monumentos
CIDADES | PATRIMÓNIO | REABILITAÇÃO
33
ABRIL 2013
monumentos
DOSSIÊ:
UMA PRODUÇÃO
Guimarães
33
monumentos
N.º 33
|
ABRIL 2013
DIRET OR
F OT OG RA F I A
A G RA D EC I MENT OS
João Vieira
António Cunha
(à exceção das que se encontrem
com outra identificação na legenda)
A revista Monumentos agradece
a cedência gratuita de imagens
incluídas na presente edição
às seguintes entidades:
Arquiteto Sergio Fernandez;
Arquivo Histórico Ultramarino;
Arquivo Municipal Alfredo Pimenta;
Arquivo Nacional da Torre do Tombo;
Associação para o Estudo, Defesa
e Divulgação do Património Cultural
e Natural;
Câmara Municipal de Guimarães;
Centro de Estudos da Escola de
Arquitetura da Universidade do Minho;
Diocese do Porto/Secretariado
Diocesano de Liturgia;
Direção-Geral de Infraestruturas
do Exército/Gabinete de Estudos
de Arqueologia e Engenharia Militar;
Direção-Geral do Património Cultural;
Direção-Geral do Território;
Fundação Calouste Gulbenkian/
Biblioteca de Arte;
Fundação Instituto Arquiteto
José Marques da Silva;
Fundação Martins Sarmento;
Ordem Terceira de São Francisco;
Real Irmandade de Nossa Senhora
dos Santos Passos.
CONSELHO EDIT ORIAL
Alexandre Alves Costa
José Eduardo Horta Correia
José Manuel Fernandes
Nuno Portas
Raquel Henriques da Silva
Vítor Serrão
P ROJ ET O G RÁ F I C O
TVM Designers
PA G I NA Ç Ã O
TVM Designers
COORDENAÇ ÃO
D I S T RI B U I Ç Ã O EL ET RÓNI C A
Andrea Cardoso
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, SA
REDAÇ ÃO
ED I Ç Ã O
Maria João Reis Martins
Paula Tereno
Instituto da Habitação
e da Reabilitação Urbana, IP
Fundação Cidade de Guimarães
T EXT OS
Alexandre Alves Costa
Deolinda Folgado
Eduardo Fernandes
Eduardo Pires de Oliveira
Joaquim Inácio Caetano
José Ferrão Afonso
José Manuel Fernandes
Maria Manuel Oliveira
Maria Mónica Brito
Mário Gonçalves Fernandes
Marta M. Peters Arriscado de Oliveira
Miguel Soromenho
Ricardo Agarez
Sílvia Ramos
Tiago Borges Lourenço
P ROP RI ED A D E
Instituto da Habitação
e da Reabilitação Urbana, IP
Av. Columbano Bordalo Pinheiro, n.º 5
1099-019 Lisboa
Redacção: 21 942 77 80
E-mail: sipa@ihru.pt
Internet: www.monumentos.pt
Preço: 8 € (IVA incluído)
ISSN: 0872-8747
Os textos são da inteira responsabilidade dos
respetivos autores. Os textos e as imagens
desta publicação não podem ser reproduzidos
sem autorização prévia do Instituto da Habitação
e da Reabilitação Urbana.
monumentos
CAPA
Guimarães, Rua Rainha D. Maria II, 2013
© IHRU/Sistema de Informação
para o Património Arquitetónico.
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EXERIT AUT DOLOR alit iure faccum volore veA EDIÇÃO DE UM NÚMERO da prestigiada revista
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Monumentos
dedicado
a Guimarães
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consideração
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Capital Europeia da Cultura. Mas não se trata apenas
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de tirar partido de uma coincidência temporal, pois é
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artes e das ciências vinculadas a Guimarães, como
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O PRESENTE NÚMERO da revista Monumentos, publieugiam
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de
Habitação
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bilitação Urbana, de associar a publicação ao evento
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Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura. Porventura o conjunto final dos contributos submetidos a
publicação neste formato digital da Monumentos não
refletirá totalmente a riqueza do legado arquitetónico
e urbanístico vimaranense, em particular as transformações nele desencadeadas pelo referido evento.
Todavia, a totalidade de estudos e reflexões que aqui
foi possível reunir destaca a importância que esta urbe
Magna
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et biografias
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e valorização.
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Guimarães
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histórico até ao mais recente projeto de intervenção,
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visita projetos emblemáticos da modernidade urbana,
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o campus mmodolupde Azurém,
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1930-1950,
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novos elementos
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niais de pintura e de arquitetura.
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Aos autores dos textos, ao corpo editorial da revisaliquamet
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volutat.
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ao seu
diretor,
Dr. João Vieira,
o meu
testemunho
gratidão.
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aliquat.
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Agradeço
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da Moeda, particularmente ao Dr. Duarte Azinheira, a
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viabilização
publicação.
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Serra
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PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO
tismod dolorpe raesto cor
si.
CIDADE DE GUIMARÃES /
EUROPEIA DA CULTURA
Nosto od tat nit utat. CAPITAL
Duip exerit
ad min ulluptatem ipsum velenis aut dolobore vel dolut esto
commolor ip et non ullandiam in henit nonulputem dolum zzriliquat acin exeriurem iliquatin
assume, no presente como no passado, nos contextos
ulla
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ulpute identifica,
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e nacional;
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vel exercidunt
nit ate mincil
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–
em
presença;
analisa
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feui tem in etuero dolenit et wis adit aliscilisci et
municipal e estatal, evidenciando e problematizando
ing
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niamcore
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princípios
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políticas
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e instrumentos
utilizados.
Nessa
medida,
com
este
número
a
revista
Monufeuis augueros dolor in heniamet, volesto dolorementos cumpriu, uma vez mais de forma rigorosa e
Ci blan ute dolor in hendiat ullaorerat.
estimulante, a sua função de estudo, documentação e
divulgação do património arquitetónico, urbanístico e
paisagístico nacional e de matriz
portuguesa
conLorem
Ipsum Sit no
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texto do SIPA – Sistema de Informação
para
o
PatrimóDIRECTORA DA MONUMENTOS
nio Arquitetónico.
João Vieira
DIRETOR DA REVISTA MONUMENTOS
DOSSIÊ:
José Ferrão Afonso,
6
Guimarães
Guimarães ad radicem montis Latito
Marta M. Peters Arriscado de Oliveira
e Sílvia Ramos
Mário Gonçalves Fernandes
20
O centro histórico de Guimarães:
formulações, desígnios, planos e substância
Deolinda Folgado
38
Uma indústria em Guimarães: os curtumes
Joaquim Inácio Caetano
52
A pintura mural do século XVI em Guimarães
Miguel Soromenho
60
Miguel de Lescole e a capela-mor da Colegiada
de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães
Eduardo Pires de Oliveira
66
André Soares em Guimarães
Maria Mónica Brito
74
Paço dos Duques de Bragança em Guimarães:
alguns vetores de leitura
José Manuel Fernandes
88
Guimarães: cinco edifícios notáveis dos anos de 1930-1950
Alexandre Alves Costa 102
Pousada de Santa Marinha da Costa, 1976-1985
Eduardo Fernandes 108
Entre terras de campo e bons castanheiros:
o Campus de Azurém da Universidade do Minho
O Castelo de Guimarães durante as obras de consolidação da envolvente, fotografia de autor desconhecido, 1953 . © IHRU/Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.
Maria Manuel Oliveira 118
(re)Desenhar no coração da cidade:
o Projecto de Reabilitação Urbana da Praça do Toural,
da Alameda de São Dâmaso e da Rua de Santo António,
em Guimarães
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITETÓNICO
132
Paço dos Duques de Bragança
VÁRIA
Tiago Borges Lourenço 142
Ricardo Agarez 150
162
Uma arquitetura de representação adaptada aos trópicos no SIPA.
A propósito do projeto Gabinetes Coloniais de Urbanização:
Cultura e Prática Arquitetónicas
Lisboa em Olhão/Olhão em Lisboa.
História e fábula em três bairros de habitação económica,
desde 1925
Publicações
6
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Guimarães
ad radicem montis Latito
JOSÉ FERRÃO AFONSO
M A R TA M . P E T E R S A R R I S C A D O D E O L I V E I R A
S Í LV I A R A M O S
A cidade de Guimarães encontra-se implantada numa
formação interfluvial da bacia do Ave, confinada por
um arco de colinas. Sobressai, dominando a ribeira,
entre os rios Ave e Vizela. Ao longo do tempo deteve, no espaço de Entre Douro e Minho, uma posição
chave de convergência do sistema viário que fazia a ligação entre o Norte, a Galiza e Braga, e o Sul, seguindo percursos alternativos de travessia do rio Douro e
de passagem às Beiras e à Estremadura. Em sentido
concorrente cruzam as vias de penetração do litoral,
em especial ao longo do vale do Ave, mas também as
do Douro Litoral, em direção ao interior de terras de
Basto e de Trás-os-Montes. Para além de Guimarães
despede-se o Minho de horizontes abertos e colinas
onduladas, serram-se os montes. Foram essas rotas
linhas de conquista, de invasão, de razia; de produção e de trânsito de mercadorias; caminhos da arte,
de mestres-construtores e de artífices; corredores de
comunicação entre o Alto Douro, a sede da diocese
primaz de Braga e o interior trasmontano, e de estreita
relação de afinidade com as terras adjacentes de Montelongo e de Basto.
Na bacia hidrográfica do Ave, com a bordadura de
montes que anima o recorte do vale e individualiza
os recantos abertos pelo curso dos seus afluentes,
distribuíam-se de um e do outro lado das margens
do rio as antigas terras de Sande e de Guimarães.
Ao tempo em que a vila vimaranense surge como
polo urbano, o seu povoamento é denso. Uma malha
fina de freguesias testemunha a evolução histórica
do território e as mais antigas constam mesmo do
Paroquial Suevo. A organização de paróquias, por
São Martinho de Dume, mantém-se no período instável subsequente; novas freguesias são fundadas
com a presúria e o encastelamento. Ainda durante
o período medieval, por diminuição de fregueses e
de rendimentos, o número de paróquias irá reduzir-se, permanecendo, contudo, a sua memória viva
na distinção dos lugares englobados nas freguesias
vizinhas. Em alguns casos, esta extinção encontra-
-se associada a uma rarefação dos lugares habitados
no monte, todavia, na documentação medieval, a
referência para situar bens, igrejas, mosteiros e propriedades ainda era, precisamente, o monte. Não seria o acidente geográfico de relevo, um ponto alto
da região, mas o monte ou alpe tomado pelo antigo
povoado castrum: subtus mons ou ad radicem montis com o mesmo sentido de ad radicem castri1. Os
lugares de habitar formam, já então, um cordão de
povoamento mais próximo do vale, a mediar entre o
agros e o saltus. Ao contexto ligam-se os mosteiros,
na organização religiosa das comunidades e no fomento agrícola, a exemplo de São Torcato e do Souto, e na assistência e hospitalidade a viajantes e peregrinos. Destacavam-se nessa função os mosteiros
de Vila Nova de Sande e de São João da Ponte, que
se implantavam no vale feraz junto à ponte romana
sobre o Ave2, na estrada para Barcelos, numa área de
villae rurais, de casais e de quintas.
A fundação
A instituição do mosteiro duplex, em Guimarães,
por volta de 950, pela condessa Mumadona Dias,
viúva do conde Hermenegildo Mendes, no local
aproximado onde hoje se ergue a Colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira, dá-se por escambo da villa de
Guimarães foi, desde a sua fundação, muito condicionada pelo
território envolvente e pela capilaridade entre o rural e o urbano.
Também desde a origem, os diversos monarcas estabeleceram com
ela uma relação intensa, que traria proveitos para ambos os lados;
a cidade tornar-se-á um centro de peregrinação de reis em crise
de identidade e adquirirá uma espessura mitológica sem par em
Portugal, o que contribuirá, igualmente, para a criação de uma
imagem de cidade muito forte; esta está presente na planta do
século XVI e manter-se-á extremamente ativa em épocas posteriores.
monumentos 33
DOSSIÊ
7
1 | Guimarães
e o seu território,
planta efetuada pelos
autores a partir das
seguintes fontes:
Carta Militar de
Portugal, folhas
70-71-84-85; Plano
Director Municipal,
2011; Fernando
Távora et al., Plano
Geral de Urbanização
de Guimarães,
1979-1982; Carlos
Alberto Ferreira de
Almeida, Os Caminhos
e a Assistência no
Norte de Portugal,
1974; e Arquivo
Municipal de Alfredo
Pimenta, Carta
Corographica de
Guimarães (Carta
geodésica de 1890).
TOPÓNIMOS (CARTA MILITAR DE PORTUGAL)
Portela, Portelinha
Barco, Barqueira, Calçada, Cancela, Cancelas, Carreira, Carreira
de Baixo, Carreira de Cima, Corredoura, Estrada, Ponte, Porta
Aldeia, Aldeia de Baixo, Aldeias, Cabo de Vila, Casa, Casais, Casal,
Casalermo, Casas, Castelo, Cimo de Vila, Herdade, Hospital, Forte,
Fundo de Vila, Paço, Paçô, Pousa, Pousada, Pousadas, Quinta, Quintã,
Torre, Torre de Além, Torre de Cima, Vila, Vila Fria, Vilar
Creixomil, que recebera em partilhas, pela quinta de
Vimaranis, que coubera a sua filha. A propriedade
seria apenas um prediolo ou villula3, mas era relevante a sua posição ad radicem montis Latito4, na relação com o povoado antigo existente naquele monte
largo. No local convergem as ligações viárias de integração regional; no subúrbio, na costa da serra de
Santa Catarina, que domina o espaço inter ambas
Aves, pontua o Mosteiro de Santa Marinha, vizinho
do lugar de Cantonha, denotação de continuidade
com a antiga paróquia sueva de Carantonis.
Poucos anos depois da fundação, é referida uma
incursão de gentios — talvez normandos — ao mos-
SÍTIOS
Povoado (PDM, 2011)
Convento
Convento, localização aproximada
Ponte (PDM, 2011)
Traçado provável de estradas
teiro, bem como ao burgo vizinho. Ambos devem
ter sido habitados por uma população diversificada:
os mosteiros, enquanto núcleos de povoamento e de
colonização, tinham, obrigatoriamente, para além
da comunidade dos regulares, neste caso os fratres e
sorores, populares e nobres, clérigos e religiosos, laicos, funcionários, servos e escravos. O ataque alerta
os poderes para a necessidade de defesa do mosteiro
e das vias que junto dele corriam; em consequência
dessa arremetida, Mumadona doou ao mosteiro, por
documento datado de 4 de dezembro de 968, um
castelo, designado de São Mamede, que tinha edificado na elevação próxima, o alpe Latito5.
8
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Dois elementos clássicos na criação urbana dos finais da Alta Idade Média estiveram, portanto, na origem de Guimarães. A localização do mosteiro e do
castelo, nas margens de sistemas ecológicos diferenciados, o interior montanhoso e a planície litoral, e
numa encruzilhada viária importante, iria incrementar um comércio cuja origem era anterior à romanização. Por outro lado, o mosteiro estava obrigado a
dar hospedagem aos peregrinos: aqui, como noutros
locais do Norte do país, o caminho jacobeu seria um
importante contributo para a sedimentação urbana.
A marca original da fundação perduraria, pois o povoado organizou-se morfologicamente numa dualidade também clássica na cidade europeia medieval:
o burgo monástico, junto da estrada e do mosteiro,
futura Vila Baixa e, um pouco acima, a Vila Alta, ou
do Castelo.
O espaço rural e urbano da vila
Nos finais do século XI, o primeiro condado portucalense e o mosteiro entraram numa era de ocaso,
tendo o último conde, Nuno Mendes, sido morto num
recontro em Pedroso, próximo de Braga, em 1071.
O cenóbio e as suas ricas propriedades, que se estendiam desde a Galiza até Coimbra, bem como o burgo
e o castelo engrossaram então os bens da coroa de
Leão e Castela. Ressurgem no palco da história com
o conde D. Henrique de Borgonha, a favor de quem
o monarca leonês Afonso VI refundaria o condado.
A conquista de Coimbra em 1064 garantira, porém,
um desenvolvimento mais seguro à povoação, o que
poderá explicar que, em 1096, logo após ter sido investido pelo seu sogro Afonso VI no governo condal, D. Henrique tenha concedido o primeiro foral a
Guimarães, que escolhera para local da sua residência. O documento, onde se expunham preocupações
comerciais, mas igualmente a necessidade de atrair
povoadores, seria confirmado por Afonso Henriques
em 1128, no seguimento do cerco empreendido por
Afonso VII no ano anterior. O assédio terá posto à
prova a eficácia da fortaleza, cuja reformulação tinha
sido ordenada pelo conde D. Henrique. A configuração em escudo, com uma torre de menagem, mas
sem os cubelos que serão uma adição posterior, data
dessa intervenção.
A descolagem urbana na Idade Média far-se-á pelo
desenvolvimento do mercado no âmago do sistema
senhorial que o promoveu, enquadrou e encorajou.
Constituem preocupações centrais do foral reafirmado por D. Afonso Henriques o desenvolvimento económico da vila, a atração de populações e a
afirmação de liberalidades comerciais, incluindo as
de mercadejar em todo o território nacional, nas terras de jurisdição real, sem pagar portagem. Mas o
documento detém a particularidade de não incluir
uma delimitação do termo do território, sob administração municipal, e de o privilégio, concedido de
forma restrita, ter sido estendido6 expressamente aos
homens-bons de Guimarães que o tinham auxiliado
durante o cerco, habitantes da vila e bem assim os
burgueses da terra vimaranense, proprietários espalhados pelos casais, descendentes dos povoadores
aforados pelo conde D. Henrique, a quem cabe, ainda na centúria seguinte, a designação de cidadãos,
mesmo sem residirem na vila7.
Estavam lançadas as bases de um contrato entre a
monarquia e os habitantes não só da vila como da
sua área de incidência territorial. A paisagem vimaranense, moldada pelo artifício do homem, será integradora dos espaços rural e urbano, numa contínua
interação humana, material e cultural. Os nomes
dos lugares formarão a densa narrativa do espaço
existencial, da forma de vida das comunidades que
aí habitaram8. Sem uma noção de espessura e de
profundidade da sobreposição de estratos no tempo,
não seria possível vislumbrar, na atualidade do espaço habitado, senão a forma difusa de uma ocupação
contígua, discreta do território.
O regime de propriedade, corroborado por outros indícios, revelaria condições particulares que
terão obstado a uma senhorialização do território9,
tal como surgira em outras partes de Entre Douro
e Minho. No campo permanecia uma burguesia
rural, ocupada na movimentação de excedentes
de produção e na cobrança e encaminhamento de
rendas para os senhorios seculares ou eclesiásticos. Marcavam, bem assim, presença os interesses
de burgueses e de mercadores da vila, que adquiriam propriedades agrícolas para rendimento e que,
por meio da posse de terra de certa extensão, selavam uma posição social de respeitabilidade e de
honorabilidade, expressão de poder, inclusive de
nobilitação, também alcançável por casamento10.
Por sua vez, já em meados do século XII, vários fidalgos possuíam casas honradas em Guimarães11.
A propriedade de casas urbanas e a morada de nobres no burgo coexistiam com a posse de herdamentos no espaço de ambos os rios, Ave e Avizella.
Com os tempos, desenhar-se-iam ciclos de vida.
No campo, famílias gradas batizavam e casavam na
colegiada; filhas recolhiam ao Convento de Santa
Clara; religiosos de São Francisco, de São Domingos e irmãos da Misericórdia levavam a enterrar. No
campo, a casa de linhagem acolhia sob um teto a
família alargada; gerações mais novas assentavam
morada urbana, tomavam cargos públicos, ingressavam na clerezia, iam servir a Coroa, partiam para
o Brasil e para o Oriente em busca de riqueza12.
A contrapartida dos percursos de vida que estreitavam relações entre espaço urbano e rural, através de
alianças matrimoniais que uniam famílias titulares
de Guimarães, de Basto, de Entre Douro e Minho e
do vale do Douro, e que cruzavam estratos sociais
entre nobreza e mercadores, entre o serviço do reino
e as viagens e estadas em terras longínquas, seria
uma “abertura ao mundo”, possível de acompanhar
através da observação das transformações urbanas
de Guimarães e do quadro edificado do campo.
monumentos 33
D. João I, uma só vila
Foi também na primeira década do século XII que
o mosteiro de Mumadona se transformou em colegiada, embora o documento que lhe assinala os estatutos date apenas de 1229. A sua imagem de Nossa
Senhora da Oliveira, a que se atribuíam propriedades
miraculosas, com a consequente capacidade de atrair
peregrinos e populações, é coetânea. Em 1223 tinha-se efetuado a partição das rendas e do património
entre as mesas capitular e prioral da instituição, o que
poderá ter sido determinante para a territorialização
urbana: referem-se então as paróquias de São Paio
(1212) e de São Miguel do Castelo (mencionada em
1216 e, como paroquial, nas Inquirições de 1258).
Abundantemente privilegiada e dotada pelos nossos primeiros monarcas, a colegiada assume na hierarquia das instituições portuguesas congéneres um
lugar cimeiro. Sendo um dos mais relevantes centros portugueses de peregrinação, ela contribui para
a enorme vitalidade da vila, somando-se a uma importante atividade artesanal e mercantil, em que se
transformavam e comerciavam os recursos de um território fértil e densamente povoado, servido por uma
rede de comunicações de proximidade, articulada e
sobreposta aos antigos percursos de longa distância,
que uniam não apenas os portos marítimos e o interior, mas também o Sul e o Norte do país. A contínua
proteção e as liberalidades dos monarcas, que, sobretudo em épocas de crise dinástica, não dispensavam
o enorme potencial provatório e regenerador do mitológico fundador Afonso Henriques, da colegiada que
com ele se identificava e da própria Guimarães, fazem
DOSSIÊ
o resto. Essa vitalidade institui-se numa dualidade
fundacional, que se manterá até aos finais do século
XIV, vindo os dois burgos — a Vila Baixa e a Vila do
Castelo, ou Vila Alta — a ser rodeados por circuitos de
muralhas autónomos, embora separados por um pano
transversal, partilhado, pertencente ao muro da Vila
do Castelo. Unindo os dois burgos corria uma rua,
referida já em 1173, embora certamente muito mais
antiga, nas proximidades da colegiada designada de
Santa Maria e, já perto do castelo, da Infesta13.
À dualidade morfológica correspondeu a organização de cada uma das vilas num concelho autónomo.
Seria o rei da Boa Memória, na sequência da crise de
1383-1385, a extinguir o do Castelo, tendo também
dado ordem para o derrube da muralha transversal.
O ritual, simultaneamente criador e memória da paisagem urbana, registaria essas alterações. O padre
Torcato Peixoto de Azevedo informa-nos que a procissão do Anjo Custódio, criada na época manuelina, se dirigia todos os anos à Vila Velha, designação
pela qual passou a ser conhecido concelho do Castelo
após a união; aí chegado, o juiz de fora entregava o
estandarte concelhio ao vereador mais velho14, numa
passagem de testemunho que registava a antiga autonomia dos dois núcleos.
O mesmo D. João I que aboliu o concelho do Castelo será determinante na revitalização do culto dinástico à colegiada, ao fundador e a Guimarães. Em
cumprimento da promessa solene feita antes de Aljubarrota dirigiu-se, após a vitória, em peregrinação à
Senhora da Oliveira15, percorrendo a pé o percurso
desde São Lázaro, na Estrada de Vila do Conde. Mais
uma vez o ritual surge como elemento estruturante
9
2 | De Guimarães,
c. 1569, planta de
autor desconhecido,
in: Coleção Diogo
Barbosa Machado da
Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de
Janeiro, Brasil.
A planta foi trabalhada
pelos autores de
modo a realçar a
notação subjacente;
foi efetuado redesenho
apenas no que se
refere à representação
de pórticos
e chafarizes.
1. Igreja de
São Miguel
do Castelo
2. Castelo de
São Mamede
3. Paço dos Duques
4. Convento
de Santa Clara
5. Colegiada de
Nossa Senhora
da Oliveira
6. Igreja de Santiago
7. Igreja de São Paio
8. Convento de
São Francisco
9. Capela de
São Sebastião
10. Convento de
São Domingos
11. Capela de
Santa Luzia
12. Padrão de
São Lázaro
10
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
da paisagem urbana: no local onde o monarca iniciou
o seu percurso será erguido, mais tarde, um padrão
comemorativo que durante séculos marcará um limite
urbano. D. João I ordenaria ainda a reedificação da
igreja colegiada, que era capela real. No espelho superior da frontaria integrar-se-ia, no quadro do janelão,
uma árvore de Jessé, em pedra de Ançã, elevando a
imagem da Senhora à vista, sobre a Praça Maior e a
sua oliveira.
Forma urbana
A morfologia da Vila Baixa medieval seria marcada pela proeminência simbólica da Praça Maior e do
espaço que lhe ficava contíguo, a Praça de Santiago.
A palavra praça assinala, na Idade Média portuguesa,
não apenas uma realização morfológica, mas também
a decantação de poderes que esteve na sua origem.
Ela surge, desse modo, no seguimento da fragmentação do espaço absoluto, eminentemente simbólico-religioso e feudal do românico que, por exemplo,
esteve na origem da decadência e do desaparecimento da Vila do Castelo. O mercado começa então
a apartar-se do sagrado, com o qual convivera nos
adros desde a Antiguidade Tardia, e afirma-se como
uma especialização funcional; o seu controlo e regulação seriam um dos atributos essenciais da iconologia
do poder real.
A Praça de Santiago tomou o seu nome da Igreja
de Santiago, possivelmente fundada por francos no
início do século XII, num campo limitado pela cerca
da Igreja de Santa Maria, pelo seu adro e pela Rua dos
Francos16. Junto do adro de Santiago estabeleceram-se os açougues e, mais tarde, o mercado do pescado
ficando esse espaço conhecido por Praça do Peixe.
Perto, na Praça de Santa Maria, surgirá também uma
Rua das Tendas (1351) que resultou da progressiva sedimentação e consequente loteamento do que foi primitivamente um espaço mercantil efémero, referido
como “Tendas” ainda na época de D. Dinis. Entre os
dois espaços instalar-se-ia uma torre/paço municipal,
que só a partir de 1414, com D. João I, seria objeto de
particular atenção arquitetónica, que, contudo, não
adicionou muito à abstração formal do símbolo. Em
Quatrocentos, a Praça Maior já possuía alpendradas a
norte, a sul e a poente, e nela faziam audiência os almotacés do concelho. A praça associou, desta forma,
a funcionalidade mercantil a uma monumentalização
indexada à res publica, por sua vez apoiada nas propriedades de um sagrado forjado na Igreja de Santa
Maria e na sua imagem santa, constantemente invocado e revitalizado pelos rituais celebratórios e comemorativos dos cónegos e das peregrinações reais. Surgem assim, para além da torre do concelho, uma série
de ícones: o padrão, caracteristicamente oferecido em
1342 por um mercador de grosso trato residente em
Lisboa, a oliveira miraculada e miraculosa, o dispendioso chafariz concelhio (c. 1390) e a torre da igreja,
edificada de novo já no século XVI.
A praça é, também na Idade Média, o movimento pelo qual um exército, dispondo-se para o combate, interrompe a sua marcha. Nos dois espaços
imobilizava-se igualmente o fluxo contínuo, de homens e de mercadorias, do principal caminho que
atravessava a vila, dotando-se de uma espessura semântica associada aos poderes e às suas liturgias.
Esse percurso atingia os limites urbanos, proveniente de Braga e de Barcelos, junto da Capela de Santa
Luzia, vizinha de uma gafaria de mulheres. A construção da muralha e da porta designada da Senhora
da Graça, e o plano urbano, implantado a partir do
início da Idade Moderna, entre essa entrada e a Praça
de Santiago, tornaram-no numa lembrança; este percurso, contudo, conduzia à Praça Maior. Prosseguia,
depois, na direção sul através das duas vias mercantis
mais importantes do burgo: a dos Mercadores e, na
sua continuidade, a da Sapateira, esta já mencionada
no século XII, a primeira autonomizando-se dela em
Trezentos. Com origem no ponto de interceção das
duas, dirigindo-se ao postigo de São Paio, ao Vale de
Sousa e ao Porto, situaram-se as ruas das Ferrarias e
de Felgueiras. A Rua da Sapateira, por sua vez, sairá
da muralha pela porta de São Domingos ou da Senhora da Piedade.
3 | Guimarães,
Praça Maior
e Praça de Santiago,
identificação efetuada
sobre a planta
De Guimarães,
c. 1569, planta de
autor desconhecido,
in: Coleção Diogo
Barbosa Machado da
Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de
Janeiro, Brasil.
1. Colegiada de
Nossa Senhora
da Oliveira
2. Igreja de Santiago
monumentos 33
A nascente do eixo Mercadores/Sapateira e a sul
da Praça Maior, o plano integrou um díspar conjunto
de quarteirões, os mais antigos da Vila Baixa, que a
muralha abraçará no seu circuito. A poente da Sapateira, porém, o plano urbano poderá ser coetâneo da
muralha. Estruturou-se, num desenho ortogonal, em
torno dessa via, da Praça de Santiago, da judiaria e
da Rua Escura e, mais para norte, ao longo de duas
outras vias, as das Flores e de Vale de Donas, que a
construção da muralha irá desenhar. A praça regular,
de forma quadrangular, que existiu na frente da Igreja
de Santiago articula-se com a Rua do Espírito Santo,
antiga judiaria; esta inseria-se aproximadamente na
mediana do espaço que fora um antigo campo, no enfiamento da igreja17.
A configuração dos espaços públicos, nas imediações da colegiada, e o traçado de alguns arruamentos
a eles adstritos (além dos referidos, a Rua de Santa
Maria) denotam uma disposição urbanística ordenada, que inclui vias paralelas e ortogonais entre si, tanto quanto as preexistências o permitiam, e poderá ter
sido concretizada a par com a edificação da cerca da
vila. Mas a vila de Guimarães conta também com um
outro tipo de formação arruada sinuosa, de que são
exemplo as ruas de Santa Maria, na sua parte alta,
a Rua da Infesta e, sobretudo, a Rua dos Gatos, ao
longo do seu percurso, desde o padrão, na entrada
pela Estrada de Vila do Conde, até à praça, no interior
da cerca. O traçado curvilíneo dessas ruas é medido e
regulado na alternância dos encurvamentos, definindo uma sucessão equivalente de segmentos de espaço
urbano. Desse modo se preserva uma escala de vizinhança e de domesticidade, numa via que satisfaz ao
mesmo tempo a funcionalidade de trânsito de longo
curso. O traçado sinuoso ajusta-se à pendente do terreno e constitui um meio de resguardo de ventos e
de defesa de estruturas urbanas em campo aberto18.
A implantação da cerca e da Porta de São Domingos
sobrepuseram uma nova racionalidade, com incidência no tecido urbano intramuros, na definição da Rua
da Sapateira, e na configuração do rossio do Toural.
A planta do século XVI
A planta quinhentista de Guimarães pertence ao
acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e foi
publicada por Maria Dulce de Faria na 21st Internacional Conference on the History of Cartography (Budapeste, Julho de 2005). Encontra-se igualmente na
Real Biblioteca do Rio de Janeiro uma planta de Vila
do Conde19, assinalada por Rafael Moreira e Amélia
Polónia20, integrada na mesma coleção que a sua congénere de Guimarães, organizada por Diogo Barbosa
Machado e intitulada Mappas do Reino de Portugal e
das suas Conquistas collegido por Diogo Barbosa Machado, o autor da Bibliotheca Lusitana. Maria Dulce
de Faria aponta para a execução da planta de Vila do
Conde a data de 1568-1570 e para a de Guimarães
a de 1562-1570. Juntamente com o geógrafo Mário
DOSSIÊ
Gonçalves Fernandes concluiu, através da análise das
duas plantas, que foram ambas desenhadas pelo mesmo autor; Mário Gonçalves Fernandes concorda ainda
com as balizas cronológicas estabelecidas para o documento de Guimarães21.
A última data, 1570, justificar-se-ia pela representação, a poente do Toural, da Capela de São Sebastião que, nessa data, seria substituída pela igreja
paroquial da mesma invocação. Quanto à outra baliza, 1562, Mário Gonçalves Fernandes fundamenta-a
por, nesse ano, as Clarissas terem feito a sua entrada
solene no Convento de Santa Clara, citando, a esse
propósito, o padre Caldas e Maria de Fátima Falcão
Ferreira22. O Convento de Santa Clara, porém, é anterior a essa data: segundo a Historia Serafica, foi
seu fundador o mestre-escola da colegiada Baltasar
de Andrade: (…) o qual delineando os edifícios em
h as casas, & hortas, q possuhia no lugar onde està
o Convento (…)23. Frei Fernando da Soledade cita o
testemunho de um breve do núncio João, arcebispo
Sepontino, firmado em Lisboa, a 17 de novembro de
1548, (...) no qual declara que o Mosteyro já se ia edificando (...). Breve que foi expedido por solicitação
da duquesa de Guimarães, D. Isabel (1514-1576), filha do duque de Bragança D. Jaime, então já viúva do
infante D. Duarte (1515-1540), filho de D. Manuel I.
Só em 1562 e depois de, no ano de 1559, quando a
casa ia (...) chegando à sua ultima perfeição (...), o
fundador Baltasar de Andrade ter dirigido à Santa Sé
a súplica para ereção do convento, as freiras fizeram
nela a sua entrada solene24. Saliente-se ainda que no
documento está representada, com grande detalhe,
a planta baixa de todo o edifício do convento, uma
parte do qual só viria a ser erguido nos séculos XVII
— a igreja — XVIII — o claustro junto dela — e XIX
— a ala norte. Essa planta, por conseguinte, só poderia ter sido executada por alguém que tivesse acesso
ao projeto; o facto de a Igreja de São Sebastião, iniciada em 1570, não estar ainda desenhada no mapa
indica igualmente que este deverá ser bem anterior
a essa data, quando ainda não existia projeto para
ela e, muito provavelmente, a decisão de a construir
ainda nem sequer tinha sido tomada.
Outros detalhes explicitados na planta apontam,
igualmente, a sua execução para uma data bem mais
recuada: por exemplo, na cabeceira da igreja do Convento de São Francisco não estão ainda representadas
as duas capelas colaterais à capela-mor. A do lado
do Evangelho — Capela do Cristo Crucificado — foi
instituída por Pedro Álvares de Almada em 1507, enquanto a da Epístola, do Senhor Crucificado, anexa ao
morgado do Pinheiro, foi ereta por Fernão Martins de
Almeida. Ambas são góticas e cobertas com abóbadas
de nervuras; a dos Almadas, do lado do Evangelho,
mais evoluída, já com o sistema de terceletes e combados introduzido por João de Castilho. Dadas essas
características, a que se adiciona a completa ausência
de ornamentação “ao romano” a execução de qualquer uma delas muito dificilmente poderá ultrapassar
os anos quarenta do século XVI.
11
12
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Resta o paralelismo com a planta de Vila do Conde: Rafael Moreira justifica a sua datação (1568-1570)
pela urgência posta pelo cardeal infante D. Henrique
no levantamento, com objetivos militares, dessa e de
outras povoações. Amélia Polónia, porém, faz notar
que na planta de Vila do Conde não está representada
a costa marítima, o que seria indispensável se a questão bélica estivesse em cima da mesa; as balizas que
adianta para a sua execução (1550-1580) baseiam-se
ainda noutras referências25. Rafael Moreira, contudo,
adianta um pormenor importante: a representação,
na matriz, da Capela de São Miguel, concluída em
156126. Esta capela localizou-se no lado do Evangelho;
porém, a estrutura que está representada na planta
poderá não corresponder a essa fundação, mas sim à
sacristia que a precedeu no mesmo lugar. Com efeito,
a autorização para construção da capela que, segundo
Marisa Costa, teria sido pedida à câmara em 1556, foi
concedida com a condição de os seus fundadores deslocarem a sacristia, que aí se encontrava, para outro
local27. A segunda capela, frente a essa, na costã do
lado da Epístola, e de invocação do Corpo Santo, estava já concluída desde 154228. Um outro ponto sustenta uma datação mais recuada da planta, que não foi
acabada, devendo, por conseguinte, ser posterior à de
Guimarães: no Convento de São Francisco, visível à
direita em baixo, não está ainda representada a capela
do lado da Epístola da nave, contratada, em 1566, por
Estêvão Ferreira d’Eça e que deveria estar concluída
no espaço de um ano. A planta de Vila do Conde poderá, portanto, datar de cerca de 1550, baliza mais
antiga proposta por Amélia Polónia; a de Guimarães
dos anos quarenta da mesma centúria.
Resta saber qual a razão da encomenda das duas
plantas, que requereram uma bagagem científica,
meios económicos e um controlo da produção iconológica que não estariam ao dispor de qualquer um e
que se associam geralmente ao rei ou à alta nobreza.
A compra, em 1540, do senhorio de Vila do Conde
pelo infante D. Duarte, filho de D. Manuel I e, pelo
seu casamento, em 1537, com D. Isabel (1514-1576),
filha do duque de Bragança D. Jaime, duque de Guimarães, poderá responder a essa questão. O interesse
de D. Jaime pela cartografia e a colaboração de matemáticos e geógrafos na sua corte de Vila Viçosa29
poderão ter facilitado o saber e a existência de meios
necessários à execução da planta. D. Duarte morrerá
poucos meses após a rematação do senhorio, em setembro de 1540, mas este estará na posse da viúva e
do seu filho, D. Duarte II (1541-1576), até 1576 quando, por morte de ambos, ficou vaga a sucessão30.
A planta de Guimarães é produto de um sistema de
representação científico que desencriptou o organicismo simbólico da cartografia medieval. Numa época
em que se reacende, mais uma vez, o tema mitológico fundacional, ela resume a vontade de criação de
uma imagem da vila associada a uma linhagem, a dos
Bragança, que entroncava em Afonso Henriques. Será
importante, a esse propósito, salientar que na planta
as duas construções que sobressaem, pelo cuidado
que foi posto na sua representação, são exatamente o
Paço dos Duques e o Convento de Santa Clara, ambos
ligados à casa ducal31. A propósito deste último, convirá ainda referir que D. Isabel se fez pintar vestida
com o hábito de clarissa, podendo ter herdado do seu
pai, D. Jaime, a dedicação ao ramo franciscano dos
Observantes, que o tinha levado a fundar uma série
de casas suas no Alentejo. A grande proximidade de
D. Jaime com frei João de Chaves, seu companheiro
na expedição a Azamor, que foi provincial dos Franciscanos, prior do Convento de São Francisco de Guimarães, do mosteiro de Cónegos Regrantes de Santa
Marinha da Costa e, apesar de conventual, um grande
protetor dos Observantes, estaria assim justificada.
Outros âmbitos de atuação de frei João de Chaves
sugerem atenção, não apenas em relação ao duque de
Bragança, mas também ao serviço do rei D. Manuel
I32. Em 1509, frei João de Chaves encontra-se envolvido no plano de fundação de estudos e de um colégio
que D. Diogo de Sousa pretendia criar em Braga e que
o rei se declarara pronto a sustentar. Logo em 1512,
recebia um alvará do monarca para prosseguir um
mesmo intento de criação de um colégio, ou escola,
em Guimarães, assunto que já tinha sido por ele discutido com o rei e que os juízes e vereadores da vila
formalizavam, num pedido a D. Manuel I, em 25 de
fevereiro de 151233. O pedido efetuado ao rei resultava
de uma reunião havida em Guimarães, que juntou a
vereação, o alcaide-mor e o ouvidor do duque. Na carta anunciavam: (...) com muyta jnstançia se poer em
obra como de facto ja se faz (...), e que dispunham de
ajudas de (...) madeira e outras coisas (...)34. Os estudos seriam criados na vila em 1537 e funcionaram até
1550, tendo o rei alcançado bula papal que concedia a
equiparação dos graus aos da Universidade de Coimbra, apesar da forte oposição desta última. O colégio
alojar-se-ia no Mosteiro de Santa Marinha da Costa,
que fora entretanto entregue à Ordem dos Padres Jerónimos, tendo como prior frei Diogo de Murça (até
1543). Aí fariam os seus estudos os filhos naturais de
D. João III e do infante D. Luís, D. Duarte e D. António, e também frei Heitor Pinto, possivelmente, em
1546-154735. Nicolau Clenardo visitaria o colégio em
1537; o infante D. Luís estaria na vila em 1548.
Guimarães, Vila do Conde, o vale do Ave e a zona
de Basto estão ainda unidas, nessa época, por um surto construtivo, ligado ao Renascimento, que partilha
um caráter identitário próprio. Desse modo, a Câmara
Municipal de Vila do Conde, concluída em 1543, é
atribuída por Rafael Moreira a Francisco de Cremona;
é também possível que o projeto da primeira igreja
da Misericórdia da vila, com nave única, erguida depois de 1525 e já representada na planta quinhentista,
seja seu. Perto de Guimarães, o mesmo historiador
credita o cremonês com o projeto da loggia da Capela do Santíssimo Sacramento da Igreja de São Tomé
de Negrelos, também enquadrável nos anos quarenta
do século XVI. Francisco de Cremona deve ter igualmente trabalhado no Mosteiro de Santo Tirso, de que
D. Miguel da Silva era abade comendatário, em cuja
monumentos 33
igreja houve obras importantes36; aí estão documentados, entre 1534 e 1536, Pedro de La Faya, depois associado à Sé de Miranda do Douro e, entre 1529-1530,
Álvaro Gonçalves, pedreiro de Viseu. Este último será
mais tarde, já na década de 1560, mestre das obras
do mosteiro37. A Capela do Santíssimo Sacramento
em São Tomé de Negrelos fora instituída pelos Lopes
de Carvalho, senhores de Abadim e de Negrelos, que
mandariam erguer em Guimarães, no gaveto entre
as ruas do Espírito Santo e de Vale de Donas, uma
residência que mostra ainda um trecho de fachada
renascentista, em granito aparente, que poderá datar
igualmente da década de 1540. Algumas outras casas
nobres e pórticos de Guimarães mostram um vocabulário renascentista bem mais contido e “romano”
do que, por exemplo, o que se encontra, pela mesma
época, no alegre “Renascimento de Granito” do Alto
Minho. Finalmente, surge ainda associada a Guimarães a figura de António Pereira Marramaque, senhor
de Basto, humanista e amigo de Sá de Miranda, que
ordenou uma capela de invocação de nossa Senhora
da Conceição (1554) na sua Quinta da Taipa, em Cabeceiras de Basto. A capela, no extremo de uma longa
alameda que a une à residência de planta em L, também intervencionada no século XVI, tem uma falsa
planta centrada — com o braço posterior cortado — e
é coberta por uma cúpula semiesférica. Em Guimarães, deve-se também ao mesmo António Pereira uma
intervenção, em 1553, na capela familiar de São Pedro
Mártir instituída no Convento de São Domingos.
É neste contexto de renovação cultural que podemos enquadrar a planta de Guimarães: se ela foi um
elo estratigráfico importante na contínua sedimentação da mitologia fundacional da vila, utilizou para tal
todo um conjunto de novos conhecimentos, de certo
modo sintetizando a ativa paisagem humanista da
vila e da sua região. Daí, também, a importância do
paço38, nela representado em grande destaque, que o
padre Torcato Peixoto de Azevedo afirma ter sido residência de D. Duarte39.
O alçado do paço e o corte pelo interior do castelo,
rebatíveis, consagram um processo científico de representação da imagem da cidade; em planta, a posição
da rosa de ventos parece fixar algumas das coordenadas do espaço urbano. O Paço dos Duques surge
como uma das suas referências principais40. Em legendas, escritas no alçado rebatível e na planta do Toural,
DOSSIÊ
são indicadas as diferenças altimétricas entre o paço,
a Praça do Toural e o sítio do padrão41, no limite urbano sudoeste, no local onde começara a caminhada
a pé de D. João I.
A representação do paço sugere que a ala nascente,
sobranceira à muralha, constitui a parte da edificação principal já concluída. Para o torreão sul ascende
uma larga escadaria, ainda mencionada num tombo
setecentista transcrito por Albano Bellino42, que se dirige à Porta da Freiria aberta na muralha. Essa seria a
entrada nobre. A quadra em torno de um pátio e bem
assim as duas alas, norte e sul, cuja planta baixa é visível com um avançado sistema de compartimentação
interior, ainda hoje existem. Elas, porém, não estão
na disposição simétrica relativamente à mediana do
pátio representada na planta. Esta acolhe talvez um
projeto coetâneo, provavelmente ainda em execução
à época, como parecem sugerir as formas de algumas
portas e janelas, datáveis do século XVI, que em parte desapareceram com a intervenção efetuada pelos
Monumentos Nacionais. Por sua vez, os torreões da
ala poente apresentam uma configuração planimétrica distinta dos correspondentes a nascente e daquela
atualmente existente. Frente à ala poente e tangente
à fachada norte surgem assinaladas duas construções
preexistentes que não parecem compatíveis com a
imagem e a presença do paço no espaço urbano. No
pátio interior, encontra-se representada uma estrutura
não identificável, com pormenores de desenho claramente distintos da representação seguida nos claustros de Santa Clara43. O rigor de certos pormenores
marcados na planta e as diferenças observadas entre
a representação e o existente sugerem que uma parte
da representação planimétrica do paço, tal como o desenho daquele convento, possa corresponder a uma
intenção de projeto.
O arrabalde
Na planta quinhentista é também representado o
grande campo, contíguo e exterior à muralha, que a
poente, entre a Porta de São Domingos, ou de Nossa Senhora da Piedade, e o Postigo de São Paio se
chamou Toural e, a nascente, entre as torres da Alfândega e dos Cães, se denominou Terreiro de São
Francisco e Campo da Feira. Para além dessa cintura
13
4 | Guimarães,
Rua de Gatos, Rua da
Sapateira e Convento
de São Domingos,
identificação efetuada
sobre a planta De
Guimarães, c. 1569,
planta de autor
desconhecido,
in: Coleção Diogo
Barbosa Machado da
Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de
Janeiro, Brasil.
1. Colegiada de
Nossa Senhora
da Oliveira
2. Convento
de São Domingos
3. Padrão
de São Lázaro
14
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
periférica localizaram-se os dinâmicos e economicamente especializados arrabaldes da vila. Se a origem
desse espaço foi uma zona onde a construção não
era permitida, após a construção da muralha, por
razões militares, os conventos mendicantes, para aí
transferidos, impulsionam uma nova definição e dinamização urbanas. As primeiras notícias fidedignas
relativas à presença dos Dominicanos na vila datam
de 1272, mas Falcão Ferreira indica o ano de 1284
como sendo o primeiro em que se refere a obra do
seu convento44. Este localizou-se, como era hábito em
instituições similares, junto de uma via importante de
acesso à vila: a Estrada de Vila do Conde. A construção da muralha, porém, obrigaria à sua deslocação,
em 1323, para o local que atualmente ocupa na antiga
Rua dos Gatos45. Os Franciscanos, por sua vez, ter-se-iam instalado em Vila Verde. Daí deslocaram-se para
junto da Torre Velha e, finalmente, pela mesma razão
— a construção da muralha — invocada em relação
à deslocação dos Dominicanos, ter-se-iam estabelecido, depois de 1322, na sua atual localização, junto do
importante núcleo industrial de Couros, habitado por
curtidores mas, também, cutileiros. Falcão Ferreira,
porém, refere o interesse dos Frades Menores por essa
zona, ligando a atividade construtiva, já no século
anterior46. A igreja conventual, contudo, data do século XV; a licença para a sua edificação, concedida em
Braga por D. João I, data de 3 de novembro de 1400 e
é atribuída ao mesmo mestre Anton que terá edificado
o Paço dos Duques. Com efeito, a sua planta de nave
única, grande transepto, cabeceira com apenas uma
capela-mor e cobertura em tesoura, muito inclinada,
tem pouco de comum com a tipologia da arquitetura
mendicante portuguesa.
A imagem da cidade
Em meados de Seiscentos, aquando do passamento
de D. João IV, em 29 de novembro de 1656, são três
os espaços principais da vila onde são repetidos os
atos qualificados de sentimento e demonstrações pelo
seu falecimento, com a quebra dos escudos: na praça
da colegiada, no Toural e, finalmente, no Terreiro das
Freiras, concedendo cidadania ao mundo de clausura.
O Toural — local onde se corriam touros e se fez
feira do gado, daí o seu nome — possuía, junto à
muralha, um patim a que acediam uns degraus, utilizados para assento dos espetadores dos numerosos
espetáculos que aí se efetuavam. A progressiva racionalização da paisagem urbana e do seu caráter representativo exigia espaços amplos, pelo que essa praça
foi ganhando importância; em 1585, por exemplo,
será erguido no seu limite sul, frente ao Postigo de
São Paio, um monumental chafariz de taças. A Praça
Maior, por sua vez, embora dotada de um extremo
funcionalismo simbólico, era pouco operacional em
termos dos novos pragmatismos urbanos.
Desse modo, em 1794, a vila assistiu, a propósito
da realização da feira semanal, a uma “guerra” entre
esses dois espaços, na qual se procedeu à enunciação das qualidades de cada um deles; a razão para o
conflito foi a deslocação do mercado do Toural para a
Praça da Senhora da Oliveira. Esta, segundo os seus
detratores, de “praça” tinha apenas o nome, por afinal
apenas se tratar de uma (...) rua (…) muito fúnebre
(...), onde não se podiam arrumar carros, nem dar de
beber às bestas naquele que fora um dos símbolos
do município, o antigo chafariz adossado à torre da
igreja. A oliveira sagrada, por sua vez, era um estorvo,
juntamente com o padrão, à passagem do trânsito;
estorvo eram também os ofícios e rituais que na praça
se praticavam, sobretudo o responso pela morte de
D. João I, todos os sábados, junto do padrão. O alpendre sob a câmara não permitia o arrumar dos carros, que tinham de o ser por trás da vizinha Igreja
de Santiago, por a praça junto desta ser exígua. Em
contrapartida, o Toural era muito largo e airoso, local
de passagem (...) das pessoas que vêm de Braga, Porto, Barcelos, e mais outras partes da província (...)47.
Desde o século XVII que o movimento para fora de
muros se implementava. Isto apesar de um novo surto
5 | Guimarães,
Praça do Toural
e Terreiro de
São Sebastião,
identificação efetuada
sobre as plantas:
a) De Guimarães,
c. 1569, planta
de autor desconhecido,
in: Coleção Diogo
Barbosa Machado
da Fundação
Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro, Brasil;
b) Planta da Cidade
de Guimarães,
levantada pelo
engenheiro Manoel
D’Almeida Ribeiro,
1863-1867, folhas
1 e 7.
1. Igreja de
São Sebastião
2. Chafariz do Toural
3. Alfândega
4. Igreja de São Paio
a
b
monumentos 33
DOSSIÊ
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6 | Guimarães,
Campo da Feira,
identificação efetuada
sobre as plantas:
a) De Guimarães,
c. 1569, planta de
autor desconhecido,
in: Coleção Diogo
Barbosa Machado da
Fundação Biblioteca
Nacional, Rio de
Janeiro, Brasil;
b) Planta da Cidade de
Guimarães, levantada
pelo engenheiro
Manoel D’Almeida
Ribeiro, 1863-1867,
folhas 8 e 9.
1. Igreja dos
Santos Passos
de Nossa Senhora
da Consolação
2. Colegiada de
Nossa Senhora
da Oliveira
a
propagandístico de reafirmação nacionalista, que se
desenvolveu com a Restauração (e de que são exemplares as obras literárias de Gaspar Estaço e de Torcato Peixoto de Azevedo), ter tido a sua maior expressão
formal na nova capela-mor da colegiada, símbolo da
independência que D. João IV colocara sob sua proteção em 1645. Ordenada em 1674 por mais um monarca, D. Pedro II, em busca de legitimação dinástica e do
superavit da fortaleza afonsina, no seu retábulo-mor,
pintado em 1665, representaram-se as batalhas de Ourique e de Aljubarrota e a entrega, por D. Afonso Henriques e D. João I, das armas dos inimigos derrotados
a Nossa Senhora da Oliveira48. Sinal dessa expansão
institucional para fora de muros foi a construção, junto da torre da alfândega, adossada à muralha e frente
à nova paroquial de São Sebastião, de uma alfândega
em 1610. Sucedeu a uma anterior, localizada na Praça
Maior de Nossa Senhora da Oliveira, destruída por um
b
incêndio, onde se expunham os produtos provenientes de fora e destinados à venda na vila.
Frente à alfândega, entre as igrejas de São Sebastião
e de São Francisco, formou-se um terreiro onde foi colocado o pelourinho em 1588. O espaço era pontuado
pela Torre Velha da muralha, que ostentava no alto
um nicho com a imagem de São Francisco. No extremo oposto, foi erguido um calvário sobre um arco
triunfal de pedra, por onde passavam as procissões
que desciam ao adro terreiro, frente à igreja do convento, designado Carvalhos de São Francisco49.
A norte do Terreiro de São Francisco, o Campo da
Feira, atravessado pelo mesmo rio Herdeiro que banhava a Zona de Couros, abria-se entre a Porta da
Senhora da Guia e, no seu extremo nascente, uma capela, dedicada a Nossa Senhora da Consolação, construída em 1594. A capela estava alinhada com a porta
e a torre da colegiada; no século XVIII, esse alinha-
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monumentos 33 dossiê
7 | Augusto
Roquemont, Chafariz
do Carmo, c. 1842,
atualmente no Museu
Nacional de Soares
dos Reis, Porto,
fotografia de José
Pessoa, 1995.
8 | Guimarães,
Largo do Chafariz do
Carmo, identificação
efetuada sobre
a Planta da Cidade
de Guimarães,
levantada pelo
engenheiro Manoel
D’Almeida Ribeiro,
1863-1867, folha 12.
A planta foi trabalhada
pelos autores no
sentido de ressaltar
a situação urbana
preexistente
ao projeto de arranjo
do Largo do Carmo.
1. Convento
do Carmo
2. Capela da Senhora
da Boa Hora
(ou da Boa Morte)
3. Passo da Paixão
4. Chafariz do Carmo
mento será reforçado pela Igreja dos Santos Passos,
erguida por André Soares no mesmo local da capela,
concluída em 1785. A obra barroca, porém, adicionou
uma síntese material ao geometrismo espacial abstrato do alinhamento dos finais do século XVI: entre a
igreja, a escadaria que a precede e a porta, André Soa-
res colocou uma alameda de balaústres rematados por
estatuária votiva, que, como um íman, atraiu as duas
extremidades do campo.
Tempos de doença e de peste (em princípios e finais
do século XVI) e a fuga das populações para junto
de uma capelinha da invocação de São Roque, situa-
monumentos 33
da num vale ameno, costa acima, nas faldas da serra
de Santa Catarina, chamam a atenção para a ocupação esparsa de subúrbio que se ia formando além do
Campo da Feira e da Zona de Couros. As margens da
cidade acomodavam modestos recolhimentos. Numa
pequena casa térrea junto da capela, um eremitão ensinava a doutrina cristã aos aldeãos. Acorreriam também os filhos de pessoas principais da vila, a que se
juntariam mais companheiros. Principiava assim um
eremitério com uma Capela do Bom Jesus do Calvário, com um (...) delicioso jardim (...) com árvores e
flores, um bosque, (...) uma excellente fonte rustica e
tosca (...), as figuras dos Passos da Paixão de Cristo —
um sítio de santidade cercado de paredes entrelaçadas
de capelinhas50. Daí subia-se ao alto da serra, à Capela
de Santa Catarina, da apresentação dos religiosos de
Santa Marinha da Costa. A piedade popular de Seiscentos tomava conta do monte sobre a cidade.
Das casas da cidade, algumas têm serventia para
a muralha: (...) debaixo das sombra[s] das parreiras
que têm em cima della (…); daí, (…) huma alegre
vista (...)51 espraia-se sobre os arredores. Augusto Roquemont pintaria um desses lugares de habitar com
árvores frondosas, como fundo de uma cena do quotidiano, recortada num largo vizinho de sua casa52,
calçada acima da Rua de Santa Maria. Povo, um grande chafariz de espaldar com tanque retangular — o
Chafariz do Carmo —, um Passo da Paixão. Por cima
do chafariz assoma uma torre com ameias, apesar de
a direção da vista não deixar ver o Paço dos Duques.
Estava aí como memória e ideia de património.
Num outro tempo, numa outra imagem, ocorrera já idêntica reinvenção iconográfica. Numa enor
9 | Tela de D. Mafalda
de Fortado, 1737,
atualmente na
Ordem Terceira
de São Francisco,
Guimarães.
DOSSIÊ
me tela, datada de 1737, proveniente do Mosteiro de Santa Marinha da Costa e atualmente depositada na Ordem Terceira de São Francisco, surge
sentada num trono a rainha D. Mafalda, esposa de
D. Afonso Henriques, fundadora do Mosteiro de Santa
Marinha. Este é representado, à sua esquerda, num
plano recuado, a meia altura da encosta da Penha,
com a igreja exibindo uma fachada retábulo e, junto dela, na zona do claustro, o que parece ser uma
série de galerias abertas para a paisagem. Mais interessante que isso, porém, é o facto de o primeiro
plano desse ponto de vista ser ocupado pelo Paço
dos Duques e a muralha: na depressão entre eles e o
mosteiro, numa zona de hortas, o artista pintou Guimarães, destacando as agulhas das torres das igrejas.
A vila, porém, nunca poderia estar aí, pois se localiza
ad radicem montis latito, a sul do castelo e do paço;
no século XVIII, era a realidade urbana que se adaptava à mitológica imagem da cidade.
José Ferrão Afonso
Docente da Escola das Artes da Universidade
Católica Portuguesa/Centro Regional do Porto
Investigador do CITAR/Artes
Bolseiro de pós-doutoramento da FCT
Marta M. Peters Arriscado de Oliveira
Docente da Faculdade de Arquitetura
da Universidade do Porto
Investigadora do CEAU/FAUP
Sílvia Ramos
Arquiteta
Bolseira de doutoramento da FCT
Imagens: 1: autores; 2 a 4, 5a e 6a: Sociedade
Martins Sarmento; 5b e 6b e 8: Arquivo Municipal
de Alfredo Pimenta; 7: Direção-Geral do Património
Cultural/Arquivo de Documentação Fotográfica;
9: Ordem Terceira de São Francisco.
N OTA S
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Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA — Castelologia medieval de Entre-Douro-e-Minho:..., pp. 24-26, passim. Nos documentos citados pelo padre Avelino de
Jesus da Costa, surgem numerosas referências a esses montes castrenses que
circundam o território do vale de ambas as Aves (Ave e Avicella): monte Santa
Marta (Falperra), monte Outino, monte Espinho, monte Cavalo (uma cadeia
de montes que se alonga entre os rios Vizela e Ave), monte Latito, monte de
São Miguel o Anjo, monte Sancto Romano (Briteiros), monte Telarias (Serrana),
monte de Penido (Souto). O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga,
vol. II, passim; Idem, “Povoamento e colonização do território vimaranense nos
séculos IX a XI”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada..., vol. III,
pp. 140-196.
Santa Maria de Vila Nova de Sande (...) prope illum pontem antiquum qui est
super flumen Ave (...), 1162, e São João Baptista da Ponte (...) prope Ponte
petrina (...), 957. Padre Avelino de Jesus da COSTA — O Bispo D. Pedro e a
Organização da Diocese de Braga, vol. I, pp. 189-190; vol. II, pp. 52 e 223.
A transferência da doação do mosteiro de São João, de Santiago de Compostela (911) para o mosteiro de Guimarães, em 957, denota uma reorientação dos
percursos de devoção religiosa que convergem no polo de centralidade religiosa
e urbana emergente.
Padre Avelino Jesus da COSTA — “Povoamento e colonização do território vimaranense nos séculos IX a XI”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada..., vol. III, p. 181.
Idem, ibidem, vol. III, p. 180.
Alpe Latito, documentado in idem, ibidem, vol. III, pp. 181-182. (...) Subtus
mons latito (...), in Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA — Ob. cit., passim.
Semelhante referência ao montis Latito, em 1021, valida a posição de villa
Margeriti (Mesão Frio, São Romão), na sua doação ao mosteiro. Padre Avelino
de Jesus da COSTA — O Bispo D. Pedro e a Organização da Diocese de Braga,
vol. I, p. 245.
A. de Almeida FERNANDES — “A burguesia vimaranense nos séculos XII e
XIII”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. III, p. 12 e nota 12.
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Idem, ibidem, vol. III, pp. 9-24, em especial pp. 12-17.
Caracterizam unidades de vizinhança (formas de morada e de propriedade,
natureza de assentamentos e de edificações, de campo e de monte); lugares
de bem viver (boas vistas e bons ares, águas) e de assistência (pousada, hospital); pontos de vigilância e de defesa; coordenadas de orientação no espaço
(de cima, de baixo); um telhado, onde só haveria colmaças; carreira e lugares
de travessia do rio (porto de São Cláudio, no lugar de Barco, na estrada para
Braga); altos cristianizados; penhas, o fojo de batida aos lobos; invasores e
colonos (Mouro, Almançor, Francos); os limiares de entrada no território e de
passagem de colos do monte (Portela, Portelinha). Ressalvar-se-ia a necessidade de complementar com documentos, considerando os casos de topónimos que foram intencionalmente alterados, a exemplo de São Miguel de
Negrelos, que se chamou São Miguel do Inferno e, depois, São Miguel do
Paraíso (Avelino de Jesus da COSTA — O Bispo D. Pedro e a Organização da
Diocese de Braga, vol. I, p. 222).
José Mattoso observa que na região de Guimarães, no século XIII, se verificam
determinadas condições históricas, relativamente à posse da terra (uma abundância de alódios, larga presença de propriedade livre, não privilegiada, nas
mãos de funcionários, eclesiásticos e burgueses, a par de propriedade nobre
acantonada em algumas zonas, que obstaram a uma senhorialização extensiva,
considerada, de modo geral, uma característica distintiva de Entre Douro e Minho. José MATTOSO — “As famílias nobres na região de Guimarães no século
XIII”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. III, pp. 319-327.
Maria Adelaide Pereira de MORAES — Velhas Casas de Guimarães, passim.
Aurélio OLIVEIRA — “Rendas e arrendamentos da Colegiada de Nossa Senhora
da Oliveira de Guimarães (1684-1731)”. Congresso Histórico de Guimarães e sua
Colegiada, vol. II, pp. 99-121.
José MATTOSO — “As famílias nobres na região de Guimarães no século XIII”.
Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada, vol. III, p. 324.
A quintã permanecia como lugar de resguardo e reserva na velhice ou tornava-se pouso do jovem morgado e da sua geração e, inversamente, seriam os progenitores a retirarem-se para a casa da vila, na idade e na viuvez. As famílias
residiam também numas e noutras moradas, conforme as estações do ano. No
campo, junto de suas fazendas, refugiavam-se em tempos de peste, deixando a
vila deserta.
A muralha da Vila Alta, provavelmente iniciada por D. Sancho I, monarca
que, na viragem do século XII para o XIII circuitou a cavalo a Vila do Castelo,
criando-lhe um termo, é descrita pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, que
escreve nos finais do século XVII, como (...) muralha bruta, pouco alta e esconça
sem ameias, assentada sobre uma barbacã (...), fazendo notar as diferenças
construtivas para com a sua congénere da Vila Baixa (padre Torquato Peixoto
de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 154). Refere
o memorialista, comparando as duas cercas: (...) a velha é toda tosca, e a nova
de pedra lavrada e coroada de ameias (...). Na sua época, as armas de D. Afonso
III ainda se exibiam sobre uma das portas desta última, a da Freiria, depois
designada de Santa Cruz, aberta a nascente, junto do ponto de junção com
o muro da Vila do Castelo, onde se erguia um torreão que fora terraplanado.
Junto da porta da Garrida, que Peixoto de Azevedo chama Garridos, designada
a partir do século XVII, quando no seu exterior se funda o Convento de Santo
António dos Capuchos, erguia-se também um torreão terraplanado em que se
uniam as duas cercas. Ainda segundo o mesmo memorialista, D. Dinis teria sido
o responsável pela conclusão da cerca da Vila Baixa, sendo as suas torres, em
que se encontravam gravadas as armas de D. João I, obra deste monarca (Idem,
ibidem, pp. 316-319).
Idem, ibidem, p. 163. As memórias da origem e do espaço de domínio da cidade
continuariam a ser encenados ritualmente em procissões, nos momentos em
que urgia implorar auxílio divino: em tempo de peste, ofertando três dias de
Ladainhas, o primeiro a São Miguel de Creixomil, o segundo, à Capela de Santo
André, no subúrbio, e o terceiro ao Mosteiro de São Torcato; ou ainda, cercando a vila, já unida, com um rolo de cera branca, levado em oferta ao Espírito
Santo. Com o andar dos tempos, o circuito reduzir-se-á a uma ida simbólica aos
arrabaldes, ora ao Convento de São Domingos, ora ao de São Francisco (Idem,
ibidem, pp. 351-352).
D. João I oferece à Senhora da Oliveira o loudel que vestiu sobre as armas, na
batalha de Aljubarrota; é uma peça de vestuário ornamentada com ramagens
que o tempo e o uso em procissões deliu.
O padre Torquato Peixoto de Azevedo refere que a Igreja de Santiago fora templo
de Ceres (padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da
Antiga Guimarães, p. 331). O padre António Carvalho da Costa acrescentaria
que se acharam medalhas e uma inscrição no local junto à igreja, aquando
da derrocada da torre, em 1559 (Corografia Portugueza, e Descripçam..., vol. I,
pp. 24-25).
A disposição de rua inserida numa praça, no enfiamento de um edifício público
qualificado, constitui uma das morfologias da cidade desenhada no período
medieval e no moderno. O exemplo de Viana do Castelo — a Rua do Poço,
na sua relação com o Largo da Matriz — oferece o enquadramento à situação
observada em Guimarães.
Semelhante forma de traçar a sinuosidade, em função da pendente do terreno,
pode ser observada, por exemplo, em Vila do Conde, na Rua da Igreja. Em Guimarães, o intuito de defesa parece evidente no modo como a estrada de Braga
se encaminha pela Rua de Santa Luzia, em direção à vila, e termina num último
segmento curvo que retira qualquer visibilidade na aproximação à torre e porta
de Nossa Senhora da Graça.
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Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘de Guimarães’ e ‘de Vila do Conde’, da Biblioteca Nacional do Brasil”. Passado & Presente para o Futuro..., p. 3.
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/fernandes_as -plantas -de-guimaraes-e-de-vila-do-conde.pdf.
Amélia Polónia data a planta de Vila do Conde de entre as décadas de cinquenta
e de setenta do século XVI, com incidência particular na de sessenta (Amélia
POLÓNIA — Vila do Conde, um Porto Nortenho na Expansão..., vol. I, p. 723).
Rafael Moreira situa-a entre 1568-1570 (Rafael MOREIRA — Os Grandes Sistemas Fortificados..., p. 152).
Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘de Guimarães’ e ‘de Vila do Conde’, da Biblioteca Nacional do Brasil”. Passado & Presente para o Futuro..., p. 4:
(…) as plantas são, em tudo, exactamente iguais, variando apenas no conteúdo,
naturalmente (…).
António CALDAS — Guimarães. Apontamentos para a sua História, p. 326 e
Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães; Sociedade Martins Sarmento, 1989, p. 53. Ambas as referências apud Mário Gonçalves FERNANDES —
“As plantas ‘de Guimarães’ e ‘de Vila do Conde’, da Biblioteca Nacional do
Brasil”. Passado & Presente para o Futuro..., p. 4.
Frei Fernando da SOLEDADE — Historia Serafica Chronologica..., tomo IV,
pp. 699-700.
Idem, ibidem, pp. 701-703.
A menção na planta às (...) hortas de Francisco Carneiro (...) que Amélia Polónia
encontra citadas na mesma época, tendo esse indivíduo sido juiz de fora em
Sintra em 1571, e a representação da Fonte das Donas, que afirma estar por
concluir em 1547 (Amélia POLÓNIA — Vila do Conde, um Porto Nortenho na
Expansão...,, p. 723, nota 47). Esses elementos, contudo, não terão força probatória suficiente.
Rafael MOREIRA — Os Grandes Sistemas Fortificados..., p. 153.
Marisa COSTA — “A construção da Igreja Matriz de Vila do Conde”. Boletim
Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde, nova série, jun. 1994, n.º13,
pp. 12-13, separata.
Idem, ibidem, , jun. 1994, n.º13, p. 12, separata.
Ver, a este propósito: Luís MATOS — A Corte Literária dos Duques de Bragança..., pp. 18-19.
Amélia POLÓNIA — Ob. cit., p. 60.
Refira-se ainda que, na representação da Vila Alta, a sua muralha, ou uma barbacã posterior, que com ela se une, contorna a fortaleza a norte; não o faz, porém,
na totalidade, deixando uma grande abertura frente à Porta de Santa Bárbara, a
poente do castelo. É possível que esse sistema defensivo estivesse, à época, já
derrubado nessa zona. No extremo sul da Vila Alta, o muro que é visível, em que
se rasgou uma porta, pode não pertencer à antiga muralha, mas sim a uma cerca
erguida pelo duque D. Fernando II, entre o paço e a porta da Garrida (cf. José
Ferrão AFONSO; Bernardo José FERRÃO — Guimarães Património Cultural...,
vol. I, pp. 55-56). É também possível que a destruição da muralha, ordenada por
D. João I, fosse apenas de caráter simbólico e, nesse caso, o pano de muro visível
na planta pertença ainda, pelo menos parcialmente, à muralha original.
Em 1517, encontra-se em Azurara, a prover a obra de certa igreja a mando
do duque. Nesse contexto, Gomez Paez escreve a D. Manuel I, comunicando
que estivera com frei João Chaves e que este teria manifestado a intenção de
(...) ir a Castella ver hu mestre Adriano, que foi mestre do principe ou rei de Castella, que he alemaão (...). Diccionário Histórico e Documental dos Architectos,...,
vol. I, p. 209.
A. Moreira de SÁ — A Universidade de Guimarães no século XVI (1537-1550),
pp. 15-16.
Idem, ibidem, p. 17.
Idem, ibidem, p. 48.
Ver: Mário BARROCA — As Fortificações do Litoral Portuense, pp. 25-27. Segundo Barroca, a reforma empreendida por D. Miguel, que estaria concluída
por 1529, terá incidido sobretudo na construção de uma nova capela-mor e na
encomenda de mobiliário. Com efeito, mestre André Siciliano, (...) mestre das
obras de marcenaria que o Senhor Bispo manda fazer no dito mosteiro (...), ou
(...) mestre dos coros (...), deverá ter construído um novo coro para a igreja,
mas apenas em 1536. José Ferrão AFONSO — “A herança do ‘muratore’ e o
caminho de Coimbra: ‘consuetudo’, ‘sprezzatura’ e a arquitectura religiosa do
Noroeste português na segunda metade do século XVI”. Congresso Histórico de
Amarante..., II vol., tomo I, p. 237, nota 180. Em 1537-1539, mestre André será
responsável por outro coro, o da Sé do Porto e, em 1545, por uma cúpula com
lanternim, em madeira, lançada sobre o cruzeiro da mesma igreja.
Idem, ibidem, p. 237, nota 180.
Iniciado, c. 1420-1422, por D. Afonso (1380-1461), conde de Barcelos e, a partir
de 1442, primeiro duque de Bragança. D. Fernando II casou com D. Isabel,
sobrinha de D. Constança de Noronha, segunda mulher do primeiro duque
D. Afonso, o que o terá aproximado da vila; receberá nesta uma série de privilégios, destacando-se entre eles o padroado de Nossa Senhora da Oliveira e de
todas as suas igrejas e conventos. É possível, por isso, que tivesse prosseguido com as obras no paço, interrompidas após a morte de D. Afonso; projetou
também, pouco antes da sua morte, em 1483, algumas intervenções urbanas
na Vila Baixa.
Padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, p. 155.
Seria de salientar, também, o Convento de Santa Clara. O enquadramento dado
à planta de Guimarães e o desenho desta edificação relacionam-se entre si.
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A representação do convento toma uma posição oblíqua perfeitamente definida
a 45º.
Na praça do Toural pode ler-se: (...) Esta este chaõ mais baxo q o tabolro dos
paços . 140 . p. / E mais alto q ho de s. Lazaro . 140 . p. (...). E junto ao alçado
do Paço dos Duques: (...) Esta esta caza / mais alta q / o toural 140 p. (...).
Albano BELLINO — Archeologia Christã, p. 53.
A diferença consiste na posição atribuída aos suportes do que poderão ser galerias das quadras de cada uma das edificações, da qual se deduz uma distinta
relação entre pavimento de galerias e espaço exterior.
Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Guimarães: Duas Vilas, um só Povo...,
p. 319.
A igreja do Convento de São Domingos, tal como numerosos arruamentos
urbanos, que eram ladeados por pórticos, concorria para o ornamento e serviço da cidade com os seus alpendres da frontaria e da fachada lateral para
a rua.
Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Ob. cit.
A. L. de CARVALHO — Os Mesteres de Guimarães..., vol. VI, pp. 49-50.
D. João I é representado com o loudel ornamentado com ramos de oliveira que
oferecera à Senhora da Oliveira. Segundo o padre António Carvalho da Costa,
ainda em Seiscentos era tradição aqueles que partiam — fossem militares
para as guerras da Restauração ou embarcados para as partes do mundo —,
levarem um ramo da oliveira da praça da Colegiada, com o qual esperavam alcançar a proteção de Nossa Senhora (António Carvalho da COSTA — Ob. cit.,
pp. 49-50).
O terreiro do pelourinho, sobre um muro de contenção, veio resolver o problema da diferença de cotas muito acentuada entre a muralha e a depressão
dos Couros. A entrada na Igreja de São Francisco, do lado poente, fazia-se
por uma larga alpendrada com quatro naves e quatro tramos. Com porta
para o adro, localizaram-se as importantes escolas públicas do convento,
que funcionaram durante mais de duzentos anos. Este espaço comunicava
com a Porta da Senhora da Guia por uma rua, a Detrás do Muro, em que
seriam construídos, no primeiro quartel do século XVII, a igreja e o hospital
de São Dâmaso.
(...) Todo este sitio de santidade é cercado de paredes, e pelas partes do norte,
nscente, e poente é a parede entrelaçada de capellinhas em que se manifestam
os Passos da Paixão de Chirsto, do Horto até ao Calvario, as quaes tem as portas
para dentro da cêrca, e para fóra janellas com grnades de ferro, para que o povo
possa fazer a sua oração (...). Padre Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias
Ressuscitadas da Antiga Guimarães, pp. 354-355 e 505.
António Carvalho da COSTA — Ob. cit., p. 54.
Na planta de Quinhentos este largo já se encontra representado. Situava-se na
margem esquerda da Rua da Infesta, já nas proximidades da Vila do Castelo,
frente ao local onde se fundaria, nos finais do século XVII, o Convento do Carmo. No mesmo local onde se ergueria, mais tarde, uma capela com a invocação
do Senhora da Boa Hora, uma praça quadrangular tem, nos extremos nascente
e poente, dois acessos, o primeiro dos quais é parcialmente ocupado por uma
construção de planta retangular. Não é feita, na abundante bibliografia vimaranense, nenhuma referência a esse espaço.
B I B L I O G R A F I A
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19
20
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
O centro histórico
de Guimarães:
formulações, desígnios, planos e substância
M Á R I O G O N Ç A LV E S F E R N A N D E S
Quando se fala de centros históricos, em Portugal
ou nos países europeus de forte espessura temporal urbana, o nosso imaginário recria uma imagética
específica que se consubstancia numa estética que
nos transporta para uma morfologia específica e nos
recorda uma vivência secular essencialmente marcada pela interioridade. Dentro dos muros defensivos
da cidade esperamos encontrar a malha presumivelmente medieval, densa e circunscrita, que se abre,
fora de portas, para o advento da cidade ampla, num
quase arquétipo da modernidade. O mesmo sucede
quando, no caso vimaranense, associamos a expressão “centro histórico” a um território que se confina ao “casco medieval” admitindo como evidente
a destrinça entre o que esteve encerrado e o que se
expandiu depois. Assim se compreende a razão do
ajustamento ao perímetro sensivelmente definido
pelo traçado das segundas muralhas medievas da
área classificada pela UNESCO como Património Cultural da Humanidade.
No entanto, embora instituições como a UNESCO
ou a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC)
utilizem aquela expressão nesta estrita abrangência,
no caso de Guimarães, como em relação à generalidade das aglomerações urbanas portuguesas, os
centros históricos poderiam, sem perda valorativa
ou patrimonial e merecendo, por isso, cuidados regulamentares e operacionais decorrentes dessa consideração, corresponder às áreas gizadas até meados
do século XIX, anteriores, portanto, às expansões e
transformações intensificadas com o fontismo e decorrentes das obras portuárias, da estruturação da
rede de estradas reais e da introdução do caminho-de-ferro. Querendo-se uma data pode-se, simplificando, relevar como marca temporal a criação do
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, em 1852, mas a principal destrinça, claramente
diferenciadora, reside na mudança que resulta do
processo de intensificação coevo de urbanização
estreitamente relacionado com a maquinofatura e a
emergência da cidade industrial em oposição à das
corporações dos ofícios.
Desta opção decorre que, pelo menos potencialmente, os centros históricos deveriam corresponder
às malhas delineadas e consolidadas antes da construção da cidade contemporânea, o que, frequentemente, corresponde às áreas urbanas estruturadas
até ao século XVI, já que, de facto, se excetuarmos
as cidades de fronteira pela importância das fortificações abaluartadas seiscentistas ou as reconhecidas e
localizadas intervenções pombalinas e almadinas do
século XVIII, na maioria das povoações o essencial
do plano urbano que encontramos em meados do século XIX estava definido na centúria de Quinhentos.
No caso de Guimarães, basta a simples e liminar
comparação entre as plantas dos séculos XVI e XIX
para o comprovar. As diferenças entre ambas são
diminutas, confirmando-se o que a investigação anterior ao conhecimento do documento quinhentista
afirmava ao referir que (...) ao terminar o século XV,
divisamos já um traçado que, não obstante algumas
alterações, se irá prolongar até ao século XIX (...)1. De
facto, a divulgação em Portugal da planta De Guima-
Em Guimarães, como na generalidade das aglomerações urbanas
portuguesas, os centros históricos poderiam, sem perda valorativa
ou patrimonial, corresponder às áreas gizadas até meados do
século XIX, ou seja, às malhas delineadas e consolidadas antes
da construção da cidade contemporânea. Com maior precisão
e utilizando referências da atualidade, a área objeto deste estudo
pode identificar-se como a “zona tampão” definida concomitantemente
com a classificação como Património Cultural da Humanidade
e assumida como área de intervenção da Divisão do Centro Histórico
da Câmara Municipal de Guimarães. Visando reconhecer a sua
evolução desde a segunda metade do século XIX, revemos os
planos e os projetos gizados, a delimitação das áreas afetadas
e a identificação de atores e de consequências na conformação
da morfologia urbana da atualidade.
monumentos 33
rães2, elaborada entre 1562 e 1570 e que representa
o aglomerado urbano com o rigor duma escala de
cerca de 1:1100, permitiu verificar que, entre esta e
a planta de 1863, as principais alterações residem
na ausência de algumas partes dos muros medievos,
nomeadamente do traçado meridional do primeiro
circuito amuralhado3; na eliminação das edificações
adossadas à Capela de São Tiago, dando lugar a uma
pequena praça originalmente inexistente; na abertura do terreiro da Misericórdia, em consequência da
edificação desta em finais do século XVI; na construção da Igreja do Senhor dos Santos Passos no século XVIII e, finalmente, na delimitação do recinto do
mercado municipal. Algumas edificações singulares,
como a imagem iluminista imposta em 1791 às fachadas do Toural viradas a poente ou a construção
do Convento do Carmo (século XVII) e da Igreja de
São Pedro (século XVIII), embora qualifiquem a paisagem urbana, não promoveram alterações significativas da sua malha.
Parece agora explícita a razão por que abordamos o centro histórico de Guimarães num sentido
alargado, entendido como uma parte da cidade cuja
abrangência vai para além do casco medieval, que se
contém entre os rios de Covros e Svyo, para utilizar
a grafia da planta quinhentista, e que foi genericamente estruturada até ao século XVI. Com maior precisão e utilizando referências da atualidade, a área
objeto deste estudo pode identificar-se como a “zona
tampão” definida concomitantemente com a classificação como Património Cultural da Humanidade
e assumida como área de intervenção da Divisão do
Centro Histórico da Câmara Municipal de Guimarães
(CMG). Visando reconhecer a sua evolução desde a
segunda metade do século XIX, revemos os planos e
os projetos gizados, a delimitação das áreas afetadas
e a identificação de atores e de consequências na
conformação da morfologia urbana da atualidade.
Delimitações e planos
São vários os contributos, na sua maioria publicados ao longo das últimas décadas, pertinentes
para o conhecimento da evolução da morfologia do
centro histórico de Guimarães4, pelo que os factos
são conhecidos e o faseamento está, no fundamental, definido. Para o período aqui abordado e numa
cronologia estabelecida em seis fases, desde o remoto século X até 1974, Bernardo Ferrão e José Ferrão
Afonso definiram, numa primeira versão, a destrinça
entre A expansão ecleticista e industrial da cidade
(meados do séc. XIX a 1924) e A ampliação e renovação moderno-monumental da cidade (1925 a 1974)5.
Por sua vez, concomitantemente com esta, a periodização adotada pela UNESCO referencia as mesmas
duas fases, mas introduzindo pequenos ajustes e
denominando-as Do ecletismo ao período industrial
(1863-1926) e Expansão moderna (de 1926 aos nossos dias)6. Entre ambas, o pormenor diferenciador é
DOSSIÊ
a definição da fronteira entre os dois períodos, com
os primeiros a considerarem 1925 como o início da
fase seis, de forma a integrar o plano do capitão Luís
de Pina, referindo-se no sítio da UNESCO uma data
condizente com uma periodização menos casuística7. Além disso, em ambos os casos existem propositadas imprecisões, porque uns consideram (...)
meados do século XIX (...), quando outros escolhem
a data correspondente ao início do levantamento
para o Plano de Melhoramentos da Cidade de Guimarães (1863), prolongando até (...) aos nossos dias
(...) o que os primeiros limitaram a 1974.
