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O Egito Antigo

O Egito Antigo Arnoldo Walter Doberstein O EGITO ANTIGO Porto Alegre 2010 © EDIPUCRS, 2010 CAPA Deborah Cattani REVISÃO DE TEXTO Rafael EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Saraiva Deborah Cattani e Rodrigo Valls EDIPUCRS – Editora Universitária da PUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 – CEP 90619-900 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/fax: (51) 3320 3711 e-mail: edipucrs@pucrs.br - www.pucrs.br/edipucrs Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D633E Doberstein, Arnoldo Walter O Egito antigo [recurso eletrônico] / Arnoldo Walter Doberstein. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2010. 174 p. Publicação Eletrônica Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/orgaos/edipucrs/> ISBN 978-85-397-0021-9 (on-line) 1. Egito – História. 2. História Antiga. I. Título. CDD 932.01 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos direitos Autorais) Para Maria Regina, mulher, amparo, e, mais do que tudo, companheira. Sobre o autor: Arnoldo Walter Doberstein é professor universitário, na PUCRS, desde 1982. Desde então, sempre trabalhou em História Antiga. Na sua trajetória acadêmica, todavia, não foi nessa área que construiu sua titulação. Mestrou-se e doutorou-se pesquisando a arte pública no Rio Grande do Sul. De seu mestrado resultou o texto Porto Alegre, 1900 - 1920: estatuária e ideologia. De seu doutorado, Estatuários, catolicismo e gauchismo. Tanto um como o outro bastante reconhecidos. Na área de História Antiga, ao longo de sua vida acadêmica, só o que fez foi estudar e dar aulas. O mesmo que fizeram, aliás, seus dois grandes mestres, João José Planella e Harry Rodrigues Bellomo. Pesquisa só por conta própria. Idiossincrasias pessoais, e corporativas, não lhe permitiram nunca ingressar nesses circuitos de mútua legitimação que oportunizam bolsas de estudo e pesquisa. Ao longo desse tempo todo, então, foi acumulando saberes e reflexões. Nos últimos cinco anos (2003-2008) começou a transformar suas aulas em “polígrafos”, sempre destinados ao universo muito específico de seus alunos. O plano era ir preparando e atualizando um texto final que, ao encerrar sua carreira docente, deixaria publicado como sua contribuição na área de História Antiga. A decisão do Departamento de História de iniciar a série “História Ensinada”, honrando-o com o convite e a escolha do seu texto para iniciar a nova série, modificou esse planejamento. Apressou-se, assim, a presente publicação. Publicação de algo que ainda não estava de todo pronto. Do projeto inicial ficou a formatação: um “polígrafo” encapado que agora é oferecido a um público maior. INDICE GERAL O EGITO PRÉ-DINÁSTICO..........................................................................................................................8 A REVOLUÇÃO AGRÍCOLA....................................................................................................................16 LEITURAS ADICIONAIS.............................................................................................................................24 O SURGIMENTO DAS ELITES................................................................................................................27 O SURGIMENTO DA ESCRITA...............................................................................................................32 A PRÉ-UNIFICAÇÃO...................................................................................................................................39 O ANTIGO REINO......................................................................................................................................57 O DINÁSTICO PRIMITIVO........................................................................................................................61 O 1° PERÍODO INTERMEDIÁRIO.........................................................................................................119 O REINO MÉDIO......................................................................................................................................127 O 2° PERÍODO INTERMEDIÁRIO.......................................................................................................143 O NOVO REINO.......................................................................................................................................152 colocava as ocorrências anteriores a essa data quase O EGITO PRÉ-DINÁSTICO que na pré-história. Ou, quando muito, numa fase de transição entre a pré-história e a história. Nessa fase de Uma das transição é que teriam se operado, entre as populações maneiras de que se fixavam ao longo do Nilo, aqueles processos se apresentar o começo históricos que as teriam preparado para entrar em seu da egípcia “estágio” avançado de civilização. Tais ocorrências, em é aquela que reconhece alguns casos, foram chamadas de “fatores de êxito” como culminante, para o surgimento da civilização. Entre tais “fatores de desse processo histórico, êxito” estariam a revolução agrícola, a divisão social a unificação do Estado do trabalho (surgimento das elites) e certos avanços faraônico.1 O testemunho técnicos e científicos, como a invenção da escrita. bastante recorrente “civilização” desse fato fato culminante seria uma série de objetos A gênese do Egito: uma civilização “tributária” da Mesopotâmia? trazidos à luz ao final do século XIX, entre os quais se encontram a célebre Fig. 01 - Mapa de Hieraconpolis Na agenda desse esquema interpretativo também constava a premissa de que essa série de “avanços Paleta de Narmer, a maça do Rei Escorpião, a civilizatórios” como o calendário, a engenharia hidráulica, cabeça coroada de Hórus, encontradas no sítio arqueológico de Hierakonpolis (Fig. 01). Como a a escrita e a monarquia, teriam surgido pela primeira estimativa é que tais objetos tenham sido produzidos vez na Mesopotâmia e dali se propagado para o Egito. por volta de 3100 a.C., esse esquema explicativo Entre tantos autores que se perfilaram nesse esquema interpretativo esteve William Mcneill,2 autor do livro História Universal - um estudo comparado das civilizações que, 1 Tal esquema explicativo fundamentava-se naquele modelo teórico, evolucionista e eurocêntrico, muito em voga no séc. XIX e parte do séc. XX, que dividia o mundo entre “civilizações” e “culturas”. As sociedades “primitivas” seriam aquelas dotadas apenas de “cultura”, mas não de “civilização”. Seriam aqueles grupos humanos sem tecnologia transformadora do mundo, sem economia de mercado (apenas de subsistência), sem divisão de classes, sem escrita e sem Estado. As “civilizações” seriam as sociedades que “superaram” esse estágio, formando sociedades com Estado organizado, desenvolvimento tecnológico, etc. 8 Arnoldo Walter Doberstein aqui no Brasil, marcou toda uma geração de estudiosos. 2 William Mcneill nasceu no Canadá, em 1917. Fez sua graduação na Universidade de Chicago (1938) e seu doutorado na Universidade de Cornell (1947). Foi professor emérito na Universidade de Chicago. A World History foi escrito “durante o verão de 1964”. Traduzido e editado pela USP e Editora Globo (1972), tornou-se uma referência nos meios acadêmicos, inclusive na PUCRS, nas décadas de 80 e 90. Nesse seu estudo, depois de qualificar a - tudo isso já havia aparecido na Mesopotâmia quando Menés unificou o vale do Nilo. Tudo isso foi rapidamente incorporado à cultura egípcia por um processo de imitação e adaptação.4 Mesopotâmia como “a mais antiga civilização” (p. 11) e de apresentar as principais “invenções sumerianas” (p. 13) que elencou como tendo sido “a classe administrativa (...) as artes da mensuração (...) o calendário (...) a escrita (...) a engenharia hidráulica As pesquisas em Hierakonpolis: a busca das raízes africanas do Egito (...) a escrita (...) e a monarquia” (p. 11- 17), o autor Uma série de pesquisas, nos últimos 30 anos, tem assim apresentou o surgimento da civilização egípcia: levado vários estudiosos a propor uma nova e grande hipótese de trabalho, ou seja, que a civilização Até a década de 1930 acreditou-se que a civilização do Egito houvesse sido a mais antiga da terra. Os egiptólogos, porém, reconhem hoje que as estimativas cronológicas de seus predecessores eram exageradas. Tradicionalmente, o início da história egípcia foi a unificação (grifo nosso) (...) do Baixo Egito sob o rei Menés (...) ocorreu provavelmente por volta de 3100 a.C., quando as cidades sumerianas já tinham atrás de si vários séculos de desenvolvimento. Têm sido descobertos leves, mas inconfundíveis vestígios de influência sumeriana nas primeiras fases da civilização egípcia. Parece provável, pois, que navegantes provindos do Golfo Pérsico3 (grifo nosso) tivessem contornado a Arábia até o Mar Vermelho, entrando esporadicamente em contato com os povos que habitavam o estreito vale do Nilo. Técnicas e habilidades já familiares aos sumerianos eram particularmente valiosas para os nativos de um ambiente que a tantos respeitos se assemelhava ao do baixo TigreEufrates. Irrigação, metalurgia, escrita, arado, veículos de rodas e construções monumentais egípcia teve suas raízes na própria África, e não necessariamente por influência da Mesopotâmia. Essa é a hipótese que aqui chamamos de Hipótese Pan-Africana. Nessa série de novas investigações, o sítio da antiga Hierakonpolis – do grego polis (cidade) e hierakon (falcão) – tem se mostrado como um dos mais importantes. Chamado pelos egípcios de Nekhen, o local sempre foi associado pelos especialistas ao nascimento da monarquia e do Estado faraônico. Diversos objetos ali prospectados testemunham que os primeiros faraós tinham ligações com o local. Foi nesse sítio, no chamado “Depósito Principal” do Templo de Hórus do período pré-dinástico (letra 3 Esse enunciado de Mcneill alinhava-se no difusionismo, um paradigma muitas vezes associado ao evolucionismo. Para o difusionismo, as mudanças mais significativas operadas na humanidade seriam transmitidas de um grupo para outro, sempre a partir de um foco de origem, do qual as mudanças se propagariam para áreas periféricas. Na “orelha” de apresentação de sua “História Universal” esse paradigma é claramente anunciado quando se lê que “este livro (...) parte da premissa de que em qualquer época o equilíbrio entre as culturas pode ser perturbado por forças que se irradiam de um ou mais centros (grifo nosso) onde os homens criaram civilizações extraordinariamente atrativas ou poderosas”. “A” da Fig. 02), que uma equipe de Flinders Petrie5, 4 McNEILL, William. História Universal: um estudo comparado das civilizações. Porto Alegre: Globo. São Paulo: USP, 1972, p. 23. 5 O legendário William M. Flinders Petrie (1853-1944) foi o primeiro Superintendente da Sociedade de Exploração do Egito, fundada em 1882. Começou seus trabalhos em 1884 e manteve-se ativo até por volta de 1940. Não tinha uma educação sistemática, mas, com seus O Egito Antigo 9 em 1898, encontrou a o interior, seguindo o Wadi Paleta de Narmer, um Abu Suffian (que divide verdadeiro o sítio), até a borda das ícone do nascimento da realeza formações e da própria civilização ficam a cerca de 3,5 Km egípcia. da margem. Um dos que Foi que sítio inaugurou essa nova linha Quibell, de investigação foi Michael em 1899, escavou a Hoffman, no começo dos igualmente famosa anos 80. Sua atenção se Tumba 100 (letra “B” voltou na direção dos restos da Fig. 02), situada do que parece ter sido um que nesse rochosas, James próxima da borda das Fig. 02 - Reconstituição livre do sítio de Hierakonpolis, com a localização aproximada dos locais das principais descobertas até agora realizadas. terras cultivadas, e cuja conjunto de olarias (letra “C” da Fig. 02) para a produção datação é estimada em cerca de 3400- de uma cerâmica muito especial. Trata- 3300 a.C. Seus muros conservaram se da cerâmica vermelha de bordas uma pintura funerária única, em cuja negras, (Fig.03), considerada uma das iconografia aparece uma série de signos mais belas e refinadas que a civilização que mais tarde se incorporaram ao egípcia produziu. Como os fornos para repertório iconográfico da monarquia faraônica. sua produção ficavam relativamente Fig. 03 - Alguns exemplares da cerâmica Vermelha-preta. afastados da aldeia (letra “F” da Fig. Essas investigações antigas resumiram-se a 02) estima-se que era para ocultar o segredo de escavações próximas das margens inundadas. As sua fabricação. A quantidade de potes quebrados novidades começaram a aparecer a partir de 1978, (sua espessura, muito fina, exigia muita precisão quando as prospecções se estenderam mais para no cozimento) parece indicar que exigiam um saber muito especial. dons naturais, rompeu com “as tradições dos velhos desentulhadores (...) prestou atenção às inscrições partidas, às bagatelas aparentemente sem interesse (...) aos bocados de amuletos e anéis, fragmentos de cerâmica, contas perdidas, grãos dispersos de sementeiras, toda a escória e lixo da Antiguidade (...)”. (ALDRED, Cyril. Os egípcios. Lisboa: Verbo p. 28). 10 Arnoldo Walter Doberstein Partindo da premissa de que esse tipo de cerâmica O templo cerimonial primitivo representava, para quem dela pudesse dispor, uma forma de expressar seu prestígio e ascendência social, Um dos elementos constitutivos desse centro Michael Hoffmann formulou a hipótese de que foi em urbano primitivo seria o seu templo cerimonial, em Hierakonpolis, entre 3800 e 3700 a.C. (esta é a data cujas escavações, a própria Renée Friedman (na Fig. estimada para o que tem se achado nessas novas 04) atua diretamente. Trata-se dos restos de uma área escavações) que começou a se operar a formação das ovalada, com cerca de 40 m de comprimento (letra elites dirigentes no Egito Antigo. Hoffmann, inclusive, “B” da reconstrução hipotética da Fig.05), localizada chamou essa elite de “os barões da cerâmica”. no centro da povoação pré-dinástica (idem, letra “A”). Essa hipótese de que a localidade de Hierakonpolis, Nos alicerces do que seria a sua fachada existem por volta de 3800-3700 a.C., já se apresentava como 4 buracos que, estima-se, serviam para abrigar uma sociedade complexa vem sendo cada vez mais a base de 4 pilares de madeira (idem, letra “C”). confirmada. Nesse sentido, uma das mais acatadas Segundo Friedman, “possivelmente de troncos pesquisadoras atuais é Renée Friedman.6 Num artigo importados do Líbano” (Idem nota n° 7, p. 66). No intitulado Hierakonpolis, o berço da realeza (do qual centro do perímetro ovalado uma plataforma de se retirou a maior das informações aqui repassadas) pedra (idem, letra “D”) parece indicar ser ali o lugar esta egiptóloga afirmou que, das oferendas e sacrifícios. Mas o que mais chama Hierakonpolis deve ter sido um, senão o único, dos mais grandes centros urbanos das margens do Nilo, um centro regional de poder e a capital de um antigo reino. Em Hierakonpolis, mais do que em nenhuma outra parte, a preservação de todos os elementos que constituem uma cidade – habitações, cemitérios, zonas artesanais, centro de culto, depósitos, etc.–, pode nos apresentar muitas informações inéditas sobre o desenvolvimento dos habitats na época de sua formação.7 a atenção dos pesquisadores são os fragmentos de centenas de vasos que foram enterrados nas fossas abertas na parte exterior do recinto fechado (idem, letras “E” e “F”). Os vasos se notabilizam pela sua forma muito singular. Um em forma de ovo, com a cor preta polida. Outro em forma de garrafa, de cor vermelha desbotada. Esse contraste entre superfícies 6 Renée Friedman é formada pela Universidade da California, tendo obtido seu PhD, em 1994, estudando a cerâmica Nagada. Desde 1996 exerce a codireção da American Hierakonpolis Expedition, com financiamento da National Geographic Society, editora da conhecida revista National Geographic. Seu último livro, Egito e Núbia. Pesquisas no Deserto, (Londres: British Museum Press, 2002), ainda não traduzido para o português, se alinha na atual hipótese “pan-africana” de que a civilização egípcia, nas suas origens, se alinhou muito intimamente com a África “negra”. 7 FRIEDMAN, Renée. Hierakonpolis, berceau de la royauté. In: Les dossiers vermelho-claro e preto-brilhante, segundo a mesma Friedman, autoriza que se veja nisso uma associação d’Archeologie. N° 307, out/2005, p. 63. O Egito Antigo 11 com o acontecimento mais importante do ano, a enchente do Nilo: as garrafas vermelhas simbolizam a terra vermelha e seca, antes da inundação, os ovos negros representam o resultado esperado, a renascença de um país úmido e negro (Op.cit.p. 66). outros indicativos da utilização de símbolos para ilustrar temas fundamentais. Como o poder e a fertilidade, por exemplo. Num caco de cerâmica (Fig. 08), aparece o desenho esquematizado de um gato que Além desses dois tipos de vasos, também estão Renée Friedman sugere poder se sendo encontrados milhares de ossadas de animais tratar de uma imagem da deusa selvagens como crocodilos, hipopótamos e cachorros Bastet que, no futuro, sabemos selvagens. A autora sugere que estes animais foram ter sido para os egípcios a deusa ali enterrados como um indicativo simbólico, da mesma forma que os vasos, do controle do caos natural. Nesse templo primitivo de Hierakonpolis existem da casa, da família, da música, Fig.06 - Vaso preto, em forma de ovo. do prazer, da fertilidade e do nascimento. A produção de cerveja em larga escala Outra novidade que as recentes pesquisas de Hierakonpolis estão revelando é que uma boa parte Fig. 04 - O templo pré-dinástico primitivo, com as fundações de seu pátio ovalado e altar de oferendas. Fig.07 - Ao lado. Vaso avermelhado, em forma de garrafa. dos fornos, que anteriormente se acreditava serem todos destinados à produção da cerâmica, se destinavam à produção da cerveja escala. (entre em larga Recentemente 2004 e 2005) foi trazida à luz uma Fig. 05 - Reconstrução hipotética do primitivo templo de Hierakonpolis. 12 Arnoldo Walter Doberstein Fig.08 - Caco de cerâmica com a suposta imagem de Bastet. “cervejaria”, situada nas proximidades do Wadi Abu Suffian (letra I da Fig. 05), cujos restos estão mais ter provocado a desertificação da local.8 Mas, por bem preservados que aquela que já era conhecida. outro lado, a autora avança num outro enunciado Sobre esta última, Renée Friedman fala de uma que reforça a grande tese que essas pesquisas produção “(...) estimada em mais de 1.000 litros de estão formulando, ou seja, que em Hierakonpolis, por cerveja por dia. O dispositivo podia fornecer uma ração volta de 3800 a.C., o embrião do Egito faraônico já quotidiana para mais de 300 pessoas” (Op. cit. p. 65). estava se formando. No seu entender, A “cervejaria” recentemente descoberta, era A existência destas duas grandes cervejarias sugere que a proeminência de Hierakonpolis podia provir de uma organização do tipo “economia de redistribuição”, conhecida à época faraônica, na qual as produções agrícolas eram centralizadas, e depois redistribuídas, talvez sob a forma de salários (Op. cit. p. 65). A Tumba 23 e a presumível linhagem dos “senhores de Nekhen” Entre as tantas novidades reveladas pelas Fig.09 - Restos de 2 das 8 lareiras que formavam o conjunto de uma das mais antigas “cervejarias” egípcias. escavações de Hierakonpolis, a Tumba 23 (Fig. 10) constituída de oito lareiras circulares, compostas de pequenos pilares de argila cozida (Fig.09), que serviam de base ao tonel que era levado ao fogo com a mistura da qual se obtinha aquela bebida que, junto com o pão, formava a base da dieta quotidiana dos egípcios. Para Renée Friedman ainda é muito cedo para dizer se tais “cervejarias” devam ser consideradas como fazendo parte do domínio da realeza ou Fig.10 - A tumba 23, de Hierakonpolis, com as devidas marcações do conjunto de seus elementos constitutivos. funerário. E, também, se a grande quantidade de combustível vegetal que as mesmas exigiam possa 8 Michael Hoffmann, inclusive, quando anunciou a sua tese, em que apresentou os “barões da cerâmica” (ver adiante, p.) como sendo os antecessores dos faraós, atribuiu a essa desertificação o futuro deslocamento desses “chefes da cerâmica”, para chefiar os grandes trabalhos hidráulicos nas margens do Nilo. O Egito Antigo 13 é vista como uma das maiores evidências do grau Ao redor da câmara funerária principal foram de hierarquização dessa sociedade, em meados de feitas outras covas (idem, letra “D”) que apontam 3800 a.C.. Trata-se da maior tumba desse período para o enterro de outros corpos, dos quais ainda não até agora conhecida. se tem maiores indicativos se eram de familiares dos Seus principais elementos constitutivos eram uma câmara funerária retangular de 5,5 m de comprimento titulares ou de serviçais que acompanharam seus senhores quando de sua morte. por 3,1 m. de largura e uma profundidade de cerca Um dos achados mais intrigantes, ocorrido de 1,2 m (letra “A” da reconstrução hipotética da recentemente, foi do esqueleto de um elefante, de Fig.11). É o mais antigo monumento funerário aproximadamente 10 anos de idade, ao que tudo indica egípcio, até agora conhecido, que apresenta traços inumado numa sepultura oval, nas proximidades da de uma superestrutura (Idem, letra “B”). Oito buracos câmara principal (idem, letra “E”). Segundo a própria de postes, dispostos de cada lado da câmara Renée Friedman, a morte desse elefante não deve ter funerária, indicam que ela possuía essa cobertura. sido uma ocorrência natural, já que “ele foi enterrado A dúvida é se a mesma era de madeira ou de juncos como se tratasse de um ser humano, envolto numa trançados. Ao lado da câmara funerária subsistiram grande quantidade de linho e acompanhado de belas buracos similares, também alinhados, que indicam oferendas funerárias” (Op. cit. p. 72). Essa ossada possivelmente uma construção em separado, talvez de elefante, da Tumba 23, vem sendo exibida, pela uma capela de culto (Idem, letra “C”). Fig.11 - Reconstituição hipotética da Tumba 23, com seus principais elementos constitutivos. 14 Arnoldo Walter Doberstein Fig.12 - Pesquisador exibindo o maxilar do elefante da Tumba 23. equipe de arqueólogos do projeto, como um dos seus Na capela de culto, de onde foram tirados mais preciosos “troféus” (Fig.12). os fragmentos dessa estátua, também foram Esse entusiasmo todo vem do fato de que no recuperadas imagens estilizadas de animais, feitas chamado “cemitério das elites” está sendo escavado em sílex, e fragmentos de máscaras mortuárias. um grande número de tumbas de animais exóticos, Mesmo como de um exemplar de um boi selvagem, de essas últimas, segundo Friedman “indicam que pelo outro elefante, de um grande carneiro. Assim menos dois ocupantes de alto escalão” (Op. cit. p. 70) como tumbas contendo carneiros, babuínos, gatos foram ali sepultados. A presença dessas máscaras selvagens, hipopótamos, e, inclusive, uma águia. mortuárias no complexo da Tumba 23 confirma aquilo Esses sepultamentos de animais, segundo Renée que também já foi anteriormente encontrado em Friedman, outras tumbas do cemitério das elites. A mais famosa que “desgraçadamente fragmentárias”, delas, pelo seu grau de conservação, foi encontrada Representam uma parte de uma espécie de cerimonial real (grifo nosso) ou da manifestação de um poder natural que seus titulares imaginavam controlar. Espera-se que sua repartição possa nos ajudar a localizar outras grandes tumbas reais (idem) e assim reconstituir a linhagem pré-dinástica do que nós podemos, a justo título, chamar de “os senhores de Nekhen” (idem) (...) A razão pela qual nós dependemos destes animais para nos conduzir a seus senhores constitui um dos aspectos mais intrigantes de nossas recentes descobertas (Op. cit. p. 72). por Bárbara Adams (Fig. 13), antes do seu precoce falecimento. Essa destacada arqueóloga,9 aliás, foi quem iniciou as escavações na Tumba 23, fato este destacado pela própria Renée Friedman, quando afirma que Graças a uma bolsa da National Geographic Society concedida a autora em 2005, uma tumba especialmente notável por suas dimensões (a Tumba 23), em parte escavada por Bárbara Adams (grifo nosso) antes de sua morte, pode ser inteiramente desencavada. (Op. cit. p. 69). Essa hipótese que os titulares da Tumba 23 desfrutavam de um “status real” (palavras de Renée Friedman) é reforçada pela presença de diversos outros “objetos preciosos” que nela estão sendo encontrados. Tal como vasos vermelhos e pretos, fragmentos de uma estátua de calcário (até agora, nesse gênero, a mais antiga peça conhecida) e que, ao que tudo indica, foi propositalmente quebrada em épocas posteriores (são perto de seiscentos os fragmentos coletados). 9 Bárbara Adams (1945 -2002) foi uma destacada partícipe das pesquisas de Hierakonpolis. Inicialmente foi pesquisadora do Petrie Museum da University College de Londres. Em 1980, foi convidada a fazer parte da equipe de escavadores de Hierakonpolis, liderada por Michael Hoffmann. Com a morte deste último, em 1990, Bárbara ficou encarregada de publicar seus trabalhos, tarefa que concluiu em 1996. A partir de então voltou-se para as escavações no “cemitério das elites”, que o próprio Hoffmann não levara tanto em conta, reativando o interesse pelas pesquisas no local. O Egito Antigo 15 civilizatórios como a agricultura, divisão social do A REVOLUÇÃO AGRÍCOLA trabalho, escrita, surgimento das chefias dirigentes, etc., foi Cyril Aldred.10 Nesse amplo leque de novas investigações, Nesse precioso manual,11 fonte de consulta e que estão procurando “descolar” o surgimento da preparação de tantas aulas de História Antiga, Aldred civilização egípcia da Mesopotâmia, estão aquelas começa sua apresentação das “idades pré-históricas” que se voltam para um processo histórico ainda da civilização egípcia, nos seguintes termos, mais remoto, relativo ao próprio surgimento da Durante os últimos tempos paleolíticos, o recuo da camada de gelo (grifo nosso) na Europa causou modificações climáticas no Norte da África, que se tornou cada vez mais seco. O Nilo, depois de ter sido um vasto lago interior (idem), restringiu-se, progressivamente, até o seu leito atual, deixando atrás oito terraços a ladear as colinas dos desertos Líbico e Arábico.12 agricultura no vale do Nilo. Já vimos atrás como William Mcneill, nos anos 50, reconhecia “leves, mas inconfundíveis de influência nas primeiras vestígios fases desenvolvimento civilização de da egípcia”. Para o referido autor, “irrigação (grifo nosso), 10 sumeriana metalurgia, Fig.13 - Bárbara Adams e “sua” notável descoberta. escrita, arado (idem), veículos de roda e construções monumentais 11 – tudo isso já havia aparecido na Mesopotâmia quando Menés unificou o vale do Nilo”. (Op. cit. nota n° 4, Fig. 14 - Cyril Aldred. pag. 8) Outro influente egiptólogo que Nascido na Inglaterra, Cyril Aldred (1915-1991) notabilizou-se em arte egípcia e no período amarniano. Foi Curador das secções de arte egípcia de importantes museus como o Metropolitan Museum de Nova Iorque (1955-56) e o Royal Scottish Museum (1961-74). Como membro do comitê da “Sociedade para Exploração do Egito”, esteve diversas vezes no Egito, entre 1959 e 1976. Publicou A arte do Reino Antigo do Egito (1949), O desenvolvimento da arte no Antigo Egito (1952) e A arte egípcia nos dias dos Faraós (1980). Como autoridade no período amarniano editou Aquenaton, faraó do Egito (1968) e Aquenaton rei do Egito (1988), todos não traduzidos para o português. Como generalista, publicou Os Egípcios (1961) reeditado em 1988, e traduzido para diversas línguas, inclusive em Portugal. Mesmo que perfilado em teses difusioniostas (hoje parcialmente revisadas), trata-se de um dos melhores manuais de história egípcia publicado em nossa língua. se alinhou nessa mesma tese difusionista, que reconhecia na Mesopotâmia a primazia de diversos avanços O adjetivo “precioso”, aqui empregado, serve para demarcar uma posição muito pessoal a respeito dos livros e autores que, eventual e pontualmente, se alinharam em esquemas de interpretação que hoje estão sendo revisados pelas novas pesquisas e interpretações. Livros e autores como Mcneill e Aldred (e outros que serão citados oportunamente como Giordani, Liverani, etc.) não são aqui tomados como uma bibliografia “irremediavelmente superada”. Aqui adotase o paradigma que a história registro é uma ciência em construção. Conhecer como ela foi feita, saber a partir de que bases, suposições e hipóteses, esse conhecimento foi se constituindo não é só uma questão de reconhecimento pelo que realizaram os que vieram antes de nós. É também uma questão de sabedoria e inteligência. É decidir que é mais sábio e prudente subirmos nos ombros daqueles que nos antecederam, para dali avançar, do que pisar nos seus pescoços, subestimando suas contribuições, imaginando que só assim é que nos podemos afirmar. 12 16 Arnoldo Walter Doberstein ALDRED, Cyril. Os egípcios. Lisboa: Verbo, 1972, p. 66. O mundo por volta de 20000 a.C. anteriores. A África ficava mais distante dos nefastos efeitos das geleiras. Tudo indica que foi o habitat Esse preâmbulo de Aldred nos oferece o ensejo original do homem primitivo. de percorrermos o que aconteceu de importante, No Nordeste do continente africano, onde depois entre 20000 e 10000 a.C., não só no Nordeste se localizou o Antigo Egito, o que existia era um da África, onde no futuro iria se desenvolver a grande lago, cuja área englobava o atual deserto civilização egípcia, mas também na Mesopotâmia e, líbico e o deserto arábico. especialmente, naquela região onde mais tarde se formou o chamado Crescente 15000 - 10000 a.C.: o fim da Idade do Gelo Fértil. Por volta de 20000 a.C., o mundo vivia a chamada No período que vai de 15000 Idade do Gelo. Grande parte a da Europa, Ásia e América do mudanças climáticas começaram Norte, era coberta por lençóis a mudar o quadro anterior. Na de gelo impenetráveis (Fig. 15). Europa, a camada de gelo recuou Na calota polar, gigantescas até a Escandinávia (Suécia, geleiras retinham uma grande Noruega, Lapônia) e Norte da quantidade de água congelada. Rússia. Em certas regiões a O nível dos oceanos, em média, vegetação ficou mais abundante, era muito mais baixo que o atual. os animais se multiplicaram e a As temperaturas eram de 10 humanidade aumentou. Entre a 12 graus mais baixas que as Fig.15 - O mundo da Idade do Gelo, por volta de 20000 a.C., com o grande lago no NE da África. atuais. Sob essas condições, e nessas regiões, a espécie 10000 a.C., importantes tais regiões, destacou-se aquela que chamamos de Crescente Fértil (Fig. 16). humana tinha poucas chances de sobreviver e de Era uma faixa de terra que, da atual Jordânia, se multiplicar. Os grupos humanos que existiam estendia-se até os contrafortes da Ásia Menor, formavam pequenos bandos que caçavam e colhiam desviando-se ao longo do Tigre e Eufrates até do mesmo modo que faziam nos 100000 anos alcançar o Golfo Pérsico. Sobre essa região O Egito Antigo 17 silvestres pela seleção daquelas espécies mais apropriadas para o cultivo. As primeiras lavouras foram se formando. Isso produziu modificações no modo de agregação. Acampamentos mais permanentes foram sendo levantados. As casas eram redondas, indicativo de núcleos familiares estáticos. Na extremidade Fig.16- Corredor Palestino, Mesopotâmia e o Crescente Fértil, entre 15000 e 10000 a.C. incidiam chuvas sazonais que eram provocadas pelo encontro das massas de ar quente e úmido, vindas do ocidental do arco do Crescente Fértil mais próximo do futuro Egito, formou-se uma das mais antigas aldeias de agricultores: o sítio de Jericó (8000 a.C.). Mediterrâneo (formadas pelo aquecimento resultante do recuo das geleiras), com as frentes frias originadas nas montanhas que circundavam a região. Com a O Egito no fim da Idade do Gelo: o recuo do Grande Lago e a formação do Rio Nilo incidência dessas chuvas, nas encostas mais baixas Essas mudanças climáticas também produziram das estepes, começaram a se formar campos de suas consequências no Nordeste da África, onde cereais silvestres (o Crescente Fértil), onde pastavam no futuro iria se formar o Egito. Cyril Aldred, dando o carneiro, a gazela, o boi e o burro selvagem. As partes continuidade à sua excelente descrição, assim nos mais elevadas eram o habitat das cabras e cabritos apresenta as presumíveis ocorrências desse período monteses, assim como do cachorro selvagem. (cerca de 10000 a.C.) na região, 10000 - 7500 a.C.: o começo da agricultura (no Crescente) Na zona do Crescente Fértil, pouco a pouco, os bandos humanos foram se acampando em cavernas, situadas nas partes mais altas. Começaram a domesticar os animais. Primeiro foram as cabras, cabritos e cachorros selvagens. O passo seguinte foi a substituição da simples colheita dos cereais 18 Arnoldo Walter Doberstein O Nilo, depois de ter sido um vasto lago interior, restringiu-se, progressivamente, até o seu leito atual, deixando, atrás, oito terraços a ladear as colinas dos desertos Líbico e Arábico, nos quais, nos quatro mais baixos, foram encontrados objetos de sílex característicos do Paleolítico inferior. Na sua procura de água, os habitantes da região viram-se imperiosamente forçados a uma maior concentração à beira do Nilo e, aqui, deve haver ocorrido a transição gradual da economia de caça para a de uma produção de alimentos. Estes remotos colonos encontraram um vale cheio de pântanos, com caniçais e baixios deixados pela corrente do Nilo e abundante em peixes e aves, além de hipopótamos e crocodilos (ALDRED,Cyril. Op. cit. p. 66) A origem da agricultura no Egito Antigo: a Hipótese Oriental (William Mcneill – Cyril Aldred) Em certo momento desse penumbroso passado, iniciou-se no Egito a seleção e o cultivo de grãos, dando-se início a uma das mais importantes revoluções tecnológicas do alvorecer da humanidade, ou seja, a revolução agrícola. Como isso teria começado? é aquela explicitando mais claramente seu raciocínio. Seu argumento é que os habitantes das margens do Nilo, nunca tiveram a necessidade de inventar a agricultura, pois dispunham de fartura de alimentos. Segundo ele, as margens do Nilo eram abundantes em raízes, assim como em “mamíferos, peixes e aves que podiam ser caçados facilmente”. Os primeiros habitantes das margens, por conseguinte, Uma das hipóteses mais tradicionais Cyril Aldred também partilhou da mesma opinião, “não devem ter sofrido grande que pressão para mudar seu modo vislumbra o surgimento da de vida nômade” (ALDRED, agricultura no vale do rio Nilo Cyril. Op. cit. p. 67). como tendo sido introduzido por do populações oriente, ou Para o referido autor, então, vindas seja, a introdução da agricultura do no Egito teria sido feita por Crescente Fértil. “imigrantes William Mcneill, como se provavelmente da Palestina viu atrás, embora de forma (grifo nosso), que trouxeram não muito explícita, foi um dos historiadores que se alinhou na tese de que a “irrigação” posteriores, com eles as novas artes do Fig.17 - O Egito Antigo entre 10000 e 7000 a.C.: o recuo do Grande Lago, a formação dos oito terraços, até o leito do Nilo. e o “arado”, entre outros avanços civilizatórios (metalurgia, escrita, veículos de roda, construções monumentais) foram trazidos para o Egito por “navegantes provindos do fundo do Golfo Pérsico (...) contornando a Arábia até o Mar Vermelho” (MCNEILL, William. Op. cit. p. 23). cultivador, semeando cevada ou trigo de espigas de dois grãos” (Op. cit. p. 67). Resumindo: essa hipótese da origem oriental (Palestina ou Golfo Pérsico) da agricultura egípcia parte, como já foi dito, dos paradigmas do difusionismo, e de duas premissas. Uma delas é que a primeira grande revolução agrícola na humanidade O Egito Antigo 19 ocorreu no Crescente Fértil. A outra é que dessa – Kargha, revolução agrícola primeva surgiram as mais antigas Farafra e aldeias agrícolas da raça humana. Como uma dessas encravados no deserto e aldeias é Jericó, (+ ou - 8000 a.C.), situada no que, depois que o Egito se Corredor Palestino, passou-se a cogitar que foi dali formou, foram ocupados que teriam partido (ver esquema no mapa da Fig.17) por populações líbicas e os “imigrantes posteriores” que teriam levado, para o por supostas caravanas Egito “as novas artes do cultivador”. de nômades mercadores, A origem da agricultura no Egito: a Hipótese Pan-africana Dakla, Siwa – cujos contatos com o Egito Fig.19 - O deserto Líbico e seus quatro oásis, entre eles o de El Farafra. faraônico ainda não estão bem estudados (Fig. 19). O local onde estão sendo feitas as pesquisas é Na senda das novas investigações que estão em uma depressão do terreno formada de antigas praias curso nas últimas décadas, que visam apresentar que existiam nos limites do grande lago. Segundo a gênese da civilização egípcia como tendo suas Enrico Barich, autor da comunicação a partir da raízes na própria África, estão as pesquisas que qual se fez este resumo, ali foram encontrados vem sendo feitas por um grupo da Universidade La vestígios de uma dezena de cabanas (Fig. 20), com Sapienza, de Roma, chefiado por Bárbara Barich. embasamento de pedra. Segundo o mesmo autor, O local fica no chamado Wadi El-Obeid, no tórrido e isso estaria indicando uma ocupação sistemática do inóspito deserto Líbico (Fig. 18). local, já por volta de 5000 a.C. O local fica próximo do oásis de Farafra, qual o fazia parte de um conjunto de quatro oásis Fig.18 - Wadi El Obeid, deserto Líbico, próximo do Oásis de El Farafra, local das prospecções da equipe dirigida por Bárbara Barich. 20 Arnoldo Walter Doberstein Fig.20 - Bárbara Barich examinando os restos dos embasamentos de pedra das cabanas de Farafra. Nas proximida- des das referidas cabanas, foram encontrados também os restos de uma série de antigas fogueiras (Fig. 21), em algumas das quais foram vez acopladas a uma haste de madeira, como instrumentos para a ceifa de cereais. No reforço dessa última suposição, de que no local encontrados possivelmente se desenvolvia uma grãos calcinados de sorgo, e de atividade pelo menos protoagrícola, outros cereais típicos da África o grupo de pesquisadores do sítio Setentrional. O referido material de El Farafra apresenta, ainda, tem sua datação estimada como as pedras de moinho (Fig. 23), sendo de 5000 a.C. O artigo completo, intitulado Fig.21 - Restos de fogueiras, onde aparecem grãos de sorgo calcinados. usadas na moagem de grãos. De tudo isso, afinal, o autor conclui Prima dei Faraoni, em italiano, está publicado que, diferentemente do que pensavam egiptólogos na Revista “ARCHEOLOGIA VIVA”, vol. 17, n° como Mcneill e Aldred, o começo da agricultura no 70, mar/1998, da Hemeroteca da Egito pode ter sido um processo Biblioteca Central da PUCRS. intrínseco, autônomo, africano em sua especificidade, separado de uma O fato dos grãos de sorgo calcinados terem sido encontrados, presumível influência oriental. isoladamente, não apontaria para uma correspondente atividade agrícola. Poderiam, por exemplo, ser Fig.22 - Material lítico de Farafra. Possível compo nente de ceifadoras. o resultado de uma simples coleta. Segundo Enrico Barich, o autor do artigo supramencionado, os indicativos de uma atividade Antes de aqui prosseguirmos na apresentação protoagrícola na região são os diversos dessas novas abordagens e interpretações, que procuram relacionar objetos líticos também encontrados na a gênese da civilização egípcia com área (Fig. 22). São pedras pontiagudas, a própria África, convém lembrar que que poderiam ser de flechas e arpões muitas delas ainda não são teorias e para a caça e a pesca, mas cujas faces cortantes também poderiam servir, uma Nas formas da arquitetura egípcia: o translado das imagens do deserto? interpretações Fig.23 - Pedra de moinho encontrada nas escavações de Farafra. consolidadas. Talvez até mesmo não venham nunca a se O Egito Antigo 21 consolidar. Entre essas novas Revista Archeologia Viva,13 ele procura mostrar que proposições, que se alinham na a erosão produziu nas rochas do deserto formas que tese geral que a civilização egípcia se assemelham àquelas que os primitivos egípcios, foi um processo que se iniciou depois de terem sido forçados a “uma gradual no deserto africano, as próprias migração em direção ao vale do Nilo”, reproduziram revistas especializadas tem dado quando de suas criações arquitetônicas. Nesse seu abrigo a matérias que poderíamos artigo o prof. Farouk ilustra seu argumento com fotos Fig.24 - Prof. Farouk El-Baz, da chamar Universidade de Boston. de formações rochosas (Fig. 25) que se assemelham de “arrojadas”. a esfinges, ou mesmo pirâmides. Nesse caso alguns Outro autor que publicou trabalhos na mesma que direção é Thomas Miller, que se apresenta como sugerem que “fazendo parte de um grupo de trabalho fundado em a 1996 pela Fundação Grahan de Estudos Avançados estão artigos Fig.25 - Formação rochosa do Deserto Líbico que a erosão deixou assemelhada àquelas das futuras esfinges. arquitetura egípcia, em em História da Arte, de Chicago”. Num “ensaio muitas de fotográfico”, por ele intitulado Imagens do Deserto & formas, Translado Arquitetônico, publicado na Revista KMT,14 suas ele começa afirmando que reproduziu um conjunto de imagens que os egípcios pré-históricos (vindos das margens do Grande Lago) O deserto, para os egípcios, não era visto como um lugar ermo e desconhecido. Muitos de seus ancestrais caçadores-coletores ali habitaram durante a pré-história, particularmente nos oásis do deserto ocidental. Ali, durante o período Neolítico (5500 - 2500 a.C.), uma grande seca atingiu o Sahara, empurrando a maior parte dessa população para o vale do Nilo. Não obstante, os contatos intermitentes entre as comunidades que sobreviveram no deserto e teriam assimilado na sua longa permanência no deserto e que teriam persistido na memória interior de sua população como uma espécie de imaginário coletivo. Um desses autores é o Prof. Farouk El-Baz (Fig. 24), egípcio de nascimento e norte-americano naturalizado, geólogo renomado por seus estudos sobre a evolução das formações rochosas dos desertos. Numa comunicação feita na Boston University (disponível em http://news.dri.edu/nr2004), da qual é membro desde 1986, e publicada na 22 Arnoldo Walter Doberstein 13 ARCHEOLOGIA VIVA, vol. 17, n° 70, mar/1999, p. 70-73. Um dado curioso é que essa não é a única matéria sobre os desertos que cercam o Egito, nessa revista que tem como “anunciantes” empresas de turismo que oferecem pacotes turísticos (...) justamente para esses locais! 14 A revista KMT, editada nos U.S.A, é especializada em Egito Antigo e se apresenta como uma das tantas iniciativas dos norte-americanos de se alinhar, ao lado da França, Alemanha, Inglaterra e Itália, como um grande centro de egiptologia. as populações que se fixaram ao longo do rio continuaram, tornando a nascente civilização egípcia familiarizada com o deserto. Por essa razão que muitas formações naturais do deserto egípcio dão a impressão que serviram de modelos para a arte e a arquitetura do Vale do Nilo. A questão sobre como, quanto e em que medida essa matriz natural inspirou as duas últimas é, naturalmente, difícil, quando não impossível de ser respondida.15 formações do deserto ocidental (Fig. 26). No mesmo tema das pirâmides, o autor Fig.26 - Formações rochosas do Deserto Líbico (esquerda) e pirâmides de Gizeh (direita). Um transplante de imagens? erosão deixou-a com um formato que se Fig.27 - Formação rochosa do Deserto Líbico (esquerda) e a primeira pirâmide escalonada de Dzozer (direita). pirâmide Fig.28 - (Esquerda) Formação rochosa que a erosão deixou assemelhada a uma mastaba (direita), sepultura egípcia. autor procura sugerir que não só nas formas sepulturas (mastabas, pirâmides) famosas pirâmides de Fig.29 - (Esquerda) Rochas que, com boa vontade, podem ser comparadas com os pilones de um templo egípcio (Direita). Gizeh de avançadas sua arquitetura pirâmide escalonada Miquerinos) cuja distribuição e e as pirâmides de formato seriam assemelhadas com KMT, vol. II, nº 3, ano 2000, p. 18-22. mais tumular (pela ordem, a (dos faraós Queóps, Quéfren e 15 da III Dinastia (Fig. 27). sepulturas egípcias, o suas e templos. A começar pelas três pirâmide desse faraó Ainda no tema das com as formas adotadas pelos para escalonada de Dzoser, conferiu à desertos que circundam o Egito, egípcios assemelha ao que ImHotep, o arquiteto da uma sequência de fotos, nas quais arquitetos alinha uma formação deserto ocidental, cuja fotográfico”, Thomas Miller alinha certas formações rochosas dos do “ensaio fotográfico” rochosa, também do Na ilustração de seu “ensaio procura mostrar a similitude de rochosas Gizeh), mas desde Fig.30 - (Esquerda) Hieróglifos em relevo cavados nas paredes do Templo de Luxor. (Direita) Erosão nas rochas do Sinai. as sepulturas O Egito Antigo mais 23 primitivas, chamadas de mastabas, os arquitetos até meados do século XX, orientavam os estudos egípcios “transplantaram” formas encontradas entre históricos na preferência pelas fontes “materiais”, as formações rochosas do deserto (Fig. 28). proporcionou uma abertura para as novas fontes, Outro elemento que, segundo o autor, os arquitetos egípcios teriam “transladado” das entre elas o imaginário. Aproximaram-se, por vezes formações até problematicamente, a história e a antropologia. rochosas do deserto seria a disposição dos pilones, Os antropólogos, como se sabe, foram os primeiros que eram os dois pórticos de entrada dos templos a adotar os paradigmas teóricos de Carl C. Jung egípcios (Fig. 29). (1875-1921), em especial sua Outra comparação sugerida pelo autor é entre noção dos arquétipos, que os conjuntos de hieróglifos feitos em relevo cavado, correspondem ao conteúdo aquele em que o signo desejado era “escavado” na de superfície de uma parede (Fig. 30, esquerda), com constitutivos do inconsciente os vincos que a erosão fazia em algumas rochas do coletivo, que se evidenciam deserto (Fig. 30, direita). nos mitos e lendas e são imagens e símbolos compartilhados por toda a Fig.31 - Claude Lévi-Strauss, o criador do estruturalismo. humanidade. LEITURAS ADICIONAIS Claude Lévi-Strauss (Fig. 31) e Jean Bachelard voltaram-se para o estudo das comunidades ditas “primitivas” e se deram conta da força diretiva que Aqui se faz necessário dizer que o abrigo dessas os mitos (e suas respectivas imagens constitutivas) “arrojadas” interpretações não significa que estamos exerciam de acordo com elas. Mas, por mais reservas que sociedades. nas formas de organização dessas tenhamos sobre sua validade, o fato é que elas Lévi-Strauss, o criador do estruturalismo, partia estão aí, circulando em revistas especializadas e da premissa básica que todos os indivíduos da raça disponíveis em sites da Internet. humana aprendem da mesma forma, ou seja, que os É bom lembrar, outrossim, que o interesse dos indivíduos aprendem enquanto usam a linguagem. historiadores pelo tema do imaginário é cada vez Para ele, todos os homens (ele não aceitava a maior. A crise dos paradigmas do racionalismo distinção entre sociedades ditas “civilizadas” e as cartesiano e do positivismo de Augusto Comte que, 24 Arnoldo Walter Doberstein consideradas “primitivas”) aconteceu na História tem experimentado, nos últimos passam do estado natural anos, uma notável ampliação. No que diz respeito à para o cultural, obedecendo a proposição de se ver no imaginário (entendido como leis linguísticas que não foram tal, entre tantas definições, aquela que o vê como criadas por eles, mas que um conjunto de representações e imagens mentais pertencem aos mecanismos por meio das quais os homens fazem ideia de algo, do próprio cérebro humano. dos outros e de si mesmos), ou seja, como algo Discípulo tanto de Lévi- que, ao lado do real e do simbólico, fundamenta as Strauss como de Bachelard, o instituições e práticas dos grupos sociais, destaca-se, francês Gilbert Durand (Fig.32) entre outros, o nome de Cornélius Castoriadis (Fig. foi mais adiante. Em 1967, fundou o Centro de 33), filósofo, economista e psicanalista, nascido em Pesquisas sobre o Imaginário, o qual tem servido 1922 e falecido em 1997. Foi militante da Juventude de fonte de referência para o avanço dos estudos Comunista que desafiou a ditadura em seu país nessa área do conhecimento. nos anos 30 e 40. Porém, em dezembro de 1944, Fig.32 - Gilbert Durant, o criador do Centro de Pesquisas sobre o Imaginário. Definindo o imaginário como o conjunto do capital quando do golpe de estado que instalou na Grécia simbólico do homo sapiens, formado das imagens e um governo stalinista, passou das relações entre elas, Durand reafirma a dimensão a revisar as suas concepções dos arquétipos e da força direcionante dos mitos em marxistas. todas as sociedades. Os mitemas, segundo ele, são Chegado à França, “metáforas obsessivas” (grupos de imagens que se em repetem) e que constituem o núcleo significante dos discussões grandes mitos, e que podem ser detectados em todas para o segundo Congresso as sociedades. Um mitema, de acordo com seus da IV Internacional. Como enunciados, pode ser um objeto, um emblema, uma naquela época o socialismo situação dramática, um cenário mítico, (as imagens real do deserto?) etc. na 1945, participou das preparatórias (especialmente Rússia) estabelecia Fig.33 - Cornélius (1920-1997). como Castoriadis programa de Essa questão dos paradigmas a partir dos quais governo o nacionalismo e o planejamento central os historiadores intentam entender e explicar o que (burocratizante) da economia, Castoriadis passou a O Egito Antigo 25 defender uma espécie de gestão coletiva de todas as coletivas que enformam as sociedades. Não realidade atividades sociais. Tal posição levou-o a uma ruptura (ele não pode ser derivado de elementos materiais), com o racionalismo e com o determinismo a que o nem racional (não pode ser construído logicamente), marxismo real havia chegado. Para ele, nenhuma o magna imaginário exerce uma tríplice função. “artimanha da razão” sobredetermina os destinos Em primeiro lugar ele nossas coletivos. Ninguém pode e nem poderia jamais representações perceber o segredo da história, isso simplesmente não têm nada de universal. Elas são apropriadas porque não existe nela um fim pré-determinado. a cada sociedade. Certos homens se imaginam e Castoriadis considera “o imaginário como o fundamento da sociedade”. 16 Uma sociedade, segundo ele, não se forma sem que os indivíduos comuns. estrutura Essas significações se identificam como leopardos; outros como filhos de Abraão; outros, ainda, como herdeiros de uma história nacional. que a constituem detenham os meios de viver Em segundo lugar, o imaginário, dá o sentido juntos, notadamente os meios de produção. Mas desejado de uma ação. Para certos indivíduos, a uma sociedade não se reduz a seus componentes prioridade consiste em adorar a Deus. Para outros, materiais. Ela cria igualmente um magma de procurar sempre mais e mais riqueza. significações imaginárias (conceito básico das As significações imaginárias, por fim, apresentam reflexões de Castoriadis) que ligam os indivíduos um impacto sobre nossos afetos. O crente vive e conferem um sentido à sua ação. Essa é a tese profundamente sua fé. O capitalista está sempre central sustentada por ele na sua obra máxima: “A animado de uma febril inquietude que o condena a instituição imaginária da sociedade”, de 1975. uma espécie de inovação permanente. Nessa obra Castoriadis mostra a influência nele Em resumo, uma sociedade existe porque ela exercida pelos escritos de Max Weber sobre as se provê de um conjunto de representações que a representações religiosas e seu impacto sobre as cimentam. As instituições, a começar pela linguagem, práticas econômicas (a ética protestante sobre o são as encarnações do imaginário coletivo, pleno de espírito do capitalismo, por exemplo), colocando sentido, na ausência do qual, o social se dissolveria no centro de suas preocupações as significações imediatamente. 