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Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) Rua 24 de outubro, 850/310 Bairro Moinhos de Vento CEP: 90510-000 Porto Alegre, RS, Brasil Fone: (51) 30846175 Capa: Tiago Oliveira Baldasso Editoração: Bruno Gomes Guimarães Impresso por: Gráfica da UFRGS © 2015 Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Estudos de caso em política externa brasileira (1930–1985). / André Luiz Reis da Silva, José Miguel Quedi Martins (Org.). — Porto Alegre: ISAPE, 2015. 345 p.: il. — (Cadernos ISAPE). ISBN 978-85-65135-13-9 ISBN 978-85-65135-14-6 (ebook) 1. Política externa : Brasil. 2. Desenvolvimentismo. 3. Diplomacia. 4. Relações internacionais. I. Silva, André Luiz Reis da. II. Martins, José Miguel Quedi. III. Título. IV. Série. CDU 327(81) Responsável: Biblioteca Gládis W. do Amaral, Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS É com grande satisfação que apresentamos este livro, fruto de um projeto de extensão, intitulado “Oficinas Temáticas de Política Externa Brasileira”, inserido no programa de extensão “Inserção Internacional do Brasil”. Nesse projeto, desenvolvido entre 2014 e 2015, os alunos foram convidados a discutir, publicamente, nas oficinas de política externa, a produção dos seus artigos acadêmicos. O tema central do livro é a política externa brasileira, no período do chamado desenvolvimentismo (1930–1985). De fato, a inserção internacional do Brasil nesse período foi fortemente marcada pelas transformações que o Brasil foi experimentando desde a Revolução de 1930 e a ascensão de Vargas ao poder. A partir dos anos 1930 a política externa havia sido transformada em um instrumento para o desenvolvimento do Brasil. Daí em diante, o chamado modelo de política externa para o desenvolvimento foi transformado em paradigma. Entretanto, sob o paradigma da política externa para o desenvolvimento, crescentemente articularam-se diferentes linhas de condutas externas identificadas de acordo com os modelos de desenvolvimento interno e com as conjunturas e possibilidades externas, estando basicamente polarizadas entre nacionaldesenvolvimentismo e o desenvolvimentismo-associado. Conforme Amado Cervo, essas duas correntes se debateram pelo controle da política exterior. Esse autor ainda faz uma distinção dessas duas correntes nas suas características básicas: “o desenvolvimento liberal associado configurou-se nas propostas de políticas públicas internas e na outra face da política, a externa, envolvendo conceitos e ideologias afinados com o ocidentalismo, a amizade e as relações especiais com os Estados Unidos — a matriz do modelo —, a busca de proteção pela valorização da segurança coletiva regional, a facilidade para a penetração de capitais e empresas do exterior, o relaxamento cambial e da legislação que dispõe sobre a remessa de lucros.” Enquanto isso, o modelo do nacional desenvolvimentismo “apoiado em crescente pragmatismo, teve outras ênfases: o controle dos setores estratégicos da economia pelo Estado, enquanto a empresa privada nacional não se dispusesse a atuar sobre eles; o protecionismo alfandegário para expandir o parque industrial; o universalismo geográfico, ideológico e político e a nacionalização da segurança.”1 Pode-se acrescentar, também, que a década de 1960 foi o período em que estas duas correntes experimentaram suas teses estando no poder. Com o regime militar (1964–1985) a experiência associada do governo Castelo Branco logo cedeu espaço para uma nova opção, que articulava o desenvolvimentismo com um projeto pragmático inserção internacional, cuja contradição básica era a manutenção do conservadorismo e autoritarismo no Brasil. De qualquer maneira, a política externa do regime militar buscou ampliar a margem de autonomia do Brasil no sistema internacional, e deixou ao Brasil um importante acervo de iniciativas diplomáticas. Os resultados destas experiências, seu alcance e significado são objetos de análise historiográfica e iluminam o debate contemporâneo sobre os desafios da inserção internacional do Brasil. Por outro lado, ainda existem inúmeras lacunas para estudo e pesquisa, bem como um grande acervo de documentos a serem explorados. Ensinar pela pesquisa tem se revelado um método produtivo de ensino e aprendizagem. Ao estimular os alunos a produzir pesquisas, é possível acompanhar seu processo de desenvolvimento intelectual e amadurecimento, bem como construir a autonomia intelectual. Ao invés da memorização e repetição, os alunos são instigados a problematizar o tempo passado e presente, a partir do estudo e da articulação entre questões teóricas, historiográficas e a utilização de fontes primárias. Assim, um novo conhecimento pode ser gerado. As fontes primárias consistiram em documentos diversos, como tratados e discursos, relatórios do Ministério das Relações Exteriores, bem como jornais e revistas de época. Este livro é constituído por 16 artigos. Todos foram produzidos como trabalho final da disciplina de Política Externa Brasileira II, nos semestres de 2013/2 e 2014/2. A disciplina aborda o período de 1930–1985 e entre os temas estudados estão a formação da Identidade Nacional e sua repercussão 1 CERVO, Amado. Relações internacionais do Brasil. In: CERVO, Amado Luiz (org.) O Desafio Internacional: a política exterior do Brasil de 1930 aos nossos dias. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 29. na Política Externa, comparação da política externa do getulismo com o peronismo, Relações Brasil-URSS, o debate eleitoral e a política externa, o apoio norte-americano à ditadura no Brasil, a América do Sul no projeto “Brasil Potência”, a política externa e a construção de Itaipu, o programa nuclear brasileiro, o desenvolvimento da indústria armamentista, o Atlântico Sul e a Guerra das Malvinas, o Brasil e a África do Sul e as relações do Brasil com o continente africano durante o regime militar. Gostaríamos de agradecer ao ISAPE pelos serviços de editoração; à Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, ao Curso de Relações Internacionais e a Gráfica da UFRGS pelo apoio institucional; e à PróReitoria de Extensão (PROREXT) pelo apoio material e institucional, ao financiar as bolsas de extensão para organização e a impressão do livro, permitindo que este projeto pudesse ser concretizado. Agradecemos também aos alunos João Gabriel da Costa, João Arthur Reis, Guilherme Simionato, Gabriela Zwirtes, Bruna Reisdoerfer e Thiago Baldasso, que contribuíram no esforço de finalização do livro. Desejamos a todos uma boa leitura e que este livro sirva de estímulo ao desenvolvimento de novas pesquisas. André Luiz Reis da Silva José Miguel Quedi Martins Ana Carolina Melos de Sousa Luiza Bender Lopes Natasha Pereira Lubaszewki Patrícia Graeff Machry Com o golpe de 1964 e a instauração da ditadura militar no Brasil, os esforços empreendidos pelos governos anteriores de aproximação com os países de Terceiro Mundo, tendo em vista uma maior cooperação Sul-Sul, sofreram um revés. Os primeiros governos militares, apesar de terem, muitas vezes, um discurso favorável à maior integração do Brasil com a África, assumiram, na prática, um alinhamento aos Estados Unidos e uma postura sobretudo anticomunista, prezando pelo bom relacionamento com a exmetrópole, Portugal. A partir da gestão Médici, é renovada a tendência de simpatia pelas nações africanas, e é com Ernesto Geisel que essa tendência se concretiza de fato. Mas por que a África? A instituição de uma política africana como uma das prioridades da Política Externa Independente50, continuada com as respectivas particularidades nas políticas externas subsequentes, abre espaço para uma reflexão sobre as razões da importância da presença brasileira na África. Primeiramente, é importante destacar o desejo do Brasil de uma maior inserção internacional. A ausência de ímpetos coloniais e as características étnicas do país permitiriam ao Brasil ser uma ponte entre a Europa, o Ocidente e a África, contribuindo para a manutenção de valores ocidentais e 50 Nome pelo qual ficou conhecida a política externa levada a cabo pelo presidente Jânio Quadros e o chanceler Afonso Arinos. evitando a expansão do comunismo nos novos Estados africanos (GUIMARÃES, 2013). Em segundo lugar, havia uma necessidade econômica de expansão das exportações brasileiras, sendo a África um mercado importante para as suas manufaturas. A política anticolonialista, adotada com maior firmeza a partir de 1973, também possuía uma ramificação econômica. Preocupava o Brasil o acesso privilegiado que alguns países africanos, fossem eles colônias ou ex-colônias, possuíam dentro dos mercados europeus. Além disso, a partir do estabelecimento do “Milagre Econômico”, foi criada uma demanda em expansão por matérias-primas e energia, especialmente na forma de petróleo (VISENTINI, 2013). O presente artigo se propõe a analisar o fortalecimento da política africana brasileira, focando no aspecto da independência de Angola. Assume-se que o reconhecimento brasileiro do governo do Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), de orientação socialista e apoiado pelos países “do Leste” no contexto da Guerra Fria, foi um dos pontos mais marcantes da concretização de uma política externa brasileira mais autônoma, independente e orientada em busca do desenvolvimento e dos interesses nacionais. O estabelecimento de relações com os novos países independentes na África Negra, começando por Guiné Bissau, mas sobretudo com a Angola, marcou uma nova fase na condução das relações externas pelo Itamaraty, que possibilitou a consolidação de novas parcerias comerciais e estratégicas visando garantir apoio diplomático, cooperação econômica e suprimento de petróleo para o Brasil. O Brasil e os países do continente africano partilham de vínculos que datam do século XVI, quando as duas margens do Atlântico foram unidas pela ambição colonial portuguesa. A chegada de milhões de africanos, em regime de escravidão, impactou a formação cultural, social e política da sociedade brasileira. A partir de 1850, no entanto, o fim do tráfico e a implantação do sistema colonial europeu afastaram Brasil e África (VISENTINI, 2013). Esse distanciamento perdurou até a criação e institucionalização da Política Externa Independente por Jânio Quadros e seu chanceler Afonso Arinos, em 1961 (GUIMARÃES, 1999). Embora não representasse uma novidade completa, visto que se estruturava como continuidade de políticas de barganha focadas no desenvolvimento nacional de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitscheck, a Política Externa Independente inovou ao extrapolar o âmbito regional e abrir as perspectivas mundiais do Brasil (VISENTINI, 1995). Enquanto os governos anteriores a Quadros buscaram à manutenção de boas relações com Portugal - em troca do apoio das comunidades imigrantes lusitanas — e mantiveram seu apoio à antiga metrópole em fóruns multilaterais, como as Nações Unidas, Quadros e Arinos manifestaram posições anticolonialistas firmes, em defesa do princípio de autodeterminação dos povos, enfrentando, assim, a resistência de Lisboa e abrindo portas para uma reaproximação com o continente africano (GUIMARÃES, 2013). Em março de 1961, o Itamaraty criou o Grupo de Trabalho para a África, cujo objetivo era apresentar conclusões sobre missões diplomáticas enviadas aos novos Estados africanos. A partir do estabelecimento de uma linha de navegação, foram abertas cinco 51 Embaixadas na África. Outra criação de Jânio Quadros foi o Instituto Brasileiro de Estudos AfroAsiáticos, através do qual seu governo pretendia desenvolver projetos que aproximassem o Brasil das jovens nações africanas (VIZENTINI, 1995). Nos sete breves meses de duração do seu governo, foram enviadas para a África duas missões. A primeira, comandada pelo Embaixador Extraordinário José Pereira Coelho de Souza, visitou oito países africanos, recolhendo contatos políticos e observando as possibilidades comerciais. Durante a missão, duas reuniões com representantes do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA)52 foram mantidas em Conacri 53 (VIZENTINI, 1995). A segunda missão, chefiada pelo próprio Arinos, negociou um acordo cultural com Senegal. O Brasil também manifestou sua desaprovação ao Massacre de Sharpeville 54 e ao Apartheid. Após a renúncia de Jânio Quadros e o início do governo de João Goulart, porém, observou-se uma certa estagnação da política africana. 