Embora se devam considerar as particularidades
da evolução de cada aglomerado urbano, quando se
pretende precisar limites cronológicos deve optar-se por aqueles que, intrinsecamente, se adequam
ao percurso da generalidade dos aglomerados urbanos de uma região ou de um país. Neste sentido,
enquanto delimitadores de grandes períodos política, económica e socialmente distintos, a criação do
Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria,
em 1852, o fim da Primeira República, em 1926, e a
revolução de abril de 1974 são referenciais genericamente adequados para um faseamento geral do planeamento e das transformações da morfologia urbana das cidades portuguesas, independentemente de
prolongamentos ou retardamentos casuísticos, bem
como, naturalmente, de necessárias subdivisões de
aprofundamento do conhecimento.
Clarifique-se, então, que, no caso concreto da área
correspondente ao centro histórico de Guimarães,
a referida “zona tampão”, de 1852 a 1926 decorreu
uma fase genericamente caracterizada pelo “livre
trânsito” e a salubrização, consubstanciados nos projetos de estradas do poder central, no Plano de Melhoramentos da Cidade de Guimarães (1863-1867), nos
contributos da Comissão de Melhoramentos (1869),
nas avenidas da estação (década de 1890) e na ação
de Mariano Felgueiras (1914-1926); entre 1926 e
1974 verificou-se a tendencial monumentalização
subjacente à ação da Direção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais (DGEMN), enquanto paralelamente, acontecia uma fase de planeamento urbano
que primeiro assumiu morfologias da cidade-jardim
e depois derivou para propostas modernistas, como
as versões do Anteplano de Urbanização da Cidade
de Guimarães (1949 e 1953) e os planos parciais para
a “zona noroeste” (1957, 1969 e 1971) bem evidenciam; a partir de 1974 assinala-se a retoma da importância da cidade tradicional herdada e a convicção da
necessidade da recuperação dos centros históricos,
relevando-se a delimitação da Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística (ACRRU, 1979),
o Plano Geral de Urbanização de Guimarães (1982)
e a ação do Gabinete do Centro Histórico/Gabinete
Técnico Local, coroada com a classificação como
Património Cultural da Humanidade pela UNESCO
(2001) e continuada até à atualidade, numa gestão de
processos quotidianos ou de exceção, como os enquadrados na Capital Europeia da Cultura (2012).
21
22
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Dos segmentos de reta à “pata de ganso”
(1852-1926) ]
As ideias e intenções de infraestruturação do
país eram anteriores, algumas setecentistas, mais
ou menos filiadas no fisiocratismo, contudo, apenas a partir de meados do século XIX, primeiro nos
anos quarenta com o Cabralismo e, principalmente
depois, a partir da ação de Fontes Pereira de Melo,
num contexto mais favorável de estabilidade política
e de expansão económica, se desenvolveu um ciclo
de obras públicas promovidas pelo poder central que
dotaria o país com uma rede de estradas macadamizadas, com ferrovias e com melhores condições
portuárias. Quer as novas estradas, quer a inovadora
ferrovia, ou seja, as que importam para o caso vimaranense, articularam as aglomerações urbanas e implicaram transformações na respetiva malha urbana,
umas de iniciativa e financiamento do poder central
e outras decorrentes da ação do poder municipal,
em ambos os casos alimentadas e incentivadas pela
ideia do progresso pelos melhoramentos materiais,
que marcava a ação política e a legislação coeva.
Quase todas as estradas do Norte do país foram
iniciadas entre 1853 e 18678, estabelecendo-se, simultaneamente, o necessário enquadramento legal que,
apesar dos inúmeros diplomas e acrescentos, alterações e precisões, se condensou num decreto, assinado a 31 de dezembro de 1864 e publicado em janeiro
de 18659, contendo uma primeira parte estritamente
dedicada às questões técnicas, de construção e de
conservação de estradas, e tratando na segunda dos
planos de melhoramentos urbanos.
Iniciava-se, então, um período morfológico consentâneo com as premissas do “livre trânsito” e da
salubrização, bem marcado na maioria das povoações portuguesas e que, como mencionado, de alguma forma, decorreu da construção da rede viária e
ferroviária, de iniciativa, incentivo e/ou permissão
do poder central, mas também da vontade política
municipal e da organização das finanças municipais;
da renovação do conhecimento no âmbito higienista;
da legislação elaborada a partir das necessidades da
construção e “polícia” de estradas que integrava as
ideias coevas sobre planeamento urbano. A intervenção municipal dirigiu-se, predominantemente, para o
interior das povoações, a do poder central para os
seus acessos e atravessamentos, sendo ambas complementares e estruturadoras da cidade.
A intenção da CMG de proceder ao levantamento de uma planta geral da cidade foi sinalizada logo
em 1859 e seria renovada pelo presidente da câmara,
comendador António Alves Carneiro, em março de
1863, no âmbito da discussão do orçamento camarário para o ano económico de 1863-1864. A ideia
passava por possuir uma imagem geral da povoação onde constassem as propostas de intervenção de
maneira a que os melhoramentos fossem pensados
de uma forma mais “regular”. A escritura com o engenheiro Manoel de Almeida Ribeiro foi assinada a
2 de outubro de 1863 e, em janeiro de 1865, foi publicado o decreto que formalizou a existência legal
dos planos de melhoramentos, encontrando-se então
Almeida Ribeiro a elaborar a proposta que se materializaria na Planta da Cidade de Guimarães e respetiva Memória Descritiva.
Plano de Melhoramentos delineado pelo
Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro (1867):
Arruamentos e alinhamentos traçados
“Passeio Público” previsto
Regularização e abertura de novas praças
Arruamentos para a localização
do “bairro para a classe pobre”
Escolas primárias previstas para rapazes
e raparigas
Propostas de alteração e acrescento ao plano
do Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro, aprovadas
pela Comissão de Melhoramentos (1869)
Arruamentos e alinhamentos traçados
pelo Eng.º José Taveira Carvalho Pinto
de Menezes, sobre a planta do Eng.º Manuel
de Almeida Ribeiro
Traçado conjectural dos arruamentos
e alinhamentos descritos
Prolongamento do “Passeio Público” previsto
0
100 m
pelo Eng.º Manuel de Almeida Ribeiro
1 | Guimarães, Plano
de Melhoramentos da
Cidade de Guimarães,
da autoria do
engenheiro Manoel
de Almeida Ribeiro,
1863-1867,
reconstituição
elaborada a partir de
informação extraída
de: Arquivo Histórico
Municipal de Alfredo
Pimenta, Planta da
Cidade de Guimarães,
1867 e AHMAP, Livro
de Actas da Comissão
de Melhoramentos das
Cidade de Guimarães,
1869.
monumentos 33
DOSSIÊ
23
2 | Guimarães,
intervenções no plano
urbano, 1850-1926;
informação colocada
sobre base
cartográfica cedida
pela Câmara Municipal
de Guimarães, 2000.
Espaços públicos alinhados e/ou alargados
Espaços públicos abertos
Caminho-de-Ferro
0
As explicações que encontra para as suas opções
são, por si só, reveladoras da sintonia com os valores
urbanísticos da época, colocando a ênfase na facilitação do “livre trânsito” e na salubrização, no caso
revelados pela importância e preocupação relativas
ao alinhamento e uniformização da largura dos arruamentos, bem como pelas propostas de articulação do
sistema viário e de demolição de núcleos de edificações insalubres, assim se alargando ou abrindo praças, de tudo decorrendo o aformoseamento da cidade.
A preocupação com a articulação do plano urbano
é clarificada na proposta de abertura de uma via que
ligaria as saídas da cidade e que permitiria a comunicação desde a estrada para Famalicão, a poente e
nas proximidades de São Lázaro, até São Francisco e
daqui ao Campo da Feira, a nascente, a partir de onde
se saía para Fafe. Dessa via arrancaria, no Campo de
São Francisco, um arruamento que passava a nascente da Capela de São Dâmaso e, rasgando a muralha,
permitiria a ligação direta ao centro do poder municipal, na Praça da Oliveira. Além disso, acrescentava
o rasgamento do núcleo medieval através do prolongamento, para nascente, da rua que deveria articular
o mercado municipal com a Porta de São Bento, cuja
abertura a câmara privilegiava, nas palavras do autor,
e que originaria a atual Rua Gil Vicente.
Em síntese, visava-se regularizar as vias existentes, particularmente na área sudoeste, melhorar as
100 m
ligações da parte alta com a parte baixa e, principalmente, das áreas a poente e a nascente do núcleo
medieval, constituindo-se aquela, polarizada pelo
novo mercado, como a área privilegiada de expansão, particularmente depois da articulação do mercado com a Praça do Toural, através da abertura da
Rua de Paio Galvão, da responsabilidade da Direção
Distrital de Estradas por ser parte integrante da estrada para Braga, de cujo projeto o poder municipal
tinha conhecimento desde 1863. Finalmente, Manoel
de Almeida Ribeiro delineou a abertura de quatro novas praças, três no interior do núcleo medieval e uma
entre o Toural e São Francisco, propôs a construção
de um passeio público envolvendo o castelo e o Paço
dos Duques de Bragança, identificou a localização de
escolas primárias, para ambos os sexos, e delimitou a
área para a construção de um (...) bairro para a classe
pobre (...).
Tendo desenvolvido o seu plano entre 1863 e 1867,
Almeida Ribeiro adequou as propostas com o articulado do decreto de 1864, como o demonstra o facto
de nenhum dos novos arruamentos propostos possuir menos de 10 metros de largura, como aquele
decreto impunha. Além disso, pela sua adequação à
realidade coeva, as propostas de Almeida Ribeiro servirão de guia e de inspiração para todos os projetos
subsequentes até ao primeiro quartel de Novecentos,
começando, desde logo, pelos da “comissão de me-
24
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
3 | Guimarães,
intervenções no plano
urbano segundo
a origem do
financiamento,
1850-1926;
informação colocada
sobre base
cartográfica cedida
pela Câmara Municipal
de Guimarães, 2000.
Entidades financiadoras:
Poder central (MOPCI)
Poder local (Câmara Municipal)
Caminho de Ferro
0
lhoramentos”, que a câmara trataria de constituir por
ser prescrita pelo decreto de 1864 para os municípios
que, além dos obrigados Lisboa e Porto, entendessem
elaborar um plano de melhoramentos.
A Comissão de Melhoramentos de Guimarães seria instalada a 5 de julho de 1869 e, respeitando o
decreto, incluía um engenheiro da Direção Distrital
de Obras Públicas e um representante da autoridade
local de saúde, acrescentando-se-lhes sete elementos
representativos da elite da cidade, como o barão de
Pombeiro ou Francisco Martins de Moraes Sarmento,
que não compareceria a qualquer reunião10. Aliás, a
comissão limitou-se a aprovar as propostas de melhoramentos urbanísticos do “primeiro engenheiro”
distrital José Taveira Carvalho Pinto de Meneses, cujo
discurso monopolizou as seis reuniões realizadas, ao
longo das quais pormenorizou (...) o seu programma de trabalhos (...), cujos (...) capítulos de melhoramentos (...) enumerara logo na primeira reunião,
numa listagem impregnada pelas preocupações urbanas da época11.
No essencial, além de reafirmar as propostas de
Manoel de Almeida Ribeiro, recorrentemente citado
para com ele concordar ou para sugerir pequenos
ajustamentos, Pinto de Meneses acrescentou algumas novas ideias, à época um pouco arrojadas, entre
as quais se sublinham quatro propostas: o prolongamento da via de cintura, que denominou de rua de
100 m
circunvalação, desde Santa Luzia e de São Lázaro até
ao Terreiro do Cano, articulando-a com o mercado;
as duas novas vias retilíneas de atravessamento do
núcleo medieval, uma das quais a atual Rua de Serpa
Pinto, nunca se concretizando a outra; o arruamento
a ligar o terreiro de Santa Clara e a estrada de Fafe,
materializada na atual Rua Nunes Álvares; o alargamento do projeto de passeio público com a inclusão
do Terreiro do Cano.
Revelando a sua formação de “engenheiro de pontes e de estradas” as propostas de Pinto de Meneses
assentavam numa visão abrangente e prospetiva,
pretendendo alargar a articulação das saídas da cidade, melhorar os atravessamentos do núcleo medieval
e aprofundar a centralidade do mercado municipal,
ao propor (...) uma estrada vicinal ligando em volta
dos subúrbios da cidade as estradas de Braga, Fafe,
Stº Thyrso, e Famalicão (...), da qual derivariam novos eixos, (...) novas ruas, ligando a cidade com a
nova estrada vicinal (...). Em contrapartida, os outros
membros repetiram propostas de Manoel de Almeida
Ribeiro, como a edificação de um (...) bairro para
as classes pobres (...), agora denominado (...) bairro
d’operarios (...), ou a necessidade de (...) desmoronamento da igreja de S. Sebastião e o corte da alpendrada da Alfândega (...). O bairro operário apenas seria
retomado na Primeira República, conjugado com a
edificação de novos paços concelhios, preterindo-se
monumentos 33
a ideia, do engenheiro Pinto de Meneses, de instalar
as (...) repartições publicas (...) no Convento de Santa
Clara, onde acabaria por ser instalada a câmara municipal em 1968, depois de um conturbado e longo
percurso. A Igreja de São Sebastião seria derrubada
na década de noventa do século XIX, no âmbito do
processo de construção das avenidas da estação.
Foi António de Moura Soares Velloso, proprietário
e homem de negócios, quem fez chegar o caminho-de-ferro a Guimarães em 1884, ano da realização da
exposição industrial vimaranense. O acesso à estação
ferroviária fazia-se, a partir do Toural, por um conjunto de caminhos estreitos que apenas apresentavam alguma regularidade a partir do palacete de Vila
Flor, por uma via retilínea de 5 metros de largura.
Assim, importava melhorar os acessos da cidade à
estação pelo que, em 24 de março de 189012, quando João Franco, eleito deputado por Guimarães em
1884, era ministro da Fazenda, foi colocada a concurso a abertura de uma (...) estrada de serviço (...)
a ligar a cidade com a estação ferroviária. O projeto
previa uma avenida de 20 metros de largura e 627 de
comprimento, traçada a nascente do palacete de Vila
Flor e ligando o Largo de São Francisco e as proximidades da estação.
Sendo o proprietário do caminho-de-ferro, do palacete e da maioria dos terrenos entre a cidade e a
estação ferroviária, António de Moura Soares Velloso
DOSSIÊ
25
era parte interessada no processo, pelo que, face ao
programa do concurso, apresentaria uma proposta
alternativa que deslocava a avenida para poente do
palacete de Vila Flor, acrescentava uma segunda avenida até ao Campo da Feira e ainda um (...) alinhamento parallelo à estação (...) que articulava as duas
avenidas, prometendo, além disso, tudo concretizar
pelo preço base de licitação do concurso. A proposta
era vantajosa para o Estado, pois, pela mesma verba,
ligava-se a estação à cidade e melhorava-se a articulação com a estrada de Fafe. Além do mais, segundo
o proponente, a solução conciliava (...) todas as opiniões e interesses da cidade de Guimarães (...), onde
se incluíam os do próprio que assim era pago para
urbanizar a maior parte dos seus terrenos13 e com um
desenho em que a disposição das avenidas permitia a
maximização das frentes de rua nas suas propriedades. Estando todos de acordo, celebrou-se o contrato
em 27 de setembro de 1890, prevendo-se a conclusão da obra até 27 de setembro de 1894. Simultaneamente, projetava-se, desde 1893, o primeiro lanço
da estrada municipal entre a estação e a Estrada Real
n.º 32, no lugar do Castanheiro, sabendo-se que, em
1901, apenas faltava eliminar a diferença de nível entre as avenidas e a Estrada Municipal do Castanheiro,
que se transformaria numa nova entrada na cidade.
Entre 1916 e 1926, Mariano da Rocha Felgueiras,
republicano, de 30 anos de idade e quatro de expe4 | Guimarães,
faseamento das
intervenções no plano
urbano, 1850 e 1926;
informação colocada
sobre base
cartográfica cedida
pela Câmara Municipal
de Guimarães, 2000.
Faseamento:
Antes de 1892
1892 a 1910
Após 1910
Caminho de Ferro
0
100 m
26
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
0
a
b
c
d
100 m
riência no poder municipal14, apresentou as propostas por cuja execução se bateu em todo o seu percurso autárquico. Entre todas, publicadas logo em
1916, releva-se o parque do castelo, a edificação de
um bairro operário e a concretização dos paços do
concelho, com assinaláveis consequências no plano
urbano e na morfologia vimaranense. Durante a Primeira República, um tempo de exaltação das virtualidades do poder municipal e das suas competências
e obrigações no melhoramento e no embelezamento
da cidade e na promoção de edificação salubre e
económica, compreende-se o empenho de Mariano
da Rocha Felgueiras na recuperação destes projetos,
debatidos e reafirmados desde 1867.
O parque, envolvendo o castelo e o Paço dos Duques de Bragança, era justificado com argumentos
que incluíam, simultaneamente, o lazer, a reforma
social, o embelezamento e a higiene, a estética, o patriotismo e a preservação do património e, ainda, o
desenvolvimento do turismo. Embora projeto antigo,
proposto no plano de 1867 e ampliado ao Terreiro
do Cano nas propostas de 1869, a ideia do parque
continuava a ser alimentada, como o demonstra o
Projecto do Parque do Castelo de Guimarães, encomendado em 1914 à Companhia Hortícola do Porto15,
e ganhara pertinência com a classificação do Castelo
de Guimarães, do Paço dos Duques de Bragança e da
Igreja de São Miguel do Castelo como monumentos
nacionais, em 1908 e em 191016, entre as primeiras e
inúmeras classificações nacionais oficiais efetuadas
num contexto de valorização dos “monumentos históricos” singulares, crescente desde o século XIX em
Portugal e na Europa e remissível a Ruskin, Viollet-Le-Duc, Boito e Riegl17.
Justificando a necessidade do bairro operário em
termos que evocam a descrição de Manchester por
Engels em 1845, Mariano da Rocha Felgueiras manteve a sua localização no sítio onde Manoel de Almeida Ribeiro o projetara, ocupando a Rua das Hortas
e a travessa e o largo da Fraga, mas estendendo-se
agora até às proximidades da Rua de Serpa Pinto.
A ideia passava pela abertura de uma avenida, com
20 metros de largura, articulando-a com a estrada
para Fafe, que seguia junto à muralha, através de
5 | Guimarães,
contributo para
o processo de
formação de um
retalho do plano
urbano (“pata de
ganso”):
a) Propostas
inseridas no Plano
de Melhoramentos da
Cidade de Guimarães,
da autoria do
engenheiro Manoel de
Almeida Ribeiro, 1867;
b) Propostas
aprovadas pela
Comissão de
Melhoramentos das
Cidade de Guimarães,
1896;
c) Projeto do “bairro
operário” proposto
pelo arquiteto José
Luiz Ferreira, 1916;
d) Parte da Planta
do Projecto Geral
de Melhoramentos,
da autoria do capitão
Luís de Pina, 1924.
monumentos 33
uma rua com 10 metros de largura, formando todo o
conjunto uma imagem em planta que se assemelha
a um “4”. Previam-se cinquenta e oito casas, uma escola e um balneário, e afirmava-se a preocupação de
conseguir alguma diversidade de (...) aspectos, tamanhos e preços (...), com a construção de nove modelos de casas, visando satisfazer quer a classe operária
quer as classes mais remediadas e evitar a imagem
de bairro com o (...) aspecto monótono duma fileira
ou conjunto de casas pobres todas iguais (...). Da autoria do jovem arquiteto José Luiz Ferreira, discípulo
de Marques da Silva, o projeto acrescentava à malha urbana dois segmentos de reta ortogonalmente
entroncados, apresentando um desenho de transição
entre as características estritamente funcionalistas
dos engenheiros oitocentistas e as preocupações de
composição urbana.
Não possuindo recursos financeiros que permitissem a construção de um edifício para cada uma das
“repartições” (tribunal, finanças, registo civil, administração municipal), Mariano Felgueiras optou por
concentrá-las num único edifício, para cuja construção abriu concurso entre arquitetos nacionais, em
1916. Entre onze projetos, apreciados (...) somente
pelo seu valor artístico (...) por todos ultrapassarem os 60 contos previstos18, venceu o do arquiteto
Marques da Silva19, que correspondia ao (...) estilo
arquitectónico regional (...) sugerido pela comissão
nomeada, em 1915, para a escolha do local de implantação. Este deveria ser o centro de uma praça
tendencialmente quadrangular, a abrir bem no meio
do casco medievo a partir de demolições nas ruas do
Espírito Santo e do Gravador Molarinho e na Praça
de São Tiago, retomando-se a ideia de praça proposta
por Almeida Ribeiro em 1867.
As dificuldades financeiras e as perturbações políticas no país, com consequências nas disputas locais
que levariam à queda de Mariano Felgueiras20, adiaram a concretização de quaisquer projetos, apesar
de reafirmados em 1921 pelo presidente da comissão executiva municipal, Francisco Moreira Sampaio,
que lhes acrescentava a ideia de abertura de uma extensa alameda entre o Toural e o Campo da Feira,
apenas concretizada no Estado Novo. No entanto, reassumindo a presidência camarária em 1923, Mariano Felgueiras voltou a fazer aprovar a concretização
do bairro operário e tratou da aprovação de posturas
que, com base em lei de 1912, lhe permitiam executar as expropriações e controlar a valorização do
solo edificável. A enorme depreciação da moeda e
a inflação galopante em consequência da Primeira
Guerra Mundial levam Mariano Felgueiras a eliminar
a escola e o balneário e a atribuir a construção do
bairro a uma sociedade privada, competindo à municipalidade a fiscalização do processo, a concessão
de garantia dos juros do capital investido, a execução das expropriações e a abertura dos arruamentos.
Concomitantemente, retomou os paços do concelho
com o anúncio, em 1924, da escolha de uma diferente
localização considerada, o centro de uma nova e
DOSSIÊ
ampla praça no topo da nova avenida do bairro económico. Conjugavam-se, assim, os projetos do bairro
económico e da praça e edifício municipais, congregados na Planta do Projecto Geral de Melhoramentos,
da autoria do capitão Luís de Pina e apresentado por
Mariano Felgueiras em 1925, que o fez publicar, juntamente com o projeto e memória descritiva do edifício concelhio21.
Foi então o capitão Luís de Pina quem definiu a
imagem final deste pedaço da malha urbana vimaranense, propondo uma nova avenida (...) destinada a
formar ‘pendant’ (...) com a Estrada de Fafe, invertendo o desenho do bairro do arquiteto José Luiz Ferreira e simetrizando a composição num desenho urbano coerente, evocador da clássica “pata de ganso”.
A expressão, de P. Lavedan22, denominava a figura
em planta dos arruamentos focalizados na praça defronte do Palácio de Versalhes, mas aplica-se a este
tipo de desenho de vias, tendo sido utilizada por
F. Távora23, num paralelismo sugestivo, salvas as devidas diferenças de escala. Também o plano urbano
de Letchworth, a cidade-jardim promovida por Ebenezer Howard em 1904 e desenhada por R. Unwin e
B. Parker, contém o mesmo desenho, num conjunto
constituído por uma praça central, “o centro cívico”,
e pelas três avenidas que dela derivam. Aliás, como
referiu B. Gravagnuolo, em relação a Letchworth,
a recuperação de (...) elementos inspirados no monumentalismo clássico, como o traçado em pata de
ganso (...)24, é uma característica de alguns traçados
de cidade-jardim. Finalmente, podem acrescentar-se
outros exemplos potencialmente inspiradores de Luís
de Pina, como as ruas em tridente que divergem da
Piazza del Popolo, em Roma, numa composição também concretizada por partes e concluída no século
XVI, com a abertura da Via Babuíno e com a marcação do ponto de fuga através do levantamento de um
obelisco, já no pontificado de Sisto V25.
Embora não mencione as suas fontes, a proposta de
Luís de Pina adequa-se à tendência coeva para a rejeição de plantas assentes na funcionalidade do segmento de reta e para a recuperação da “exigência estética”
como condicionante do desenho urbano, potenciando
a nova praça municipal com a articulação de todas
as ruas e avenidas de forma a (...) enfrentarem na
direcção dos seus eixos com os Paços do Concelho (...).
De qualquer forma, apesar do esforço de composição
assente na simetria e na perspetiva, o desenho também se adequava às preexistências, evitando expropriações vultuosas e ajustando-se à topografia, como
se verifica na posição da malha ortogonal oriental
que acompanhava (...) o melhor aproveitamento da
directriz das curvas de nível do terreno (...). Em suma,
apoiando-nos nas palavras de Luís de Pina, a proposta
explica-se com (...) motivos de ordem topográfica, de
exigência estética, de medida económica e de fáceis
ligações com o existente (...)26.
Em síntese, do plano do engenheiro Almeida Ribeiro (1867) e das propostas de Pinto Menezes, na comissão de melhoramentos de 1869, ao projeto do bairro
27
28
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
de José Luiz Ferreira (1916) e ao plano de melhoramentos de Luís de Pina (1925) cerziu-se uma malha
urbana característica da contemporaneidade, primeiro derivada da importância funcional dos alinhamentos e dos novos arruamentos retilíneos, depois
da adaptação e da composição do desenho urbano,
num processo de planeamento e de transformação
que compatibilizou heranças e acrescentos.
A ação da DGEMN e os anteplanos
de urbanização (1926 a 1974)
A criação, em 1929, da DGEMN veio clarificar e recentrar um processo de intervenção estatal que, apesar das raízes de 1840 com o restauro do Mosteiro da
Batalha, iniciara a sua institucionalização em 1880,
com a aprovação da Lista dos Edifícios Monumentais
do Reino pela Associação dos Arquitetos Civis e Arqueólogos Portugueses, continuara em 1901, com a
aprovação por decreto da orgânica do Conselho dos
Monumentos Nacionais e a aprovação de critérios de
classificação, prolongara-se entre 1906 e 1910, com a
publicação oficial de listagens classificando 454 imóveis como monumentos nacionais, culminando entre
1924 e 1932, com a legislação que, aprofundando
normas anteriores, definiria as bases de atuação em
relação ao património classificado, ficando a DGEMN
com as competências operativas de intervenção sobre
o património e o Conselho Superior de Belas-Artes, do
Ministério de Instrução Pública, com as competências
normativas de classificação do património e de proposta de zonas de proteção27.
Foi com este enquadramento legal que decorreram
as primeiras intervenções da DGEMN em Guimarães,
escolhida enquanto “berço da nação” como um dos
lugares emblemáticos para as Comemorações dos
Centenários, o que proporcionaria, assim, a concretização de intervenções de restauro no castelo e na
Igreja de São Miguel, ambas a partir de 1936 e concluídas a tempo daquelas comemorações, bem como
no Paço dos Duques de Bragança, iniciadas em 1937
mas apenas concluídas em 196028. Apesar das recorrentes críticas de adulteração do edificado intervencionado e de evidentes provas pontuais, a verdade é
que, como se pode agora comprovar a partir dos perfis
insertos na quinhentista planta De Guimarães, o essencial dos edifícios foi preservado e respeitado, como
foi o caso do castelo, embora o acrescento de um piso
na parte frontal e no corpo norte do Paço dos Duques
de Bragança o tenham tornado num edifício distinto,
de diferentes volumes e monumentalidade. Seria esta
busca de monumentalidade, associada a uma perspetiva que limitava o património ao edifício e encarava o
restauro como forma de sublinhar a singularidade do
monumento, quer intrínseca quer de enquadramento, que implicava o acompanhamento do restauro dos
imóveis classificados por (...) intervenções nos espaços adjacentes, quer para demolição das construções
consideradas histórica e artisticamente desajustadas,
quer por motivos de salubridade ou, ainda, para atingir um melhor enquadramento estético (...)29.
Neste sentido, da ação da DGEMN decorreu uma
importante modificação da morfologia urbana vimaranense, com a demolição do edificado corrente que
compunha os quarteirões da Vila Alta estruturados
pela Rua do Castelo, com o relevar do tríptico constituído pelos edifícios classificados como monumentos nacionais, agora definidores de uma monumental
“colina sagrada”, e estruturando, finalmente, o parque urbano previsto desde o plano de melhoramentos oitocentista, mesmo se o seu desenho final se fica
a dever ao arquiteto Rogério de Azevedo e ao seu conhecimento dos parques dos castelos franceses. Simultaneamente, melhoraram-se os acessos ao parque com
o alargamento da Rua dos Palheiros, marginada por
moradias unifamiliares previstas em projeto pelo arquiteto Faria da Costa, e com a conclusão do prolongamento da Rua de Serpa Pinto30. Assim se concluiu o
projeto iniciado no século XIX de facilitação do atravessamento do núcleo medieval, que desde logo passou a ser o percurso mais utilizado para quem circulava entre o litoral e as terras de Basto, particularmente
incrementado com a continuidade permitida pela oitocentista Rua de Gil Vicente e pela Avenida Conde
de Margaride, aberta entre 1931 e 1940 por solicitação
da junta de freguesia de São Paio e por vontade da
câmara municipal31. Acentuava-se o crescimento da
cidade para a área ocidental, em contraponto à paulatina urbanização da “pata de ganso”, a única parte
concretizada do plano de melhoramentos de 1925.
Pelos anos trinta e quarenta do século XX assistia-se a uma fase de sinais contraditórios, verificando-se
algum impasse em relação ao estagnado e inacabado
edifício dos Paços do Concelho e, simultaneamente,
a uma evidente azáfama decorrente da confluência
de três processos paralelos que, de uma forma ou de
outra, se foram mutuamente condicionando e adequando. Por parte do poder municipal, verificava-se
6 | Guimarães,
Paço dos Duques
de Bragança durante
a intervenção de
restauro levada
a cabo pela DGEMN
(1937-1960),
fotografia de autor
desconhecido,
[1940-1960].
monumentos 33
DOSSIÊ
7 | Guimarães, Paços
do Concelho, edifício
projetado pelo
arquiteto Marques
da Silva, inacabado,
fotografia de autor
desconhecido,
[1940-1960].
8 | Paço dos Duques
de Bragança após
a intervenção levada
a cabo pela DGEMN
(1937-1960) visto
a partir do Largo
Condessa Mumadona,
fotografia de autor
desconhecido,
[1960-1970].
9 | Guimarães,
Avenida dos
Combatentes da
Grande Guerra,
avenida central
da “pata de ganso”,
fotografia de autor
desconhecido, 1953.
a concretização e a conclusão de alguns dos projetos
previstos e iniciados com o plano de melhoramentos
de 1867 e retomados durante a Primeira República,
nomeadamente, o alinhamento, alargamento e abertura de algumas ruas ou a conclusão do bairro económico e da “pata de ganso”, enquanto, por parte do
poder central, se impunha, por um lado, a ação da
DGEMN em relação ao parque da “colina sagrada” e à
sua trilogia edificada e se delineava, por outro lado, o
arranque de uma nova fase de planeamento da cida-
de, ancorada na atuação do engenheiro Duarte Pacheco que, apesar do seu curto percurso como ministro
das Obras Públicas (1932 a 1936 e de 1938 a 1943),
lançaria as novas bases legais, administrativas e processuais do planeamento urbano em Portugal32.
De facto, com o Decreto-Lei n.º 24 802, que fez
publicar em 1934, além de substituir toda a legislação relativa ao planeamento urbano publicada desde 186433, Duarte Pacheco tratou de modernizar a
conceção vigente do planeamento, procurando a sua
29
30
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
sistematização e a institucionalização de uma outra
cultura consubstanciada na figura dos planos gerais
de urbanização, com os quais as câmaras municipais
poderiam desenvolver (...) a transformação do seu
território como agentes activos e intervenientes, através de uma real política de solos (...)34. Contudo, o
processo mostrou-se moroso, com a disponibilização
de cartografia de grande escala a ter que ser organizada pelo poder central e disponibilizando-se as
primeiras plantas aerofotogramétricas apenas a partir de 1941, sendo a planta de Guimarães, na escala
de 1:2000, relativa a 194235. Finalmente, a morte de
Duarte Pacheco, em 1943, permitiu o esbatimento
da conceção do plano como instrumento fortemente
10 | Anteplano
de Urbanização da
Cidade de Guimarães,
da autoria dos
arquitetos Maria José
Moreira da Silva e
David Moreira da Silva,
1949.
regulador e condicionador, abrindo caminho a uma
perspetiva mais orientadora da atividade dos particulares, pelo que a partir de 1946, excetuando-se os
casos de Lisboa e do Porto, se determinaria a suficiência da elaboração de “anteplanos”, instrumentos
implicitamente mais expeditos, mas também mais
ajustáveis e menos convictos.
Duarte Pacheco apoiou-se em reconhecidas figuras do planeamento e do urbanismo europeu, entre
os quais se destacam Donat-Alfred Agache, que terá
influenciado a legislação de 1934 e que coordenou
a elaboração do Plano de Urbanização da Costa do
Sol (1936), e Etienne De Groer, antigo colaborador
de Agache, que elaborará vários planos e anteplanos
monumentos 33
DOSSIÊ
31
11 | Anteplano de
Urbanização da
Cidade de Guimarães:
planta de trabalho, da
autoria dos arquitetos
Maria José Moreira da
Silva e David Moreira
da Silva, 1953.
para cidades portuguesas, perfilhando e adaptando
aspetos decorrentes das ideias de cidade-jardim e
influenciando alguns dos primeiros urbanistas portugueses, como o arquiteto David Moreira da Silva,
que participou com De Groer nos planos de Coimbra
(1940) e de Luanda (1946)36. A visão de De Groer
em relação à cidade-jardim passava pela adaptação
de algumas ideias derivadas diretamente de Ebenezer Howard e pela adoção, para as áreas residenciais,
da morfologia urbana de baixa densidade assente na
opção por moradias unifamiliares dispostas em desenhos inspirados no trabalho de Raymond Unwin37,
que divulgara diversos tipos de traçados tendencialmente curvilíneos e recorrendo a mais ou menos prolixas ramificações em cul-de-sac.
A ação de De Groer incrementaria a opção pelas
morfologias de baixa densidade associadas à cidade-jardim que em Portugal eram já conhecidas e privilegiadas, sendo ideologicamente defendidas pelo poder
político e recorrentemente propostas nos planos e an-
teplanos até aos anos cinquenta do século XX. Assim,
é com naturalidade que se verifica que em ambas as
versões (1949 e 1953) do Anteplano de Urbanização
da Cidade de Guimarães, da autoria dos arquitetos
Maria José Moreira da Silva e David Moreira da Silva,
todas as propostas de áreas residenciais se baseiam na
moradia unifamiliar, condenando-se, em contraponto,
a utilização da “casa-bloco”, como se explicita, com
argumentos ideologicamente inequívocos, na memória descritiva da versão de 194938. Em consonância
com esta perspetiva, além da recuperação de alguns
projetos anteriores, como a abertura de uma via que
continuava para sul a avenida central da “pata de
ganso” e articulava o Largo da Feira com São Lázaro,
o anteplano de 1949 distinguia-se pela demarcação
de um “parque da cidade” na área ocidental e pelo
desenho de áreas residenciais de moradias unifamiliares em todos os quadrantes das periferias, incluindo a
“unwinização” do desenho do bairro oriental previsto
no plano de 1925.
32
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
O anteplano de 1949 seria severamente criticado
pelo Conselho Superior de Obras Públicas, em parecer de 1952, onde se salientava a fraca qualidade e
legibilidade da cartografia apresentada; a necessidade
de remodelar o (...) esquema de novos arruamentos
(...) adequando-o às alterações na rede de estradas
encetadas pela Junta Autónoma de Estradas; a inadequada insistência na continuação do inacabado edifício para os serviços da câmara municipal visto a sua
localização (...) prejudicar o aspecto grandioso do belo
conjunto constituído pelos Paços e Castelo de Guimarães (...) e considerando-se que no local (...) só deveria existir uma vasta praça donde irradiem os vários
arruamentos de penetração na cidade e os de acesso
a esses dois monumentos nacionais (...), sugerindo-se que (...) eventualmente se pudessem aproveitar os
Paços dos Duques de Bragança ou o edifício do actual
liceu [Convento de Santa Clara] para instalação dos
serviços municipais (...); a ausência de proposta de
localização para vários equipamentos, como o tribunal, os correios e a estação rodoviária; a inadequada
localização para o novo edifício do liceu, sugerindo-se
a sua aproximação ao centro da cidade; a necessidade
de reduzir a (...) proporções mais modestas (...) o parque da cidade por estar previsto com (...) proporções
demasiadas em relação à população da cidade (...).
Finalmente, refere-se a necessidade de audição de várias entidades públicas, sublinhando-se a da DGEMN
e alertando-se para o dever de (...) proceder a um estudo completo de todos os motivos artísticos, históricos
e paisagísticos (...), exigindo-se a elaboração de uma
(...) classificação por categorias (...) e a indicação,
para cada categoria, dos cuidados e das (...) obras necessárias à sua valorização e integração no urbanismo
local (...)39. O parecer concluía com a imposição de
uma (...) profunda revisão (...) do anteplano.
Na versão de 1953 do anteplano, contra-argumentava-se em relação à defesa da continuação da
edificação dos paços concelhios, criticando o (...) desafogo sem medida (...) em torno dos monumentos
nacionais e lembrando a contradição de se pretender
construir o tribunal dentro dos (...) exagerados limites
da zona vedada à construção, em torno do Paço dos
Duques de Bragança (...), que entretanto haviam sido
determinados pelo Ministério da Educação40. Contudo, acabaria por se acatar cada uma das críticas,
sugestões e determinações do parecer do Conselho
Superior de Obras Públicas, transformando-se o
“parque da cidade” numa “zona de reserva” adjacente a um mais contido quarteirão para edificação de
um estádio de futebol, eliminando-se algumas áreas
de moradias unifamiliares, demarcando-se uma zona
industrial a norte da linha férrea que integrava a Zona
de Couros e voltando-se a alterar o desenho do bairro-jardim oriental com a relocalização do liceu.
Entre todos, sublinhe-se a melhoria dos aspetos relativos à preservação do património edificado corrente,
perspetivando contextos e conjuntos subjacentes a
uma classificação dos monumentos citadinos em
três categorias41. Apesar da singeleza classificatória,
releve-se a elaboração de listagens enumerando os
edifícios pertencentes a cada uma42 e, principalmente, a ideia de criação de (...) faixas de respeito (...)
nas proximidades dos edifícios classificados43, o que
implicou acrescentos e especificações regulamentares explicitando a competência e a obrigação do
poder municipal na preservação do património edificado. Mesmo sendo uma abordagem essencialmente
preocupada com a imagem urbana porque centrada
na qualidade das fachadas, trata-se de um contributo assinalável pois alarga os limites de proteção do
património edificado, até aí restringidos aos perímetros legais em torno dos monumentos nacionais, a
todas as (...) faixas de respeito (...) cartografadas no
anteplano para os edifícios públicos e privados com
(...) interesse artístico (...)44.
Finalmente, apesar da reconhecida e assinalada importância dos planos e anteplanos do Estado Novo,
as suas propostas foram normalmente condicionadas
pela localização de alguns equipamentos e, em todo o
caso, pelas ações do poder central, resultando daqueles instrumentos modificações e acrescentos da malha urbana frequentemente mais mitigadas do que os
resultados pressupostos. No caso vimaranense, como
noutros, as consequências foram contidas, podendo
adjetivar-se como diminutas se apenas considerarmos a área correspondente ao centro histórico alargado ou “zona tampão”. De facto, apenas o triângulo
de quarteirões estruturado entre a Avenida Conde de
Margaride e a antiga Avenida do Cemitério deve o seu
desenho à versão de 1953 do anteplano, decorrendo
ainda deste a área desportiva que lhe está adjacente,
cujo estádio foi inaugurado em 1965 e cujas proximidades se manteriam como as áreas privilegiadas para
a expansão da cidade nas décadas seguintes. Aliás,
para esta área, que o anteplano de 1949 integrava
num “parque da cidade” e que o anteplano de 1953
transformara em “zona de reserva”, foi delineado
logo em 1957 um anteplano parcial, pelos Moreira
da Silva, que mantinha evocações da morfologia de
cidade-jardim, então já anacrónicas, sendo substituídas pelas morfologias modernas inspiradas na Carta
de Atenas que o arquiteto Arménio Losa proporia no
Plano Parcial de Urbanização da Zona Noroeste de
Guimarães, de 1969, e reafirmaria no Estudo Prévio
de Urbanização da Zona Noroeste de Guimarães, de
1971. Em contraponto, o centro histórico foi-se despovoando, envelhecendo e degradando.
A ACRRU (1979), a ação do GTL
e a classificação como Património
da Humanidade (2001)
Foi no contexto da crise do movimento moderno
e dos preceitos da Carta de Atenas, nomeadamente
como reação à indiferença e ao menosprezo pela cidade tradicional herdada, que surgiu a Carta de Veneza (1964), considerando que o património vai além
do edifício isolado, introduzindo a ideia de ambiente
monumentos 33
e conjunto urbano e sublinhando a necessidade do
conceito de reutilização como forma de garantir o
futuro da cidade histórica. Seria à luz destes pressupostos que aconteceria a elaboração e concretização do plano de reabilitação para o centro histórico
de Bolonha, envolvendo arquitetos como Aldo Rossi
e Bernardo Benévolo, entre outros. Tornado conhecido como o modelo Bolonha, além de preconizar a
salvaguarda e recuperação do casco antigo original e
de estruturar a intervenção na delimitação de áreas
homogéneas estabelecidas em função de critérios
morfológicos, funcionais e sociais, pretendia a manutenção do essencial da composição social anterior
à reabilitação, aspeto que seria entretanto sublinhado pela Declaração de Amesterdão ou Carta Europeia
do Património Arquitetónico, de 197545.
Em Portugal, na sequência do 25 de abril de 1974,
o poder central lançou algumas medidas de política
urbana para responder ao premente problema da
habitação. Entre outros aspetos, foram publicados
alguns instrumentos legais para enquadramento do
apoio técnico e financeiro aos municípios, visando a
recuperação do edificado degradado que pontuava
a generalidade das aglomerações urbanas e que era
particularmente acentuado nos centros históricos.
Os primeiros instrumentos surgiram logo em 1976,
consubstanciados no Programa de Recuperação de
Imóveis Degradados (PRID, Decreto-Lei n.º 704/76)
DOSSIÊ
e na Lei de Solos (Decreto-Lei n.º 794/76), prevendo-se nesta a delimitação de ACRRUs (Área Crítica de
Recuperação e Reconversão Urbanística) e a elaboração de “medidas preventivas” visando tornar expedita a ação dos municípios, quer nas expropriações,
quer no condicionamento das ações dos privados,
tendo como finalidade intervir no património edificado das zonas históricas das cidades.
A planta com os limites da ACRRU de Guimarães
foi publicada em 1979 (Decreto Regulamentar n.º
24/79, DR n.º 117, I Série, 22 de Maio) e clarificava-se então que respeitava (...) à Câmara Municipal de
Guimarães promover, em colaboração com as demais
entidades interessadas, o processo de recuperação e
reconversão urbanística (...). A ACRRU delimitada
abarcava a área intramuros a sul da Rua de Serpa
Pinto e a extramuros que lhe era adjacente, que se
estruturava entre a Avenida Conde de Margaride e
a Rua da Caldeiroa, abrangendo a generalidade dos
edifícios e respetivas “faixas de respeito” classificados no anteplano de 1953.
Concomitantemente, no âmbito da elaboração do
Plano Geral de Urbanização de Guimarães, da autoria dos arquitetos Fernando Távora e A. Matos Ferreira, foi reconhecida a necessidade de elaboração
de um plano de pormenor para apoio à gestão urbanística do centro histórico, o que, conjugado com a
importância de estabelecimento de “normas provisó-
33
12 | Plano Geral
de Urbanização de
Guimarães, da autoria
dos arquitetos
Fernando Távora
e A. Matos Ferreira,
1982.
34
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
rias” para controlo do processo de urbanização até
à conclusão de um plano diretor municipal, tece o
contexto para a proposta do arquiteto Nuno Portas,
formulada em 1981, de criação de um gabinete do
centro histórico, em cuja direção a câmara municipal
coloca a arquiteta Alexandra Gesta, que contará com
a assessoria do arquiteto Fernando Távora46.
O Gabinete do Centro Histórico, redenominado em
1985, no âmbito do Programa de Reabilitação Urbana
(Despacho 4/SEUH/85, de 22 de janeiro), como Gabinete Técnico Local (GTL), congregará uma equipa
multidisciplinar cuja ação assentará em estratégias
claramente decorrentes do conhecimento da experiência de requalificação do centro histórico de Bolonha, que se tornara paradigmática para a reabilitação
de centros históricos um pouco por toda a Europa.
Naturalmente, desenvolveu-se um caminho próprio,
já caracterizado como (...) uma reabilitação para e
pelas pessoas (...), visando a (...) conservação estrita
dos valores identitários e de autenticidade (...), com
(...) a garantia da continuidade das permanências
essenciais de longo prazo (...) e com a preservação
das características formais consolidadas, mas com a
imprescindível abertura e flexibilidade que permita
incluir necessidades e oportunidades47.
A ação continuada do GTL, entretanto rebatizado como Divisão do Centro Histórico, permitiria a
qualificação da generalidade dos espaços públicos e
a reabilitação de centenas de edifícios, concretizada, por entidades públicas ou por privados, de forma
criteriosa quer em relação às questões morfotipológicas, quer aos processos construtivos e respetivos
materiais48, contribuindo-se, assim, para a criação das
condições concretas para a classificação como património cultural da humanidade alcançada em 2001.
Desde então, com maiores ou menores perturbações,
tem-se mantido uma gestão urbanística ponderada e
reconhecida no assegurar da qualidade das intervenções no edificado e no espaço público, normalmente
sem alterações importantes na morfologia urbana ou
apenas com pequenos ajustamentos, como se verificou na transformação do antigo mercado municipal
em “plataforma das artes” e na construção do novo
espaço da feira semanal, dois dos (...) cinco projetos
para Guimarães (...)49 enquadrados na Capital Europeia da Cultura 2012.
Uma realidade compósita
À época da candidatura de Guimarães a Património Cultural da Humanidade e apesar do lastro de colaboração institucional existente, os limites das áreas
de intervenção do então Instituto Português do Património Arquitetónico e Arqueológico (atual DGPC)
e do GTL não se ajustavam mutuamente e nenhum
se adequava aos limites da “zona tampão” proposta.
Aparentemente, enquanto serviço da administração
central, o IPPAR considerava a superfície resultante
do somatório da área de proteção definida em 1951,
para a “colina sagrada”, mais a área aprovada como
ACRRU em 1979 e ainda a Zona de Couros, consagrada com semelhante estatuto no plano geral de
urbanização de 1982, assumindo os limites anteriormente determinados, com pequenos retoques que
apresentavam a mesma incompreensível indiferença
em relação à realidade morfológica e que apenas pareciam pretender acautelar uma alargada margem de
intervenção. Por sua parte, o GTL considerava sensivelmente o mesmo somatório de áreas, mas definia
os limites a partir de um conhecimento casuístico
e de proximidade, baseando-os na procura de coerências morfotipológicas e morfogenéticas e gizando
contornos mais lógicos e compreensíveis, embora
tendencialmente mais restritos.
Ao mesmo tempo, embora ambas contivessem a
área proposta para classificação, abarcavam superfícies inferiores à “zona tampão” proposta, verificando-se, simultaneamente, diferenças importantes entre a
“zona proposta” para classificação e a área finalmente classificada, bem como entre a “zona tampão” proposta e aquela que seria aprovada, bem mais lata do
que todas as delimitações anteriores e cujos limites
seriam finalmente assumidos como coincidentes aos
da nova área de intervenção da Divisão do Centro
Histórico, entretanto formalizada e recentemente inscrita na “planta de condicionantes” do Plano Diretor
Municipal de 201250.
A classificação como “conjunto” Património Cultural da Humanidade e a respetiva e devida promoção
proporcionaram um melhor conhecimento do património em causa e a criação de consensos criadores, permitindo o aprofundamento da conjugação de
esforços entre instituições, técnicos, investigadores,
moradores. Contudo, importa notar o perigo dos
consensos em torno de ideias simplistas e equívocas,
facilmente aceites e divulgadas, entre as quais se referencia a identificação do miolo muralhado como
linearmente medieval, a restrição do que é medieval
ao núcleo muralhado ou a limitação do centro histórico ao recinto muralhado, independentemente de
eventuais decisões institucionais nesse sentido.
Na verdade, o (...) trabalho continuado de boa gestão urbanística (...), sublinhado pela DGPC51, apenas
permite apresentar o casco de origem medieval vimaranense como um exemplo excecionalmente bem
preservado (...) of the evolution of a medieval settlement into a modern town (...)52, como é referido no
sítio web da UNESCO. Além do mais, nota-se alguma
benevolência na consideração de que (...) the eclectic
and industrial periods and modern expansion (1926
until today) include some changes, although the town
has maintained its medieval urban layout (...), pois
verificaram-se mudanças importantes e apenas a
sul da Rua de Serpa Pinto se pode afirmar que o
layout medieval não sofreu mais do que “algumas”
mudanças. Finalmente, algumas das áreas de génese
medieval encontram-se extramuros, como as que se
estruturam ao longo das ruas de D. João I, da Caldeiroa, de Santa Luzia ou a própria Zona de Couros.
monumentos 33
DOSSIÊ
35
13 | Guimarães, planta
georreferenciada com
representação da área
classificada pela
UNESCO como
Património Cultural
da Humanidade
e respetiva zona
tampão; informação
trabalhada por
Rita Vale sobre base
cartográfica cedida
pela Câmara Municipal
de Guimarães, 2013.
PATRIMÓNIO MUNDIAL – UNESCO, 2001
IMÓVEL DE INTERESSE PÚBLICO
ZONA ESPECIAL DE PROTEÇÃO
11. Casa dos Lobos Machado [IPA.00000326]
Aviso n.º 15171/2010, DR, 2.ª série, n.º 147, de 30 de Julho 2010.
12. Igreja da Misericórdia de Guimarães [IPA.00005174]
13. Edifício na Rua Egas Moniz, n.º 113 [IPA.00002628]
MONUMENTO NACIONAL
14. Capela e cruzeiro de Santa Cruz [IPA.00001069]
ZONA ESPECIAL DE PROTEÇÃO
15. Rua de D. João I [IPA.00005870]
1. Castelo de Guimarães [IPA.00001060]
16. Igreja do Convento de São Domingos [IPA.00001896]
2. Paço dos Duques de Bragança [IPA.00001139]
17. Convento da Madre de Deus [IPA.00001924]
3. Igreja de São Miguel do Castelo [IPA.00001248]
18. Igreja e oratórios dos Santos Passos de Nossa Senhora
4. Igreja de Nossa Senhora da Oliveira [IPA.00005247]
5. Cruzeiro de Nossa Senhora da Guia [IPA.00000310]
6. Paços Municipais de Guimarães [IPA.00005794]
da Consolação [IPA.00001077]
19. Cruzeiro fronteiro ao adro da Igreja de São Francisco
[IPA.00000022]
7. Muralhas de Guimarães [IPA.00001048]
8. Padrão Comemorativo da Batalha do Salado
[IPA.00000764]
9. Padrão de D. João I [IPA.00000774]
EM VIAS DE CLASSIFICAÇÃO
20. Conjunto das antigas fábricas de curtumes
[IPA.00001938]
10. Claustro do Convento de São Domingos
[IPA.00001896]
IMÓVEL DE INTERESSE MUNICIPAL
21. Casa das Rótulas [IPA.00001929]
22. Casa do Proposto e seus jardins [IPA.00001071]
23. Igreja e Convento de São Francisco [IPA.00000305]
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DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Independentemente das ações que se desenvolvam
na procura de coerências e equilíbrios, na afirmação ou na eliminação de valores e dissonâncias, o
que observamos, hoje como sempre, são realidades
compósitas, nas delimitações como nas morfologias,
conjugando traçados e formas visíveis e “invisíveis”,
entendidos e identificados pela inquirição dos respetivos processos de formação. No caso do centro histórico vimaranense, no restrito como no alargado, a
composição assenta a sua génese em dois “momentos”: a época medieval e a contemporaneidade.
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Mário Gonçalves Fernandes
Geógrafo
Docente do Departamento de Geografia
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Investigador do Centro de Estudos de Geografia
e Ordenamento do Território
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Imagens: 1 a 5: autor; 6 a 9 e 13: IHRU/Sistema
de Informação para o Património Arquitetónico;
10 a 12: Direção-Geral do Território
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Maria da Conceição Falcão FERREIRA — Uma Rua de Elite na Guimarães
Medieval (1376-1520), p. 47.
Esta planta foi divulgada no IV Congresso Histórico de Guimarães que decorreu
em 2006, constando das respetivas atas, publicadas em 2009, um estudo de
datação e análise da planta (Mário G. FERNANDES — “Novas notas para a
história da cartografia urbana e da morfologia urbana de Guimarães”. Actas do
IV Congresso Histórico de Guimarães, vol. IV, pp. 115-133). Decorrem deste
estudo as informações sobre a planta vertidas no inventário da Cartoteca da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e publicadas na edição concretizada pela
Sociedade Martins Sarmento, em colaboração com a Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO (“A evolução da forma urbana de
Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães. Património
Cultural da Humanidade, vol. II, pp. 33 e 56) consideraram que (...) nos finais
do século XIV, D. João I ordenou a destruição da cerca alta (...) ou seja, da parte
que ficara interiorizada. No mesmo passo, pela conjugação de informações de
proveniência diversa, também sugere que, ainda no século XV, se terá edificado
nova (...) cerca desde os paços até à torre junto da mesma porta [da Garrida]
(...). Daqui decorre a dúvida sobre a origem da cerca representada na planta
“De Guimarães”. Observando com redobrada atenção o documento cartográfico
e considerando a cor utilizada, bem como a largura e a altura dos muros (verificável pelo número de degraus de acesso desenhados), porque tudo é idêntico,
reafirmamos que (...) a planta De Guimarães, não só confirma a existência dos
primeiros muros, como dá a conhecer a generalidade do seu traçado (...) (Mário
G. FERNANDES — Ob. cit., p. 123).
Refiram-se, por exemplo, Manuel Alves de OLIVEIRA (A Exposição Industrial
de 1884 e as suas Repercursões; “A cidade de Guimarães no séc. XIX num plano
de urbanização”. Guimarães do Passado e do Presente; “Guimarães numa resenha urbanístiva do século XIX”. Boletim de Trabalhos Históricos, vol. XXXVII,
pp. 119-147), Maria da Conceição Falcão FERREIRA (Uma Rua de Elite na Guimarães Medieval... e Guimarães ‘Duas Vilas, um só Povo’: Estudo de História
Urbana), Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO (“A evolução da forma
urbana de Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães.
Património Cultural da Humanidade, vol. II), Mário G. FERNANDES (Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal... e “Novas notas para a história
da cartografia urbana e da morfologia urbana de Guimarães”. Actas do IV Congresso Histórico de Guimarães, vol. IV, pp. 115-133).
A primeira versão, de 2000, consta do site da Câmara Municipal de Guimarães,
na informação relativa ao Gabinete Técnico Local (http://www.cm-guimaraes.
pt/files/1/documentos/470409.pdf, acedido em 16 de outubro de 2012).
UNESCO, http://whc.unesco.org/en/decisions/2303, acedido em 16 de outubro de 2012.
Na verdade, na versão de Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO publicada
em 2002, após a classificação da UNESCO, embora se mantenha o texto inalterado também se adotam os limites cronológicos referidos no site da UNESCO.
Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal... , anexo 14, p. 368.
“Decreto sobre a construção, conservação e polícia das estradas e aberturas de
ruas”. Diário de Lisboa, n.º 10, de 19 de Janeiro de 1865.
Livro de Actas da Comissão de Melhoramentos, publicado por Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., anexo 2,
pp. 307-327.
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(...) 1) abertura de ruas novas; 2) melhoramentos de ruas velhas; 3) abastecimentos e distribuição de águas, tanques e chafarizes; 4) banhos e lavadouros
públicos; 5) mercados; 6) cemitérios; 7) edifícios públicos – Palácio municipal,
tribunal, cadeia, hospital, escolas, biblioteca, matadouro, etc.; 8) jardins, embelezamentos e arborização; 9) Iluminação; 10) Numeração e designação das ruas;
11) estabelecimentos perigosos e prejudiciais ao serviço de salubridade pública,
limpeza de ruas e incêndios; 12) indicação dos meios para os melhoramentos (...).
Diário do Governo n.º 69, de 24 de março de 1890.
Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 239, nota 895.
Uma resenha biográfica foi publicada pela Câmara Municipal de Guimarães
(MARIANO Felgueiras, o Político Vimarenense e a Cidade).
Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 426.
Decreto de 27 de agosto de 1908, publicado no Diário do Governo, 5 de set.
1908, n.º 199, e Decreto de 16 de junho de 1910, publicado no Diário do Governo, 23 de jun. 1910, n.º 136.
Françoise CHOAY — A Alegoria do Património, pp. 111-143.
António CARDOSO — O Arquitecto José Marques da Silva..., p. 328.
Segundo Marques da SILVA (“Projecto de edifício para a Câmara Municipal de
Guimarães, Memória Descritiva”. Alargamento da Cidade e Novos Paços do Concelho, Memórias Descritivas, pp. 7 e 8) o edifício representava a (...) síntese das
tradições históricas da cidade (...), nomeando (...) o castelo altaneiro (...), a
capela românica (...), os paços junto ao Castelo (...), a parte gótica da igreja de
S. Francisco (...), a colegiada e Praça da Senhora da Oliveira com as suas épocas
românica, gótica, renascença e século XVII (...) e rematando, para não alongar
mais esta resenha, o actual edifício da Câmara, tão característico pelo seu pórtico
gótico de trânsito público (...). E sintetizava afirmando que (...) Ao alvorescer da
idade média fomos buscar as fontes do nosso trabalho, ainda que o tivéssemos
de matizar com a época posterior (...) foi pois, no carácter da Arte gótica que
estabelecemos a nossa concepção (...).
O sidonismo depôs o Partido Democrático, chefiado por Afonso Costa, ao qual
pertencia Mariano Felgueiras.
Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 123. A memória descritiva e as plantas, cortes e alçados do edifício
municipal, tinham já sido publicados em 1917, por diligência de Mariano Felgueiras, na revista A Arquitectura Portuguesa.
Pierre LAVEDAN — Histoire de l’urbanisme, Renaissance et temps Modernes,
p. 236.
Fernando TÁVORA — “O ‘Plano de Alargamento’ ou Guimarães entre o sonho
e a realidade”. Guimarães do Passado e do Presente, p. 40.
Benedetto GRAVAGNUOLO — Historia del Urbanismo en Europe, 1750-1960,
p. 122.
A. E. J. MORRIS — Historia de la forma urbana, pp. 206 e 207.
Luís de PINA — “Plano geral de alargamento da cidade, memória descritiva e
justificativa”. Alargamento da Cidade e Novos Paços do Concelho... , pp. 15-18.
Lei n.º 1.700 de 19/12/1924; Decreto n.º 11.445 de 13/021926; Decreto
n.º 18.123 de 20/03/1930; e Decreto n.º 20.985 de 07/03/1932. Ver Flávio
LOPES — Património Arquitectónico e Arqueológico..., pp. 19-32.
As memórias relativas às três intervenções foram publicadas no Boletim da
Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais: Castelo de Guimarães,
n.º 8, de junho de 1937; Igreja de São Miguel do Castelo, n.º 20, de junho de
1940; Paço dos Duques de Bragança, Guimarães, n.º 102, de dezembro de
1960. Refiram-se também os boletins n.º 108, de 1962, e n.º 128, de 1981,
relativos às igrejas de São Domingos e de Nossa Senhora da Oliveira, respetivamente.
Flávio LOPES — Ob. cit., pp. 23-24.
Bernardo FERRÃO e José Ferrão AFONSO — “A evolução da forma urbana de
Guimarães e a criação do seu património edificado”. Guimarães. Património
Cultural da Humanidade, vol. II, pp. 155 e 158.
Idem, ibidem, pp. 159-160.
Margarida Souza LÔBO — Ob. cit., pp. 35-49.
Mário G. FERNANDES— Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., pp. 100-110.
Margarida Souza LÔBO — Ob. cit., p. 35.
Mário G. FERNANDES — Urbanismo e Morfologia Urbana no Norte de Portugal..., p. 265.
Margarida Souza LÔBO — Ob. cit., pp. 38, 51, 57 e 77.
Sublinhe-se o incontornável texto de Etienne de Groer, paradigma das suas
ideias e caracterizador do pensamento dominante no urbanismo coevo, publicado em 1946 no Boletim da Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização, onde
o arquiteto explica e enaltece as ideias de Ebnezer Howard (p. 24), se opõe às
ideias de construção em altura de Le Corbusier (p. 28) e defende a construção
da habitação em unidades familiares, em morfologias estudadas por Unwin
(pp. 38-41).
Os (...) altos blocos de casas de rendimento (...) são muitas vezes condenáveis
na habitação, pelos perigos que constituem para a saúde e a educação das crianças, como pelo enfraquecimento dos laços de família e outras consequências de
carácter social que provocam. Nas suas, via de regra, dependências de dimensões
mínimas, os ruídos e o mau exemplo de alguns dificilmente se podem evitar. As
pequenas e grandes discussões (...) como os descontentamentos gerais encontram na casa-bloco o ambiente mais favorável ao seu rápido alastramento que,
não raro, conduz à indisposição e à anarquia (...) quanto a nós, a casa-bloco,
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em altura, só excepcionalmente e quando destinada a famílias possuidoras de
capacidade moral suficiente para enfrentar vitoriosamente os riscos referidos é
que poderá vir a dar resultados satisfatórios (...). Anteplano de Urbanização da
Cidade de Guimarães, 1949, Memória Descritiva, p. 36.
“Apreciação” datada de 22 de julho de 1952 e inserta na versão de 1953 do
Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, pp. 5-9.
A planta com a delimitação da (...) área vedada à construção (...) e com o (...)
limite da zona de proteção (...) do castelo, Igreja São Miguel e Paço dos Duques
de Bragança, foi publicada no Diário do Governo n.º 103, II Série, de 30 de abril
de 1952, como anexo de despacho do Ministério da Educação, datado de 24 de
novembro de 1951.
Categoria A — monumentos classificados como nacionais; B — edifícios públicos de reconhecido interesse artístico; C — imóveis privados de reconhecido
interesse artístico (Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953,
pp. 29-32).
Como curiosidade, refira-se a inclusão na categoria C, com ilustração fotográfica, do (...) prédio de madeira, na Rua Egas Moniz (...) — Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953, p. 32 —, ou seja, exatamente a casa da
Rua Nova onde funcionaria o GTL e cujo restauro seria objeto da atribuição do
prémio Europa Nostra.
(...) Em consequência daquela classificação, que pretende contribuir para salvaguardar as condições estéticas, objectivas e subjectivas, de cada monumento,
seja ele público ou particular, nasceu a ideia de se criarem algumas FAIXAS DE
RESPEITO nas suas proximidades, para que a sua conservação, construção ou
reconstrução bem como a dos prédios seus vizinhos, não possam ser feitas em
plena liberdade ou desprezo pelos valores existentes. (...) — Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1953, p. 32.
(...) À Câmara Municipal, obrigatoriamente coadjuvada pela sua Comissão de
Estética, compete velar, com particular carinho, pela manutenção da unidade
estética dos monumentos incluídos nas categorias B e C e pelas obras de conservação e construção nas faixas de respeito agora criadas e no alinhamento das
quais só serão autorizadas obras novas de acentuado cunho artístico e obras de
conservação que pela sua côr e qualidade dos materiais não briguem com os
monumentos das referidas categorias. (...) — Anteplano de Urbanização da
Cidade de Guimarães, 1953, p. 33.
Rubén LOIS GONZÁLEZ (coord.) et al — Los espacios urbanos:..., pp. 132-134.
José AGUIAR — “A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães:
estratégia, método e algumas questões disciplinares”. Guimarães. Património
Cultural da Humanidade, pp. 54-55.
Idem, ibidem, pp. 51-53.
Sobre a ação do GTL e pormenorização dos respetivos resultados veja-se José
AGUIAR (“A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégia, método e algumas questões disciplinares”. Guimarães. Património Cultural
da Humanidade) e Vera Patrícia S. Rocha BARROS (A Acção do GTL no Centro
Histórico de Guimarães).
Referem-se os (...) 5 Projectos para Guimarães: 1 — Parque de Lazer da Cidade
Desportiva/Centralidade de Silvares; 2 — Arranjos Urbanísticos do Toural/Alameda de S. Dâmaso/Rua de Santo António; 3 — Novo Espaço da Feira Semanal;
4 — Reestruturação da Praça e do Edifício do Mercado Municipal de Guimarães;
5 — CampUrbis. (...) (Miguel S. M. BANDEIRA — “A alegoria da univer(c)idade
como uma eutopia em devir — O projeto CampUrbis em Guimarães”. OBS, p.
28 e nota 19).
Proposta de revisão do PDM de 2012, “Planta de condicionantes”, Folha 85-1:
área “património mundial da humanidade” e respectiva “zona especial de proteção” (http://www.cm-guimaraes.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=40456).
DGPC, http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/mundial/portugal/119/.
UNESCO, ICOMOS, 2001, http://whc.unesco.org/en/list/1031.
F O N T E S
D O C U M E N TA I S
Direção-Geral de Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano, Maria
José Moreira da Silva e David Moreira da Silva, Anteplano de Urbanização
da Cidade de Guimarães, 1949 e 1953 (1:2500); Maria José Moreira da Silva
e David Moreira da Silva, Anteplano Parcial de Urbanização da Cidade de
Guimarães, 1957 (1:1000); Arménio Losa, Plano Parcial de Urbanização da
Zona Noroeste de Guimarães, 1969 (1:1000); Arménio Losa, Estudo Prévio
de Urbanização da Zona Noroeste de Guimarães, 1971 (1:2000); Fernando
Távora e A. Matos Ferreira, Plano Geral de Urbanização de Guimarães, 1982
(1:5000).
DOSSIÊ
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B I B L I O G R A F I A
S Í T I O S E D O C U M E N TO S
(consultados em 16 de outubro de 2012)
W E B
AGUIAR, José — “A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães:
estratégia, método e algumas questões disciplinares”. Guimarães. Património
Cultural da Humanidade. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães/Gabinete Técnico Local, 2002, vol. II, pp. 51-135.
http://www.cm-guimaraes.pt/files/1/documentos/470409.pdf.
http://www.cm-guimaraes.pt/PageGen.aspx?WMCM_PaginaId=40456.
http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/mundial/portugal/119/.
http://whc.unesco.org/en/list/1031.
37
38
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Uma indústria em Guimarães:
os curtumes
DEOLINDA FOLGADO
(…) É a indústria mais importante pelo valor e pelos grandes capitais de que dispõe. Dentro da cidade
está localizada n’um bairro, que se chama Rua dos
Couros; fora encontra-se na freguesia de S. Torcato,
no lugar da Corredoura (…).
Relatório da Exposição Industrial de Guimarães em 18841.
1. A indústria de curtumes como património
Os anos setenta do século XX representam um tempo de renovação para o património. Ao nível internacional, a Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural (1972)2 inaugurou
uma nova etapa ao relacionar os bens culturais com
os elementos naturais, na senda das preocupações
sentidas a partir da Segunda Guerra Mundial com
os centros históricos, com os conjuntos urbanos e
com os próprios bens culturais (Convenção de Haia,
1954)3. Durante cerca de trinta anos assistiu-se ao
emergir de uma tematização do património, metodologia imprescindível para a organização tipológica
dos artefactos da memória que careciam de estudo e
de salvaguarda. De entre as tipologias patrimoniais
que encontraram um enquadramento organizacional
que zelasse ao nível internacional pelo seu conhecimento e preservação destaca-se a do património
industrial, através da fundação do The International Commitee for the Conservation of the Industrial
Heritage — TICCIH (1978)4.
Para Portugal, os anos setenta do século XX representaram, igualmente, tempos de mudança. No sector
do património as alterações políticas evidenciaram-se
no início da década seguinte. Procurou-se acompanhar
as novas exigências, sentidas há muito ao nível internacional, através da alteração do sistema de preservação e de intervenção no património, o que implicou
modificações aos níveis administrativo e conceptual5.
Pela sua extrema actualidade, e revelando uma
admirável sintonia com as preocupações de salva-
guarda internacionais relacionadas com os novos
patrimónios, mencione-se o despacho de abertura
de classificação das antigas fábricas de curtumes
de Guimarães, do então diretor-geral do Património
Cultural, datado de Julho de 1977: (...) Nos termos
dos artigos primeiro e segundo do Decreto-Lei número
181/70, de 28 de Abril, e para cumprimento urgente do disposto no artigo terceiro de mesmo diploma,
comunico a Vossa Excelência que, por despacho de
Sua Excelência o Secretário de Estado de Investigação
Científica proferido sobre propostas da quarta Subsecção da segunda Secção da Junta Nacional da Educação, foi determinada a classificação como imóvel de
interesse público, o conjunto das antigas fábricas de
curtumes, nessa cidade (...)6.
Este despacho, relativo a uma área patrimonial
ainda pouco reconhecida entre nós, compreende-se
num contexto de mutação, nomeadamente através
das primeiras acções de sensibilização para a arqueologia/património industrial, disciplina que principiara a ser estudada no âmbito da cadeira de Revolução Industrial (1977), leccionada na licenciatura de
História da Faculdade de Letras de Lisboa7. Outro
exemplo de salvaguarda do património industrial,
A actividade da curtimenta, com uma presença de séculos em
Guimarães, deixou marcas na cidade. Devido a condicionantes
de natureza técnica, o tratamento das peles fixou-se junto do curso
de água, no arrabalde da cidade muralhada, dando origem
à Rua de Couros, à Zona de Couros e ao rio de Couros, sendo
uma das primeiras áreas urbanas, de vocação industrial, a ser
reconhecida com o valor arqueológico-industrial, através do
despacho de abertura da classificação, datado de Julho de 1977.
Compreender como esta actividade se implementou e se relacionou
com a cidade, conhecer quais as principais fases de tratamento das
peles, anteriores à industrialização de todo o processo, e observar
como eram os edifícios/espaços onde decorriam as diversas
operações são alguns dos aspectos abordados neste texto.
monumentos 33
de extrema precocidade, reporta-se à classificação
da central eléctrica de Tomar, edifício incluso no
conjunto da levada, localizado no rio Nabão, o qual
integra ainda os lagares d’El-Rei e duas moagens, a
Nabantina (1882) e a Portuguesa (1912), por despacho do secretário de Estado da Cultura de Maio
de 19798. Ambos os casos inauguraram um novo período para o património industrial. O reconhecimento deste património fez-se através de um conjunto de
valores que abandonou a exclusividade do interesse
histórico-artístico ou monumental, inscrevendo-se
num primeiro nível de salvaguarda no âmbito da
protecção legal.
Uma certa prematuridade do despacho de abertura
de classificação das antigas fábricas de curtumes, em
Guimarães, observa-se ainda em relação ao momento
em que a arqueologia/património industrial se afirmou em Portugal, por via da realização da primeira
grande exposição com carácter nacional na Central
Tejo (1985)9; da fundação da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (1986); e da realização
de vários colóquios internacionais, nomeadamente
a Conferência Intercalar do TICCIH (1989). Em finais dos anos de 1980 e durante a década seguinte
efectuaram-se as primeiras classificações relativas
a bens industriais, nomeadamente a Central Tejo
(1986)10; o edifício da Fábrica Nacional a Cordoaria
(1996)11; a Fábrica de Vidros de Coina (1997)12; ou a
Real Fábrica de Gelo de Montejunto (1997)13, entre
outras. Todavia, as antigas fábricas de curtumes, integradas na Zona de Couros, não chegaram a ser classificadas, permanecendo em vias de classificação, ainda que o despacho de homologação do secretário de
DOSSIÊ
Estado da Cultura date de Novembro de 197814. Subsiste até hoje uma imprecisão na interpretação deste despacho, considerado por muitos como o procedimento
que classificou a referida Zona de Couros como imóvel
de interesse público15.
A novidade evidenciada pelo referido despacho
de abertura de classificação não dependera exclusivamente do momento em que foi produzido ou da
tipologia patrimonial. A proposta de classificação das
fábricas de curtumes constitui também um caso de
estudo para a salvaguarda do património industrial
pelo próprio objecto proposto — um conjunto de fábricas localizado junto ao rio de Couros, referenciado
no Relatório da Exposição Industrial de Guimarães, de
1884, como o bairro a que se chama Rua dos Couros. Trata-se de um complexo funcional relacionado
com uma monoprodução — os curtumes — de escala
urbana, reunindo, num território com uma antiga vocação laboral, os edifícios, os vários vestígios de trabalho, a forma urbana, provavelmente à época ainda
alguma memória oral, não se desenhando uma fronteira clara entre cada uma destas áreas, uma vez que
participam no seu todo para a compreensão deste património. A novidade prendera-se igualmente com a
natureza urbano-funcional da área a classificar. Uma
zona que vivera para os couros e com os couros durante séculos, e cujas sedimentações se encontravam
nos vários tempos dos espaços de trabalho, alguns
identificados nos conjuntos de edifícios apresentados
na planta para a classificação, surgindo associados às
últimas designações industriais.
A singularidade conceptual da área a classificar, reconhecida enquanto zona arqueológico-industrial, foi
39
1 | Guimarães, planta
com a delimitação
da área a classificar
como zona
arqueológico-industrial,
in Gomes Alves,
“A zona de interesse
arqueológico-industrial
das antigas fábricas
de curtumes em
Guimarães”, Revista
de Guimarães, 1977,
vol. LXXXVII, p. 283.
A identificação das
antigas fábricas de
curtumes, informação
sobreposta à planta,
foi extraída da
Proposta de
Classificação para
um conjunto de
cinco fábricas em
Guimarães, que se
encontra na Direcção
Regional de Cultura
do Norte, sendo:
A. António José de
Oliveira & Filhos
(Freitas e Fernandes);
B. Cabanelas &
Irmão, Lda;
C. Fernando Ribeiro
Mendes de [?]eira;
D. António Matos;
E. Não identificada;
F. Sociedade Textil
— Luís Correia
(Âncora);
G. Domingos Torcato
Ribeiro (Ramada);
H. Mirandas Ferreira
& Carvalho, Lda.;
I. Não identificada;
J. Não identificada.
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DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
acompanhada por um conjunto de reflexões sobre a
sua integração na cidade. Através de um documento, incluso num processo que se encontra na Direcção Regional de Cultura do Norte (Outubro de 1980),
identificou-se a constituição de uma comissão que integrou os serviços da Secretaria de Estado da Cultura,
da Câmara Municipal de Guimarães, do Ministério da
Habitação e Obras Públicas e da Secretaria de Estado do Ordenamento Físico e Ambiente16. Neste documento, a comissão apresentou um conjunto de sugestões, quanto a nós fundamentais, e que contribuíram
seguramente para aprofundar e ampliar a reflexão em
torno da reconversão desta área urbana, cujo interesse patrimonial voltou a ser reiterado (...) quer pelo
seu significado, quer pela sua expressão arquitectónica
(...)17, após visita às antigas fábricas de curtumes.
Das várias sugestões apresentadas pela comissão
destacam-se as considerações relativas à inclusão da
Zona de Couros nos vários instrumentos de gestão urbana, referindo-se que (...) em virtude do Plano Director da Cidade estar em curso de realização, o mesmo
deverá vincular a zona das antigas fábricas de curtumes como de interesse a preservar bem como a sua envolvência. A revisão com toda a urgência do ‘Plano de
Pormenor da zona a Norte da Estação do C. F.’ tenha
como um dos factores de importância fundamental a
zona das antigas fábricas de curtumes, o Palácio de
Vila Flor, a ‘Casa do Cidade’ e respectivos enquadramentos ambientais (...)18. Releva-se ainda a indicação
de uma espécie de condicionantes quanto à suspen-
são de licenciamentos de novas construções na área
do plano, mesmo as industriais; ou a apresentação de
uma espécie de programa âncora para a área assente
num núcleo cultural19 e ainda as recomendações específicas para o edifício de uma fábrica de curtumes
adquirido pela Câmara Municipal de Guimarães (referenciado com a letra F na planta que apresenta a
delimitação da área a classificar e as antigas fábricas
de curtumes), essencialmente ligadas à manutenção
do imóvel.
Em meados da década de 1980, no primeiro Encontro Nacional sobre o Património Industrial, realizado
também em Guimarães, as três comunicações apresentadas tiveram de novo como preocupação comum
encontrar formas de salvaguarda e de reutilização da
área do rio de Couros proposta para classificação20.
Apesar do reconhecimento geral dos valores patrimoniais intrínsecos à Zona de Couros, foi a inscrição na Lista do Património Mundial da UNESCO, em
Dezembro de 2001, da área intramuros do centro histórico de Guimarães, que protegeu esta nesga de território associada aos curtumes ao ter sido classificada
como “zona tampão”.
Seria no âmbito do amplo trabalho de reabilitação
urbana e de valorização do património do centro histórico, empreendido pela Câmara Municipal de Guimarães, que se verificaria uma preocupação com a
cidade, o que permitiu alargar a área de intervenção
para além do interior da cintura de muralhas, abarcando alguns espaços de expansão, nomeadamente
2 | Guimarães,
Zona de Couros,
fotografia de Paulo
Pacheco, 2009.
monumentos 33
DOSSIÊ
41
3 | Guimarães, antigo
“Palácio do Cidade”,
actual Pousada da
Juventude, e conjunto
de tanques de
preparação para a
curtimenta localizado
no Largo do Cidade,
2013.
4 | Guimarães,
Largo do Cidade,
pormenor do conjunto
de tanques, 2013
os industriais, como a Zona de Couros21. A primeira
reabilitação realizada (em 2001) junto ao rio de Couros verificou-se no “Palácio do Cidade” (fig. 3) e no
conjunto industrial contíguo (B — Cabanelas & Irmão
Lda.). O processo iniciado pela Câmara Municipal de
Guimarães, em 1996, vocacionou esta área para um
vasto programa que incorporou uma pousada da juventude e um conjunto de outras funções, como um
jardim-escola e um centro de dia, entre outras.
Dos restantes edifícios propostos para classificação
e referenciados na Planta que Apresenta a Delimitação da Área a Classificar e as Antigas Fábricas de Curtumes (cuja informação foi transposta para a fig. 1),
três foram integrados no projecto CampUrbis: a Fábrica
da Ramada (G), futuro Instituto de Design (fig. 5); a
Fábrica Âncora (F), área reconvertida para Centro de
Ciência Viva (figs. 6 a 8); e a Fábrica Freitas & Fernandes (A, antiga José de Oliveira & Filhos) adaptada a
Centro Avançado de Formação Pós-Graduada22. Releve-se o carácter pioneiro deste projecto, quer pela firme
aposta na reabilitação urbana e patrimonial, quer pela
estratégia apresentada com base na formação avançada e nas novas tecnologias, ainda que em certos aspectos se reconheçam similitudes com a estratégia desenvolvida pela Universidade da Beira Interior, na cidade
da Covilhã, nomeadamente através da reutilização de
edifícios industriais, associados aos lanifícios, para os
diversos serviços da universidade ou para o museu. Seria mesmo desejável que este tipo de projectos pudesse
ser replicável e servisse de modelo ou de inspiração
para outras áreas urbanas de carácter industrial, onde
geralmente o património constitui uma dificuldade.
5 | Guimarães, antiga
Fábrica da Ramada,
actual Instituto de
Design, fotografia de
Paulo Pacheco, 2011.
42
6 | Guimarães, antiga
Fábrica Âncora, actual
Centro de Ciência
Viva, fotografia de
Paulo Pacheco, 2009.
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
7 | Antiga Fábrica
Âncora, actual Centro
de Ciência Viva,
interior do primeiro
piso, fotografia de
Paulo Pacheco, 2009.
8 | Antiga Fábrica
Âncora, actual Centro
de Ciência Viva,
pormenor da estrutura
construtiva, fotografia
de Paulo Pacheco,
2009.
monumentos 33
2. O(s) lugar(es) da indústria de curtumes
na cidade de Guimarães
(...) Por baixo do Campo da Feira para o Sul está
situado o Burgo, que chamão rua de Couros, que
se compõem de três, a do seu nome, a Rua de
S. Francisco, & a dalém, que lhe chamão assim, porque a divide das outras o regato, que corre do Campo
da Feira, que largando aqui o nome, que trazia de
empréstimo, formou o de Rua de Couros, por estes
serem conservados nelle pelos Sapateiros, aonde naquelle lugar tem seus pelames, & nelles passa este
regato por baixo de huma ponte de pedras (...)23.
Do espaço urbano
Guimarães constituiu um centro especializado no
tratamento/fabrico das peles ao nível nacional. A permanência desta actividade na cidade, durante séculos, vocacionou determinadas áreas para esta função.
A própria toponímia, como regato dos Couros, rio de
Couros, Rua de Couros ou Zona de Couros, fixou na
cidade o tratamento das peles e o trabalho desenvolvido por sucessivas gerações de vimaranenses.
Será esta a área da cidade que se procurará compreender neste breve artigo, apesar da existência de
outras zonas dedicadas a esta actividade, conhecidas
por Corredoura, situada na freguesia de São Torcato,
por Travassos, ou por Santa Maria do Souto24. Foi
também esta a área proposta para classificação em
1977.