16 O título e os conteúdos acima expostos foram traduzidos livremente do artigo L´imaginaire au fundament des societés, de Michel Lallemente, publicado na Revista Sciences Humaines, nº 185, de jul/ago/2007. 26 Arnoldo Walter Doberstein O SURGIMENTO DAS ELITES pequenas poças que se formavam nas reentrâncias O começo da agricultura visto nas páginas naturais do precedentes, por suas implicações, constituiu-se num terreno. Nessa fato tão prodigioso na história da humanidade que fase bem remota, alguns autores chegaram a chamá-la de revolução acredita-se agrícola.17 Tanto faz que ela tenha surgido primeiro a população que na Mesopotâmia e depois vindo para o Egito, ou que vivia nas margens tenha surgido no próprio Egito, de forma autônoma, do Nilo que era Fig.34 - O Egito primitivo e suas duas estações: a do plantio e a da cheia. o fato é que não sabemos bem ao certo como tudo se passou. A teoria é que foi por etapas. No início, a simples coleta. Depois, as primeiras semeaduras, meio ao sabor do acaso. No preparo da colheita, grãos caiam pelo chão. Germinavam perto das casas, formando as primeiras lavouras. Após veio a seleção das espécies mais apropriadas. Instrumentos para limpar o terreno, ceifar e tirar a casca do grão foram os passos seguintes. A cada ciclo de tempo, a partir de meados de julho, uma enchente acontecia. Durante umas doze luas, de julho a setembro (ver Fig.35 - Sistema hidráulico de uma aldeia egípcia (E) com o Nilo, diques (A), açudes (B), canais (C) e lavouras (D). Fig.34), ficava tudo inundado. Dava tempo para igualitária. A terra pertencia a todos. O trabalho era que os nutrientes orgânicos, que vinham junto com coletivo. Não existiam chefias. as águas, se fixassem no solo. Depois disso o rio voltava ao seu leito normal e não chovia mais. O grão era semeado onde ficava mais úmido, na beira de 17 Quem cunhou a expressão foi o antropólogo inglês Gordon Childe, autor de O que aconteceu na História e de A evolução cultural do Homem. A revolução agrícola do regadio (5000- 4000 a.C.) e o surgimento das elites Em certo momento desse nebuloso passado, uma família ou todo um grupo desses primeiros O Egito Antigo 27 cultivadores deve ter dado o passo mais decisivo Karl Marx e a teoria das necessidades de todos. Erguer um grande dique entre o rio e as lavouras (letra “A” da fig.35).Tentar reter uma maior Um pensador que teorizou quantidade de água, fazendo pequenas represas sobre (letra “B” da fig. 35), ali onde já existiam as reentrâncias questão foi Karl Marx,18 um dos mais do terreno. E, depois, distribuir essa água a terrenos influentes mais distantes, através de um sistema de canais de pensadores do mundo contemporâneo e cuja irrigação (letra “C” da fig. 35). Prontificado o sistema hidráulico, era a vez de essa elaboração teórica não só Fig.36 - Karl Marx. influenciou diversas gerações organizar as lavouras (letra “D”). Decidir o que plantar de pensadores, mas também serviu de base para (trigo para o pão, cevada para a cerveja, alho para processos históricos da maior importância, tais como a o tempero, uva para o vinho, figo para a sobremesa, Revolução Russa de 1917, as Revoluções Chinesa e etc.), o quanto plantar, para que plantar (consumo Cubana, além da implantação do modelo de sociedade local, estatal, exportação, etc.). Erguer casas socialista em diversos países. confortáveis (letra “E”). E, com o tempo, produzir Sobre o surgimento das elites dirigentes no Egito excedentes para importar madeira para construir antigo, ele afirmou que: os navios (letra “F”) de transporte. A suposição é que, para trabalhos de tal escala, envolvendo Não é a fertilidade do solo, mas sua diferenciação, e a variedade de seus produtos naturais, que constituem a base física da divisão social do trabalho, e que incitam o homem,19 com a diversidade das condições naturais em que vive, a multiplicar suas necessidades, aptidões, instrumentos e métodos de trabalho. A muita gente, os grupos humanos coletivos mudaram sua forma de viver. Ou seja, que foi dessa ampliação dos trabalhos que apareceram as chefias dirigentes. Chefias que antes não existiam. De uma ou de outra forma todos concordam que, no Egito primitivo, foi a revolução do regadio que criou a divisão social do trabalho, com um grupo para comandar e o resto para trabalhar. Na descrição do processo, entretanto, as discordâncias são muitas. Vejamos algumas delas. 28 Arnoldo Walter Doberstein 18 Karl Marx nasceu em Treveris, na Alemanha, em 5/5/1818. Ingressou na Universidade de Bonn, em 1835, completando seus estudos em Berlim. Doutourou-se em 1841, com a tese Relações do homem e do mundo em Demócrito e Epicuro. A partir de 1842 dirigiu o jornal radical Rheismiche. Exilado em Paris, conheceu Engels, e publicou A miséria da filosofia, em 1847. Em 1848, em Bruxelas, publicou o Manifesto Comunista. Expulso novamente da Alemanha, em 1849, foi para a Inglaterra, dedicando-se à sua obra máxima, O Capital, cujo primeiro volume apareceu em 1865. Morreu em Londres, em 14/3/1883. 19 Note-se que Marx se refere ao homem, no coletivo. Isso porque para ele, as coisas que acontecem na história resultam, não da vontade e da determinação de alguns, mas da interação e participação de todos. muitos e consagrados egiptólogos. Entre eles o já citado necessidade20 de controlar socialmente21 uma força natural, de utilizá-la, de apropriar-se dela ou domá-la por meio de obras em grande escala22 feitas pelo homem, desempenhou o papel mais decisivo na história da indústria. É o que se verificou, por exemplo, com as obras (p.589) para regular as água no Egito (grifo nosso), onde a irrigação por meio de canais artificiais proporcionava a água indispensável para o cultivo do solo, e depositava nela, com a lama que a água trazia das montanhas, adubos minerais. A necessidade de calcular os períodos das cheias do Nilo criou a astronomia egípcia e, com ela, o domínio da classe sacerdotal como orientadora da agricultura.23 Cyril Aldred (Fig. 37), que, mesmo sem ser vinculado ao materialismo histórico, a respeito do surgimento das elites dirigentes no Egito, assim se manifestou: No Egito, em especial como resultado do aumento da população,24 levou a tentar-se dominar a inundação anual do Nilo e distribuíla sobre terrenos cada vez mais vastos. Os egípcios depressa reconheceram que tal trabalho era mais efetivo quando feito num esforço de cooperação em larga escala (grifo nosso). A transformação do poder destruidor da inundação num efeito benéfico acostumou os egípcios a um modo de vida organizado e, naturalmente,25 encorajou o desenvolvimento da política local e das instituições religiosas no sentido de dirigirem tais empreendimentos (grifo nosso) e assegurarem o seu êxito.26 Cyril Aldred: nas pegadas de Marx... sem ser marxista! Essa explicação para a transformação da classe sacerdotal egípcia em elite dirigente, formulada por Marx, Arnold Toynbee e a teoria das personalidades criadoras foi fonte de referência para O historiador inglês Arnold Toynbee27 foi outro que Fig.37 - Cyril Aldred. tratou do assunto. Diferentemente de Marx, todavia, 20 Nessa passagem Marx não chega a descrever como as pessoas teriam começado a perceber a existência dessa necessidade. Sabe-se, entretanto, que ele era materialista. Para os materialistas, e para Marx em particular, o pensamento decorre da ação, a qual ele chamou de “práxis”. Deduz-se, pois, que ele imaginava que, no Egito primitivo, as pessoas teriam constatado a necessidade de se fazer uma divisão social do trabalho (uns coordenando, outros executando) no transcurso de sua ação, quer dizer, enquanto iam fazendo as represas e os canais. 21 A expressão “controlar socialmente” diz respeito a uma determinada situação em que uma empreitada qualquer é de tal porte que não pode ser feita por pequenos grupos. Exige uma mobilização de uma grande coletividade. 22 A força natural a ser “domada” seriam as enchentes do Nilo. As pessoas teriam começado a “perceber a necessidade” de se organizar socialmente quando as obras hidráulicas (diques, canais, etc.) alcançaram uma escala tal que tiveram que contar com a participação de um grande número de pessoas. 23 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Volume II, capítulo XIV, p. 589-590. ele considerou que não bastariam as necessidades e 24 No caso de Aldred, fica claro que o que teria criado aquela necessidade a que Marx se referiu, teria sido o aumento da população. 25 A utilização desse termo atesta que Aldred, mesmo seguindo Marx, não era um marxista pleno. Para Marx, a divisão social do trabalho e o surgimento das classes dominantes nunca são processos “naturais” (que fazem parte da natureza humana). 26 ALDRED, Cyril. Os Egípcios. Lisboa: Verbo, 1972, p. 68. 27 Arnold Joseph Toynbee nasceu em Londres, em 14/4/1889, e morreu em York, em 22/10/1975. Estudou em Oxford. Lecionou Literatura e História (1919-1924) e História Mundial (1925-1955) na Universidade de Londres. Foi diretor do Instituto Real de Estudos Internacionais. Publicou diversos ensaios sobre a civilização helênica, entre eles o conhecido “O Helenismo”, de 1959, traduzido para o português. Seu mais importante trabalho foi o “Um estudo de História”, em 12 volumes (I-III, 1934; IV-V, 1939; VII-X, 1954 e XI-XII, 1961). O Egito Antigo 29 as banfazejas enchentes do rio, conservar as suas águas e distribuí-las para áreas Nilo para que os trabalhos mais distantes. Só que, para Toynbee, esse desafio não hidráulicos em larga escala é percebido por todos. Segundo ele, um grupo humano começassem a ser feitos, pode permanecer toda a sua existência fazendo as sob a liderança de chefias coisas do mesmo jeito, repetindo procedimentos, sem dirigentes. Seu argumento foi jamais inovar. A coisa começa a mudar quando, dentro que: desses grupos, surgem as personalidades criadoras. Se fosse assim, em qualquer outra área de Fig.38 - Arnold Toynbee. um ambiente do tipo nilótico emergeria uma civilização similar à do Egito. A teoria falha no caso do vale do Jordão, que jamais foi sede de civilização alguma. Os vales do Rio Grande e do Colorado, nos Estados Unidos, também.28 Arnold Toynbee trabalha com a teoria do desafio (repto) e das respostas (réplicas). Para ele, todos os grupos humanos, para sair do seu estágio tradicional, encontram um desafio pela frente. Não pode ser um desafio tão forte, a ponto de não permitir uma resposta (como nas regiões polares, cujas populações jamais poderiam formar uma civilização). Mas também não pode ser um desafio tão frágil que não exija uma resposta de mudança (nas ilhas “paradisíacas”, onde é muito fácil sobreviver). As civilizações, segundo Toynbee, só surgem onde a natureza exige uma mobilização do grupo, e que essa mobilização permita modificar a natureza em favor do grupo. No caso do Egito, o desafio seria o de domar o 28 TOYNBEE, Arnold. Um estudo da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Vol. I, p. 118. 30 Arnoldo Walter Doberstein Em se tratando do Egito, no seu entendimento, os primeiros agricultores poderiam permanecer todo o tempo só plantando perto das pequenas poças naturais, sem nunca pensar em fazer uma represa maior, para aumentar o volume de água e, posteriormente, canalizar essa água para diversas lavouras. Quem teve esse lampejo (lampejo este que Toynbee não explica bem de onde vem, o que se constitui num dos pontos vulneráveis de sua teoria), foram apenas e tão somente algumas personalidades criadoras. Nas suas palavras: As sociedades primitivas, tais como as conhecemos, se encontram numa condição estática, ao passo que as civilizações se encontram em movimento dinâmico. A diferença entre civilizações e sociedades estáticas, primitivas, reside no movimento dinâmico de personalidades criadoras dentro de seus organismos sociais. Estas personalidades criadoras nunca passaram de uma minoria.” (Vol.II, p. 409) (...) Se o seu gênio triunfa na tarefa de suplantar a inércia ou a hostilidade de seus antigos companheiros, e conseguem transformar o seu meio social numa nova ordem, torna, conseqüentemente, a vida intolerável para os homens e para as mulheres de argila comum (grifo nosso), a menos que estes consigam se adaptar ao novo meio social que lhes foi imposto pela vontade imperiosamente criadora do gênio triunfante. (Op.cit. Vol. II, p. 412). passaram a contar com excedentes de alimentos (grifo nosso) que permitiram desligar um número cada vez maior das atividades de subsistência.30 Darci Ribeiro e a teoria da distribuição dos excedentes agrícolas Parece, por conseguinte, que Darcy Ribeiro Entre os pensadores que entendia que a revolução agrícola e a obtenção dos se inspiraram na teoria das excedentes de alimentos aconteceram em sociedades necessidades de Marx está o ainda igualitárias e coletivistas. Tanto é assim que, na brasileiro Darci Ribeiro29 autor de importantes trabalhos na sequência de seu argumento, ele afirmou que, Fig.39 - Darci Ribeiro Das primitivas comunidades agrícolas comunitárias (grifo nosso), fundadas na propriedade coletiva da terra passou-se, assim, progressivamente, a sociedades de classe (idem), assentadas na propriedade privada ou em outras formas de apropriação e de acumulação do produto social. Os motores básicos dessa diferenciação social, além da renovação tecnológica, foi a contingência de regular a distribuição, dentro da comunidade, dos excedentes de bens que se tornara capaz de produzir (Op. cit. p. 75). área de antropologia cultural. Só que ele viu a coisa um pouco diferente de Marx. Para ele a revolução agrícola teve duas fases. Na primeira delas ainda não teria se produzido a divisão social do trabalho, nem o surgimento das chefias dirigentes. Na sua visão, com o desenvolvimento da revolução agrícola, acumularam-se as inovações tecnológicas (irrigação, adubagem hidráulica, uso do arado, veículos de roda com tração animal, barcos à vela) ensejando o advento das primeiras cidades (revolução urbana). As sociedades vanguardeiras destas revoluções tecnológicas, ampliando a capacidade de produção de cada lavrador, Barry Kemp e a teoria do sentimento de posse e do afã competitivo A queda do socialismo e a crise 29 Darcy Ribeiro nasceu em Montes Claros (MG), em 26/10/1922. Em 1939, ingressou na Faculdade de Medicina. Sem vocação para médico, mudou para Sociologia e Política, graduando-se em 1946. Em 1947 ingressou no Serviço de Proteção ao Índio, o que levou-o a viver longos períodos entre os índios. Em 1955, com a eleição de JK, colaborou no plano educacional do novo governo e planejou a Universidade de Brasília (UnB), da qual foi o primeiro reitor (1959). Em 1962 assumiu o Ministério de Educação e Cultura. No governo Goulart, assumiu a chefia do Gabinete Civil da Presidência da República (1963). Com o golpe de 64 foi cassado. No exílio, lecionou antropologia na Universidade do Uruguai. Em 1968 retornou ao Brasil, sendo novamente cassado, agora pelo AI-5. Preso por quase um ano, em 1969 foi julgado e absolvido. Com o fechamento político ele se autoexilou, fixando-se na Venezuela e depois no Peru, podendo se dedicar a seus principais textos: O Processo Civilizatório (1968), As Américas e a Civilização (1970), Os Brasileiros (1972) e O Dilema da América Latina (1978). Em 1976 retornou ao país. Com a anistia de 1979 reintegrou-se à UFRJ. Filiou-se ao PDT, elegendo-se Vice-Governador (1982) e Senador (1990), pelo Rio de Janeiro. Faleceu em 17/2/1997, sem deixar filhos. dos esquemas explicativos ligados ao marxismo vêm fazendo com que, nos últimos anos, os fatos da história antiga sejam explicados à luz de outros pressupostos, alguns Fig.40 - Barry Kemp. deles com evidentes pontos de contato com o liberalismo. Esse 30 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 74. O Egito Antigo 31 parece ter sido o caso de Barry Kemp31, um dos mais momentosos egiptólogos da atualidade. Segundo ele, às vezes se acreditou que a sociedade organizada,a civilização, surgiu, no Egito e em outros lugares, pela necessidade de coordenar os esforços coletivos para controlar os rios (...) Pelo que diz respeito ao Antigo Egito, pode-se afirmar que não foi assim (grifo nosso).32 O SURGIMENTO DA ESCRITA Como se viu atrás, a emergência da civilização egípcia completou-se por volta de 3100 a.C., com a unificação do Estado. Mas, antes disso, outras ocorrências especiais prepararam essa emergência. Para ele a relação entre a formação do Estado e da Primeiro foi a revolução agrícola (+ ou - 5000 - 4000 sociedade de classe com a agricultura parece inerente. a.C.). Depois a consolidação das chefias dirigentes Na mesma linha de Toynbee, entretanto, lembra que, em e da divisão social do trabalho (+ ou - 4000 - 3500 muitos casos, isso não aconteceu. Assim como Toynbee, a.C.). Uma das melhores descrições desse período também considera que, para o surgimento das chefias vem de Cyril Aldred, vazada nos seguintes termos: o fator essencial é psicológico (grifo nosso): uma ocupação de caráter permanente, o trabalhar sempre na mesma terra, criam um forte sentido de direitos territoriais (...) em algumas pessoas, desperta um afã competitivo, e faz-lhes ver a possibilidade de obter um excedente agrícola e, com ele, uma existência mais satisfatória, comprando-o de outros ou utilizando a coerção, em vez de realizar, de sua parte, tarefas agrícolas suplementarias. Essa combinação de ambição e sentido místico de identidade, fez com que os indivíduos e as comunidades entrassem em uma situação de possível competição e cambiou, de uma vez para sempre, a natureza da sociedade. A partir de uns agrupamentos de agricultores, nos quais não havia chefes, surgiram umas comunidades nas quais alguns líderes dirigiam a maioria. (Op. cit. p. 22) 31 KEMP, Barry J. El Antiguo Egipto, anatomia de una civilización. Barcelona: Crítica, 1995, p. 22. 32 Barry Joseph Kemp é professor de Egiptologia na Universidade de Cambridge, Inglaterra. Assim como Cyril Aldred, faz parte da Sociedade de Exploração do Egito que opera no Egito desde 1931. Entre 1977 e 1996, inclusive, a maioria das escavações realizadas pela Sociedade estiveram sob sua orientação. 32 Arnoldo Walter Doberstein Na longa jornada dos egípcios para a civilização (...) podem ser definidas duas grandes fases. A primeira é chamada de “o mais antigo período dinástico” (grifo nosso). Nos fins do período, por volta de 3600 a.C. (...) encontramos o trigo e a cevada, cultivados e armazenados em covas forradas de esteiras. A arte de fazer canastra era praticada e a técnica de tecelagem do linho foi seguramente iniciada durante este período. Eram também feitos adornos de peles de animais, que podiam ser curtidas ou amaciadas. As agulhas eram de osso. Braceletes de marfim e de conchas, colares de pedras perfuradas e conchas haviam se tornado comuns. Tinta para as pálpebras, à base de verde malaquita, em paletas de xisto, e óleos de limpeza extraídos das patas do castor selvagem, mostram que as artes domésticas, sempre importantes no quente e seco verão egípcio, estavam se desenvolvendo. Os pentes, de ossos e marfim, eram decorados com figuras de animais. Instrumentos e armas eram quase exclusivamente de pedra e sílex e as setas recebiam pontas de sílex e farpas de osso. Durante essa fase (5000 - 3600 a.C.) a comida era aparentemente abundante. Cães, cabras, carneiros, gado vacum, gansos e porcos, haviam sido domesticados e abundava a caça. Os grãos dos cereais eram provavelmente cozidos para sopa ou amassados para pão. A vida espiritual dessa época nunca poderá ser bem conhecida por nós. Como nas sepulturas desse período (5000 - 3600 a.C.) o corpo está usualmente inclinado para o lado, como à espera de um renascer, e é acompanhado de panelas, armas, placas cosméticas (...) parece que acreditavam num além, pelo menos para alguns membros das comunidades (...) O sistema político sob o qual estes povos viveram é verdadeiramente obscuro. Provavelmente as comunidades eram pequenas, sustentando-se a si mesmas e relativamente isoladas. (ALDRED, Cyril. op. cit. p.68-71) • A segunda podemos chamar de Hipótese Meridional. Defende que a escrita veio da Mesopotâmia, só que pelo Sul, contornando a Península Arábica (Em vermelho no mapa da Fig. 41). • A terceira podemos chamar de Hipótese PanAfricana. Defende uma origem africana para a escrita egípcia. A Hipótese Setentrional: Cyril Aldred Essa é uma hipótese bastante aceita até agora pelos egiptólogos. Defende que a prática da escrita, no Egito primitivo, veio da Mesopotâmia, junto com outros avanços civilizatórios, como o uso do metal Fig.41 - Hipotéticas rotas da origem oriental da escrita no Egito: setentrional (em azul); meridional (vermelho). e da construção de casas com tijolos de barro. Um Depois da revolução agrícola e da consolidação da divisão social do trabalho, com a afirmação das chefias dirigentes, o fato que mais se destacou na “longa jornada dos egípcios para a civilização”, de que fala Aldred, foi a invenção da escrita. Como isso aconteceu? Como a escrita começou a existir no Egito primitivo? Aqui, como em outros temas, ainda não se tem consenso. Existem, pelo menos, três hipóteses: • A primeira podemos chamar de Hipótese Setentrional. Defende que a escrita veio da Mesopotâmia, pelo Norte (Em azul no mapa da Fig. 41). dos que defendem tal ponto de vista é o próprio Cyril Aldred, quando afirma que, Na longa jornada dos egípcios para a civilização (...) A segunda fase é chamada de último período pré-histórico (seria de + ou - 3600 a.C. até 3100 a.C.) (...) Aquela cultura [descrita acima], essencialmente africana (grifo nosso), poderia ter ficado estéril, neste grau de desenvolvimento, se não tivesse sido fertilizada (idem) por vigorosos contatos com a Ásia [idem] de onde vieram algumas inovações significativas como (...) os instrumentos e armas de cobre (idem) que podem ter estimulado os egípcios no sentido de conseguirem o domínio do Sinai e do deserto Arábico onde, nos tempos históricos, ficavam as principais jazidas de metais. Outras influências de países longínquos foram as construções com tijolos de barros, retangulares, secos ao sol, as impressões em argila com selos cilíndricos, novos estilos de ornamentação (monstros heráldicos, por exemplo) e a primeira tentativa para um O Egito Antigo 33 sistema pictográfico de escrita (idem), sendo que todas estas influências foram indicadas, por eruditos, como de origem mesopotâmica (CYRIL, Aldred. Op. cit. p. 72). e estas vieram, como sabemos, de elementos tipicamente africanos (ALDRED. Op.cit. p.73). A Hipótese Meridional: Mcneill e Lafforge Na sequência de sua explanação, Aldred enuncia os demais argumentos de sua tese sobre a origem oriental da escrita egípcia, afirmando que, Não parece que todas estas inovações tenham sido impostas por conquista, visto que coincidem com o deflagrar de um turbilhão de povos de cabeça larga, talvez originários da Anatólia ou da Síria, do que resultaria uma modificação dos Camitas, de cabeça comprida. Tudo parece indicar que esta corrente de influência estrangeira, no quarto milênio, veio do Norte (grifo nosso), mas a nossa imagem do delta neste período é, infelizmente, insuficiente (ALDRED, Op. cit. p. 73). A Hipótese Meridional tem em comum com a anterior o fato de que também considera que a escrita egípcia veio da Mesopotâmia. A diferença consiste no trajeto que essa influência possa ter percorrido. Como o próprio nome indica, o pressuposto é que a escrita teria vindo da Mesopotâmia para o Egito pelo Sul. Como já foi visto atrás, William Mcneill estava entre aqueles que viam “leves, mas inconfundíveis vestígios de influência sumeriana nas primeiras fases da civilização egípcia”, afirmando que a “irrigação, Em suas conclusões, o respeitado membro da Sociedade para Exploração do Egito, lembra que, A maior parte dessas invenções veio de uma súbita intensificação dos contatos culturais no Mediterrâneo Oriental, como sendo o resultado da invenção de barcos para o mar, um fator que deve ter provocado o florescimento quase simultâneo das civilizações de Creta e do Egito. (ALDRED. Op. cit. p.. 73). E, finalmente, arremata suas considerações, concluindo que, O isolamento do Egito no Oriente Próximo, nos tempos antigos, tem sido muito exagerado. O Egito partilhou de um comércio comum, de uma tecnologia e de uma cultura material com seus vizinhos e, se bem que fortemente influenciado por eles, também os influenciou. O caráter distinto que a sua civilização tomou foi quase que inteiramente devido às suas instituições políticas, 34 Arnoldo Walter Doberstein metalurgia, escrita (grifo nosso), arado, veículos de roda e construções monumentais – tudo isso já havia aparecido na Mesopotâmia quando Menés unificou o vale do Nilo”. Diferentemente de Aldred (embora, como ele, difusionista), Mcneill estimava que tais influências vieram pelo Sul: Parece provável, pois, que navegantes provindos do Golfo Pérsico, tivessem contornado a Península Arábica (grifo nosso) até o Mar Vermelho, entrando esporadicamente em contato com os povos (...) do Nilo. (MCNEILL, William.Op.cit. p. 23). Gilbert Lafforge, renomado egiptólogo francês, é outro dos que se filiam nessa interpretação. Para ele, as aldeias se agruparam em pequenos reinos, os quais se fundiram em dois Estados. Esta divisão entre Norte e Sul pode ter durado um certo tempo. Por volta de 3.300 - 3.200 a.C., um novo bando de mesopotâmicos, contornando pelo mar a Península Arábica, penetra no Sul (grifo nosso).Verifica-se, então, um novo tipo físico na cultura dirigente e a presença de traços culturais trazidos da mesopotâmia: o cilindro carimbo, uma decoração com monstros heráldicos, as construções com tijolos com ressaltos e nichos, e a idéia primeira de escrita33. A hipótese Pan-Africana: Joseph Cervelló Autuori e Gunther Dreyer Tal como as pesquisas de Hierakonpolis e Farafra, que procuram demonstrar o começo “endógeno” Fig. 42 - Reconstituição livre do santuário de Abydos. (gerado na própria África) da agricultura e da (cenotáfios, estelas, etc) ao longo do que se supõe estratificação social do Egito Antigo, outros estudos ter sido uma espécie de “caminho das procissões” estão procurando demonstrar o desenvolvimento (Idem, letra “B”), que ligava o santuário de Osíris também autônomo (sem a influência mesopotâmica) ao Cemitério Real (Idem, letra “C), que abrigava os da escrita egípcia. túmulos dos faraós da I e II Dinastias. Aproveitando Nesse caso, as pesquisas estão centradas em a “aura” do local, faraós e rainhas posteriores ali Abydos, um importante centro religioso do Egito fizeram erguer seus monumentos funerários. Assim Antigo, local do santuário do deus Osíris (Letra “A” foi com Senuosret III (Médio Reino) que ali construiu da Fig. 42), que, a partir da VI Dinastia (+ ou - 2200 seu túmulo e seu templo mortuário (Idem, letra “D”). O a.C) parece ter sido assimilado ao primitivo deus mesmo foi feito pela rainha Amósis, da XVIII Dinástia local Adentymentiu. Era ali que, anualmente, se (Idem, letra “E), pelo faraó Tutmés III (Idem, letra “F”), celebravam os “mistérios de Osíris” (reprodução ritual até chegar no governo de Seti I, que ali ergueu seu de sua morte e ressurreição). Peregrinos de todo o magnífico templo (Idem, letra “G”). Egito, nessa ocasião, deixavam suas lembranças Para a hipótese do surgimento “endógeno” da escrita egípcia as atenções estão se voltando para 33 LAFFORGE, Gilbert. A Alta antiguidade, das origens a 500. Lisboa: Publ. D. Quixote, 1979, p.79. uma das partes do Cemitério Real, na área conhecida O Egito Antigo 35 como “Necrópole de Abydos”. Essa e que Abydos era a sua necrópole. necrópole é formada de três cemitérios Arnaud e Kiner35 sustentam que (Fig. 43). Dois deles, o Cemitério “situada no cruzamento das rotas que “B” e o Cemitério Principal, já foram levavam ao Mar Vermelho e aos oásis, prospectados desde o final do séc. Abidos era uma (...) cidade próspera XIX (1899-1901), primeiro pelo francês que viu se desenvolverem as chefias Émile-Clément Amelineau e depois desde o período pré-histórico”. Independente dessas indefinições, pelo célebre Flinders Petrie. O objeto das novas investigações uma equipe do Instituto Alemão do Cairo, é o chamado Cemitério U. Enquanto sob o comando do professor Günter no Cemitério Principal e no Cemitério Dreyer (Fig. 44), vem apresentando “B” foram enterrados os faraós da os resultados das escavações que I e da II Dinastias, no Cemitério “U” estão sendo feitas na Tumba U-J. foram enterrados os chefes que Essa tumba, ainda que tenha sido comandaram a região nos séculos violada já na antiguidade, ao que anteriores à unificação, e que estão tudo indica quando da construção dos sendo incluídos pelos egiptólogos na cemitérios da XII Dinastia, conservou chamada Dinastia O. intacta sua estrutura original, de 12 compartimentos (Fig. 45), com diversos A expressão “comandaram a região”, objetos no seu interior. acima utilizada, resulta do fato de que o Entre os objetos que sobreviveram domicílio dos chefes que exerceram o comando ainda não está bem definido. Uns afirmam que foi em Hierakonpolis. Fig. 43 - Reconstituição livre da necrópole de Abydos, com seus respectivos cemitérios. na referida tumba, chama especial atenção uma peça de marfim (Fig. 46), Outros que foi em Abydos. Os dois autores dos quais que lembra o cetro hega, uma espécie de cajado se tiraram subsídios para esta parte do texto, por que os futuros faraós carregavam como símbolo de exemplo, não são coincidentes. Joseph Cervelló seu poder. Deduz-se, daí, que a pessoa que foi en Autuori34, afirma que eles residiam em Hierakonpolis Revista de Arqueologia, nº 183, jul/1996, p. 6-15. 35 34 AUTUORI, Joseph Cervelló. A Dinastia O: as raízes africanas do Egito. In: 36 Arnoldo Walter Doberstein ARNAUD, Bernardette e KINER, Aline. L´ Egypte des rois scorpions. In: Sciences et Avenir, nº 711, mai/2006, p. 55-67. terrada na Tumba U-J era um escorpião, com o que se importante chefe político. acredita que ela pertenceu ao Além do cajado, a Tumba Rei Escorpião I, o qual teria U-J apresenta uma grande sido o rei que comandou a quantidade de região depois do rei Chacal desde e antes do rei Falcão I. De toscas, acordo com Günter Dreyer, como aquelas que os egípcios com os esparsos elementos cerâmica. vasilhas Fig. 44 - Günter Dreyer. de potes Existem bastante usavam Fig. 45 - Estado atual da Tumba U-J. para até agora recolhidos, dá guardar cerveja para estimar que a Dinastia e alimentos, O talvez tenha sido formada até vasos por cerca de 17 chefes, na de asas onduladas, presumível em que eram esquema da Fig. 47. Mas guardados o essa, por enquanto, é apenas as uma hipótese de trabalho a azeite e gorduras. sequência do Fig. 47 - A Dinastia O. ser complementada. No conjunto dessas cerâmicas, assim como naquelas que estão sendo encontradas no entorno da Tumba U-J, foram pintados diversos As plaquetas da Tumba U-J e a hipótese do surgimento “endógeno” da escrita egípcia tipos de animais (chacal, falcão, Diversas das cerâmicas encontradas na Tumba leão, etc.). Esses signos, acredita- U-J foram pintadas com desenhos em tinta negra se, correspondiam aos nomes de reis em que aparecem representações de animais ancestrais que estão sendo incluídos (escorpiões, falcões, peixes, chacais, elefantes, naquela que se convencionou chamar cegonhas, etc.), acompanhadas do desenho de de Dinastia O. No caso da Tumba U-J, umas 60 uma planta. Segundo as interpretações que se faz, dessas cerâmicas apresentam o desenho de um a planta poderia significar um “jardim”, ou, então, de Fig. 46 - O cetro hega da Tumba U-J. O Egito Antigo 37 um “domínio agrícola”. E o animal, no caso, seria acredita “representam cifras indicativo de um lugar designado por aquele nome. O que significado dos dois signos seria, então, o de “jardim do as dimensões das peças escorpião”, “jardim do chacal”, elefante, touro, peixe, de etc. Indicariam, portanto, notadamente tecido. A espiral significa100”.37 o lugar de onde teriam Outras tabuletas trazem vindo os vasos, ou, sinais então, do domínio ou da esquema propriedade da pessoa vasos, com uma árvore e que foi ali enterrada (no caso, um animal. Pode ser, por o rei Escorpião). A hipótese da exemplo, uma árvore e um equipe do professor Günter chacal (Fig. 49). Nesse caso, Dreyer é que os vasos com a o signo da árvore, designaria inscrição do escorpião teriam o vindo dos domínios desse associado ao chacal, estaria rei, enquanto que os vasos indicando com as inscrições de outros daquele vaso veio das terras do rei Chacal. Fig. 48 - Tabuletas “numéricas” da Tumba U-J. Fig. 49 - Tabuleta alusiva ao “Domínio do rei Chacal”. indicam dentro do da domínio mesmo pintura agrícola, que a dos Fig. 50 - Tabuleta alusiva ao “Domínio do rei Elefante”. e, oferta Fig. 51 - Tabuleta alusiva a cidade de Bubastis. animais “não podem se tratar senão de ancestrais do Noutros casos o esquema de sinais apresenta rei Escorpião, cujos domínios continuaram a fornecer mais de um desenho. Como o exemplo da Fig. 50, sua contribuição para a instituição real”.36 composto de uma árvore, um elefante e, abaixo deste, Além dos vasos, a descoberta mais retumbante três montanhas. Nesse caso, Arnaud e Kiner, sugerem na Tumba U-J está nas, aproximadamente, 150 que além do designativo “domínio do rei Elefante”, os tabuletas de osso e marfim, furadas numa das sinais apresentam o valor fonético da própria palavra pontas. Acredita-se que tais furos eram para permitir Abydos, uma vez que “o valor fonético de elefante é a sua fixação nos vasos. Algumas apresentam sinais ab, e montanhas é jou. Abjou é o nome egípcio de em forma de incisões uniformes (Fig. 48) que se Abydos, o domínio do rei Elefante” (Op. cit. p. 63). 36 ARNAUD, Bernardette e KINER, Aline. L´ Egypte des rois scorpions. In: Sciences et Avenir, nº 711, mai/2006, p. 62. 38 Arnoldo Walter Doberstein 37 Ibidem. p. 63. Em outros casos, no lugar da árvore aparece outro habitantes do Alto Egito, essas etiquetas designavam objeto, como na Fig.51, formado de uma cegonha e produtos que vinham das margens leste e oeste do uma cadeira (trono). De acordo com as autoras, uma Nilo, lá onde o sol aparece e desaparece por detrás cegonha ao lado de uma cadeira (trono), não pode dos montes” (Ibidem, 63). ser lido como se fosse “a cadeira da cegonha”. Isso Outro autor que também se alinha nessa hipótese não teria sentido. Entretanto, pan-africana para o surgimento da escrita no Egito é de acordo com hieróglifos o espanhol Joseph Cervelló Autuori (Op. cit. nota 34). posteriores, Depois de alinhar diversas considerações sobre o que “os linguistas sabem que o valor fonético do pássaro cegonha é ba, ele chama de “nascimento da realeza no Egito PréFig. 52 - Tabuletas alusivas ao “Ocidente” e “Oriente”. e aquele de uma cadeira é set. Associando-se os dois sinais, pode-se ler baset ou Bastat. Ou, ainda, Bubastis, uma das cidades do delta” (Ibidem, 63). Existem, por fim, algumas plaquetas que, no entender de suas intérpretes, apresentam significados complementares. A primeira delas, a da esquerda da Fig.52, mostra num de seus lados uma serpente sobre três montanhas. A serpente tem o valor fonético de dje, enquanto as montanhas, como já se viu, tem o valor fonético djou. No outro lado foi desenhada Dinástico”, à guisa de conclusão, termina afirmando que, Não existe nenhuma dúvida que se trata do início da tradição escriturária dos hieróglifos egípcios. Como a Tumba U-J está datada entre 3.250 a 3.200 a.C., isso está a indicar que tais signos atestam o mais antigo testemunho de escritura, tanto no Egito como na Mesopotâmia. Confirma também a origem independente dos dois sistemas. Mais uma vez supera a idéia de um aporte civilizador da Mesopotâmia sobre o Egito. Também revisa a idéia de que a escrita egípcia se originou no Delta, em contato com o Oriente Próximo Asiático, e que dali teria se propagdo para o restante do país. Fica indicado também que o início da escrita egípcia esteve vinculado à iconografia da realeza, enquanto que na Mesopotâmia a escrita esteve ligada à economia dos templos (grifo nosso). “uma meia-lua crescente, sobre uma linha tortuosa; este signo, de acordo com hieróglifos posteriores, simbolizava a obscuridade” (Ibidem, p. 63). Na outra placa temos o mesmo esquema da serpente A PRÉ-UNIFICAÇÃO sobre montanhas. Mas o desenho que acompanha é o pássaro Ibis, que simbolizava a luz do sol. Segundo As aldeias que se formaram ao longo do rio Nilo, as autoras: “temos, de um lado as montanhas das inicialmente, eram independentes. Nos últimos trevas, e de outro aquelas da luminosidade. Para os estágios da “longa marcha dos egípcios rumo à O Egito Antigo 39 civilização”, mais ou menos entre os anos 3300 e o Oriente Próximo, teriam se tornado culturalmente 3100 a.C., ocorreu uma tendência à uma unificação mais desenvolvidas que as aldeias do Sul, mais entre elas. As aldeias do Norte teriam formado um vinculadas na África. As típicas tradições culturais do reino e as aldeias do Sul outro. Como isso deve ter Egito, por conseguinte, teriam se iniciado no Norte e acontecido? dali se propagado para o Sul. Só depois é que teria ocorrido a unificação definitiva, em sentido contrário, do Sul conquistando o Norte, obra do primeiro faraó, A unificação pelo Norte: Kurt Sethe e outros que pode ter usado três nomes: Narmer, Menés e Escorpião. Em meados dos anos Essa descrição de Kurt Sethe e de seus alemão Kurt contemporâneos desfrutou, e ainda desfruta, de Sethe , e outros egiptólogos uma ampla aceitação. Até mesmo nos autores 1920-30, o 38 formularam uma teoria empenhados em mostrar que a história do Egito Fig. 53 - Kurt Heinrich Sette explicativa para essa unificação que ainda é faz parte da história geral da África, essa tese de utilizada por muitos. Essa teoria considera que a Kurt Sethe ainda persiste. Esse é o caso de A. Abu unificação foi liderada inicialmente pelo Norte. Tal Bakr. Mesmo alertando (em nota de rodapé) que a interpretação se fundamenta no seguinte raciocínio: referência básica para a sua descrição, que é a de na mitologia egípcia consta a ocorrência de uma Kurt Sethe, é “atualmente objeto de controvérsia”, o luta pelo trono do Egito entre os deuses Hórus e referido autor afirma que Set. Na narrativa mítica o vitorioso foi Hórus. Como Parece que em época remota os nomos do Delta [Norte] estiveram organizados em coligações. Os nomos do oeste eram ligados ao deus Hórus. Ao passo que os do Leste ao deus Andjty (posteriormente absorvido por Osíris). Sugeriuse que os nomos do oeste teriam conquistado os do Leste, formando um reino unido ao Egito setentrional. Desse modo, o culto de Hórus como deus supremo prevaleceu em todo o Delta, propagando-se gradualmente até o Alto Egito [Sul], destronando Set, o principal deus de uma coalizão de povos daquela região.39 Hórus (posteriormente) foi adotado como o deus da monarquia (depois que a mesma estava no Norte), interpretou-se, então, que quem primeiro unificou o Egito foi o reino do Norte. Isso teria acontecido porque as aldeias dessa região, em contato mais direto com 38 Heindrih Kurt SETHE (1867-1934), discípulo de Adolf Hermann, lecionou História Antiga e Filologia nas Universidades de Gottingen (desde 1900) e Berlim (desde 1923). Em suas diversas viagens ao Egito, copilou muitos textos, que publicou no seu Urgeschichte und älteste Religios der Ägypter. Leipzig: F. Brockhaus, 1930, (não traduzido para o português). 40 Arnoldo Walter Doberstein 39 BAKR, A. Abu. O Egito faraônico. In: História Geral da África. São Paulo: Ática/Unesco, 1983. Vol II, p. 72. Um dos nossos mais lidos autores de obras sobre O Estado que empreendeu o processo de expansão que resultou na formação do reino unificado do Alto Egito foi o de Hierakonpolis. Isso se torna evidente a partir de dois tipos de fontes. Uma é a chamada Tumba 100, situada na necrópole de Hierakonpolis42. Ela foi descoberta em 189943, e datada de fins do Gerzense (3.500 - 3.300 a.C.), ou princípio do pré-dinástico (...) As paredes eram revestidas de adobe. Toda a superfície mural interior estava revestida de uma capa de gesso, sobre a qual se faziam as pinturas, hoje destruídas, salvo alguns fragmentos conservados no Museu do Cairo. O tema central da composição consiste numa procissão de barcas relacionada, talvez, com a forma embrionária daquilo que, na época faraônica posterior, seria o Festival Sed, o ritual de revitalização do poder cósmico do rei. Na barca maior, efetivamente, pode-se ver um dossel colocado sobre uma das cabines, na qual viaja um personagem enrolado, o qual tem sido identificado como a vítima humana (real ou simbólica). Este “sacrifício de prisioneiros” teria lugar no referido festival. No extremo inferior esquerdo se representa este mesmo sacrifício, através do motivo do rei golpeando o inimigo vencido, preso pelo cabelo. Esta iconografia do Rei Violento será muito usada na iconografia faraônica [ver Paleta de Narmer]. Ao lado da embarcação aparece um personagem correndo, tendo nas mãos um flagelo e um outro objeto ritual. Prefigura o faraó realizando outra das cerimônias do Festival Sed, uma corrida dentro de um espaço delimitado, que simbolizava a renovação de seu poder sobre o território egípcio. Acima da barca, três personagens dançantes nos remetem às danças rituais que se celebravam igualmente no curso do referido Festival Sed. O vínculo desse cerimonial com um contexto funerário também não será estranho à história subseqüente do Egito. Voltará a aparecer, como é bem conhecido, no recinto da pirâmide escalonada de Dzozer, em a História Antiga, o professor Mário Curtis Giordani40 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na sua reeditadíssima obra História da Antiguidade Oriental (está na 17ª edição), afirma que, Para melhor compreensão do início da História propriamente dita, vamos registrar, grosso modo, a evolução dos principais acontecimentos políticos que precederam a unificação do Egito, atribuída a Menés. O país estava dividido em dois reinos: o do Norte, com a capital em Buto, o do Sul, com a capital em Necken. O reino do Norte estabeleceu o domínio sobre o reino do Sul, unificando o país (grifo nosso). O reino sulino, entretanto, reagiu e conseguiu sacudir o jugo do Delta, realizando mais tarde, por sua vez, a unificação que marcou o início da época histórica.41 A pré-unificação como liderada pelo Sul Nos últimos anos, diversos estudiosos estão procurando mostrar o contrário. A sua hipótese é que a pré-unificação sempre foi liderada pelo Sul. A outra de suas hipóteses é que foi no Sul que nasceram as mais típicas tradições culturais e políticas do Antigo Egito, inclusive a escrita. O egiptólogo espanhol Joseph Cervelló Autuori, faz um excelente resumo desses argumentos: 42 Para sua localização estimada, ver Fig 02, letra “B”. 43 40 Apesar de todas suas obras, são escassos os seus dados biográficos facilmente disponíveis. Uma das informações é que ele nasceu em Viamão (RS), e, inclusive, fez parte de seu curso de Letras na PUCRS. 41 GIORDANI, Mário Curtis. História da Antiguidade Oriental. Petrópolis: Vozes, 1963. p. 66-67. Seu descobridor foi o arqueólogo britânico James Edward Quibell (1867-1935), o qual, assistido por F.W.Green, escavou em Hierakonpolis entre 1897 e 1899. Foi nessas escavações que, no “Depósito Principal” do Templo de Hórus, (ver letra “A” da Fig. 02) foram encontradas a Paleta de Narmer, a Maça do Rei Escorpião e a Cabeça de Narmer. O local da Tumba 100, infelizmente, não foi preservado para novas pesquisas, sendo o que dela restou foi tão somente o seu painel, transferido para o Museu do Cairo, onde se encontra desde então. O Egito Antigo 41 Sacará, na III Dinastia. A procissão das barcas também inclui diversas cenas de caça e luta, exatamente os temas que, na iconografia do Pré-dinástico Tardio, serviram para expressar a noção de violência régia. Os animais retratados, seja em fila ou perfilados simetricamente, são pintados uns de preto, outros de vermelho. Pois bem, o preto é a cor da terra fértil, do vale, do deus Osíris. A cor vermelha é a cor da terra estéril, do deserto, e também de Set. Esta oposição entre preto/vermelho, fertilidade e infertilidade, Osíris e Set, é outra das formas de expressão do dualismo egípcio. A simetria dual, bastante presente nas paletas decoradas do Período PréDinástico também se remetem ao mesmo princípio. Estaríamos, pois, diante da primeira expressão formal da relação da realeza com o Fig.54 - James Quibell, o princípio dual.44 descobridor da Tumba 100. A sobreposição da cerâmica do Sul (Nagada II-Gerzea) sobre a cerâmica do Norte (Maadi) A suposta superioridade cultural do Norte, na qual se fundamentou a hipótese de Kurt Sethe, está sendo questionada, com uma série de argumentos, pelas pesquisas arqueológicas mais recentes. Um desses argumentos é o da relação entre a cerâmica de Gerzea e a cerâmica da Nagada. Pelo novo argumento, a cerâmica de Gerzea, que se acreditava ter aparecido por influência oriental, na verdade teve sua origem no Sul, em Nagada. Para entendermos melhor essa questão temos que ir por partes. Primeiro, localizar no mapa, onde ficavam os três locais (Fig. 56) e verificar, afinal, o que é revelado pelos respectivos sítios de Maadi e Gerzea, no Norte, e o sítio de Nagada, ao Sul. O sítio de Maadi é o que ficava mais ao Norte e, portanto, mais próximo do Corredor Palestino e da influência do Oriente Próximo. Em seus níveis mais antigos percebe-se a substituição de objetos de sílex 44 AUTUORI, Joseph Cervelló. A Dinastia O: as raízes africanas do Egito. In: Revista de Arqueologia. Madrid: set/2002. 