dos alicerces das paredes exteriores do paço; consolidação de paredes e elevação dos seus coroamentos; arranjo das cantarias das janelas e construção dos mainéis em falta; execução e encastramento de todos os pavimentos vigados de betão armado nas caixas primitivas; construção do pátio, incluindo arcarias e galeria superior, segundo os elementos encontrados; construção de adarves, varandins e ameias; execução das chaminés em falta correspondentes às diversas lareiras existentes; cobertura dos pavimentos de betão com mosaico cerâmico; execução das armações dos telhados em madeira de carvalho e sua cobertura em telha idêntica à que foi encontrada nas escavações; revestimentos de todas as vigas e tetos de betão armado com madeira de castanho; arranjo geral da capela, incluindo execução de tribunas; construção de portas, portadas, caixilhos das janelas; execução de vitrais, armados em chumbo e sua colocação nos caixilhos das janelas; instalação dos serviços de cozinha, copa e monta-pratos de comunicações; execução das redes de saneamento, distribuição de água, eletricidade e para-raios; montagem de instalações sanitárias; execução de uma rede de canalizações exteriores para escoamento das águas pluviais dos jardins; ajardinamento dos terrenos envolventes do edifício; arranjos interiores do paço: seleção de mobiliário e peças de arte, datadas sobretudo dos sécs. 17 e 18 para decoração dos espaços; 1960 — conclusão das obras de restauro; 1961 / 1962 — instalação elétrica e rede de águas quentes e frias; DGEMN / CMG: 1962 — iluminação exterior do paço; 1963 — trabalhos de esgotos das águas pluviais dos telhados do corpo S.; reparação dos telhados; 1965 — trabalhos diversos de adaptação no torreão NE. para habitação do conservador; reparação dos telhados; benefi- INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO ciações interiores e eliminação de focos de térmitas; 1966 — montagem do elevador; continuação da desinfestação de madeiras; limpeza e enceramento de tetos e portas, instalação elétrica; 1967 — reparação de coberturas; abertura e tratamento do rasgo nas paredes para a manga de cheiros e trabalhos complementares; construção de apanha-fumos na cozinha; 1969 — pintura das dependências destinadas ao conservador; conservações diversas; instalação elétrica; 1970 — conservação interior e exterior em diversas zonas do paço; tratamento antitérmitas; conservação e restauro de vitrais; instalação elétrica; 1971 / 1972 — continuação de conservação interior e exterior; 1975 — ligeira reparação do telhado da ala nascente do pátio; 1977 — reparação de caleiras e vitrais; colocação de marcos de água; 1978 — reparação de caleiras e vitrais; conservação das instalações elétricas e da rede de águas quentes e frias; 1979 — reparação de vitrais, coberturas e pinturas interiores; 1980 — desinfeção de tetos e reparação de coberturas; 1982 / 1983 — conservação diversa; 1985 / 1986 — beneficiação de canalizações e obras de pintor; IPPAR: 1992 — recuperação de coberturas; recuperação de caixilharias exteriores; 1996 / 1999 — reparações gerais, obras de conservação e desinfestação, recuperação e restauro das janelas e vitrais e remodelação da ala residencial; 2006 — recuperação e valorização do Paço dos Duques: levantamentos topográficos e arquitetónicos, projeto e produção de sinalética interior, instalação da loja e remodelação da zona de acolhimento; restauro do património móvel e integrado; 2007 — reparação e reforço das portas exteriores; obras de reparação exterior e envolvente. INTERVENÇÃO NECESSÁRIA: obras gerais de manutenção. OBSERVAÇÕES: *1 — Trata-se de uma Zona Especial de Proteção Conjunta do Castelo de Guimarães (v. IPA.0001060), Igreja de São Miguel (v. IPA.00001248) e Paço dos Duques de Bragança (v. IPA00001139). *2 — Antigas dependências do duque e da duquesa. *3 — Em 1460, foi testemunha de um aluguer de uma casa feita pelo Cabido da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, o mestre de pedraria Antom, sendo esta a única referência a este arquiteto.. *4 — A comissão de avaliação da Casa da Câmara fez-se acompanhar pelos mestres-pedreiros, Gonçalo Vaz de Sampaio e Pedro Lopes e pelo arquiteto António de Andrade. *5 — Ao nível da influência construtiva, este paço, teve várias opiniões: para Rogério de Azevedo, a existência de um pátio interior formado pelo quadrilátero regular revela uma influência italiana; para Ilídio Araújo, essa mesma razão leva-o a afirmar que segue os moldes flamengos; para Custódio Vieira da Silva é indiscutível a relação com a transformação que em França, as residências régias e da nobreza estavam a sofrer, os castelos começavam a adaptar-se a residências com um maior número de divisões e maior conforto. *6 — Desde o início que esta intervenção foi fortemente criticada, primeiro por Marques da Silva, no Jornal de Noticias de Guimarães, em 1934: (...) completar o que se não conhece, inventando, é atentar contra a arte, contra a verdade histórica (...); mais tarde, em 1942, Alfredo Pimenta escreve no Correio do Minho, criticando a solução dos telhados e a sua aleatória imagem de ascendência nórdica, acrescentando ainda que o critério de reconstituição do edifício, considerado um exemplo único no país, deveria impossibilitá-lo de um restauro por analogia. *7 — Os vitrais da capela foram realizados por António Lino, após a rejeição do primeiro projeto de Guilherme Camarinha. AUTOR DATA: Sónia Basto 2013. 141 142 VÁRIA monumentos 33 Uma arquitetura de representação adaptada aos trópicos no SIPA A propósito do projeto Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónicas TIAGO BORGES LOURENÇO (...) Podemos aspirar a que os edifícios públicos sejam objetos de referência e de significação para os cidadãos, focos da sua identificação coletiva, afirmações de cultura. (...) Isto é, deverão distinguir-se dos restantes edifícios que constituem o tecido da cidade (...), em suma, contribuir para a qualificação do espaço público (...). João Paulo Martins1 O SIPA e o projeto Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónicas Criado em 1992, pela Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) e atualmente inserido no Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), o Sistema de Informação para o Património Arquitetónico (SIPA) constitui-se como o (...) mais extenso e representativo conjunto de recursos de informação e documentação especializados e inter-relacionados sobre arquitetura e sobre património arquitetónico, urbanístico e paisagístico de relevância nacional, regional e local (...)2. Apresenta como objetivos principais o apoio à definição de políticas e estratégias referentes ao ordenamento do território e à qualificação e reabilitação urbanas; a promoção, a conservação e o acesso à informação e documentação sobre o património arquitetónico e urbanístico de origem portuguesa, potenciando o desempenho dos agentes destes sectores, fomentando as investigações científica e técnica nas suas áreas de ação e consciencializando para a necessidade da salvaguarda do património. Disponível ao público através de www.monumentos.pt e presencialmente no Forte de Sacavém, o SIPA integra, no seu sector Informação, uma base de dados com cerca de 33 mil registos de inventário contendo informação textual e iconográfica sobre edifícios e estruturas construídas, conjuntos urbanos, sítios e paisagens em contexto português. Encerrando (...) o mais importante repositório analógico e digital de documentação autêntica e arquivos de arquitetura e artes associadas do país (...)3, por sua vez, o sector Documentação do SIPA é composto maioritariamente pelos fundos institucionais gerados no quadro dos serviços da antiga DGEMN (principalmente documentação relativa à construção e à remodelação de edifícios de cariz público, bem como à conservação e reabilitação de imóveis e conjuntos classificados) e por espólios de dezenas de arquitetos e artistas portugueses, com obra maioritariamente desenvolvida no século XX. A forte correlação entre ambos os sectores (Informação e Documentação), resultante de uma abordagem integrada à gestão de ambos, estabelece-se, assim, como uma das suas principais características. No triénio 2010-2013, o SIPA constituiu-se como instituição participante do projeto de investigação intitulado Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónica, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), em parceria com o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE/IUL), entidade proponente, e com o Instituto de Investigação Científica e Tropical (IICT), por intermédio do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU). Assentando na análise, inventariação e catalogação do trabalho realizado pelos sucessivos gabinetes co- A participação do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) no projeto Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónicas possibilitou a constituição, dentro da base de dados SIPA, de um núcleo de registos alusivo ao património português novecentista nos antigos territórios ultramarinos portugueses, com especial destaque para a produção do organismo estatal em análise. Apresentando o projeto e o trabalho desenvolvido, o presente artigo procura focar as especificidades de um estudo com esta natureza, as metodologias necessárias à sua concretização e as perspetivas de futuro que com ele se abrem. monumentos 33 1 | As Áfricas de Possolo por Pancho Guedes, cartaz do encontro realizado no Forte de Sacavém a 16 de março de 2011. VÁRIA lares e de saúde, os edifícios públicos administrativos, as habitações unifamiliares destinadas a funcionários públicos e, de forma pontual, as construções de caráter religioso8. Ao longo das três décadas (1944-1974) que medeiam o início e o fim da produção dos gabinetes, foram elaborados cerca de oitocentos projetos, ainda que se deva ressalvar que uma larga percentagem destes não tenha sido concretizada. O estudo de um organismo estatal — e principalmente o conhecimento dos projetos elaborados pelos seus técnicos — que visava, de forma genérica, o planeamento e a construção de edifícios de caráter público constituiu-se como um dos principais fatores de ancoragem do SIPA a este projeto de investigação9. A sua participação num estudo desta natureza, em colaboração com instituições de renome na área da investigação em arquitetura e urbanismo, permitiu a produção e a partilha de conhecimento e de informação, numa importante adição de saber científico ao saber técnico. Estabeleceu-se, igualmente, como a afirmação e a concretização de uma declaração de interesses relativamente ao estudo e à inventariação do loniais de urbanização entre 1944-1974, o projeto de investigação constituiu-se como o primeiro estudo sistemático e global sobre a cultura e a prática arquitetónicas destes serviços, a sua composição hierárquica, a sua forma de relacionamento com outras entidades e a amplitude de aplicação dos projetos dos gabinetes no território ultramarino (sua efetiva materialização). O Gabinete de Urbanização Colonial (GUC)4 foi criado em 1944, por decreto do então ministro das colónias, Marcelo Caetano. Atuando remotamente a partir de um edifício sito na Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa, e congregando arquitetos, engenheiros e restante pessoal técnico, foi o organismo responsável pela produção urbanística e arquitetónica das construções estatais para as então colónias portuguesas. Segundo o seu decreto criador, o GUC surgia como resposta à urgência de (...) estudar e acompanhar a formação e o desenvolvimento dos aglomerados populacionais nas colónias de modo a aproveitar os ensinamentos da urbanística, evitando os erros (...) de um crescimento ao acaso (...) [e à necessidade de alteração do modelo até então seguido, que assentava em] (...) soluções de ocasião [com recurso a arquitetos e urbanistas estrangeiros5 e a missões ocasionais de técnicos nacionais6, que para] além de muito dispendiosas, imped[iam] que se adquir[isse] experiência, se cri[asse] tradição, se form[asse] escola e se trabalh[asse] com persistência na execução ou aperfeiçoamento dos planos elaborados (...)7. Este gabinete produziu, assim, planos de urbanização para a maioria das cidades ultramarinas de média e de grande dimensão, bem como edifícios de diversas tipologias, das quais se destacam as construções esco- 143 2 | Paisagem em Angola(?), fotografia de Luiz Possolo, [décadas de 1960-1970]. 3 | Moçambique, Fábrica de Cimentos de Nacala, projeto da autoria do arquiteto Luiz Possolo, 1960-1963, fotografia de Luiz Possolo, [década de 1960]. 