A localização dos espaços de trabalho no território anda também associada a um conjunto de condicionantes tecnológicas e produtivas25. A instalação
das oficinas de curtumes junto a um curso de água
reflecte essa dependência. A água é neste estádio tecnológico um recurso fundamental para transformar as
peles em couros. Recordemos Lewis Mumford e a sua
proposta de interpretação para os diversos momentos
tecnológicos organizada em três fases — eotécnica,
paleotécnica e neotécnica26. Inserida na fase eotécnica, caracterizada pelo elevado número de técnicas
dependentes da energia proveniente da madeira, da
água, do vento e da presença do Homem, com particular ocorrência, na Europa, entre o século X e XVIII,
a actividade de curtimenta não poderia deixar de estar
perto de um curso de água, elemento constante em
praticamente todas as fases de fabrico. Em Guimarães, o curso de água nasce a montante do núcleo
em análise e adquire nesta zona a designação de rio
de Couros.
O rio surge como elemento agregador de uma actividade, em torno do qual se irão instalar as oficinas.
Na fixação desta produção verificou-se uma adaptação ao lugar, havendo notícia da sua presença já no
século XI27. A Zona de Couros consolidou-se fora da
muralha, em terrenos inicialmente agrícolas, ou seja,
nos arrabaldes, a sudoeste do núcleo urbano de Guimarães. A actividade da curtimenta perdurará muito
tempo na cidade.
DOSSIÊ
No século XVIII, de acordo com o padre Costa Carvalho, esta área designava-se burgo e estendia-se por
três ruas — de Couros, de São Francisco e a “dalém”.
(...) Actualmente, trata-se de uma zona ampla —
como ampla parece ter sido na Idade Média —, entre
ruas estreitas e desníveis acentuados. Ao que foi parte desta vasta zona de Couros assina-se agora com o
nome de ‘Largo do Trovador’, onde ficava a presa ou
pelames de S. Crispim (...)28.
Na Zona de Couros as oficinas permaneceram em
laboração durante o século XIX e em grande parte do
XX, independentemente das preocupações relacionadas com a salubridade, a saúde e a higienização dos
lugares públicos entretanto manifestadas. Como se
sabe o processo de industrialização contribuiu determinantemente para acentuar estas inquietações, uma
vez que muitos dos espaços industriais — fábricas,
oficinas, habitações — se revelaram inabitáveis face
às novas exigências trazidas também por uma cultura mais mecanizada. O ritmo e o tipo de crescimento
ocorrido em Lisboa e no Porto impuseram a criação
de soluções. O Plano Geral de Melhoramentos, em vigor entre 1865 e 1934, procurou solucionar aspectos
relacionados com a circulação, a rede viária ou o arranjo do espaço público. Não se desenhara ainda uma
concepção global para as cidades. Para Guimarães, o
primeiro plano de urbanização de que há notícia, da
autoria do engenheiro Almeida Ribeiro, data de 1863
e antecipa a criação da Comissão de Melhoramentos
para a cidade29. As soluções propostas inseriram-se
dentro do espírito da época, relacionadas com regularizações ou abertura de vias, embelezamento de
espaços, demolições de conjuntos, de edifícios. Medidas que evidenciavam uma preocupação: a criação de
boas condições higiénicas.
Sendo o “burgo” dos couros um dos mais insalubres da cidade que propostas concretas foram apresentadas?
(...) Respeito ao Largo da Rua de couros e às demais ruas compreendidas entre o Terreiro de S. Francisco e a rua dos 120, tracei na planta melhoramentos
que me parecem dever ser adoptados. Não deixarei de
dizer que a comunicação que estabeleço entre o Terreiro de S. Francisco e a Rua d’além do rio é bastante
dispendiosa, porque comporta a demolição completa
de um lado inteiro da actual Rua de S. Francisco, mas
a simples inspecção da planta mostra que, sem este
sacrifício, não se pode aformosear, nem colocar em
boas condições, esta parte da cidade (...) Ainda para
sul do terreiro de S. Francisco e com acesso pela rua
de S. Sebastião, ficavam a rua do Guardal e o Largo
da rua de Couros, que terminava nas margens do regato e para a qual eram propostos alinhamentos. Daí
seguia-se a Rua d’além do Rio, em que se situava a residência do comendador Cristóvão José Fernandes da
Silva, mais conhecido pelo ‘Cidade’ (...)30. Algumas
destas propostas foram retomadas pela Comissão de
Melhoramentos, criada pela câmara em 1869, nomeadamente as relacionadas com os projectos elaborados para o largo e para a Rua de Couros e “dalém”
43
44
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
rio, bem como o alinhamento proposto para a Rua
de São Francisco31.
Apesar destas preocupações higienistas e da instalação dos estabelecimentos industriais insalubres estar
regulamentada32, desde 1863, a falta de salubridade
continuou na Zona de Couros33. O Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, de 1949, eivado de
princípios associados ao zonamento, tal como sucedera para Lisboa com o plano director de Etienne de
Groer (de 1948), identificou uma área muito degradada devido à actividade industrial: (...) a cidade está
todavia, altamente prejudicada, nas suas condições de
salubridade, pela presença excessivamente próxima da
sua indústria de peles, que, como é do conhecimento geral, tomou por colector e principal carreador de
[imundice] e maus cheiros o conhecido ribeiro dos
Couros que inteiramente a atravessa na Direcção Este-Oeste (...)34.
A apreciação crítica desta área, feita pelos autores
do anteplano de urbanização de 1949, não foi porém
contra a instalação da indústria no tecido urbano,
uma vez que os princípios que nortearam a sua elaboração procuraram harmonizar as diversas funções
na cidade. Subjacente a esta análise encontrava-se o
tipo de indústria, os processos utilizados e o seu reflexo no ambiente urbano ou a sua convivência com as
habitações. Ou seja, pretendera-se corrigir um certo
carácter desordenado e promíscuo da Zona de Couros
e criar uma área industrial que concentrasse todas as
actividades deste sector.
Efectivamente, o anteplano propôs a fixação da zona
industrial de Guimarães nas proximidades do caminho-de-ferro. Esta zona teria um uso exclusivo e vocacionado para a instalação de fábricas, armazéns e oficinas,
com excepção das indústrias perigosas, incómodas ou
insalubres (classificadas no Diário do Governo, como
sendo de primeira classe). Quanto às novas habitações
só seriam permitidas se fossem direccionadas para
os guardas das respectivas fábricas35. As novas zonas
industriais nas cidades integravam-se geralmente nas
áreas de expansão e estavam servidas por um conjunto de infra-estruturas que, por exemplo, permitissem
uma rápida circulação. A construção na cidade ou no
território de uma zona industrial dependia directamente da evolução tecnológica verificada. Esperava-se que
a indústria a instalar nestas áreas materializasse uma
mudança associada à energia utilizada — a electricidade —, aos processos de fabrico e ao tipo de construção
dos próprios edifícios. Nesta fase, associada à segunda
geração industrial, a cidade preparara-se para (...) receber a fábrica limpa e clara (...)36.
A indústria dos couros que ainda laborava junto ao
rio representava precisamente um modelo industrial
que se procurava eliminar, longe da ideia de fábrica
limpa e clara. Para além dos aspectos urbanos ou de
saúde pública, esta era também uma indústria que
representava um arquétipo antigo, quer nos saberes,
quer nos processos, quer nas relações hierárquicas
existentes entre os trabalhadores, quer ainda na sua
dimensão.
A mudança das fábricas dos couros para fora da
cidade foi uma das propostas apresentadas no anteplano. Todavia, no segundo volume, refere-se que a
zona onde actualmente se encontram instaladas as
fábricas de curtumes deve ser beneficiada em duas fases: (...) na primeira cobrir-se-á, transformando-o em
colector de esgotos, em toda a extensão da faixa ocupada por aquela incómoda indústria, o regato que por
ali passa carreando as maiores imundices e cheiros;
na segunda, a efectuar a muito longo prazo, transferir-se-ão as instalações daquela indústria para um lugar
extra-urbano não abrangido pelo anteplano de urbanização, e aproveitar-se-á a respectiva área para a instalação de indústrias limpas, como, por exemplo, as de
fiação e tecidos, depois de rectificados, alargados ou
suprimidos os arruamentos que, à luz do fim a que em
definitivo aquela área se destinar, as circunstâncias
aconselhar (...)37.
Dos espaços fabris
A caracterização do espaço de trabalho onde as diversas operações da curtimenta decorrem revelou-se
essencial para compreender o tipo de indústria em
análise e o modo como as diversas tarefas se relacionavam com a organização do lugar associado a esta
actividade, tanto para o edificado como para a área
urbana. Relacionar os nomes das empresas com um
espaço fabril/oficinal e conhecer a sua dimensão, implantação e composição desenhou-se como uma metodologia que permitiria, em simultâneo, perscrutar a
longevidade das firmas38.
Todavia, este último propósito revelou surpresas.
Através das fontes consultadas apreendeu-se a ausência de firmas com prolongada longevidade e de
grande dimensão. Em 1884, contabilizaram-se trinta e
oito estabelecimentos que, segundo os inquéritos industriais, caracterizar-se-iam por pequena indústria.
A relação estabelecida entre os anos de 1884 (exposição industrial) e 1890 (Inquérito Industrial) mostra
apenas três registos comuns — Bento José Leite, José
Maria Leite e António José Ribeiro — o que revela
uma curta duração das empresas. Para o ano de 1915
(licenciamento industrial) os nomes de Bento José
Leite e António José Ribeiro voltam a ser arrolados,
indiciando a permanência da sua actividade. Em relação à comparação estabelecida entre os dados obtidos nestas fontes e os processos de obras refira-se a
existência de uma firma com continuidade — António
José de Oliveira (1915)/Sociedade de Curtumes António José d’Oliveira, Filhos, Lda. (1928), casa que
surge assinalada (A) na planta que apresenta a zona
a classificar (de 1977), sendo que, para as restantes
empresas identificadas, não foi possível estabelecer
qualquer relação entre os diversos registos existentes.
Esta ausência de longevidade por parte das firmas
explica-se em parte pelo tipo de organização empresarial e pelo modelo de trabalho existente. Coloca-se
a hipótese de muitos dos industriais ou das empresas não terem uma fábrica sua, fenómeno que impli-
monumentos 33
caria uma certa sazonalidade da actividade, porque
na “época da curtimenta” alugar-se-iam tanques e
contratar-se-iam alguns trabalhadores mais especializados, como os surradores. Esta interpretação explicaria a profusão e a inconstância das designações
das firmas, bem como a sua pequena dimensão, pois
o número de trabalhadores referenciados é muito reduzido e o capital investido não seria elevado. Este
modelo empresarial teria consequências nos processos de fabrico, no sistema de organização e até na
tipologia dos edifícios.
A dificuldade em relacionar um espaço fabril com
uma empresa durante um longo período de tempo, e
a parca informação obtida através dos processos de
obras consultados para a área da Zona de Couros, dificultou a elaboração de um registo sistemático dos
edifícios fabris que permitisse fazer uma leitura sistemática, quer dos aspectos arquitectónicos, quer da
sua organização nesta área urbana, ou mesmo fixar
um bilhete de identidade para cada uma das empresas/fábricas diagnosticadas em fontes várias.
Os pedidos de autorização requeridos para as obras
que constam dos processos disponíveis para uma faixa temporal de nove anos (1921-1930) reportam-se,
na sua maioria, a ampliações, acrescentos, obras pontuais, geralmente aprovados, enquanto a construção
de raiz de fábricas de curtumes para a Zona de Couros
DOSSIÊ
45
começara a ser dificultada devido às inerentes características insalubres.
Todavia, para o período referido assiste-se ainda à
construção de habitação localizada junto às oficinas
de fabrico de curtumes, tanto para operários, como
para os proprietários.
É o caso do industrial Joaquim Luciano Guimarães
que manda construir, no ano de 1922, uma correnteza de casas para os seus trabalhadores, ao lado da
fábrica de curtumes, com frente para a viela que liga
a Rua da Trindade à da Alegria, muito próximo da
Viela da Madrôa (fig. 9). A correnteza para os operários organizava-se com frente para o regato que
abastecia a fábrica, ficando o tardoz voltado para
esta. Caracterizando-se por uma edificação extremamente económica, a madeira foi o material de construção utilizado, recorrendo-se a alvenaria para os
alicerces. Despojada de qualquer elemento decorativo, a preocupação inerente à construção destas casas
residiu exclusivamente na acomodação dos trabalhadores junto à fábrica de curtumes. Cada habitação
compunha-se de um quarto, com ligação à cozinha,
localizando-se a área de despejos e o sanitário no
exterior, num pequeno logradouro. A simplicidade
do programa adivinhava-se no alçado principal do
conjunto através do cadenciado ritmo entre janela
e porta.
9 | Projecto a que se
refere o requerimento
de Joaquim Luciano
Guimarães, alçados,
perfis e planta,
desenho de autor
desconhecido, 1922.
46
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
10 | Processo
de Simão Ribeiro,
Prujeto d’Armazem
para surragem
e secadouro de peles,
desenho de autor
desconhecido, 1923.
11 | Processo
de Simão Ribeiro,
Reconstrução na Rua
da Ramada, plantas,
alçados e perfil a-b,
desenho de autor
desconhecido, 1923.
Na Zona de Couros não seriam apenas os trabalhadores a habitar junto das fábricas, em casas construídas para o efeito ou em condições ainda mais precárias. O industrial Simão Ribeiro, no ano de 1923,
pede licença camarária para reedificar um prédio de
habitação, localizado na Rua da Ramada, pelo qual se
fazia a entrada para a sua fábrica de curtumes (figs.
10 e 11). Este prédio integra, no rés-do-chão, espaços
relacionados com a actividade dos couros, caso dos
escritórios e de um armazém, e uma passagem que
dá acesso à fábrica, que se desenvolve no tardoz, enquanto nos pisos superiores se propõe a instalação do
programa habitacional, ficando, no primeiro andar,
quatro quartos e, no segundo andar, dois quartos e
as áreas sociais, como a cozinha e a sala de jantar.
As preocupações manifestadas no anteplano de urbanização para a zona das indústrias de couros
prendiam-se efectivamente com o carácter desordenado das indústrias, mas também com esta promiscuidade existente entre as habitações e as fábricas ou
oficinas. Recorde-se que algumas das reflexões relacionadas com a higienização ou com os novos conceitos de habitar veiculadas pelos Congressos Internacionais da Arquitectura Moderna estavam nos antípodas
dos dois casos apresentados e construídos no primeiro quartel do século XX.
Esta zona caracterizar-se-ia precisamente por um
ambiente fortemente marcado pela actividade ligada à
curtimenta. As diversas construções procuravam responder às necessidades funcionais, tanto nos aspectos
relacionados com o fabrico, como com a mão-de-obra
associada. Como se caracterizariam estes espaços de
trabalho que conviviam paredes-meias com as habitações? O que os distinguia e os singularizava?
A compreensão destes lugares é indissociável do
tipo de fabrico e das diversas fases existentes para a
obtenção do produto final. Constituindo a água um
elemento primordial no processo produtivo, permanece por fazer uma geografia da água e da sua relação
com os lugares de produção. Designações como rega-
monumentos 33
tos, da Madrôa ou dos Couros, remetem para um sistema de condução de água que serpenteava por entre
o bairro dos couros. Será na dependência desse sistema hidráulico, reconhecido por condutas e pequenos
canais, que se poderá esboçar uma compreensão clara
da localização das fábricas ou oficinas. A ramificação
no território de uma estrutura de circulação de água,
como de vasos comunicantes se tratasse, é a primeira condição para a fixação das fábricas e para a sua
organização no espaço. Sem um levantamento cuidado destas estruturas a explicação da implantação dos
espaços de trabalho surge imprecisa e desligada do
motivo da escolha do lugar — a água.
Através da planta referente ao projecto do industrial
Domingos Ribeiro Martins da Costa (fig. 12) observa-se que toda a área do tratamento das peles está implantada ao longo do regato da Madrôa. O pedido de
licença para fundar um estabelecimento industrial de
curtumes de peles, dirigido à Câmara Municipal de
Guimarães, no ano de 1921, explicita que o processo
fabril consiste na curtimenta das peles de couros em
lagares alimentados pela água do regato. Este pedido
comprova a importância de localizar estas unidades
DOSSIÊ
47
produtivas junto a água corrente e caracteriza, simultaneamente, uma fábrica de curtumes.
Esta unidade será considerada por nós como um
protótipo das fábricas de curtumes. Um protótipo que
se distende no tempo e incorpora uma sabedoria oral
que se plasma nos processos de fabrico, de construção e de organização no espaço, revelando um saber
definido em prol da curtimenta. Reconhecendo-se que
este modelo construtivo possa ter existido até cerca
de meados do século XX, perde-se no tempo a sua
origem. Dependendo de materiais de construções tradicionais, como a alvenaria em pedra e a madeira,
estes locais associados ao fabrico dos couros caracterizariam o “burgo de couros” desde a Idade Média.
Os trabalhos da curtimenta integravam actividades
realizadas ao ar livre e no interior de edifícios, o que
contribuía para esbater as fronteiras físicas dos vários
espaços de trabalho.
A área associada às primeiras fases de fabrico
reconhece-se pela geometrização dos tanques. De
um modo justaposto, vários quadrados, com perfil
em pedra granítica, configuram uma paisagem laboral indissociável desta actividade. A textura do
12 | Projecto a que se
refere o requerimento
de Domingos Ribeiro
Martins da Costa,
planta com a
implementação
da fábrica, perfil
e alçados, desenho de
autor desconhecido,
1921.
48
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
quadriculado, nem sempre regular, reflecte o uso de
materiais tradicionais, configurando por vezes afloramentos junto a regos ou regatos. A organização
destes quadriláteros pétreos deveria ser estudada
tanto em relação às tarefas específicas aí desenvolvidas como ao modo como circulava a água entre estas
estruturas que periodicamente tinham de ser enchidas e esvaziadas. Os nomes técnicos, como poça, lagaretas, lagares, tanques, humala, pelames, revelam
dimensões e funções várias.
O projecto (datado de 1921) de Domingos Ribeiro
Martins da Costa indica uma secção constituída por
vinte lagares, com dimensões homogéneas, uma outra que integra uma lagareta, uma poça, de maiores
dimensões, dois tanques para as humadas e outros
três tanques separados para pelames. Entre estas duas
áreas de tanques desenvolve-se uma espécie de pátio que dá acesso ao estabelecimento, onde se localizam as restantes operações, nomeadamente a groza
e a surragem. O edifício, que ocupa a largura do lote,
localizara-se no topo, longe da entrada para a Rua da
Alegria. “Cazinha”, guarda ferramentas, groza e surragem são outros termos técnicos desta indústria que
referenciam espaços onde ocorrem algumas das fases
do tratamento dos couros, complementando o léxico
associado às tarefas desenvolvidas no exterior.
Os edifícios, de feição paralelepipédica, revelam
uma extrema plasticidade obtida pelo diálogo estabelecido entre os materiais utilizados — alvenaria de
pedra e madeira. Ao nível do rés-do-chão, a alvenaria
de pedra acolhe as secções da groza e da surragem,
enquanto o primeiro andar, em madeira, acolhe a função de secadouro. O ripado de madeira que conforma
uma desenhada textura a este piso acusa uma solução
de excelência para secar as peles por processo natural. Aliás, este conceito é extensível a outros sectores
produtivos, nomeadamente ao do papel: seria, igualmente, ao nível do primeiro piso que, nas fábricas de
Oitocentos, se localizava a casa do espande, local
onde se realizava a secagem do papel por processo
natural, enquanto no rés-do-chão se desenvolviam
as operações dependentes da água e da sua energia,
como a moagem e trituração do papel.
Os edifícios paralelepipédicos das fábricas de couros caracterizavam-se também por uma diferença de
áreas entre o rés-do-chão e o primeiro piso, no qual a
estrutura de madeira ganhava uma superfície maior,
muitas vezes utilizada para construir varandas que
permitiriam colocar as peles a secar durante o tempo mais quente. Estas ligeiras diferenças de áreas
parecem acentuar a leveza do ripado em madeira ao
assentar, numa base mais pequena, em alvenaria de
pedra.
São estes dois espaços — exteriores e interiores
— marcados pela textura dos materiais tradicionais,
como a pedra e a madeira, que organizaram as diversas fases do trabalho de curtimenta. Soluções construtivas, estritamente dependentes do tipo de produção
existente, distinguiram os núcleos de produção dos
couros em Guimarães.
3. Que indústria de curtumes?
(...) O processo fabril consiste na curtimenta das
pelles ou couros em lagares alimentados pela água
do regato, com emprego de cascas de carvalho e cal,
e finda ella na surragem manual dos ditos couros e
na sua secagem ao tempo. Os produtos serão couros
secos ou atanados (...)39. A descrição do modo como
se laboravam os couros no “burgo”, ainda durante o
século XX, surge espontaneamente descrita no pedido
de licenciamento para construir um estabelecimento
industrial, por parte de Domingos Ribeiro Martins da
Costa, em 1921.
Ainda que na Europa e nos Estados Unidos da América muitos avanços ao nível da indústria química se
tenham aplicado à actividade dos curtumes, nomeadamente através da utilização de sais de crómio, processo que conferia à curtimenta um carácter cada vez
mais científico, em Guimarães as diversas operações
continuavam a depender de um encadeado de fases
com início nos “trabalhos da ribeira”. O quadro 1
mostra que o processo de curtimenta se obtinha percorrendo catorze operações que duravam cerca de
seis meses.
13 | “Foulons para
cortir, para ensebar,
para lavagem, etc.”,
Revista Industrial
de Couros e Pelles,
Lisboa, ano 1,
1 dez. 1899, p.114.
monumentos 33
O Inquérito Industrial de 1881 referia que as técnicas de natureza artesanal e o trabalho manual
caracterizavam este sector produtivo, não se observando uma produção moderna — (...) o regime dos
grandes estabelecimentos, a concentração de capitais avultados, o emprego de potentes instrumentos,
a larga divisão do trabalho (...)40. As operações de
curtimenta realizavam-se em estabelecimentos de
dimensão reduzida e não dependiam de grandes
máquinas nem de conhecimentos técnicos muito
especializados.
Os foulons (fig. 13) para curtir, ensebar e lavar
constituíram o processo de mecanização mais avançado nestas fábricas, permitindo reduzir o tempo de
algumas operações, dependendo do número de máquinas adquiridas ou das funções que executavam.
A utilização dos foulons na fase da curtimenta contribuiu para que a casca de carvalho começasse a ser
substituída pelos extractos taninosos, permitindo uma
diminuição do tempo empregue em relação aos processos tradicionais.
N.º OPERAÇÕES / TIPO
A especificidade técnica da indústria de Guimarães
terá de ser compreendida dentro do quadro oficinal e
manufactureiro do trabalho dos couros, não se podendo esquecer a importância da Real Fábrica de Atanados de Povos (século XVIII) na criação de um arquétipo manufactureiro para esta actividade em Portugal.
Todavia, a concentração de oficinas para o tratamento
dos couros foi tão intensa e persistente na cidade de
Guimarães que a utilização do termo indústria ou fábrica não depende exclusivamente dos processos técnicos e da forma de organização da produção, mas da
criação de uma identidade cultural associada a esta
actividade da curtimenta.
Deolinda Folgado
Investigadora na área do património industrial
Direção-Geral do Património Cultural
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa
Imagens: 2, 5 a 8: Câmara Municipal de
Guimarães; 3 e 4: IHRU/Sistema de Informação
para o Património Arquitetónico; 9 a 12: Arquivo
Municipal Alfredo Pimenta.
OPERAÇÕES / DESIGNAÇÃO41
LOCAL
TEMPO
1
Demolhar — abrir os pólos da pele, preparar as fases seguintes.
Tanques rasos
ao chão/poça
1 semana
2
Pelame — 1.º banho. Águas continham o “tempero da curtimenta
reforçado com a adição de cal e sulfureto.
Tanques de
menor dimensão
3 dias
3
Descabelar — retiradas as peles dos pelames encontravam-se
prontas para a extracção do pelo, tarefa realizada com o auxílio
de uma “ferrelha”.
4
Preparação
para a
curtimenta
DOSSIÊ
30 a 45 minutos
por fazenda
Pelame — 2.º banho. As peles regressam aos pelames para
receberem um banho de cal fina, com a flor da pele voltada
para baixo.
5
Grosar ou descarnar, dependendo da utilização final das peles.
Uniformização da pele.
6
Zincalagem ou humada — preparada com base em excrementos
de pomba ou de cães e água. As peles ao serem mergulhadas
neste composto ficavam preparadas para receber a tanação,
após ocorrer a fermentação.
Tanques —
humada
5 a 15 dias
7
Abaldoar — as peles ao serem retiradas da humada eram
introduzidas em lagares com água limpa na qual se juntavam
cascas de carvalho. O objectivo é a libertação de taninos,
substância que confere imputrescibilidade às peles.
Lagares
24 horas
8
Atabicar o lagar — colocavam-se as peles uma a uma nos lagares
cheios de água e envoltas em carvalho moído.
Lagares
c. 3 meses
Casca — pela segunda vez dava-se um banho de casca.
O objectivo era que o tanino aderisse à pele.
Lagares
2 semanas
10
3.ª casca — para se alcançar um curtume definitivo dava-se
um último reforço de casca à pele.
Lagares
1 semana
11
Lavar à perna — tarefa realizada pela força dos homens que
mergulhados em água até aos joelhos iam exercendo a acção
de lavagem dos resíduos da casca.
12
Surrar — depois de escorridos os couros passavam para as
“tábuas de surrar”, extraindo-se o excesso de tanino com a ajuda
de uma “pissara”.
30 minutos
Secar — processo que visava secar, atribuir uma determinada
densidade e dar brilho à flor da pele.
1 mês
Engordurar ou engraxar — depois de terem passado pelo
secadouro as peles eram engorduradas com sebo.
Esticava e uniformizava a pele.
Total c. 5 meses
e meio a 6 meses
9
13
14
Curtimenta
Ultimação/
acabamento
49
50
DOSSIÊ
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N OTA S
O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico por opção expressa da autora.
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19
RELATÓRIO da Exposição Industrial de Guimarães em 1884. Porto: Typographia
de António José da Silva Teixeira, 1884, p. 75.
Assinada a 16 de Novembro, no decurso da XVII Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, reunida em Paris,
de 17 de Outubro a 21 de Novembro de 1972.
No artigo “Património Inclusivo. Das expectativas aos desafios” apresentei quatro grandes etapas como proposta de leitura para a evolução do património nos
seus vários aspectos, quer quanto ao conceito e designações, quer quanto à
proliferação de cartas e convenções internacionais: primeira etapa, 1931-1954
— o domínio do património histórico-artístico; segunda etapa, 1954-1972 — dos
bens culturais ao património natural; terceira etapa, 1972-2003 — mais tipologias patrimoniais; quarta etapa, 2003/2005-… — entre o património imaterial e
o social. Cf. Deolinda FOLGADO — “Património Inclusivo. Das expectativas aos
desafios”. In Jorge CUSTÓDIO — 100 Anos de Património..., pp. 323-335.
O aparecimento da arqueologia industrial emergiu no contexto da reconstrução
da Grã-Bretanha saída do flagelo da Segunda Grande Guerra, no âmbito no
Plano Marshall (1947). Os vestígios materiais legados pela primeira revolução
industrial inglesa constituíram, numa fase inicial, elementos fundamentais
para a História. Conceptualizada, em 1955, pelo histórico Michael Rix como o
(...) estudo sistemático das estruturas e artefactos que alargam a nossa compreensão sobre o passado industrial (...) a arqueologia industrial chega à Europa
na década de 1970. Esta nova ordem patrimonial implicou várias revisões dos
conceitos operatórios ou das terminologias utilizadas até então, devido à sua
complexidade material que implica necessariamente uma interpretação interdisciplinar e que aporta novos problemas metodológicos, quer sejam relacionados
com o seu conhecimento, quer com a sua protecção ou reutilização. Será no
final da década de 1970, numa conferência em Estocolmo, que surge o conceito
de património industrial — engloba o período da actividade humana caracterizada pela industrialização e contempla o conjunto de bens imóveis e móveis,
bem como as fontes de energia e matéria-prima, os locais de trabalho, o habitat,
a utensilagem tecnológica, os meios de transporte, para além da documentação
escrita, gráfica, iconográfica e dos produtos — que universalizará um campo
epistemológico no âmbito dos vestígios técnico-industriais. Foi no seio desta
conferência que nasceu o TICCIH.
Criação do Instituto Português do Património Cultural (em 1980), no âmbito da
tutela da Cultura, primeiro na esfera da Secretaria de Estado da Cultura e, mais
tarde, do Ministério da Cultura, aproximando-nos do modelo francês desenvolvido por André Malraux, na década de 1960.
Cf. Gomes ALVES — “A zona de interesse arqueológico-industrial das antigas fábricas de curtumes em Guimarães”. Revista de Guimarães, 1977, vol. LXXXVII, p. 283.
Cf. Jorge CUSTÓDIO — “A fábrica de neve de Montejunto no contexto da arqueologia industrial em Portugal”. In Deolinda FOLGADO (coord.) — A Fábrica de
Neve..., p. 85.
A proposta de classificação do edifício da central eléctrica de Tomar, bem como
dos seus equipamentos tecnológicos, resulta de um documento elaborado por
Marques da Costa, finalista do curso de História, em Agosto de 1978, da Faculdade de Letras de Lisboa. Esta central, inaugurada em 1901 pela empresa Jean
Boudain & C.ª, que distribuiu num primeiro momento energia eléctrica à cidade
de Tomar; insere-se num universo técnico-industrial mais vasto, integrando um
conjunto urbano estruturante da identidade de Tomar. O conjunto industrial
encontra-se em vias de classificação.
A exposição realizada na Central Tejo, em 1985, designou-se de Arqueologia
Industrial. Um Mundo a Descobrir. Um Mundo a Defender.
Classificada como Imóvel de Interesse Público (Decreto-Lei n.º 1/86).
Classificada como Monumento Nacional (Decreto-Lei n.º 2/96).
Classificada como Imóvel de Interesse Público (Decreto-Lei n.º 67/97).
Classificada como Monumento Nacional (Decreto-Lei n.º 67/97).
O processo administrativo que se encontra na Direcção Regional de Cultura do
Norte não integra a proposta inicial e o primeiro documento data apenas de 15
de Outubro de 1980. Deste modo não podemos analisar os elementos iniciais
apresentados na fase de instrução do processo, nem os pareceres emitidos, nem
as personalidades envolvidas nesta proposta de classificação.
Para finalizar este processo de classificação e para que seja atribuído o grau
mérito de Imóvel de Interesse Público a este conjunto é necessário que esta
informação seja publicada em Diário da República.
Os representantes dos diversos organismos foram: Dr.ª Maria João Vasconcelos,
pela Secretaria de Estado da Cultura; Manuel Ferreira (vereador), pela Câmara
Municipal de Guimarães; Arq.º Manuel Marques de Aguiar, pelo Ministério da
Habitação e Obras Públicas; não esteve presente nenhum representante da Secretaria de Estado do Ordenamento Físico e Ambiente. A missão desta comissão
prendera-se com o cumprimento do despacho do secretário de Estado da Cultura (de 6 de Novembro de 1978), homologando o parecer da Comissão Organizadora do Instituto de Salvaguarda do Património Cultural e Natural — COISPCN
(de 3 de Novembro de 1978). Desconhece-se o teor do despacho do secretário
de Estado da Cultura, bem como do parecer da COISPCN. Cf. Secretaria de Estado da Cultura, Direção Regional de Cultura do Norte, Proposta de Classificação
para um conjunto de cinco fábricas em Guimarães, Proc. nº 6/13/15-8 (3).
Idem.
Idem.
Este núcleo cultural previu a integração de um museu da indústria; de um auditório e teatro; de instalações para o funcionamento dos grupos culturais já
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existentes; de uma escola de música; de serviços camarários que apoiassem o
núcleo cultural; da instalação de pequenas oficinas (tecedeiras, marceneiros,
sapateiros, etc.). Cf. Secretaria de Estado da Cultura, Direção Regional de Cultura do Norte, Proposta de Classificação para um conjunto de cinco fábricas em
Guimarães, Proc. nº 6/13/15-8 (3).
A Dr.ª Margarida Vasconcelos, do Museu Alberto Sampaio, apresentou uma
comunicação intitulada “Sobre as formas de evolução da salvaguarda da zona
de rio de Couros”; Paulo Vieira de Castro, da Associação para a Defesa do Património de Guimarães a MURALHA, comunicou com o título “Defesa do património: revitalização da antiga zona industrial dos curtumes (rio de Couros)”; e
o Arq.º José Manuel Dinis Ribeiro centrou a sua apresentação na “Reutilização
da zona do rio de Couros”. As ideias apresentadas, assentes nas especificidades
do território, procuraram valorizar o rio, a relação entre o espaço urbano e o
rural, o estabelecimento de percursos, ou a constituição de um museu associado
à herança cultural dos couros, entre outras. Realizou-se ainda uma visita guiada
à fábrica de curtumes da Madrôa. Este Encontro Nacional sobre o Património
Industrial (1986), organizado pela Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, realizou-se em três cidades: Guimarães, Coimbra e Lisboa. Cf. Jorge
CUSTÓDIO (coord.) — I Encontro Nacional sobre o Património Industrial.
Refira-se que no decurso de uma nova dinâmica local para a política de reabilitação criam-se alguns serviços fundamentais para a sua concretização: Gabinete
Técnico Local (1985); Gabinete do Centro Histórico, coordenado inicialmente
pela Arq.ª Alexandra Gesta e assessorado ao nível técnico-científico pelo Arq.º
Fernando Távora. Quanto às áreas de intervenção refira-se que se verificou (...)
uma redução relativa da área de intervenção, centrando-se na zona intra-muros,
baseado num então proposto faseamento tripartido, [porém] a zona de Couros
manteve sempre uma notoriedade e uma expectativa singular no âmbito das
políticas de reabilitação e revitalização urbana de Guimarães (...). Cf. PROJECTO
CampUrbis/Parceria para a Regeneração Urbana de Couros.
O Projecto CampUrbis, concebido especialmente para a Zona de Couros, resulta
da definição de um plano que visa reabilitar esta área e os edifícios associados
à indústria da curtimenta, reutilizando-os com base num programa estratégico
para a cidade. O projecto tem como entidades impulsionadoras a Câmara Municipal de Guimarães e a Universidade do Minho, e procurou (...) desenvolver
uma plataforma capaz de induzir actividade económica baseada numa interacção sustentável entre inovação, tecnologia e cultura, ancorada num intenso esforço de formação de recursos humanos (...). Cf. PROJECTO CampUrbis/Parceria
para a Regeneração Urbana de Couros.
Padre A. Carvalho da COSTA — Corographia Portuguesa, p. 50.
A. L. de CARVALHO — Os Mesteres de Guimarães, p. 93. Quanto à actividade
de curtimenta desenvolvida na Corredoura, um artigo publicado na Ilustração
Portuguesa, refere que (...) Guimarães não só pelas suas fábricas de fiação e
tecidos, cutilarias e pentearias mas ainda pela sapataria e cortumes é a mais
industrial cidade do norte do paiz. A laboração dos cortumes na cidade é enormíssima mas na Corredoura também estas fábricas trabalham e de dia para
dia se desenvolvem (...). Cf. Manuel da Silva LEITE — “Curtimento de peles”.
Ilustração Portuguesa, 1912, p. 601. É também importante compreender o que
existia na área que foi alterada com a construção da avenida que ligou o Toural à
estação de caminho-de-ferro, em 27 de Março de 1890, uma vez que atravessou
o arrabalde dos couros, através da construção de um túnel.
Dependente da evolução dos meios técnicos, as indústrias ou oficinas estão
mais ou menos afastadas dos recursos, como a água ou as matérias-primas.
Mapear a indústria no território pode constituir um estudo fascinante, pois
permitirá a apreensão das técnicas utilizadas, dos sistemas construtivos, do
aproveitamento dos recursos, da especialização de alguns sectores, da cultura
produzida, numa análise estreita com as especificidades de cada zona geográfica num determinado período histórico.
Cf. Lewis MUMFORD — Técnica Y Civilizacion. 2.ª ed. Madrid: Alianza Universidad, 1997; Deolinda FOLGADO — A Nova Ordem Industrial. Da Fábrica ao
Território de Lisboa. 1933-1968. Lisboa: s.n., 2009, dissertação de doutoramento
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
(...) Para sudoeste de Gatos, e como o próprio nome indica e o conteúdo dos
documentos permite confirmar, o local dos Couros (dito quer ‘rua de’, quer ‘rio
de’, em significado alternativo) configurava a zona de pelames da vila. Já se
referia o seu dinamismo em tempos recuados: no foral de 1096 mencionavam-se
as peles (de coelho, boi ou vaca) (...). Cf. Maria da Conceição Falcão FERREIRA
— Guimarães: Duas Vilas..., pp. 294-295.
Idem, ibidem, p. 296. Para uma melhor compreensão desta zona importa, pelo
menos, observar a Rua da Caldeiroa e da Madrôa e a área envolvente ao Convento de São Francisco.
Engenheiro Almeida Ribeiro — professor de arquitectura civil e naval da Academia Portuense de Belas-Artes, celebrou escritura com a câmara para a elaboração do plano de urbanização, a 2 de Outubro de 1863. Este plano compõe-se
de treze folhas e um preâmbulo. Cf. Manuel Alves de OLIVEIRA — Guimarães
uma Resenha Urbanística....
Cf. Idem, ibidem, p. 25.
A Comissão de Melhoramentos nomeada pela Câmara Municipal de Guimarães
tomou posse a 5 de Julho de 1869. Cf. Idem, ibidem, p. 30.
Também a classificação das indústrias começou a constituir uma questão
fundamental, essencialmente a partir de meados do século XIX. As fábricas
organizavam-se em três classes: primeira classe — estabelecimentos que não se
deviam permitir dentro nem próximo das cidades; segunda classe — apesar de
poderem estar nas cidades, importava saber que tipo de operações realizavam,
se eram incómodas, insalubres ou nocivas; terceira classe — podiam existir
dentro das localidades. Esta classificação, dependente da perigosidade das operações ou da insalubridade dos estabelecimentos industriais, contribuiu para a
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deslocalização de determinadas actividades. Ainda em 1964, as indústrias de
primeira e segunda classes necessitavam de autorização do Ministério das Obras
Públicas, do secretário de Estado da Indústria, quanto à sua localização, para
além das regras do condicionamento.
(...) A falta de higiene e [a] insalubridade verificada em Guimarães conduziu
os industriais a uma tomada de posição. Em 1919, a Associação Comercial, sob
a presidência do Dr. Eduardo de Almeida [...] dirigiu uma representação ao Governo apelando à tomada de medidas profiláticas para se evitar o alastramento
das epidemias da varíola e do tifo exantamático, cuja virulência se assenhoreava
sobretudo dos bairros operários (...). Cf. Maria Elisabete de Sousa PINTO — Curtidores e Surradores (1865-1923)..., p. 195.
Cf. Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP), Anteplano de Urbanização da
Cidade de Guimarães, 1949, vol. I, p. 7.
Cf. AMAP, Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949, vol. I,
p. 39. Ver o regulamento proposto para a nova zona industrial.
Deolinda FOLGADO — A Nova Ordem Industrial...
Cf. AMAP, Anteplano de Urbanização da Cidade de Guimarães, 1949, vol. II,
p. 34.
A consulta de inquéritos ou de exposições industriais, bem como dos processos
de obra, surgiu como um processo natural que permitiria contribuir para explicar os objectivos estabelecidos. Consultaram-se o Mappa das fábricas que existem na villa, termo e commarca de Guimarães, 1815; os Inquéritos Industriais de
1881 e 1890; a Exposição Industrial, realizada em Guimarães no ano de 1884; o
Licenciamento Industrial de 1915 e os processos de obra existentes no Arquivo
Municipal Alfredo Pimenta para um período de nove anos — 1921 e 1930 (de
acordo com a documentação existente).
Cf. AMAP, Processo de Obras de Domingos Ribeiro Martins da Costa.
Cf. Inquérito Industrial de 1881..., p. 273.
Quadro elaborado com base no trabalho de Elisabete de Sousa PINTO — Curtidores e Surradores (1865-1923)....
F O N T E S
D O C U M E N TA I S
Arquivo do Ministério das Obras Públicas (AMOP), M. Diderot, M. d’Alembert,
Encyclopedie, ou Dictionnaire raisonné dês Sciences, des Arts et des métiers, par
une societé de gens de lettres, Paris, tomo IV, 1754;
Mappa das fábricas que existem na Villa, Termo e Commarca de Guimarães,
1815.
Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP), Alargamento da cidade e Novos Paços
do Concelho, Memórias Descritivas. Guimarães: Tipografia Minerva Vimaranense, 1925; Anteplano de urbanização da Cidade de Guimarães, Porto, 1949, vol.
I; Processo de obras de António F. de Melo Guimarães. Cota – B.25-3-1. Proc.
250; Processo de obras de António José d’Oliveira, Cota — B.25-3-1. Proc. 153;
Processo de obras de Curtumes da Caldeiroa Ld.ª, Cota — B.25-3-1 / Proc. 37;
Processo de obras de Domingos Ribeiro Martins da Costa, Cota — 25-3-2, Proc.
159; Processo de obras da Fábrica de Roldes, Cota — B-13-3-104-b. Proc. 176;
Processo de obras de Joaquim Luciano Guimarães, Cota — B.25-3-1. Proc. 3;
Processo de obras de Joaquim Luciano Guimarães, Cota — B-25-3-1 / Proc. 427;
Processo de obras de Joaquim Luciano Guimarães, Cota — B.25-3-1. Proc. 512;
Processo de obras de José Torcato Ribeiro Júnior, Cota — B.22-2-72. Proc. 32; Processo de obras de Simão Ribeiro, Cota — B.25 -3-1. Proc. 600; Processo de obras
de Simão Ribeiro C.ª, Cota — B.22-2-72. Proc. 97; Processo de obras da Sociedade de Cortumes António José d’Oliveira, F.ºs Ld.ª, Cota — B.22-2-72. Proc. 93.
PROJECTO CampUrbis / Parceria para a Regeneração Urbana de Couros. Política das
cidades POLIS XXI, Programa da Região Norte 2007-2013. Programa de Acção,
Abril de 2008.
Secretaria de Estado da Cultura, Direção Regional de Cultura do Norte, Proposta de Classificação para um conjunto de cinco fábricas em Guimarães, Proc.
N.º 6/13/15-8 (3).
B I B L I O G R A F I A
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51
52
DOSSIÊ
monumentos 33
A pintura mural do século XVI
em Guimarães
J O A Q U I M I N Á C I O C A E TA N O
Introdução
Um estudo sobre a pintura mural da região de Guimarães incidirá, inevitável e quase exclusivamente,
sobre a produção do século XVI, uma vez que a grande maioria dos espécimes ainda existentes ou referenciados, mas desaparecidos, corresponde a este
período.
Este tema tem vindo a ser estudado e divulgado
desde os anos quarenta do século passado, tendo sido
Alfredo Guimarães o primeiro estudioso a fazer pesquisas sistemáticas, quer em documentação quer no
terreno, dando a conhecer os resultados em artigos
publicados nos Estudos do Museu Alberto Sampaio1.
Já na década de 1980, Franquelim Neiva Soares, através do estudo dos Livros de Visitações do século XVI2,
enumera várias igrejas onde é referida a existência de
pintura mural, entretanto destruída. Na primeira década do século seguinte é publicado um artigo3 onde
se investiga o modo de produção da pintura mural dos
séculos XV e XVI, identificando várias oficinas ativas
na zona de Vila Real, e se dá a conhecer o seu corpus,
fazendo parte de um deles algumas pinturas do aro
de Guimarães. Por ocasião do X Encontro de História
Local vimaranense, em 2002, Catarina Vilaça de Sousa publica um excelente artigo4 onde faz uma análise
exaustiva, sob vários pontos de vista, dos exemplares até então conhecidos. Na mesma ocasião é produzido um roteiro da pintura mural de Guimarães5.
Por fim, mais recentemente e no âmbito das suas
dissertações de doutoramento, Luís Afonso6 e Paula
Bessa7 analisam as várias pinturas murais conhecidas
nesta região.
A primeira questão que se coloca quando se aborda
o tema da pintura mural de Guimarães, isto é, da pintura mural que podemos considerar incluída na região
de Guimarães, é a de quais são os limites geográficos
que devemos considerar, uma vez que as fronteiras
administrativas não podem ser, nem foram ao tempo
da execução destas pinturas, limitativas da circula-
ção de pintores e oficinas. Deste modo, partimos dos
exemplares conhecidos e existentes numa área restrita
centrada em Guimarães e, pelo conhecimento que temos do seu modo de produção oficinal, alargaremos
a abordagem a outros espécimes, eventualmente fora
do que poderemos chamar “região” de Guimarães,
para termos uma melhor perceção do fenómeno e das
características de cada oficina.
Uma vez que este assunto não é de todo novidade,
como podemos perceber pelos vários estudos que
lhe são dedicados, corremos o risco de nos repetir
em relação ao que foi dito, o que aliás é inevitável
uma vez que não existem novas investigações sobre
este núcleo de pinturas e estas fontes são incontornáveis.
As pinturas
Numa área restrita, centrada em Guimarães, estão
referenciados vinte e sete conjuntos pictóricos dos
quais restam apenas oito (fig. 1), tendo desaparecido
um número significativo nas décadas de trinta e de
quarenta do século passado, alguns referenciados e
estudados por Alfredo Guimarães8, como os da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e do Convento de São Francisco, em Guimarães, e das igrejas
Matriz de Cerzedo, São Romão de Arões, Santa
Eulália de Pentieiros (atualmente anexada a Tabuadelo) e do Salvador de Pinheiro. Mais recentemente foram também destruídas as pinturas das igrejas paroquiais de São João do Calvos e de Joane,
Aborda-se neste artigo a pintura mural da região de Guimarães
sob o ponto de vista da sua expressão territorial e do modo de
produção oficinal. Descrevem-se, também, de um modo sucinto,
os vários exemplares remanescentes associando entre si as pinturas
que fazem parte do corpus das várias oficinas identificadas.
monumentos 33
como consequência de grandes transformações e
de demolições nos edifícios. No conjunto houve
destruição de pintura mural nas seguintes igrejas:
Abação, Agrela, Armil, Arões (São Romão), Caldas,
Calvos, Cepães, Cerzedo, Gominhães, Gondomar,
Gontim, Guimarães (Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e São Francisco), Joane, Pedraído,
Ribeiros, Santa Eulália de Pentieiros (Tabuadelo), Selho (São Lourenço), Silvares, Sobradelo e
Travassos. As pinturas remanescentes deste vasto
conjunto encontram-se nas igrejas de: Arões (São
Romão), Corvite, Guimarães (São Francisco), Negrelos, Pinheiro, Sanfins de Ferreira, Serzedelo e
Telões.
Apesar da proximidade geográfica de Braga, Felgueiras e Amarante, com exceção das igrejas de Santo
André de Telões (Amarante) e de São Salvador de Ribas (Celorico de Basto), porque têm pinturas atribuíveis a uma das oficinas de Guimarães, não incluímos
neste estudo as pinturas desse aro porque, apesar
de existir também um número significativo de exemplares, grande parte deles resultam de encomendas
coletivas do Mosteiro de Pombeiro9, sendo produção
de outras oficinas por nós identificadas com áreas de
influência10 que ultrapassam a região de Guimarães,
como podemos observar no mapa da fig. 2.
DOSSIÊ
53
As oficinas
Algumas destas pinturas fazem parte do corpus de
oficinas ativas durante o século XVI nesta região e
são designadas em estudos anteriores por Oficina do
Mestre Delirante11, Oficina das Volutas12 e Oficina da
Moldura13.
O primeiro grupo é constituído pelas pinturas
da Capela de São João Batista do Convento de São
Francisco, das quais resta apenas A Degolação de
São João Batista, pintura destacada, atualmente no
Museu de Alberto Sampaio; pelas pinturas da parede
fundeira da capela-mor da Igreja de Santa Cristina de
Serzedelo, das quais foram destacadas as representações de Santa Luzia e da Anunciação, que estão expostas na igreja, continuando in situ, São Martinho e
Santo Antão; pela composição A Natividade no arco
triunfal da Igreja de Santo André de Telões14 (fig. 3);
e, escondido por detrás do altar colateral do lado do
Evangelho, O Martírio de São Sebastião, na Igreja do
Salvador de Pinheiro, tendo sido estas duas últimas
pinturas descobertas recentemente.
Da segunda oficina identificada, Oficina das Volutas,
fazem parte: os conjuntos da Igreja de Santa Maria de
Corvite, compostos pelas pinturas da parede fundeira
(representando São Brás, Nossa Senhora com o Menino
1 | Noroeste de
Portugal, mapa da
área restrita, centrada
em Guimarães, com
a localização das
igrejas com referência
à existência de pintura
a fresco do século XVI.
Estão marcados a
vermelho os conjuntos
remanescentes e a
amarelo as pinturas
destruídas; marcação
efetuada pelo autor.
54
DOSSIÊ
monumentos 33
triunfal (São Sebastião, do lado do Evangelho, e Nossa
Senhora com o Menino, do lado da Epístola) e na parede norte adjacente ao arco triunfal (Santa Catarina
e São Miguel); no arco triunfal da Igreja de São Pedro
de Sanfins (São Brás); e ainda as destruídas pinturas
da Igreja de São João dos Calvos, das quais não se
conhece qualquer representação figurativa. Poderá
também fazer parte do corpus desta oficina a pintura
recentemente descoberta na Igreja de São Salvador de
Ribas (Celorico de Basto), pois são grandes as afinidades no tratamento dos rostos e no desenho dos olhos15
(fig. 4). Atendendo ao repertório decorativo deste
conjunto de pinturas e, também, à referência existente
no Livro de Visitações, de 1548, podemos datá-las de
meados do século XVI.
E, por fim, o corpus da terceira oficina é constituído
por uma das campanhas das paredes laterais da nave
da Igreja de Santa Cristina de Serzedelo (fig. 7, campanha G) e pelas destruídas pinturas da Igreja de
Joane, com a representação de São Tiago e de dois
anjos.
2 | Noroeste de
Portugal, mapa com
a localização do
corpus de pinturas
de duas oficinas ativas
nesta área: Oficina
do Mestre Arnaus,
a vermelho, e Oficina II
do Marão, a azul;
marcação efetuada
pelo autor.
As igrejas e suas pinturas
Igreja de Santa Cristina de Serzedelo, Guimarães
3 | Amarante, Igreja
de Santo André
de Telões, parede
do arco triunfal,
Natividade,
fotografia de autor
desconhecido, 2008.
4 | Celorico de Basto,
Igreja de São Salvador
de Ribas, pormenor
da pintura mural,
fotografia de Joaquim
Inácio Caetano, 2012.
e Santo Antão), da parede adjacente, do lado do Evangelho (um santo não identificado), da parte superior
do arco triunfal (Calvário), do altar colateral do lado
do Evangelho (Santa Catarina e Santa Bárbara) e do
lado da Epístola (Martírio de São Sebastião); uma das
campanhas da Igreja de Santa Cristina de Serzedelo,
de que fazem parte as pinturas localizadas no arco
As pinturas atualmente existentes situam-se na
capela-mor (parede fundeira e em parte das paredes
adjacentes), no arco triunfal e nas paredes laterais da
nave, correspondendo a seis campanhas pictóricas.
A dependência anexa à capela-mor, que foi construída como panteão e que hoje serve de sacristia,
encontra-se parcialmente revestida com pintura mural, ocupando a totalidade da parede nascente e da
zona adjacente da parede norte, onde se podem observar três campanhas distintas. Da mais antiga pode
identificar-se a figura de São Cristóvão, vendo-se apenas as suas pernas. Sobre esta campanha corre outra
de grotescos largos com as figuras de Santa Luzia e de
São Martinho, já ilegíveis. Na parte central da parede
e por cima da fresta observam-se pequenos fragmentos da terceira campanha, reconhecendo-se a figura
de Nossa Senhora a ser coroada por anjos.
Esta quantidade, pouco habitual, de campanhas
pictóricas deve-se, possivelmente, à importância que
esta igreja, enquanto casa monacal, terá tido durante
o século XVI. Algumas destas campanhas correspondem à produção das oficinas que referimos anteriormente, para que a sua leitura e a sua identificação
sejam mais fáceis apresentamos um esquema de localização das diversas campanhas (figs. 5 a 7).
Na capela-mor resta, in situ, um conjunto pictórico composto por dois registos. No primeiro registo
a contar de baixo encontram-se a representação de
Santo Antão, à esquerda do altar, e São Martinho,
do lado contrário. Estas duas composições são encimadas por um conjunto de brutescos e rematadas
superiormente pela figura do Padre Eterno, presentemente tapada pelo teto de madeira. Desta campanha
monumentos 33
5 | Serzedelo, Igreja
de Santa Cristina,
sacristia, identificação
das campanhas
pictóricas:
A. Primeira campanha
— São Cristóvão;
B. Segunda campanha
— grotescos, Santa
Luzia e São Martinho;
C. Terceira campanha
— fragmentos da
Coroação de Nossa
Senhora; fotografia
de Joaquim Inácio
Caetano, 2012.
6 | Igreja de Santa
Cristina, capela-mor,
identificação das
campanhas pictóricas:
D. Primeira campanha
— grotescos, Padre
Eterno, Santo Antão
e São Martinho e as
destacadas Santa
Luzia e Anunciação;
E. Segunda campanha
— fragmentos sem
leitura; fotografia
de Joaquim Inácio
Caetano, 2012.
7 | Igreja de Santa
Cristina, nave,
identificação das
campanhas pictóricas:
F. Primeira campanha
— barra decorativa;
G. Segunda campanha
— grotescos e Santa
Catarina;
H. Terceira campanha
— São Francisco
e Santo António;
I. Quarta campanha
— São Miguel,
São Sebastião, Nossa
Senhora com o Menino
e São Remígio (?),
e São Brás; fotografia
de Joaquim Inácio
Caetano, 2012.
8 | Igreja de
Santa Cristina, nave,
Nossa Senhora com
o Menino, fotografia
de Joaquim Inácio
Caetano, 2012.
9 e 10 | Igreja de
Santa Cristina, nave,
composições de
grotescos, fotografias
de Joaquim Inácio
Caetano, 2012.
DOSSIÊ
fazem parte também duas pinturas destacadas que
se encontravam sobre a fresta, uma Anunciação e
uma Santa Luzia, respetivamente no registo superior
e inferior, e que presentemente se encontram expostas nas paredes laterais da nave (campanha D).
Sobre a figura de São Martinho observam-se dois
pequenos fragmentos de uma camada de pintura
sobreposta a esta (campanha E), e que terá sido destruída aquando da intervenção da Direção-Geral dos
Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) em
1957. Esta situação indica-nos que também aqui houve uma modernização no que diz respeito à decoração
com a execução de uma segunda campanha pictórica,
cuja extensão desconhecemos.
Na nave, vamos encontrar pintura no arco triunfal
prolongando-se pelas paredes adjacentes. Do lado do
Evangelho, no arco triunfal, estão representados São
Francisco (campanha H), num registo superior, e São
Sebastião, no registo inferior. Na parede contígua da
nave observa-se a toda a altura uma banda de brutescos rematada inferiormente pelas figuras de Santa
Catarina e de São Miguel. Do lado da Epístola, e numa
relação simétrica relativamente às pinturas anteriormente descritas, temos Santo António e Nossa Senhora com o Menino (fig. 8) e uma banda de grotescos
rematada pelas figuras de São Remígio (esta identificação não é segura, no entanto, pelo atributo que se
observa no canto superior esquerdo, uma ampola de
vidro e as asas de uma pomba, leva-nos a crer que se
tratará deste santo) e de São Brás.
Também aqui temos várias campanhas pictóricas,
quatro no total. Da primeira apenas se veem pequenas áreas através de algumas lacunas da composição
de brutescos. Da segunda campanha farão parte as
bandas de grotescos e Santa Catarina, da terceira
a representação das figuras de São Miguel, São Sebastião, Nossa Senhora com O Menino, São Remígio
e São Brás. São Francisco e Santo António pertencerão a uma outra campanha relativamente à qual
não associamos outras pinturas. Nas paredes laterais da nave, por cima das composições figurativas,
observam-se decorações de grotescos sobre fundo
vermelho (figs. 9 e 10).
55
56
DOSSIÊ
monumentos 33
12 | Guimarães,
Museu Alberto
Sampaio, Degolação
de São João Batista,
pintura destacada
proveniente da Casa
Capitular do Convento
de São Francisco,
fotografia de autor
desconhecido, s.d.
11 | Pinheiro, Igreja de
São Salvador, Martírio
de São Sebastião,
fotografia de autor
desconhecido, 2008.
Igreja de São Salvador de Pinheiro, Guimarães
Das pinturas existentes nesta igreja não resta senão
o que ficou escondido pelos retábulos colaterais. Do
lado de Evangelho encontram-se representações de
São Brás e do Martírio de São Sebastião (fig. 11) e
do lado da Epístola a representação de Santo Antão e
um painel de pintura decorativa. Estas composições
encontram-se bastante mutiladas e de difícil leitura
devido às condições em que se encontram.
Tendo em conta alguns pormenores da composição,
como as vestes do arqueiro, esta campanha pictórica
é atribuível à Oficina do Mestre Delirante.
Igreja de Santo André de Telões, Amarante
Por detrás do retábulo-mor existem vários fragmentos de diferente tamanho, dispersos por toda esta
parede e paredes adjacentes, onde se identificam, na
zona superior, de cada lado da fresta, um anjo segurando a ponta de uma espécie de grinalda de elementos esféricos (rosário?) e, na zona inferior, os pés descalços e parte quer da túnica de Santo André, quer
das hastes da sua cruz.
Tendo em conta o reduzido número e tamanho dos
fragmentos, é muito difícil identificar o esquema compositivo sem um termo de comparação. O que resta
desta pintura remete-nos para o conjunto de pinturas
que designámos por Oficina II do Marão16 e, em particular, para a pintura da parede fundeira da capela-mor
da Igreja de Santa Marinha de Vila Marim.
No arco triunfal conservou-se uma composição, quase completa, representando uma Natividade (fig. 3).
Numa leitura mais apressada poderíamos pensar
tratar-se de outro exemplar atribuível à oficina referida anteriormente, devido à existência, no lado direito
da zona inferior da composição, de uma barra de enrolamento semelhante à que identificámos na parede
fundeira da capela-mor. No entanto, percebe-se que
essa barra, assim como a área contígua de cor rosa,
correspondem a um reboco de uma intervenção pictórica distinta e anterior à da composição da Natividade.
Estamos, assim, perante duas pinturas diferentes, sendo a pintura subjacente atribuível à Oficina II do Marão e a representação da Natividade correspondente
a outra campanha posterior, que cremos atribuível à
Oficina do Mestre Delirante17 de Guimarães. Além da
existência de pormenores semelhantes entre esta pintura e a Degolação de São João Batista, pintura destacada da Casa Capitular do Convento de São Francisco
de Guimarães (que se encontra atualmente no Museu
de Alberto Sampaio), acresce o facto de o padroado
da Igreja de Santo André de Telões pertencer, no século XVI, à Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira
de Guimarães18. Esta situação terá favorecido a produção de pintura pelos mesmos pintores ou oficinas
nas igrejas pertences a esta colegiada à semelhança
do que se passava noutras zonas, como nas igrejas dependentes do padroado de Pombeiro19, por exemplo.
Igreja e Convento de São Francisco, Guimarães
De um vasto conjunto de pinturas existente neste
conjunto monástico20 restam apenas in situ, detrás do
retábulo-mor de talha dourada, alguns fragmentos de
uma decoração que revestiria, se não toda a igreja,
pelo menos a capela-mor. Deste conjunto remanescente, apenas se identifica uma pintura figurativa
fragmentada na parede fundeira e de difícil leitura
por se encontrar parcialmente coberta com cal. Toda
a restante pintura é decorativa e teria revestido completamente este espaço. Do ponto de vista formal este
conjunto decorativo tem afinidades com as pinturas
da Igreja de São Francisco de Leiria21.
Das pinturas destacadas é importante referir a que
representa a Degolação de São João Batista (fig. 12),
localizada originalmente na parede norte da Casa Capitular do convento, tendo sido destacada em 1940 no
âmbito da intervenção da DGEMN.
Este exemplar inscrevia-se numa composição murária mais alargada, retratando igualmente dois anjos
e a cena do Batismo de Cristo, composições hoje perdidas. Podemos atribuir este exemplar à produção da
Oficina do Mestre Delirante de Guimarães.
monumentos 33
Igreja de Santa Maria de Corvite, Guimarães
13 | Corvite, Igreja
de Santa Maria,
capela-mor, pinturas
murais da parede
fundeira, fotografia
de Joaquim Inácio
Caetano, 2012.
A mais antiga referência a esta igreja aparece no
Livro de Visitações de 1548, do qual Franquelim Neiva
Soares22 faz a seguinte transcrição: (...) Item Mando aos
freigueses que pintem o altar de São Bastião de romano
sob penna de dozemtos reaes para as obras da see (...).
Como na maior parte dos casos das pinturas do século XVI, este conjunto “sobreviveu” por ter ficado escondido por detrás de retábulos de talha, mantendo-se em
relativo bom estado de conservação tendo em conta as
vicissitudes por que passou. Com as pinturas expostas,
devido ao apeamento dos retábulos para restauro, e ao
abandono da igreja por ausência de culto, o seu estado
de conservação tem vindo a piorar rapidamente.
Pode observar-se na capela-mor uma composição
(fig. 13) onde, numa imitação retabular, está representada Nossa Senhora com o Menino em posição central, ladeada por Santo Antão e São Brás. A pintura
deveria revestir também a parede adjacente do lado
norte, podendo ainda observar-se a representação de
São Domingos.
Na nave as pinturas encontram-se somente no arco
triunfal onde, na parte superior, se identifica um Calvário em mau estado de conservação e parcialmente
coberto por camadas de cal. Nos altares colaterais estão representadas Santa Catarina e Santa Bárbara, do
lado do Evangelho, e o Martírio de São Sebastião, do
lado da Epístola.
Do ponto de vista formal podemos dizer que se privilegia o desenho na definição das formas. Os vários
elementos das composições, sejam decorativos ou figurativos, são contornados com linhas bem definidas,
passando-se, com bastante contraste, de uma cor a
outra, sem utilização de meios tons. Outra característica destas composições é a utilização de uma linguagem decorativa de elementos vegetalistas, folhas
de acanto, em enrolamentos que envolvem as composições figurativas, assim como o tipo de moldura
que as enquadra, resultando de uma campanha de
modernização das pinturas ao romano, como é referido na visitação. Esta situação não se observa no altar
colateral do lado do Evangelho, onde as figuras estão
inseridas numa moldura simples.
DOSSIÊ
57
Igreja de São Pedro de Sanfins de Ferreira,
Paços de Ferreira
Das pinturas que terão revestido as paredes desta
igreja, não resta senão uma figura fragmentada, representando São Brás (fig. 14), no altar colateral do
lado do Evangelho. A leitura é confusa devido à deslocação de pedras e seu assentamento noutro lugar,
consequência provável do alargamento do arco triunfal. Na parede da nave adjacente podem observar-se,
ainda, alguns fragmentos de pintura onde apenas se
identificam alguns elementos decorativos. A figura de
São Brás é muito semelhante à de Corvite parecendo
haver um modelo que se repete.
Igreja de São João dos Calvos, Guimarães
Das pinturas existentes nesta igreja já nada resta.
Sabemos da sua existência pelas referências nas visitações de 1548 e pela documentação existente nos
arquivos da DGEMN. No processo de obra desta igreja
existe alguma documentação fotográfica onde se pode
ver um fragmento de pintura no frontal de altar, cujos
elementos decorativos são semelhantes aos das pinturas de Corvite. A pintura foi destruída aquando da
campanha de obras levada a cabo por aquela instituição em 1960, na qual a capela-mor foi totalmente
reconstruída.
Igreja Paroquial de Joane, Vila Nova
de Famalicão
A primitiva igreja românica foi destruída e com ela as
suas pinturas murais. Pelos documentos fotográficos
existentes percebe-se que a pintura se situava na parede fundeira da capela-mor. Na fresta entaipada estavam representados dois anjos que coroavam (fig. 15),
provavelmente, Nossa Senhora, e do lado esquerdo,
no registo inferior, identifica-se uma imagem de São
Tiago Peregrino (fig. 16), enquanto a figura do registo
superior não se consegue identificar.
É uma pintura da mesma autoria das pinturas de
uma das campanhas de Serzedelo, atribuível à Oficina
da Moldura. Além das afinidades formais, o motivo
14 | Sanfins, Igreja
de São Pedro,
pormenor da pintura
mural do altar colateral
do Evangelho,
fotografia de autor
desconhecido, s.d.
58
DOSSIÊ
monumentos 33
15 e 16 | Joane,
igreja paroquial,
pinturas destruídas,
fotografias de Joaquim
Inácio Caetano, 2012.
cução da pintura e, mais tarde, aberta por ocasião da
remoção do retábulo de talha que cobria a pintura.
Do lado do Evangelho está representado São Pedro e
do lado da Epístola São Paulo. Entre estas duas figuras
existem ainda fragmentos de três anjos que ladeariam
uma Nossa Senhora. É uma pintura datável de meados do século XVI.
Igreja de São Romão de Arões, Fafe
Presentemente, do conjunto de pinturas desta igreja, não resta senão uma composição, com a representação de Nossa Senhora, situada no arco triunfal do
lado do Evangelho, que se encontra tapada pelo retábulo de talha dourada que aí se encontra.
Pelos documentos fotográficos existentes verifica-se
que também o lado da Epístola do arco triunfal era
pintado com uma representação de São Sebastião.
As pinturas destacadas do Museu
de Alberto Sampaio
No Museu de Alberto Sampaio existe um conjunto
de pinturas destacadas pela DGEMN nas décadas de
1930 a 1950 do século passado23, atualmente expostas
em sala própria, provenientes das igrejas do Salvador
de Ponte da Barca, de Nossa Senhora da Azinheira
de Outeiro Seco, de Fonte Arcada e do Convento de
São Francisco de Guimarães. Por não serem do aro de
Guimarães, com exceção da Degolação de São João
Batista e à qual já nos referimos, fica apenas a nota
da sua existência (fig. 12).
Conclusões
17 | Negrelos,
Igreja de Santa Maria,
pormenor da pintura
mural na parede
fundeira, fotografia de
autor desconhecido,
2012.
das barras decorativas que emolduram as composições, executado com estampilha, é igual ao motivo de
algumas das barras da pintura da referida igreja.
Igreja de Santa Maria de Negrelos, Santo Tirso
A pintura situa-se na parede fundeira da capela-mor
e encontra-se mutilada na parte central correspondente à fresta (fig. 17). Esta foi fechada aquando da exe-
Numa análise detalhada deste conjunto pictórico no
estreito aro de Guimarães, poderíamos deter-nos em
vários aspetos, nomeadamente, sobre os encomendantes, a iconografia, os temas mais representados, a
técnica de execução, a produção oficinal, entre outros.
No entanto, por não ser este o espaço para um desenvolvimento extenso, referiremos apenas alguns dados
que sobressaem da exposição anterior.
Observando a grande quantidade de pinturas (as
referenciadas e as ainda existentes), datáveis do século XVI, podemos concluir que a pintura mural terá
tido uma enorme expressão nesta época, perdendo
importância nas centúrias seguintes, com a introdução da talha dourada nas igrejas, subsistindo apenas
os exemplares que ficavam escondidos por detrás de
retábulos e, mesmo de entre estes, uma parte significativa foi destruída por obras de modernização das
igrejas e pelas intervenções da DGEMN.
Pela análise das referências existentes nos Livros
de Visitações percebe-se que há um constante cuidado na sua manutenção e modernização, ordenando-se que se pintem “ao romano”, o que, quanto a nós,
tem que ver também com a vertente decorativa da
pintura mural, muito mais do que com a represen-
monumentos 33
tação de santos. São disso exemplo os grotescos da
Igreja de Santa Cristina de Serzedelo, assim como os
elementos decorativos das pinturas da Oficina das
Volutas.
20
21
Joaquim Inácio Caetano
22
Mural da História
23
Imagens: 3, 11, 12 e 17: IHRU/Sistema de
Informação para o Património Arquitetónico;
4 a 10, 13, 15 e 16: autor; 14: Diocese do
DOSSIÊ
à Igreja de S. Dinis de Vila Real: parentescos pictóricos e institucionais e as
encomendas do abade D. António Melo”. Cadernos do Noroeste, 2003, série 3
(História), vol. 20, n.º 1-2, pp. 67-95; Idem — “D. Diogo de Sousa e a pintura
mural na capela-mor da igreja de S. Salvador de Bravães”. Revista da Faculdade
de Letras..., 2003, pp. 757-781.
Alfredo GUIMARÃES — “Os novos frescos de Serzedelo”. Estudos do Museu
Alberto Sampaio, vol. III.
Luís AFONSO — A Pintura Mural entre o Gótico...
Franquelim Neiva SOARES — Ensino e Arte na Região de Guimarães...
Catarina Valença GONÇALVES, Joaquim Inácio CAETANO — “Um olhar sobre
a pintura mural na Região de Guimarães no século XVI”. X Encontro de História
Local; Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no
século XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. III, pp. 219-273.
Porto/Secretariado Diocesano de Liturgia.
B I B L I O G R A F I A
N OTA S
1
Alfredo GUIMARÃES — “A Degolação de S. João Batista”. Estudos do Museu
Alberto Sampaio, vol. I; Idem — “Os novos frescos de Serzedelo”. Estudos do
Museu Alberto Sampaio, vol. III.
2
Franquelim Neiva SOARES — Ensino e Arte na Região de Guimarães...
Joaquim Inácio CAETANO — O Marão e as Oficinas de Pintura...
Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no século
XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. III, pp. 219-273.
Catarina Valença GONÇALVES; Joaquim Inácio CAETANO — “Um olhar sobre
a pintura mural na Região de Guimarães no século XVI”. X Encontro de História
Local.
3
4
5
6
7
8
9
10
Luís AFONSO — A Pintura Mural entre o Gótico...
Paula BESSA — Pintura Mural do Fim da Idade Média...
Alfredo GUIMARÃES — “A Degolação de S. João Batista”. Estudos do Museu
Alberto Sampaio, vol. I.
Luís AFONSO — “São Salvador de Bravães e a cronologia da pintura mural
portuguesa da Idade Média”. Monumentos. Dossiê: Sé do Funchal, 2003, n.º 19,
pp. 114-123; Paula BESSA — “Pintura Mural em Santa Marinha de Vila Marim,
S. Martinho de Penacova, Santa Maria de Pombeiro e na capela funerária anexa
à Igreja de S. Dinis de Vila Real: parentescos pictóricos e institucionais e as
encomendas do abade D. António Melo”. Cadernos do Noroeste, 2003, série 3
(História), vol. 20, n.º 1-2, pp. 67-95; Idem — “D. Diogo de Sousa e a pintura
mural na capela-mor da igreja de S. Salvador de Bravães. Revista da Faculdade
de Letras..., 2003, pp. 757-781.
Joaquim Inácio CAETANO — O Marão e as Oficinas de Pintura...; Idem — “Uma
obra de arte redescoberta: os frescos da igreja românica de Santa Leocádia”.
Revista Aquae Flaviae, Dez. 2004, n.º 32, pp. 43-76; Idem — “Novas achegas
para a compreensão da actividade oficinal nos séculos XV e XVI. As pinturas
murais das Igrejas de Santo André de Telões, Amarante, de Santiago de Bembrive, Vigo e de S. Pedro de Xuenzás, Boborás na Galiza”. Revista da Faculdade
de Letras, 2006-2007, série I, vol. V-VI, pp. 57-68; Idem, Luís Urbano AFONSO
(ed.), Vítor SERRÃO (ed.) — “De la fragmentation du regard à l’identification
des ensembles”. Out of the Stream…, pp. 88-102; Idem — “Modelos de estampi-
11
lhas na pintura mural quinhentista do Marão (Trás-os-Montes)”. O Largo Tempo
do Renascimento, pp. 101-130; Idem — Motivos Decorativos de Estampilha...
A designação desta oficina decorre de um estudo de Ignace Vandevivere e de
José Alberto Carvalho sobre algumas pinturas em tábua do Museu Alberto Sampaio, no qual atribuem a este pintor a pintura a fresco representando a Degolação de S. João Batista, destacada do Convento de São Francisco de Guimarães,
existente neste museu. Ignace VANDEVIVERE; José Alberto CARVALHO —
“O Mestre Delirante de Guimarães”. A Colecção de Pintura do Museu..., pp. 17-32.
12
Catarina Vilaça SOUSA — “A pintura mural na região de Guimarães no século
XVI”. Revista Guimarães, 2001, vol. III, pp. 219-273; Catarina Valença GONÇALVES, Joaquim Inácio CAETANO — “Um olhar sobre a pintura mural na Região
de Guimarães no século XVI”. X Encontro de História Local.
13
Idem, ibidem; Joaquim Inácio CAETANO — Motivos Decorativos de Estampilha...
Joaquim Inácio CAETANO — “Novas achegas para a compreensão da actividade oficinal nos séculos XV e XVI. As pinturas murais das Igrejas de Santo André
de Telões, Amarante, de Santiago de Bembrive, Vigo e de S. Pedro de Xuenzás,
Boborás na Galiza”. Revista da Faculdade de Letras, 2006-2007, série I, vol. V-VI,
14
15
16
17
18
19
pp. 57-68.
Informação gentilmente cedida pela Drª. Rosário Machado, diretora da Rota do
Românico.
Joaquim Inácio CAETANO — O Marão e as Oficinas de Pintura...
Ignace VANDEVIVERE; José Alberto CARVALHO — “O Mestre Delirante de Guimarães”. A Colecção de Pintura do Museu..., pp. 17-32; Catarina Vilaça SOUSA
— “A pintura mural na região de Guimarães no século XVI”. Revista Guimarães,
2001, vol. 111, pp. 219-273.
Informação fornecida pela Dr.ª Paula Bessa.
Luís AFONSO — “São Salvador de Bravães e a cronologia da pintura mural
portuguesa da Idade Média”. Monumentos. Dossiê: Sé do Funchal, 2003, n.º 19,
pp. 114-123; Paula BESSA — “Pintura Mural em Santa Marinha de Vila Marim,
S. Martinho de Penacova, Santa Maria de Pombeiro e na capela funerária anexa
AFONSO, Luís — “São Salvador de Bravães e a cronologia da pintura mural portuguesa da Idade Média”. Monumentos. Dossiê: Sé do Funchal. Lisboa: Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2003, n.º 19, pp. 114-123.
Idem — A Pintura Mural entre o Gótico Internacional e o Fim do Renascimento:
Formas, Significados, Funções. Lisboa: s.n., 2006, 3 vols., dissertação de doutoramento em História (História da Arte) apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, texto policopiado.
BESSA, Paula — “Pintura mural em Santa Marinha de Vila Marim, S. Martinho
de Penacova, Santa Maria de Pombeiro e na capela funerária anexa à Igreja de
S. Dinis de Vila Real: parentescos pictóricos e institucionais e as encomendas
do abade D. António Melo”. Cadernos do Noroeste. Braga: Instituto de Ciências
Sociais da Universidade do Minho, 2003, série 3 (História), vol. 20, n.º 1-2,
pp. 67-95, separata da referida publicação.
Idem — “D. Diogo de Sousa e a pintura mural na capela-mor da igreja de S. Salvador
de Bravães”. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003, pp. 757-781.
Idem — Pintura Mural do Fim da Idade Média e do Início da Idade Moderna no
Norte de Portugal. Braga: s.n., 2007, 3 vols., dissertação de doutoramento em
História, Área de Conhecimento de História da Arte apresentada ao Instituto de
Ciências Sociais da Universidade do Minho.
CAETANO, Joaquim Inácio — O Marão e as Oficinas de Pintura Mural nos Séculos
XV e XVI. Lisboa: Aparição, 2001.
Idem — “Uma obra de arte redescoberta: os frescos da Igreja Românica de Santa Leocádia”. Revista Aquae Flaviae. Chaves: Grupo Cultural Aquae Flaviae,
Dez. 2004, n.º 32, pp. 43-76.
Idem — “Novas achegas para a compreensão da actividade oficinal nos séculos
XV e XVI. As pinturas murais das Igrejas de Santo André de Telões, Amarante, de Santiago de Bembrive, Vigo e de S. Pedro de Xuenzás, Boborás na
Galiza”. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Património.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006-2007, série I, vols.
V-VI, pp. 57-68.
Idem; AFONSO, Luís Urbano (ed.); SERRÃO, Vítor (ed.) — “De la fragmentation du
regard à l’identification des ensembles”. Out of the Stream. Studies in Medieval
and Renaissance Mural Painting. Cambridge: Cambridge Scholars Publishing,
2007, pp. 88-102.
Idem — “Modelos de estampilhas na pintura mural quinhentista do Marão (Trás-os-Montes)”. O Largo Tempo do Renascimento: Arte, Propaganda e Poder. Lisboa:
Caleidoscópio; Centro de História da Universidade de Letras, 2008, pp. 101-130.
Idem — Motivos Decorativos de Estampilha na Pintura a Fresco dos Séculos XV e
XVI no Norte de Portugal. Relações entre Pintura Mural e de Cavalete. Lisboa:
s.n., 2011, 2 vols., dissertação de doutoramento em História, na especialidade
Arte, Património e Restauro no Instituto de História da Arte da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa.
GONÇALVES, Catarina Valença; CAETANO, Joaquim Inácio — “Um Olhar sobre a
Pintura Mural na Região de Guimarães no Século XVI”. X Encontro de História
Local. Guimarães: Museu de Alberto Sampaio, 2002, texto fotocopiado.
GUIMARÃES, Alfredo — “A Degolação de S. João Baptista”. Estudos do Museu
Alberto Sampaio. Guimarães: Museu Alberto Sampaio, 1942, vol. I.
Idem — “Os novos frescos de Serzedelo”. Estudos do Museu Alberto Sampaio.
Guimarães: Museu Alberto Sampaio, 1953, vol. III.
RODRIGUES, Dalila — “A pintura mural portuguesa na região Norte. Exemplares
dos séculos XV e XVI”. A Colecção de Pintura do Museu Alberto Sampaio —
séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português dos Museus, 1996.
SOARES, Franquelim Neiva — Ensino e Arte na Região de Guimarães Através dos
Livros de Visitações do Século XVI. Guimarães, 1984.
SOUSA, Catarina Vilaça — “A pintura mural na região de Guimarães no século
XVI”. Revista de Guimarães. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 2001,
vol. III, pp. 219-273.
Idem — “As intervenções da DGEMN no acervo de pintura mural nacional (1929-1972)”. II Congresso Internacional de História da Arte 2001 – Portugal: Encruzilhada de Culturas, das Artes e das Sensibilidades. Coimbra: Livraria Almedina,
2004, pp. 23-48, livro de atas do referido congresso.
VANDEVIVERE, Ignace; CARVALHO, José Alberto Seabra — “O Mestre Delirante de
Guimarães”. A Colecção de Pintura do Museu Alberto Sampaio — Séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português dos Museus, 1996, pp. 17-32.
59
60
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Miguel de Lescole
e a capela-mor da Colegiada
de Nossa Senhora da Oliveira
de Guimarães
MIGUEL SOROMENHO
Os dados essenciais sobre a reconstrução seiscentista
da capela-mor da Real Colegiada de Nossa Senhora da
Oliveira, em Guimarães, foram publicados há mais de
trinta anos por Aurélio de Oliveira1; sobre esta peça
arquitectónica pouco mais se pôde entretanto acrescentar, pelo que, à míngua de novos documentos, importa esclarecer e aprofundar algumas das questões
levantadas por aquele trabalho pioneiro.
A revelação das peças contratuais relativas à obra
da capela-mor permitiu estabelecer, com exactidão,
os pormenores da empreitada, até então de autoria
desconhecida e imprecisa cronologia: o memorialista
Torquato Peixoto de Azevedo cria-a de 16702; o padre
António José Ferreira Caldas3, de 1677. Na verdade,
data de 6 de Junho de 1675 o contrato passado com o
architecto de pedraria António de Castro para a construção da nova capela, orçada em oito mil cruzados
e trezentos e quarenta mil réis, que devia fazer-se de
acordo com o projecto dado pelo mestre de campo
Miguel de Lescole, o qual incluía o (...) Diseunho
principal (…), moldes, plantas [e] apontamentos (...)
que ele deixara feitos, a que faltavam, porém, os róis
de preços das (...) brassas e mais pedrarias (...). No
dia imediato, 7 de Junho, foi feita também, no registo
notarial, a escritura de fiança relativa ao contrato de
arrematação, e, a 14, a outorga e o consentimento do
ajuste, dados pela mulher de António de Castro.
A empreitada não estava ainda acabada em 1679,
quando os cónegos pediram ao príncipe regente
D. Pedro o rendimento de dois anos do real da água
— haviam entretanto gasto três mil e quinhentos
réis em pedraria, sessenta nas grades de ferro e nas
vidraças, e seis mil cruzados no retábulo —, e continuava inconclusa em 1688, levando o já então rei
a esmolar mais mil cruzados para encerrar a obra4.
É provável que o guarnecimento do espaço interno
com um retábulo de talha e um cadeiral para o cabido fizesse parte da intenção original de modernização; mas se este, devido ao mestre Gaspar dos Reis,
foi contratado em 1688, a máquina destinada ao
altar-mor, realizada pelo entalhador Pedro Coelho e
pelo imaginário António de Andrade, só muito mais
tarde, em 1712-1713, viria a ser instalada5.
Se alguma outra intenção houve no lançamento
deste empreendimento que não apenas a necessidade
prática de substituir uma estrutura envelhecida e provavelmente pouco funcional, ela não ficou registada
na documentação conhecida, mas o gesto do patrocínio régio e a sua marcação com a aposição do escudo
real no intradorso da nova abóbada poucos anos após
o fim da Guerra da Aclamação, ocorrido em 1668, podem sugerir que se tratava então de assinalar o armistício e a legitimação dinástica que ele representava.