42 Fig.55 - Detalhes do Painel da Tumba 100. Arnoldo Walter Doberstein por objetos de cobre o que levou os especialistas a supor que Maadi foi um ponto de encontro essa cerâmica Nagada II teve sua origem e de relações de troca entre o Baixo Egito no Sul (e não por influências orientais). (do Norte) e o Oriente Próximo. As atuais pesquisas de Hierakonpolis, A cerâmica (Fig. 57) encontrada em Nagada e Abydos estariam demonstrando seus níveis inferiores, (+ ou - entre 4000 isso. Desses locais é que ela teria se e 3500 a.C), todavia, não mostra grandes propagado para o Norte, “suplantando” a avanços. Trata-se de uma cerâmica cerâmica de Maadi, evidenciando, com relativamente tosca, desprovida de asas, isso, que aquele “salto cultural” de Maadi e sem nenhuma preocupação ornamental. veio do Sul. A descrição desse processo Já o sítio de Gerzea, também no é apresentada por Cervelló Autuori, nos Norte, é considerado como apresentando seguintes termos: uma espécie de “salto cultural”. O ouro e a prata, além do cobre já encontrado em Maadi aparecem com frequência. A Fig.56 - Localização dos sítios mais antigos do Egito. cerâmica mais antiga, do tipo da encontrada em Maadi, foi sendo substituída por outra (Fig. 58), pintada de marrom ou vermelho escuro sobre um fundo creme, com asas, e um variado repertório ornamental (aves, animais, barcos, etc.). A superioridade dessa Fig.57 - Cerâmica de Maadi (+ ou - 4000 - 3500 a.C.). cerâmica sobre a de Maadi levou Petrie, Sethe, e outros a cogitar que ela resultou de uma “invasão” cultural mesopotâmica, e que dali essa cerâmica teria se propagado paro o Sul, tanto assim, que essa cultura é conhecida como gerzense (de Gerzea), No começo da fase Nagada II [por volta de 3500 a.C.] é que deve ter-se definido, no Sul, o processo de hierarquização social, e ocorrido o aparecimento das primeiras formas de chefaturas. Estas últimas talvez correspondessem ao protótipo do “rei fazedor de chuva” africano, por nós denominado de “realeza divina fetiche africana”. Tratar-seiam de chefaturas onde a função cósmica do “rei” era tanto de mediador entre as forças da natureza e da sociedade, como de garantia da ordem universal e da abundância. Nesta fase é que teria se verificado uma rápida expansão da cultura de Nagada II, a ponto da mesma sobrepor-se às cerâmicas do Delta (grifo nosso). Essa expansão da cultura Nagada II não deve ter sido acompanhada de atividade militar. Tratar-se-ia de um tipo de aceitação, por parte das formas culturais mais dinâmicas das aldeias do Sul (grifo nosso). Os quatro reinos do Sul e seu papel no processo de pré-unificação Fig.58 - Cerâmica Nagada II (+ ou - 3500 - 3200 a.C.). sendo a cerâmica Nagada II nela incluída. O contra-argumento das novas formulações é que De acordo com Cervelló Autuori, durante a metade da fase da Nagada II, por volta de 3400 a.C., já existiam no Alto Egito (Sul) quatro proto-reinos O Egito Antigo 43 (Fig. 56).Os de Nagada e de Hierakonpolis eram os que foi depositada no templo de Hórus pelo fundador mais fortes. Os de Tinis-Abydos (mais ao Norte) da I Dinastia. O faraó Narmer se fez representar com e Elefantina (ao Sul) eram de menor expressão. a coroa branca do Sul, dentro a mesma iconografia do Nagada e Hierakonpolis seriam aquelas localidades Rei Violento, tal como aparece no painel da Tumba que passaram por um processo de evolução urbana 100. Ao seu lado um falcão, representando o deus mais acentuado. Hórus, como que carregando uma barca com seis Alguns autores, inclusive, acreditam que foi em hastes que, segundo algumas interpretações, podem Nagada e Hierakonpolis que foi concebida pela ter servido para simbolizar as localidades do Delta que primeira vez a dualidade religiosa territorial Hórus- foram subjugadas pelo rei que unificou o Egito. A ser Set. Hórus seria cultuado em Hierakonpolis e correta essa interpretação, estaríamos diante de uma Set seria o deus de Nagada. Só posteriormente, clara “retórica” da unificação comandada pelo Sul. depois da unificação definitiva, quando os faraós Outro objeto depositado em Hierakonpolis é uma vinculados ao deus Hórus se transferiram para cabeça que, segundo muitos, seria do faraó Narmer, o Norte (para Mênfis) é que essa dualidade teria o fundador da I Dinastia (Fig. 61). Chamam particular assumido o significado de Norte (Hórus) e Sul (Set). atenção os traços da figura, muito próximos daqueles Foi dessa situação posterior que Kurt Sethe e seus de alguns grupos dos africanos negros. Os pan- contemporâneos teriam se apoiado para construir a africanistas, inclusive, seguidamente apresentam hipótese da unificação pelo Norte. essa cabeça como sendo uma Para Cervelló Autuori, “o Estado que empreendeu das evidências que os egípcios o processo de expansão que resultou na formação do pertenciam reino unificado do Alto Egito foi o de Hierakonpolis”. Essa, aliás, é uma das mais Além da Tumba 100, já analisada, outra prova por ele controversas questões sobre a apresentada são as oferendas que os futuros faraós civilização egípcia. A que raça das I e II Dinastias, já então estabelecidos em Tinis, depositavam no templo de Hórus, em Hierakonpolis. Entre tais objetos destacam-se a Paleta de Narmer os Fig. 61 - Cabeça que se supõe ter sido de Narmer à egípcios raça negra. pertenceram? Uma pergunta que está longe de ser resolvida. (Fig. 59), encontrada por James Quibell, o mesmo Outro desses objetos votivos encontrados no arqueólogo do painel da Tumba 100 (ver nota n° ) e Templo de Hórus, em Hierakonpolis, é a chamada 44 Arnoldo Walter Doberstein “Maça do rei Escorpião” (Fig.62), que se encontra no um hieróglifo com o nome do rei. Acima do retângulo se Ashmolean Museum, de Oxford, Inglaterra, e na qual desenhava o falcão. Era como se, pelo conjunto dessas o rei foi representado de enxada na mão, abrindo um imagens, o faraó se apresentasse como: “Eu sou o rei canal de irrigação. Para Autuori, essa configuração Fulano (no caso, Serpente), morador da casa grande, alinha o tipo de chefatura ali representada como um filho dileto de Hórus”. “mediador das forças da natureza” que, no caso, A Estela do Rei Serpente (Fig. 63), seriam as enchentes do encontrada no seu túmulo em Abydos, Nilo. E isso, segundo o era, na verdade, uma escultura em autor, é mais um indicativo relevo de seu “Serej”. que alinha tais chefaturas do Egito Nos túmulos do Cemitério “B”, de pré-dinástico com a África negra, em que, em muitos casos, o Abydos, assim como no seu entorno, Fig. 62 - A “Maça do rei Scorpion“ mediador da natureza rei era tomado como um “fazedor de chuva”. diversos desses “Serejs” foram e continuam sendo encontrados. No do Fig.63 - Estela do Rei Serpente tirada de seu Serej. rei Iri-Hator (em baixo), o signo sobre o qual a figura do falcão se assenta, corresponde ao nome Iri. No do rei Ka-Hor, Os “serejs” do Cemitério “B” de Abydos o hieróglifo (duas No cemitério “B” de Abydos foram enterrados os mãos e antebraços primeiros chefes da Dinastia O. Ali foram encontrados voltados para cima) diversos cacos de cerâmica com seus respectivos representa o som Ka. “Serejs”. O “Serej” era um dos cinco títulos com Fig.64 - Serejs do Cemitério “B“, de Abydos (desenhos) No do rei Narmer os quais os faraós se apresentavam na condição de aparecem um cinzel (Nar) e um peixe (Mer). Segundo protegidos das divindades egípcias. No caso do “serej”, Autuori, a presença desses signos indica que no era aquele título em que o rei se apresentava como cemitério “B” foram enterrados os chefes que pré- “Filho de Hórus”. A representação desse título consistia unificaram o Egito, constituindo a chamada Dinastia num retângulo que lembrava a fachada de um palácio O. O que estaria ajudando a demonstrar que essa (a “casa grande”, que os egípcios chamavam de per-a, pré-unificação sempre foi, desde o início, liderada de onde veio a palavra faraó), tendo na parte superior pelo Sul. O Egito Antigo 45 silenciar diante de questões controvertidas, ao se O surgimento da escrita, a liderança inicial da pré-unificação e a “espinhosa questão do povoamento” pronunciar sobre esse assunto, denominou-o, um tanto precavidamente, como “a espinhosa questão do povoamento”. Subjacente a essa discussão sobre a origem da escrita e da pré-unificação do Egito pré-dinástico, Ao reside a questão do povoamento do Egito Antigo. incursão Veja-se, por exemplo, que aqueles autores que Ciro Cardoso lembra que defenderam a origem mesopotâmica da escrita “as teorias do povoamento egípcia, e a liderança inicial do Norte no processo egípcio de unificação, muitas vezes mencionam que isso noções raciais” são três. coincidiu com a chegada de populações fisicamente Uma delas reproduz uma distintas dos egípcios. Gilbert Lafforge, por exemplo, antiga tese do século XIX, fala que, com o suposto “bando de mesopotâmios”, considerando que a população do Antigo Egito que teria trazido a escrita para o Egito, “verificou-se, era então, um novo tipo físico (grifo nosso) na cultura ou hamítica. Outros, filiados ao pan-africanismo, dirigente”. Cyril Aldred menciona que a presumível afirmam que o Egito,“pela etnia de seus habitantes, chegada da escrita no Egito, vinda da Mesopotâmia, pertence totalmente ao passado humano dos negros “coincidiu com o deflagar de um povo de cabeça da África”.46 Segundo o próprio Ciro, essas duas larga (...) do que resultaria uma modificação dos posições “são inaceitáveis, antes de tudo por se Camitas, de cabeça comprida”. apegarem à noção inútil e perniciosa (grifo nosso) as populações que formaram o Egito pré-dinástico. Ciro Flamarion Cardoso45, que não tem por costume Professor da Universidade Federal Fluminense, esse notável goiano de 66 anos, (20/8/1942), é um dos mais prestigiados pensadores de nossos meios universitários. Versado em muitas áreas do conhecimento histórico, publicou trabalhos de referência em Historiografia, Metodologia da História (Uma introdução à História, de 1981), e em escravismo colonial. Na área de Antiguidade Oriental e Clássica é a maior autoridade em atuação no Brasil. Entre seus diversos livros nessa área destacam-se Egito 46 Arnoldo Walter Doberstein que o tema, partem fundamentalmente de Fig.65 - Ciro Flamarion Cardoso caucasoide ou branca, Antigo (1982), Trabalho Compulsório na Antiguidade (1984), Antiguidade Oriental, política e religião (1990), Sete Olhares sobre a Antiguidade (1994) e Deuses, múmias e Zigurates (1999). 46 CARDOSO, Ciro Flamarion. Sete Olhares sobre a antiguidade. Brasília: UNB, 1998. p. 29-31. 47 45 sobre sua de raça”47. A terceira opinião, que se distancia da Colocada nesses termos, a questão enseja que se discuta sobre a melhor conceituação para se definir introduzir Como não é do nosso costume usar de muito adjetivos, também não é de bom alvitre ficar comentando a adjetivação dos outros. Sem querer polemizar, queremos concordar com o Prof. Ciro que a noção de raça, quando tomada no sentido que foi dado por Gobineau e na finalidade com a qual o nazismo a empregou, é perniciosa, sim. Mas, quando tomada no sentido de libertação e de reivindicação da igualdade, e com a finalidade de conscientização e até mesmo de uma apresentação de contas com a História, por certo que não. ideia de pureza racial, considera que a população do Senegal, entretanto, sustentou até o fim que a tese egípcia, sempre foi uma mescla de tipos humanos. da natureza “mestiça” do povo egípcio é inaceitável. Ao colocar sua opinião, o autor afirma que, A sua argumentação foi baseada em quatro pontos Em suma, os egípcios antigos resultariam de uma mescla de pessoas de pele escura que desceram o vale do Nilo, com outras de pele mais clara que vieram do Saara, da Ásia Ocidental e talvez de restos de populações pré-históricas da bacia do Mediterrâneo. (Op. cit. p. 30) principais: a) do ponto de vista antropológico: se a raça humana se originou na África, essa população toda devia ter a pigmentação escura, formada de melanina. Portanto, a população seria homogênea e negroide. Na sequência, Ciro aproveita o ensejo para lembrar b) do ponto de vista iconográfico: ele não aceita o as conclusões de um colóquio internacional sobre o argumento que, nas pinturas dos túmulos, os negros povoamento do Egito faraônico realizado no Cairo, são diferenciados de em 1974. Um dos pontos consensuais do referido outros encontro, segundo suas palavras, foi sobre “o caráter Essa diferença, para fundamentalmente africano do povoamento e da ele, era de origem cultura do antigo Egito, o que, no fundo, é o essencial, social, não étnica. importando muito mais do que estéreis discussões48 professor assinalou que os autores gregos Cairo, de 1974, que o professor Ciro F. Cardoso maioria dos participantes, como os professores Jean testemunho das fontes escritas: o É bom lembrar, todavia, que nesse colóquio do que essa tese da “mestiçagem” foi a esposada pela o c) sobre peles mais claras ou mais escuras”. menciona, nem tudo foi consensual. É bem verdade personagens. e Fig.66 - O Dr. PhD Cheickh Anta Diop. latinos descreveram sempre os egípcios como negros. Vercoutter (França), Abu Bakr (Egito) e R. El-Naduri (também do Egito). O professor Cheick Anta Diop49, 48 Mais um, e último, comentário sobre as adjetivações do Prof. Ciro. Não queremos questionar se são ou não estéreis as discussões sobre a etnia dos egípcios antigos, partindo da noção de raça. Mas que é uma discussão candente para muita gente isso não podemos ignorar. 49 O senegalês Cheikh Anta Diop (29/11/1923 - 7/2/1986) foi uma referência cultural do pensamento pan-africanista. Dono de um saber variado e denso, sempre aliou a atividade acadêmica com a militância política. Em seus estudos transitou pela Física (estudou 15 anos no Instituto Curie, de Paris), Linguística, Antropologia, Economia, Sociologia e História, área na qual pós-doutourou-se (PhD) na Universidade de Paris (1951), sustentando a tese que o Egito Antigo foi, de fato, uma cultura negra africana. Em 1974 teve traduzido para o inglês seu livro The African Origin of Civilization: mit or Reality?. Provocou um alvoroço geral, sustentando a tese que existem evidências arqueológicas e antropológicas que sustentam a hipótese que os faraós tiveram origem negroide. O Egito Antigo 47 d) a autodenominação: por fim, o senegalês insistiu trabalhos hidráulicos, tais como diques, represas no fato de que, para se autodescrever, os egípcios e canais (daí a palavra hidráulica) como a principal usavam uma única palavra – kmt – que era o termo causa (daí a palavra causal) para a unificação do mais usual para indicar a cor preta. Por esse motivo, a Egito e para a formação do Estado faraônico. palavra kmt era representada, na escrita hieroglífica, por um pedaço de carvão vegetal. Essa, inclusive, foi a palavra que deu origem ao termo “camita”, que Heródoto: “O Egito é um presente do rio” passou a ser usado correntemente, sendo, inclusive, Heródoto, um viajante grego que visitou o Egito encontrado na Bíblia sob a forma de “cam” . 50 no séc. V a.C., ficou conhecido como o “Pai da História”. Talvez fosse o caso de se chamá- As Teorias da Unificação lo, também, de “Patrono da Como a unificação do Estado foi o fato histórico Hipótese Causal Hidráulica”. que viabilizou a grandeza da civilização egípcia, é Isso porque, ao descrever os da maior importância e interesse especular porque acontecimentos que marcaram foi que a mesma aconteceu. Que fatores históricos podem ter levado as diversas aldeias a se unirem Fig. 67 - Heródoto, o “pai da História” politicamente, primeiro em dois reinos, e depois num pergunta de muitas respostas. Algumas bastante antigas. Outras bastante recentes. A Hipótese Causal Hidráulica A Hipótese Causal Hidráulica é uma teoria explicativa (daí a palavra hipótese) que vê nos 51 Uma síntese do colóquio está em MOKHTAR, G. (Coord.). História geral da África II. A África antiga. São Paulo: Ática; Paris: Unesco, 1983, p. 749773. 48 Arnoldo Walter Doberstein faraós, ele relatou que Eles (os egípcios) dizem que o primeiro ser humano a reinar no Egito foi Min. Em sua época todo o Egito era um pântano, à exceção da província tebaica, e nada aflorava das terras abaixo do lago Moeris, distante sete dias de navegação rio acima a partir do mar. Segundo me parece, eles falam acertadamente à respeito do seu território. É evidente, mesmo para quem não tenha ouvido falar e o veja – pressupondo-se que se trate de um observador atinado – que o Egito para o qual os helenos viajam em suas naus é terra ganha pelos egípcios e um presente do rio51 (...) Na opinião dos sacerdotes e em minha própria opinião, a maior parte desse território de que falei (ou seja, do delta até a só Estado, a partir dos primeiros faraós? Esta é uma 50 o começo do reinado dos Daí decorre a conhecida expressão de que “O Egito é um dom do Nilo”. Mas como se pode ver, antes de ser um presente (tranformado em “dom”), para Heródoto as terras agricultáveis foram “ganhas pelos egípcios”. hidráulicas (pelo menos não conhecemos e nunca região do lago Moeris) é constituída de terras aluviais ganhas pelos egípcios (grifo nosso).52 vimos citada essa passagem), os seguidores de Marx podem ter sido induzidos a imaginar que ele pensava assim. O que Marx disse, isso sim, foi que Até meados do séc. XIX Heródoto foi uma das principais, senão a principal fonte para a História Antiga. A importância que ele atribuiu aos trabalhos hidráulicos Para regular as águas do Egito, onde a irrigação por meio de canais artificiais, não só proporciona a água indispensável ao cultivo do solo, mas deposita nele, com a lama que a água traz das montanhas, adubos minerais (foi que) (...) a necessidade de calcular os períodos das cheias do Nilo criou a astronomia egípcia e, com ela, o domínio da classe sacerdotal como orientadora da agricultura.53 teve a maior influência. Por conseguinte, é lícito suporse que a hipótese que vê na unificação do Egito uma resposta para a necessidade de uma administração centralizada das obras de irrigação, possa ter tido, no “Pai da História”, uma importante fonte de referência. O que Marx disse, portanto, foi que os trabalhos hidráulicos criaram as classes dirigentes no Karl Marx: Egito Antigo. Como em outras passagens de seus “No Egito, as elites surgiram dos trabalhos hidráulicos” “O Estado (moderno) foi uma criação da classe dirigente” escritos, ao analisar a transição do feudalismo para o capitalismo, ele sustentou que os Estados nacionais foram uma criação das classes dominantes dos meios de produção, parece que se deduziu que, para Karl Marx, autor do ele, o mesmo aconteceu no Egito, e que isso esteve livro O Capital, foi outro relacionado com os trabalhos hidráulicos. pensador que contribuiu para difusão e aceitação da Hipótese Hidráulica. Gilbert Lafforge: Causal Embora Fig.68 - Marx o criador do Materialismo Histórico “é a falta de água que faz sentir a necessidade de uma autoridade comum a todo o Egito” não tivesse dito explicitamente que a unificação do Estado egípcio ocorreu porque passou a existir Não a necessidade de um controle único das obras 52 HERÓDOTO. História. Livro II, Incisos IV, V, X. Brasília: Universidade Federal de Brasília,1988. p. 90-91. foram poucos os historiadores que transitaram pela “Hipótese Causal Hidráulica”. 53 MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. Volume II, capítulo XIV, p. 589-590. O Egito Antigo 49 Especialmente os franceses que se formaram A gente se extasia diante da estabilidade do povo egípcio (...) Esta característica teve a favorecê-la a necessidade de um governo politicamente forte para assegurar a irrigação. Pois, para que a cheia do Egito fosse proveitosa, sem dúvida era preciso que ela não fosse nem muito forte nem muito fraca (...) Essa administração só podia ser garantida por um poder central forte, que pudesse impô-la em todas as províncias (grifo nosso).56 no Entre-Guerras, bastante familiarizados com o marxismo em sua trajetória acadêmica. Para Gilbert Lafforge, por exemplo, é a falta de água que faz sentir a necessidade de uma autoridade comum a todo o Egito. O 4º milênio conhece uma evaporação rápida e determinados anos são particularmente desfavoráveis. Com efeito, as cheias do Nilo são bastante irregulares e se a subida do rio é insuficiente (menos de 7 m) a água é açambarcada pelas aldeias mais bem localizadas. É necessário, portanto, um poder superior que, informado a partir de junho, sobre a altura da cheia, faça os seus cálculos e imponha uma repartição eqüitativa do precioso líquido (grifo nosso).54 A “falência” da Hipótese Causal Hidráulica Ciro Flamarion Cardoso, depois de abrir o primeiro capítulo de seu livro O Egito Antigo (Fig. 71), com o título acima, e enumerar alguns autores que se alinharam nessa “tese que foi muito popular no século passado (Marx) e em boa parte do nosso século (K.Wittfogel)”, apresenta a seguinte Jean Vercoutter: pergunta: ainda é aceitável uma “a estabilidade do povo egípcio (...) teve a favorecê-la a necessidade de um governo forte para assegurar a irrigação” explicação para a unificação do Egito do tipo das de Lafforge e Vercoutter? Sua resposta é não. Diz ele que, Outro importante egiptólogo, também francês, que partilhou da mesma linha de interpretação foi Fig. 69 - Jean Vercoutter (1911-2000) Fig. 70 - Jean Vercoutter (1911-2000) Jean Vercoutter55 (Fig. 69). Na sua opinião, 54 LAFFORGE, Gilbert. A Alta Antiguidade, das orígens a 550 a.C.. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979, p. 79. 55 Jean Vercoutter (1911-2000) foi um dos pioneiros nas pesquisas arqueológicas no Sudão. Convidado a lecionar na Universidade de Lille, França, em 1961, reativou o seu Instituto de Papirologia e de Egiptologia e ali fundou o jornal CRIPEL (Cahiers de Recherches de l’Institute de Papirologie e d’Egiptologie de l’Université de Lille), atraindo toda uma nova geração de estudiosos da Egiptologia e Sudanologia, desenvolvendo grandes projetos no Sudão. Em 1977, foi nomeado diretor do Institute Française d’Arqueologie Orientale (IFAO), no Cairo. Seu mais recente 50 Arnoldo Walter Doberstein Para começar a discussão à respeito, forçoso é constatar que, ao contrário do que geralmente se acredita, as indicações precisas de que dispomos sobre a irrigação do Egito Antigo não são muito numerosas. O estudo dos sistemas antigos de irrigação pela arqueologia é difícil. A agricultura irrigada nunca cessou no país, da antiguidade aos nossos dias, o que significa que os consertos e sucessivas construções novas de diques e canais destroem os traços de sistemas mais velhos.57 sucesso, traduzido para o português, é o livro Em busca do Egito Esquecido (foto acima), no qual apresenta uma panorâmica das aventuras da arqueologia no Egito, desde o século XIX até o final do séc. XX. 56 57 VERCOUTTER, Jean. O Egito Antigo. São Paulo: Difel, 1974, p. 19-20. CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 19-20. Na sequência de sua exposição, o professor Ciro F. Cardoso, afirma que, Os trabalhos recentes mostraram que o sistema egípcio de irrigação por tanques tinha um caráter local, a princípio. Não há qualquer prova de uma administração centralizada de redes de irrigação até o Reino Médio, isto é, mil anos depois da unificação do reino egípcio. Nestas condições, tudo indica que o papel da agricultura irrigada foi enorme na formação e consolidação das confederações tribais que deram origem, em cada região do país, ao spat (mais conhecido pelo termo grego “nomo”). A irrigação não pode, porém, ser vista como a causa do surgimento do Estado centralizado de obras hidráulicas para a agricultura irrigada; surgiu como um resultado tardio da existência de um Estado forte (grifo nosso). (Op. cit. p. 25) Explicação, convenhamos, um tanto vaga e imprecisa. Que nos desculpe nosso maior especialista em História Antiga Oriental. Restanos, pois, tentar preencher esse “vazio” teórico na bibliografia disponível, garimpando suas suposições e hipóteses. Por suposições, entende-se aqui, aquelas eventuais sugestões explicativas despidas de maior rigor metódico e científico, sem se ater muito a dados empíricos. Por hipóteses, entendese aqui, aquelas explicações que, mesmo sendo provisórias e ainda não inteiramente comprovadas, resultam de uma organização mais recheada de O “vazio” teórico-explicativo dados empíricos, mais metodicamente construída em seus enunciados. A “falência” da Hipótese Causal Hidráulica deixou como que um “vazio” teórico-explicativo para a unificação do Estado faraônico. O próprio Ciro Flamarion Cardoso A suposição defensiva termina o seu capítulo sem preencher por completo a Entre as sugestões explicativas para a unificação lacuna que, com muita pertinência, o seu estudo traçou. das aldeias pré-dinásticas do Egito Antigo estão Suas palavras finais foram: aquelas de certos “generalistas”. São historiadores A que atribuir, então, a unificação do Egito? Existem muitas teorias a respeito, difíceis de avaliar em virtude da escassez de dados e fontes. Muitas das tentativas contemporâneas de explicação (L. Kraeder, B.Trigger, R. Carneiro) enfatizam fatores ligados à guerra, à conquista, ao militarismo. Seja como for, tudo indica que o processo de formação do Egito como reino centralizado dependeu de numerosos fatores – demográficos, ecológicos, políticos, etc. – entre os quais a irrigação, pelo menos indiretamente, foi elemento de peso. (Op. cit. p. 25) que publicam manuais de “Histórias Universais” para divulgação entre o grande público. Alguns desses historiadores sugerem, sempre de passagem, que a unificação do Egito poderia ter ocorrido por preocupações defensivas. A suposição seria que as aldeias pré-dinásticas, povoadas por agricultores sedentários, poderiam estar se sentindo ameaçadas por nômades periféricos, desejosos de se instalar O Egito Antigo 51 na região. O Estado seria, então, uma garantia de Mesopotâmia pré-dinástica, por exemplo. Até mesmo constituição de uma força defensiva mais ampla que, empiricamente essa explicação não está totalmente isoladamente, as aldeias não teriam como organizar. despida de fundamentação. Heródoto, em seu livro, R. Haddock Lobo é um desses autores. Segundo ele, menciona que uma das grandes realizações de Menés, No aparecimento e desenvolvimento dos primeiros impérios, está mostrado que o expansionismo constituiu condição essencial de sua formação (...) As primeiras nações da Antigüidade Oriental, à medida que iam crescendo, as forças armadas se lhes tornavam necessárias, tanto para conquistar novas terras como para assegurar a defesa e manutenção de seus vastos domínios (...) a espantosa fertilidade das terras egípcias muito concorreu para nelas se desenvolver antiquíssima civilização (...) como por toda a parte aconteceu, formaram estes lavradores pequenos Estados, que travaram entre si contínuas lutas,até que um deles, após ter absorvido vários outros, passou a formar uma grande nação, com vasto território sob um governo único (...) Afirma-se que a primeira capital desse império foi a lendária cidade de Tinis e que, aproximadamente no ano 3000 a.C.,os soberanos tinham sua residência em Mênfis (...) enquanto se mantiveram em Mênfis, conquistaram eles terras vizinhas que, como a Península do Sinai, eram necessárias à segurança de seu reino58 (grifo nosso). o primeiro unificador, foi o célebre “muro branco”, que ele teria mandado construir perto de Mênfis. Muitos historiadores viram nisso um cuidado defensivo, para impedir a penetração de populações asiáticas no Egito. O que depõe contra esse esquema interpretativo é a ausência de comprovação que, por volta de 3100 a.C., existisse nas proximidades do Egito uma população estrangeira numericamente expressiva e ameaçadora. Quanto ao “muro branco”, se é que realmente existiu (faltam comprovações arqueológicas e documentais), nada garante que era para proteger o Egito de ataques externos. A suposição repressiva É importante assinalar que esse tipo de interpretação, aqui chamada de suposição, não é totalmente despida de fundamentos teóricos e até mesmo de dados empíricos. Do ponto de vista teórico, tal explicação se alinha na teoria geral que vê no enfrentamento entre nômades e sedentários um processo histórico que se repetiu em muitos momentos da história da humanidade. Como na Por essa suposição, a unificação das aldeias prédinásticas pode ter sido para garantir a dominação das elites locais. Com o Estado teriam sido criados mecanismos de repressão de dimensões estatais, mais eficazes na manutenção e sujeição da força de trabalho. Esse tipo de suposição nós encontramos, também de passagem, em certos “generalistas” russos da época de Stalin. Nesse 58 LOBO, R. HADDOCK. História Universal. São Paulo: Melhoramentos, s/ data. (Vol. I) p.48-49. 52 Arnoldo Walter Doberstein período, a Academia de Ciências de Moscou financiava a produção e tradução de manuais de as pessoas simples são enterradas em covas vulgares que encerram um modesto mobiliário, enquanto que os túmulos dos reis e senhores são verdadeiros conjuntos arquiteturais. (Ibidem, p. 183). “Histórias Universais” que apresentassem a história da humanidade numa perspectiva supostamente marxista. Os historiadores V. Diakov e L. Kovalev estão entre eles. Ao descreverem o processo de unificação, iniciam dizendo que, Nota-se que os autores não afirmam, explicitamente, que a formação do Estado teve a ver Na origem, os nomos deviam estar isolados uns dos outros (...) os maiores nomos eram os de Elefantina, Hieracômpolis, Abidos, Mênfis e Buto (...) os nomos guerreavam entre sí para disputar a presa ou os escravos (grifo nosso) por causa dos conflitos provocados pela penúria das águas (...) à frente dos nomos encontravamse chefes, um dos quais foi o rei Escorpião, que chegou a reunir sob o seu poder um vasto território indo de Hieracômpolis até Mênfis.59 com as desigualdades sociais. Mas o leitor é induzido a pensar assim. Na primeira frase falam da unificação. Nas frases seguintes destacam a desigualdade de fortuna. O que o leitor deve pensar? Seria como anunciar que, em 2002, o Brasil foi pentacampeão do mundo. E, na frase seguinte, dizer que, na seleção, o técnico era gaúcho, assim como um zagueiro e um Dá para ver que, para os dois autores, antes atacante. Não se diria, explicitamente, que a causa da mesmo de acontecer a unificação, as aldeias vitória foi o fato da seleção ter o espírito gaúcho. Mas, (nomos) já se enfrentavam, disputando a água com certeza, seria aquilo que se pretendia que o leitor e os escravos. Ou seja, que a escravidão pensasse. esteve na gênese da civilização egípcia, antes Mais adiante, os autores voltam à mesma ideia de mesmo da unificação do Estado. Esse Estado, que a unificação do Estado teve a ver com a repressão e aliás, é chamado pelos dois autores de Estado coação da força de trabalho. Isso, é claro, sem anunciar Escravagista. a tese explicitamente. Quando falam do “auge” do poder Logo a seguir, os autores apresentam o processo da unificação propriamente dito, vazado nos seguintes termos, O Estado forma-se pouco após o reino de Escorpião, sob a Primeira e a Segunda dinastia. As sepulturas desta época demonstram uma nítida desigualdade de fortuna e de condição: político, no Antigo Reino, eles afirmam que Na III e IV Dinastias, o poder real consolidouse: era necessário isso para unificar o Egito e garantir assim o funcionamento normal do sistema de irrigação, para quebrar a resistência dos escravos (grifo nosso) e das comunidades e adquirir uma multidão de escravos na Etiópia, Líbia e Palestina (Ibidem, p. 195). 59 DIAKOV, V. E KOVALEV, L. História da Antigüidade. Lisboa: Estampa, 1976, p. 182. O Egito Antigo 53 Percebe-se, pois, a insistência dos autores em sugerir a versão que o Estado faraônico sempre foi com as primeiras fases das investigações no Cemitério das Elites daquele sítio. um Estado escravagista. O que não está confirmado. Numa matéria por ele intitulada de “Por onde as O Estado egípcio, por volta de 3000 a.C., não era nações começaram”, da qual a professora Margareth um Estado, como o romano, por exemplo, que se Bakos, da PUCRS, fez uma tradução livre, ele se organizava militarmente para a conquista de escravos. alinha naquela hipótese que, posteriormente, Joseph A base produtiva da economia egípcia não era formada Cervelló Autuori (ver atrás p.) também se filiou, e que a base de escravos. Era de lavradores livres. Existiam vê a unificação do Egito como estando relacionada escravos, sim. Os faraós faziam incursões pela com a emergência de Hierakonpolis. vizinhança e aprisionavam escravos, sim. Mas eram Segundo ele, o que se pretendia era “recompor a escravos setoriais. Para trabalhar nas minas e como história do que aconteceu no vale do Nilo nos séculos escravos domésticos. O Estado não visava suprir o que precederam o surgimento de Narmer”. Por volta sistema produtivo de escravos. Dizer, portanto, que de 3800 a.C. existiam ali dois centros de povoamento, era um Estado escravagista, não é totalmente correto. com uma população estimada “entre 2.300 e 10.500 pessoas”. Baseado nos achados da Tumba U-J, os A Hipótese da Distribuição da Cerâmica estudos na região, segundo Hoffman, permitem uma primeira conclusão: o processo de centralização Entre as explicações que têm tentado preencher política já estava a caminho em Hierakonpolis, 500 o “vazio” teórico-explicativo para a unificação do anos antes de Narmer. O que teria proporcionado Egito, existe aquela que está relacionada com as condições para os titulares dessa e das outras as tumbas escavadas deterem tanto poder? A hipótese pesquisas de Hierakonpolis, examinadas anteriormente. Nesse caso, o nome que se destaca é o de Michael A. Hoffman60, que esteve envolvido 60 Michael Allen Hoffman nasceu em Washinton (1944), e desde cedo revelou sua vocação para a egiptologia. Em 1966 graduou-se pela Universidade de Kentuchy e em 1970 (com 27 anos) recebeu seu PhD pela Universidade de Visconsin. Sua primeira estadia no Egito foi em 1969, quando participou das escavações do sítio Hh 14 de Hierakonpolis. Como Diretor do Laboratório de Arqueologia da Universidade de Virgínia (1972–1979), prosseguiu ativamente das escavações de Hierakonpolis. Ao final desse período, no seu único livro publicado (Fig. 72) Egypt, before the pharaohs: the pre-historic fundation as egyptian civilization apresentou 54 Arnoldo Walter Doberstein de Hoffman é que Hierakonpolis, parece ter sido o centro de uma grande indústria de cerâmica, que deve ter dado muito poder aos seus proprietários. Ainda hoje, um número estimado em 50 milhões de peças quebradas conduzem a concluir sobre a existência de cerca de 15 fornos no local. O volume de produção permite que se pense que o mesmo era muito o resultado de suas pesquisas e as novas hipóteses dai derivadas. Morreu precocemente de câncer, em 1990. maior que a demanda local. A cerâmica ali produzida, junto com outros bens de prestígio, como contas e maças, provavelmente eram fornecidas para enterros realizados em outras partes do Egito. Esta é a chave para o poder de Hierakonpolis. Os barões da cerâmica, ofereciam todo o necessário para os enterros e lucravam com a crença de que os mortos podiam levar para a sua vida pós-morte todas as riquezas que se possuía. Através da produção, transporte e troca de seus produtos, o “grande homem” local ganhava experiência de liderança.61 A hipótese dos “barões da cerâmica”, entretanto, não se resume a apenas isso. Segundo Hoffman, o fluorescente centro cerâmico, entretanto, entrou em colapso em torno de 3500 a.C.. O ecosistema se tornou mais árido e as povoações, com seus fornos de cerâmica, foram abandonadas. As populações se dirigiram para as margens do Nilo. Isso marca o fim do período Amraciano e o começo do Gerzeano, ou Nagada II, que Fig. 72 - Capa do livro de durou de 3500 a 3300 a.C.. A queima do Michael A. Hoffman combustível vegetal (indícios de acácias e tamareiras foram achados nos fornos). Este colapso da indústria de cerâmica deve ter apresentado aos “barões” um problema e uma oportunidade: reinvestir seus recursos ou perdê-los. Como as cidades cresciam, a classe dirigente dos “barões da cerâmica” usou de seus re-cursos para construir muros das cidades, templos, palácios e tumbas, assim como passaram a investir na construção e manutenção dos canais de irrigação, que muitos historiadores da pré-história egipcia acreditam terem origem neste período. Em algum momento, ao redor de 3200 a.C., a luta pelo poder regional tornou-se um modo de vida. Foi um século de batalhas (grifo nosso). Parcelas do território passavam de um chefe local a outro. Narmer destacou-se entre 61 HOFFMAN, Michael. Por onde as nações começaram. Trad. BAKOS, Margareth (edição policopiada). estes dirigentes. Estendeu suas conquistas e o processo de unificação política ao longo do vale do Nilo. Durante este tumultuado período os ambiciosos governantes de Hierakonpolis – os predecessores de Escorpion e Narmer – retornaram ao abandonado cemitério de seus ancestrais. Como para evocar a sua ligação com o passado, eles construíram suas tumbas perto das dos “barões da cerâmica” que os precederam (Op. cit. s/ p.). Um dos méritos dessa hipótese de Hoffmann é de ter pesquisa de campo na sua fundamentação. Em muitos pontos, inclusive, ela coincide com outros especialistas, como Joseph Cervelló Autuori. Os reparos que ela pode sofrer são dois. Primeiro é a valorização do que ele chama de “um século de batalhas” com “a luta pelo poder como um modo de vida”. Ciro F. Cardoso, por exemplo, lembra que “é bastante popular, embora não conte com unanimidade, a teoria que vê, no Egito, um caso clássico de emergência do Estado por desenvolvimento interno com base na guerra”. Em nosso entender, outro ponto vulnerável de seu esquema interpretativo é o da transformação dos “barões da cerâmica” de “agentes funerários” em empresários da agricultura irrigada. Baseada em que dados essa possibilidade se assentaria? A Hipótese do Jogo Aleatório: Barry Kemp Outra tentativa de explicação mais recente para a unificação do Estado egípcio vem de Barry J. Kemp (Fig. 73). Ao lado de suas recentes pesquisas no O Egito Antigo 55 Egito, Kemp vem protagonizando algumas teorias intercambiando diferentes bens. (...) A atmosfera é igualitária e o elemento competitivo só existe de forma latente. A vantagem passa de um a outro jogador. (...) A essência do jogo, entretanto, é que essa igualdade não se prolongue indefinidamente. Uma vantagem que, em seu momento pode passar desapercebida, altera suficientemente o equilíbrio para distorcer a marcha posterior da partida (...) até chegar a um momento crítico onde um dos jogadores acumulou bens suficientes para que as ameaças que lhe apresentam os demais já não surtam efeito sobre ele. Será apenas uma questão de tempo para que aquele que “monopolizou” os bens primitivos de todos ganhe a partida. A “teoria dos jogos” nos ajuda a compreender o processo de cambio social que subsiste por trás do aparecimento dos primeiros Estados, assim como o mecanismo da progressiva desintegração das igualdades econômicas e sociais. (...) Parece que esta propensão a competir nem sempre de maneira intencional, (...) é inerente àquelas sociedades que se estabeleceram em um lugar e fundaram uma economia de base agrícola. A relação estável e pessoal que se estabelece com um pedaço de terra modifica as idéias. Não só pelo óbvio desejo de proteger a propriedade, mas também porque estimula a criação de um conjunto de mitos territoriais. As sociedades primitivas viviam uma existência igualitária, nada competitiva. Quando o processo de formação de um Estado já havia avançado de tal modo que o arqueólogo ou historiador podem detectá-lo sem problemas, o poderoso desejo de dominar já havia se convertido numa realidade. Por último, são dois os fatores que determinam até onde e com que rapidez cada comunidade percorre este caminho. Em primeiro lugar, alheios às pessoas, estão os recursos naturais, as possibilidades de acumular bens excedentes que sustentem o poder. Em segundo, está a mente humana. O poder criativo de forjar uma ideologia particular. (...) Os egípcios mostraram dotes excepcionais nisto tudo.62 não muito convencionais sobre a unificação do Estado no Egito Antigo. Buscando fundamentação na “teoria do jogo”, aplicada atualmente em outros campos do conhecimento, como para explicar o funcionamento do mercado, e sua “lógica” dos ganhos e perdas dos agentes econômicos, o estudioso do Egito prédinástico diz que: O tema de como surgiram inicialmente os Estados tem sido objeto de numerosos estudos. Além de ser um dos primeiros exemplos, o caso do Egito desperta um interesse especial porque parece que ali a formação do Estado ocorreu sem a incidência de alguns fatores mais óbvios como a competição por recursos. Atribuir um papel especial ao comércio é forçar demasiadamente os dados. Tampouco Fig.73 - O egiptólogo existia a ameaça de uma agressão externa. Em muitas ocasiões, parece que a dinâmica do Barry Kemp desenvolvimento do Estado esteve intimamente ligada com a sedentarização agrícola. O fator essencial, neste caso, é o psicológico. O trabalho e a ocupação permanente de um mesmo espaço criam um forte sentido de direito territorial. Isso, em algumas pessoas, desperta um afã competitivo que as faz perceber a possiblidade de obter um excedente agrícola, e, com ele, uma existência mais satisfatória. (...) Essa combinação de ambição e sentido místico da identidade fez com que os indivíduos e as comunidades entrassem em competição e isso modificou, de uma vez para sempre, a natureza da sociedade. Em agrupamentos de agricultores onde não haviam chefes, surgiram algumas comunidades nas quais uns quantos líderes passaram a dirigir a maioria. Fazer uma analogia com uma partida de jogo pode nos dar uma idéia da trajetória que se seguiu a esta competição, dentro de um território com um potencial agrícola ilimitado, como o do Egito antigo. Imaginemos um jogo de sobremesa, como o “Monopólio”. No começo temos vários jogadores com mais ou menos as mesmas possibilidades. Eles competem (até certo ponto inconscientemente 56 Arnoldo Walter Doberstein Barry Kemp, sem dúvida, já deu uma grande contribuição à egiptologia. O que não quer dizer 62 KEMP, Barry J. El antiguo Egipto, anatomia de una civilización. Barcelona: Crítica, 1995, p. 43-45. que tudo que ele escreva tenha que ser aceito sem bens” que teriam deflagrado a dominação de alguns contestação. Esse seu esquema interpretativo para sobre os demais, e dado origem, com isso, à formação a unificação, por exemplo, apresenta vários aspectos do Estado, ficou faltando o autor explicitar melhor criticáveis. Vejamos algumas contradições internas. O quais seriam esses “diferentes bens”. Produtos autor inicia afirmando que, para se explicar a unificação primários por produtos primários? Pouco provável, do Egito “atribuir um papel especial ao comércio é pois o que uma aldeia produzia as outras também o forçar demasiadamente os dados”. Depois afirma que, faziam. Produtos religiosos (como as cerâmicas que ao começar o jogo, os participantes competem entre si Michael Hoffmann sugere) por produtos primários? “intercambiando diferentes bens”, do que vai resultar Bem, mas isso seria um comércio, e o autor diz que a vantagem de um sobre os demais. E então? Este pensar nisso “é forçar demasiadamente os dados”. “intercâmbio”, o que é? Produtos de luxo (marfim, metal, peles de animais, Outro ponto questionável é a ideia de que as etc.) por produtos primários? Restaria investigar se vantagens obtidas nesses “intercâmbios” (os quais, na esse tipo de comércio já existia antes da unificação. ótica do autor, não podem ser vistos como comércio) Caso afirmativo seria uma boa hipótese de trabalho. podem ser “desapercebidas”, ou, então, que podem Mas também seria um tipo de comércio, o que o autor ser alcançadas “não intencionalmente”. Isso, no não reconhece como possível fator desencadeador mínimo, é “inocentar” demasiadamente a origem das da unificação. desigualdades entre os homens. O pressuposto teórico – unicamente teórico, já que não vem acompanhado de nenhuma citação O ANTIGO REINO de situações históricas que o comprovem – de que o habitar um território cria nos seus moradores um sentimento de posse e de afã competitivo, pode não ser aceito, tranquilamente. Por que o habitar e explorar um pedaço de terra não pode gerar nas pessoas um sentimento de companheirismo e solidariedade para com o vizinho ou vizinhos ao lado? Quanto à questão dos “intercâmbios de diferentes As Dinastias I e II A história do Egito Antigo normalmente é apresentada como sendo dividida em sete grandes períodos. Essa divisão, convém lembrar, é uma divisão feita à posteriori. Não corresponde, pois, a nenhuma visão que os próprios egípcios tinham de sua história. Esse esquema é proposto por razões O Egito Antigo 57 de ordem prática. Não há como se alcançar um da Espanha, por exemplo) depois que a Espanha rigorismo maior. As datas limites variam de autor formou seu império, englobando mais de um povo. para autor. Sobre as dinastias que formaram cada O que não era exatamente o caso do Egito, nem um dos períodos também não há consenso. O mesmo no Reino Novo. mesmo ocorre com as denominações. O que se O conceito “dinastia”, grosso modo, designa um pode adiantar com mais precisão é quanto aos período de tempo em que o poder real foi exercido critérios de divisão. São critérios de natureza por pessoas de um mesmo grupo familiar. Mais política. Os períodos chamados Dinástico, Reino precisamente, um período em que a sucessão do ou Império são aqueles em que o Egito formou um trono passou do rei a um herdeiro legítimo, sem Estado Unitário, isto é, com um único governante. solução de continuidade. Esse herdeiro legítimo, de Os períodos chamados de Intermediários são preferência, era um dos filhos varões do soberano aqueles em que o poder político esteve dividido, com a sua esposa principal. Não precisava ser o quer dizer, que o Estado não foi unitário. primogênito. Mas também podia ser um filho do Sobre as denominações dos períodos de governo faraó com uma esposa secundária. Ou até mesmo principais. uma filha mulher que, nesse caso, normalmente se Uma é chamá-los de “Impérios” (Antigo Império, casava com um meio irmão, filho do faraó com uma Médio Império e Novo Império). Até os anos 70 de suas esposas secundárias. unitário existem duas tendências predominava essa tendência. A outra é denomináPRINCIPAIS OCORRÊNCIAS los de “Reinos” (Antigo Reino, Reino Médio e Reino ANOS (a.C.) Novo). É bom lembrar que o conceito “Império” 3100 – 2695 Dinástico Primitivo Unificação do Estado I e II normalmente designa “uma unidade política que 2695 – 2160 Reino Antigo abarca um vasto território ou numerosos territórios Construção das pirâmides III, IV, V, VI VII e VIII 2160 – 1991 1° Per. Intermediário Fragmentação do Estado IX, X e XI 1991 – 1785 Reino Médio Grandes obras hidráulicas XI e XII 1785 – 1540 2° Per. Intermediário Invasão dos Hicsos XIII, XIV, XV, XVI-XVII 1540 – 1070 Reino Novo Expansão militar XVIII,XIX,XX 1070 – 712 3° Per. Intermediário Dinastias Regionais XXI à XXXI ou povos, sob uma única autoridade soberana”. 63 O caso dos Impérios Ibéricos ilustra bem essa situação. Seus governantes só passam a ser chamados de imperadores (Carlos V e Felipe II 63 HOUAISS, Antônio ; VILAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 1.580. 58 Arnoldo Walter Doberstein DENOMINAÇÃO DINASTIAS O esquema de registro era feito da forma ao lado As fontes referenciais (Fig. 76). Na primeira linha, de cima para baixo, ia O alinhamento dos soberanos que governaram o nome do faraó. Na segunda linha, os principais o Egito ao longo de todos esses períodos teve acontecimentos (festivais religiosos, principalmente) como ponto de partida algumas fontes que podem ser chamadas de referenciais. São delas que se tiraram os dados primários para uma visão geral da história política do Egito Antigo. São elas em número de quatro. A Pedra de Palermo A chamada Pedra de Palermo (Fig. 75) é a mais Fig.76 - Ilustração livre do esquema de registros da Pedra de Palermo antiga dessas fontes referenciais. Trata-se de um de seus governos. E, em baixo, o nível que a enchente grupo de fragmentos de uma lápide de diorita negra, do Nilo alcançou naquele respectivo ano. Isso parece esculpida ao final da V Dinastia (por volta de 2350 indicar a relação mágica entre a presença do faraó a.C.). Estima-se que a pedra original media 2,2 m nas festas religiosas com a ocor- rência das cheias. de altura e 0,61 m de largura. Os registros foram feitos em seus O Papiro de Turim dois lados. A maior parte da pedra está na cidade de Palermo. Foi composto entre 1300 e 1200 a.C., durante a Continha o nome dos faraós das XIX Dinastia, provavelmente no reinado de Ramsés II. cinco Com 1,7 m de comprimento e 0,41 m de largura, está primeiras dinastias, com acontecimentos marcantes de cada governo, assim como o nível que a enchente alcançou naquele ano. Fig.75 - O maior frag mento que restou da Pedra de Palermo depositado, atualmente, no Museu de Turim, Itália. Foi encontrado em 1822, numa sepultura ainda não prospectada, quando era cônsul no Egito o italiano Bernardino Drovetti (Fig. 78), que depois retornaria à Itália com uma série de artefatos e relíquias com as quais foi fundado o Museu de Turim, em 1824. Como O Egito Antigo 59 era então de praxe, ficou com seus “descobridores” que, Quando do incêndio da Biblioteca de Alexandria, o volume depois, passaram-no a outros “donos”. Mal cuidado, foi destruído, restando tão somente alguns extratos que o material rompeu-se em diversos fragmentos (Fig. os copistas haviam produzido. Foram esses extratos que 77). O grande egiptologista conservaram a “Lista de Manethón”, com o nome de Jean François Champolión, o todos os reis egípcios, duração de seus governos, assim como das dinastias a que os mesmos pertenceram, num total de 31. Esse esquema de 31 dinastias é o que é usado até os dias de hoje. Fig.77 - Fragmento do chamado Papiro de Turim - XIX Dinastia Fig.78 - Bernardino Drovetti, o italiano que trouxe do Egito as peças com as quais se formou o Museu de Turim (1824) O Livro de Heródoto Heródoto era um viajante grego que viveu no séc. V a.C. (484-425 a.C.). Visitou a Ásia Menor, Babilônia, Assíria e Pérsia. No Egito, percorreu o Nilo tradutor da Pedra da Roseta, percebendo o grande por cerca de mil quilômetros, até a ilha de Elefantina. valor das informações nele contidas, trabalhou para Foi contemporâneo de Péricles, Anaxágoras, Sófocles sua reconstrução e restauração. Não obstante, e Eurípedes. Consta que, por volta de 445 a.C., ele permaneceram importantes lacunas. Originalmente, teria lido em público a sua obra, que ele intitulou de continha o nome de todos os reis egípcios, desde “História”, com os testemunhos recolhidos em suas a I até a XIX Dinastia, com a duração dos anos de viagens, assim como com as próprias impressões sobre governo e, em alguns casos, até dos meses e dias. as coisas que ouviu. Essa “História” de Heródoto por muito tempo foi uma das principais – senão a principal – A Lista de Manethón fonte para a reconstituição da História Antiga. Hoje, com os avanços das pesquisas in loco, ela deixou de ser tão Manethón era um sacerdote egípcio que viveu no séc. fundamental como era, mas ainda continua sendo uma III a.C., quando o Egito era governado por Ptolomeu III. A fonte de consulta da maior importância para o estudo da pedido do governante, Manethón escreveu uma história antiguidade. Não para ser tomada ao pé da letra, mas do Egito – a Aegyptiaca –, servindo-se de documentos como ponto de partida. antigos, como a Pedra de Palermo e o Papiro de Turim. 60 Arnoldo Walter Doberstein Os restos materiais não é consensual. Alguns o chamam de Dinástico Antigo, outros de Período Arcaico. Além das fontes referenciais acima, existem Ciro F. Cardoso prefere dividir o período em os restos materiais. Para o período compreendido dois subperíodos. Um Protodinástico, anterior à pelas I e II Dinastias o material conhecido é unificação definitiva, que iria de 3050 até meados de escasso, esparso e muito controverso. Escasso 2960 a.C. Os detentores do poder político formariam porque: a) documentos escritos (na própria época) aquela que Joseph Cervelló Autuori e outros praticamente inexistem; b) a maioria dos túmulos e denominam de Dinastia O. E o Dinástico Primitivo, templos, dos quais os materiais provinham, foram de 2960 a.C. a 2695 a.C. que englobaria, para ele, I, violados já na antiguidade. Esparso porque, quando II e III Dinastias. A maior parte dos autores, todavia, da “descoberta” dos túmulos dessas duas dinastias incluem aí, somente, as I e II Dinastias. (finais do século XIX, início do século XX) ainda não havia um controle externo sobre a destinação dos achados. Muita coisa foi parar nas coleções “particulares”, subtraindo-se, assim, da análise dos estudiosos. Controverso porque, dado sua escassez e fragmentação, a interpretação tem que preencher as lacunas documentais. E, como em todo o terreno cujas interpretações têm que preencher o pouco conhecimento, as controvérsias se acumulam. A I DINASTIA A I Dinastia apresenta, na sua reconstituição, um alto grau de complexidade. Começa pelos nomes de seus faraós, sobre os quais não há coincidência. É que os faraós usavam cinco nomes (títulos) que eram pela ordem: 1. o título “serej”, como “filhos de Hórus” (ver atrás, na Fig. 63, o exemplo do Rei Serpente). O DINÁSTICO PRIMITIVO Pela cronologia aqui adotada, tirada de Barry J. Kemp,64 o período chamado de Dinástico Primitivo, iria de 3050 a 2696 a.C. A denominação, todavia, 64 KEMP, J. Berry. El antiguo Egipto, anatomia de una civilización. Barcelona: Crítica, 1995, p. 23. 2. o título “Nebty”, como representantes das deusas Nejbet (Sul) e Uto (Norte). 3. como “Hórus de Ouro”. 4. o título “Nesu-bit”, com um junco (Norte), uma abelha (Sul), mais o nome do rei dentro de um cartucho. 5. o título “Filho de Rá”, com o nome dentro de uma cartela. O Egito Antigo 61 Vejamos o caso de Menés (Narmer). No Papiro de A controvérsia: túmulos x cenotáfios Turim e na Lista de Seti I (faraó da XIX Dinastia) o Desde que Flinders Petrie e Edward seu nome aparece com o título Nesu-bit. Junto com o desenho de um junco (símbolo do reino do Norte) e Quibell descobriram os túmulos de uma abelha (símbolo do reino Sul), aparecem os reais de Abydos e seus preciosos hieróglifos correspondente ao som “M”; correspondente conteúdos (Placa de Narmer, Estela ao som “N” e, correpondendo ao som “S”, o hieróglifo do rei Serpente, Cetro de Narmer, com o desenho de uma pena. etc.) pareceu a muitos que estava se Quando o nome de Menés, em seu título Nesu-bit, confirmando o relato de Manethón de era escrito na vertical, ficava como no esquema ao que nas duas primeiras dinastias a lado. É oportuno lembrar que, assim como na maior capital era Tinis. Entre os anos 1930-50, parte dos casos, desses títulos não constavam as entretanto, uma série de imponentes vogais, apenas as consoantes. sepulturas, do mesmo período, foram encontradas em Sakkara, ao Norte, Já na Paleta de Narmer, que ele depositou no templo de Hórus, em Abydos, o título usado foi o Fig.79 - Mapa de lugares antigos perto de Mênfis (mapa Fig. 79). Serej. O seu nome, nesse caso, foi escrito com um A partir de então se estabeleceu peixe, cujo som corresponde a Nar, e um cinzel, cujo uma grande controvérsia que perdurou até os anos 80. som corresponde a mer. A correspondência entre os Uns defendiam que a sede de governo era em Tinis, e nomes dos reis da I Dinastia, com o título Nesu-bit que os faraós, por essa razão, escolhiam o cemitério (coluna da esquerda) e com o título Serej (coluna da de Abydos para suas sepulturas. Outros propondo que, direita), ficaria assim: desde o primeiro faraó, a sede de governo já era Mênfis, e que os túmulos de Sakkara eram os jazigos oficiais, TÍTULO NESU-BIT TÍTULO SEREJ Menés Narmer Athotis Hor-Aha sendo as sepulturas de Abydos simples cenotáfios, ou seja, monumentos funerários que não se destinavam ao enterro propriamente dito. A partir dos anos 90 Khent Hor-Djer Uadju Hor-Djet Udimu Hor-Den definiu-se que as verdadeiras tumbas reais são as de Nebty Hor-Qaa Abydos e que as sepulturas de Sakkara seriam de altos dignatários “menfitas” do Estado faraônico. 