144 VÁRIA monumentos 33 património de origem portuguesa no mundo, não obstante ter já havido, ao longo da última década, uma preocupação com o estudo desta temática10. Este projeto traduziu-se, ainda, na possibilidade efetiva de a informação adquirida vir a enriquecer os registos de inventário sobre edifícios ou estruturas — construído(a)s ou não — elaborados pelos gabinetes ou num raio de ação espaço-temporal próximo ao destes, área com reduzida representatividade — apenas cerca de três centenas e meia de registos de inventário, com predomínio das construções militares e religiosas do período tardomedieval e da época moderna — na base de dados SIPA à data do seu arranque11. A elaboração de 586 novos registos de inventário12 — correspondendo a cerca de dois terços do universo de imóveis inventariados fora do atual território português e a quase 2% da totalidade do inventário — permitiu aferir a importância deste projeto para o SIPA, nomeadamente ao nível de uma incidência espaço-temporal de outro modo dificilmente penetrável. Em 2010, na órbita do projeto de investigação e constituindo uma importante mais-valia para o mesmo, foi depositado no SIPA o espólio fotográfico do arquiteto Luiz Possolo13 (técnico do Gabinete de Urbanização do Ultramar), levantamento urbanístico, arquitetónico e principalmente etnográfico, composto por mais de novecentas fotografias executadas aquando das missões levadas a cabo pelo arquiteto nos antigos territórios ultramarinos portugueses, maioritariamente nas décadas de 1960 e 1970. Para além do inequívoco valor documental, este espólio reflete os objetivos destas missões efetuadas por arquitetos que, sediados em Lisboa e projetando remotamente para o espaço colonial português, viam nelas a sua grande oportunidade de conhecimento do território ultramarino e da sua realidade. Especificidades da inventariação do património arquitetónico de matriz portuguesa no mundo Para a concretização do projeto de investigação foi indispensável um trabalho de localização e de descrição da documentação14 e dos edifícios em estudo, bem como o reconhecimento da sua condição atual, 4 | Timor, Projeto para um Seminário em Díli, perspetiva, desenho do arquiteto David Oliveira Lopes, elaborado para o Gabinete de Urbanização do Ultramar, 1952, não construído. que permitisse aos investigadores ter um panorama objetivo e real do seu significado, das suas características e da sua importância no contexto da arquitetura novecentista portuguesa. Naturalmente, um estudo desta natureza encerra dificuldades decorrentes da sua especificidade, residindo a mais problemática na impossibilidade de uma deslocação física do inventariante aos locais onde se implanta o edificado em análise. Na verdade, os técnicos do SIPA envolvidos na presente investigação trabalharam, um pouco à semelhança dos quadros dos gabinetes, de forma remota, o que para um historiador da arte constitui uma enorme limitação, particularmente num estudo cuja documentação-base poucos ou nenhuns dados disponibiliza relativamente à concretização efetiva dos projetos de arquitetura dela constantes. Assim, sem um acesso direto ao edifício que permitisse tomar contacto com as suas características, nomeadamente a sua volumetria, o tratamento das fachadas e vãos e a sua inserção no terreno (ou sequer a simples confirmação da sua existência), os meios tecnológicos assumiram-se como uma ferramenta imprescindível no processo de inventariação. No entanto, o facto de a maioria dos imóveis e das cidades em estudo se situar no território africano constituiu-se como uma dificuldade acrescida, em especial devido à falta de informações e meios associados a esses locais. Em 2005, e a este propósito, Cristina Delgado Henriques referia que (...) os dados físicos sobre a cidade africana [eram] escassos. Quando exist[iam] raramente est[avam] estruturados; quando 5 | Cabo Verde, Projeto para um quartel de bombeiros no Mindelo, perspetiva, desenho do arquiteto Alfredo da Silva e Castro, elaborado para Direção de Serviços de Urbanismo e Habitação/ Direção-Geral de Obras Públicas e Comunicações do Ministério do Ultramar, 1963, não construído. monumentos 33 (...) estruturados raramente apresenta[va]m actualidade. Por isso, as imagens de satélite [eram] uma fonte alternativa de dados para caracterizar a realidade física urbana (....), [particularmente levando em conta que nesses países] a inexistência ou inadequação da cartografia urbana [era] uma realidade (...)15. Desde então foi amplamente confirmada e reconhecida a importância das imagens de satélite no mapeamento dos países africanos, tendo sido o principal instrumento utilizado no decorrer do levantamento efetuado. O aparecimento e a difusão de geo-browsers (navegação de informação geográfica digital utilizada através da Internet), como o Google Earth, acabaram por ter uma função vital na forma como o mapeamento por satélite evoluiu nos anos mais recentes, ao permitir o acesso a informação em larga escala, teoricamente a partir de qualquer local do globo terrestre. VÁRIA A este nível, e não obstante algumas dificuldades encontradas (relacionadas com uma menor qualidade de definição existente em algumas zonas mais remotas do continente africano), importará referir os bons resultados alcançados, consequência sobretudo do elevado grau de definição obtido nos principais aglomerados populacionais que, na maioria dos casos, permitiu não só a identificação, na malha urbana, do edifício em questão, mas igualmente uma perceção da forma como a construção se encontra enquadrada no restante edificado. Em última análise, tornou-se possível percecionar a forma como os planos urbanísticos dos arquitetos dos gabinetes foram (ou não) colocados em prática. O recurso a geo-browsers possibilitou, ainda, a associação de cada registo de inventário à respetiva georreferenciação16 (preferencialmente ao nível do imóvel) com base num sistema de coordena- 145 6 | Angola, Projeto Escola Industrial de Benguela, alçado principal, desenho do arquiteto Fernando Schiappa de Campos, elaborado para o Gabinete de Colonização do Ultramar, 1957. 7 | Angola, Igreja de Novo Redondo (atual Sumbe), projeto da autoria do arquiteto Francisco Castro Rodrigues, 1966, fotografia de autor desconhecido [CITAngola], [1966-1970]. 146 VÁRIA monumentos 33 8 | Angola, mapa dos registos de inventário com georreferenciação associada na base de dados SIPA. de inventariação, permitindo a obtenção de resultados de outro modo vedados a esta investigação, ao possibilitar aos investigadores uma aproximação aos seus objetos de estudo e, consequentemente, à confirmação da informação primária recolhida em arquivo. Em suma, este projeto revestiu-se de uma fulcral importância para o SIPA ao permitir o estudo e o mapeamento de novas áreas, através da integração, na sua base de dados, de um conjunto sistemático de registos de inventário de edificações construídas nos três primeiros quartéis do século XX nos antigos territórios ultramarinos portugueses. 9 | Moçambique, Maputo, zona central, mapa dos registos de inventário com georreferenciação associada na base de dados SIPA. das. E, principalmente, a sempre difícil e necessária aferição da real existência do objeto em estudo, ponto de partida para qualquer trabalho de inventariação. O conhecimento do universo da produção dos gabinetes, obtido através da consulta da documentação de arquivo e da bibliografia especializada, foi assim confirmado pelo recurso a meios informáticos, numa transposição da teoria do papel para a realidade (mesmo que virtual) do terreno. Ainda assim, um mais aprofundado contacto com os objetos em estudo só se tornou possível devido ao contributo dado pelos levantamentos fotográficos efetuados pelos investigadores do projeto que cumpriram as diversas missões no terreno. Possuindo atualmente grande qualidade (nomeadamente em termos de ampliação), a fotografia digital permite o reconhecimento de um conjunto vasto de pormenores, providenciando não só o contacto (possível) com os edifícios, mas igualmente uma ilustração dos mesmos através da sua associação aos registos de inventário dos imóveis. Importa, igualmente, registar a enorme importância que representou, a partir de 2011, a abertura da base de dados SIPA a contributos externos (Extranet SIPA, através do website www.monumentos.pt), potenciando um contacto mais estreito com o público em geral, particularmente com entidades locais, ao nível de contributos fotográficos e/ou textuais que permitiram complementar as informações constantes dos registos. O recurso intensivo a meios tecnológicos desempenhou assim um papel fundamental no processo N.º TOTAL DE NOVOS REGISTOS PRODUZIDOS NO CONTEXTO DO PROJETO N.º TOTAL DE REGISTOS IPA % Angola 226 244 92,62% Moçambique 185 200 92,50% São Tomé e Príncipe 80 98 81,63% Cabo Verde 38 59 64,41% Guiné-Bissau 32 33 96,97% Índia 10 51 19,61% China (Macau) 9 64 14,06% Timor-Leste 6 23 26,09% Assumindo a impossibilidade do aprofundamento da totalidade dos novos registos, optou-se por dar uma predominância a determinados imóveis com base em critérios geográficos e/ou tipológicos, de modo a obter núcleos coerentes que cobrissem as principais áreas de incidência dos gabinetes, bem como as principais tipologias de edifícios por estes projetados17. Este trabalho foi efetuado com a consciência da existência de um conjunto de especificidades que, impossível de ser menosprezado, obrigou à aplicação de metodologias e de procedimentos distintos dos habitualmente utilizados na inventariação de imóveis construídos no atual território português. Inventariar para salvaguardar: perspetivas de futuro Um súbito e acentuado crescimento económico tende a ser sinónimo de maiores riscos para o património edificado. Essa realidade é percetível em alguns países da África Continental que, nos anos imediatamente ulteriores à independência, sofreram devastadoras guerras civis seguidas de momentos de intenso desenvolvimento, ao qual se associa, indistintamente, uma grande pressão imobiliária. E se o património mais antigo pode tender a estar mais salvaguardado, o edificado não monumental novecentista corre particular monumentos 33 VÁRIA 147 10 | Angola, Escola Industrial e Comercial de Moçâmedes (atual Namibe), projeto da autoria dos arquitetos Fernando Schiappa de Campos e Luiz Possolo, elaborado para o Gabinete de Urbanização do Ultramar, 1956, fotografia de autor desconhecido [CITAngola], [final da década de 1950]. 11 | Angola, Lobito, edifício dos Paços do Concelho (perspetiva a partir do edifício dos Correios), projeto da autoria dos arquitetos Mário de Oliveira e Lucínio Cruz, elaborado para o Gabinete de Urbanização Colonial, 1948, fotografia de autor desconhecido [CITAngola], 1971. risco de destruição. Este risco é inerente a tudo o que é suficientemente velho para se poder encontrar desatualizado ou obsoleto, mas que não é suficientemente antigo para a sua idade justificar, por si só, o respeito ou lugar na história, sendo por isso aqueles que terão, em teoria, uma menor proteção. Ainda assim, devem, em sentido contrário, ser ressalvados os esforços das entidades locais em inverter esta tendência, nomeadamente com a recuperação e/ou classificação, ao longo da última década, de dezenas de imóveis de índole estatal do século XX em todos os territórios onde o presente projeto de investigação incide. Área historicamente negligenciada pela investigação em Portugal, a arquitetura novecentista de origem portuguesa no mundo começou, com a viragem do milénio, a ter uma crescente importância nos meandros da historiografia nacional, passando a ser alvo de uma maior atenção e cerne de sucessivos estudos. Enquadra-se, portanto, neste contexto de ameaça ao património não monumental, a pertinência e a importância do levantamento sistemático desse edificado para que, ao permitir um conhecimento mais aprofundado, possa concorrer para uma proteção e uma valorização mais efetivas do mesmo. 148 VÁRIA monumentos 33 12 | Lobito, edifício dos Correios (perspetiva a partir do edifício dos Paços do Concelho), projeto da autoria de Mimoso Moreira, 1941, fotografia de autor desconhecido [CITAngola], 1971. A disponibilização da informação recolhida neste levantamento permitirá um melhor conhecimento do acervo patrimonial, podendo assim contribuir para a sua salvaguarda e recuperação. Pretende-se que, paralelamente aos resultados operacionais, este projeto possa conduzir à constituição de futuras parcerias de agentes e de instituições locais (universidades, instituições governamentais) com o SIPA, de modo a permitir uma troca de conhecimento que se concretize, entre outros aspetos, no aprofundamento do trabalho de inventariação aqui começado. Nesse contexto, a Extranet SIPA constituir-se-á necessariamente como um valor acrescentado, não só ao permitir uma ponte interinstitucional, mas igualmente no que concerne a contributos espontâneos. Esse trabalho de cooperação poderá igualmente passar por uma articulação com as entidades locais competentes na área da salvaguarda do património, de modo a potenciar a valorização e a defesa do edificado analisado no âmbito deste estudo. Espera-se assim que, a par do conhecimento gerado, este se possa tornar no principal legado deste projeto. Tiago Borges Lourenço Historiador da Arte Imagens: 1 a 3, 8, 9: IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitetónico; 4 a 7, 10 a 12: Arquivo Histórico Ultramarino. N OTA S 1 2 3 4 5 6 João Paulo MARTINS — “Uma cidade deve ser como uma casa grande para ser uma verdadeira cidade”. Arquitectura de Serviços Públicos em Portugal: Os Internatos na Justiça de Menores, 1871-1978. Lisboa: Direção-Geral de Reinserção Social; Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, 2009, pp. 27-28. João VIEIRA — Documentos e Arquivos de Arquitectura: Princípios, Estratégias, Metodologias e Instrumentos de Gestão, Porto: Fundação Instituto Arquiteto Marques da Silva, 2010, p. 32; João VIEIRA — Ob. cit., p. 33; Em 1951, o Ministério das Colónias é renomeado Ministério do Ultramar e com ele o Gabinete de Urbanização Colonial passa a designar-se Gabinete de Urbanização do Ultramar (GUU). Este último manterá essa nomenclatura até 1957, ano em que é extinto e substituído pela Direção de Serviços de Urbanismo e Habitação (DSUH) da Direção-Geral de Obras Públicas e Comunicações do Ministério do Ultramar (DGOPC-MU), mantendo funções similares às iniciais. No presente texto, a designação “gabinetes” refere-se ao organismo durante o seu período de atividade (1944-1974) sob as diferentes nomenclaturas. De mencionar, neste particular, o caso do austríaco Franz Scharchel (1895-1943) que depois de ter estudado e trabalhado em Viena com Franz Schuster (1892-1972), no decorrer da II Guerra Mundial e fugindo às perseguições do regime nazi, vai integrar a Missão de Estudos e Construção de Edifícios da Colónia de Angola, produzindo numerosos projetos (principalmente casas de função e construções hospitalares, embora também repartições públicas, hotéis e equipamentos culturais), dos quais apenas um cinema e um hotel foram efetivamente construídos. Morreu em Nova Lisboa (atual Huambo) em 1943; ironicamente, muitos dos imóveis que projetou seriam efetivamente edificados nas décadas de 1940 e 1950, mas com projetos elaborados pelos arquitetos dos gabinetes. Dentro do restrito lote de arquitetos portugueses a projetar para as colónias no período imediatamente anterior (coincidente ao da criação do GUC), destaca-se, nas construções escolares, a figura de José Costa Silva, autor dos dois principais liceus pré-GUC construídos, na década de 1940, nas antigas colónias: antigo Liceu Salazar (atual Liceu Josina Machel, Maputo) e Liceu Salvador Correia (atual Liceu Mutu Ya Kevela, Luanda), ambos construídos pela Junta de Construções para o Ensino Técnico e Secundário (JCETS). Ana Vaz Milheiro e Eduardo Costa Dias relevam igualmente a importância do papel de Paulo Cunha que monumentos 33 7 8 9 10 11 12 13 surge (...) ligado a projectos de iniciativa oficial destinados aos territórios ultramarinos, designadamente em Moçambique e Angola, mas também na Guiné onde chega mesmo a acompanhar obras de projectos por si orientados [...] [estando neste território] associado à Brigada de construção de moradias para funcionários públicos, de 1944 (...). Pontualmente, outras figuras de renome da arquitetura portuguesa, como Raul Lino (1879-1974) ou Luís Cristino da Silva (1896-1976), assinaram projetos (nem sempre executados) para os antigos territórios ultramarinos portugueses. Neste prisma sobressai igualmente a figura de Vasco Moraes Palmeiro (Regaleira) (1897-1968), autor de algumas das mais importantes construções da época nas antigas províncias portuguesas, nomeadamente arquitetura de cariz religioso e público. Neste particular destaca-se o edifício do Banco de Angola, em Luanda, ainda hoje uma das mais importantes edificações na cidade. Regaleira trabalha em alguns projetos, tanto na metrópole como nas colónias, nas décadas de 1940 e 1950 com o arquiteto paisagista Francisco Caldeira Cabral (1908-1992), cujo espólio se encontra à guarda do SIPA e acessível a público desde 2006, no âmbito do depósito de um conjunto de espólios de arquitetos paisagistas — Gonçalo Ribeiro Telles (1922), António Viana Barreto (1924-2012) e Ilídio Araújo (1925) —, conjunto que envolve mais de 10 mil desenhos. Decreto n.