51 52 53 54 Nos países Senegal, Costa do Marfim, Nigéria, Etiópia e Gana (VIZENTINI, 1995). Movimento de luta pela independência de Angola, transformou-se em partido político após a Guerra de Independência de 1961-74 (SARAIVA, ). Capital da República da Guiné. No dia 21 de Março de 1960, ocorreu na cidade de Sharpeville, na África do Sul, um massacre quando um protesto pacífico contra a Lei do Passe foi contido com rajadas de metralhadora pela polícia sul-africana. Tentativas de mediação do conflito angolano por San Tiago Dantas enfrentaram grande oposição portuguesa e norte-americana. Afonso Arinos, então chefe da delegação brasileira à XVI Sessão da Assembleia Geral da ONU, buscou salvaguardar os laços de amizade com Portugal, apesar de manter o apoio à independência da África portuguesa. A oscilação é relacionada à fragilidade do governo, causada pelas suspeitas ideológicas das quais padeceu (VISENTINI, 2013). A política africana arrefeceu quase completamente a partir do golpe civil-militar de 1964. Buscando acabar com a politização da Política Externa Independente, Castelo Branco estabeleceu como prioridade de seu governo o estabelecimento de uma política de segurança para o Atlântico Sul e a condenação dos movimentos de independência com influências marxistas. Foi proposta a formação de uma Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS), que implicaria em alianças com Portugal e África do Sul. Em pronunciamento, Castelo Branco chegou a afirmar a existência de perigos no desengajamento prematuro do Ocidente por parte dos países que buscavam a independência (RIZZI, 2005). Já no Governo Costa e Silva, a política externa retomou lentamente o seu caráter desenvolvimentista. As relações com os países de Terceiro Mundo foram retomadas através da Diplomacia da Prosperidade 55. Foi inaugurada, então, uma Embaixadas no Zaire (atualmente República Democrática do Congo). No mesmo sentido, em 1968, foi criada a Câmera de Comércio Brasil-África. As relações privilegiadas com Portugal, no entanto, mantinham o caráter ambíguo que permeava a política africana (SARAIVA, 2012). A segunda reaproximação africana só viria a acontecer, de fato, no Governo Médici. Durante o governo, foram abertas três novas Embaixadas e estruturada uma missão de visita a nove países da África Ocidental. O chanceler Mário Gibson Barbosa foi o responsável pelo estabelecimento de diversos acordos comerciais, culturais e de cooperação técnica. Na XXVI Assembleia Geral das Nações Unidas56, o Brasil votou a favor da Resolução que legitimava os movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau (RIZZI, 2005). 55 56 Criada pelo Chanceler Magalhaes Pinto. Realizada em Novembro de 1971, em Nova York, Estados Unidos. Durante a gestão do general Ernesto Geisel (1974–1979), os passos que haviam sido dados com Médici e Gibson Barbosa, seu Ministro das Relações Exteriores, na direção de uma maior aproximação do continente africano foram aprofundados. Não só a situação interna e externa contribuíram enormemente para esse fato e tornaram a aproximação mais viável e necessária, como também ele foi consequência de uma inflexão na própria condução da política externa brasileira. Quando Geisel assumiu o poder, em 15 de março de 1974, os cenários doméstico e internacional se encontravam em situação diferente da vivida por seus antecessores. O país, cuja presidência ele assumia, adquirira diversificação industrial, com maior participação de produtos industrializados nas exportações, competindo, assim, com países desenvolvidos (SILVA, 2007). O período de “milagre econômico” chegava ao seu fim, demonstrando a fragilidade econômica brasileira e fazendo o Brasil já sentir os impactos dos conflitos no Oriente Médio que levaram à crise energética 57 de 1973. O país era profundamente dependente do petróleo estrangeiro — entre os principais motivos, pela grande importância das rodovias e do uso do transporte individual, fatores que contribuíam para intenso uso do combustível (VIZENTINI, 2008) —, importando cerca de 80% do que consumia, o que impunha, portanto, a necessidade de ter garantido seu fornecimento (PINHEIRO, 2007). Além da crise energética, o cenário internacional estava marcado por uma situação de détente: um arrefecimento da bipolaridade EUA-URSS, inclusive com aproximação norte-americana com a República Popular da China, que acabou dando espaço para a priorização de questões acerca dos conflitos Norte-Sul em detrimento da problemática Leste-Oeste. No plano interno, a diplomacia empreendida por Geisel e por seu Ministro das Relações Exteriores, o embaixador Antônio Francisco Azeredo da Silveira, ficou conhecida como pragmatismo responsável, na medida em que 57 Em protesto motivado pelo apoio dos Estados Unidos a Israel na Guerra do Yom Kippur, os países arábes membros da Organização dos Exportadores de Petróleo (OPEP) embargaram a exportação do produto para os países ocidentais e para o Japão. A escassez do produto aumentou o preço do barril de petróleo em cerca de 400%. O acontecimento ficou conhecido como Primeiro Choque do Petróleo. era pragmática e universalista em seu diálogo com as demais nações, sendo guiada sempre pelo interesse nacional e desvinculada de ideologias, mas responsável ao reconhecer que era necessário manter o equilíbrio das forças internas que poderiam se opor fortemente a um abrandamento das relações exteriores (SILVA, 2007). Essa linha rejeitava um alinhamento automático aos Estados Unidos, guiando a política externa como ferramenta para o desenvolvimento do Brasil. Assim, era interessante a ampliação das relações exteriores, com vistas tanto a uma diversificação dos parceiros comerciais e busca de novos mercados para escoamento de produtos, quanto a um maior apoio em fóruns multilaterais visando fortalecer a posição do Brasil no sistema internacional. Em pronunciamento feito na primeira reunião ministerial, datada de 19 de março de 1974, o presidente Geisel já afirmava a importância do fortalecimento das relações com a América do Sul e a África: [...] se temos forçosamente de nos adaptar àquelas novas circunstâncias externas, as quais representam sérios desafios, devemos [...] atender a novos objetivos e a novas prioridades [...]