62 Arnoldo Walter Doberstein Menés / Narmer depois de interpretados, acredita-se que são alusivos ao processo de unificação do Egito. Na Pedra de Palermo, o pedaço referente ao primeiro faraó está faltando. No Papiro de Turim, assim como na Lista de Manethón consta que o primeiro faraó do Egito chamou-se Menés (ou Manés, ou até mesmo Mina). Heródoto, no Livro II, nº 99, de sua “Historia”, escreveu o seguinte: Segundo as informações dos sacerdotes, Mina foi o primeiro rei do Egito e protegeu Mênfis com uma barragem. Com efeito, o rio corria então ao longo da cordilheira arenosa do deserto líbico. Mediante uma elevação do terreno, feita a uns cem estádios (cerca de 18 quilômetros) ao Sul de Mênfis, o rei Mina levantou um meandro e cavou um canal através do qual desviou o rio, que passou a correr a igual distância das duas elevações do terreno. Depois disso, o primeiro governante de nome Mina, drenou o terreno conquistado ao rio e fundou nele a cidade que agora é chamada de Mênfis. Com efeito, Mênfis está situada na parte estreita do Egito. Fez também cavar um lago (do qual não restou nenhum vestígio), o qual era alimentado pelo rio, que o rodeia pelo Norte e pelo Oeste. Além disso, ele construiu em Mênfis o amplo e particularmente destacável santuário de Hefestos 65 (grifo nosso).66 A Paleta de Narmer: interpretação Em História, uma coisa são os fatos. Outra coisa são as interpretações que fizemos desses fatos. No terreno dos fatos, a margem de controvérsia sempre é menor (não quer dizer que não exista) do que no plano das interpretações. Isso é fácil de entender. No plano da interpretação a subjetividade é mais incidente. Veja-se, como exemplo, essa Paleta de Narmer. O fato que ela revela é que esse rei fez questão de depositá-la no templo de Hórus, em Abydos. Outro fato é que quem a esculpiu escolheu uma série de sinais para nela destacar. Por que isso foi feito? Bem, aí já entramos no terreno da interpretação. Qualquer interpretação pode ser feita? Sim. Todas têm o mesmo valor? Aí, depende. Se nós quisermos saber o significado intencional dos sinais da Paleta, ou O nome de Menés, Manés ou Mina até agora seja, da possível intenção de quem a fez ou mandou foi pouco encontrado nas fontes materiais da fazer, qualquer um pode dar um palpite. Entretanto, a época do governo desse rei. O que se conhece é opinião daqueles que, sabendo de outras coisas, (o a Paleta de Narmer, encontrada nas escavações que significavam, para os egípcios, um falcão, uma em Abydos. Contém uma série de signos que, vaca, um gorro dessa ou daquela forma) sempre terá maiores chances de acertar. 65 O deus que Heródoto chamou de Hefestos (o deus do fogo e da metalurgia para os gregos), na verdade era Min, deus menfita, criador do mundo. 66 Pois bem, a “leitura” desses que “sabem de outras coisas” é que a Paleta de Narmer apresenta HERÓDOTO. História. Brasília: UNB, 1988. p. 118. O Egito Antigo 63 uma narrativa da unificação do Egito. Tal “leitura” Atrás do rei um personagem de alto escalão conduz considera, em primeiro lugar, o que aparece no lado as suas sandálias. Na faixa inferior, inimigos fugindo. principal (Fig. 80). No anverso da Paleta, na sua faixa superior, Na faixa superior aparece o nome do faraó – um aparece uma repetição do registro do nome Serej peixe (Nar) e um cinzel (Mer) – entre duas cabeças do faraó, ou seja, o hieróglifo Nar (peixe) mais o bovinas. Essas cabeças bovinas podem ser uma hieróglifo Mer (cinzel), dentro de um retângulo no qual alusão ao boi Ápis (encarnação do deus Rá), ou está registrada uma representação esquematizada então, uma representação da deusa Hathor.Na faixa da fachada do palácio real (Fig. 81). Na faixa central, o faraó aparece com a coroa branca, do Alto central superior o que aparece são imagens de uma Egito (Sul), prestes a golpear um prisioneiro de nome conquista. O faraó, portando a coroa vermelha do Uash. Acima desse aparece o desenho de um falcão, Baixo Egito, passa em revista as filas de inimigos símbolo do deus Hórus, com o qual os faraós se atados e decapitados. O cortejo real é formado de identificavam. Pousa sobre seis hastes de juncos, que quatro porta-estandartes, chamados de “Seguidores era a planta heráldica do Baixo Egito (Norte). Disso de Hórus”, ou de “Os Deuses que seguem Hórus” e de se tira que a unificação de Narmer veio do Sul, e que mais dois personagens de posição mais elevada (veja- a mesma foi obtida se o seu tamanho e o com o uso da força. dos porta-estandartes). As 6 hastes de juncos Concorrendo podem essa representar com iconografia do 6 cidades do Delta “Senhor dos Animais”, ou, então, cada uma 2 animais fabulosos, delas representar o talvez número a discórdia, ou os 2 segundo mil. Nesse caso representariam na campanha elas reinos, que, por funcionários reais de que os mantém com os unificação, foram feitos 6 64 mil representando prisioneiros. Fig.80 - Paleta de Narmer (lado principal): narrativa da unificação Arnoldo Walter Doberstein Fig.81 - Paleta de Narmer (lado secundário): uma narrativa do poder são contidos pescoços entrelaçados. Isso para simbolizar a harmonia garantida pelo faraó. Na faixa inferior, o (1) Um codo equivalia a 52,3 cm. Naquele ano, poder conquistador do faraó é expresso na figura de portanto, a inundação deve ter andado por volta de um touro pisando sobre um inimigo e investindo contra 3,50 m. uma cidade amuralhada. (2) Trata-se da cerimônia Pekherer ha ineb, na qual o rei, precedido de atributos divinos “dava volta Athotis / Hor-Aha ao muro”. Essa festa era celebrada em Mênfis. (3) Tratava-se do Sema Taui, um rito de coroação, O sucessor imediato de Menés (Narmer) foi um que simbolizava a união do Alto com o Baixo Egito, faraó que, na Pedra de Palermo, aparece com o nome entrelaçando-se, em torno de um pilar, hastes de Athotis. Na nomenclatura que o apresentava como de papiros (que simbolizavam o Sul) e lotus (que “Filho de Hórus”, ele aparece com o nome de Hor- simbolizavam o Norte). Aha, representado pelo desenho de um falcão (Hor) e da torre de um palácio (Aha). Na Pedra de Palermo, (4) Festival religioso do qual não se tem muitas informações. em que aparece com o nome de Athotis, os principais (5) Com o nome Adoração de Hórus, era celebrado acontecimentos de seu governo foram apresentados da um festival no qual se homenageava a Hórus, seguinte forma:67 representado como um falcão, na condição de deus do outro mundo, filho único de Osíris e Isis. (6) O deus solar Sokar, ou Sokaris, era um deus da necrópolis de Mênfis. Sua festa era celebrada no dia 26 do quarto mês da estação Akhet, da inundação. (7) O deus Min era o deus masculino da fertilidade. Nas suas festas celebravam-se os rituais Fig.82 - Esquema dos registros da Pedra de Palermo, reinado de Athotis. que garantiam a fertilidade do solo, das pessoas e dos animais. (8) 67 Este esquema de registro foi feito livremente a partir da transcrição dessa parte da Pedra de Palermo. Tal transcrição se encontra em PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Ediciónes Istmo, 1991.p.35. Da mesma obra (p.224-225) é que foram retirados os comentários das notas adicionadas ao esquema proposto. Tratava-se da festa Kha Nesut, que comemorava a festa de coroação do rei como titular do Alto Egito. O Egito Antigo 65 (9) Anubis era o deus dos mortos. Era representado deduzam que, no Dinástico Primitivo, “o conteúdo como um chacal preto. das tumbas dos reis prova-nos, indiretamente, a (10) A festa Sed recordava a entronização do rei e existência de artesões especializados, fixados na visava restaurar seus poderes mágicos. corte e mantidos com a produção de domínios reais cujo proprietário era o rei”.68 Outra tabuleta, também recolhida por Petrie nas Khent / Hor-Djer suas escavações em Abydos, tem sido tomada por Como os demais faraós dessa I Dinastia, as vários egiptólogos como indicativa de que o governo informações sobre o seu reinado são esparsas e de Hor-Djer coincidiu com uma aparição sothíaca da incompletas. O nome Khent aparece na Lista de estrela Sírius. “Aparição sothíaca” era aquele dia do Manethón. Já na tumba, ou cenotáfio, de Abydos, ano em que, ao nascer do sol, a estrela Sirius, que os nas tabuletas Serej, encontradas por Petrie, o signo egípcios chamavam de Sothis, ficava, na latitude de que aparece entre o falcão da parte superior e a Mênfis, numa mesma linha vertical com o sol nascente. fachada do palácio, em baixo, é . Corresponde ao Isso acontecia uma vez a cada ano e deveria coincidir fonema Djer que pode ser traduzido por “abalador”. com o início da inundação. Era considerado, por isso, o Entre os objetos encontrados na referida tumba, ou primeiro dia do ano. Se o calendário anual dos egípcios cenotáfio, destacam-se, pela sua beleza e padrão fosse rigoroso, ou seja, de 365 dias e seis horas, a cada de acabamento, primeiro do ano essa coincidência da verticalidade entre alguns braceletes de Sirius (Sothis) e o nascer do sol ocorreria. Acontece que ouro incrustados de os egípcios só contavam os 365 dias. Como eles não turquesas, ametistas tinham o ano bissexto, de 4 em 4 anos, o calendário e lapislázuli (Fig. 83 ). “oficial” se atrasava um dia em relação à verticalidade Fig.83 - Colares e braceletes da estrela Sothis e do nascer do sol. Só depois de 1.460 Fig.83A - Hieróglifo Serej de Djer anos (365 x 4) é que novamente ocorria a coincidência Além da raridade do entre o calendário astronômico e o calendário civil, o material que era chamado de Aparição Sothíaca. empregado, o nível de execução de ornamentos desse tipo é que faz com que especialistas, como Ciro F. Cardoso, 66 Arnoldo Walter Doberstein Fig.83B - Tabuleta com Serj de Djer. 68 CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1992, p.49. uma das mais importantes publicações na área de arqueologia histórica. Num recente artigo publicado via eletrônica,69 o professor Lara Peinado propõe uma leitura da citada tabuleta fundada no seguinte esquema interpretativo para seus hieróglifos: Fig.84 Quadro com a “coicidência sothiaca” conhecida (139 d.c.), a 2° “aparição” (1321 a.c) e a 3° “aparição” (2781 a.c.). Na indicada tabuleta se vê, à esquerda, o serej do rei Djer, da primeira dinastia, com seu signo hieróglifo específico, coroado por um falcão, que se encontra acima de três signos hieróglifos D, P e o determinativo Niwt. Um largo bastão de comando, ou maça estilizada (que podemos traduzir como Herep ou Med, isto é, como um bastão de autoridade ou de passeio) separa os signos anteriores de outros dois, constituídos, o da parte superior, por uma vaca sentada (IsisSothis), trazendo entre seus cornos o hieróglifo da “abertura do Aòo” (Wep Renpet) e, mais abaixo, um conjunto de três plantas sobre um pedaço de terreno que, indubitavelmente, corresponde ao hieróglifo Akhet, equivalente à estação da inundação. A vaca sentada, numa primeira leitura, poderia ser lida com uma alusão a Hathor, mas, mitologicamente, a deusa da cidade de Dep não era Hathor, mas Udjet. Além disto, a gravação não é tão clara que exija uma identificação do animal como uma vaca. Poderia ser um cachorro, ou cadela. Isso identificaria o hieróglifo com Sepedet (a chamada estrela Sothis-Sirio era a estrela “alpha” da constelação “Cão Maior”) (...) De acordo com estas considerações a leitura da tabuleta poderia ser, com suplementos vocálicos: Djer Dep niwt herep Sepedet wep renpet acket. Pelos registros do escritor romano Censorino, sabe-se que, no ano 139 d.C., aconteceu uma dessas Aparições Sothíacas. Os egiptólogos que consideram que essa tabuleta, encontrada na tumba de Djer, foi feita num ano em que Sothis estava em “coincidência vertical” com o nascer do sol, deduzem que a tabuleta seria de 2781 a.C.. Chega-se a tal número somando-se (-) 139 + 1460 + 1460 = 2781). Entre os egiptólogos que defendem a tese de que a tabuleta recolhida nas escavações da tumba do rei Hor-Djer contém os registros de uma dessas Aparições Sothíacas, está o professor Federico Lara Peinado, que é membro e Diretor do Instituto de Estudos del Antiguo Egipto da Universidade Complutense de Madrid e assíduo colaborador da Revista de Arqueologia, Fig.85 - Federico Lara Peinado Fig.84 - Tabuleta “Sothíaca“ da tumba de Djer 69 www.institutoestudiosantiguoegipto.com/tablita.calendario.html O Egito Antigo 67 A tradução da tabuleta, então, poderia ser mais o desenho estilizado da fachada de um palácio, enunciada nos seguintes termos: Sob o domínio aparece a figura do Falcão, representando o próprio (Herep) de Djer (Djer) sobre a cidade (niwt) de Dep deus Hórus, do qual cada faraó era tido como uma (Dep) Sothis (Sepedet), a abridora do aoó (wep personificação. renpet) na estação da inundação (akhet). Assim como seu antecessor Djer, parece que A conclusão que o professor Lara Peinado tira o faraó Serpente fez expedições fora do Egito. disso tudo é que “em nossa opinião, que tomamos Vestígios de sua passagem pelo deserto arábico, no de outros estudiosos, se pode aceitar a data de 2781 Wadi Hammamat (caminho que conduzia ao mar a.C. como a mais provável para a fixação de um Vermelho), estão sendo revelados por estudiosos calendário egípcio” (Op. cit. nota 67). que, cada vez mais, estão se interessando pelas duas primeiras dinastias. Uadjy / Hor-Djet Udimu / Den Para alguns autores, entre Djer e o seu sucessor, de nome Uadjy, ou Djet, teria existido uma rainha de O sucessor de Djet foi o rei Udimu, ou simples- nome Merit-Neit. Manethón, porém, não a menciona, mente Den. Den era o título que carregava enquanto passando diretamente de Djer a Djet, o qual também “Filho de Hórus”, e, traduzido, seria algo como “Hórus, o é conhecido como o Rei Serpente. Além da estela que golpeia”. Numa tabuleta encontrada em sua tumba encontrada na sua tumba, ou cenotáfio, de Abydos de Abydos, Fig. 88, na qual aparece na iconografia do (ver atrás, Fig.63) existem outras tabuletas, de “Rei Violento” dominando e golpeando um asiático, marfim materiais esse seu título Serej aparece entre ele e o inimigo (Fig. 87), algumas reveladas sacrificado. Abaixo do falcão (Hórus), o hieróglifo por Petrie, em que aparece (uma mão, que correspondia ao som “D” e, no caso, a associação, que desde o formando a sílaba DE, mais o hieróglifo (água), que Dinástico Primitivo se fazia, correspondia ao som “N”. Desses três signos resultava entre a realeza e o deus Hórus. o título: Hórus (Hr) Den (o que golpeia). e outros Sua sepultura, em Abydos (Fig. 89), é uma das mais Acima do retângulo com o signo hieróglifo da serpente (Djet), 68 Fig.87 - Tabuleta com o Serej do Faraó Djer Arnoldo Walter Doberstein bem conservadas dessa necrópole onde os faraós da I acredita-se, colocados eram os corpos do serviçais do rei, sacrificados quando de seu sepultamento. Fig.90 - Reconstituição livre do conjunto da tumba do rei Udimu Numa outra tabuleta encontrada em sua sepultura de Abydos, (Fig. 91), na sua parte superior direita, foi registrada a celebração de seu Festival Sed, em que o Fig.88 - Tubuleta de Udimu na iconografia “Rei Violento“ Dinastia mandaram construir esse tipo de monumento rei aparece correndo entre os “montículos territoriais”. funerário. Como foi comentado anteriormente, chegou- Esse festival era celebrado de tempo em tempo para se a duvidar que o rei foi enterrado no local, uma vez ratificar a coroação e renovar o poder do rei que era, em que objetos com seu grande parte, de essência mágica. nome aparecem em Segundo Barry Kemp, os sinais presentes nessa sepulturas de Sakkara, parte da tabuleta no Norte. O conjunto podem ser lidos mede ao todo 56 x 25 m e é formado de uma como: Fig.89 - Tumba do faraó Den. reinado; (2) o rei Na parte mais subterrânea ficavam a câmara 90) e a câmara dos pertences (Idem letra “B”), onde, o signo do ano de parte mais subterrânea e de uma parte mais superficial. mortuária do titular (letra “A” da reconstituição da Fig. (1) correndo Fig.91 - Tabuleta com a representação do Festival do Faraó Udimu os entre montículos territoriais; (3) o rei sentado inclusive, eram depositadas as estátuas dos mortos debaixo de um dossel num estrado ali enterrados. O acesso era feito por uma escadaria do trono provido de grades; (4) o principal (Idem letra “C”), e por uma escada secundária nome de Hórus do faraó Udimu. 70 Fig.92 - Placa de Udimu e seu significado (Idem letra “D”). Completavam o conjunto cerca de 174 túmulos “subsidiários” (Idem, letra “E”) nos quais, 70 KEMP, Barry J. El antiguo Egipto, anatomia de una civilización. Barcelona: O Egito Antigo 69 Semercket sofrerem o mesmo tipo de agressão que Anedjib e Semerkhet: Uma dinastia em crise? este havia feito aos de Adjibe”.72 Ou seja, raspando Uma situação que várias vezes vai se repetir seu nome dos registros ou até mesmo, eliminando na história política do Egito Antigo é o término uma parte desses registros. Para certos autores, conflituado de uma dinastia. Isso tem levado um essa rivalidade entre Qaa e Semerkhet vinha do bom número de estudiosos a levantar a hipótese que fato do primeiro, apesar de ser o herdeiro legítimo do isso também ocorreu ao final da I Dinastia. Depois trono, ter sido “usurpado” do trono pelo irmão. do aparentemente próspero governo de Udimu (atestado pela quantidade relativamente grande de objetos encontrados em sua sepultura), o trono foi Nebty / Qaa ocupado por Anedjib (Miebis). Além de ser aquele O último faraó da I Dinastia foi Hórus Qaa, nome que levantou a mais modesta das tumbas desse este que vem do seu título Serej, formado de um período (ela tinha “só” sessenta e quatro sepulturas falcão (Hórus) desenhado acima do desenho de para servos, enquanto a de Den, como se viu, tinha uma encosta (que correspondia ao som “qu” como 174), em muitos vasos de pedra o seu nome foi em “quanto”) e mais o desenho de um antebraço raspado posteriormente. Segundo Barry Kemp, “a (que se aproximava do som de um “a” forte, como supressão do nome de Adjibe-Miebis, em alguns em “carro”). O significado literal dos três sinais seria monumentos, foi obra de seu sucessor, Semerkhet, “Hórus - erguer- braço” ou “Hórus do braço erguido”. o qual, segundo se supõe, foi um usurpador (...) isso Das prospecções de sua tumba, em Abydos (Fig. indica que existiram então agitações políticas 93), duas questões ainda permanecem a espera de (grifo nosso)”. 71 uma explicação definitiva. A primeira delas diz respeito Sobre o reinado de Semerkhet, as informações aos motivos pelos quais foram ali depositados objetos remanescentes também são reduzidas. Isso pode ter com o nome do faraó Hatepsekhemi, o fundador da decorrido da mesma lógica de disputas que marcaram II Dinastia. A suposição dominante é que foi este esse final da Dinastia. Segundo Cassin e outros, o último que terminou a tumba e que, por seu sucessor, o faraó Qaa “fez os monumentos de Fig.93A - Letra Encosta Faraó Qaa Fig.93B - Letra Antebraço Faraó Qaa Crítica,1998, p. 76. 71 KEMP, Barry J. El antiguo Egipto, anatomia de una civilización. Barcelona: Crítica, 1998, p. 76. 70 Arnoldo Walter Doberstein 72 CASSIN, E. et Allii. Los impérios del Antiguo Oriente. México: Sigloveinteuno, 1980. p.207. conseguinte, a transição da I para a II Dinastia talvez não tenha sido tão “traumática” como se chegou a supor. a) os registros consignados na Pedra de Palermo, para esse período, são muito incompletos; b) a maioria dos túmulos dos faraós que são A segunda questão diz respeito à incluídos no período ainda não foram encontrados, diminuição dos túmulos “subsidiários”, e tal desconhecimento pode continuar por um tempo supostamente indefinido. destinados ao sepultamento dos serviçais do rei e que, no caso da Tumba do rei Qaa são em número de 26. Não se sabe bem tipo Com tão poucos elementos à disposição, o de sepultamento deixou de ser usado a partir da II conhecimento sobre os acontecimentos da II Dinastia Dinastia. ficam muito na tentativa de interpretação e no terreno Fig.93C - Nome Sereja Faraó Qaa porque razões esse Hotep-sekhem-wi das hipóteses que só as investigações arqueológicas futuras poderão confirmar. O nome de seu primeiro rei é Hotepsekhemwi. Essa nomenclatura é tirada de seu título Serej, que aparece em diversos objetos, encontrados em diferentes locais, como na tumba de seu antecessor Qaa (em Abydos), nas pirâmides de Dzozer (III Dinastia), na sua própria tumba, próxima da pirâmide de Unas (V Dinastia), em Fig.93 - Tumba do Rei Qaa, em Abydos, em seu estado atual de Conservação Sakkara, e em tumbas de outros funcionários. Este seu nome Serej, era formado do tradicional A II DINASTIA Falcão sobre um retângulo com o desenho da fachada do palácio, na parte inferior, e dos signos relativos ao As fontes disponíveis para a reconstituição da título do faraó. Nesse caso os signos empregados história da II Dinastia são ainda mais escassas do são uma esteira encimada de uma semiesfera, e mais que aquelas que dispomos para o conhecimento da I dois cetros dispostos lado a lado. O primeiro hieróglifo Dinastia. Isso, basicamente, por duas razões: era um determinativo, ou seja, um adjetivo, pronome, O Egito Antigo 71 artigo ou locução que torna preciso o substantivo. O até se questiona se realmente foi do rei ou de algum som desse sinal correspondia às consoantes h-t-p outro personagem posterior. Como a referida sepultura que, acrescido das vogais, daria hotep, cuja tradução está localizada em Sakkara, reforçou-se a ideia de poderia ser “estar contente” ou “estar unido”. Já o signo que, com a II Dinastia, os faraós se transferiram para o do cetro correspondia às letras s-k-h-m, ou sekhem, Norte. Ou, até mesmo, que essa guinada para o Norte cuja tradução poderia ser “poder” “força”, ou, num foi provocada por imperativos políticos. Ciro Flamarion sentido figurado, “reino”. Como os cetros que aparecem Cardoso, por exemplo, afirmou que, “primeiro rei da são dois (que, se escrito, daria wi) chega-se ao nome II Dinastia adotou o nome de Hotepsekhemui que Hotep-sekhem-wi que, traduzido, corresponderia a “os significa ’os dois poderes estão apaziguados’, o que dois poderes estão em paz”. talvez signifique ter sido necessário superar uma Fig.94A - Nome Sekhemwi-Hotep Fig.94B - Nome Sekhemwi-Cetro Fig.94C - Nomr Sekhemwi-Serej Apesar do número relativamente grande de objetos com o seu nome, que foram encontrados em diferentes locais, eles são insuficientes para a elaboração de hipóteses mais consistentes sobre as ocorrências de seu governo. Aproveita-se, nesse caso, as informações de Manethón, que dão conta que ele reinou 38 anos e que foi o fundador da II Dinastia. A escassez de Fig.94C - Suposta tumba de Hotep-Sek-Hem-Wi e a pirâmide de Unas ao fundo indicativos vem da própria incerteza do local que tentativa de separação do reino do Norte”.73 ele foi enterrado. A tumba que se acredita ter sido o O mesmo autor, entretanto, em texto posterior, local de seu enterro (Fig. 94), quando foi descoberta lembra que por A.Barsanti, em 1901-02, só permitiu uma pálida ideia do que nela foi depositado. Dela só se ficou conhecendo a parte subterrânea, e de tão depredada, 72 Arnoldo Walter Doberstein 73 CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1992, 9ª ed. p. 50. (...) deduções mais arriscadas são as que, a partir da titulatura real (grifo nosso), de alguns dados funerários e da constatação de que certos reis apagaram de inscrições os nomes de seus antecessores, supõem a ocorrência de graves revoltas no delta e outros distúrbios políticos no final da I Dinastia e sob a II.74 Nineter Sobre o terceiro rei da II Dinastia, de nome Nineter, um fragmento da Pedra de Palermo (esquema Fig. 96) dá conta que, no primeiro ano Nebra de seu reinado, quando a enchente O segundo rei da II Dinastia intitulava-se Hor foi de 3 codos, 4 palmos Fig.95 - Estela do Rei Nebra, com destaque para seu título Serej. Nebra. Hor era representado com o falcão. Um e 5 dedos (aproximadamente 1,92 m) foi efetivada círculo com um ponto no meio era o signo da palavra a “Segunda carreira do touro Apis”. De acordo com Rá, enquanto um arco (Neb) significava “senhor” ou Manethón, foi durante o seu governo que “se dicidiu “chefe”. Hor Nebra, portanto, significava “Hórus, Rá que as mulheres podiam exercer o poder real”.76 é o senhor”. Sobre os dois reis seguintes, Uneg e Senerj, além Assim como no caso do rei Djet, da I Dinastia, do Fig.95A - Nebra-Sílaba RA seu governo dos relatos de Manethón, as informações são ainda restaram mais escassas. Os registros mais claros que se tem poucas informações, mas, em de seus nomes foram gravados em alguns vasos compensação, encontrados na pirâmide escalonada de Dzozer. sobrou uma excelente estela (Fig. 95), hoje no Metropolitan Museum de Nova Fig.95B - Nebra-Sílaba NEB York. Segundo Manethón, no seu governo, “foram adorados o touro Apis, em Mênfis, o deus Mnevis em Heliópolis, e o cabrito macho de Mendes”.75 Fig.96 - Fragmento da Pedra de Palermo. Reinado de Nineter. 74 CARDOSO, Ciro F. Sete olhares sobre a antiguidade. Brasília: Universidade de Brasília, 1998, p. 77. 75 In: CASSIN, E. et Allii. Los impérios del Antiguo Oriente. México: Siglo veinteuno, 1980. p. 208. 76 Ibidem, p. 209. O Egito Antigo 73 décadas de lutas e crises, seu governo parece que Peribsen assinala uma pacificação interna mais duradoura que Com o penúltimo rei da II Dinastia parece ter ocorrido uma nova crise político-religiosa. Logo levou o Egito a um período de franco desenvolvimento de suas potencialidades. depois de ter sido entronizado, com o nome de Hórus-Seckemib, quer dizer, seguindo a tradição de se associar o faraó ao deus Hórus, patrono do Baixo Egito (Norte). Trocou sua titulatura para SethPerib-sen, ou seja, associando-se ao deus Seth, patrono do Alto Egito (Sul). Depois disso abandonou Mênfis e construiu sua tumba em Abydos (Fig. 97). Cassin, Botteró e Vercoutter vêm nisso o resultado “de uma revolta geral do Sul contra o Norte”, que teria obrigado o faraó a retornar ao Sul. A III DINASTIA Manethón afirmou que a III Dinastia iniciou com a morte de Cassenquevi, o último rei da II Dinastia. Até agora, ao certo, não se sabe muito mais que isso. Nem mesmo as razões que levaram Manethón a iniciar a III Dinastia com a morte de Cassenquevi são conhecidas. Chegou-se a cogitar que a II Dinastia terminou porque Cassenquevi não teve filhos varões com a esposa principal. Somente com a esposa Cassequenvi O da secundária, de nome Nimmat-Apis, é que teria tido último II dois filhos homens, Sanaquet e Neterquet, mais faraó Dinastia conhecido por Dzozer. foi Cassenquevi, com o Sanaquet qual a unidade política se restabeleceu. Por muito tempo se acreditou que Dzozer teria sido Uma estátua sua, de o fundador da III Dinastia. Hoje se pensa que não. diorita, é considerada uma das Antes dele o governo parece que foi exercido por um primeiras obras-primas irmão seu, de nome Sanaquet. Seu nome aparece (junto em diversos relevos nas minas de turquesas e de com a Paleta do Rei Serpente) egípcia. 74 da Depois arte de cobre no Sinai, dentro da iconografia do “rei violento”, Fig.97 - Necrópole de Abydos com as tumbas da II Dinastia. Arnoldo Walter Doberstein com o cetro na mão direita, o seu nome em hieróglifo e, mais abaixo, uma estilização da fachada de um segundo alguns, que ele se tornou palácio (Fig. 98). Dentro da pirâmide escalonada de uma espécie de divindade familiar seu irmão Dzozer existe outra menor, que se acredita ou profissional. que era o túmulo de Sanaquet. Alguns autores, inclusive, afirmam que “seu monumento funerário foi, O trabalho em pedras duras sem nenhuma dúvida, o ponto de A civilização egípcia, assim partida da pirâmide escalonada”.77 como a mesopotâmica, em seu começo foi uma civilização do Dzozer / Neterquet Nos do relevos Sinai, da assim dependências barro. De tijolos de barro eram as casas, assim como as sepulturas e Península como da os templos para seus deuses. Do nas barro vinha à cerâmica, tanto a de uso doméstico, pirâmide escalonada, o nome que aparece é o de Neterquet. Só pelas Fig.99 - Imagem tardia de Im-Hotep Fig.98 Relevo Sanaquet, no Sinai. de como a que se ofertava aos mortos. Mas, enquanto a mesopotâmica permaneceu mais ligada ao barro, a inscrições posteriores, do Novo Reino, é que se fica civilização egípcia bem cedo voltou-se para a pedra. sabendo que Neterquet e Dzozer foram a mesma E isso, ao que parece, teve sua definição mais nítida pessoa. As circunstâncias de sua ascensão ao poder nos são desconhecidas. Pode ter tido relação com uma espécie de aliança política entre a monarquia e o clero de Rá, já que a principal personalidade de seu governo, o arquiteto Im-Hotep, estava ligado ao clero de Rá, na condição de sumo-sacerdote. A importância desse personagem Im-Hotep parece no reinado de Dzozer. Segundo Ciro F. Cardoso, No início da III Dinastia, aperfeiçoou-se o método de trabalho em pedra, expandindose o seu uso – antes muito limitado – nas construções. Toda a fase que consideramos se caracteriza, no âmbito da produção de luxo, principalmente pelos vasos de pedra dura (grifo nosso), encontrados em grande número nas tumbas como oferendas; já a cerâmica, de grande beleza no pré-dinástico avançado, torna-se então meramente utilitária (idem). 78 ter sido muito grande. Estátuas de épocas tardias (não contemporâneas da III Dinastia), com seu nome gravado no pedestal (Fig. 99), podem indicar, 77 CASSIN et Allii. Op. cit. p. 218. 78 CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense: 1992. 9ª ed. p. 49. O Egito Antigo 75 Nesse particular, cabe um destaque muito especial Como o trabalho nesses materiais mais duros aos trabalhos de escultura, feitos para os faraós e era mais difícil, os mesmos eram entregues aos pessoas influentes. A mestria revelada em trabalhos cinzeladores mais aptos que, no geral, pertenciam como a própria estátua de Dzozer, hoje no Museu do às oficinas reais. As estátuas de particulares, como Cairo (Fig. 100), sugere que deviam ser executadas a de Ankhwa (Fig. 101) são bastante raras. Os por especialistas. Isso não significa, entretanto, que museus onde as mesmas se encontram fazem delas tais pessoas devam ser vistas como “artistas”, no verdadeiras relíquias. No site do British Museum, onde sentido atual do termo, reconhecidas como alguém de ela se encontra, é dito que se trata de uma obra, especial talento, cujo trabalho e atividade fossem vistos Possivelmente de Sakkara, da III Dinastia, por volta de 2650 a.C. Altura 66,5 cm (...). Nesta estátua um construtor de navios chamado Ankhwa é mostrado portando um enxó, seu instrumento de trabalho e indicativo de sua ocupação. Uma inscrição gravada nas roupas mostra-o em familiaridade com o rei. A qualidade da estátua reflete este status, o que é reforçado pelo seu material. O granito só era obtido com Fig.101 - O “armador“ Ankhwa autorização do rei, em pose oficial. o que leva a supor que foi feita nas oficinas reais.79 como fora do comum, autônomos, não subordinados a nenhuma outra esfera. No Egito Antigo os escultores, pintores, e até mesmo os arquitetos, eram vistos como funcionários e artífices de objetos cuja finalidade essencial era agradar, não aos vivos, mas aos mortos e aos deuses. O Egito era rodeado de pedreiras, das quais se tirava o calcário. Os que queriam, com pedras mais duras como o granito, o diorito e o quartzo, mostrar que eram diferentes, tinham que ir buscá-las em lugares muito quentes e com pouca água. Tinham que ser organizadas caravanas, com toda Fig.100 - O Rei Dzozer na pose oficial dos faraós. uma estrutura de suprimentos. O alto “custo” desses materiais mais “nobres” fazia com que o acesso aos mesmos fosse bastante restrito. 79 76 Arnoldo Walter Doberstein http://www.britishmuseum.org/explores/highligts/higligt_object A primeira das pirâmides as partes constitutivas do complexo serviam (de acordo com o esquema abaixo), respectivamente, para: O fato primordial do reinado de Dzozer foi a construção da chamada Pirâmide Escalonada, ou Pirâmide de Degraus (Fig. 102). Foi o primeiro edifício inteiramente de pedra levantado no Egito. Valeu ao seu arquiteto um tal renome que até mesmo foi divinizado em épocas tardias (ver atrás Fig.99 ). Fig.103 - Esquema do complexo da pirâmide de Dzozer, com as partes consecutivas para o cenário das aparições espetaculares da monarquia. Fig.102 - Vista área do conjunto da Pirâmide de Dzozer, em sakkara, com as demais construções erguidas à sua volta. A. Pirâmide original, erguida para Sanaquet, o primeiro faraó da III Dinastia. B. Pirâmide externa, com 63 m de altura, dedicada Barry Kemp é o autor de uma teoria que vê no a Dzozer. No seu interior existia uma rede de complexo da pirâmide um cenário para a aparição corredores e onze câmaras subterrâneas, destinadas da monarquia. A premissa da qual ele parte é que o a abrigar os restos mortais do faraó e da família real. poder faraônico tinha a necessidade de, quando se C. Plataforma do trono dual, onde possivelmente mostrasse em público, que fosse em grande estilo, era colocado o duplo trono, sob um dossel, de onde de forma teatral, cercado de magnificência. O pátio e o Faraó presidia o cerimonial da corrida entre os as outras partes do complexo, portanto, serviam para montículos. Esse cerimonial, chamado posteriormente um cenário, grandioso e espetacular, onde o rei, em de “abarcar o campo”, ou simplesmente “o campo”, pessoa, pudesse se apresentar diante de um público pode ter tido relação com o antigo rito “Sema Taui” seleto, formado pelos altos dignatários do seu reino. ou “União dos Dois Países”. Dentro da linha de raciocínio do autor, teríamos que O Egito Antigo 77 D. Os montículos territoriais. Tratava-se de um H. Pátio do Festival Sed. Essa festividade era par de montículos de pedra, com a forma de uma uma grande comemoração alusiva a um jubileu ferradura de cavalo. Serviam para simbolizar os limites correspondente aos 30 anos de governo de um faraó. territoriais que, provavelmente, representavam os Em épocas tardias existiram faraós que celebraram marcos fronteiriços sobre os quais o faraó governava. mais de um Festival Sed. Embora possa ter mudado Durante o “ritual de reivindicação do território” (ver de significado com o tempo, parece que o Festival adiante), o faraó percorria de pés descalços o espaço sempre conservou algo de sua essência primitiva, a de entre os dois montículos. revitalizar as energias mágicas do faraó. Esse último, E. Pátio da aparição do rei. Tratava-se de um primitivamente, era visto como um poder benfazejo vasto espaço descoberto, medindo 108 por 187 m que garantia a fertilidade da terra com a ocorrência (na montagem do desenho ao lado a proporção não das cheias. Mas tal energia, podia se desgastar com foi mantida) que o faraó percorria em suas aparições o tempo. O Festival Sed, então, era uma oportunidade oficiais, diante dos representantes dos poderes para esse poder ser revitalizado. Nessa ocasião o constituídos. faraó, em trajes especiais, percorria o perímetro do F. Pavilhão Preparatório. Segundo Barry Kemp, o autor dessa teoria do cenário para a aparição da pátio, ao longo do qual se levantavam os santuários das divindades provinciais e altares laterais (letra K). monarquia, era ali que o faraó se preparava para I. Portão principal, ou verdadeiro. Ao longo da suas aparições espetaculares. Era uma espécie de murada externa existiam outros treze portões, mas “camarim”, onde ele podia se arrumar e descansar, que eram “falsas” entradas. A proporção das portas, antes de sua entrada triunfal no grande pátio. em relação à altura e extensão do muro exterior, era G. Santuários das divindades provinciais. Supõe- relativamente acanhada, talvez para representar a se que tais santuários faziam parte do cenário para ideia de restrição e de dificuldade de acesso ao recinto o Festival Sed, que se realizava no pátio em frente. sagrado do poder. A mesma fórmula se usava nos Alguns entendem que esse número pode ter relação templos. com os treze dos quatorze pedaços de Osíris que J. Muro externo. Media 545 m de comprimento, seu irmão Seth espalhou pelo Egito e que a deusa 278 m de largura e 9,15 m de altura. Suas colunatas Isis recuperou. salientes, e suas reentrâncias, procuravam imitar a fachada do palácio real. 78 Arnoldo Walter Doberstein simbólico da unidade política em torno do faraó, no local onde era celebrado o ritual de renovação e reafirmação de seu poder mágico (Festival Sed). Fig.104 - Esquema do complexo da pirâmide de Dzozer, com as partes constitutivas para o cenário das aparições espetaculares da monarquia, e com as demais dependências para a função religiosa do local. Além desses elementos, fazia parte do conjunto o templo mortuário, (letra L do esquema da Fig.104). Era ali que se realizava o culto funerário aos mortos “enterrados” na pirâmide. Era próximo do templo funerário, que ficavam as entradas para as câmaras A Corrida “Sema-Tauí” No reforço de sua teoria da pirâmide como cenário para a aparição do rei, Barry Kemp analisa e compara um painel que se encontrava num corredor subterrâneo da pirâmide de Dzozer (Fig. 105), com outros dois registros anteriores. Chama a atenção que nos três registros aparece o faraó subterrâneas, no qual foram encontrados perto de numa “corrida entre os 40 mil vasos e pratos de alabastro, pórfiro, mármore, montículos” e em dois quartzo e cristal de rocha. Em alguns desses vasos deles no “trono dual”. No foram encontrados os nomes dos faraós da I e da primeiro painel (Figs. 105 II Dinastia. Foi numa dessas câmaras subterrâneas e 106), o faraó Dzozer, que foi encontrada a estátua do rei (Fig. 100) de com a coroa branca do tamanho natural, diante da qual eram feitos os rituais reino do Sul e portando para perpetuar a relação do Ka do faraó com sua o açoite e o cajado, morada terrestre, a pirâmide. Existia ainda, outro grande pátio, o chamado Pátio Norte (letra M da Fig. 104), cuja finalidade ainda não está bem esclarecida. A suposição é que pode ter feito parte daquela polaridade Norte-Sul, simbólica da unidade dos dois reinos na figura do faraó. Fariam parte dessa polaridade os dois pavilhões (letra N, para o Sul, e letra O, para o Norte). Junto com os santuários e altares dos deuses provinciais formavam o cenário aparece correndo entre Fig.105 - Painel Sema-Tauí, interior da pirâmide Dzozer. os montículos territoriais. Diante de sua cabeça o símbolo Serej e, mais acima, à direita, um falcão carregando o Ank, que era como um amuleto da vida eterna. Na sua frente aparece o deus Upuaut, na forma de um babuíno, carregando um estandarte também relacionado com a identificação da monarquia faraônica com Hórus, o deus falcão. O Egito Antigo 79 O segundo registro analisado por Kemp é um mesmo faraó, sentado num dossel. E, por último, o nome de Hórus do faraó Udimu (Fig. 108). detalhe esculpido na maça cerimonial do rei Narmer As funções das pirâmides (Fig. 107), da I Dinastia. O faraó foi representado sobre Entre as diversas questões que permanecem em uma plataforma, sentado num aberto a respeito das pirâmides em geral, e da de trono protegido por um dossel. Dzozer em particular, está aquela que diz respeito às Parece, segundo Kemp, que funções que tais monumentos funerários exerciam o ato corresponde a uma dentro da sociedade egípcia. Nesse terreno, que é o inspeção do espólio de uma guerra, cujos prisioneiros das interpretações, nada é definitivo. O que hoje vale, estão alinhados em meio aos montículos territoriais. Para amanhã pode estar “superado”, para depois voltar a o autor, isso mostra que esse ritual, que ele entende ser “resgatado”. Entretanto, existem certas hipóteses que se repetia no pátio Sul da pirâmide (plataforma do de trabalho que, ao nosso bom-senso, se apresentam trono dual, montículos com boas condições de serem acatadas pelo bom- territoriais) uma senso dos outros. Esse é o caso das funções política, cerimônia que outros ideológica, social, administrativa e religiosa das grandes faraós obras faraônicas, incluindo aí as pirâmides. Fig.106 - Painel do interior da pirâmide de Dzozer. era já tinham celebrado antes. O terceiro registro Fig.107 - Desenho da maça do rei Narmer. é o fragmento de um rótulo de madeira do faraó Udimu, também da I Dinastia, Fig.108 - Rótulo de madeira do faraó Udimu. 80 Por trás das coisas que ocorrem sempre tem qual mais de um fator que influencia no que acontece. aparece o ano do Correto. Isso é o que os mais antigos chamavam de seu reinado, o rei multiplicidade causal do fato histórico. É razoável. correndo os Só que também é razoável pensarmos que existem montículos territoriais alguns fatores que são, num dado momento, mais e, importantes que os outros. Esse é o caso da função Arnoldo Walter Doberstein mais no A função religiosa entre atrás, o religiosa das pirâmides. Embora ela servisse, A função social também, para outras coisas, a serventia principal era a de abrigar a múmia, as estátuas e os pertences dos Por muito tempo as pirâmides foram tomadas mortos que ali eram “enterrados”. Prova disso são as como sinônimo de desperdício. A expressão “obras estátuas e os quase 40 mil vasos votivos encontrados faraônicas” até hoje continua sendo usada mais ou no seu templo mortuário, onde era realizado, pelas menos nesse sentido. Mas tem também aqueles que, chamadas Fundações Piedosas, o culto aos mortos. talvez influenciados pelo contexto pós-crise dos anos 30 do século XX, em que o Estado foi colocado na A função política Mas, ao lado do seu viés religioso, também existia aquele que poderíamos chamar de “político”, ou de “simbólico”. É mais ou menos o que sustenta Barry Kemp na sua teoria do “cenário para a aparição do rei”. É mais ou menos, também, aquilo que Luis Fernando Veríssimo, ao ensejo da morte do papa função de gerar empregos através das obras públicas, advogam que a construção das pirâmides podia cumprir a função social de gerar empregos. No Egito existia uma força de trabalho que, durante quatro meses do ano, na estação das cheias, não tinha muito que fazer na terra. Trabalhar para o Estado, nesse período, podia representar uma oportunidade para os camponeses complementarem seus próprios ganhos. João Paulo II, disse da Igreja, ao afirmar que O poder da Igreja é em grande parte material, mas se fosse só isso ela já teria seguido o caminho de outros impérios para o esquecimento. Tem o poder emocional da devoção dos seus súditos e o domínio dos símbolos e trâmites que regem esta fé, o poder da encantação (...) A Igreja pode suprir seus fiéis com doutrinação e uma idéia organizada de sua religião e da sua hierarquia centralizada, mas também pode oferecer o que toda a corte oferece aos seus súditos, um teatro do poder (grifo nosso). As cerimônias coreografadas, as roupas, as pompas, a encantação pelo espetáculo humano tanto quanto pelo mistério.80 A função ideológica Seria aquela função de, durante sua construção, passar-se a ideia de que ali se trabalhava para levantar um monumento a um poder sobre-humano que quase se equiparava ao dos deuses. Essa ideologia do rei divino talvez não contasse, no Egito Antigo, com outro meio mais eficaz do que aquele de trazer os camponeses para um formidável canteiro de obras e ali fazê-los viver bem de perto a ideologia e 80 VERÍSSIMO, Luis Fernando. Coisas da corte. In: ZERO HORA, 7/4/2005, p. 3. todo o aparato magnificente do poder. O Egito Antigo 81 e de Dzozer. Isso tem levado à suposição que A função administrativa Sequenquete foi o sucessor de Dzozer e que não A partir dos estudos de Max Weber, e dos weberianos em funcionamento geral, das sobre a organizações dinâmica e burocráticas, começaram a ser formuladas hipóteses sobre uma possível característica burocratizante da administração do Estado faraônico. Nesse sentido pode ser cogitado que, com a construção das pirâmides, as elites burocráticas e administrativas poderiam aprimorar seus conhecimentos técnicos e científicos (cálculos, geometria, resistência dos materiais, etc.). Assim como aperfeiçoar suas técnicas de gerenciamento e administração de recursos humanos e materiais. A construção de uma pirâmide representava a oportunidade de gerenciamento de teria terminado sua pirâmide devido ao curto período de governo (6 anos). Khaba A descoberta da pirâmide de Sequenquete leva a se supor, por comparação, que outra pirâmide escalonada, também inacabada, situada mais ao Sul de Sakkara, também tenha sido de um faraó pertencente a III Dinastia. Esse faraó, que usava o nome de Khaba, também teria reinado por um espaço de tempo bastante curto. Seu sucessor seria um rei de nome Nekare, do qual pouca coisa que se sabe, até agora, como ter sido o penúltimo rei da dinastia. um grande orçamento que fazia aumentar em muito o poder e a influência das elites burocráticas ( no caso o clero de Rá) do Estado egípcio. Huni O último rei da III Dinastia é conhecido por um número mais alentado de fontes, a começar pela sua Sek-hen-Khete Em 1951, própria pirâmide, a denominada Pirâmide Escalonada nas proximidades da pirâmide escalonada, foram descobertos os restos de uma pirâmide inacabada, também escalonada, cujo construtor usava o nome de Sequenquete. Esse mesmo nome também foi encontrado nas rochas da península do Sinai, junto com os nomes de Sanaquet 82 Arnoldo Walter Doberstein de Meidum (Fig. 109), que teria sido iniciada por ele, Huni, e terminada pelo primeiro rei da IV Dinastia, o faraó Snofru. Huni também é conhecido por um fragmento de granito encontrado em Elefantina, o que tem levado a supor-se que a fortificação dessa fronteira meridional tenha começado no seu reinado. faraó que, por muito tempo foram apresentadas como pertencendo ao faraó Huni. Numa das salas principais, inclusive, as duas peças eram colocadas lado a lado, como se fizessem parte de um mesmo conjunto (Fig. 110), pertencente ao último rei da III Dinastia. Pois bem, enquanto o sarcófago continua sendo estimado como tendo pertencido a Huni, a estimativa para o modelo da cabeça sofreu uma reavaliação. Ultimamente passou a ser apresentado como sendo Fig.109 -.Vista aérea da pirâmide de Huni, Último rei da III Dinastia, na necrópole de Sakkara, situada no norte do Egito uma representação do faraó Queóps (ver a imagem mais adiante, na Fig. 120). No universo de incertezas: é de Huni ou de Queóps? A egiptologia, no âmbito da História Antiga Oriental, talvez seja a área da qual mais se tenha Nas “Instruções para Kagemi” um “ethos” de sobriedade e moderação informações e dados confiáveis. Mas, mesmo Um esquema de interpretação da história que assim, as dúvidas e incertezas são inúmeras, mesmo prosperou no século XIX, e que teve largo curso até em coisas essenciais como a datação ou identificação meados do século XX81, foi aquele que atribuía ao de uma peça. Em razão disso, ao catalogar suas caráter, ou ethos, de um povo, um papel fundamental peças, os museus muitas vezes apenas “estimam” o nos acontecimentos históricos de uma sociedade. Esse período e a identificação de seus acervos. Às vezes, esquema interpretativo foi meio que desterrado na inclusive, os especialistas dessas instituições alteram segunda metade do século XX, quando o esquema suas avaliações, com o que uma peça, que por de interpretação marxista da história predominou. Hoje, muito tempo, foi apresentada com uma identificação, com o recuo desse último, pode ser que aquele outro, passa a ser apresentada com outra identidade. Uma cabeça de faraó, guardada no Brooklin Museum, de Nova York, passou por uma dessas “reavaliações”. Ali estão guardados um sarcófago e uma caça de 81 Dois casos típicos da aplicação desse esquema interpretativo no séc. XX foram Menendez Pidal, na Espanha, em sua obra História da España, e Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil. No seu já clássico Raízes do Brasil, este último autor apresenta o povo brasileiro como o exemplo típico do “homem cordial”. O Egito Antigo 83 e que dizem respeito às vantagens que o jovem podia auferir se praticasse a sobriedade e a moderação, tanto nos seus hábitos como nas suas atitudes. O interessante dessa parte conservada do Papiro Prisse é que, além da justa contenção, também se acena para as vantagens de uma espécie de corporativismo dirigente (“contra quem se apartou do caminho se afiam os cutelos”), assim como para uma espécie de prevenção contra as disputas dentro Fig.110 -.Sala do Brooklin Museum, Com o sarcófago e com a cabeça do rei que era apresentada como a de Huni. baseado no peso de uma suposta “personalidade coletiva”, volte a aparecer com força. Aplicado ao Egito, esse esquema interpretativo dava como sendo uma das marcas da personalidade coletiva dos egípcios, além da amistosidade e da religiosidade, a sobriedade e a moderação, especialmente no Reino Antigo. Um texto literário do reinado de Huni, conhecido como Instruções para Kagemi, que um vizir de Huni (por alguns identificado como o sábio Kaires) escreveu para o filho, parece que ilustra essa interpretação. Trata-se da transcrição de uma série de instruções contidas no chamado Papiro Prisse, 82 82 O Papiro Prisse, cujo nome provém de seu descobridor, o egiptólogo Émile Prisse d’Avennes (1807-1879), que recebeu a incumbência de recolher peças do Antigo Egito, quando a França estava constituindo seus acervos de materiais egípcios, tanto para sua Biblioteca Nacional (onde o documento está depositado), como para o Museu do Louvre. O papiro está escrito em hierático e seu conteúdo consta de dois textos literários, as “Instruções para Kagemi” e os “Preceitos de Path-Hotep”, um gênero literário que consistia numa série de ensinamentos que, se acredita, eram usados no sistema de aprendizado da escrita nas escolas 84 Arnoldo Walter Doberstein do grupo dirigente (“guarda-te de provocar uma oposição, pois não se sabe o que virá”) O homem prudente prospera e o moderado é aclamado. A tenda se abre ao silencioso e amplo é o espaço de contentamento. Não fales (demasiado). Contra quem se apartou do caminho se afiam os cutelos, ninguém avança expeditamente se não é o seu tempo. Se te sentas com muita gente, abstenha-te do alimento que amas; a renúncia dura só um breve instante, mas a gula é desprezível e é apontada com o dedo. Uma taça de água sacia a sede e um bocado de legume robustece o coração. Um único prato substitui um banquete e um pequeno bocado é melhor que muito. Quem tem o ventre ávido torna-se desprezível; o tempo passa e ele é esquecido por aqueles em cuja casa seu ventre se comportou vorazmente. Se te sentas com um glutão, coma somente depois dele ter satisfeito seu apetite; se bebes com um bêbado, só aceita a bebida quando ele haja satisfeito seu desejo. Não reclames pela carne em presença de um glutão, aceita o que te é dado. Ao homem irreprovável, no que diz respeito à comida, ninguém lhe reprovará; porém, em relação ao glutão, o rosto se contraria. Se alguém é complacente com ele é porque é um perverso com a sua própria mãe. Deixa com que tua fama cresça. Então, sem que tenhas de escribas. Mediante a absorção de tais ensinamentos é que se supõe que os padrões culturais das camadas dirigentes eram passadas para os futuros membros dos quadros administrativos do Estado faraônico. social do Estado faraônico. Teria sido uma época que abrir a boca, todos recorrerão a ti. Não presumas de tua força em meio a teus coetâneos. Guarda-te de provocar uma oposição, pois não se sabe o que virá, e o que fazem os deuses, quando castigam. 