º 34173, publicado no Diário da República, n.º 269, Suplemento, Série I de 6 de dezembro de 1944. (...) A arquitectura do período colonial produzida em Lisboa para África tende, cada vez mais, a ser abordada como uma infra-estrutura o que significa valorizar o desempenho programático sobre as questões estéticas. É este pensamento que permite tratar determinados programas em rede, caso dos edifícios educacionais ou hospitalares, através do recurso ao projecto-tipo. É também esta a razão que possibilita a acumulação da experiência de Lisboa no domínio da arquitectura tropical, concentrada em alguns técnicos ‘especialistas’. No entanto, as suas abordagens são tendencialmente ‘universais’, uma vez que os arquitectos encaram África como território homogéneo (...). Ana Vaz MILHEIRO — Nos Trópicos sem Le Corbusier,..., pp. 305-308. Este interesse reflete igualmente a própria filosofia, metodologia e incidência do SIPA, responsável em grande medida pela sua diferenciação no contexto dos sistemas de informação, assentando numa lógica de inventário sistemático; não se baseando apenas no objeto arquitetónico enquanto monumento (entendendo-se aqui “monumento” como edifício possuidor de características meramente dimensionais ou de uma classificação/distinção qualitativa), possibilita que as construções, individualmente ou enquanto parte integrante de um conjunto arquitetónico, sejam alvo de um estudo e inventariação cuja pertinência possa ser justificada por outras características, nomeadamente sua relevância para determinada comunidade. Nomeadamente através da cooperação com o Centro de História de Além-Mar (CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL). Através do trabalho de um bolseiro contratado e afeto ao IHRU. Importará referir que nem todos os projetos identificados como produção dos gabinetes foram passíveis de transposição para registos de inventário IPA visto apresentarem especificidades que impediram que se aferisse a sua localização (caso dos projetos-tipo habitacionais). Noutros casos não foi possível recolher, a partir da documentação consultada, informações consideradas indispensáveis para a abertura dos referidos registos (autoria, cronologia e principalmente dados sobre a concretização ou não do projeto). Paralelamente, optou-se por um alargamento do arco temporal de modo a que este não se limitasse às três décadas de atuação dos gabinetes e assim permitisse um mais aprofundado entendimento do seu trabalho. Nesse particular, mais de um terço dos imóveis sobre os quais foram abertos novos registos IPA não são produto dos gabinetes, constituindo-se antes como um conjunto de alguns elementos do mais importante edificado dos três primeiros quartéis do século XX nas principais cidades angolanas e moçambicanas. A abertura destes registos apresenta assim a dupla valência de procurar uma melhor perceção do enquadramento que envolve a produção dos gabinetes, coincidindo com um enriquecimento da base de dados SIPA. Técnico do Gabinete de Urbanização do Ultramar durante a década de 1950, o arquiteto Luiz Possolo (1924-1999) é objeto de estudo no âmbito do presente 14 15 16 17 VÁRIA projeto de investigação; sobre a sua obra realizou-se no ISCTE, em março de 2012 e com orientação do arquiteto José Luís Saldanha, uma exposição biográfica, da qual resultou a publicação de Luiz Possolo, um Arquitecto do Gabinete de Urbanização do Ultramar. Tendo como objeto o seu espólio fotográfico, foi criada uma exposição virtual no site www.monumentos.pt e realizada, a 16 de março de 2011, no auditório do Forte de Sacavém, a sessão As Áfricas de Possolo por Pancho Guedes, na qual o arquiteto, com obra maioritariamente em Maputo, foi convidado a dissertar sobre algumas das imagens do espólio Possolo. Constando do espólio do Ministério do Ultramar e presentes, maioritariamente, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e no Arquivo do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), os processos relativos à produção dos gabinetes são geralmente compostos por peças desenhadas e escritas de arquitetura (projetos e anteprojetos) e de engenharia (principalmente estruturas e saneamento básico). Pontualmente, existe documentação de outra natureza, nomeadamente relatórios de pessoal e das brigadas técnicas elaborados aquando das missões ao terreno (ocasionalmente com mapas e fotografias), pareceres redigidos pelos gabinetes e por entidades externas, elencos de obras realizadas e a realizar, bem como correspondência e documentação administrativa. Cristina Delgado HENRIQUES — “Monitorização da cidade africana a partir de imagens de satélite”. UR Cadernos da Faculdade de Arquitectura..., 2005, n.º 5, pp. 108 e 112; neste contexto importará, igualmente, o estudo Study of Fundamental Geospatial Datasets in Africa da EIS-Africa (rede cooperativa e de gestão de informação sobre ambiente em África), no qual Derek Clarke foca a questão da informação geográfica em África. Complementarmente e no contexto da crescente importância que a georreferenciação tem tido no SIPA, procurou-se associar as coordenadas geográficas aos novos registos de inventário, trabalho indispensável no mapeamento dos imóveis da base de dados e na possibilidade de permitir pesquisas de âmbito geográfico. No final de 2012, cerca de 73% dos registos de inventário abertos no âmbito do presente projeto apresentam georreferenciação associada, um valor bastante semelhante com o registado na totalidade do inventário (75%). Com especial destaque para as construções escolares (51 novos registos), hospitalares (32 novos registos), edifício de paços dos concelhos (22 novos registos) e dos correios (16 novos registos). B I B L I O G R A F I A HENRIQUES, Cristina Delgado — “Monitorização da cidade africana a partir de imagens de satélite”. UR Cadernos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Dossiê: Cidades Africanas. Lisboa: Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, 2005, n.º 5, pp. 108-113. MARQUES, Luís Correia — Tecnologia de Informação Geográfica e Monitorização Ambiental em Contexto Africano. Lisboa: s. n., 2009, dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, texto policopiado. MILHEIRO, Ana Vaz; DIAS, Eduardo Costa — “Arquitectura em Bissau e os Gabinetes de Urbanização Colonial (1944-1974)”. arq.urb: Revista Eletrônica de Arquitetura e Urbanismo, 2009, n.º 2, (http://www.usjt.br/arq.urb/numero_02/artigo_ ana.pdf). MILHEIRO, Ana Vaz — Nos Trópicos sem Le Corbusier, Arquitectura Luso-Africana no Estado Novo. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2012. PATRIMÓNIO Arquitectónico — Geral. Lisboa: Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana; Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, 2010 (Kits Património; 1, versão 2.0), URL: www.portaldahabitacao.pt; www.monumentos.pt, www.igespar.pt. SALDANHA, José Luís — Luís Possolo, Um Arquitecto do Gabinete de Urbanização do Ultramar. Lisboa: CIAAM, 2012. VIEIRA, João — Documentos e Arquivos de Arquitectura: Princípios, Estratégias, Metodologias e Instrumentos de Gestão. Porto: Fundação Instituto Arquitecto José Marques da Silva, 2010. 149 150 VÁRIA monumentos 33 Lisboa em Olhão/ Olhão em Lisboa História e fábula em três bairros de habitação económica, desde 1925 RICARDO AGAREZ Introdução Em Janeiro de 1988, deu entrada nos serviços da Câmara Municipal de Olhão um pedido de licenciamento para o loteamento de terrenos pertencentes a uma antiga fábrica de conservas, com frente para a Estrada Nacional 125. A realização do projecto implicava a construção imediata de um edifício de habitação multifamiliar, no primeiro dos lotes a criar, para alojamento dos treze inquilinos que ainda habitavam (...) as casas em rés-do-chão, que constituem parte do terreno (...)1. As ditas casas (fig. 1), quinze moradias formando um prédio urbano (...) com trinta e seis compartimentos (...), eram o que, em 1925 e 1927, as revistas Europa e Arquitectura, de Lisboa, haviam apresentado como um Bairro Operário em Olhão (fig. 2), projecto do (futuro) arquitecto Carlos Chambers Ramos (1897-1969). Na sequência da aprovação do loteamento, o bairro foi demolido. Enquanto as máquinas trabalhavam na sua eliminação da paisagem urbana de Olhão, este pequeno conjunto para habitação operária foi também banido do registo histórico da arquitectura portuguesa. Nos últimos vinte e cinco anos, o bairro terminado em 1925 passou a fazer parte de um curioso equívoco historiográfico. A sua data de publicação inicial foi transferida para outro dos projectos de Carlos Ramos para aquela localidade algarvia — o famoso Bairro Municipal de Olhão (fig. 5), amplamente publicitado pelo arquitecto a partir de 1930 — enquanto as suas características, historial, localização e existência própria se perderam dos relatos. Por sua vez, o projecto do bairro municipal, que nunca chegou a sair do papel, ganhou na cultura arquitectónica portuguesa um lugar de relevo, ao sobrepor-se a um terceiro conjunto habitacional — o Bairro de Casas para Pescadores de Olhão, projectado quinze anos mais tarde pelo arquitecto Inácio Peres Fernandes (1910-1989) e construído pela Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização (DGSU) (fig. 7). Uma proposta, icónica e celebrada pelo relato histórico mas nunca concretizada, usurpou assim a identidade, a cronologia e a existência material de outras duas propostas, cujos contornos precisos se esfumaram. Paralelamente, a longa e profícua série de projectos de habitação económica erguidos em Olhão na primeira metade do século passado, em que aquelas três propostas se inserem, ficou também largamente por explorar. Entre a construção historiográfica metropolitana e a realidade local — e na distância que separa Olhão de Lisboa — permanece um campo fértil de interrogações e de dúvidas. Este texto pretende projectar alguma luz sobre aquela série de planos e de construções através do cruzamento de informação retirada de documentação de arquivo, observação directa e história oral. A partir da fixação dos dados fundamentais relativos a tal série — localização, datação, autoria, existência — torna-se possível o desenvolvimento de outras reflexões e leituras. Na verdade, os conjuntos de habitação de cariz social A aprovação de um loteamento de terrenos pela Câmara Municipal de Olhão no final da década de 1980 implicou a demolição de um conjunto habitacional, o “Bairro Operário em Olhão”, projecto do arquitecto Carlos Chambers Ramos, publicado inicialmente em 1925. Nos últimos vinte e cinco anos, esse bairro passou a fazer parte de um curioso equívoco historiográfico e a sua data de publicação, foi transferida para outro dos projectos de Ramos para Olhão, o “Bairro Municipal”, enquanto as suas características, historial, localização e existência se perderam dos relatos. Por sua vez, este último projecto, que nunca chegou a sair do papel, ganhou uma existência fictícia ao tomar o lugar do “Bairro de Casas para Pescadores”, de Inácio Peres fernandes, com o qual passou a ser sistematicamente confundido. O curioso caso dos bairros de Olhão é pois uma boa oportunidade para procurar compreender as razões subjacentes a semelhante equívoco historiográfico e para enriquecer a questão com dados até agora desconhecidos ou ignorados, contribuindo para o seu esclarecimento. monumentos 33 VÁRIA erguidos em Olhão, sob diversas fórmulas, entre as décadas de 1920 e 1950 (bairros chamados Operários, de Casas Económicas, de Casas para Pescadores, para as Classes Pobres e outros) constituem um todo de particular interesse: eles são testemunhos, por exemplo, da existência de uma negociação contínua entre identidade construída local, estereótipo regional e programas estatais de aplicação nacional, formulados em Lisboa2. Contudo, sem uma visão simultaneamente mais abrangente e precisa destes objectos arquitectónicos, do contexto da sua produção ao pormenor do seu layout, semelhante interpretação careceria da base empírica que pode, e deve, suportá-la. Um retorno aos dados elementares da história da arquitectura, portanto — num caso em que o registo contemporâneo muito deles se afastou —, é o que este ensaio propõe. 1 | Olhão, Bairro Operário Lucas & Ventura, casas na Rua Manuel Martins Garrocho número 16, fotografia de autor desconhecido, [c.1988]. 2 | Carlos Chambers Ramos, “Alguns Problemas de Arquitectura: Soluções Concretas”. Arquitectura, 1927, ano 1, n.º 9, p. 132. 1. O Bairro Operário Lucas & Ventura (c. 1925): ser “regional” ou “local”? (...) [O] magnífico projecto de um bairro operário em Olhão (…) marca uma valiosa etape [sic] nas artes decorativas nacionais, pela sua estilização e pela sua maravilhosa adaptação às necessidades regionais (...)3. (...) Embora a minha intenção fosse conservar o carácter Cubista da maioria das construções que existe nesta vila, com as suas açoteias tão características e as suas penetrações, fui levado, por um critério de conjunto, a cobrir esta série de pequenas casas por coberturas vulgares, tendo no entanto o cuidado de empregar na sua construção materiais exclusivos da região (...)4. Quando Carlos Chambers Ramos foi chamado pelo seu cunhado Cândido do Ó Ventura, industrial conserveiro e figura local de Olhão5, a projectar um conjunto de habitações para os operários da sua firma Lucas & Ventura (fig. 3), em data anterior a 1925, o jovem tirocinante em Arquitectura viu-se perante um dilema: como lidar com a identidade construída olhanense? Como, por outras palavras, tirar o melhor partido das tradições arquitectónicas populares de Olhão, na sua proposta desenhada em Lisboa? Conquanto a primeira citação acima, retirada da publicação que a revista Europa fez da obra em 1925, apontasse para uma (...) adaptação às necessidades regionais (...) plenamente bem-sucedida, a segunda citação, do texto do próprio Carlos Ramos apresentando o mesmo conjunto dois anos depois, sugere que teria sido outra a intenção inicial do autor. O “carácter Cubista” era o que distinguia as casas de Olhão, aos olhos dos arquitectos e não-arquitectos de Portugal e do estrangeiro, e Carlos Ramos alegava ser sensível àquele, muito embora por um indefinido “critério de conjunto”, tivesse escolhido um perfil mais convencional e genérico para este seu projecto pioneiro. 