. Assim, no campo da política externa, obedecendo a um pragmatismo responsável e conscientes dos deveres da Nação, bem mais adulta, no terreno da solidariedade e cooperação internacionais em prol do progresso da humanidade e da paz mundial, daremos relevo especial ao nosso relacionamento com as nações-irmãs da circunvizinhança de aquém e além-mar [...] fazendo para tanto, com prudência e tato mas com firmeza, as opções e os realinhamentos indispensáveis” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1974, p. 44–45). Em memórias do embaixador Ovídio Andrade de Melo58, as mesmas preocupações e percepções podem ser verificadas: [...] Mas a crise do petróleo causa-nos crescentes dificuldades. Em busca de saldos comerciais, é imprescindível que ampliemos nosso intercâmbio, inclusive com países árabes, com países da África negra, antes negligenciados. Para ter relações normais com uns e outros, teremos, necessariamente, de rever algumas posições políticas que vínhamos assumindo desde 1964 [...] (MELO, 2009, p. 89). 58 Ovídio Andrade de Melo foi diplomata brasileiro, tendo ingressado no Itamaraty na década de 1950. Sua mais importante atuação diz respeito ao momento em que foi resignado para representar o Brasil junto à nova administração transitória que assumia o governo de Angola, logo após a Revolução dos Cravos, no período em que estourava a luta por independência (AMORIM, 2014). A aproximação com os países africanos vinha, evidentemente, acompanhada de apoio ao processo de descolonização em curso no continente, ponto que sempre fora controverso em virtude da já mencionada prioridade que se dava ao bom relacionamento com Portugal. Um dos maiores expoentes desta mudança na atuação externa brasileira foi, sem dúvidas, o reconhecimento da independência de Angola e do governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de viés marxista e apoiado por Cuba e União Soviética. Esse reconhecimento não foi um fato isolado: tendências de ampliação dos diálogos com nações que estavam fora da influência do bloco ocidental já vinham sendo verificadas, a exemplo do reatamento de laços com a União Soviética e do estabelecimento de relações com a República Popular da China. Geisel e Azeredo da Silveira tinham posições muito convergentes com relação a condução da política externa, fator que, somado a relativa autonomia do Ministério das Relações Exteriores no processo decisório, contribuiu para que essa mudança nos rumos da PEB fosse possível. A queda do regime pró-colonialista em Portugal logo após a posse de Geisel veio ao encontro das aspirações brasileiras com relação à África, mas alguns autores afirmam que o Brasil já estava disposto a apoiar o processo de descolonização, independentemente da posição portuguesa. Em 18 de julho de 1974, mais de um ano antes da independência angolana, o governo brasileiro reconheceria o governo marxista instaurado em GuinéBissau, fato que instauraria uma nova fase na política africana de Geisel, que teria, portanto, seu ápice no reconhecimento do MPLA em Angola. O objetivo, a partir desse momento, era deixar claro que o Brasil apoiaria e reconheceria a independência dos países africanos independentemente do grupo que estivesse liderando, buscando manter uma boa relação com os futuros novos países (PINHEIRO, 2007; SILVA, 2007). Desde 1926, quando Salazar chegara ao poder em Portugal, a metrópole vinha dificultando fortemente qualquer avanço no que dizia respeito à descolonização nas possessões africanas. O interesse em Angola era um dos mais significativos, devido à recente descoberta de petróleo na região, que motivava o governo português a tentar manter a condição de domínio sobre o local. Portugal exercia, em suas colônias, uma política que incentivava conflitos entre os diferentes grupos étnicos existentes, fato que levou ao surgimento de facções insurgentes que desejavam a independência da metrópole, mas que também lutavam entre si (SILVEIRA; QUAGLIA, 2013). Assim, a guerra civil na Angola já estava em andamento muito antes de ser concedida a independência. Brigavam pelo poder, desde 1966, três movimentos de libertação: o MPLA, de orientação socialista, apoiado pela URSS e por Cuba; a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), ambos apoiados pelos Estados Unidos na luta contra o comunismo, a partir de 1975, quando se iniciou a internacionalização do conflito (SILVA, 2007). O engajamento de Portugal na manutenção de suas colônias era assunto extremamente controverso no cenário internacional, e o país, já constrangido, era constantemente pressionado por outras nações, no âmbito de organizações internacionais, para aceitar e apoiar o processo de descolonização (LEITE, 2010). Além disso, os custos do envolvimento de Portugal com as guerras de independência em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau eram cada vez mais altos, consumindo cerca de 40% do orçamento português, e gerando, portanto, enorme descontentamento da população, principalmente nas Forças Armadas. É nesse contexto de desgaste e insatisfação na metrópole e de surgimento de insurgências