83 em que as classes subordinadas, sentindo-se mais protegidas e amparadas pelas elites dirigentes, não chegavam a se constituir num foco de rebeldia contra a ordem estabelecida. Teria sido uma época Fig.111 - O Papiro Prisse em seu estado atual. A IV DINASTIA em que as elites dirigentes teriam levado a sério os preceitos do maat. O maat era um tipo de ideal de O período de aproximadamente 100 anos, que justiça que, acreditava-se, tinha sido outorgado aos esteve situado, grosso modo, entre os anos 2600 homens pelos deuses, como garantia para o perfeito e 2500 a.C., foi aquele em que o Estado faraônico funcionamento do mundo. Todos a quem fora dado esteve governado pelos faraós da IV Dinastia. Esse a capacidade de sentir e pensar (os faraós e as período é considerado por muitos como o apogeu elites mais do que ninguém) deveriam se esforçar do Reino Antigo e da própria civilização egípcia. para atingir-lo. Para tanto exigia-se autodomínio, Esse critério de classificar certos períodos de uma controle das emoções, serenidade nas ações e um civilização como sendo de seu apogeu deve-se, alto sentido de responsabilidade social. Seria aquilo em grande parte, aos estudos do historiador inglês que aparece, por exemplo, nas Instruções para Arnold Toynbee (ver atrás, p. ??-??). O pressuposto Kagemi. A interpretação que se faz é que tudo isso, desse esquema de interpretação é que o apogeu na IV Dinastia, teria sido levado mais a sério do que (ou apogeus) de uma civilização pode ser medido: nos outros períodos.84 a) pelo grau de estabilidade social e política; b) De acordo com tal esquema interpretativo, a IV pela homogeneidade e originalidade de suas Dinastia também teria sido o período de máximo manifestações culturais; c) e, sobretudo, pela reconhecimento do poder político dos faraós. Teria amplitude de suas realizações, tanto no campo da sido uma época que pouco se duvidava de sua cultura material, como no da cultura imaterial. Segundo tal interpretação, a IV propalada origem divina. Uma época que pouco se Dinastia representou o momento de máxima estabilidade 84 83 Extraído de PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Editora Istmo, 1991, p. 36. É bom lembrar que esse tipo de avaliação pode ser fortemente questionada, tanto teórica, como factualmente. Existem indícios (campanha difamatória contra Queóps, testemunho de Miquerinos que não ficou “devendo” nada aos seus trabalhadores, a obesidade presente nas estátuas dos escribas), que textos do tipo Instruções para Kagemi tinham muito de retórica. O Egito Antigo 85 questionava sobre sua autoridade moral. Em que ter sido uma época de fé robusta e generalizada.86 veleidades individuais de bom grado eram sufocadas Nessas explicações o Egito era apresentado como em favor da glória e esplendor do poder instituído. centro do mundo, morada dos deuses e berço da Sentenças do tipo “o homem prudente prospera civilização. Daí a soberba etnocêntrica com que e o moderado é aclamado. Não fales em demasia rejeitavam empréstimos culturais de fora, mantendo a (...) Ninguém avança expeditamente se não é o homogeneidade e a invulnerabilidade de sua cultura. seu tempo” das “Instruções para Kagemi” seriam o Mas o grande argumento dessa interpretação de atestado dessa assertiva.85 Outro forte argumento que o apogeu civilizatório do Egito faraônico teria sido a favor desse suposto apogeu do poder político na IV Dinastia, seria a amplitude das realizações, dos faraós da IV Dinastia foi a sua capacidade de a qual poderia ser medida, principalmente, pela concentrar em torno de sua pirâmide os túmulos de construção das pirâmides. Elas seriam o testemunho um grande número de governadores provinciais. inequívoco que o Egito Antigo, nesse período, Nessa mesma orientação, o período da IV Dinastia conheceu seu período de máxima prosperidade. é apresentado por muitos como sendo uma época O número, a ordem de sucessão e a duração dos de forte consenso em torno de certos pressupostos mandatos dos faraós da IV Dinastia são bastante básicos que serviriam para regular as relações entre as controvertidos. A Lista de Manethón não confere com pessoas. Verdades particulares não se antepunham o Papiro de Turim. Em razão disso, autores como às verdades estabelecidas para a coletividade. Cassin, Bottéro e Vercoutter, Padrões de comportamento, princípios morais, “a ordem e a duração de mandatos tal como se pode procedimentos éticos eram tomados e seguidos como estabelecer, pelos monumentos”, resultando disso a certos, sem maiores questionamentos. Teria sido, seguinte lista: 87 preferem apresentar • Snofru (24 anos de reinado, segundo o Papiro enfim, uma época em que a religião teria cumprido de Turim). adequadamente a sua função de explicar o mundo, • Queóps ou Khufu (23 anos de reinado, formulando mitos relativamente convincentes. Daí segundo o Papiro de Turim). 86 85 De novo é bom lembrar que os fatos, muitas vezes, podem desautorizar tal interpretação. Convém recordar, por exemplo, que contra o faraó Queóps, existiu uma verdadeira campanha de difamação registrada por Heródoto. Essa campanha de difamação parece que teve sua origem na própria época do rei. 86 Arnoldo Walter Doberstein Alguns chegam a argumentar que, só com uma fé muito grande e generalizada da população, é que as pirâmides poderiam ser construídas. 87 CASSIN, E. et Allii. Los imperios del Antiguo Oriente. México: Siglo veinteuno, 1980, p. 227. • Didufri (oito anos de reinado, segundo o Papiro Fragmento do Museu do Cairo de Turim). • Snofru, prata, lapislazúli. 88 Segundo Censo.89 3 • Quéfren ou Kafra (com duração de governo Codos.90 desconhecida). • Santuário Meridional. Santuário Setentrional. • Miquerinos ou Menkaura (de acordo com Domínio das Estelas.91 Fabricar estátua Hórus Manethón, com 18 anos de reinado). Nebmaat.92 3 Codos e 2 palmos. • Scepceskaf (omitido no Papiro de Turim). Snofru Fragmento da Pedra de Palermo • Fabricar dois barcos “Os filhos do Rei do Baixo Egito” 93 5º censo. Como sucede frequentemente, não se sabe bem ao certo porque aconteceu a passagem da III para a IV • Fabricar o barco “Alabanza dos Dois Países”, Dinastia. A fonte de onde essa informação procedeu 100 codos, madeira meru (?) mais 60 barcos de originalmente, a Lista de Manethón, não apresenta nenhuma explicação. Cogita-se, pois, que ele era um filho “secundário” de Huni, com uma esposa também “secundária” de nome Hetereferes. Graças à Pedra de Palermo, o seu reinado é o mais bem conhecido da IV Dinastia. Os especialistas costumam reunir seus fragmentos (uns de Palermo, outros do Museu do Cairo), como Federico Lara Peinado, resultando no que se conhece por Os Anais de Snofru: 88 PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Istmo, 1991, p. 37-38 e 225-226. 89 O lapislazúli, ou pedra-azul (de lápis (pedra) em persa, e lazúli (azul, em árabe), era uma pedra muito usada em objetos ornamentais. Possivelmente essa parte dos Anais refere-se a expedições reais até a Península do Sinai (PEINADO, Op. cit. p. 225). 90 Essa parte do fragmento, que está no Museu do Cairo, deve ser do início do governo, quando foi realizado o segundo censo. Os censos eram controles que se fazia para fazer frente às despesas do Estado, especialmente nas grandes obras (PEINADO, Op.cit. p. 225). 91 Trata-se, provavelmente, da construção do santuário Senut, onde eram depositadas estelas decoradas com serpentes. A referência a um santuário Meridional (Sul) e outro Setentrional (Norte) talvez se refira a 2 santuários no mesmo local, para simbolizar a união dos 2 reinos. 92 Os verbos eram usados só no infinitivo. Essa Estátua Hórus Nebmaat se tratava de uma estátua do próprio rei. Hórus Nebmaat era o primeiro dos cinco nomes da titulatura dos faraós, no qual ele se apresentava como Filho de Hórus. (PEINADO, Op. cit.p.225). 93 Colocar um cognome nas coisas fazia parte da tradição cultural no Egito Antigo. Assim como as pirâmides, os palácios e os templos, as embarcações também eram “batizadas” com um nome próprio (PEINADO, Op. cit. p. 225). O Egito Antigo 87 “160 (?) do rei”. 94 prisioneiros: 7.000. Arrasar o país dos nubios. Levar 95 e nela gravar os deuses. Gado maior e menor: 200.000. 98 Trazer do território dos líbios os prisioneiros: 1.100. Gado maior: 13.100. Construir a fortaleza do Alto e Baixo Egito “Os • Construir estátua Hórus Nebmaat. Arrasar a domínios de Snofru”. Aportar 40 barcos carregados fortaleza Irut. de pinho. 96 2 Codos, 2 dedos. Prontificar uma imagem e nela colocar o nome • Fazer 35 grandes estabelecimentos agrícolas. da pessoa, no caso do faraó Snofru, significava que Receber 122 animais, Fabricar barco “Alabanza dos aquela pedra deixava de ser uma pedra, para ser a dois Países”, 100 codos, madeira de pinho, mais 2 própria pessoa (ver atrás, nota ). Isso aparece numa barcos, 100 codos, madeira menu. 7º censo. 5 Codos. das poucas estátuas de Snofru que sobreviveram, • Erguer a “Coroa Branca de Snofru sobre o um colosso de 7 m de altura, hoje Porto Meridional e a Coroa Vermelha de Snofru sobre no Museu do Cairo (Fig. 112). o Porto Setentrional. Fabricar as portas do Pavilhão real, madeira de pinho. 8º censo. 2 codos, 2 palmos. Fig.113 (acima) 112 (ao lado) -.Estátua de Snofru. Outro Fragmento do Museu do Cairo Na presilha do cinto que remata o saiote usado pelo • Décimo censo. Gado maior e menor. Dois faraó, foi colocado o seu nome palmos. em hieróglifo (Fig. 113). Esse • Entronização do rei, Quarto da carreira do touro Apis. 97 procedimento é o que se chamava de “gravar os Construir em ouro estátua Hórus Nebmaat deuses”. Apesar de, nos seus Anais, nada constar sobre a sua atividade construtora, essa última foi uma 94 Alguns autores tomam esse registro da construção de barcos como um indicativo de um forte avanço nas relações comerciais no reinado de Snofru. das mais extraordinárias de seu reinado. A ele são 95 atribuídas a construção de nada menos do que três Aqueles que tomam o Egito como um “Estado Escravista”, geralmente tomam este registro como testemunho da natureza escravagista do modo de produção egípcio. pirâmides. A primeira delas teria sido a conclusão da 96 Alguns autores entendem que este registro (aportar) refere-se a uma frota de navios de alto mar, destinada a expedições marítimas ao Líbano, para conseguir madeira de cedro e pinho para as construções. 97 Festival ao touro Apis (encarnação de Rá), o animal sagrado de Mênfis. 88 Arnoldo Walter Doberstein 98 “Gravar os deuses” queria dizer gravar sinais gráficos em algum monumento. No Egito Antigo a escrita era considerada divina, substituia alguma coisa. Pirâmide Escalonada, de Meidum (ver Fig. 109) que a) o desaparecimento do grande pátio cerimonial; seu antecessor e presumível pai, Huni, começou e b) o desaparecimento das capelas, altares e não pode concluir. pátios, destinados ao Festival Sed; Depois disso ele fez levantar mais duas, em c) no lugar desses elementos, um destaque muito Dahshur, a 7 Km ao Sul de Sakkara. A primeira especial para o templo funerário, destinado ao culto delas é a chamada Pirâmide Romboidal ou de dos mortos. Para Barry J. Kemp, isso tudo representa Dupla Inclinação (vide mapa Fig. 114). Essa dupla uma nova imagem da monarquia: inclinação pode ter resultado de uma alteração do Já não existe o poder puro de um governante supremo do território. Agora o monarca está associado como manifestação do deus sol (o título de Filho de Ra aparece nesta época). A arquitetura transmitia essa nova conceitualização do poder e representava maior atenção ao poder do sol como força suprema. 99 projeto original, para a pirâmide não ficar muito alta A terceira pirâmide levantada por Snofru, também em Dashur, é a Pirâmide Vermelha. Tem 99 m de altura (dois a mais que a Romboidal), e uma base de 213 m. Em comparação com as posteriores ela parece mais “achatada”. As Fundações Piedosas Entre o muro externo da Pirâmide Romboidal e o seu templo funerário existiram habitações em Fig.114 -.Mapa com a localização das principais pirâmides do Egito. que moravam pessoas cuja atividade era o culto às estátuas do faraó, familiares e antepassados. Viviam e com pouca base para sustentar o peso. Certos de uma espécie de fundo criado pela doação de autores ressaltam as outras alterações na concepção geral do conjunto como: 99 KEMP, Barry J. El antiguo Egipto, anatomia de una civilización. Barcelona: Crítica,1998, p. 80. O Egito Antigo 89 uma propriedade, com a correspondente isenção de impostos. Ou então por um contrato que assegurava um rendimento compartilhado, para o suprimento de objetos de culto vindos de propriedades do rei. Nas paredes do templo eram representados portadores de oferendas, com os locais de onde provinham. Isso permite que se projete um mapa desses locais. Barry Kemp, a partir disso, elaborou um esquema da distribuição geográfica dos domínios que a Fundação Piedosa da pirâmide de Snofru detinha o usufruto. De acordo com o mesmo autor, não era sempre que se registrava o tamanho de tais parcelas de terra. Quando se fazia o registro, dá para se perceber que a área das mesmas variava de 0,5 ha. até 28 ha. Os produtos oferecidos eram, fundamentalmente, pães, cerveja, cereais, frutos, carnes e aves. devia 100 se Como o culto às estátuas manter perpetuamente, tais fundos também se tornavam perpétuos. Com o passar do tempo essa prática se estendeu e se ampliou para os diversos locais e escalões da sociedade egípcia, na forma de cultos funerários privados. Segundo Fig.115 - Mapa das Fundações Piedosas da Pirâmide Romboidal. Kemp, e outros especialistas, essa foi uma das razões da diminuição do poder dos faraós ao final do Antigo Reino. 100 Ibidem, p. 122. 90 Arnoldo Walter Doberstein No mobiliário da rainha, o requinte com moderação Num dos complexos da pirâmide de Snofru deve ter sido sepultada a rainha Heteferes, embora a sua múmia e tesouros nunca fossem encontrados. Em 1925, quando das escavações na pirâmide de Queóps, a equipe do arqueólogo George Reisner encontrou peças do mobiliário que, segundo o próprio Reisner, teriam sido trazidos da tumba da rainha, em Dahshur, depois que a mesma, ainda no reinado de Queóps, sucessor e filho de Snofru e Heteferes, foi violada e saqueada, ocasião em que a múmia e as joias da rainha desapareceram. Na versão constava ainda que teria sido feito sem o conhecimento de Queóps, porque os responsáveis pela guarda do túmulo original temiam o castigo por não terem cuidado bem do local. Peripécias de lado, o que restou, enfim, foi um conjunto de peças do mobiliário da rainha que, pacientemente restauradas e replicadas pela equipe do Dr. Reisner, se tornaram um dos ícones no Museu de Belas Artes de Boston, nos E.U.A. As originais estão no Museu do Cairo. As peças mais valorizadas são as réplicas da cama, uma cadeira folhada a ouro e o cofre canópico (Fig. 116). Ao comentar sobre as peças desse mobiliário “cemiterial” da rainha Heteferes, Jon Manchip White, autor de um dos melhores e mais completos livros sobre a vida cotidiana no Egito Antigo, traduzidos para o português, sustentou que: em contraste com os camponeses, asiáticos ou O habitantes das areias”. 102 O que não se pode dizer é que, na concepção ornamental dos dois mobililiários haja a mesma correspondência. Nos móveis de Tutancamon (do Novo Reino) as linhas são mais sinuosas, os detalhes mais abundantes, as cores mais contundentes (Fig. 117). São de uma concepção, digamos, mais “barroca”. Já nos móveis de Heteferes as linhas são Fig.116 -.Reconstituição do quarto da Rainha Heteferes. desenho básico (grifo nosso) do mobiliário egípcio originou-se no Velho Reino e não foi, depois disso, grandemente alterado (...) é claro que, como a forma do corpo humano permanece constante, o número de variações que um artista marceneiro pode introduzir nos móveis é necessariamente limitado. Todavia, há pouca diferença entre as cadeiras e camas encontradas no túmulo (na verdade não era exatamente um túmulo, mas um tipo de fossa, ou poço, de vinte e cinco metros de profundidade) de Heteferes e de Tutancamon, enterrado mais de mil anos depois. 101 No que diz respeito ao desenho básico, o professor da Universidade de Cambridge tem toda a razão. Assim como quanto aos motivos ornamentais: imagens de falcão, lotus, pés em formato de garras de leão “talvez para conceder ao seu ocupante a força e o espírito do animal”. Assim como no significado do mobiliário, “pois dormir numa cama era a marca de uma pessoa civilizada, 101 93. WHITE, Jon Manchip. O Egito antigo. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, p. mais retas, os detalhes mais discretos e as cores puxando para o neutro. Uma conceção, digamos, mais “clássica”. Ou aquilo que os americanos chamam (“limpo”, de clean “despojado”). Enfim, é um conjunto de peças de um apurado Fig.117 - Trono do FaraóTutancamon. requinte, porém um requinte com comedimento e parcimônia. Esse requinte com comedimento e parcimônia seria uma das marcas distintivas do Antigo Reino. Seria um traço cultural presente também na literatura (veja-se As Instruções para Kagemi), na estatuária, joias, vestuário, etc. Com o que, aliás, o próprio White parece concordar. Ao se referir ao vestuário egípcio, ele assevera que 102 Ibidem, p. 93. O Egito Antigo 91 nos tempos mais simples (grifo nosso) do Velho Reino, o rei era apresentado com o tronco nu até a cintura: um rei sempre pronto para o trabalho, desdenhando as rendas e os adornos afeminados. Até nos mais sofisticados (idem) tempos do Novo Reino, o corpo real aparece sempre envolto numa túnica muito simples.103 Queóps ou Khufu: o faraó da Grande Pirâmide realimentar) a bruma de mistério que envolve seu nome, estátuas com sua imagem são uma raridade. Até a bem pouco tempo, os círculos especializados só admitiam a existência de uma única estátua de Queóps. Trata-se de uma peça minúscula, de não mais de 7,5 cm de altura, feita em marfim, e encontrada por Flinders Petrie quando de suas escavações em Abydos (Fig.119). Encontra-se Em termos de fontes históricas, o governo do rei atualmente no Museu do Cairo e se constitui, justamente Queóps é quase que um paradoxo. De um lado um dos pela sua raridade, numa das mais eloquentes e impressionantes vestígios que alguém mais preciosas peças da já deixou de sua passagem aqui na terra: uma pirâmide coleção. de 144 m de altura (hoje está com 138) com uma base Essa raridade de imagens em quadrado com do construtor da maior das 230 m em cada um pirâmides, por outro lado, de seus lados (Fig. aguça cada vez mais a 118). “cobiça” dos museus para ter em suas coleções uma peça Mas, por outro desse reinado. E aí podem lado, quase que uma acontecer coisas, no mínimo, indigência estranhas. É o que parece ter em outras fontes referenciais. ocorrido com os curadores Na Pedra de Palermo, Fig.118 - Vista aérea das três grandes pirâmides de Gisé. muito mutilada a partir do reinado de Snofru, seu nome e os acontecimentos de seu governo não aparecem. Na sua grande pirâmide não aparecem registros de seu governo e de sua pessoa. E, para completar (e 103 Ibidem, p. 83. 92 Arnoldo Walter Doberstein Fig.119 - Estatueta de Queóps. do Brooklin Museum de Nova York. Recentemente os mesmos passaram a divulgar que, depois de uma reavaliação, uma cabeça faraônica, que até então tinha sido apresentada como uma “provável representação de Uni” (ver Fig. 110), na realidade “pode ser vista como uma cabeça de Queóps” (Fig. 120). A referida “reavaliação” parte do suposto que o tamanho dessa cabeça (aproximadamente 1 m) poderia fazer parte de um colosso de Queóps, de 7 m de altura. (os egípcios seguiam a proporção dos 7 quadrados, 1 para a cabeça, 3 para o tórax e 3 para as pernas). Argumentação, de resto, muito longe de ser Fig.120 - Cabeça de huni transformada em Queóps. convincente, pelo que as opiniões resultam divididas. Disso tudo, resulta que os registros mais completos à respeito de Queóps ainda são aqueles de Heródoto, os quais, por sinal, não lhe são nada favoráveis. O seu testemunho foi que 124. Até a época de Rampsinitos (...) (talvez Heródoto estivesse se referindo a Ramsés II, com o que a coisa já começa errada, pois Queóps não poderia ter sucedido Ramsés II, um faraó da XIX Dinastia) disseram-me os sacerdotes, o Egito era bem governado sob todos os aspectos e prosperou grandemente. Mas Queóps, seu sucessor, levou o povo à miséria extrema. Primeiro ele fechou todos os templos, proibindo neles a realização de sacrifícios. Depois Queóps forçou todos os egípcios a trabalhar para ele. Uns foram incumbidos de trazer blocos de pedra das pedreiras situadas nas montanhas da Arábia até o Nilo. Tais pedras eram levadas para a outra margem do rio em barcos. Outros egípcios tinham o encargo de desembarcálas e arrastá-las até as montanhas chamadas líbias. Grupos de cem mil homens trabalhavam continuamente, cada grupo durante três meses. Foram necessários dez anos de opressão do povo para a construção da estrada por onde os blocos de pedra eram arrastados. A construção dessa estrada, em minha opinião, constituía uma obra não muito inferior à ereção da pirâmide. A estrada tem cinco estádios de extensão, dez braças de largura e uma elevação de oito braças em sua parte mais alta (...) (estas medidas equivaleriam, respectivamente, a aproximadamente 887, 17 e 14 m) (...) É toda feita de pedras polidas sobre as quais foram gravadas figuras. Os dez anos mencionados foram gastos na construção dessa estrada e dos compartimentos subterrâneos na colina onde fica a pirâmide. O rei a construiu para ser o seu próprio túmulo e a cercou de água proveniente do Nilo através de um canal, de modo a constituir uma ilha (...) Nas obras da própria pirâmide foram consumidos vinte anos (grifo nosso). Sua base é quadrada e cada um de seus lados mede oito pletros (...) (corresponderia a 236,80 m) (...) A altura é igual à extensão de cada lado (...) (no tocante à altura a avaliação de Heródoto é uma medida sensivelmente superior a real, que chegava a 144 m de altura) (...) Toda ela é feita de blocos de pedra polida, rejuntados com a maior precisão. Nenhum dos blocos mede menos de trinta pés de comprimento (...) (ou seja, 8,88 m, o que é uma outra imprecisão de Heródoto). 125. A pirâmide foi construída assim: inicialmente foi feita uma sucessão de plataformas, que algumas pessoas chamam de Króssai e outras de Bromidas (...) (Króssai corresponde a “em forma de arquibancada” e Bromida “em forma de altar) (...)_ Depois de estruturada a pirâmide, os blocos de pedra restantes subiam com a ajuda de um dispositivo feito de pedaços curtos de madeira. Eles eram levados inicialmente do solo até a primeira plataforma. Chegando lá, o bloco era colocado em outro dispositivo construído na primeira plataforma. Dessa primeira plataforma ele era levado até a segunda e colocado em outro dispositivo, pois havia tantos dispositivos quantas eram as plataformas. Ou então um mesmo dispositivo, único e fácil de transportar, era instalado sucessivamente em cada uma das demais plataformas, depois dos blocos serem retirados dele na plataforma anterior (devo relatar a operação das duas maneiras, como ouvi). O topo da pirâmide foi terminado primeiro. Em seguida as plataformas abaixo e, finalmente, a base e a parte inferior. Há uma inscrição em caracteres egípcios na pirâmide registrando quanto foi dispendido em rábanos silvestres, cebolas e alhos para os trabalhadores (este parágrafo constitui uma interpretação errônea de Heródoto, conforme PEINADO, op. cit. p. 226) (...) Até onde possa lembrar com precisão o O Egito Antigo 93 intérprete, quando leu para mim as palavras da inscrição, disse que a quantia paga se elevou a mil e seiscentos talentos de prata (...) (Segundo o mesmo PEINADO isso “equivaleria a 41.472 kg de prata”). 104 Mas não ficava apenas nisso. Tinha o resto do conjunto. A pirâmide era uma das partes de um conjunto muito maior, constituído de quatro elementos A Grande Pirâmide e suas partes constitutivas A grande obra do reinado de Queóps, básicos: o templo do vale, a rampa elevada, o templo funerário e a pirâmide propriamente dita. Modelo esse, inclusive, que serviu de base para as pirâmides indubitavelmente, foi a sua pirâmide. A maior posteriores. Os elementos constitutivos de todas. Originalmente, quando a camada de conjunto eram, respectivamente, desse revestimento ainda existia, tinha 144 m de altura. A. O Templo do Vale, ligado ao rio por um canal, Com 227 m em cada lado do quadrado de sua base, por onde chegavam os corpos dos mortos que eram a área total perfazia 51.000 m², ou seja, mais de 5 para ali transportados nos barcos funerários. hectares. Calcula-se que nela estão alinhados mais de 2.300.000 blocos de pedra calcárea, pesando em média 2.000 kg, mas tendo alguns deles, de granito, com mais de 15.000 kg. B. A Rampa Elevada, geralmente coberta, que ligava o Templo do Vale com o Templo Funerário. C. O Templo Funerário, onde se fazia o culto aos mortos, através de oferendas depositadas diante do grupo de estátuas que ali eram guardadas para este fim. D. A Pirâmide propriamente dita, destinada a abrigar a múmia e os pertences do faraó. Simbolizava o próprio sol, com o qual o faraó, depois de morto, devia se fundir. A enorme desproporção entre o seu tamanho e a do templo de recepção expressava a própria desproporção entre o poder do deus sol e do poder terreno exercido pelo faraó. E. A Cova do Barco, onde foram depositados pedaços de madeira que eram destinados à Fig.121 - As pirâmides Gizé, com suas respectivas partes constitutivas. 104 Texto e comentários (em negrito) tirados de PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Ediciónes Istmo, p. 38-39 e 226. 94 Arnoldo Walter Doberstein montagem de um barco no qual, se acreditava, o espírito do morto devia fazer a viagem do Oriente para o Ocidente (reino de Osíris) e vice-versa. G. O Cemitério das Mastabas, que era o local F. As Pirâmides Menores, em número de três, onde se faziam enterrar os grandes dignatários destinadas a familiares do rei, uma das quais deveria do Estado faraônico. O seu grande número é visto servir para receber os restos mortais e os pertences como a evidência do grau de poder político que a da rainha. monarquia faraônica desfrutava nesse período. A Fig.122 - Reconstituição do mais provável método de construção das pirâmides O Egito Antigo 95 Questão da Construção de pedra das formações rochosas; b) escopos, martelos, serras e polidores manuais para dar a forma desejada aos blocos de pedra; O tamanho da pirâmide de Queóps e a perfeição c) balsas para transportar os blocos de pedra, técnica com a qual foram alinhados seus blocos desde as pedreiras até as proximidades dos locais de pedra têm suscitado um grande número de de construção; teorias e especulações. Alguns atribuem aos egípcios conhecimentos técnicos e científicos muito avançados. Até mesmo que tais conhecimentos e d) rampas de areia para arrastar os blocos de pedra até o lugar definitivo; e) e, sobretudo, muita força de trabalho. técnicas (campo antigravitacional, cortes das pedras a raio lazer, etc.) teriam sido a eles transmitidos por seres extraterrestres. Outros sugerem a força A Questão da finalidade: para que serviam as pirâmides? da mente. Nada mais, nada menos, do que pedras sendo levantadas pela força mental. Para os eruditos, Uma questão muito discutida e especulada é entretanto, essas “versões” não passam de pura aquela que diz respeito à serventia das pirâmides, especulação. ou seja, para que, afinal, elas serviam? Ou, em outros Os materiais que chegaram até nós não confirmam termos, o que é que se fazia à sua volta? os propalados conhecimentos ultra-avançados dos Alguns sugerem uma versão militar. As pirâmides egípcios. Na matemática, por exemplo, eles não iam seriam postos de observação, nos quais guarnições muito além das quatro operações, e mesmo assim militares avançadas seriam colocadas para vigiar com recursos rudimentares e pouco econômicos, o território egípcio contra invasões estrangeiras. O pois não conheciam o zero. Na geometria é local em que foram construídas, nas proximidades que seus conhecimentos parecem ter sido mais do delta (o ponto mais vulnerável às invasões) é adiantados. Podiam calcular a área de um círculo muito lembrado pelos que sustentam essa versão. pelo conhecimento de seu diâmetro e conheciam Inúmeros outros indícios, entretanto, depõem contra bem as propriedades do trapézio e do cilindro. Isso tal ideia. A ausência de um militarismo organizado, era o suficiente para construir as pirâmides e colocar na época das pirâmides, é apenas um deles. em posição os pesados blocos de pedra. O resto era: Existe também aquela que poderíamos chamar a) cunhas e panos molhados para retirar os blocos de versão astronômica. Baseados em certas 96 Arnoldo Walter Doberstein coincidências, principalmente na pirâmide de Alguns deles (Paul Brunton, por exemplo) chegaram Queóps, com o seu sentido Norte-Sul quase exato, a pernoitar na pirâmide para provar sua “tese”. Diz ele a inclinação do túnel de ventilação, coincidente com a que primeiro ficou tonto (seu estado normal?), depois posição da Estrela Sothis na época do ano novo egípcio urinou, defecou, desmaiou e, por fim, desencarnou. (começo da inundação) e uma série de medidas que Seu espírito (seria seu Ka?) viajou pela pirâmide, falou a pretensa “polegada piramidal” (??) estaria a indicar com o espírito dos antigos sacerdotes (um simpósio de (diâmetro da terra, duração do ano, distância da terra ao “Kás?”) e deles obteve respostas a todas as dúvidas sol, etc.) muitos acreditam que a pirâmide de Queóps que cercam as pirâmides. Só que para voltar ao mundo servia de observatório astronômico. teve que reencarnar e daí esqueceu tudo. Pode? Aqui também parece existir um certo exagero. Para os erutidos, entretanto, o que de principal Numa variante ainda mais audaciosa dessa versão se fazia nas pirâmides era o culto funerário dos “astronômica”, seguidores das ideias de Eric Van Daniken antepassados mortos. (de “Eram os deuses Astronautas?”) sugerem que eram sinalizações para pouso de naves espaciais. Outros sugerem que as pirâmides serviam de Quéfren ou Kafra: o faraó da esfinge marcos para indicar os limites das inundações. É bem verdade que as enchentes do Nilo jamais O sucessor de Queóps foi seu filho Didufri. Seu ultrapassavam o ponto em que as mesmas foram nome foi encontrado em placas que cobriam os levantadas. Mas daí pensar que todo o trabalho fossos com o madeirame para os barcos solares de construí-las servisse principalmente para isso é de Queóps. O governo de Didufri durou só cerca pensar o Egito como uma terra das inutilidades. de oito anos (Papiro de Turim). Sua pirâmide, a Procurando uma vinculação com a Bíblia (os celeiros Noroeste de Gizé, ficou inacabada. de José), alguns viram nelas a finalidade de servirem O sucessor de Didufri foi o seu irmão Kafra, de armazéns reais. Pensando, naturalmente, que mais conhecido como Quéfren (nome grego). Em elas eram ocas internamente. O que não era o caso. frente à sua pirâmide (letra “A” da Fig. 123), nas Alguns chegaram a pensar ter encontrado a proximidades do Templo do Vale (Idem letra “B) do solução do “problema” vendo nas pirâmides locais complexo, foram aproveitadas as pedras de uma de iniciação aos segredos do esoterismo egípcio. pequena colina de pedra calcárea para se modelar O Egito Antigo 97 uma grande esfinge (Idem, letra C). Por Quéfren todo ele de granito rosa, foram recuperadas algumas razão estátuas do rei, entre elas passou a sua célebre estátua conhecido de diorita negra, hoje no como “o faraó da Museu do Cairo (Fig. 125), esfinge”, ainda que considerada não sejam poucos os obras-primas da estatuária que questionem se a faraônica referida estátua em tempos. A mesma mestria esfinge é mesmo do técnica, faraó Quéfren. Com historiadores como Arnold a Fig.123 - O complexo arquitetônico da Pirâmide de Quéfren essa No templo funerário da pirâmide de Quéfren, ser de que uma das todos fez os certos 72 m de comprimento e 20 m de altura, a esfinge Toynbee tornou-se tão célebre quanto as próprias pirâmides. Antigo Reino o apogeu da considerarem o Gerações posteriores viram nela uma representação Fig.125 - Estátua de Quéfren em diorita negra. Museu do Cairo. civilização egípcia, estão presentes em outras estátuas de Quéfren, como é o caso do exemplar conservado no Museu do Fig.124 - A Esfinge de Quéfren em sua pirâmide. Brooklin (Fig. 126), que se do deus Ra Haracte (o deus Hórus do sol nascente) constitui numa das peças e depositaram em seus pés numerosas estelas mais votivas, como foi o caso de Tutmés IV (Fig.124). instituição. valiosas daquela Fig.126 - Estátua de Quéfren. Museu do Brooklin 98 Arnoldo Walter Doberstein da melhor qualidade. Para Heródoto: um governante despótico e cruel Em delas ele está ao lado da Se dependesse de Heródoto, todavia, a fama rainha (Fig. 127). Em póstera de Quéfren não seria muito diferente daquela outras de seu pai e antecessor Queóps, de quem Heródoto ele aparece acompanhado disse que fez sua filha freqüentar um bordel até ganhar uma determinada importância (não disseram quanto). Segundo dizem, ela obedeceu as ordens de seu pai, mas queria deixar um monumento em seu próprio nome. Pedia a cada homem que a procurava uma pedra como presente, para ser usada em sua obra. Com essas pedras ela mandou construir a pirâmide situada no centro do grupo de três, defronte a grande pirâmide.105 algumas divindades de egípcias. Especialmente famosas são as quatro Trindades, que foram Fig.127 - Miquerinos e a Rainha Mãe. encontradas no templo funerário de sua pirâmide. Sobre Quéfren, as palavras de Heródoto foram que se conduziu sob todos os aspectos de maneira idêntica à do outro (grifo nosso) (...) eles contam que, ao longo desses cento e seis anos de governo (50 anos de Queóps, mais 56 de Quéfren, o que não coincide com outras fontes) os egípcios viveram na maior miséria, e durante todo esse tempo seus templos, inicialmente fechados, nunca foram reabertos. Os egípcios abominam de tal forma a memória desses dois reis que se recusam terminantemente a mencionar-lhes os nomes. 106 Numa delas, que se encontra no Museu do Cairo (Fig. 128) o faraó aparece ladeado da deusa Isis, ou Hathor (com chifres de vaca) e uma divindade Miquerinos (Menkaura): o faraó das estátuas local. Além do valor plástico-formal, Fig.128 - Trindade de Miquerinos. Museu do Cairo. O sucessor de Quéfren foi seu filho Miquerinos, do essas imagens se apresentam ao historiador como qual igualmente restaram diversas estátuas todas elas importantes fontes históricas. Veja-se nesse caso o leve “toque” de dedos entre o rei e a deusa à sua direita. 105 HERÓDOTO. História. Brasília: Universidade Federal de Brasília, 1988. Livro II, inciso 126, p. 129. 106 Pode ser visto como uma ilustração do politeísmo Ibidem, p. 129 O Egito Antigo 99 egípcio, em que o fiel, 129. O rei seguinte do Egito foi Micerinos, filho de Queóps. Ele não aprovava os atos do pai e reabriu os templos, permitindo ao povo, reduzido à miséria extrema, voltar às suas atividades e à prática de sacrifícios aos deuses; ele foi o juiz mais justo entre todos os reis. Sob este aspecto Micerinos é o rei dos egípcios mais louvado.108 entre diversos deuses, tinha o seu deus devocional. No caso da figura o conjunto o da ideal feminina, ilustra de mulher beleza egípcia: mulher-pequena, Sua pirâmide de 66 m de altura e apenas um décimo do volume das duas anteriores, pode ser vista, realmente, como o testemunho de um governo mais comedido nos gastos. ombros largos, quadris Fig.129 - Trindade de Miquerinos. Museu de Boston. estreitos e rosto de Scepceskaf, a faraó da “simples mastaba” “bolacha-maria”. Acredita-se que essas 4 Trindades faziam O sucessor de Miquerinos foi o faraó Scepceskaf, parte de um total de 23 conjuntos que existiam no do qual não sabemos muita coisa. Segundo Arbório templo funerário da pirâmide. Simbolizavam as 23 Mella, isso províncias do Egito Antigo. Um deles está no Museu é uma pena, porque deve ter sido protagonista de grandes transtornos (...) Com o seu nome desapareceu o de Rá e ao invés de uma pirâmide, voltando às origens, mandou erguer para si uma grande mastaba, em Sakkara, a que os árabes chamam de “El Farum” (...) deve ter sido muito amado, porque em torno de sua mastaba encontram-se muitas ofertas pobres, das camadas humildes. 109 de Boston (Fig. 129). Essas Trindades, segundo Aldred, produziam no interior do templo, um efeito, “extraordinariamente impressionante, com os feixes de sol passando através de frestas, cortadas abaixo do teto de granito vermelho, e caindo sobre o chão de alabastro polido, espalhando um brilho difuso sobre as vinte e três estátuas do rei”.107 Na versão de Heródoto, A V DINASTIA Miquerinos, O período de aproximadamente 160 anos que, diferentemente de seus antecessores, foi um rei grosso modo, se estendeu entre os anos 2500 e generoso. Nas palavras do historiador grego, 108 HERÓDOTO. História. Brasília: Universidade Federal de Brasília, 1988. Livro II, inciso 126, p. 129-130. 109 107 ALDRED, Cyril. Os egipcios. Lisboa: Verbo, 1972. p. 91. 100 Arnoldo Walter Doberstein MELLA, Arbório Federico. O Egito dos Faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.107. 2340 a.C., foi ocupado pela V Dinastia. Durante esse Essa separação espacial entre as pirâmides e período ocorreram importantes mudanças políticas no os templos não existia anteriormente. Ela pode ser Egito faraônico. O poder mais compartilhado Uma dessas mudanças foi que o poder de decisão passou a ser mais compartilhado. Essa partilha ocorreu entre os faraós, os cleros e os altos funcionários. Isso não quer dizer, entretanto, que houve uma decadência política. Tal partilha do poder já vinha se delineando desde a IV Dinastia, especialmente a partir do governo do faraó Miquerinos. Mas foi a partir da V Dinastia que tal tendência se definiu mais claramente. Pirâmides e Templos Solares Tal como seus antecessores da IV Dinastia, os Fig.130 e 130-A - Localização e reconstituição das pirâmides e dos templos solares da V Dinastia. Da esquerda para a direita: pirâmide de Neferkara (A), de Nevcesra (B) e de Sahura (C). Mais ao Norte ficavam os templos solares de Userakaf (D), de Nevcesra (E) assim como outro (F), ainda não prospectado completamente. Mais distante ficavam as três grandes pirâmides de Queóps, Quéfren e Miquerinos. faraós da V Dinastia ergueram seus túmulos em forma de grandes pirâmides. Enquanto o primeiro rei da Dinastia, Userakaf, construiu sua pirâmide em Sakkara, nas proximidades da pirâmide de Dzozer, os seus três sucessores, Sahura, Nevcesra e Neferkara, preferiram erguer as suas mais ao Norte, em Abusir (Fig. 130). Nas proximidades dessas últimas é que foram levantados os templos solares, dos quais os mais prospectados são os de Userakaf e de Nevcesra. O Egito Antigo 101 vista como a expressão simbólica da separação Entrada (letra E), o qual, por uma rampa elevada, se de poderes (se é que se pode usar uma expressão ligava ao Templo Exterior (letra F) que, por sua vez, desse tipo para se definir o que ocorreu há tanto estava rodeado pelas habitações dos funcionários tempo atrás) que passou a se definir com a V Dinastia. e sacerdotes (letra G) que trabalhavam no templo. Tal como na IV Dinastia, as pirâmides continuaram Segundo os textos antigos, todos os faraós da V servindo para o culto funerário das estátuas do rei Dinastia mandaram levantar um desses Templos e de seus familiares. O ritual do culto solar é que Solares. As razões disso, segundo Cassin, Botteró e passou a ser feito nos templos. Tal ritual era realizado Vercoutter, é uma das tantas questões que ainda não num pátio ao ar livre (Letra “A” da Fig. 131), o qual podem ser bem explicadas. Com a maior separação tinha uma área de aproximadamente 7.500 m². dos poderes pode ser que tenha ocorrido uma maior As oferendas eram depositadas num altar de partilha dos recursos dentro do Estado faraônico. alabastro (letra B), diante do qual se erguia um Essa linha de interpretação, por sua vez, está grande obelisco (letra C), de 32 m de altura, que fundada naquilo que poderíamos chamar de lógica simbolizava o sol. O pátio era ladeado de dois da disputa. Tal esquema interpretativo poderia ser montado da seguinte forma: a) os faraós da III e da IV Dinastias teriam recorrido ao clero e aos altos dignatários para montar, em torno de si, uma aura de esplendor e magnificência (pirâmides, grandes obras, etc.); b) isso teria trazido para tais organizações (o clero e os altos dignatários) um papel cada vez mais decisivo na sustentação do domínio faraônico; c) com o passar do tempo, tais organizações Fig.131 - Reconstituição livre das partes de um templo solar. passaram a receber cada vez mais recursos para corredores, cobertos, em cujas paredes (letra D) sustentar a sua própria magnificência, passando a eram pintados relevos que celebravam os poderes disputar com os faraós os recursos disponíveis. do sol e as realizações dos faraós construtores. Esses dois corredores confluíam para um Templo de 102 Arnoldo Walter Doberstein Uma disputa entre os cleros de Rá e de Ptah? esquema interpretativo poderia se amparar. Nesse sentido, talvez fosse o caso de se mencionar algumas Uma variável dessa interpretação tem sido formulada por alguns autores, como Federico Arbório das diversas sepulturas de “particulares” (pessoas que não faziam parte da família real) que, justamente na V Dinastia, passaram Mella, para o qual, desde o governo de Queóps, a havia se instaurado uma forte disputa entre os cleros mais alentadas. Isso, estariam insatisfeitos com a aliança que os faraós inclusive, da III e da IV Dinastias fizeram com o clero de Rá. tomado A campanha de difamação movida contra Quéops pode como ser mais um indicativo da maior teria vindo daí. Essa rivalidade, inclusive, estaria partilha de recursos que na base do tamanho da pirâmide de Miquerinos, e se estima ter ocorrido também do rompimento de Scepceskaf com o clero no período. de Rá. Segundo o mesmo autor, com a V Dinastia os Uma sacerdotes de Rá retomaram o controle da situação e impuseram os “seus” soberanos. Mas não teria sido uma vitória completa. Segundo Mella, As tumbas dos dignatários seguidores de Ptah uma ornamentação e riqueza de Rá e de Ptah. Os membros do clero de Ptah Parece que os sacerdotes de Heliópolis (Rá) entraram num mútuo entendimento com os colegas menfitas (clero de Ptah) para distribuir o poder. Então foram escolhidos entre os sacerdotes de Ra os faraós, e entre os sacerdotes de Ptah os vizires, com cargos hereditários.110 apresentar Fig.132 - O “Vizir“ Hanofer, seguidor do Deus Ptah. Museu do Cairo das mais notáveis sepulturas desses dignatários seguidores de é que aquela Ptah foi encomendada pelo “vizir” Hanofer. Nos títulos contidos em seus registros consta que Hanofer era um “sacerdote de Ptah” e o acabamento de sua estátua (Fig. 132), que hoje encontra-se no Museu do Cairo, parece indicar que o seu titular partilhava dos recursos com a própria família real. Em seu texto, Federico Mella não chega a Alguns de seus aspectos, inclusive, lembram apresentar nenhuma prova “material” na qual esse seu as próprias estátuas de Quéfren e de Miquerinos. 110 MELLA, Arbório Federico. O Egito dos Faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.108. Isso permite supor, até mesmo, que ela possa O Egito Antigo 103 ter sido executada nas oficinas reais. Nada nela é Hanofer “aquela divina segurança e crueldade demasiado. A musculatura é simples, porém vigorosa. intelectual que esses remotos engenheiros devem O movimento das pernas é discreto. Os braços ter descansam colados ao corpo. Nenhum ornamento. intelectual!”. Que grande “sacada!”. Os ingleses têm Os dois principais atributos do poder, o bastão e o disso, de vez em quando. possuído abundantemente”.111 “Crueldade Além da Hanofer são conhecidas diversas outras cetro, não aparecem. Apenas as mãos fechadas estátuas, retiradas de tumbas da V Dinastia, cujos indicam que eles deveriam estar ali. O valor histórico dessas titulares ostentavam em seus títulos o nome de Ptah. esculturas de “particulares” Esse é o caso, por exemplo, do grupo encontrado em vem em parte do fato que 1936 (Fig. 134), numa mastaba de Mênfis, da época nelas o modelador não era tão do rei Unas, e cujo titular, denominado Fifi, e titulado cerceado pelas convenções de da faraônica deixou consignado que foi oficial. Tinha mais liberdade sacerdote de purificação de estatuária execução, chegando, por vezes, até ensaiar uma Fig.133 - O “Vizir“ Hanofer e sua “crueldade intelectual” Nefer-He-renptah, (das Fundações Piedosas) dos faraós Quéfren e espécie de estudo psicológico do modelo. Veja-se, Miquerinos. O grupo, que por exemplo, nesse caso do “vizir” Hanofer, cujo se encontra no Museu do modelador conseguiu até mesmo captar certos Cairo, é feito de pedra traços do caráter e calcárea e pintado nas da personalidade convenções tradicionais da do (Fig. arte egípcia, com o corpo 133). Cyril Aldred, masculino de castanho e o inclusive, feminino de bege. uma modelo com dignatários, da V Dinastia com o clero de Ptah, acuidade, Fig.134 - A família de Nefer-Herenptah Outro testemunho dessa vinculação de altos penetrante identificou nos é o grupo de Ptah-Khenui e esposa, encontrado traços faciais de 111 104 Fig.135 - O supervisor Ptah-Khenui. Arnoldo Walter Doberstein ALDRED, Cyril. Os egipcios. Lisboa: Verbo, 1972. p. 92. na tumba “G” do cemitério de Gizé (Fig. 135), com Uma dessas peças exponenciais é o célebre datação estimada entre 2480 e 2400 a.C., ou seja, Escriba sentado (Fig. 136), que hoje se encontra entre os reinados dos faraós Sahura ou Nevcesra. no Museu do Louvre. Sua descoberta ocorreu em O conjunto pertence ao Museu de Boston e trata- outubro de 1850 pelo francês Auguste Mariette, se de um trabalho em pedra calcária, com o casal uma espécie de “Indiana Jones” da época, quando portando perucas e colares de contas e representados a equipe por ele contratada estava desenterrando na mesma pose usada por reis e rainhas (ver atrás o Serapeum. Na ocasião, foram localizadas duas Fig.127 de Miquerinos e esposa). Uma inscrição tumbas intactas, das quais foram na base do conjunto identifica o esposo como retiradas sete estátuas que, na “supervisor dos criados do palácio”, e ela como “sua sequência, amada esposa”. com o Museu do Louvre. A foram importância negociadas atribuída ao Escriba Sentado vem do Uma estatuária de grande mestria técnica São das tumbas da V Dinastia algumas das naturalismo empregado na sua execução. Diferentemente das Fig.137 - O autor ao lado do Escriba Sentado estátuas oficiais, cujos modeladores ficavam muito se presos às convenções vigentes (corpos sempre jovens, transformaram, nos traços faciais atenuados, musculatura padronizada), museus em que hoje o que se diz é que, nessa estatuária particular, os se encontram, em cinzeladores reproduziram os modelos conforme o verdadeiros que seus olhos enxergavam. Isso é o que se chama obras que ícones não de naturalismo. Dai a não dissimulada obesidade do oficial egípcia. Por ventre, o estrabismo no olhar e, inclusive, a sugestão esse critério (valor de movimento, com o braço da escrita mais “leve” e estético da estatuária o esquerdo mais “pesado” (para poder segurar o rolo “particular”), de papiro). Ao contrário do que muitas fotos sugerem, da escultura poder- se-ia mesmo arriscar Fig.136 - O Escriba Sentado. Museu do Louvre. que o seu apogeu esteve na V Dinastia. a estátua do escriba é de pequenas dimensões, conforme se pode ver na Figura 137. O Egito Antigo 105 Outra estátua da V Dinastia que é considerada semelhança tem levado alguns autores a supor como um dos mais preciosos exemplos da escultura que essa última possa ser uma imagem de Ka- egípcia é aquela do sacerdote Ka-aper (Fig. 138), aper mais jovem. Outros acreditam que era um vulgarmente chamada de Xeque El-Beled porque os funcionário do titular. trabalhadores que a encontraram, em 1860, viram nela O interessante é o que o descobridor das mesmas uma grande semelhança com o prefeito de sua vila. também foi Auguste Mariette (Fig. 139-140), só Por ser esculpida em madeira, um dos braços pode que em outras circunstâncias. É que sua descoberta ser representado se projetando para frente, o que não ocorreu em 1860 e, na ocasião, Mariette já deixara era feito quando a obra era de pedra. Segundo o texto de ser Conservador do Louvre (cargo que exerceu oficial do Museu do Cairo, onde ela se encontra, entre 1848 e 1858) para se tornar, a partir de 1858, diretor o desejo de criar uma identidade do Serviço de realista é observado nas formas Antiguidades esféricas da cabeça e do ventre, do ligeiramente protuberante. Este Mariette, equilíbrio entre o interesse pelo então, passou estilo e o interesse pela realidade por raras vezes é superado na espécie de metamorfose. De “rapinador” das escultura egípcia.112 antiguidades egípcias (veja-se o caso do Escriba Egito. uma Fig.139 - 140 - Auguste Mariette em Trajes Orientais Sentado) passou a ser um ardoroso defensor de A estátua de Ka-aper estava sua manutenção no próprio país. O Órgão que na mastaba “C-8” do cemitério de dirigia tornou-se o embrião do futuro Museu do Sakkara, junto com outras duas: Cairo, onde hoje se encontram as três imagens. O uma estátua feminina daquela que supõe-se ter sido próprio Mariette passou a se vestir e trajar como sua esposa e uma outra masculina, cujas feições um egípcio (Fig. 139-140). Fig.138 - O sacerdote Ka-aper e sua “identidade realista“ se assemelham a do próprio Ka-aper juvenil. Essa 112 MUSEU EGÍPCIO DO CAIRO. São Paulo: Mirador Internacional, 1969, p. 38. 