151 Desde o início da década de 1920, a imagem de Olhão vinha sendo construída por locais e visitantes como a de uma paisagem urbana única e invulgar (fig. 4), mesmo dentro do quadro geralmente exótico que marcava as descrições do Algarve no período. Em polémica com o escultor Francisco dos Santos, que considerara Olhão uma (...) terra incaracterística (...), António Ferro contrapôs, em 1922, a imagem de uma (...) terra geométrica, detalhada, de telhados decepados, quasi Cubista (...)6. A partir de então, pelas mãos de Dias Sancho7, Raul Brandão8, Eduardo Viana9 e Aquilino Ribeiro10, as descrições e as representações da vila insistem na analogia pictórica e, frequente- 152 VÁRIA monumentos 33 3 | Olhão, Bairro Operário Lucas & Ventura, fotografia de autor desconhecido, [c.1925]. mente, na sua muito discutida origem/herança norte-africana; mais tarde, será o próprio António Ferro a levar “Olhão, Vila Cubista” a representar o Algarve como um todo, recorrendo a esta fórmula como símbolo eficaz de propaganda em fóruns nacionais e internacionais11. Este perfil urbano, incomum e sugestivo, resultava da repetição quase sistemática da mesma solução tipológica e tecnológica: casas com cobertura plana (açoteia), platibanda perimetral, escada exterior sobre arco aviajado e uma sucessão de compartimentos adicionados ao longo do tempo em pirâmide, por norma a partir do alargamento do torreão de acesso interior ao terraço (pangaio) e respectiva plataforma de remate (mirante). Olhão revelava-se sedutor tanto para autores mais interessados no potencial plástico do seu casario pitoresco (“Cubista”) como para olhares que, sensíveis a semelhante potencial, eram ainda informados pelas últimas tendências arquitectónicas — isto é, pelo modernismo, então em difusão crescente. (...) Pela clareza da sua arquitectura, [Olhão] poderia dar sugestões a muitos jovens arquitectos modernos que se orgulham da utilização funcional dos materiais (...)12, anunciava um de entre os muitos relatos ingleses que, na década de 1930, enalteceram o modernismo avant la lettre da vila algarvia. Os arquitectos portugueses que então experimentavam com formas modernistas eram também claramente sensíveis às sugestões oferecidas por Olhão: desde Jorge Segurado (1898-1990), em 192613, a José Ângelo Cottinelli Telmo (1897-1948), em 193314, as simples casas caiadas olhanenses tornaram-se tema recorrente para a geração de Carlos Ramos. Assim se compreende também o tom apologético deste em 1927, quando, descrevendo o seu Bairro Operário Lucas & Ventura, lamentava não ter (...) conserva[do] o carácter Cubista (...) da vila: afinal Carlos Ramos, ao contrário de Jorge Segurado ou de Cottinelli Telmo, tivera a oportunidade de construir em Olhão. A encomenda, contudo, tinha uma exigência pragmática que punha em causa a tradição do tecido urbano olhanense e dificultava a inspiração directa no seu plástico “cubismo”. Olhão era, nos anos de 1920, um núcleo tão pitoresco quanto insalubre e socialmente explosivo: o crescimento piramidal, desde cedo impulsionado pela necessidade de ampliação da casa em tão apertada malha urbana15, vinha servindo para alojamento improvisado de famílias literalmente em camadas, por subaluguer de espaços desprovidos das condições elementares de habitabilidade (os compartimentos adicionados sobre as açoteias, por exemplo). Os industriais conserveiros, cuja prosperidade variou acompanhando conflitos bélicos e flutuações nos mercados internacionais, instalavam trabalhadores em armazéns adaptados e “ilhas” improvisadas, agravando a situação16. O centro da vila, tecido denso, labiríntico e ininterrupto, era descrito como cenário quotidiano de degradação física e moral e de ilegalidades diversas, sendo o contrabando uma prática comum17. A habitação operária era portanto, primeiramente, um problema político e social, e apenas secundariamente formal ou estilístico. Ao instalar quinze famílias junto à sua fábrica, a firma Lucas & Ventura terá querido ultrapassar as deficiências da Olhão “Cubista” e providenciar condições mínimas de habitabilidade com um investimento limitado. Este terá sido porventura o sentido do citado “critério de conjunto” que levou Carlos Ramos a cobrir com simples telhados sobre estrutura de madeira — o mesmo sistema construtivo utilizado monumentos 33 nos armazéns industriais contíguos — as suas células habitacionais existenzminimum. As casas, de um ou dois “quartos” e cozinha, dotadas de lavadouro e de sanitários colectivos, e de rede privativa de esgotos, eram dispostas em redans sobre uma rua interior para máxima iluminação e ventilação naturais (fig. 2), à maneira de algum alojamento operário do virar-do-século. A imagem resultante, com as quatro águas telhadas e beiradas e as generosas chaminés caiadas, seria menos especificamente característica de Olhão e mais genericamente sulista — mas era também pragmática e económica, o que possibilitou a sua construção e consequente utilização por sessenta anos, até à demolição em 1988. Com efeito, os arquitectos portugueses que então começavam a trabalhar em programas nacionais e que seguiam a doutrina Deutscher Werkbund — Carlos Ramos, Raul Lino (1879-1974) e Eugénio Correia (1897-1987), entre outros — ao utilizar os materiais e as técnicas de construção comuns em cada região pareciam interessados na estandardização dos elementos vernáculos para aplicação em larga escala e não apenas no seu aspecto formal; processo que, de resto, parece ter assinaláveis paralelos com o seguido no desenho e na construção de “casas baratas” em Espanha no mesmo período18. Dispondo de mão-de-obra abundante, barata e não especializada, os projectistas encontravam na simplificação e na sistematização das tradições construtivas populares, comuns entre construtores locais, uma forma eficaz de reduzir o custo das obras, do transporte aos materiais e à execução. Tratava-se de um regionalismo tecnológico e económico, e não só formalista. Ainda VÁRIA 153 que em Olhão a cobertura plana artesanal (abóbadas em tijolo sobre barrotes de madeira, por exemplo) fosse tradição em uso (rapidamente substituída pela placa de betão armado na década de 1930), o telhado era igualmente tradição19, de mais rápida execução, tecnicamente menos exigente e logo menos dispendioso. O Bairro Operário Lucas & Ventura, uma das primeiras obras construídas de Carlos Ramos, foi ditado por imperativos sociais, económicos e tecnológicos, e nesse quadro deve ser lido. Ao adoptar uma imagem comedida, abstractamente regional, e ao não traduzir as relações formais entre Olhão e o modernismo arquitectónico que então ganhavam força nas visões metropolitanas sobre a vila, Carlos Ramos escolhia um regionalismo tecnológico, ainda que pouco caracterizado formalmente; do mesmo passo, tornava a leitura histórica deste objecto menos imediata, e mais exigente. Já foi sugerido como o perfil conservador da obra liga mal com a reputação de Carlos Ramos enquanto pioneiro do modernismo em Portugal20, o que pode ajudar a justificar a elisão historiográfica que, entretanto, fez com que este bairro desaparecesse das narrativas da arquitectura portuguesa contemporânea. Tal justificação ganha outra dimensão, contudo, se à facilidade de uma leitura simplista da obra de um autor tão complexo quanto Carlos Ramos juntarmos o facto de a data de primeira publicação do Bairro Operário (1925) ter vindo a ser atribuída, repetidamente, ao seu segundo projecto de habitação económica para Olhão, desenhado cerca de cinco anos mais tarde e nunca realizado: o Bairro Municipal. 4 | Olhão, vista geral, fotografia do Estúdio Mário Novais, [c. 1940-1950]. 154 VÁRIA monumentos 33 2. O Bairro Municipal de Olhão (c. 1930): a força de uma imagem (...) A arquitectura, na sua evolução, procede por largas ondulações que, em regra, coincidem com os movimentos culminantes e mais decisivos da história. Limitemo-nos a registá-lo (...)21. (...) [Olhão,] com um evidente carácter árabe é chamada a ‘Vila Cubista par excellence’. Os edifícios do bairro de habitação económica enquadram-se neste carácter geral de Olhão (...)22. O projecto de um bairro municipal ou económico para Olhão, formado por vinte e quatro moradias em duas bandas opostas e simétricas (fig. 5), foi produzido por Carlos Chambers Ramos, a pedido da autarquia, em circunstâncias até hoje por detalhar. Esta foi, não obstante, uma peça importante na afirmação do Carlos Ramos primeiro-modernista, muito utilizada nos exercícios de propaganda modernista e de autopromoção em que o (então já) arquitecto se empenhou no início da década de 1930. Carlos Ramos levou a sua maqueta do bairro (de que nos chegaram os famosos registos fotográficos de Novais) ao I Salão dos Independentes (Lisboa, 1930), juntamente com as do Liceu D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, do Grande Hotel “Espinho Praia” e de alguns projectos de grande residência privada. Com esta selecção, Carlos Ramos parecia querer garantir o seu lugar no “movimento culminante” e “decisivo” vivido pela arquitectura sua contemporânea — o Movimento Moderno — e alinhar os seus projectos não realizados (intenções) com as “directrizes nítidas” que começavam a perceber-se. Logo de seguida, e aproveitando os contactos de Jorge Segurado com o arquitecto espanhol Luis Lacasa23, Carlos Ramos fez publicar bairro, liceu e hotel na revista Arquitectura de Madrid, em número dedicado ao Salão lisboeta que apresentava o arquitecto como (...) o espírito que todo o movimento necessita de ter dentro (...)24. Por último, e já em 1931, Carlos Ramos publicou aqueles três projectos e o da casa Moreira de Almeida (Porto) na revista alemã Wasmuths Monatshefte onde, no curto relato acima transcrito, aplicou uma vez mais a Olhão o rótulo “Cubista” de António Ferro e defendeu que o (...) evidente carácter árabe (...) da vila aceitaria, sem conflitos, a sua proposta modernista. A par de outros seus projectos coevos e menos conhecidos (como o do Instituto Navarro de Paiva, em Lisboa), o Bairro Municipal de Olhão é uma das propostas mais sedutoras da fase modernista de Carlos Ramos, porventura devido à sua forte caracterização. Tal vigor é evidente, por exemplo, nas muito reproduzidas imagens da maqueta e do corte-alçado colorido a guache que ilustram o projecto no catálogo da exposição monográfica da obra do arquitecto, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian em 1986. Contudo este catálogo, primeira publicação do bairro em tempos recentes e referência para muitos estudos posteriores, confundiu a proposta exibida em 1930 com o Bairro Operário Lucas & Ventura, publicado em 1925, legendando as imagens da primeira com o nome e data do segundo; o próprio texto prolongou o equívoco, descrevendo dois projectos diferentes como se de um único se tratasse25 — um pequeno erro que veio a ter repercussões duradouras26. Assim, exceptuando o contido nas pouco detalhadas publicações espanhola e alemã, é muito escassa a informação objectiva e precisa sobre o projecto. Desconhecem-se, até hoje, as circunstâncias exactas da encomenda e as intenções concretas de Carlos Ramos, por norma registadas em memória descritiva27. Trata-se, por consequência, de um projecto que adquiriu uma relevância na cultura arquitectónica portuguesa inversamente proporcional ao que, de facto, sobre ele se conhece. Casado com uma olhanense, autor de um “Asilo para a Velhice” construído em Olhão, em 1926-192828, e do monumento aos heróis da Restauração de 1808, inaugurado em 1931, Carlos Ramos tornou-se um “filho adoptivo” da vila29. Terá assim sido este arquitecto uma escolha natural da edilidade para, em data anterior a 1930, elaborar o Projecto dum Bairro Económico que a Câmara Municipal de Olhão Pretende Construir Nesta Vila, como foram intituladas as peças desenhadas do processo30. A conjugação das palavras publicadas por Carlos Ramos em 1927 — (...) Embora a minha intenção fosse conservar o carácter Cubista da maioria das construções que existe nesta vila (...) — e em 1931 — (...) Os edifícios do bairro (...) enquadram-se neste carácter geral [árabe/ cubista] de Olhão (...) — torna claro que o arquitecto procurou assegurar no bairro municipal aquilo que não havia querido, sabido ou podido fazer no Bairro Lucas & Ventura: uma proposta de arquitectura moderna que citasse directamente a idiossincrática construção popular olhanense. Para tal, recorreu ao evidente denominador comum entre ambas — as massas construídas em volumes elementares, inteiramente caiadas de branco e pontuadas por aberturas bem marcadas, cada casa dotada de cobertura em terraço individual cercado por platibanda — e 5 | Olhão, maqueta do Bairro Municipal de Olhão, fotografia do Estúdio Mário Novais, [c.1930]. monumentos 33 completou-o com a escada exterior sobre arco, um elemento da tradição popular olhanense não tão obviamente integrável num desenho modernista. Mas foi pela repetição em espelho deste elemento, consequente com a disposição geminada das moradias, que Carlos Ramos forjou o identificador mais distinto do seu projecto exposto em 1930, e aquele com maior reverberação em propostas posteriores. A escada emparelhada tornou-se uma peça de composição popular na arquitectura produzida para Olhão, aplicada, por exemplo, na sede do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Sotavento do Algarve (arquitecto Fernando Coruche e engenheiro Costa Ritto, 1942-1945), no edifício para dormitório e cantina da Associação de Assistência à Mendicidade (arquitecto Jorge de Oliveira, 1945-1949), e nos bairros de Casas para Pescadores projectados pelo arquitecto Inácio Peres Fernandes em 1945 e concluídos em 1949 em Olhão e na vizinha Fuseta (fig. 12). De mera sugestão não-construída mas amplamente difundida entre a pequena comunidade de arquitectos portugueses, a escada emparelhada converteu-se em forma-símbolo, facilmente reproduzível e plasticamente sedutora, em especial como elemento de