Nada melhor do que fazê-lo num contexto que remetia directamente para a memória de D. João I e para
a afirmação da independência conseguida naqueles
anos finais do século XIV, irmanando simbolicamente
dois sucessos das armas portuguesas separados por
cerca de três séculos.
Na verdade, a estreita ligação da Colegiada de Guimarães à figura do Mestre de Avis, como seu refundador, fazia parte integrante da sua génese monumental: isso mesmo é, a cada passo, lembrado pelo padre
Peixoto de Azevedo que, escrevendo embora no século XVIII, recolhia uma pertinaz tradição memorial,
1 | Guimarães, Igreja
e Colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira,
fachada principal, e
Padrão Comemorativo
da Batalha do Salado,
fotografia de Amadeu
Astorga Viana, 1976.
O presente artigo procura esclarecer e aprofundar algumas das
questões levantadas pelo trabalho incontornável de Aurélio de
Oliveira sobre a reconstrução seiscentista da capela-mor da Colegiada
de Guimarães. A revelação das peças contratuais relativas à obra
torna possível estabelecer os pormenores da empreitada, até então
de autoria desconhecida e de imprecisa cronologia. Esta campanha
deve ser entendida como de primordial importância para o reavivar
da reivindicação do estatuto régio da colegiada e da sua identificação
com a dinastia dos Bragança, o que, aliás, à própria Coroa
interessava promover. Assim se justifica a escolha de Miguel
de Lescole, então funcionário da Coroa, senhor de uma sólida
cultura teórica e prática, para a projectar.
monumentos 33
DOSSIÊ
61
62
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
2 | Igreja de Nossa
Senhora da Oliveira,
vista geral da nave,
2013.
comprovada por outras fontes e pelos testemunhos
edificados subsistentes. A reforma joanina tinha
sido generosa: à munificência régia ficara a dever-se
um conjunto gordo de obras que incluíam os vitrais
dos janelões da nave, selados com os escudos do rei
e da rainha, D. Filipa6, uma torre sineira demolida
em 1515, e toda a cabeceira, reconstruída na actual
campanha seiscentista, onde também pontificava a
heráldica régia, além da oferta de alfaias ricas para
a igreja, entre as quais se contava o célebre tríptico
de prata alegadamente recolhido pelas tropas portuguesas em Aljubarrota do espólio de Juan I de Castela7. Tratava-se, pois, de um espaço impregnado de
evocações autonomistas a que não faltava a identificação com outros momentos fundacionais, através,
por exemplo, da exposição da suposta pia baptismal
de D. Afonso Henriques, oferecida aos olhares públicos num nicho aberto na nave do templo, mandado
compor em 1664 por D. Diogo da Silveira, seu prior, a
quem também se deve a recuperação e o restauro de
peças emblemáticas de ourivesaria medieval ali conservadas, casos da cruz do doutor João das Regras ou
do cofre-relicário quatrocentista de D. Luís Vasques
da Cunha. Esta operação de remissão para o passado
contava, ao mesmo tempo, com a valorização do santoral autóctone, outro modo de expressão da individualidade portuguesa: ainda a D. Diogo se credita a encomenda de um relicário de prata dourada com uma
relíquia de São Torcato, bem como se regista, depois,
o acompanhamento quase arqueológico da obra de
1675 da capela-mor, em cujo contrato ficou consignada a cautela com que devia ser feito o seu desmantelamento, para se ver (...) Se nas dittas paredes estaõ
alguas Relliquias de alguns Santos de que ha algua
tradissão (...). Mais importante ainda foi a iniciativa
de D. Diogo para a instalação de um novo retábulo na
capela, em 1665. Dificilmente para esta substituição
se podia reclamar da vetustez da máquina existente,
que não tinha mais de cem anos. De facto, o retábulo
devia estar todo montado in situ no início de 1573, de
acordo com um contrato recentemente revelado que
o atribui ao mestre imaginário Fernão Carvalho8, mas
a adopção de novos padrões de gosto na talha portuguesa não foi, no transcurso destes anos, tão profunda
que justificasse, por si só, a renovação almejada pelo
prior: tirando alterações menores, o esquema arquitectónico retabular manteve-se no essencial até ao último quartel do século XVII, quando se veio a definir
o chamado “estilo nacional”, barroquizante, com as
suas colunas de fuste torso e profusa decoração insculpida9.
Ora, não parecendo haver razões estilísticas substanciais para a reforma de 1665, ela não pode ter outra
origem senão a de fazer reavivar a reivindicação do
estatuto régio da colegiada e a sua identificação com
a dinastia dos Bragança que, aliás, à própria Coroa
interessava promover10. Foi esta a narrativa que informou o programa iconográfico do conjunto de pinturas
ajustadas com o pintor e frade franciscano Manuel
dos Reis (n. c. 1625), cuja biografia e personalidade
artística são hoje conhecidas, e presentemente conservadas no Museu Alberto Sampaio, destinadas a
integrar o novo retábulo gizado pelo enxambrador
António de Andrade11. Embora de qualidade plástica
duvidosa, as telas revelam uma expressa intenção política, traduzindo em imagens a tópica da identificação simbólica entre D. Afonso Henriques e D. João I e,
implicitamente, destes com D. Afonso VI/D. Pedro II.
Não durou sequer dez anos o retábulo instalado na
Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira a expensas
monumentos 33
DOSSIÊ
63
3 | Igreja de Nossa
Senhora da Oliveira,
capela-mor, 2013.
de D. Diogo da Silveira. A obra de Miguel de Lescole
encarregou-se, como vimos, de o apear dando origem
à estrutura edificada que chegou aos nossos dias.
A circunstância de se tratar de um empreendimento régio ajuda a compreender a razão por que recaiu
tal encargo naquele engenheiro militar francês, cujos
dados biográficos merecem ser revistos e ampliados12.
Colocado na Província do Minho desde 1655, estava
ao serviço em Portugal já em 164113, com uma passagem pelo Alentejo, uma ida ao Rio de Janeiro para
64
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
4 | Igreja de Nossa
Senhora da Oliveira,
corte transversal
longitudinal no sentido
nascente-poente,
desenho de autor
desconhecido, s.d.
preparar a fortificação da cidade, em 1649-165014,
uma aventurosa viagem à Ilha da Madeira em 1653-1654 — no regresso foi feito prisioneiro por piratas
holandeses15 — e de novo entre nós, em 1655, com
destacamentos fugazes nas províncias do Algarve e
de Trás-os-Montes, antes de se estabelecer em definitivo, até à data da morte, ocorrida em 1688, na vila de
Viana da Foz do Lima16. As peripécias e os sucessos
da Guerra da Restauração no Noroeste português, em
parte reportados pelo conde da Ericeira no seu Portugal Restaurado, contaram com a presença activa de
Lescole, no desenho de fortificações, na construção de
dispositivos de defesa de campo, na didáctica da engenharia e da artilharia17, em obras de engenharia hidráulica e portuária18 e até na produção teórica, tendo
proposto para publicação um tratado de engenharia
militar, hoje perdido, mas cujos conteúdos técnicos
podem, em parte, ser reconstituídos graças ao processo de avaliação ordenado pelo Conselho de Guerra,
em 167019. Foi a paz de 1668 que lhe proporcionou o
exercício da arquitectura, civil e religiosa, tendo sido
chamado pelo arcebispo de Braga, D. Luís de Sousa,
para reformar a sacristia da sé20, entregue, depois da
sua morte, ao arquitecto régio João Antunes, e para
a construção da Igreja de São Vítor. Foi também seu
o risco para a remodelação da matriz dos Arcos de
Valdevez21.
Não admira, assim, o envolvimento de Miguel de
Lescole na reconstrução da capela-mor da Colegiada
de Guimarães. A importância da obra, numa época
e num território em que escasseavam arquitectos capazes de assegurar a dignidade requerida por uma
campanha de patrocínio régio, aconselhava esta escolha, não só contando com a disponibilidade de um
funcionário da Coroa como com a segurança de uma
sólida cultura teórica e prática, apanágio da formação
ecléctica do génio militar francês.
Rasgada lateralmente por amplas janelas — a questão da iluminação do interior estava bem patente nos
termos do contrato de pedraria —, a capela-mor resolve a cobertura com uma bem lançada abóbada de
berço de caixotões quadrados e rectangulares alternados, de molduração de filetes de meia-cana, com a
aposição das armas reais ao centro.
A abóbada de caixotões constituía uma importante figura do repertório construtivo de intenção
clássica, introduzida em Portugal com as primeiras
formas da arte do Renascimento. Até datas relativamente tardias confinou-se o seu uso a pequenos
espaços, podendo assim aparecer associada a outras
formas de cobertura de feição goticizante, cujas potencialidades estáticas os mestres-pedreiros melhor
dominavam. Mais tarde, a abóbada de caixotões
generalizou-se à cobertura integral de grandes naves,
embora, por razões dos elevados custos que implicava, ela fosse de recurso mais comum em templos de
patrocínio régio ou de fábrica mais rica. Vejam-se,
por exemplo, os casos da Sé de Leiria, levantada entre 1559 e 1574 pelo arquitecto Afonso Álvares, e o
da igreja lisboeta de São Vicente de Fora, projectada
pelo sobrinho, Baltasar Álvares, com um provável
concurso inicial de Juan de Herrera. Se, na catedral
leiriense, a abóbada de berço de caixotões é apenas
usada na capela-mor — e com a cobertura das naves feita com abóbadas de cruzaria de ogiva de nervuras de perfil simplificado —, em São Vicente de
Fora aquele sistema expande-se já por toda a nave,
transepto e cabeceira, como o triunfo final de um
sistema amadurecido nas suas potencialidades portantes e decorativas. De qualquer modo, ele tinha-se
já generalizado, sobretudo, a norte do Mondego, na
segunda metade de Quinhentos, ora desenvolvido
em esquemas sintéticos, ora enriquecido no desenho
variado dos caixotões e na aplicação de uma profusa
monumentos 33
ornamentação de motivos almofadados e de cartelas
de influência flamenguizante.
Na preferência do engenheiro Miguel de Lescole
por este tipo de organismo confluíam, em suma, duas
matrizes essenciais: uma, radicada nos exemplos
clássicos aprendidos através da sua formação teórica;
outra, resultante do acolhimento oportuno das tradições locais, que o tinham plenamente absorvido, e a
que não será alheio o gosto particular dos cónegos da
colegiada, intermediários da encomenda. A familiaridade do engenheiro com a linguagem clássica, nas
poucas obras de arquitectura que se lhe conhecem,
foi já oportunamente notada22, tanto para o caso de
São Vítor — para onde, aliás, foi destinado um revestimento azulejar de evocação de santos mártires
autóctones23, cumprindo um desiderato ideológico e
político próximo do programa da capela-mor vimarenense — como para o caso da colegiada.
É na conjunção de todos estes factores — a formação de um clima de exaltação nacionalista após a
Restauração e assaz duradouro, a específica formação
dessa típica figura do engenheiro militar seiscentista,
bem como o seu comprometimento profissional com
a Coroa — que se deve procurar a génese e o sentido
desta obra, onde persistia o entendimento da dignidade monumental e a capacidade celebratória de uma
arquitectura vazada nos princípios da linguagem clássica, que deixava as primícias do barroco confinadas
aos requintes ornamentais das artes decorativas e da
talha dourada.
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Miguel Soromenho
Historiador da Arte
Museu Nacional de Arte Antiga
Imagens: IHRU/Sistema de Informação para
o Património Arquitetónico.
N OTA S
O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico por opção
expressa do autor.
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1
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5
6
7
Aurélio de OLIVEIRA — “Contribuição para o estudo dos elementos arquitectónicos seiscentistas da Real Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira”. Congresso
Histórico de Guimarães e sua Colegiada. Actas. Braga, 1981, vol. IV, separata.
Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas de Guimarães. Porto:
Biblioteca Pública Municipal do Porto, n.º 527.
Padre António José Ferreira CALDAS — Guimarães. Apontamentos Para a Sua
História. Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, 1881, vol. II, p. 18.
Maria Adelaide Pereira de MORAES — Ao Redor de Nossa Senhora da Oliveira.
Guimarães: ed. da autora, 1998, pp. 188 e 192.
Flávio GONÇALVES — “A talha na arte religiosa de Guimarães”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada. Actas, vol. IV, separata. Maria Adelaide
Pereira de MORAES, cit. supra, dá conta de mais informações sobre estas obras,
transmitidas por António José de Oliveira e Lígia Márcia Cardoso.
A ser verídica, esta afirmação é surpreendente, uma vez que antedata o fabrico do vitral em Portugal para o primeiro quartel do século XV, quando se cria
a sua introdução em período ligeiramente posterior. Pedro Redol, por exemplo,
data o seu aparecimento entre nós após o terceiro decénio de Quatrocentos,
no Mosteiro da Batalha (Pedro REDOL — O Mosteiro da Batalha e o Vitral em
Portugal nos Séculos XV e XVI. Batalha: Câmara Municipal da Batalha, 2003,
p. 51).
Nuno Vassallo e SILVA — “Quatro momentos na história do tesouro da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira”. A Colecção de Ourivesaria do Museu Alberto
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22
23
DOSSIÊ
Sampaio. Lisboa: Instituto Português de Museus, 1998, pp. 27-35; idem, ibidem,
“Tríptico”, pp. 54-58.
António José de OLIVEIRA — “A obra de talha da Colegiada de Guimarães
(1572-1789): subsídios para o seu estudo”. Colegiada de Nossa Senhora de Guimarães. História e Património. Guimarães: Fábrica da Igreja Paroquial de Nossa
Senhora da Oliveira, 2011, pp. 156-157.
Robert SMITH — A Talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962, pp. 49-67.
Em Maio de 1667 a colegiada reclamaria ao secretário do rei, António Cavide,
o pagamento de uma esmola de mil cruzados prometida para um ornamento
de tela — cortinas de damasco, franjadas a ouro, e uma capa de tela — (...) asi
fica o altar mor da Capella Real aprefeiçoada de todo (...), Biblioteca da Ajuda,
51-X-17, fl. 260.
Vítor SERRÃO — “As oficinas de Guimarães nos séculos XVI-XVIII e as colecções de pintura do Museu de Alberto Sampaio”. A Colecção de Pintura do Museu
de Alberto Sampaio. Séculos XVI-XVIII. Lisboa: Instituto Português de Museus,
1996, pp. 89-109 e 132. Segundo Vítor Serrão pode ser contemporâneo deste um
outro ciclo pictórico, igualmente de evocação nacionalista, atribuível ao pintor
Simão Álvares (idem, ibidem, p. 124).
Aurélio de OLIVEIRA — Ob. cit., reuniu as notícias disponíveis à data, colhidas
sobretudo em Sousa VITERBO — Dicionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1988, vol. II, pp. 67 e 68, e em Cláudio de CHABY — Synopse dos
Decretos Remetidos ao Extincto Conselho de Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional,
1869, vols. I, pp. 27-278, e III, pp. 316 e 317. Baseada na documentação inédita
sobre a actividade de Lescole que dei a conhecer na minha tese de mestrado
(Manuel Pinto Vilalobos — da Engenharia à Arquitectura. Lisboa: s.n., 1995,
2 vols., dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais
e Humana da Universidade Nova de Lisboa, texto policopiado), bem como em
investigações posteriores, tenho em preparação, para publicação, a biografia
deste infatigável engenheiro militar.
A identificação de uma carta régia de outorga de uma pensão de cem mil réis à
viúva de Lescole permite não só aclarar grande parte do seu currículo como antecipar a data da sua chegada a Portugal, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(ANTT), Chancelaria de D. Pedro II, Doações, L.º 64, fls. 293-295).
O respectivo projecto foi enviado para Lisboa no dia 1 de Dezembro de 1649
(Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Cx. 2, doc. 124-A).
Esta viagem rocambolesca consta também da carta régia de 1688, cit nota (13).
Arquivo Distrital de Viana do Castelo (ADVC), Registo de Óbitos — Santa Maria
Maior 1651-1701, fl. 168, in António Matos REIS — “Miguel de Lescole, Engenheiro e Arquitecto”. Estudos Regionais. Viana do Castelo: Centro de Estudos
Regionais, s.d., vol. V, p. 59, pp. 53-59.
Dois exemplos flagrantes são as alegações do empreiteiro das praças de Monção
e de Caminha, João Alves do Rego, em 1678, para obtenção de aumento de
soldo, justificadas num certificado passado por Miguel de Lescole, presume-se
que seu mestre, em que gabava os conhecimentos de estereotomia, de aritmética e de matemática do pedreiro, bem como o seu conhecimento dos livros de
Euclides, além da se mostrar capacitado para o desenho de fortificações (ANTT,
Conselho de Guerra, Consultas, Maço 40A, consulta de 3 de Março de 1681);
ou o eco das suas lições de artilharia de que sobrevivem duas sebentas, uma
datada de 1676, que se conserva na Biblioteca Nacional de Portugal (Secção de
Reservados, Cod. 7660), compilada por Sebastião de Souza de Vasconcelos, e
outra conservada no Arquivo Histórico Militar (Cf. Henrique de Campos Ferreira
LIMA — “Um tratado de artilharia manuscrito do séc. XVII, adquirido pelo
Arquivo Histórico Militar”. Revista de Artilharia. Lisboa, Jul. 1931, 2.ª série, ano
XXVIII, n.º 73, pp. 5-19).
Há notícia das suas intervenções em obras de regularização de leitos e construção de cais e paredões nos rios Lima (ANTT, Conselho de Guerra, Livro de
Registo de Patentes, Alvarás, Cartas e Ordens, nº 39, fl. 198v.), Mondego (Sousa
VITERBO — Ob. cit., p. 68) e Douro ( cfr. Miguel SOROMENHO — “Engenheiros, ‘práticos’ e curiosos na barra do Douro em finais de Seiscentos”. Museu.
Porto, 2003, IV Série, nº 12, ob. cit., pp. 65-76).
ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, Maço 30, Consulta de 11 de Agosto de 1670.
Uma carta do Padre Inácio de Carvalho ao Chantre da Sé refere explicitamente
a presença assídua do arcebispo de Braga D. Luís de Sousa, com Miguel de Lescole, nas primeiras obras de reedificação da sacristia catedralícia, interrompidas
pela morte do prelado e recomeçadas, mais tarde, com risco de João Antunes
(Biblioteca da Ajuda, 54-VIII-6, n.os 151 e 151a).
Paula CARDONA — “A actividade artística das confrarias no Vale do Lima”.
Monumentos. Dossiê: Igreja Matriz de Viana do Castelo. Lisboa: Direcção-Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2005, n.º 22, p. 142.
Rafael MOREIRA — “Miguel de Lescole”. Dicionário da Arte Barroca em Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1989, pp. 259 e 260.
Flávio GONÇALVES — As Obras Setecentistas da Igreja de Nossa Senhora da
Ajuda de Peniche e o seu Enquadramento na Arte Portuguesa da 1.ª Metade do
Século XVIII. Porto: Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras do Porto, 1984, pp. 259-262. Concebido como um pequeno templo à antiga nas suas
citações explícitas, São Vítor apresenta, também, o mesmo sistema de cobertura
de abóbada de caixotões, ensaiado com êxito na colegiada onze anos antes.
65
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DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
André Soares
em Guimarães
EDUARDO PIRES DE OLIVEIRA
Os inícios do rococó do Minho estão umbilicalmente
ligados à ida do arcebispo D. José de Bragança para a
cadeira arcebispal de Braga, a mais antiga e importante diocese portuguesa. D. José era um homem muito
compenetrado, muito senhor de si próprio, muito cioso das suas origens familiares; disse um cronista da
época, que foi mais príncipe do que arcebispo1.
A aprendizagem na Universidade de Évora2 deu-lhe uma boa formação intelectual, que do ponto de
vista artístico deverá ter sido complementada com os
conhecimentos que muito possivelmente obteve com
o compulsar da imensa coleção de gravuras do seu
irmão, o rei D. João V. Poderá ter sido aí, talvez, que
recebeu os primeiros contactos com novas formas
de sentir e de desenhar. Mas como as gravuras têm
apenas duas dimensões e estavam impressas, na sua
esmagadora maioria, a preto e branco, dever-lhe-á ter
sido muito mais difícil compreender a arte de conceber espaços e pensar que os mesmos poderiam ter
outras cores bem diferentes das que o barroco “nacional” ou “joanino” propunham, o espesso ouro, ocres
e outras cores quentes, para além de um ou outro
marmoreado, embora a delicadeza de uns tantos desenhos pudesse levar a pressupor cores muito leves,
como os rosas e azuis-celestes.
Nos primeiros anos da afirmação do novo gosto não
deveria existir uma aceitação clara do rococó. A formação não era essa, a sociedade portuguesa ainda o
não intuíra; a verdade é que talvez se possa dizer que
nunca o compreendeu na sua dimensão total. A esse
nível é muito sintomático que, por exemplo, em 1756,
na arrematação para a talha que iria revestir a nova
igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Ponte
de Lima, não tenham sido os mesários, mas sim os artistas arrematantes, a chamar a atenção para o programa que estava a ser proposto, que era ainda conforme
o velho gosto.
Uma das maiores dúvidas que se pode colocar em
relação aos inícios do rococó no Minho tem sobretudo
que ver com a cidade onde poderão ter sido feitos os
primeiros ensaios da nova sensibilidade: se em Braga,
se em Guimarães. E a questão coloca-se porque na
segunda metade da década de 1740 não há nenhuma obra municipal relevante de arquitetura, embora se saiba que Braga era um senhorio eclesiástico e
que em Guimarães, apesar de o não ser, dificilmente
a vereação teria capacidade para aceitar obras que
não estivessem conforme o novo gosto proposto pelo
arcebispo.
D. José de Bragança chegou a Braga em 1741. A sua
nomeação, decidida em 1738, teve o intuito de dominar a fortíssima influência dos cónegos bracarenses
que gastavam impressionantes quantidades de dinheiro na sua sé catedral em obras muito mal orçamentadas. Autoritário, o arcebispo conseguiu no ano seguinte “meter na cadeia” a maior parte dos membros
do cabido. Não contava, porém, com a força, organização e capacidade de movimentação dos cónegos,
nem com a insensatez do seu principal valido, João
Lobo da Gama, que levaram a que o rei, seu irmão, o
mandasse sair de Braga para uma distância mínima de
três léguas, um exílio mascarado de visita pastoral que
já deveria ter sido feita, obrigação que não parecia ter
vontade de cumprir.
D. José saiu de Braga, no dia 10 de janeiro de 1746,
em direção a Guimarães. No alto da Falperra, na separatória dos dois concelhos, teve a recebê-lo todas as
Os inícios do rococó do Minho estão ligados à ida do arcebispo
D. José de Bragança para a cadeira arcebispal de Braga, a mais
antiga e importante diocese portuguesa. Em Guimarães, o novo
gosto encontra-se presente no Convento de Santa Rosa de Lima,
na Casa dos Lobo Machado, na Casa dos Coutos e, principalmente,
na Igreja dos Santos Passos, sendo atribuída a André Soares
a autoria de várias, ainda que parciais, intervenções rococó
realizadas nesses imóveis vimaranenses em meados do século XVIII;
a atribuição da autoria de algumas dessas intervenções carece ainda,
contudo, de prova documental.
monumentos 33
forças vivas deste concelho. Chegado a esta cidade,
e ao contrário do que fizera em Braga, aceitou ir à
principal igreja, à colegiada, onde foi celebrado um
solene te-deum.
Em Braga, a câmara municipal não avançara com
nenhuma obra de peso durante a década de 1740. Em
contrapartida, o arcebispo, fosse para marcar uma
posição compatível com a qualidade do seu sangue,
fosse por qualquer outra razão, fez construir para si
um novo palácio, na continuidade do que herdara dos
seus antepassados arcebispos. Este palácio teve, porém, de marcar de forma bem visível a sua posição,
a sua origem real. E fê-lo não só voltando a fachada
para uma praça até aí sem qualquer expressão social
— criando assim uma nova centralidade urbana —
mas, também e sobretudo, levantando um edifício que
mostraria uma nova forma de desenhar uma fachada.
O resultado obtido mostra-nos uma obra ainda muito
hesitante, entre o desenho de janelas encimadas por
dintéis-sanefas de gosto ainda joanino e uma série de
pormenores dispersos já bem ao gosto rococó.
A pessoa escolhida para conceber o novo palácio
deverá ter sido André Soares, como Robert Smith muito bem intuíra3. Não se sabe, porém, a data em que
começou a obra; sabe-se apenas que os trabalhos de
conclusão foram muito acelerados com o regresso do
arcebispo a Braga, em agosto de 1750, após a morte
do rei, seu irmão, tendo o palácio sido inaugurado no
ano seguinte.
D. José de Bragança permaneceu dois anos em Guimarães, durante os quais aceitou hospedar-se em casa
de um nobre local, Tadeu Camões. Teve, também,
uma intensíssima atividade pastoral, social e cultural,
chegando mesmo a comprar uma casa que depois ofereceu ao seu valido, a Casa dos Coutos.
Talvez lembrando-se de sua mãe, uma das obras a
que mais se devotou foi a renovação dos conventos
femininos, quer alteando os muros das suas cercas,
quer intervindo na escolha do desenho da talha do
Convento do Carmo (talvez concebida pelo entalhador executante, José Álvares de Araújo), quer renovando outras dependências. A sua intervenção no
conjunto da talha da igreja conventual do Carmo,
embora anterior à sua chegada a Guimarães4, é extremamente significativa porque deverá ter passado pela
reformulação do desenho apresentado a concurso e
validado por um primeiro contrato notarial; a verdade é que não se encontra outra razão plausível para
a obrigatoriedade de realização de um novo contrato
com o entalhador escolhido, que era, aliás, o seu preferido5. Efetivamente, olhando todo aquele conjunto
de talha, percebe-se em alguns momentos, sobretudo nos retábulos laterais e nas sanefas, que o ornato
assimétrico já começa a fazer parte do léxico ornamental da talha minhota.
A intervenção do arcebispo na obra do Convento
de Santa Rosa de Lima foi muito além da arquitetura.
Criado em 1630, inicialmente como um recolhimento
voluntário de mulheres piedosas, evoluiu meio século
mais tarde para um conservatório de religiosas profes-
DOSSIÊ
sas da Terceira Ordem de São Domingos, passando a
ocupar a casa da albergaria de São Roque6. Em 18 de
maio de 1747, por ordem do provincial dominicano,
as recolhidas demitiram-se daquela sujeição e requereram ao arcebispo autorização para ficar sob a sua
jurisdição
O local onde o convento estava implantado era muito problemático, bem longe das usuais praças. Estava
situado numa rua estreita, ocupada do lado oposto
por edifícios bastante altos. A colocação longitudinal
do templo rasando a via, dentro do que era tradicional em igrejas de conventos femininos, permitia resolver esta situação com facilidade, embora criasse
uma rua, quase túnel, que beneficiava, porém, de um
progressivo alargamento da via. Contudo, não resolvia a questão da colocação da nova portada principal,
tradicionalmente colocada no enfiamento das paredes
do templo, nem facilitava a localização do mirante,
que deveria dar para um espaço amplo e aberto para
67
1 | Guimarães,
Convento de Santa
Rosa de Lima, vista
do muro de ligação
do mirante à igreja,
fotografia de Eduardo
Pires de Oliveira,
2009.
68
2 | Convento
de Santa Rosa
de Lima, frontão
decorativo com
a pedra de armas do
arcebispo, fotografia
de Eduardo Pires
de Oliveira, 2009.
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
que as reclusas pudessem, assim, beneficiar da altura
da sala colocada na cota mais elevada; era, porém, o
terreno disponível.
A solução encontrada foi a mais óbvia: recuar a
entrada principal, criando um pátio delimitado exteriormente pelas paredes extremas do templo e do
mirante, algo que, por exemplo, também se pode ver
em Braga, no antigo Convento da Conceição, embora
neste caso a solução fosse mais simples pois não só o
que estava em causa era apenas a igreja, como o espaço público era muito mais amplo. Acrescia, ainda, que
os edifícios que o Convento da Conceição defrontava
eram poucos e muito mais baixos. Ou seja, era, de
certa forma, um espaço que tinha uma planta em “U”,
algo que foi corrente na arquitetura civil, sobretudo
em edifícios de grandes dimensões, como nalguns solares (ex.: Casa de Vale de Flores, ou Casa de Infías,
em Braga) ou no novo palácio de D. José de Bragança.
Em Santa Rosa de Lima o problema, porém, subsistia: o muro que ligava o mirante à igreja teria de
ser muito alto, de forma a atenuar a devassa que pudesse ser exercida a partir dos prédios existentes do
outro lado da rua. Assim, a solução escolhida foi tão
simples quanto genial: uma forte e muito modulada
cornija descendo vertiginosamente desde a parte inferior do último piso do mirante até ao portão principal, elevando-se aqui um pouco, de forma a criar um
frontão decorativo, para depois descer ligeiramente e
logo voltar a subir até uma cota paralela, a da linha de
empena do templo. Sobre a porta colocava-se a pedra
de armas do arcebispo.
A opção por esta solução foi magistral. Não se tratava de uma simples fiada de pedra com um desenho
bem determinado e só por si magnífico, havia também aqui uma modulação muito forte, formando a
parte superior como que um anteparo. Além disso,
era uma linha muito grossa porque recoberta por uma
fiada de pedra de cantaria.
A porta, embora alta, era singela. O dintel era sobrepujado por uma leve sanefa de pedra constituída
por finos motivos marinhos, semelhantes a algas, tendo ao meio uma concha muito ampla, cuja ponta cai
voltada obliquamente para poente; um pouco acima
foi colocado o brasão do arcebispo D. José, o novo
patrono e doador do dinheiro necessário para a realização desta obra. Esta pedra de armas liga-se à cornija
através de um elemento pétreo também modulado em
diversos volumes.
É precisamente este portal que, do ponto de vista
formal, nos permite indicar o nome de André Soares como autor desta parte do convento. É um André
Soares ainda no início da sua carreira, embora já com
27 ou 28 anos, porque esta obra foi patrocinada e realizada durante a estadia vimaranense do arcebispo,
em 1747 ou 1748, portanto.
Por um lado, há aqui uma enorme ousadia ao propor um tal volume, tratado de uma forma que mais
parece uma escultura do que uma parte da arquitetura
de um edifício. Por outro, a pedra de armas é semelhante às duas que estão colocadas no novo palácio
bracarense, embora nesta obra vimaranense todos os
motivos que a ornam sejam ainda organizados de forma simétrica, enquanto nas de Braga o pendão já cai
obliquamente, havendo também alguns pormenores
decorativos assimétricos no interior da peça.
Esta cornija, em Santa Rosa de Lima, é muito forte
e movimentada, mas não tanto como a que André
Soares concebeu para o cunhal do Convento dos Congregados, em Braga. O elemento que une a pedra de
armas à cornija pode ser visto, exatamente no mesmo
local, noutra obra sua, a Casa da Câmara de Braga,
esta documentadamente da sua lavra. Os motivos de-
3 | Guimarães,
Casa dos Coutos,
fachada principal,
2013.
monumentos 33
corativos em forma de alga irão encontrar-se depois
quer na porta da Casa dos Coutos, em Guimarães —
casa que o arcebispo comprou, em que fez alterações,
mas onde nunca chegou a viver, pois entretanto foi
aconselhado a continuar a visita pastoral, o que constituía uma sua obrigação, porque já se encontrava em
Guimarães há cerca de dois anos e esta cidade não
era a cabeça do arcebispado —, quer em obras de talha, sobretudo no retábulo-mor da igreja do Convento de Tibães, obra também documentadamente sua.
O mais interessante elemento é, contudo, a grande
concha aberta que pende sobre quem entra, concha
que já usara, embora de forma muito mais aberta
e menos interessante do ponto de vista plástico, no
portal da capela do palácio bracarense do arcebispo;
depois utilizou de forma muito nervosa e esguia —
uma peça belíssima — no portal do Palácio do Raio
e, ainda, no da Capela de Santa Maria Madalena da
Falperra, esta quase dupla e com uma enorme volumetria, semelhando a talha gorda que iria espalhar
por múltiplos retábulos minhotos.
Mas, da mesma forma que aqui se veem estas ousadias a remeter-nos para um rococó que se estava a
adivinhar, há outros elementos que pertencem ainda
a léxicos anteriores: as volutas que encimam a porta,
sobrepujadas por meninos de bochechas gordas, motivo recorrente em gravuras e depois aproveitado na
arquitetura e na talha minhotas, mesmo vimaranenses, como é o caso do portal do Convento do Carmo;
a sanefa que envolve a parte superior da porta, que
DOSSIÊ
embora decorada com motivos trabalhados de forma
já rococó ainda se revê, como as do último piso do
novo palácio bracarense, no gosto joanino.
Tem sido referida a hipótese da Casa dos Lobo Machado ter sido concebida por André Soares mas, pese
o excelente estudo recente de Fernando Conceição7,
pensamos que haverá ainda muito trabalho a fazer
para se poder tomar uma decisão, que dificilmente
poderá ser definitiva. Mas é perfeitamente natural
que, devido à talha em pedra que a reveste, se possa
apontar a existência de reflexos de dois edifícios “soarescos” bracarenses e quase simultâneos, o Palácio do
Raio e a Capela de Santa Maria Madalena da Falperra.
A outra obra vimaranense de André Soares é a Igreja dos Santos Passos, cuja autoria é indiscutível, por
se encontrar bem documentada, sabendo-se também
que, em virtude de não ter querido receber dinheiro
pelo seu trabalho, lhe foi oferecido um tecido — (...)
por trinta covados de crepe e forro que se lhe deu em
agradecimento da factura do dito risco por não querer
levar por elle dinheiro (...)8 —, que custara 13$800 réis.
Os problemas económicos, sempre tão presentes
nas obras portuguesas, impossibilitaram que esta
obra pudesse ser hoje ainda mais interessante, pois
a arquitetura demorou demasiado tempo a ser concluída, o que levou a que a talha fosse realizada em
tempos em que o rococó já deixara de ser moda. Ou
seja, perdeu-se a unidade. E a verdade é que havia
todas as condições para se poder estar perante uma
obra excecional. Expliquemo-nos:
69
4 | Guimarães,
Casa dos Lobo
Machado, fachada
principal, 2013.
70
5 | Guimarães,
Igreja dos Santos
Passos, fotografia de
Antero Seabra, [1863].
6 | Igreja dos Santos
Passos, fotografia
de Manoel Carneiro,
[1905].
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
monumentos 33
DOSSIÊ
71
9 | Igreja dos Santos
Passos, vista geral
do exterior, 2013.
10 | Igreja dos Santos
Passos, pormenor
da escadaria
de acesso à igreja,
2013.
11 | Igreja dos Santos
Passos, vista
do interior, 2013.
7 | Egreja de
Nossa Senhora
da Consolação
em Guimarães [Igreja
dos Santos Passos],
desenho de Nogueira
da Silva, gravado
por Coelho, in Archivo
Pittoresco, vol. 7,
1864.
8 | Igreja dos Santos
Passos, planta do
primeiro pavimento,
desenho de autor
desconhecido, 1958.
72
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Havia uma capela velha dedicada aos Santos Passos que estava situada fora das muralhas, junto do
pequeno ribeiro que atravessa Guimarães. Por várias
razões encontrava-se, em 1767, em condições deploráveis, (...) o corpo da sua capella inteiramente aberto da parte do Norte (...)9, havendo necessidade de
uma intervenção urgente. Em vez de tomar a decisão
de mandar repará-la, os mesários resolveram avançar para uma obra nova, tendo o cuidado de procurar previamente e (...) com diligencia e actividade
architecto perito que o fizesse, escolhendo o famozo
curioso na arte de architectura Andre Ribeiro Soares
da Silva, da Cidade de Braga, que fizerão vir a esta
capella ver o citio em que se pretendia formalizar a
sumptuoza obra para idear o mesmo risco e planta
que vindo, e vendo tudo, tomou a incumbencia de o
fazer (...)10.
A opção de André Soares foi essencialmente cenográfica. Desviou a localização da capela, originalmente junto do riacho, para uma pequena elevação artificial. Se por um lado a protegia de futuras cheias, por
outro criava um novo ponto de centralidade fora de
muralhas porque o novo templo ao dominar o espaço
afrontava diretamente quem saía da cidade, dado que
ficava com uma grande visibilidade. Ou seja: era uma
solução que, de certa forma, repetia a sua primeira
obra, o palácio de D. José de Bragança, também colocado em cota ligeiramente superior à da rua e à da
praça defronte.
A planta do templo, com a parte central avançada
— a relembrar a Igreja do Colégio, em Salzburgo11,
de Fischer von Erlach, ou a da fachada da abadia
bávara de Weingarten12 e, sobretudo, a da igreja do
convento de Ochsenhausen13, ou o santuário de peregrinação de Wies14, mas com esculturas colocadas
sobre pilares nas partes mais altas da cornija, memória possível das torres voluntariamente esquecidas,
ou reminiscência da Igreja da Lapa, uma obra sua
em Arcos de Valdevez —, é já por si dinâmica, a qual
foi acentuada pelo jogo da escadaria de degraus que
se vão progressivamente afunilando até à dimensão
da largura da porta, como que a convidar os crentes a entrar, solução que já utilizara, mas com as
colunas ou outras formas similares, nos edifícios do
Palácio do Raio, da Casa da Câmara e da capela de
Nossa Senhora da Torre e com lances de escadaria
na capela da Falperra, embora neste caso com um
desenho incomparavelmente mais dinâmico. O átrio
assim criado, se por um lado originava um novo espaço, fazia, por outro, salientar a própria igreja que
ficou situada alguns metros atrás. Este espaço avançado permitiu a criação de uma zona prévia à nave,
como que de acolhimento, sob o coro-alto.
A solução da fachada saliente era outra fórmula que
lhe era querida, pois já a utilizara dezasseis anos antes na fachada e no corpo que acrescentou à antiga
capela de Santa Maria Madalena da Falperra, tendo
repetido alguns anos mais tarde na Igreja da Lapa,
em Arcos de Valdevez. Esta ideia teve sucesso porque
depois viria a ser utilizada quer por Carlos Amarante
na nova igreja do Hospital de São Marcos, em Braga,
quer pelo autor da igreja da Peregrina, em Pontevedra, na Galiza15. Ao mesmo tempo criava na varanda
uma espécie de púlpito ou de altar campestre (a igreja
situava-se, relembramos, na periferia da cidade), em
que o celebrante ou o pregador era facilmente visto
por todos os crentes ou ouvintes.
Se olharmos com alguma atenção para a fachada,
veremos que André Soares continua aqui com o fortíssimo corte com o rococó que patenteava sobretudo
na sua obra de talha e que se mantém fiel nas obras
de arquitetura ao sentir tardobarroco que lhe vinha
desde o edifício da Casa da Câmara, de Braga, e que
continuou pelo desenho de fontes e capelas do Santuário do Bom Jesus do Monte, da fachada da igreja
do convento bracarense dos Congregados e, sobretudo, pela obra excecional que é a Capela dos Monges,
no interior deste mesmo convento. O desenho das
janelas exteriores e, sobretudo, o das portas que dão
acesso ao coro-alto desta Igreja dos Santos Passos expressam bem este gosto.
A simplicidade decorativa, a quase ausência de
ornatos — muito pontuais, apenas a ladear a janela
oblonga situada entre a porta principal e a varanda;
os capitéis são também bastante simples e de desenho
tradicional —, não significa o aproximar de uma nova
forma de pensar a arquitetura, mas sim o aprofundar
dos valores do tardo-barroco que em Portugal e
na Europa foram cultivados simultaneamente16.
Aqui, André Soares está sobretudo a continuar os
estudos que desenvolvera sobre os volumes e o espaço e que atingiram o cume na referida Capela dos
Monges.
A planta do templo não é completamente retangular, sendo os cantos exteriores da fachada ligeiramente curvos. A nave é bastante comprida, tendo, porém,
os quatro cantos ligeiramente arredondados. A talha
que recobre os altares laterais não é do mesmo período da arquitetura. A bênção final do templo ocorreu
apenas em 178417.
Em 1862, ou 1863, começaram a ser feitas várias
alterações na fachada, tendo sido construídas as torres, da autoria do portuense Pedro Ferreira. Seguiram-se, mais tarde, a colocação do relógio e a dos
azulejos. Estas obras alteraram gravemente o projeto original, o que provocou a perda da forte tensão
concebida por André Soares, um desenho que hoje
podemos ainda conhecer quer devido à gravura que
nos foi deixada por Vivian quer, sobretudo, pela fotografia de Antero Seabra, datada precisamente destes anos, bem como pela gravura de madeira feita a
partir desta foto.
Eduardo Pires de Oliveira
Historiador da Arte
epoeduardo@gmail.com
Imagens: 1, 2 e 5: autor; 3, 4 e 8 a 11: IHRU/
Sistema de Informação para o Património
Arquitetónico; 6: Associação para o Estudo,
Defesa e Divulgação do Património Cultural
e Natural/Espólio Manoel Carneiro.
monumentos 33
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N OTA S
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3
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5
6
7
Inácio José PEIXOTO — Memórias Particulares. Braga: Arquivo Distrital de Braga, 1992.
Maria do Rosário Castiço de CAMPOS — “D. José de Bragança: estadia e educação no ‘colégio e universidade’ de Évora: subsídios para a história da educação
do século XVIII em Portugal”. Congresso de História no IV Centenário do Seminário de Évora. Actas. Évora: Instituto Superior de Teologia/Seminário Maior de
Évora, 1994, vol. 2, pp. 347-359.
Robert SMITH — André Soares. Arquitecto do Minho. Lisboa: Livros Horizonte,
1973.
Os contratos para a sua execução datam de 1 e 22 de junho de 1746. Estes foram
dados a conhecer por António José OLIVEIRA; Lígia Márcia Cardoso Correia de
Sousa OLIVEIRA — “Artistas bracarenses que trabalharam em Guimarães e seu
termo no século XVIII”. Minia. Braga: s.n., 1997, 3.ª série, n.º 5, pp. 178-180;
António José OLIVEIRA — “A actividade de artistas portuenses em Guimarães
(1685-1768)”. Museu. Porto: s.n., 2002, 4.ª
ª série, n.º 11, pp. 117-197 (páginas citadas 128-130); António José OLIVEIRA — “A talha e o cadeiral da Igreja do Carmo
de Guimarães (1723-1754)”. Museu. Porto: s.n., 2003, 4.ª série, n.º 12, pp. 93-118.
Arquivo Distrital de Braga (ADB), Registo Geral, vol. 121, fls. 534v.-536, (…) hum
Jozeph Alvares de Araujo, dessa cidade, de quem ouvi dizer que fazia algumas
obras para Vossa Alteza Sereníssima (…), com a data de 5 de julho de 1751.
Maria Helena Matos Ribeiro de ABREU — O Convento de Santa Rosa de Lima
em Guimarães. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 2001; Alexandra
PEDRO — “Do Convento de Santa Rosa de Lima à Igreja Paroquial de São Sebastião”. In José Paulo Leite de ABREU (ed. lit.); Isabel Maria FERNANDES (ed.
lit.) — Igreja Paroquial de São Sebastião, Guimarães. Braga: Instituto de História
e Arte Cristãs, 2010, pp. 14-34. Ed. coordenada pelo Museu Alberto Sampaio.
Fernando CONCEIÇÃO — “A Casa dos Lobo Machado: uma perspectiva histórica”. A Casa dos Lobo Machado: de Espaço Privado a Espaço de Interesse Público.
Guimarães: Associação Comercial e Industrial, 2011, pp. 18-47.
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14
15
16
17
Arquivo da Irmandade dos Santos Passos (AISP), Livro das Obras da Igreja dos
Santos Passos, fl. 15v.
AISP, Livro das Obras da Igreja dos Santos Passos, fl. 15v.
AISP, Livro das Obras da Igreja dos Santos Passos, fl. 15v.
Uma boa gravura desta igreja é a de Benjamim Kenckel, Prospeckt der Kollegienkirche in Salzburg: Alfred SAMMER — J. B. Fischer V. Erlach: Akzentuierte
Dokumentation der Sakral — Architectur in seinem 275.Todesjahr. Viena, 1999,
pp. 94-95.
Otto BECK — Die Basilika zu Weingarten. Regensburg: Verlag Schnell & Steiner,
1997.
Otto BECK — Pfarrkirche Sankt Georg Ochsenhausen. Regensburg: Verlag Schnell & Steiner, 1998.
Georg KIRCHMEIR; Margret HESENMULLER — The Wies. Pilgrimage church of
the “Scourged saviour”. Lechbruck: Verlag Wilhelm Kienberger, s.d.
Maria del Cármen FERNÁNDEZ ARRUTI — La capilla de Nuestra Señora del
Refugio La Divina Peregrina. Estúdio histórico-artístico. Pontevedra: Diputacion
Provincial, 1989.
Julio SEOANE — La política moral del Rococó. Madrid: A. Machado Libros,
2000.
ADB, Registo Geral, vol. 225, fl. 309, Provisão de licença para se benzer a Capela
ou Igreja dos Santos passos da vila de Guimarães, a favor do Reverendo tesoureiro Mor da Colegiada da mesma vila, com a data de 27 de novembro de 1784.
Sobre este templo e a intervenção de André Soares vejam-se os nossos textos
— “Os alvores do rococó em Guimarães”. Os Alvores do Rococó em Guimarães
e Outros Estudos sobre o Barroco e o Rococó no Minho. Braga: Edições da Associação Portuguesa de Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Braga, 2003,
pp. 15-61; André Soares e o Rococó do Minho. Porto: s.n., 2011, vol. 1, pp. 381-385; vol. 2, pp. 349-366; vol. 4, pp. 78-83. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, texto policopiado.
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74
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Paço dos Duques
de Bragança em Guimarães:
alguns vetores de leitura
MARIA MÓNICA BRITO
1. Os indecifráveis segredos da Esfinge1
O palácio erigido em Guimarães por D. Afonso (1370-1461)2, filho bastardo de D. João I e fundador da Casa
de Bragança, é hoje o segundo palácio nacional mais
visitado do território português: no ano de 2011 recebeu pelo menos 347 mil pessoas, número só superado
pelo Palácio Nacional de Sintra3.
A par do evidente deslumbramento que provoca em
milhares de pessoas, paira no ar, também, o natural
embaraço com a verdade e com a integridade deste
edifício: sendo a sua imagem atual fruto de diversas
intervenções humanas polémicas segundo o senso
comum hodierno, o segredo do mistério que o envolve pode ser minorado por um juízo que passe por
um olhar sobre a globalidade da sua fortuna histórica, pelo que, no presente artigo, tentaremos expor as
principais conclusões dessa atenção sobre o edifício,
segundo os principais vetores de leitura que emergiram na nossa investigação e que não podem deixar de
ser, aqui, sumariamente apontados.
2. A fundação de um palácio magnificente
por um filho bastardo de D. João I
Do ponto de vista da sua fundação, a construção de
um palácio magnificente4, em Guimarães, é um eco da
política de afirmação social de D. Afonso, com vista
a subalternizar a sua bastardia. No âmbito da história
da arquitetura civil, ele é a imagem acabada da mudança estrutural ocorrida na mentalidade da nobreza
de toda a Europa ao longo do século XV, caracterizada
por José Custódio Vieira da Silva5 como uma nova
preocupação com a comodidade, o luxo arquitetónico
e decorativo das habitações.
Mesmo tendo em conta o mistério que envolve o
verdadeiro fácies do edifício medieval, a grandiosidade da escala da sua planta, comprovada por fiadas
de alvenaria não aparelhada, idêntica em todo o seu
primeiro registo, impõe-se como fator imediatamente cativante naquela obra de arquitetura, revelando a
índole do seu primordial mentor. D. Afonso, um nobre viajado, comprometido com a ambiência social,
cultural e mental da Europa do seu tempo6, construiu
um edifício monumental de planta quadrangular, hoje
com quatro torreões de ângulo, elevados todos à mesma altura pelos seus restauradores, urgindo por isso
analisá-lo à luz de metodologias próprias de arqueologia da arquitetura.
Tal como pudemos documentar, através de um importante levantamento datado de 1816, procedente
do Exército7 ali aquartelado durante todo o século
XIX, corroborado pelo Dicionário Geográfico, datado
de 17588, o edifício foi provido de um pátio central
que exibiria uma galeria porticada de quatro naves9,
formadas por arcos quebrados, e (...) barandas de
excelente jaspe (...)10. A novidade que trouxemos à
luz com esta planta, em 2003, veio a ser suplantada com a publicação da mais antiga representação
da vila de Guimarães (ver fig. 2, na página 9 desta
mesma edição), presente na Biblioteca Nacional do
Brasil, no Rio de Janeiro, por Mário Gonçalves Fernandes11, que, tal como aquele levantamento militar,
apresenta as quatro galerias do pátio bipartidas por
aquilo que aparenta ser mais um corredor coberto, com estrutura quadrada central, porventura um
O Paço Ducal de Guimarães é um monumento único, cuja história
está imersa em dúvidas resultantes não só da exiguidade de fontes
disponíveis, fruto da destruição, com o terramoto de 1755, do
arquivo da casa ducal que o viu nascer, mas também devido a um
processo de descaracterização arquitetónica, por ter sido manancial
de pedra para novas construções na Idade Moderna, modificado
sob critérios de utilidade estratégica pelos engenheiros militares ao
longo do século XIX, e, por fim, por ter sido restaurado sob o regime
salazarista segundo práticas reconstitutivas. Apresentam-se aqui
alguns vetores de leitura sobre a metamorfose da “sua imagem”.
monumentos 33
DOSSIÊ
75
1 | Guimarães,
Paço dos Duques,
Planta do Paço Velho
da Senhora Rainha
Colocado na Villa
de Guimarens,
desenho de autor
desconhecido,
17 de julho de 1816;
planta do levantamento
efetuado pelo
Exército, que constitui
um raro testemunho
da existência de uma
galeria porticada no
interior do pátio
medieval.
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DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
fontanário, representados segundo este autor entre
1562 e 1570.
O palácio possui ainda um espaço espiritual, tão
próprio do despertar da devotio moderna, ao qual se
acede por um portal de arcos em ogiva com capitéis
vegetalistas sobre colunas de mármore, e onde a luz
verticalizante entra por entre dois janelões rendilhados de estilo “batalhino”. A escala humana é reposta por dois balcões que permitem aceder à capela de
modo privativo. Desta não há, contudo, testemunhos
senão a partir de 1470, como veremos12.
Na verdade, a ligação de D. Afonso a Guimarães remonta a 1409, data em que D. João I lhe faz a doação
de Fão, com todas as suas rendas, direitos e jurisdições, declarando que (...) não embargava que a dita
jurisdição fosse de Guimarães, e de seu termo (...)13.
Por outro lado, a sua comitiva é documentada na vila
desde 1402, data em que é inventariada por João Lopes de Faria a presença em Guimarães de um (...) carpinteiro do Conde (...)14.
Tudo indica, no entanto, que a construção do paço
estará associada às cláusulas do contrato do seu segundo casamento, em 1420, com D. Constança de
Noronha15, segunda (...) associação a uma família de
igual estirpe, que gravitava na órbita dos favores régios (...)16. As terras do termo reguengo de Guimarães
constituíram penhor da parte do dote de nove mil dobras, acordado para as núpcias com esta nobre senhora, a quem, segundo as cláusulas do seu contrato se
obrigava a (...) garantir guarida de casa e de seu corpo
como cumpre a mulher que com o Conde caza (...)17.
De facto, a lista de personagens presentes na vila,
ligadas por laços de vassalagem ao conde de Barcelos,
multiplica-se na década de vinte do século XV e, em
1424, encontrava-se em Guimarães um (...) Veedor das
Obras do Conde D. Afonso de Barcelos (...)18, Joham
2 | Paço dos Duques,
Planta do Perfil,
Que Mostra o Lado
Interior e Alçado
do lado do Norte,
desenho de Luis
Ignacio de Barros
Lima, s.d.; alçado do
levantamento efetuado
pelo Exército, no qual
se vislumbra o perfil
dos arcos que
adornam o pátio.
Steuez. Por outro lado, a primeira prova da existência
da realidade construtiva paçã remonta a 7 de julho
de 1428, data em que D. Afonso teria assinado nela,
o instrumento público de justificação dos seus filhos,
D. Afonso, conde de Ourém, e D. Fernando, conde
de Arraiolos, fruto do primeiro casamento, em 1401,
com a filha do Condestável D. Nuno Álvares Pereira,
D. Beatriz19.
Os contactos com a cultura material da Europa
do seu tempo suscitam diversas opiniões acerca das
fontes de inspiração que D. Afonso terá querido reproduzir no seu palácio. Desde a defesa da influência
francesa a partir da ligação ao seu cunhado, Filipe,
O Bom, da Borgonha, à prevalência do fascínio pela
vida palaciana de Itália20 — como acabou por defender o seu restaurador, o arquiteto Rogério de Azevedo — as abordagens desta problemática carecem,
porventura, do aprofundamento da destrinça do que
formalmente se reporta ao seu restauro salazarista e o
que pertence, deveras, à sua fundação medieval.
O (...) mestre francês Antom (...)21 é o nome em
torno do qual esta problemática é encetada por aquele
que foi o sustentáculo historiográfico dos primeiros
projetos de restauro da Direção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais (DGEMN), Alfredo Guimarães22. Este, em 1930, introduzia (...) hesitante, pela
falta de documentos concretos (...)23 a atribuição da
autoria da obra a este nome, tese que fez escola até
hoje, baseada apenas na sua referência como testemunha, não da sua proveniência, num documento de
data avançada — 146024.
Para José Custódio Vieira da Silva podemos vislumbrar a existência de grandes afinidades deste palácio
com o modelo mental francês, concretamente com o
paço dos reis de Maiorca, em Perpignan (construído entre 1262 e 1330), que reproduz a tipologia do
monumentos 33
DOSSIÊ
77
3 | Ante-projecto
do Q.el de Guimarães.
Esboceto da Fachada
d’Entrada, desenho
aguarelado de J.C.
Chelmichy, 1870,
projeto revivalista
romântico nunca
realizado.
palácio dos Valois, figurino muito propagado naquele
tempo25. Segundo o mesmo autor, esta questão deve
ser analisada sob a perspetiva dos contactos de
D. Afonso V com a Catalunha e a França, atestados na
sua crónica, e onde, desde o século XIII, se operava
uma transformação profunda dos castelos e palácios26.
A observação de um alçado levantado pelo Exército
do início do século XIX27 revela que a exuberância da
escala do Paço dos Duques contrasta com uma sobriedade de formas, com paralelo no Gótico Mendicante, patente nas arcarias da galeria porticada sem
qualquer decoração ou suportes intermédios. Curiosamente, os duques tinham uma ligação privilegiada
com a espiritualidade franciscana, de que o próprio
palácio foi palco pela ação caritativa da duquesa, até
à sua morte com fama de santidade, em 1480. Esta
ligação pode ser comprovada não só pelo facto de
D. Constança ter envergado o hábito da Ordem Terceira de São Francisco, como pela ação mecenática de
D. Afonso, duque de Bragança, a partir de 1449,
apondo o seu brasão de armas no fecho da abóbada
da capela-mor da Igreja de São Francisco de Guimarães, “guarida” do corpo que se comprometera a providenciar para sua esposa28.
3. Quem terminou o Paço Ducal?
As fontes documentais aconselham alguma apreensão relativamente à identificação do paço como obra
acabada do primeiro duque de Bragança. Segundo
uma tradição cristalizada e exemplificada por Francisco Xavier Craesbeeck, (...) o palácio ducal, fundado
pello infante D. Afonso a dispensa de seo pai, El Rei
D. João 1.º, cuja morte o deixou imperfeito, disendo
o Infante a quem lhe perguntou porque não o aperfeiçoava que morrera a galinha dos ovos grandes (...)29.
O mesmo autor leva-nos a pensar que após a morte
de D. Afonso, o terceiro duque de Bragança, D. Fernando II, terá sido o continuador das obras, quanto
a nós, sob o olhar atento de D. Constança de Noronha. Relata Francisco Xavier Craesbeeck: (…) huma
das torres que estava posta para a porta da Garrita,
mandou derrubar o Senhor D. Fernando o 2.º e com
a pedra della fazer huma cerca desde os Passos que já
estavam começados, e feita obra nelles para agasalho
athe a torre, que está junto da Porta da Guarrida, onde
o muro novo se vem juntar com o velho (…)30.
As teias da história do palácio passam pela via feminina. O rei D. Afonso V fizera doação da posse do
castelo e da sua alcaidaria ao segundo duque de Bragança, D. Fernando I. Este, mais interessado nas suas
possessões do sul, passou alvará a D. Constança de Noronha, confirmando-lhe a posse do reguengo e rendas
da vila de Guimarães. Por sua vez, esta senhora apadrinharia a sua sobrinha, D. Isabel, no seu casamento com
D. Fernando II, com o dote de doze mil dobras, sobre as
quais empenharia as suas prerrogativas sobre Guimarães, num contrato ratificado na capela paçã, em 147031.
Assim, observando os muros do palácio, podemos
relacionar algumas evidências com a existência de
mais do que uma empreitada no paço ducal: uma
ligada a um projeto inicial de D. Afonso, de escala
quadrangular grandiosa ao nível do sobrado, testemunhada, como vimos, por fiadas de alvenaria não
aparelhada; a estas sucede-se a alvenaria já aparelhada de uma segunda fase construtiva. Esta empreitada
poderá explicar a estranha existência, na fachada do
corpo que integra a capela virada ao pátio, de dois
vãos sobrepostos em cada extremo dessa ala posterior, o que poderá subentender que as galerias porticadas não foram concebidas de início32.
O palácio confiscado por D. João II à Casa de Bragança — D. Fernando II foi “justiçado” em Évora em
78
4 | Paço dos Duques,
fachada interior do
corpo onde se situa
a capela, desenho
de Ernesto Korrodi,
Palácio dos Duques
de Bragança em
Guimarães. Estudos
de Reconstrução,
1897.
5 | Paço dos Duques,
fachada interior do
corpo onde se situa
a capela antes das
obras, fotografia de
autor desconhecido,
s.d.
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
monumentos 33
1483 por alegada conspiração contra o rei — retornou
à sua órbita, em 1496, altura em que D. Manuel I confirma a D. Jaime a doação dos padroados de Guimarães, concedidos por D. Afonso V. Estes acontecimentos levam José Custódio Vieira da Silva a considerar
uma terceira fase construtiva no palácio, denunciada,
quanto a nós, pelas janelas quadrangulares presentes
no terceiro piso da ala posterior, que encontramos
em construções de arquitetura militar designadas “de
transição”, correspondentes aos reinados de D. João II
e D. Manuel I33.
4. A descaracterização infligida
desde o século XVII
D. Teodósio, quinto duque de Bragança, é apontado
pelo padre António Caldas como o último habitante
do paço dos seus ancestrais em Guimarães34. Após
complicada teia de esferas de influência, concretamente a passagem pela propriedade de donatários
castelhanos, ao tempo de domínio filipino, o edifício
surge como propriedade da Casa das Rainhas35, que
escasso uso fez dele. A dar testemunho deste fenómeno podemos observar nas plantas elaboradas pelos
engenheiros do Exército, até à extinção desta instituição em 1834, a ala do Armazém onde se recebem as
rendas do Reguengo que pertencem à Rainha N.ª S.ª36.
Paradoxalmente, foi durante a dinastia da família
que viu nascer o palácio que se verificou a sua verdadeira descaracterização, sob uma ótica exclusivamente utilitarista que apenas foi refreada pelos frutos da
mentalidade difundida pela geração de Alexandre Herculano e de um reavivar do gosto pela medievalidade.
O primeiro desaire foi resultado da destruição que
lhe foi infligida pelos frades capuchos, que dele se
serviram como pedreira para o seu novo convento.
O que remanesceu até hoje deve-se, curiosamente, à
ação cívica dos próprios vimaranenses que, em 1666,
solicitaram à Câmara que fosse contrariada a provisão
real em favor daquela ordem monástica. Justificavam-no dizendo que assim (...) se conseguia grandíssimo
damno ao credito e honra desta villa, por ser ella adonde nascera o senhor rei Dom Afonso Henriques o primeiro rei deste reino e era esta dita vila a primeira
corte delle (...)37. Afirmavam, assim, a consciência de
que o que se perdia era a (...) obra mais notável que
nesta villa vesita toda a pessoa grande que vem a ella,
e faltando ficava esta vila sem esta maior honra (...)38.
Em plena época barroca, este testemunho é a expressão mais viva de que a memória era, então e já, a raiz
identitária da comunidade e da sua honra.
Embora possamos documentar a ideia do estabelecimento de tropas em Guimarães desde 179039, foi
o contexto das invasões francesas que despoletou o
aquartelamento do Regimento de Infantaria número
15 neste espaço, em 180740. Seguiram-se-lhe muitos
outros corpos militares e, desde 1819, o “Paço da Rainha” foi objeto de diversas obras sob a ótica do critério da utilidade ou da operacionalidade estratégica,
DOSSIÊ
das quais as mais gravosas e sintomáticas foram as
que desmantelaram as galerias porticadas (um troço
remanescente esteve presente no pátio até à década
de setenta do século XIX) ou a abertura de quarenta
e duas novas janelas em todo o edifício, na década
de 186041.
Os militares estariam ali presentes até à definitiva
passagem do edifício da tutela do Ministério da Guerra para o Ministério da Instrução Pública, na sequência das diligências feitas por Alfredo Guimarães na
visita de Salazar a Guimarães, a 26 de setembro de
1933, no sentido de que se restaurasse o monumento
com vista a nele se estabelecerem bibliotecas, arquivo
e o Museu Alberto Sampaio42.
5. As primeiras tentativas de reabilitação
A primeira manifestação no sentido da vontade
de reabilitar o edifício surge em pleno Romantismo.
Trata-se de um anteprojeto de índole revivalista, miscelânea de evocações goticizantes e renascentistas,
que implicaria uma operação de cosmética à fachada,
da autoria do coronel de engenharia J. C. Chelmichy,
datado de 1870, nunca realizado43.
Na sequência da classificação do edifício como
“Monumento Histórico de Segunda Classe”44 pela
Real Associação dos Architectos Civis e Archeólogos
Portuguezes, em 1881, surgem os Estudos de Reconstrução da autoria de Ernesto Korrodi, em 189745. Estes estudos seriam oferecidos pelo autor ao Museu
Alberto Sampaio, em 22 de junho de 193646. A data
da oferta impele-nos a pensar que, pelas suas similitudes com os projetos do primeiro restaurador do paço,
terão tido papel fundamental na sua traça, concretamente na terceira versão de projeto para a fachada da
ala posterior ou sudeste e a sua escadaria de acesso à
capela (que não foi, contudo, a última versão)47.
6. O restauro salazarista
6.1. Leitura política: a “questão monárquica”
Ao nível político, o restauro do Paço dos Duques
não escapou a uma estratégia concertada subjacente
a uma atitude restauracionista triunfalista diagnosticada no seio da ideologia e da mentalidade do “salazarismo”. Esta atitude caracterizada por Maria João
Baptista Neto48, na esteira de Borges de Macedo e de
João Medina49, vem também ao encontro do que Artur
Portela designa como “arte salazarista”50.
A documentação relativa ao palácio dos Bragança
presente no acervo da antiga Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), hoje no
arquivo do Instituto da Habitação e da Reabilitação
Urbana (IHRU), em complemento com o acervo de
António Oliveira Salazar nos Arquivos Nacionais da
Torre do Tombo (AN/TT), é uma amostra excecional
de cerca de trinta anos de mecenato do regime ca-
79
80
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
6 | Paço dos Duques,
primeiro projeto de
vitrais destinados à
capela, da autoria de
Guilherme Camarinha:
a) Painel de Cristo;
b) Painel das armas
do duque de
Bragança, D. Afonso;
c) Painel de Nossa
Senhora;
d) Painel das armas da
duquesa, D. Constança
de Noronha;
fotografias de autor
desconhecido, s.d.
a
c
b
d
racterizado. Com ela pudemos constatar que este restauro foi realizado sob o dirigismo de uma pirâmide
hierárquica centralizada, sendo ciosamente acompanhado pelo seu topo, concretamente pelos ministros
das Obras Públicas e pelo próprio presidente do Conselho, intervindo este último, não apenas em diretrizes gerais, mas no aval ou rejeição de diversas etapas,
mesmo em aspetos de pormenor e em campos tão específicos quanto, por exemplo, a heráldica.
Tal como notou Maria João Baptista Neto, para
este restauro foi planeado, desde a primeira fase do
longo processo, um projeto global no qual a marca
decorativa não é menosprezável, concretizada muito
para além do primeiro modernismo impulsionado por
António Ferro e do cunho Art Déco, patente na obra
do seu primeiro ideólogo, o arquiteto Rogério dos Santos Azevedo (1898-1983), dando ênfase ao artesanato
e às artes decorativas. Esta é, de resto, uma das ferramentas políticas da “arte salazarista” como forma
de propaganda de imagens caras ao regime.
No Paço dos Duques, as artes decorativas e aplicadas, não tanto quanto o restauro arquitetónico,
foram colocadas ao serviço de uma intencionalidade
político-ideológica inquestionável. Este sintoma pode
monumentos 33
ser avaliado pelo programa iconográfico escolhido
para os vitrais da capela, realizados por António Lino,
após a rejeição de um primeiro projeto de cunho mais
catequético, que “não agradou”51, da autoria de Guilherme Camarinha, arquivado no ano de 1946, a data
em que expunha ao lado de pintores que se inspiravam no neorrealismo52. No mesmo sentido, assume
especial significado a sucessão de projetos para o
brasão que coroa o portal da mesma capela, a que
o escultor Teixeira Lopes foi impelido até conseguir
satisfazer a ideia precisa que se queria transmitir com
a mensagem heráldica.
A decisão de elevar toda uma ala do edifício secular
com vista a constituir uma residência presidencial no
norte do país era uma questão delicada que, por isso,
pouco ou nada foi publicitada ou claramente assumida até 1953. Em contraponto, existia uma cumplicidade para com a “causa monárquica”53 por parte de Salazar, que apenas se demarcou deste setor sociológico
que o apoiou num Congresso da União Nacional em
Coimbra, em 195154.
Esta foi, quanto a nós, uma das razões que esteve
na base da omnipresença de Salazar neste processo
que tinha como pano de fundo a história da última
família reinante. O ditador demonstrou claramente,
através das suas diretrizes para aquele brasão, a vontade de não se representar com este edifício mais do
que um nobre bastardo, filho do fundador da “Ínclita
Geração”. Neste sentido, fez prevalecer a sua vontade
sobre o parecer da Academia Portuguesa de História
de que deveria nele figurar o coronel de duque, a que
Afonso ascendera em 1442.
No entanto, D. Afonso foi representado nos vitrais
ao lado do primeiro rei de Portugal, rei cuja corte em
7 | Paço dos Duques,
quinta maqueta para
o brasão, em barro,
destinado ao portal
da capela, executada
por Manuel Teixeira
Lopes, vendo-se
o fácies com que foi
passado à pedra,
reproduzindo as armas
de D. Afonso, ainda
conde de Barcelos,
seguindo as diretrizes
de Salazar, com
o escudo ao valon
(inclinado) em sinal
de bastardia e sem
o coronel de duque,
fotografia de autor
desconhecido, 1960.
DOSSIÊ
81
Guimarães foi identificada por alguma tradição como
sendo sediada no local onde D. Afonso erigiria o seu
palácio55. Este facto revela o dúbio posicionamento
de Salazar na sua demarcação face à causa monárquica. Parece-nos que os vitrais, que hoje decoram os
janelões da capela, podem ser lidos como um hino de
celebração aos momentos decisivos para a construção e expansão da soberania nacional, vestindo-se o
monumento com a iconografia da mitologia nacional,
e uma imagem da linhagem que se impusera face à
usurpação espanhola como (...) património moral da
nação (...)56, tal como o ditador a definira.
Tal argumento de demarcação não obstaculizou
que, atendendo à Comemoração do Centenário da Elevação de Guimarães a Cidade e do Milenário da sua
Fundação, em 195357, fosse constituída pelo Ministério das Obras Públicas uma Comissão de Mobiliário,
liderada por alguém próximo do ditador, o engenheiro
Duarte do Amaral, que teria a incumbência de recriar
o ambiente do solar nobre que transcorrera toda a
Idade Moderna — (...) uma casa de coisas raras (...),
como caracterizara o paço, D. António Caetano de
Sousa58. Assim, a decoração que é hoje o espólio e
coleção do palácio nada, ou pouco, tem que ver com
ele, o que dificulta a estruturação de um discurso para
um centro interpretativo.
6.2. Leitura técnico-metodológica:
um restauro “viollet-le-duquiano”?
Tal como Mário Barroca notou, este restauro arquitetónico iniciado em 1937 não foi levianamente
empreendido, e existiu por parte do seu primordial
projetista uma reflexão profunda, tanto em termos
8 | Paço dos Duques,
pátio interior, arco
reconstituído com as
aduelas encontradas
in situ, que constituiu
o modelo para as
arcadas da galeria
porticada existente no
palácio, fotografia de
autor desconhecido,
s.d.
82
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
10 | Paço dos Duques,
capela, mobiliário
neogótico concebido
por Mário Barbosa,
fotografia de autor
desconhecido, 1959.
9 | Paço dos Duques,
pátio interior, fachada
da capela, construção
de um modelo de
escada em madeira
para acesso ao pórtico
da capela, figurino do
quarto e último projeto
para este equipamento
provavelmente
inspirado no desenho
da escada do Tribunal
de Ruão, de
Viollet-le-Duc,
fotografia de autor
desconhecido, s.d.
deontológicos, como metodológicos e historiográficos. No que toca a critérios de restauro, nos seus
relatórios, desde logo, Rogério de Azevedo assume
que o objetivo final de todas as ações é o de uma
“reconstituição”59. Contudo, o termo é demarcado
de um exercício de estilo, pela vontade expressa de
fidelidade ao que teria existido, com exceção para as
zonas nas quais o destino a uma função ditou uma
“adaptação”.
A fragilidade metodológica do arquiteto portuense
está na distância entre o mote introduzido e a aplicação prática desenvolvida que o coloca numa posição
intermédia entre Viollet-le-Duc60, que serviu, em geral, a filosofia nacionalista do restauro da DGEMN, e
Lucca Beltrami que, com a máxima com’era, dov’era,
inaugurou o “restauro histórico”61.
Rogério de Azevedo não esconde que podem ser
consideradas duas fases no propósito final ou na
intencionalidade geral da “reconstituição”: a (...) reconstrução pura das muitas partes arruinadas, sem
adaptação ou fantasias (...) e a “restauração”.
Com a primeira fase supõem-se operações de “reparação” como lavagem da pedra, desentaipamento de
rasgos primitivos, demolição de acrescentos recentes
(com vista, é certo, a uma limpidez de leitura do que
é considerado “primitivo”), cobertura do edifício e reconstituição em sentido restrito, ou seja, dos aspetos
de que se considerava existirem testemunhos materiais de existência.
Já a “restauração” supôs a reconstituição com caráter hipotético, que Beltrami rejeitava. Não se tratava de uma recuperação filológica de uma linguagem
estilística, porque existia uma vontade de remissão
histórico-arqueológica. Contudo, recorria-se a analogias internas para defender aspetos de que não existiam testemunhos, sob a convicção da sua simetria e
regularidade. Foram também utilizadas analogias externas a edifícios considerados “coevos” ou do “mesmo género”, sob reserva, e quando os outros recursos
estavam esgotados, mas esse não foi o procedimento
mais seguido por Rogério de Azevedo. Tal é o caso
da escadaria de acesso à capela que foi delineada, segundo o seu autor, com base nas escavações aos seus
alicerces. Contudo, a sua forma específica, que variou
ao longo de quatro projetos, acabou por ser a do Tribunal de Ruão, cujo desenho figura no Dictionnaire
de Viollet-le-Duc.
A “restauração” incluía ainda a “adaptação” a uma
função numa das alas erguida de novo, a ala noroeste
ou frontal, e aqui o arquiteto permitiu-se assumidamente a aplicação do restauro estilístico, na animação da fachada, podendo observar-se no seu projeto62,
nunca transposto à pedra, três janelões copiados dos
presentes no Palácio dos Condes de Poitiers, desenhados na mesma obra de Viollet-le-Duc63.
Assim, contrariamente ao que sucedeu em muitos
edifícios medievais, o restauro do Paço dos Duques,
pela sua singularidade, tal como o que se pode observar no restauro de alguns edifícios pré-românicos
intervencionados pela DGEMN64, exigiu uma reflexão
mais maturada, um prelúdio de uma arqueologia da
arquitetura65 e a criação de teorias historiográficas de
suporte às reconstituições, ao sabor das quais se ergueram e destruíram projetos (e arquitetos)66.
monumentos 33
11 | Paço dos Duques,
pátio interior,
galeria porticada,
fotografia de autor
desconhecido, 1959.
Em 1934, o historiador espanhol Gomez Moreno
divulgou em Portugal os novos rumos apontados
pela Carta Internacional do Restauro e da Carta de
Restauro Italiana, de 1930-1931, elevando a bandeira
de Gustavo Giovannoni67. No entanto, apenas a reflexão de Raul Lino, em 1949, na qualidade de diretor
de Serviços dos Monumentos, seria a nota dissonante num contínuo aplicar, até ao final da intervenção
no paço, do paradigma reconstitutivo. A sua crítica
incidiu sobre a (...) dúvida, um tanto desconcertante,
se havemos de encarar [o paço] como monumento
histórico, restaurado ou reconstituído, se como edifício moderno (...)68. Esta terá influído na estagnação
dos trabalhos entre 1949 e 1952, e na inclusão da
palavra “conservação”, desde então nas memórias
dos projetos69.
A sua ação não impediu, no entanto, que a orientação da intervenção, em 1954, fosse ainda a de
(...) se reintegrar o Paço no seu estilo primitivo de
grande solar ducal (...)70. Se o mobiliário neomedieval da capela, projetado por Mário Barbosa, os
telhados, inspirados nos castelos do Loire, e os tetos das grandes salas, do risco do arquiteto Alberto
da Silva Bessa, são um fruto, reversível, desta
orientação, já os capitéis das colunas de suporte da
cobertura do segundo piso da galeria porticada, que
foram talhados sem qualquer decoração, marcam o
dilema destes quadros técnicos quanto ao restauro
arquitetónico. Para os políticos, os critérios de unidade estilística serviam os pressupostos nacionalistas de toda a política patrimonial71. Os arquitetos
cumpriam ordens.
DOSSIÊ
7. Que Paço dos Duques nos é dado conhecer?
Não nos sendo possível, aqui, descrever todo o restauro do Paço dos Duques72 e a globalidade do percurso da sua metamorfose, podemos afirmar, contudo, e como vimos, que existem várias imagens suas
às quais podemos, de alguma relativa forma, aceder.
O percurso é, por vezes, o de uma cripto-história da
arte73 que integre a contextualização da sua fortuna
histórica e historiográfica, urgindo também um olhar
sob a ótica de uma arqueologia da arquitetura.
Do ponto de vista da sua fruição, há que encarar o
nosso palácio como qualquer obra de arte, por definição total e aberta. Total, na medida em que exige do
observador um olhar integrado sobre toda a sua vida;
aberta, porque não se esgota na intencionalidade daqueles que a criaram ou na sua “carga genética”, mas
continua nos infinitos impactos que pode suscitar e
no deslumbramento que, porventura, opere.
De resto, os números falam por si. Com uma média
de cerca de novecentos e cinquenta visitantes por dia,
em 2011, o palácio dos Bragança sobreviveu à pertinente afirmação de Alfredo Pimenta de que existe
uma fronteira inabalável entre nós e a verdade74.
Maria Mónica Brito
Historiadora da Arte
Técnica Superior do Serviço Educativo
do Museu de São Roque
Imagens: 1 a 3: Direcção de Infra-Estruturas
do Exército/Gabinete de Estudos Arqueológicos
de Engenharia Militar; 4: DGPC/Museu Alberto
Sampaio; 5 a 12: IHRU/Sistema de Informação
para o Património Arquitetónico.
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DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
12 | Paço dos Duques,
fachada principal
e lateral a partir do
ângulo oeste, 2013.
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Expressão utilizada pelo arquiteto restaurador do paço ducal, Rogério de Azevedo. In Rogério de AZEVEDO — Paço dos Duques de Guimarães..., pp. 7-8.
Sobre D. Afonso, primeiro duque de Bragança, cf. D. António Caetano de SOUSA —
História Genealógica da Casa Real Portuguesa, t. V; AHCB, Francisco Nunes
Franklin, Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso
Primeiro Duque de Bragança; e Francisco Nunes FRANKLIN; J. T. Montegalvão
MACHADO (org.) — Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança...
Cf. www.guimaraesdigital.com/index.php?a=noticias&id=46927
Expressão de Alfredo Pimenta. In Alfredo PIMENTA — A Propósito do Paço dos
Duques, p. 23.
Cf. José Custódio Vieira da SILVA — “Paço dos Duques de Bragança em Guimarães”. Patrimónia. Identidade Ciências Sociais e Fruição Cultural, out. 1990, n.º 1,
pp. 29-36; Idem — Paços Medievais Portugueses, e idem — Fascínio do Fim...
Não só por compromissos diplomáticos como por sua iniciativa, e reunindo
grandes comitivas, conheceu destinos como Inglaterra, Escócia, Provença,
Auvergne, Borgonha, Itália, Navarra, Aragão e Castela. Participando como capitão das galés na expedição e assalto a Ceuta, em 1415, foi agraciado pelo rei
com a mercê da vila e do palácio de Algezira, de onde, segundo a tradição, teria
trazido vasto espólio artístico, concretamente a decoração em talha dos salões
e setenta colunas do pátio, em mármore e jaspe, dentre as quais teria escolhido
algumas para o pórtico da capela paçã. O conde de Barcelos tinha também relações privilegiadas com a Galiza, uma vez que adquiriu a Igreja Metropolitana
de Sant’Iago de Compostela, em 1426. Cf. AHCB, Francisco Nunes Franklin,
Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro
Duque de Bragança, fl. 78 e 78v.
Cf. DIE/GEAEM, Planta do Paço Velho da Senhora Rainha colocado na Villa de
Guimarens, [17 de julho de 1816].
Neste documento o padre António Oliveira faz referência a um (…) claustro de
coatro naves feito de arcarias ecombarandas de excelente jaspe (…), in AN/TT,
Padre Luís CARDOSO (org.), Dicionário Geográfico, [1758], rolo 327, vol. 18,
fl. 772.
Rogério de Azevedo afirma também ter encontrado os alicerces das galerias
(...) a atestar a sua existência com sinais bem nítidos (...). In Rogério de AZEVEDO — Ob. cit., p. 118. No entanto, os alicerces da realidade construtiva que
atravessa o pátio neste documento gráfico terão sido por ele interpretados como
uma escada de acesso à capela, que nunca existiu de facto, pois, segundo o
padre António Oliveira afirma no Dicionário Geográfico, a ela se acedia pelas
barandas. Cf. AN/TT, Padre Luís CARDOSO (org.) — Dicionário Geográfico.
In idem, ibidem.
Esta planta foi anunciada por Maria Dulce de Faria, bibliotecária daquela biblioteca, na 21st International Conference on the History of Cartography, realizada
em Budapeste, em 2005. Cf. Fundação Biblioteca Nacional do Brasil (Rio de Janeiro)/Cartoteca, “De Guimarães”. Mappas do Reino de Portugal e suas Conquistas Collegidas por Diogo Barbosa Machado, apud; Mário Gonçalves FERNANDES — “As plantas ‘De Guimarães’ e ‘De Vila do Conde’ da Biblioteca Nacional
do Brasil”. Passado e Presente para o Futuro..., pp. 1-9 e idem — “Novas notas
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para a história da cartografia urbana e para a morfologia urbana de Guimarães”.
IV Congresso Histórico de Guimarães..., pp. 117-133.
Estes balcões não surgem representados no alçado da fachada posterior da ala
que alberga a capela, presente no documento gráfico citado, presente na Biblioteca do Rio de Janeiro, tendo sido encontradas, claramente, as suas estruturas,
como pode ser observado nos registos fotográficos anteriores ao restauro. Tal
levanta alguma perplexidade relativamente à correspondência real estrita deste
documento com o que então remanescia. O mesmo sucede com a torre que
existia junto à Porta da Freiria, que também não surge representada e é documentada quer pelo padre Ferreira Caldas, quer pelo padre Torcato Azevedo, e
que só foi demolida no século XIX, segundo Alberto Vieira Braga. Agradecemos
a este respeito todas as considerações partilhadas pelo arqueólogo da câmara
desta cidade, Dr. Francisco Faure, acerca das muralhas da vila de Guimarães.
In António Caetano de SOUSA — História Genealógica da Casa Real Portuguesa, t. V.
O Fundo João Lopes de Faria, guardado na Sociedade Martins Sarmento, reúne
inúmeros textos transcritos do Arquivo Histórico de Guimarães e informações
inéditas acerca da história local, da autoria daquele estudioso vimaranense.
Entre estes documentos encontra-se um levantamento dos indivíduos na órbita
da “Casa dos Duques”, em Guimarães, que surgem nomeados naquele arquivo.
Cf. SMS, Fundo Lopes de Faria, Velharias Vimarenses, fl. 150 e 190-190v.
D. Constança era sobrinha-neta do fundador da dinastia de Avis e filha de
D. Afonso, conde de Gijon e Noronha e de D. Isabel, filha bastarda do rei português D. Fernando.
In Mafalda Soares da CUNHA — Linhagem, Parentesco e Poder. A casa de Bragança (1384-1483), p. 33.
In António Caetano de SOUSA — “Contrato de Casamento do Duque de Bragança, D. Afonso, com D. Constança de Noronha”. Provas da História Genealógica
da Casa Real Portuguesa, t. III, pp. 22-25.
In SMS, Fundo Lopes de Faria, Velharias Vimarenses, fl. 150 e 190-190v.