106 Arnoldo Walter Doberstein Sobre essa “metamor- caráter. No caso desse Escriba Desconhecido, o fose” de Mariette as opiniões olhar meio de lado e a curvatura dos lábios deixam- se dividem. Uns entendem no com uma certa “cara de nojo”, reveladora de uma que ele efetivamente se espécie de soberba e arrogância, as quais certos “egipcianizou”. textos como a Sátira dos Ofícios revelam que eram Outros acham que foi uma mera formalidade exterior, próprias dos escribas egípcios. já que, como “funcionário” do Userakaf governo egípcio, tinha que se apresentar em trajes Fig.141 - O Escriba Desconhecido. orientais. A V Dinastia parece que foi formada por nove faraós. De uns 2 ou 3, entretanto, não se sabe muita coisa Outra imagem tirada das tumbas da V Dinastia além dos nomes. A Lista de Manethón e o Papiro de na qual os especialistas reconhecem um grande Turim coincidem nos nomes, não, porém, na duração valor histórico e cultural, além do estético, é a do dos chamado Escriba Desconhecido (Fig. 141). Trata- primeiro da lista seria se de um gênero do qual são conhecidos perto de 50 o faraó Userakaf. exemplares, e que consistia nas estátuas de um ou governos. Quanto à O sua mais escribas. No caso do Escriba Desconhecido, origem existem duas ela fazia par com uma outra, que também se encontra versões. Uma delas no Museu do Cairo no túmulo de um alto dignatário. vem de um relato Normalmente eram figuras de pequeno tamanho “popular”, registrado (entre 50 e 60 cm) assim como a do Escriba Sentado num documento do (ver Fig. 136). Reino Médio – o Via de regra eram feitas em pedra calcária e o seu valor, como se disse atrás, reside no fato de que nessas imagens de “particulares” os cinzeladores se detinham em detalhes como uma determinada expressão (alegria, melancolia, etc.) ou mesmo do Papiro Westcar – Fig.142 - Cabeça de um “Colosso” real, com o rosto de Userakaf segundo o qual os três primeiros faraós da V Dinastia teriam sido concebidos diretamente pela deusa Ra em Redejente, esposa do grão sacerdote de Heliópolis. A outra versão vê em Userakaf um descendente de um O Egito Antigo 107 ramo lateral da família de Queóps, o qual, seguindo o ao Norte de Mênfis, local onde ele e seus sucessores costume estabelecido, teria consolidado seus direitos Nevcesra e Neferkara ergueram suas pirâmides e casando-se com uma descendente do ramo principal, templos solares (ver filha de Miquerinos. A favor da primeira versão está reconstituição da Fig. o fato que seu reinado comumente é associado com 130). o aumento do poder das famílias provinciais e com pirâmide como a de grandes doações aos cleros. seus dois sucessores Em sua pirâmide, erguida em Sakkara, nas a sua revelam uma sensível proximidades da pirâmide de Dzozer (ver mapa Fig. 130), foi encontrada uma cabeça medindo 67 cm de altura (Fig. 142), que hoje se encontra no Museu Tanto Fig.143 - As pirâmides do Antigo Reino e suas alturas relativas do Cairo. Isso faz supor que, se a referida cabeça diminuição, tanto no como na tamanho qualidade de construção. fosse de uma estátua em que o faraó estivesse Comparando-se a representado de pé, essa cabeça deveria pertencer a altura das pirâmides um “colosso” (estátua de tamanho monumental). É o da V Dinastia com mesmo raciocínio que se faz para a suposta cabeça aquelas da Dinastia de Queóps, do Brooklyn Museum, de Nova York (ver anterior, atrás Fig. 110 e 120). É que os egípcios representavam um gráfico (esquema o corpo humano no sistema dos sete quadrados, sendo que 3 eram para os membros inferiores, 3 para o tórax e abdômen e 1 para a cabeça. resulta em da Fig. 143) que pode Fig.143 - As pirâmides do Antigo Reino e seus volumes relativos. nos dar uma ideia da diminuição sofrida na altura das pirâmides da V Dinastia. Se a comparação fosse feita não na altura, mas no Sahura volume total em milhões de pés cúbicos, a diferença O sucessor de Userakaf foi o rei Sahura, de cujo resultaria ainda mais acentuada (Fig. 144). É por governo se tem um pouco mais de informações. Um essa segunda avaliação, lembram Triger e Kemp,113 bom número delas é proveniente dos relevos pintados no templo funerário de sua pirâmide de Abousir, mais 108 Arnoldo Walter Doberstein 113 TRIGER, B.J.; KEMP, J.B. et alii. História del Egipto Antiguo. Barcelona: Crítica, p.119. Miquerinos e Neferkara, em volume interior, são dez vezes menores que a de Queóps. Mas não foi só no tamanho que as pirâmides da V Dinastia diminuiram. Houve também uma sensível diminuição na qualidade da construção. Seus blocos de pedra da parte interior eram de pequeno tamanho e alinhados sem a mesma precisão das pirâmides antigas. Apesar de muito menores que aquelas da IV Fig.145 - Pirâmide de Sahura e seu estado de conservação Dinastia, nenhuma delas resistiu a ação do tempo e que se estima melhor o tamanho da diminuição. Dá hoje estão, como a de Sahura (Fig. 145), resumidas a para se perceber, por exemplo, que as pirâmides de um monte de escombros. Uma estela com o nome de Sahura foi encontrada numa pedreira de diorita, perto de Abu-Simbel, uma região que ficava além da 1ª Catarata. Pode até ter sido dali que foram trazidas as pedras de diorita e granito usadas para a confecção de suas estátuas. No Metropolitan Museum, de Nova York encontra-se um dos mais imponentes trabalhos desse período da arte egípcia. Trata-se de um grupo cujo rei Sahura, sentado em seu trono (Fig. 146), é acompanhado de uma figura menor (Uma divindade? Um herdeiro do trono?) que, na sua mão esquerda, segura o Ank da vida eterna. Nos relevos de seu Templo Solar aparecem as mais antigas representações de navios de carga que se conhece. A Pedra de Palermo revela que ele teria enviado expedições marítimo-mercantis ao longínquo País do Punt. Sendo verídico o registro, fica a Fig.146 - Grupo do Rei Sahura, do Metropolitan Museum. curiosidade de saber-se como isso foi conseguido. O Egito Antigo 109 Sahura e a expansão das atividades mercantis Uma linha de abordagem que vem se afirmando entre os egiptólogos, é aquela que enfatiza nos eventos da V Dinastia a expansão mercantil ocorrida no período. Federico Mella, por exemplo, destaca que o faraó Sahura “organizou a primeira expedição ao Punt em busca de mirra, incenso, peles e ébano, assim como organizou grandes expedições em busca de minérios do Sinai, entre os quais cobre, intermediários de um comércio de longa distância que envolvia a Fenícia, o Corredor Palestino, Egito, Punt e Núbia. No caso do país do Punt, como a ligação entre o Egito e o mesmo só podia se dar pelo Mar Vermelho, as caravanas egípcias só podiam chegar a esse distante país depois de atravessarem o Wadi Hammamat (Fig.147), pegarem seus navios no “porto” de Quseir e dali seguirem por mar até o país do Punt (atual Somália) de onde traziam os produtos daquela região. turquesa e outras pedras preciosas.”114 Na interpretação mais usual fica sugerido que essas viagens em busca de produtos do exterior eram para suprir um consumo interno. Ultimamente, alguns estudiosos estão se inclinando a ver nessa expansão mercantil uma perspectiva de lucro, de Fig.148 - Rota atual do antigo Wadi Hammamat. Nevcesra: poços artesianos no Wadi Hammamat Fig.147 - Rota Egito - país do Punt, via Wadi Hammamat O problema que essa rota apresentava era ganho, colocando o Egito e os faraós, especialmente justamente a travessia do Wadi Hammamat, que da V Dinastia em diante, como os grandes era uma região desértica (Fig. 148) e cuja travessia, feita a pé ou, no máximo, com animais de carga, 114 MELLA, Arbório Federico. O Egito dos Faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.108-109. 110 Arnoldo Walter Doberstein se ressentia da falta de água. A constituição de um sistema de poços artesianos parece que teve que ser grande providenciada para que essa rota do Punt pudesse Rá, em Heliópolis, do ser explorada. Segundo o mesmo Federico Arbório qual nada restou. A Mella, um dos sucessores de Sahura, de nome V Dinastia, por isso Dedkara “... mandou escavar os primeiros poços no mesmo, é considerada caminho para o Wadi Hammamat”. a pioneira desse tipo 115 templo de Esse trabalho de constituição de um conjunto de de templo do qual o poços artesianos se justifica. O percursso de Coptos obelisco era elemento até o Mar Vermelho, segundo o mesmo Mella, era de destaque. Fig.149 - Atual enseada de El-Quseir nas costas do Mar Vermelho. feito “numa marcha de cinco dias com o caminho Tal como seus antecessores, o faraó Nevcesra percorrido a pé, e onde não havia comida ou água, pode ser incluído entre mas o perigo de assaltantes”.116 aqueles reis, da V Dinastia, Esse rei Dedkara, citado por Mella, foi um dos 2 ou que se empenharam em 3 faraós que governaram entre Sahura e Nevcesra, constituir a rota do país e dos quais até agora pouco se sabe. O que deles se do Punt, seja com poços conhece vem em grande parte da Pedra de Palermo, artesianos, ou quem sabe a qual ao que tudo indica foi gravada nessa época. até mesmo com uma base De Nevcesra se tem um pouco mais de informações, mais permanente na atual provindas das ruínas de seu Templo Solar de Abusir o qual, junto com o de Userakaf, foram os dois que mais destroços conservaram, os quais permitem que tenhamos uma ideia de seu plano. A reconstituição da Fig.150 - Nevcesra em Duplo. Fig. 131, inclusive, é feita a partir do plano do Templo enseada Solar de Nevcesra. Sobre esses Templos Solares, Essa última possibilidade que os faraós da V Dinastia mandaram levantar, a ainda não foi avançada. ideia que se tem é que eram réplicas reduzidas do O que até agora se sabe de El-Quseir. é que no Novo Reino, 115 Ibidem, p. 110. 116 Ibidem, p. 110. no governo da rainha Fig.151 - Nevcesra em Granito. O Egito Antigo 111 Hatseptsut, nessa enseada do Mar Vermelho, foi de Sahura, “tinha isentado os templos de impostos”.117 Essa erguido um templo do qual restam muitos vestígios. abordagem converge para aquele É possível que com o interesse cada vez maior esquema interpretativo, também tradicional, que por esse presumível eixo comercial, Coptos-País vê nessas concessões da monarquia o resultado do Punt entre os egiptólogos, prospecções futuras da venham mostrar que essa ocupação permanente do administrativos. Daí resulta a tese, também antiga, que local já vinha desde a V Dinastia. o clero acabou criando um Estado dentro do Estado. hereditariedade dos cargos clericais e Em termos de imagens remanescentes, as repre-sentações que se estimam serem retratos de Nevcesra não oferecem muitos elementos Unas: mais um final de Dinastia em crise comprobatórios de identificação. As mais conhecidas O último rei da V são as de uma Dupla Representação (Fig. 150), que Dinastia se encontra no Museu de München, na Alemanha, no reinado do qual e um meio corpo de granito, sem inscrições (Fig.151) parece que ocorreu que se encontra no Brooklin Museum, de Nova York. uma nova crise entre foi Unas, o rei e o clero de Rá. A V Dinastia e as doações de terras aos cleros O testemunho disso é a supressão Das fontes das quais se tiram as informações sobre do nome de Rá na a V Dinastia, a ênfase que até agora tem predominado nomenclatura real e, é aquela que diz respeito às concessões tributárias Fig.152 - Interior da Pirâmide de Unas. sobretudo, no fato e territoriais que os monarcas da V Dinastia tiveram dele ser o primeiro que fazer aos cleros e aos altos dignatários. Federico faraó a mandar transcrever nas paredes de sua Mella, por exemplo, destaca que Userakaf “doou aos tumba (Fig.152) o conjunto de fórmulas sagradas templos quatrocentos e setenta hectares de terras”, e necessárias para garantir a viagem do morto para que Sahura “também doou aos templos quatrocentos o reino de Osíris. hectares de terra”, enquanto que Neferirkare, sucessor 117 112 Arnoldo Walter Doberstein MELLA, Op. cit. p. 109-110. São esses textos que mais tarde foram Primogênito (talvez uma alusão ao costume primitivo de sacrifício dos primogênitos). Unas é o Senhor das oferendas, que aciona a corda (a corda de sua barca, uma metáfora para dizer que era um ser que podia mover-se por livre vontade). Unas se alimenta dos homens e vive dos homens. Ele é o senhor dos mensageiros, aquele que distribui mensagens. Unas é a serpente brilhante que vigia e castiga aos homens e deuses. É Khomsu, aquele que mata os senhores, que os degola para Unas, e para ele extrai o que existe em seus corpos. É Shesmu (deus da vindima) quem corta os pedaços para Unas, e com eles cozinha comida em seus fogões noturnos. Unas é quem come suas magias e engole seus espíritos. Os grandes são sua comida matutina; os medianos são a sua comida do entardecer; os pequenos são sua comida noturna. Os velhos e as velhas são para ele sua fumigação (...) Unas é o grande Cetro que tem poderio sobre os poderosos. Unas é o falcão que voa entre os falcões, o Grande. A quem ele encontra em seu caminho, ele os come de pedaço em pedaço. A importância de Unas está na frente da de todos os nobres que estão no horizonte. Unas é um Deus, o mais velho dos mais velhos (...) Unas renova sua aparição no céu, coroado como Senhor do horizonte, ele contou as vértebras (possivelmente dos inimigos), ele recolheu o coração dos deuses, ele engoliu a Vermelha e também a Verde (alusão às coroas do Alto e Baixo Egito). Unas se nutre dos pulmões dos que são sábios, e está satisfeito por viver de seus corações, assim como de suas magias (...) Unas é aquele que surge, que surge, que está oculto, que está oculto. Aos facínoras não será dado a possibilidade de abater o lugar do coração de Unas (o lugar do coração era como se referiam a pirâmide). incorporados, e acrescentados, em outras tumbas, dando origem ao que se chama de Livro dos Mortos. O texto da Pirâmide de Unas é mais conhecido pelo nome de Hino Canibal, por seu conteúdo antropofágico que, ao que tudo indica, eram referências aos longínquos ritos funerários dos obscuros tempos primitivos. Consiste no seguinte:118 O céu se anuvia, as estrelas se escurecem. Os arcos (era como os egípcios denominavam a abóbada celeste) se agitam, os ossos dos Akeru (era como chamavam os deuses) se estremecem. Cessam os movimentos quando eles vêm a Unas, que surge poderoso como um deus que vive de seus pais, que se nutre de suas mães. Unas é o senhor da astúcia, de quem sua mãe ignorava o nome. A dignidade de Unas está no céu, seu vigor está no horizonte, como aquele de seu pai Atum (deus de Heliópolis, depois identificado com Ra) que o engendrou. Os Kau. (plural de Ka, elemento constitutivo da pessoa, considerado às vezes como o duplo) estão na sua retaguarda, seus hemsut (correspondentes femininos dos Kau) estão na sua frente, seus deuses estão acima dele, seus uraet (plural de uraeus, que designava a cobra do coroa real, elemento mágico protetor do rei) estão diante dele; a serpente-guia de Unas está diante dele. Unas é o touro celeste, sobressalente, que vive da essência de todos os deuses, que se alimentou de suas entranhas, quando estes vieram - seus ventres repletos de magias - da Ilha da Chama (localidade mitológica de Heliópolis). Unas é um que está provisionado, que incorporou seus espíritos. Unas aparece como aquele Grande, senhor daqueles que exercem suas funções. Ele está sentado com as espáduas voltada para Geb (para os egípcios o deus Terra, filho de Shu, o ar, e Tefnut, a umidade, e esposo de Nut, o Céu). Unas é Aquele que julga, junto com Aquele cujo nome está oculto, no dia que é degolado o A VI DINASTIA Com Unas encerrou-se a V Dinastia. Segundo alguns autores119, os próprios egípcios viram no término da V Dinastia uma espécie de encerramento 118 Tirado de PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Ediciónes Istmo, 1991, p. 40-41, para o texto, e 226-227 para os comentários (em negrito). 119 CASSIN, BOTTERÓ, VERCOUTTER. Los imperios del Antiguo Oriente. México: Siglo Veinteuno, 1980, p. 249. O Egito Antigo 113 de um ciclo histórico. O argumento é que, no Papiro militar à Núbia. Seu sucessor, Userakare, teve um de Turim, depois do registro do reinado de Unas, foi reinado muito efêmero, talvez de apenas alguns meses, feita uma listagem com o nome de todos os faraós, o tempo de ser preparada a entronização de Pepi I. desde Menés até ele. Só depois desse “resumo” é que aparecem, no papiro, os nomes dos faraós subsequentes. A VI Dinastia ocupou o trono por cerca de 170 anos, mais ou menos entre os anos 2350 e 2180 a.C. O número de seus governantes é impreciso. Segundo algumas fontes seriam 6 ou 7 faraós. Segundo outras, não mais do que 4 ou 5, já que alguns nomes citados não seriam mais que regentes de transição, com Fig.153 - Reconstituição do complexo da Pirâmide de Pepi I. pouco tempo de governo. Os nomes mais destacados seriam os dos faraós Teti, Pepi I, Merenra e Pepi II. Pepi I: o faraó das três esposas principais É considerado por muitos como o mais importante Teti: transição tumultuada ou pacífica? A transição de Unas para Teti também não é bem conhecida. Alguns acreditam numa sucessão tumultuada. Outros numa sucessão pacífica, via casamento de Teti com uma presumível filha de Unas, a princesa de nome Iput. Seu governo foi curto e pouca coisa sobre ele é conhecida. Manethón fala que foi assassinado por sua própria escolta, mas isso não está comprovado em outras fontes. Seu nome foi encontrado em vasos na costa da Fenícia, o que atesta a continuidade dos contatos comerciais de longa distância. Parece que fez também uma expedição 114 Arnoldo Walter Doberstein dos faraós da VI Dinastia. A transcrição de seu nome em várias regiões do Egito, e fora dele também, faz com que se tenha a impressão (descontado devidamente a retórica propagandística desses registros) ter sido ele um governante muito ativo e empreendedor. No âmbito da arquitetura tumular seguiu a tradição de levantar uma pirâmide como túmulo. Uma para si, e outras três para suas esposas principais (Fig. 153). Os interiores de todas as pirâmides do conjunto (inclusive as das rainhas) foram preenchidos com textos funerários, uma prática que, como foi visto, teve início com Unas, o último faraó da V Dinastia. No que diz respeito às inscrições das pirâmides das rainhas, a constatação é que se tratam dos mais antigos túmulos femininos com esse tipo de inscrição. Essa deferência do faraó às suas três esposas, e não apenas à rainha (esposa principal) faz com que certos autores, inclusive, considerem que esse foi “o fato essencial do seu governo”.120 É que duas dessas esposas eram filhas de um nobre provincial, chamado Khui. Como essas duas mulheres foram as mães dos faraós seguintes (Merenre e Pepi II) acredita-se que isso possa ter contribuído para a ascensão das famílias provincianas em detrimento do poder dos faraós. Para Cyril Aldred, por exemplo, a figura do faraó, que já decaíra com o despontar do culto solar sofreu posteriores diminuições quando o grande abismo que separava o rei da espécie humana foi preenchido pelo casamento do faraó com mulheres de sangue não real, como sucedeu principalmente com Pepi I, na última parte do seu governo.121 Essa situação – três esposas com os mesmos direitos – além do mais, deve Fig.154 - A Rainha Merireankkenes com o herdeiro Pepi II no colo. ter criado 120 CASSIN, BOTTERÓ, VERCOUTTER. Op.cit. p. 250. 121 ALDRED, Cyril. Os egípcios. Lisboa: Verbo, 1972, p. 103. muitas Fig.155 - Reconstituição livre da necrópole de Sakkara, a Leste de Mênfis, com as principais pirâmides e mastabas. rivalidades na corte. Cada uma conspirando para que o futuro rei fosse um filho seu. Coincidentemente, O Egito Antigo 115 uma das mais antigas representações de uma rainha Eugéne Drioton considera tais casamentos como com seu filho no colo (a da rainha Merireankkenes as principais causas da decadência do Antigo Reino.122 Supervalorizar esse fato talvez não seja o mais correto para tentar compreender o processo de erosão do poder político dos faraós, a partir de Pepi I. Talvez o mais acertado seja ver tais causas em processos mais amplos como dificuldades econômicas, hereditariedade dos cargos, proliferação das Fundações Piedosas e da burocracia, colapso do eixo comercial Biblos-Coptos-Punt-Elefantina, inundações insuficientes, etc. Sua pirâmide, erguida mais ao sul de Sakkara (ver desenho da Fig.155) chamava-se Menrefer (a que é eterna em beleza). Talvez o nome helenizado da capital egípcia (Mênfis) tenha advindo daí. Fazem parte do conjunto as três pirâmides das rainhas. Quando das escavações da Pirâmide de Pepi II, foi encontrada uma obra muito especial: uma estátua em cobre fundido e martelado do faraó Pepi I e seu filho Merenra (Fig. 156), hoje no Museu do Cairo. É considerada a mais antiga estátua de metal que se conhece. O uso de materiais especiais na produção de Fig.156 - Estátua de Pepi I fundida em metal. imagens de Pepi I, também se apresenta numa com o futuro Pepi II) é dessa época. Trata-se de representação sua na iconografia do rei como Filho uma esplendorosa peça de alabastro, e uma das de Hórus, hoje no Brooklyn Museum (Fig. 157). principais relíquias do Brooklyn Museum de Nova York (Fig.154). 122 116 Arnoldo Walter Doberstein DRIOTON, Eugéne. El Egipto Faraonico. Barcelona: Alianza, 1955, p. 48. Seu material a no Museu do Cairo, e cujo pedra modelador, através de um meio parecida com o “expediente” de composição mármore, e que não (as pernas cruzadas em cima era muito usual na do banco), deixou o altivo representação Seneb da mesma altura que calcita, faraós. uma Outra é dos peça sua esposa (Fig. 158). de especial interesse, Nunca é demais recordar que também faz parte que do acervo do Brooklyn “particulares”, colocadas nas Museum, é uma estátuas de sepulturas, no geral eram de imagem de Pepi I na condição de ofertante essas Fig.159 - Anão Khnum Hotep. pequeno tamanho (no caso do Anão Seneb, de 33 Fig.157 - Estátua de Pepi I em alabastro. cm de altura) já que, isoladas do seu contexto, as do vinho e de óleo aos deuses, uma iconografia muito mesmas induzem a uma ideia equivocada. A outra recorrente no Egito Antigo. estátua do mesmo período é a do Anão Khnum Na estatuária particular da época de Pepi I, uma curiosa coincidência fez com que duas pessoas com problemas de nanismo fossem suficientemente lembradas poderem a ponto constar Hotep (Fig. 159), que mede apenas 46 cm de altura. Pepi I e as obras na 1ª Catarata de numa sepultura, junto com sua família e com todos os aparatos de um túmulo de primeira classe, inclusive com a confecção de estátuas da família. Um desses casos é o chamado Grupo do Anão Fig.158 - Grupo do Anão Seneb. Seneb, que hoje se encontra Fig.160 - Reconstituição livre dos dos canais da 1° Catarata. O Egito Antigo 117 Entre as diversas realizações de Pepi I, alguns corresponderia ao autores preferem destacar as obras hidráulicas que “começo de uma linhagem mandou realizar na 1ª Catarata (esquema Fig. 160). de Segundo as fontes, tais trabalhos constaram de um feudais, com suas tumbas, sistema de canais que, contornando as formações escavadas no alcantilado rochosas que se interpunham entre o curso “egípcio” de DeirelGebravi”.(Fig.161) do Nilo e o começo do curso “núbio” do rio, passaram Quem lhe sucedeu no a possibilitar que navios egípcios, pela primeira vez, trono foi seu primo Pepi ultrapassassem a chamada 1ª Catarata que, na realidade, eram corredeiras formadas pela declive abrupto do terreno. grandes senhores II, (filho da outra esposa Fig.161 - Tumbas das elites provincianas, encravadas nos rochedos da ilha de Elefantina, no extremo Sul do Antigo Egito. “plebeia” de Pepi I). Segundo Manethón, Com esses trabalhos hidráulicos, as embarcações assumiu o trono com seis anos e governou até aos egípcias podiam navegar pelo menos até a 2ª 100, ou seja, um governo de 94 anos. Os fatos mais Catarata e, com isso, ter um acesso direto e sem destacados de seu governo seriam a delegação de intermediários aos produtos da África negra. poderes militares aos nomarcas de Elefantina e a redação do texto As admoestações do Profeta Ipu-ur. Pepi II e o seu governo longevo: 94 anos? Com a delegação de poderes militares aos príncipes de Elefantina, especialmente ao príncipe Pepinakht, O sucessor de Pepi I foi seu filho Merenra, que este, por conta própria, teria feito incursões punitivas governou pouco tempo. Aqueles que defendem à Núbia (até a 3ª Catarata) e ao Wadi Hammamat, a tese do casamento “plebeu” de Pepi I como a o que teria completado o processo de erosão da causa decisiva da erosão do poder faraônico, soberania faraônica. Com o passar dos anos, e com enfatizam a nomeação de um primo seu, filho de a longevidade do faraó, esses nomarcas do Sul se um nobre provincial (irmão de uma de suas esposas tornaram cada vez mais independentes. Por isso, o “plebeias”), para governador do 12º nomo do Egito, seu governo normalmente é considerado como o final como um indicativo do processo de fragmentação do Antigo Reino e o início do 1º Período Intermediário. do poder político. Segundo alguns autores,123 isso 123 CASSIN, BOTTÉRO e VERCOUTTER. Los imperios del Antiguo Oriente. 118 Arnoldo Walter Doberstein México: Siglo Veinteuno, 1980, p. 250. Ao final do governo de Pepi II é que o escriba Ipu-ur teria escrito suas Admoestações, cujo teor O 1° PERÍODO INTERMEDIÁRIO é conhecido por um papiro conservado em Leiden, o qual é uma cópia tardia (da XIX Dinastia) de um O chamado 1º Período Intermediário é aquele texto mais antigo. Mas nem todos aceitam que deva que vai do final da VI Dinastia ao início da XI. Abrange ser do governo de Pepi II, baseado tão somente os anos 2180 a.C. ao ano 1990 a.C., o que dá cerca nas passagens em que o Profeta Ipu-ur lamenta a de 180 anos. Compreende as Dinastias VII,VIII,IX,X omissão do faraó (devido a sua longevidade?). A e parte da XI. Alguns autores, inclusive, sugerem situação do Egito é assim apresentada: que se trataram de Dinastias paralelas, pois, afinal, O país está cheio de saqueadores. Vai se arar protegido com o escudo. O Nilo flui, mas não se ara. Todos dizem: não se sabe o que vai acontecer. Os mendigos agora são donos de tesouros. O país gira como o torno de um oleiro. O ladrão é senhor das riquezas. Agora as nobres senhoras colhem frutos. Nobres trabalham nos canteiros. O rio está cheio de sangue. Queremos beber, mas retiramo-nos apavorados pelos cadáveres. Qualquer asiático é ilustre. Os egípcios se comportam como nômades. Os velhos dizem: oxalá estivéssemos mortos. As crianças dizem: oxalá nunca tivéssemos nascido. Come-se grama e bebe-se água. Quem antes trajava ricas vestes hoje está coberto de trapos. Todas as empregadas matraqueiam desenfreadas e, se as patroas reclamam, elas se irritam.” O armazém do rei é um lugar onde cada qual pega o que der e o Palácio não recebe mais tributos. Ninguém navega mais rumo a Biblos. Onde apanharemos os cedros para os nossos mortos? Os nossos mortos são jogados ao rio (...) O Nilo se transformou em seu túmulo.124 o período de tempo seria muito curto para cinco Dinastias. Em grandes linhas o que caracteriza o período é a inexistência de um Estado unificado e com o poder político, restando dividido em diversos núcleos regionais. Sobre esse período do Egito Antigo três questões fundamentais são levantadas: a) Teria sido um período de decadência e crise da civilização egípcia? b) O que provocou a erosão do Estado faraônico e ensejou essa descentralização política? c) Teria o Estado unificado dado lugar a um feudalismo? Uma decadência ou crise civilizatória? Um grande número de autores (para não dizer, a maioria) qualificam esse período como sendo “dois 124 MELLA, Federico Arbório. O Egito dos faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.115. séculos de anarquia,de lutas, de desorganização em O Egito Antigo 119 geral”,125 em que o Egito teria passado “de um regime construções suntuárias. Nesse caso o argumento estável e forte a um estado de anarquia total”.126 O se focaliza principalmente nos túmulos erguidos pelos principal argumento que tem sido empregado no príncipes do Sul, no nomo de Elefantina (veja-se atrás, amparo dessa avaliação é o texto das Admoestações Fig. 161) que mandaram “escavar” seus túmulos em do Profeta Ipu-ur (ver atrás, p.??). seus próprios domínios. Dissemos “escavar” porque, Contra esse recurso, entretanto, pesam alguns diferentemente da tradição setentrional, que era a de questionamentos. Primeiro é que não se tem plena “erguer” suas mastabas e pirâmides ao ar livre, os certeza se o seu conteúdo é, efetivamente, relativo dirigentes sulistas faziam seus túmulos escavados a esse período (lembrar que o que dele conhecemos nas vem de um texto da XIX Dinastia). Existem autores, (Figs.162 e 163). inclusive, que sugerem que se faça uma “crítica formações A objeção rochosas que se interna” do documento, sugerindo que se leve em levanta contra esse tipo conta que o mesmo foi escrito por um alto funcionário, de argumentação é que a que poderia estar “pintando” o quadro com cores dispersão demasiadamente fortes. Ou que as dificuldades culturais descritas talvez fossem localizadas no Norte, e que, por conseguinte, não seriam válidas para todo o Fig.162 - Tumba do Sirenpowet, em Elefantina Príncipe crise ou decadência de fatos ali relatados como uma crise de decadência, uma civilização. mas sim como uma crise de mudança. Como se Os defensores da tese pode verificar existe muito de uma visão ideológica da crise de decadência tanto dos que utilizam a fonte como testemunho de também se utilizam do uma decadência, como daqueles que não aceitam tal argumento da amplitude procedimento. das obras. O argumento período como uma decadência é a regionalização das não realizações deve ser tomada como indicativo de Egito. Outros, ainda, não aceitam que se tome os Outro argumento usado para a designação de de Fig.163 - Tumba do Príncipe Mekru, na ilha de Elefantinantina usado é que a diminuição das grandes obras (pirâmides, trabalhos hidráulicos como de Pepi I, fortificações, etc.) podem ser 125 CASSIN, BOTTERÓ, VERCOUTTER. Op. cit. p. 249. 126 MELLA, Op. cit. p. 114. 120 Arnoldo Walter Doberstein tomadas como um atestado da crise e decadência do período. Tal argumento é em parte resultante da teoria “toynbeana” da amplitude das realizações de uma civilização como critério de seus apogeus e declínios. Mas, por que não supor-se que obras menores, mas em maior quantidade, não possam ser vistas como indicativos de melhorias? A desqualificação das obras de arte é outro argumento da tese da decadência e crise do 1º Período Intermediário. A alegação é que, nesse último, as obras de arte teriam se tornado mais toscas, desprovidas de conhecimento teórico, ingênuas, desproporcionais, etc. O que nem sempre acontece, entretanto, é a indicação de quais são as obras às quais a comparação se reporta. E isso é o mínimo que se pode esperar, até mesmo para que o leitor tire suas próprias conclusões. Uma vez decidido isso, é importante levar em conta o princípio da similitude, ou seja, comparar obras do mesmo gênero: uma estátua faraônica com outra estátua faraônica; uma de particular, com outra de particular. Não é isso o que normalmente se faz. O que é bastante usado como ilustração do argumento da decadência são as estatuetas de serviçais que eram colocadas no túmulo do morto para que, na outra vida, continuassem atendendo as necessidades do seu Ka. Fig.164 - Estatuetas funerárias de tumbas de particulares encontradas em sepulturas do 1° período Intermediário Nessa comparação, realmente, muitas das peças encontradas nas tumbas do 1º Período (Fig. 164) revelam que o seu acabamento é diferente de outras peças do mesmo gênero, tanto do Antigo, como do Médio Reino. As estatuetas funerárias do 1º Período Intermediário (Fig.164) efetivamente revelam uma simplificação de formas que beiram ao primário e banal. Mas também não podemos esquecer que, das melhores obras do Antigo Reino (aquelas da estatuária faraônica oficial) é dito, por exemplo, que alguns desses primeiros retratos da era das pirâmides, a quarta dinastia do Antigo Império, estão entre as mais belas obras de arte egípcia. Existe neles um ar de solenidade e simplicidade (grifo nosso) que não se esquece facilmente. Vê-se que o escultor (...) interessavase apenas pelos aspectos essenciais. Todos os pormenores secundários eram postos de lado.127 Ora, simplicidade, interesse pelos aspectos 127 GOMBRICH. E. H. História da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1972, p.33. O Egito Antigo 121 essenciais e desapego pelos pormenores mostram uma perda do academicismo em favor de uma maior espontaneidade, a custo de alguma torpeza. A estatuária do Médio Império pretende evitar essas torpezas e voltar ao rigor clássico da época de Quéfren, ainda que incorporando a espontaneidade dos escultores da XI Dinastia.129 secundários, é também o que se pode verificar nas estatuetas do 1º Período Intermédio, como podemos observar na Fig. 164. Além se do formos mais, comparar Como se percebe, aquilo com obras do mesmo que para alguns é decadência gênero (estatuetas de e incompetência, para outros é serviçais) Reino espontaneidade e autenticidade. verificaremos O que demonstra que os critérios que, nesse gênero, os de avaliação da “qualidade” das próprios obras de arte muitas vezes são Antigo, do especialistas dizem das figuras como subjetivos e muito relativos. Fig.165 - Guerreiros Núbios a da Fig. 165, recolhida de um túmulo da V Dinastia, Fig.166 - O Vizir Nakti, da X Dinastia. Simplificação formal que frequentemente, estas pequeninas estátuas de serviçais foram executadas de forma tosca (grifo nosso) e que em túmulos inferiores, elas substituíam a pintura mural, que requeria extensas superfícies, existentes apenas nas câmaras funerárias mais importantes.128 Cabe ainda lembrar que essa feitura diferente dos serviçais do 1º Período Intermediário pode que não tenha sido por deficiência técnica de seus autores. Referindo-se a estátua do vizir Nakti, da X Dinastia (Fig.166) e de uma portadora de oferendas do mesmo período, Gonzalo Fernández, um especialista em 1º Perído Intermediário, entende que elas 128 MUSEU EGÍPCIO DO CAIRO. São Paulo: Mirador Internacional, 1969, p. 47-48. 122 Arnoldo Walter Doberstein As causas da erosão do Estado Unificado Essa é uma questão sobre a qual existem diversas tentativas de explicação. As explicações mais usuais poderiam ser apresentadas mais ou menos dentro do seguinte esquema: a) Excesso de autonomia dada aos sacerdotes. Principalmente aos cleros de Rá e Ptah, que passaram a receber doações e isenções que enfraqueceram o orçamento do Estado. Ciro Flamarion Cardoso, no entanto, lembra que essa explicação implica na “falsa 129 FERNÁNDEZ, Conzalo. Egipto durante el Primer Período Intermedio. In: REVISTA DE ARQUEOLOGIA, n° 274, fev/2044, p. 27. premissa que os templos eram teriam ocorrido em função da exacerbação do diferentes do Estado, quando na rigorismo fiscal para a construção das grandes realidade eram parte dele”.130 obras faraônicas, assim como a invasão de b) dos Apropriação cargos. hereditária asiáticos no delta. Funcionários parentes do rei teriam recebido e) Fig.167 - Ciro Cardoso Inundações insuficientes, combinadas com uma excessiva burocratização do Estado. pensões vitalícias dos reis para garantia de seu culto Segundo Ciro Flamarion Cardoso, atualmente estão funerário permanente. Cortesões favorecidos teriam sendo feitos esforços para introduzir novos tipos de passado a receber dádivas em terras e isenções para explicações para a desagregação do Antigo Reino. a guarda dos túmulos reais e serviços funerários – as O autor cita, por exemplo, a diminuição do nível Fundações Piedosas – que passaram essas funções médio das cheias. Isso se combinaria com o “reforço a seus descendentes. Eram atividades improdutivas progressivo do aparelho de Estado”.132 Isso ficaria que, ao contrário das pirâmides, não contribuíam atestado pelo exame das titulaturas das tumbas do para dinamizar as forças produtivas. O mesmo teria Antigo Reino. A multiplicação dos burocratas, sem acontecido nas províncias. Os governantes colocavam que a produção tivesse aumentado, é que teria os seus filhos nos cargos oficiais que também se provocado o desastre. f) A erosão do eixo comercial Biblos-Mênfis- tornaram hereditários. Diversos são os autores que partilham desse esquema interpretativo. 131 c) Equívocos e despreparo dos governantes. São arrolados, nesse caso, supostos equívocos Coptos-Punt. Essa é, como diz o seu próprio autor Gonzalo Fernández,133 “uma nova tentativa de interpretação” para a debacle do Antigo Reino. de governantes, como Pepi I e seus casamentos O original de sua interpretação é que ele parte da “plebeus”, ou Pepi II com a sua delegação de poderes premissa que o que provocou a desagregação do militares aos nomarcas de Elefantina, assim como a Antigo Reino foi quando “os beduínos conquistam o própria longevidade deste último. Delta. Ali interrompem o eixo mercantil Biblos-Delta d) Supostas revoltas sociais. Tais revoltas do Nilo-Mênfis-Coptos-Punt que havia sido criado 130 CARDOSO, Ciro F. Sete olhares sobre a antigüidade. Brasília: UnB, 1998, p. 81. 131 ALDRED, Cyril. Op. cit, p.80 e TRIGGER, KEMP, O’CONNORS e LLOYD. Historia del Egipto antiguo. Barcelona: Crítica, 1998. Estes últimos com mais ênfase nas Fundações Piedosas. 132 CARDOSO, Ciro F. Sete olhares sobre a antigüidade. Brasília: UnB, 1998, p. 81. 133 FERNÁNDEZ, Conzalo. Egipto durante el Primer Período Intermedio. In: REVISTA DE ARQUEOLOGIA, n° 274, fev/2044, p. 26-37. O Egito Antigo 123 pelo faraó Sahura (2464-2452 a.C.), o segundo monarca da V Dinastia” (p. 30). Mais adiante ele volta a reafirmar sua linha de raciocínio enfatizando que, minha hipótese é esta: Coptos experimenta uma forte crise econômica com a ruptura do eixo comercial Biblos-Delta-Mênfis-CoptosPunt. Ao ser Coptos um dos pontos chaves do comércio com o Mar Vermelho através do Wadi Hammamat, este mercado ficou interrompido com a contração geral da economia egípcia. (...) A rota Coptos-Mar Vermelho e as pedreiras do Wadi Hamammat só voltam a reabrir com Mentuhotep II, da XII Dinastia (p. 31). O inusitado da hipótese do Professor Fernández é que ele parte da premissa que o comércio externo, a partir da V Dinastia, não era, como normalmente se pensa, um comércio apenas para suprir as necessidades internas do Egito. Mas que era uma atividade que visava um ganho, um lucro (revenda para outras regiões?) e que ao se interromper esse eixo comercial é que veio a retração econômica. Na construção de sua tese o autor trabalhou com três fontes: as “Admoestações do Profeta Ipu-ur”, a Lista de Manethón e a História, de Heródoto. Das “Admoestações” ele retirou as suas linhas iniciais que dão conta que: “Já não se navega até Biblos. Faltam todas as matérias necessárias aos ofícios. Os asiáticos trabalham nas oficinas do Delta. (...) Nenhum trabalhador egípcio consegue trabalho. Os inimigos do país despojaram as oficinas.” Dessas passagens do texto é que ele retirou sua tese da ruptura do eixo comercial (já não se navega até Biblos) e que essa interrupção foi provocada pela tomada do Delta pelos beduínos asiáticos (os asiáticos trabalham nas oficinas do Delta). Da História, de Heródoto, ele destacou uma parte do relato que informa que, Fig.168 - EIlustração do presumível eixo comercial Biblos-Mênfis-CoptosPunt sugerido 124 Arnoldo Walter Doberstein Depois dele (no parágrafo anterior ele está se referindo a Min -Menés) os sacerdotes enumeraram os nomes de trezentos e trinta reis, constantes de um papiro (...) O nome da única mulher a reinar era o mesmo da rainha da Babilônia, Nitócris. Disseram os sacerdotes que ela, para vingar seu irmão, rei do Egito, morto por seus súditos, graças à sua astúcia levou à morte muitos deles. Ela mandou construir um amplo recinto subterrâneo e depois, sob o pretexto de inaugurá-lo (...) convidou os egípcios responsáveis pela morte do irmão; em plena festa deixou correrem sobre eles as águas do rio, canalizado secretamente por ela até o recinto (...) Após esse feito Nitócris se lançou em um aposento cheio de cinzas quentes para não ficar sujeita a vinganças. (HERÓDOTO, Livro II, § 100). dos nomarcas de Heracleópolis, verdadeiros donos da corte que nomeiam e depõem os faraós. A debilitada corte de Mênfis intenta então balancear o excessivo poder dos nomarcas heracleopolitanos com os nomarcas de Coptos (isto teria ocorrido com a VIII Dinastia que Manethón ainda chama de menfita). Este panorama termina por volta de 2160 a.C., quando o nomarca de Heracleópolis, Khety I, depõe a Neferirkare, último rei menfita, e se proclama faraó do Egito, porém respeitando o poder nominal da dinastia menfita e suas velhas prerrogativas. Inicia assim a IX Dinastia (Manethón menciona que ela foi formada por quatro reis de Heracleópolis – ver atrás). Da Lista de Manethón o egiptólogo Gonzalo Fernández retirou a passagem que informa que “a sétima dinastia constou de cinco reis de Mênfis que reinaram 75 dias. A oitava dinastia constou de cinco reis de Mênfis que reinaram 100 anos. A nona dinastia constou de quatro reis de Heracleópolis, que reinaram 100 anos”. Combinando todas essas “pistas” o autor avança no seu “intento de interpretação” sugerindo que Ao cabo daquelas atividades econômicas (ele está se referindo ao colapso do eixo comercial Biblos-Mênfis-Punt) se originou, em Mênfis, um motim, que termina com o assalto ao palácio real e a prisão de Merenre II (sobrinho e sucessor de Pepi II). Sua mulher Nitócris (atente-se para o detalhe que Heródoto a apresenta como irmã, o que não quer dizer nada, pois os faraós casavam com suas meia-irmãs) pode fugir a Heracleópolis (veja-se o mapa Fig. 169 para não confundir com Hierakonpolis da Dinastia O), nomo vizinho a Mênfis e nesta ocasião fiel à dinastia menfita. Enquanto isto, na capital, se instaura uma etapa anárquica, com contínuos câmbios de dirigentes aos quais alude Manethón, ao referir-se aos cinco Reis de Mênfis que reinaram em 75 dias. Numa destas revoltas uma ala mais extremista dos revolucionários condena e executa Merenre II. Tal desordem favorece a reconquista do poder por Nitócris, desde Heracleópolis. Nitócris conseguiu assim a sobrevivência da Dinastia Menfita, mas a custa de fazê-la depender Fig.169 - Ilustração das presumíveis ocorrências formuladas por Gonzalo Fernandez para o declínio do Antigo Reino. O 1° Período Intermediário: um feudalismo? A questão do melhor conceito para caracterizar a sociedade egípcia nesse 1º Período Intermediário também tem merecido bastante atenção por parte dos historiadores. Não são poucos os que usam o termo feudalismo para caracterizar certos aspectos desse período. Uns falam em “uma confederação de estados feudais”,134 em que teria “se concluído 134 ALDRED, Op. cit. p. 104. O Egito Antigo 125 a evolução que transformou o cargo de nomarca, Na forma de produzir é que estariam as maiores de uma função real revogável, num senhorio divergências. O feudalismo era uma economia de e no qual “os mercenários núbios uso, que não buscava o excedente econômico, e quase feudal” 135 conseguiram Elefantina como feudo”.136 cuja relação do servo com o seu senhor era uma Na maioria dos casos, tais designações são relação direta de dependência e subordinação. decorrentes do fato que o que se está pensando No Egito, mesmo no 1° Período Intermediário, o quando se fala em feudalismo é um regime político excedente econômico era procurado para sustentar marcado pela descentralização do poder e as classes dirigentes provinciais, compostas de ausência de um Estado unitário e unificado. uma forte burocracia. Quem trabalhava na terra Como o feudalismo também é marcado pela não eram servos de nenhum senhor. Eram descentralização do poder e pela fragilidade do comunidades livres que sofriam uma espécie de Estado, o termo é usado por analogia. tributação coletiva por parte das elites dirigentes. Entretanto, autores filiados ao materialismo Tem, por fim, a visão de mundo dominante das termo elites. No feudalismo eram os valores da guerra feudalismo na perspectiva de um modo de e da violência que predominavam. No Egito era o produção (numa perspectiva abstrata) e de uma maat, da moderação e do autocontrole. histórico marxista, que consideram o formação social (numa perspectiva concreta) Segundo esses autores, vinculados a uma marcados pela articulação, numa sociedade, entre o visão marxista da história, o melhor conceito para modo de produzir, a organização política e as visões caracterizar o Egito Antigo é o de modo de produção de mundo dominantes, entendem que o conceito asiático. Seria aquela forma de produzir em que a feudalismo é inadequado. base econômica de uma sociedade é formada por Dos três níveis da formação social egípcia no 1º aldeias agrícolas coletivistas e indiferenciadas Período Intermediário, só o da organização política socialmente. Onde não existe a propriedade privada teria alguma semelhança com o feudalismo (nesse da terra e os meios de produção pertencem a todos último não existe burocracia que, no Egito, era e os membros da coletividade. Essas aldeias entregam continuou sendo bastante desenvolvida). uma parte dos seus excedentes econômicos a uma estrutura superior, o chamado Estado Despótico, 135 CASSIN, BOTTERÓ, VERCOUTTER, Op. cit. p. 258. 136 MELLA, Op. cit. p. 114. 126 Arnoldo Walter Doberstein através da tributação e dos trabalhos compulsórios coletivos. O Estado Despótico (faraós, cleros, elites administrativas) consegue esses excedentes, não O REINO MÉDIO porque detém os meios de produção (a terra, os instrumentos, os sistemas hidráulicos, etc.), mas O enunciado geral para o período chamado de porque manipulam o imaginário social, através da Reino Médio é que o Estado faraônico voltou a ser religião. um Estado unificado. O que fica em aberto é a No Antigo Reino, com o Estado centralizado, questão da nomenclatura a ser usada para aquilo que o que existiu, então, seria um modo de produção foi reunificado. Como devemos denominar a situação do Egito que antecedeu tal reunificação? Para tanto temos que voltar a questão tratada anteriormente, ou seja, como devemos caracterizar o 1º Período Intermediário? Dois conceitos estão disponíveis. Um é o de Estados feudais, analisado atrás. O outro é o de Reinos Confederados. A diferença entre os dois não é apenas uma questão de semântica. A adoção do primeiro conceito – Estados feudais Fig.170 - Esquema do Modo de Produção Asiático-Egípcio – induz a se pensar que a reunificação se processou asiático ampliado, com as províncias entregando a partir de um conjunto de Estados autônomos. De uma à quantos? Dez? Vinte? De 42, que eram os nomos do administração central. No 1º Período Intermediário, Antigo Reino? Ninguém se arrisca a dizer. Estados de Estado regionalizado, esse excedente deixou de independentes, igualmente desprovidos de recursos, ser repassado à administração central, mas o modo voltados para dentro, sem grandes atividades de produzir localmente ficou o mesmo, quer dizer, um mercantis. Claro que isso não é dito, mas fica modo de produção asiático restrito. implícito no uso do conceito, pois, afinal, feudalismo parte do seu excedente econômico é isso. Esse é o conceito, como também já se viu, largamente utilizado. O Egito Antigo 127 Uma reunifição de Estados Confederados formação de três confederações. A do Norte, liderada por Hieracópolis, a do centro, capitaneada por Tebas, A adoção do outro termo – Reinos Confederados e a do Sul, por Elefantina. Especulando um pouco mais, –, que alguns egiptólogos estão começando a usar poder-se-ia pensar que a fonte dessas 3 hegemonias (mas que ainda não está consagrado nos manuais viesse do controle das 3 principais rotas de negócios disponíveis) tem a vantagem de escapar da noção que o Egito explorava. A do Sinai teria ficado com de unidades fechadas, desprovidas de recursos e Hieracópolis. A do Mar Vermelho, via Wadi Hammamat, desinteressadas no comércio. Outra vantagem dessa com Tebas. A da Núbia, com Elefantina (Cfe.Fig. 171). noção é que ela induz a se pensar num número menor A ideia que se tem é que a reunificação se de organizações, já que o conceito “confederação” deu a partir da confederação liderada por Tebas, implica na ideia de uma associação de Estados, que primeiro teria dominado o sul, até Elefantina. autônomos em algumas coisas, mas subordinados a Teriam restado então duas confederações, a do Sul, um Estado maior, a um Estado líder, em outras. liderada por Tebas, e a do Norte, por Hieracópolis. Visto nessa segunda perspectiva, poderíamos vislumbrar a reunificação como sendo precedida da No confronto final, Tebas venceu Hieracópolis, reunificando o Egito. A XI Dinastia, dos Monthuhotep e da reunificação O príncipe que liderou a unificação era devoto do deus Monthu, representado como um falcão, com uma coroa formada de um sol e duas penas. O seu nome, em círculo na Fig. 172, era escrito da seguinte forma: Fig.172 - Relevo do rei Monthu, e seus respectivos hieróglifos. Fig.171 - Os Reinos hegemônicos do 1° Período Intermediário e seus possíveis eixos de comércio “externo“. 128 Arnoldo Walter Doberstein Fig.172A - Relevo de Monthu - Letra M. Monthuhotep I: uma guinada para a África? Fig.172B - Relevo de Monthu - Letra N. Governou de 2062 a 2012 a.C. Os primeiros Fig.172C - Relevo de Monthu - Letra T. vinte anos de seu governo, ao final dos quais trocou Fig.172D - Relevo de Monthu - Letra U. de nome pela primeira vez, foram destinados a (Campo, que correspondia ao som “m”) consolidar a unificação. Os métodos foram diversos. (Água, que correspondia ao som “n”) Desde o emprego da força até a negociação. Dos (Cabo: correspondia ao som “tch”, como em “tchê”.) príncipes locais, alguns foram demitidos, outros (Codorna: correspondia ao som “u” em português.) conservados, mas sempre formando os quadros de Antes da ascensão do deus Amon, na XII Dinastia, seus delegados provinciais e de representantes para Monthu era o deus principal de Tebas. Com a adoção missões especiais só com tebanos de origem. Os de Amon como deus dinástico foi dado a Monthu o anos seguintes foram de ações externas. Reabriu a papel de seu filho, até ser substituído nesse papel pelo rota da Núbia, bloqueada pelas tribos locais durante deus Khomsu. o 1º Período Intermediário. Incursionou pelo deserto O príncipe de Tebas que liderou a unificação oriental para assegurar a rota do Mar Vermelho. No passou, então, a se chamar de Monthuhotep Sinai, garantiu para o Egito o acesso às minas de (Monthu está satisfeito). A dúvida que existe é sobre turquesa. a quantidade de reis que, com este nome, fizeram parte da XI Dinastia. Uns falam em cinco (Mella, op. cit. p. 118). Alguns em quatro (Cardoso, op. cit. p. Ciro F.Cardoso: uma notável continuidade 106-107). Outros como Aldred (Op. cit. p. 114-116) e Ações de governo como as mencionadas acima Cassin, Botteró e Vercoutter (Op. cit. p. 271-278), em é que levam autores, como Ciro F. Cardoso, três. Estes últimos esclarecem um pouco a confusão. afirmarem que “existe uma notável continuidade É que o primeiro dos Monthuhotep, ao longo de seu histórica (grifo nosso) entre o Reino Antigo e o governo de 50 anos, teria trocado de nome três vezes, Reino Médio em termos de política (interna e assim que, aquele que o Mella chama de Montuhotep externa) e cultura”.137 III e o Ciro de Montuhotep II, para Cassin e Botteró seria o Montuhotep I. No presente estudo é adotada a nomenclatura de Cassin e Botteró. 137 CARDOSO, Ciro F. Sete olhares sobre a antigüidade. Brasília: UnB, 1998, p. 106. O Egito Antigo 129 Tal tese da continuidade histórica, aplicada aos numa espécie de clareira de uma pedreira. No centro grandes processos, não tem dúvida que se confirma. foi levantada uma pirâmide (letra A da Fig. 173), Na política externa, as ações dos governantes do tipicamente setentrional. Em torno da mesma foi Reino Médio constituem, basicamente, em reafirmar a levantada uma balaustrada de colunas (letra B), o que garantia da presença do Egito no Sinai, na rota do Wadi representou uma novidade. Uma rampa de acesso Hammamat, e na região entre a 1ª e a 2ª Catarata. Tal (letra C), já usada no Norte, ligava o conjunto a um como no Antigo Reino. Na política interna, as ações portão de entrada (letra D), uma inovação. governamentais consistiram em procurar o ponto de equilíbrio entre o centralismo e o regionalismo. Já no tocante à cultura, essa tese da notável continuidade não é tão pacífica. Aliás, isso foi lembrado pelo seu próprio autor quando enunciou que o referido enunciado só pode ser acatado “se descontarmos modificações secundárias ou de detalhe”.138 Nesse aspecto cultural, então, podemos lembrar o caso de certas manifestações em que estão presentes tanto a continuidade histórica como a modificação. Isso pode ser verificado, por exemplo, na análise dos elementos arquitetônicos que foram agregados ao Templo Funerário de Montuhotep I (Reprodução na Fig. 173). Ali estavam presentes tanto elementos da arquitetura tradicional do norte (onde as mastabas e pirâmides eram erguidas ao ar livre) como elementos do reino do Sul, cujos túmulos eram escavados nas rochas. Os arquitetos de Montuhotep I fizeram uma síntese dessas duas tradições. O conjunto foi erguido 138 Fig.173 - Reconstituição livre do Templo de Montuhotep e suas respectivas partes. Em torno da rampa foram plantadas árvores ornamentais (letra E, uma grande novidade) junto às quais foram colocadas diversas estátuas do faraó assemelhadas a da Fig.174, que acredita-se ser uma representação de Monthuhotep I. Na parte de trás foram feitos túmulos para os familiares e funcionários do rei (letra F, tradição do Norte), alguns deles escavados na rocha, uma tradição tipicamente sulista. Verifica-se, pois, uma notável continuidade, porém com várias mudanças. O que se pode discutir é se CARDOSO, Ibidem, p. 106. 130 Arnoldo Walter Doberstein as mudanças ocorridas foram apenas “secundárias”, muito como sustenta Ciro F. Cardoso. quase que deformados, e a Essa mesma questão pode se apresentar desproporcionais, cor escolhida para a figura, quando se trata da estatuária do um preto vivo que contrasta faraó Monthuhotep. Existe uma violentamente com o branco estátua (Fig. 174) que acredita-se do tecido. ter feito parte daquele conjunto de Nesse caso também figuras do rei colocadas no pátio se percebe a repetição de arborizado do seu templo funerário. padrões tradicionais. Mas, Ao lado dos signos tradicionais por outro lado, não se pode como a coroa e o barbicacho negar que o “peso” de suas da realeza, os braços cruzados, inovações é muito grande. portando o açoite e o cajado, Muitos autores, inclusive, aparecem características diferentes assinalam que Monthuhotep I cercou-se de pessoas da estatuária do Antigo Reino, como de origem núbia, quer dizer, da África negra. Cyril é o caso dos pés, desproporcionais Aldred, por exemplo, é um daqueles egiptólogos que ao resto do corpo. Fig.174 - O rei Monthuhotep. Fig.175 - O rei Monthuhotep. chama a atenção para o fato de que, “a cultura núbia Existe outra imagem do faraó Monthuhotep, a estava presente entre as pessoas que o rodeavam, qual foi milagrosamente conservada no interior do seu incluindo mulheres de pele escura (grifo nosso) templo funerário, enrolada em panos e praticamente e corpo tatuado, e em alguns artefatos, entre os intacta (Fig. 175). O faraó aparece sentado, num quais curiosos bonecos em forma de remo que eram alinhamento de absoluta verticalidade. Traz a coroa sepultados com elas”. 139 vermelha do Egito do Norte e está envolto num pano Seriam os pés e a cor negra uma influência de linho branco, usado no ritual do jubileu. Os braços das figuras totêmicas da África negra? Por que estão cruzados na altura do peito e também carrega não considerar tal hipótese? Mas daí teríamos, o barbicacho postiço. Todos esses aspectos alinham não uma mudança apenas “secundária”, mas uma a figura na representação tradicional dos antigos mudança considerável. faraós do Norte. As novidades são as pernas e pés, 139 ALDRED, Cyril. Op.cit. p.113. O Egito Antigo 131 No aditamento dessa tese das mudanças consideráveis, em decorrência de uma presumível “africanização” dos círculos ligados ao faraó, podem ser lembradas as tumbas de mulheres da corte (esposas do rei?), as quais, na pintura, são pintadas de negro (Figs. 176-177), e, nos relevos, revelam caracteres africanos (Fig. 178). Fig.178 - Relevo da tumba da “princesa“ Ashayt, época de Monthuhotep I, cujas feiçoes apresentam traços negroides. Monthuhotep II: incursões no Wadi Hammamat Sobre o sucessor de Monthuhotep I o que se sabe é que teve um reinado bastante curto. Não obstante, Fig.176 - Pintura mural da Tumba da Rainha Kawit, para alguns uma presumível “rainha“ núbia da corte de Monthuhotep. parece que realizou muitas obras nos templos, principalmente no Norte, com trabalhos de relevo de como admirável sobriedade. Outra marca de seu governo indicativos dessa suposta “africanização” da corte foram as grandes expedições na rota do Wadi de Monthuhotep são aquelas de serviçais e, muito Hammamat. O intendente Henenu, comandante de especialmente, uma delas, deixou gravado nas pedreiras do local o dos chamados relato da expedição. Uma parte da expedição ficou “guerreiros núbios”, extraindo blocos de pedra, enquanto a outra seguiu a nos quais também pé até o Mar Vermelho, com produtos e o madeirame aparece para construir navios. Ao longo dos quase 60 Outras figuras a que são lembradas cor quilômetros que separam as pedreiras do litoral escura. Fig.177 - Pintura mural das mulheres de cor escura da corte de Monthuhotep. do Mar Vermelho foram perfurados 12 poços para suprir o comboio de água. Chegando à margem, os barcos foram montados e a expedição seguiu até o 132 Arnoldo Walter Doberstein país do Punt, de lá retornando com a preciosa carga dinastia podem ter omitido, deturpado ou até mesmo de incenso e ervas aromáticas. difamado o governo do último governante para justificar a sua ascensão ao poder. O que sabemos de Monthuhotep III: uma difamação pósteralegitimante? Monthuhotep III vem principalmente dos relatos que seu vizir Amenhemat deixou gravado nas pedreiras do Wadi Hammamat. Esse Amenhemat parece ter No caso do último faraó da XI Dinastia, o rei sido aquele mesmo que inaugurou a nova dinastia. Monthuhotep III, repete-se o caso de outras situações Nesses relatos ele se diz a serviço do rei anteriores, cujas informações sobre o governo dos Monthuhotep III, comandando uma expedição de reis que encerram uma dinastia escasseiam de tal 10.000 homens mal supridos de água e alimentos. forma que se fica com a impressão que os mesmos A água teria sido encontrada por iniciativa do vizir, foram marcados por crises e descalabros. Foi assim escavando mais poços na região, ou então meio com Scepceskaf, da IV Dinastia, Unas, da V, e Pepi que “milagrosamente”, em razão da boa “sorte” do II da VI Dinastia. comandante, que voltou ao Egito sem perder um só No caso de Montuhotep III muitas fontes, como dos homens a ele confiados. A esse relato soma- o Papiro de Turim, nem mesmo o incluem na lista se um outro, do governo de Monthuhotep II, em dos reis que governaram o Egito. É necessário, pois, que um alto funcionário deixou no seu túmulo as que não se tire do “silêncio das fontes”, indicativos correspondências do pai, um sacerdote funerário de necessários de caos e anarquia. Federico Mella, por nome Hekanakt, numa das quais se fala em escassez exemplo, afirma que o faraó Monthuhotep II (que de alimentos durante a qual “se teria começado a ele intitula de Monthuhotep IV, pelos problemas de comer carne humana.”141 tríplice nomenclatura assumida por Monhtuhotep É possível que esse estigma de governo I) teria sido “derrubado pelo corrupto (grifo nosso) “corrupto”, como diz Mella, tenha se constituído pela Monthuhotep V.” combinação dessas fontes. Isso não significa que tais 140 Esse “silêncio das fontes” pode ter sido produzido, fontes não devam ser consideradas, nem que esses posteriormente, na lógica de uma “legitimação dois governantes tenham sido “injustamente” tratados póstero-difamante”. Ou seja, que os faraós da próxima 140 MELLA, Federico A. O Egito dos Faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.118. 141 CASSIN E.; BOTTERÓ J. e VERCOUTTER J. Los imperios del Antiguo Oriente. México: Siglo veinteuno, p. 275. O Egito Antigo 133 de tiranos e corruptos. Assim como aconteceu com disse “filho de uma mulher de Taseti”, que era como Queóps, a difamação póstera pode ter sido uma boa os egípcios chamavam a região de Elefantina, no razão para acontecer. O que aqui se está sugerindo extremo Sul do Egito. Os primeiros vinte anos de seu é para que não se tire, do “silêncio das fontes”, mais governo foram dedicados, ao que parece, a tarefa de coisas do que esse “silêncio” permite. reconstituir os mecanismos de poder que, ao longo do 1º Período Intermediário, tinham se deteriorado. A XII DINASTIA Alguns autores, especialistas em Médio Reino, afirmam que “o seu governo não é conhecido senão Como quase sempre acontece, o transcurso da por algumas raras representações, alguns relevos e XI para a XII Dinastia está envolto em mistério. A estátuas, que não permitem julgar a situação do impressão mais comum entre os historiadores é que seu governo”.142 Uma dessas “raras representações ela foi acompanhada de um “golpe de Estado”, pelo e estátuas” de Amenhemat I se qual o vizir Amenemat (literalmente “Amon (Amen) encontra do Museu do Cairo. está (ne) na cabeça (mat)”, no sentido de “Amon Bastante danificada – faltam o está no alto”) teria sido conduzido ao poder depois braço direito, o nariz e parte do de um período que se supõe conturbado, com uma klaft (Fig. 179). Suas fotografias forte oposição que, inclusive, poderia ter assumido são quase sempre no mesmo o caráter de uma guerra civil entre os partidários do ângulo para dis-simular esses novo rei (incluído aí o clero de Amon) e os partidários seus “defeitos”. No que diz respeito às marcas de seu governo, do rei “deposto” (incluído aí o clero de Monthu). Mas tudo isso, por enquanto, são hipóteses de pesquisa Fig.179 - Uma das raras imagens de Amenemat I. Federico Arbório Mella descreveu-o como ainda não inteiramente comprovadas. um grande mestre da “Real Politik”, que organizou um grande emaranhado de entendimentos e acordos, utilizando-se dos príncipes fiéis contra os obstinados (...) e apoiando-se, em caso de necessidade, na burguesia (??) ou diretamente no povo (grifo nosso).143 Amenemat I O primeiro faraó da XII Dinastia reinou por 30 anos, de 2001 a 1971a.C. Sua origem não está ligada à dinastia anterior. Nas Profecias de Neferti ele se 134 Arnoldo Walter Doberstein 142 CEPKO, Roselyne. La XII dynastie égyptienne. In: Archeólogia, nº 377, abr/2001, p. 31. 143 MELLA, Federico A. O Egito dos Faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.120. Já Ciro F. Cardoso, muito menos enfático, limitou- Uma nova capital se a comentar que, “quando de sua usurpação Uma apoiou-se nos nomarcas, aos quais restaurou alguns das mais marcantes realizações dos títulos e privilégios.”144 Cassin, Botteró e Vercoutter, por sua vez, do governo de limitaram-se a comentar que ele, “não mudou nada na Amenemat I foi a organização dos nomos e respeitou a hereditariedade edificação de uma dos cargos de nomarca (...) mas tratou de controlar nova capital. a administração provincial, instalando revisores reais Tratava-se capital junto aos nomarcas.”145 Nada de “apoio no povo”. Muito menos numa suposta “burguesia”, como sugere Federico Mella. A especialista em Reino Médio, Roselyne Cepko, nas de fortificada, proximidades de Mênfis e do Lago Moeris (Fig. por sua vez, enfatizou que “nenhum documento datado A é anterior ao 22º ano de seu governo e a apreciação a de sua política se torna difícil (grifo nosso).” Amenemat Ity-Tauy 146 Como se pode perceber, discrepâncias é que não faltam nas considerações sobre os acontecimentos cidade 180). se passou chamar de Fig.180 - Mapa da região do Lago Moeris e da cidade de Ity-Tauy.. (literalmente “Amenemat conquistador das duas terras”), ou simplesmente Ity-Tauy. do Antigo Egito. O que é natural. Se até na história Especula-se que o rei transferiu a capital de sua recente, com sua fartura documental, as controvérsias cidade natal (Tebas) por diversos motivos, tais como: existem, quanto mais na antiguidade, em que muitas a) por receio de uma tentativa de golpe por parte vezes tem-se que reconstituir os acontecimentos a da família dos Monthuhotep, de Tebas; b) para ficar mais próximo do clero de Rá, partir de umas poucas informações. estabelecido em Mênfis, em busca de apoio político e das antigas escolas de escribas estabelecidas em 144 CARDOSO, Ciro. Sete olhares sobre a antiguidade. Brasília: UnB, 1988. p. 108. Heliópolis, à procura de apoio administrativo.147 c) para ficar mais próximo das províncias do Norte, 145 CASSIN E.; BOTTERÓ J. e VERCOUTTER J. Los imperios del Antiguo Oriente. México: Siglo veinteuno, p. 282. 146 CEPKO, Roselyne. La XII dynastie égyptienne. In: Archeólogia, nº 377, abr/2001, p. 37. 147 CASSIN et Allii. Op. cit. p. 279. O Egito Antigo 135 supostamente mais refratárias ao novo poder vindo do mesmo à noite seu lume está aceso (...) O joalheiro: ao cair da tarde, seus joelhos e costas estão vergados (...) O barbeiro: trabalha até o anoitecer; só come o quanto trabalha (...) O colhedor de papiro: os mosquitos e as pulgas devoram-no (...) O oleiro: cobre-se de lama e só respira o ar da fornalha (...) O pedreiro: tem os quadris sempre doloridos, come pão e lava os dedos ao mesmo tempo (...) O carpinteiro: leva um mês para terminar o trabalho e o que ganha não basta para os seus filhos (...) O lavrador lamuria-se mais que galinha d’angola e grita mais alto que o corvo; seus dedos são inchados e fedem ao extremo (...) O tecelão na oficina é mais desventurado que uma mulher; com os joelhos contra a ventre não pode respirar direito; se ficar um dia sem tecer leva cinqüenta açoites; suborna o porteiro para ver a luz do dia (...) O mensageiro vai para fora do país e, com medo dos leões e dos asiáticos, lega os seus bens a seus filhos (...) O lavador lava nas margens do rio com os crocodilos próximos; dão-lhe roupa de mulher menstruada para lavar.Eis que não há profissão sem chefe, exceto a do escriba; ele é chefe. Se souberes escrever, esta será para ti melhor que as outras profissões. Ainda te direi outras coisas para instruir-te no que deves saber. Se vires uma briga não te aproximes dos contendores. De pessoas importantes, sempre te mantenha na retaguarda, a uma boa distância. Se o dono da casa que visitares estiver com outra pessoa, espera tua vez calado. Não fales de coisas reservadas. Com um superior não profiras palavras impensadas. Ao saíres da escola, no intervalo do meio-dia, discuta a última parte da lição. Não omitas, nem acrescentes nada a uma mensagem que te foi entregue por uma pessoa importante. Não digas mentiras à respeito de tua mãe. Procure ouvir os notáveis; poderás adquirir os modos dos bemnascidos se seguires os seus passos. Honra teu pai e tua mãe, que te puseram no caminho da vida. Que isto sirva para ti, para teus filhos, e para os filhos de teus filhos. O livro chegou ao fim.150 Sul148, assim como para ficar mais perto da Síria e da Palestina, a fim de facilitar os intercâmbios comerciais.149 d) para melhor administrar as obras hidráulicas na reserva de El-Fayum (no Lago Moeris), visando a obtenção de novas terras cultiváveis, cujos rendimentos reforçariam o orçamento real. A “Sátira dos Ofícios” Foi na nova capital que se abriram escolas para a formação de futuros funcionários da administração real, escribas leais ao novo governo. Um texto que circulava nessas escolas era o Kemit (ou, o Livro das Instruções), mais conhecido como a Sátira dos Ofícios, denominação dada pelo grande egiptólogo Gaston Masperó. O seu tema: um pai conduz o filho para a escola e aproveita o ensejo para os seguintes ensinamentos: Lê o final do livro do Compêndio e encontrarás a seguinte sentença: um escriba, em qualquer cargo da Residência, jamais sofrerá padecimento (...) Farei com que ames os livros mais do que a tua mãe (...) É a mais importante das ocupações, não há outra como ela no Egito. Mal cresce, ainda criança, ele já é saudado; enviam-lhe para transmitir mensagens antes de chegar à idade de vestir avental. O ferreiro: seus dedos parecem garras de crocodilo e fedem mais que ovas de peixe (...) O marceneiro: seu trabalho nunca acaba; 148 MELLA. Op. cit. p. 120. 149 CARDOSO, Ciro F. Op. cit. p. 109. 136 Arnoldo Walter Doberstein 150 Tirado de ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a Eternidade: a literatura no Egito faraônico. Brasília: UNB, 2000, p. 219-224. roubará para viver. Não existirá Heliópolis, lugar do nascimento dos deuses. Então um rei virá do Sul, chamado Ameny (forma familiar-carinhosa para Amenemes, ou Amenemat). Ele é filho de uma mulher de Ta-Seti. Alegrai-vos, oh! gentes de seu tempo. Os mal-intencionados e os conspiradores reprimirão suas palavras com medo dele. Os asiáticos cairão por sua espada, os líbios por seu fulgor, os rebeldes por sua ira. Serão levantadas as Muralhas do Soberano, para impedir a entrada dos asiáticos no Egito. Para que seus animais possam beber, eles pedirão água, como sempre. Maat voltará a seu lugar. A narrativa chegou ao fim.151 As “Profecias de Neferti”, ou a Literatura de Propaganda Ocupante ilegítimo do trono, Amenemat I precisou legitimar-se. Valeu-se, então, de uma literatura de propaganda, em que aparecia como o responsável pela ordem social e pelo equilíbrio da ordem cósmica. O texto começa como se a trama se passasse na época de Snofru, da IV Dinastia. Desejoso de saber o que estava por vir, o faraó manda chamar o profeta Neferti, que assim se manifesta: Oh! Meu coração, chora esta terra, da qual tú mesmo nascestes. Calar-se é um ato nocivo, porém quem fala merece respeito. Repara, o homem grande foi destronado, na terra onde ele nasceu (...) Vou descrever-te o que está diante de mim, não predicarei nada que não vai acontecer: Ficarão secos os rios do Egito e suas águas serão transpostas à pé; buscar-se-á água para que os barcos naveguem; seu curso se converterá em terra, e a terra será convertida em água. O Vento do Sul combaterá o Vento do Norte, o céu não terá mais um vento único. Pássaros estranhos (uma alusão aos beduínos estrangeiros) se multiplicarão nos pântanos do delta, fazendo seus ninhos próximos da gente porque, por negligência, foi-lhes permitido que se aproximassem. As coisas agradáveis serão destruídas. Toda felicidade desaparecerá, o país cairá em tristeza, trazendo esses parasitas asiáticos que vagam pelo país. Os inimigos chegarão pelo Leste, os asiáticos descerão ao Egito. (...) Privado de artigos, sem colheitas, o que se faz é como se jamais tivesse sido feito. Confiscar-se-á os bens de um homem, dando-se-lhes a um estrangeiro. Eu te mostro o senhor na indigência, e o estrangeiro em fartura (...) Eu vejo um país empobrecido, mas seus governantes são muitos. O país está desnudo, mas seus impostos são grandes. O grão é pouco, mas a medida do imposto é grande. (...) Os homens viverão em necrópolis. O mendigo ganhará riquezas. O Grande Senuosret I (ou Sesóstris I) O sucessor de Amenemat I foi seu filho Senuosret I que, nos manuais de divulgação, é comumente chamado de Sesóstris. Especialistas como Ciro F. Cardoso insistem na impropriedade de se usar esse nome grego, de um personagem mitológico, fictício e tardio, no qual se associaram feitos dos faraós do Médio Reino e do Novo Reino, como Ramsés II.152 Seu reinado, de 43 anos (1971-1928 a.C.), é considerado por muitos como “um dos mais grandes do Egito Antigo”153 e, em parte, confirma a afirmação de Ciro F. Cardoso de que “ a nova dinastia (no caso, a XII) foi marcada por algumas mudanças de certa importância (grifo nosso)”.154 151 Tirado de PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Ediciónes Istmo, 1991. p. 98-102. 152 CARDOSO, Ciro F. Op. cit. p. 107. 153 CASSIN et Allii. Op. cit. p. 291. 154 CARDOSO, Ciro F. Op. cit. p. 107. O Egito Antigo 137 Mas nunca é demais insistir que, em alguns insistirmos que, em muitos aspectos, a XII Dinastia aspectos, a XI Dinastia dos Monthuhotep fez mais esteve bem mais próxima do Antigo Reino do que a XI. “mudanças de certa importância” do que a XII. Na estatuária faraônica, por exemplo, a XII Dinastia, parece que imitou muito mais as estátuas do Antigo Reino do que os faraós da XI Dinastia. Veja-se o caso das estátuas dos reis Quéfren, do Reino Antigo, do faraó Monthuhotep (centro), da XI Dinastia, e do rei Senuosret I, da XII (direita). Fica evidente que este último, muito mais do que o segundo, quis retornar aos padrões vigentes no Antigo Reino. Fig.182 - Restos da pirâmide de Senuosret II, XII Dinastia. As “Instruções para meu filho Senuosret”, ou “Não tive nada a ver com isso!” As circunstâncias da ascensão ao trono de Senuosret I deram origem a um texto “sui-generis”. Trata-se do “As instruções para meu filho Senuosret” que ele mandou redigir para relatar a morte do pai, quem sabe para afastar de si alguma suspeita de envolvimento na conspiração e, também, para anunciar a seus eventuais leitores como o governante deve ser desconfiado, duro, e até mesmo meio terrorista em Fig.181 - Quéfren (esq.), Monthuhotep (centro) e Senuosret I (dir.). relação a seus súditos. É um tipo de discurso bastante Se lembrarmos, ainda, que o faraó Monthuhotep diferente, por exemplo, daqueles ensinamentos mandou erguer como túmulo um templo funerário, do Antigo Reino, cujo conteúdo girava em torno e que os reis da XII Dinastia voltaram a construir dos preceitos da moderação e do autocontrole. Por pirâmides (Fig. 182), seria mais um motivo para conseguinte, ainda que como gênero o texto seja 138 Arnoldo Walter Doberstein uma continuidade, seu teor revela uma importante região para obter produtos exóticos como marfim e mudança. O texto está vasado nos seguintes termos: peles de leopardo. A partir de Senuosret I começaram Palavras de Sua Majestade, rei do Alto e Baixo Egito, Seheteibra, filho de Rá, Amenhemat, o justo de voz, quando ele falou para revelar a verdade a seu filho, o Senhor de Tudo. Ele disse: Tu que aparecestes solenemente como um deus, escuta o que vou dizer-te, para que possas ser rei do país, governar as duas Margens, e aumentar seu bem-estar. Desconfia de teus subordinados (grifo nosso), para que não ocorra algo de cujo perigo não estás informado. Não te aproximes deles quando estiveres sozinho. Não confie em irmão, não conheça amigos (idem), não faça confidentes, pois em nada disso há proveito. Quando dormires, que seja só teu coração aquele que cuida de ti, pois no dia da adversidade nenhum homem tem amigos. Eu dei ao mendigo, criei o órfão, fiz prosperar ao pobre e ao rico. Mas aquele que comia do meu pão levantou-se contra mim. (...) Foi depois do jantar, ao cair da noite. Meu coração começava a seguir-me no sono quando armas destinadas à minha proteção se voltaram contra mim (...) Repara, a agressão aconteceu quando eu estava sem ti, antes que minha corte soubesse que eu colocara a mão sobre ti (ou seja, reconhecera Senuosret como seu sucessor), antes de eu sentar ao teu lado e poder advertir-te.155 a ser exploradas, pelos próprios egípcios, as minas de ouro do Sudão, o qual se converteu no mais almejado produto da Núbia. Relações amistosas com o Norte Já no tocante ao Norte, as importantes mudanças da política externa correram por conta de uma alteração das relações com as populações do atual Oriente Médio, que os egípcios chamavam de asiáticos. No Antigo Reino essas relações foram de enfrentamento e indisposição (veja-se o conteúdo de textos como As admoestações de Ipu-ur e as Profecias de Neferti sobre os “asiáticos”). No governo de Senuosret I passaram a ser de entendimento e cooperação. Como testemunhos dessa “política de regalos” são tomadas A exploração do ouro da Núbia as diversas estátuas de Senuosret I na Península do Sinai e no Corredor Palestino, a ausência de registros Uma das importantes mudanças da política externa de alusões aos habitantes da região como inimigos, o do Egito, a partir do Médio Reino, foi a exploração da conteúdo das Aventuras de Sinuhe (um conto literário Núbia para a obtenção do ouro. Anteriormente, a em que um egípcio viveu diversos anos como hóspede política em relação à Núbia era a de ter acesso à dos beduínos), além de estátuas e objetos egípcios encontrados em Creta, assim como objetos cretenses 155 Tirado parcialmente de PEINADO, Federico Lara. El Egipto Faraónico. Madrid: Ediciónes Istmo, 1991. p. 82-84 e ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a Eternidade: a literatura no Egito faraônico. Brasília: UNB, 2000, p. 295297. encontrados no Egito. Tais contatos, pensam alguns, ainda não eram diretos, mas intermediados pelas cidades da Síria. O Egito Antigo 139 Edificações religiosas: a “Capela Branca” de Karnak (Tebas) Entre os empreendimentos de seu governo, os autores destacam as obras de restauração do templo de Rá, em Heliópolis, e a edificação de um pequeno templo do deus Amon, em Karnak (Tebas), do qual fazia parte uma capela, a chamada Capela Branca. No decurso de intervenções posteriores, suas pedras foram utilizadas para as fundações dos pilones do Templo de Amon, em Karnak. Em recentes escavações seus blocos foram recuperados e a capela remontada (Fig. 183). energias do faraó. Pelo detalhe da Fig. 184, em que o faraó Senuosret I aparece oferecendo óleos ao deus Amon, já transformado em Osíris, e com a correspondente vitalidade divina (simbolizada no falo ereto), não se deve tirar conclusões apressadas, do tipo: Senuosret era um homossexual. Temos que levar em conta o conjunto da obra, não apenas um recorte parcial. Fig.184 - Detalhe da Capela Branca de Karnak. Amenemat II: o faraó das esfinges colossais O sucessor de Senuosret I foi seu filho Amenemat II (1928 - 1897 A.C.), o qual foi associado ao trono no final do governo de seu pai. Apesar do longo reinado de 30 anos, a documentação de seu governo é mínima. Até seus monumentos são escassos. Fig.183 - A Capela Branca de Senuosret I recuperada. Paradoxalmente, dele sobreviveram duas colossais A Capela Branca servia como uma espécie de esfinges. A de 4,80 m de comprimento (Fig. 185) “pavilhão de descanso”, no interior do qual o faraó está no Louvre e o curioso é que ela sobreviveu repousava e se preparava para o cerimonial do como sendo de Ramsés II, faraó do Novo Reino que Festival Sed. O seu valor iconográfico é imenso, se apropriou de várias estátuas do Médio Reino e pois em toda sua superfície foram feitos relevos com colocou nelas o seu nome. a descrição dos rituais e das fórmulas mágicas que acompanhavam esse festival de revitalização das 140 Arnoldo Walter Doberstein os cargos públicos e as propriedades a eles ligadas, eram comprados e vendidos. Senuosret III: a estabilidade como apogeu Governou o Egito por 35 anos (1878 - 1843 a.C.). A ideia que alguns autores têm de seu governo é que o mesmo, durante o Reino Médio, foi o período de: a) máxima expansão externa; b) consolidação do poder da monarquia sobre os poderes independentes internos. Por essas razões a ideia de um apogeu faz parte da avaliação de muitos historiadores. Ciro F. Cardoso fala que “no apogeu (grifo nosso) da Dinastia, Senuosret decidiu suprimir a importância e Fig.185 - Esfinge de Amenemat II. a própria função dos nomarcas, confiando o governo das províncias a três departamentos administrativos Senuosret II e a escassez das fontes (uáret) em Ity-Tauy”.156 A mesma escassez de fontes oficiais marca o governo de Senuosret II (1897 - 1878 a.C.). O destaque de seu governo é a documentação encontrada nas escavações realizadas em sua pirâmide (Fig. 182) que, tal como a dos outros reis da XII Dinastia, foi construída com tijolos e recoberta com pedras de calcário, não resistindo por muito tempo. Nas escavações foram encontrados papiros com detalhes da administração que comprovam, por exemplo, que Cassin, Botteró e Vercoutter também se alinham na mesma direção, afirmando que “sob o seu reinado foi quando o Egito do Médio Império conseguiu seu apogeu.”157 O indicativo desse alegado apogeu teria sido “a supressão dos cargos de nomarca”. Outros autores preferem destacar que o que diferenciou seu governo dos anteriores foi sua ação militar na Núbia, onde estabeleceu, próximo da 2ª catarata, um sistema 156 CARDOSO, Ciro F. Sete Olhares sobre a antiguidade. Op. cit. p. 108. 157 CASSIN et Allii. Op. cit. p. 293. O Egito Antigo 141 de fortificações que filtrou e interditou o acesso à seria decorrente, em região a qualquer incursão que não fosse autorizada. grande O controle sobre a Núbia teria sido tão completo grandes que culminou com a hidráulicos, realizados própria na divinização parte, dos trabalhos reserva de El- de Senuosret III na Fayum, que os seus região, até meados antecessores do Reino.158 iniciado, mas que, com Pelo que restou de Amenemat III, teriam suas estátuas (Fig. “chegado ao auge”160 186) deve ter sido um e sido encarados “com faraó muito enérgico mais rigor.”161 Novo teriam Fig.187 - Amenemat III dentro do estilo Severo. e severo. É o que passa de seus traços fisionômicos. Uma Fig.186 - Senuosret III dentro do estilo Severo. importante mudança verificada na representação desses dois últimos faraós da XII Dinastia – Senuosret III (Fig.186 ) e Amenemat III (Fig. 187) – foi a substituição das imagens serenas Amenemat III: as realizações como um apogeu Já outros autores preferem considerar o governo de seu sucessor, Amenemat III (1842 - 1797 a.C.), como sendo aquele em que o governante e impassíveis dos faraós do Antigo Reino, pela de governantes com as feições mais enérgicas, duras, contraídas e até mesmo um tanto ameaçadoras. É um estilo da estatuária faraônica que poderíamos chamar de ESTILO SEVERO. “tendo herdado um reino rico, organizado e seguro, dedicou-se exclusivamente às grandes campanhas de paz, elevando o Egito ao mais alto grau de prosperidade.”159 Esse alto grau de prosperidade 158 CEPKO, Roselyne. Op. cit. Archeólogie, mai/2001, n° 378, p. 45. 160 CARDOSO, op. cit. p. 109. 159 MELLA. Op. cit. p. 126. 161 MELLA, Op. cit. p. 128. 142 Arnoldo Walter Doberstein O 2° PERÍODO INTERMEDIÁRIO Os hicsos: sua origem e chegada no Egito Mais ou menos entre 1750 e 1720 a.C. os egípcios perderam o controle da região do delta para O final da XII Dinastia Os governos de Senuosret III e de Amenemat III, juntos, completaram quase um século. Os sucessores de Amenemat III foram faraós que assumiram o governo já com a idade avançada. Alguns autores até mesmo sugerem que esse fato pode ter contribuído para as dificuldades ocorridas no reinado dos dois últimos governantes da XII Dinastia.162 O esquema interpretativo, nesse caso, é o mesmo que alguns empregam para explicar a erosão do poder faraônico na VI Dinastia, ou seja, com a longevidade de Pepi II. Seja como for, o fato é que foram reinados curtos. Segundo Manethón, a última governante da XII Dinastia foi uma rainha de nome Sebekneferu, cujo nome foi encontrado num grande número de monumentos. Isso parece indicar uma demorada regência ou, também, a inexistência de um filho varão para continuar a sucessão. Foi nessa situação de indefinição que os hicsos encontraram o Egito, quando de sua chegada na região, por volta de 1750 a.C. 162 CASSIN et Allii, Op. cit. p. 298. um conjunto de pessoas que aí fundaram uma cidade – Avaris – e, mais tarde, por volta de 1640 a.C., formaram uma ou duas dinastias, que controlaram a região desde o Delta até o médio Nilo, mais ou menos até Tebas. Estes são os fatos dos quais temos uma razoável certeza. Sobre o resto ainda permanecem muitas dúvidas. A primeira pergunta: quem eram e de onde vieram os hicsos? Os egípcios chamavam-lhes de hecau-khasut, que significava “governantes de terras estrangeiras”. Mas e sua etnia? A resposta mais tranquila é que seria uma população mista. Ciro Flamarion Cardoso fala que eram “asiáticos majoritariamente semitas” talves vinculados “às migrações amoritas”.163 Giordani fala em “emigrantes das estepes euroasiáticas.”164 Mella sugere uma “mistura de semitas e indo-europeus, talvez partida do Cáucaso.”165 Segunda questão: como chegaram ao Egito? Aqui a interpretação primitiva foi a da “súbita irrupção de uma orda conquistadora”, formulada por Manethón e por largo tempo reproduzida. Atualmente a ideia 163 CARDOSO, Op. cit. p.110. 164 GIORDANI, Op. cit. p.72. 165 MELLA, Op. cit. p. 131. O Egito Antigo 143 mais aceita é a de uma infiltração inicial (1750 a.C.), (grifo nosso) de guerra, puxado por dois cavalos.” 167 seguida de uma declaração de soberania (por volta Para essa antevisão de um exército egípcio sendo de 1720 a.C.), e, depois, da vinda de um exército “atropelado” pelos hicsos, por certo que os próprios para dar sustentação aos domínios conquistados. egípcios contribuíram. Ocorre que, posteriormente, Terceira questão: por que o Egito não pode evitar quando passaram a se utilizar da mesma tecnologia, a infiltração e, depois, enfrentar o exército invasor? A os faraós se faziam representar dessa forma, explicação tradicional, nesse caso, é a superioridade “passando por cima” dos adversários, como é o caso de armamentos: armas de bronze, escudos, do faraó Tutankamon, da XVIII Dinastia (Fig. 189). capacetes, armaduras e, sobretudo, os carros de guerra puxados por cavalos (Fig.188). Fig.188 - Desenho do carro de Guerra do Novo Reino. O quadro normalmente traçado é de um confronto Fig.189 - Ilustração de uma cena de guerra, tirada do mobiliário do faraó Tutankamon, no Novo Reino. extremamente assimétrico. Os egípcios lutando a pé, vestidos com simples saiotes, alinhados em falanges, protegidos de escudos de madeira, com flechas de curto alcance e lanças feitas de pau. Os hicsos, com o corpo protegido por couraças de metal, arcos e flechas de longo alcance e, o mais Os hicsos no Egito: um desastre civilizatório? desigual, “atropelando” o inimigo com os carros de guerra puxados a cavalo. Alguns chegam até a falar em “carros de guerra puxados por cavalos que desorientaram a defesa egípcia” 166 , ou até mesmo “arcos de longo alcance e, principalmente o tanque 166 GIORDANI, Op. cit. p. 72. 144 Arnoldo Walter Doberstein Durante um bom tempo muitos historiadores inclinaram-se a aceitar a Fig.190 - Rainha Hatseptsut versão dos próprios egípcios, que viam a presença dos hicsos no seu país como um verdadeiro desastre 167 MELLA, Op. cit. p. 131. civilizatório. Em diversas fontes egípcias podemos Tivemos um rei chamado Toutimaios. Não sei como, sucedeu que no seu tempo estivesse Deus contra nós e então vieram do Oriente uns homens de raça ignóbil e, de tal forma, que tiveram a ousadia de invadir o nosso país e facilmente o submeteram pela força, sem uma batalha sequer. E logo que tiveram em seu poder os nossos principais, queimaram nossas cidades, derrubaram os templos (grifo nosso) dos deuses e maltrataram os habitantes: mataram alguns e levaram em cativeiro os outros, com suas mulheres e filhos.169 encontrar esse discurso do colapso civilizatório, como no caso das crônicas da Rainha Hatseptsut (Fig. 190), da XVIII Dinastia, que diziam que, Restaurei tudo o que havia sido destruído. Levantei outra vez o que antes (de mim) havia sido destroçado, desde que os asiáticos estiveram no centro de Avaris, (grifo nosso) do Delta, e vagabundos foram em seu centro, derrubando o que havia sido feito, porque governavam sem Rá, e não obraram por mandato divino até (o reinado de) minha majestade (...) Tornei distantes (mandei para longe) aqueles a quem os deuses abominam e a terra dissipou seus rastros.168 Outra fonte que se refere aos hicsos como um desastre civilizatório é a “Aegyptíaca” de Manethón. O fato desse esquema interpretativo ter sido por largo tempo acatado, em parte teve a ver com as teses de Oswald Spengler sobre a decadência do ocidente, sendo que alguns viam nas causas dessa decadência uma presumível influência de culturas “não ocidentais”. A versão que conhecemos não é do original, já que esta se perdeu no incêndio da Biblioteca de Os hicsos no Egito: bárbaros aculturados? Alexandria. O que temos é uma descrição do relato de Manethón recolhido na obra Antiguidades Judaicas historiadores europeus situados entre o final do séc. de XIX e primeira metade do século XX, foi ver nos hicsos Flávio Josefo (37-103 d.C.), um caso típico de bárbaros invasores que, frente a que apresenta uma história uma “cultura superior” que eles dominaram pela força, dos judeus desde o Gênesis passaram por um processo de aculturação, através até a Guerra contra Roma. do qual perderam suas próprias referências culturais, Ao se referir à permanência dos hebreus no Egito ele transcreveu uma passagem renunciando de bom grado sua própria identidade. A interpretação que se faz é que esse conceito Fig.191 - Retrato estimado de Flávio Josefo. da “Aegyptíaca”, em que Manethón teria escrito que 168 Outro esquema, muito recorrente entre os In: WILSON, John A. La Cultura Egípcia. México: Fundo de Cultura, 1953, p. 237. de aculturação partia do suposto que quando duas 169 In: GIORDANI, Mário Curtis. História da Antiguidade Oriental. Petrópolis: Vozes, 1963, p. 71. O Egito Antigo 145 culturas se cruzam, e sendo uma delas “superior” Esse esquema explicativo, apesar de atualmente (por ser a mais “civilizada”) e a outra “inferior” (por superado, continua sendo adotado por muitos autores ser a mais “primitiva”) esta última sempre acaba contemporâneos. Esse é o caso de Federico Arbório se rendendo aos padrões da primeira, ou seja, se Mella, que assim se manifesta sobre o tema: “aculturando”. Diz-se, também, que esse conceito A invasão, a primeira na história do Egito, parece que se deu sem luta. Os recém chegados, embora usando às vezes o punho de ferro dos dominadores, não foram totalmente insensíveis a uma civilização tão superior à sua, mas chegaram a absorvê-la naturalmente, pois Ciarak conseguiu todas as prerrogativas e os títulos de um faraó egípcio. Este império foi constituído, pois, de um conjunto de cidades-estado dirigida por guerrilheiros aliados, de procedências variadas. E, por conseguinte, sem uma civilização própria definitiva. A presença no Egito destes conquistadores não provocou nenhuma inovação (grifo nosso).171 correspondeu àquele período histórico de dominação do imperialismo europeu sobre o mundo “colonizado” da América, África e Oriente. Esse esquema pode ser identificado em historiadores de todas as nacionalidades. Um, entre tantos exemplos, pode ser o do célebre egiptólogo francês Gaston Masperó (Fig.192) (1846-1916) que, no seu Este esquema interpretativo de Mella, em linhas clássico Histoire ancienne des gerais, coincide com os principais argumentos peuples de l’Orient Clássique, daqueles que se utilizam da ideia dos hicsos como editado em 1895-97, assim se “bárbaros manifestou sobre a presença dos hicsos no Egito: Fig.192 - Gaston Masperó. Não obstante, ainda que os conquistadores conservassem a superioridade no plano militar, se reconheciam inferiores a seus súditos em cultura moral e intelectual (grifo nosso). Seus reis não tardaram a compreender que lhes seria mais proveitoso explorar o país que saqueá-lo e tiveram empregados indígenas nos serviços do tesouro e da administração. Em pouco tempo os bárbaros entraram na vida civilizada. A corte dos faraós reapareceu em volta dos reis pastores, com toda sua pompa e corte de funcionários.170 170 MASPERO, Gaston C.C. História de los antiguos pueblos de Oriente. Buenos Aires, Argonauta, 1946, p. 116-117. 146 Arnoldo Walter Doberstein aculturados”. As evidências de sua “aculturação” seriam: a) a utilização da escrita hieróglifa por parte dos chefes hicsos; b) a adoção e emprego, por parte dos reis hicsos, da mesma titulação faraônica; c) a adoção das divindades egípcias por parte dos chefes e da população hicsa; d) a indisfarçável fascinação pelo ritual, prestígio e formas tradicionais da função faraônica; 171 MELLA, Federico A. O Egito dos Faraós. São Paulo: Hemus, 1981, p.131. e) e, por fim, o “emprego dos mesmos modelos Numa perspectiva histórica, o enunciado é que tal artísticos, que levou ao roubo de estátuas do Império conceito se firmou a partir dos anos 50, coincidindo, Médio”.172 pois, com o recuo do imperialismo europeu, com a Uma ilustração “clássica” deste último argumento é o caso da apropriação, por um rei hicso, da estátua descolonização da África e com o surgimento do populismo nacionalista na América. de Amenemat III (Fig. 187), na qual o nome primitivo Não por acaso, um dos primeiros autores cujas foi raspado para colocar o nome do seu “usurpador”. consequências da presença dos hicsos no Egito é vista como uma fecunda influência foi o norte- Os hicsos no Egito: uma transculturação que resultou numa fecunda influência? americano Herbert Winlock (Fig. 193) o qual, entre os anos 1912-1931, dirigiu diversas escavações no Egito, especialmente nos templos de Monthuhotep I Essas duas linhas de interpretação – do desastre e da rainha Hatseptsut. De volta aos Estados Unidos civilizatório e da assimilação de bárbaros –, já há dirigiu o Metropolitan Museum, de 1932 a 1939. Em algum tempo deram lugar a um esquema interpretativo 1947, publicou o livro The rice and fall of the Middle que considera as relações entre os hicsos e a cultura Kingdon of Tebes (A origem e a queda do Reino Médio egípcia como sendo de interdependência e interação de Tebas), em cujo capítulo final, intitulado de “As cultural, e cuja implicação, para a civilização egípcia, contribuições dos hicsos ao Egito” foi um dos primeiros foi de uma fecunda influência. a destacar a introdução do shaduff, do tear vertical, do O conceito que está na base desse esquema gado zebu, do costume de de avaliação é o de transculturação. Por esse marcar o gado, assim como ponto de vista quando acontece o contato entre de duas culturas, independente da dominação militar, como a lira e o alaúde. tecnológica ou política, de um grupo sobre o outro, instrumentos musicais A intensidade com que as duas culturas interagem entre si, de forma Winlock que os dominados absorvem elementos do grupo tese foi tal, que mesmo dominante, mas os dominadores também são entre influenciados pela cultura dos oprimidos. ela se alinharam, surgiram 172 AGUILLA, Salvador Ordonez. Os hicsos no Egito - parte II. In: Revista de Arqueologia, nº 155, mar/1994. defendeu aqueles que sua com Fig.193 - Herbert Winlock reparos às suas posições. Entre as críticas feitas às O Egito Antigo 147 suas posições esteve a de seu próprio conterrâneo um torno para fabricação de cerâmica mais rápido e eficiente, um tear vertical mais eficaz, o gado zebu, novas frutas e legumes e, por fim, o carro de guerra e o cavalo.175 e contemporâneo John A. Wilson, que assim se manifestou a respeito dos enunciados de Winlock, com essas sugestões ele perde uma causa boa por exagerar com excesso. Só porque não conhecemos a origem de alguns elementos da cultura egípcia, não temos que atribuí-los a um povo invasor de raça e tipo desconhecidos.173 Um esquema alternativo: a “aculturação” (aparente) como um “recurso” de dominação Um esquema alternativo pensado por alguns Seja como for, com mais ou menos ênfase, o fato autores é aquele que vê a adoção de padrões culturais é que a tese da “fecunda influência” passou a ser do povo dominado, por parte dos dominadores, não partilhada pela maior parte dos estudiosos (exceções como uma efetiva “aculturação”, mas mais como como Federico Mella, anteriormente citado, existem). uma espécie de “expediente” para reproduzir, com Veja-se, por exemplo, Cyril Aldred, para o qual mais economia de recursos, a própria dominação. Em se tratanto do caso dos hicsos do Egito, Se bem que a tomada do poder supremo pelos Hicsos tenha parecido a Máneton um desastre irreparável, podemos reconhecê-lo como uma das grandes influências fecundas da civilização egípcia, pois trouxe ao vale sangue fresco, novas idéias e diferentes técnicas e assegurou ao Egito a guarda das principais correntes da cultura da Idade do Bronze.174 Na mesma direção se alinha o brasileiro Ciro Flamarion Cardoso, porém dando uma ênfase maior nas inovações tecnológicas. Nas suas palavras: o amplo contato mantido pelos reis hicsos com o Oriente Próximo favoreceram a introdução de inovações, diminuindo o atraso tecnológico do Egito em relação à Ásia Ocidental. O trabalho em bronze, que já progredira sob o Reino Médio, deu um passo à frente; os egípcios adotaram quem propôs esse esquema foi o alemão Edward Meyer(1855-1930) (Fig. 194), renomado professor de História Antiga na Alemanha (Berlim), Inglaterra (Harvard e Oxford) e U.S.A.(Chicago). Em seu principal trabalho História publicado da Antiguidade, entre 1884 1902, ele defendeu que e Fig.189 - Edward Meyer Por mais que os conquistadores não se propusessem de imediato mais que saquear e explorar o país. (...) para perceber os impostos e administrar o país, era imprescindível o auxílio dos escribas e funcionários egípcios. 173 WILSON, John A. La Cultura Egípcia. México: Fundo de Cultura, 1953, p. 239. 174 ALDRED, Cyril. Os Egípcios. Lisboa: Verbo, 1972, p. 129. 148 Arnoldo Walter Doberstein 175 CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1992, 9ª ed., p. 58. Por consequência, os conquistadores deveram assimilar pelo menos as exterioridades da civilização egípcia. Os reis pastores se nos apresentam nos poucos monumentos que deles conhecemos, como continuadores dos faraós. O que ignoramos é o que existia por debaixo dessa capa (grifo nosso).176 do shaduff (Fig.195) também é apresentada como um “caso à parte”, devido aos avanços agrícolas que o mesmo possibilitou. O Shaduff, na verdade, era um utensílio que proporcionava carregar a água, em grande As fecundas influências na cultura material Na perspectiva hoje predominante, que vê a presença dos hicsos no Egito como uma fecunda influência, se procura enfatizar essa contribuição em dois planos: o da cultura material e o da cultura imaterial. No plano da cultura material, considera-se que “as maiores e mais discutidas inovações se centram na introdução, e conseqüente adoção, pelos egípcios, do carro de guerra e do cavalo”.177 Na continuação de sua análise, o mesmo estudioso é dito, puderam ser ampliadas as áreas cultiváveis, pois a água pode ser transposta para “além” do nível da inundação. Outro aspecto que alguns dão bastante ênfase é que o Shaduff podia ser operado individualmente. Com isso o coletivismo agrícola, necessário para as grandes obras hidráulicas, pode ser substituído por uma certa “iniciativa isolada”. Muitos vêm nisso o surgimento de um novo grupo social, os “livres” ou “soltos”, quer dizer, livres e soltos das antigas comunidades agrícolas coletivistas. Ainda no terreno assevera que, da Para alguns, foi o “legado hurrita”, no mundo hicso, o responsável pela introdução em massa do cavalo e do carro ligeiro. Porém, não há nada que diga que os hicsos conheceram o cavalo antes de entrar no Egito e que por ele suas operações fossem facilitadas. Mas tudo indica que eles usaram esta técnica bélica só nas lutas do final de seu domínio (grifo nosso).178 No plano das inovações tecnológicas, a introdução 176 MEYER, E. História del Antiguo Egito. Coleção História Universal. Vol. I . Barcelona: Montaner & Simon, s/data, p. 366. 177 AGUILLA, Salvador O. Os hicsos no Egito-II. In: Revista de Arqueologia, n° 155, mar/1994, p. 34. 178 quantidade, para um plano mais elevado. Com isso, tecnologia, destaque grande um muito é tecnologia dado à do bronze que, como Fig.195 - Reconstituição livre do shaduff se sabe, consistia no endurecimento do cobre pela sua liga com o estanho. No âmbito das técnicas agrícolas, é mencionada também a introdução de uma nova raça de gado bovino “de dorso arqueado, de fonte asiática, provavelmente AGUILLA, Op. cit. p. 34. O Egito Antigo 149 trazidos de barco”.179 Era uma raça assemelhada ao introduzidas pelos hicsos. Entre tais instrumentos que nós chamamos de “zebu” (Fig. 196, pertencente estaria a lira conforme se pode ver na Fig. 197, à tumba de Nackt, tirada da tumba de Inherkhau, contramestre da escriba XVIII Dinastia, que, como era costume nessa época, da XVIII Dinastia), bem mais se fez representar alto em e resistente último Além da lira e este asemelhado de sua esposa. que o gado egípcio tradicional, companhia Fig.196 - Tumba de Nackt - gado tipo zebu. ao que nós chamamos de “jérsei”. Ainda no terreno dos aportes tecnológicos dos do alaúde de braço comprido (ver na Fig.198, tirada da Fig.198 - Tumba de Reckmire com o oboé. hicsos, são arrolados o tear vertical, novos tornos tumba de Reckmire, governador e vizir da XVIII de cerâmica, além de diversas novas culturas Dinastia) também é mencionado o oboé, instrumento agrícolas como a oliveira, a romã e, talvez, o de sopro com palheta dupla e tubo cônico. algodão. Entre as inovações do enfeite os estudiosos Ao lado dessas importantes inovações militares sugerem “a adoção do pingente, (grifo nosso) um e agrícolas, são igualmente destacadas certas ornamento provavelmente de origem asiática”.180 inovações que poderíamos chamar do deleite e do Nesse particular, abundam os testemunhos (como enfeite. nas Figuras 200 e 201) que, no Novo Reino, esse Entre as inovações do deleite poderiam ser lembrados os novos instrumentos musicais, que tipo de joia caiu no gosto das mulheres e homens egípcios. nas Essa preferência dos joalheiros egípcios do Novo relevos Reino pelos pingentes, por outro lado, se encaixa das tumbas do Novo naquela outra tendência do Novo Reino que foi Reino. São, por isso, o gosto pelo excesso e pelo redundante. Nesse incluídos aspecto, porém, talvez não seja razoável atribuir- só aparecem pinturas e entre as possíveis novidades 179 Fig.197 - Inherkhau e esposa ouvindo lira. ALDRED, Op. cit. p. 130. 150 Arnoldo Walter Doberstein se essa tendência a uma possível influência dos 180 AGUILLA, Op. cit. p. 34. hicsos, mas sim e arredios ao resto do mundo. Com a chegada dos ao imperialismo. hicsos, e a “humilhação” da derrota, esse complexo Já no terreno teria sido abalado, trazendo com isso uma fecunda das repercussões da influência. Como diz Aguilla, presença A dominação hicsa proporcionou ao Egito o incentivo e os meios para uma expressão “mundial”, estabelecendo os fundamentos e o caráter do Novo Império, como um dos Estados mais poderosos do Próximo Oriente (...) No novo modelo político que vai se impor desde a XVIII Dinastia, o rei do Egito já não se restringia aos limites territoriais do vale do Nilo, mas se convertia numa figura internacional, dominante fora dos limites tradicionais da autoridade (...) um Estado agressivo, bem diferente do Estado autárquico anterior.181 dos hiscsos na cultura imaterial dos Fig.199 e 200 - Joias (acima) e pintura (abaixo) do Novo Reino, com pingentes. egípcios, dois aspectos são especialmente lembrados: a) o abalo do complexo de superioridade e suas b) implicações; o de sentimento insegurança com seus desdo- bramentos. Entre os historiadores que gostam de trabalhar com o pressuposto que a personalidade coletiva de um povo – que os gregos chamavam de ethos – tem um peso considerável na história, é muito comum se encontrar a avaliação que os egípcios eram um povo que tinha uma espécie de complexo de superioridade em relação aos vizinhos e outros povos. Consideravamse o “berço da civilização”, a “morada dos deuses”, e por aí a fora. Resultava daí um certo desdém por tudo que não fosse egípcio, permanecendo impermeáveis Outra implicação da presença dos hicsos no Egito seria a sensação de insegurança que daí decorreu. Aqui o esquema de interpretação parte do suposto que a presença dos hicsos produziu um abalo naquele otimismo e sensação de firmeza nos fundamentos reguladores da vida. O que teria advindo disso seria uma angustiante incerteza dentro de um mundo que passou a ser visto como caótico e anárquico. Uma implicação dessa incerteza seria o aumento do poder das divindades e dos sacerdotes. Explica-se: sob o domínio da dúvida, mais e mais as pessoas teriam começado a recorrer aos oráculos e conselhos dos deuses e sacerdotes. Especialmente ao deus Amón, de Tebas, que passou a receber doações cada vez mais avultadas. Como conclui Aguilla, no seu penetrante estudo sobre a presença dos hicsos no Egito, 181 AGUILLA, Op. cit. p. 35. O Egito Antigo 151 Depois da crise já não é tempo da serena contemplação do próprio mundo fechado e limitado; a traumática ampliação do Universo envolve a necessidade iniludível de dar uma ordem e uma disciplina para esse mundo. O mundo que se abria urgiu da percepção real desse conflito entre o caos e a ordem. Os hicsos, assim, proporcionaram ao Egito o arquétipo clássico do que deve ser evitado e, como tem registrado magistralmente B. Kemp, a concepção intelectual da natureza do universo coincidia plenamente com as estratégias do poder político.182 A XVIII DINASTIA Segundo Heródoto, a passagem da XVII para a XVIII Dinastia transcorreu sem interrupção na linhagem da família governante. Kamósis, o último rei da XVII Dinastia, como se sabe, foi quem começou, a partir de Tebas, o confronto com os hicsos, sendo seus feitos de campanha registrados na célebre “Estela de Kamósis”. O NOVO REINO AHMÓSIS (1570 - 1546 a.C.): a fundação simbólica da XVIII Dinastia O Novo Reino é o período considerado por muitos, como Ciro F. Cardoso, como o “auge da riqueza e do refinamento da civilização faraônica”.183 Suas principais dinastias foram a XVIII (1570 - 1307 a.C.), a XIX (1307 - 1196 a.C.) e a XX (1196 - 1070 a.C.). A cronologia e as datações relativas ao Novo Reino não apresentam tantas discrepâncias como os períodos A fundação da nova dinastia, por Ahmósis, pode ter sido um ato simbólico, para demarcar a expulsão definitiva dos hicsos e a respectiva conquista e destruição de sua capital. O fundador oficial, Ahmósis, era parente próximo (possivelmente um irmão) de Kamósis, o último faraó da XVII Dinastia. anteriores. Mesmo assim não são coincidentes, de autor para autor. No presente caso adotaram-se, A ascensão dos militares inclusive para os anos de governo dos respectivos faraós, as datações de Francisco Velo.184 Uma das principais fontes para a reconstituição dos acontecimentos dessa época é a tumba do “general” Amósis, construída na cidade de 182 Nekheb (atual El-Kab), ao Sul de Tebas, perto de AGUILLA, Op. cit. p. 36. 183 CARDOSO, Ciro F. O Egito Antigo. São Paulo: Brasiliense, 1992, 9ª ed., p. 60. 184 VELO, Francisco José Presedo. Egipto durante el Império Nuevo. Madrid: Akal, 1989. 152 Arnoldo Walter Doberstein Hierakonpolis. O “general” Amósis era um tebano que serviu aos três primeiros faraós da XVIII Dinastia e deles recebeu muitas recompensas. Os registros de sua autobiografia são vistos como um indicativo brilharam mais do que nunca. São lembrados, por da ascensão política e econômica dos militares. exemplo, os nomes de Hatseptsut, Nefertite e Alguns trechos de seu relato: Nefertari. Uma explicação para esse prestígio das Nasci na vila de Nekheb. Meu pai era comandante do rei Sekenenre (penúltimo rei da XVII Dinastia). Eu me tornei comandante em seu lugar (esta continuidade da profissão paterna, por parte do filho, foi um traço peculiar da sociedade egípcia, neste caso um costume adotado também pelos militares), no tempo do senhor Nebpehtyre (segundo Peinado, este era o quarto nome do faraó Ahmósis). Ele ainda era muito jovem. Não conhecia mulher e ainda dormia com suas roupas infantis (...) No assédio à cidade de Avaris, provei o meu valor. Tomei um botim e levei uma mão (segundo Peinado, para contar o número de inimigos mortos cortava-se-lhes a mão direita que, qual um troféu, era levado ao rei). O fato foi registrado nos anais reais e foi-me outorgado o Ouro da Vitória (o Ouro da Vitória era um colar de ouro oferecido como recompensa aos combatentes mais destacados).Quando tomamos Avaris capturei um total de quatro cabeças: um homem e três mulheres. Sua majestade presenteou-me-os como escravos (...) Depois que Sua Majestade massacrou os beduínos asiáticos, desceu o rio para combater os núbios (...) Sua Majestade aprisionou o chefe núbio Aata e tomou todo o seu povo como botim. Para mim recolhi dois soldados cativos do barco de Aata. Foramme concedidas cinco cabeças (prisioneiros), mais cinco aruras (“Arura” é o termo grego do “strat” egípcio. Equivalia a 2.735 m². O “general” Amósis, portanto, ganhou 13.576 m². Ou seja, perto de 1,36 Ha.)185 mulheres governantes é a da “pureza sanguínea”. As rainhas seriam reconhecidas como a única garantia que o governante fosse um “puro”. Segundo Cassin e outros, quando da expulsão dos hicsos, se esboçou “uma doutrina que tendia a fundamentar a legitimidade do trono sobre uma eugenesia, que pretendia exigir que o herdeiro do trono nascesse da grande esposa real e que esta, por sua vez, fosse filha de uma outra grande esposa real”.186 Os mesmos autores sugerem que tal doutrina talvez resultasse do acordo firmado entre a XVIII Dinastia e o clero de Amón. Assim como nos cultos do Antigo e Médio Reino, o culto do deus Amón empregava um grande número de mulheres, controladas por uma superiora, geralmente a esposa do sumo sacerdote.187 A novidade das dinastias XVII e XVIII foi a nomeação de uma dama da família real, às vezes a própria rainha, para comandar todo esse “harém” divino. Num certo sentido ela desempenhava também a função de esposa do deus, ou seja, a representante da deusa Mut A ascensão das mulheres É voz corrente entre os egiptólogos que o Novo Reino foi um período em que as mulheres governantes 185 Texto e comentários tirados de PEINADO, Federico Lara. El Egipto faraónico. Madrid: Istmo, 1991, p. 107 e 256. (esposa divina de Amón) aqui na terra. A importância e o prestígio dessa função pode ser avaliada no caso da rainha Amósis-Nefertari (Fig.201). 186 CASSIN Et Allii; Op. cit. p. 196. 187 GIORDANI, Mário Curtis. Op. cit. p. 81. O Egito Antigo 153 Um texto gravado cerimônia, um dos duzentos que havia ganho, ela, junto com os Grandes da Corte, adorou o deus, em favor de Sua Majestade.188 em pedra, quando de sua nomeação como grã-sacerdotiza do templo de Mut (que, Amenófis I (1551-1524 a.C.): Ilustre e pouco lembrado diga-se de passagem, Numa dinastia com nomes de tanta expressão no complexo de Karnak como (Tutmés III, Hatseptsut, Amenófis III, Aquenaton) uma unidade a parte, corre-se o risco de, nas análises e avaliações, se separada deixar certos faraós, num imerecido plano secundário. funcionava de do Amón), templo nos dá Esse parece ser o caso do faraó Amenófis I. Sua coroação parece que ocorreu antes da morte conta dos significativos Fig.201 - Rainha Amósis-Nefertari. benefícios materiais decorrentes da investidura do cargo. Diz o texto que, de Ahmósis I. Essa também é uma importante característica da XVIII Dinastia. A impressão que se tem é que tal iniciativa buscava garantir a No quarto mês da estação Akhet, no dia 7, sob a Majestade do Rei do Alto e Baixo Egito, Ahmósis, filho de Rá, cumpriu-se, na presença dos sacerdotes do templo de Amón, aquilo que já havia sido promulgado no Palácio Real, atribuindo à esposa divina e grande esposa real, Amósis-Nefertari, a função de Segunda Servidora do deus Amón e decretando, como de sua propriedade, de filho a filho, de herdeiro a herdeiro, os seguintes bens: 160 shena (unidade monetária equivalente a 7,5 gramas de ouro) de ouro; 250 de prata; 200 de bronze; aproximadamente 200 shenas em vestidos; 150 em mantilhas e 50 em unguentários. Perfazendo um total de aproximadamente 1.010 shenas (ou seja, cerca de 7,575 quilos de ouro – 7,5 gramas x 1.010). Além dessas 1.010 shenas foram-lhe dados um servo e uma serva, 400 medidas de trigo e cinco parcelas de campo (grifo nosso). Isso tudo quando sua função, por si só, já lhe renderia 600 shenas. Depois de concluído este documento ela declarou: “estou satisfeita com este pagamento” (...) e, em seguida, trajada com seu vestido de 154 Arnoldo Walter Doberstein continuidade na política governamental e evitar as crises sucessórias. É bom lembrar que quando da morte de um faraó, qualquer um dos filhos da família real podia pleitear o cargo. Troca de deus = troca das terras A difusão do culto a Amón foi outra tendência histórica que também se confirmou no reinado de Amenófis I. Essa expansão do culto a Amón fez parte daquilo que alguns autores denominam de 188 Texto e comentários tirados de PEINADO, Federico Lara. El Egipto faraónico. Madrid: Istmo, 1991, p. 110-111. “reorganização e reconstrução do país”. Templos ao de boneca”. Uma interpretação sociológica-cultural deus Amón foram erguidos em localidades do delta, procura encontrar uma relação entre esse visual, onde o culto a Seth (incorporado pelos hicsos) estava mais “requintado”, com os novos tempos de riqueza mais enraizado. Isso foi acompanhado de doações e prosperidade, consumismo e sofisticação. de terras, servos, pastagens e gado, aos oficiantes do culto a Amón. Perderam os seguidores de Seth, ganharam os seguidores de Amón. Ouro e violência na conquista do Sudão Nos registros da tumba do “general” Amósis Na arte, um novo “estilo requinte” consta que Amenófis I, para o qual o “general” também serviu, iniciou a conquista do Sudão. O No Museu do Cairo existe uma cabeça de faraó Sudão, que os egípcios chamavam de país do (Fig. 202) que, segundo Cyril Aldred, e apoiado em Kush, era uma região que ficava entre a 2ª e a 3ª comparações com relevos do mesmo reinado, trata- Catarata. Era por ali que o Egito recebia ébano, se de uma representação do faraó Amenófis I, marfim, incenso, óleos, gado, peles de leopardo, quando jovem. A ser correta a interpretação de Aldred, plumas, galgos, babuínos e cereais. Assim como a teríamos que, com Amenófis I firmou-se também cornalina, hematita, feldspato, turquesa, malaquita, uma nova maneira de representar os faraós. É aquilo ametista, granito e diorita. que denominamos de Estilo Requinte, através do qual os modeladores passaram a representar os faraós com grandes cílios postiços e sobrancelhas que se alongam até as têmporas. Nos lábios aparece um sorriso e os músculos da face completamente distensionados, resultando espécie numa de “rosto Fig.202 - Faraó Amenófis I Jovem Fig.203 - Mapa do país do Kush (Núbia), atual Sudão. O Egito Antigo 155 Mas o principal de tudo era o ouro. O ouro vinha verdade esse templo não era exatamente para o rei da região situada entre o Wadi Alaki e o Wadi morto. O que ali se fazia, mesmo com o rei ainda vivo, Gabgaza (ver na Fig. 203). Essa era uma região era um culto destinado ao deus Amón. Nesse caso, o que o Egito já controlava. O que a XVIII Dinastia fez culto visava especialmente assegurar a eterna fusão foi avançar o domínio egípcio também sobre outras entre o corpo do faraó e o corpo do deus Amón.190 minas, espalhadas ao longo do Nilo, até a localidade Amenófis I construiu seu túmulo-capela (lugar de Abu-Hamad, entre a 4ª e a 5ª Catarata (mais ao de sua múmia) arrematada em forma de pirâmide Sul do mapa da Fig.203). numa colina próxima de Karnak. Ao mesmo tempo Nos registros do “general” Amósis, fica claro mandou levantar seu templo “milenário” (para evitar que, nessa época, os egípcios já tinham se a denominação “funerário”), próximo ao vale do rio, afastado daqueles paradigmas do autocontrole e do na margem esquerda do Nilo. Foi o primeiro de uma comedimento (o maat), vigentes em textos do Antigo série que teve continuidade com todos os outros Reino. Segundo o relato do “general” Amósis, faraós do Novo Reino. Depois conduzi no meu barco o rei Djeserkare (o quarto nome do faraó Amenófis I), o justo de voz, para estender as fronteira do Egito. Sua Majestade capturou o vil chefe dos núbios e o conduziu acorrentado. Do seu exército não sobrou nada. Os que fugiam eram trazidos de volta, junto com seus rebanhos. Fui recompensado com ouro e voltei com duas escravas como botim. 189 O começo das grandes ampliações de Karnak Apesar de não aparecer como dos mais ilustres faraós do Novo Reino, para a cidade de Tebas, Amenófis I foi um faraó muito especial. Segundo Cassin e outros, em tempos posteriores à sua O túmulo-capela e o Templo Milenário morte, ele foi considerado pelos seus habitantes como um de seus “heróis fundadores”. Junto com Parece que foi com Amenófis I que se iniciou o seu pai Ahmósis, sua mãe Amósis-Nefertari e costume de se fazer os rituais funerários em dois sua esposa Ahmósis-Meretanum, foi cultuado locais. Num era enterrado o corpo. No outro se como uma divindade tutelar da cidade. erguia o que se denomina, não muito corretamente, de templo “funerário” para o culto ao rei morto. Na 190 189 Tirado de PEINADO, Op. cit. p. 108-109. 156 Arnoldo Walter Doberstein CASSIN et Allii. Op. cit. p.195. Talvez esse título de “herói fundador” deva-se ao No outro lado do Nilo mandou erguer seu templo início da ampliação do templo de Amón, em Karnak, “milenário” (Letra B da Fig. 204), dando continuidade até então formado de um pequeno núcleo levantado por ao que havia sido introduzido por seu antecessor Amenemat I, no Médio Reino. Com a construção de Amenófis I (Letra C da Fig. 204). Mas a grande um pórtico monumental e um monumento de alabastro, novidade do governo de Tutmés foi a sua sepultura. com a transcrição em relevo da procissão do barco de Em vez erguer um túmulo-capela, no lado ocidental de Amón, o templo começou a se ampliar, até se tornar, Tebas, atrás do local onde o faraó Monthuhotep I, da com a intervenção dos outros faraós do Novo Reino, XII Dinastia, tinha erguido seu templo (letra D da Fig. num dos maiores complexos templares do Egito Antigo. 204) ele pediu ao seu arquiteto Ineni que projetasse seu túmulo escavado na rocha (letra E da Fig. 204). É TUTMÉS I (1524 - 1518 a.C.): continuismo e inovações o mais antigo hipogeu faraônico que se conhece. O local, no futuro, iria abrigar a maior parte dos hipogeus dos faraós posteriores, possivelmente para escapar Essa ampliação do templo de Amón, em Karnak, teve em Tutmés I, um notável continuador. A seu dos saques e pilhagens. Passou a ser conhecido como o Vale dos Reis. pedido, o arquiteto Ineni ergueu um grande vestíbulo, com dois pilones monumentais (letra A da Fig. 204), diante dos quais mandou edificar 2 colunas pilares e 2 colossais estátuas suas, de mais ou menos 7 m. No Sudão, a violência como um espetáculo A maior parte dos manuais apresenta o início da XVIII Dinastia dentro do seguinte esquema: a) Ahmósis expulsou os hicsos; b) Amenófis I organizou o país; c) Tutmés I garantiu à dinastia governante “uma dimensão nacional e internacional”. O outro esquema possível é ver Tutmés I, como um continuador, numa escala ampliada, daquilo que os outros começaram. Tal como seu sucessor, ele foi coroado corregente quando Amenófis I, do qual não era sucessor plenamente Fig.204 - Mapa dos primeiros edificios religiosos de Tebas. legítimo, ainda vivia. Casou-se com uma rainha Amósis O Egito Antigo 157 (mais uma!) da qual não se sabe ao certo se era irmã ou filha de Amenófis I. Possivelmente uma filha. No Sudão setentrional Tutmés I completou a conquista da região, entre a 2ª e a 3ª Catarata. Em Tombos, na 3ª Catarata, gravou uma inscrição de conquista. Depois disso, a região se rebelou. Quem narrou o episódio foi o agora velho “general” Ahmósis, que serviu também ao novo faraó. Segundo ele, diante da revolta, o seu chefe ficou “furioso como uma pantera”. E que, na sequência, ele lançou sua primeira flecha, que terminou cravada no peito do inimigo vil. Os adversários, sem força, fugiram em decorrência da chama de seu ureus. Num instante formou-se uma carnificina e tomou-se como prisioneiros todos os que restaram. Sua Majestade navegou rio abaixo, tendo em seu punho todos os países estrangeiros, enquanto que o miserável núbio estava dependurado para baixo, na proa de seu navio. Desembarcamos em Karnak.191 TUTMÉS II (1518 - 1505 a.C.): meio “puro” e sem carisma O sucessor de Tutmés I foi um de seus filhos não completamente “puro”. Sua mãe era uma esposa secundária do rei. Os herdeiros legítimos morreram precocemente. A única “pura” que sobrou foi uma princesa de nome Hatseptsut. Foi providenciado, então, o casamento entre ambos. Tutmés II não construiu muita coisa em Karnak. Sua tumba até hoje não foi identificada com segurança. Tampouco é conhecido o seu templo “milenário”. Enfim, um governo um tanto obscuro. Talvez pelo seu tempo de governo: apenas 14 anos. Ou pela sua presumível natureza enfermiça. Ou até pela sua carência de legitimidade. Alguns sugerem que ele, desde a posse, foi “eclipsado” pela esposa Hatseptsut. Pode ser de tudo um pouco. É bom lembrar, todavia, que quando o faraó tinha carisma Na Ásia, diante do rio “que corre ao contrário” e liderança (como Amenemat I, por exemplo), essa deficiência sanguínea não contava muito. Depois da campanha da Núbia, Tutmés I ocupouse com a Ásia. Segundo o que deixou gravado em pedreiras da região, “sua fronteira meridional toca os limites do Kush, enquanto que a setentrional alcança HATSEPTSUT (1504 - 1483 a.C.): pacífica, articulada e poderosa a água que corre em sentido contrário, que flui para Com a morte do esposo, a rainha Hatseptsut (Fig. cima”.192 205) assumiu o governo na condição de corregente. Isso porque, o futuro faraó (Tutmés III), escolhido por 191 In: PEINADO, Op. cit. p. 109. 192 In: PEINADO, Op. cit. p. 109. 158 Arnoldo Walter Doberstein um oráculo de Amon, ainda era muito jovem. A rainha, entretanto, não se conformou apenas com a regência. Sua concepção arquitetônica, de responsabilidade do Buscou o consentimento do clero de Amón e assumiu arquiteto Semnut, também foi inovadora. A existência o poder real, como se fosse de diversas estátuas de particulares, depositando o de um faraó. Assumiu o oferendas diante das imagens da rainha, evidenciam cerimonial faraônico, fazendo- o prestígio por ela desfrutado. se representar (como na Fig. A rainha Hat não deu continuidade à política belicista 204) com o Klaft real, e até de seus antecessores. Não realizou campanhas mesmo barbicacho militares de grande porte. No seu templo “milenário” foi postiço, atributo masculino por dado muito destaque a uma expedição marítima que excelência. fez ao país do Punt. Dali, entre outras coisas, foram com o O poder da rainha Hat pode ser auferido, entre outras coisas, pelo seu templo trazidas mudas de árvores, de cuja resina do caule se Fig.205 - A rainha Hat em seus trajes “faraônicos”“ produzia o incenso. Outro destaque de seu governo foram seus “milenário” que ela mandou levantar em Dei El-Bahari, colaboradores. Entre eles se destacava o “favorito” (Fig. 206), nas proximidades do antigo templo do faraó Semnut que construiu o seu templo e assumiu o cargo Monthuhotep I, da XI Dinastia. A comparação entre de tutor da princesa Neferure. Numa escultura em os dois templos indica o tamanho do orçamento que bloco, uma novidade artística do período (Fig. 207), a rainha Hat teve a seu dispor. O seu templo é três a menina foi representada vezes mais amplo que o do seu predecessor. Mas não sob a sua guarda protetora. é só pela sua monumentalidade que ele impressiona. As “más línguas”, inclusive, insinuam que ela não era filha do rei, mas do próprio arquiteto. Junto também arquiteto e o vizir com o Thuty Hapuseneb, desenvolveram um amplo programa de restauração dos templos antigos que, Fig.207 - O arquiteto Semnut, como “tutor“ da princesa Neferure Fig.206 - Templo “milenário” da Rainha Hat, em Dei El-Bahari. O Egito Antigo 159 desde a época dos hicsos, estava muito largado. Já como “fomentador das artes e da cultura” Alguns autores, inclusive, consideram que isso fez destaca-se, em especial, sua atividade construtora. parte de seu “programa” de alianças e de legitimação. Entre uma e outra de suas 17 campanhas militares, ele se ocupou diretamente na construção de grandes monumentos. No Templo de Karnak mandou edificar a TUTMÉS III (1483-1450 a.C.): “desportista” e belicoso No dizer de Francisco VELO, Tutmés III representou o “protótipo do faraó do Império Novo. Rei desportista, caudilho militar, visão universalista, enérgico e centralizador, com dotes de estadista e fomentador das artes e da cultura”.193 É uma definição inspirada, que suscita comentários, como a respeito de sua esportividade. Algumas de suas imagens (como a da Fig. 208) sugerem que ele tinha, de fato, grande Sala das Festividades (letra A da Fig. 209), no interior da qual ficaram as paredes do primitivo templo erguido no Médio Reino. Num de seus aposentos, a chamada Sala dos Antepassados (transportada e reconstituída no Museu do Louvre) foi esculpido um grande relevo no qual ele aparece ofertando presentes a 57 de seus predecessores. Construiu também um grande pátio adjacente, em meio ao qual ergueu dois pilones (letra B, Fig. 209) num dos quais registrou em detalhes sua atividade militar. um corpo bem equilibrado e elegante, flexivel nas articulações. Mas não se pense um Tutmés malhando ou jogando o que quer que seja. Os esportes que ele se retratou praticando eram as caçadas e cavalgadas. Além disso, é claro que pudemos supor uma prepração para a guerra, incluindo aí arremesso de Fig.209 - Reconstituição livre do templo de Karnak com as partes erguidas por Tutmés III dardo, arco e flecha, e até mesmo alguma corrida. Fig.208 - O “atlético” Tutmés III conquistador do Retenu 193 VELO, Francisco José Presedo. Egipto durante el Império Nuevo. Madrid: Akal, 1989, p. 19. 160 Arnoldo Walter Doberstein No outro lado do rio ergueu seu templo “milenar” e um outro de menor tamanho, situado entre os de Monthuhotep I e da rainha Hatseptsut. No Vale dos Reis, mandou construir seu hipogeu, nas uma verdadeira política de egipcianização das proximidades daquele de Amenófis I. lideranças do Retenu. Esses príncipes capturados, Já como “caudilho militar”, (na expressão de ao que se pensa, eram destinados ao Egito, onde Francisco Velo) ele revelou, antes de tudo, ter sido seriam educados à moda egípcia. Pensava-se que, um grande organizador. Nos pilones de Karnak quando assumissem o governo de suas cidades, registrou todos os preparativos para as guerras que seriam vassalos mais dóceis à dominação egípcia. empreendeu, incluindo minúcias como a inclusão Não podemos avaliar até que ponto essa política deu de diversos rolos de couro, para o registro dos certo. A contar pelas dificuldades que os futuros faraós acontecimentos. Ao longo de seu governo fez 17 tiveram no Retenu, parece que seus resultados não campanhas no Retenu, envolvendo praticamente foram muito animadores. todas as cidades e povos da região. Megido e Kadesh (1ª e 2ª campanha), Síria (3ª guerra), Naharina (7ª campanha), hititas e babilônicos (8ª incursão), AMENÓFIS II (1453 - 1419 a.C.): bravateiro e “política do terror” Alepo (10ª guerra) e Líbano (13ª campanha). Sua ação político-militar, entretanto, não ficou só Se Tutmés III foi um “desportista”, podemos dizer no emprego da força. Seus “dotes de estadista”, que seu filho e sucessor, Amenófis II, foi um tanto lembrados por Francisco Velo, se apresentaram no bravateiro. Quando ele assumiu o trono, o Retenu curso das próprias guerras. se rebelou. Isso o forçou a intervir com seu exército na região. Nessa ocasião mandou lavrar uma Para o Retenu: uma política de “reféns políticos” “estela” em que, entre outras coisas, deixou dito que “não existe ninguém que possa vergar o seu arco, nem entre os do seu exército, nem entre os chefes Quando da 6ª campanha, consta que ele beduínos, tampouco entre os príncipes do Retenu. recomendava a captura dos filhos dos chefes locais. Sua força é maior que qualquer príncipe que já tenha No dizer de seus escribas: “quando morriam os chefes, existido”.195 Como se vê, a modéstia e o maat não Sua Majestade fazia com que seus filhos ocupassem eram o forte de Amenófis II. seus lugares”. . Tratava-se, como se pode ver, de 194 194 VELO, Op. cit. p. 20. 195 VELO, Op. cit. p. 22. O Egito Antigo 161 Para o Retenu: uma política de “terror” realidade, apresentando as coisas justamente como o seu contrário, como se estivessem na “câmara escura” Como tática de controle da região, adotou o de uma máquina fotográfica.196 terrorismo. Capturou sete príncipes da região. Conduziu- Amenófis II foi um verdadeiro rapinador do os ao Egito, até a cidade de Tebas, dependurados na Retenu. Numa de suas últimas campanhas mandou proa do seu navio. Frente ao altar de Amón, seis deles registrar o que trouxe da região conquistada, foram sacrificados. O que sobrou serviu para uma 127 grandes do Retenu, 179 irmãos de príncipes, 3.600 hapirus (que os especialistas discutem entre si, uns defendendo que se tratava de hebreus, outros achando que não), 15.000 beduínos, 15.070 nagishu e 30.632 sem identidade. Total: 89.600 pessoas. Mais 60 carros de prata e ouro e 1.032 carros de madeira pintada.197 outra demonstração de terror. Foi levado até a Núbia, dependurado de cabeça para baixo na proa de um navio real, e ali sacrificado. Quando se diz que os egípcios eram pessoas pacíficas e amistosas, é bom não se esquecer de episódios como esses. Na outra vez que voltou ao Retenu, no dizer de seus escribas “seu rosto era terrível, como o de Bast, ou como o de Seth, em seus momentos de fúria”. O interessante é que no seu “retrato” oficial (Fig.210) não é bem isso o que aparece. O seu rosto foi representado como o de um jovem benevolente, até mesmo com um sorriso de cordialidade. Se ele tinha realmente uma cara de “furioso”, como disseram seus escribas, nos seus “retratos” Quando isso acontece, quer dizer, quando a arte manifesta o contrário localizado em sua tumba, dá para ver que também ela foi uma mulher de muitas rapinados do Retenu, atividade construtora Amenófis II foi da a de intensa. ampliação em várias cidades do Norte, sentido marxista do termo. 162 produzido (Fig. 211), que foi de Karnak, de edificações um conteúdo ideológico, no que subverte e distorce a trouxe para ela. Pelo sarcófago que para ela foi Ocupou-se do real, é dito que a arte tem Para Marx, a ideologia é aquilo admirou”. Deve ter sido pelos presentes que ele posses. Com tantos recursos oficiais isso era muito bem disfarçado. Ao final desse relato consta que “a rainha o Fig.210 - O Rei Amenófis II, um rosto afável para um caráter violento. Arnoldo Walter Doberstein Fig.211 - Sarcófago da Rainha: muito luxo com o saque do Retenu 196 MARX, Karl. A ideologia Alemã. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 1991, p. 37. 197 VELO, Op. cit. p. 24. assim como de cidades da Núbia. O seu templo Para o Retenu: uma política de “casamentos” “milenário”, da mesma forma que o seu hipogeu no Vale Para selar esse acordo, que de algum modo tinha dos Reis, indica que foi um faraó de muitos recursos. a ver com a “solução para o Retenu”, o faraó Tutmés IV celebrou seu casamento com uma princesa de TUTMÉS IV (1419 - 1380 a.C.): diplomacia com casamentos “políticos” Do seu governo, dois fatos se destacaram. Primeiro foi a sua indicação para o trono. Não veio do clero de Amón. Veio do clero de Rá, sediado em Mênfis. O faraó deixou isso registrado numa Estela que mandou depositar nas patas dianteiras Mitani. Essa princesa veio residir em Tebas, na condição de embaixatriz do seu país. Um cortejo real, religioso e mercantil veio junto com ela. Era o Egito se abrindo para o mundo. Tebas se transformando numa capital “mundial”. Com todas as implicações culturais daí decorrentes, entre elas o rompimento da antiga homogeneidade da cultura egípcia. da esfinge (Ver Fig. 124). Como os demais faraós da XVIIII Dinastia fez questão de se representar junto com a mãe (Fig. 212). De certo para mostrar que era AMENÓFIS III (1380 -1349 a.C.): apogeu e grandiloquência um “puro”. Do seu reinado se diz que correspondeu “ao Na política exterior de seu governo, destaca-se a O máximo de esplendor da cultura egípcia, em equilíbrio entre os grandes todos os seus aspectos”.198 A riqueza acumulada impérios disputavam durante quase três gerações, a rapina do Retenu o Retenu (Egito, Hititas, e a apropriação das fontes de produção da Núbia Mitanis) parece que induziu, viabilizaram um governo de grandes realizações. Em pela primeira vez na história, Karnak, a sua atividade construtora foi mais ampla a formação de uma espécie que a de todos os seus antecessores, somadas. solução diplomática. que internacional. No perímetro original ampliou o número de pilones. Tratados de paz começaram Em direção ao rio 2 deles (letra A da recriação da Fig. de direito a ser celebrados entre o Egito e o reino de Mitani. Fig.212 - O Rei Tutmés IV ao lado da mãe, de onde provinha “sua pureza”. 213) e mais 2 na direção Sul (letra C, idem). Assim 198 VELO, Op. cit. p. 26. O Egito Antigo 163 como seus antecessores e sucessores também de sua divina esposa, a deusa Mut, para a qual mandou prontificar os seus obeliscos (letra B, idem). Amenófis III mandou erguer um templo próprio Os obeliscos eram blocos de pedra que (letra E, idem), de grandes dimensões, e separado simbolizavam muitas coisas. Entre elas o primeiro do templo de Amón propriamente dito. Entre os raio de sol, surgindo das trevas primordiais.199 dois templos foi planejada uma grande Avenida de Serviam também para indicar as horas, solstícios, Esfinges (letra D). equinócios, etc. Mais ao Sul construiu um novo santuário, o Templo de Luxor (letra G), o qual se ligava ao complexo de Amón e Mut pela Grande Avenida (letra F), também constituída de esfinges de diversos faraós. Era nesse Templo de Luxor que as estátuas de Amón e de sua esposa Mut, depois de retiradas dos seus respectivos templos e de percorrerem num grande festejo a Grande Avenida, se encontravam para manter os seus “contatos Fig.213 - Reconstituição livre do Templo de Amón, em Karnak, com as edificações de Amenófis III íntimos”. Isso ocorria na Festa de Os pilones meridionais (letra C, da Fig. 213) Opet, que assinalava o começo do ano egípcio. Era passaram desde então a se constituir como um dos uma espécie de “carnaval”, quando a Grande Avenida limites simbólicos entre a casa de Amón e a casa se transformava como que numa grande passarela. 199 Uma influência de longa duração dos obeliscos, permeada naturalmente de outros simbolismos e significados adquiridos ao longo do tempo, talvez possa ser detectada no ideário dos farrapos, aqui no Rio Grande do Sul. Não é gratuito, por exemplo, que uma grande parte dos monumentos celebrativos à Revolução Farroupilha sejam de obeliscos. Pode até mesmo que as primeiras duas estrofes, do Hino Farroupilha (“Como a Aurora precurssora, do farol da divindade”), tenham sido inspiradas nesse significado egípcio do obelisco de “primeiro raio de sol, surgindo das trevas primordiais”. 164 Arnoldo Walter Doberstein As Grandes Personalidades Amenófis III, no dizer de Francisco Velo, foi um governante que não precisou anular aqueles que Outro grande persona- o cercavam. Entre as várias gem personalidades dessa foi Amenotep. de sua corte, duas delas o se destacaram, a rainha Também era provinciano. Tyi, também chamada Muito bem relacionado, de Teje, e o conselheiro chefiava os cerimoniais Amenotep. dos jubileus do monarca. A Tyi, rainha descendente de uma família provinciana, foi sábio época Apresentava-se um “mediador” entre a Fig.214 - A Rainha Tyi e seus signos de luxo e ipulência. humanidade bastante obsequiada, tendo o seu nome colocado e Amón. Dirigiu e especializou-se na ao lado do rei, em objetos, e muito representada em monumentos oficiais. Ganhou para si nada mais nada como construção dos “colossos” Fig.215 - O requinte da corte de Amenófis III nos trajes. (figuras gigantescas do menos do que um templo “milenar”. As joias que ela rei, do deus Amón e de outros deuses). Esse estilo usava (ver na Fig. 214) falam com muita eloquência de estatuária, que nós chamamos de monumental, do requinte quase que exagerado que vigorou nessa foi muito apreciado na governo de Amenófis III. Na época. Mas não era só nas joias que a grã-finagem frente do seu templo “milenar”, o mais grandioso e imperou na corte de Amenófis III. Como dizem Cassin espetacular de todos que foram levantados (Letra H e outros, ao se referirem aos padrões culturais que da reconstituição da Fig. 213), foram produzidas duas vigoravam na corte de Amenófis III: dessas estátuas colossais de Amenófis III, pesando a vida desta corte engalanada, com amplas vestimentas sabiamente pregueadas (como as da Fig. 215) é mais refinada do que nunca. Os artesãos fabricam uma multidão de encantadores objetos familiares, a indústria do vidro e da cerâmica experimentam um desenvolvimento sem precedentes.200 cerca de 700 toneladas. É o eloquente atestado da tendência ao gigantismo que a estatuária faraônica assumiu no seu governo (Fig. 216). Dessa corte engalanada também se destacaram a princesa Mutemuya, de Mitani, e a irmã do rei Enlil, da Babilônia. Faziam parte daquela política de tratados diplomáticos iniciada por Tutmés IV e que 200 CASSIN, Elena; BOTTÉRO,Jean e VERCOUTTER, Jean. Los impérios del Antiguo Oriente II: El fin del Segunda milénio. México: Siglo XXI, p. 213. Amenófis III ampliou ainda mais. O Egito Antigo 165 O culto ao disco solar: o começo da crise Num reinado tão pleno de realizações e novidades, não faltaram inovações no terreno religioso. Segundo VELO, “ao longo do reinado de Amenófis produziu-se um fenômeno religioso muito importante, que foi a adoração do deus Ra-Harackte, de Heliópolis, como o disco”,202 quer dizer, como um deus diferente das demais manifestações de Rá. Na interpretação do referido autor, isso representou “nada mais que a universalização Fig.216 - Os dois colossos do templo “milenar” de Amenófis III. Sua política para o Retenu também incluiu a troca de populações. A do Egito para o Retenu, na condição de “colonos”. A do Retenu trazida para das crenças religiosas por uma sociedade que se tornou mais cosmopolita e mais aberta às influências estrangeiras”. o Egito, para trabalhar como escravos nas obras públicas. A escravidão, na sua época, também alcançou seu apogeu, mas sem que tenha se AMENÓFIS IV (1350 -1334 a.C.): o Aquenaton do Monoteísmo transformado num escravismo.201 O sucessor de Amenófis III foi um de seus filhos com a rainha Tyi. Foi entronizado em 1350 a.C., com o título de Amenófis IV. Em seus primeiros cinco anos de reinado permaneceu fiel às tradições. Rendeu 201 Essa é uma distinção necessária de ser feita para se evitar uma avaliação incorreta na real natureza da sociedade egípcia. “Escravidão” deve ser entendida cono uma condição humana a que certos indivíduos de uma sociedade são submetidos. “Escravismo” serve para designar um sistema socioeconômico apoiado majoritariamente em escravos. Assim, numa determinada sociedade, pode haver escravos, sem que exista escravismo. Nesse caso os escravos são usados em apenas alguns setores da sociedade (obras públicas, escravos domésticos), sem que formem a base do próprio sistema produtivo dessa sociedade. Esse era o caso do Egito. 166 Arnoldo Walter Doberstein homenagens aos deuses tradicionais, especialmente a Amón. Assumiu integralmente o posto de primeiro profeta do deus tebano. No santuário de Karnak, na avenida que ligava o templo de Amón ao da deusa 202 VELO, Op. cit. p. 27. Mut, mandou executar diversas esfinges, com seu Aquenaton e a rainha Nefertite, aparecem sempre rosto no corpo de um carneiro, a encarnação de Amón. juntos, oficiando as cerimônias de ofertantes ao deus Entre o quinto e o sexto ano de seu reinado a Aton, acompanhados das filhas (Fig. 217). crise se instalou. Por motivos ainda incertos, o faraó Mesmo nas representações oficiais do faraó esse decidiu que o deus da monarquia deveria ser um só. estilo caricatural prevaleceu. Em certas figuras E mais, que não deveria ser nenhum dos deuses do rei, o rosto é de um prognata (maxilar inferior tradicionais (Rá, Ptah, Amón, etc.). Declarou- saliente), as bochechas são chupadas, as orelhas se profeta e seguidor de Aton, passando então a muito grandes e a boca muito rasgada (Fig. 218). Em chamar-se de Aquenaton. suma, os artífices dessas estátuas adotaram o mesmo procedimento que até hoje adotam os caricaturistas Na estatuária, o estilo “caricatural” quando exageram propositadamente os traços físicos que mais caracterizam o modelo caricaturado (o Tempos depois mudou de cidade, instalando cabelo do Lula, sua corte na cidade de Aquetaton (atual aldeia de o bigode do Olívio, Amarna), que ele ordenara a construção. Levou dentes do Ronaldinho consigo um grupo de gente nova, não muito ligada Gaúcho, etc.). Uma aos cleros tradicionais. Em meio a tantas mudanças, questão a arte também se transformou. Assumiu um estilo aberto que se pode chamar de caricatural. Os modeladores razões passaram a representar as figuras humanas com uma passaram a representar aparência um tanto assombrosa: torsos de pessoas os membros da família frágeis, quadris largos, real dessa Tem a pernas delgadas e Fig.218 - O Rei e o estilo carecatural. tortas. De outro lado, é por em os quais artistas forma. questão da coerência. Se o faraó religiosas rompeu com a religião tradicional, de onde vinham passaram a assumir as regras e os cânones da representação da figura um conteúdo mais humana, é natural e coerente que a nova religião as cenas humano e familiar. Fig.217 - O rei, a esposa e as filhas, todos envolvidos pelos raios do sol. também buscasse uma nova forma de representar. O Egito Antigo 167 Mas ainda fica uma questão: por que o aspecto posteriormente para a pedra. Foi entre esses modelos andrógino e não um outro qualquer? Bem, pode ser que uma equipe alemã, que realizava prospecções porque a família de Aquenaton tinha esse aspecto. em Amarna, encontrou o célebre Busto de Nefertite Outros lembram que os traços andróginos podem (Fig. 219) que é, hoje, o mega ícone do Museu de ter sido usados como símbolos. No caso, símbolos Berlim, visitado anualmente por cerca de 1 milhão da própria essência de Aton “pai e mãe de todas as de pessoas, das quais 90%, respondendo a uma criaturas”. enquete, disseram Tem ainda o aspecto social. Muitos cortesões que sua visita ao da cidade de Aquetaton proclamavam que o rei os museu tinha “tirado do nada”. Pode ser porque ainda eram ao referido busto. bastante jovens. Jovens, então, também seriam os É a força de uma artistas. E como todos os jovens, talvez gostassem imagem. A aura de de experimentar coisas novas. um ícone. Existem devia-se É uma pena que a maior parte das obras de lugares e museus arte desse período não sobreviveu ao reinado de que entendem não Aquenaton. Depois que ele morreu, o seu sucessor ser necessária a reatou com o clero de Amón. Sucedeu então uma construção de seus feroz repressão. A cidade de Aquetaton foi pilhada ícones. Fig.219 - O busto ícone de Nefertite e arrasada. Quebraram quase tudo. As pedras foram Sobre esse período da história do Egito Antigo, reutilizadas. Em Tebas, aquelas esfinges que o rei outra questão em aberto é aquela que se refere mandara fazer foram todas decepadas, só ficando com às possíveis razões para a implantação do o corpo de carneiro. Aquilo que se salvou foi quase monoteísmo. que por acaso. Quando da destruição, os iconoclastas Uma das hipóteses é a da disputa com o clero (quebradores de imagens), se concentraram nos de Amon. Por essa explicação, o que Aquenaton palácios e templos. Esqueceram de vistoriar as pretendeu foi diminuir a influência do clero de Amón oficinas em que se produziam as imagens. Numa nos assuntos de governo. dessas oficinas sobraram muitos modelos em gesso, Outra hipótese é a universalidade e onipresença que, ao que tudo indica, serviam para ser “transcritos” necessárias. Por essa explicação, Aquenaton e 168 Arnoldo Walter Doberstein o círculo que o cercou teriam se dado conta que a arrogância imperialista de seus antecessores não dera bons resultados. O monoteísmo, teriam pensado, poderia facilitar a união de todos os povos do império sob a égide de uma só religião. E para tanto foi necessário mudar a concepção das divindades. De divindades locais, que supunham a necessidade de uma localidade, passou-se a uma concepção de divindade onipresente, ou seja, que pudesse estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Existe também a hipótese que a reforma religiosa passou muito pelo misticismo pessoal de Aquenaton. Nessa perspectiva, Aquenaton teria sido uma dessas pessoas que compensou uma debilidade física com uma sensibilidade superapurada, própria dos grandes criadores de religiões. O governo de Aquenaton, na história do Egito, se destaca pelo inusitado. Mas para a história da presença do Egito nos assuntos mundiais da época foi quase um fracasso. Foi um governo fechado, voltado só para dentro. Descuidou-se do Retenu. Perdeu quase tudo o que os seus antecessores haviam conquistado. Ao final de seu governo, o Egito estava menos rico e mais desorganizado. TUTANKAMON (1334 - 1325 a.C.): o único hipogeu intacto A sucessão de Aquenaton não é muito conhecida. Parece que, depois da sua morte, houve um curto governo de seu corregente. Mas quem o sucedeu, de fato, foi seu meio-irmão Tutankamon, com cerca de dez anos de idade. Sua pouca idade fez com que o governo de fato fosse exercido pelo seu tutor Ay e pelo general Horembeb. Permaneceu em Aquetaton por dois ou três anos, com o nome de Tatancaton. Depois trocou de nome, assumiu como Tutankamon e transferiu a sede de governo para Tebas. Sua pouca idade fê-lo um governante um tanto afastado das decisões mais cruciais. Quem costurou a reaproximação da monarquia com o clero de Amón foram o General Horembeb e o seu tutor Ay. No panegeríco de governo, o destaque recaiu nas obras de restauração daquilo que havia sido abandonado na época de Aquenaton. Teria sido um desses tantos faraós meio obscuros que a história do Egito encerra senão fosse a espetacular descoberta, em 1922, de seu túmulo, encravado no Vale dos Reis. Foi o único túmulo faraônico encontrato intacto, com todo o seu conteúdo preservado. Trata-se de um conjunto de peças que, ao ser descoberto, estava todo em desalinho, o que leva a supor-se que o túmulo já havia sido violado, mas os invasores não retiraram, ou não puderam retirar, as peças do local. Sua descoberta foi feita pelos ingleses Lord Carnavon, um “arqueólogo” O Egito Antigo 169 amador, e seu colaborador Howard Carter (Fig. 220). Em 1914, Carnavon havia adquirido uma concessão para o escavar Vale Reis ao os maiores segredos do túmulo. Perto da parede, exatamente em frente da entrada, encontrava-se o mais belo monumento que dos nos foi dado contemplar”.203 dada O milionário “mais belo americano monumento”, a que chamado Davis. Carter se referiu era Passaram anos um grande sarcófago, sem encontrar com a máscara do um “tesouro” rei revestido em ouro importante. Desde (Fig. 221). que Fig.221 - Máscara de ouro do túmulo de Tutankamon Cairo. Schliemann encontrara Fig.220 - Howard Carter (esq.) e Lord Carnavon (dir.), em 1922. Aí começou a confusão com o governo egípcio. Troia, ao final do século XIX, o que contava eram os Quem ficaria com o quê? Só no outono de 1925, o “tesouros”. A descoberta foi aos poucos. Primeiro sarcófago foi aberto. No seu interior havia um outro descobriram a escada que leva à entrada do túmulo, caixão. Este, por sua vez, continha mais outro (Fig. entulhada de pedra. Desentulharam-na e chegaram 222), pesando 200 quilos de ouro. Uns falam até em à porta de entrada. Teve-se, então, que esperar. O 400. Isso para um faraó quase menino. O que não teria chefe do empreendimento, Lord Carnavon, estava na no sarcófago de um Amenófis III ou de um Tutmés III? Inglaterra, e o contrato previa sua presença quando da abertura de um túmulo. Chegado o Lorde, abriu-se a porta e a primeira surpresa: ela já tinha sido “visitada” por ladrões. Estes, todavia, não puderam levar muita coisa. Depois de sete semanas chegaram à câmara do sarcófago. Segundo o próprio Carter, “ao primeiro Fig.222 - Sarcófago de ouro de Tutankamon, pesando 220Kg. relance convencêmo-nos de que ali se encontravam 203 170 Arnoldo Walter Doberstein GRIMBERG, Karl. História Universal. Vol. I. Lisboa: Publ. Europa-América, 1963, p.113. Horembeb: o final da XVIII Dinastia Seti I (1291 - 1279 a.C.): a Sala Hipostila de Karnak Com a morte de Tutancamon, a XVIII Dinastia restou sem continuidade. Na falta de herdeiros legítimos abriu-se uma feroz disputa pelo poder, que só gerou distúrbios e corrupção. Foi nesse contexto que se destacou a figura do general Horembeb. Tinha vivido em Aquetaton e se tornara um poderoso (ele mesmo se dizia “o maior dos maiores, o mais poderoso dos poderosos, general dos generais”). Apoiado no exército, e também no clero de Amón, casou-se com uma “pura” (descendente dos Amenófis). Com tanto apoio foi coroado faraó, continuador da dinastia, apesar de não ser da família real. Logo que subiu ao trono comandou a demolição de Aquetaton. Recomeçou a ampliação e restauração de Karnak. Ali levantou um pilone no qual gravou seus atos de governo, dedicando um capítulo especial para sua reforma do Judiciário. Segundo Mella “cominou penas gravíssimas contra os corruptos e funcionários ladrões cortes do nariz, como também contra os juízes comprados, com golpes de bastão e exílio”.204 Fez ainda uma reforma administrativa, dando garantias para que os funcionários não se corrompessem. 204 MELLA, Op. cit. p. 201. Horembeb não teve filho homens. Por isso, preparou sua sucessão da seguinte forma: deixou o governo para um aliado seu, o também general Ramessese. Com o nome de Ramsés I, este último inaugurou a nova dinastia. Como já era avançado nos anos, casou um filho seu, o futuro Seti I, com uma filha de Horembeb, e foi tratar de construir seu hipogeu. O novo rei, Seti I, dedicou os três primeiros anos de seu governo para a reconquista do Retenu, recuperando “dois terços do império de Tutmés III”.205 Agradecido aos deuses, prodigalizou recursos aos seus respectivos santuários. Em Abydos construiu aquele em cujo interior de uma de suas capelas (são sete ao todo) mandou gravar em relevos as célebres Tábuas de Abydos, nas quais ele aparece fazendo sacrifícios a 76 de seus antecessores. É uma importante fonte para a reconstituição da listagem dos reis egípcios. Em Karnak ergueu a Grande Sala Hipostila, Segundo Mella, “o edifício mais imponente construído no Egito depois das pirâmides”. Numa superfície de 5.000 m² (105 x 53), foram erguidas 134 grandes colunas, as 12 do centro “com uma altura de 20,3 m e com capiteís de 15 m de circunferência”.206 205 MELLA, Op. cit. p. 204. 206 MELLA, Op. cit. p. 204. O Egito Antigo 171 RAMSÉS II (1290 - 1224 a.C): o Faraó do Êxodo e Esplendor O sucessor de Seti I foi seu filho Ramsés II, que subiu ao trono bastante jovem (cerca de 18 anos) e governou por 68 anos. Um governo de longa duração e de grandes empreendimentos. Talvez possa ser incluído para formar, ao lado de Queóps e Quéfren, da IV Dinastia, de Amenemat III, da XII, e de Amenófis III, da XVIII, o quinteto dos faraós que fizeram as mais grandiosas construções do Egito Antigo. Em Karnak mandou concluir a Grande Sala Hipostila do pai, e ergueu os seus dois maiores pilones. Em todos os templos por ele construídos (Luxor, Karnak, Abydos, Dendera, Abu-Simbel, etc.) um tema que ele sempre fez questão de repetir foi a sua guerra com os hititas, na célebre Batalha de Kadesh. Tanto quanto seu confronto com os hititas, famoso também ficou seu tratado de não agressão com esse mesmo país. Tal tratado foi proposto pelo rei Hattusili III, que estava ameaçado pelos mitanis e pelos assírios e não queria combater em duas frentes. No 22º ano de seu governo o tratado foi celebrado, e no 35º ele foi referendado pelo casamento de Ramsés II com uma princesa hitita que recebeu o nome de Maet-Neferura. Casamento foi o que não faltou na longa trajetória de Ramsés II. De suas várias esposas, e mulheres 172 Arnoldo Walter Doberstein secundárias, nasceram 111 filhos e 51 filhas. Isso os declarados oficiamente. Imagine-se, agora, os genros e noras, netos e bisnetos. Uma família-cidade. De todas essas mulheres, uma gozou de especial atenção, e até mesmo devoção, por parte do rei. Foi a rainha Nefertari, outra mulher de muito poder na história do Egito Antigo. Para a fusão de seu Ka no corpo do deus Osíris, foi-lhe proporcionado o primeiro e nunca superado hipogeu feminino colocado no local que posteriormente passou a ser chamado de Vale das Rainhas. Na localidade de Abu-Simbel, entre a 1ª e a 2ª Catarata, foram escavados dois templos nas rochas. No Pequeno Templo, a rainha Nefertari recebeu a honraria de ser representada ao lado, e, como atestado de sua importância, em pé de igualdade com o esposo. Já no Grande Templo, assim como o anterior, removido para um lugar mais elevado quando a região foi inundada pela atual barragem de Assuã, os destaques são, na sua fachada, os quatro colossos de Ramsés II, cada um com mais de 20 m de altura. Pela orientação solar da porta de entrada, em dois dias do ano, 21 de outubro e 21 de fevereiro, o primeiro sol da manhã penetra no interior do templo, iluminando as quatro estátuas do seu interior. O final do reinado de Ramsés II, por volta de 1220 a.C. coincidiu com a tentativa de invasão dos povos do mar. Faziam parte de um grande movimento de povos, usando a tecnologia do ferro. O Egito desses atos com um cenário próprio, é lícito adiantar- impediu a invasão, mas não pode impedir que uma se que a difusão da tecnologia do ferro e a ocupação parte dessas populações se instalasse no Retenu. do Retenu (Palestina) pelos hebreus e por alguns dos Ao que tudo indica com os hebreus, que fugiram povos do mar criaram um novo cenário cujo olhar do do Egito por essa época. historiador deve se dividir entre o Egito Antigo e o que vai passar a acontecer nessa região do mundo. A entrada dos hebreus na região é o grande fato OBSERVAÇÃO FINAL histórico responsável por esse necessário desvio da atenção do historiador. É por essa razão que o presente texto se encerra no governo de Ramsés II, Se imaginarmos o processo histórico como uma peça de teatro formada de inúmeros atos, e cada um embora a história do Egito Antigo não tenha terminado nesse período. O Egito Antigo 173 “O homem prudente prospera e o moderado é aclamado. A tenda se abre ao silencioso e amplo é o espaço de contentamento. Não fales demasiado. Contra quem se apartou do caminho se afiam os cutelos, ninguém avança expeditamente se não é o seu tempo (...) Deixa que a tua fama cresça. Então, sem que tenhas que abrir a boca, todos recorrerão a ti...” Instruções para Kagemi “Não te envaideças de teu conhecimento, toma o conselho tanto do ignorante quanto do instruído, pois os limites da arte não podem ser alcançados e a destreza de nenhum artista é perfeita. O bem falar é mais raro que a esmeralda, mas pode encontrar-se entre criados e britadores de pedra (...). Se fores poderoso, inspira respeito pelo conhecimento e pela serenidade no falar. Só ordenes quando necessário, pois aquele que afronta cai em apuros...” Preceitos de Ptah-Hotep