anticolonialistas nas possessões africanas que, no dia 25 de abril de 1974, os militares portugueses promovem um golpe de Estado e derrubam o regime salazarista, em episódio conhecido como Revolução dos Cravos. Com a queda de Salazar, o novo governo em Portugal reconheceria o direito à independência dos povos africanos (LEITE, 2010; SILVEIRA; QUAGLIA, 2013). O processo de descolonização iniciou-se, de fato, apenas após esse episódio. Os Acordos de Alvor formalizaram o compromisso português de conceder de forma negociada a independência de Angola, acalmando o processo de disputas internas pelo poder. A partir desse entendimento, os três movimentos de libertação — MPLA, FNLA e UNITA — fariam parte de um governo de transição, ao lado do Alto Comissário português (CARVALHO, 2013), até que fosse formalizada a independência, marcada para o dia 11 de novembro de 1975 (SILVA, 2007). Os acordos reconheciam os três movimentos como legítimos representantes do povo angolano, cabendo exclusivamente a eles o direito de se candidatarem às eleições gerais a serem realizadas após a emancipação do país (RIZZI, 2005). O anúncio português de que estaria pronto a conceder autodeterminação às suas colônias facilitou uma mudança de posição por parte do Brasil em relação à descolonização da África portuguesa, liberando o país dos compromissos com a antiga metrópole (PINHEIRO, 2007). Porém, caberia ao governo brasileiro desfazer a visão e o ressentimento causado pelo seu apoio histórico ao colonialismo português. De acordo com Silva (2007): [...] estava claro, no entanto, que o passivo do Brasil com relação à África era grande e seriam necessárias atitudes firmes e inequívocas que atestassem o efetivo comprometimento e apoio do Brasil à independência dos países africanos Foi, em parte, esse débito que fez com que o governo brasileiro buscasse uma atitude mais autônoma e incisiva na questão da independência angolana (PINHEIRO, 2007). Nesse contexto, o chefe do Departamento de África, Ásia e Oceania do Itamaraty, o embaixador Ítalo Zappa, deu surgimento à ideia de criar Representações Especiais, com status de embaixadas antecipadas, em Moçambique e Angola (MELO, 2002). Assim, o Brasil seria pioneiro em estabelecer representações diplomáticas nos futuros Estados independentes africanos, executando um gesto simbólico que demonstraria a busca do país por se redimir do passado (PINHEIRO, 2007). Além disso, permitia contatos com o Governo português, que era detentor da soberania angolana e moçambicana até as suas independências (SILVA, 2007). De acordo com Ovídio de Andrade Melo (2002), com a simples presença antecipada e neutra, o Brasil ajudava Portugal a se desvencilhar das colônias e as colônias a se desvencilharem de Portugal, satisfazendo ambos os lados. A relação com os possíveis governantes dos futuros países se iniciou de forma muito gradual. Num primeiro momento o próprio Zappa, na posição de chefe do departamento que tratava de assuntos africanos no Itamaraty, abriu o canal de diálogo com os movimentos negros que os portugueses consideravam candidatos ao poder: os três angolanos e o movimento moçambicano, liderado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) (SILVA, 2007; MELO, 2002). Depois, para consultá-los acerca da criação das representações, o escolhido para chefiálas, Ovídio de Andrade Melo, foi enviado. Ao ser consultada, a Frelimo afirmou que o Brasil deveria esperar que a independência moçambicana se concretizasse para que fosse feita uma proposta conveniente. Isso porque, depois de sofrerem 14 anos de guerra e verem, durante todo esse período, os brasileiros apoiando às forças opressoras de Portugal, Moçambique não estaria acostumado a enxergar o Brasil como um país amigo. Nas palavras de Melo: [...] a Frelimo queria primeiro ver como o Brasil iria se comportar em Angola, agora que lá abriríamos uma Representação Especial. As relações com Moçambique dependeriam certamente do que fizéssemos em Angola. E relações de confiança com a África Negra, a mais longo prazo, o Brasil só poderia ter se se entendesse bem com os novos países que falam português naquele continente. A Representação Especial em Luanda assim ganharia uma dimensão maior e uma importância decisiva nas relações futuras com a África. Passava a ser o laboratório experimental para as relações com todo um continente (MELO, 2002). Com a autorização de Portugal, foi criada a Representação Especial em Luanda, capital angolana. A posição definida pelo Itamaraty em relação ao conflito angolano era muito clara: o Brasil seria isento, equânime e neutro e estaria pronto para reconhecer qualquer grupo que, após a independência, tivesse alcançado ao poder (MELO, 2002). O que o Brasil realmente pretendia era estabelecer relações e alcançar seus interesses desde cedo com os futuros países independentes, não interessando os futuros governos e suas ideologias, assim como fazia com a República Popular da China e a União Soviética (SILVA, 2007). Nas palavras do próprio Melo: A isenção entre os três movimentos angolanos, que era a política proclamada pelo Itamaraty quando abriu a Representação Especial, agradava, portanto, a todos os lados, em Angola, no Brasil, no mundo, e de início não suscitaria quaisquer críticas, porque parecia bastante irreal. Mas desde logo nos envolveria num processo que se iria complicando, na medida em que a situação em Angola pudesse pender em favor do MPLA. Então sim, as opções que tivéssemos de tomar poderiam ser bastante problemáticas no mundo e no Brasil mesmo. Fui, então, para Angola, com instruções para ficar neutro, sem favorecer qualquer partido, em eleições ou lutas que ocorressem, como executor de uma política que era bem nacional, apenas porque parecia inspirada em Machado de Assis: Ao vencedor, as batatas! (MELO, 2009, p. 116, grifo original). Em março de 1975, Ovídio de Melo se estabeleceu em Luanda, com o objetivo de acompanhar o período de transição e de iniciar a aproximação diplomática com Angola. Entretanto, a evolução do quadro interno tornou as dificuldades muito maiores para o Itamaraty. Iniciou-se, assim, uma nova deterioração das relações entre os três grupos, culminando numa guerra civil com enfrentamento armado (SILVA, 2007). De acordo com Carvalho (2013), o apoio externo foi decisivo para este fracasso dos Acordos de Alvor. O conflito, que se iniciou como luta civil financiada e estimulada no exterior, havia se transformado em mais um palco da Guerra Fria (MELO, 2002). De um lado, União Soviética e Cuba apoiavam o MPLA, repassando recursos de todos os tipos. De outro, os Estados Unidos, a África do Sul e o Zaire financiavam, ainda que não oficialmente, a luta da FNLA e da UNITA contra a ameaça comunista que representava o MPLA (CARVALHO, 2013). Esse fato, junto às informações passadas por Melo de que o partido socialista angolano estaria melhor preparado para governar o país, tornou a tomada de decisão do Brasil muito mais difícil, apesar da convicção do Itamaraty e do próprio presidente em apoiar qualquer que fosse o governo vencedor (SILVA, 2007). Era necessário que o Brasil ponderasse diversos aspectos na sua tomada de decisão. Se, por um lado o aspecto ideológico dos grupos de libertação definiria quais seus prováveis aliados internacionais, por outro era necessário que fosse levado em conta o controle sobre o enclave de Cabinda, região riquíssima em petróleo no território angolano. Ao mesmo tempo em que o envolvimento dos Estados Unidos no conflito era extraoficial, o que permitia que o Brasil mantivesse uma neutralidade em relação aos três grupos de libertação, o governo brasileiro precisava levar em conta a chance de um apoio cubano ao MPLA, que poderia fazer com que Cuba conseguisse uma base segura na costa atlântica oposta ao território brasileiro (PINHEIRO, 2007). Por fim, existia a necessidade iminente do governo brasileiro de cumprir as promessas de reconhecer a independência angolana, para que conseguisse alcançar seus objetivos em relação a toda África negra (MELO, 2002). O desfecho da guerra civil em favor do MPLA, que assegurou o controle sobre a região petrolífera, acabou por inclinar a posição do governo brasileiro em direção a este grupo. Além disso, pouco antes da data marcada para a independência de Angola, Portugal, como principal interessado no assunto, trocou seu Alto Comissário em Luanda por militares que melhor se entenderiam com o MPLA, renovando seus compromissos com os Acordos de Alvor em relação à independência (PINHEIRO, 2007). Contudo, existiam fortes resistências, as quais complicavam o processo decisório no Brasil. Era necessário legitimar internamente o apoio brasileiro ao MPLA quando se desse a independência, o que tinha como fator complicador o fato de o grupo que, a partir de agosto de 1975, passara a ocupar o Governo em Luanda, ser apoiado por Moscou e Havana. Mesmo que a decisão portuguesa de conceder autodeterminação às suas colônias tornasse um imperativo o reconhecimento dos novos Estados por parte do Brasil, os setores internos mais conservadores, apesar de não terem problemas em reconhecer um Governo independente de direita, não aceitariam governos de esquerda com grupos guerrilheiros de maneira tão simples (SILVA, 2007). Nesse processo decisório dois fatores foram fundamentais: as informações fornecidas por Ovídio Melo não só guiavam o governo brasileiro ao longo do processo, mas foram indispensáveis para a sua tomada de decisão; outro ponto importante foi o engajamento e a utilização de habilidades estratégicas do Ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, ao lado do presidente Geisel, para conseguir concretizar esse objetivo. Conhecedores das dificuldades que encontrariam internamente, Silveira e Geisel tomaram a decisão de reconhecer a independência antes de realizarem consulta ao Conselho de Segurança Nacional (SILVA, 2007). Sendo assim, essa consulta se resumiu a uma “ritualização da decisão”, nas palavras de Wálder de Góes (1978 apud SILVA, 2007). No entanto, a deliberação acerca da matéria era indispensável e, por isso, durante o processo, Silveira e Geisel ocultaram a informação de que havia tropas cubanas lutando ao lado do MPLA no conflito angolano contra as forças apoiadas pelos Estados Unidos — FNLA e UNITA —, buscando legitimar a ação do governo (SILVA, 2007). Em 11 de novembro de 1975, num contexto marcado por rivalidades internas e um vazio de poder face à incapacidade do governo português, envolvido em uma revolução interna, o MPLA declarou, de maneira unilateral, a independência de Angola. E o Brasil, em meio a mais pelo menos trinta países, não tardou em reconhecer a sua independência (PINHEIRO, 2007). A partir daí as pressões sobre o Itamaraty aumentaram cada vez mais. Internamente, os setores mais conservadores se recusavam a aceitar o apoio dado a um governo de orientação socialista: o medo de que Cuba servisse de plataforma para exportar a revolução comunista ainda existia de maneira muito forte nestes setores (SILVA, 2007). Externamente, a indignação vinha principalmente do bloco ocidental: europeus e norteamericanos (PINHEIRO, 2007). O governo brasileiro não podia voltar atrás se quisesse, de fato, desfazer a imagem negativa perante as ex-colônias africanas (MELO, 2002). A nota de reconhecimento redigida pelo Itamaraty acabava por não favorecer ao MPLA em detrimento das outras facções, reconhecendo o governo instalado em Luanda, sem mencionar o grupo (BRASIL, [s.d.] apud PINHEIRO, 2007). Isso porque não só existiam pressões internas em relação ao apoio à facção comunista, mas também pelo fato de que a guerra civil ainda estava em curso, mesmo com o reconhecimento internacional do governo do MPLA. Além disso, logo após o reconhecimento da independência, a atitude do Itamaraty foi de instruir Ovídio Melo a baixar o perfil do relacionamento entre Brasil e Angola, solicitando que