marcação de uma cadência clara na composição de alçados extensos e repetitivos por natureza, como são aqueles dos conjuntos de habitação económica. A escada dupla sobre arco de três centros testemunha a importância de ícones reconhecíveis e esteticamente apelativos na construção de identidades arquitectónicas regionais ou locais por autores metropolitanos, seja através de propostas de cariz modernista ou conservador. Tais ícones, contudo, não podem distrair-nos da observação atenta de cada uma das propostas, em todos os seus aspectos. A análise do Bairro Municipal de Olhão de Carlos Ramos parece abrir linhas de leitura interessantes. A estrutura urbana proposta, por exemplo, com as duas bandas em rigorosa simetria segundo o eixo da rua interior delimitado pela torre de água e pelo por- VÁRIA 155 tão, transmite um sentido de ordem e disciplina que sugere a intenção de eliminar a desordem observada no casco antigo de Olhão, ou pelo menos encerrá-la num arruamento privativo. A clara geometria global de um quarteirão bem delimitado adquire um sentido panóptico, pelo qual o controlo e a repressão das actividades ilícitas comuns no período (como o contrabando passado de mão em mão pelas açoteias, descrito por Raul Brandão) ficariam facilitados. A utilização pensada para a rua privada é, de resto, ambígua: demasiado exígua para servir como quintal colectivo das vinte e quatro famílias (que dispõem de um pátio interior cada), ela não serviria tão-pouco como via de acesso principal às habitações — eixo que nas vilas e aldeias algarvias tem uso intensivo e importância destacada na vida social das comunidades — visto que as portas dos fogos pontuavam, pelo contrário, o perímetro exterior do quarteirão. Seria assim uma via de serviço às cozinhas, o que a confirmar-se constituiria um equívoco relativamente à estrutura doméstica tradicional olhanense: em casas construídas no centro de Olhão, ainda na década de 1910, a cozinha era com frequência semi-exterior e estendia-se para o pátio privativo contíguo, nas traseiras, o qual desempenhava funções múltiplas e fundamentais (convívio e refeições familiares, criação de animais, passagem para despensa e sanitários, escada de acesso à açoteia) mas por natureza íntimas da família. O projecto de Carlos Ramos parece desligar tais funções da cozinha e transferi-las, em pequena parte, para o pátio interior com que dotava cada unidade habitacional; contudo, este pátio e a sua posição levantam outras questões. A compartimentação proposta por Carlos Ramos (fig. 6) é essencialmente conservadora. A casa tradicional olhanense, de dominante longitudinal, organiza-se a partir de um vestíbulo, ou “casa de fora”, e de um subsequente corredor que distribui para quartos, dos quais, por regra, um ou dois são interiores; a cozinha e sala de refeições localizam-se 6 | Olhão, Projecto de um Bairro Municipal a construir em Olhão, planta, desenhada por Carlos Chambers Ramos, fotografia de autor desconhecido, [c.1930]. 156 VÁRIA monumentos 33 ao fundo, sobre o referido pátio traseiro ou quintal. Assim, o que o arquitecto parecia propor era a substituição de um dos compartimentos interiores por um pátio escavado na casa — uma espécie de sala interior descoberta, ou o quintal de Olhão reinventado — e a manutenção da restante estrutura inalterada. A funcionalidade do pátio ficava, no entanto, comprometida quando comparada com a do correspondente tradicional, como vimos, do mesmo passo que a sua dimensão relativa na habitação se tornava excessiva e pouco coerente com o carácter económico da iniciativa; seria de esperar a sua rápida transformação, pelos habitantes, em sala interior coberta, agravando a salubridade global do fogo. Em resumo: a proposta de Carlos Ramos representava um compromisso difícil. Sob a capa de uma composição inspirada simultaneamente no modernismo internacional e na construção vernácula local, as casas económicas concebidas pelo arquitecto encontravam-se a meio caminho entre as fórmulas habitacionais tradicionais de Olhão (sem contudo as compreender plenamente) e a sua tradução erudita, melhorada por critérios modernos — cuja irracionalidade e anti-economia a afastavam, no entanto, dos últimos desenvolvimentos técnico-científicos relativos a habitação mínima e de baixo custo. Sem informação sobre as razões que impediram a realização do projecto do bairro municipal podemos apenas sugerir que, juntamente com eventuais dificuldades de financiamento (a legislação nacional estabelecendo as bases para a participação do Estado nestas iniciativas foi inteiramente reformulada em 1932 e 193331), a difícil justificação económica das tipologias habitacionais propostas pode também ter pesado. Neste particular, o segundo projecto com o qual esta proposta não realizada tem sido sistematicamente confundida, com base na aparente similitude do ícone adoptado para pontuação dos alçados — o Bairro de Casas para Pescadores de Inácio Peres Fernandes, de 1945-1949 —, foi um exemplo de habitação mínima de promoção pública mais completo e bem sucedido, não apenas por ter sido, esse sim, realizado, mas também por propor soluções aperfeiçoadas para o problema, independentemente da sua composição exterior. Entretanto, a influência efectiva deste exemplo na construção quotidiana de Olhão, fora do círculo dos arquitectos metropolitanos, foi também notável. 3. O Bairro de Casas para Pescadores (1945-1949): escala real (...) Procurámos agrupar as casas tirando partido das suas diferenças de altura e de fachada, bem como de alinhamento, afim de evitar, na medida do possível, a monotonia que parece ser fatal consequência das construções em série. Procurámos igualmente evitar as moradias isoladas e mesmo as geminadas por nos parecer mais agradável e económico reuni-las em grupos mais extensos com o que se definem melhor os arruamentos e se impede que sejam visíveis as traseiras que, por mais que se faça ou exija, são sempre nota desagradável e pouco limpa (...)32. (...) [N]o bairro novo dos pescadores, construído com muito gosto dentro do estilo tradicional (o que é raro neste género de obras oficiais...), as casas têm quintais e as ruas largura suficiente para que a interdição de utilizar as açoteias seja respeitada sem prejuízo; o terraço é assim um lugar de desafogo (...). Fixado, por uma razão funcional, o estilo de construção, compreende-se que ele se alargue até onde já não é necessário — e muitas casas das ruas modernas e largas de Olhão continuam a ter o mesmo remate (...)33. 7 e 8 | Olhão, Bairro de Casas para Pescadores, fotografias de autor desconhecido, [c.1950]. monumentos 33 O projecto de Inácio Peres Fernandes para os bairros de Casas para Pescadores de Olhão e Fuseta, elaborado para a Junta Central das Casas dos Pescadores (JCCP) por intermédio da DGSU em conjunto com outros dois para o Algarve (Portimão e Ferragudo), distingue-se em muitos aspectos do projecto quinze anos mais velho de Carlos Ramos. Com efeito, a escada emparelhada que levou sucessivos autores a confundir os dois e a atribuir a autoria do o de Peres Fernandes a Carlos Ramos — isto é, a “transformar” um projecto não realizado numa obra efectivamente existente34 — será um dos poucos traços que estas duas propostas têm em comum. Não há, em primeiro lugar, equivalência entre as escalas dos dois trabalhos. Se Carlos Ramos concebeu um grupo fechado de vinte e quatro habitações, a Inácio Peres Fernandes foi pedido que projectasse uma “vila-dentro-da-vila” de grande fôlego, uma nova extensão de Olhão para instalação de 2480 famílias em 1240 casas de quatro tipos (três tipos de moradia em banda e um tipo de “apartamento” em prédio de três pisos), igreja, escolas, Casa dos Pescadores e núcleos de comércio (fig. 9). E apesar de apenas um décimo do projectado ter sido realizado, as intenções descritas pelo arquitecto na memória citada acima, de índole urbana e não estritamente arquitectónica, eram visíveis na extensão construída (figs. 7 e 8): os bairros de Peres Fernandes, em contraste intencional com o centro de Olhão, transpiravam largueza de traçado, ordem e regularidade conjugada com alguma variedade. Facilitando a manutenção da ordem pública (e privada, como a observação de Orlando Ribeiro acima citada parece sugerir), o projecto cumpria claramente os propósitos fisio-sociais e políticos subjacentes a todas as iniciativas deste tipo no período e, esses sim, já aparentemente contemplados no bairro municipal de Carlos Ramos. Reitera-se aqui a importância do contexto específico que rodeou a proposta de Peres Fernandes, ausente das encomendas de Carlos Ramos (tanto em 1925 quanto em 1930). Foi apenas a partir de 1932 que o Estado começou a criar os mecanismos legais e administrativos para responder à carência generalizada de habitação económica — estratégia que, em Olhão, teve os primeiros resultados efectivos com o Bairro do Consórcio Português de Conservas de Peixe (1935-1938), sessenta e seis casas projectadas pelo arquitecto Eugénio Correia para a Secção de Construção de Casas Económicas da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) e primeira realização de habitação de baixo custo com apoio estatal no concelho35. Mas o agravamento progressivo da carência habitacional conduziu ao multiplicar dos programas e agências afectas: a partir de 1945 a responsabilidade pelo planeamento, projecto, financiamento e acompanhamento da construção de habitação subsidiada passou a ser partilhada entre a DGEMN e a DGSU, ficando esta última com a tutela do plano nacional de Casas para Pescadores, em articulação com a JCCP, e do ainda mais ambicioso programa de VÁRIA Casas para as Classes Pobres, que previa a construção, em cooperação com municípios e misericórdias, de cinco mil casas em todo o país36. Foi neste contexto expansionista que, como anteriormente no programa de Casas Económicas (1933), foi dada prioridade aos dois maiores centros piscatórios do Algarve (Olhão e Portimão) para criação dos primeiros bairros nacionais de habitação especificamente planeada para pescadores (ou melhor, para os membros das correspondentes associações oficiais de socorro mútuo concelhias, as Casas dos Pescadores). O lote de quatro bairros algarvios — para aqueles dois centros e os respectivos satélites, Fuseta e Ferragudo — foi entregue a Peres Fernandes e desenhado em conjunto (Barlavento em Agosto, Sotavento em Outubro de 1945); as obras de Sotavento (cento e vinte fogos em Olhão e trinta na Fuseta) foram lançadas em simultâneo e realizadas pelo mesmo empreiteiro, entre 1946 e 1949. Se o bairro municipal de Carlos Ramos era um protótipo, uma variação sobre o tema da interpretação modernista metropolitana da identidade popular de Olhão, um exercício possivelmente desprovido de um programa detalhado definido pelo cliente — o Bairro de Casas para Pescadores de Peres Fernandes era uma resposta a uma encomenda real e precisa, formulada no quadro de um programa nacional, ambicioso e acarinhado pelo regime. Nestes termos, a coincidência de um pormenor de desenho (como a escada emparelhada) parece relativamente pouco relevante. Por último, a distância que separa os projectos de Carlos Ramos e Peres Fernandes aumenta ainda sempre que for tido em consideração o layout da célula habitacional. Se o primeiro introduzia um pátio interior num esquema funcional fundamentalmente tradicional, com consequências negativas na racionalização do fogo e na economia da construção, o segundo propunha alterações pontuais aos tipos nacionais definidos pela JCCP (para Peniche e Espinho37), mas mantinha os propósitos eminentemente económicos 157 9 | Olhão, Casas dos Pescadores, Plano Geral, desenhado por Inácio Peres Fernandes, 1945 158 VÁRIA monumentos 33 daqueles e aperfeiçoava o funcionamento de uma célula mínima, com áreas de circulação e perímetros exteriores reduzidos. O “Tipo I” de Peres Fernandes (três quartos, 53,72m2, figs. 10 e 11) — tipo dotado de escada exterior de acesso à açoteia e sistematicamente confundido com o projecto não realizado de 1930 — dispunha o fogo em paralelo à rua, por ser esta a solução (...) mais económica, sob o ponto de vista construtivo (...); Carlos Ramos, conservadoramente, colocava-o na perpendicular àquela, replicando a estrutura fundiária existente em Olhão. E, enquanto Carlos Ramos centrava a compartimentação numa divisão exterior (o pátio), Peres Fernandes utilizava a diminuta “casa comum” para este efeito, distribuindo os quartos, o recanto de cozinhar e o alpendre de lavagens a partir deste espaço central. Armários embutidos nos quartos e a predefinição da distribuição do mobiliário procuravam obviar à exiguidade extrema das áreas e ao (...) mau gosto e falta de recursos dos moradores (...), nas palavras do arquitecto38. Finalmente, em contraste claro com o hermetismo do projecto de Carlos Ramos, Peres Fernandes dotou cada casa de um quintal individual (“logradouro”), mecanismo que acabava por corresponder ao costume local olhanense e, como notou Orlando Ribeiro, desencorajaria a utilização abusiva das açoteias, verificada nas casas do centro antigo. Sobre estes princípios de concepção tipológica do fogo, afinados em paralelo para os bairros de Sotavento e Barlavento, Peres Fernandes introduziu no desenho dos primeiros (...) as modificações de fachada resultantes sobretudo de uma das características peculiares da região de Olhão: o uso da açoteia como cobertura (...)39. A escada emparelhada, que não saíra do papel no projecto gorado de Carlos Ramos mas já então se popularizava em obras novas em Olhão, foi utilizada por Peres Fernandes para acesso às coberturas e claramente como elemento de marcação das frentes de rua, adicionando variedade ao conjunto e evitando, como o próprio alegou, (...) a monotonia que parece ser fatal consequência das construções em série (...). Outros elementos da paisagem urbana olhanense, como o pangaio destacado sobre a açoteia, foram igualmente empregues nos diversos tipos de moradia dos bairros de Sotavento, com semelhante intento. Esta era uma utilização instrumental da tradição local, visando relacionar a nova ordem proposta com a imagem específica da vila, mas mantendo intacta a racionalidade, tipológica, construtiva e económica, de um programa acima de tudo centrado na resposta a imperativos económicos. O pragmatismo de Fernandes não se deixou tolher pelo lado mais superficial de tal utilização, e os seus Bairros de Casas para Pescadores, embora não reconhecidos como seus pela cultura arquitectónica contemporânea, continuam em funções mais de seis décadas depois. É de assinalar, com efeito, o impacto dos primeiros bairros de habitação económica de Olhão nos círculos não estritamente arquitectónicos. A apre- ciação do geógrafo Orlando Ribeiro, retirada do seu importante texto Geografia e Civilização (1961), assinala o acolhimento positivo que interpretações contemporâneas de elementos tradicionais podiam granjear entre a elite intelectual metropolitana; note-se como esta era uma apreciação baseada na obra, visitada e cotejada com as práticas do núcleo antigo da vila, e não na reputação do arquitecto. Orlando Ribeiro, por outro lado, aceitava aqui sem pejo que o estilo de construção tradicional — as açoteias e as respectivas escadas — se convertesse nisso mesmo, num estilo, livre e naturalmente adoptado nas (...) ruas modernas e largas de Olhão (...), independentemente dos imperativos funcionais que estavam na sua origem. Em sentido semelhante, o geógrafo alemão Wilhelm Giese — que, nos anos de 1930, discutira em artigos científicos as origens da açoteia olhanense — assinalou, ao voltar à vila vinte anos depois, como as (...) casas espaçosas de dois andares com todas as comodidades modernas (...)40 do Bairro Económico da Horta da Cavalinha (1945-1950, segunda obra de Eugénio Correia, em Olhão) tinham adoptado um elemento tradicional: 10 | Olhão, planta do “Tipo I” do Bairro de Casas para Pescadores, desenhada por Inácio Peres Fernandes, 1945. 11 | Olhão, perspectiva do “Tipo I” do Bairro de Casas para Pescadores, desenhada por Inácio Peres Fernandes, 1945. monumentos 33 a escada exterior que, projectada da empena de cada casa, dava acesso à moderna açoteia como as que, nas casas tradicionais do centro, ligavam as velhas açoteias aos mirantes. Estes bairros, (...) expressivamente modernos (...), eram exemplos da (...) mescla do antigo e do novo, do que está morrendo e do que está crescendo (...) em Olhão e, nessa medida, deixavam uma impressão forte, e positiva, em observadores como Wilhelm Giese. Epílogo O Bairro Municipal de Olhão de Carlos Chambers Ramos é um exemplo, rico e significativo, de uma construção artificial da cultura arquitectónica portuguesa. É um projecto não realizado, datado de c. 1930 e não de c. 1925, e as suas características ou qualidades devem ser discutidas tendo em consideração estes dados essenciais. Considerá-lo o (...) primeiro acto de maturidade (...) de Carlos Ramos e, (...) no contexto nacional, (...) o primeiro exemplo de uma leitura moderna sobre a arquitectura tradicional, (...)41, justifica-se se este for visto como uma obra projectada em 1925 — mas resulta menos claro em face de tais elementos de base. Celebrar o valor simbólico do Bairro Municipal de Olhão de Carlos Ramos, como o único no universo da habitação económica do período (...) em que houve a preocupação de usar a linguagem arquitectónica local (...)42, é redutor — já que o mesmo pode ser dito de outros projectos seus contemporâneos — e deriva mais da associação da obra com o seu suposto autor, reputado expoente do primeiro modernismo em Portugal (no contexto de um levantamento transversal do século XX português), do que de uma análise fria e circunstanciada dos edifícios erguidos em Olhão e na Fuseta. VÁRIA 159 Estes edifícios — as Casas para Pescadores de Inácio Peres Fernandes —, a par dos seus congéneres de Eugénio Correia (Casas Económicas) e António Gomez Egea e Luís Guedes (Casas para as Classes Pobres, 1946-1949), tiveram uma importância fundamental na definição de uma identidade arquitectónica moderna para Olhão. Contudo, no contexto de uma cultura arquitectónica nacional eminentemente focada em peças simbólicas e por vezes tendente a distribuir obras e autores em categorias e cronologias preestabelecidas, o rico tecido de projectos e realizações desenvolvidos na primeira metade do século passado para aquele local periférico foi ofuscado pelo brilho do projecto não realizado de Carlos Ramos. Os equívocos que envolvem este projecto confirmam a pertinência de um olhar mais atento aos objectos e às suas circunstâncias, e menos preso a narrativas consolidadas. Por desatenção, superficialidade ou precipitação na análise — afinal, basta uma simples visita a Olhão, munida dos elementos publicados por Carlos Ramos e por sucessivos autores desde então, para se concluir que os edifícios ali existentes não correspondem ao publicado —, a história destes projectos pioneiros de habitação económica olhanense foi instrumentalizada de modo a coincidir com o registo canónico da arquitectura portuguesa contemporânea. Repor os dados históricos essenciais destes objectos — tarefa para a qual este texto pretende contribuir — é, espera-se, abrir o campo a novas interpretações e leituras. Ricardo Agarez Arquitecto e Historiador da Arquitectura Imagens: 1: Câmara Municipal de Olhão; 3 e 6: Arquivo Carlos Manuel Ventura Ramos; 4 e 5: Fundação Calouste Gulbenkian/Biblioteca de Arte; 7 e 8: Arquivo Nacional da Torre do Tombo; 9 a 11: Arquivo Inácio Peres Fernandes; 12: autor. 12 | Fuseta, Bairro de Casas para Pescadores, fotografia de Ricardo Agarez, 2007. 160 VÁRIA monumentos 33 N OTA S 15 16 O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico, por indicação expressa do autor. 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 CMO, Arquivo da Secção de Obras, Pedido de Viabilidade para Loteamento, apresentado por Inácio de Jesus Ramos Lda. a 28 de Maio de 1987. Proc. 760/ 1987 (Rua Manuel Martins Garrocho, n.º 40). O presente artigo decorre da investigação de doutoramento do autor, desenvolvida na University College London – The Bartlett School of Architecture sob a orientação do Prof. Adrian Forty, e financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal). A tese, intitulada Regionalism, Modernism and Vernacular Tradition in the Architecture of Algarve, Portugal, 1925-1965, foi dedicada ao estudo das interacções entre correntes arquitectónicas modernistas, conservadoras e regionalistas, entre a práctica arquitectónica profissional, as tradições e as práticas construtivas locais e o correspondente contexto extra-arquitectónico, no ambiente construído do Algarve durante a primeira metade do século XX. Dissertação e artigo assentam essencialmente em fontes primárias, centrais, regionais e locais, no intuito de adoptar um posicionamento menos centralizado no tratamento de questões que envolvem comunidades e processos periféricos, procurando reequilibrar perspectivas comummente unívocas (centro-periferia) e explorar as possibilidades críticas que assim se abrem. Os equívocos historiográficos em redor dos bairros de habitação económica de Olhão foram já discutidos pelo autor em outros textos, embora sob perspectivas distintas: Ricardo AGAREZ — “Metropolitan Narratives on Peripheral Contexts: Buildings and Constructs in Algarve (South Portugal), c. 1950”. In Ruth MORROW; Mohamed Gamal ABDELMONEM (ed.) — Peripheries, 2013, pp. 209-224; idem — “A construção do quotidiano: arquitectura ‘bread-and-butter’ no Sul de Portugal, 1925-1950”. In IV Congresso História da Arte Portuguesa, pp. 366-373; e idem — “Olhão, Modern Vernacular and Vernacular Modernism”. In First International Meeting EAHN — European Architectural History Network, pp. 128-135. O autor deixa aqui um agradecimento especial ao arquitecto Carlos Manuel Ventura Ramos (em homenagem póstuma), ao arquitecto Gonçalo Canto Moniz, ao engenheiro José Peres e à senhora dona Cecília Alves (Câmara Municipal de Olhão), pela ajuda prestada na recolha de documentação e informação. “Arquitectura Regional.” Europa, Jun. 1925, n.º 3, p. 15. Carlos RAMOS — “Alguns problemas de arquitectura: soluções concretas.” Arquitectura, 1927, 1.ª série, ano 1, n.º 9, pp. 130-138. Cândido do Ó Ventura (1893-1968) ficou consagrado na história local de Olhão por ter sido sob a sua direcção que a equipa de futebol do Sporting Clube Olhanense conquistou o título de campeão nacional da I Divisão, em 1924. António FERRO — “Olhão, terra Cubista”. Ilustração Portuguesa, 14 Jan. 1922, p. 43. José Dias SANCHO — “Olhão Cubista”. Correio Olhanense, 1 Dez. 1923. Raul BRANDÃO — Os Pescadores. Nomeadamente na obra Pousada de Ciganos (c. 1923). Cf. Reinaldo dos SANTOS — “Eduardo Viana, 1923.” Colóquio. Revista de Artes e Letras, 1968, n.º 48, pp. 4-5. (...) Vila cubista chamaram a Olhão e, de facto, ‘a vol d’oiseau’, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem objectiva das três dimensões. Dum prédio para o outro as açoteias e fachadas imbrincam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma Babel juncando um campo raso (...). Aquilino RIBEIRO — “Olhão”. In Raul PROENÇA — Guia de Portugal, vol. 2, pp. 75-78. São exemplos desta substituição da imagem do Algarve pela de Olhão, as representações da região nas exposições internacionais de Paris (1937), Nova Iorque e São Francisco (1939) e na Exposição do Mundo Português em Lisboa (1940). O autor discutiu este processo em Ricardo AGAREZ — “Local Inspiration for the Leisure of Travellers: Early Tourism Infrastructure in the Algarve (South Portugal), 1940-1965.” In Janina GOSSEYE (ed.); Hilde HEYNEN (ed.) — Architecture for Leisure in Post-war Europe, 1945-1989, pp. 180-195. (...) Olhão, which (…) for sheer starkness of architecture could give points to many a modern young architect priding himself on the functional use of materials (...). Jan GORDON; Cora GORDON — Portuguese Somersault, pp. 212-213. Em Olhão (...) [t]em-se a impressão de que nos encontramos numa terra árabe. As casas são estranhas de beleza e têm todas uma certa expressão de mistério (…) todas muito brancas, e cúbicas, com as suas açoteias, donde à tardinha se vê suavemente morrer o sol no imenso oceano (...). Jorge SEGURADO — “Arquitectura. Da Casa Portuguesa e seu carácter”. Alma Nova, 1926, n.º 3, p. 15. Segurado viria a concretizar a sua imagem estilizada de Olhão no projecto para a representante algarvia nas Aldeias Portuguesas, conjunto incluído no Centro Regional da Exposição do Mundo Português, em Lisboa, 1940. Para uma interpretação da relação de Segurado com o “Cubismo” de Olhão, v. Andreia GALVÃO — O Caminho da Modernidade. A Travessia Portuguesa,... Por exemplo, v. José Ângelo Cottinelli TELMO — “Casa de 6 Compartimentos Para o Sul do País”. A Arquitectura Portuguesa, Jun. 1933, ano 26, n.º 6, pp. 1-42. 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 Orlando RIBEIRO — Geografia e Civilização: Temas Portugueses, p. 78. Sobre este processo, ver, Joaquim Vieira RODRIGUES — A Indústria de Conservas de Peixe no Algarve (1865-1945). (…) Também, diga-se a verdade: toda a gente em Olhão, ricos e pobres, protegia os contrabandistas e entrava no negócio. Nunca em terra se apreendeu uma peça de fazenda. Passava-se de çoteia para çoteia — para o quê bastava estender os braços — e corria, se fosse preciso, a vila toda (…). Raul BRANDÃO — Os Pescadores, p. 277. Carlos SAMBRICIO — “La normalización de la arquitectura vernácula”. Revista de Occidente, 2000, n.º 235 pp. 43-44. Sobre o mito da cobertura plana como representativa da casa popular algarvia, ver João Vieira CALDAS — “Verdade e Ficção Acerca da Casa Rural Vernácula do Baixo Algarve”. Cidade e Mundos Rurais…, pp. 49-63. Paula André dos Ramos PINTO — Arquitectura Moderna e Portuguesa..., p. 344. Carlos RAMOS; Jorge SEGURADO — Catálogo do I Salão dos Independentes, p. 26. (...) Diese Stadt mit ausgesprochen arabischem Charakter wird die ‘kubistische Stadt par excellence’ genannt. Diesem allgemeinen Charakter Olhaos passen sich die Siedlungsbauten an (...). Carlos RAMOS — “Pläne und Entwürfe eines Portugiesischen Architekten von Carlos Ramos, Lissabon”. Wasmuths Monatshefte. Baukunst & Städtebau, Jun. 1931, pp. 325-327. Detalhados em Andreia GALVÃO — Ob. cit., Anexo Catálogo, proc. ref. 61. (...) Ramos es el espíritu que necessita llevar dentro todo el movimiento (...). Jorge SEGURADO — “A Arquitectura no ‘I Salão dos Independentes’, Lisboa”. Arquitectura, 1930, 12, n.º 136, p. 230. (...) Logo no ano seguinte [1925] projecta Ramos um ‘Asilo para a Velhice’ e um ‘Bairro Operário’ ambos para Olhão. O ‘Bairro Operário’ sobretudo tem interesse na caracterização e no tratamento formal. Reparar nas escadas exteriores que conferem ao conjunto uma grande força e um jogo de claro-escuro com que animam o interior do quarteirão (...). Pedro Vieira de ALMEIDA — “Carlos Ramos — uma estratégia de intervenção”. Carlos Ramos. Exposição Retrospectiva da Sua Obra. A partir de então, o registo histórico repetidamente atribuiu ao projecto do Bairro Municipal de Olhão (c. 1930) a data do Bairro Operário Lucas & Ventura (c. 1925): assim aconteceu, por exemplo, em Ana Assis PACHECO — “Bairro Económico de Olhão.” In Ana TOSTÕES (ed.); Annette BECKER (org.); Wilfried WANG (org.) — Arquitectura do Século XX. Portugal; Bárbara COUTINHO — Carlos Ramos (1897-1969): Obra, Pensamento e Acção...; e Paula André dos Ramos PINTO — Ob. cit. Elemento essencial do projecto que, não obstante os melhores esforços do autor, não foi possível localizar. Antero NOBRE — História Breve da Vila de Olhão..., pp. 127-128. Mário Lyster FRANCO — “Grandes festas em Olhão”. Diário de Notícias, 17(?) Set. 1931. CMO, Arquivo da Secção de Obras, proc. 9879-A. Pelos diplomas estabelecendo as figuras legais de “Melhoramentos Urbanos” (DIÁRIO da República, 30 Set. 1932, I série, n.º 230, Decreto n.º 21.697, Ministério das Obras Públicas e Comunicações), do “Fundo de Desemprego” (Ministério das Obras Públicas e Comunicações, Decreto n.º 21.699. Ibid.) e das Casas Económicas (Presidência do Conselho, Decreto-Lei n.º 23.052. In Diário da República I Série, 217, 23 Setembro 1933). CMO, Arquivo da Secção de Obras, DGSU. Casas de Pescadores. Olhão. Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 2 Out. 1945. Orlando RIBEIRO — Ob. cit., pp. 68-71. Ao primeiro equívoco sobre a datação, originado no catálogo de 1986, a generalidade dos autores que referem o projecto do Bairro Municipal de Olhão somam um segundo equívoco: ilustram este projecto com imagens do Bairro de Casas para Pescadores de 1945-1949, por vezes mesmo a par com imagens da maqueta de c. 1930. Veja-se, por exemplo, Ana Assis PACHECO — “Bairro Económico de Olhão.” In Ana TOSTÕES (ed.); Annette BECKER (org.); Wilfried WANG (org.) — Ob. cit.; Bárbara COUTINHO — Ob. cit.; José Manuel FERNANDES — Arquitectura no Algarve, dos Primórdios à Actualidade,...; Ricardo CARVALHO — “Morada: Rua, Casa”. Jornal Arquitectos, 2006, n.º 224, pp. 34-41; e Paula André dos Ramos PINTO — Ob. cit. Alguns autores (José Manuel Fernandes e Ricardo Carvalho, por exemplo), dão mesmo o projecto de 1930 como construído não apenas em Olhão, mas também na Fuseta. V. Ricardo AGAREZ — “A construção do quotidiano: arquitectura ‘bread-and-butter’ no Sul de Portugal, 1925-1950”. IV Congresso História da Arte Portuguesa, pp. 366-373. DIÁRIO da República, 6 Abr. 1945, I Série, n.º 78, Decreto-Lei n.º 34 486, Ministério das Obras Públicas e Comunicações. Lisboa, Arquivo Inácio Peres Fernandes, DGSU. Casas de Pescadores. Portimão, Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 17 Agosto 1945. Lisboa, Arquivo Inácio Peres Fernandes, DGSU. Casas de Pescadores. Portimão, Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 17 Agosto 1945 CMO, Arquivo da Secção de Obras, DGSU. Casas de Pescadores. Olhão, Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 2 Outubro 1945. Wilhelm GIESE — Conservação e Perda da Cultura Material e Tradicional no Sul de Portugal, pp. 8-10. Tradução para português de “Bewahrung und Schwund der traditionellen Gegenstandskultur im Süden Portugals”. Zeitschrift für Ethnologie, 1959, n.º 84, pp. 294-301. Bárbara COUTINHO — Ob. cit., p. 44. Ana Assis PACHECO — Ob. cit., p. 165. monumentos 33 F O N T E S D O C U M E N TA I S Câmara Municipal de Olhão (CMO), Arquivo da Secção de Obras, Processo de obra da Rua Manuel Martins Garrocho 40, Proc. 760/1987; DGSU. Casas de Pescadores. Olhão. Projecto dum Bairro Económico que a Câmara Municipal de Olhão Pretende Construir Nesta Vila, Proc. 9879-A. Lisboa, Arquivo Inácio Peres Fernandes, DGSU. Casas de Pescadores. Portimão, Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 17 Agosto 1945. B I B L I O G R A F I A AGAREZ, Ricardo — “Metropolitan Narratives on Peripheral Contexts: Buildings and Constructs in Algarve (South Portugal), c. 1950”. In MORROW, Ruth (ed.); ABDELMONEM, Mohamed Gamal (ed.) — Peripheries: Edge Conditions in Architecture. London: Routledge, 2013, pp. 209-224. Idem — “A construção do quotidiano: arquitectura ‘bread-and-butter’ no Sul de Portugal, 1925-1950.” IV Congresso História da Arte Portuguesa. Lisboa: Associação Portuguesa de Historiadores da Arte, 2012, pp. 366-373. Idem — “Local Inspiration for the Leisure of Travellers: Early Tourism Infrastructure in the Algarve (South Portugal), 1940-1965.” In GOSSEYE, Janina (ed.); HEYNEN, Hilde (ed.) — Architecture for Leisure in Post-war Europe, 1945-1989. Leuven: Katholieke Universiteit — ASRO, 2012, pp. 180-195. Idem — “Olhão, Modern Vernacular and Vernacular Modernism”. First International Meeting EAHN — European Architectural History Network. Guimarães: European Architectural History Network; Universidade do Minho/Escola de Arquitectura, 2010, pp. 128-135. ALMEIDA, Pedro Vieira de — “Carlos Ramos. Uma estratégia de intervenção”. Carlos Ramos. Exposição Retrospectiva da Sua Obra. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. “ARQUITECTURA Regional”. Europa, Jun. 1925, n.º 3, p. 15. BRANDÃO, Raul — Os Pescadores. 2.ª ed. Lisboa: Livrarias Aillaud e Bertrand, 1924. CALDAS, João Vieira — “Verdade e ficção acerca da casa rural vernácula do Baixo Algarve.” Cidade e Mundos Rurais. Tavira e as Sociedades Agrárias. Tavira: Câmara Municipal de Tavira, 2010, pp. 49-63. CARVALHO, Ricardo — “Morada: Rua, Casa.” Jornal Arquitectos, 2006, n.º 224, pp. 34-41. COUTINHO, Bárbara — Carlos Ramos (1897-1969): Obra, Pensamento e Acção. A Procura do Compromisso entre o Modernismo e a Tradição. Lisboa: s. n., 2001, dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, texto policopiado. DIÁRIO da República. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 30 Set. 1932, I Série, n.º 230, Decreto n.º 21 697 [Melhoramentos Urbanos], Ministério das Obras Públicas e Comunicações. DIÁRIO da República. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 30 Set. 1932, I Série, n.º 230, Decreto n.º 21 699 [Fundo de Desemprego], Ministério das Obras Públicas e Comunicações. VÁRIA DIÁRIO da República. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 23 Set. 1933, I Série, n.º 217, Decreto-Lei n.º 23.052, [Casas Económicas] Presidência do Conselho. DIÁRIO da República. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 6 Abr. 1945, I Série, n.º 78, Decreto-Lei n.º 34 486, Ministério das Obras Públicas e Comunicações. FERNANDES, José Manuel — Arquitectura no Algarve, dos Primórdios à Actualidade, uma Leitura de Síntese. Faro: Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, 2005. FERRO, António — “Olhão, terra Cubista.” Ilustração Portuguesa, 14 Jan. 1922, p. 43. FRANCO, Mário Lyster – “Grandes festas em Olhão.” Diário de Notícias, 17(?) Set. 1931. GALVÃO, Andreia — O Caminho da Modernidade. A Travessia Portuguesa, ou o Caso da Obra de Jorge Segurado Como Um Exemplo de Complexidade e Contradição na Arquitectura, 1920-1940. Lisboa: s.n., 2003, dissertação de doutoramento apresentada à Universidade Lusíada, texto policopiado. GIESE, Wilhelm — Conservação e Perda da Cultura Material e Tradicional no Sul de Portugal. Porto: Junta Distrital do Porto, [1964]. GORDON, Jan; GORDON, Cora — Portuguese Somersault. London: Harrap, 1934. NOBRE, Antero — História Breve da Vila de Olhão da Restauração. Olhão: A Voz de Olhão, 1984. PACHECO, Ana Assis — “Bairro Económico de Olhão”. In TOSTÕES, Ana (org.); BECKER, Annette (org.); WANG, Wilfried (org.) — Arquitectura do Século XX. Portugal. 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Lisboa: s. n., 1997, dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, texto policopiado. SAMBRICIO, Carlos — “La normalización de la arquitectura vernácula.” Revista de Occidente, 2000, n.º 235, pp. 21-44. SANTOS, Reinaldo dos — “Eduardo Viana, 1923.” Colóquio. Revista de Artes e Letras, 1968, n.º 48, pp. 4-5. SEGURADO, Jorge — “A Arquitectura no ‘I Salão dos Independentes’, Lisboa”. Arquitectura, 1930, ano 12, n.º 136, pp. 230-235. “Arquitectura. Da Casa Portuguesa e seu carácter.” Alma Nova, n.º 3 (1926): 15. TELMO, José Ângelo Cottinelli — “Casa de 6 compartimentos para o Sul do país.” A Arquitectura Portuguesa, 1933, ano 26, n.º 6, pp. 1, 42. 161 162 PUBLICAÇÕES monumentos 33 dossiê PUBLICAÇÕES Pardal Monteiro 1919-2012 AA.VV Lisboa, Caleidoscópio, 2013 Tendo em consideração o elevado legado patrimonial presente em obras emblemáticas ao longo de quase um século, a presente monografia procura apresentar uma panorâmica da obra do Ateliê Pardal Monteiro, inventariando o trabalho produzido pelo ateliê entre 1919, data da sua fundação, e 2011. Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957) foi dos mais ativos arquitetos portugueses das décadas de 1920 a 1940, não limitando a sua ação à conceção e realização de obras, mas também ao ensino e à busca de princípios de entendimento, de racionalização de conceitos e modos de pensar a Arquitetura. O livro referencia, numa primeira fase, cerca de 140 projetos elaborados por este arquiteto entre 1919-1957, grande parte dos quais inéditos. Numa segunda fase, são contemplados cerca de 120 projetos, datados de 1957-2011, da autoria do arquiteto António Pardal Monteiro (1928-2012), sobrinho de Porfírio, que, em 1948, começou a trabalhar naquele ateliê, vindo, após a morte do tio, a dar seguimento ao seu trabalho, prosseguindo com os seus próprios projetos até aos nossos dias; e dos arquitetos João e Manuel Pardal Monteiro, filhos de António Pardal Monteiro, que, a partir da década de 1980 se associam ao pai, constituindo a terceira geração ao estirador do ateliê familiar. Património Arquitetónico e Arqueológico: Noção e Normas de Proteção FLÁVIO LOPES Lisboa, Caleidoscópio, 2012 De uma forma acessível e pedagógica, esta obra, que resulta de uma síntese de parte da dissertação de doutoramento do autor, estuda a evolução das noções de património arquitetónico e de património arqueológico e sistematiza os principais critérios e normas jurídicas aplicáveis às suas proteção,, conservação, valorização e gestão. Apresenta a característica invulgar de condensar a investigação jurídica realizada pelo autor no âmbito da apresentação do referido trabalho académico, como forma de explicitar o modo como a valoração e a integração de conceitos indeterminados se revelam essenciais para a consistência de uma visão integrada da proteção do património cultural português. A obra encontra-se dividida em duas partes: na primeira é apresentada, ao longo de quatro capítulos, uma “Evolução histórica (1901-2001)” da política de intervenção no património arquitetónico em Portugal; na segunda são apresentadas, ao longo de nove capítulos, as “Noções e normas atuais” do quadro jurídico e operativo da salvaguarda do património cultural imóvel. seus espaços urbanos. Para tal recorre-se aos métodos e técnicas da Análise Sintática, que permitem identificar e interpretar na forma urbana, as regras implícitas da sua organização espacial e analisar a dinâmica social no seu processo de desenvolvimento. A Nova Ordem Industrial no Estado Novo. Da Fábrica ao Território de Lisboa (1933-1968) DEOLINDA FOLGADO Lisboa, Livros Horizonte, 2012 (Cidade Lisboa) Bairros Planeados e Novos Modos de Vida TÂNIA LIANI BEISL RAMOS Lisboa, Caleidoscópio, 2013 Partindo da análise dos bairros dos Olivais (Norte e Sul) e de Telheiras, o presente trabalho procura averiguar as contribuições destes para o desenho do habitar sustentável. A investigação baseia-se na caracterização físico-espacial destes casos de estudo e nas relações entre a forma urbana planeada e os padrões de atividade pedonal observados. Pretende-se caracterizar as estratégias de conceção destas áreas residenciais e avaliar o seu desempenho, identificando as suas regras morfológicas e reconhecendo os mecanismos de utilização dos Este estudo, fruto de uma rigorosa investigação que serviu de base à tese de doutoramento da autora, pretende contextualizar e entender o desenvolvimento da indústria portuguesa durante os primeiros trinta e cinco anos (1933-1968) do Estado Novo, verificando o modo como esta emergiu associada à energia elétrica (ou seja a indústria da fase neotécnica) e analisando as transformações urbanas e sociais que as novas fábricas provocaram na cidade de Lisboa e no território envolvente, sobretudo a norte. Para este efeito são estudados a planificação urbana, a arquitetura e os programas sociais implementados, evidenciando, em alguns casos, os autores e a sua relação com uma cultura arquitetónica mais ampla, percecionando, mesmo, o modo como se integram na evolução de um quadro arquitetónico relativo aos ciclos construtivos nacionais ou ao Movimento Moderno. A obra é enriquecida pela reprodução de fotografias de época pertencentes a arquivos de empresas e de revistas entretanto extintas, dos planos de urbanização e de plantas arquitetónicas habitualmente dispersas em vários arquivos de difícil acesso ao grande público. monumentos 33 Central Tejo, Imagens de um Tempo Ausente ANTÓNIO PAIXÃO Lisboa, Bizâncio, 2013 A Central Tejo, antiga central termoelétrica, de feição eclética, que abasteceu de eletricidade toda a cidade e região de Lisboa entre 1909 e 1972, é a protagonista deste livro, elaborado a partir de um conjunto de fotografias de interiores e exteriores da autoria do fotógrafo António Paixão, efetuadas ao longo de mais de trinta anos, num “romance” assumido pelo autor que confessa o seu fascínio por este local junto ao Tejo, repleto de memórias de um tempo ausente. Esta edição foi patrocinada pelo programa da Fundação EDP “Livros com Energia”, uma iniciativa anual que, desde 2010, apoia a edição de livros relacionados com as temáticas da energia e do ambiente. ção de doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo (em 2004), muitos deles redigidos para encontros internacionais e conferências onde foi oradora. Partindo da constatação de que nos últimos anos se tem procurado valorizar a produção arquitetónica de matriz portuguesa em África, principalmente na área da arquitetura moderna, mas que, por outro lado, se tem olhado pouco (por ser conotada com o poder colonial e com o poder político) para a arquitetura de representação nacional — aquela que se encontra reproduzida nos equipamentos públicos, nos hospitais, nos liceus, nas câmaras municipais, nos palácios do governo — a autora elegeu esta última para seu objeto de estudo. Assim, em Nos Trópicos Sem Le Corbusier, é retratada a arquitetura pública colonial, que junta técnicas essenciais às condições climáticas e elementos que remetem para a metrópole, conferindo aos edifícios uma certa portugalidade nos territórios ultramarinos. Urbanismo e Arquitectura em Angola MARIA MANUELA DA FONTE Lisboa, Caleidoscópio, 2013 PUBLICAÇÕES forma angolana de fazer arquitetura portuguesa, quer se localizasse no campo da espontaneidade, quer da racionalidade, quer tentasse ser vernacular ou moderna. Diário de ‘Bordo’ FERNANDO TÁVORA, ÁLVARO SIZA VIEIRA (COORD.), RITA MARNOTO (ED.) Guimarães/Porto, Fundação Cidade de Guimarães, Família Fernando Távora, Fundação Instituto Arquiteto José Marques da Silva, 2012 Publicada no âmbito da exposição Fernando Távora Modernidade Permanente, esta obra resulta de uma edição fac-similada do original de 1960, é composta por um conjunto de desenhos, textos e outros materiais documentais, a partir dos quais o autor nos dá conta das impressões diárias recolhidas durante a viagem que efetuou pelo Ocidente, entre fevereiro e junho de 1960. Trata-se de uma edição compósita de valor essencial para um conhecimento mais profundo, não só do percurso do arquiteto, professor e teorizador, mas também para um redimensionamento das vias trilhadas pela arquitetura portuguesa na viragem do moderno. A Casa dos Sentidos SÉRGIO FAZENDA RODRIGUES Lisboa, Uzina Books, 2013 Nos Trópicos sem Le Corbusier ANA VAZ MILHEIRO Lisboa, Relógio d’Água, 2012 Coletânea de textos escritos pela arquiteta, entre 2007 e 2011, na sequência da investigação efetuada para a sua disserta- Este livro aborda as diferentes formas de ocupação do território angolano no período compreendido entre os anos vinte e setenta do século XX, desde as suas estruturas e organização até à arquitetura aí produzida. É feita a análise nálise álise lise sobre a hipótese da existência de uma identidade própria no urbanismo e na arquitetura praticados no meio século que precedeu a independência de Angola e que consistiria na expressão portuguesa adaptada ao contexto colonial. Aborda-se, assim, o reflexo espacial do discurso ideológico da época no que se refere aos vários tipos de ocupação do território angolano, bem como as teorias urbanísticas europeias e portuguesas e a sua tradução na prática urbanística de Angola, através da análise dos planos e projetos de arquitetura deste período. Verifica-se, então, como a uma forma portuguesa de fazer arquitetura angolana correspondeu, em sentido inverso, uma As crónicas reunidas neste livro reportam-se a uma colaboração regular que o autor manteve, entre os anos 2007 e 2009, com o jornal Açoriano Oriental. Nestes textos o autor procurou sistematizar algumas reflexões sobre arquitetura, de uma forma clara, evitando um discurso excessivamente fechado, que permitisse uma aproximação a um público mais vasto. Trazendo para fora do círculo profissional questões relativas à vivência quotidiana da arquitetura, mas também com a sua relação com outras áreas do saber, como o cinema, as artes plásticas, ou a música, pretendeu-se abordar um conjunto de experiências que a todos dizem respeito. 