Avançamos com esta datação com base em AHCB, Francisco Nunes Franklin,
Chronica do Muito Alto e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque
de Bragança, fls. 83 e 83v. A data mais recuada que tem sido apontada para a ocupação do paço é a de 31 de janeiro de 1438, alicerçada em documento encontrado
pelo abade de Tagilde. Cf. Oliveira GUIMARÃES — Guimarães e Santo António,
1895. Apud, Barroso da FONTE — Paço dos Duques de Bragança, p. 26.
Sobre as influências externas recebidas por D. Afonso ao projetar o seu palácio cf. Alfredo PIMENTA — A Propósito do Paço dos Duques de Guimarães;
Alfredo GUIMARÃES — Guimarães. Guia de Turismo; Rogério de AZEVEDO
— Ob. cit., pp. 78-79; Ilídio ARAÚJO — Arte Paisagista e Arte de Jardins em
Portugal, vol. I; J. H. Pais da SILVA — Paço dos Duques em Guimarães, 1973,
vol. I; Carlos AZEVEDO — Solares Portugueses, p. 134; José Custódio Vieira da
SILVA — “Paço dos Duques de Bragança em Guimarães”. Patrimónia. Identidade Ciências Sociais e Fruição Cultural, out. 1990, n.º 1, pp. 29-36; idem — Paços
Medievais Portugueses, pp. 137-145 e idem — Fascínio do Fim..., p. 23; Pedro
DIAS — A Arquitectura Gótica Portuguesa, 1994, p. 89; Mário BARROCA —
“A Arquitectura Gótica Civil”. In Carlos Alberto Ferreira de ALMEIDA (dir.); Mário Jorge BARROCA (dir.) — História da Arte em Portugal. O Gótico, pp. 89-133.
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In Alfredo GUIMARÃES — Guimarães Monumental, p. 8.
Curiosamente, se Alfredo Guimarães se revela em muitos aspetos a “musa
historiográfica” do restaurador Rogério de Azevedo, este virá a defender uma
influência italiana do paço, contestando a origem francesa do nome Antom. Cf.
Rogério de AZEVEDO — Paço dos Duques de Guimarães, passim.
Idem, ibidem.
Esta tese foi defendida em Alfredo GUIMARÃES — “Tapeçarias”. Prisma, 1937,
pp. 222-235 e em idem — Guimarães: Guia de Turismo, p. 82 e idem — Guimarães. Publicação Comemorativa das Festas Centenárias da Fundação de Portugal,
p. 76.
Cf. J GARDELLES; Jean Pierre BALELON (dir.) — De Saint Louis à Filippe le Bel.
Le XIIIéme Siècle…, pp. 91-92.
Agradecemos as preciosas orientações a este nível amavelmente concedidas
pelo Professor Doutor José Custódio Vieira da Silva. Segundo este historiador
foi decisivo para a criação de um gosto cortesão pelos palácios afrancesados,
equipados com o necessário para o conforto e luxo dos seus habitantes, a deslocação do rei a França e o contacto com as construções do duque de Berry
atestados na sua crónica. Cf. Rui de PINA — Crónica de D. Afonso V. Lisboa:
Mello d’Azevedo, 1901, vol. III, p. 109. Citado por José Custódio Vieira da SILVA
— Paços Medievais Portugueses.
DIE/GEAEM, Planta do Perfil, Que Mostra o Lado Interior e Alçado da Parte do
Norte.
A participação de D. Constança na idealização do seu paço é uma questão a não
menosprezar, ela própria foi mecenas em Guimarães, exemplo desse facto está
patente em documento da Chancelaria de D. Afonso V, onde surge mencionado
um (...) oratório que ella hordenara que chamam santa vera cruz junto com os
muros de Guimarães (...). Este testemunho leva a pensar que no local onde se
encontra a atual Capela da Santa Cruz, construída em 1639, sita nas proximidades de onde se encontrava a Porta da Freira, da Freiria ou de Santa Cruz, a mais
próxima do Paço Ducal, terá existido outra anterior com a mesma invocação
fundada por D. Constança de Noronha. Cf. AN/TT, Chancelaria de D. Afonso V,
L.º 13, §2, fl. 141, apud, Francisco Nunes FRANKLIN, Chronica do Muito Alto
e Muito Esclarecido Príncipe Dom Afonso Primeiro Duque de Bragança, fl. 181.
Padre Torquato de AZEVEDO — Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães,
p. 356.
In Francisco Xavier CRAESBEECK — Memórias Ressuscitadas da Província de
Entre-Douro-E-Minho, vol. I, p. 84. Esta ideia está também presente em Torquato Peixoto de AZEVEDO — Memórias da Antiga Guimarães e padre António
Carvalho da COSTA — Corographia Portugueza Descripçam Topographica do
Famoso Reyno de Portugal..., t. I.
Francisco Xavier CRAESBEECK — Ob. cit.
Antes do casamento, datado de 1475, altura em que D. Fernando II ascende a
duque de Guimarães, recebera, em 1464, a doação do Padroado da Colegiada de
Nossa Senhora da Oliveira e de todas as igrejas e mosteiros de Guimarães que
era então elevada a condado.
O facto de Craesbeeck alegar que os paços, ao tempo de D. Fernando II, (...) já
estavam começados (...) incute a leitura de que, porventura, a obra de D. Afonso
teria sido o citado “início”. Poderíamos, assim, considerar que a capela paçã
não foi uma exceção no contexto das casas senhoriais, a rivalizar com os paços
reais, mas uma realidade posterior, segundo José Custódio Vieira da Silva, já
presente no contexto das casas nobres a partir do reinado de D. Afonso V.
Também as ameias encontradas por Rogério de Azevedo nas escavações realizadas no terreno podem ser enquadradas no período manuelino, num fácies
que prima pela perda do conteúdo defensivo e pela prevalência do cunho decorativo. No entanto, não foram encontrados muitos exemplares, pelo que a
sua presença residual aconselha algum cuidado de interpretação. Quanto às
fortificações ditas “de transição” cf. Mário PEREIRA — “Da Torre ao Baluarte”.
A Arquitectura Militar na Expansão Portuguesa, pp. 35-42; Rafael MOREIRA
— “A Arquitectura Militar”. História da Arte em Portugal, vol. VII, pp. 137-142;
PORTUGAL no Mundo. História das Fortificações Portuguesas no Mundo.
Cf. António José Ferreira CALDAS — Guimarães. Apontamentos para a sua
História, pp. 414-418.
Para diversa documentação acerca dos encargos e benefícios da rainha relativamente ao reguengo de Guimarães. Cf. AN/TT, Casa das Rainhas, Registo
das Folhas do Almoxarifado das Terras do Estado da Rainha Fidelíssima, [1761-1774], cx. 62, lv.5; AN/TT, Casa das Rainhas, Rendimento dos Corregedores das
Vilas de Guimarães, Viseu e Aveiro, [1771-1824], cx. 83, lv. 543; AN/TT, Casa
das Rainhas, Registo de Emprazamentos, Doações e outros Documentos Relativos
aos Reguengos de Guimarães, [1644-1657], cx. 162, lv. 48; AN/TT, Casa das
Rainhas, Tombo do Reguengo de Guimarães, [1517], cx. 161, lv. 47; AN/TT, Casa
das Rainhas, Tombo do Reguengo de Guimarães, [1657], cx. 162, lv. 48.
DIE/GEAEM, Luís Ignácio Barros LIMA (assinado), Planta Baixa que Mostra
Afigura Que Tem o Terreno que Occupa o Edifício Antigo Denominado, o Paço
na Villa de Guimarães; parte do qual está occopado em quartel do regimento
d’Infantaria.
Arquivo Histórico Alfredo Pimenta, Vereações da Câmara de Guimarães, livro
12, fl. 126. Transcrito por Alfredo PIMENTA, apud, Rogério de AZEVEDO —
Paço dos Duques, pp. 112-113n.
Idem, ibidem.
Carta do Corregedor de Guimarães, José Diogo Mascarenhas, in AHM, 3.ª Divisão, 20.ª Secção, cx. 1, doc. n.º 58.
Cf. padre António José Ferreira CALDAS — Guimarães. Apontamentos para
a sua História, vol. II, pp. 248-258; idem; António Amaro das NEVES (org.);
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J. Santos SIMÕES (org.) — Guimarães. Apontamentos para a sua História,
pp. 411-419; Luís Maria da Câmara PINA; Carlos Gomes BESSA — “Algumas
Unidades de Guimarães”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada...,
vol. III, pp. 335-367.
Elaborámos um levantamento da documentação que revela as obras elaboradas
pelo exército ao longo da sua estadia no palácio. Cf. Maria Mónica BRITO — Ob.
cit., pp. 63-77.
O percurso jurídico e administrativo do paço foi definido pelo Auto de Entrega
de 17 de julho de 1933 e pelo Decreto-Lei n.º 24.489 de 13 de 1934. In DGTF,
Processo n.º 26-CH-21. Distrito de Braga. Concelho de Guimarães. Paço dos
Duques de Bragança em Guimarães.
DIE/GEAEM, J. C. CHELMICHY, Inspecção d’Engenharia...
Integrado entre os (...) Edifícios importantes para o estudo da história das Artes em Portugal, ou somente históricos, mas não grandiosos, ou simplesmente
recomendáveis por qualquer excelência de arte (...). Era então descrito como
(...) um vastíssimo edifício muito interessante para o estudo da construção das
habitações dos grandes senhores n’aquela época (…), in Maria Lúcia Cardoso
ROSAS — Monumentos Pátrios. Arquitectura Religiosa Medieval..., p. 133.
MAS, Ernesto KORRODI, Palácio dos Duques de Bragança em Guimarães.
Estudos de Reconstrução, n.º de inventário 851. Tivemos conhecimento destes
desenhos, em abril de 1999, através sua antiga conservadora, Dra. Manuela Alcântara, à qual já agradecemos. Dois dos desenhos foram expostos e publicados
por Mário Barroca em GUIMARÃES. Mil Anos a Construir Portugal, p. 91-92,
catálogo da exposição realizada entre 31 de julho e 31 de dezembro de 2000.
Informação contida em MAS, Livro de Correspondência, n.º 3. Agradecemos à
Dr.ª Isabel Maria Fernandes, diretora do Museu Alberto Sampaio em 2000, que
nos permitiu o acesso à obra de Korrodi, então em depósito.
Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, DES. 0301030.
O nosso trabalho teve como ponto de partida as perspetivas lançadas pela Professora Doutora Maria João Neto no II Congresso Histórico de Guimarães, realizado em 1997. Cf. Maria João Baptista NETO — “O Restauro dos Monumentos
Medievais de Guimarães no tempo do Estado Novo”. II Congresso Histórico de
Guimarães..., vol. III, pp. 423-444. Da sua vasta obra foram essenciais para
este trabalho: idem — A Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais...;
idem — “A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e a Intervenção no Património Arquitectónico em Portugal. 1929-1999”. Caminhos do
Património. 1929-1999, pp. 23-43 e idem — “‘A Afirmação da Modernidade’. António Lino e as Vivências da Pintura do seu Tempo”. ANTÓNIO Lino. 1914-1996,
pp. 13-19, catálogo da exposição realizada entre 22 de novembro e 13 de dezembro na Biblioteca Municipal D. Dinis, em Odivelas.
Cf. João MEDINA — “Deus, Pátria, Família: ideologia e mentalidade do Salazarismo”. História de Portugal..., pp. 11-142.
Artur PORTELA — Salazarismo e Artes Plásticas, p. 132.
In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques de Bragança. 1936-56.
Processo Administrativo, vol. 266, ou SIPA, DGEMN:DSID 001/003-0266.
Cf. José-Augusto FRANÇA — A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), pp.
355-361.
Há que lembrar a propagada filosofia da história salazarista segundo a qual se
denegria a ação dos governos liberais e republicanos que estiveram na origem
da nacionalização dos bens das instituições monárquicas seculares, questão que
só foi sanada com a instituição da Fundação da Casa de Bragança. Agradecemos ao Professor Doutor António Telo a sugestão desta problemática e da
bibliografia que lhe está subjacente. Sobre este tema cf. Manuel Braga da CRUZ
— Monárquicos e Republicanos no Estado Novo; idem — “A oposição eleitoral
ao Salazarismo”. Revista de História das Ideias, 1983, n.º 5, pp. 701-781; idem —
“A Revolução Nacional de 1926: da Ditadura Militar à formação do Estado
Novo”. Revista de História das Ideias, 1985, n.º 7, pp. 347-371; António Assis
TEIXEIRA, Benedita AMEAL, Gonçalo de SAMPAIO e MELLO — Os Monárquicos e o Poder durante o Estado Novo, pp. 7-8; cf. quanto a esta questão o que
já desenvolvemos em Maria Mónica Carrusca Pimenta de BRITO — Ob. cit.,
pp. 107-116.
Cf. Marcelo CAETANO — As Minhas Memórias de Salazar, p. 386.
Rogério de Azevedo acreditava nesta teoria baseado em Alfredo Guimarães e
em Alberto Sampaio, autores para os quais a doação feita por D. João I recairia
sobre um imóvel já existente onde os pais do primeiro rei de Portugal teriam
também o seu palácio. Para Rogério de Azevedo este teria sido (...) arrasado
até aos fundamentos (...) por D. Afonso de Bragança. Cf. Alberto SAMPAIO
— Estudos Históricos e Económicos, vol. I, p. 246. Apud, Alfredo GUIMARÃES
— Guimarães. Publicação Comemorativa das Festas Centenárias da Fundação de
Portugal, p. 34. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Rogério de AZEVEDO, Memória Histórica, Descritiva e Justificativa, [29 de outubro de 1939], documento
inédito amavelmente cedido pela Professora Doutora Maria João Baptista Neto.
In António Oliveira SALAZAR — “Questões de Política Interna. Discurso dirigido aos governadores civis, às comissões distritais da União Nacional e aos
candidatos a deputados, numa sala da Biblioteca Nacional, em 20 de Outubro
de 1949”. Discursos e Notas Políticas 1943-1950, vol. IV, pp. 425 e segs. Neste
discurso Salazar chega a lançar a ideia de ceder o Paço dos Duques aos (...)
príncipes portugueses (...). Cf idem, ibidem, p. 443.
As obras de arte e o mobiliário foram então adquiridos em antiquários nacionais e estrangeiros e nas reservas de outros museus e palácios nacionais. Não se
recorreu apenas a mobiliário medieval porque, para além da sua raridade e alto
custo, pretendia-se que o espaço fosse dotado da capacidade e comodidade para
albergar dois chefes de Estado e que este pudesse ser palco de eventos oficiais.
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Citado pelo ministro da Educação em IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço
dos Duques de Bragança, Braga. (1936-1956), Processo Administrativo, vol. 266,
ou SIPA, DGEMN:DSID 001/003-0266.
Veja-se o primeiro relatório de Rogério de Azevedo. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da
ex-DGEMN, Paço dos Duques de Bragança, Braga, (1936-1956), Processo Administrativo, vol. 266 ou SIPA, DGEMN:DSID 001/003-0266.
Não esqueçamos a célebre definição de Viollet-le-Duc: (...) restaurer un édifice,
ce n’est pás l’entretenir, le réparer ou le refaire, c’est le rétablir dans un état complet qui peut n’avoir jamais existé un moment donné (...) in Eugène-Emmanuel
VIOLLET-LE-DUC — “Restauration”. Dictionnaire Raisonné de l’Architecture
Française du XIéme au XVIème siècle, t. VIII, [s.l.], Bibliothèque de L’Image,
1932, pp. 14-34.
Considerando que, sendo o ato artístico único e irrepetível, a sua reposição — e
até, se necessário, a sua cópia para salvar (...) um valor referencial, simbólico, urbanístico ou funcional (...) — teria, segundo Beltrami, que basear-se em
provas objetivas, em vestígios físicos ou documentais, apelando-se assim a um
trabalho heurístico e arqueológico, como única base do projeto. Cf. José Manuel
Aguiar Portela da COSTA — Estudos Cromáticos nas Intervenções de Conservação em Centros Históricos..., p. 30.
Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, DES. 0006527. Este projeto foi publicado em Maria João NETO — “O restauro dos monumentos medievais de Guimarães no tempo do Estado Novo”. II Congresso Histórico de Guimarães, p. 436.
Eugène-Emmanuel VIOLLET-LE-DUC — “Cheminè”. Dictionnaire Raisonné de
L’Architecture Française du XIème au XVIème siècle, t. III, p. 206.
Analisámos a este respeito o restauro da Capela de São Frutuoso de Montélios.
Cf. M. Mónica BRITO — “As fases de Restauro da Capela de São Frutuoso de
Montélios. A Fragilidade da Reintegração Nacionalista face à Evolução Historiográfica”. Museu, 2001, série IV, n.º 10, pp. 223-277. Cf Paulo Almeida FERNANDES — “Reconstituição. Reintegração. Restauro. Os Projectos de intervenção em
D. Pedro de Lourosa (1929-1934)”. Estudos. Património, 2006, n.º 9, pp. 150-158. Acerca dos restauros da Direção Regional de Edifícios do Norte Cf. Miguel
Jorge Biscaia Ferreira TOMÉ — Património e Restauro em Portugal (1920-1939).
In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, “Relatório Acerca das Obras do Paço
dos Duques em Guimarães”. Paço dos Duques de Bragança, Braga, 1936-1956,
(Processo Administrativo), vol. 266 ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0266.
No que toca à (...) investigação arqueológica no terreno circunscrito (...), que se
desenvolve a partir de 1938 e até à construção da galeria porticada em 1939 —
cujos arcos foram desenhados a partir das aduelas que surgiram disseminadas
na alvenaria que entaipava janelas e portas ou servindo de lagedo em algumas salas — levantam-se, desde logo, questões também elas metodológicas.
Nenhum registo ficou que permita ter uma ideia das realidades observadas e
das ações empreendidas, sendo certo que a reversibilidade destas foi também
comprometida com o revestimento dos alicerces com asfalto.
Repare-se que inicialmente, nos projectos de janeiro de 1939, Rogério de Azevedo verteu no papel a teoria da influência da arquitetura senhorial francesa do
Périgord e do Loire, que o arquiteto Baltazar de Castro, após uma viagem efetuada a estes locais em novembro de 1938, defendia. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo da
ex-DGEMN, “Relatório Acerca das Obras do Paço dos Duques em Guimarães”.
Paço dos Duques de Bragança, Braga, 1936-1956, (Processo Administrativo), [janeiro de 1939], vol. 266 ou IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN: DSID 001/003-0266. Esta mesma posição é defendida por Rogério de Azevedo nos seus últimos projetos datados de outubro de 1939, depois dele próprio ter feito os seus
périplos pelos castelos do Loire, entre 1 e 15 de agosto de 1939. Cf. IHRU/SIPA,
Arquivo da ex-DGEMN, Memória Histórica, Descritiva e Justificativa, [29 outubro de 1939], documento inédito amavelmente cedido pela Professora Doutora
Maria João Baptista Neto. No entanto, na sua obra justificativa, publicada em
1942, põe em causa a teoria da origem francesa do misterioso Mestre Antom,
defendendo agora o italianismo do Paço Ducal, presente, nomeadamente, na
escada que teria existido em Itália, mesmo antes de surgir em França. Algures,
após outubro de 1939, Rogério de Azevedo pôs em causa duas individualidades
fortemente apoiadas pelo regime — Baltazar de Castro e Alfredo Guimarães.
Passado algum tempo, novembro de 1940, afasta-se da DGEMN (...) em virtude
de ter aceitado o cargo de professor da Escola de Belas Artes do Porto (...). In
IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Processo Individual do Arquitecto Rogério
dos Santos Azevedo. A escada, bem como outros pormenores dos projetos de
Rogério de Azevedo, apesar de passarem por crivo, como o de novas pesquisas
aos alicerces, serão realizados pelo arquiteto que se lhe seguiu como chefe de
Secção do Norte, Joaquim Areal. Este, entre 1940-1945, manifesta-se preocupado com a “honestidade” da intervenção, do ponto de vista (...) arquitectónico e
arqueológico (...). Este mesmo arquiteto, em 1945, é enviado para Moçambique.
A escada é derrubada nesse ano com a nova chefia do arquiteto Alberto da Silva
Bessa, doravante ideólogo da última fase de restauro. Cf. IHRU/SIPA, Arquivo
da ex-DGEMN, Processo individual do Arquitecto Joaquim Santiago Areal e Silva
e Paço dos Duques. Braga. 1941-44. E IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Processo de Obras, vol. 254, ou SIPA, PT DGEMN: DSID-001/003-0254.
Tal como Gustavo Giovannoni defendeu que o restauro deveria ser o último
recurso de intervenção nos monumentos, sendo necessário que, quando houvesse acrescentos, as novas partes assumissem um caráter distinto, também
Gomes Moreno tentou passar a mensagem aos restauradores portugueses de
que (...) Ahora aqui en España no nos atrevemos a hacer grandes restituiciones
en los edifícios venerables, ante el peligro de que se tergiverse irremediablemente
el carácter del edifício, auque haja que dejarlo mutilado, y las partes nuevas se
hacen en condiciones de no poder nunca confundirse com lo antigo (...), apud,
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M. Mónica BRITO — “As fases de restauro da Capela de São Frutuoso de Montélios. A fragilidade da reintegração nacionalista face à evolução historiográfica”.
Museu, 2001, série IV, n.º 10, p. 261.
In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques. Braga. 1936-56. Processo Administrativo, vol. 266 ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0266.
A palavra conservação classificava, no entanto, as ações empreendidas que continuaram, na prática, a seguir as velhas práticas inspiradas em Viollet-le-Duc.
In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, “Memória para Obras de Conservação
e Restauro”, DGEMN, Paço dos Duques, Braga, Zona de Protecção, vol. 270, ou
SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0270.
In IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques, Zona de Protecção, vol.
270, ou SIPA, PT DGEMN: DSID 001/003-0270.
Em janeiro de 1956, em resposta ao ministro Arantes de Oliveira, o arquiteto Alberto da Silva Bessa informa o arquitecto Vaz Martins de que (...) o critério que
se adoptou de deixar a massa geral por concluir é, quanto a nós, o único a seguir
visto não haver conhecimento exacto da sua verdadeira expressão e pormenor
(...) in IHRU/SIPA, Arquivo da ex-DGEMN, Paço dos Duques, Braga, 1936-56,
Processo Administrativo, vol. 266 ou SIPA, PT DGEMN:DSID 001/003-0266.
Devemos notar, contudo, quanto às fases de restauro seguintes que a documentação projetual dá-nos conta de que os arquitetos que se sucederam a Rogério
de Azevedo na direção dos trabalhos, se socorreram recorrentemente dos numerosos desenhos, estudos e projetos do primeiro restaurador, muitas vezes repescados do arquivo, para servirem de base a outros com algumas modificações
ou acrescentos, como alicerce de pesquisas e inspiração.
Cf. o conceito em Vítor SERRÃO — A Cripto-História de Arte: Análise de Obras
de Arte Inexistentes.
(...) Mercê das ‘reconstituições ideais’, Guimarães vai ficar na posse de um Palácio sumptuoso, magnificente, digno das coisas mais belas, digno talvez de um
Rei. Mas as suas paredes continuarão a guardar os indecifráveis segredos da
Esfinge, envoltos no mistério que teimosamente as emudece, inabalável fronteira
que se ergue entre nós e a verdade (…), in Alfredo PIMENTA — A Propósito do
Paço dos Duques, p. 23.
F O N T E S
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DIE-GEAEM, Planta do Paço Velho da Senhora Rainha Colocado na Villa de Guimarens [17 de julho de 1816], 2015-2-17A-25. Dim. 51 x 35 cm, papel J. Whatman
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DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Guimarães:
cinco edifícios notáveis
dos anos de 1930-1950
JOSÉ MANUEL FERNANDES
Intróito explicativo
Este texto refere e analisa cinco obras que consideramos emblemáticas da arquitetura das décadas de
1930-1950, em Guimarães, executadas quer sobre a
área da trama urbana mais central (e “histórica”),
quer nas áreas de crescimento da cidade já previstas
no(s) plano(s) de urbanização dessa época.
Devem mencionar-se assim, neste âmbito, para
enquadramento e pano de fundo, quer o Plano de Extensão da Cidade de Guimarães (fig. 1), que o arquiteto José Marques da Silva (1869-1947) concebeu em
1938 (ao qual nos referiremos com mais detalhe a
seguir), quer o Anteplano de Urbanização de Guimarães, realizado pelo arquiteto David Moreira da Silva
(1909-2002), com aprovação ministerial em 3 de abril
de 19531. Moreira da Silva concluiu, em 1929, o curso
da Escola de Belas-Artes do Porto (EBAP), estudou
depois no Institut d’Urbanism de Paris, entre 1935 e
1938, foi professor da cadeira de Projetos e Obras de
Urbanização na EBAP, entre 1946 e 1957, tendo sido
ainda coautor, com Étienne de Groer, dos importantes e pioneiros planos para Coimbra e Luanda nos
anos de 1940.
Os edifícios foram selecionados pela sua qualidade
intrínseca, mas, também, pela importância que assumiram na vida da cidade, pelo seu papel na história da
arquitetura portuguesa do século XX, ou ainda por
serem representativos da obra de autores relevantes.
Note-se igualmente a nossa preocupação geográfica, enquanto significadora do crescimento/transformação urbanas, que se reflete na localização diversificada dos cinco imóveis selecionados na planta da
cidade, onde de algum modo ajudam a caracterizar o
processo de mutação urbana local, em cada sector:
o mercado municipal, no eixo da saída a poente do
núcleo medievo (Rua Gil Vicente/Avenida Conde de
Margaride); a Caixa Geral de Depósitos, no sector a
sul do mesmo núcleo, na articulação com o eixo de ligação à estação ferroviária (da Rua de Camões à Ave-
nida D. Afonso Henriques); o Cineteatro Jordão, na
sequência deste mesmo eixo, a meio caminho da dita
avenida; o Palácio da Justiça, do lado oriental da saída
urbana, na estrada para Fafe/Felgueiras; finalmente,
a moradia moderna, implantada no sector norte, na
transversal à Avenida Duarte Pacheco/General Humberto Delgado).
Em relação aos autores invocados por via dos edifícios em estudo, há que fazer notar que aqueles foram
nascendo sucessivamente nos anos de 1860, de 1890,
de 1900 e de 1910, permitindo de algum modo, por
amostragem, um “retrato corporativo” de várias gerações de profissionais intervenientes na cidade — uns
formados em Lisboa, outros no Porto.
Procurou-se também, através desta selecção de
obras, ver o reflexo da evolução da arquitetura praticada em Portugal ao longo das décadas centrais do
século XX, em relação às sucessivas fases estilísticas
e conceptuais: veremos pois obras do Modernismo
internacionalista (anos de 1930-1940), da fase neotradicional e nacionalista do Estado Novo (anos de 1940-1950) e da fase da chamada arquitetura moderna do
pós-Segunda Guerra Mundial (sobretudo incidente
nos anos de 1950-1960).
Os dois equipamentos locais selecionados (um
mercado e um cineteatro) não foram, por certo,
aleatoriamente projetados por autores do Porto; do
mesmo modo, também os dois equipamentos estatais escolhidos (o tribunal e o banco) foram execu-
Neste artigo são analisados cinco edifícios da cidade de Guimarães,
da autoria de cinco arquitetos, selecionados pela importância que
tiveram na arquitetura portuguesa nas décadas de 1930 a 1950:
o Mercado Municipal de Guimarães, de José Marques da Silva;
o Cineteatro Jordão, de Júlio de Brito; o Palácio da Justiça
de Guimarães, de Luís Benavente; a agência da Caixa Geral
de Depósitos, de António Lino e, finalmente, uma “habitação
para uma família de classe média”, de Luís Oliveira Martins.
monumentos 33
DOSSIÊ
89
1 | Plano de Extensão
da Cidade de
Guimarães, projeto
de José Marques
da Silva, 1938.
tados por autores de Lisboa, fruto das ligações mais
diretas dos arquitetos da capital ao Estado. Finalmente, a moradia moderna referida é bem um exemplo de que no Norte do país, e na área de influência
da EBAP, o ideário arquitetónico moderno estava
já em plena propagação na transição dos anos de
1940-1950, enquanto em Lisboa este processo tardava mais.
Refiram-se e analisem-se de seguida os vários casos
das edificações escolhidas.
1.
O Mercado Municipal de Guimarães constituiu uma
encomenda encetada em 1926, tendo havido um primeiro projeto em 1927 e um projeto final, o edificado, em 1936, com o desenvolvimento das respetivas
obras até 1947. Situado no gaveto da Avenida Conde
de Margaride com a Rua Paio Galvão, foi projetado
pelo arquiteto José Marques da Silva. Este autor foi
o mais importante no Porto nos primeiros anos do
século XX, tendo sido diretor da EBAP e o seu principal professor. Arquiteto diplomado pelo governo
francês, em 1896, dele podemos referir como alguns
dos seus trabalhos fulcrais, no Porto: a Estação de
São Bento (1896-1911); o Bairro Operário de Monte
Pedral (1899-1904); o Teatro de São João (1910-1920);
a casa-ateliê do próprio, na Praça Marquês de Pombal (1909); os Armazéns Nascimento (1914-1927);
os liceus Alexandre Herculano (1914-1930) e Rodrigues de Freitas (1918-1933); a companhia de seguros
A Nacional, na Avenida dos Aliados (1919). Nestas
obras a linguagem arquitetónica de Marques da Silva
foi evoluindo, década a década, desde as conceções
mais revivalistas, classicizantes e protofuncionalistas
até aos temas da Arte Nova (1910-1920) e do estilo
Art Déco (1930-1940).
Marques da Silva trabalhou um pouco por todo o
Minho, de Monção a Barcelos, ou de Braga a Santo
Tirso. Em Guimarães concebeu também o projeto
para a conclusão da Igreja de São Torcato, bem como
os projetos do Parque de São Torcato (1910-1921),
do Santuário da Penha (1931-1947) e, sobretudo, da
poderosa sede da Sociedade Martins Sarmento, num
excelente neo-românico, sóbrio mas monumental,
(1903-1908 e 1935-1950) — talvez o melhor exemplo deste estilo edificado em Portugal. Marques da
Silva executou também o projeto dos novos Paços
do Concelho da cidade (1916), resultante da sua participação no concurso para a construção do imóvel,
promessa do presidente municipal Mariano Felgueiras, em 19142, edificação inacabada e demolida em
1942. O edifício municipal viria a inscrever-se na
Praça de Mumadona, integrada no Plano de Expansão da Cidade de Guimarães, que Marques da Silva
concebeu em 19383, com extensão da urbanização
na direção do Monte da Costa, não totalmente realizado.
O mercado municipal constitui possivelmente a
mais relevante obra do modernismo internacionalista
e Art Déco dos anos de 1930-1940 na cidade (fig. 2) —
ao mesmo tempo que, embora último abencerragem
na obra de Marques da Silva, como sua obra tardia,
será o melhor exemplo desta fase estilística de entre
os seus trabalhos.
O mercado vimaranense, como “mercado-quarteirão”, aberto e pavilhonar (fig. 3), buscando as suas
origens tipológicas no conjunto do Bolhão portuense
2 | Guimarães, antigo
mercado municipal,
fotografia de autor
desconhecido, 1941.
90
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
3 | Municipalidade
de Guimarães.
Projecto do Mercado,
planta, desenho de
José Marques da Silva,
[1936].
ou na Praça da Figueira lisboeta, constituirá também,
possivelmente, um dos mais assinaláveis casos de
arquitetura de mercado municipal da sua época em
Portugal — senão o melhor. Só com o Mercado dos
Lavradores, por Edmundo Tavares, erigido no Funchal
em 1940, se criou obra de superior pujança, modernista, nesta modalidade funcional.
Vejamos e equacionemos, pois, que valores marcantes há a relevar. Uma “fachada de aparato”, desenvolvida ao longo da Rua Paio Galvão (que conduz diretamente ao Toural), perpendicular à Avenida Conde
de Margaride, remata a nascente, e oculta o espaço
amplo e retangular dos pavilhões de vendas de frescos,
5 | Municipalidade de
Guimarães. Projecto
do Mercado, corte
transversal e fachada
principal, desenhos
de José Marques
da Silva, [1936].
dispostos para poente da dita fachada. Duas entradas
laterais, justapostas à fachada, abrem para a Avenida
Conde de Margaride e para a Rua Sociedade Martins Sarmento; são estas que permitem a entrada no
recinto-pátio interno, que se situa em cota mais baixa
relativamente à da frontaria, mediante um sistema de
escadas escalonado. Dois corpos corridos, de expressão meramente funcional, alinhados a norte e a sul do
recinto, conformam o dito pátio, onde se implantam
sucessivos pavilhões térreos. O quarto lado carece de
expressão e remate arquitetónico (fig. 4).
A organização espacial geral do conjunto escalona
assim um corpo com dois pisos, sendo um abaixo do
4 | Guimarães, vista
aérea da área do
mercado municipal,
fotografia de Paulo
Pacheco, 2009.
monumentos 33
6 | Mercado Municipal
de Guimarães,
desenhos de estudo
com torre do relógio,
de José Marques
da Silva, [1936].
nível da rua e o outro acima, do lado nascente, constituindo este o corpo arquitetónico mais representativo
e emblemático do mercado. Os restantes espaços são
menos interessantes como arquitetura, mas não como
vivência do mercado — o qual, nesta organização que
aproveita o desnível do terreno, recorda a distribuição
do Mercado do Bolhão4.
O desenho arquitetónico do corpo a nascente parece filiar-se numa estética funcionalista estrita, servida por uma primeira “arquitetura do betão armado”.
Assim, parecem corresponder a esta lógica formal,
muito estruturalista, a longa galeria com pilares
aberta a poente, a série de pilares e pórticos das lojas
abertas a nascente e as consolas em betão salientes
para a rua (fig. 5).
Já a molduração da entrada central, com o frontão
encimado por sucessivos volumes piramidais escalonados, bem como os dois remates (também coroados
por frontões piramidais), em cada lado dos volumes
trifacetados sitos nas extremas laterais do longo edifício, a nascente, surgem como expressões de um estilo
DOSSIÊ
91
Art Déco corrente, aplicado nos edifícios e equipamentos públicos portugueses desde os finais dos anos
de 1920. Tais remates e coroamentos procuravam certamente realçar e dignificar, “em moderno”, à moda
da época, o gosto emergente e geométrico — e nesse
sentido inovador — da estética do betão armado e dos
novos materiais concernentes.
Finalmente, o elã do edifício é “puxado” (quase só)
pelas dinâmicas e originais torres de coroamento dos
referidos corpos trifacetados (fig. 6), a sul e a norte
do volume nascente: são torres de base octogonal, em
betão (que parecem ser ventiladores desses corpos),
que por sua vez recebem superiormente um volume
cilíndrico mais esguio, acima do qual dois pilares “soltos” enquadram um relógio público (um dos leitmotiv
deste tempo), o qual é expressiva e ostensivamente
assinalado por quatro pequenos discos em betão, horizontais, balançados nas quatro direções possíveis,
quase “soltos” no espaço. O relógio está finalmente
coberto, no extremo superior, por novo disco, este
centrado, igualmente em betão. O todo descrito constitui uma peça de sentido escultural, graciosamente
“brincando” com a seriedade municipal do conjunto
— mas que resulta, pelo inesperado e pela sua leveza, fortemente caracterizadora do edifício, e dele até
o emblema básico5.
Parcialmente demolido entretanto, o imóvel e a sua
área foram objeto de uma profunda remodelação, no
âmbito das operações da iniciativa Guimarães 2012,
tendo sido transformados num conjunto de equipamentos culturais multiusos de assinalável valor.
2.
O Cineteatro Jordão, de 1938, foi projetado pelo arquiteto Júlio José de Brito (Paris, 1896 - Porto, 1965).
Diplomado em Engenharia pela Faculdade de Enge7 | Guimarães,
Cineteatro Jordão,
fachada principal,
2013.
92
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
tes laterais. Do mesmo autor, o Cine-Teatro Alba de
Albergaria-a-Velha, inaugurado uma década depois,
em 1948, apresenta também a sala isolada no centro
da composição (...)7. Atualmente, o edifício encontra-se desativado, em degradação.
3.
8 | Cineteatro Jordão,
planta ao nível do
balcão, projeto de
Júlio de Brito, 1937.
nharia da Universidade do Porto em 1924, formou-se,
igualmente, na EBAP, em 1926; foi autor de inúmeras
edificações, entre as quais, a propósito do tema em
análise, se destaca o Cineteatro São Pedro, em Espinho (também da fase modernista).
Filho do pintor José de Brito e de Isabelle Ruffier
Pouppeloz de Brito, Júlio de Brito foi professor da
EBAP, desde 1926 até 1964, sobretudo nas áreas de
Cálculo, Resistência de Materiais, Estruturas e Topografia. Como arquiteto, notabilizou-se pelos seus característicos edifícios desenhados num estilo Art Déco
sóbrio, até austero, como o Teatro Rivoli, no Porto, e
o edifício A Nacional, em Braga.
O Cineteatro Jordão implanta-se a meio da Avenida
D. Afonso Henriques, que liga a estação de caminhos-de-ferro, a sul de Guimarães, ao Passeio Público/Toural, central à cidade (fig. 7). Integra-se no gosto modernista do estilo Art Déco, característico da arquitetura
dos anos de 1930 em Portugal, servido pelo desenho
sóbrio de Júlio de Brito, atrás mencionado.
Pela planta, apresentada e analisada por Susana
da Silva6 (fig. 8), podemos ver a disposição simétrica
da composição da fachada, com um corpo de entrada central tripartida, a partir do qual, de cada lado,
se desenvolvem as duas caixas de escada também
simetricamente implantadas. No piso de cima, estas
escadas desembocam num foyer aberto sobre o átrio
de entrada, o qual, por sua vez, conduz a dois lances
de escada de acesso ao balcão — sempre na linha de
simetria descrita. Embora mantendo um desenho geométrico reticulado, com a sala de espetáculos de forma retangular, a tipologia do “Jordão” insere-se ainda num modelo mais convencional de sala, ligada à
anterior tradição teatral, com camarotes seriados, em
duas alas dispostas ao longo da sala, após o remate do
balcão, aos quais se acede por uma galeria-corredor
de desenvolvimento igualmente longitudinal: (...) a
tradição ligada à concepção das salas de espectáculo
fez manter, ainda que com diferentes configurações e
relações internas, o desenho da sala central com circulações periféricas: é o caso do Cine-Teatro Jordão
de Guimarães, de Júlio José de Brito, que apesar da
sala regular apresenta organização espacial muito
tradicional, mantendo frisas de plateia e os camaro-
O Palácio da Justiça de Guimarães foi projetado por
Luís Benavente (1902-1993), arquiteto formado na
EBAP, em 1930 (com “carta de curso” assinada por
Marques da Silva, então diretor daquele estabelecimento de ensino). Benavente fez a primeira parte do
curso de Arquitetura em Lisboa, onde nasceu, viveu
e trabalhou, desenvolvendo uma longa atividade relacionada sobretudo com o restauro de monumentos,
tanto no país, como no estrangeiro, sempre ao serviço
do Estado português. Autor com assumida atitude neotradicional, considerando-se discípulo de Raul Lino,
trabalhou também no restauro de monumentos no
então Ultramar português (sobretudo em Cabo Verde,
Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, mas também em
Goa). Foi co-redactor da Carta de Veneza, de 1964, importante documento internacional que fixou critérios
de restauro e de recuperação do património. Das suas
obras mais marcantes podem referir-se: dos projetos
novos, em Lisboa, o interessante Mercado de Arroios,
ainda com desenho modernista (1939-1942), o Bairro
Social da Madre de Deus, em Marvila (das mesmas datas), as Escolas Primárias de São José, no Torel (1941-1951), e o edifício do Automóvel Club de Portugal
(1947-1952); dos trabalhos de restauro, mencionem-se o Palácio Foz (que incluía a sala de conferência,
concertos e cinema da Cinemateca Portuguesa, 1941-1949), o Palácio Presidencial de Belém (na adaptação para a instalação do presidente Craveiro Lopes,
1951-1952), o Palácio de Seteais (adaptação a hotel,
1953-1955) e, fora do país, as obras na Embaixada de
Portugal, em Londres (1947-1954), e na Basílica de
Santo Eugénio, no Vaticano, em Roma (1947-1951).
O Palácio da Justiça de Guimarães foi construído
com mão-de-obra prisional e inaugurado em 24 de
junho de 19608, tal como a nova edificação da Caixa
Geral de Depósitos (CGD) da cidade, descrita de seguida. O Palácio da Justiça foi implantado num local-chave da expansão da cidade para nascente, a Praça
de Mumadona, que recebera obras anteriores, não
concluídas.
Como já foi referido, Marques da Silva encetara o
projeto de edificação dos novos Paços do Concelho da
cidade na nova Praça de Mumadona — obra iniciada
em 1916, parcialmente edificada até 1942. Esta obra,
inacabada, foi depois demolida e aproveitada a sua
pedra para a edificação do Palácio da Justiça, na mesma praça, nos anos de 1950 (fig. 9).
Enquanto a obra dos Paços do Concelho iria ocupar
o centro da Praça de Mumadona (onde se chegaram
a elevar o primeiro e o segundo níveis9), no eixo de
saída da cidade para nordeste, o Palácio da Justiça foi
monumentos 33
DOSSIÊ
9 | Guimarães, Praça
de Mumadona com
a implantação dos
Paços do Concelho,
obra não concluída
e depois demolida,
desenho de José
Marques da Silva,
1925.
93
10 | Guimarães,
planta vendo-se
a Praça de Mumadona
com a implantação
do Palácio da Justiça,
em cima à direita.
In Guia de Portugal II:
Entre Douro e Minho,
Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian,
1986, p. anterior
à 1137.
implantado no topo sul da mesma praça, deixando
o espaço central livre. Este aspeto é importante, pois
assinalou a passagem de uma conceção “clássico-rotundista”, com monumento central, à conceção da
praça aberta, livre, envolvida por monumentos na sua
periferia e alinhamento.
Assim, a Praça de Mumadona, sita no sector de
expansão para nordeste da cidade, recebeu o edifício
do Palácio da Justiça, virado a norte, inscrito entre
a Avenida Alberto Sampaio (a sudoeste) e a Rua Cónego Gaspar Estaço (a sudeste), e a eixo da Avenida
dos Combatentes (para sul). Refira-se, para melhor
enquadramento da importância urbana deste espaço
público, que da praça sai, a oeste, a Rua Nun’Álvares
e, para este, a rua que liga ao projetado liceu novo.
Para nordeste, sai a via que liga ao Paço dos Duques
e ao castelo (fig. 10).
No catálogo sobre a obra de Luís Benavente10, podemos encontrar uma referência à sua série de trabalhos
em Guimarães, encadeados e articulados entre si: (...)
Para o chamado ‘Paço dos Duques’, em Guimarães,
que fora restaurado e reconstituído com projecto pelo
arquitecto Rogério de Azevedo, Luís Benavente estuda o mobiliário ‘de época’, a instalar. Um plano de
conjunto do ‘Arranjo Interior do Paço dos Duques de
Bragança’ data de 1954-55. Na sequência do estudo,
11 | Guimarães,
Palácio da Justiça,
fachada principal,
2013.
94
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
Luís Benavente desenvolve o plano urbanístico da Praça de Mumadona, fronteira ao paço — procurando a
sua articulação, em conjunto coerente, com outros edifícios monumentais anexos: o antigo Seminário, adaptado a liceu Martins Sarmento (projecto de 1956) e um
Palácio da Justiça, ex-nuovo, de 1955. (...) Seguindo
uma solução urbana tradicionalista, pela estruturação
de um eixo de composição simétrica nos arruamentos,
é interessante igualmente, no plano arquitectónico,
(...) o entendimento mimético que a fachada do corpo
setecentista da igreja do Seminário terá inspirado a
Luís Benavente: a composição tripartida dos volumes
e de vãos do vizinho Palácio da Justiça parece nele se
inspirar de um modo quase directo — mostrando claramente o modo epocal de entendimento dos valores
histórico-patrimoniais (...)11.
Arquitetonicamente, o edifício é pouco motivador,
seguindo os modelos mais ou menos estereotipados
das obras para os tribunais do Estado: uma expressão neotradicional no desenho geral, com composição simétrica, apresentando ao centro um pórtico
triplo, monumentalizado com colunas de pedra cilíndricas, de duplo pé-direito, que enquadram três
amplas varandas de sacada, ao modo dos grandes
solares urbanos setecentistas. De cada lado, longos
volumes exibem cinco grandes janelões de “andar
nobre”, em proporção vertical, ritmados por apilastrados em pedra, sendo as extremas rematadas por
sacadas com entablamento ornamentado com relevos (fig. 11).
No interior, um amplo átrio central em pedra exibe
o desenho das guardas das escadas, também simétricas, num neoclássico “palaciano”, escadas essas que
conduzem ao piso nobre — este com patamar marcado por pilares de secção quadrangular em pedra.
12 | Guimarães,
Caixa Geral de
Depósitos, fachada
original, fotografia de
autor desconhecido,
[1960].
4.
A “Nova Agência da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência em Guimarães” foi edificada junto
ao Largo do Toural, em área urbana central, reformulada, e rasgada no gaveto sul da Rua de Camões com
o Toural, com projeto de 1957 e inauguração em 24 de
junho de 1960 — no mesmo dia da inauguração do
Palácio da Justiça, atrás analisado, o da comemoração
da Batalha de São Mamede, marco que normalmente assinala a independência de Portugal, feriado em
Guimarães.
Constitui um característico exemplo da chamada arquitetura do Estado Novo, de cariz estilístico e formal
neotradicional, neste caso com feição classicizante
algo modernizada. A planta, rígida, de desenho ortogonal, contrasta com os edifícios vernáculos e habitacionais da envolvente, e os seus dois alçados urbanos
exibem as linhas verticalizantes que acentuam a monumentalização que neste contexto formal e epocal
era frequente exibir (fig. 12).
A agência foi projetada por António de Brito Macieira Lino da Silva (1908-1961)12, arquiteto formado
na Escola de Belas-Artes de Lisboa, em 1936, também
autor de projetos como o monumento ao Cristo Rei,
em Almada (1952, inaugurado em 1959), ou a Igreja
de São João de Deus, na Praça de Londres, em Lisboa
(1947-1953).
Segundo a informação prestada13, a CGD ocupara inicialmente, desde 1922, os edifícios da cidade
onde viria a instalar-se mais tarde o Museu Alberto
Sampaio (construções antigas, adaptadas). Depois de
1938, começou a encarar-se a ideia de edificar uma
sede nova, datando de 1956 a indicação e a escolha do
local para tal, tendo de seguida sido demolidos alguns
monumentos 33
13 | Anteprojecto do
novo edifício da Caixa
Geral de Depósitos,
Crédito e Previdência,
Guimarães, planta de
localização, desenho
de António Lino,
[1957].
velhos edifícios vernáculos aí existentes. O projeto de
António Lino foi executado na sequência deste processo e implantou-se (...) sobre reformulação urbanística da zona (...)14. Passados anos, em 1980-1982,
ocorreu uma (...) grande remodelação com alterações
parciais da estrutura pelo arquitecto João Santos Jorge
(...), tendo havido ainda algumas alterações posteriores, entre as quais (...) remodelação interior e pontualmente no exterior (...)15, pelo arquiteto António H.
Pintão. Do que pudemos averiguar, trata-se de um
edifício de algum modo “mal-amado” localmente —
seja pelo gosto algo pesado, seja pela época impositiva que representa, seja ainda porque para o executar foram sacrificados muitos edifícios preciosos da
arquitetura popular urbana vimaranense. Os profusos
elementos gráficos e fotográficos fornecidos pela CGD
são muito relevantes para a reconstituição do processo do projeto e da obra. Passemos, pois, à sua análise
e considerações daí resultantes.
A implantação, como se referiu, foi executada por
António Lino sobre o plano de urbanização previsto
para a área, o qual implicava a demolição de inúmeros edifícios tradicionais, de cariz vernáculo — como
demonstra a sobreposição da planta destes sobre a da
futura obra da CGD (fig. 13) —, demolições de que só
uma parte foi executada, como se vê nas fotos aéreas
atuais (fig. 14).
Na Memória Descritiva do projeto, assinada por
António Lino em 15 de março de 195716, é evidente
a sua consciência sobre esta questão, procurando
minorar através do seu desenho o efeito das demolições: (...) Determinou o novo plano de urbanização para o local a que este edifício se destina,
que esta se localizasse segundo o alinhamento de
cuja execução resulta a necessidade de demolição
de vários edifícios existentes no local. Assim, a fim
de evitar o mais possível a demolição desnecessá-
DOSSIÊ
ria de construções, foi a planta concebida segundo
o apresentado e pelo qual se vê da adaptação atrás
referida (...).
Em termos de programa e espaços, as plantas do
edifício, contidas no projeto de António Lino, de 1957,
mostram uma opção de grande simplicidade, com as
áreas bancárias dispostas no rés-do-chão (balcão de
atendimento ao centro, a eixo da entrada do público;
arquivo e caixa-forte à esquerda; gabinete do gerente
e escada de acessos ao segundo nível, à direita) e no
primeiro andar (armazém e operações de crédito para
o público), enquanto os dois seguintes se destinavam
a habitação do gerente (segundo andar) e habitação
para aluguer (o terceiro), cada um com cinco assoalhadas e quarto de “criada”, como era usual na época.
Estes dois últimos níveis tinham entrada separada,
com a respetiva escada distinta da outra (num corpo
saliente do volume principal de planta retangular) —
figs. 15 e 16.
Quanto ao chamado “partido estético”, patente
nos alçados do mesmo projeto de António Lino, é
interessante ver como o autor procura justificar a
expressão clássico-verticalista e monumentalizante
da fachada principal (de composição simétrica, com
pórtico térreo centrado, fig. 17) — depois alterado
com um desenho modernizante, de proporção horizontal (fig. 18), sete vãos separados por oito pilastras, rematados numa cornija, com uso abundante
de pedra aparelhada: (...) Nem o programa determinado para este edifício nem a época actual nos aconselharia conceber esta obra seguindo religiosamente
os exemplos de construção de há muito existentes nas
praças vizinhas (...). Também o muito respeito que
nos merece o local a que este edifício se destina nos
obriga a não dar azo a fantasias de concepção em
que se criasse uma obra que satisfazendo os ímpetos
modernos desafiasse irreverentemente a respeitabi-
95
14 | Guimarães,
fotografia aérea
sobre a área do
edifício da Caixa
Geral de Depósitos
(em baixo, à esquerda),
fotografia de Paulo
Pacheco, 2009.
96
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
15 | Agência de
Guimarães. Plantas
das fundações,
rés do chão e
1.º andar, desenho
de António Lino,
[1957].
16 | Agência de
Guimarães. Plantas
dos 2.º e 3.º andares
e coberturas, desenho
de António Lino,
[1957].
17 | Agência de
Guimarães. Alçados
principal e lateral,
desenho de António
Lino, [1957].
lidade do ambiente (...). Parece-nos que o trabalho
apresentado, de linhas sóbrias e de materiais nobres,
se coaduna com as necessidades que impuseram
a execução deste trabalho e o local que lhe foi destinado (...)17.
Assim, a descrição e a justificação do estilo e das
opções estéticas é feita segundo os conceitos de “sobriedade” e de “nobreza”, e também pressupondo
que o “alto” significado histórico do local impediria
“naturalmente” qualquer expressão moderna (que
poderia ocorrer se se estivesse nos anos de 1930). Por
outro lado, a opção assumida não é a de repetir em
pastiche os estilos do passado (como seria talvez nos
anos de 1910-1920), mas sim, através de uma operação de “depuração conceptual”, criar um novo “estilo contextual-histórico”, nobre e sóbrio... É assim
exposta aqui toda a temática fulcral da arquitetura
do Estado Novo, então em plena vigência: uma conceção, aperfeiçoada desde cerca de 1940, ao mesmo
tempo antimoderna e anti-revivalista, de base neotradicional, estilizando e simplificando as expressões
formais-estilísticas do passado — com recurso nobilitante aos bons materiais, trabalhados por bons
artífices, possíveis pela persistência do saber técnico
regional e pela barateza da mão-de-obra disponível.
O alçado lateral repete em menor escala (três vãos
compondo um eixo de simetria) o principal; em paralelo, o autor separa a parte do edifício destinada à
CGD da outra, que serve para habitação de aluguer
(certamente pelas mesmas razões de “simbólica da
dignidade institucional”): separação feita em termos
de expressão funcional e de usos, através da marcação autónoma do piso superior, o qual está formalmente separado dos outros três por meio da cornija,
que remata os pisos abaixo, assumindo este quarto
nível o sentido de um “andar-sótão”, secundarizado
— que curiosamente recebe os lintéis curvos que o
joanino e o pombalino setecentistas consagraram.
monumentos 33
DOSSIÊ
O remate global da edificação é o da “marca” da “casa
portuguesa”, “chapéu para tudo” — definido pelo beiral expressivo e pela ampla cobertura telhada.
Também o acesso aos espaços mais correntes das
duas habitações está segregado do corpo público-institucional da CGD (de algum modo “sacralizado”), através da entrada térrea lateral, feita no alçado secundário, apartada da composição simétrica
deste — mas aqui com alguma ambiguidade, pois
um dos pisos serve para a habitação do próprio gerente da instituição bancária estatal.
Um pormenor curioso, por raro, é significativo
das dúvidas ou hesitações, em termos das opções
estéticas e simbólicas, possivelmente emergentes no
ocaso desta época nacionalista (como é a fase dos
últimos anos da década de 1950), e está patente num
dos dois desenhos de Pormenor da Cantaria da Fachada (fig. 19): referimo-nos ao desenho detalhado
do escudo nacional com as cinco quinas, sobrepujado pela esfera armilar, em relevo, para ser executado
em granito. Deveria situar-se encastrado na esquina
do edifício, sobre o piso térreo, ao nível do suposto
“andar nobre”. De facto, está riscado à mão com um
“X” a lápis ou caneta, talvez pelo próprio técnico
verificador da CGD, ou pelo autor do projeto. Não
conhecemos o significado de tal “X”, mas parece
indicar discordância ou anulação da integração da
peça18. O desenho, sem data, deve corresponder ao
processo da obra, entre 1957 e 1960. A peça não foi
executada, apresentando o edifício, ao que sabemos,
desde sempre, a esquina toda em pedra, curva e lisa.
A pergunta é simples: porquê anular, nessa fase e
época, o símbolo que culminaria e daria o habitual
significado oficial-nacionalista à obra? Por motivos
meramente económicos? Mesmo nesse caso, será
relevante, na decisão, o enfraquecer da corrente
conservadora dos serviços técnicos do Estado (e dos
arquitetos que para eles trabalhavam), que então
erigia este tipo de construções como símbolos excelsos do Estado Novo. O mais provável será, na nossa
opinião (e sem dispor de mais dados exatos), pensar nessa mesma razão como a principal para o ato
de reprovação da execução da peça: 1960 já não era
97
18 | Edifício da Caixa
Geral de Depósitos,
com a fachada térrea
modernizada, 2013.
19 | Agência de
Guimarães. Pormenor
de cantaria da
fachada, desenho de
António Lino, [1957].
20 | Agência da Caixa
Geral de Depósitos
de Guimarães, Betão
Armado. Distribuição,
desenho de António
Lino, [1957].
98
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
1940, os tempos tinham mudado, não se justificaria
tão naturalmente a aposição do escudo nacional em
edifício público, mesmo que no coração da “cidade-berço” da nação!!
O outro desenho consultado do pormenor da cantaria da fachada apresenta um corte com a colocação
das peças de granito definidoras das duas cornijas, de
rigoroso recorte clássico; a solução da cobertura era
ainda aqui para execução de uma platibanda, com caleira de escoamento (sem beira aparente do exterior),
mas que foi alterada na obra para a construção de um
saliente beiral, característico da região Norte portuguesa. Talvez aqui, na opção final, tivesse sido decisivo o peso da enraizada tradição construtiva local.
Resta analisar sucintamente os temas da estrutura e dos materiais utilizados no edifício. Em relação
ao primeiro aspeto, há que referir o uso limitado do
betão armado (fig. 20), com as várias plantas da estrutura: vê-se a conceção das lajes de betão, assentes sobre paredes resistentes de pedra, cintadas, sem
pilares; apenas surgem dois pilares no piso térreo,
para definir a sala de atendimento público, com um
espaço de balcão mais rasgado. Noutros desenhos
confirma-se esta utilização parcial do betão armado
(por exemplo, é estrutural nas escadas, mas não na
cobertura, concebida ainda em madeira) — correspondente a uma última época transicional das estruturas mistas (alvenarias e betão), persistente até
cerca de 1960 (e ao efeito provocado pelo terrível
terramoto de Agadir, que impressionou internacionalmente, tendo sido na sua sequência alterado o
regulamento do betão armado em Portugal). Estava
iminente a utilização sistemática, obrigatória e amplamente difundida, dos sistemas integrais de betão
armado, pilar-viga-laje, em todas as edificações públicas.
Quanto ao uso de materiais, a “nobreza” do granito exterior e interior, articulada pela aplicação de
ferros forjados de desenho também “sóbrio” (fig. 19)
é, uma vez mais, justificadamente invocada pelo
autor, que refere na sua Memória Descritiva: (...)
Predominará o granito no paramento do edifício
intercalando-o com alguns motivos de massa de tom
mais alegre, destacando-se sobre isto o recorte dos seus
ferros forjados, sóbrios e sem fantasias (...). Assim
era, em 1960, a arquitetura pública de iniciativa estatal em Guimarães.
5.
A “Habitação para uma família de classe média”,
como está referida numa revista de arquitetura, ao
mencionar o título do trabalho de tese apresentado
em contexto académico19, foi projetada por Luís Oliveira Martins (Lisboa, 1918 - Porto, 1997) — fig. 21.
Luís José Oliveira Martins realizou o seu curso de
Arquitetura na EBAP, em 1937-1943, e fez o Concurso para Obtenção do Diploma de Arquiteto (CODA),
tendo obtido a classificação de 19 valores, em 1950.
Foi membro fundador da Organização dos Arquitetos
Modernos no Porto (ODAM), em 1947-1952, participando na exposição deste grupo realizada no Ateneu Comercial daquela cidade, em 1951. Antes, tinha
apresentado uma tese no 1.º Congresso Nacional de
Arquitetura, em 1948, sempre na linha de defesa dos
valores modernos. Posteriormente, a obra de Oliveira
Martins veio a realizar-se, em grande parte, sobretudo
em Viseu, de que são exemplos os projetos da Pousada para Vilar Formoso (1964) e o da Casa de Saúde
de Viseu (1966).
O projeto de Oliveira Martins para Guimarães foi
quase de seguida publicado na revista Arquitetura
n.º 40, de outubro de 1951, organizado por um grupo de autores bem representativo da geração moderna recém-formada: Celestino de Castro (1920-2007),
Huertas Lobo (1914-1987), Castro Rodrigues (n. 1920)
e Hernâni Gandra (1914-1988). E foi-o como exemplo
de obra moderna concebida em Portugal, numa fase
histórica de combate entre a modernidade emergente,
que se pretendia afirmar, e uma arquitetura neotradicional retrógrada que, apoiada pelo Estado, teimava
em persistir. Repare-se que, dez anos depois da conceção desta moradia, ainda se iriam construir e inaugurar duas obras claramente dentro da retórica oficial
nacionalista, atrás mencionadas, o Palácio de Justiça
e a CGD!
Note-se ainda que, nesse mesmo número da revista Arquitetura, eram apresentados projetos modernos
internacionais de gabarito (Centro Urbano Presidente
Aleman, no México), bem como as atas oficiais do
VII Congresso Internacional da Arquitetura Moderna
(CIAM), que defendiam e propagavam a arquitetura
moderna em todo o mundo, além de se referir à VI Exposição Geral de Artes Plásticas, onde esta mesma modernidade ensaiava a sua difusão no país20.
O autor da moradia de Guimarães, imbuído da ideologia moderna então propagada pela escola de arquitetura do Porto, defendia com clareza e intensidade
os princípios inovadores que presidiam à conceção do
seu projeto, como reza o texto justificativo incluído no
seu CODA: (...) Julgo dever começar por definir que tenho por ‘Arquitectura Moderna’ não uma receita mais
ou menos dogmática, mais ou menos ortodoxa, mas
sim uma súmula de conceitos gerais, sínteses da intervenção duma vasta pleiade de arquitectos e técnicos
notabilíssimos, do nosso tempo, cujas contribuições
teóricas e práticas são inúmeras e universais (...). Uma
das características dominantes desta Arquitectura é
justamente a ausência de preconceitos, único ponto de
vista que a torna compatível com o estudo dos aspectos novos dos problemas básicos e das correspondentes
soluções (...). Por outras palavras: nunca como hoje a
arquitectura pôde expressar melhor — pela enormidade de recursos — a sua finalidade e melhor se adaptar
ao meio ambiente, social e geográfico (...)21. Noutro
passo do seu discurso, Oliveira Martins reage contra
o tema e o peso da chamada “arquitetura oficial” que
a modernidade que defendia combatia (de modo indireto embora, na linha da referência subentendida
monumentos 33
21 | Guimarães, Casa
Dr. António Rocha,
painel de desenhos
com estrutura, plantas
e alçados de Luís
Oliveira Martins,
[1950]. In rA —
Revista da Faculdade
de Arquitectura da
Universidade do Porto,
n.º 0, out. 1987,
p. 13.
que a autocensura da época encorajava): (...) Eis porque se torna insidiosa e mesmo irrisória a ideia da
obrigatória uniformidade, da inevitável monotonia,
da Arquitectura Moderna. Eis porque se torna absurda
a pretensão de criar uma Arquitectura, fechada, que
nada possua de comum com a Arquitectura da sua
época (...)22.
De seguida, no mesmo texto, o autor invoca e
enuncia os habituais princípios modernos (aspectos
básicos da Arquitectura e do Urbanismo) decorrentes da Carta de Atenas (Habitar, trabalhar, cultivar
o corpo e o espírito, circular), para se referir depois
expressamente ao projeto concreto: (...) A forma da
planta é, em princípio, consequência das limitações
do terreno. A distribuição interior da casa funda-se
num esquema claro de circulações e na disposição
lógica das diferentes zonas, proporcionando-lhes a
DOSSIÊ
necessária independência e simultânea correlação.
Procurou-se dentro do espaço limitado e reduzido
[existente] obter perspectivas largas, quanto possível, reduzindo os elementos de separação — divisórias — nas zonas de estar, particularmente, proporcionando aquela maleabilidade e elasticidade
características de uma habitação moderna (...).
E, se é certa a ausência de espaço circundante (...)
[desprende-se] do edifício uma sensação de liberdade,
de espaço, arrumado pelo jogo de volumes (...)23.
O edifício, pela modernidade quase panfletária que
implicava, cerca de 1950, na sua construção na área
consolidada de Guimarães, totalmente envolvido por
arquiteturas tradicionais, e com elas necessária e fortemente contrastante, assumiu desde sempre o papel
e efeito singular da “obra moderna cravada na cidade” — símbolo da cultura edificada própria dos novos
99
100
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
tempos, erigida por iniciativa de uma elite culta local,
e representativa dos valores da geração moderna da
Escola do Porto, na transição dos anos de 1940 para
os de 1950 (fig. 22).
Consagrada no meio local, ao longo do tempo, esta
moradia veio a ser estudada e referida criticamente
por Sergio Fernandez24, referindo-se-lhe como projeto
de coautoria com Delfim Amorim (também formado
na EBAP em 1947, emigrou nos inicios dos anos de
1950 para o Brasil, tendo desenvolvido em Pernambuco uma intensa atividade criativa e construtiva,
sobretudo na arquitetura urbana do Recife): (...) Em
[19]49, Oliveira Martins e Delfim Amorim projectam
uma pequena habitação para A-Ver-O-Mar. (...) A casa
que projectam, em [19]51, para Guimarães propõe
uma organização interna relativamente convencional.
O tratamento exterior acusará, no entanto, o uso dos
elementos característicos do estilo internacional, aqui
com uma justificação que parece ser eminentemente
formal; fenestração horizontal, cobertura balançada
apoiada por pilares de ferro e ‘pilotis’, localizados a
curta distância da parede de alvenaria aparente que
envolve o rés-do-chão, ligeiramente recuado em relação
ao andar (...)25.
Esta leitura parece-nos agora algo injusta, e sobretudo desfasada da real construção existente, cuja
filiação na leitura de Vila Sabóia é clara e corajosa,
embora condicionada (como de resto o(s) autor(es)
assume(m)), pela escassez do terreno disponível:
veja-se, observando o projeto, como de facto a planta
do piso térreo se “solta” completamente do piso su-
perior e da maioria dos ‘pilotis’; e, no quadro da sua
época, parece abusivo enquadrar já a obra no “Estilo
Internacional”, quando ainda se procurava afinal, e
apenas, afirmá-la como exemplo do Movimento Moderno contra os estilos oficiais e historicistas então
dominantes...
Esta obra foi incluída mais tarde na seleção do
Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal26
estando referida naquela publicação como a Casa
Dr. António Rocha, na Rua Agostinho Barbosa número 44 (à Avenida Duarte Pacheco, atual Avenida
General Humberto Delgado), por Luís Oliveira Martins e Delfim Amorim, de 1947. Continua como o
exemplo maior da fase instauradora do espaço moderno na cidade.
José Manuel Fernandes
Arquiteto
Imagens: 1 a 3, 5, 6 e 9: Fundação Instituto
Arquiteto José Marques da Silva; 4, 8, 14:
Câmara Municipal de Guimarães; 7, 11, 13,
15 a 20 e 22: IHRU/Sistema de Infomação para
o Património Arquitetónico; 12: Arquivo da Caixa
Geral de Depósitos/Sogrupo GI.
N OTA S
1
Cf. Margarida Souza LÔBO — Planos de Urbanização. A Época de Duarte
Pacheco, p. 275.
2
Ver MARQUES da Silva, o Aluno, o Professor, o Arquitecto, pp. 240-243.
3
Ibidem, pp. 248-249.
4
Ibidem, pp. 206-213.
5
Ibidem, p. 206.
6
Susana Constantino Peixoto da SILVA — Arquitectura de Cineteatros: Evolução e
Registo (1927-1959), pp. 134-136.
22 | Casa Dr. António
Rocha, fachada
principal, 2013.
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22
23
24
25
26
Idem, ibidem, pp. 135-136.
António Manuel NUNES — Espaços e Imagens da Justiça no Estado Novo, p. 374.
MARQUES da Silva, o Aluno, o Professor, o Arquitecto, pp. 240-243 e 248-249.
José Manuel FERNANDES (coord.); Maria de Lurdes JANEIRO (coord.) — Luís
Benavente. Arquiteto, pp. 30-31.
Idem, ibidem, pp. 30-31.
Cf. documento consultado nos serviços centrais da CGD — Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos,
Crédito e Previdência Pretende Mandar Construir em Guimarães —, disponibilizado pelos arquitetos José Sousa Martins e José Martins da Costa, a quem
agradecemos.
Pelo gerente da agência, Senhor Eduardo Soares Pinto, a quem igualmente agradecemos.
Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova
Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar
Construir em Guimarães.
Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da Nova
Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende Mandar
Construir em Guimarães.
Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da
Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende
Mandar Construir em Guimarães.
Cf. CGD, serviços centrais, Memória Descritiva e Justificativa do Projeto da
Nova Agência que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência Pretende
Mandar Construir em Guimarães.
No desenho consultado no Arquivo da CGD surge representado o “X”, o que
não sucede neste que aqui se reproduz por se tratar de uma cópia pertencente
ao SIPA.
rA — Revista de Arquitectura, out. 1987, n.º 0, p. 13.
Cf. José Manuel FERNANDES — “Índice classificado e comentado da revista
Arquitectura n.os 26-50”. Arquitectura, jul. 1979, 4.ª série, n.º 134, 1979, p. 69.
rA — Revista de Arquitectura, out. 1987, n.º 0, p. 13.
Ibidem, p. 13.
Ibidem, p. 13.
Sergio FERNANDEZ — Percurso. Arquitectura Portuguesa 1930/1974.
Idem, ibidem, pp. 82-83.
José AFONSO (coord.) — IAPXX: Inquérito à Arquitectura do Século XX em
Portugal, p.125.
DOSSIÊ
B I B L I O G R A F I A
AFONSO, José (coord.) — IAPXX: Inquérito à Arquitectura do Século XX em Portugal. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2006.
ARQUITECTURA Pintura Escultura Desenho. Património da Escola Superior de
Belas-Artes do Porto e da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
Porto: Universidade do Porto, 1987, catálogo da exposição.
FERNANDES, José Manuel — “Índice classificado e comentado da revista Arquitectura n.ºs 26-50”. Arquitectura. Lisboa: Casa Viva Editora, jul. 1979, 4.ª série,
n.º 134, pp. 68-69.
FERNANDES, José Manuel — Arquitectura Modernista em Portugal 1890-1940.
2.ª ed. 2005. Lisboa: Gradiva, 1993.
FERNANDES, José Manuel (coord.); JANEIRO, Maria de Lurdes (coord.) — Luís
Benavente Arquitecto. Lisboa: Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo,
1997, catálogo da exposição.
FERNANDES, José Manuel — Português Suave. Arquitecturas do Estado Novo.
Lisboa: IPPAR, 2003.
FERNANDEZ, Sergio — Percurso. Arquitectura Portuguesa 1930/1974. Porto: FAUP
Publicações, 1988.
GUIA de Portugal II: Entre Douro e Minho — Minho. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1986, antes da p. 1137.
LÔBO, Margarida Souza — Planos de Urbanização. A Época de Duarte Pacheco.
Porto: FAUP Publicações; DGOTDU, 1995.
MARQUES da Silva, o Aluno, o Professor, o Arquitecto. Porto: Fundação Arquitecto
José Marques da Silva; Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto,
2006, catálogo da exposição.
NUNES, António Manuel — Espaços e Imagens da Justiça no Estado Novo. Templos
da Justiça e Arte Judiciária. Coimbra: Minerva, 2003.
PEDREIRINHO, José Manuel — Dicionário dos Arquitectos Activos em Portugal do
Século I à Actualidade. Porto: Afrontamento, 1994.
rA — Revista de Arquitectura. Porto: FAUP, Out. 1987, n.º 0, p. 13.
SILVA, Susana Constantino Peixoto da — Arquitectura de Cineteatros: Evolução e
Registo (1927-1959). Equipamentos de Cultura e Lazer em Portugal no Estado
Novo. Coimbra: Almedina, 2010.
Efetuaram-se diversas consultas via Internet ao Google e à Wikipédia.
Agradece-se ao arquitecto Elisiário Miranda os dados e as referências bibliográficas que nos cedeu.
101
102
DOSSIÊ
monumentos 33
Pousada de Santa Marinha
da Costa, 1976-1985
A L E X A N D R E A LV E S C O S TA
Tenho escrito, ao longo da minha vida, alguns textos
sobre Fernando Távora, que agora reli com alguma
curiosidade. Constatei, com desgosto, como a tentativa de transformar em discurso crítico e interpretativo,
o que é visível e tão claro na sua obra, foi redundante
e demasiado fácil. E, na impossibilidade de me remeter para o discurso hermético, abundante de referências extradisciplinares, que hoje transformou grande
parte da crítica de arquitetura numa atividade ensaística de superespecialistas afastados do ofício, vejo que
me coloquei sempre, em relação a Távora, numa posição mais próxima do biógrafo. Talvez, também, por
respeito à sua figura tão próxima e familiar.
Assim, deixei, definitivamente, para outros a tarefa
de o relerem com verdadeira distância crítica e, por
isso, retomo um texto de 1998, publicado nessa data
na DPA 14, Documents de Projectes d’Arquitectura, revista do Departament de Projectes Arquitectònics de
la Universitat Politècnica de Catalunya. Não me coibi
de corrigir aqui e ali o texto original.
1.
Em Távora se revê a Escola do Porto, pelo menos
até agora. Com ele construímos os alargados consensos que nos permitiram enfrentar os desequilíbrios
ou os novos equilíbrios da contemporaneidade.
A sua lição fundamental decorreu, simplesmente,
da sua capacidade única para distinguir o essencial do supérfluo ou circunstancial e, enquanto nos
dividíamos pela circunstância, com ele nos uníamos no reforço e na consideração dos valores mais
perenes, cimentados pela presença permanente de
uma moral que nunca admitiu qualquer atropelo na
defesa da dignidade do Homem. Uma tal abstração
poderia ter aberto caminho a todas as perversidades se não estivesse, como no seu caso, ativamente
vigilante na construção da felicidade de todos os
homens, respeitadas as sua diferenças e por elas
olhados e amados no dia-a-dia da vida tão apaixonadamente vivida.
Foi neste aparente paradoxo da referência à essência e do apego à qualidade do momento que Távora
construiu o seu magistério e a sua obra, como resultado natural da sua forma de estar no mundo. Vivendo intensamente o dia-a-dia, é com a memória que
vai construindo o seu comportamento, utilizando em
rede os seus estratos, não hierarquizados, conforme
lhe vão sendo úteis, trazendo-os para o quotidiano,
nunca sacralizando nenhum deles, num tempo que
cristaliza todos os tempos, como se esse fosse o tempo único de uma vida sem princípio nem fim, sem o
percurso que marca o fluir até à morte, sempre tomada como um absurdo. Os seus relatos autobiográficos
são de homem adulto. A infância, o seu começo, não
lhe interessa, tal como as paisagens naturais, ainda
não humanizadas; nem a música, estranhamente, talvez por ser demasiado abstrata, talvez porque para a
ouvir se tenha que comprometer com outra lógica que
não é a sua própria e que o obriga a um exercício de
apagamento que não lhe proporciona nenhum prazer,
diríamos, físico. É o homem, na sua madura vitalidade, o centro imutável do seu mundo.
No início da década de 1970, o antigo Convento de Santa Marinha
da Costa, em Guimarães, encontrava-se abandonado e em avançado
estado de degradação, mas, excluídas as alterações introduzidas
aquando do seu uso como habitação após a extinção das ordens
religiosas, a sua estrutura mantinha-se intacta. O critério geral
adotado no projeto de reconversão do edifício para adaptação
a pousada, da autoria de Fernando Távora, foi, como o próprio
afirma, o de (…) continuar-inovando, (...) conservando e reafirmando
os seus espaços mais significativos ou criando espaços de qualidade
resultantes de novos condicionamentos programáticos (…).
Constitui uma notável obra e, deixando para outros a tarefa de
a relerem com verdadeira distância crítica, retoma-se um texto
publicado em 1998, corrigindo-se pontualmente a versão original.
monumentos 33
Por isso nos disse que conta a relação com a vida
e não o estilo, e as suas aulas foram uma demonstração permanente desta tese. E ao contrário do habitual
discurso iniciático dos mestres sobre a dificuldade e
a excelência do campo do conhecimento de que se
julgam especialistas únicos, Távora explicou aos seus
alunos que desenhar é tão natural como respirar e que
o ofício de fazer arquitetura, como qualquer outro,
não é apanágio de alguns iluminados.
Por isso, as suas lições reservaram a maior dignidade da porta que se abre aos novos estudantes.
Por isso, as suas lições marcaram profundamente o
que tem sido chamado de elitismo da Escola do Porto,
que não é mais do que a rejeição constitutiva de qualquer “estilismo” cenográfico e anedótico, a pretexto
ou com o álibi da morte das visões totalitárias, da
mobilidade e da dispersão do mundo contemporâneo.
Reconhecendo a impossibilidade de aplicação pura
de qualquer modelo teórico, ensinou-nos que o futuro
será sempre incerto e a obra de arquitetura sempre
sujeita a novas intervenções transformadoras.
A sua obra cria uma ambígua atmosfera entre o antes e o agora, como se entre esses dois mundos, por
vezes tão distantes temporalmente, não existissem, de
facto, descontinuidades ou ruturas estruturais.
É, assim, também na obra, a invenção absoluta de
um tempo ilusório que se fixa num único momento que tem o valor metafísico da eternidade. A sequência dos sedimentos não constitui uma narrativa
linear que tenhamos que percorrer. Existem, estão
presentes, leem-se e constituem-se, numa síntese intemporal, como cenário que conforma e qualifica o
espaço onde vivemos a nossa contemporaneidade.
DOSSIÊ
103
(…) Na realidade eu sou muito português; tenho muitas influências,
mas não de modo permanente. A arquitectura influi-me, mas
também muitas outras coisas. O que mais gosto é de passear com
os clientes, comer com eles; com humor, com gosto pela vida.
Amar os trabalhos. Vivi sempre um pouco afastado das questões
formais. Interessa-me mais que as pessoas se sintam bem, que
a obra se leve a cabo em clima de boas relações; não me agradam
os conflitos. Para mim projectar é como comer ou dormir, uma coisa
natural. Sei que isso, agora, não é muito comum, mas cada um
é como é. Há gente que acredita que por ler um livro, ver uma peça
de teatro ou vestir-se de certa maneira, já se é outra coisa; mas
as raízes são mais profundas do que parece (…).
Carlos Martí Aris (ed.), “Nulla dies sine línea. Fragmentos de una conversación
con Fernando Távora”, DPA14, Barcelona, Universitat Politècnica de Catalunya, 1998.
É extraordinário que em plena cultura ocidental
se produza este espaço e este tempo absolutos,
como se do Oriente nos tivesse chegado esta serenidade que procura evitar o cansaço do percurso
físico.
Távora nunca abandonou a fidelidade, sempre afirmada, ao Movimento Moderno. Mas, ao contrário de
outros, talvez mais velhos e imaturos, transformou
a fidelidade em coisa inclusiva e não exclusiva. Daí
a sua continuidade, a sua coerência e, sobretudo, a
sua permanente contemporaneidade.
Mas o que marcou profundamente a sua Escola, ao
longo dos seus mais de quarenta anos de magistério,
foi a compatibilização desta convicção moderna com
a tentativa de elaboração de um método e não com a
1 | Guimarães,
Pousada de Santa
Marinha da Costa,
levantamento das
fases históricas
do edificado,
representado em duas
escalas, Fernando
Távora, s.d.
104
DOSSIÊ
monumentos 33
2 | Pousada de
Santa Marinha
da Costa, Projecto
de Execução, planta
geral, Fernando
Távora, outubro
de 1975.
defesa e transmissão de um código formal; foi a consideração da História como um instrumento operativo
para a construção do presente; foi não só a consideração da arquitetura na sua adequação construtiva
e funcional, mas sobretudo como representação de
cada um (...) porque representa todos, fazendo de
cada edifício um corpo vivo, um organismo com alma
e imagem próprias (...).
Nunca se tratou, na sua obra nem no seu pensamento, de revogar o Movimento Moderno. Tratou-se
de manter uma ordem arquitetónica com valor universal que o integrasse e redefinisse permanentemente. Para Távora, servir o real não foi nunca rejeitar as
aportações inegáveis do racionalismo e a ascese real
que ele significa para a Arquitetura. Foi tomar uma
posição corajosa de busca inquietante, no aceitar que
cada tema tem o seu caráter, a sua problemática específica, a sua expressão própria.
Ultimamente, no entanto, temia o futuro, tal como
temia a morte: (...) já sinto saudades das árvores, dos
pedreiros (...).
As nuvens negras da destruição da paisagem natural e construída, causadas pela substituição dos modos de produção por nada que reconstruísse, para
ele, uma alternativa credível, transformaram a sua
liberdade numa obsessiva busca da ordem, da simetria, do equilíbrio clássico entre as partes, espécie
de manifestação de resistência à desordem e ao seu
próprio pessimismo.
E se gloriosa foi a Casa sobre o Mar, já tão apagada
na admiração de um Le Corbusier de certezas, como
quem diz, como Rimbaud, (...) il faut être absolument
monumentos 33
DOSSIÊ
105
moderne (...), gloriosa é, também, a Torre dos Paços
do Concelho, saída da sabedoria do que é preciso.
2.
O projeto de reconversão do arruinado Convento
de Santa Marinha da Costa tem um valor ímpar na
história recente da arquitetura portuguesa por constituir, mais do que uma notável obra, a abertura precoce de um novo período na história e vivência do
património1.
A Carta de Veneza, determinando que a intervenção
nova se deve manter claramente diferente da antiga
e, ajudando a esclarecê-la, deve mostrar-se e mostrá-la, levou a que muitos trabalhos de reutilização de
edifícios, no seu afã de afirmação da nossa época,
tantas vezes retórica, neutralizassem a preexistência,
tomada como pano de fundo, lugar estabilizado e
intocável. Esta posição respeitadora, embora do passado que não lhe interessa interpretar, impõe a sua
marca, estabilizando para sempre a vida do edifício
ou do conjunto. Normalmente, o tipo de intervenções
que produz é ostensivo na explicitação, tantas vezes
retórica, da contemporaneidade.
Reaberto o debate sobre a intervenção nos edifícios
ou conjuntos de interesse patrimonial que se segue à
aceitação da rigidez normativa da Carta de Veneza,
paralelamente à criação de um cada vez mais complexo corpo de jurisprudência e à elaboração de planos
de salvaguarda sobre a defesa e valorização dos bens
patrimoniais, tende hoje a considerar-se que cada
caso é um caso e que a teoria da intervenção nascerá
de cada circunstância, nunca generalizável, de que fazem parte não só a expressão da individualidade de
cada autor, como a obrigação ética de um rigoroso e
exaustivo reconhecimento histórico e arqueológico do
edifício a transformar.
Do “silêncio” à intervenção ativa e transformadora do
próprio edifício ou conjunto, a novidade é a consideração da História como matéria de um projeto de autor.
No panorama da melhor arquitetura que se pratica
em Portugal podemos alinhar algumas opções distintas que permitiram o alargamento do debate a partir
do estudo de alguns casos.
(…) Não há muito tempo projectei uma casa para uma família
abastada. Tinham comprado uma casa antiga pensando recuperá-la, confiando no antigo como signo de representação social.
Mas a casa, como construção, não tinha nenhum interesse.
Convenci-os que o melhor seria demoli-la e aproveitar o que tinha
de bom: a implantação, o volume, a relação com a paisagem.