não mantivesse contatos mais estreitos com o Governo instalado em Luanda. Ao não seguir as orientações, Melo fazia parecer que a aproximação do governo comunista era uma ação unilateral e acabava por servir de bode expiatório ao Itamaraty, que precisava arrefecer a oposição dentro e fora do Brasil sem que parecesse estar cedendo ou se submetendo à oposição. A mídia brasileira contribuiu para esse processo, difundindo a ideia de que, de fato, a aproximação com o MPLA fora fruto dos ideais do representante brasileiro no país africano. Isso parecia se confirmar devido ao silêncio do Itamaraty (PINHEIRO, 2007; MELO, 2002). Por ser uma questão delicada, não se podia remover Ovídio de seu cargo sem prejuízos para as futuras relações com os dirigentes angolanos, o que traria problemas para a imagem brasileira perante toda a África. Assim, o pedido de substituição temporária por motivos de saúde feito pelo próprio representante brasileiro criou oportunidade para que o problema fosse resolvido. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que se respondia à reação negativa que se seguiu ao reconhecimento da independência de Angola, fazendo parecer que a atitude fora um erro humano e, apesar de as relações com Luanda tenham esfriado por um período, ao fim e ao cabo, Geisel havia mantido a sua decisão de reconhecer e defender a autodeterminação das nações africanas (PINHEIRO, 2007). Mantinha-se, portanto, a política externa voltada para o interesse nacional. Após um período de silêncio por parte do Itamaraty, que havia prometido criar uma Embaixada em Angola no momento da independência, fora concretizado o projeto brasileiro (MELO, 2002). Em 31 de dezembro de 1975, o presidente Geisel assinou um decreto criando seis embaixadas brasileiras na África negra: Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Alto Volta, São Tomé e Príncipe e Lesoto (Brasil, MRE, 1975: 132 apud PINHEIRO, 2007). Iniciava-se, nesse ato, a política brasileira para a África negra independente. Para compreender a escolha do Brasil em apoiar a independência de Angola, apesar dos desgastes com os setores conservadores, é preciso analisar, de forma mais distante, em que contexto regional nosso país está inserido na época. Com o fechamento do Canal de Suez, por parte do presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, impedindo o escoamento da produção de petróleo dos países árabes para a Europa (MELO E SILVA, online; ALTMAN, 2009), a Rota do Cabo (ao sul da África do Sul) é revitalizada e, juntamente com os processos de independência de Angola e Moçambique, a região do Atlântico Sul ganha novo valor estratégico no cenário internacional (PENHA, 2011). Desse modo, tendo em vista sua posição privilegiada na região, o Brasil passa a desempenhar um novo papel no controle da segurança regional (PENHA, 2011; CARVALHO, 2013). É a partir daí que o país vai buscar consolidar uma postura mais ativa no Atlântico Sul, estabelecendo, por exemplo, um novo limite de 200 milhas náuticas59 para seu mar territorial (FLORES, 1972 apud PENHA, 2011). A Marinha brasileira inaugurava, assim, uma nova concepção estratégica acerca do contexto em que se inseria. Além disso, a necessidade de conseguir novos mercados para a exportação dos produtos manufaturados brasileiros e a ideia de que o mercado africano possuía grande potencial de absorção desses produtos, fazia com que o país voltasse parte das exportações para o continente (SILVA, 2007), na tentativa de encontrar o contraponto em sua balança de pagamentos que equilibrasse os gastos tão elevados com a importação de petróleo (PINHEIRO, 2007). Nesse sentido, Angola se mostrava como uma parceria importante para os novos objetivos brasileiros de projeção no Atlântico Sul. O país africano, recém independente, conta, ainda hoje, com a segunda maior reserva de petróleo do continente, ficando atrás apenas da Nigéria (MONIÉ, 2012). Assim, fortalecer os laços com Angola era uma alternativa ao governo brasileiro de fugir da distribuição de poder engessada do Sistema Internacional e buscar um novo posicionamento frente aos demais países. Ou seja, não só Angola, mas a África como um todo, representava para o Brasil a possibilidade de desenhar uma futura hegemonia sobre o Atlântico Sul (SARAIVA, 2012). Com as crises do petróleo da década de 1970, fortalecer as relações com o governo angolano aparecia como uma grande válvula de escape para o Brasil se livrar da dependência em relação às reservas árabes e, consequentemente, do boicote instaurado pela OPEP. Dessa forma, era imprescindível que o Estado africano estivesse independente para que as negociações entre ambas as partes fossem favoráveis aos interesses brasileiros de exploração petrolífera (PINHEIRO, 2007), possibilitando, portanto, a manutenção do ritmo acelerado de crescimento, herdado do governo anterior (SILVA, 2007). Além disso, cooperar com os jovens países africanos - e aqui não há referências apenas a respeito de Angola, mas de todos os 59 Em 25 de março de 1970, pelo Decreto-lei nº 1.098, o governo brasileiro determinou que o "mar territorial do Brasil abrange uma faixa de duzentas milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular brasileiro" (artigo 1º). A proposta de extensão ainda é negociada juntamente da Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da Organização das Nações Unidas (SILVA, 2013). novos Estados que surgiam - tornava-se uma maneira de equilibrar politicamente a presença de Cuba e a ameaça comunista na região (VISENTINI, 2003). Do ponto de vista angolano, o reconhecimento por parte do Brasil tinha grande significado. Encontrava-se um parceiro capaz de oferecer cooperação nos mais diversos âmbitos em meio a difícil situação em que o país se encontrava: caos econômico e uma guerra civil incessante. As identidades cultural e histórica comuns abriam possibilidade para uma cooperação não só no âmbito comercial e econômico, mas com ajudas humanitárias