163 164 PUBLICAÇÕES monumentos 33 dossiê Um Olhar Um Percurso EDUARDO IGLESIA Porto, Edição do Autor, 2013 A obra realizada pelo arquiteto Eduardo Iglésias, fundamentalmente sediada no Porto, desenvolve-se por cerca de meio século, desde os finais da década de 1940 até ao início do século XXI, abrangendo uma extensa e variada produção, de onde se podem destacar obras como: o conjunto industrial da Sociedade Central de Cervejas na Vialonga, as centrais automáticas para os TLP ou as moradias e os conjuntos urbanos para cooperativas. Mas o seu trabalho inclui também equipamentos religiosos e educativos, espaços de escritório e comerciais, além de um vasto leque de objetos arquitetónicos complementares onde se manifesta o seu gosto pelo desenho de pormenor. Esta publicação organiza, estrutura e apresenta o percurso do arquiteto através de uma cuidada recolha de documentos, desenhos e fotografias levada a cabo pelo próprio. Assim, foram estudados e analisados os principais aspetos de ordem conceptual relativos às fortificações medievais, o que permitiu vislumbrar a génese de uma imagética cultural referente a um previsível “castelo medieval português”. Foi, igualmente, realizada uma contextualização teórica e prática da intervenção em fortificações medievais, nas suas múltiplas dimensões (cultural, ideológica, simbólica, etc.), observando, comparativamente, o panorama patrimonial português e o de outros países europeus, através do estudo de casos paradigmáticos e ilustrativos dos princípios de intervenção. Por último, foi estudado um conjunto de premissas teóricas e empíricas atualmente aplicadas aos bens culturais, com relevância para aquelas que se relacionam diretamente com o objeto analisado, inferindo-se o impacto causado por intervenções recentes, através do estudo de casos concretos. Alcalá, Universidad de Alcalá, 2012 Esta edição resulta da publicação da dissertação de doutoramento apresentada pelo autor à Universidade de Alcalá, em 2012, sob orientação de Javier Rivera Blanco e de Maria João Neto. Nela o autor pretende expor e discutir o contexto em que as fortificações medievais portuguesas sofreram intervenções de diversos níveis, mediante a análise da sua anamnesis (recuperação da memória) enquanto património de índole cultural. Para atingir este seu objetivo, desenvolveu uma investigação segundo três vertentes fundamentais e complementares entre si, que englobam um arco cronológico que se estende desde os inícios do século XIX até à atualidade. AA.VV. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013 MIGUEL FIGUEIRA DE FARIA (COORD.), AA.VV. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Universidade Autónoma de Lisboa, 2012 JOAQUIM MANUEL RODRIGUES DOS SANTOS, MARIA JOÃO NETO (ORIENT.) A Arquitetura Imaginária Do Terreiro do Paço à Praça do Comércio: História de um Espaço Urbano Anamnesis del castillo como bien patrimonial: construcción de la imagen, forma y (re)funcionalización en la rehabilitación de fortificaciones medievales en Portugal JAVIER RIBERA BLANCO (ORIENT.), do Terreiro do Paço, e uma segunda dedicada à Praça do Comércio), correspondentes às duas grandes etapas, pré e pós terramoto, de formação deste importante espaço lisboeta, e que atendem à sua evolução morfológica, simbólica e funcional, num progressivo escrutínio das soluções arquitetónicas, monumentais e de utilização quotidiana, que se sucederam entre os séculos XVI e XIX. O volume é complementado por uma base de dados bibliográfica e iconográfica sobre o tema. Segundo volume de uma trilogia coordenada por Miguel Figueira de Faria, que se iniciou com a publicação de Praças Reais: Passado, Presente e Futuro, em 2008, e que deverá concluir-se com a edição crítica da obra de Joaquim Machado de Castro, Descripção Analytica da Execução da Real Estátua Equestre. A progressiva metamorfose do Terreiro do Paço em Praça do Comércio enquanto referente da cultura urbanística de Lisboa é o objeto de estudo desta obra, que procura constituir-se como um elemento seguro de informação e de consulta, que, simultaneamente, fixe doutrina e estabeleça a renovação do estado da questão. Para o efeito, reúne num só volume um conjunto de ensaios, organizado em duas grandes partes (a primeira, dedicada à evolução histórica Foi publicado o catálogo da exposição homónima que esteve patente ao público no primeiro trimestre deste ano no Museu Nacional da Arte Antiga. Repensar a arquitetura enquanto território utópico e conceptual, verificando a forma como esta, desde o Renascimento à contemporaneidade, tem vindo a interagir com as outras artes, influenciando a pintura, a escultura, a ourivesaria e as artes decorativas é o objetivo desta obra. Podemos dizer que, em termos genéricos, a arquitetura imaginária configura um processo coerente que surge com o alvorecer da Época Moderna, numa viagem de formas e de ideias, a que não é estranho o desenvolvimento de instrumentos auxiliares, como a matemática, a geometria e as ciências a elas associadas. No geral, trata-se de um universo que configura um ângulo, que, assim observado e perspetivado, desvenda o próprio processo cultural português, enquadrando, entre Descobrimentos e Império, a grande empresa da Expansão; e assim revelando, nesta viagem, um país que, impregnado então de ideais de modernidade (na renovação do conhecimento) se destaca nestas áreas do saber exigidas pela própria navegação. monumentos 33 Estudos das Zonas ou Unidades Urbanas de Carácter Histórico-Artístico em Lisboa JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012 Em 1967, José-Augusto França realizou, por convite do então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Vitorino da França Borges, um estudo sobre os bairros históricos de Lisboa, hoje arquivado no processo privativo da CML 1.1.8/1.ª/0/70. Deste processo faz também parte documentação referente à Proposta para a Salvaguarda do Património Artístico Arquitectónico e Histórico dos Bairros Tradicionais da Cidade de Lisboa, que ajudou a fundamentar, a análise ao estudo efetuada pelos serviços de urbanismo (à data a 1.ª Repartição — Planeamento) e o Inventário de Monumentos Municipais, encomendado pela autarquia em 1950 a Gustavo de Matos Sequeira. Na versão editada, que aqui se apresenta, o texto do estudo é reproduzido na íntegra, sendo da responsabilidade da coordenação editorial as notas de rodapé e toda a informação colocada entre parêntesis retos. As plantas foram refeitas em ArcGis sobre a mesma cartografia utilizada no original (Levantamento Cartográfico de 1950, Instituto Geográfico e Cadastral) e os alçados pombalinos foram redesenhados em CAD. Por opção editorial, o texto é conjugado com as peças desenhadas e as fotografias, situação que não se verifica no documento original. No final da publicação é apresentada uma reprodução da Proposta para Salvaguarda do Património Artístico Arquitectónico e Histórico dos Bairros Tradicionais da Cidade de Lisboa. Inquérito à Habitação Rural AA.VV. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013 Até hoje inédito, foi agora publicado, o último volume do Inquérito à Habitação Rural realizado na década de 1940. Nos anos trinta do século XX, a Universidade Técnica de Lisboa promoveu a realização de diversos inquéritos que visavam contribuir para um melhor conhecimento da realidade do país. Destes vieram a ser publicados o Inquérito Económico-Agrícola (1934 e 1936, 4 volumes), o Inquérito ao Abastecimento de Carne Bovina no Continente e Ilhas Adjacentes (1935), o Inquérito à Indústria do Sal (1936) e os dois primeiros volumes do Inquérito à Habitação Rural, dedicados às zonas Norte (1942) e Centro (1947). A edição do terceiro volume deste inquérito que, iniciado sob a direção do professor Lima Basto, se propunha conhecer as condições de habitação e de vida da população rural, foi, entretanto, inviabilizada. O que agora se edita é precisamente o material recuperado deste terceiro volume que, seguindo o plano original, se agrupou por províncias: Estremadura, Ribatejo, Alto Alentejo e Baixo Alentejo. Embora muito tardiamente, e mesmo com eventuais falhas e imperfeições, conclui-se agora a publicação do Inquérito à Habitação Rural, procurando-se, assim, reparar algumas das consequências de um ato que tentou ocultar um lado sombrio da sociedade portuguesa na primeira metade do século passado. Património Artístico-Cultural do Montijo — II CATARINA OLIVEIRA, JOÃO MIGUEL SIMÕES, PAULO ALMEIDA FERNANDES Lisboa, Colibri, 2012 Este livro procura dar a conhecer, de uma forma tão aprofundada como possível, a história e, principalmente, o património artístico-cultural do Montijo. Para o fazer, os seus autores percorreram paulatinamente as sete freguesias do concelho (Afonsoeiro, Pegões, Santo Isidro de Pegões, Sarilhos Grandes, Canha, Atalaia, Alto Estanqueiro/Jardia), recolhendo informação in loco que comple- PUBLICAÇÕES mentaram com adequada pesquisa documental. Este volume II constitui o corolário de um prolongado, intermitente, mas minucioso trabalho de investigação, resultante do protocolo entre a Câmara âmara Municipal do Montijo e o Instituto de História da Arte, da Faculdade Letras da Universidade de Lisboa. O Ser Urbano, nos Caminhos de Nuno Portas NUNO GRANDE (COORD.), AA.VV. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012. Catálogo da exposição homónima concebida no âmbito de Guimarães 2012 — Capital Europeia da Cultura. Pensar a cidade, a sua escala, a sua forma, através da obra de Nuno Portas (n.1934, Vila Viçosa) é o repto que nos lança esta obra, que não pretende ser uma edição sobre o autor, mas antes sobre o seu pensamento em ação, sobre uma certa ideia de “urbanidade” (uma simbiose de arquitetura e urbanismo), de construir a cidade enquanto exercício de cidadania. Ao longo do livro são percorridos cerca de cinquenta anos de um percurso profissional que atravessou momentos fulcrais da cultura portuguesa das últimas décadas e ao longo do qual o arquiteto produziu obras de referência tanto no urbanismo, como na arquitetura e na escrita. 165 monumentos é uma publicação técnico-científica, 13 dedicada à divulgação do património construído, na perspetiva de assegurar a sua valorização, salvaguarda e reabilitação e de apoiar as políticas e ações de ordenamento do território e de desenvolvimento regional. Neste sentido, promove a investigação e a reflexão sobre o valor dos imóveis e/ou conjuntos urbanos objeto de cada número, tendo em vista o conhecimento da sua identidade arquitetónica e diversidade cultural. DOSSIÊ · DISPONÍVEL EM CD-ROM 14 DOSSIÊ · DOSSIÊ · PRAÇA DO COMÉRCIO ESGOTADO. DISPONÍVEL EM CD-ROM 2 · MOSTEIRO DE SÃO VICENTE DE FORA ESGOTADO. DISPONÍVEL EM CD-ROM DISPONÍVEL EM CD-ROM DOSSIÊ · CONVENTO DAS COMENDADEIRAS DE SANTOS-O-NOVO 16 DOSSIÊ 3 · CONVENTO DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE · BASÍLICA DA ESTRELA · IGREJA E CONVENTO DE SÃO FRANCISCO DE ÉVORA · MOSTEIRO DE SANTA CLARA-A-NOVA DE COIMBRA DISPONÍVEL EM CD-ROM 19 DOSSIÊ DOSSIÊ · FORTALEZA DE SÃO JOÃO BAPTISTA DE ANGRA DO HEROÍSMO DISPONÍVEL EM CD-ROM ESGOTADO 20 DOSSIÊ 21 7 DOSSIÊ ESGOTADO 8 DOSSIÊ · UNIVERSIDADE DE COIMBRA ESGOTADO · MOSTEIRO DA SERRA DO PILAR · CONVENTO DA CARTUXA DE ÉVORA · PALÁCIO FOZ DOSSIÊ · SÉ DE VIANA DO CASTELO DISPONÍVEL EM CD-ROM DOSSIÊ · CENTRO HISTÓRICO DE SILVES 24 · FARO, DE VILA A CIDADE DISPONÍVEL EM CD-ROM 25 12 DOSSIÊ 22 DOSSIÊ 11 DOSSIÊ · BAIXA POMBALINA DISPONÍVEL EM CD-ROM DISPONÍVEL EM CD-ROM 10 DOSSIÊ · CONJUNTO MONUMENTAL DA MATA DO BUÇACO 23 9 DOSSIÊ · SÉ DO FUNCHAL DISPONÍVEL EM CD-ROM ESGOTADO · PALÁCIO FRONTEIRA · MURALHAS E CENTRO HISTÓRICO DE VALENÇA DISPONÍVEL EM CD-ROM · ELVAS, CIDADE E ENVOLVENTE 29 DOSSIÊ: COVILHÃ, A CIDADE-FÁBRICA 30 DOSSIÊ: VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO, A CIDADE IDEAL CASCAIS 32 5 DOSSIÊ · VILA VIÇOSA DISPONÍVEL EM CD-ROM ESGOTADO PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA DOSSIÊ 31 DOSSIÊ DOSSIÊ · DOSSIÊ 17 4 6 27 DOSSIÊ: 18 · PALÁCIO NACIONAL DE BELÉM · CENTRO HISTÓRICO DE ÉVORA DISPONÍVEL EM CD-ROM DISPONÍVEL EM CD-ROM ESGOTADO. DISPONÍVEL EM CD-ROM DOSSIÊ DOSSIÊ 28 15 DOSSIÊ DOSSIÊ PAÇO EPISCOPAL DO PORTO E ENVOLVENTE DISPONÍVEL EM CD-ROM 1 DOSSIÊ 26 SÉ DE VISEU E ENVOLVENTE DOSSIÊ · COIMBRA, DA RUA DA SOFIA À BAIXA DISPONÍVEL EM CD-ROM BRAGANÇA: Trás-os-Montes, Compendio das Observaçoens que formam o plano da Viagem Politica, e Philosofica a partir de Vergílio Taborda; Bragança, cidade-fortaleza setuada no estremo de portugall e castella; Bragança e a casa ducal: comunicação política e gestão senhorial, séculos XV-XVII; Bragança: urbanismo e arquitectura na Época Moderna; Fortificação da fronteira nordeste: a cartografia militar e a praça de Bragança (1640-1840); Donzelas no castelo: culturas religiosa e secular nos murais de São Francisco de Bragança; Castro de Avelãs: o estranho caso de uma igreja de tijolo; Igrejas colunárias com tectos de madeira; A acção da DGEMN em terras de Bragança; Bragança, a cidade dos meados do século XX: planos, edificações, ideias modernizantes; Alfredo Viana de Lima em Bragança; O “caso” do concurso da Sé de Bragança; Pousada de São Bartolomeu, em Bragança: a primeira pousada (pós-)moderna; Nem neogarrettianos nem Vencidos da Vida: uma pastoral transmontana; A intervenção no Museu do Abade de Baçal: no tempo da democracia; São Francisco na actualidade: entre o ruído e o silêncio; O rosto do enigma ou o gosto pelo enigma: o imaginário transmontano na obra de João Vieira. VÁRIA: As roças de São Tomé e Príncipe: o fim de um paradigma; Os cofres do Palácio Foz: a primeira estrutura de conservação cinematográfica da Cinemateca Portuguesa. DOSSIÊ: