DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.96166
“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ
EM UMA IGREJA PENTECOSTAL DA PERIFERIA
Réia Sílvia Gonçalves Pereira1
Resumo: No artigo, são apresentados dados etnográficos da igreja Herdeiros do Sião,
pequena igreja pentecostal localizada numa favela de Vitória, Espírito Santo. Em
observação participante empreendida de janeiro a abril de 2014 e retomada entre
janeiro e fevereiro de 2018, apresento pontos de reflexão sobre a singularidade da
expressão religiosa representada pela denominação, que pode ser associada a uma
vertente pentecostal conhecida, em expressão de grupo, como reteté de Jeová. O
termo se refere aos rituais de culto ao espírito santo marcados pelo caráter extático,
sensorial e pela intensidade das performances corporais, que lembram uma dança
giratória. Especificamente, no artigo, a análise se concentra na reflexão sobre como
a Herdeiros do Sião se situa e atua no contexto da favela onde está inserida. Em
sentido mais amplo, partindo do conceito sobre afinidade eletiva (Weber, 2004)
e posição fronteiriça (Coleman, 2006), argumento que os rituais vivenciados na
igreja, bem como sua forma de organização, fornecem pistas sobre a associação
entre a ritualística reteté e o ethos periférico. Nesta esteira, também são discutidas
as disputas por legitimidade da religiosidade reteté, muitas vezes invisibilizadas ou
desconsideradas dentro do campo evangélico brasileiro.
Palavras-chave: Pentecostalismos; Periferias; Ritual.
“LET THE BOY SPIN”: THE “RETETÉ” CHARISMA IN A PENTECOSTAL
CHURCH OF THE SUBURBS
Abstract: This article presents ethnographic data from Herdeiros do Sião, a little
pentecostal church situated in a slum in Vitória, Espírito Santo. In a participant
observation carried out from January to April 2014 and resumed between January
and February 2018, I present points of reflection about the singularity of the
religious expression represented by this denomination, which can be associated
1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
artigodebates@gmail.com.
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to a pentecostal branch known, in an expression used by the group, as “reteté
de Jeová”. The term refers to the rituals of the cult to the Holy Spirit marked by
the ecstatic, sensory character and by the intensity of the corporal performances,
which remind us of a whirling dance. In this article, the analysis focuses on the
reflection about how Herdeiros do Sião situates itself and acts in the context of the
slum. In a broader sense, based on the concept of elective affinity (Weber, 2004),
I argue that the rituals experienced at Herdeiros do Sião, as well as its form of
organization, suggest an association between the reteté rituals and the peripheral
ethos. Disputes for the legitimacy of reteté religiosity are also discussed, as it is often
made invisible or disregarded by the evangelical field, precisely for its association
with the Brazilian peripheral universe.
Keywords: Pentecostalisms; Suburbs; Ritual.
INTRODUÇÃO
Quem tocar no crente ungido, vai com a cara na poeira
(Damares)
Para o artigo, apresento dados etnográficos da Herdeiros do Sião, igreja
pentecostal localizada numa favela (Valladares, 2008) de Vitória, Espírito
Santo. Morei na localidade em virtude da pesquisa de mestrado, de janeiro a
abril de 2014, retornando ao campo em janeiro de 2018. Além dessa igreja,
durante todo o tempo de pesquisa, participei de cultos em muitas outras
denominações de características semelhantes à Herdeiros de Sião. Eram
pequenas igrejas pentecostais, formando grupos com número relativamente
reduzido de integrantes e com intenso controle sobre as condutas de seus
membros. A partir dessas observações, apresento algumas reflexões neste texto.
Como estratégia textual, o trabalho está dividido em dois tópicos principais. No primeiro deles, a análise tem como base a experiência etnográfica
na igreja Herdeiros do Sião. No segundo item, apresento pontos de reflexão
sobre a singularidade das práticas religiosas da igreja estudada, associando tais
experiências a uma expressão de religiosidade muito comum nos bairros das
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camadas populares urbanas conhecidas, em expressão de grupo, como reteté
de Jeová. O termo alude, de modo geral, aos rituais ruidosos e sensoriais,
marcados por expressivas performances corporais que lembram uma dança
giratória (Guerreiro, 2016, 2018). Desta feita, a partir das observações na
Herdeiros do Sião, o reteté será abordado por sua inexorável imprecisão
classificatória, revelando a complexidade das experiências pentecostais
vivenciadas nas periferias.
A HERDEIROS DO SIÃO E O BAIRRO SÃO PEDRO:
AS IGREJAS DE FOGO E AS CAMADAS POPULARES
Pequena e localizada em um espaço adaptado de um estabelecimento
comercial, a Herdeiros do Sião é uma entre tantas outras igrejas pentecostais
presentes no bairro São Pedro, uma favela (Valladares, 2008) situada na região
Noroeste de Vitória, Espírito Santo. Como afirmado, morei no bairro entre
janeiro e abril de 2014, retornando à localidade no período que compreende
janeiro e fevereiro de 2018.
Compondo um complexo de favelas, a região de São Pedro está subdividida em seis áreas, formando os bairros de São Pedro I, II, III, IV e V,
além do Morro Conquista. Cortada por uma rodovia, abriga ao longo da
estrada um intenso centro comercial (Pereira, 2014). Especificamente,
residi em uma das subdivisões de São Pedro, aos pés do Morro Conquista,
considerada a área mais carente da região.
Na localidade, as casas geminadas, algumas em madeira, não tinham
quintais; formavam becos que estreitavam as já afuniladas ruas, numa conformação próxima ao que Oosterbaan (2009) denominou como “densidade
das favelas” (Oosterbaan, 2009, p. 82; Pereira, 2018).
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Figura 1 – Beco do Morro Conquista
Fonte: Acervo da autora.
Foi ao andar por essas ruas de São Pedro que notei a presença das
pequenas igrejas pentecostais. Eram notáveis tanto pela variedade quanto
pela diversidade de seus nomes. Olaria de Deus, Semente de Deus na Terra
e Adonay eram algumas das igrejas que encontrei apenas no quarteirão
da minha casa. Mesmo em sua variedade, guardavam semelhanças: eram
pequenas, geralmente localizadas em espaços destinados às garagens, com
portas de alumínio de correr. Também chamava a atenção a expressividade
sonora de seus cultos. Em tais igrejas, as orações e os hinos religiosos eram
destacadamente ruidosos, podendo ser ouvidos a significativa distância dos
templos. Na diversidade religiosa do Morro Conquista, a amplitude dos
sons produzidos pelos rituais das pequenas igrejas pentecostais parecia ser
um fator valorizado por tais denominações.
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Figura 2 – Igreja Adonay Shalon
Fonte: Acervo da autora.
Figura 3 – Igreja Olaria de Deus
Fonte: Acervo da autora.
Especificamente sobre a Herdeiros do Sião, devo dizer que é uma igreja
como tantas outras localizadas na favela. Pequena. Contava com um pequeno
altar e um púlpito. As cadeiras eram de plástico e não havia equipamentos
de ventilação. Também não havia gravuras ou esculturas.
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Figura 4 – Fachada da Herdeiros do Sião
Fonte: Acervo da autora.
Na denominação, conheci a pastora Cláudia2, uma mulher negra, altiva,
com cerca de 50 anos. Voz potente, exalava autoridade. Viúva com cinco
filhos, Cláudia morava em uma pequena casa vizinha à igreja, sendo uma
das poucas integrantes que sabia ler as passagens bíblicas com desenvoltura. Mesmo com o ar severo, a pastora surpreendentemente fora bastante
atenciosa. Apresentou-me aos demais integrantes, comentava sobre casos
que considerava “interessantes” para apresentar na pesquisa, embora tenha
confessado que “crente não combina com faculdade”.
Sobre os demais integrantes – cerca de 20, segundo informação da
pastora –, notei que as mulheres formavam a maioria dos fiéis da igreja. Em
minhas conversas com algumas delas, percebi que eram mães; pelo menos
cinco delas tinham filhos encarcerados. Tive contato mais próximo com
Glória3, viúva de 37 anos, com um filho encarcerado e uma filha, namorada
de um integrante do narcotráfico.
Participei de alguns rituais da Herdeiros do Sião, dentre eles, uma
campanha de cura e libertação (Mafra, 1999). Na maioria das celebrações
observadas em 2014, notei que todos podiam se manifestar e o faziam por
meio de “exaltações orais” (Pereira, 2014). Seguiam até a frente da igreja,
2
3
Nome fictício escolhido pela interlocutora.
Nome fictício escolhido pela interlocutora.
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usavam o microfone e diziam algum relato, muitos deles sobre situações
aflitivas (Duarte, 1988), como as relacionadas ao encarceramento dos
filhos, tais relatos são chamados testemunhos (Birman; Machado, 2012;
Dullo, 2016). Em 2018, contudo, um outro tema marcava as campanhas:
o desemprego. Percebi, não apenas na Herdeiros do Sião, como em outras
igrejas de caráter semelhante, o quanto o temor pela privação devido à falta
de emprego enseja a realização de campanhas.
Nos cultos da igreja, a música tinha um papel importante. Cada louvor
era acompanhado por um hino, cantado com exaltação pelo fiel. Glória,
uma das minhas mais próximas interlocutoras de campo, também apresentou seu louvor lembrando que orava pelo filho encarcerado por tráfico
de drogas e pela filha, namorada de um também traficante. Cantava uma
música em tom bem alto e, naqueles momentos, parecia não se preocupar
com afinação. Trago alguns trechos:
Quando estiver frente ao mar
e não puder atravessar,
chame este homem com fé,
só ele abre o mar.
Não tenha medo,
irmão, se atrás vem Faraó,
Deus vai te atravessar
e você vai entoar
o hino da vitória.
Toda vez que o Mar Vermelho tiver que passar
chame logo este Homem para te ajudar,
é nas horas mais difíceis que ele mais te vê,
pode chamar este Homem que ele tem poder
(Cassiane, “Hino da vitória”)4
4
HINO da vitória. [S. l.: s. n.], 2007. 1 vídeo (ca. 3 min). Publicado pelo canal Simone
Maximo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iW4KMdtJoww. Acesso
em: 2 set. 2019.
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Além do louvor de Glória, com o tempo, outras narrativas se sucederam
e se transformaram em exaltações, sempre em tom combativo. Os gritos e
os cânticos eram estimulados e entravam em um movimento ascendente.
Aquele era o momento do avivamento (Csordas, 1999), quando ocorrem as
manifestações do espírito santo. Naquele instante, alguns choravam, muitos
gritavam, outros se debatiam como se recebessem uma descarga elétrica.
Notei que as performances pareciam ser individuais, porém ritmadas. Cada
pessoa manifestava-se de forma diferente. Alguns integrantes balançavam
os braços, outros se contorciam e alguns pareciam rodar como uma dança
giratória.
Prestei atenção (Forsey, 2010) ao ritmo do som entoado. Não era um
ritmo lamurioso. Ao contrário, com o toque de um pandeiro, a cadência
parecia lembrar a batida do forró. Era um ritmo quase dançante (Bourcier,
2006). Assim, longe de lembrar o ascetismo racional protestante narrado por
Weber (2004), do qual o pentecostalismo é filho, havia um inegável espírito
sobrenatural naqueles cultos. Dessa forma, o caráter extático e emocional
do ritual era evidente.
Ao participar dos rituais da Herdeiros do Sião, uma das muitas igrejas
pentecostais que povoavam Conquista, coloco em perspectiva as conceituações de Mariza Peirano (2002, 2014), ao argumentar que a análise do evento
ritual é importante justamente por evidenciar em uma escala hiperbolizada
a instância do usual e do cotidiano. Diz a autora sobre a relação entre rituais
e cotidiano: “[...] estamos, portanto, lidando com fenômenos semelhantes
em graus diversos” (Peirano, 2002, p. 8).
Nessa esteira, por meio dos rituais da Herdeira em Sião, as aflições de
Glória, que clamava pelo filho preso por narcotráfico, instância que media a
maioria das relações de Conquista, puderam ser narradas. As preces exaltadas
e ruidosas, cujos “O êxtase e a presença física do espírito, compartilhado
por outros que também conhecem ou dividem seus problemas, talvez sejam
a maior expressão dessa ‘vitória’” (Pereira, 2014, p. 98).
Assim, em consonância com Peirano (2002), reitero a importância da
análise da religiosidade praticada na Herdeiros do Sião, não apenas por seu
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aspecto ritualístico, mas também em seu aspecto contextual. Advogo que
essa forma de religiosidade diz respeito também a seu modo organizativo,
como mencionado, geralmente, em pequenas comunidades religiosas nas
periferias.
Sobre a própria forma de organização, observei – não apenas na Herdeiros
do Sião, mas também em muitas outras de características semelhantes – que
as congregações são formadas por um pastor responsável pela gerência da
igreja. Há também os missionários que, embora não tenham o status de pastor,
atuam de forma semelhante, inclusive ministrando pregações. Os demais
são chamados “obreiros”, responsáveis pelas outras funções organizativas.
Ao se inserirem oficialmente na igreja, recebem funções e orientações sobre
a conduta a ser exercida em uma aula doutrinária chamada escola bíblica
dominical. Para garantir o cumprimento das “doutrinas”, tais condutas são
constantemente vigiadas, existindo punições àqueles que, porventura, as
violarem. Tais sanções são tanto mais severas quanto mais altos forem os
“cargos” exercidos.
A organização de igrejas pentecostais de pequeno porte como a Herdeiros
do Sião se aproxima da definição sobre comunidades morais, categoria desenvolvida por Carla Mafra em clássica pesquisa de 1999. Analisando as pequenas
Assembleias de Deus de localidades periféricas, a autora destaca sobre as
comunidades morais, a hierarquia institucional flexível e a forte rede de
solidariedade. Sobre tais comunidades:
Por mais que exista uma grande flexibilidade no estabelecimento da relação
hierárquica entre as redes [...] e pouca fiscalização e intervenção da hierarquia
no «domínio» do pastor presidente (pastor da igreja mãe com cargo vitalício),
estas características de uma organização institucional «flexível» são somadas
para compor «comunidades morais» localizadas: agregados com fortes redes
de solidariedade interna e noção clara das ações limite, aquelas consentidas e
não consentidas pelo coletivo (Mafra, 1999, p. 36).
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“Sou canela de fogo”: a Herdeiros do Sião, o reteté e a afinidade
eletiva com o ETHOS periférico
Intrigada com as primeiras impressões dos vivazes rituais e da composição
da Herdeiros do Sião, percebi uma obviedade: o campo evangélico (Mafra,
2000) era muito mais diverso do que podia supor (Sant’Ana, 2017). Até
então, acreditava que todas as vertentes eram próximas e se reconheciam.
Por não perceber a heterogeneidade desse campo, procurei um dos pastores
da igreja batista do Morro Conquista para me acudir em minhas dúvidas a
respeitos das celebrações da Herdeiros do Sião e de templos vizinhos.
Lembro-me que o pastor dissera com o ar severo: “São os reteté. Pessoas
desesperadas que vivem da misericórdia de Deus”5. Não compreendi de
todo a fala do pastor. De fato, até associar a Herdeiros do Sião ao nome
reteté foi um trabalho que levou certo tempo. Primeiramente, empreendi
intensa pesquisa bibliográfica. Na literatura socioantropológica, raros são
os trabalhos que abordam especificamente a nomenclatura reteté de Jeová.
Clayton Guerreiro (2016, 2018), um dos poucos pesquisadores a abordar
nomeadamente o tema, argumenta que o termo é bastante polêmico, mesmo
no campo pentecostal. Ainda que sua origem seja desconhecida, o autor
aponta três hipóteses difundidas para o surgimento do nome. Na primeira
delas, reteté seria uma aliteração ao ritmo das músicas executadas durante
os rituais, lembrando o forró (Lopes, 2016). Na segunda hipótese, refere-se
à uma “brincadeira” sobre a prosódia da glossolalia6, aludindo às palavras
aparentemente ininteligíveis, mas marcadas pela repetição silábica proferidas
durante os rituais (Guerreiro, 2016, p. 16). Na terceira hipótese, reteté seria
uma alusão aos cultos das religiões afro-brasileiras, historicamente anatemizadas entre os protestantes e pentecostais. Polêmico ou não, o termo é
conhecido principalmente nas periferias brasileiras e, sobretudo, entre os
5
6
Informação verbal colhida em fevereiro de 2014.
Pela teologia pentecostal, glossolalia é um dos dons do espírito santo, possibilitando ao
crente a comunicação verbal com a transcendência (Mariano,1999).
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pentecostais. Sobre a descrição de tal religiosidade, novamente, Guerreiro
(2018, p. 125) descreve sua tentativa de síntese focada na análise ritual:
Nos rituais do “reteté”, há práticas diversas como profecias, visões, revelações,
curas e línguas estranhas, porém, esses cultos se diferenciam principalmente pelos
diversos movimentos corporais executados através de danças, gritos, pulos, quedas,
tremedeiras, sapateados, giros, marchas e movimentos circulares com os braços.
Essas gesticulações são embaladas pela musicalidade expressa nas canções conhecidas
como “corinhos de fogo” que, grosso modo, são cânticos curtos e repetitivos, que
contam histórias bíblicas ou cotidianas por meio de uma gramática tipicamente
pentecostal, em ritmos musicais brasileiros – forró, axé, samba e pagode, ao som
de instrumentos diversos, incluindo pandeiros, surdos e atabaques.
Em minhas pesquisas tanto nas relações face a face quanto pela internet,
descobri dezenas de hinos e orações que remetiam à expressão. Talvez uma das
músicas mais representativas seja a canção composta pela pastora Flordelis:
Eu sou canela de fogo,
reteté de Jeová,
estou nadando no azeite,
não consigo parar [...].
Deus vai entrar na tua vida,
vai restaurar o teu lar.
Sabe aquela enfermidade,
hoje o meu Deus vai curar.
Vai libertar o teu filho
das drogas e da prisão.
Sabe aquele teu marido,
vai marchar com o varão.
Sabe aquela tua filha
que vive na perdição,
ela vai virar a líder
do grupo de oração
(Flordelis, “Eu sou canela de fogo”).
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Percebe-se que os versos abordam sua forma ritual extática. “Nadando
no azeite, não consigo parar”, de fato, é uma forma de descrever o caráter
sensorial dos cultos reteté. Também chama atenção a forma em que se
estabelece a relação entre a transcendência e a vida cotidiana. O Deus
reteté é aquele com poder de se inserir nos problemas de seus fiéis. É capaz
de restaurar casamentos, é capaz de tirar os filhos “das drogas e da prisão”,
dando respostas aos problemas enfrentados por grande parte da população
que vive nas periferias urbanas do Brasil (Novaes, 2006, 2012).
Dessa forma, argumento que reteté seja uma possibilidade de expressar
uma especificidade de cerimônias de maravilhamento e êxtase pelo espírito
(Mafra, 1999, p. 35). A expressividade corporal da dança giratória seria um
dos marcadores e fator central do ritual.
Contudo, e isso deve ser dito, a maioria das pessoas que identifico
nesse trabalho como associadas ao reteté não gosta do termo. Acreditam
que é uma forma de desmerecimento da religiosidade. Perguntei a um dos
integrantes da Herdeiros do Sião se considerava a congregação como reteté”:
“isso [reteté] é coisa maligna. Somos uma igreja viva... Muita gente não
entende e fala coisas que não sabe”.
Nessa disputa por legitimidade, percebe-se que a religiosidade aqui em
questão é uma categoria de acusação, que, para Becker (2008, p. 27), envolve
relações de poder e hierarquia, estabelecendo fronteiras classificatórias entre
o que acusa e o acusado. Gilberto Velho (2008, p. 66) vai destacar o caráter
instável e circunstancial do processo de acusação, possibilitando a negociação
sobre a forma como se estabelecem os termos. Dessa forma, a acusação sobre
os reteté se estabelece principalmente entre os protestantes históricos e/ou
calvinistas, delimitando uma fronteira entre uma religiosidade supostamente
racional e teologicamente correta, em direta acusação à suposta expressão
“herética” e “enganosa” dos reteté (Silveira, 2015, p. 38).
Sobre a acusação relacionada aos seguidores dessa religiosidade, argumento que ao negarem o estigma de reteté, os integrantes estigmatizados
operam a partir da “condição de desacreditado”, tal como explica Goffman
(1988, p. 14). Assumindo uma capa defensiva, aqueles estigmatizados
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respondem de distintas formas a acusação. Guerreiro (2016, p. 202-204)
traz um interessante exemplo. Destaca que uma das principais acusações a
se recair sobre os adeptos da vertente religiosa em discussão neste artigo é a
categoria “meninice”; ou seja, eles seriam poucos sérios e “imaturos na fé”
(Guerreiro, 2016, p. 202-204). Por outro lado, entre os reteté, tal acusação
é rebatida ao destacarem que a suposta imaturidade espiritual seria contraposta pela “inocência infantil”:
Assim, se para os críticos do reteté, a meninice indicaria falta de seriedade
dos que os praticam, os que têm tais práticas justificam suas performances,
afirmando que são as práticas de certos pecados que indicariam a suposta
falta de seriedade. Assim, de acordo com eles, “não adulterar” (forma como os
pentecostais se referem à prática do adultério) é que deveria ser considerado
algo a se preocupar (Guerreiro, 2016, p. 204).
Contrapostas, as falas do pastor batista apresentada no início do item
e daqueles que se defendem da acusação sobre o reteté colocam em perspectiva em complexo processo de busca por legitimidade dentro do campo
evangélico e mesmo no campo pentecostal. Nessa disputa, as acusações
(Goffman, 1988) se relacionam colocando em evidência a heterogenia do
campo. Ao acusar os reteté de serem “desesperados”, o pastor batista explicita uma disputa importante entre protestantes não pentecostais e entre
os pentecostais. Nesse campo, se os protestantes mais tradicionais acusam
os pentecostais de heréticos, ignorantes, em uma associação à condição
de pobreza (Silveira, 2015), em sentido amplo, os pentecostais acusam os
protestantes tradicionais de serem “frios”, cultuadores de um uma expressão
estática do divino. Apresento depoimento de uma jovem pentecostal da
Herdeiros do Sião sobre a igreja presbiteriana, considerada protestante
histórica: “Eles servem ao Jesus que ficou lá, pregado na cruz. O Deus que
eu sirvo é vivo, ele circula pelo poder do espírito santo” (entrevista com
Marta, 24 de janeiro de 2014).
Mesmo no campo pentecostal, no qual o culto ao espírito santo é um
denominador comum, as disputas são significativas. Durante a estada em
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São Pedro, percebi que alguns pentecostais acusam as igrejas de grande
porte, entre as quais a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de serem
menos “sinceras’ ou se” preocuparem com dinheiro”. A auxiliar de serviço
gerais Mara7 ratifica tal posição: “As igrejas de bairro são mais sinceras. Não
pensam tanto em dinheiro tipo as igrejas grandes. Têm menos falsos profetas,
que não estão preocupados com o reino de Deus”.
Reitero, porém, ao estabelecer o reteté como categoria de acusação, que
não é minha intenção esgotar o termo e tampouco definir e classificar expressões religiosas como pertencentes ou não ao escopo semântico da categoria
(Bispo, 2010, p. 14; Silveira, 2015, p. 47). Antes disso, a intenção é atentar
para as disputas envolvendo o termo, explicitando as rupturas, apreensões,
tensões e instabilidades que rodeiam tal expressão. Assim, a associação dos
rituais reteté e das pequenas igrejas pentecostais não cabe em classificações
automáticas. Nesse sentido, as observações de Giumbelli (2001) ganham
importância por contestarem interpretações que versem sobre um sentido
de pureza nas classificações sobre o campo evangélico:
Todas as críticas dirigidas ao paradigma da “pureza nagô”, elaboradas por
uma geração inteira de pesquisadores [...], deveriam servir de alerta para que
procedimento análogo não fosse aplicado a um outro segmento do campo
religioso e para que privilegiássemos outras formas de considerar as inegáveis
transformações que ocorrem entre os evangélicos e as especificidades que
acompanham sua expansão no Brasil. Mas, além dessa, outras razões existem
para desaconselhar a direção seguida pelas formulações dominantes em termos
de terminologias e classificações do protestantismo. É preciso lembrar que o
pentecostalismo não é interesse exclusivo de estudiosos. (Giumbelli, 2001,
p. 111-112).
Nesse sentido, a diversidade e heterogeneidade das igrejas pentecostais
de pequeno porte e a imprecisão classificatória dos rituais reteté dão provas
do dinamismo e complexidade do campo pentecostal e evangélico (Mafra,
7
Nome fictício escolhido pela interlocutora. Depoimento colhido em janeiro de 2018.
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2000). Dessa feita, denominações como a Herdeiros do Sião não podem
ser associadas completamente à tipologia de Mariano (1999) e Freston
(1994), revelando uma pentecostalidade (Duarte, 2005, p.165) “impura”
e rica em intersecções e circulação fronteiriças (Coleman, 2018). Marcadas
pela relacionalidade própria das camadas populares (Duarte, 1986, 2005),
figuram-se como expressões do “fundo de crença dos grupos populares”
(Fonseca, 1991, p. 131, tradução minha), no qual a experiência pentecostal,
longe de minar a experiência da diversidade simbólica religiosa, acrescenta
a ela novos elementos (Fonseca, 1991, p. 131).
Dessa forma, as disputas por legitimidade dentro do campo pentecostal
remetem explicitamente às assimetrias dentro do próprio campo, revelando
relações de poder que se refletem em diferenças de visibilidade no espaço
público. Raquel Sant’Ana (2014) destaca que, a partir das assimetrias, nas
quais alguns grupos são mais visíveis em detrimentos de outros, é possível
estabelecer relações metonímicas, em que determinados grupos evangélicos
passam a ser imaginados (Asad, 2003) e nomeados como representantes da
totalidade do campo evangélico (Sant’Ana, 2014).
Nesse mesmo sentido, podemos pensar que a configuração dos “evangélicos”
enquanto campo discursivo não é livre de assimetrias. Ao contrário, se dá a
partir da produção de metonímias, apresentando certos grupos e lideranças
como a totalidade dos “evangélicos” a partir das posições privilegiadas que
ocupam em relação aos recursos da indústria cultural e da política parlamentar.
[...] Assim, tem sido possível pensar em “evangélicos” a partir do cruzamento
entre uma produção parlamentar e midiática, revelando disputas e projetos
que se tornam metonímia dos 22% dos brasileiros apontados pelo censo, ele
próprio objeto de promoção midiática da existência desse segmento (Sant’Ana,
2014, p. 213).
Argumento, em consonância, que a forma de organização centrada em
pequenas comunidades religiosas localizadas nas periferias contribui para
a relativa invisibilidade de tais manifestações como possibilidade imaginativa (Asad, 2003) da composição dos evangélicos como campo discursivo
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na cena pública. Em outras palavras, aduzo que a própria organização em
pequenas comunidades, sem a formação de lideranças para além das próprias
denominações e, principalmente, a associação ao cotidiano dos universos
periféricos – estes, também estigmatizados e invisibilizados (Oosterbaan,
2008; Machado, 2005) – contribuem para a relativa invisibilidade das
manifestações reteté das pequenas comunidades religiosas no espaço público
mais amplo.
A Herdeiros do Sião e a periferia
Nessa esteira, a diversidade de igrejas pentecostais com características
próximas à Herdeiros do Sião em um bairro como São Pedro suscita o
questionamento sobre a própria amplitude da relação entre as pequenas
denominações pentecostais e a vivência nas periferias em um sentido mais
geral (Fonseca, 1991; Machado, 2018; Vital da Cunha, 2015).
É plausível recorrer aos números. De acordo com o Censo Religioso
realizado em 2010 (IBGE, 2010), a maior denominação evangélica do
Brasil é a Assembleia de Deus8, com cerca de 29% de adeptos. As igrejas
protestantes clássicas – contando com os batistas, luteranos, metodistas e
presbiterianos –, não chegam a 10%. As demais denominações pentecostais
são as de grande porte – entre as quais, a Igreja Universal do Reino de Deus,
a Adventista, a do Evangelho Quadrangular e a Deus é Amor –, que somam
pouco mais de 10%. Interessante notar que a categoria “outras”, utilizada
pelo Censo para se referir a igrejas de pouca expressão numérica, chega a
34%. Assim, é possível aferir que boa parte dessas “outras” igrejas evangélicas
guardem semelhanças às pequenas pentecostais, como a Herdeiros do Sião.
Clara Mafra (2011, p. 136) chega a falar em um cinturão pentecostal
nas periferias urbanas. Diz a autora que há uma relação de proporcionalidade. Quanto mais afastada dos centros, mais pentecostal e menos católica
é a região.
8
A relação entre os reteté e a Assembleia de Deus será melhor analisada em itens posteriores.
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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Boa parte das metrópoles latino-americanas entrou no século XXI com uma
configuração urbana peculiar, o chamado “cinturão pentecostal”: em torno de
um núcleo urbano antigo, com infraestrutura consolidada e uma maioria de
residentes católicos, formou-se um cinturão periférico, de colonização recente,
infraestrutura precária e alta presença de pentecostais (Mafra, 2011, p. 136).
Evidentemente não há como identificar todas as pequenas igrejas pentecostais que povoam as periferias brasileiras à ritualística reteté. Insistir em
tal premissa seria recair em uma redução classificatória e conceitual como
já foi explanado aqui (Giumbelli, 2001, p. 111-112).
Argumento, contudo, analisando o caso da Herdeiro dos Sião, dado
seu pequeno porte possibilitando a formação de hierarquias mais horizontalizadas e a organização em comunidade moral tradicionalmente focada
em cerimônias de maravilhamento e êxtase pelo espírito como observado
por Mafra (1999, p. 35), que há uma associação entre denominações com
elementos ritualísticos que se aproximam da categoria que neste texto se
denomina como reteté ao universo das periferias brasileiras. Clayton Guerreiro (2018, p. 123) também percebeu tal associação:
[...] analiso conflitos protagonizados por fiéis pentecostais, supondo que são
evidenciados, encenados e atualizados nos rituais pentecostais conhecidos
como “reteté”. Esses rituais ocorrem principalmente em pequenas igrejas da
periferia das grandes cidades brasileiras, onde ocorrem vigílias pentecostais.
Silveira (2015, p. 38) destaca a relação do termo reteté às camadas
populares:
As igrejas pentecostais re-te-té [...] podem ser identificadas por um grupo
de características que marcou o surgimento do pentecostalismo no início
do século XX nos EUA e no Brasil: periferia, pobres, negritude, mulheres e
intensa presença do corpo (danças, giros, música batida, espasmos, rodopios
e desmaios). Essas características não são propriamente novidades mas nos
últimos dez anos [...] essa faceta do fenômeno ficou evidente e, com isso, as
categorias de acusação foram acionadas.
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Dessa forma, se proponho uma associação entre a religiosidade reteté
da Herdeiros do Sião à vivência periférica (Novaes, 2012, p. 195), necessária
se faz a delimitação sobre a conceituação de periferia utilizada aqui. Tema
vastamente estudado nas Ciências Sociais (Le Goff, 1998; Blumenfeld,
1972; Sellier, 1992; Santos, 1981; Kowarick, 2000; Sposito, 1993), periferia,
no recorte proposto, é abordada para além de uma referência meramente
espacial, ou mesmo de uma leitura, na qual o contexto periférico é visto
unicamente como espaço de carência e de precariedade de serviços públicos.
Assim, a abordagem proposta prevê uma ampliação do conceito (Dayrell,
2007, p. 1112; Novaes, 2006, p. 190), destacando que, embora tais fatores
sejam levados em conta, periferia se refere a um ethos específico marcado,
também, por relações afetivas de sociabilidade. Cito as precisas palavras de
Dayrell (2007, p. 1112):
Periferia não se reduz a um espaço de carência de equipamentos públicos
básicos ou mesmo da violência, ambos reais. Muito menos aparece apenas
como o espaço funcional de residência, mas surge como um lugar de interações
afetivas e simbólicas, carregado de sentidos. Pode-se ver isso no sentido que
atribuem à rua, às praças, aos bares da esquina, que se tornam, como vimos
anteriormente, o lugar privilegiado da sociabilidade ou, mesmo, o palco para
a expressão da cultura que elaboram, numa reinvenção do espaço.
Neste sentido, entendendo periferia como lócus de interações específicas, advogo que os ruidosos, sensoriais e extáticos rituais das pequenas
igrejas como a Herdeiros do Sião, são expressões privilegiadas dos contextos
das periferias urbanas; onde tais igrejas, na significativa maioria dos casos,
estão inseridas.
O reteté e as periferias: afinidade eletiva
Desse modo, é possível falar em uma relação de afinidade eletiva (Weber,
2004) entre as pequenas igrejas reteté como a Herdeiros do Sião e os contextos
periféricos. Contudo, é preciso destacar que ao utilizar o termo weberiano,
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saliento, em primeiro lugar um movimento mais complexo do que a simples
relação causal. Dessa forma, explicita-se uma obviedade: nem todas as igrejas
com características reteté estão localizadas na periferia, assim como nem todas
as igrejas situadas na periferia apresentam caraterísticas que remetem ao reteté.
No entanto, ao retomar o sentido weberiano dado à expressão afinidade
eletiva, busco destacar uma relação de analogia, um fluxo de convergências
da ritualística reteté vivenciada em muitas das pequenas igrejas pentecostais
tão fartamente presentes na experiência periférica.
Citado três vezes em A ética protestante e o espírito do capitalismo (Löwy,
2011, p. 131), com “afinidade eletiva”, Weber (2004) analisava a relação
de reciprocidade entre o protestantismo enquanto movimento religioso e o
desenvolvimento de uma ética específica sob o capitalismo:
Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre as bases materiais,
as formas de organização social e política e o conteúdo espiritual das épocas
culturais da Reforma, procederemos tão-só de modo a examinar de perto se, e
em quais pontos, podemos reconhecer determinadas “afinidades eletivas” entre
certas formas da fé religiosas e formas da ética profissional. Por esse meio e de
uma vez só serão elucidados, na medida do possível, o modo e a direção geral
do efeito que, em virtude de tais afinidades eletivas, o movimento religioso
exerceu sobre o desenvolvimento da cultura material (Weber, 2004, p. 81).
Michael Löwy (2011) sublinha o caráter eminentemente dinâmico da
relação de afinidade eletiva. Com a expressão, Weber destacava uma relação
necessariamente ágil, inerentemente simbiótica, ativa e continuamente
reforçada mutuamente.
Afinidade eletiva [...] contém o elemento da seleção, da escolha ativa, da
atração recíproca. [...] Para Weber, que é antes de tudo um sociólogo da ação
social, essa diferença entre a simples “afinidade” e a afinidade eletiva, entre
uma analogia formal e uma relação ativa, não poderia passar desapercebida
[...] opomos, então, a seguinte definição, partindo do uso weberiano do termo:
afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas,
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intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas
analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em
uma relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência
ativa e reforço mútuo (Löwy, 2011, p. 138-139).
Dessa forma, tendo em consideração o caráter retroatrativo entre o ethos
periférico e a experiência de uma pequena comunidade moral de ritualística
reteté como a Herdeiros do Sião, a afinidade eletiva se manifesta em uma
relação de complementaridade, materializada na significativa variedade de
igrejas com características semelhantes localizadas nas periferias, tal como
observado no campo. As pequenas, ruidosas e numerosas igrejas pentecostais em suas generalidades e em suas especificidades, compõem de forma
privilegiada os contextos das periferias, numa relação dinâmica e intrínseca
com a experiência periférica.
Cláudia Fonseca (1991), em etnografia sobre vivência religiosa na Vila José,
um bairro popular de Porto Alegre (RS), percebeu a relação entre os diferentes
grupos religiosos e a experiência cotidiana dos moradores. Para a autora, as
interações ocorrem tanto em um nível vertical, forjada no interior das denominações religiosas, como em nível horizontal, a partir das relações entre vizinhos.
Em consonância, ampliando as reflexões sobre afinidade eletiva entre
comunidades pentecostais com a vizinhança nos contextos em que se inserem
é possível analisar as colocações de Simon Coleman (2006). O autor, ao
refletir sobre ética e ação, destaca que as expressões pentecostais se estabelecem necessariamente em uma condição de abertura de suas fronteiras. A
relação, sempre tensionada e dinâmica, com o contexto fora das comunidades pentecostais é um fator que conforma essas próprias comunidades,
numa interação na qual as fronteiras são constantemente acionadas, num
movimento de permanente construção.
Um ponto similar, e muitas vezes subestimado, é que as fronteiras através dos
quais os Pentecostais atuam não estão simplesmente “por aí”, expressando de
alguma maneira as diferenças essenciais entre as visões Pentecostal e local sobre
o mundo. Elas são constantemente construídas e reconstruídas pelos fiéis,
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embora muitos autores pareçam pensar que o principal motivo para examinar
a atividade pentecostal é pela sua habilidade de converter não-cristãos às suas
visões de mundo. Prefiro reforçar que é igualmente importante examinar
outra dimensão da fronteira: as formas pelas quais o Pentecostalismo em si se
reconstrói através da afirmação de sua necessidade de trabalhar nas fronteiras
que envolvem tanto os fiéis, quanto os não fiéis [...] Tais prestações de conta
são certamente uma forma de auto-objetivação, e a audiência pode ser tanto
o Eu, como um suposto Outro (Coleman, 2006, p. 288).
Assim, especificando a relação de afinidade eletiva e o movimento de
construção fronteiriça entre a Herdeiros do Sião e o contexto de São Pedro
e do Morro Conquista, observei que além da evidente associação aos valores
hierárquicos (Dumont, 1985; Duarte, 1986; 2005) manifesto nas relações
de vizinhança e das redes de parentesco, o ethos periférico se estabelece a
partir de uma paisagem sonora (Schafer, 1997) bastante específica9. Em
São Pedro e o Morro Conquista, a intensa circulação de pessoas nos becos e
vielas é embalada pelos sons das conversas, das músicas de funk, do pagode,
dos hinos evangélicos, que compõem uma confluência sonora marcada por
referências locais e globais (Pereira, 2018). Na junção sonora do Morro
Conquista, igrejas pentecostais como a Herdeiros do Sião disputam a política
da presença (Oosterbaan, 2008) por meio dos sons que produzem. Assim, a
presença desses templos religiosos de pequeno porte é percebida pela exaltação de seus louvores e hinos, transmitidos à significativa distância. Muitas
vezes presenciei “rodas” de jovens que não eram oficialmente pentecostais
conversarem alguns portando roupas associadas ao funk nas calçadas em
frente as igrejas (Pereira, 2018). Além disso, observando as recomendações
de Forsey (2010) sobre a escuta etnográfica parecia se estabelecer na região,
uma certa rotina sonora baseada nos cultos. Depois de um tempo morando
em Conquista, já consegui distinguir quais cânticos e orações pertenciam
a algumas das diversas igrejas vizinhas à minha casa.
9
“[...] o ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como
um campo de estudos” (Schafer, 1997, p. 366).
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“Deixa o menino rodar”: o sobrenatural, o fogo e os corinhos
Diante da pluralidade de igrejas pentecostais de pequeno porte presentes
em Conquista, tentei entender alguns dos pontos distintivos observados em
tais denominações, tendo como cerne a experiência na Herdeiros do Sião.
Pondero, contudo, que não é intenção promover uma tipologia. Antes disso,
trago alguns pontos de reflexão que, acredito, possam trazer luzes sobre a
singularidade da forma de religiosidade aqui abordada em sua relação com
o ethos periférico a partir de uma relação de afinidade eletiva e construção
fronteiriças. Talvez o mais expressivo desses pontos seja a associação explícita
dos rituais pentecostais com a dimensão sobrenatural. O termo, aliás, está
presente tanto nos cultos quanto no cotidiano. Para iniciar a reflexão sobre
como essa dimensão sobrenatural é experienciada, cito algumas músicas
associadas diretamente a ele:
Eu sou pentecostal,
fui gerado no fogo,
eu fui nascido no fogo,
o meu ambiente é o sobrenatural.
Sou batizado com fogo,
sou renovado com fogo.
Eu sou curado no fogo,
meu ambiente é o sobrenatural
(Flordelis, “Eu sou pentecostal”, grifos nossos).
Os versos apresentados acima trazem uma questão importante a respeito
da pentecostalidade produzida em comunidades morais (Mafra, 1999) como a
igreja Herdeiros do Sião. Percebe-se que a dimensão sobrenatural é representada pelo elemento “fogo”. Presente na narrativa bíblica sobre o surgimento
do espírito santo, a associação com o elemento fogo pode ser percebida como
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a sensação sinestésica do contato com o espírito santo. Expressões como “é
puro fogo” e “o fogo desceu” são ditas repetidas vezes nos cultos10.
Atestando a importância do elemento fogo durante a estada em
Conquista, percebi que os integrantes das igrejas pentecostais são muitas
vezes chamados de “canelas de fogo” ou de “sapatos de fogo”. O próprio
contato com o espírito é chamado de “batismo pelo fogo”. Assim, em um
culto reteté, principalmente no momento do avivamento, há a junção de
dois elementos: o fogo e o espírito sobrenatural. Na igreja Herdeiros do Sião,
como em tantas outras de caráter semelhante observadas, no momento do
avivamento, no qual ocorrem as manifestações do espírito santo, os integrantes – em geral pobres, negras, mulheres – assumem-se como guerreiros
numa batalha, na qual têm o próprio Deus, travestido como espírito santo,
como aliado. Cito música bastante executada nos rituais:
Ele é um anjo de fogo,
no seu pé tem fogo.
Na sua mão tem fogo,
no cabelo tem fogo,
no seu andar tem fogo,
ele caminha no fogo aqui neste lugar.
Labareda de fogo,
fogo, fogo, fogo.
10
Não apenas nas pequenas igrejas pentecostais o fogo é elemento fundante; observa-se que
a associação com o fogo diz respeito à própria narrativa de origem do pentecostalismo.
De acordo com os pentecostais, a explicação sobre o espírito santo encontra-se em um
dos livros da Bíblia, denominado Ato dos Apóstolos. Lendo a narrativa, percebe-se que
Jesus Cristo, após ascender aos céus, teria enviado aos seus discípulos uma força em forma
de línguas de fogo. O contato com tais manifestações teria resultado em exaltação física,
e a partir daquele mana, os discípulos se puseram a falar todas as línguas do mundo.
Essa força em forma de fogo era o espírito santo. Este, em resumo, é o mito inicial dos
pentecostais. É possível dizer que o culto e a crença na atualidade do espírito santo são
os denominadores comuns entre pentecostais, entre os quais estão inseridos os reteté.
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Sinta a glória de fogo,
fogo, fogo, fogo.
Levante a mão e receba fogo,
fogo, fogo, fogo do altar.
Labareda de fogo,
fogo, fogo, fogo.
Sinta a glória de fogo,
fogo, fogo, fogo.
(Fogo no Pé, “Labareda de fogo”, grifos nossos)11
Outro ponto que destaco sobre a pentecostalidade exercida na Herdeiros
do Sião são os cultos de batalha espiritual. Na igreja, observei que as celebrações de batalha espiritual são mais sensoriais e mesmo menos dependente do
dirigente litúrgico do que os cultos observados na Igreja Universal, onde a
batalha seria, segundo Mariano (2003, p. 25) “hipertrofiada”. De fato, não
presenciei no tempo de campo na Herdeiros do Sião rituais de exorcismo
como os observados nas IURDs.12 Contudo, destaco que observei que,
mesmo o exorcismo não se conformando como prática corrente nos rituais
reteté da Herdeiros dos Sião, a batalha espiritual se apresenta e assume um
conteúdo extremamente beligerante e igualmente hiperbolizado. Palavras
como “batalha”, “peleja”, “guerra”, “marchar” são comuns em diálogos
travados nos rituais e na vida cotidiana. Apresento emblemático hino,
“Batalha travada”, bastante executado durante os rituais observados. Na
letra, a repetição das palavras “batalha”, “peleja e “valente” dão o tom:
Batalha travada é nessa Terra.
Eu entrei nessa peleja foi pra pelejar.
11
LABAREDA de fogo. [S. l.: s. n.] , 2015. 1 vídeo (ca. 5 min). Publicado pelo canal
Claudete Santos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kp_eMWDagXo.
Acesso em: 2 set. 2019.
12
A menor ênfase aos rituais de exorcismo em pequenas comunidades morais foi observada
desde Clara Mafra (1999).
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Eu entrei nesta guerra foi pra guerrear,
eu entrei nessa peleja foi pra pelejar,
nessa terra.
Ele é valente na batalha (4x).
A batalha vai começar,
a batalha vai começar.
Esta terra é de conquista
e o mais valente conosco está.
(Ednaldo do Rio, “Batalha travada”)
Um ponto significativo: as músicas entoadas durante o momento de
avivamento têm papel importante para a experiência extática. Existe uma
categoria especial de músicas relacionadas à experiência de transe. Tais
músicas são chamadas de “corinhos de fogo”.
Em minhas observações, percebi que há uma rede de cantores e compositores de corinhos. Alguns inseridos no mercado gospel mais amplo e
profissionalizado, como o grupo Fogo no Pé e as cantoras Damares e Cassiane.
Mas, além disso, percebo uma dinâmica entre as próprias igrejas reteté.
Alguns cantores e compositores costumam circular entre as denominações apresentando suas músicas. Presenciei um desses cantores em visita
à Herdeiros do Sião, em 2014. Durante o culto, cantou uma música, um
forró em ritmo acelerado.
Além das redes entre as igrejas, a internet, em especial a plataforma de
vídeos YouTube, parece ser terreno propício para a divulgação dos corinhos
de fogo. Uma pesquisa rápida é suficiente para perceber a diversidade de
artistas que se dedicam aos corinhos, e os temas são diversos (Albuquerque
Jr., 2014). Há os de caráter pedagógico, como “Varoa do reteté”13, que trata
do papel feminino nas comunidades religiosas; ou “Crente disfarçado”, sobre
13
VAROA do reteté. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (ca. 4 min). Publicado pelo canal Muro
de Fogo Oficial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cuHYZPvK7PM.
Acesso em: 2 set. 2019.
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a hipocrisia nas relações dentro da igreja: “diz que é do manto, diz que é
mulher de oração, mas usa a língua pra falar mal dos irmãos”14.
Há também os corinhos em críticas diretas a outras denominações religiosas. Deste tema, cito “Macumba não mata crente”, sobre as religiões de
matrizes africanas, em especial à umbanda: “Mas porque eu sou protegida,
revestida de poder. Podem até fazer macumba, mas quem fez é quem vai
morrer”15. Há ainda críticas ao catolicismo. Em “Deixa Maria por Jesus”,
o corinho começa com a introdução de “Ave Maria”, clássico do francês
Charles Gounod. Após a introdução, o ritmo de forró irrompe: “Deixa Maria
por Jesus. Quem morreu na cruz pra me salvar, não foi Maria, foi Jesus”16, 17.
Contudo, apesar da diversidade de temas, a maioria das músicas possui um
tom beligerante e bélico, o que é de extrema importância litúrgica para os
ritos reteté.
Devo dizer, porém, que os corinhos não são as únicas categorias de música
executadas nos rituais. Além deles, existem os hinos de louvor, que geralmente
possuem um conjunto melódico mais diverso e menos exaltado, mais próximo
ao gospel religioso norte-americano. Contudo, liturgicamente, os corinhos de
fogo são geralmente executados como uma espécie de “evocação” ao espírito
santo e, geralmente, são os corinhos as músicas ouvidas durante o momento
do avivamento. Argumento que a própria estrutura melódica é geralmente
composta por um padrão rítmico. De acordo com Arthur Costa Lopes (2016,
p. 615), a estrutura costuma ser composta “por duas colcheias e uma semínima
14
CRENTE disfarçado. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (ca. 7 min). Publicado pelo canal Kleber
Corrêa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KZk1xy8ow8I. Acesso em:
2 set. 2019.
15
MACUMBA não mata crente. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (ca. 6 min). Publicado pelo
canal Grupo de Louvor Geração Peniel. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=KFIDitNHt5A. Acesso em: 2 set. 2019.
16
DEIXA Maria por Jesus. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (ca. 5 min). Publicado pelo canal
Delcidio Rodrigues: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fW_qxoG43QI.
Acesso em: 2 set. 2019.
17
Em alguns corinhos, percebi um tom jocoso.
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(compasso binário, na qual a semínima é a referência)” (Lopes, 2016, p. 615),
o que, para o estudioso, remetem ao ritmo forró. Acredito que o forró executado pelos corinhos reflita o tom de euforia das cerimônias de avivamento.
Além disso, sua composição poética é marcada pelas várias e criativas rimas,
conferindo musicalidade às letras. “Divisa de fogo”, do grupo Fogo no Pé:
Divisa de fogo, varão de guerra.
Ele desceu na Terra.
Ele chegou pra guerrear (4x).
Foi no quartel general, de Jeová,
você tem que aprender, você tem que adorar.
E uma bola de fogo aqui descerá,
se você tem olhos ungidos,
pode contemplar.
Mas desceu um Varão Resplandecente lá da glória
(Fogo no Pé, “Divisa de fogo”)18
Composto por uma introdução e poucos acordes de harmonização,
percebe-se pelos grifos na citação a preocupação com as rimas19. Para Gilbert
Rouget (1980, p. 180), os significantes musicais têm uma dimensão denotativa e afetivo-emotiva, que remeteriam a estados emocionais como a alegria,
a tristeza, a raiva (Rouget, 1980, p. 150). Todas essas dimensões, que são
construídas culturalmente, podem possibilitar o estado de transe (Aubrée,
1996). Assim, acredito que, como a maioria dos corinhos de fogo, a música
“Divisa de fogo”, com suas repetições harmônicas, conduza a uma dimensão
afetiva que remete a um caráter beligerante conhecido e reconhecido nos rituais
reteté. Destaco que tal caráter beligerante não se estabelece apenas pela melodia,
18
DIVISA de fogo. [S. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (ca. 3 min). Publicado pelo canal Marcos
Paulo Ferreira da Silva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5zZ4rvAazYE.
Acesso em: 2 set. 2019.
19
Agradeço as valiosíssimas contribuições do cantor lírico Evandro Santana e do pianista
Saulo Araújo.
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mas também pelas letras. “Varão de guerra”, “guerrear”, “quartel general”,
“vitória” são expressões presentes na letra de “Divisa de fogo”. São expressões
conhecidas pelo grupo. Lembro-me que nos cultos da Herdeiros do Sião e de
outras igrejas reteté, quando corinhos expressivos como o “Divisa de fogo”
eram executados, havia uma evidente mudança de tom. As palmas ficavam
mais fortes; os cânticos, mais intensos; os gritos de aleluia ganhavam mais
força. Assim, como um misto de forró e de grito de guerra, de emblema e de
catarse, o corinho de fogo se estabelece como possibilitador de uma experiência
religiosa coletiva associada à experiência do contato pelo espírito santo. Uma
experiência que, segundo os interlocutores, é afetiva e sinestésica, remetendo
a um caráter revigorante de “poder”, “renovação”, “fogo”, “vitória” e “batalha”.
Além dos corinhos de fogo, a performance corporal nos cultos também
reflete a associação com o sobrenatural. Sob o contato com o espírito santo, os
fiéis parecem reproduzir um padrão corporal de uma dança rodada. Como já
mencionado, os integrantes, aparentando transe, costumam “rodar”, como um
balé giratório. Alguns fiéis usam a expressão “manto” para se referirem a essa
performance. Novamente, cito um corinho de fogo que aborda a tal dança rodada.
Eu posso ser crente menino,
mas não adultero, eu posso ser crente menino,
mas eu não me vendo,
eu posso ser crente menino, mas eu sei adorar,
então deixa o menino rodar.
Deixa o menino rodar. (4x)
Que que tem, que que tem se eu rodo assim?
Que que tem, que que tem se eu dou lugar assim?
Que que tem se eu adoro assim?
É melhor pular aqui do que lá na Sapucaí
(Ministério Ardendo em Fogo, “Crente menino”)20
20
CRENTE menino. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (ca. 3 min). Publicado pelo canal Celebrai
Music. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-2n_LjSoTVg. Acesso em:
2 set. 2019.
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Quando abordamos a ligação com o sobrenatural, fatalmente abordamos os conceitos de transe, experiência extática e possessão, que são temas
ancestrais na Antropologia (Turner, 1974; Evans-Pritchard, 2005) – desde
os estudos do xamanismo, que vão desde Boas, passando por Lévi-Strauss,
até chegar a autores como Langdon (1996) e Lewis (1971). No Brasil, os
estudos sobre transe e possessão, na maioria das vezes, estiveram ligados às
religiões de matriz africana (Maggie, 1975; Goldman, 1985; Birman, 1996).
Nesse sentido, presenciei o uso de termos como “manto do espírito”,
que seria a forma como o espírito santo se manifesta sobre o fiel. Alguns
integrantes da Herdeiros do Sião falam que a sensação é como se o espírito
os “cobrisse” tal qual um manto. Outro termo é a “revelação”, uma espécie
de profecia, em que o contato com o espírito santo “revela” algum fato sobre
uma pessoa ou situação. Também há a categoria “mistério”, que é usada
para designar fatos sobrenaturais e sem explicação. O mistério, contudo, é
sempre ligado a Deus e nunca ao diabo. Aqueles agraciados pelos dons da
revelação, aqueles que têm contato próximo aos mistérios, são considerados
profetas. Percebo que os profetas têm grande prestígio nas relações travadas
dentro templo. Considerados os mais ungidos, geralmente exercem funções
de liderança (Pereira, 2018).
Durante os cultos, a revelação profética costuma acontecer durante
o avivamento. As orações são irrompidas com expressões utilizadas pelos
profetas bíblicos: “Eis que te digo!”, “Assim diz o Senhor!”, “Deus manda
dizer!” são algumas das expressões que costumam proferir aqueles agraciados
pelo dom da revelação. É a senha para o momento de “entregar a profecia”
ou “entregar o mistério”. O profeta revela a profecia individualmente. Cada
um dos participantes dos cultos pode ser escolhido para uma revelação. As
revelações podem dizer respeito a supostas “feitiçarias” ou “macumbarias”;
a pecados cometidos por algum fiel; a um “livramento” recebido. Em uma
comparação com os rituais da Herdeiros do Sião e de outras igrejas de
pequeno porte presentes nas periferias, nas quais a figura da profecia é um
valor estimado, observa-se em denominações de maior porte com estrutura
mais hierarquizada, como a IURD, que a revelação não é apenas desestiDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
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mulada, mas combatida21. Na página eletrônica da IURD, por exemplo, o
dirigente Edir Macedo condena textualmente a prática da profecia:
Nada tem sido tão devastador nas igrejas como a ignorância com respeito
às profecias. Da mesma forma como Satanás tem usado a falsidade de línguas
estranhas também tem se aproveitado da falta de discernimento espiritual
com respeito às profecias. E o pior é que muita gente escolada também tem
se rendido às farsas das “profetas” que, diga-se de passagem, são mulheres mal
casadas ou frustradas sentimentalmente.22
Há que se dizer, contudo, que existe certa desconfiança para com alguns
profetas. Ouvi integrantes da Herdeiros do Sião se dizerem desconfiados
sobre a veracidade das revelações de alguns “irmãos”; percebi outros dizerem
que os dons proféticos de terceiros eram advindos do “diabo”. Contudo,
reitero que aqueles profetas considerados realmente ungidos possuem grande
status na comunidade religiosa.
Percebi entre aqueles considerados profetas uma conotação de orgulho
e poder. Em outro corinho de fogo, chamado de “Não toque no ungido”,
percebe-se uma postura orgulhosa do crente em sua relação com a transcendência. Sempre protegido por Deus, o fiel estaria imune a eventuais
adversidades causadas por outras pessoas. Os versos são emblemáticos:
“quem tocar no crente ungido vai com a cara na poeira”.
Não adianta levantar contra os ungidos.
Mexer com os ungidos é brincar com fogo.
21
MARTINS, Dan. Bispo Edir Macedo publica alerta a fiéis da Igreja Universal contra “profetas
e profetisas”. Gospel+, São Paulo, 28 abr. 2013. Disponível em: https://noticias.gospelmais.
com.br/edir-macedo-publica-alerta-a-feis-da-igreja-universal-contra-profetas-5327.html.
Acesso em: 2 set. 2019.
22
MACEDO, Edir. Não se deixe enganar... Blog Bispo Edir Macedo, São Paulo, 2 mar. 2017.
Disponível em: https://www.universal.org/bispo-macedo/blog/. Acesso em: 2 set. 2019.
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Quem mexer com crente ungido não é brincadeira,
quem tocar no crente ungido vai com a cara na poeira.
(Damares, “Não toque no ungido”, grifos nossos)23
Dessa forma, dom da profecia parece se revelar num movimento constante, possibilitando uma forma de estar no mundo profundamente “mágica”,
numa conotação a um só tempo de poder e de responsabilidade. Aduzo que
a profecia é uma expressão significativa da experiência reteté em pequenas
comunidades morais como a Herdeiros do Sião. Assim, argumento que a
partir da expressividade das performances rituais e na mediação, a um só
tempo ética e mágica, do espírito santo, as pequenas igrejas pentecostais
reteté afirmam-se a partir de suas interações na própria comunidade religiosa
e nas relações de vizinhança no cotidiano das periferias.
CONCLUSÃO
Ao apresentar pontos de reflexão sobre a igreja pentecostal Herdeiros
do Sião, a intenção foi associar a pentecostalidade praticada em tal denominação com o ethos periférico representado pelo próprio bairro de localização
da igreja. Com os elementos etnográficos, observei que as pequenas denominações pentecostais e seus ruidosos cultos compõem a paisagem sonora
da localidade. Dessa forma, argumento que entre a Herdeiros dos Sião – e
sua ritualística reteté – e o contexto do bairro em que está inserida há uma
relação de afinidade eletiva (Weber, 2004) marcada pelo dinamismo e pela
influência mútua entre comunidade religiosa e o contexto da favela. Uma
relação, na qual as interações são forjadas tanto no interior da denominação
religiosas, como relações entre vizinhos (Fonseca, 1991). Nesse sentido,
concebo que comunidades pentecostais presentes nas favelas são estabelecidas
23
NÃO toque no ungido. [S. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (ca. 4 min). Publicado pelo canal
Jonas Alexandre. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=maxqYR6D8S8.
Acesso em: 2 set. 2019.
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a partir do contato com o entorno, possibilitando uma relação na qual as
fronteiras são constantemente acionadas, num movimento de permanente
construção entre a igreja e o contexto (Coleman, 2006).
Os rituais da igreja aqui estudada são analisados a partir da categoria
reteté, expressão de grupo para se referir aos ruidosos e extáticos rituais de
culto ao espírito santo marcados pela expressividade das performances corporais, que lembram uma dança giratória. Destaquei que “reteté” configura-se
como uma categoria de acusação (Becker, 1985; Velho, 1978), demarcando
uma complexa disputa por legitimidade dentro do campo evangélico. Nesse
sentido, os protestantes históricos – vistos como racionais e teologicamente
corretos – e entre os reteté, acusados de “heréticos”. Tais acusações relacionadas aos reteté, para além de revelar a diversidade do campo pentecostal,
explicitam uma disputa, na qual a ritualística reteté – muitas vezes vivenciada em pequenas comunidades localizadas nas periferias e sem a formação
de lideranças de grande vulto – é relativamente invisibilizada no espaço
público. Aduzo que tais assimetrias se refletem na associação das pequenas
comunidades reteté como a Herdeiros do Sião à condição periférica, também
invisibilizada e estigmatizada (Machado, 2005; Sant’Ana, 2014).
Em sua associação com as periferias, as igrejas reteté foram enfatizadas
por sua ênfase na dimensão sobrenatural, utilizando aqui uma categoria nativa.
Percebe-se que tal dimensão é representada pelo elemento “fogo” e por categorias
como manto, que seria a forma como o espírito santo se manifesta sobre o fiel,
e a revelação, uma espécie de dom profético concedido a alguns, conotando
um fator de distinção na comunidade religiosa. Além disso, a música expressa
pelos corinhos de fogo tem grande importância na experiência.
Assim, em conclusão, argumento que a análise da pentecostalidade
praticada em comunidades morais, como a Herdeiros do Sião, centradas na
experiência de maravilhamento do espírito santo operando na expressividade das performances rituais reteté e na mediação, a um só tempo ética e
mágica, tais igrejas florescem na vida cotidiana das periferias urbanas a partir
de uma relação de afinidade eletiva do contexto em que estão inseridas, em
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um movimento constante de circulações fronteiriças entre tais igrejas e os
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