É a mesma ideia de uma casa antiga, mas muito melhor, porque eu,
com os meios de que hoje dispomos, posso fazer uma casa melhor
do que as que se faziam antigamente (…).
Carlos Martí Aris (ed.), “Nulla dies sine línea. Fragmentos de una conversación
con Fernando Távora”, DPA14, Barcelona, Universitat Politècnica de Catalunya, 1998.
Na Pousada da Flor da Rosa (1995), de Carrilho da
Graça, o edifício antigo é o documento/monumento,
respeitado, cuidadosamente restaurado e abandonado. A intervenção nova distingue-se e afasta-se, física
e morfologicamente. Tem uma lógica de composição a
que nada importa a do anterior edifício, respeitando,
sobretudo, os valores de escala ou de textura que favorecem uma valorização recíproca, cada um a servir de
cenário ao outro. Os poucos momentos de interceção,
sempre no espaço interior, referem a reversibilidade
da “decoração” moderna. Trata-se de uma respeitável
e sensível interpretação da Carta de Veneza.
No Convento do Bouro (1998), de Souto de Moura,
o edifício preexistente é apropriado, depois de fixado
o seu caráter de ruína. É o espaço da ruína que é habitado. A construção é consolidada sem interpretação,
nem reconhecimento do seu caráter. São apagados
vestígios que possam perturbar a sua pacificação; o
telhado não é reconstruído; as novas funções são alojadas, com aparente pragmatismo, sem necessidade
de nova apropriação de espaços que tiveram funções
idênticas no passado. O usufruto da ruína é um prazer
puramente estético, a intervenção apaga-se em absoluto minimalismo expressivo. O aparente romantismo
da posição, humildemente passiva em relação à interpretação dos valores da história do edifício, esconde
a transformação absoluta da construção em obra de
autor, na sua totalidade.
A Casa dos Bicos (1983), de Manuel Vicente, Daniel
Santa Rita e António Marques Miguel, é, no polo
oposto do Bouro, verdadeiramente romântica, na
sua vertente não ruinista, mas de reposição historicista e revivalista à maneira dos finais de Oitocentos.
A consideração da História pelo lado da linguagem
da decoração que se usa, estilizada mas ostensivamente modernizada, abre caminho a alterações estruturais de fundo. Uma Casa dos Bicos neomanuelina para usos do século XX. Assim, uma fachada
3 | Pousada de
Santa Marinha da
Costa, vista geral,
fotografia de Luís
Ferreira Alves, 2009.
106
DOSSIÊ
monumentos 33
cenográfica, rigorosamente reposta, esconde ou dá
acesso aos espaços total e livremente projetados.
A visita a todos estes edifícios é acompanhada de
folhetos explicativos da sua história. E pode assim ser,
porque lhes puseram termo. A intervenção atual não
faz parte da narrativa. Inicia e acaba outra.
Assim se vai mantendo criticamente a Carta de Veneza ou se vai dela fazendo tábua rasa.
Fernando Távora entra no Convento da Costa, futura Pousada de Santa Marinha em Guimarães, com
uma postura próxima da simplicidade com que os
nossos mestres-pedreiros sempre encararam a continuação ou a alteração das obras dos seus predecessores. Assim o fizeram todos os mestres da Batalha
ou dos Jerónimos, atualizando linguagens, sem alterações de conteúdo; assim o fizeram no Convento de
Cristo de Tomar, alterando e sobrepondo linguagens
correspondentes a novos conteúdos decorrentes de
uma forte ideologização das intervenções.
Escreve ele próprio no boletim, publicado pela
Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais,
um verdadeiro texto doutrinário, a seguir a uma inestimável “Notícia Histórica” de autoria de Manuel Real:
(...) O critério geral adoptado no Projecto da Pousada
de Santa Marinha foi o de ‘continuar-inovando’, isto
é o de contribuir para a prossecução da vida já longa
do velho edifício, conservando e reafirmando os seus
espaços mais significativos ou criando novos espaços
de qualidade resultantes de novos condicionamentos
programáticos.
Pretendeu-se aqui um diálogo, afirmando mais as semelhanças e a continuidade do que cultivando a dife-
rença e a ruptura. Tal diálogo constitui um método por
meio do qual se sintetizaram as duas vertentes complementares a considerar na recuperação de uma pré-existência: o conhecimento rigoroso da sua evolução e
dos seus valores, através da arqueologia e da história,
e uma concepção criativa na avaliação desses valores e
na elaboração do processo da sua transformação.
É certo que a pousada introduzirá novo uso no velho
convento, mas é certo, também, que se ‘os homens fazem as casas, as casas fazem os homens’, o que justifica a manutenção, no edifício actual, de uma escala e
de um ritual de espaços que, traduzindo a presença de
um passado que seguramente não volta, aqui se recordam e se mantêm pela actualidade do seu significado
e pela sua capacidade de identificação.
(…) Nos meus projectos, não pretendo outra coisa senão materializar
o que outros desejam ou imaginam. Para isso há que dar tempo aos
trabalhos, à construção, conseguir que não pareçam um cenário
de teatro. Interessa-me que a obra apareça no final com uma certa
densidade; a arquitectura se não tiver densidade é como uma pena
de um pássaro. Por isso gosto de intervir em edifícios existentes.
O mais belo, num trabalho, é que possa ser como uma flor.
Uma flor não se discute; é alguma coisa que nos é dada com
absoluta determinação, alguma coisa cuja solução tem um certo
grau de fatalidade. Para conseguir isto é preciso trabalhar com
constância (…).
Carlos Martí Aris (ed.), “Nulla dies sine línea. Fragmentos de una conversación
con Fernando Távora”, DPA14, Barcelona, Universitat Politècnica de Catalunya, 1998.
monumentos 33
DOSSIÊ
107
4 | Pousada de
Santa Marinha
da Costa, Projecto
de Execução,
alçado A1,
Fernando Távora,
outubro de 1975.
O que justificará também, e aqui, uma certa austeridade monástica manifestada através de uma
grande economia de meios e de uma extrema simplicidade nas soluções adoptadas, quer a nível de
espaços quer a nível do seu tratamento, decoração e
mobiliário (...)2.
Távora trabalha e molda a preexistência, usa-a
como matéria de projeto. Relê nela o fluir da história e,
aceitando sobreposições ou aposições estilísticas ou
de linguagem, usa de todos os meios para o clarificar.
Não prescindindo da investigação histórica e arqueológica, anota fases de desenvolvimento, dando-lhes
sem moralismo, uma nova dignidade. A intervenção atual é mais uma, desenhada com regras claras
que resultam da interpretação da história, incluindo
a contemporânea. A posição de Távora é tão ativa
e obrigatoriamente culta que pode atuar, também,
restaurando, corrigindo, repondo ou, ao contrário,
demolindo qualquer elemento espúrio que provoque
opacidade na leitura clara da essência do projeto global, entendido como um processo coletivo de longa
duração.
O que fica dito e é depois concretizado em posteriores projetos, do Mosteiro de Refóios ao Anfiteatro de
Direito da Universidade de Coimbra e, mais recente, o
denominado conjunto do Palácio do Freixo, é que Távora encontra a regra a partir do existente sempre legível em cada obra única e insubstituível. A valorização
hegemónica é, apesar de tudo e inevitavelmente, a do
seu projeto ordenador, para que a ordem, que é a sua
aspiração, inclua todas as épocas, sem moralismos
nem aprioris estilísticos. Távora não quer habitar o
caos, como se de esplendor se tratasse, quer habitar
o próprio esplendor.
Estética e ética, ambas início e fim de um percurso, sempre inclusivo, de reflexão e desenho, fazem
Távora atravessar o século com a consciência permanente de que (…) a analogia do belo com o bom não
é a analogia do absoluto, mas a analogia da necessidade do limite (…)3.
A sua moralidade impede-o de deixar espaço ao
demasiado belo, aceitando o caminho da heterodoxia
para atingir a utilidade da arquitetura.
(…) A aceitação da heterodoxia, por mais dolorosa
que seja, evita o patético, por inútil, do brilho cristalino, na sordidez do não-lugar (…)4.
Não o esqueceremos nunca, devendo-lhe, ainda,
ouvindo-o sempre, tudo o que fizemos, pior do que
ele faria, em Idanha-a-Velha.
Alexandre Alves Costa
Arquiteto
Professor Jubilado da Faculdade de Arquitetura
da Universidade do Porto
Imagens: 1, 2 e 4: Fundação Instituto Arquiteto
José Marques da Silva; 3: IHRU/Sistema de
Informação para o Património Arquitetónico.
N OTA S
1
2
3
4
Pousada de Santa Marinha, Guimarães. Boletim da Direcção-Geral dos Edifícios
e Monumentos Nacionais. Lisboa: Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos
Nacionais, 1985, n.º 130, p. 77.
Ibidem, p. 77.
Alexandre Alves COSTA — “Da necessidade do limite”. 96 Conversas. Porto:
AE FAUP, 1997.
Idem, ibidem.
108
DOSSIÊ
monumentos 33
Entre terras de campo
e bons castanheiros:
o Campus de Azurém
da Universidade do Minho
EDUARDO FERNANDES
A Universidade do Minho (UM) foi fundada em agosto
de 19731, tendo recebido os primeiros estudantes no
ano letivo de 1975-1976. A sua comissão instaladora
entrou em funções em fevereiro de 1974, defendendo
um modelo de “Universidade de Grupos de Projeto”
(por oposição a uma estrutura organizada em faculdades ou departamentos) assente num sistema matricial estruturado em Unidades de Ensino, Unidades de
Investigação e Unidades de Apoio, o que justificava a
escolha de instalações de “tipo concentrado”, materializadas numa configuração de campo universitário,
que se pretendia aberto à comunidade2. Enquanto decorria o debate sobre a localização do novo campus,
o ensino iniciava-se em instalações provisórias, em
Braga3 e em Guimarães4; nesta cidade, a universidade
funcionava inicialmente no Palácio de Vila-Flor, adquirido pela câmara municipal em 19765.
Muito embora em 1976 a Comissão Instaladora da
Universidade do Minho se refira à necessidade de dar
resposta urgente à questão (...) Universidade do Minho: onde6 (...), a localização do campus de Guimarães permanecia ainda em aberto dois anos mais tarde, quando o Relatório da Agência de Desenvolvimento
Regional refere a (...) necessidade de os órgãos locais
[Câmara e Assembleia Municipal] poderem intervir no
processo de definição e organização das projetadas instituições universitárias de Guimarães (...)7. Esta intervenção é concretizada no Plano Geral de Urbanização
que Fernando Távora apresenta em 1980, onde está
prevista a localização das instalações universitárias na
veiga da ribeira de Santa Luzia, numa vasta área situada entre o monte Latito e a colina de São Pedro de
Azurém, próxima do centro histórico da cidade e com
um excelente enquadramento paisagístico.
1. O território do Campus de Azurém
na história urbana de Guimarães
O Campus de Azurém da UM implanta-se na metade nordeste da freguesia de Azurém, num território
que apresentava, até então, uma ocupação essencialmente rural.
Embora o seu extremo nascente se situe nas proximidades do castelo, Azurém foi considerada fora dos
limites urbanos até ao final do século XIX: no Censo
de 1878 (de João da Costa Brandão e Albuquerque)
não é ainda considerada como integrante da cidade
(tal como as outras freguesias periféricas da Costa,
de Creixomil, de Fermentões e de Urgeses); é o padre
António Caldas que, em 1881, vai defender que estas
áreas deveriam ser incluídas (...) no arco de Guimarães (...), pela sua (...) contiguidade, formando algumas destas freguesias parte integrante da cidade com
muitas ruas e praças (...)8.
Embora, entre os séculos XVIII e XIX, a população
de Azurém quase triplique9, esta não deixa de ser
uma área de caráter eminentemente rural, com uma
densidade construtiva muito reduzida (255 fogos),
se considerarmos a sua área global (285,55 hectares). Ainda que a metade sudoeste da freguesia apresente uma crescente tendência de urbanização desde
meados do século XX, o sector nordeste de Azurém
chega a 1980 sem ter sido abrangido pela expansão
urbana da cidade. As razões que explicam esta circunstância prendem-se com a história do desenvolvimento de um burgo que, dez séculos antes, nascia
numa bipolarização que marcou para sempre o seu
desenvolvimento: os núcleos da Vila Baixa e da Vila
Alta, que crescem em volta do mosteiro dúplice e
O campus de Azurém da Universidade do Minho localiza-se na
metade nordeste da freguesia homónima; esta goza de uma relação
privilegiada com a cidade, mas apresentava ainda um caráter
essencialmente rural antes da construção deste polo universitário.
Para além do plano do Complexo Pedagógico inicial, merecem
destaque na arquitetura deste campus os edifícios da Escola de
Ciências e Ciências Sociais e da Escola de Arquitetura, pelo prestígio
dos seus autores e pela qualidade das soluções que apresentam.
monumentos 33
da fortificação que a condessa Mumadona10 manda
edificar no século X.
O mosteiro foi construído no local onde hoje se encontram a Igreja de Nossa Senhora da Oliveira e o Museu Alberto Sampaio, na importante estrada medieval
que ligava Braga a Lamego; o castelo foi construído
no monte Latito, local ideal pela sua localização próxima, mas mais elevada, dominando a envolvente
(nomeadamente o vale fértil situado a norte, onde
hoje se localiza o campus)11.
Relacionava este dois núcleos uma via (a atual Rua
de Santa Maria), transversal em relação à referida estrada Braga-Lamego, que ligava diretamente o mosteiro ao castelo; a partir desse eixo também se realizava
a ligação do burgo para poente, na direção de Vila do
Conde, para sudoeste, na direção de Santo Tirso e do
Porto e, para nordeste, na direção de São Torcato e
de Chaves. Paralelamente a esta via principal, surgiu
uma outra que partia do limite poente da Vila Baixa
(o antigo arrabalde situado no local onde hoje se encontra a Praça do Toural) para norte, na direção de
Póvoa de Lanhoso12. Mas, ao contrário do que aconteceu com as outras vias referidas, esta saída para norte
só deu origem a um eixo de expansão da cidade no
final do século XX. Nesta antiga “estrada dos castanheiros”, caminho rural que atravessava sensivelmente a meio o território da atual freguesia de Azurém, só há notícia de intervenção municipal em 1898,
no troço inicial, onde se construiu uma nova avenida
(a atual Capitão Alfredo Guimarães)13; o prolongamento do seu traçado pela Alameda da Universidade
(estruturando a área onde se situa o Campus de Azurém) seria realizado muito mais tarde, na sequência
do Plano Geral de Urbanização de 1980.
Esta urbanização tardia resulta das desiguais dinâmicas de desenvolvimento e de expansão urbana dos
dois núcleos iniciais do burgo de Vimaranes. No final
do século XIII, na Vila Alta, o casario não preenchia
toda a área interior da cerca, sendo este núcleo menos
populoso do que o da Vila Baixa, onde se concentrava a tendência principal de expansão urbana. Se, pela
sua capacidade defensiva, o núcleo do castelo manteve
grande parte da sua importância até à edificação, no
reinado de D. Dinis, da segunda muralha (que abrangia os dois núcleos), após esta construção a Vila Alta
começou a perder prestígio e população (tendência que
foi reforçada quando, no final do século XIV, D. João I
ordenou a demolição do tramo de muralha que separava as duas vilas, unificando todo o burgo). Na área
intermédia existiam ainda grandes espaços não edificados, onde, nas centúrias seguintes, se construíram
alguns conventos, cujas áreas da cerca bloqueavam
o crescimento urbano: a construção de Santa Clara
(1559) e de São José do Carmo (1685) travava o desenvolvimento da vila para nascente, enquanto a área
da cerca do Convento de Santo António dos Capuchos
(1664) impedia o desenvolvimento para poente. Este
progressivo isolamento levou a que a desertificação na
Vila Alta se acentuasse ao longo do século XVIII, tendo
esta adquirido a designação de “Vila Velha”14.
DOSSIÊ
Foi este o contexto encontrado pelo engenheiro
Almeida Ribeiro (professor de Arquitetura Civil e Naval da Academia Portuguesa de Belas-Artes) quando
realizou o primeiro plano urbanístico da cidade de
Guimarães15, entre 1863 e 1867. A freguesia de Azurém não era contemplada neste plano, que se limitava
a propor intervenções no interior da malha urbana já
consolidada16. A expansão (não prevista neste plano)
da cidade, no final do século XIX, realizou-se sobretudo para sul do antigo recinto amuralhado, despoletada pela inauguração (em 1884) da estação ferroviária
de Guimarães.
Mais tarde, no Plano Geral de Alargamento da Cidade que o capitão Luís de Pina apresentou em 1925, a
expansão urbana surgia prevista a nascente do núcleo
medieval e era concretizada em torno de uma praça
(o atual Largo da Condessa Mumadona), para onde
confluíram três avenidas, num desenho em forma de
“pata de ganso” que se articulou com os arruamentos preexistentes17. Este plano promove ainda a demolição de várias construções existentes na Vila Alta,
que isolam as edificações mais simbólicas da “colina
sagrada”; vão também neste sentido as intervenções
que o Estado Novo promove (no âmbito das Comemorações dos Centenários, em 1940) no monte Latito,
acentuando o seu caráter de barreira ao desenvolvimento urbano para norte.
Finalmente, nos Planos de Urbanização de Guimarães, de David Moreira da Silva (em vigor desde 1955)
e de Arménio Losa (1967), foi privilegiado o lado
109
1 | Guimarães
em meados do
século XVII, planta
desenhada por Mário
Cardoso, 1922.
110
DOSSIÊ
monumentos 33
poente da cidade como área principal de expansão,
mas esta incidia apenas na área compreendida entre
as estradas para Braga e para Vila do Conde, esquecendo a metade nordeste da freguesia de Azurém.
Assim, a área a noroeste do Castelo de Guimarães
vai sendo ocupada por um conjunto de quintas, acessíveis por caminhos rurais, numa malha estruturada
pela antiga estrada para a Póvoa do Lanhoso. Se a
topografia da encosta do monte Latito não facilita o
traçado de vias de expansão e a fertilidade do vale
justifica o seu uso predominantemente agrícola, a desertificação da Vila Alta e o bloqueio provocado pela
cerca do Convento de Santo António dos Capuchos
também desencorajam o crescimento urbano. É a
circunstância de esta área ter sido sistematicamente
esquecida nas dinâmicas de expansão da cidade, até
ao último quartel do século XX, que permite localizar
aqui o Campus de Azurém da Universidade do Minho.
Esta opção revela-se estratégica para as intenções do
Plano Geral de Urbanização de Guimarães (Fernando
Távora, 1980), pois permite controlar o enquadramento paisagístico a noroeste da colina do castelo e,
simultaneamente, proporcionar ao novo campus uma
relação privilegiada com a cidade.
2. A evolução urbanística
da área atual do campus
O Plano Geral de Urbanização de Guimarães reserva
para a instalação do campus universitário uma vasta
área de veiga situada entre o monte Latito e a colina
de São Pedro de Azurém (abrangendo terrenos das
quintas de Azurém, de Azurém de Baixo, do Verdelho e da Veiga), a norte/poente do eixo Campo de
São Mamede/Rua de São Torcato, a sul da nova via
rápida (prevista no plano) e a nascente da Alameda
da Universidade18. As definições do plano asseguram
a efetiva reserva de toda a área (que será depois parcialmente reduzida), mas as manchas de implantação
de edifícios dedicados ao ensino universitário aí desenhadas são meramente indicativas19.
O projeto da primeira fase do Complexo Pedagógico de Azurém, apresentado em 1985 por uma equipa
liderada por Bartolomeu Costa Cabral (com Maurício
de Vasconcelos, Carmem Daenhardt e o paisagista
Sidónio Pardal), propõe uma implantação completamente diferente, ocupando uma área situada sensivelmente a meio do terreno disponível, a noroeste
da ribeira de Santa Luzia20, seguindo uma direção
(sudoeste-nordeste) que procura encontrar algum paralelismo com o seu leito.
É este eixo, perpendicular à nova Alameda da Universidade (prevista no plano de Távora para acesso ao
novo campus, sobre o traçado da antiga estrada para a
Póvoa de Lanhoso), que vai estruturar a implantação
dos edifícios da primeira fase, construídos entre 1987
e 1989. Entrando no campus a partir da referida alameda, encontramos sucessivamente a portaria, o primeiro parque de estacionamento e a entrada do edifí-
cio principal do Complexo Pedagógico; no seu interior,
esta direção é ainda prolongada para nordeste por um
grande átrio iluminado zenitalmente. A noroeste deste
primeiro corpo, um segundo edifício implanta-se paralelamente, criando entre ambos um espaço externo
de grande dinamismo, onde se localiza um parque de
estacionamento reservado a docentes. De ambos os
lados deste núcleo pedagógico desenvolvem-se vias
de acesso e o estacionamento automóvel, com traçado paralelo ao eixo principal.
A sudeste, ao longo do curso da ribeira de Santa
Luzia, Sidónio Pardal desenha um parque relvado e
arborizado que se prolonga pelo sopé do monte Latito
e enquadra paisagisticamente o castelo.
A segunda fase deste Complexo Pedagógico, que inclui um auditório com capacidade para cerca de quinhentas pessoas, é materializada em 1991 segundo
um projeto realizado pela mesma equipa. O núcleo
resultante destas duas fases pode, hoje, ser lido como
um projeto único; os novos edifícios prolongam os
existentes, segundo a mesma lógica de organização
do complexo em dois corpos paralelos, longitudinais,
que definem o eixo principal do campus e organizam
os seus percursos internos e externos.
A construção da cantina (projeto dos arquitetos
António Coutinhas e Orlando Azevedo), inaugurada
em 1995, introduz uma nova polaridade no campus
valorizando um percurso lateral (paralelo ao eixo
principal), situado entre o Complexo Pedagógico e os
pavilhões prefabricados onde funcionavam (em instalações provisórias) alguns dos novos cursos que se
iam criando neste polo21. Esta via foi ganhando progressiva importância com a evolução do campus e
acabou por se tornar na sua via principal depois da
construção das escolas de Arquitetura e de Engenharia, a que dá acesso.
Em 1995 é, também, elaborado o programa preliminar do plano de expansão das instalações do Campus
de Azurém, que a UM promove em colaboração com
a Câmara Municipal de Guimarães (CMG); este plano, cujo estudo prévio é apresentado em novembro de
1997, é coordenado pelo arquiteto Miguel Frazão (da
Divisão de Planeamento Urbanístico da CMG) e define, até hoje, as linhas condutoras do desenvolvimento deste polo universitário. Aliás, deverá ainda servir
de referência para obras futuras, uma vez que não se
encontra totalmente concretizado: não foi realizada a
prevista expansão para noroeste, nem a articulação
dos edifícios da terceira fase com as residências de estudantes (construídas entre 1991 e 1997, com projeto
dos arquitetos António Coutinhas e Orlando Azevedo), os Serviços de Ação Social e o pavilhão desportivo (2002-2003, com projeto dos mesmos arquitetos),
que, atualmente, constituem um núcleo autónomo
localizado a nordeste, onde se situa também a sede
da Associação Académica (que, desde 1997, ocupa a
casa da antiga Quinta da Veiga).
Os concursos públicos de projetos para a terceira
fase do polo de Azurém foram pensados em função
deste plano, que procurava articular as novas cons-
monumentos 33
DOSSIÊ
111
2 | Guimarães,
Plano de Pormenor
do Campus da
Universidade
do Minho, Estudo
Prévio, Planta
de Apresentação,
desenho de Miguel
Frazão, 1997.
truções com os princípios organizativos dos edifícios
preexistentes. A implantação dos projetos vencedores
foi organizada em torno de uma praça que remata o
eixo central do núcleo pedagógico inicial e articula os
três novos edifícios: as novas instalações da Escola de
Engenharia (José Soalheiro, Teresa Castro e Ana Paula
Calheiros, 1996-1999), a Escola de Ciências e Ciências
Sociais (Sergio Fernandez e Alexandre Alves Costa,
1996-2000) e a Escola de Arquitetura (Fernando Távora
com José Bernardo Távora, 1996-2002).
Foram ainda recentemente inaugurados no Campus de Azurém os edifícios do Centro de Computação
Gráfica (projeto de António Coutinhas, apresentado
em 2004, construído entre 2007 e 2008), do Polo de
Inovação em Engenharia de Polímeros (projeto de
António Coutinhas, apresentado em 2005, construído
entre 2006 e 2007) e do Centro de Valorização de Resíduos (projeto do Gabinete Pitágoras, apresentado em
2005 e construído em 2007)22; se os dois primeiros se
situam em locais previstos no estudo prévio do plano de expansão, no caso do Centro de Valorização de
Resíduos (localizado a norte do edifício da Escola de
Arquitetura) isso não se verifica, dado que a via prevista para essa área de expansão não foi concretizada.
Está ainda previsto para breve o início da construção de um instituto de investigação em engenharia,
com projeto de Cláudio Vilarinho, vencedor do concurso público realizado em 2011.
3. A(s) arquitetura(s) do Campus de Azurém
No Polo Universitário de Guimarães encontram-se três projetos que merecem destaque, quer pelo
prestígio dos seus autores, quer pela qualidade das
soluções que apresentam: os edifícios do Complexo
Pedagógico (primeira e segunda fases), a Escola de
Ciências e Ciências Sociais e a Escola de Arquitetura.
Os projetos de Bartolomeu Costa Cabral para as
duas primeiras fases do Complexo Pedagógico de
Azurém podem ser hoje analisados como uma única
entidade, porque a obra mais recente repete (...) as
soluções arquitetónicas e construtivas da 1.ª fase, a
fim de dar unidade ao conjunto (...)23, e apresenta
112
DOSSIÊ
monumentos 33
3 | Guimarães,
Campus de Azurém,
Complexo
Pedagógico, átrio
do edifício principal,
fotografia de Eduardo
Fernandes, 2012.
4 | Campus de
Azurém, Complexo
Pedagógico, galeria
de articulação
transversal entre
os edifícios, fotografia
de Eduardo Fernandes,
2012.
os mesmos princípios de implantação: dois corpos
paralelos, que se desenvolvem longitudinalmente segundo o eixo sudoeste-nordeste que organiza todo
o campus.
O edifício principal do Complexo Pedagógico, como
já foi atrás referido, organiza-se a partir de um grande átrio, iluminado zenitalmente por uma claraboia
que enfatiza o seu desenvolvimento longitudinal.
É a partir desta autêntica rua interior que se distribui
o acesso a todos os espaços coletivos do campus24:
do lado sudeste encontra-se o bar (com uma esplanada virada para o monte Latito e para o castelo) e
a biblioteca (no piso inferior), de desenho “aaltiano”25; do lado noroeste situam-se os serviços administrativos e os auditórios. No piso superior, que se
relaciona com o átrio central através de um dinâmico
jogo de galerias, funcionam salas de aula e laboratórios (instalações iniciais da Escola de Engenharia).
O eixo do átrio prolonga-se para o exterior, para uma
pequena praça virada à encosta do monte Latito, que
funciona como um foyer ao ar livre para o auditório
nobre (construído na segunda fase), que remata esta
composição.
O segundo edifício implanta-se paralelamente e
comunica com o corpo principal através de um elaborado sistema de galerias, rampas e escadas que
articulam, transversalmente, as diferenças de cota
existentes entre os vários pisos de cada volume, cuja
implantação se adapta à morfologia do terreno (que,
no sentido transversal, apresenta uma diferença de
cota com cerca de 9 metros). Estes dois momentos
de atravessamento dividem o volume em três sectores
e permitem a articulação de todos os pisos dos dois
edifícios com as diferentes cotas de acesso exterior26.
O cuidado posto na distribuição do programa e
na articulação das cotas de circulação está também
patente no modo como a modulação estrutural e
espacial foi pensada em todo o conjunto: os edifícios organizam-se em função de uma quadrícula de
2,4 x 2,4 metros de que resulta uma malha estrutural
com pilares a cada 7,2 metros, que domina a composição espacial27.
Em todo o conjunto reconhecemos uma arquitetura com preocupações predominantemente funcionais,
sem que isso implique descurar a procura de uma imagem que prestigie a instituição e de uma boa adequação ao contexto. A sua linguagem apresenta óbvias
influências da herança do Movimento Moderno, quer
na enfática aplicação dos “cinco pontos da nova arquitetura” de Corbusier28 (é evidente a importância que
o uso de pilotis e janelas de desenho horizontal apresentam na definição da linguagem deste projeto),
quer no recurso ao vocabulário formal “aaltiano”, evidente na organização da biblioteca e no desenho do
auditório nobre.
Nas galerias exteriores encontramos uma linguagem
industrial, onde se enfatiza a assemblagem de elementos metálicos estandardizados (articulados com lajetas
de betão deixadas à vista) num desenho que alia a
economia à eficiência e à simplicidade, adequado a
um edifício que inicialmente albergava uma escola de
Engenharia.
Na sequência do já referido plano de expansão do
campus de Azurém, os projetos da terceira fase procuraram articular-se com os princípios organizativos do
Complexo Pedagógico inicial. A sua implantação foi
organizada em torno de uma praça que remata, a uma
cota superior, o anterior eixo organizador do campus:
o percurso longitudinal exterior situado entre os dois
edifícios das primeiras fases.
Interpretando esta lógica axial, os projetistas da
nova Escola de Engenharia assumiram como princípio compositivo o prolongamento desse percurso,
criando um vazio interior no mesmo alinhamento,
que divide o edifício em dois corpos autónomos
mas interligados. Esta intenção, no entanto, não se
torna imediatamente evidente, uma vez que a diferença de cota entre as plataformas de implantação
dos edifícios das duas primeiras fases e da terceira
dificulta a leitura desta continuidade, que é também
perturbada pela expressão assimétrica e muito variada (quer na volumetria, quer na linguagem) dos
alçados dos dois corpos do edifício, nos topos virados à nova praça29.
monumentos 33
Nos edifícios das Escolas de Ciências e Ciências
Sociais e de Arquitetura a intenção de relação com
os anteriores projetos de Costa Cabral é mais consequente.
O projeto de Alexandre Alves Costa e Sergio Fernandez não foi construído na sua totalidade, uma
vez que não foi realizada a torre prevista para o lado
sul. No entanto, da análise do edificado, é possível
verificar como a sua relação com os edifícios do conjunto preexistente é evidente, quer nos alinhamentos
procurados para a sua implantação, quer no desenvolvimento longitudinal do seu corpo principal no
sentido sudoeste-nordeste, paralelamente ao eixo dominante do campus; a importância atribuída a este
eixo está bem afirmada na consola estruturalmente
arrojada que o edifício forma para poente/sul, parecendo querer contrariar a rigidez da fronteira estabelecida pelo muro de suporte que enfatiza a diferença
de cotas entre a plataforma onde se implanta o inicial Complexo Pedagógico e a nova praça.
Na linguagem também é evidente uma procura de
diálogo com os edifícios preexistentes, assumindo
uma influência purista, onde são visíveis evocações
dos já referidos “cinco pontos da nova arquitetura”
e do conceito de promenade architecturale30. Essa referência torna-se evidente na entrada principal, onde
a articulação da sucessão de pilares com a curvatura
do vidro e a rampa parece evocar a Casa Savoye31.
No entanto, a presença desta curva no alçado principal resulta de uma intersecção de volumes que, no
interior do edifício, se assume como o principal tema
espacial.
Anuncia-se assim um segundo alinhamento de corpos que se desenvolve do outro lado (sudeste), a uma
cota inferior, definindo uma curvatura que direciona
o olhar para o extremo nascente do campus, onde se
situam as residências de estudantes e o pavilhão desportivo. Esta ligeira torção introduz uma nova lógica
axial no núcleo central do campus (cuja importância
é evidente no desenho do plano de Miguel Frazão
— ver fig. 2), que pode ser lida num âmbito territorial
maior, procurando uma centralidade exterior: o Campo de São Mamede32.
DOSSIÊ
Do mesmo modo, o alinhamento das entradas dos
edifícios das Ciências e da Arquitetura (os dois projetos parecem ter sido coordenados, neste aspeto)
define um eixo de longo alcance que procura o alinhamento do Santuário da Penha, no alto da colina
localizada a sudeste do campus.
Esta direção, perpendicular ao eixo longitudinal
dos primeiros edifícios do campus, é usada por Fernando Távora e José Bernardo Távora como tema
de projeto, constituindo a principal referência da sua
implantação. É nesse alinhamento que se organiza o
corpo principal da nova Escola de Arquitetura, que
se relaciona diretamente com a praça realizada na
terceira fase. Importa referir, no entanto, que esta
relação não resulta de um processo linear; na apresentação da primeira proposta, Fernando Távora
113
5 | Campus de
Azurém, Escola
de Ciências e Ciências
Sociais, planta
de implantação do
edifício, sendo visível
a torre não construída,
projeto de Alexandre
Alves Costa e de
Sergio Fernandez,
2000.
6 | Campus de
Azurém, Escola
de Ciências e Ciências
Sociais, alçado
principal do edifício,
sendo visível a torre
não construída,
projeto de Alexandre
Alves Costa e de
Sergio Fernandez,
2000.
7 | Campus de
Azurém, Escola
de Ciências e Ciências
Sociais, fachada
posterior e remate
poente/sul, fotografia
de Eduardo Fernandes,
2012.
114
8 | Campus de
Azurém, Escola
de Ciências e Ciências
Sociais, fachada
principal vista da
entrada da Escola
de Arquitetura,
fotografia de Eduardo
Fernandes, 2012.
9 | Campus de
Azurém, Escola
de Arquitetura,
fachada principal e
escadaria de acesso,
fotografia de Eduardo
Fernandes, 2012.
DOSSIÊ
monumentos 33
refere que (...) à escolha de um belo local para a sua
implantação opôs-se, no Concurso, o problema da indefinição do seu enquadramento urbanístico, uma vez
que se pedia a criação de uma praça e o traçado de
um arruamento mas não se propunha uma solução
para o estabelecimento daqueles elementos, quer entre si, quer com o terreno em que se inserem, quer,
ainda, com os edifícios que neles se apoiarão (...)33.
Assim, como se observa nas fotografias da maqueta e nos desenhos tridimensionais realizados para
o concurso, a praça projetada desenvolvia-se numa
extensa plataforma elevada que enquadrava a fachada sudeste do edifício, alinhando pelos seus limites; sob esta grande plataforma passava a via
de acesso automóvel que, a partir da cantina, seguia ao longo da fachada noroeste do Complexo
Pedagógico e era prolongada por entre os novos edifícios de Engenharia e Arquitetura.
No que diz respeito ao edifício, o projeto de execução e a consequente construção não apresentam
alterações significativas em relação aos desenhos
do concurso, exceto a não concretização do parque
de estacionamento previsto para sudoeste (o que
explica que ainda hoje esse lado apresente um aspeto inacabado). Mas no que diz respeito à sua relação com as acessibilidades do campus, a solução
proposta não se concretiza: a articulação que hoje
encontramos construída parece constituir uma solução de recurso face à necessidade de um acerto
de cotas entre a entrada do edifício de Arquitetura
e a nova praça, mantendo o arranque da plataforma
prevista junto à fachada do edifício, mas diminuindo
substancialmente a ligação em ponte sobre a nova
via (para onde estava previsto um conjunto de ligações, através de rampas e escadas, que não se concretizaram) e rematando o conjunto com uma larga
escadaria que pousa sobre a praça. O caráter algo
descontrolado que estas ligações exteriores apresentam no seu relacionamento com o edifício e com os
restantes espaços exteriores do campus justifica-se
por esta circunstância, contrastando fortemente com
o modo delicado como o edifício se relaciona com a
sua envolvente a nordeste e a noroeste, dialogando
subtilmente com o caráter rural da envolvente e com
a topografia preexistente.
10 | Campus de
Azurém, Escola de
Arquitetura, escada
no remate do átrio
principal, fotografia
de Eduardo Fernandes,
2012.
11 | Campus de
Azurém, Escola de
Arquitetura, sala de
projeto no piso 3,
fotografia de Eduardo
Fernandes, 2012.
monumentos 33
A partir da referida escadaria exterior a aproximação ao edifício conduz a uma pala, suspensa num
“miesiano” pilar de aço, que marca o eixo de um
corpo saliente envidraçado. Este pilar, que reproduz
o desenho de Mies van der Rohe para os elementos
estruturais do pavilhão de Barcelona (um dos pormenores construtivos mais famosos da história da arquitetura do século XX), acolhe o visitante anunciando
que aqui se ensina arquitetura. Este é o momento de
maior carga simbólica de um edifício que, no restante,
não é tão evidente nas suas alusões formais a modelos exteriores: para além de subtis alusões a Alvar
Aalto e a Corbusier, o que ressalta de mais evidente
na sua conformação é uma organização que procura
repetir os princípios compositivos do anterior Complexo Pedagógico, sobretudo ao nível da organização
dos espaços, adaptados a uma diferente circunstância
topográfica.
A partir do corpo envidraçado que faz a transição
interior-exterior, os alunos percorrem um átrio longitudinal que faz a ligação entre todos os espaços
principais do edifício, à semelhança do que acontece no projeto de Bartolomeu Costa Cabral. A partir
deste átrio, marcado com a duplicação do pé-direito
nos seus extremos, encontramos, sucessivamente (em
volumes que se autonomizam a partir desta nave central), os espaços de secretariado e de direção, o museu, o auditório principal e o bar (no piso inferior), a
biblioteca e os auditórios menores (no piso superior,
iluminado zenitalmente). O final deste percurso é
pontuado por dois momentos: o desenvolvimento em
rampa, que surge no último terço do átrio (enfatizando a relação topográfica com a envolvente), dialoga
com a escada de tiro que remata o piso superior34.
Para os mais atentos, este átrio revela, ainda, uma pequena surpresa: a falsa porta (não prevista no projeto
DOSSIÊ
de execução) que simula um segundo acesso à reprografia (que apresenta duas portas do lado do átrio,
embora apenas uma corresponda a um vão) pode ser
interpretada como um gesto irónico, que glosa com as
relações entre forma, função e significado35.
Para sudeste, o eixo deste átrio prolonga-se para o
exterior, na direção da entrada da Escola de Ciências
e Ciências Sociais e, depois, na paisagem, na direção do Santuário da Penha36; mas, para o outro lado,
apresenta um remate no próprio edifício: uma sala de
desenho, de composição cuidada, onde Távora prevê
que os estudantes (...) desenharão, apenas com a sua
alma, o seu cérebro e as suas mãos, os melhores desenhos que se farão nesta escola, numa atitude quási revolucionária, oh Deus!, a que chegamos e onde vamos
parar? (...)37.
Na realidade, mais do que nessa “capela” (assim
chamada, carinhosamente, por alunos e docentes),
os melhores desenhos produzem-se nas amplas salas de projeto voltadas a sudeste, que se distribuem
por um outro corpo, transversal ao primeiro, numa
articulação em “L”38 que envolve uma extensa área
verde, onde ainda subsistem alguns sinais de ruralidade. Para este espaço bucólico abre-se a esplanada
do bar (delimitada por um muro semicircular construído em pedra de aparelho rústico) e viram-se as
janelas das salas de trabalho, que desfrutam ainda
de uma magnífica paisagem, em segundo plano: a
colina do castelo, e, ao fundo, a montanha da Penha,
coroada pelo santuário desenhado por Marques da
Silva.
Se no primeiro corpo, disposto no sentido sudeste-noroeste, encontramos uma organização que lembra
o edifício principal do Complexo Pedagógico, no segundo corpo, orientado no sentido sudoeste-nordeste,
a a distribuição é semelhante à do seu edifício secun-
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12 | Campus de
Azurém, Escola
de Arquitetura,
fachada nescente/sul,
fotografia de Eduardo
Fernandes, 2012.
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DOSSIÊ
monumentos 33
dário, feita através de um corredor, situado assimetricamente, com salas de maior dimensão para o lado
mais favorável (quer pela incidência solar, quer pela
paisagem) e salas de menor dimensão (e os gabinetes dos docentes, no terceiro piso) para o outro lado.
Lembrando as galerias longitudinais que dominam o
alçado sudeste do edifício desenhado por Bartolomeu
Costa Cabral, na Escola de Arquitetura encontramos
palas pronunciadas no alçado que apresenta a mesma
exposição, protegendo da incidência solar as amplas
janelas corridas; estas palas não são interrompidas
quando, à semelhança do que acontece no edifício
secundário do Complexo Pedagógico, a sucessão de
salas o é (em dois momentos) pelos acessos transversais que permitem o acesso ao exterior.
No entanto, em contraste com a linguagem mais
marcadamente industrial do Complexo Pedagógico,
encontra-se aqui um desenho sereno que procura
transmitir uma sensação de conforto, percetível de
forma muito evidente no interior, onde a madeira deixada à vista nas guarnições dos vãos e no mobiliário
(fixo e móvel) contribui para uma sensação espacial
quente, reforçada pela forte luminosidade.
Há, assim, neste edifício uma ideia de continuidade
dos princípios do edifício fundador do campus, assumindo o sistema matricial da UM; mas há, também,
uma intenção de construção de um lugar, com caráter
e identidade.
Távora previu que esta escola seria uma (...) ‘máquina infernal’ de produzir ‘belos arquitetos’ (...) rodeada por (...) terras de campo e bons castanheiros
(...)39; mais do que ocupar este “lugar dos castanheiros” (como se denominava esta área da freguesia de
Azurém no final do século XIX) o edifício pertence-lhe, tirando o melhor partido da clarividência da
decisão de aqui construir um campus universitário,
face à feliz circunstância de esta área ainda se encontrar sem ocupação urbana no último quartel do
século XX.
Eduardo Fernandes
Arquiteto
Docente da Escola de Arquitetura
da Universidade do Minho
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Imagens: 1: Câmara Municipal de Guimarães;
2: Câmara Municipal de Guimarães/Divisão de
Planeamento e Urbanística; 3, 4, 7 a 12: autor;
5 e 6: Atelier 15.
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N OTA S
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4
A Universidade do Minho é criada pelo Decreto-Lei n.º 402/73 de 11 de agosto,
no âmbito de um Programa de Expansão e Diversificação do Ensino Superior
que leva à criação de quatro universidades, nove escolas superiores de educação e onze institutos politécnicos em Portugal; os seus estatutos são homologados em 7 de agosto de 1989, pelo Despacho Normativo n.º 80/89, publicado
no Diário da República n.º 198/89, série I, de 29 de agosto.
Ver UNIVERSIDADE do Minho: que Universidade?, pp. 20-33.
Em Braga, o novo Campus de Gualtar só começa a ser construído em 1986,
sendo a sua primeira fase inaugurada em 1993.
A cidade de Guimarães tem uma tradição de ensino universitário que remonta a 1541, quando D. João III autoriza a atribuição dos graus de licenciado,
bacharel e doutor em Artes no colégio situado no Mosteiro de Santa Marinha
da Costa; embora o colégio seja transferido para Coimbra em 1553, os es-
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tudos públicos em gramática, filosofia e teologia reiniciam-se em 1681 (ver
A. Moreira de SÁ — A Universidade de Guimarães no Século XVI).
O Palácio de Vila Flor começa a ser construído na primeira metade do século XVIII, mas a sua construção fica incompleta, só sendo realizado o corpo
central e a ala nascente. No início do século XX, o palácio é adquirido pela
família Jordão, que completou a ala poente do edifício e lhe acrescentou uma
mansarda. Entre 1976 e 1990 é sede do Polo de Guimarães da Universidade do
Minho. Em 2005, depois do restauro levado a cabo no edifício e nos seus jardins, é aí inaugurado o Centro Cultural Vila Flor (ver Eduardo FERNANDES;
Filipe JORGE — Guia de Arquitectura de Guimarães, p. 120).
Ver UNIVERSIDADE do Minho: que Universidade?, pp. 35-36.
ESTUDOS de Desenvolvimento Concelhio, p. 117.
Padre António CALDAS — Guimarães, Apontamentos para a sua História,
pp. 67-68.
No final do século XIX, a freguesia de São Pedro de Azurém teria uma população de 1081 habitantes, acréscimo notável em relação aos dados que o padre
António Caldas cita a partir da Geografia Histórica do padre D. Luiz Caetano
de Lima (t. II, pp. 490-491) de 1732, que apresentava para a mesma freguesia:
(...) 127 fogos, com 388 habitantes (...) (Idem, p. 69).
Por morte de D. Hermenegilde Mendes (conde de Tui e do Porto, governador da
província de Entre-Douro-e-Minho), sua mulher Dona Muma procede à divisão
das suas propriedades entre si e os filhos, ficando com a Quinta de Creixomil
e concedendo à filha, D. Urraca, a de Vimaranes. Mas como (...) eram desejos
ardentes desta senhora edificar um mosteiro, onde vivesse recolhida (...), a condessa Mumadona (nome por que era conhecida) conseguiu trocar propriedades
com a sua filha e tomar conta da Quinta de Guimarães (Idem, p. 29).
Em ambos os casos, encontram-se hoje poucos sinais destas construções iniciais: a imagem atual do castelo resulta, sobretudo, das construções realizadas
nos séculos XII e XIII e das intervenções da Direção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais na primeira metade do século XX; também no caso do
mosteiro, as sucessivas campanhas de obras na Igreja e Colegiada da Senhora
da Oliveira fizeram desaparecer quase todos os vestígios da construção do
século X. Ver Francisco FAURE — “Castelo de Guimarães”. In Said JALALI
(coord.) — Guia de Turismo Científico de Guimarães e Lúcia Maria Cardoso
ROSAS — “O claustro da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira de Guimarães”. Portugália, 1997-1998, nova série, vol. XVII-XVIII.
Ver planta de evolução da cidade entre os séculos X e XIII, realizada pelo
arquiteto Bernardo Ferrão para o Relatório da Candidatura de Guimarães a
Património da Humanidade. In Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do
Passado e do Presente, p. 260.
Ver Maria José Marinho de Queirós MEIRELES — O Património Urbano de
Guimarães...
Ver Bernardo FERRÃO; José Ferrão AFONSO — “A evolução da forma urbana
de Guimarães e a criação do seu património edificado”. GUIMARÃES: Candidatura da Cidade...
A rainha D. Maria II concede o título de cidade a Guimarães em 1853.
Ver Manuel Alves OLIVEIRA — “A cidade de Guimarães no séc. XIX num
Plano de Urbanização”. In Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado
e do Presente, pp. 15-33.
Ver Fernando TÁVORA — “O ‘Plano de Alargamento’ ou Guimarães entre o
sonho e a realidade”. In Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado e
do Presente.
A área de reserva incluía ainda um sector a poente da Alameda da Universidade
onde se constrói (em 1992) um bairro de habitação cooperativa para os funcionários da Universidade do Minho, com projeto de António Gradim (iniciado
com Mário Abreu), situado fora dos atuais limites do campus (ver Eduardo
FERNANDES; Filipe JORGE — Guia de Arquitectura de Guimarães, p. 142).
Ver planta publicada em Fernando TÁVORA — “Plano Geral de Urbanização
de Guimarães, 1980”. In Luiz TRIGUEIROS (ed.) — Fernando Távora.
Ver António Amaro das NEVES, sobre a possibilidade da ribeira de Santa
Luzia (também designada por ribeiro dos Castanheiros) ser o curso de água
que aparece designado em documentação medieval como rio Merdário ou
Merdeiro, porque funcionaria como coletor dos dejetos produzidos pela população (mais tarde é também referido como Herdeiro).
Muitos dos docentes e antigos alunos da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho recordam com saudade os anos passados nestes pavilhões, onde
o desconforto das instalações era compensado pela informalidade de usos que
a sua flexibilidade permitia e pelo intenso convívio a que a exiguidade dos
espaços obrigava.
Sobre a atividade destes novos centros ver Said JALALI (coord.) — Guia de
Turismo Científico de Guimarães, pp. 165, 169 e 173.
Ver Bartolomeu Costa CABRAL — Memória Descritiva do Projeto..., p. 2.
Lamenta-se que um conjunto de obras recentes (realizadas sem intervenção
dos autores do projeto original) tenha alterado o caráter e a organização espacial do átrio principal e da biblioteca.
É evidente a influência da biblioteca de Viipuri (Alvar Aalto, 1927-1935) na
configuração espacial, com a sala organizada em torno de uma zona central
desnivelada.
A partir da entrada noroeste do corpo secundário o visitante pode aceder a
uma longa galeria exterior (que articula as várias entradas no sentido longitudinal) ou descer e sair para um espaço externo de grande dinamismo,
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onde se localiza o parque de estacionamento reservado a docentes. A partir
daí, continuando o percurso no sentido transversal, pode aceder-se ao lado
noroeste do corpo principal a dois níveis: uma rampa leva ao piso intermédio
(cuja cota é ligeiramente superior) e uma escada permite o acesso ao piso
inferior, à cota da entrada principal do edifício; por cima, existe ainda uma
galeria transversal que relaciona o piso de entrada do corpo secundário com
o piso superior do edifício principal, onde encontramos continuados os eixos
transversais de articulação, que se prolongam em galerias longitudinais interiores situadas do lado mais alto (noroeste). É também a partir destes eixos
que é possível aceder ao exterior, para sudeste, onde o terreno se situa ao
nível do piso da biblioteca.
As principais exceções a esta métrica que organiza os dois edifícios são a
largura do átrio central do edifício principal (que tem 8,4 metros no sentido
transversal) e, forçosamente, o espaço interior do grande auditório.
Os “cinco pontos da nova arquitetura” (pilotis, planta livre, alçado livre, janelas de desenho horizontal e aproveitamento lúdico da cobertura) são desenvolvidos por Corbusier ao longo da década de 1920 como regras morfológicas associadas à sua teoria purista e conhecem aplicação em várias das suas
obras, sendo a mais notável a casa Savoye, em Poissy (1929).
A organização desta praça foi inicialmente pensada por Fernando Távora e
José Bernardo Távora, mas o desenho que apresenta atualmente resulta de
um projeto realizado pela equipa projetista da nova Escola de Engenharia.
O conceito corbusiano de “promenade architecturale” parece ter origem
na sua célebre viagem ao Oriente, nomeadamente na visita à Acrópole (ver
Charles JENCKS — Le Corbusier and the continual revolution..., p. 136).
Ver nota 28.
Arrabalde da vila, situado junto ao castelo, que surge representado com um
desenho já próximo da sua configuração atual numa planta do século XVI
(ver Francisca ABREU (coord.) — Guimarães do Passado e do Presente,
p. 259).
Fernando TÁVORA — “Faculdade de Arquitectura da Universidade do Minho”.
J-A Jornal de Arquitectos, set./out. 2001, n.º 202, p. 96.
Se, de um ponto de vista funcional esta escada (que não estava prevista no
projeto de execução) não seria essencial, uma vez que se localiza nas proximidades de uma outra (que articula os três pisos do corpo das salas de aula),
ela parece fazer todo o sentido como elemento de remate e como articulação
cerimonial entre os dois pisos do corpo mais público da escola.
Este gesto de Távora pode ser entendido como uma reflexão sobre complexidade e contradição em Arquitetura, com sugestões inesperadamente venturianas
(ver Robert VENTURI — Complexity and Contradiction in Architecture).
Quem percorre o piso inferior do átrio pode, momentaneamente, descobrir o
Santuário da Penha enquadrado na pequena janela que intencionalmente se
abre no alçado do corpo de entrada.
Fernando TÁVORA — “Universidade do Minho, Faculdade de Arquitectura,
Guimarães, 1996-…”. Távora, p. 86.
É curioso notar que esta articulação em “L” com um corpo secundário a
desenvolver-se transversalmente a partir de um corpo principal se encontra
na composição do Mosteiro de Santa Marinha da Costa (que Távora adapta a
pousada entre 1973 e 1985) e se repete nos dois projetos que Távora realiza
para Guimarães após esta experiência: a Sede da Polícia de Segurança Pública
de Guimarães (1988-1993) e a Escola de Arquitetura (1996-2002).
Fernando TÁVORA — “Universidade do Minho, Faculdade de Arquitectura,
Guimarães, 1996-…”. Távora, p. 86.
DOSSIÊ
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VENTURI, Robert — Complexity and Contradiction in Architecture. New York:
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117
118
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
(re)Desenhar
no coração da cidade
O Projecto de Reabilitação Urbana da Praça
do Toural, da Alameda de São Dâmaso
e da Rua de Santo António, em Guimarães
MARIA MANUEL OLIVEIRA
I. Intervir na cidade existente1
Com uma longa e densa história anterior à fundação
da nacionalidade2, Guimarães viu o admirável ambiente do seu centro histórico consagrado com a designação de Património Mundial da Humanidade em
2001, reconhecimento atribuído na sequência de um
exemplar trabalho de reabilitação urbana, conduzido ao longo das últimas décadas do século XX pelo
Gabinete Técnico Local sob a assessoria e o desenho
de Fernando Távora.
Recentemente, e no contexto da nomeação da cidade como Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura, foi efectuado um conjunto de intervenções no
qual se inclui a requalificação do espaço público de
uma significativa área no seu centro, abrangendo a
Alameda de São Dâmaso, a Praça do Toural e a Rua
de Santo António.
Elaborado no Centro de Estudos da Escola de
Arquitectura da Universidade do Minho3, o projecto
colocou em evidência muitas das questões actualmente prementes na intervenção em espaço público, explicitando não só as polaridades em que se
moveram programa e desenho — uso quotidiano
versus sazonal; reinterpretação do património versus
musealização; memória em construção versus tradição —, como o paradigma conceptual que o fundamentou, relativo ao significado do espaço público
na condição urbana contemporânea.
A intervenção arquitectónica em “cidades históricas” (designação da Carta de Cracóvia 2000) levanta, de forma muito evidente, problemas de ordem
múltipla que confrontam o seu genius loci e, no limite, colocam em questão a natureza essencial do
seu ser habitado. Identidade, história e memória são
categorias em debate4, tornando-se necessário compreender se funcionam (e, no limite, se pretendem)
como fetiche a que a sociedade recorre para se instalar num cenário que lhe confere glamour, se como
rede referencial imprescindível à construção identi-
tária dos citadinos vinculados a um particular tecido
urbano.
Falamos de memória e de consumo — e de consumo da memória. Num período de nítida obsessão
patrimonialista (em 1982, já Françoise Choay5 o refere muito claramente, quando alude à vocação narcísica dessa síndrome) e em que a indústria turística
adquiriu uma importância desmedida, torna-se difícil
separar os dois conceitos. Dos emblemáticos centros
históricos europeus às novas cidades asiáticas, história, património, memória e consumo confundem-se
progressivamente, submetidos à lógica de uma economia cultural mundializada6. Repositório de gerações
incontáveis, as cidades mais antigas orgulham-se da
sua história — e frequentemente musealizam-se, fabricando imagens idealizadas e anacrónicas — e as
cidades recentes constroem parques temáticos, “disneylândias” periféricas onde se consomem, compactados na ausência do tempo e do espaço próprios,
míticos ícones civilizacionais7.
Resistindo à fabricação de simulacros destinados à
autocontemplação e ao voyeurismo turístico, parece
indispensável que o recurso à História assuma a sua
Em Guimarães, no contexto da nomeação da cidade como
Capital Europeia da Cultura 2012, foi efectuado um conjunto de
intervenções, no qual se inclui a requalificação do espaço público
de uma significativa área do seu centro, que abrange a Praça
do Toural, a Alameda de São Dâmaso e a Rua de Santo António.
Elaborado no Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da
Universidade do Minho, o projecto colocou em evidência muitas
das questões actualmente prementes na intervenção em espaço
público, explicitando não só as polaridades em que se moveram
programa e desenho — uso quotidiano versus sazonal;
reinterpretação do património versus musealização; memória
em construção versus tradição —, como o paradigma conceptual
que o fundamentou, relativo ao significado do espaço público
na condição urbana contemporânea.
monumentos 33
Castelo
Paço dos Duques
de Bragança
Largo Valentim
Moreira de Sá
Igreja de
São Pedro
Rua de
Santo António
1 | Guimarães,
área de intervenção,
fotomontagem
realizada a partir de
ortofoto da cidade,
2009.
Torre da
Alfândega
Centro Histórico,
Património Mundial
UNESCO 2001
vertente de memória (individual e colectiva) em construção, suporte a referenciais urbanos que permitam à
comunidade que a habita reflectir-se enquanto entidade singular em interacção com o outro e disponível a
(ou seja, não comprometendo) um futuro que a polis
irá explicitar8. Será, assim, fundamental à urbe que
se pensa e se quer cidade íntegra — city air makes
man free9 — reagir positivamente à contemporaneidade, interpretando o seu legado patrimonial e o seu
espaço público em função de um desígnio aberto à
re-significação.
Corroborando este olhar, a objectivação programática que sustentou o projecto aqui exposto atribuiu à
História10 um papel essencial na interpretação do devir da cidade — um locus da memória colectiva11 —
Fachada
século XVIII
DOSSIÊ
119
Alameda de
São Dâmaso
Ribeira
de Couros
Igreja dos
Santos Passos
Muralha
Avenida
República
do Brasil
Convento de
São Francisco
acreditando na construção biográfica permanente
do lugar e entendendo a cidade histórica como uma
ocorrência intrínseca a essa identidade. Nesse sentido, e no pressuposto de que o espaço público é lugar
de encontro e permuta, de expressão democrática e
de afirmação cívica, defendeu, o projecto, o propósito de que o desenho admitisse diferentes níveis de
miscigenação, indicadores de uma urbanidade cada
vez mais híbrida e multicultural: à esfera do espaço
público, território relevante socialmente, palco de
coabitações diversas e tensas — uma condição acelerada agora por mobilidades extensivas e intensivas
—, caberá, por excelência, acolher essa expressão
da diferença, assumindo-se como ágora partilhada
e cosmopolita.
Praça
do Toural
120
2 | Guimarães,
Praça do Toural, planta
e alçado poente com
arboreto (aguarela
de Ana Jotta), 2010;
fotomontagem com
vista sobre a fachada
do século XVIII,
realizada em 2012.
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
II. O Projecto de Reabilitação Urbana
da Praça do Toural, da Alameda de São Dâmaso
e da Rua de Santo António
A Alameda de São Dâmaso, a Praça do Toural e a
Rua de Santo António constituem uma sequência de
áreas dispostas em enfilade ao longo da ferradura correspondente à implantação da muralha medieval, conformando um importante segmento do espaço intersticial entre o centro histórico e as zonas que ao longo
dos séculos têm vindo a estabelecer-se extramuros.
O seu projecto de requalificação buscou os fundamentos numa interpretação actual e acertada do lugar, ancorando a proposta de transformação na temporalidade longa que lhe é subjacente. Assim, articulando
temas da urbanidade contemporânea com significados construídos pela memória colectiva, tentou favorecer novas apropriações do espaço12.
Incidindo exclusivamente sobre o espaço aberto
— e considerando as massas de edifícios que o delimitam como uma manifestação geológica urbana,
o hard factor13 físico não sujeito a intervenção — a
proposta desenha o chão, interpretando-o na sua
projecção tridimensional e atribuindo ao habitante
(nas várias condições que assume, entre o uso pragmático e o lúdico) um papel fulcral na determinação
da ambiência espacial.
Ao abranger uma área com cerca de 40 000 m2 o
impacto do projecto é necessariamente elevado,
mais ainda na medida em que lida com espaço público localizado em pleno centro da cidade e contempla áreas morfológica e funcionalmente diversas, que incluem uma rua de grande importância
comercial, uma praça com enorme significado urbano, uma extensa área arborizada e, ainda, as franjas
que lhes são imediatamente adjacentes. Caracterizando esta díspar circunstância, e profundamente
interiorizados na vivência citadina, encontramos
elementos arquitectónicos notáveis de que se destacam a muralha14 — eloquente limite entre dois
universos cujas fronteiras, esbatidas, se mantêm no
entanto sensíveis em termos urbanos —, a fachada
“pombalina” do Toural15, o Convento de São Francisco e um significativo espólio vegetal. Centrais
à espacialidade da área em estudo, exigiram uma
reflexão, não equivocada pela prevalência dos cos-
monumentos 33
3 | Guimarães,
Alameda de São
Dâmaso, planta,
modelação do terreno,
esquartelamento do
pavimento e esquema
para a iluminação,
2010; fotomontagem
com vista sobre
a fachada norte,
realizada em 2012.
tumes, sobre a forma como física e simbolicamente
incorporavam (e/ou, poderiam vir a incorporar) o
quotidiano dos habitantes.
Foram também vários os temas de natureza funcional que se mostraram de evidente pertinência para
a clarificação das intenções que informaram o projecto. Se parte substancial das redes infra-estruturais
se encontrava desadequada, tendo sido necessária a
sua revisão e actualização, a circulação viária revelava graves e múltiplos problemas: ausência de hierarquização dos fluxos, trânsito automóvel de atravessamento no centro da cidade, estacionamento
desregulado, autocarros transformados em poluentes
barreiras visuais e obstáculo à circulação pedonal.
DOSSIÊ
Todas estas questões se condensavam, grosso modo,
numa muito deficiente situação do transporte público
e num manifesto excesso de área atribuído à circulação motorizada. O conforto e a mobilidade dos peões
viam-se, assim, seriamente prejudicados, exigindo
uma regulação rigorosa do território viário16.
Perante esta circunstância, entre os múltiplos aspectos de ordem operativa, a racionalização da estrutura
espacial afecta à circulação motorizada, estreitamente
associada à melhoria das condições de suporte ao sistema de transportes públicos e à qualificação da área
de uso pedonal, constituiu-se como tema estruturante
na concepção do projecto e um dos aspectos-chave da
solução adoptada.
121
122
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
4 | Praça do Toural
e Alameda de
São Dâmaso,
pavimentos-tipo,
planta, corte e
fotomontagem, 2012.
III. A Praça, a Rua e o Bosque,
a que se acrescentou um Terreiro
Aceitando a diversidade morfológica da área de intervenção, argumentando a condição hodierna do espaço
público nas suas vertentes de adequação funcional e
representação simbólica e, ainda, reconhecendo a sua
radicação na trajectória histórica do sítio, o projecto
desenvolveu-se centrado nos conceitos de a Praça, a
Rua e o Bosque, a que se acrescentou um Terreiro.
A Praça
Desde a sua formação medieval como largo exterior
à muralha, a Praça do Toural constituiu-se como um
especial momento de recepção da cidade que se vem
adaptando aos tempos e aos usos coetâneos e afir-
mando enquanto expressão da contemporaneidade de
Guimarães. Ao longo dos séculos, transitou de terreiro (com práticas, nomeadamente, de feira, mercado
e tourada) para praça, tornando-se num espaço que
se pretendia não só urbano como expressivo de uma
modernidade não reconhecida ao centro intramuros.
Com uma área aproximada de 5500 m2, forma trapezoidal desenvolvida em marcada pendente sobre
o topo noroeste e acessos localizados nos cunhais,
a praça é delimitada por três frentes de indiscutível
interesse arquitectónico. Nestas, destaca-se a fachada
iluminista nascente — que, implantada sobre o tramo
da muralha que a seu propósito foi demolida, se contrapõe, pela sua regularidade e extensão, à variedade
formal das outras fachadas — e a Igreja de São Pedro
(enquanto peça singular, pelo uso, escala e arquitectura), integrada na fachada oposta.
monumentos 33
5 | Guimarães, Terreiro
de São Francisco,
planta e corte, 2010;
fotomontagem com
vista sobre a fachada
do convento, realizada
em 2012.
Esta “geologia” não remete, porém, para a axialidade que dominou o espaço no último século, organizada a partir de um centro, o qual, inventado por uma
composição de finais de XIX tornou obsoleto o chafariz que ao longo de três séculos tinha nobilitado a praça17; expulsando-o do seu seio, convocou — num gesto funcionalista próprio à época — um ordenamento
que dedicou espaços exclusivos ao trânsito viário e ao
DOSSIÊ
peão. E, assim, o protagonismo até então exclusivo do
chafariz e das frontarias limítrofes foi disputado pelos
arranjos sucessivos da plataforma central, assumida
como jardim, cujo desenho também se foi adaptando
ao correr das exigências e das modas urbanas.
Ocupada inicialmente por uma composição com características românticas — dispondo de grades, coreto,
lago e vegetação exótica, um exemplar local do “jar-
123
124
6 | Praça do Toural,
fotografia aérea
de António Amaro
das Neves, 2011.
7 | Praça do Toural,
fotografia de Rita
Burmester, 2012.
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
monumentos 33
dim biscoito” que tanto sucesso recolhia à época —,
essa plataforma foi objecto de múltiplas rectificações,
sempre veementemente discutidas pelos vimaranenses18. Mas foi na segunda década do século XX que o
Toural adquiriu uma configuração muito próxima da
que chegou aos nossos dias, deslocando-se a atenção
do tema vegetal para o pétreo. A sua vocação como
praça foi assumida de forma clara e o novo pavimento
em quartzo e basalto, de desenho fortemente decorativo, fixou a recente centralidade espacial, a qual foi
ainda vincada mais tarde, nos anos de 1950, com uma
fonte monumental. Incorporando parterres, também
eles muito delineados, essa placa central encontrava-se ainda rodeada por árvores de pequeno porte, as
quais, não obstante esse facto, esbatiam a percepção
das edificações que conformam a praça.
Ao seu forte sentido de representação enquanto espaço de acolhimento da cidade, o Toural tem aliado sempre um vivido e apreciado carácter de estar, revelando-se um sítio muito procurado em épocas de temperatura
mais amena. Esta eleição da praça como momento de
encontro sugeriu um enriquecimento efectivo das suas
múltiplas possibilidades de leitura e apropriação: campo arquitectónico perceptível na sua integridade, rossio
aberto a quem chega — zona de passagem em alturas
de agressividade ambiental e lugar de permanência em
partes consideráveis do ano — e, ainda, potencial albergue de grandes manifestações colectivas.
No desígnio de lhe atribuir inquestionável actualidade e de realçar aspectos relevantes da sua sedimentação histórica, o projecto de arquitectura pretendeu
retomar o Toural como uma praça contínua, com leitura desimpedida de fachada a fachada e sem obstáculos ao nível do pavimento. Não intervindo sobre
as fachadas que moldam a praça, o projecto desejou
no entanto redefinir o entendimento da sua estrutura compositiva, anulando a marcação do, então, seu
centro geométrico e valorizando a percepção do longo
e regular plano da fachada “pombalina”, assim como
a frontaria de São Pedro — dois elementos que, no
seu confronto, equilibram de alguma forma o desenho
não regular da praça.
Esta intenção é reforçada pelo estabelecimento de
um remate arbóreo no topo sul, limite esse que criará uma zona de sombra sobre o conspícuo chafariz
quinhentista (agora regressado ao local primitivo) e
o banco que o envolve, citando um outro, original,
entretanto desaparecido. Implantado no sítio que teria sido o seu, o chafariz, legível a partir de vários
enfiamentos e sempre sob diversos ângulos, sustém
de algum modo a tensão que resulta do desenho e da
topografia da praça.
Mas à vontade de expressar no Toural a memória
da sua longue durée, através da recuperação de uma
peça secular que para aí foi concebida e executada,
associou-se a confirmação do tempo que vivemos,
ultrapassando qualquer pretensa leitura de nostálgica recriação: o chão da área central da praça manter-se-á, como ao longo dos séculos se tem verificado, a
superfície que acolhe a inscrição da modernidade —
DOSSIÊ
e que neste caso se afirma, também, através do projecto de arte pública concebido pela pintora Ana
Jotta.
A arquitectura solicitou ao projecto artístico que
considerasse os limites e a topografia previstos para a
placa central e a reutilização, no pavimento, da calçada em basalto e quartzo, de corte irregular e superfície
luminosa. Este programa originou uma proposta que
reproduz, à escala de 1:5, a planta de um sector da
área central da cidade através de linhas desenhadas
em basalto; mas o desenho só será inteligível, enquanto planta, de cotas elevadas dos edifícios envolventes
— a partir do chão, ele é visto como uma composição
abstracta cujo significado geral não se apreende, mas
que se poderá construir através de interpretações segmentárias. Constitui-se, também, como um grafismo
que permitirá no futuro intervenções de índole diversa na superfície, facto que lhe atribui uma disponibilidade à circunstância efémera que se julga verdadeiramente interessante do ponto de vista da apropriação
citadina do espaço público.
A intervenção de arte urbana inclui ainda um varandim em ferro fundido laminado a folha de ouro
falso e com cerca de 60 metros de comprimento, que
percorre longitudinalmente a cota alta da plataforma. Peça eminentemente artística, imprescindível
125
8 | Praça do Toural,
fotografia de
CE.EAUM, 2012.
9 | Praça do Toural,
fotografia de
CE.EAUM, 2012.
126
10 | Praça do Toural,
fotografia de Rita
Burmester, 2012.
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
monumentos 33
DOSSIÊ
127
contraponto ao chafariz, constitui um importante e
incomum suporte ao estar na praça, o qual é apoiado pela relocalização dos bancos anteriormente
existentes.
O desenho arquitectónico previu também, no limite
noroeste da plataforma, um conjunto de árvores (cuja
definição ficou a cargo do projecto artístico em articulação com a arquitectura paisagista) que encerra a exagerada perspectiva que actualmente se abre nesse enfiamento do Toural. Este arboreto, plantado sem caldeiras
aparentes — facto que permitirá, com o tempo, que as
raízes se venham a inscrever no pavimento — contribui para enquadrar a leitura da Igreja de São Pedro para
aqueles que acedem ao Toural a partir do seu cunhal
norte e, muito especialmente, para recuperar o sentido
memorial do percurso de agradecimento realizado por
D. João I, em finais do século XIV, em direcção à Colegiada da Oliveira.
A Rua
Envolvida por um interessante legado arquitectónico e com início no limite norte do Toural, a Rua de
Santo António, de conformação tardomedieva, é uma
das artérias da cidade com maior intensidade comercial, sendo talvez o seu traçado, que acompanha a implantação da muralha, o elemento que mais carácter
confere ao arruamento.
A intervenção redefiniu o seu perfil transversal privilegiando a área destinada ao peão através da conquista de espaço ao sistema rodoviário, que se pretendeu condicionado por um dimensionamento muito
estrito. Este reperfilamento deu origem a um sensível
alargamento dos passeios19, facto de particular importância para o tipo de uso que requerem, dadas as lojas
que acompanham a rua em toda a sua extensão e que
sobre ela se abrem através de grandes montras.
Dar legibilidade à condição da Rua de Santo António enquanto espaço-canal integrante do anel que
envolve a muralha — a qual, percorrendo o interior
da massa edificada que ladeia a rua a nascente, não é
visível — foi também um dos objectivos do desenho.
Nesse sentido, o passeio respectivo foi executado com
o mesmo tipo de lajeado de granito que acompanha
todo o trajecto envolvente da muralha na área de intervenção, dando continuidade ao similar previsto para
a Praça do Toural e Alameda de São Dâmaso; o passeio oposto, mantendo o critério de articulação com
as áreas com que contacta, é revestido a calçada em
calcário. A assimetria entre o tratamento destas duas
superfícies evidencia a importância e o significado da
muralha — abstractamente figurada no pavimento —
na morfologia e na história urbana da cidade.
O Bosque
Na medida que o Toural sedimentou a sua identidade como praça urbana, a vocação de passeio público
centrou-se na área da Alameda de São Dâmaso, desenhada e construída em meados do século passado sob
o signo de uma urbanidade em que o trânsito rodoviário e a salubridade se mostravam conceitos essenciais
à cidade coeva.
Resultante de consideráveis demolições realizadas
ao longo dos séculos XIX e XX20, esta mancha verde alberga um espaço de estar importante, cuja topografia resolve o acentuado desnível entre o centro
histórico e a zona localizada à cota baixa do centro
da cidade, em torno da ribeira de Couros (uma área
sujeita, também, a importantes obras de requalificação urbanística). Dividida em três sectores separados
por arruamentos, profusamente arborizada e ladeada
por vegetação arbustiva, que condicionava visibilidade e acessos, a Alameda, concebida de acordo com os
cânones coetâneos, apresentava-se como um espaço
confinado em relação à envolvente, não favorecendo
a permeabilidade entre as suas margens.
Associada ao desejo de abrir a Alameda a novos
utilizadores, a atribuição de um elevado nível de porosidade (física visual) a esse espaço conduziu o desenho da proposta e a reconfiguração do seu conceito
espacial. Transformar a Alameda num Bosque21 significou tornar o seu espaço acessível perifericamente —
desmantelando obstáculos e axialidades — e adoptar
uma organização “informal” do chão, libertando-o do
ruído originado pelo excesso de pequenos arbustos
11 | Alameda
de São Dâmaso,
fotografia de
CE.EAUM, 2012.
12 | Alameda
de São Dâmaso,
fotografia de
CE.EAUM, 2012.
128
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
disseminados pelos canteiros que encerravam os seus
limites laterais.
Assim, a par da revisão do sistema de circulação automóvel envolvente — que permitiu fechar uma rua e
crescer substancialmente a área que estava adstrita à
Alameda — propôs-se (re)inventar a topografia existente no sentido de uma modelação mais naturalizada
(em oposição aos anteriores rígidos planos e traçados)
e a plantação de um número muito considerável de
novas árvores que, densificando o filtro vegetal sem
anular a visibilidade nem o sentido de percurso longitudinal, perturbassem os alinhamentos arbóreos e
abrissem o espaço à deambulação errática. A distribuição do mobiliário (que viu duplicado o número
de lugares sentados) corrobora esta proposta, organizando formas de estar que, mais ou menos expostas,
sugerem níveis diferenciados de socialização22.
Esta nova espacialidade pretende, no entanto, assegurar continuidades e manter alguns dos seus anteriores referenciais; nesse sentido renovou-se o coreto
e deslocalizou-se para o topo nascente uma das belas
fontes que aqui já se encontravam, o Faunito, em posição que assegura uma cumplicidade discreta, mas
inquestionável, com o seu par a Rapariguinha23.
Como suporte a esta ocupação aberta, o pavimento
(executado em material permeável, cómodo para o
andar e para o estar) foi desenhado apenas através
do seu esquartelamento e do recorte correspondente
às caldeiras das árvores, não apresentando obstáculos ao utilizador. Caminhar, estar, descansar, jogar,
passear — o bosque desejou-se como um moderno
passeio público, um fragmento da natureza urbana
embebido de gerações e gentes de origens diversas.
13 | Terreiro de
São Francisco,
fotografia de Rita
Burmester, 2012.
O Terreiro
Localizado no lado sul da Alameda de São Dâmaso e
implantado a um nível claramente inferior, o Convento
de São Francisco24 materializa um processo edificatório
que ocorreu entre os séculos XIV e XVIII. Apresentando-se como um valioso conjunto patrimonial, oferece à
cidade quer a sua igreja, com uma cabeceira que possui um valor único na compreensão da arquitectura
gótica mendicante em Guimarães, quer — contrastando vivamente com a secura da construção tardomedieval intervencionada em meados do século passado — a
expressão barroca do corpo azulejado do antigo hospital e a exuberante fachada rococó da capela.
Apesar de ser considerado um dos edifícios monacais de maior importância na urbe nunca dispôs, ao
longo da sua secular existência, de um espaço fronteiro de representação que fizesse justiça à sua importância e valia arquitectónica. Ao repensar a frente
urbana do Convento de São Francisco no sentido
da sua nobilitação, o projecto ambicionou, através
de uma intervenção muito deliberadamente reduzida ao indispensável, materializar um espaço que se
constituísse como o seu terreiro, estabelecendo um
chão adequado à eloquente retórica que o edifício
exprime.
Assim, num gesto que pretende atribuir um novo
significado urbano ao conjunto franciscano, foi desenhada uma extensa superfície lajeada a granito — que
encontrou a sua métrica nas irregularidades do pavimento preexistente —, um plano que se dispõe ao
longo do convento, capela e dependências da homónima Venerável Ordem Terceira.
monumentos 33
14 | Guimarães,
arranque da Avenida
do Brasil e topo
nascente da Alameda
de São Dâmaso,
fotografia de Rita
Burmester, 2012.
Este terreiro ex-novo, seco e grave, acolhe dois objectos autónomos que também eles, por oposição,
se complementam e reforçam: o cruzeiro datado de
1593, que mantém a posição em que se encontrava
já implantado assinalando a reentrância do adro que
prolonga o corpo da igreja, e um banco em mármore
lioz branco, agora desenhado, que, corrido em toda
a extensão do terreiro — uma linha recortada contra
o granito que a envolve —, na sua horizontalidade,
sublinha o esforço vertical da peça quinhentista.
Concretizando a abertura de novas ligações pedonais entre a cidade alta e a zona da ribeira de Couros,
propôs-se no topo sudoeste do terreiro a execução
de uma escada que articula três níveis: Couros, São
Francisco e Alameda. Muito discretamente implantada, sem perturbar a espacialidade do terreiro, permite
no entanto singulares leituras ao facultar, a partir do
passeio da Alameda, um enfiamento anteriormente
inexistente sobre o interior da Zona de Couros e, no
sentido inverso, uma nova perspectiva da fachada do
corpo barroco do convento.
IV. Desenhar para a cidade
15 | Alameda de
São Dâmaso, topo
nascente, fotografia
de Rita Burmester,
2012.
É muito proeminente, pois, o valor do património
arquitectónico e imaterial que toda a área intervencionada alberga e que o projecto pretendeu salvaguardar,
na sua procura de coerências outras que, solicitadas
pela condição urbana actual, re-significassem as particularidades notáveis dos espaços sobre os quais procedeu. Fundamentando o seu propósito de contemporaneidade em argumentos de ordem arquitectónica,
simbólica e de uso, o desenho ensaiou, face à preexistência, sugerir novas formas de apropriação do espaço
público, ampliar o papel da “natureza” na cidade, materializar suportes favoráveis à expressão de uma sociedade progressivamente heterogénea e miscigenada.
Comprometido com o reconhecimento crítico do
lugar e com o favorecimento de usos que compatibilizam a sua condição de espaço citadino quotidiano
com a de recepção, intensa, de visitantes, o Projecto
de Reabilitação Urbana da Praça do Toural, da Alameda de São Dâmaso e da Rua de Santo António
deseja, ainda, o célere absorvimento da sua proposta
transformadora — e das intrínsecas rupturas a ela
associadas — no contexto espacial altamente qualificado do coração de Guimarães. Ambiciona a obra,
particularmente, constituir-se como um novo passo
na contínua fábrica da memória colectiva, cumprindo um ciclo que, no seguimento e à semelhança
daqueles que o antecederam, perdurará enquanto a
cidade, no seu devir, a entender como apropriada à
sua representação.
Maria Manuel Oliveira
Arquitecta
Docente da Escola de Arquitectura
da Universidade do Minho
Imagens: CE.EAUM.
DOSSIÊ
129
130
DOSSIÊ
monumentos 33 dossiê
FICHA TÉCNICA
N OTA S
O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico por opção expressa da autora.
O presente texto é a versão revista de uma comunicação efectuada no Seminário
Internacional Espaços Culturais e Turísticos em Países Lusófonos, na Faculdade
de Arquitectura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
Novembro de 2011.
CLIENTE: Câmara Municipal de Guimarães
DATA: Abril 2009 – Março 2012
ÁREA: 38 930 m2
CUSTO: 6 437 320,00 €
1
COORDENAÇÃO GERAL:
COORDENAÇÃO TÉCNICA
Centro de Estudos da Escola de Arquitectura da Universidade
do Minho | CE.EAUM
Maria Manuel Oliveira, arq.
COORDENAÇÃO PROJECTO DE EXECUÇÃO
2
Miguel Nery, arq.
COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA
Associação Universidade-Empresa para o Desenvolvimento
3
– TECMINHO
PROJECTO DE ARQUITECTURA:
CE.EAUM – Maria Manuel Oliveira, arq., colaboradores:
João Rosmaninho DS, Sofia Parente e André Delgado, arqs.
4
PROJECTO DE ARQUITECTURA PAISAGISTA:
Maria João Cabral, arq. paisagista
Daniel Monteiro, arq. paisagista (Estudo Prévio)
PROJECTO DE ARTE PÚBLICA (Toural):
5
6
Ana Jotta, pintora
PROJECTOS DE ESPECIALIDADES:
afaconsult
7
COORDENAÇÃO
Paulo Silva, eng. civil
ARRUAMENTOS
Paulo Silva, eng. civil, colaboradores: Ana Rita Castro, eng. civil
INFRA -ESTRUTURAS HIDRÁULICAS
Paulo Silva, eng. civil, colaboradores: Ana Rita Castro e Marisa
Fernandes, eng. civis
INFRA -ESTRUTURAS ELÉCTRICAS E DE ILUMINAÇÃO
Raúl Serafim, eng. electrotécnico, colaboradores: Ricardo Pereira
8
e Vasco Sampaio, eng. electrotécnicos
LUMINOTECNIA
Raúl Serafim, eng. electrotécnico
INFRA -ESTRUTURAS DE TELECOMUNICAÇÕES
Raúl Serafim, eng. electrotécnico, colaboradores: Ricardo Pereira
9
10
e Vasco Sampaio, eng. electrotécnicos
PLANO DE GESTÃO DE RESÍDUOS DA CONSTRUÇÃO
Paulo Silva, eng. civil, Ana Rita Castro, eng. civil
PLANO DE SEGURANÇA E SAÚDE
Paulo Silva, eng. civil, Pedro Pereira, eng. civil
CONSULTORIAS:
11
12
HISTÓRIA DA ARQUITECTURA E DA CIDADE
Jorge Correia, arq., EAUM
AMBIENTE PEDONAL NAS CIDADES
André Fontes, arq., eng. civil, EAUM
MOBILIDADE
António Babo, eng. GNG.APB
CONSERVAÇÃO E TRASLADAÇÃO DE FONTES E CRUZEIRO
Paulo Lourenço, eng. DEC UM
OBRA | EXECUÇÃO:
FISCALIZAÇÃO CMG
Margarida Pereira e Gilberto Fernandes, eng.
civis, Adão Ribeiro, fiscal
13
CONSTRUTORA
Alberto Couto Alves, SA
14
(...) a cidade contemporânea é cada vez mais um espaço de mobilidades de
pessoas e actividades, no terreno e no tempo, tendo presente que reconstrução e
completamento do sistema de espaços colectivos — de infraestruturas e símbolos
—, que foi sempre uma longa prioridade na longa história de fazer cidade, não
estão nunca terminados e são condição primeira da equidade e da sustentabilidade que hoje exigimos do espaço em que nos movemos, ou onde paramos (...).
Nuno PORTAS — Os Tempos das Formas..., p. 201.
Ao século X remonta a governação da condessa Mumadona Dias, que ao estabelecer um mosteiro dúplice à cota baixa e fundar um castelo numa colina
próxima definiu o embrião espacial que marcaria, até à actualidade, a história e
a morfologia da cidade.
Elaborado a convite da Câmara Municipal de Guimarães, a realização do projecto contou com uma vasta equipa técnica nas áreas da Arquitectura e da
Engenharia e com assessorias específicas nas especialidades da História da Arquitectura e da Cidade, da Mobilidade e Transportes, de Serviço e Ambiente
Pedonal e, ainda, de apoio à Trasladação de Fontes e Cruzeiro.
A aproximação moderna à construção crítica dos “valores de uso” e “de comemoração” na sua relação com o “culto dos monumentos” inicia-se com Aloïs
Riegl no dealbar do século passado — (...) pour la première fois dans l’histoire
de la notion de monument historique et de ses applications, Riegl prend distance
(...). Françoise CHOAY na introdução à versão francesa de Denkmalkultus.
Françoise CHOAY — A Alegoria do Património.
(...) si le capitalisme culturel promeut effectivement la culture, il le fait à la manière d’un bien ‘consommable’ et donc inscrit l’usage, mais aussi l’évaluation
du patrimoine, dans des logiques d’offre et de demande (...). Stephane DAWANS;
Claudine HOUBART — Le patrimoine a l’etat gazeux...
Com origem no Grand Tour, praticado por uma restrita elite cosmopolita a partir
do Setecentos, a difusão da viagem de lazer cultural aconteceu ao longo do
último século (ver Alain CORBIN — A História dos Tempos Livres); a sua explosiva massificação nas últimas décadas do século XX era já muito agudamente
comentada por Guy Debord em 1967: (...) § 168 — Subproduto da circulação
de mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distracção de ir ver o que se tornou banal.
A ordenação económica da frequentação de lugares diferentes é já por si mesmo
a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço (...). Guy DEBORD —
A Sociedade do Espectáculo, p. 162.
(...) Se todo o monumento é traço do passado, consciente ou involuntariamente
deixado, a sua leitura só será re-suscitadora de memórias se não se limitar à perspectiva gnosiológica e fria (típica da leitura patrimonial e museológica), e se for
medida pela afectividade e pela partilha comunitária com outros. (...). Fernando
CATROGA — Memória, História..., p. 24.
Max WEBBER — “The city”. Economy and Society: an Outline of Interpretive
Sociology, [1921] 1978, vol II.
Sabendo, com Alexandre Alves Costa, (...) que há uma história para arquitectos
que não tem os mesmos objectivos, nem os mesmos métodos da história dos
historiadores (...) e que (...) Estudamos história da arquitectura pelo prazer de
compreender a arquitectura (...) como reflexão a partir do interior, pensando
o que deve ser feito e como fazer (...). Alexandre Alves COSTA — “O lugar da
história”. Textos Datados, pp. 255, 264.
Aldo ROSSI — A Arquitectura da Cidade.
A proposta de renovação urbana pressupôs, na sua enunciação, objectivos
programáticos de natureza diversa. Destacam-se aqueles que se afirmaram
como os mais estruturantes: a) adequação do espaço à urbanidade hodierna,
considerando as vertentes de representação simbólica, patrimonial e funcional, afirmando a condição contemporânea e reconhecendo a sua radicação na
trajectória histórica do sítio; b) favorecimento da relação pedonal entre a cidade intramuros e a Zona de Couros, muito constrangida pelo reduzido número
de ligações entre ambas, pelas circunstâncias topográficas e pela organização
longitudinal da Alameda de São Dâmaso; c) qualificação da área fronteira
ao Convento de São Francisco, então um espaço urbano anódino que não
reconhecia o edifício nem valorizava o seu contacto com a cidade; d) compatibilização das circulações viária e pedonal, hierarquizando devidamente os
diversos temas e prestando uma atenção particular ao peão e ao transporte
público; e) racionalização e melhoramento das infra-estruturas existentes e
consideração das redes ausentes, no sentido de aumentar a qualidade dos
serviços e o conforto urbano.
Günther VOGT — “Between search and research”. Vogt Landscape Architects,
distance and engagement, pp. 7-23.
A muralha, definida na sua planta e perfil a partir de finais do século XIV, é um
elemento desde sempre presente na configuração da cidade e tema transversal
decisivo na espacialidade de toda esta área, da sua génese aos nossos dias.
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Elemento identitário profundamente incorporado na memória colectiva vimaranense, o propósito de “iluminar” essa presença foi um dos temas do projecto.
Em finais do século XVIII, princípios do XIX, o pano de muralha que delimitava o Toural a nascente e a torre da Porta da Vila foram apeados, para no seu
lugar se erguer a frente pombalina do Toural, que nos aparece (...) como uma
realização de carácter tardio, ainda e sobretudo no movimento das cornijas, com
reminiscências barrocas, para além de outras, almadinas, no desenho e ritmo
contínuo de vãos com padieiras abatidas e molduras laterais que, verticalmente,
se prolongam. Isso contudo, não obsta ao seu alto valor estético (...). Bernardo
FERRÃO; José Ferrão AFONSO — “A evolução urbana de Guimarães e a criação
do seu património”. Guimarães: Património Cultural da Humanidade, p. 41.
Pressupôs-se, como ponto de partida, a compatibilidade entre o automóvel e o
peão considerando, no entanto, que essa partilha dependia de uma clara definição dos respectivos territórios. A estrutura funcional e o dimensionamento das
superfícies atribuídas à circulação motorizada e pedonal foram, assim, centrais
no desenho. O projecto, em estreita articulação com as propostas da assessoria
para a mobilidade e transportes, anulou arruamentos supérfluos e redefiniu
perfis transversais, a localização das paragens de transportes públicos e a organização do estacionamento. No cômputo geral foi recuperada para a circulação
pedonal cerca de 40% da área anteriormente afecta ao trânsito motorizado.
O excesso de área atribuído à circulação viária (que revertia, sobretudo, em
favor do aparcamento de permanência ao longo do dia e de estacionamento em
segunda fila) criava constrangimentos que se reflectiam, particularmente, na
diminuição das áreas destinadas ao peão. Constatou-se, também, a utilização
das vias envolventes da Alameda de São Dâmaso como terminal de autocarros,
que aí estacionavam durante longos períodos; por seu turno, os abrigos correspondentes ocupavam a quase totalidade do passeio, constituindo um sério
obstáculo à circulação de peões. A substituição da rotunda da Senhora da Guia
por um parterre semelhante aos que ocupam a Avenida da República do Brasil
permitiu racionalizar e redesenhar o complexo sistema viário daquela área e
acelerar a perspectiva da Igreja dos Santos Passos. Também assim foi possível
aproximar da frente urbana a fonte setecentista que se encontrava no centro da
rotunda e atribuir-lhe uma base de assentamento estável, que a torna acessível
e a valoriza formalmente. Esta solução permitiu ainda conquistar uma área
significativa para a circulação pedonal naquela zona e a plantação de um enfiamento de árvores no passeio limite nascente da intervenção, rematando assim
o continuum arborizado que se verifica, agora, a partir da Praça do Toural.
O chafariz do Toural foi executado em 1583 por Gonçalo Lopes, membro de
uma família de mestres que trabalhou entre os séculos XVI e XVII no Norte
de Portugal e na Galiza. Trata-se de uma peça de granito composta por três
taças escalonadas, encimadas por esfera de bronze dourada, encontrando-se à
época rodeada por um banco corrido ao qual, eventualmente, se adossava um
pequeno tanque para bebedouro. Este chafariz enraíza-se numa tradição de fontanários de um classicismo mais erudito, cujo primeiro exemplar foi erguido por
João Lopes-o-Velho, em Viana do Castelo, numa tipologia em tudo idêntica à
utilizada por seu filho, João Lopes-o-Moço, em Ponte de Lima. Foi desmontado
em 1873 e colocado no Largo do Carmo, de onde agora se trasladou, em 1891.
Como exemplo desta discussão, que ao longo do tempo tem inflamado a opinião pública vimaranense — sempre atenta às intervenções na cidade e, muito
particularmente, no Toural —, consultar http://araduca.blogspot.pt/2010/12/
o-mosaico-do-toural-1.html.
Com este redimensionamento do canal rodoviário a segurança pedonal aumentou, uma vez que os veículos se viram constrangidos a reduzir a velocidade
habitual. Simultaneamente, no limite norte da rua, que conta com um perfil
transversal mais generoso que na restante via, foi possível criar no passeio frontal aos abrigos de transporte público um alinhamento de árvores que não só
controla a excessiva abertura visual deste topo, como lhe atribui conforto.
A Alameda de São Dâmaso, surgida enquanto tal a partir do terceiro quartel do
século XIX com o intuito de atribuir urbanidade à área localizada entre a muralha e a Zona de Couros, foi edificada ao longo de um processo que se prolongou
até meados do século seguinte, quando foi concluída e construída a rotunda
da Senhora da Guia (conforme planos de Maria José Marques da Silva e David
Moreira da Silva), que a rematava e articulava com a Avenida da República do
Brasil.
Uma alameda é uma rua (ou caminho) constituída por alinhamentos de árvores;
um bosque é um espaço arborizado que se percorre em todas as direcções, por
entre troncos dispostos de forma supostamente aleatória.
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DOSSIÊ
A Alameda de São Dâmaso era conhecida como “o jardim dos idosos”, praticamente os seus únicos utentes; à noite, e apesar da sua centralidade, era
um espaço abandonado. O bosque pretende favorecer outros usos urbanos,
diversificados, sem no entanto expulsar aqueles que já existiam. Essas novas
possibilidades de ocupação prendem-se, sobretudo, com a capacidade que o
espaço tem de acolher diversos tipos de utilizadores e actividades, em período
de tempo mais dilatado.
As duas fontes — o Faunito (1934) e a Rapariguinha (1939), de autoria do
escultor António de Azevedo — encontravam-se simetricamente dispostas e viradas uma para a outra no antigo jardim central da Alameda de São Dâmaso,
reforçando a sua axialidade. Desmantelada esta última, manteve-se no entanto
a relação visual entre ambas as esculturas, que se continuam a olhar.
Conjunto dos finais do século XIII e edificado originalmente junto à muralha do
burgo medieval, foi deslocado por ordem real na centúria seguinte, tendo em
vista o desatravancamento da muralha.
B I B L I O G R A F I A
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url: Araduca.blogspot.com
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INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
monumentos 33dossiê
Paço dos Duques
de Bragança
www.monumentos.pt
IPA: Monumento
NÚMERO IPA: IPA.00001139
DESIGNAÇÃO: Paço dos Duques de Bragança
LOCALIZAÇÃO: Portugal, Braga, Guimarães, Oliveira do Castelo
ACESSO: Rua Conde D. Henrique
PROTEÇÃO: MN — Monumento Nacional, Decreto de 16-
-06-1910, DG, n.º 136, de 23 junho 1910 / ZEP, Portaria, DG,
2.ª série, n.º 170, de 23 julho 1955 *1 / Incluído no Centro
Histórico de Guimarães (v. IPA.00011899)
alta, a NE., o Castelo de Guimarães (v. IPA.00001060) e a
Igreja de São Miguel do Castelo (v. IPA.00001248), e na cota
mais baixa, fronteiro à fachada E., a Capela de Santa Cruz
(v. IPA.00001069). O conjunto é delimitado por vias urbanas,
com exceção a SO., onde o limite é traçado por muros que o
separam de construções vizinhas, nomeadamente a Igreja e
Convento do Carmo (v. IPA.00000095), possuindo diversos
caminhos pedestres, rampas e escadas rampeadas, de patim
largo. O espaço fronteiro à fachada principal do Paço dos
Duques de Bragança apresenta um amplo passeio central,
pavimentado a cubos graníticos com guias formando quadrícula, ladeado por espaços relvados; próximo, ergue-se o
monumento a D. Afonso Henriques (v. IPA.00029521).
DESCRIÇÃO: Planta quadrangular, formada por quatro alas
ENQUADRAMENTO: Urbano, isolado, a meia encosta do
Monte Latito, ocupando uma posição sobranceira ao burgo medieval amuralhado de Guimarães. Inserido no interior
das muralhas (v. IPA.00001048), com ligação à Rua de Santa
Maria, o eixo medieval que unia os dois núcleos urbanos,
o Mosteiro (Vila Baixa) e o Castelo (Vila Alta), nas imediações da Porta Freiria, já desaparecida. Implantado em terreno de acentuado declive, é envolvido por parque arborizado, onde se erguem outros monumentos; na cota mais
dispostas em torno de um pátio central, integrando capela
ao centro da ala posterior e quatro torreões nos ângulos.
Possui volumes escalonados, com coberturas diferenciadas
em telhados de uma e duas águas nas galerias do pátio e de
quatro águas nos restantes corpos, de pendente acentuada,
com trinta e seis chaminés cilíndricas, em tijolo, e quatro
guaritas cilíndricas nos ângulos interiores dos torreões, com
cobertura em coruchéu piramidal. Fachadas de três pisos,
em alvenaria ao nível do piso térreo e em cantaria de grani-
1 | Vista aérea sobre
o Paço dos Duques
de Bragança.
3 | Fachadas principal
e lateral.
2 | Vista aérea sobre
o paço, vendo-se
a fachada SO.
e enquadramento.
4 | Fachada SE.
do paço e
enquadramento.
monumentos 33
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
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5 | Pátio central, após
as obras de restauro.
to, de aparelho isódomo, nos restantes, possuindo gárgulas
entre os panos murários, sendo estes rasgados por vãos de
diferente dimensão e modinatura, alguns protegidos por gradeamento, e com remates em ameias com chanfro decoradas
por flor-de-lis. Fachada principal virada a NO., de disposição
simétrica, com pano central recuado e remate destacado por
um balcão corrido, suportado por mísulas trilobadas, com
caminho de ronda que une as pequenas guaritas, dispostas
junto aos ângulos dos torreões. Piso térreo rasgado por portal em arco apontado de aduelas marcadas, encimado por
mísulas que pertenceriam a um alpendre e dez pequenas
frestas retilíneas; em cada um dos pisos superiores abrem-se seis janelas de verga reta de cruzeta; os corpos laterais
torreados são rasgados por vãos de verga reta, de forma
assimétrica: no torreão da esquerda, uma fresta e uma janela
de cruzeta por piso; no torreão da direita, cinco frestas e
uma janela de cruzeta por piso. Fachadas laterais de disposição simétrica com pano central mais baixo. A fachada
lateral NE. é percorrida por mísulas, que teriam sustentado
um alpendre corrido, e por friso de cantaria saliente, encimado por quatro vãos quadrangulares, em cada um dos panos,
sendo estes em capialço e sobrepujados por pingadouro; ao
nível do piso térreo a fachada é ritmada por dezoito frestas retilíneas, no pano central, é rasgada por vão de arco
apontado e ladeada por janelas de verga reta, de cruzeta,
gradeadas, uma do lado esquerdo e três do lado direito;
os torreões apresentam no último piso três janelas de verga reta de cruzeta encimados por friso de cantaria saliente.
A fachada lateral SO. apresenta no pano central do piso térreo portal em arco apontado, com aduelas marcadas, precedido por escadaria de lanços retos opostos, com guarda
plena em cantaria, sobrepujada por onze frestas retilíneas
desalinhadas; no piso superior abrem-se cinco janelas de
verga reta, de cruzeta, sobrepostas por janelas jacentes retilíneas; a organização dos vãos nos dois torreões é idêntica,
sendo rasgados por fresta retilínea e janela de verga reta de
cruzeta, gradeada, ao nível do piso térreo e por três janelas
de verga reta de cruzeta em cada um dos pisos superiores.
Fachada posterior virada a SE., de cinco panos, o central,
correspondente à capela, mais destacado e rasgado por três
janelas de verga reta de cruzeta, encimadas por dois janelões
em arco apontado, divididos em três lumes com bandeiras
decoradas com motivos de desenho flamejante, integrando
vitrais figurativos; é ladeado por dois corpos mais recuados
de dimensões diferentes; o do lado esquerdo, maior, possui
no extremo esquerdo portal de arco apontado, de aduelas
marcadas, com acesso por escada adossada, de um só lanço
e guarda plena
na de cantaria, sendo encimado por quatro pequenos vãos retilíneos e sobrepujado por dois vãos em arco
ligeiramente apontado, também de aduelas marcadas; no
piso superior duas janelas de verga reta de cruzeta e balcão
fechado, coberto por telhado de uma água, suportado por
mísulas quadrilobadas e rasgado por duas janelas retilíneas; um pouco mais elevado, rasga-se pequeno vão retilíneo,
em capialço; o do lado direito apresenta ao nível do piso
térreo, no extremo direito, portal em arco apontado, com
aduelas marcadas, encimado por fresta retilínea e, a ladear
o portal, três pequenos vãos de verga reta; é sobrepujado
por dois vãos em arco de volta ligeiramente apontada, de
aduelas marcadas, e, no piso superior, surge janela de verga
reta de cruzeta e um balcão idêntico ao anterior, fechado e
coberto por telhado de uma água, suportado por mísulas
quadrilobadas e rasgado por duas janelas retilíneas, sendo este encimado por pequeno vão retilíneo, em capialço.
Os torreões, ao nível do último piso, apresentam balcões corridos, suportados por mísulas quadrilobadas, encimados por
três vãos retilíneos; no torreão do lado esquerdo rasgam-se
quatro janelas de verga reta de cruzeta, duas por piso, e quatro frestas retilíneas; no torreão do lado direito abre-se uma
janela de verga reta de cruzeta, um vão quadrangular em
capialço e cinco frestas retilíneas de dimensão diferenciada.
INTERIOR: amplo pátio retangular, pavimentado a lajes de
granito com acesso direto através do portal da ala NO. As
alas são rasgadas, no piso térreo, por vãos em arco apontado, assentes em pilares e muretes, tendo em cada ala um
deles aberto, surgindo seis vãos nas alas NO. e SE. e quatro
nas NE. e SO.; no piso superior, surgem vãos arquitravados,
sustentados por colunelos toscanos. No último piso, a ala
NO. apresenta-se rasgada por sete janelas de verga reta de
cruzeta e a ala SE. por quatro balcões apoiados em mísulas trilobadas, sendo dois de menor dimensão, cobertos por
pequeno telheiro de uma água e dois corridos; rasgam-se
134
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
monumentos 33dossiê
te, surgem as armas dos Bragança e dos Lencastre, Santo
António, São Francisco, o Crucificado, São Jorge, Nossa Senhora da Oliveira e Santiago.
6 | Portal da capela.
7 | Interior da capela.
ainda de forma assimétrica seis pequenos vãos retilíneos,
em capialço, encimados por friso saliente. A organização é
marcada, no piso térreo, por inúmeras salas separadas por
estreitos corredores perpendiculares às fachadas, na ala da
fachada principal localizam-se as áreas de receção do visitante e de serviços, a caixa de escadas de quatro lanços,
em granito e o elevador. As salas são contíguas, exibindo
paredes em granito, pavimento em lajes de cantaria, no piso
térreo, e mosaico cerâmico, no superior, tetos de madeira
com o travejamento à vista, alguns apresentando pinturas
vegetalistas. O piso superior, correspondente ao percurso
museológico, é marcado pelos amplos salões, com lareiras
de pedra, nomeadamente, o Salão de Banquetes e o Salão
dos Paços Perdidos, de grande pé-direito, com teto do tipo
quilha de barco invertida, em madeira de castanho. Na ala
SE., rasga-se ao centro uma tribuna, enquadrada por grande
arco de volta perfeita apoiado nas colunas de pedra com
capitéis lisos, coberta por estrutura em madeira de duas
águas. Fronteiro à tribuna, e numa posição elevada, rasga-se
o portal da capela, de quatro arquivoltas em arco apontado,
com a arquivolta exterior envolvida por friso decorado por
elementos geométricos em ponta de diamante, assentes em
colunas de mármore com capitéis de decoração vegetalista,
encimado por brasão do 1.º
º duque de Bragança, sendo precedido por escadaria; a ladear a capela surgem salas contíguas *2. CAPELA de nave única com pavimento e teto de
madeira com o travejamento à vista. Sobre o portal de verga
reta situa-se o coro-alto, estreito, de madeira, com guarda
vazada, e acesso aos balcões da fachada exterior e de ligação
aos corredores das restantes alas. Presbitério sobrelevado,
demarcado por guarda de madeira vazada por arcos polilobados, tendo nas paredes laterais tribunas de madeira, de
dois registos, encimadas por cornija, e abertas por arcaria
trilobada flamejante, com guarda plena de madeira. Parede
testeira com altar paralelepipédico de madeira, encimado pelas janelas de desenho flamejante, onde surge, em posição
elevada, peanha com a imagem da Virgem. O último piso
da ala da fachada principal, destinado à residência oficial
do presidente da República, é composto por cinco quartos
de dormir com instalações sanitárias privativas e por duas
suites nos extremos da ala, correspondentes aos torreões.
DESCRIÇÃO COMPLEMENTAR: Os VITRAIS da capela representam, do lado esquerdo, D. Afonso Henriques, o conde
de Barcelos e D. Constança, e, do lado direito, D. Filipa de
Lencastre, D. João I e D. Nuno Álvares Pereira. Superiormen-
PATRIMÓNIO MÓVEL: Os espaços interiores encontram-se
ricamente decorados com peças de mobiliário português,
nomeadamente contadores indo-portugueses e hispano-árabes; diversas arcas; móveis holandeses dos sécs. 17 e 18;
tapeçarias flamengas do séc. 18, executadas segundo cartões
de Pieter Paul Rubens, cujos temas são episódios de um cônônsul romano; quatro cópias das tapeçarias de Pastrana, representando a conquista de Arzila e a chegada dos portugueses
a Ceuta; tapeçarias de Gobelins; tapetes árabes; panos que
pertenceram à Inquisição de Coimbra; dois quadros do pintor
italiano Recco; dois quadros com naturezas-mortas de Josefa
de Óbidos; uma coleção de armas reunidas pelo visconde de
Pindela, datadas dos sécs. 15 ao 18, nomeadamente armas
brancas e de fogo, assim como diversas peças de armaduras;
várias imagens religiosas, uma das quais em pedra de Ançã;
coleção de porcelanas da Companhia das Índias e Faianças
das Fábricas do Prado, Viana, Rocha Soares e Rato.
UTILIZAÇÃO INICIAL: Residencial: paço senhorial
UTILIZAÇÃO ATUAL: Residencial: residência oficial do presi-
dente da República / Cultural: museu (horários: todos os dias
das 10:00 às 18:00, última admissão às 17:30, encerra: 1 de
janeiro, Domingo de Páscoa, 1.º de maio e 25 de dezembro)
PROPRIEDADE: Pública: estatal
PROPRIETÁRIO: Estado Português (Direção-Geral do Te-
souro e Finanças)
AFETAÇÃO: DRCNorte, Decreto-Lei n.º 114/2012, DR, 1.ª série, n.º 102, de 25 maio 2012
8 | Espaço interior
do Paço dos Duques,
salão decorado com
peças de mobiliário
e tapeçarias.
9 | Espaço interior,
salão decorado com
peças de mobiliário
e tapeçarias.
monumentos 33
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
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11 | Pátio central
do edifício do
Paço dos Duques,
enquanto serviu
de aquartelamento
ao Exército [1935].
10 | Edifício do
Paço dos Duques,
enquanto serviu de
aquartelamento ao
Exército [1935].
UTENTE: Proprietário / Público
ÉPOCA CONSTRUÇÃO: Sécs. 15 / 16 / 20
ARQUITETO/CONSTRUTOR/AUTOR: ARQUITETOS: Alberto da Silva Bessa (1948); Francisco de Azeredo (1965);
Joaquim Areal (1942); Luís Benavente (1955); Mário Barbosa (1947); Mestre Antom (atr. 1420); Rogério de Azevedo
(1936). ARQUITETO PAISAGISTA: António Viana Barreto
(1957). CARPINTEIROS: Afonso Anes (1490); João Domingues (1490). ESCULTOR: Manuel Ventura Teixeira Lopes
(1958). PINTORES: António Costa (1943); António Lino
(1958).
CRONOLOGIA: 1420-1422 — início de construção do paço,
data associada às cláusulas do contrato do segundo casamento do conde de Barcelos, D. Afonso, filho bastardo de
D. João I, com D. Constança de Noronha, no regresso de
missões diplomáticas nas cortes de França, Veneza, Aragão
e Castela; segundo alguns autores, o projeto é entregue ao
mestre francês Antom *3; 1438, 31 janeiro — data provável
da ocupação do paço; 1442 — o paço estaria ainda em construção, quando o regente D. Pedro aqui se hospedou e conferiu ao seu meio-irmão o título de 1.º duque de Bragança;
1461 — as obras do paço pararam após a morte de D. Afonso, sucedendo-lhe o seu filho D. Fernando I, 2.º duque de
Bragança; D. Constança de Noronha, a viúva, permaneceu
no paço e continuou a receber as rendas de Guimarães; o
paço foi utilizado como um espaço de acolhimento de
doentes e necessitados; 1464 — foi concedido o título de
1.º conde de Guimarães, pelo rei D. Afonso V, a D. Fernando II,
filho do duque de Bragança; 1475 — o título de conde de
Guimarães foi renovado por D. Afonso V para duque de Guimarães; 1478, 1 abril — falecimento do 2.º
º duque de Bragança, sucedendo-lhe o seu filho D. Fernando II, 3.º duque
de Bragança, que terá impulsionado a continuação das obras
no paço; 1480, 26 janeiro — falecimento de D. Constança de
Noronha no paço; 1483 — o duque D. Fernando II foi acusado de traição ao rei D. João II, tendo sido confiscados todos
os bens da Casa de Bragança, tornando-se o paço propriedade da Casa Real; 20 junho — falecimento do duque D. Fernando II; 1490 — por ordem do rei D. João II, o paço continuou a receber obras de manutenção, como o evidencia a
contratação do carpinteiro João Domingues; 20 dezembro
— carta dando conta da renúncia do carpinteiro João Do-
mingues, em favor do seu genro Afonso Anes; 1496 — os
bens da Casa de Bragança foram novamente restituídos ao
duque D. Jaime I e confirmada a doação dos padroados de
Guimarães, o que vem comprovar a tese de Custódio Vieira
da Silva que teria sido D. Jaime, 4.º duque de Bragança, a
construir o terceiro piso da fachada posterior do paço, interligando os dois torreões que ladeiam a capela; séc. 16, início
— o paço foi encerrado, devido à deslocação do paço ducal
para Vila Viçosa (v. IPA.0002750); 1536, 21 agosto — o ducado de Guimarães foi dado como dote de casamento a
D. Isabel, irmã do duque D. Teodósio; 1611, 20 outubro — as
freiras clarissas solicitaram pedra da cerca do paço para efetuar arranjos no seu mosteiro; 1616 — início do processo de
degradação do paço com a doação de Guimarães ao castelhano D. Diogo da Sylva e Mendonza, durante a dinastia filipina; 1666 — os frades capuchos receberam autorização do
rei D. Afonso VI e do 10.º
º duque de Bragança para utilizarem pedra das paredes interiores do paço para a construção
do Convento da Piedade; 31 janeiro — a Câmara insurgiu-se
contra o facto de se estar a arruinar o paço; 4 fevereiro —
auto de vistoria e avaliação do paço pela Casa da Câmara
para informar o rei sobre a urgência e a necessidade das
obras de conservação do paço *4; a Câmara propôs entregar
dinheiro aos frades capuchos e ceder a pedra da barbacã do
Castelo de Guimarães, em troca da pedra do paço; 1667,
30 julho — através de requerimento da Câmara, foi pedido
ao juiz de fora para averiguar quem roubava a pedra junto à
porta de Santa Cruz (...) que se vai arruinando e dos Paços
pelo prejuízo que se segue à fortificação dos muros e obra real
dos mesmos Paços dos Duques (...); 1672, 26 novembro —
foi notificado Pedro Vaz de Sampaio, mestre-pedreiro, para
consertar a porta do paço, repondo com juntadoiros, visto
que a mesma estava já arruinada; 1692 — o padre Torcato
Peixoto de Azevedo refere nas suas Memórias, que o paço
nunca foi concluído; séc. 18 — o padre António Caetano de
Sousa menciona que o paço inicialmente havia sido guarnecido por rico mobiliário, tapeçarias, uma biblioteca e diversas antiguidades vindas de fora do reino; 1706 — o padre
António de Carvalho da Costa referiu, na sua Corografia Portuguesa, que o paço não havia sido terminado; 1761, 29 dezembro — documento transcrito em 1900 por Albano Bellino, com a medição do paço em planta e alçados, respetivas
confrontações, sem referência alguma ao pátio central; 1771
— Frei Manuel da Mealhada refere-se ao inacabado Paço dos
Duques; 1807 — a parte habitável do paço foi coberta de
136
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
monumentos 33dossiê
12 | Fachada NO.,
durante as obras
da DGEMN.
e Paço dos Duques para a construção de um parque; 1933,
26 setembro — o diretor-conservador do Museu Alberto
Sampaio, Dr. Alfredo Guimarães, pediu a Oliveira Salazar
que visitasse o arruinado paço, dando-se assim início ao processo de reconstrução do edifício; 1935, 31 dezembro — o
quartel militar abandona o paço; 1936 — o arquiteto Rogério
de Azevedo apresentou o projeto de restauro, referindo que
as obras ainda não tinham começado por falta de dotação
orçamental, faltava ainda a decisão relativamente a alguns
pormenores de fachadas e pátio e o programa definitivo para
a organização espacial; na altura pretendia-se instalar no
edifício os serviços culturais da Câmara Municipal de Guimarães (museu, biblioteca e arquivo); 1937 — início dos
trabalhos mais urgentes, sob a orientação do arquiteto Rogério de Azevedo; 1939 — o pátio interior do paço foi objeto de
vários estudos, por parte do arquiteto Rogério de Azevedo,
tendo sido adotado o da construção de uma escada monumental no centro do pátio de acesso à capela; 1940 — Rogério de Azevedo abandona a direção da obra; a escada monumental encontrava-se em construção; a estátua de D. Afonso
Henriques foi transferida para o local atual, por decisão do
Governo e da Câmara; 1942 — o arquiteto Joaquim Areal
deu continuidade aos trabalhos iniciados no paço; pediu autorização para efetuar uma viagem de estudo a Espanha, a
qual não lhe foi concedida; 1943 — novo pedido de viagem
de estudo por parte do arquiteto Joaquim Areal, em que este
alega dificuldades para a solução a adotar para os tetos e
outras decorações, para a qual teve a contribuição do pintor
António Costa para os motivos decorativos dos tetos e de
Guilherme Camarinha para o estudo dos vitrais da capela,
mas este último não foi aprovado superiormente; foram levadas do Mosteiro de São Miguel de Refojos (v. IPA.00001049),
em Cabeceiras de Basto, as grades do adro, para reaproveitamento de material nos restauros do paço; 1948 — o arquiteto Alberto da Silva Bessa assume a direção dos trabalhos do
paço; demolição da escada monumental; 1953 — o general
Craveiro Lopes usou o paço para atos oficiais, nas comemorações do 1.º centenário da elevação de Guimarães a cidade;
1954 — após visita ao paço, o ministro das Obras Públicas
13 | Fachada NE.,
durante as obras
da DGEMN.
14 | Pátio central,
durante as obras da
DGEMN, construção
dos arcos.
15 | Pátio central,
durante as obras da
DGEMN, construção
da escadaria.
telha pelo almoxarife Jerónimo de Matos Feijó, para instalação do Quartel do Regimento de Infantaria 20; 1819, 8 janeiro — conclusão de diversas obras; 1880, 30 dezembro — foi
considerado monumento histórico de 2.ª classe pela Real
Associação de Arquitectos Civis e Arqueólogos Portugueses;
1881 — o padre António José Ferreira Caldas referiu-se ao
paço, como um edifício arruinado e a servir de quartel, tendo por lá passado diversos regimentos e batalhões; foi efetuada uma descrição do que existia, nomeadamente o grande
pátio interior, a fachada principal só com um piso e as laterais e posterior mais elevadas, o portal da capela, os cachorros que suportariam as galerias do pátio, os janelões flamejantes da capela e as diversas chaminés de tijolo; 1886
— Vilhena Barbosa descreveu o paço, mencionando os cachorros da fachada lateral NE. que suportariam uma alpendrada; 1914 — Mariano Felgueira lançou a ideia da expropriação da zona envolvente ao Castelo, Capela de São Miguel
monumentos 33
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
137
de alguns trabalhos; 1992, 01 junho — o imóvel foi afeto ao
Instituto Português do Património Arquitetónico, pelo
Decreto-Lei 106F/92, DR, 1.ª série A, n.º 126; 1993 —
abertura ao público da Sala-Museu José de Guimarães;
2007, 29 março — o imóvel foi afeto ao Instituto dos Museus e Conservação, IP pelo Decreto-Lei n.º 97/2007, DR,
1.ª série, n.º 63.
16 | Fachada NO.,
depois das obras
da DGEMN.
17 | Pátio interior,
depois das obras
da DGEMN.
determinou o aceleramento das obras e a execução do estudo final para as coberturas e para a residência presidencial;
deu autorização para a viagem de estudo; 1955 — o arquiteto Luís Benavente fez uma viagem oficial à região do Loire,
com o objetivo de estudar os seus palácios e apresentar o
programa final para o paço, nomeadamente para as coberturas, pátio e interior da capela; visita oficial do general Craveiro
Lopes com o seu homólogo brasileiro João Café Filho; 1956
— as soluções propostas pelo arquiteto Luís Benavente foram aprovadas pelo ministro Arantes e Oliveira; 1957 — execução de arranjo paisagístico da envolvente do Castelo, Igreja de São Miguel e Paço dos Duques, de forma a valorizar os
monumentos e a criar um parque público, segundo o projeto
do arquiteto paisagista António Viana Barreto; o arquiteto
Mário Barbosa apresentou um estudo para as tribunas da
capela; 1958 — elaboração de estudos para a execução do
brasão para o frontão da capela do paço pelo escultor Manuel Ventura Teixeira Lopes e para a execução dos vitrais da
capela pelo pintor António Lino; 1959 — foi nomeada uma
Comissão de Mobiliário para dotar os espaços do paço de
mobiliário e decoração apropriada à sua funcionalidade de
residência presidencial e museológica; 24 junho — inauguração do paço como residência oficial da Presidência da República; 26 agosto — inauguração como museu; 1960 — o
monumento foi aberto ao público, faltando ainda a execução
TIPOLOGIA: Arquitetura residencial, medieval e revivalista. Paço de fundação medieval, de planta quadrangular,
formada por quatro alas dispostas em torno de um pátio
central, integrando capela ao centro da ala posterior e quatro torreões nos ângulos. Tenta reproduzir o modus vivendi
da nobreza europeia que, para alguns autores, seria inspirada em modelos de residências fortificadas, italiana, flamenga e francesa *5. Segundo Custódio Vieira da Silva, são
evidentes as semelhanças formais e construtivas entre o
Paço dos Duques de Guimarães e o Paço
ço dos Reis de Maiorca, em Perpignan, na organização do espaço em torno de
um pátio interior com capela no centro do corpo oposto à
entrada principal e as alas laterais a albergar as dependências maiores; assim como, o recurso às janelas retangulares
cruzetadas, de influência francesa, difundida em diversos
palácios a partir do séc. 14. Apresenta ainda semelhanças com o Paço Ducal de Barcelos (v. IPA.00001925), com
obras quase simultâneas e também mandado construir por
D. Afonso, nomeadamente nas janelas retangulares cruzetadas, nas altas chaminés que coroam os remates e nas
coberturas de grande inclinação e remates em ameias, que
possuía originalmente como é visível no desenho de 1509
de Duarte de Armas. O interior organiza-se em torno de
um amplo pátio, percorrido por galerias em arco apontado
no piso térreo e em colunata no piso superior. Fronteira à
entrada principal e ao nível do andar nobre surge a capela,
com portal em arco apontado de arquivoltas sobre colunelos, rasgada na parede testeira por dois grandes vãos em
arco apontado, de três lumes e bandeiras decoradas com
motivos de desenho flamejante, e com vitrais figurativos
que iluminam o espaço de decoração neomedieval. A ligação entre os pisos faz-se por escadas de caracol nos torreões e escadas de lanços nas quatro alas. Estas organizam-se em amplas salas comunicantes, algumas com lareira em
pedra e tetos revestidos a madeira.
18 | Janela da capela,
depois das obras
da DGEMN.
19 | Janela de cruzeta,
depois das obras
da DGEMN.
138
20 | Alçado NO., antes
das obras de restauro.
21 | Alçado NO.,
depois das obras
de restauro.
22 | Alçado SE., antes
das obras de restauro.
23 | Alçado SE.,
depois das obras
de restauro.
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
monumentos 33dossiê
monumentos 33
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
139
24 | Alçado NE., antes
das obras de restauro.
25 | Alçado NE.,
depois das obras
de restauro.
26 | Corte pelo pátio
interior, antes das
obras de restauro.
27 | Corte pelo pátio
interior, depois
das obras de restauro.
140
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
monumentos 33dossiê
CARACTERÍSTICAS PARTICULARES: Paço medieval de
grande dimensão, bastante transformado pela ação dos vários intervenientes que o ocuparam ao longo dos tempos,
já que teve a construção iniciada em 1420-1422 e prolongada até finais do séc. 15, início do séc. 16, altura provável
em que se elevou o número de pisos e se fez o remate em
ameias, posteriormente devoluto e ocupado como quartel,
entre o início do séc. 19 e 1935, altura em que se começa
a desenhar o projeto de restauro da DGEMN. Constitui um
exemplar de arquitetura civil único no país, onde a monumentalidade se associa ao conforto que a época exigia, como
é visível pelo grande número de lareiras de aquecimento coroadas por altas chaminés em tijolo, mesmo a capela já possuía aquecimento, nas laterais do corpo virado a NE. com
as duas longas chaminés adossadas; pelas inúmeras escadas de serviço e pelas condutas de escoamento das águas
pluviais inseridas nas paredes. É de destacar a influência
das construções militares na fachada posterior, com dois
pequenos balcões fechados nos corpos laterais da capela e
dois corridos nos torreões, todos sustentados por mísulas
escalonadas, que se procurou reproduzir no pano central da
fachada principal com balcão corrido. A grandeza dos paços
construídos em Guimarães e Barcelos pelo duque de Bragança e sobretudo a dimensão e o lugar central ocupado pela
capela no de Guimarães reforça a importância que a Casa
de Bragança detinha, competindo com o próprio monarca.
O paço sofreu uma das maiores e mais profundas obras de
restauro, levada a cabo pela DGEMN, sob a orientação do arquiteto Rogério de Azevedo *6, com o objetivo de recriar um
modelo tipológico de residência nobre europeia, dos séculos
15 e 16, dotando o paço de uma simetria que não existia originalmente ao nível das fachadas, dos quatro torreões, ainda
que a planta original confirme o tratamento igual que todos
os muros apresentam até um determinado nível, indicando que o paço foi idealizado como um grande quadrilátero;
no coroamento de ameias em todos os muros (coroamento
que foi baseado no achado de um único exemplar primitivo
datado do séc. 16), na forte pendente das coberturas e na
organização do espaço interior em galeria no primeiro piso
e a sua correspondente térrea, em todas as faces, apesar das
respetivas fundações apenas conservarem os orifícios correspondentes ao encaixe das vigas de suporte do pavimento
da galeria nas três faces, excetuando a do corpo principal.
Aliás, a fachada principal foi a mais intervencionada, pois
era a que detinha os dois pisos menos elevados e não possuía
torreão no lado esquerdo; em contrapartida, a ala menos alterada, não só ao nível dos volumes, como de fachadas, foi a
posterior, porque era a mais bem conservada até à altura do
restauro. O projeto de restauro do Paço foi planeado como
um todo, tendo até a sua decoração sido objeto de estudo,
para o qual se constituiu uma Comissão de Mobiliário com
a atribuição de recriar o ambiente das residências nobres,
com peças de mobiliário e obras de arte dos sécs. 17 e 18,
utilizadas com uma intencionalidade político-ideológica, nomeadamente visível na iconografia dos vitrais *7 e no brasão
que coroa o portal da capela.
DADOS TÉCNICOS: Sistema estrutural de paredes portantes.
MATERIAIS: Estrutura de alvenaria e cantaria, frisos, cor-
nijas, ameias, mísulas, balcões, guardas, gárgulas, escadas,
elementos decorativos e pavimentos interiores em granito;
betão armado na estrutura, tetos e pavimentos; gradeamentos das janelas em ferro; portas, janelas, coberturas,
pavimentos interiores, mobiliário, coro-alto, estrutura das
tribunas e bancos da capela em madeira; chaminés em tijolo de burro; diversos pavimentos interiores em mosaico
cerâmico; vitrais e vidros simples nas janelas; coberturas
em telha.
CONSERVAÇÃO COBERTURA EXTERIOR: Bom
CONSERVAÇÃO ESTRUTURA: Bom
CONSERVAÇÃO ELEMENTOS SECUNDÁRIOS: Bom
CONSERVAÇÃO COBERTURA INTERIOR: Bom
CONSERVAÇÃO PAVIMENTOS: Bom
CONSERVAÇÃO DECORAÇÃO: Bom
CONSERVAÇÃO VEGETAÇÃO: Razoável
PERIGOS POTENCIAIS: Infiltração de humidade
BIBLIOGRAFIA: AZEREDO, Francisco de — Casas Senhoriais Portuguesas: Roteiro da Viagem de Estudos do IBI. [s.l.]:
Internationales Burgen Institut, 1986; AZEVEDO, Rogério
de — Despropósito a Propósito do Paço dos Duques de Guimarães: Epístola ao Sr. Dr. Alfredo Pimenta. Porto: Livraria
Fernando Machado, 1942; AZEVEDO, Rogério de — O Paço
dos Duques de Guimarães: Preâmbulo à Memória do Projecto de Restauro. Porto: Livraria Fernando Machado, 1942;
BARBOSA, Ignácio de Vilhena — Monumentos de Portugal
Historicos, Artisticos e Archeologicos. Lisboa, 1886; BELINO,
Albano — Archeologia Christã: Descripção Historica de todas
as Egrejas, Capellas, Oratorios, Cruzeiros e outros Monumentos de Braga e Guimarães. Lisboa: Empreza da Historia de
Portugal; Sociedade Editora, 1900; BRITO, Maria Mónica —
Paço dos Duques de Bragança em Guimarães: Metamorfoses
da Imagem na Época Contemporânea. Lisboa: 2003, dissertação de mestrado em Arte, Património e Restauro, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, texto
policopiado; CACHADA, Armindo Guimarães — Guimarães:
Roteiro Turístico. Guimarães: Zona Turismo de Guimarães,
1992; CHICÓ, Mário Tavares — A Arquitectura Gótica em
Portugal. 3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1981; COSTA,
António Carvalho da — Corografia Portugueza e Descriçam
Topografica do Famoso Reyno de Portugal... Braga: Typ. de
Domingos Gonçalves Correia, 1868, tomo I; DO ESTÁDIO
Nacional ao Jardim Gulbenkian: Francisco Caldeira Cabral
e a Primeira Geração de Arquitectos Paisagistas, 1940-1970.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003; FERNANDES,
José Manuel (coord.); JANEIRO, Maria de Lurdes (coord.)
— Luís Benavente: Arquitecto. Lisboa: IAN/TT, 1997, catálogo da exposição; FORTE, Joaquim — “Encontrada no castelo estrutura edificada”. Jornal de Notícias Minho. 18 jan.
2004, p. 8; GIL, Júlio — Os Mais Belos Palácios de Portugal. Lisboa: Verbo, 1992; GUIMARÃES do Passado e do Presente. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães, 2009;
GUIMARÃES, Alfredo — “Tapeçarias”. Revista Prisma, n.º 4,
1938; LEMOS, Rui — “Paço dos Duques de Bragança vai entrar em obras”. Diário do Minho. 22 jan. 2007; PAÇO dos
Duques de Bragança, Guimarães. Boletim da Direção-Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais. [Lisboa]: Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1960, vol. 102;
PATRIMONIA: Identidade, Ciências Sociais e Fruição Cultural.
Cascais: PAPCFT, 1996; RELATÓRIO da Actividade do Ministério no Ano de 1956. Lisboa: Ministério das Obras Públicas,
monumentos 33
1957; RELATÓRIO da Actividade do Ministério dos Anos de
1957 e 1958. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, 1959, 1
vol.; RELATÓRIO da Actividade do Ministério dos Anos de
1959. Lisboa: Ministério das Obras Públicas, 1960. 1 vol.;
RELATÓRIO da Actividade do Ministério no Ano de 1962 /
Ministério das Obras Públicas. Lisboa: Ministério das Obras
Públicas, 1963. 2 vols.; SILVA, José Custódio Vieira da —
Paços Medievais Portugueses. Lisboa: IPPAR, 1995; TESOUROS Artísticos de Portugal. Lisboa: Reader’s Digest, 1988;
TOMÉ, Miguel — Património e Restauro em Portugal: 1920-1995. 1.ª ed. Porto: FAUP Publicações, 2002.
DOCUMENTAÇÃO GRÁFICA: IHRU: DGEMN/DREMN,
DGEMN/DREL, DGEMN/DRML, DGEMN/DSMN, DGEMN/
CAM, DGEMN/DSID; Arquivo pessoal António Viana Barreto; Exército Português: Direção de Infra-Estruturas/GEAM:
Projeto SIDcarta
DOCUMENTAÇÃO FOTOGRÁFICA: IHRU: DGEMN/
DREMN, DGEMN/DSID, DGEMN/DREML, SIPA
DOCUMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA: IHRU: DGEMN/
DREMN, DGEMN/CAM; DGEMN/DSARH; DGEMN/DSMN;
Câmara Municipal de Guimarães, 1666, Livro 1, p. 132; Arquivo Municipal de Guimarães, São Miguel do Castelo, 1761,
Maço n.º 228, doc. 49.
INTERVENÇÃO REALIZADA: DGEMN: 1937 / 1959 — diversas obras de restauro e reconstrução: demolição de construções realizadas na época em que o paço esteve adaptado
a quartel; aquisição e demolição do casario circundante ao
paço e do que se encontrava adossado à muralha contígua à
fachada posterior; conclusão da fachada principal e da fachada voltada ao castelo a partir do primeiro piso; recalcamento profundo dos alicerces das paredes exteriores do paço;
consolidação de paredes e elevação dos seus coroamentos;
arranjo das cantarias das janelas e construção dos mainéis
em falta; execução e encastramento de todos os pavimentos
vigados de betão armado nas caixas primitivas; construção
do pátio, incluindo arcarias e galeria superior, segundo os
elementos encontrados; construção de adarves, varandins
e ameias; execução das chaminés em falta correspondentes
às diversas lareiras existentes; cobertura dos pavimentos de
betão com mosaico cerâmico; execução das armações dos
telhados em madeira de carvalho e sua cobertura em telha
idêntica à que foi encontrada nas escavações; revestimentos
de todas as vigas e tetos de betão armado com madeira de
castanho; arranjo geral da capela, incluindo execução de tribunas; construção de portas, portadas, caixilhos das janelas;
execução de vitrais, armados em chumbo e sua colocação
nos caixilhos das janelas; instalação dos serviços de cozinha, copa e monta-pratos de comunicações; execução das
redes de saneamento, distribuição de água, eletricidade e
para-raios; montagem de instalações sanitárias; execução de
uma rede de canalizações exteriores para escoamento das
águas pluviais dos jardins; ajardinamento dos terrenos envolventes do edifício; arranjos interiores do paço: seleção
de mobiliário e peças de arte, datadas sobretudo dos sécs.
17 e 18 para decoração dos espaços; 1960 — conclusão das
obras de restauro; 1961 / 1962 — instalação elétrica e rede
de águas quentes e frias; DGEMN / CMG: 1962 — iluminação exterior do paço; 1963 — trabalhos de esgotos das águas
pluviais dos telhados do corpo S.; reparação dos telhados;
1965 — trabalhos diversos de adaptação no torreão NE. para
habitação do conservador; reparação dos telhados; benefi-
INVENTÁRIO DO PATRIMÓNIO ARQUITECTÓNICO
ciações interiores e eliminação de focos de térmitas; 1966
— montagem do elevador; continuação da desinfestação de
madeiras; limpeza e enceramento de tetos e portas, instalação elétrica; 1967 — reparação de coberturas; abertura e
tratamento do rasgo nas paredes para a manga de cheiros
e trabalhos complementares; construção de apanha-fumos
na cozinha; 1969 — pintura das dependências destinadas
ao conservador; conservações diversas; instalação elétrica;
1970 — conservação interior e exterior em diversas zonas do
paço; tratamento antitérmitas; conservação e restauro de vitrais; instalação elétrica; 1971 / 1972 — continuação de conservação interior e exterior; 1975 — ligeira reparação do telhado da ala nascente do pátio; 1977 — reparação de caleiras
e vitrais; colocação de marcos de água; 1978 — reparação de
caleiras e vitrais; conservação das instalações elétricas e da
rede de águas quentes e frias; 1979 — reparação de vitrais,
coberturas e pinturas interiores; 1980 — desinfeção de tetos
e reparação de coberturas; 1982 / 1983 — conservação diversa; 1985 / 1986 — beneficiação de canalizações e obras
de pintor; IPPAR: 1992 — recuperação de coberturas; recuperação de caixilharias exteriores; 1996 / 1999 — reparações
gerais, obras de conservação e desinfestação, recuperação e
restauro das janelas e vitrais e remodelação da ala residencial; 2006 — recuperação e valorização do Paço dos Duques:
levantamentos topográficos e arquitetónicos, projeto e produção de sinalética interior, instalação da loja e remodelação
da zona de acolhimento; restauro do património móvel e
integrado; 2007 — reparação e reforço das portas exteriores;
obras de reparação exterior e envolvente.
INTERVENÇÃO NECESSÁRIA: obras gerais de manutenção.
OBSERVAÇÕES: *1 — Trata-se de uma Zona Especial de Proteção Conjunta do Castelo de Guimarães (v. IPA.0001060),
Igreja de São Miguel (v. IPA.00001248) e Paço dos Duques de
Bragança (v. IPA00001139). *2 — Antigas dependências do
duque e da duquesa. *3 — Em 1460, foi testemunha de um
aluguer de uma casa feita pelo Cabido da Colegiada de Nossa
Senhora da Oliveira, o mestre de pedraria Antom, sendo esta
a única referência a este arquiteto.. *4 — A comissão de avaliação da Casa da Câmara fez-se acompanhar pelos mestres-pedreiros, Gonçalo Vaz de Sampaio e Pedro Lopes e pelo
arquiteto António de Andrade. *5 — Ao nível da influência construtiva, este paço, teve várias opiniões: para Rogério de Azevedo, a existência de um pátio interior formado
pelo quadrilátero regular revela uma influência italiana; para
Ilídio Araújo, essa mesma razão leva-o a afirmar que segue
os moldes flamengos; para Custódio Vieira da Silva é indiscutível a relação com a transformação que em França, as
residências régias e da nobreza estavam a sofrer, os castelos
começavam a adaptar-se a residências com um maior número de divisões e maior conforto. *6 — Desde o início que esta
intervenção foi fortemente criticada, primeiro por Marques
da Silva, no Jornal de Noticias de Guimarães, em 1934: (...)
completar o que se não conhece, inventando, é atentar contra
a arte, contra a verdade histórica (...); mais tarde, em 1942,
Alfredo Pimenta escreve no Correio do Minho, criticando a
solução dos telhados e a sua aleatória imagem de ascendência nórdica, acrescentando ainda que o critério de reconstituição do edifício, considerado um exemplo único no país,
deveria impossibilitá-lo de um restauro por analogia. *7 —
Os vitrais da capela foram realizados por António Lino, após
a rejeição do primeiro projeto de Guilherme Camarinha.
AUTOR DATA: Sónia Basto 2013.
141
142
VÁRIA
monumentos 33
Uma arquitetura
de representação adaptada
aos trópicos no SIPA
A propósito do projeto Gabinetes Coloniais
de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónicas
TIAGO BORGES LOURENÇO
(...) Podemos aspirar a que os edifícios públicos
sejam objetos de referência e de significação para os
cidadãos, focos da sua identificação coletiva, afirmações de cultura. (...) Isto é, deverão distinguir-se
dos restantes edifícios que constituem o tecido da
cidade (...), em suma, contribuir para a qualificação
do espaço público (...).
João Paulo Martins1
O SIPA e o projeto Gabinetes Coloniais
de Urbanização: Cultura e Prática Arquitetónicas
Criado em 1992, pela Direção-Geral dos Edifícios e
Monumentos Nacionais (DGEMN) e atualmente inserido no Instituto da Habitação e da Reabilitação
Urbana (IHRU), o Sistema de Informação para o Património Arquitetónico (SIPA) constitui-se como o
(...) mais extenso e representativo conjunto de recursos
de informação e documentação especializados e inter-relacionados sobre arquitetura e sobre património
arquitetónico, urbanístico e paisagístico de relevância nacional, regional e local (...)2. Apresenta como
objetivos principais o apoio à definição de políticas
e estratégias referentes ao ordenamento do território
e à qualificação e reabilitação urbanas; a promoção,
a conservação e o acesso à informação e documentação sobre o património arquitetónico e urbanístico de
origem portuguesa, potenciando o desempenho dos
agentes destes sectores, fomentando as investigações
científica e técnica nas suas áreas de ação e consciencializando para a necessidade da salvaguarda do património.
Disponível ao público através de www.monumentos.pt e presencialmente no Forte de Sacavém, o
SIPA integra, no seu sector Informação, uma base
de dados com cerca de 33 mil registos de inventário contendo informação textual e iconográfica sobre edifícios e estruturas construídas, conjuntos
urbanos, sítios e paisagens em contexto português.
Encerrando (...) o mais importante repositório analógico e digital de documentação autêntica e arquivos de arquitetura e artes associadas do país (...)3,
por sua vez, o sector Documentação do SIPA é composto maioritariamente pelos fundos institucionais
gerados no quadro dos serviços da antiga DGEMN
(principalmente documentação relativa à construção e à remodelação de edifícios de cariz público,
bem como à conservação e reabilitação de imóveis e conjuntos classificados) e por espólios de
dezenas de arquitetos e artistas portugueses, com
obra maioritariamente desenvolvida no século XX.
A forte correlação entre ambos os sectores (Informação e Documentação), resultante de uma abordagem
integrada à gestão de ambos, estabelece-se, assim,
como uma das suas principais características.
No triénio 2010-2013, o SIPA constituiu-se como instituição participante do projeto de investigação intitulado Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura e
Prática Arquitetónica, financiado pela Fundação para
a Ciência e Tecnologia (FCT), em parceria com o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
(ISCTE/IUL), entidade proponente, e com o Instituto
de Investigação Científica e Tropical (IICT), por intermédio do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU).
Assentando na análise, inventariação e catalogação
do trabalho realizado pelos sucessivos gabinetes co-
A participação do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana
(IHRU) no projeto Gabinetes Coloniais de Urbanização: Cultura
e Prática Arquitetónicas possibilitou a constituição, dentro da base
de dados SIPA, de um núcleo de registos alusivo ao património
português novecentista nos antigos territórios ultramarinos
portugueses, com especial destaque para a produção do organismo
estatal em análise. Apresentando o projeto e o trabalho
desenvolvido, o presente artigo procura focar as especificidades
de um estudo com esta natureza, as metodologias necessárias à sua
concretização e as perspetivas de futuro que com ele se abrem.
monumentos 33
1 | As Áfricas
de Possolo por
Pancho Guedes,
cartaz do encontro
realizado no Forte
de Sacavém
a 16 de março
de 2011.
VÁRIA
lares e de saúde, os edifícios públicos administrativos,
as habitações unifamiliares destinadas a funcionários
públicos e, de forma pontual, as construções de caráter religioso8. Ao longo das três décadas (1944-1974)
que medeiam o início e o fim da produção dos gabinetes, foram elaborados cerca de oitocentos projetos,
ainda que se deva ressalvar que uma larga percentagem destes não tenha sido concretizada.
O estudo de um organismo estatal — e principalmente o conhecimento dos projetos elaborados pelos seus técnicos — que visava, de forma genérica,
o planeamento e a construção de edifícios de caráter
público constituiu-se como um dos principais fatores
de ancoragem do SIPA a este projeto de investigação9.
A sua participação num estudo desta natureza, em
colaboração com instituições de renome na área da
investigação em arquitetura e urbanismo, permitiu
a produção e a partilha de conhecimento e de informação, numa importante adição de saber científico
ao saber técnico. Estabeleceu-se, igualmente, como a
afirmação e a concretização de uma declaração de interesses relativamente ao estudo e à inventariação do
loniais de urbanização entre 1944-1974, o projeto de
investigação constituiu-se como o primeiro estudo sistemático e global sobre a cultura e a prática arquitetónicas destes serviços, a sua composição hierárquica,
a sua forma de relacionamento com outras entidades
e a amplitude de aplicação dos projetos dos gabinetes
no território ultramarino (sua efetiva materialização).
O Gabinete de Urbanização Colonial (GUC)4 foi
criado em 1944, por decreto do então ministro das
colónias, Marcelo Caetano. Atuando remotamente a
partir de um edifício sito na Alameda Dom Afonso
Henriques, em Lisboa, e congregando arquitetos, engenheiros e restante pessoal técnico, foi o organismo
responsável pela produção urbanística e arquitetónica
das construções estatais para as então colónias portuguesas. Segundo o seu decreto criador, o GUC surgia
como resposta à urgência de (...) estudar e acompanhar a formação e o desenvolvimento dos aglomerados
populacionais nas colónias de modo a aproveitar os
ensinamentos da urbanística, evitando os erros (...)
de um crescimento ao acaso (...) [e à necessidade de
alteração do modelo até então seguido, que assentava
em] (...) soluções de ocasião [com recurso a arquitetos e urbanistas estrangeiros5 e a missões ocasionais
de técnicos nacionais6, que para] além de muito dispendiosas, imped[iam] que se adquir[isse] experiência, se cri[asse] tradição, se form[asse] escola e se
trabalh[asse] com persistência na execução ou aperfeiçoamento dos planos elaborados (...)7.
Este gabinete produziu, assim, planos de urbanização para a maioria das cidades ultramarinas de média
e de grande dimensão, bem como edifícios de diversas
tipologias, das quais se destacam as construções esco-
143
2 | Paisagem em
Angola(?), fotografia
de Luiz Possolo,
[décadas de
1960-1970].
3 | Moçambique,
Fábrica de Cimentos
de Nacala, projeto
da autoria do
arquiteto Luiz Possolo,
1960-1963, fotografia
de Luiz Possolo,
[década de 1960].
144
VÁRIA
monumentos 33
património de origem portuguesa no mundo, não obstante ter já havido, ao longo da última década, uma
preocupação com o estudo desta temática10.
Este projeto traduziu-se, ainda, na possibilidade
efetiva de a informação adquirida vir a enriquecer os
registos de inventário sobre edifícios ou estruturas —
construído(a)s ou não — elaborados pelos gabinetes
ou num raio de ação espaço-temporal próximo ao destes, área com reduzida representatividade — apenas
cerca de três centenas e meia de registos de inventário, com predomínio das construções militares e religiosas do período tardomedieval e da época moderna
— na base de dados SIPA à data do seu arranque11.
A elaboração de 586 novos registos de inventário12
— correspondendo a cerca de dois terços do universo
de imóveis inventariados fora do atual território português e a quase 2% da totalidade do inventário — permitiu aferir a importância deste projeto para o SIPA,
nomeadamente ao nível de uma incidência espaço-temporal de outro modo dificilmente penetrável.
Em 2010, na órbita do projeto de investigação e
constituindo uma importante mais-valia para o mesmo, foi depositado no SIPA o espólio fotográfico do
arquiteto Luiz Possolo13 (técnico do Gabinete de Urbanização do Ultramar), levantamento urbanístico, arquitetónico e principalmente etnográfico, composto
por mais de novecentas fotografias executadas aquando das missões levadas a cabo pelo arquiteto nos
antigos territórios ultramarinos portugueses, maioritariamente nas décadas de 1960 e 1970. Para além do
inequívoco valor documental, este espólio reflete os
objetivos destas missões efetuadas por arquitetos que,
sediados em Lisboa e projetando remotamente para o
espaço colonial português, viam nelas a sua grande
oportunidade de conhecimento do território ultramarino e da sua realidade.
Especificidades da inventariação do património
arquitetónico de matriz portuguesa no mundo
Para a concretização do projeto de investigação foi
indispensável um trabalho de localização e de descrição da documentação14 e dos edifícios em estudo,
bem como o reconhecimento da sua condição atual,
4 | Timor, Projeto para
um Seminário em Díli,
perspetiva, desenho
do arquiteto David
Oliveira Lopes,
elaborado para
o Gabinete de
Urbanização do
Ultramar, 1952,
não construído.
que permitisse aos investigadores ter um panorama
objetivo e real do seu significado, das suas características e da sua importância no contexto da arquitetura
novecentista portuguesa.
Naturalmente, um estudo desta natureza encerra
dificuldades decorrentes da sua especificidade, residindo a mais problemática na impossibilidade de uma
deslocação física do inventariante aos locais onde se
implanta o edificado em análise. Na verdade, os técnicos do SIPA envolvidos na presente investigação trabalharam, um pouco à semelhança dos quadros dos
gabinetes, de forma remota, o que para um historiador da arte constitui uma enorme limitação, particularmente num estudo cuja documentação-base poucos ou nenhuns dados disponibiliza relativamente à
concretização efetiva dos projetos de arquitetura dela
constantes. Assim, sem um acesso direto ao edifício
que permitisse tomar contacto com as suas características, nomeadamente a sua volumetria, o tratamento
das fachadas e vãos e a sua inserção no terreno (ou
sequer a simples confirmação da sua existência), os
meios tecnológicos assumiram-se como uma ferramenta imprescindível no processo de inventariação.
No entanto, o facto de a maioria dos imóveis e das
cidades em estudo se situar no território africano
constituiu-se como uma dificuldade acrescida, em especial devido à falta de informações e meios associados a esses locais. Em 2005, e a este propósito, Cristina Delgado Henriques referia que (...) os dados físicos
sobre a cidade africana [eram] escassos. Quando
exist[iam] raramente est[avam] estruturados; quando
5 | Cabo Verde,
Projeto para um
quartel de bombeiros
no Mindelo,
perspetiva, desenho
do arquiteto Alfredo
da Silva e Castro,
elaborado para
Direção de Serviços
de Urbanismo
e Habitação/
Direção-Geral
de Obras Públicas
e Comunicações do
Ministério do Ultramar,
1963, não construído.
monumentos 33
(...) estruturados raramente apresenta[va]m actualidade. Por isso, as imagens de satélite [eram] uma fonte alternativa de dados para caracterizar a realidade física urbana (....), [particularmente levando em conta
que nesses países] a inexistência ou inadequação da
cartografia urbana [era] uma realidade (...)15. Desde
então foi amplamente confirmada e reconhecida a importância das imagens de satélite no mapeamento dos
países africanos, tendo sido o principal instrumento utilizado no decorrer do levantamento efetuado.
O aparecimento e a difusão de geo-browsers (navegação de informação geográfica digital utilizada através
da Internet), como o Google Earth, acabaram por ter
uma função vital na forma como o mapeamento por
satélite evoluiu nos anos mais recentes, ao permitir o
acesso a informação em larga escala, teoricamente a
partir de qualquer local do globo terrestre.
VÁRIA
A este nível, e não obstante algumas dificuldades
encontradas (relacionadas com uma menor qualidade
de definição existente em algumas zonas mais remotas do continente africano), importará referir os bons
resultados alcançados, consequência sobretudo do
elevado grau de definição obtido nos principais aglomerados populacionais que, na maioria dos casos,
permitiu não só a identificação, na malha urbana, do
edifício em questão, mas igualmente uma perceção da
forma como a construção se encontra enquadrada no
restante edificado. Em última análise, tornou-se possível percecionar a forma como os planos urbanísticos
dos arquitetos dos gabinetes foram (ou não) colocados em prática. O recurso a geo-browsers possibilitou,
ainda, a associação de cada registo de inventário à
respetiva georreferenciação16 (preferencialmente ao
nível do imóvel) com base num sistema de coordena-
145
6 | Angola, Projeto
Escola Industrial
de Benguela, alçado
principal, desenho
do arquiteto Fernando
Schiappa de Campos,
elaborado para
o Gabinete de
Colonização do
Ultramar, 1957.
7 | Angola, Igreja
de Novo Redondo
(atual Sumbe),
projeto da autoria
do arquiteto Francisco
Castro Rodrigues,
1966, fotografia de
autor desconhecido
[CITAngola],
[1966-1970].
146
VÁRIA
monumentos 33
8 | Angola, mapa dos
registos de inventário
com georreferenciação
associada na base
de dados SIPA.
de inventariação, permitindo a obtenção de resultados de outro modo vedados a esta investigação,
ao possibilitar aos investigadores uma aproximação
aos seus objetos de estudo e, consequentemente, à
confirmação da informação primária recolhida em
arquivo.
Em suma, este projeto revestiu-se de uma fulcral
importância para o SIPA ao permitir o estudo e o mapeamento de novas áreas, através da integração, na
sua base de dados, de um conjunto sistemático de
registos de inventário de edificações construídas nos
três primeiros quartéis do século XX nos antigos territórios ultramarinos portugueses.
9 | Moçambique,
Maputo, zona central,
mapa dos registos
de inventário com
georreferenciação
associada na base
de dados SIPA.
das. E, principalmente, a sempre difícil e necessária
aferição da real existência do objeto em estudo, ponto
de partida para qualquer trabalho de inventariação.
O conhecimento do universo da produção dos gabinetes, obtido através da consulta da documentação
de arquivo e da bibliografia especializada, foi assim
confirmado pelo recurso a meios informáticos, numa
transposição da teoria do papel para a realidade (mesmo que virtual) do terreno. Ainda assim, um mais
aprofundado contacto com os objetos em estudo só
se tornou possível devido ao contributo dado pelos
levantamentos fotográficos efetuados pelos investigadores do projeto que cumpriram as diversas missões
no terreno. Possuindo atualmente grande qualidade
(nomeadamente em termos de ampliação), a fotografia digital permite o reconhecimento de um conjunto
vasto de pormenores, providenciando não só o contacto (possível) com os edifícios, mas igualmente uma
ilustração dos mesmos através da sua associação aos
registos de inventário dos imóveis.
Importa, igualmente, registar a enorme importância que representou, a partir de 2011, a abertura da
base de dados SIPA a contributos externos (Extranet
SIPA, através do website www.monumentos.pt), potenciando um contacto mais estreito com o público
em geral, particularmente com entidades locais, ao
nível de contributos fotográficos e/ou textuais que
permitiram complementar as informações constantes
dos registos.
O recurso intensivo a meios tecnológicos desempenhou assim um papel fundamental no processo
N.º TOTAL DE NOVOS
REGISTOS PRODUZIDOS
NO CONTEXTO
DO PROJETO
N.º TOTAL
DE REGISTOS
IPA
%
Angola
226
244
92,62%
Moçambique
185
200
92,50%
São Tomé
e Príncipe
80
98
81,63%
Cabo Verde
38
59
64,41%
Guiné-Bissau
32
33
96,97%
Índia
10
51
19,61%
China
(Macau)
9
64
14,06%
Timor-Leste
6
23
26,09%
Assumindo a impossibilidade do aprofundamento
da totalidade dos novos registos, optou-se por dar uma
predominância a determinados imóveis com base em
critérios geográficos e/ou tipológicos, de modo a obter núcleos coerentes que cobrissem as principais áreas de incidência dos gabinetes, bem como as principais tipologias de edifícios por estes projetados17. Este
trabalho foi efetuado com a consciência da existência
de um conjunto de especificidades que, impossível de
ser menosprezado, obrigou à aplicação de metodologias e de procedimentos distintos dos habitualmente
utilizados na inventariação de imóveis construídos no
atual território português.
Inventariar para salvaguardar:
perspetivas de futuro
Um súbito e acentuado crescimento económico tende a ser sinónimo de maiores riscos para o património
edificado. Essa realidade é percetível em alguns países
da África Continental que, nos anos imediatamente
ulteriores à independência, sofreram devastadoras
guerras civis seguidas de momentos de intenso desenvolvimento, ao qual se associa, indistintamente, uma
grande pressão imobiliária. E se o património mais
antigo pode tender a estar mais salvaguardado, o edificado não monumental novecentista corre particular
monumentos 33
VÁRIA
147
10 | Angola, Escola
Industrial e Comercial
de Moçâmedes (atual
Namibe), projeto da
autoria dos arquitetos
Fernando Schiappa
de Campos e Luiz
Possolo, elaborado
para o Gabinete
de Urbanização
do Ultramar, 1956,
fotografia de autor
desconhecido
[CITAngola], [final da
década de 1950].
11 | Angola, Lobito,
edifício dos Paços do
Concelho (perspetiva
a partir do edifício dos
Correios), projeto da
autoria dos arquitetos
Mário de Oliveira
e Lucínio Cruz,
elaborado para
o Gabinete de
Urbanização Colonial,
1948, fotografia de
autor desconhecido
[CITAngola], 1971.
risco de destruição. Este risco é inerente a tudo o que
é suficientemente velho para se poder encontrar desatualizado ou obsoleto, mas que não é suficientemente
antigo para a sua idade justificar, por si só, o respeito
ou lugar na história, sendo por isso aqueles que terão,
em teoria, uma menor proteção. Ainda assim, devem,
em sentido contrário, ser ressalvados os esforços das
entidades locais em inverter esta tendência, nomeadamente com a recuperação e/ou classificação, ao longo
da última década, de dezenas de imóveis de índole
estatal do século XX em todos os territórios onde o
presente projeto de investigação incide.
Área historicamente negligenciada pela investigação em Portugal, a arquitetura novecentista de origem
portuguesa no mundo começou, com a viragem do
milénio, a ter uma crescente importância nos meandros da historiografia nacional, passando a ser alvo
de uma maior atenção e cerne de sucessivos estudos.
Enquadra-se, portanto, neste contexto de ameaça ao
património não monumental, a pertinência e a importância do levantamento sistemático desse edificado
para que, ao permitir um conhecimento mais aprofundado, possa concorrer para uma proteção e uma
valorização mais efetivas do mesmo.
148
VÁRIA
monumentos 33
12 | Lobito, edifício
dos Correios
(perspetiva a partir
do edifício dos Paços
do Concelho), projeto
da autoria de Mimoso
Moreira, 1941,
fotografia de autor
desconhecido
[CITAngola], 1971.
A disponibilização da informação recolhida neste
levantamento permitirá um melhor conhecimento do
acervo patrimonial, podendo assim contribuir para a
sua salvaguarda e recuperação. Pretende-se que, paralelamente aos resultados operacionais, este projeto
possa conduzir à constituição de futuras parcerias de
agentes e de instituições locais (universidades, instituições governamentais) com o SIPA, de modo a permitir uma troca de conhecimento que se concretize,
entre outros aspetos, no aprofundamento do trabalho
de inventariação aqui começado. Nesse contexto, a
Extranet SIPA constituir-se-á necessariamente como
um valor acrescentado, não só ao permitir uma ponte
interinstitucional, mas igualmente no que concerne a
contributos espontâneos. Esse trabalho de cooperação
poderá igualmente passar por uma articulação com as
entidades locais competentes na área da salvaguarda
do património, de modo a potenciar a valorização e a
defesa do edificado analisado no âmbito deste estudo.
Espera-se assim que, a par do conhecimento gerado,
este se possa tornar no principal legado deste projeto.
Tiago Borges Lourenço
Historiador da Arte
Imagens: 1 a 3, 8, 9: IHRU/Sistema de
Informação para o Património Arquitetónico;
4 a 7, 10 a 12: Arquivo Histórico Ultramarino.
N OTA S
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João Paulo MARTINS — “Uma cidade deve ser como uma casa grande para ser
uma verdadeira cidade”. Arquitectura de Serviços Públicos em Portugal: Os Internatos na Justiça de Menores, 1871-1978. Lisboa: Direção-Geral de Reinserção
Social; Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, 2009, pp. 27-28.
João VIEIRA — Documentos e Arquivos de Arquitectura: Princípios, Estratégias,
Metodologias e Instrumentos de Gestão, Porto: Fundação Instituto Arquiteto
Marques da Silva, 2010, p. 32;
João VIEIRA — Ob. cit., p. 33;
Em 1951, o Ministério das Colónias é renomeado Ministério do Ultramar e com
ele o Gabinete de Urbanização Colonial passa a designar-se Gabinete de Urbanização do Ultramar (GUU). Este último manterá essa nomenclatura até 1957,
ano em que é extinto e substituído pela Direção de Serviços de Urbanismo
e Habitação (DSUH) da Direção-Geral de Obras Públicas e Comunicações do
Ministério do Ultramar (DGOPC-MU), mantendo funções similares às iniciais.
No presente texto, a designação “gabinetes” refere-se ao organismo durante o
seu período de atividade (1944-1974) sob as diferentes nomenclaturas.
De mencionar, neste particular, o caso do austríaco Franz Scharchel (1895-1943)
que depois de ter estudado e trabalhado em Viena com Franz Schuster (1892-1972), no decorrer da II Guerra Mundial e fugindo às perseguições do regime
nazi, vai integrar a Missão de Estudos e Construção de Edifícios da Colónia
de Angola, produzindo numerosos projetos (principalmente casas de função e
construções hospitalares, embora também repartições públicas, hotéis e equipamentos culturais), dos quais apenas um cinema e um hotel foram efetivamente
construídos. Morreu em Nova Lisboa (atual Huambo) em 1943; ironicamente,
muitos dos imóveis que projetou seriam efetivamente edificados nas décadas de
1940 e 1950, mas com projetos elaborados pelos arquitetos dos gabinetes.
Dentro do restrito lote de arquitetos portugueses a projetar para as colónias no
período imediatamente anterior (coincidente ao da criação do GUC), destaca-se,
nas construções escolares, a figura de José Costa Silva, autor dos dois principais liceus pré-GUC construídos, na década de 1940, nas antigas colónias: antigo
Liceu Salazar (atual Liceu Josina Machel, Maputo) e Liceu Salvador Correia
(atual Liceu Mutu Ya Kevela, Luanda), ambos construídos pela Junta de Construções para o Ensino Técnico e Secundário (JCETS). Ana Vaz Milheiro e Eduardo
Costa Dias relevam igualmente a importância do papel de Paulo Cunha que
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surge (...) ligado a projectos de iniciativa oficial destinados aos territórios ultramarinos, designadamente em Moçambique e Angola, mas também na Guiné
onde chega mesmo a acompanhar obras de projectos por si orientados [...] [estando neste território] associado à Brigada de construção de moradias para funcionários públicos, de 1944 (...). Pontualmente, outras figuras de renome da arquitetura
portuguesa, como Raul Lino (1879-1974) ou Luís Cristino da Silva (1896-1976),
assinaram projetos (nem sempre executados) para os antigos territórios ultramarinos portugueses. Neste prisma sobressai igualmente a figura de Vasco Moraes
Palmeiro (Regaleira) (1897-1968), autor de algumas das mais importantes construções da época nas antigas províncias portuguesas, nomeadamente arquitetura
de cariz religioso e público. Neste particular destaca-se o edifício do Banco de
Angola, em Luanda, ainda hoje uma das mais importantes edificações na cidade.
Regaleira trabalha em alguns projetos, tanto na metrópole como nas colónias,
nas décadas de 1940 e 1950 com o arquiteto paisagista Francisco Caldeira Cabral
(1908-1992), cujo espólio se encontra à guarda do SIPA e acessível a público
desde 2006, no âmbito do depósito de um conjunto de espólios de arquitetos
paisagistas — Gonçalo Ribeiro Telles (1922), António Viana Barreto (1924-2012) e
Ilídio Araújo (1925) —, conjunto que envolve mais de 10 mil desenhos.
Decreto n.º 34173, publicado no Diário da República, n.º 269, Suplemento,
Série I de 6 de dezembro de 1944.
(...) A arquitectura do período colonial produzida em Lisboa para África tende,
cada vez mais, a ser abordada como uma infra-estrutura o que significa valorizar
o desempenho programático sobre as questões estéticas. É este pensamento que
permite tratar determinados programas em rede, caso dos edifícios educacionais
ou hospitalares, através do recurso ao projecto-tipo. É também esta a razão que
possibilita a acumulação da experiência de Lisboa no domínio da arquitectura
tropical, concentrada em alguns técnicos ‘especialistas’. No entanto, as suas abordagens são tendencialmente ‘universais’, uma vez que os arquitectos encaram
África como território homogéneo (...). Ana Vaz MILHEIRO — Nos Trópicos sem
Le Corbusier,..., pp. 305-308.
Este interesse reflete igualmente a própria filosofia, metodologia e incidência do
SIPA, responsável em grande medida pela sua diferenciação no contexto dos sistemas de informação, assentando numa lógica de inventário sistemático; não se
baseando apenas no objeto arquitetónico enquanto monumento (entendendo-se aqui “monumento” como edifício possuidor de características meramente
dimensionais ou de uma classificação/distinção qualitativa), possibilita que as
construções, individualmente ou enquanto parte integrante de um conjunto arquitetónico, sejam alvo de um estudo e inventariação cuja pertinência possa
ser justificada por outras características, nomeadamente sua relevância para
determinada comunidade.
Nomeadamente através da cooperação com o Centro de História de Além-Mar
(CHAM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa (FCSH/UNL).
Através do trabalho de um bolseiro contratado e afeto ao IHRU.
Importará referir que nem todos os projetos identificados como produção dos
gabinetes foram passíveis de transposição para registos de inventário IPA visto
apresentarem especificidades que impediram que se aferisse a sua localização
(caso dos projetos-tipo habitacionais). Noutros casos não foi possível recolher,
a partir da documentação consultada, informações consideradas indispensáveis
para a abertura dos referidos registos (autoria, cronologia e principalmente dados
sobre a concretização ou não do projeto). Paralelamente, optou-se por um alargamento do arco temporal de modo a que este não se limitasse às três décadas de
atuação dos gabinetes e assim permitisse um mais aprofundado entendimento
do seu trabalho. Nesse particular, mais de um terço dos imóveis sobre os quais
foram abertos novos registos IPA não são produto dos gabinetes, constituindo-se
antes como um conjunto de alguns elementos do mais importante edificado dos
três primeiros quartéis do século XX nas principais cidades angolanas e moçambicanas. A abertura destes registos apresenta assim a dupla valência de procurar
uma melhor perceção do enquadramento que envolve a produção dos gabinetes,
coincidindo com um enriquecimento da base de dados SIPA.
Técnico do Gabinete de Urbanização do Ultramar durante a década de 1950, o
arquiteto Luiz Possolo (1924-1999) é objeto de estudo no âmbito do presente
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VÁRIA
projeto de investigação; sobre a sua obra realizou-se no ISCTE, em março de
2012 e com orientação do arquiteto José Luís Saldanha, uma exposição biográfica, da qual resultou a publicação de Luiz Possolo, um Arquitecto do Gabinete
de Urbanização do Ultramar. Tendo como objeto o seu espólio fotográfico, foi
criada uma exposição virtual no site www.monumentos.pt e realizada, a 16 de
março de 2011, no auditório do Forte de Sacavém, a sessão As Áfricas de Possolo
por Pancho Guedes, na qual o arquiteto, com obra maioritariamente em Maputo,
foi convidado a dissertar sobre algumas das imagens do espólio Possolo.
Constando do espólio do Ministério do Ultramar e presentes, maioritariamente, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) e no Arquivo do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), os processos relativos à produção
dos gabinetes são geralmente compostos por peças desenhadas e escritas de
arquitetura (projetos e anteprojetos) e de engenharia (principalmente estruturas e saneamento básico). Pontualmente, existe documentação de outra natureza, nomeadamente relatórios de pessoal e das brigadas técnicas elaborados
aquando das missões ao terreno (ocasionalmente com mapas e fotografias),
pareceres redigidos pelos gabinetes e por entidades externas, elencos de obras
realizadas e a realizar, bem como correspondência e documentação administrativa.
Cristina Delgado HENRIQUES — “Monitorização da cidade africana a partir de
imagens de satélite”. UR Cadernos da Faculdade de Arquitectura..., 2005, n.º 5,
pp. 108 e 112; neste contexto importará, igualmente, o estudo Study of Fundamental Geospatial Datasets in Africa da EIS-Africa (rede cooperativa e de gestão
de informação sobre ambiente em África), no qual Derek Clarke foca a questão
da informação geográfica em África.
Complementarmente e no contexto da crescente importância que a georreferenciação tem tido no SIPA, procurou-se associar as coordenadas geográficas
aos novos registos de inventário, trabalho indispensável no mapeamento dos
imóveis da base de dados e na possibilidade de permitir pesquisas de âmbito
geográfico. No final de 2012, cerca de 73% dos registos de inventário abertos no
âmbito do presente projeto apresentam georreferenciação associada, um valor
bastante semelhante com o registado na totalidade do inventário (75%).
Com especial destaque para as construções escolares (51 novos registos), hospitalares (32 novos registos), edifício de paços dos concelhos (22 novos registos)
e dos correios (16 novos registos).
B I B L I O G R A F I A
HENRIQUES, Cristina Delgado — “Monitorização da cidade africana a partir de
imagens de satélite”. UR Cadernos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Dossiê: Cidades Africanas. Lisboa: Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, 2005, n.º 5, pp. 108-113.
MARQUES, Luís Correia — Tecnologia de Informação Geográfica e Monitorização
Ambiental em Contexto Africano. Lisboa: s. n., 2009, dissertação de mestrado
apresentada na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de
Lisboa, texto policopiado.