de grande necessidade e suporte nas áreas que Angola mais carecia, tal como a necessidade de técnicos e extração de petróleo. Cooperação essa que se refletiu logo em 1976, na criação de uma linha de crédito brasileiro para o país no valor de 50 milhões, além do estabelecimento de negociações acerca de uma futura parceria entre a Petrobrás e a Sonagol. Suporte que apareceu também no convênio firmado entre o Ministério das Relações Exteriores brasileiro e a SEPLAN, em 1977, criando um programa de cooperação técnica entre o Brasil e a África, abrangendo, entre outros países africanos, o jovem Estado angolano (RIZZI, 2005). Os benefícios imediatos do reconhecimento para o Brasil também foram claros: além de estabelecer relações com Moçambique, houve mudanças significativas também nas relações com diversos países do Terceiro Mundo, favorecendo o multilateralismo proposto pelo pragmatismo responsável de Geisel. Desse modo, ao mesmo tempo em que a atitude brasileira representou maior autonomia em suas decisões no sistema internacional, buscando uma maior diversificação de parceiros, foi garantido também o abastecimento de petróleo ao país e foram abertas novas possibilidades de mercados para os seus produtos, tornando possível a continuidade do desenvolvimento econômico do Brasil (CARVALHO, 2013). Após um longo período de afastamento entre Brasil e África, que por muito tempo mantiveram suas relações baseadas apenas no tráfico de escravos, é no início da década de 1960, com o governo de Jânio Quadros, que se inaugura, pela primeira vez, uma política africana. O advento da PEI, ainda que não tenha perdurado, foi o princípio de um movimento que ajudou a determinar o novo perfil das relações exteriores brasileiras com o resto do mundo. Nesse ínterim, Angola surgiu, pois, como uma grande alternativa para o Brasil fugir de sua dependência do petróleo do Oriente Médio, em um contexto de crise energética, encabeçada pelos grandes produtores árabes. O país africano, com enormes reservas petrolíferas, no entanto, encontrava-se ainda submetido aos mandos e desmandos do governo salazarista português, relutante acerca da concessão de independência às suas possessões africanas. Dessa forma, o papel do Brasil, de tentativa de estabilização de uma situação que se encaminhava para a luta armada na busca pela libertação nacional, foi imprescindível para o fortalecimento dos laços com esse novo Estado que surgia, então, no Sistema Internacional. Cabe ressaltar a importância que o episódio de apoio e reconhecimento da independência de Angola tem no contexto interno em que se encontrava o Brasil: um país que vivia sobre um violento e censurador regime militar, que se havia instaurado com o objetivo de eliminar uma possível ameaça comunista no território nacional, mas que, ao mesmo tempo, buscava consolidar suas metas no âmbito internacional. Para isso precisava abdicar, de certa forma, do conservadorismo que o dominava. Reconhecer a independência de Angola e o governo do MPLA, de cunho socialista e apoiado por Cuba e pela União Soviética, demonstrava a autonomia de que dispunha o Ministério das Relações Exteriores para traçar seus planos e alcançar seus objetivos. Afinal, a parceria com Angola era de suma importância para o projeto brasileiro de projeção sobre o Atlântico Sul. Sendo assim, nas palavras de Ovídio Melo (2002): Fazer política externa é assumir atitudes condizentes com o interesse nacional a curto, médio e longo prazos, afrontar riscos se preciso for; ter, não somente uma vaga soberania teórica, mas uma definida e verdadeira personalidade internacional. Foi o que o Brasil teve com respeito a Angola... (MELO, 2002). O governo Geisel, portanto, se destacou da conjuntura dos governos militares anteriores ao retomar a política africana, inaugurada na década anterior com Quadros e Goulart. O interesse da diplomacia brasileira no processo de emancipação angolana, com abertura de representação diplomática na capital, foi crucial no sentido de demonstrar ao continente africano o real comprometimento que o Brasil pretendia ter com as futuras nações que se tornariam independentes. Aceitar como legítimo o Governo de Agostinho Neto, representante do MPLA, foi um expoente significativo deste comprometimento, ao deixar clara a maneira como o Brasil desejava ser visto internacionalmente: um país autônomo, que, embora identificandose dentro do espectro de influência do bloco capitalista, desejava dialogar com todos os países, respeitando a soberania e o direito a autodeterminação, independentemente de quaisquer motivações ideológicas. A parceria e convergência de posicionamento de Geisel e seu ministro, Azeredo da Silveira, foram essenciais para consolidar a política africana e fazer frente aos setores conservadores que, internamente, criticavam essa expansão das relações internacionais por temerem um transbordamento do comunismo para o Brasil. A questão de Angola foi, portanto, o ponto de inflexão na retomada de uma política externa mais altiva, que não se submetia aos ditames das superpotências - que haviam apoiado as facções de oposição ao MPLA - e voltada para os “irmãos de além-mar”. Foi a partir dessa retomada que o Brasil começou a desenhar seu desejo de consolidar uma hegemonia sobre o Atlântico Sul, longe da influência de potências extrarregionais, como os Estados Unidos. Angola entrou, assim, como um importante e fundamental ator na construção de um anseio que perdura, ainda hoje, na política externa e de segurança do Brasil. ALTMAN, Max. Hoje na História: Soviéticos invadem o Afeganistão. Opera Mundi, dez. 2009. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/2360/conteudo+opera. shtml>. Acesso: 10 nov. 2014. AMORIM, Celso. Ovídio de Andrade Melo, o guerreiro da diplomacia. Carta Capital, 2014. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/816/o-guerreiro-da-diplomacia1102.html>. 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