MILHEIRO, Ana Vaz; DIAS, Eduardo Costa — “Arquitectura em Bissau e os Gabinetes
de Urbanização Colonial (1944-1974)”. arq.urb: Revista Eletrônica de Arquitetura e Urbanismo, 2009, n.º 2, (http://www.usjt.br/arq.urb/numero_02/artigo_
ana.pdf).
MILHEIRO, Ana Vaz — Nos Trópicos sem Le Corbusier, Arquitectura Luso-Africana
no Estado Novo. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2012.
PATRIMÓNIO Arquitectónico — Geral. Lisboa: Instituto da Habitação e Reabilitação
Urbana; Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, 2010
(Kits Património; 1, versão 2.0), URL: www.portaldahabitacao.pt; www.monumentos.pt, www.igespar.pt.
SALDANHA, José Luís — Luís Possolo, Um Arquitecto do Gabinete de Urbanização
do Ultramar. Lisboa: CIAAM, 2012.
VIEIRA, João — Documentos e Arquivos de Arquitectura: Princípios, Estratégias,
Metodologias e Instrumentos de Gestão. Porto: Fundação Instituto Arquitecto
José Marques da Silva, 2010.
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VÁRIA
monumentos 33
Lisboa em Olhão/
Olhão em Lisboa
História e fábula em três bairros
de habitação económica, desde 1925
RICARDO AGAREZ
Introdução
Em Janeiro de 1988, deu entrada nos serviços da
Câmara Municipal de Olhão um pedido de licenciamento para o loteamento de terrenos pertencentes a
uma antiga fábrica de conservas, com frente para a
Estrada Nacional 125. A realização do projecto implicava a construção imediata de um edifício de habitação multifamiliar, no primeiro dos lotes a criar,
para alojamento dos treze inquilinos que ainda habitavam (...) as casas em rés-do-chão, que constituem
parte do terreno (...)1. As ditas casas (fig. 1), quinze
moradias formando um prédio urbano (...) com trinta
e seis compartimentos (...), eram o que, em 1925 e
1927, as revistas Europa e Arquitectura, de Lisboa, haviam apresentado como um Bairro Operário em Olhão
(fig. 2), projecto do (futuro) arquitecto Carlos Chambers Ramos (1897-1969). Na sequência da aprovação
do loteamento, o bairro foi demolido.
Enquanto as máquinas trabalhavam na sua eliminação da paisagem urbana de Olhão, este pequeno
conjunto para habitação operária foi também banido
do registo histórico da arquitectura portuguesa. Nos
últimos vinte e cinco anos, o bairro terminado em
1925 passou a fazer parte de um curioso equívoco
historiográfico. A sua data de publicação inicial foi
transferida para outro dos projectos de Carlos Ramos
para aquela localidade algarvia — o famoso Bairro
Municipal de Olhão (fig. 5), amplamente publicitado
pelo arquitecto a partir de 1930 — enquanto as suas
características, historial, localização e existência própria se perderam dos relatos. Por sua vez, o projecto
do bairro municipal, que nunca chegou a sair do papel, ganhou na cultura arquitectónica portuguesa um
lugar de relevo, ao sobrepor-se a um terceiro conjunto
habitacional — o Bairro de Casas para Pescadores de
Olhão, projectado quinze anos mais tarde pelo arquitecto Inácio Peres Fernandes (1910-1989) e construído pela Direcção-Geral dos Serviços de Urbanização
(DGSU) (fig. 7). Uma proposta, icónica e celebrada
pelo relato histórico mas nunca concretizada, usurpou assim a identidade, a cronologia e a existência
material de outras duas propostas, cujos contornos
precisos se esfumaram. Paralelamente, a longa e profícua série de projectos de habitação económica erguidos em Olhão na primeira metade do século passado,
em que aquelas três propostas se inserem, ficou também largamente por explorar.
Entre a construção historiográfica metropolitana e a realidade local — e na distância que separa
Olhão de Lisboa — permanece um campo fértil de
interrogações e de dúvidas. Este texto pretende projectar alguma luz sobre aquela série de planos e de
construções através do cruzamento de informação
retirada de documentação de arquivo, observação
directa e história oral. A partir da fixação dos dados fundamentais relativos a tal série — localização, datação, autoria, existência — torna-se possível
o desenvolvimento de outras reflexões e leituras.
Na verdade, os conjuntos de habitação de cariz social
A aprovação de um loteamento de terrenos pela Câmara Municipal
de Olhão no final da década de 1980 implicou a demolição de um
conjunto habitacional, o “Bairro Operário em Olhão”, projecto do
arquitecto Carlos Chambers Ramos, publicado inicialmente em
1925. Nos últimos vinte e cinco anos, esse bairro passou a fazer
parte de um curioso equívoco historiográfico e a sua data de
publicação, foi transferida para outro dos projectos de Ramos para
Olhão, o “Bairro Municipal”, enquanto as suas características,
historial, localização e existência se perderam dos relatos. Por sua
vez, este último projecto, que nunca chegou a sair do papel, ganhou
uma existência fictícia ao tomar o lugar do “Bairro de Casas para
Pescadores”, de Inácio Peres fernandes, com o qual passou a ser
sistematicamente confundido. O curioso caso dos bairros de Olhão é
pois uma boa oportunidade para procurar compreender as razões
subjacentes a semelhante equívoco historiográfico e para enriquecer
a questão com dados até agora desconhecidos ou ignorados,
contribuindo para o seu esclarecimento.
monumentos 33
VÁRIA
erguidos em Olhão, sob diversas fórmulas, entre as
décadas de 1920 e 1950 (bairros chamados Operários,
de Casas Económicas, de Casas para Pescadores, para
as Classes Pobres e outros) constituem um todo de
particular interesse: eles são testemunhos, por exemplo, da existência de uma negociação contínua entre
identidade construída local, estereótipo regional e
programas estatais de aplicação nacional, formulados
em Lisboa2. Contudo, sem uma visão simultaneamente mais abrangente e precisa destes objectos arquitectónicos, do contexto da sua produção ao pormenor
do seu layout, semelhante interpretação careceria da
base empírica que pode, e deve, suportá-la.
Um retorno aos dados elementares da história da
arquitectura, portanto — num caso em que o registo
contemporâneo muito deles se afastou —, é o que
este ensaio propõe.
1 | Olhão, Bairro
Operário Lucas &
Ventura, casas
na Rua Manuel Martins
Garrocho número 16,
fotografia de autor
desconhecido,
[c.1988].
2 | Carlos Chambers
Ramos, “Alguns
Problemas de
Arquitectura:
Soluções Concretas”.
Arquitectura, 1927,
ano 1, n.º 9, p. 132.
1. O Bairro Operário Lucas & Ventura (c. 1925):
ser “regional” ou “local”?
(...) [O] magnífico projecto de um bairro operário
em Olhão (…) marca uma valiosa etape [sic] nas
artes decorativas nacionais, pela sua estilização e
pela sua maravilhosa adaptação às necessidades
regionais (...)3.
(...) Embora a minha intenção fosse conservar o carácter Cubista da maioria das construções que existe
nesta vila, com as suas açoteias tão características e
as suas penetrações, fui levado, por um critério de
conjunto, a cobrir esta série de pequenas casas por
coberturas vulgares, tendo no entanto o cuidado de
empregar na sua construção materiais exclusivos da
região (...)4.
Quando Carlos Chambers Ramos foi chamado pelo
seu cunhado Cândido do Ó Ventura, industrial conserveiro e figura local de Olhão5, a projectar um conjunto de habitações para os operários da sua firma
Lucas & Ventura (fig. 3), em data anterior a 1925,
o jovem tirocinante em Arquitectura viu-se perante
um dilema: como lidar com a identidade construída
olhanense? Como, por outras palavras, tirar o melhor partido das tradições arquitectónicas populares
de Olhão, na sua proposta desenhada em Lisboa?
Conquanto a primeira citação acima, retirada da publicação que a revista Europa fez da obra em 1925,
apontasse para uma (...) adaptação às necessidades
regionais (...) plenamente bem-sucedida, a segunda
citação, do texto do próprio Carlos Ramos apresentando o mesmo conjunto dois anos depois, sugere que teria sido outra a intenção inicial do autor.
O “carácter Cubista” era o que distinguia as casas de
Olhão, aos olhos dos arquitectos e não-arquitectos
de Portugal e do estrangeiro, e Carlos Ramos alegava
ser sensível àquele, muito embora por um indefinido “critério de conjunto”, tivesse escolhido um perfil
mais convencional e genérico para este seu projecto
pioneiro.
151
Desde o início da década de 1920, a imagem de
Olhão vinha sendo construída por locais e visitantes
como a de uma paisagem urbana única e invulgar
(fig. 4), mesmo dentro do quadro geralmente exótico que marcava as descrições do Algarve no período.
Em polémica com o escultor Francisco dos Santos,
que considerara Olhão uma (...) terra incaracterística
(...), António Ferro contrapôs, em 1922, a imagem de
uma (...) terra geométrica, detalhada, de telhados decepados, quasi Cubista (...)6. A partir de então, pelas
mãos de Dias Sancho7, Raul Brandão8, Eduardo Viana9
e Aquilino Ribeiro10, as descrições e as representações
da vila insistem na analogia pictórica e, frequente-
152
VÁRIA
monumentos 33
3 | Olhão, Bairro
Operário Lucas &
Ventura, fotografia de
autor desconhecido,
[c.1925].
mente, na sua muito discutida origem/herança norte-africana; mais tarde, será o próprio António Ferro a
levar “Olhão, Vila Cubista” a representar o Algarve
como um todo, recorrendo a esta fórmula como símbolo eficaz de propaganda em fóruns nacionais e internacionais11.
Este perfil urbano, incomum e sugestivo, resultava da repetição quase sistemática da mesma solução
tipológica e tecnológica: casas com cobertura plana
(açoteia), platibanda perimetral, escada exterior sobre
arco aviajado e uma sucessão de compartimentos adicionados ao longo do tempo em pirâmide, por norma
a partir do alargamento do torreão de acesso interior
ao terraço (pangaio) e respectiva plataforma de remate (mirante). Olhão revelava-se sedutor tanto para
autores mais interessados no potencial plástico do seu
casario pitoresco (“Cubista”) como para olhares que,
sensíveis a semelhante potencial, eram ainda informados pelas últimas tendências arquitectónicas —
isto é, pelo modernismo, então em difusão crescente.
(...) Pela clareza da sua arquitectura, [Olhão] poderia
dar sugestões a muitos jovens arquitectos modernos
que se orgulham da utilização funcional dos materiais
(...)12, anunciava um de entre os muitos relatos ingleses que, na década de 1930, enalteceram o modernismo avant la lettre da vila algarvia. Os arquitectos
portugueses que então experimentavam com formas
modernistas eram também claramente sensíveis às
sugestões oferecidas por Olhão: desde Jorge Segurado (1898-1990), em 192613, a José Ângelo Cottinelli
Telmo (1897-1948), em 193314, as simples casas caiadas olhanenses tornaram-se tema recorrente para
a geração de Carlos Ramos. Assim se compreende
também o tom apologético deste em 1927, quando,
descrevendo o seu Bairro Operário Lucas & Ventura,
lamentava não ter (...) conserva[do] o carácter Cubista
(...) da vila: afinal Carlos Ramos, ao contrário de Jorge Segurado ou de Cottinelli Telmo, tivera a oportunidade de construir em Olhão.
A encomenda, contudo, tinha uma exigência pragmática que punha em causa a tradição do tecido urbano olhanense e dificultava a inspiração directa no seu
plástico “cubismo”. Olhão era, nos anos de 1920, um
núcleo tão pitoresco quanto insalubre e socialmente
explosivo: o crescimento piramidal, desde cedo impulsionado pela necessidade de ampliação da casa
em tão apertada malha urbana15, vinha servindo para
alojamento improvisado de famílias literalmente em
camadas, por subaluguer de espaços desprovidos das
condições elementares de habitabilidade (os compartimentos adicionados sobre as açoteias, por exemplo).
Os industriais conserveiros, cuja prosperidade variou
acompanhando conflitos bélicos e flutuações nos mercados internacionais, instalavam trabalhadores em armazéns adaptados e “ilhas” improvisadas, agravando
a situação16. O centro da vila, tecido denso, labiríntico e ininterrupto, era descrito como cenário quotidiano de degradação física e moral e de ilegalidades
diversas, sendo o contrabando uma prática comum17.
A habitação operária era portanto, primeiramente, um
problema político e social, e apenas secundariamente
formal ou estilístico.
Ao instalar quinze famílias junto à sua fábrica, a
firma Lucas & Ventura terá querido ultrapassar as
deficiências da Olhão “Cubista” e providenciar condições mínimas de habitabilidade com um investimento limitado. Este terá sido porventura o sentido
do citado “critério de conjunto” que levou Carlos Ramos a cobrir com simples telhados sobre estrutura
de madeira — o mesmo sistema construtivo utilizado
monumentos 33
nos armazéns industriais contíguos — as suas células
habitacionais existenzminimum. As casas, de um ou
dois “quartos” e cozinha, dotadas de lavadouro e de
sanitários colectivos, e de rede privativa de esgotos,
eram dispostas em redans sobre uma rua interior para
máxima iluminação e ventilação naturais (fig. 2), à
maneira de algum alojamento operário do virar-do-século. A imagem resultante, com as quatro águas
telhadas e beiradas e as generosas chaminés caiadas,
seria menos especificamente característica de Olhão e
mais genericamente sulista — mas era também pragmática e económica, o que possibilitou a sua construção e consequente utilização por sessenta anos, até à
demolição em 1988. Com efeito, os arquitectos portugueses que então começavam a trabalhar em programas nacionais e que seguiam a doutrina Deutscher
Werkbund — Carlos Ramos, Raul Lino (1879-1974) e
Eugénio Correia (1897-1987), entre outros — ao utilizar os materiais e as técnicas de construção comuns
em cada região pareciam interessados na estandardização dos elementos vernáculos para aplicação em
larga escala e não apenas no seu aspecto formal; processo que, de resto, parece ter assinaláveis paralelos
com o seguido no desenho e na construção de “casas
baratas” em Espanha no mesmo período18. Dispondo
de mão-de-obra abundante, barata e não especializada, os projectistas encontravam na simplificação e na
sistematização das tradições construtivas populares,
comuns entre construtores locais, uma forma eficaz
de reduzir o custo das obras, do transporte aos materiais e à execução. Tratava-se de um regionalismo
tecnológico e económico, e não só formalista. Ainda
VÁRIA
153
que em Olhão a cobertura plana artesanal (abóbadas
em tijolo sobre barrotes de madeira, por exemplo)
fosse tradição em uso (rapidamente substituída pela
placa de betão armado na década de 1930), o telhado
era igualmente tradição19, de mais rápida execução,
tecnicamente menos exigente e logo menos dispendioso. O Bairro Operário Lucas & Ventura, uma das
primeiras obras construídas de Carlos Ramos, foi
ditado por imperativos sociais, económicos e tecnológicos, e nesse quadro deve ser lido. Ao adoptar
uma imagem comedida, abstractamente regional, e
ao não traduzir as relações formais entre Olhão e
o modernismo arquitectónico que então ganhavam
força nas visões metropolitanas sobre a vila, Carlos
Ramos escolhia um regionalismo tecnológico, ainda
que pouco caracterizado formalmente; do mesmo
passo, tornava a leitura histórica deste objecto menos imediata, e mais exigente. Já foi sugerido como o
perfil conservador da obra liga mal com a reputação
de Carlos Ramos enquanto pioneiro do modernismo
em Portugal20, o que pode ajudar a justificar a elisão
historiográfica que, entretanto, fez com que este bairro desaparecesse das narrativas da arquitectura portuguesa contemporânea. Tal justificação ganha outra
dimensão, contudo, se à facilidade de uma leitura
simplista da obra de um autor tão complexo quanto
Carlos Ramos juntarmos o facto de a data de primeira
publicação do Bairro Operário (1925) ter vindo a ser
atribuída, repetidamente, ao seu segundo projecto de
habitação económica para Olhão, desenhado cerca
de cinco anos mais tarde e nunca realizado: o Bairro
Municipal.
4 | Olhão, vista geral,
fotografia do Estúdio
Mário Novais,
[c. 1940-1950].
154
VÁRIA
monumentos 33
2. O Bairro Municipal de Olhão (c. 1930):
a força de uma imagem
(...) A arquitectura, na sua evolução, procede por
largas ondulações que, em regra, coincidem com os
movimentos culminantes e mais decisivos da história. Limitemo-nos a registá-lo (...)21.
(...) [Olhão,] com um evidente carácter árabe é chamada a ‘Vila Cubista par excellence’. Os edifícios do
bairro de habitação económica enquadram-se neste
carácter geral de Olhão (...)22.
O projecto de um bairro municipal ou económico
para Olhão, formado por vinte e quatro moradias em
duas bandas opostas e simétricas (fig. 5), foi produzido por Carlos Chambers Ramos, a pedido da autarquia, em circunstâncias até hoje por detalhar. Esta
foi, não obstante, uma peça importante na afirmação
do Carlos Ramos primeiro-modernista, muito utilizada nos exercícios de propaganda modernista e de
autopromoção em que o (então já) arquitecto se empenhou no início da década de 1930. Carlos Ramos
levou a sua maqueta do bairro (de que nos chegaram
os famosos registos fotográficos de Novais) ao I Salão
dos Independentes (Lisboa, 1930), juntamente com as
do Liceu D. Filipa de Lencastre, em Lisboa, do Grande
Hotel “Espinho Praia” e de alguns projectos de grande
residência privada. Com esta selecção, Carlos Ramos
parecia querer garantir o seu lugar no “movimento
culminante” e “decisivo” vivido pela arquitectura sua
contemporânea — o Movimento Moderno — e alinhar os seus projectos não realizados (intenções) com
as “directrizes nítidas” que começavam a perceber-se.
Logo de seguida, e aproveitando os contactos de Jorge Segurado com o arquitecto espanhol Luis Lacasa23,
Carlos Ramos fez publicar bairro, liceu e hotel na revista Arquitectura de Madrid, em número dedicado
ao Salão lisboeta que apresentava o arquitecto como
(...) o espírito que todo o movimento necessita de ter
dentro (...)24. Por último, e já em 1931, Carlos Ramos
publicou aqueles três projectos e o da casa Moreira de
Almeida (Porto) na revista alemã Wasmuths Monatshefte onde, no curto relato acima transcrito, aplicou
uma vez mais a Olhão o rótulo “Cubista” de António
Ferro e defendeu que o (...) evidente carácter árabe
(...) da vila aceitaria, sem conflitos, a sua proposta
modernista.
A par de outros seus projectos coevos e menos
conhecidos (como o do Instituto Navarro de Paiva,
em Lisboa), o Bairro Municipal de Olhão é uma das
propostas mais sedutoras da fase modernista de Carlos Ramos, porventura devido à sua forte caracterização. Tal vigor é evidente, por exemplo, nas muito
reproduzidas imagens da maqueta e do corte-alçado
colorido a guache que ilustram o projecto no catálogo
da exposição monográfica da obra do arquitecto, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian em 1986.
Contudo este catálogo, primeira publicação do bairro
em tempos recentes e referência para muitos estudos
posteriores, confundiu a proposta exibida em 1930
com o Bairro Operário Lucas & Ventura, publicado
em 1925, legendando as imagens da primeira com o
nome e data do segundo; o próprio texto prolongou
o equívoco, descrevendo dois projectos diferentes
como se de um único se tratasse25 — um pequeno
erro que veio a ter repercussões duradouras26. Assim,
exceptuando o contido nas pouco detalhadas publicações espanhola e alemã, é muito escassa a informação
objectiva e precisa sobre o projecto. Desconhecem-se,
até hoje, as circunstâncias exactas da encomenda e as
intenções concretas de Carlos Ramos, por norma registadas em memória descritiva27. Trata-se, por consequência, de um projecto que adquiriu uma relevância
na cultura arquitectónica portuguesa inversamente
proporcional ao que, de facto, sobre ele se conhece.
Casado com uma olhanense, autor de um “Asilo
para a Velhice” construído em Olhão, em 1926-192828,
e do monumento aos heróis da Restauração de 1808,
inaugurado em 1931, Carlos Ramos tornou-se um
“filho adoptivo” da vila29. Terá assim sido este arquitecto uma escolha natural da edilidade para, em
data anterior a 1930, elaborar o Projecto dum Bairro
Económico que a Câmara Municipal de Olhão Pretende Construir Nesta Vila, como foram intituladas as
peças desenhadas do processo30. A conjugação das
palavras publicadas por Carlos Ramos em 1927 —
(...) Embora a minha intenção fosse conservar o carácter Cubista da maioria das construções que existe
nesta vila (...) — e em 1931 — (...) Os edifícios do
bairro (...) enquadram-se neste carácter geral [árabe/
cubista] de Olhão (...) — torna claro que o arquitecto
procurou assegurar no bairro municipal aquilo que
não havia querido, sabido ou podido fazer no Bairro Lucas & Ventura: uma proposta de arquitectura
moderna que citasse directamente a idiossincrática
construção popular olhanense. Para tal, recorreu ao
evidente denominador comum entre ambas — as
massas construídas em volumes elementares, inteiramente caiadas de branco e pontuadas por aberturas bem marcadas, cada casa dotada de cobertura
em terraço individual cercado por platibanda — e
5 | Olhão, maqueta
do Bairro Municipal
de Olhão, fotografia
do Estúdio Mário
Novais, [c.1930].
monumentos 33
completou-o com a escada exterior sobre arco, um
elemento da tradição popular olhanense não tão obviamente integrável num desenho modernista. Mas
foi pela repetição em espelho deste elemento, consequente com a disposição geminada das moradias,
que Carlos Ramos forjou o identificador mais distinto
do seu projecto exposto em 1930, e aquele com maior
reverberação em propostas posteriores. A escada emparelhada tornou-se uma peça de composição popular na arquitectura produzida para Olhão, aplicada,
por exemplo, na sede do Grémio dos Industriais de
Conservas de Peixe do Sotavento do Algarve (arquitecto Fernando Coruche e engenheiro Costa Ritto,
1942-1945), no edifício para dormitório e cantina da
Associação de Assistência à Mendicidade (arquitecto
Jorge de Oliveira, 1945-1949), e nos bairros de Casas
para Pescadores projectados pelo arquitecto Inácio
Peres Fernandes em 1945 e concluídos em 1949 em
Olhão e na vizinha Fuseta (fig. 12). De mera sugestão não-construída mas amplamente difundida entre
a pequena comunidade de arquitectos portugueses, a
escada emparelhada converteu-se em forma-símbolo,
facilmente reproduzível e plasticamente sedutora, em
especial como elemento de marcação de uma cadência clara na composição de alçados extensos e repetitivos por natureza, como são aqueles dos conjuntos
de habitação económica. A escada dupla sobre arco
de três centros testemunha a importância de ícones
reconhecíveis e esteticamente apelativos na construção de identidades arquitectónicas regionais ou locais
por autores metropolitanos, seja através de propostas
de cariz modernista ou conservador. Tais ícones, contudo, não podem distrair-nos da observação atenta de
cada uma das propostas, em todos os seus aspectos.
A análise do Bairro Municipal de Olhão de Carlos
Ramos parece abrir linhas de leitura interessantes.
A estrutura urbana proposta, por exemplo, com as
duas bandas em rigorosa simetria segundo o eixo da
rua interior delimitado pela torre de água e pelo por-
VÁRIA
155
tão, transmite um sentido de ordem e disciplina que
sugere a intenção de eliminar a desordem observada
no casco antigo de Olhão, ou pelo menos encerrá-la
num arruamento privativo. A clara geometria global
de um quarteirão bem delimitado adquire um sentido panóptico, pelo qual o controlo e a repressão das
actividades ilícitas comuns no período (como o contrabando passado de mão em mão pelas açoteias, descrito por Raul Brandão) ficariam facilitados. A utilização pensada para a rua privada é, de resto, ambígua:
demasiado exígua para servir como quintal colectivo
das vinte e quatro famílias (que dispõem de um pátio
interior cada), ela não serviria tão-pouco como via de
acesso principal às habitações — eixo que nas vilas
e aldeias algarvias tem uso intensivo e importância
destacada na vida social das comunidades — visto
que as portas dos fogos pontuavam, pelo contrário, o
perímetro exterior do quarteirão. Seria assim uma via
de serviço às cozinhas, o que a confirmar-se constituiria um equívoco relativamente à estrutura doméstica
tradicional olhanense: em casas construídas no centro
de Olhão, ainda na década de 1910, a cozinha era com
frequência semi-exterior e estendia-se para o pátio privativo contíguo, nas traseiras, o qual desempenhava
funções múltiplas e fundamentais (convívio e refeições familiares, criação de animais, passagem para
despensa e sanitários, escada de acesso à açoteia)
mas por natureza íntimas da família. O projecto de
Carlos Ramos parece desligar tais funções da cozinha
e transferi-las, em pequena parte, para o pátio interior
com que dotava cada unidade habitacional; contudo,
este pátio e a sua posição levantam outras questões.
A compartimentação proposta por Carlos Ramos
(fig. 6) é essencialmente conservadora. A casa tradicional olhanense, de dominante longitudinal,
organiza-se a partir de um vestíbulo, ou “casa de
fora”, e de um subsequente corredor que distribui
para quartos, dos quais, por regra, um ou dois são
interiores; a cozinha e sala de refeições localizam-se
6 | Olhão, Projecto de
um Bairro Municipal
a construir em Olhão,
planta, desenhada
por Carlos Chambers
Ramos, fotografia de
autor desconhecido,
[c.1930].
156
VÁRIA
monumentos 33
ao fundo, sobre o referido pátio traseiro ou quintal.
Assim, o que o arquitecto parecia propor era a substituição de um dos compartimentos interiores por um
pátio escavado na casa — uma espécie de sala interior descoberta, ou o quintal de Olhão reinventado
— e a manutenção da restante estrutura inalterada.
A funcionalidade do pátio ficava, no entanto, comprometida quando comparada com a do correspondente tradicional, como vimos, do mesmo passo que
a sua dimensão relativa na habitação se tornava excessiva e pouco coerente com o carácter económico
da iniciativa; seria de esperar a sua rápida transformação, pelos habitantes, em sala interior coberta,
agravando a salubridade global do fogo.
Em resumo: a proposta de Carlos Ramos representava um compromisso difícil. Sob a capa de uma
composição inspirada simultaneamente no modernismo internacional e na construção vernácula local, as casas económicas concebidas pelo arquitecto
encontravam-se a meio caminho entre as fórmulas
habitacionais tradicionais de Olhão (sem contudo as
compreender plenamente) e a sua tradução erudita,
melhorada por critérios modernos — cuja irracionalidade e anti-economia a afastavam, no entanto, dos
últimos desenvolvimentos técnico-científicos relativos
a habitação mínima e de baixo custo. Sem informação sobre as razões que impediram a realização do
projecto do bairro municipal podemos apenas sugerir
que, juntamente com eventuais dificuldades de financiamento (a legislação nacional estabelecendo as bases para a participação do Estado nestas iniciativas foi
inteiramente reformulada em 1932 e 193331), a difícil
justificação económica das tipologias habitacionais
propostas pode também ter pesado. Neste particular,
o segundo projecto com o qual esta proposta não realizada tem sido sistematicamente confundida, com
base na aparente similitude do ícone adoptado para
pontuação dos alçados — o Bairro de Casas para Pescadores de Inácio Peres Fernandes, de 1945-1949 —,
foi um exemplo de habitação mínima de promoção
pública mais completo e bem sucedido, não apenas
por ter sido, esse sim, realizado, mas também por
propor soluções aperfeiçoadas para o problema, independentemente da sua composição exterior. Entretanto, a influência efectiva deste exemplo na construção
quotidiana de Olhão, fora do círculo dos arquitectos
metropolitanos, foi também notável.
3. O Bairro de Casas para Pescadores
(1945-1949): escala real
(...) Procurámos agrupar as casas tirando partido
das suas diferenças de altura e de fachada, bem
como de alinhamento, afim de evitar, na medida
do possível, a monotonia que parece ser fatal consequência das construções em série. Procurámos
igualmente evitar as moradias isoladas e mesmo as
geminadas por nos parecer mais agradável e económico reuni-las em grupos mais extensos com o que
se definem melhor os arruamentos e se impede que
sejam visíveis as traseiras que, por mais que se faça
ou exija, são sempre nota desagradável e pouco limpa (...)32.
(...) [N]o bairro novo dos pescadores, construído
com muito gosto dentro do estilo tradicional (o que
é raro neste género de obras oficiais...), as casas
têm quintais e as ruas largura suficiente para que
a interdição de utilizar as açoteias seja respeitada
sem prejuízo; o terraço é assim um lugar de desafogo (...). Fixado, por uma razão funcional, o estilo
de construção, compreende-se que ele se alargue até
onde já não é necessário — e muitas casas das ruas
modernas e largas de Olhão continuam a ter o mesmo remate (...)33.
7 e 8 | Olhão,
Bairro de Casas
para Pescadores,
fotografias de autor
desconhecido,
[c.1950].
monumentos 33
O projecto de Inácio Peres Fernandes para os bairros de Casas para Pescadores de Olhão e Fuseta, elaborado para a Junta Central das Casas dos Pescadores
(JCCP) por intermédio da DGSU em conjunto com
outros dois para o Algarve (Portimão e Ferragudo),
distingue-se em muitos aspectos do projecto quinze anos mais velho de Carlos Ramos. Com efeito, a
escada emparelhada que levou sucessivos autores a
confundir os dois e a atribuir a autoria do o de Peres
Fernandes a Carlos Ramos — isto é, a “transformar”
um projecto não realizado numa obra efectivamente
existente34 — será um dos poucos traços que estas
duas propostas têm em comum.
Não há, em primeiro lugar, equivalência entre as
escalas dos dois trabalhos. Se Carlos Ramos concebeu um grupo fechado de vinte e quatro habitações,
a Inácio Peres Fernandes foi pedido que projectasse
uma “vila-dentro-da-vila” de grande fôlego, uma nova
extensão de Olhão para instalação de 2480 famílias
em 1240 casas de quatro tipos (três tipos de moradia em banda e um tipo de “apartamento” em prédio
de três pisos), igreja, escolas, Casa dos Pescadores e
núcleos de comércio (fig. 9). E apesar de apenas um
décimo do projectado ter sido realizado, as intenções
descritas pelo arquitecto na memória citada acima, de
índole urbana e não estritamente arquitectónica, eram
visíveis na extensão construída (figs. 7 e 8): os bairros
de Peres Fernandes, em contraste intencional com o
centro de Olhão, transpiravam largueza de traçado,
ordem e regularidade conjugada com alguma variedade. Facilitando a manutenção da ordem pública (e
privada, como a observação de Orlando Ribeiro acima
citada parece sugerir), o projecto cumpria claramente os propósitos fisio-sociais e políticos subjacentes a
todas as iniciativas deste tipo no período e, esses sim,
já aparentemente contemplados no bairro municipal
de Carlos Ramos.
Reitera-se aqui a importância do contexto específico
que rodeou a proposta de Peres Fernandes, ausente
das encomendas de Carlos Ramos (tanto em 1925
quanto em 1930). Foi apenas a partir de 1932 que o
Estado começou a criar os mecanismos legais e administrativos para responder à carência generalizada
de habitação económica — estratégia que, em Olhão,
teve os primeiros resultados efectivos com o Bairro
do Consórcio Português de Conservas de Peixe (1935-1938), sessenta e seis casas projectadas pelo arquitecto Eugénio Correia para a Secção de Construção
de Casas Económicas da Direcção-Geral dos Edifícios
e Monumentos Nacionais (DGEMN) e primeira realização de habitação de baixo custo com apoio estatal
no concelho35. Mas o agravamento progressivo da carência habitacional conduziu ao multiplicar dos programas e agências afectas: a partir de 1945 a responsabilidade pelo planeamento, projecto, financiamento
e acompanhamento da construção de habitação subsidiada passou a ser partilhada entre a DGEMN e
a DGSU, ficando esta última com a tutela do plano
nacional de Casas para Pescadores, em articulação
com a JCCP, e do ainda mais ambicioso programa de
VÁRIA
Casas para as Classes Pobres, que previa a construção, em cooperação com municípios e misericórdias,
de cinco mil casas em todo o país36. Foi neste contexto
expansionista que, como anteriormente no programa
de Casas Económicas (1933), foi dada prioridade aos
dois maiores centros piscatórios do Algarve (Olhão e
Portimão) para criação dos primeiros bairros nacionais
de habitação especificamente planeada para pescadores (ou melhor, para os membros das correspondentes
associações oficiais de socorro mútuo concelhias, as
Casas dos Pescadores). O lote de quatro bairros algarvios — para aqueles dois centros e os respectivos
satélites, Fuseta e Ferragudo — foi entregue a Peres
Fernandes e desenhado em conjunto (Barlavento em
Agosto, Sotavento em Outubro de 1945); as obras de
Sotavento (cento e vinte fogos em Olhão e trinta na
Fuseta) foram lançadas em simultâneo e realizadas
pelo mesmo empreiteiro, entre 1946 e 1949. Se o bairro municipal de Carlos Ramos era um protótipo, uma
variação sobre o tema da interpretação modernista
metropolitana da identidade popular de Olhão, um
exercício possivelmente desprovido de um programa
detalhado definido pelo cliente — o Bairro de Casas
para Pescadores de Peres Fernandes era uma resposta
a uma encomenda real e precisa, formulada no quadro de um programa nacional, ambicioso e acarinhado pelo regime. Nestes termos, a coincidência de um
pormenor de desenho (como a escada emparelhada)
parece relativamente pouco relevante.
Por último, a distância que separa os projectos de
Carlos Ramos e Peres Fernandes aumenta ainda sempre que for tido em consideração o layout da célula
habitacional. Se o primeiro introduzia um pátio interior num esquema funcional fundamentalmente tradicional, com consequências negativas na racionalização do fogo e na economia da construção, o segundo
propunha alterações pontuais aos tipos nacionais
definidos pela JCCP (para Peniche e Espinho37), mas
mantinha os propósitos eminentemente económicos
157
9 | Olhão, Casas dos
Pescadores, Plano
Geral, desenhado
por Inácio Peres
Fernandes, 1945
158
VÁRIA
monumentos 33
daqueles e aperfeiçoava o funcionamento de uma
célula mínima, com áreas de circulação e perímetros
exteriores reduzidos. O “Tipo I” de Peres Fernandes
(três quartos, 53,72m2, figs. 10 e 11) — tipo dotado
de escada exterior de acesso à açoteia e sistematicamente confundido com o projecto não realizado de
1930 — dispunha o fogo em paralelo à rua, por ser
esta a solução (...) mais económica, sob o ponto de vista construtivo (...); Carlos Ramos, conservadoramente, colocava-o na perpendicular àquela, replicando a
estrutura fundiária existente em Olhão. E, enquanto
Carlos Ramos centrava a compartimentação numa divisão exterior (o pátio), Peres Fernandes utilizava a
diminuta “casa comum” para este efeito, distribuindo
os quartos, o recanto de cozinhar e o alpendre de lavagens a partir deste espaço central. Armários embutidos nos quartos e a predefinição da distribuição do
mobiliário procuravam obviar à exiguidade extrema
das áreas e ao (...) mau gosto e falta de recursos dos
moradores (...), nas palavras do arquitecto38. Finalmente, em contraste claro com o hermetismo do projecto de Carlos Ramos, Peres Fernandes dotou cada
casa de um quintal individual (“logradouro”), mecanismo que acabava por corresponder ao costume local olhanense e, como notou Orlando Ribeiro, desencorajaria a utilização abusiva das açoteias, verificada
nas casas do centro antigo.
Sobre estes princípios de concepção tipológica do
fogo, afinados em paralelo para os bairros de Sotavento e Barlavento, Peres Fernandes introduziu no
desenho dos primeiros (...) as modificações de fachada resultantes sobretudo de uma das características peculiares da região de Olhão: o uso da açoteia
como cobertura (...)39. A escada emparelhada, que
não saíra do papel no projecto gorado de Carlos
Ramos mas já então se popularizava em obras novas em Olhão, foi utilizada por Peres Fernandes para
acesso às coberturas e claramente como elemento de
marcação das frentes de rua, adicionando variedade
ao conjunto e evitando, como o próprio alegou, (...)
a monotonia que parece ser fatal consequência das
construções em série (...). Outros elementos da paisagem urbana olhanense, como o pangaio destacado
sobre a açoteia, foram igualmente empregues nos
diversos tipos de moradia dos bairros de Sotavento, com semelhante intento. Esta era uma utilização
instrumental da tradição local, visando relacionar a
nova ordem proposta com a imagem específica da
vila, mas mantendo intacta a racionalidade, tipológica, construtiva e económica, de um programa acima
de tudo centrado na resposta a imperativos económicos. O pragmatismo de Fernandes não se deixou tolher pelo lado mais superficial de tal utilização, e os
seus Bairros de Casas para Pescadores, embora não
reconhecidos como seus pela cultura arquitectónica
contemporânea, continuam em funções mais de seis
décadas depois.
É de assinalar, com efeito, o impacto dos primeiros bairros de habitação económica de Olhão nos
círculos não estritamente arquitectónicos. A apre-
ciação do geógrafo Orlando Ribeiro, retirada do
seu importante texto Geografia e Civilização (1961),
assinala o acolhimento positivo que interpretações
contemporâneas de elementos tradicionais podiam
granjear entre a elite intelectual metropolitana;
note-se como esta era uma apreciação baseada na
obra, visitada e cotejada com as práticas do núcleo
antigo da vila, e não na reputação do arquitecto.
Orlando Ribeiro, por outro lado, aceitava aqui sem
pejo que o estilo de construção tradicional — as
açoteias e as respectivas escadas — se convertesse
nisso mesmo, num estilo, livre e naturalmente adoptado nas (...) ruas modernas e largas de Olhão (...),
independentemente dos imperativos funcionais que
estavam na sua origem. Em sentido semelhante, o
geógrafo alemão Wilhelm Giese — que, nos anos
de 1930, discutira em artigos científicos as origens
da açoteia olhanense — assinalou, ao voltar à vila
vinte anos depois, como as (...) casas espaçosas de
dois andares com todas as comodidades modernas
(...)40 do Bairro Económico da Horta da Cavalinha
(1945-1950, segunda obra de Eugénio Correia, em
Olhão) tinham adoptado um elemento tradicional:
10 | Olhão,
planta do “Tipo I”
do Bairro de Casas
para Pescadores,
desenhada por Inácio
Peres Fernandes,
1945.
11 | Olhão,
perspectiva do “Tipo I”
do Bairro de Casas
para Pescadores,
desenhada por Inácio
Peres Fernandes,
1945.
monumentos 33
a escada exterior que, projectada da empena de cada
casa, dava acesso à moderna açoteia como as que,
nas casas tradicionais do centro, ligavam as velhas
açoteias aos mirantes. Estes bairros, (...) expressivamente modernos (...), eram exemplos da (...) mescla
do antigo e do novo, do que está morrendo e do que
está crescendo (...) em Olhão e, nessa medida, deixavam uma impressão forte, e positiva, em observadores como Wilhelm Giese.
Epílogo
O Bairro Municipal de Olhão de Carlos Chambers
Ramos é um exemplo, rico e significativo, de uma
construção artificial da cultura arquitectónica portuguesa. É um projecto não realizado, datado de c. 1930
e não de c. 1925, e as suas características ou qualidades devem ser discutidas tendo em consideração
estes dados essenciais. Considerá-lo o (...) primeiro
acto de maturidade (...) de Carlos Ramos e, (...) no
contexto nacional, (...) o primeiro exemplo de uma leitura moderna sobre a arquitectura tradicional, (...)41,
justifica-se se este for visto como uma obra projectada
em 1925 — mas resulta menos claro em face de tais
elementos de base. Celebrar o valor simbólico do Bairro Municipal de Olhão de Carlos Ramos, como o único
no universo da habitação económica do período (...)
em que houve a preocupação de usar a linguagem arquitectónica local (...)42, é redutor — já que o mesmo
pode ser dito de outros projectos seus contemporâneos — e deriva mais da associação da obra com o seu
suposto autor, reputado expoente do primeiro modernismo em Portugal (no contexto de um levantamento
transversal do século XX português), do que de uma
análise fria e circunstanciada dos edifícios erguidos
em Olhão e na Fuseta.
VÁRIA
159
Estes edifícios — as Casas para Pescadores de Inácio Peres Fernandes —, a par dos seus congéneres
de Eugénio Correia (Casas Económicas) e António
Gomez Egea e Luís Guedes (Casas para as Classes
Pobres, 1946-1949), tiveram uma importância fundamental na definição de uma identidade arquitectónica
moderna para Olhão. Contudo, no contexto de uma
cultura arquitectónica nacional eminentemente focada em peças simbólicas e por vezes tendente a distribuir obras e autores em categorias e cronologias preestabelecidas, o rico tecido de projectos e realizações
desenvolvidos na primeira metade do século passado
para aquele local periférico foi ofuscado pelo brilho
do projecto não realizado de Carlos Ramos. Os equívocos que envolvem este projecto confirmam a pertinência de um olhar mais atento aos objectos e às suas
circunstâncias, e menos preso a narrativas consolidadas. Por desatenção, superficialidade ou precipitação
na análise — afinal, basta uma simples visita a Olhão,
munida dos elementos publicados por Carlos Ramos
e por sucessivos autores desde então, para se concluir
que os edifícios ali existentes não correspondem ao
publicado —, a história destes projectos pioneiros de
habitação económica olhanense foi instrumentalizada
de modo a coincidir com o registo canónico da arquitectura portuguesa contemporânea. Repor os dados
históricos essenciais destes objectos — tarefa para
a qual este texto pretende contribuir — é, espera-se,
abrir o campo a novas interpretações e leituras.
Ricardo Agarez
Arquitecto e Historiador da Arquitectura
Imagens: 1: Câmara Municipal de Olhão;
3 e 6: Arquivo Carlos Manuel Ventura Ramos;
4 e 5: Fundação Calouste Gulbenkian/Biblioteca
de Arte; 7 e 8: Arquivo Nacional da Torre
do Tombo; 9 a 11: Arquivo Inácio Peres
Fernandes; 12: autor.
12 | Fuseta, Bairro
de Casas para
Pescadores,
fotografia de Ricardo
Agarez, 2007.
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N OTA S
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O texto deste artigo não obedece ao Novo Acordo Ortográfico, por indicação
expressa do autor.
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CMO, Arquivo da Secção de Obras, Pedido de Viabilidade para Loteamento,
apresentado por Inácio de Jesus Ramos Lda. a 28 de Maio de 1987. Proc. 760/
1987 (Rua Manuel Martins Garrocho, n.º 40).
O presente artigo decorre da investigação de doutoramento do autor, desenvolvida na University College London – The Bartlett School of Architecture
sob a orientação do Prof. Adrian Forty, e financiada pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia (Portugal). A tese, intitulada Regionalism, Modernism
and Vernacular Tradition in the Architecture of Algarve, Portugal, 1925-1965,
foi dedicada ao estudo das interacções entre correntes arquitectónicas modernistas, conservadoras e regionalistas, entre a práctica arquitectónica profissional, as tradições e as práticas construtivas locais e o correspondente
contexto extra-arquitectónico, no ambiente construído do Algarve durante a
primeira metade do século XX. Dissertação e artigo assentam essencialmente
em fontes primárias, centrais, regionais e locais, no intuito de adoptar um
posicionamento menos centralizado no tratamento de questões que envolvem comunidades e processos periféricos, procurando reequilibrar perspectivas comummente unívocas (centro-periferia) e explorar as possibilidades
críticas que assim se abrem. Os equívocos historiográficos em redor dos
bairros de habitação económica de Olhão foram já discutidos pelo autor em
outros textos, embora sob perspectivas distintas: Ricardo AGAREZ — “Metropolitan Narratives on Peripheral Contexts: Buildings and Constructs in Algarve (South Portugal), c. 1950”. In Ruth MORROW; Mohamed Gamal
ABDELMONEM (ed.) — Peripheries, 2013, pp. 209-224; idem — “A construção
do quotidiano: arquitectura ‘bread-and-butter’ no Sul de Portugal, 1925-1950”.
In IV Congresso História da Arte Portuguesa, pp. 366-373; e idem — “Olhão,
Modern Vernacular and Vernacular Modernism”. In First International Meeting
EAHN — European Architectural History Network, pp. 128-135. O autor deixa
aqui um agradecimento especial ao arquitecto Carlos Manuel Ventura Ramos
(em homenagem póstuma), ao arquitecto Gonçalo Canto Moniz, ao engenheiro José Peres e à senhora dona Cecília Alves (Câmara Municipal de Olhão),
pela ajuda prestada na recolha de documentação e informação.
“Arquitectura Regional.” Europa, Jun. 1925, n.º 3, p. 15.
Carlos RAMOS — “Alguns problemas de arquitectura: soluções concretas.”
Arquitectura, 1927, 1.ª série, ano 1, n.º 9, pp. 130-138.
Cândido do Ó Ventura (1893-1968) ficou consagrado na história local de
Olhão por ter sido sob a sua direcção que a equipa de futebol do Sporting
Clube Olhanense conquistou o título de campeão nacional da I Divisão, em
1924.
António FERRO — “Olhão, terra Cubista”. Ilustração Portuguesa, 14 Jan. 1922,
p. 43.
José Dias SANCHO — “Olhão Cubista”. Correio Olhanense, 1 Dez. 1923.
Raul BRANDÃO — Os Pescadores.
Nomeadamente na obra Pousada de Ciganos (c. 1923). Cf. Reinaldo dos
SANTOS — “Eduardo Viana, 1923.” Colóquio. Revista de Artes e Letras, 1968,
n.º 48, pp. 4-5.
(...) Vila cubista chamaram a Olhão e, de facto, ‘a vol d’oiseau’, parece a casaria projectar-se duma tela de Picasso para ludíbrio dos olhos afeitos à ordem
objectiva das três dimensões. Dum prédio para o outro as açoteias e fachadas
imbrincam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se, anuladas pela
brancura e pela miragem as leis da perspectiva e do volume. São milhares
de cubos em equilíbrio instável, paradoxal, absurdo, como cantarias duma
Babel juncando um campo raso (...). Aquilino RIBEIRO — “Olhão”. In Raul
PROENÇA — Guia de Portugal, vol. 2, pp. 75-78.
São exemplos desta substituição da imagem do Algarve pela de Olhão, as
representações da região nas exposições internacionais de Paris (1937), Nova
Iorque e São Francisco (1939) e na Exposição do Mundo Português em Lisboa
(1940). O autor discutiu este processo em Ricardo AGAREZ — “Local Inspiration for the Leisure of Travellers: Early Tourism Infrastructure in the Algarve
(South Portugal), 1940-1965.” In Janina GOSSEYE (ed.); Hilde HEYNEN (ed.)
— Architecture for Leisure in Post-war Europe, 1945-1989, pp. 180-195.
(...) Olhão, which (…) for sheer starkness of architecture could give points
to many a modern young architect priding himself on the functional use of
materials (...). Jan GORDON; Cora GORDON — Portuguese Somersault,
pp. 212-213.
Em Olhão (...) [t]em-se a impressão de que nos encontramos numa terra árabe.
As casas são estranhas de beleza e têm todas uma certa expressão de mistério
(…) todas muito brancas, e cúbicas, com as suas açoteias, donde à tardinha
se vê suavemente morrer o sol no imenso oceano (...). Jorge SEGURADO —
“Arquitectura. Da Casa Portuguesa e seu carácter”. Alma Nova, 1926, n.º 3,
p. 15. Segurado viria a concretizar a sua imagem estilizada de Olhão no
projecto para a representante algarvia nas Aldeias Portuguesas, conjunto
incluído no Centro Regional da Exposição do Mundo Português, em Lisboa,
1940. Para uma interpretação da relação de Segurado com o “Cubismo” de
Olhão, v. Andreia GALVÃO — O Caminho da Modernidade. A Travessia Portuguesa,...
Por exemplo, v. José Ângelo Cottinelli TELMO — “Casa de 6 Compartimentos
Para o Sul do País”. A Arquitectura Portuguesa, Jun. 1933, ano 26, n.º 6,
pp. 1-42.
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Orlando RIBEIRO — Geografia e Civilização: Temas Portugueses, p. 78.
Sobre este processo, ver, Joaquim Vieira RODRIGUES — A Indústria de Conservas de Peixe no Algarve (1865-1945).
(…) Também, diga-se a verdade: toda a gente em Olhão, ricos e pobres, protegia
os contrabandistas e entrava no negócio. Nunca em terra se apreendeu uma
peça de fazenda. Passava-se de çoteia para çoteia — para o quê bastava estender os braços — e corria, se fosse preciso, a vila toda (…). Raul BRANDÃO —
Os Pescadores, p. 277.
Carlos SAMBRICIO — “La normalización de la arquitectura vernácula”. Revista
de Occidente, 2000, n.º 235 pp. 43-44.
Sobre o mito da cobertura plana como representativa da casa popular algarvia,
ver João Vieira CALDAS — “Verdade e Ficção Acerca da Casa Rural Vernácula
do Baixo Algarve”. Cidade e Mundos Rurais…, pp. 49-63.
Paula André dos Ramos PINTO — Arquitectura Moderna e Portuguesa..., p. 344.
Carlos RAMOS; Jorge SEGURADO — Catálogo do I Salão dos Independentes, p. 26.
(...) Diese Stadt mit ausgesprochen arabischem Charakter wird die ‘kubistische
Stadt par excellence’ genannt. Diesem allgemeinen Charakter Olhaos passen sich
die Siedlungsbauten an (...). Carlos RAMOS — “Pläne und Entwürfe eines Portugiesischen Architekten von Carlos Ramos, Lissabon”. Wasmuths Monatshefte.
Baukunst & Städtebau, Jun. 1931, pp. 325-327.
Detalhados em Andreia GALVÃO — Ob. cit., Anexo Catálogo, proc. ref. 61.
(...) Ramos es el espíritu que necessita llevar dentro todo el movimiento (...).
Jorge SEGURADO — “A Arquitectura no ‘I Salão dos Independentes’, Lisboa”.
Arquitectura, 1930, 12, n.º 136, p. 230.
(...) Logo no ano seguinte [1925] projecta Ramos um ‘Asilo para a Velhice’ e um
‘Bairro Operário’ ambos para Olhão. O ‘Bairro Operário’ sobretudo tem interesse
na caracterização e no tratamento formal. Reparar nas escadas exteriores que
conferem ao conjunto uma grande força e um jogo de claro-escuro com que animam o interior do quarteirão (...). Pedro Vieira de ALMEIDA — “Carlos Ramos
— uma estratégia de intervenção”. Carlos Ramos. Exposição Retrospectiva da
Sua Obra.
A partir de então, o registo histórico repetidamente atribuiu ao projecto do Bairro Municipal de Olhão (c. 1930) a data do Bairro Operário Lucas & Ventura
(c. 1925): assim aconteceu, por exemplo, em Ana Assis PACHECO — “Bairro
Económico de Olhão.” In Ana TOSTÕES (ed.); Annette BECKER (org.); Wilfried
WANG (org.) — Arquitectura do Século XX. Portugal; Bárbara COUTINHO —
Carlos Ramos (1897-1969): Obra, Pensamento e Acção...; e Paula André dos
Ramos PINTO — Ob. cit.
Elemento essencial do projecto que, não obstante os melhores esforços do autor,
não foi possível localizar.
Antero NOBRE — História Breve da Vila de Olhão..., pp. 127-128.
Mário Lyster FRANCO — “Grandes festas em Olhão”. Diário de Notícias, 17(?)
Set. 1931.
CMO, Arquivo da Secção de Obras, proc. 9879-A.
Pelos diplomas estabelecendo as figuras legais de “Melhoramentos Urbanos” (DIÁRIO da República, 30 Set. 1932, I série, n.º 230, Decreto n.º 21.697,
Ministério das Obras Públicas e Comunicações), do “Fundo de Desemprego”
(Ministério das Obras Públicas e Comunicações, Decreto n.º 21.699. Ibid.) e das
Casas Económicas (Presidência do Conselho, Decreto-Lei n.º 23.052. In Diário
da República I Série, 217, 23 Setembro 1933).
CMO, Arquivo da Secção de Obras, DGSU. Casas de Pescadores. Olhão. Inácio
Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 2 Out. 1945.
Orlando RIBEIRO — Ob. cit., pp. 68-71.
Ao primeiro equívoco sobre a datação, originado no catálogo de 1986, a generalidade dos autores que referem o projecto do Bairro Municipal de Olhão
somam um segundo equívoco: ilustram este projecto com imagens do Bairro
de Casas para Pescadores de 1945-1949, por vezes mesmo a par com imagens
da maqueta de c. 1930. Veja-se, por exemplo, Ana Assis PACHECO — “Bairro Económico de Olhão.” In Ana TOSTÕES (ed.); Annette BECKER (org.);
Wilfried WANG (org.) — Ob. cit.; Bárbara COUTINHO — Ob. cit.; José
Manuel FERNANDES — Arquitectura no Algarve, dos Primórdios à Actualidade,...; Ricardo CARVALHO — “Morada: Rua, Casa”. Jornal Arquitectos,
2006, n.º 224, pp. 34-41; e Paula André dos Ramos PINTO — Ob. cit. Alguns
autores (José Manuel Fernandes e Ricardo Carvalho, por exemplo), dão mesmo o projecto de 1930 como construído não apenas em Olhão, mas também
na Fuseta.
V. Ricardo AGAREZ — “A construção do quotidiano: arquitectura ‘bread-and-butter’ no Sul de Portugal, 1925-1950”. IV Congresso História da Arte Portuguesa, pp. 366-373.
DIÁRIO da República, 6 Abr. 1945, I Série, n.º 78, Decreto-Lei n.º 34 486, Ministério das Obras Públicas e Comunicações.
Lisboa, Arquivo Inácio Peres Fernandes, DGSU. Casas de Pescadores. Portimão,
Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 17 Agosto 1945.
Lisboa, Arquivo Inácio Peres Fernandes, DGSU. Casas de Pescadores. Portimão,
Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 17 Agosto 1945
CMO, Arquivo da Secção de Obras, DGSU. Casas de Pescadores. Olhão, Inácio
Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 2 Outubro 1945.
Wilhelm GIESE — Conservação e Perda da Cultura Material e Tradicional no Sul
de Portugal, pp. 8-10. Tradução para português de “Bewahrung und Schwund
der traditionellen Gegenstandskultur im Süden Portugals”. Zeitschrift für Ethnologie, 1959, n.º 84, pp. 294-301.
Bárbara COUTINHO — Ob. cit., p. 44.
Ana Assis PACHECO — Ob. cit., p. 165.
monumentos 33
F O N T E S
D O C U M E N TA I S
Câmara Municipal de Olhão (CMO), Arquivo da Secção de Obras, Processo de obra
da Rua Manuel Martins Garrocho 40, Proc. 760/1987; DGSU. Casas de Pescadores. Olhão.
Projecto dum Bairro Económico que a Câmara Municipal de Olhão Pretende Construir Nesta Vila, Proc. 9879-A.
Lisboa, Arquivo Inácio Peres Fernandes, DGSU. Casas de Pescadores. Portimão, Inácio Peres Fernandes, Memória Descritiva e Justificativa, 17 Agosto 1945.
B I B L I O G R A F I A
AGAREZ, Ricardo — “Metropolitan Narratives on Peripheral Contexts: Buildings
and Constructs in Algarve (South Portugal), c. 1950”. In MORROW, Ruth (ed.);
ABDELMONEM, Mohamed Gamal (ed.) — Peripheries: Edge Conditions in
Architecture. London: Routledge, 2013, pp. 209-224.
Idem — “A construção do quotidiano: arquitectura ‘bread-and-butter’ no Sul de
Portugal, 1925-1950.” IV Congresso História da Arte Portuguesa. Lisboa: Associação Portuguesa de Historiadores da Arte, 2012, pp. 366-373.
Idem — “Local Inspiration for the Leisure of Travellers: Early Tourism Infrastructure in the Algarve (South Portugal), 1940-1965.” In GOSSEYE, Janina (ed.);
HEYNEN, Hilde (ed.) — Architecture for Leisure in Post-war Europe, 1945-1989.
Leuven: Katholieke Universiteit — ASRO, 2012, pp. 180-195.
Idem — “Olhão, Modern Vernacular and Vernacular Modernism”. First International Meeting EAHN — European Architectural History Network. Guimarães:
European Architectural History Network; Universidade do Minho/Escola de
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DIÁRIO da República. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 30 Set. 1932, I Série, n.º 230, Decreto n.º 21 699 [Fundo de Desemprego], Ministério das Obras
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DIÁRIO da República. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 23 Set. 1933,
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161
162
PUBLICAÇÕES
monumentos 33 dossiê
PUBLICAÇÕES
Pardal Monteiro 1919-2012
AA.VV
Lisboa, Caleidoscópio, 2013
Tendo em consideração o elevado legado
patrimonial presente em obras emblemáticas ao longo de quase um século, a presente monografia procura apresentar uma
panorâmica da obra do Ateliê Pardal Monteiro, inventariando o trabalho produzido
pelo ateliê entre 1919, data da sua fundação, e 2011. Porfírio Pardal Monteiro (1897-1957) foi dos mais ativos arquitetos portugueses das décadas de 1920 a 1940, não
limitando a sua ação à conceção e realização de obras, mas também ao ensino e à
busca de princípios de entendimento, de
racionalização de conceitos e modos de
pensar a Arquitetura.
O livro referencia, numa primeira fase,
cerca de 140 projetos elaborados por este
arquiteto entre 1919-1957, grande parte dos
quais inéditos.
Numa segunda fase, são contemplados
cerca de 120 projetos, datados de 1957-2011, da autoria do arquiteto António
Pardal Monteiro (1928-2012), sobrinho de
Porfírio, que, em 1948, começou a trabalhar naquele ateliê, vindo, após a morte
do tio, a dar seguimento ao seu trabalho,
prosseguindo com os seus próprios projetos até aos nossos dias; e dos arquitetos
João e Manuel Pardal Monteiro, filhos de
António Pardal Monteiro, que, a partir da
década de 1980 se associam ao pai, constituindo a terceira geração ao estirador do
ateliê familiar.
Património Arquitetónico
e Arqueológico: Noção e Normas
de Proteção
FLÁVIO LOPES
Lisboa, Caleidoscópio, 2012
De uma forma acessível e pedagógica, esta
obra, que resulta de uma síntese de parte
da dissertação de doutoramento do autor,
estuda a evolução das noções de património
arquitetónico e de património arqueológico
e sistematiza os principais critérios e normas
jurídicas aplicáveis às suas proteção,, conservação, valorização e gestão.
Apresenta a característica invulgar de condensar a investigação jurídica realizada pelo
autor no âmbito da apresentação do referido
trabalho académico, como forma de explicitar o modo como a valoração e a integração de conceitos indeterminados se revelam
essenciais para a consistência de uma visão
integrada da proteção do património cultural português.
A obra encontra-se dividida em duas partes: na primeira é apresentada, ao longo de
quatro capítulos, uma “Evolução histórica
(1901-2001)” da política de intervenção no
património arquitetónico em Portugal; na
segunda são apresentadas, ao longo de nove
capítulos, as “Noções e normas atuais” do
quadro jurídico e operativo da salvaguarda
do património cultural imóvel.
seus espaços urbanos. Para tal recorre-se
aos métodos e técnicas da Análise Sintática, que permitem identificar e interpretar na forma urbana, as regras implícitas
da sua organização espacial e analisar a
dinâmica social no seu processo de desenvolvimento.
A Nova Ordem Industrial
no Estado Novo. Da Fábrica ao
Território de Lisboa (1933-1968)
DEOLINDA FOLGADO
Lisboa, Livros Horizonte, 2012
(Cidade Lisboa)
Bairros Planeados
e Novos Modos de Vida
TÂNIA LIANI BEISL RAMOS
Lisboa, Caleidoscópio, 2013
Partindo da análise dos bairros dos Olivais (Norte e Sul) e de Telheiras, o presente trabalho procura averiguar as contribuições destes para o desenho do habitar
sustentável.
A investigação baseia-se na caracterização físico-espacial destes casos de estudo
e nas relações entre a forma urbana planeada e os padrões de atividade pedonal
observados.
Pretende-se caracterizar as estratégias
de conceção destas áreas residenciais e
avaliar o seu desempenho, identificando
as suas regras morfológicas e reconhecendo os mecanismos de utilização dos
Este estudo, fruto de uma rigorosa
investigação que serviu de base à tese de
doutoramento da autora, pretende contextualizar e entender o desenvolvimento
da indústria portuguesa durante os primeiros trinta e cinco anos (1933-1968) do
Estado Novo, verificando o modo como
esta emergiu associada à energia elétrica
(ou seja a indústria da fase neotécnica) e
analisando as transformações urbanas e
sociais que as novas fábricas provocaram
na cidade de Lisboa e no território envolvente, sobretudo a norte.
Para este efeito são estudados a planificação urbana, a arquitetura e os programas sociais implementados, evidenciando, em alguns casos, os autores e a
sua relação com uma cultura arquitetónica mais ampla, percecionando, mesmo,
o modo como se integram na evolução
de um quadro arquitetónico relativo aos
ciclos construtivos nacionais ou ao Movimento Moderno.
A obra é enriquecida pela reprodução de
fotografias de época pertencentes a arquivos de empresas e de revistas entretanto
extintas, dos planos de urbanização e de
plantas arquitetónicas habitualmente dispersas em vários arquivos de difícil acesso
ao grande público.
monumentos 33
Central Tejo, Imagens
de um Tempo Ausente
ANTÓNIO PAIXÃO
Lisboa, Bizâncio, 2013
A Central Tejo, antiga central termoelétrica, de feição eclética, que abasteceu de
eletricidade toda a cidade e região de Lisboa entre 1909 e 1972, é a protagonista
deste livro, elaborado a partir de um conjunto de fotografias de interiores e exteriores da autoria do fotógrafo António Paixão, efetuadas ao longo de mais de trinta
anos, num “romance” assumido pelo
autor que confessa o seu fascínio por este
local junto ao Tejo, repleto de memórias de
um tempo ausente. Esta edição foi patrocinada pelo programa da Fundação EDP
“Livros com Energia”, uma iniciativa
anual que, desde 2010, apoia a edição de
livros relacionados com as temáticas da
energia e do ambiente.
ção de doutoramento apresentada à Universidade de São Paulo (em 2004), muitos
deles redigidos para encontros internacionais e conferências onde foi oradora.
Partindo da constatação de que nos últimos anos se tem procurado valorizar a produção arquitetónica de matriz portuguesa
em África, principalmente na área da arquitetura moderna, mas que, por outro lado, se
tem olhado pouco (por ser conotada com o
poder colonial e com o poder político) para
a arquitetura de representação nacional —
aquela que se encontra reproduzida nos
equipamentos públicos, nos hospitais, nos
liceus, nas câmaras municipais, nos palácios
do governo — a autora elegeu esta última
para seu objeto de estudo. Assim, em Nos
Trópicos Sem Le Corbusier, é retratada a
arquitetura pública colonial, que junta técnicas essenciais às condições climáticas e
elementos que remetem para a metrópole,
conferindo aos edifícios uma certa portugalidade nos territórios ultramarinos.
Urbanismo e Arquitectura em Angola
MARIA MANUELA DA FONTE
Lisboa, Caleidoscópio, 2013
PUBLICAÇÕES
forma angolana de fazer arquitetura portuguesa, quer se localizasse no campo da
espontaneidade, quer da racionalidade, quer
tentasse ser vernacular ou moderna.
Diário de ‘Bordo’
FERNANDO TÁVORA, ÁLVARO SIZA VIEIRA
(COORD.), RITA MARNOTO (ED.)
Guimarães/Porto, Fundação Cidade
de Guimarães, Família Fernando Távora,
Fundação Instituto Arquiteto José Marques
da Silva, 2012
Publicada no âmbito da exposição Fernando Távora Modernidade Permanente,
esta obra resulta de uma edição fac-similada do original de 1960, é composta por
um conjunto de desenhos, textos e outros
materiais documentais, a partir dos quais
o autor nos dá conta das impressões diárias recolhidas durante a viagem que efetuou pelo Ocidente, entre fevereiro e junho
de 1960. Trata-se de uma edição compósita
de valor essencial para um conhecimento
mais profundo, não só do percurso do arquiteto, professor e teorizador, mas também
para um redimensionamento das vias trilhadas pela arquitetura portuguesa na viragem do moderno.
A Casa dos Sentidos
SÉRGIO FAZENDA RODRIGUES
Lisboa, Uzina Books, 2013
Nos Trópicos sem Le Corbusier
ANA VAZ MILHEIRO
Lisboa, Relógio d’Água, 2012
Coletânea de textos escritos pela arquiteta, entre 2007 e 2011, na sequência da
investigação efetuada para a sua disserta-
Este livro aborda as diferentes formas de
ocupação do território angolano no período
compreendido entre os anos vinte e setenta
do século XX, desde as suas estruturas e
organização até à arquitetura aí produzida.
É feita a análise
nálise
álise
lise sobre a hipótese da existência de uma identidade própria no urbanismo
e na arquitetura praticados no meio século
que precedeu a independência de Angola
e que consistiria na expressão portuguesa
adaptada ao contexto colonial. Aborda-se,
assim, o reflexo espacial do discurso ideológico da época no que se refere aos vários
tipos de ocupação do território angolano,
bem como as teorias urbanísticas europeias
e portuguesas e a sua tradução na prática
urbanística de Angola, através da análise
dos planos e projetos de arquitetura deste
período. Verifica-se, então, como a uma
forma portuguesa de fazer arquitetura angolana correspondeu, em sentido inverso, uma
As crónicas reunidas neste livro reportam-se a uma colaboração regular que o
autor manteve, entre os anos 2007 e 2009,
com o jornal Açoriano Oriental. Nestes textos o autor procurou sistematizar algumas
reflexões sobre arquitetura, de uma forma
clara, evitando um discurso excessivamente
fechado, que permitisse uma aproximação a
um público mais vasto. Trazendo para fora
do círculo profissional questões relativas
à vivência quotidiana da arquitetura, mas
também com a sua relação com outras áreas
do saber, como o cinema, as artes plásticas, ou a música, pretendeu-se abordar um
conjunto de experiências que a todos dizem
respeito.
163
164
PUBLICAÇÕES
monumentos 33 dossiê
Um Olhar Um Percurso
EDUARDO IGLESIA
Porto, Edição do Autor, 2013
A obra realizada pelo arquiteto Eduardo
Iglésias, fundamentalmente sediada no Porto,
desenvolve-se por cerca de meio século,
desde os finais da década de 1940 até ao início do século XXI, abrangendo uma extensa
e variada produção, de onde se podem destacar obras como: o conjunto industrial da
Sociedade Central de Cervejas na Vialonga,
as centrais automáticas para os TLP ou as
moradias e os conjuntos urbanos para cooperativas. Mas o seu trabalho inclui também equipamentos religiosos e educativos, espaços de escritório e comerciais,
além de um vasto leque de objetos arquitetónicos complementares onde se manifesta o seu gosto pelo desenho de pormenor.
Esta publicação organiza, estrutura e apresenta o percurso do arquiteto através de
uma cuidada recolha de documentos, desenhos e fotografias levada a cabo pelo próprio.
Assim, foram estudados e analisados os
principais aspetos de ordem conceptual relativos às fortificações medievais, o que permitiu vislumbrar a génese de uma imagética
cultural referente a um previsível “castelo
medieval português”.
Foi, igualmente, realizada uma contextualização teórica e prática da intervenção
em fortificações medievais, nas suas múltiplas dimensões (cultural, ideológica, simbólica, etc.), observando, comparativamente,
o panorama patrimonial português e o de
outros países europeus, através do estudo
de casos paradigmáticos e ilustrativos dos
princípios de intervenção. Por último, foi
estudado um conjunto de premissas teóricas e empíricas atualmente aplicadas aos
bens culturais, com relevância para aquelas
que se relacionam diretamente com o objeto
analisado, inferindo-se o impacto causado
por intervenções recentes, através do estudo
de casos concretos.
Alcalá, Universidad de Alcalá, 2012
Esta edição resulta da publicação da dissertação de doutoramento apresentada pelo
autor à Universidade de Alcalá, em 2012,
sob orientação de Javier Rivera Blanco e
de Maria João Neto. Nela o autor pretende
expor e discutir o contexto em que as fortificações medievais portuguesas sofreram
intervenções de diversos níveis, mediante a
análise da sua anamnesis (recuperação da
memória) enquanto património de índole
cultural. Para atingir este seu objetivo,
desenvolveu uma investigação segundo três
vertentes fundamentais e complementares
entre si, que englobam um arco cronológico
que se estende desde os inícios do século
XIX até à atualidade.
AA.VV.
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2013
MIGUEL FIGUEIRA DE FARIA (COORD.), AA.VV.
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Universidade Autónoma de Lisboa, 2012
JOAQUIM MANUEL RODRIGUES DOS SANTOS,
MARIA JOÃO NETO (ORIENT.)
A Arquitetura Imaginária
Do Terreiro do Paço
à Praça do Comércio:
História de um Espaço Urbano
Anamnesis del castillo como bien
patrimonial: construcción de la
imagen, forma y (re)funcionalización
en la rehabilitación de fortificaciones
medievales en Portugal
JAVIER RIBERA BLANCO (ORIENT.),
do Terreiro do Paço, e uma segunda dedicada à Praça do Comércio), correspondentes às duas grandes etapas, pré e pós terramoto, de formação deste importante espaço
lisboeta, e que atendem à sua evolução
morfológica, simbólica e funcional, num
progressivo escrutínio das soluções arquitetónicas, monumentais e de utilização quotidiana, que se sucederam entre os séculos
XVI e XIX. O volume é complementado por
uma base de dados bibliográfica e iconográfica sobre o tema.
Segundo volume de uma trilogia coordenada por Miguel Figueira de Faria, que se
iniciou com a publicação de Praças Reais:
Passado, Presente e Futuro, em 2008, e que
deverá concluir-se com a edição crítica da
obra de Joaquim Machado de Castro, Descripção Analytica da Execução da Real Estátua Equestre.
A progressiva metamorfose do Terreiro do
Paço em Praça do Comércio enquanto referente da cultura urbanística de Lisboa é o
objeto de estudo desta obra, que procura
constituir-se como um elemento seguro de
informação e de consulta, que, simultaneamente, fixe doutrina e estabeleça a renovação do estado da questão. Para o efeito,
reúne num só volume um conjunto de
ensaios, organizado em duas grandes partes
(a primeira, dedicada à evolução histórica
Foi publicado o catálogo da exposição
homónima que esteve patente ao público
no primeiro trimestre deste ano no Museu
Nacional da Arte Antiga. Repensar a arquitetura enquanto território utópico e conceptual, verificando a forma como esta, desde
o Renascimento à contemporaneidade,
tem vindo a interagir com as outras artes,
influenciando a pintura, a escultura, a ourivesaria e as artes decorativas é o objetivo
desta obra.
Podemos dizer que, em termos genéricos, a arquitetura imaginária configura um
processo coerente que surge com o alvorecer da Época Moderna, numa viagem de
formas e de ideias, a que não é estranho o
desenvolvimento de instrumentos auxiliares, como a matemática, a geometria e as
ciências a elas associadas. No geral, trata-se
de um universo que configura um ângulo,
que, assim observado e perspetivado, desvenda o próprio processo cultural português, enquadrando, entre Descobrimentos
e Império, a grande empresa da Expansão;
e assim revelando, nesta viagem, um país
que, impregnado então de ideais de modernidade (na renovação do conhecimento) se
destaca nestas áreas do saber exigidas pela
própria navegação.
monumentos 33
Estudos das Zonas ou Unidades
Urbanas de Carácter Histórico-Artístico em Lisboa
JOSÉ-AUGUSTO FRANÇA
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2012
Em 1967, José-Augusto França realizou,
por convite do então presidente da Câmara
Municipal de Lisboa, António Vitorino da
França Borges, um estudo sobre os bairros históricos de Lisboa, hoje arquivado no
processo privativo da CML 1.1.8/1.ª/0/70.
Deste processo faz também parte documentação referente à Proposta para a Salvaguarda do Património Artístico Arquitectónico e Histórico dos Bairros Tradicionais
da Cidade de Lisboa, que ajudou a fundamentar, a análise ao estudo efetuada pelos
serviços de urbanismo (à data a 1.ª Repartição — Planeamento) e o Inventário de
Monumentos Municipais, encomendado
pela autarquia em 1950 a Gustavo de Matos
Sequeira. Na versão editada, que aqui se
apresenta, o texto do estudo é reproduzido
na íntegra, sendo da responsabilidade da
coordenação editorial as notas de rodapé e
toda a informação colocada entre parêntesis retos. As plantas foram refeitas em ArcGis sobre a mesma cartografia utilizada
no original (Levantamento Cartográfico
de 1950, Instituto Geográfico e Cadastral)
e os alçados pombalinos foram redesenhados em CAD. Por opção editorial, o texto é
conjugado com as peças desenhadas e as
fotografias, situação que não se verifica no
documento original. No final da publicação
é apresentada uma reprodução da Proposta
para Salvaguarda do Património Artístico
Arquitectónico e Histórico dos Bairros Tradicionais da Cidade de Lisboa.
Inquérito à Habitação Rural
AA.VV.
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2013
Até hoje inédito, foi agora publicado, o
último volume do Inquérito à Habitação
Rural realizado na década de 1940. Nos
anos trinta do século XX, a Universidade
Técnica de Lisboa promoveu a realização
de diversos inquéritos que visavam contribuir para um melhor conhecimento da realidade do país. Destes vieram a ser publicados o Inquérito Económico-Agrícola (1934
e 1936, 4 volumes), o Inquérito ao Abastecimento de Carne Bovina no Continente e
Ilhas Adjacentes (1935), o Inquérito à Indústria do Sal (1936) e os dois primeiros volumes do Inquérito à Habitação Rural, dedicados às zonas Norte (1942) e Centro (1947).
A edição do terceiro volume deste inquérito que, iniciado sob a direção do professor Lima Basto, se propunha conhecer as
condições de habitação e de vida da população rural, foi, entretanto, inviabilizada.
O que agora se edita é precisamente o material recuperado deste terceiro volume que,
seguindo o plano original, se agrupou por
províncias: Estremadura, Ribatejo, Alto
Alentejo e Baixo Alentejo. Embora muito
tardiamente, e mesmo com eventuais falhas
e imperfeições, conclui-se agora a publicação do Inquérito à Habitação Rural, procurando-se, assim, reparar algumas das consequências de um ato que tentou ocultar um
lado sombrio da sociedade portuguesa na
primeira metade do século passado.
Património Artístico-Cultural
do Montijo — II
CATARINA OLIVEIRA, JOÃO MIGUEL SIMÕES,
PAULO ALMEIDA FERNANDES
Lisboa, Colibri, 2012
Este livro procura dar a conhecer, de uma
forma tão aprofundada como possível, a história e, principalmente, o património artístico-cultural do Montijo. Para o fazer, os seus
autores percorreram paulatinamente as sete
freguesias do concelho (Afonsoeiro, Pegões,
Santo Isidro de Pegões, Sarilhos Grandes,
Canha, Atalaia, Alto Estanqueiro/Jardia),
recolhendo informação in loco que comple-
PUBLICAÇÕES
mentaram com adequada pesquisa documental. Este volume II constitui o corolário
de um prolongado, intermitente, mas minucioso trabalho de investigação, resultante do
protocolo entre a Câmara
âmara Municipal do Montijo e o Instituto de História da Arte, da Faculdade Letras da Universidade de Lisboa.
O Ser Urbano, nos Caminhos
de Nuno Portas
NUNO GRANDE (COORD.), AA.VV.
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2012.
Catálogo da exposição homónima concebida no âmbito de Guimarães 2012 — Capital Europeia da Cultura. Pensar a cidade, a
sua escala, a sua forma, através da obra de
Nuno Portas (n.1934, Vila Viçosa) é o repto
que nos lança esta obra, que não pretende
ser uma edição sobre o autor, mas antes
sobre o seu pensamento em ação, sobre
uma certa ideia de “urbanidade” (uma simbiose de arquitetura e urbanismo), de construir a cidade enquanto exercício de cidadania. Ao longo do livro são percorridos cerca
de cinquenta anos de um percurso profissional que atravessou momentos fulcrais da
cultura portuguesa das últimas décadas e ao
longo do qual o arquiteto produziu obras
de referência tanto no urbanismo, como na
arquitetura e na escrita.
165
monumentos é uma publicação técnico-científica,
13
dedicada à divulgação do património construído, na
perspetiva de assegurar a sua valorização, salvaguarda e reabilitação e de apoiar as políticas e ações
de ordenamento do território e de desenvolvimento
regional. Neste sentido, promove a investigação e
a reflexão sobre o valor dos imóveis e/ou conjuntos
urbanos objeto de cada número, tendo em vista
o conhecimento da sua identidade arquitetónica
e diversidade cultural.
DOSSIÊ ·
DISPONÍVEL EM CD-ROM
14
DOSSIÊ ·
DOSSIÊ ·
PRAÇA DO COMÉRCIO
ESGOTADO. DISPONÍVEL EM CD-ROM
2
· MOSTEIRO DE SÃO VICENTE DE FORA
ESGOTADO. DISPONÍVEL EM CD-ROM
DISPONÍVEL EM CD-ROM
DOSSIÊ · CONVENTO DAS COMENDADEIRAS
DE SANTOS-O-NOVO
16
DOSSIÊ
3
· CONVENTO DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE
· BASÍLICA DA ESTRELA
· IGREJA E CONVENTO DE SÃO FRANCISCO DE ÉVORA
· MOSTEIRO DE SANTA CLARA-A-NOVA DE COIMBRA
DISPONÍVEL EM CD-ROM
19
DOSSIÊ
DOSSIÊ
· FORTALEZA DE SÃO JOÃO BAPTISTA
DE ANGRA DO HEROÍSMO
DISPONÍVEL EM CD-ROM
ESGOTADO
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DOSSIÊ
21
7
DOSSIÊ
ESGOTADO
8
DOSSIÊ ·
UNIVERSIDADE DE COIMBRA
ESGOTADO
· MOSTEIRO DA SERRA DO PILAR
· CONVENTO DA CARTUXA DE ÉVORA
· PALÁCIO FOZ
DOSSIÊ
· SÉ DE VIANA DO CASTELO
DISPONÍVEL EM CD-ROM
DOSSIÊ
· CENTRO HISTÓRICO DE SILVES
24
· FARO, DE VILA A CIDADE
DISPONÍVEL EM CD-ROM
25
12
DOSSIÊ
22
DOSSIÊ
11
DOSSIÊ
· BAIXA POMBALINA
DISPONÍVEL EM CD-ROM
DISPONÍVEL EM CD-ROM
10
DOSSIÊ
· CONJUNTO MONUMENTAL DA MATA DO BUÇACO
23
9
DOSSIÊ
· SÉ DO FUNCHAL
DISPONÍVEL EM CD-ROM
ESGOTADO
· PALÁCIO FRONTEIRA
· MURALHAS E CENTRO HISTÓRICO DE VALENÇA
DISPONÍVEL EM CD-ROM
· ELVAS, CIDADE E ENVOLVENTE
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DOSSIÊ: COVILHÃ,
A CIDADE-FÁBRICA
30
DOSSIÊ:
VILA REAL DE SANTO ANTÓNIO, A CIDADE IDEAL
CASCAIS
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5
DOSSIÊ
· VILA VIÇOSA
DISPONÍVEL EM CD-ROM
ESGOTADO
PAÇO DUCAL DE VILA VIÇOSA
DOSSIÊ
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DOSSIÊ
DOSSIÊ ·
DOSSIÊ
17
4
6
27
DOSSIÊ:
18
· PALÁCIO NACIONAL DE BELÉM
· CENTRO HISTÓRICO DE ÉVORA
DISPONÍVEL EM CD-ROM
DISPONÍVEL EM CD-ROM
ESGOTADO. DISPONÍVEL EM CD-ROM
DOSSIÊ
DOSSIÊ
28
15
DOSSIÊ
DOSSIÊ
PAÇO EPISCOPAL DO PORTO E ENVOLVENTE
DISPONÍVEL EM CD-ROM
1
DOSSIÊ
26
SÉ DE VISEU E ENVOLVENTE
DOSSIÊ
· COIMBRA, DA RUA DA SOFIA À BAIXA
DISPONÍVEL EM CD-ROM
BRAGANÇA: Trás-os-Montes, Compendio das
Observaçoens que formam o plano da Viagem Politica, e
Philosofica a partir de Vergílio Taborda; Bragança, cidade-fortaleza setuada no estremo de portugall e castella;
Bragança e a casa ducal: comunicação política e gestão
senhorial, séculos XV-XVII; Bragança: urbanismo e arquitectura na Época Moderna; Fortificação da fronteira
nordeste: a cartografia militar e a praça de Bragança
(1640-1840); Donzelas no castelo: culturas religiosa e
secular nos murais de São Francisco de Bragança; Castro de Avelãs: o estranho caso de uma igreja de tijolo; Igrejas colunárias com tectos de madeira; A acção
da DGEMN em terras de Bragança; Bragança, a cidade
dos meados do século XX: planos, edificações, ideias
modernizantes; Alfredo Viana de Lima em Bragança;
O “caso” do concurso da Sé de Bragança; Pousada de
São Bartolomeu, em Bragança: a primeira pousada
(pós-)moderna; Nem neogarrettianos nem Vencidos
da Vida: uma pastoral transmontana; A intervenção no
Museu do Abade de Baçal: no tempo da democracia;
São Francisco na actualidade: entre o ruído e o silêncio;
O rosto do enigma ou o gosto pelo enigma: o imaginário
transmontano na obra de João Vieira. VÁRIA: As roças de
São Tomé e Príncipe: o fim de um paradigma; Os cofres do Palácio Foz: a primeira estrutura de conservação
cinematográfica da Cinemateca Portuguesa.
DOSSIÊ: